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1. Introdução
Este trabalho tem como meta propor, numa teoria não-lexicalista como a da
Morfologia Distribuída, uma maneira de codificar a estrutura argumental dos verbos da
língua portuguesa. Mais especificamente, trataremos do seguinte conjunto de casos: a)
alternância causativo-incoativa, como em (1); verbos inergativos e transitivos sem
alternância (mas com mudança de estado do objeto), como em (2); verbos transitivos
cujo complemento introduz um “caminho” sobre o qual o evento se dá, como (3); e, por
fim, verbos de estado, como (4).
Percebemos que a raiz √gdl pode entrar em padrões vocálicos verbais, nominais e
adjetivais e que também pode entrar em mais de um padrão de mesma categoria, se, por
exemplo, considerarmos apenas a formação de nomes. Preliminarmente, se nossas
observações estão corretas, o fato de a mesma raiz se enquadrar em mais de um padrão
categorial pode sugerir que a raiz é selecionada pelo padrão e não o contrário. No
entanto, qualquer conclusão é prematura.
Esse fato está diretamente relacionado com o objetivo amplo desta pesquisa, que é
discutir a estrutura argumental dentro da Morfologia Distribuída. Algumas pesquisas,
fundamentadas no modelo da MD, discutem os dados da língua hebraica, apresentados
em (5): (i) a informação sobre a estrutura argumental está localizada nas raízes ou nos
núcleos categorizadores?; (ii) as raízes fazem algum tipo de seleção?; (iii) as raízes
possuem algum tipo de grade temática ou quadro de subcategorização?
Questões semelhantes norteiam esta pesquisa, que analisará os dados do português
brasileiro, como já foi apontado anteriormente.
Na visão herdada da teoria GB dos anos oitenta – que se mantém, sem grandes
modificações, no Programa Minimalista dos anos noventa e dois mil –, os itens lexicais
trazem, em sua representação no léxico, grades temáticas. Nelas, todas as informações
associadas ao item lexical, relevantes para a sintaxe (como sua categoria gramatical e
sua seleção de argumentos e papéis temáticos a eles associados), estão explicitadas.
Uma vez que grupos de verbos se comportam, sintaticamente, de modos muitas
vezes semelhantes, a teoria procurou estabelecer inventários de papéis temáticos, que
forneceriam uma generalização sobre os itens lexicais. Os típicos papéis temáticos que
encontramos na literatura são: Agente, Beneficiário, Tema, Experienciador, Alvo,
Paciente etc. Verbos como destruir, construir, chutar, matar, por exemplo, teriam, nessa
visão, grades bastante semelhantes, pois compartilham a mesma categoria sintática e
selecionam dois argumentos nominais que recebem os mesmos papéis temáticos. É
esperado, pois, que as estruturas sintáticas em que ocorrem sejam as mesmas.
Além dos papéis temáticos, a teoria precisa recorrer a certos princípios que
relacionem a informação contida nos itens com as estruturas sintáticas em que ocorrem.
Na teoria GB, temos o Princípio da Projeção, que, numa das formulações que Chomsky
dá (Chomsky 1981, p. 29), diz, grosso modo, que a informação lexical, em particular a
que está contida na grade temática, tem que estar sintaticamente representada. A teoria
também precisa garantir que na estrutura sintática não encontremos mais ou menos
argumentos que os pedidos pelos itens lexicais. O Critério Teta (Chomsky 1981, p. 36)
procura fazer isso.
Para explicar regularidades observadas nas posições sintáticas de argumentos com
os mesmos papéis temáticos, a teoria lança mão de duas hipóteses: i) a UTAH1 (Baker
1988), que propõe que argumentos que recebem os mesmos papéis temáticos ocuparão
as mesmas posições sintáticas no nível da Estrutura Profunda; e (ii) as hierarquias de
papéis temáticos (vários autores), que procuram estabelecer a posição (em última
análise, a função) sintática tipicamente associada a cada papel temático.
