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JOÃO PESSOA, PB
2015
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JOÃO PESSOA, PB
2015
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Aprovado em ______/_________/____________
Banca examinadora
____________________________________
Profª. Drª. Margarete Almeida Nepomuceno
Orientadora – UFPB
____________________________________
Profª. Drª. Glória Rabay
Examinadora – UFPB
____________________________________
Profª. Ms. Cândida Nobre
Examinadora convidada
4
À minha mãe.
5
AGRADECIMENTOS
RESUMO
Este trabalho apresenta-se em formato de ensaio e traz em seu enredo uma discussão
ampliada sobre as formas pelas quais a heteronormatividade age, imprimindo padrões
e estigmas através do controle e da vigilância. Mostrando a sexualidade como um
constructo social e o gênero entendido como parte discursiva de uma cultura e de um
tempo, o trabalho reflete acerca dos signos de uma masculinidade presente no meio
em que vivemos e como eles estão impregnados nos seres sociais, empregando uma
força e um modelo a ser seguido. Utilizando referências da Teoria Queer para
embasar a fuga do padrão por meio de uma sexualidade sem eixos convencionais, e
através de subjetividades de uma interpretação pessoal e de outras leituras, o ensaio
traz uma análise e uma abordagem sob a figura da Bicha pão com ovo, propondo uma
ressignificação em cima desse termo de carga tão pejorativa.
ABSTRACT
This study is presented as an essay and brings in its structure an amplified discussion
about the ways in which heteronormativity acts, impressing standards and stigmas
through vigilance and control. Presenting sexuality as a social construct and gender
as a discursive part of a certain culture and time, this work speculates about
masculinity signs present in the environment we live and how they are impregnated on
social beings, employing a determined force and style to be followed. Using references
of Queer Theory to base the scape of binary standards through a sexuality without
conventional axis, and through subjectivities of a personal interpretation and other
readings, the essay brings an analysis and an approach to the image of the “Bicha pão
com ovo” (faggot), proposing a resignification on such a pejorative term.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
ENSAIO..................................................................................................................... 15
Conclusão ................................................................................................................. 45
INTRODUÇÃO
pressão social. Portanto, não sendo algo natural, mas forçosamente fabricado e
reforçado o tempo inteiro, atacando agressivamente a qualquer sinal de ameaça.
Para entender a dimensão dessa naturalização da heterossexualidade,
propomos a discussão acerca de uma personagem especialmente conhecida no
âmbito da cultura gay, sendo a sua nomeação advinda do vocabulário utilizado por
membros desse corpo social.
A bicha pão ovo1, personagem título deste trabalho, é um desses exemplos que
serve para mostrar como nossa cultura ainda é refém da valorização e do culto da
masculinidade. E quando o homem, mesmo que seja gay, afasta-se de uma
performance que é entendida como masculina e/ou porta características ou
acessórios que não são lidos como masculinos, ele choca, perturba e provoca.
Por meio de uma tentativa de compreensão da forma de uso da expressão
bicha pão com ovo e em que perfil ela se encaixa, propõe-se problematizar que
sentidos essas posições sexuais pré-definidas assumem num contexto social e
cultural.
Tais questionamentos me levaram, diante da expressão bicha pão com ovo, a
refletir de que modo as relações entre perfis homossexuais se estruturam e se
baseiam; analisar como se encaixam esses perfis e estereótipos de expressões da
sexualidade dentro de uma estrutura hierarquizante.
Este ensaio propõe não só uma discussão em cima dos parâmetros de
heterossexualidade constituídos socialmente como padrão, mas instiga também a
pensar uma ressignificação do vocábulo bicha pão com ovo. Partindo do pressuposto
da sexualidade enquanto uma forma de controle social, o presente trabalho enseja as
maneiras pelas quais o sexo é vigiado e controlado, e incita, assim como feito pelos
teóricos queers em relação ao termo que nomeia esta corrente de estudo, um
reposicionamento político daquela nomenclatura.
Com maior liberdade e desprendimento de uma formalidade textual
esquematizada, em busca de uma leitura ampliada, bem como abarcando referências
bibliográficas e depoimentos de personagens e suas visões pessoais, o trabalho
apresenta-se em formato de “ensaio jornalístico”. Buscando menos uma formulação
1A expressão "pão com ovo" é utilizada também para designar um sujeito definido como homossexual
afeminado/afetado, estereotipado, geralmente pobre. O termo ainda pode ser entendido como algo
ordinário, medíocre, comum.
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O grande risco do ensaio [...] é que ele facilite a fuga à pesquisa necessária.
Mas, se não for utilizado como subterfúgio à investigação, traz a vantagem
da forma livre, da sinceridade, do impulso criativo e, ainda que pareça
paradoxal, da possibilidade de exposição objetiva de uma ideia nuclear, que
aparece mascarada quando em um texto de estrutura inflexível. Isso apenas
para enunciar alto a título de pré-introdução. (RODRIGUEZ, 2012, p.12)
2ADORNO, Theodor W. Ensaio como forma. (In) Notas de literatura I. São Paulo: Ed. 34, 2003.
Disponível em:
<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/181008/mod_resource/content/1/Adrono.%20El%20ensay
o%20como%20forma.pdf>. Acessado em: 19 de dezembro de 2014.
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Foucault, em seu texto “A escrita de si”, nos fala da memória que esse formato
de expressão em primeira pessoa evoca das “coisas lidas, ouvidas ou pensadas”
(FOUCAULT, 1992, p.135). Diz ele que a escrita de si é matéria que se constitui a
partir das subjetividades do sujeito, e que ela em si define o próprio sujeito. Para ele,
nessa linha narrativa “trata-se não de perseguir o indizível, não de revelar o que está
oculto, mas, pelo contrário, de captar o já dito; reunir aquilo que se pôde ouvir ou ler,
e isto com uma finalidade que não é nada menos que a constituição de si”
(FOUCAULT, 1992, p.137).
