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MESTRADO EM LETRAS
Dezembro de 2014
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MESTRADO EM LETRAS
Dezembro de 2014
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BANCA EXAMINADORA
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Prof. Dr. Anderson Bastos Martins – UFSJ (Orientador)
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MESTRADO EM LETRAS
Dezembro de 2014
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pós
Angélica Freitas
RESUMO
Esta dissertação se pretende um exercício crítico e autobiográfico das crônicas
publicadas pela jornalista Milly Lacombe na Revista TPM (Trip Para Mulheres),
e reunidas, em 2010, no livro tudoésóisso: amor, conquistas e outros prazeres
fundamentais. O estudo parte de breve contextualização da crônica como
gênero ligado ao jornal, se detém na teorização de Eneida Maria de Souza
(2002, 2011) sobre a crítica biográfica, para desembocar nas questões de
gênero envolvidas nesta escrita de si, amparando-se em textos de Eve
Kosofsky Sedgwick (2003), Judith Butler (2012) e Julia Watson (2012).
ABSTRACT
SUMÁRIO
RESUMO 05
INTRODUÇÃO
Para se ler com a memória
projeto que vem lá de 2005, quando se tinham passados sete anos exatos,
decurso que, segundo os antroposofistas, fecha um ciclo.
Pois bem. O livro de Milly também abriu para mim um caminho de
legitimidade. A crônica é, segundo Antonio Candido (1992), “filha do jornal e da
era da máquina, onde tudo acaba tão depressa”, e que nos liberta, a nós,
jornalistas, da efemeridade dos recortes hiperinstântaneos da matéria de jornal.
Dulcília Buitoni, professora da Escola de Comunicações e Artes da USP,
discute a produção feminina desse gênero já considerado literário e anuncia: “é
na imprensa feminina que encontro os antecedentes da crônica” (1985). Que
remonta aos folhetins que entretinham as senhoras oitocentistas, as quais, uma
vez autoras, optaram, num primeiro momento, pela “seriedade de afirmação”,
para, em seguida, com o desdobramento de sua escrita, adotar o humor, a fina
ironia e o lirismo mais descabido, dos quais as crônicas de Milly nos dão
exemplos acabados:
1
Fazemos coro a Eduardo Galeano: “Entendíamos por cultura a criação de qualquer espaço de
encontro entre os homens e eram cultura, para nós, todos os símbolos da identidade e da
memória coletivas: testemunhas do que somos, as profecias da imaginação, as denúncias do
que nos impedem de ser. [...] Queríamos conversar com as pessoas, devolver-lhes a palavra: a
cultura é comunicação ou não é nada. Para chegar a não ser muda, achávamos, a cultura nova
tinha de começar por não ser surda.” (GALEANO, 2011, p. 164-165)
2
Crítica de Nelson Rodrigues ao pudor dos jornais modernos em abrir espaço e drama para
crimes passionais. Para ele, eram praticamente inexistentes as fronteiras entre jornalismo e
ficção: ‘Eu não via nenhuma dessemelhança entre literatura e jornalismo. Já ao escrever o
primeiro atropelamento, me comovi como se fosse a minha estreia literária’. Em COSTA, 2005,
p. 242.
11
3 A opção metodológica aqui passa por Michel Foucault: “A sexualidade é o nome que se pode
dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade,
mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos
prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e
das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de
saber e de poder”. (FOUCAULT, 2005, p. 100)
13
Boa leitura!
14
4
MEIRA, 2010, p. 8 e 9, na introdução de COMPAGNON, Literatura para quê?
18
5
A argumentação, defendida no histórico 5º Congresso da Abralic, chegou a público via
caderno +mais! da Folha de S.Paulo, de 25 de agosto de 1996, com o título “Que fim levou a
crítica literária?”
19
Assim, um texto, seja ele qual for, tem que ser lido, seja por qual
motivo for: debate ou deleite. Na direção contrária ao que foi listado por Leyla
6
A polêmica é narrada em detalhes por Eneida Maria de Souza em Tempo de pós-crítica, p. 64
a 68. Em “Os livros de cabeceira da crítica” (Crítica Cult, p.15 a 24), o enfrentamento é
atualizado sob a luz do “reconhecimento do estatuto ficcional das práticas discursivas e da
força inventiva de toda teoria”.
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7
“Pós-moderno quer dizer, aproximadamente, o movimento de pensamento contemporâneo
que rejeita totalidades, valores universais, grandes narrativas históricas, sólidos fundamentos
para a existência humana e a possibilidade de conhecimento objetivo. O pós-modernismo é
cético a respeito de verdade, unidade e progresso, opõe-se ao que vê como elitismo na cultura,
tende ao relativismo cultural e celebra o pluralismo, a descontinuidade e a heterogeneidade.”
Essa é a definição de Eagleton (2005, p. 27) para o instável conceito de pós-moderno, que
tanta necessidade de fixação desperta entre os jovens críticos da cultura. No entanto, é preciso
ser cauteloso com as definições do crítico inglês, sempre trabalhando no limite de finas ironias.