Na visão da teoria GB isso esgota a discussão sobre estrutura argumental e
representação sintática dos argumentos. Entretanto, esse conjunto de propostas traz
diversos problemas e deixa inúmeras perguntas sem resposta, a saber:
a. Quantos são e quais são os papéis temáticos que a teoria assume existirem para
serem atribuídos? Não há consenso sobre nenhum dos dois pontos, e os inventários
propostos deixam inúmeras lacunas.
b. Numa teoria baseada em grades temáticas, quantas entradas devem existir para o
verbo correr, por exemplo? Aparentemente, três: uma inergativa, em que o sujeito é
1
Universal Theta Assignment Hypothesis (Hipótese da Atribuição Universal de Papéis Temáticos).
agente (João correu na praia ontem); uma inacusativa, em que o sujeito é um tema
(A pedra correu até a porta); uma transitiva, com um sujeito agente e um objeto
direto que denota uma espécie de percurso, cujo papel temático não é fácil de
estabelecer considerando os inventários de que dispomos (João correu um
quilômetro); e uma causativa, com um sujeito agente e um objeto direto que parece
um agente com menos controle da situação (João correu o ladrão de sua casa). Essa
solução não é obviamente ruim, uma vez que o verbo correr, nas três situações, tem
mais ou menos o mesmo conteúdo enciclopédico?
c. As alternâncias dativa, locativa, de verbos psicológicos, etc., colocam diversos
problemas para a UTAH, pois os mesmos papéis temáticos podem ocorrer em
posições diferentes na estrutura profunda. Alguns autores, para preservar a UTAH
nos casos de alternância, criam novos papéis temáticos (por exemplo, Pesetsky 1995
para os verbos psicológicos), afirmando que os alternantes não compartilham, de
fato, os mesmos papéis. Mas a questão é: se podemos inventar papéis novos sempre
que convém, como falsear uma explicação baseada neles?
d. As hierarquias temáticas (assim como a UTAH) somente constatam regularidades
entre posições sintáticas e papéis temáticos. Não são explicativas.
e. Teorias lexicalistas, como a teoria GB, baseadas em papéis temáticos/semânticos, são
essencialmente descritivas. Não estudam os significados dos verbos/predicados e as
eventualidades que eles denotam; daí se limitarem a fazer descrições de propriedades
idiossincráticas.
f. Teorias lexicalistas baseadas em papéis temáticos recorrem à UTAH e a hierarquias
temáticas para explicar como os argumentos são projetados na sintaxe e as
regularidades verificadas nas línguas do mundo. Como veremos a seguir, teorias que
decompõem sintaticamente o verbo em estruturas de evento explicam a mesma coisa
sem precisar de semelhantes recursos.
Tendo em vista os problemas apresentados acima, neste trabalho evitaremos
visões projecionistas e baseadas em papéis temáticos. Na seção a seguir, falaremos um
pouco sobre como a Morfologia Distribuída vem tratando a questão.
Já uma raiz como a do verbo grow, por denotar uma mudança de estado
internamente causada, pode ocorrer no contexto inacusativo/incoativo em (8), abaixo,
no contexto transitivo/causativo, semelhante a (6), assumindo uma interpretação em que
alguém cria as condições para que a mudança de estado interna se dê (uma espécie de
causação secundária), mas não em contextos como (7), como se vê pela impossibilidade
de (9) a seguir.
(8) vP
3
v √GROW
3
√GROW- tomatoes
4.1 Os pressupostos
(10) ferver, abrir, rasgar, afundar, fechar, quebrar, girar, rodar, rolar, (escorregar),
(correr), (chegar), etc.
(13) Voz-P
3
DP Voz'
o João 3
Voz vP
qp
v DP
3 5
v √pint- o muro
Isso não quer dizer que não haja um estado atingido envolvido na estrutura de
evento associada ao verbo. A questão é que o estado atingido não é denotado pela raiz
do verbo. Teríamos o seguinte cálculo semântico associado a (13) acima:
(14) Voz-P = λx.λe.[pintar(e) & ORIG(o-João, e) & (s)[TEMA (o-muro, s) & CAUS(e, s)]]
3
DP Voz' = λx.λe.[pintar(e) & ORIG(x, e) & (s)[TEMA (o-muro, s) & CAUS(e, s)]]
o João 3
Voz vP = λe.[pintar(e) & (s)[TEMA (o-muro, s) & CAUS(e, s)]]
qp
v DP
3 5
v √pint- o muro
Em (14), o estado atingido não está especificado, mas tem que ser um estado
compatível com a atividade de pintar. É importante salientar que não estamos
assumindo que na semântica da raiz encontramos todos os componentes (evento e
estado) da expressão acima. Dentro de uma proposta de derivação por fases como a que
encontramos em Marantz (2001), Arad (2003) e Marvin (2002), a semântica das raízes é
negociada no ambiente sintático criado pelo primeiro categorizador – no caso em
questão, o vezinho; o que quer dizer que os elementos envolvidos nesse ambiente, como
o DP complemento interno ao vP, influenciam no significado alcançado pelo vP – ou,
melhor, especificam o significado da raiz. Note-se que o tipo de complemento vai dizer
se temos um evento de criação (João pintou um quadro) ou não (João pintou o muro).