De um modo natural, observando o conceito da palavra ensaio em seu sentido
mais difundido, que remete ao ato de treinar antes de alguma apresentação pública,
podemos visualizar este gênero textual como um local de construção e de
experimento. Seu caráter de gênero opinativo, bem como sua exposição de modo
descritivo-explicativa, junto a uma instituição de pesquisa e rigor científico fez do
gênero ensaio a minha escolha na formulação deste Trabalho de Conclusão de Curso
(TCC).
Dentro da construção deste trabalho, vamos recorrer regularmente à pesquisa
bibliográfica feita previamente para embasamento do mesmo. Usamos elementos
bibliográficos que vão de Foucault, em sua reflexão sobre os propósitos da
sexualidade enquanto aparato de poder e controle, a argumentos formulados e
utilizados largamente pelos teóricos que fizeram parte do que se entende como
estudos queers.
Proposições feitas no esboço da Teoria Queer, surgida no fim dos anos 1980,
nos Estados Unidos, e ainda pouco conhecida aqui no país, foram de grande
importância para instaurar e posicionar elementos sobre a sexualidade que
apareceram ao longo dessa pesquisa. Conceitos empregados por Judith Butler,
teórica mais conhecida dessa corrente aqui no Brasil, aparecerão ao longo do
processo, e a apropriação de seus posicionamentos, ainda que por meio de outros
pesquisadores consultados na pesquisa, também são recorrentes.
Questionar a perfomatização dos gêneros e de seu posicionamento social
numa hierarquia invisível, que elege a heterossexualidade e seu comportamento
enquanto padrão, é uma reflexão reproduzida da Teoria Queer, que propõe
problematizar os seres sociais enquanto elementos regidos pela heteronormatividade,
e foi parte fundamental nesse processo de construção do texto. Jeffrey Weeks,
14
ENSAIO
Era meu primeiro ano naquela nova escola. Eu até então só tinha estudado
numa escolinha de bairro que ficava a poucas quadras da minha casa. Estava ansioso,
sabia que entraria num ambiente totalmente diferente, que conheceria novos
professores, que faria novas amizades. Decidi mostrar o melhor de mim. Lembro que
a preparação para o primeiro dia havia sido mais que tensa, e a ansiedade
transformava-se em insegurança e angústia.
Para mim, parecia mais que só uma volta às aulas habitual, era o começo de
uma nova fase. E foi naquele ano e naquela escola, na 2ª série do ensino fundamental
I, aos 8 anos, que eu me vi pela primeira vez como alvo de agressões das mais
diversas, a princípio verbais e depois também físicas. Não lembro exatamente quem
me atirou as primeiras palavras de injúria, mas elas tiveram o efeito de uma bomba
devastadora ao chegarem aos meus ouvidos.
“Viado!”. Creio que essa tenha sido a primeira palavra de ofensa, seguida de
outras. Mas não duvido também que tenha sido uma de suas variações. Digo que fora
agressiva não porque eu soubesse realmente o significado da palavra àquela época
– que eu só iria descobrir mais tarde – mas o riso dos coleguinhas que estavam ao
redor e o tom usado na palavra, me garantiam que ela não tinha uma conotação
amigável.
Desconfio que nem mesmo eles, os agressores, sabiam o significado que
aquela palavra tinha. Provável que estivessem reproduzindo um discurso opressor
que eles ouviram em algum lugar, em casa ou na rua, e percebendo naquela
expressão o potencial de injúria e ofensa, usaram-na para agredir, diminuir e humilhar.
Essa é a recordação mais antiga que tenho de uma agressão por causa de
minha sexualidade. Me deparara com uma forma de violência diante da qual eu não
me sentia preparado, perante a qual eu ainda não sabia me defender. Não me sentiria
preparado para ela, pelo menos, nos 10 anos seguintes. Eu não sabia que essa forma
de agressão iria me acompanhar pela vida toda. E que aquilo era só um começo.
Deparava-me com as primeiras repressivas. Não sei se houve alguma antes,
muito provavelmente. Mas essa época é uma das que está viva na minha memória
como começo das agressões e retaliações contra mim e minha expressão de gênero.
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Foi nesse período em que comecei a descobrir que existia algo de “diferente” comigo.
Não só no meu comportamento, mas também no meu desejo, apesar de ainda muito
reprimido.
Eu não era o garoto padrão, e por apresentar alguns sinais que não eram bem
lidos como masculinos (o que me destacava e diferenciava dos outros), ainda que eu
fosse apenas uma criança, já causava desconforto em alguns parentes, professores
e coleguinhas de classe, que incomodados com o meu comportamento e
personalidade, procuravam através do constrangimento e da agressão, física ou
verbal, me reprimir e constranger. Talvez por parecer mais frágil e menos masculino
do que um menino deveria ser, talvez como uma punição corretiva por eu ousar ser
assim. E enquanto os professores faziam vista grossa, eu continuei sendo o alvo da
sala por longos anos.
Foi na família, com os olhares e comentários dos parentes, e nas primeiras
lições da escola, não aquelas colocadas no quadro para que tomássemos nota, mas
outras que eram passadas de maneira constante e não estavam na grade curricular,
que aprendi que eu não me encaixava no perfil de menino que a sociedade já tinha
escrito.
A reação a tudo isso e a conclusão a que eu chegara, era que realmente
precisava mudar. E foi assim que durante anos mantive uma dura vigília e controle
sobre mim mesmo, para tentar mostrar mais masculinidade, para ser menos “pintoso”
e “afetado”, para ser mais “macho”.
Acreditava que sendo assim, eu estaria finalmente fazendo o papel certo na
sociedade, o que era esperado de mim, e não teria mais que me preocupar em estar
sendo incoerente, por conseguinte. Eu havia nascido homem, e já pesava sob meus
ombros, desde a tenra idade, a carga da masculinidade; sendo esperado que eu
assumisse esse papel, agindo da forma como se entendia que um homem performava
no meio social em que vivia.