Para Eneida Maria de Souza, não é imperativo temer o conceito, desde que seu lugar teórico
esteja bem definido, e seja usado de forma clara. Como ela escreve em Tempo de pós-crítica:
“É quase impossível fornecer uma só definição do conceito, é preciso delimitar campos,
disciplinas, ou optar pela caracterização do pensamento pós-moderno ou da leitura pós-
moderna da cultura. A pós-modernidade, em toda sua dimensão e abrangência, não poderá ser
analisada sem a reflexão das várias vertentes que compõem o pensamento moderno” (SOUZA,
2012, p. 188).
22
Intermezzo
Prefiro a experiência vicária do leitor ingênuo, aquela leitura
de quem se identifica com as personagens,
de quem gostaria de morar dentro dos romances preferidos.
Manuel da Costa Pinto
8
Apropriado de SZYMBORSKA. “A poeta e o mundo”. Revista piauí, n. 8, maio de 2007.
24
1. O primeiro começo
Metaphorical penis
No princípio era o caderno. As mocinhas podiam escrever apenas
seus pensamentos e estados d’alma nos diários de capa romântica e cadeados
dourados, pássaros suaves levando corações ou estandartes pelo bico, até
atingirem as altas raias da inspiração criadora, uma vez que, como esclarece
Lygia Fagundes Teles, “depois de casadas, não tinha mais sentido pensar
sequer em guardar segredos, que segredo de mulher casada só podia ser
bandalheira” (TELES, 1980, p. 16). O refúgio mais à mão se impunha: o
cadernão de anotar a vida, no qual, como pepitas de ouro escasso,
registravam-se os gastos e as compras da casa, as receitas de família, as
simpatias para vencer males diversos, as remessas de cebola, pão, café e
sabão. Talvez antes mesmo do que a conquista dos rodapés dos jornais, foi
este o primeiro espaço de registro das inspirações da mulher brasileira, que
teria ainda um longo caminho a percorrer em busca da legitimidade de sua
carreira literária, ofício historicamente reservado aos homens.
Tão marcadamente atávica a destinação masculina para as letras
que, ainda em 1944, servia de parâmetro para julgamentos críticos de toda a
espécie, os quais não se furtavam a uma recorrente acidez.
Como relembra Lygia Fagundes Teles:
10
Apropriação da simbologia sânscrita referente ao órgão sexual feminino, representado pela
deusa Shakti, da qual se origina toda a potência da vida (vagina x phallus).
33
11
Para mais detalhes sobre o nascimento da crônica e sua consolidação como gênero
tipicamente brasileiro, ver: NEVES, Maria Alciene, 2009.
12
José de Alencar, Ao correr da pena. Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 24/09/1854. Xerox.
34
Tais motivos nos fazem crer terem sido a justificativa para que o
gênero exercesse e exerça tamanha atração sobre os poetas. “Sem
compromisso com os fatos nem a obrigação de criar uma história com início,
meio e fim, a crônica era compatível com certas habilidades, como a
capacidade de sintetizar em poucas palavras todo o sentimento do mundo”,
escreve Cristiane Costa (2005) em Pena de aluguel (Idem, p. 251). Alçada da
marginalidade do rodapé ao Olimpo das mais nobres editorias, a crônica
moderna se consolida no país a partir da década de 1930, por artes de nomes
com Mário de Andrade, Oswald, Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral e Pagu,
num movimento sentido em toda a América Latina. Cristiane Costa explica:
13
O depoimento de Gabriel García Márquez a esse respeito é solar: “Uma boa prova do
sentido quase bárbaro da honra profissional é sem dúvida esta crônica que escrevo todas as
semanas, e que por esses dias de outubro vai completar seus primeiros dois anos de solidão.
[...] Escrevo-a todas as sextas-feiras, das nove da manhã às três da tarde, com a mesma
vontade, a mesma consciência, a mesma alegria e muitas vezes com a mesma inspiração com
que teria de escrever uma obra-prima. Quando não tenho o tema bem definido me deito mal na
noite de quinta-feira, mas a experiência me ensinou que o drama se resolverá por si só durante
o sono e que começará a fluir pela manhã, a partir do instante em que me sentar diante da
máquina de escrever. [...] Meu primeiro objetivo com estas crônicas é que a cada semana
ensinem algo aos leitores comuns e correntes, que são os que mais me interessam, ainda que
estes ensinamentos pareçam óbvios e talvez pueris aos doutores sábios que tudo sabem. [...]
Impus-me esta servidão porque senti que entre um romance e outro eu ficava muito tempo sem
escrever, e pouco a pouco como os jogadores de beisebol o braço ia esfriando. Mais
tarde, essa decisão artesanal se converteu em compromisso com os leitores, e hoje é um
labirinto de espelhos do qual não consigo sair.” (MÁRQUEZ, 2006, p. 477-478).
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3. Chronistas feministas
Na relação de grandes autores que pertenceram à fase áurea do
caderno de cultura do Jornal do Brasil nas décadas de 1960 a 1980
enumerados acima, omiti propositadamente o nome das (poucas) mulheres
que lá estiveram. Marina Colasanti e Léa Maria foram subeditoras do “Caderno
B”, chefiado pelo editor Paulo Afonso Grisoli. Maria Helena Malta escrevia
textos sobre comportamento. E ninguém menos que Clarice Lispector assinava
crônica semanal no mesmo espaço. Começou no dia 19 de agosto de 1967, e
chegou até 29 de dezembro de 1973, praticamente sem interrupções. Em
1984, sete anos depois que Clarice se fora, as 244 crônicas que publicou no
Jornal do Brasil foram reunidas no livro A descoberta do mundo.