Assumimos, pois, que a presença do DP dentro do vP faz com que o significado da raiz
passe a incluir, nos casos aqui discutidos, um estado atingido, do qual a entidade
denotada pelo DP é tema.
Podemos observar que, ao assumirmos que a interpretação do vP é bieventiva,
explicamos o fato de haver advérbios modificando uma ou outra das eventualidades que
compõem a estrutura de evento do vP. Por exemplo, em João pintou muito bem o muro,
o advérbio pode modificar tanto a atividade como o estado atingido (o resultado ficou
bom); em João pintou o muro com pinceladas largas, o advérbio modifica somente a
atividade.
Parece claro, pois, que a presença/ausência de um complemento, e o tipo de
complemento que ocorre no vP, têm efeito na interpretação do verbo. Nas situações em
que o verbo pintar é usado intransitivamente (como em João pinta muito bem), o vP
será monoeventivo, com uma estrutura como a de gritar acima, a locução adverbial
muito bem modificando não-ambiguamente a atividade. Nesse caso, por não haver um
DP complemento, o significado da raiz não inclui um estado atingido, limitando-se a
especificar determinado tipo de atividade.
Há verbos em que o complemento não sofre mudança de estado nem se desloca no
espaço. É o caso de verbos como ler ou empurrar. Em João leu um livro, o
complemento não muda de estado com a atividade; somente estabelece uma espécie de
percurso para a atividade. Propomos que, como nos casos anteriores, a raiz do verbo é
do tipo [+DIN, –CAUS], e, portanto, não introduz uma eventualidade causada e predica.
A diferença entre esse verbo e os anteriores é que, nos outros casos, a presença do
complemento produz, no vP, uma leitura onde há um subevento que tem como
argumento o complemento do verbo; para o verbo ler não há subevento; o complemento
introduz uma função que vamos chamar de caminho (ver, entre outros, Tenny 1994),
função que relaciona um evento a uma entidade, estabelecendo um homomorfismo entre
a extensão espacial da entidade (o livro) e a duração da atividade (de ler) em questão.
(15) Voz-P = λe.[ler(e) & CAMINHO(e, o-livro) & ORIG(o-João, e)]
3
D Voz' = λx.λe.[ler(e) & CAMINHO(e, o-livro) & ORIG(x, e)]
o João 3
Voz vP = λe.[ler(e) & CAMINHO(e, o-livro)]
qp
v DP
3 5
v √le- o livro
O verbo correr pode ter sujeitos não-animados, como em A pedra correu (morro
abaixo), que, de acordo com o que sabemos sobre o mundo, não podem ser
iniciadores/originadores de eventos; o movimento deles é necessariamente causado e é
possível causativizar a estrutura. Vejamos os exemplos abaixo:
(18) vP
3
DP √P
o João 3
vGO √cheg-
Nessa proposta, a raiz deve ser do tipo [+DIN, –CAUS], e não estabelece uma
predicação para o seu argumento. Ela funciona como modificadora de um vezinho de
processo (incoativo). Como a eventualidade introduzida pelo vezinho é incoativa, ela
não pode identificar-se com a eventualidade introduzida pelo núcleo de Voz – ou seja, a
operação de identificação de evento que possibilita a anexação de um núcleo de Voz à
estrutura não é permitida aqui. Isso explicaria o fato de tais verbos não serem verbos de
alternância causativo-incoativa.
Entretanto, algumas coisas ficam por explicar. A matriz, com as distinções
propostas, não explica porque a raiz de um verbo como nascer não ocorre em uma
estrutura de evento monoeventiva, como a do verbo gritar em (12). Outra questão que
se coloca é a seguinte: por alguma razão, o verbo chegar pode ser causativizado quando
se anexa a ele um PP que indica um movimento com ponto final: João chegou a cadeira
para o lado. Como explicar essas coisas?
As respostas para essas questões ficam para trabalhos futuros.
O último grupo de verbos de que trataremos neste breve trabalho é o dos verbos
de estado transitivos. Eles teriam raízes com a matriz [–DIN, –CAUS].
Em nossa proposta, há um vezinho que introduz estado (BE) e que se combina
diretamente com a raiz, a qual dá nome ao estado que ele introduz. Uma vez que a raiz
não estabelece uma predicação, a única maneira de introduzir um argumento externo é
através de um núcleo de Voz. O argumento externo será interpretado como tema ou
portador do estado em questão. O complemento faz parte da descrição do estado
(Ramchand 2008), sendo, aqui, interno ao sintagma raiz.
5. Comentários finais
Referências Bibliográficas