As memórias que introduzem este texto são parte da minha história e ajudaram
a formar a pessoa que sou hoje. Exponho meu relato, porque, apesar de dizer respeito
apenas a mim, ele pode servir de ponto de partida para discussão de um ponto que
nós queremos tratar neste trabalho: retratar a violência (vigilância) das regras de
normatização a que todos e todas nós, principalmente aqueles que escapam do
padrão normativo sexual, somos constantemente submetidos. Mas ele é apenas um
dos que compõem este trabalho.
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A desnaturalização da sexualidade
O que temos, ainda hoje, dada a construção de sociedade que se criou ao longo
das décadas, é uma aceitação natural da heterossexualidade e uma desqualificação
e retaliação automática de seu par binário. O meio social se mune de uma forma de
proteção da sexualidade vigente, que de maneira perversa se impõe continuamente
aos sujeitos sociais. E todo aquele que se coloca contrário ao esquema pré-
desenhado é fortemente combatido. Essa norma que entende o comportamento
heterossexual como natural e taxa qualquer outro comportamento como inaceitável é
chamada de heteronormatividade.
A perversa heteronormatividade
Como em toda a sociedade, nos meios considerados como gays existe uma
variação enorme de perfis e performances. Com toda a sua diversidade, não há como
pressupor ou afirmar que exista um padrão específico que defina o não-heterossexual.
Isto é, dentro da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Transgêneros), pode-se observar uma ampla gama de identidades de
gênero e orientações sexuais. É limitado pensar que exista apenas dois gêneros
(masculino e feminino), posto que “uma considerável parcela das pessoas prefere ficar
nos trânsitos e/ou nas margens”, como aponta o pesquisador e professor Leandro
Colling (2012, p.114) em artigo publicado no e-book “Olhares Plurais para o cotidiano:
gênero, sexualidade e mídia”.
Braga (2013, p.15) argumenta que “as relações que originam as diferentes
formulações e articulações destas esferas são as mais variadas e o jogo entre as
normas e as experiências não é resolvido por tipologias simplistas.” Pensar num perfil
único que defina o homossexual do sexo masculino, por exemplo, seria, portanto, um
erro gravíssimo, que parte de um reducionismo equivocado e limitador, restringindo a
diversidade.
No entanto, um padrão de comportamento com base num modelo
heteronormativo, mesmo entre os gays, vem sendo tomado como algo natural, pois
está de acordo com as regras do que é tido como próprio do gênero masculino. Isto
é, aquele gay que é mais próximo de um padrão heterossexual, com comportamento
masculinizado e que não aparenta e/ou porta algo ou acessório que o descaracterize
enquanto "homem", tem maior chance de não ser hostilizado como uma bicha ou
viado, por exemplo. Trejeitos afeminados ou comportamentos que fujam da regra
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3MISKOLCI, Richard. A teoria Queer e a Questão das Diferenças: por uma analítica da normalização.
Disponível em: <http://alb.com.br/arquivo-
morto/edicoes_anteriores/anais16/prog_pdf/prog03_01.pdf>. Acessado em: 17 de novembro de 2014
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ou negação pela escola e pela mídia, que às vezes até propõem um discurso de
inclusão, mas permeado pelas formulações que reproduzem modelos antigos e
vigentes de dominação e só acabam por corroborar a posição da sexualidade
heterossexual como natural e legítima.
O processo de regulação é permanente e invisível, por ser entendido como algo
próprio da nossa cultura, e logo não questionado.
Dayvson Lima, estudante de Design de interiores, de 23 anos, é um dos
entrevistados4 que aceitaram dar seus depoimentos e contribuição a este ensaio. Para
ele, este preconceito instituído sobre os homossexuais é ainda mais forte sobre
pessoas mais afeminadas. Ele diz que, quando ganha visibilidade, esse perfil é
retratado pela mídia de modo ridículo, cômico, caricatural e superficial, o que não
ajuda em nada na desconstrução da violência. Ao mesmo tempo, quando mostra um
gay de modo positivo, a mídia geralmente lhe desenha com traços de um
heterossexual. Retrato que, segundo ele, vem acompanhado geralmente de um
relacionamento estável e uma carreira bem sucedida.
O depoimento de Dayvson não é mesmo novidade, mas parece certeiro e
pontual quando expõe o que se espera do gay em nossa sociedade para que ele seja
minimamente reconhecido – não que tenha os mesmos direitos e legitimidade social,
mas para que seja reconhecido – é que ele tenha traços de uma heterossexualidade.
Quanto mais próxima essa expressão de gênero for dos traços sexuais de um
estereótipo heterossexual, mais esta pessoa tem chances de ser reconhecida.
Transformada em ferramenta de controle social, a sexualidade tem sido usada
como mais uma instituição de vigia dentro de uma estrutura de poder. Na sociedade
contemporânea, essas relações de poder são constantes e dão legitimidade aos
normalizados, que se valendo dessa posição de superioridade, afirmam-se enquanto
modelo e agem em função de manter, através da reprodução desse formato, sua
naturalização; impondo violento repúdio aos “desvirtuados”. Aquele gay mais
afeminado ou àquela lésbica mais masculinizada, por exemplo, cabe as
consequências da ousadia exercida em burlar a esquematização pré-definida, sendo
direcionado a estes uma rejeição e violência tamanha.
Dentro de uma cultural sexual marginalizada, surge aquele perfil que tomamos
como ponto de partida para discussão deste trabalho: o homossexual masculino
reconhecido como bicha pão com ovo − aqui representado de uma maneira ampla
como aquele gay mais afetado e estereotipado, que se veste e se comporta de
maneira mais extravagante, geralmente pertencente a uma classe social mais baixa.