A Clarice cronista era tão desadaptada quanto a Clarice escritora. Já
era, à época, uma autora respeitada, tida como “difícil”, “hermética”, porém
distante do prestígio de que veio a desfrutar posteriormente. Nas raras
ocasiões em que surgia na redação, dava a impressão de total insegurança,
percebida pela afoiteza com que tentava tirar da bolsa as laudas de papel
pardo amarrotadas e rasuradas, ao mesmo tempo em que tentava esconder a
mão queimada no acidente do cigarro aceso na cama. Na crônica de 9 de
setembro de 1967, confessa:
Cardoso, Antonio Callado e José Condé. Passou dez anos longe da imprensa,
retomando a carreira como Tereza Quadros, numa coluna feminina (“Entre
Mulheres”) do jornal O Comício, dirigido por Joel Silveira e Rubem Braga.
Clarice escrevia, traduzia, recortava modelos de vestidos, dava dicas de
beleza, moda, economia doméstica. Em 1956, passa a publicar crônicas,
contos e entrevistas na revista Senhor. Três anos depois, torna-se
colaboradora regular no Correio da Manhã, sob o pseudônimo de Helen
Palmer, tendo a seu cargo a coluna “Feira de Utilidades” (1959-1961), dedicada
também às preocupações da “mulher moderna”: receitas, filhos, beleza. Em
1960, trabalhou com Alberto Dines no Diário de Notícias, até ser convidada por
ele a assumir a crônica dos sábados do “Caderno B” (COSTA, 2005, p. 260-
266).
A autora de A paixão segundo G.H. seguia a trajetória de várias
escritoras que alcançaram a honra de dispor de espaço próprio numa
publicação periódica. Nísia Floresta, Josefina Álvares de Azevedo, Carmem
Dolores, Júlia Lopes de Almeida, Lúcia Miguel Pereira, Bertha Lutz, Dinah
Silveira de Queirós, Anna Rita Malheiros, Cecília Meireles, Rachel de Queiroz,
Carmen da Silva, Marina Colasanti, Lya Luft, Martha Medeiros, Danuza Leão,
Fernanda Takai, Maitê Proença, Maria Esther Maciel, Milly Lacombe. Da virada
do século XIX até a primeira década do século XXI, essas autoras, dentre
várias e várias, puderam conquistar, manter, ampliar e revolucionar o gênero
que tem ligação quase umbilical com a imprensa feminina.
Dulcília Schroeder Buitoni (1985) afirma que as relações entre
crônica e mulher (gênero/gênero) remontam a muitos e antigos laços, o mais
perene talvez o folhetim, cujos “temas matrizes” eram claramente identificados
com a rotina da mulher enclausurada no círculo doméstico e familiar: a
mudança do tempo, o cotidiano, o coloquial, a cidade, as modas, os livros
seriados.
Das revistas das grandes maisons aos periódicos de orientação
pedagógica, seja política ou doméstica, comentários mundanos mesclavam-se
a moldes do que então se usava na Europa e a comentários ligeiros sobre a
temporada lírica ou os grandes bailes da Corte. Numa ainda incipiente
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segmentação, tais assuntos também podiam ser lidos nos jornais considerados
feministas, a reboque da defesa veemente dos direitos mais elementares das
mulheres. Dulcília Buitoni ressalta o pioneirismo do Jornal das Senhoras,
lançado na capital federal em 1852, tendo à frente Joana Paula Manso de
Noronha e posteriormente Dona Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e
Vellasco, que defendiam o acesso das mulheres à educação na mesma página
em que exortavam suas leitoras a não descuidar do amor maternal e nem da
formação espiritual familiar.
Mais corajosas, na avaliação de Dulcília Buitoni, foram Francisca
Senhorinha da Motta Diniz, editora de O Sexo Feminino (1873-1877) e
Josephina Álvares de Azevedo, responsável por A Família (1888-1889). “Tanto
a professora mineira quanto a irmã do poeta Álvares de Azevedo lutavam pela
educação, instrução e emancipação da mulher” (BUITONI, 1985, p. 82),
abrindo um caminho que mais tarde (1918) seria ocupado pelas cronistas da
Revista da Semana, as quais, a exemplo de Bertha Lutz, muito fariam pelo
sufrágio feminino no Brasil, de modo direto ou indireto.
Mais originais, pela efervescência temática e estilística, são
apontadas as pequenas crônicas que Patrícia Galvão publicou em O Homem
do Povo, jornal dirigido por seu companheiro Oswald de Andrade. Pequenas
pela exiguidade das duas estreitas colunas que abrigavam tanta mordacidade e
deboche, nunca pela desconexão com a realidade. Aliás, tanta lucidez e tanto
espírito combativo valeu a Pagu um violento confronto com os conservadores
estudantes de Direito da Maria Antônia, perplexos com o peso da pena da
cronista que assinava a seção “A mulher do povo”. Seguindo “a linha crítica
ferina de toda a publicação” (BUITONI, 1985, p. 86), Pagu, com seu texto
agressivo e desmistificador, constitui-se caso raro entre as cronistas, de 1931
até hoje. As moças de então eram provocadas sem piedade, com absoluto
conhecimento de caso:
14
Publicada em 16/07/2010, no blog da Tpm, no formato pingue-pongue (pergunta-resposta
rápidas), com o titulo “Milly Lacombe em ação”.