Estes se tornam alvos mais frequentes da normalização, mesmo dentro da
comunidade gay, sendo comumente o grupo dos homossexuais mais violentados e
reprimidos.
Acerca desse ponto, o estudioso queer brasileiro Richard Miskolci (2007, p.5)
argumenta que a heteronormatividade é endêmica, e marca até mesmo aqueles que
não se relacionam com pessoas do sexo oposto, agindo como um conjunto de
prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle. Ele observa
que:
Essa lógica que tenta padronizar os corpos, está longe de ser natural ou pré-
discursiva. E apesar de todo o seu empenho contínuo, é falha. Os corpos estão o
tempo todo esquivando-se das padronizações feitas no tecido social, ainda que sobre
constante vigilância. Butler (apud LOURO, 2001) afirma que mesmo que reiterem
sempre, de forma compulsória, a heterossexualidade, paradoxalmente, elas também
dão espaço para produção dos corpos que a elas não se ajustam, para que constituam
o limite. Presentes como sujeitos “abjetos”, eles são indispensáveis, já que fornecem
a fronteira, isto é, “o exterior” para os corpos que “materializam a norma”, os corpos
que efetivamente importam.
Já os “transgressores”, estes são o foco preferido das pedagogias corretivas e
normalizadoras, educadoras da sexualidade, para os quais a sociedade reserva
penas, sanções e exclusões (LOURO, 2004). Este é o caso da bicha pão com ovo,
que não se encaixa numa conceituação simplista de gênero e expressão sexual. Ela
vai para além da anti-norma refletida pelo modelo aceitável, e arrisca-se por um
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5Vocabulário que é apropriado e constituído dentro de um contexto homossexual. Usado como gírias
e empregado entre iguais, o bajubá configura-se como uma gama de palavras específicas do meio
cultural e social gay.
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A convenção do que é entendido como bicha pão com ovo, portanto, constitui
um objeto de estudo queer, pois não se designa como uma identidade regulada e
padronizada, antes como um elemento provocador e incômodo. Logo, sua existência
passa a ser vista como “inimigo” da norma (heterossexualidade padrão) e da anti-
norma (homossexualidade padrão).
Ainda que complexo, não se deve fugir desta discussão tão pouco empreendida
pelas massas. A sexualidade, que para muitos permanece na esfera do natural ou do
grotesco, referindo-se, respectivamente, ao heterossexual e ao homossexual, não
obedece a regras tão simples que possam ser sistematizadas em díades tão
impregnadas, como homossexual e heterossexual, mulher e homem, feminino e
masculino.
Os corpos não se delimitam a uma constituição tão metódica. Na verdade, eles
não se encaixam em perfis tão delineados, sendo a multiplicidade de identidades
muitas vezes ignorada ou esquecida dentro dessa categorização sexual. Construções
identitárias bem marcadas são também excludentes e limitadoras, se percebemos que
elas comumente são colocadas como rótulos e fórmulas, e por pressuposto acabam
cerceando a liberdade de expressão dos seres sociais, que ficam presos a ideias de
como o corpo tem de se comportar ou agir de acordo com seu gênero.
Hoje, como antes, a determinação dos lugares sociais ou das posições dos
sujeitos no interior de um grupo é referida a seus corpos. Ao longo dos
tempos, os sujeitos vêm sendo indiciados, classificados, ordenados,
hierarquizados e definidos pela aparência de seus corpos; a partir de padrões
e referências, das normas, valores e ideais da cultura. Então, os corpos são
o que são na cultura” (LOURO,2004, p.75,)
A afirmativa, mais do que uma descrição, pode ser compreendida como uma
definição ou decisão sobre um corpo. Judith Butler (1993) argumenta que
essa asserção desencadeia todo um processo de “fazer” desse um corpo
feminino ou masculino. Um processo que é baseado em características
físicas que são vistas como diferenças e às quais se atribui significados
culturais. [...] O ato de nomear o corpo acontece no interior da lógica que
supõe o sexo como um “dado” anterior à cultura e lhe atribui um caráter
imutável, a-histórico e binário. Tal lógica implica que esse “dado” sexo vai
determinar o gênero e induzir a uma única forma de desejo. Supostamente,
não há outra possibilidade senão seguir a ordem prevista. A afirmação “é um
menino” ou “é uma menina” inaugura um processo de masculinização ou
feminilização com o qual o sujeito se compromete. Para se qualificar como
um sujeito legítimo, como “um corpo que importa”, no dizer de Butler, o sujeito
se verá obrigado a obedecer às normas que regulam sua cultura (LOURO,
2004, p.15).
ao feminino, como fazer trança no cabelo, habilidade que ele desenvolveu com uma
prima e que diz ter sido fascinado em uma época. Ele estava deixando de ser um
menino e se tornando um homem, como relata. Guarda na memória até hoje um
episódio que o marcou e conta:
Lembro de uma vez que eu estava vendo um ballet e eu achei aquilo muito
bonito. Eu era criança, bem criança, e acho que comecei a tentar imitar
alguém que estava dançando e minha irmã viu. Ela fazia ballet também na
época e me repreendeu. Ela falou: “Olha, você não pode fazer isso! Não pode
dançar assim, porque isso é coisa de menina”. Foi bem chocante para mim.
Eu lembro que eu fiquei mal. E fui começando a entender nesse momento
que eu estava sendo podado.
7Os aplicativos aos quais me refiro estão disponíveis para internet em redes móveis. Os mais
conhecidos são Tinder, Grindr e Scruff.
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sendo menos aceito exatamente pela sua associação com a submissão que é
característica da mulher, "fraca", "sensível" e "tranquila", opostos daquilo que definem
os homens. Nessa contramão, e sendo geralmente melhor aceito, o homem gay que
está de acordo com os padrões de um “homem de verdade” é quem se privilegia, pois
não parece gay e, portanto, atende à sua "masculinidade".