42
amores, num estilo que remete às técnicas do “New Journalism”, que floresceu
nos Estados Unidos nos anos 60, constituindo-se numa bem-sucedida tentativa
de cruzar as fronteiras entre literatura e jornalismo.
Para esta escola que primava por injetar técnicas literárias no
texto jornalístico , não havia objetividade que não pudesse ser transcendida,
nem matéria jornalística que não pudesse ser personalizada, nem cronista ou
repórter que não pudesse se expressar como personagem não apenas da
narração, mas também como intermediador do acesso do leitor à experiência
narrada. Assim, a experimentação formal, já comum nas crônicas assinadas,
atinge e contamina a própria pauta dos temas tratados, deixando nebulosa a
demarcação das linhas entre ficção e não-ficção.
Desta deriva estilística decorre um alinhamento com a crítica cultural
que se abre a minúcias esparsas e contínuas, atenta às possibilidades de
investigação dos mais diversificados produtos culturais, seus processos de
reinvenção e reinserção nas sociedades contemporâneas, em consonância
com as usuais inquietações dos Estudos Culturais15, conforme teorizado por
Nelly Richards:
15
Adelaine LaGuardia assim sintetiza aquelas possibilidades: “Os estudos culturais, com sua
usual inquietação frente às grandes narrativas, as sintaxes teóricas absolutas, trazem para a
cena acadêmica objetos ‘questionáveis’ do ponto de vista da sua relevância, esses objetos não
legitimados que, em tese, não valeriam a pena ser estudados, mas que nos permitem indagar,
a partir das premissas do senso comum, do gosto, dos afetos e dos engajamentos, como
novos objetos e formas culturais se instauram nas sociedades contemporâneas.” Ver SOUZA
et al., 2012, p. 202.
43
16
Excerto extraído da definição que a autora dá de si ao final das crônicas publicadas na
Revista TPM (Trip Para Mulheres).
44
Depois desse dia, meu pai nunca mais entrou no quarto num
domingo de manhã para me convidar para sair. E, ainda assim,
eu continuei a esperar por ele, acordada na cama, todos os
domingos. Hoje entendo que ele sabia exatamente o que
estava fazendo quando nunca mais voltou. O gosto daquele dia
havia sido tão especial, tão raro e doce que não valeria a pena
repeti-lo, sob pena de fazer com que ele fosse diluído nas
águas do ordinário. (LACOMBE, 2010, pp. 28-29)
cronista, de cada poeta. Pois, como queria Jacques Rancière, ‘o real precisa
ser ficcionalizado para ser pensado’.
EMS Articular temas construídos nas obras com eventos pessoais e tentar
enlaçar as múltiplas paixões que regem tanto a vida como a literatura. Nunca é
demais repetir que a escolha do método biográfico impõe determinada
disciplina e se afasta de aproximações ingênuas e causalistas operadas por
adeptos da pesquisa biográfica como caça aos segredos e enigmas do texto.
Mesmo que o nome próprio de uma personagem faça referência a pessoas
conhecidas do escritor, isso não impede que sua encenação, ou a própria
narração, embaralhe os dados e coloque a verdade biográfica em suspenso. A
pesquisadora Jovita Gerheim Noronha acaba de lançar, pela Editora UFMG, a
coletânea Ensaios sobre a autoficção, que reúne textos de críticos e escritores
franceses consagrados, por meio dos quais temos acesso ao panorama
histórico do conceito, de Philippe Lejeune a Philippe Vilain. O que primeiro se
depreende é que não há consenso sobre essa “palavra-espelho”. A tarefa do
crítico, no momento em que a autoficção se consolida como categoria
conceitual corrente em nosso campo analítico, é buscar compreender as
relações de força que se estabelecem em torno do centro gravitacional comum
das escritas de si.
CM Foi com base naquela suspensão que você escreveu que “a figura
do autor cede lugar à criação da imagem do escritor”?
EMS Sim. Considerando que o sujeito da escrita não é um ser pleno, e sim
uma construção que opera dentro e fora do texto ficcional, na vida mesma, o
autor assume uma identidade mitológica, fantasmática (Barthes) e midiática. A
personagem autor, construída tanto pelo escritor quanto pelos leitores,
desempenha vários papéis de acordo com as imagens, as poses e as
representações coletivas que cada época propõe aos seus intérpretes da
literatura. Cada escritor, portanto, constrói sua biografia com base na rede
imaginária tecida em favor de um lugar a ser ocupado na posteridade: ou o do
ausente ou do morto. Essa “cessão” opera uma mudança no eixo interpretativo:
vida passa a ser texto, palco no qual se encenam as subjetividades do sujeito
crítico.
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EMS Ou seja, o ritual está descrito. Mas quem pode afirmar que os reflexos
em sua formação não estejam sendo ficcionalizados? O sujeito cartesiano
íntegro sucumbiu a Freud e seus sucessores. Do seu descentramento resultou
o fragmento, as marginalidades, tanto que Doubrovsky aconselha: “Cada
escritor de hoje deve encontrar, ou antes, inventar sua própria escrita dessa
nova percepção de si que é a nossa.