A masculinidade tem sido construída enquanto condição irrevogável na nossa
sociedade. Ser homem, mesmo que seja gay, e não corresponder aos paradigmas
masculinos, é visto como algo inaceitável. O professor Luiz Henrique Colleto discorre
sobre como em nossa cultura essa hierarquia entre gay afeminado e gay
masculinizado é uma herança social antiga e como isso acaba passando
despercebido:
É por isso, portanto, que nesta nossa cultura: gay viril > gay afeminado; e
mais: gay viril é sinônimo de gay cuja orientação sexual passe despercebida
em função da expressão de gênero muito próxima daquela esperada de
homens héteros viris. Não custa lembrar, igualmente, que: hétero viril > gay
viril > gay afeminado, hierarquia que reitera a heteronormatividade
(COLLETO, 2014).
É comum observamos como existe cada vez mais, entre os próprios gays, uma
homofobia velada ou escancarada instituída pela heteronormatividade, travestida de
“preferência ou gosto”.
Comentários ofensivos que vemos tanto no meio digital quanto fora dele, como
“é esse tipo de bicha que aumenta o preconceito” ou “esse tipo de gay escandaloso
não merece respeito”, revelam uma retaliação preocupante ao gay afeminado,
pintoso, e também deixa claro como outras formas de pensar a diversidade de
performances de gênero e as orientações sexuais ainda são ofuscadas pela fórmula
heterossexual.
Rodrigo Fernandes, 23 anos, estudante de Administração, conta que se
identifica com o perfil de homossexual mais discreto e mais masculino. Acredita que
se comporta dessa maneira não tanto pela aprovação dos outros, mas sobretudo para
sua própria aceitação. “Ainda tenho isso da preocupação de parecer masculino, de
parecer viril. Eu preciso dessa virilidade, desse comportamento padrão para me sentir
melhor comigo mesmo”, acredita. Ele diz que “não curte afeminados”, mas argumenta
que isso é uma questão de gosto, da mesma forma que para ele tem gente que não
tem prazer com pessoas mais masculinas e que por isso procuram perfis mais
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Uma questão posta e que pode ser esclarecedora nesse ponto, é a reflexão
sobre as posições sexuais enquanto também posições de poder. Ser ativo ou ser
passivo pode revelar uma leitura de compreensão social além de formas de sentir e
dar prazer.
Muitos homens gays têm preconceito e rejeição em querer ser passivo ou
assumir seu desejo em ter relações sexuais que não com o pênis. Se colocar enquanto
passivo também parece estar ligado a se colocar enquanto submisso e inferior.
Novamente uma assimilação com a posição feminina que muitas vezes se quer evitar.
Enquanto ativo, por outro lado, reforça-se uma sexualidade de poder, de
penetração, de uso do falo para comandar a relação. Quem é penetrado, pode ser
entendido como subjugado e fraco. Deixar-se sentir prazer com o ânus parece
impensável para alguns homens gays.
A associação de poder que se faz nessa leitura da posição sexual supõe quem
fica por cima ou por baixo, quem come e quem é comido, quem dá prazer e como
sente esse prazer, mas a colocação de ativo e de passivo parece acima de tudo querer
dizer quem é “o homem” e quem é “a mulher” da relação. Postulando a relação mais
uma vez sobre binarismos definidores. Essa rotulação a partir do corpo e do
comportamento dos homens gays, no entanto, é falha e baseada em estereótipos.
Nada impede que um homem gay com expressão mais feminina sinta prazer
exclusivamente na posição de ativo, ou que sinta desejo em ser versátil (que assume
as duas posições). No exemplo contrário, um homossexual com performance mais
masculina, pode também sentir prazer apenas como passivo. Logo, essas leituras se
mostram vazias e segmentadoras, objetivam, sobretudo, encaixar o ser em uma
identidade limitada e definida. Em um esquema binário social cristalizado e aceitável.
Alguns homens se relacionam no papel de ativo com outros homens, mas não
se identificam enquanto homossexuais – por preconceito, por medo de quebrar uma
expectativa dos que estão ao seu redor ou por não se verem naquela identidade e
preferirem a comodidade atribuída à identidade padrão. Por vezes, permanecem
assumindo uma posição de heterossexual argumentando que gay mesmo é o passivo,
por isso, para eles, sua posição de heterossexual permanece inabalável.
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A descoberta da homossexualidade
Apesar de reprimir desde muito cedo sua sexualidade, por perceber que aquilo
que sentia e queria expressar não era bem visto pela sua família, nem pela religião
que congregava, conta que seus esforços eram vãos, e que mesmo se
comprometendo em não mais sentir aquilo, pegava-se logo depois se masturbando
pensando em outro homem.
Érick lembra que nos anos 1990, quando ainda era criança, sentia uma atração
estranha e interessante por alguns clipes de bandas da época que passavam em um
canal televisivo de música, MTV. Via Anthony Kiedis, do Red Hot Chili Peppers sem
camisa e ficava interessado, via Kurt Cobain, do Nirvana, e aquilo lhe fascinava. “Eu
me apaixonava por todas essas pessoas. Então eu acho que sabia o que estava
rolando nessa época”, conta.
A história com Brune, 26 anos, assistente social, foi diferente. Criado em uma
casa chefiada por mulheres, conta que tomava elas como exemplo e sua expressão
social era refletida por referências femininas. Diz que, apesar de não compreender,
sua expressão sexual foi lida pelos que estavam a sua volta. Lembra: “Eu sempre fui
um menino afeminado. Na verdade, a provocação da minha sexualidade surgiu dos
outros. Eu nem ligava e nem sabia o que era isso. Por estar inserido numa família que
era chefiada por mulheres, seria normal ter um comportamento mais voltado para o
feminino”.