CM Pedro Nava diz: ‘Os fatos da realidade são como pedra, tijolo
argamassados, virados parede, casa, pelo saibro, pela cal, pelo reboco da
verossimilhança manipulados pela imaginação criadora. O resto é
relatório.’ Sobre o que o memorialista está a nos alertar?
EMS Nava chama a atenção para a impossibilidade de se apostar na prática
hermenêutica de análise textual, assim como no deciframento de “sentidos
ocultos” a partir da relação naturalista e causal entre vida e obra. A título de
esclarecimento, vamos falar de um outro aspecto da entrevista como meio
legitimador do exercício teórico-ficcional. Seguindo a trilha aberta por Diana
Klinger em sua análise sobre a autoficção que está em Escritas de si,
escritas do outro , podemos também considerar a entrevista como uma
performance que, embora pressuponha preparação, treinamento, ensaio antes
de sua realização, ainda se mostra aberta à contingência e à interatividade
(como ocorre na redação de crônicas, diga-se). Klinger destaca: “o conceito de
performance deixaria ver o caráter teatralizado da construção da imagem do
autor”. Ou, dito de outra forma: deixaria à mostra a incapacidade de o sujeito se
manter íntegro e onipotente. A autoficção, longe de se impor como chave que
abre todos os enigmas da autobiografia, guarda, segundo Jean-Louis
Jeannelle, o conhecido estatuto conferido ao sujeito pelas teorias
psicanalíticas, foucaultianas e barthesianas, da ficcionalização de si, da
encenação de subjetividades no ato da escrita e do discurso.
55
explicava como distinguir uma estrela de um planeta: ‘os planetas são maiores
e mais brilhantes’, dizia. Mostrava o Cruzeiro do Sul, as Três Marias e contava
que algumas das estrelas que estávamos vendo já não existiam mais, mas
ainda assim éramos capazes de vê-las. ‘A distância entre nós é tão grande
que, quando a luz que elas emitem chega aqui, elas podem não mais existir’,
dizia ele. ‘Porque estrelas nascem e morrem como todos nós’”.
como Teoria Queer. O próprio termo é uma deriva polissêmica, que pode ser
traduzida como esquisito, anormal, estranho, excêntrico, além de conotar
desonra, degeneração, pecado, perversão, quando dirigido a tudo e a todos
que representam as potencialidades e as temeridades dos marginais que
transgridem as convenções de sexualidade e de gênero, terminando por
ameaçar a ordem social estabelecida. Na apresentação do debate contido na
vigésima oitava edição dos Cadernos Pagu, que se debruça sobre as
“sexualidades disparatadas”, os organizadores, Ricardo Miskolci e Júlio Assis
Simões, vão a Foucault:
17
A historiada Joan Scott secunda esta conjetura de Between men, ao afirmar que é esquiva
“uma oposição entre homo e heterossexualidade, já que ambas são interdependentes e
partícipes da mesma economia fálica. Esta dinâmica cria, simultaneamente, sujeitos do desejo,
legítimos ou não, mas de forma a fazê-los parecer imutáveis, fora da história, em suma,
‘naturais’ ” (apud MISKOLCI, 2007, p. 57).
18
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico
define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização
que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam o feminino”
(BEAUVOIR, 2009, p. 361).
66
19
Quando a referência a Sedgwick trouxer o ano 2007, trata-se da tradução de Plínio Dentzien
da Epistemologia do armário publicada na edição 28 dos Cadernos Pagu (Dossiê Sexualidades
Disparatadas), citada nas referências bibliográficas deste trabalho.
20
Armário, a canção de Zeca Baleiro citada como epígrafe deste capítulo, prossegue
iluminando a argumentação de Eve Sedgwick: “Não é que eu não queira, / mas é tão difícil
para mim. / É claro que eu quero, / quero mais que tudo, / mas sinto tanto medo, / um medo
67
[...] quando contei que era gay de todas as coisas que já fiz
na vida, a mais difícil , e ela me virou a cara por mais de três
anos, eu nunca me senti excluída. Frequentávamos festas de
família, restaurantes em datas especiais, a casa de minhas
irmãs, e ela não me olhava, era como se eu não existisse. [...]
Mas eu sabia que, lá no fundo, bem no fundo, depois da
vergonha e da decepção por saber que a primogênita, a filha
que, fisicamente, fica a cada dia mais parecida com ela, era
gay, ela sentia orgulho. Orgulho por eu ter ficado de pé na vida,
por eu ter encarado minha própria realidade, por ter desafiado
padrões e detritos morais, por tem me tornado uma mulher
forte e segura mesmo, e isso para a geração de minha mãe
faz toda a diferença sem ter um homem a meu lado.
A ironia é que eu talvez nunca tivesse conseguido me tornar
quem sou não fosse o exemplo prematuro da figura feminina
forte. Sem esse comportamento seguro, determinado, quase
arrogante de enfrentar o mundo, que ela revelou a mim muito
cedo, eu talvez ainda vivesse escondida.
[...] Durante quase quatro anos eu achei que tinha perdido
minha mãe e, vez ou outra, ponderava se havia sido válido ter
peitado o mundo por uma missão até certo ponto nobre, mas
absurdo! / Medo dos vizinhos, / medo da mommy, / medo do daddy, / e do meu irmão, / que já
foi skinhead. / Oh, meu amor, / ninguém me faz tão feliz, / ninguém me fez tanto bem... / Mas já
que eu não posso sair do armário, / peço que você entre no armário também...”