A expressão feminina representada por Brune não foi, em sua infância,
passada despercebida em ambientes sociais como a escola, por exemplo. Ele revela
que era violentado, por palavras com conotação negativa, mas elas não chegavam a
lhe atingir naquele período por falta de compreensão do seu sentido. Apesar disso,
ele diz que sempre transitou bem no ambiente escolar, era popular e conversava com
todos.
O momento da descrição dessa transição do período de descoberta é marcado
por alguns deles como um obstáculo a ser vencido. A leitura que alguns relatam desse
processo é de que aquele sentimento, desejo, e seu comportamento eram duplamente
repreendidos. Pelos que estavam a sua volta, mas principalmente por eles mesmos.
É o caso do Rodrigo Fernandes, de 23 anos. Em sua família, existia uma
abertura maior e uma compreensão da homossexualidade. Conta que sempre foi
presente a existência de outros gays que faziam parte do convívio familiar, e que
naquele contexto isso era entendido de maneira mais natural.
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Relata que na sua infância, tudo nele delatava que não era um menino de
comportamento mais “padrão”. Rodrigo, assim como Diógenes, 24 anos, fala que não
era afeito a brincadeiras lidas como de menino e que acompanhava-se na escola mais
por meninas. Logo, a percepção de que era uma criança estranha, que estava fora do
considerado normal, lhe chegou.
Nesse processo de descoberta, seu maior repressor e regulador foi ele mesmo.
Ele sabia o que era, mas não queria aceitar, diz. Achava que era errado pensar e ser
assim, e por muitos anos foi constante o controle que imprimia sobre seu
comportamento. “No meu consciente eu sempre soube que eu era homossexual. Mas
por muito tempo eu não tive coragem de praticar, de ficar com outros homens”, explica.
Rodrigo diz que por um tempo recusou-se a mudar o seu jeito, apesar das
chacotas que vez por outra lhe direcionavam, mas na adolescência, aproveitando a
mudança do corpo na puberdade, foi tentando assumir uma postura mais masculina,
empostando a voz e modelando um jeito diferente, para adequar seu comportamento
ao que entendia como masculino. Em todo o processo, do desejo à aceitação pessoal
de sua sexualidade, conta que demorou quase uma década.
Nos depoimentos, o processo da descoberta da homossexualidade aparece
como algo não natural e repetidamente condenável. O desejo de mudar e se apropriar
à norma, digamos assim, acaba também se tornando um processo comum. A leitura
da homossexualidade como perversão ou pecado é instituída discursivamente em
nossa cultura, e consequentemente reproduzida e reiterada socialmente.
Contudo, a proposição dessa identidade homossexual estigmatizada é um
processo social relativamente recente. No final do século XIX, com o advento da
sexologia, a formulação e a naturalização de um modelo de sexualidade a partir de
dados pertinentes ao comportamento sexual e ao corpo do homem e da mulher são
empregadas e reproduzidas, passa-se, então, a definir e marcar aquele sujeito
desviante que não se comporta em consonância com o modelo heterossexual
desenhado à época.
Esses seres são descritos como uma oposição do perfil de homem
heterossexual e medidos e reconhecidos como dissonantes e inferiores. Seu lugar
assume, nesse contexto, uma posição de incômodo e que deve ser destinada ao
segredo. Classificados enquanto sujeitos que não merecem legitimidade, por não
corresponderem ao estabelecido enquanto fórmula padrão social, tornam-se
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“naturalizada” e esquematiza a partir dos saberes dominantes. Para ele, sua descrição
é, ao mesmo tempo, meio de normalizar e aplicar limites das formas aceitáveis e
perversas (MISKOLCI, 2009, p.153)
Nas décadas de 1970 e 1980, em busca de se colocar politicamente contra
essa instituição social que relegava os homossexuais à margem, ganha força e
visibilidade, especialmente nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, os
movimentos de minorias capitaneados por gays e lésbicas, que propunham,
sobretudo, a integração e aceitação dos homossexuais no contexto social.
Embora tivessem o intuito de tirar a identidade homossexual do lugar incômodo,
esses movimentos de sexualidades não-hegemônicas acabam, aparentemente,
naturalizando a heterossexualidade, quando colocavam em pauta padrões e
incentivavam ideais heteronormativo, como relacionamento monogâmico, por
exemplo, para proporcionar uma integração desse grupo estigmatizado.
8 O termo queer é muito usado na língua inglesa como um insulto aos homo-orientados. Sua conotação
pejorativa começa a ser agregada pelos teóricos/as queer numa perspectiva de ressignificação. Eles
propõem a necessidade de assumir essa diferença e a força de sua estranheza como elemento de
transgressão.
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A expressão adquire força e outra significação dentro dos estudos queer. Seu
posicionamento é político e libertário, mas também contestador e transgressor.
Leandro Colling nos apresenta uma definição mais crua e nos provoca a partir de
questionamentos que ele diz pertinentes aos teóricos desse movimento:
Lembro de ouvir a expressão bicha pão com ovo não só como forma de
escárnio com o outro, mas também como forma de exclusão, tanto de quem assim é
chamado quanto de quem chama. Sim, pois quem chama, de alguma forma acredita
42
ser “melhor” ou “superior” do que quem recebe a denominação. Quem usa o termo
como forma de agredir, não se acha em nada parecido com quem, para ele, merece
a designação de pão com ovo. Não há semelhanças entre o agressor e o agredido,
na visão de quem agride, nesse caso. E cria-se uma exclusão dupla, onde os grupos
evitam o contato e entre eles não há interação.
Passando a ser o alvo central das críticas de homossexuais e heterossexuais,
justamente por ser aquele grupo que não tem receio de se expor e se portar da
maneira que quiser, brincando com os signos femininos e masculinos, fazendo do
corpo um espaço de experimento, a bicha pão com ovo tem uma estética e uma
expressão de choque. Sem medo de usar um shortinho curto, uma blusinha apertada,
um adereço no cabelo, um lápis e sombra nos olhos, uma boca marcada, ela é
transgressora e perturba em sua performance. Sua essência é queer, de afronta e de
assumir essa postura da diferença que não quer ser assimilada, como diz Louro sobre
o que é queer. Parece que o medo, para eles, foi deixado no armário.