68
21
Ricardo Miskolci, em nota na tradução do texto de Eve Sedgwick (2007, p. 49), lembra que o
termo se refere a performances que, propositadamente, embaralham os sentidos do jogo de
identidades e personificações tradicionais de gênero, dando destaque às suas ambivalências e
instabilidades, caso de David Bowie, Peaches e Annie Lenox, entre outros. Exemplar da
performance genderfuck no Brasil seriam os Dzi Croquettes e Secos & Molhados.
72
22
Numa explicação relâmpago, podemos dizer que Adrienne Rich utiliza os termos “continuum
lésbico” e “existência lesbiana” em contrapartida à conotação clínica, pejorativa e limitada do
termo lesbianismo. Este sugere tanto o fato da presença histórica das lésbicas quanto a
criação contínua dos significados dessa própria existência. Aquele pretende incluir uma
extensão, por intermédio da vida de cada mulher, considerada sua dimensão histórica, de
73
experiências identificadas com a mulher, para além da experiência sexual genital com outra
pessoa do mesmo sexo, tenha esse desejo sido consciente ou inconsciente. Se todas as
mulheres existem em um continuum lésbico, todas podem desfrutar e recriar suas fronteiras,
mesmo aquelas que não se identificam como lésbicas. Texto disponível em
https://antipatriarchy.wordpress.com.
74
23
Novamente, Butler usa o conceito “genealogia” em sentido foucaultiano, o da investigação
sobre o modo como os discursos funcionam e os propósitos políticos que eles cumprem. Judith
Butler: “A genealogia investiga os interesses políticos envolvidos em nomear como origem e
causa aquelas categorias de identidade que são, de fato, os efeitos de instituições, práticas,
discursos, com múltiplos e difusos pontos de origem”. (SALIH, 2012, p. 70)
76
O jantar termina sem que você saiba que o amor da sua vida
vai telefonar no dia seguinte. E que será apenas dali a duas
noites que vocês dormirão juntas, fazendo, como em seus
sonhos, amor a noite inteira. O jantar termina sem que você se
dê conta de que, em seis meses, estará morando com o amor
da sua vida, com quem terá conseguido atingir o raríssimo
ponto de ter, em dose intensamente iguais, sonhos e
memórias. Sem que você se dê conta de que não demorará
muito para apresentar o amor da sua vida para toda a família,
nem que, juntas, começarão a frequentar a casa de sua mãe
que até pouco tempo não aceitava você, muito menos com
namoradas semanalmente para jantar. E que o amor da sua
vida vai comer o macarrão alho e óleo da sua mãe, e repetir,
dizendo que aquele é o melhor macarrão que já comeu na vida.
E que sua mãe, depois de tomar algumas taças de vinho, vai
ter um acesso de riso na mesa e, com ele, provocar um acesso
de riso no amor da sua vida. O jantar termina sem que você
entenda que foi em uma noite fria de maio que o amor da sua
vida entrou em você, vestida em um casaco de couro e botas
de salto, para nunca mais sair. (LACOMBE, 2010, p. 15-16)
24
Seguindo a interpretação de Sara Salih dos conceitos-chave do pensamento de Judith
Butler, temos que “as identidades heterossexuais são construídas em relação ao seu ‘Outro’
homossexual, que é visto como abjeto, mas os heterossexuais melancólicos são assombrados
pelos rastros desse ‘Outro’ que nunca se torna definitivamente ou completamente abjeto. Isso
significa que as identidades não são absolutamente tão héteros, legítimas ou únicas quanto
aparentam, e podem subversivamente ser trabalhadas a contrapelo, a fim de revelar a natureza
instável e ressignificável de todas as identidades de gênero.” (SALIH, 2012, p. 101) Inclusive se
tais identidades se voltam intencionalmente para a tradição heteronormativa.
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“Segundo a definição canônica de Kristeva, o abjeto é aquilo de que devo me livrar para me
tornar um eu (mas o que é esse eu primordial que em primeiro lugar me expulsa?). É uma
substância fantasmática não só estranha ao sujeito, mas também íntima dele íntima demais,
até, e esse excesso de proximidade produz pânico no sujeito. Nesse sentido, o abjeto afeta a
fragilidade de nossas fronteiras, a fragilidade da distinção espacial entre nosso interior e nosso
exterior bem como a da passagem temporal entre o corpo materno (mais uma vez, o domínio
privilegiado do abjeto) e a lei paterna. Espacial e temporalmente, portanto, a abjeção é uma
condição na qual a posição do sujeito é perturbada, ‘lá, onde o sentido se esvai;’ (FOSTER,
2014, p. 147) Segundo Foster, Judith Butler critica a priorização do nojo na definição de
Kristeva para o conceito de abjeção. A teórica americana tende a priorizar a homofobia como a
epítome do que é abjeto.
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O que faz de uma lésbica uma boa conselheira sexual para homens
é o aparato conservador que, na sociedade moderna, policia as sexualidades
disparatadas, no afã de torná-las decorosas. Com isso, tanto dentro como fora
dos armários dos movimentos de direitos dos homossexuais, a percepção
contraditória dos afetos e desejos entre pessoas do mesmo sexo e entre a
identidade gay feminina, “cruzaram e recruzaram as linhas definidoras da
identidade de gênero com uma frequência tão destrutiva” (SEDGWICK, 2007,
p. 42) a ponto de o próprio conceito de gênero ter-se tornado um tropos
transitivo e separatista, perdendo “boa parte de sua força categorizadora,
embora não de sua força performativa” (Idem, p. 42).
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Faz dois anos que meu pai morreu. Dois anos sem meu
companheiro e amigão. Dois anos sem ouvir suas bem
sacadas tiradas, as sempre oportunas citações de Oscar Wilde,
Eça ou Machado. Dois anos sem ter para quem ligar quando o
Fluminense ganha ou, como tem sido mais frequente, é
derrotado. E eu, que nunca havia sentido o baque de perder
alguém, estou ainda me ajustando à vida sem norte.
Meu pai, meu porto seguro, era um homem diferente. Entendia
absolutamente nada de consertos domésticos, de carros, de
máquinas. Nunca usou um computador, dava-se muito mal
com o telefone, não via nexo em celulares porque dizia que só
faria sentido pagar para não ser encontrado, não conseguia
passar fax e nunca dirigiu, [...] sempre que saía comigo, não
conseguia deixar de elogiar minha incrível habilidade para fazer
curvas sem colocar em risco a vida de pedestres.
Meu pai jurava que nunca havia bebido água e, verdade
seja dita, nunca foi visto ingerindo algo que não fosse tanjal,
tônica ou vinho. Sempre que me via com um copo d’água na
26
Cadernos Pagu, n. 28, p. 129-147.
80
Se já houve uma bicha maior que meu pai, foi Proust. [...] É
impreciso e insuficiente definir um homossexual como alguém
cuja expressão sexual discorda do gênero. Proust se refere aos
personagens explicitamente homossexuais como “invertidos”.
[...] Não éramos apenas invertidos. Éramos inversões um do
outro. Enquanto eu tentava compensar a parte efeminada dele,
ele tentava expressar algo feminino através de mim. [...] Havia
83
Ao atravessar a Rota 150 para jogar uma braçada de mato que tirara
do quintal de uma casa de fazenda que pretendia restaurar, Bruce Bechdel é
atropelado por um caminhão. Tinha 44 anos, a mesma idade de Gatsby ao
morrer: teria sido um acidente, teria sido planejado, teria sido uma homenagem
doentia à ficção que tanto prezava? Seu pai lia A morte feliz, de Albert Camus,
o que desperta em Alisson a suspeita de premeditação: “Dei a entender que
meu pai se matou, mas isso é tão preciso quanto dizer que ele morreu
jardinando” (BECHDEL, 2007, p. 95). Autodidata, autocrata e autocida: a vida
do pai refletia os costumes de quem passara toda uma vida na solidão,
escondendo a própria verdade erótica, a ponto de se deixar intoxicar pela
vergonha sexual. A verdade não-dita no velório, que Alisson tinha ganas de
gritar para que toda a Beech Creek ouvisse, era: “Não é nenhum mistério. Ele
se matou porque era um veado maníaco-depressivo no armário que não
aguentou mais um segundo nessa cidade pequena de gente obtusa” (Idem, p.
131, grifos originais). Para Alisson, a história do pai só seria diferente se
houvesse um deslocamento geográfico envolvido, pois ela mesma estava certa
de sucumbir se permanecesse naquele lugar.
“A acusação verdadeira não ousava dizer o nome” (BECHDEL,
2007, p. 181). Porque, entre dois amores, o seu nome é vergonha.
Era tão espessa a camada de silêncio em torno da sexualidade
paterna, reforçada por vinte anos de sacrifícios maternos, que o cambiante jogo
de luz-e-sombra iluminava ora a evidência, ora o ocultamento da persona
pública e a realidade daquele pai tão opressivo quanto fascinante. De certa
forma, avalia Alisson, “pode-se dizer que o fim do meu pai foi meu início. Ou,
para ser mais precisa, que o fim da mentira dele foi o início da minha verdade”
(BECHDEL, 2007, p. 123). Que, como já dissemos, se deu entre livros, mais
especificamente, na livraria da faculdade, onde esteve em busca dos livros de
James Joyce indicados pelo professor de inglês do curso de inverno que faria
sobre Ulisses, o livro preferido do pai. Bruce nunca fora muito interessado em
84
crianças pequenas, mas, à medida que a filha crescia, percebeu que ela
poderia ser sua companheira intelectual, vínculo fortalecido pelas leituras
obrigatórias da disciplina de Inglês. Alisson foi sendo sufocada pelo ímpeto
didático do pai, mas dele derivou sua epifania literária lésbica, alimentada pela
bibliografia clássica disponível em casa. “Eu tinha pouca paciência para as
divagações de Joyce, com a minha própria Odisseia me chamando, tão
sedutora” (BECHDEL, 2007, p. 213)
Partindo do roteiro bibliográfico da referida epifania, Alisson vai para
casa no feriado de Ação de Graças disposta a dividir com Bruce o canto das
sereias ouvido ao longo do semestre. Incentivada por Joan, a mulher com
quem vivia, Alisson tentou falar com o pai a respeito. Recuou na primeira
oportunidade, quando poliam a prataria: “Mudei de assunto. Em parte pelo
escárnio dele, mas principalmente pelo medo nos seus olhos” (BECHDEL,
2007, p. 225). Na segunda, temos um dos momentos mais belos de Fun Home.