A ruptura com a estética intocável da masculinidade que ela promove, garante-
lhe um espaço de incômodo e de estigma social no ambiente em que convive e por
onde passa, sendo constantemente vítima de repressões e violências verbais e
físicas. Além de sua expressão de gênero ser estigmatizada, a partir das regras
sociais de sua cultura, ela geralmente também é pobre e favelada. Vive na periferia
em sua expressão sexual, vive na periferia socioeconômica em sua cidade, vive na
periferia e marginalidade na luta por reconhecimento social e respeito.
Jô Assumpção, 23 anos, acredita que a bicha pão com ovo não é simplesmente
uma bicha pintosa e afeminada, ele diz que esse título “está ligado também a um lugar
de poder social e aquisitivo”. Para ele, existe uma diferença nas nomeações dos perfis
não-heterossexuais masculinos, que ele acredita ser sutil mas aplicável:
“homossexual seria aquele gay que é mais machinho; o gay, propriamente dito, seria
aquele que tem traços de feminilidade mas tem dinheiro, certa condição financeira; o
viado e a bicha são aqueles mais pobres e também afeminadas, logo marginalizados.
Aí se encaixa a bicha pão com ovo”, disserta.
Jô se coloca enquanto pão com ovo. Logo no começo da entrevista, me diz que
o fato dele ser bicha, preta e de comunidade lhe tornam alvo dessa nomeação. Sua
performance, como diz, é extremamente feminina e transgressora. Para ele, esse
posicionamento de empoderamento do discurso e da feminilidade surge como forma
política e de contraposição ao padrão social, embora, argumenta ele, geralmente as
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A bicha pão com ovo geralmente não liga muito pra masculinidade dela não.
Pelo contrário, ela se enfeita, às vezes usa salto, ela gosta de estar colorida;
ela dança sem se importar do que tão pensando dela. Está muito segura com
o shortinho beira cu dela, com o cabelo descolorido, e tá nem aí. É realmente
a bicha de periferia que tem aquela personalidade que brilha por não se
importar com nada e nem com ninguém. Tem aquela segurança que a gente
vai passar o resto da vida tentando ter e não vai conseguir alcançar.
Diógenes Mendonça, 24 anos, diz que hoje a leitura que faz da bicha pão com
ovo é diferente do que ele acredita que diria anos atrás. “Agora, nesse momento, eu
vejo esse posicionamento como algo extremamente político”. No seu modo de se
vestir, no seu cabelo, na sua “extravagância”, ele diz que essa bicha não passa sem
ser notada, e que justamente por isso sua presença incomoda. Diz que o preconceito
em cima dessa expressão é extremamente forte e parte de todo canto, héteros e
homossexuais, e ele não se tira da reta, como diz. Porém, reconhece: “quem dá a
cara a tapa são elas”. Para ele, esse posicionamento é forte, político e essencialmente
importante, mas diz que não tem a certeza que a bicha pão com ovo tenha a noção
de seu poder de transgressão.
Rodrigo Fernandes, 23 anos, acredita que o preconceito sofrido por esse perfil
deve-se ao fato dele não ser coerente e não está encaixado socialmente de uma
maneira muito positiva. Confessa que já usou a expressão em diversas ocasiões, mas
essencialmente descreve a bicha pão com ovo como aquela que está deslocada do
meio social por ser incoerente na forma que se expressa. “Por exemplo, uma bicha
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feminina que tenta se inserir no meio heteronormativo, ela vai ser chamada de bicha
pão com ovo (sic)”, coloca.
O perfil descrito por Dayvson Lima, 23 anos, para bicha pão ovo é de um gay
mais pintoso, que traz na sua aparência traços de feminilidade, como uma roupa mais
feminina, e às vezes mais curta, uma maquiagem marcada e um cabelo alisado na
chapinha, entre outras características. Ele também acredita que essa forma de ser
não passa despercebida e configura como parte do grupo que sofre mais retaliações
em suas atitudes.
Brune Rapchael, 26 anos, assim como Jô e Érick, acredita que a bicha pão com
ovo além de afeminada é também periférica e negra, como acrescenta. Para ele,
essas definições em categorias são externas e definidas pelo olhar do outro, por isso
acredita que é pouco provável que uma bicha que está nesse perfil se defina nessa
conceituação.
Conta que a expressão através da roupa e comportamento é extremamente
importante. “Eu mesmo me coloco enquanto bicha, viado!”, diz. Ele descreve que sua
atitude “é uma quebra de padrão”. Argumenta que “é necessário uma contraposição
a essa heteronormatividade que termina sendo assimilada pelos homossexuais, que
acaba criando uma nova categoria, que é a categoria da ‘homonormatividade’”. Esse
visual da bicha pão com ovo e seu visual, como diz, são questionadores, educadores.
Fazem parte do que ele entende como pedagogia queer. “Ou como gosto de chamar,
a pedagogia do choque”, acrescenta.
O posicionamento de Brune, assim, como de tantos outros não passa impune
pelos sistemas de controle social e sua regulação é constante. A vigilância que sob a
sexualidade se emprega é permanente; há violência diária contra aqueles que saem
do modelo padrão e também contra os padronizados, para que não venham, um dia,
se afastar desse modelo.
Embora aja sobre todos os seres sociais, a heteronormatividade, é ampliada
quando se direciona aos gêneros não-hegemônicos. Em linguajar bem nordestino,
existe uma expressão idiomática que transcreve exatamente essa regulação: “Seja
homem, rapaz!”. A cobrança para que se siga a masculinidade e seus efeitos na
sociedade é agressiva e institucionalizada. Visto como algo cultural e associado ainda
como o modelo legitimado, a heterossexualidade, o machismo a misoginia, são os
fatores determinantes para a homofobia, lesbofobia, transfobia e assim por diante.