A caminho do cinema, close de filha e pai no interior do carro, enquadramento
fechado, quadros simétricos à maneira de fotogramas de um filme. Olhos fixos
à frente, a fluidez do desenho escorre pelas falas, pontuada pelos
pensamentos da narradora:
mais falaram sobre isso. “Tivemos nosso momento de Ítaca”, conclui Alisson à
página 228.
Ricas referências literárias, aliás, permeiam o relato autobiográfico
de Alisson Bechdel do começo ao fim. Aliadas ao traço sofisticado da
quadrinista-narradora, subjazem à exploração provocativa da sexualidade e
das relações de gênero numa família dominada pelas obsessões de um pai
tirânico e sufocante. O infindável jogo de aparências, um certo dandismo no
vestir-se, a busca pela sofisticação estética, a onipresença da arte e da
literatura balizam a percepção da enorme influência que o pai teve na vida da
personagem, da paixão pelos livros à sua homossexualidade. Tão original é o
relato que Julia Watson o coloca num outro patamar: o da “autografia”, termo
cunhado por Gillian Whitlock para denominar essa forma híbrida que incorpora
as multiplicidades do traço e do texto. O artigo de Watson, “Autographic
disclosure and genealogies of desire in Alisson Bechdel’s Fun Home”, merecia
uma análise exclusiva, tão luminares são as abordagens teóricas por ela
elencadas e brilhantemente dissecadas.
Para o nosso propósito, vamos nos ater ao que há de semelhante
entre as crônicas de Milly Lacombe e a de Alisson Bechdel. Em ambas, a
recuperação fantasmática da memória autobiográfica é mediada pela
Literatura, cujos facilitadores são os pais. Os dois textos são narrativas de
saídas do armário (“coming-out story”), complementadas pelo foco na
passagem da juventude para a vida adulta (“coming-of-age”), característica do
romance de formação (Bildungsroman), que tem entre seus subgêneros o
Künstlerroman, no qual se contam os processos de crescimento de um artista
até a maturidade, normalmente enfatizando os conflitos decorrentes do
confronto com os valores sociais hegemônicos. Em Milly, a lembrança é
pungente; em Alisson, é mordaz. Bruce, em sua obsessiva busca de harmonia
estética, é maníaco; Arnaldo, com seu figurino de jornalista do século XIX, é
bonachão. As primogênitas são devotadas aos pais. São eles quem as
sustentam emocionalmente, embora às vezes o círculo se feche em
perplexidades: o julgamento de Bruce, a morte de Arnaldo.
86
Talvez minha ânsia em clamar que ele era “gay” como eu, em
oposição à categoria bissexual ou alguma outra, é apenas uma
maneira de ficar com ele para mim um tipo de complexo de
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metafóricas entre análise, experiência e vida. Assim é que esse gesto permite o
diálogo crítico com os elementos constitutivos envolvidos nesta escrita de si: a
memória do pai, as relações familiares, o amor pelo Corinthians, a sexualidade
gay. O componente autobiográfico das crônicas de Milly Lacombe é expressivo
o bastante para promover a “roteirização romanesca” de sua vida. A fluidez das
margens autoficcionais abre espaço para a desconstrução do sujeito íntegro,
senhor de suas histórias, em favor do jogo fabular que permite encenações de
identidades fragmentárias e poéticas da intimidade que trazem à cena “um
vivido que se conta vivendo”, de acordo com Serge Doubrovsky.
No que se refere à sexualidade da cronista, a saída do armário se dá
tempos depois da descoberta do prazer de beijar outra mulher, ainda na
adolescência. E, se foi traumática, descosendo lascas do colchão de afeto
familiar sob o qual se amparava, foi também redentora, pois facilitou a
conformação identitária do desejo represado. E revelou o paradoxo universal
do armário cárcere da manutenção da homofobia. Qualquer tentativa de
preservar-se está fadada ao fracasso. Na epistemologia descrita por Eve
Sedgwick, o armário joga com o temor individual da obscuridade versus o
medo coletivo de ver expostas as intimidades secretas e o medo coletivo.
O gênero é destituído de seu caráter totalizante de análise,
emergindo como conceito fraturado de subjetividades heréticas e sexualidades
disparatadas, perpassado pelas teorias discursivas foucaultianas. A partir
dessa incongruência, Sedgwick propõe “esclarecer o modo como as pessoas
homossexuais e o desejo homossexual se relacionam com a noção de género”
(SEDGWICK, 2003, p. 30-31) a partir de dois tropos de gênero, o da inversão,
e o da separação. É neste último, onde confluem identificação e desejo, que
julgamos perceber o lugar da sexualidade de Milly Lacombe, pelo menos até o
momento em que contingências históricas o permitam.
Como o “construto discursivo produzido no interior da sociedade
capitalista heterossexista”, conforme definição de Judith Butler, toda simetria
modelar cai por terra. Abrem-se fendas: tão culturalmente construído quanto o
gênero, sexo é gênero. Gênero é gesto performativo que produz significados
por palavras, atos e omissões, numa ‘contínua estilização do corpo’ (SALIH,
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