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Conclusão: o brilho da bicha pão com ovo e a violência sobre elas exercida
Quando pensei em fazer esse trabalho, estava num local da cidade de João
Pessoa onde sempre percebia uma grande movimentação desse perfil de maneira
aberta e pública. Notava que aquele lugar era um ponto de encontro das bichas e dos
viados, que vinham de todo canto da cidade para se reunir, se divertir, dançar e “dar
pinta” livremente. Eles/elas haviam se apropriado daquele espaço público. Achei
aquilo fascinante.
O local ao qual me refiro é a praça Rio Branco, no centro da cidade de João
Pessoa. Lá acontece o chorinho, como é mais conhecido o evento público Sabadinho
Bom, promovido todos os sábados à tarde pela prefeitura municipal. Se reúnem,
naquele espaço, uma diversidade de pessoas com experiências culturais distintas e
classes sociais diferenciadas.
Assim como diz Érick, um dos entrevistados deste ensaio, eu também não tinha
acesso à bicha pão com ovo, ela não frequentava os mesmos lugares sociais que eu.
Não nos encontrávamos nas festas, nos bares, na universidade; ela era invisível para
mim o resto do tempo, mas, no chorinho, ela brilhava. Lembro de ficar magnetizado
com aquela movimentação delas toda vez que ia lá.
Os gays mais afeminados e afetados não eram as únicas que usavam o
chorinho como espaço de convivência social. Lésbicas, algumas transexuais e
travestis também se arriscavam à luz do dia e faziam daquele o seu local de liberdade.
Naquelas idas ao chorinho, percebi que era sobre eles/elas que eu queria
escrever, sobre a bicha afeminada e estigmatizada, sobre a bicha pão com ovo.
Conversei com alguns lá mesmo, nas investidas dadas durante o processo inicial de
pesquisa, contudo, nem todas as tentativas foram bem aceitas e compreendidas. Na
verdade, quase todas foram negativas, o que vi de maneira compreensiva e aceitável.
Ninguém queria se expor para um desconhecido no meio de um momento de lazer,
poucos também tiveram confiança de aceitar sair dali e conversar comigo, ou mesmo
passar o seu contato para que eu os encontrasse os posteriormente.
Contudo, um grupo de meninos, dentro daquela multidão que se reunia na
praça semanalmente para conversar, dançar e se divertir, me chamou a atenção. Eles
eram muito jovens, todos menores de 18 anos, e na época da nossa primeira conversa
tinham entre 15 e 17. Apesar da idade, suas performances de transgressão e
liberdade eram precoces, e me pareciam deveras corajosas. Fazia uma comparação
comigo mesmo e pensava que na idade deles eu estava tão oprimido pelo meu próprio
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medo, da exposição e do preconceito que me rodeava, que pensar agir da forma que
aqueles meninos agiam era impossível para mim. Admirei-os.
Todos/as toparam conversar ali mesmo, em um canto mais reservado da praça,
próximo aos banheiros químicos que eram alocados naquele espaço. O papo fluía
aberto e entrecortado, e dos seis ou mais presentes no grupo, pelo que pude contar –
já que eles se mexiam o tempo todo pela euforia de estar contando sua vida para
alguém que tinha se apresentado para saber deles – quatro me deram seus contatos
e três deles me encontraram posteriormente, num outro dia, em um shopping próximo
da praça Rio Branco.
A conversa feita no chorinho foi rápida, mas reveladora. Eles não tinham
vergonha de falar de si, achavam aquilo natural, mas imagino que também acharam
curioso alguém desconhecido pará-los para perguntar-lhes sobre suas vidas, afinal,
eles mais pareciam invisíveis no contexto social, já que seu comportamento garantia-
lhes o título de persona non grata onde quer que fosse, e mesmo entre gays, que
como vimos também reproduzem o comportamento heteronormativo, eles não eram
bem aceitos.
Rubens, Kaike e Mateus (nomes fictícios)9 encontraram comigo pessoalmente
depois de algumas tentativas marcadas pela internet e se puseram a falar de si
mesmos. Falamos sobre família, sociedade, escola, sexualidade, namoros, sexo,
preconceito, entre outros assuntos. Levei o papo do modo mais informal possível,
queria extrair deles a opinião mais sincera e sua visão de mundo. Queria saber o que
eles pensavam e enxergavam de sua posição social.
Naquela ocasião perguntei o que eles entendiam por bicha pão com ovo, e
percebi que eles, apesar de todo aquela performance que empregavam, eram também
reprodutores de preconceitos sociais internalizados. A educação normatizadora
também tinha efeitos sobre eles. Eles descreviam a bicha pão com ovo com todos os
requintes de estigma sexual que cabem na definição de um homossexual não-
hegemônico. Eles não se associavam aquele retrato de bicha.
Para eles, essa era uma caricatura do que entendiam por identidade
homossexual, e eles não se dispuseram em nenhum momento como um desses que
9 Apesar dos personagens terem autorizado que eu usasse seu nome real, preferi usar nomes fictícios
aqui, já que na época de nossa conversa elas não tinham atingido a maior idade. Os depoimentos me
serviram como base de reflexão e análise, embora seus discursos diretos não estejam colocados no
texto, por minha própria opção, já que preferi protegê-los da exposição por não apresentarem
maturidade e consciência dos relatos que a mim estavam sendo fornecidos.
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10Disponível em <http://www.portaldolitoralpb.com.br/assassinato-de-jovem-gay-em-joao-pessoa-e-
destaque-nacional-em-site-contra-homofobia/>. Acessado em: 20 de setembro de 2014.
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