Sunteți pe pagina 1din 60

Ficha catalográfica preparada por:

Divisão de Biblioteca e Documentação


UNESP - Campus de Bauru

720 Cadernos de Arquitetura / Departamento de

C129 Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo.


- Ano 1, n.2 ( jul. / dez. 1996).
Bauru : FAAC, UNESP, 1996.

Semestral

ISSN: 1413-0424

1. Arquitetura - Periódicos. 2. Arte - Periódicos.


3. Urbanismo - Periódicos. 4. Paisagismo -
Periódicos.
I. Universidade Estadual Paulista.Faculdade
de Arquitetura, Artes e Comunicação.
Universidade Estadual Paulista - UNESP
Reitor: Prof. Dr. Antonio Manuel dos Santos Silva
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação- FAAC
Diretora: Profa. Dra. Cleide Santos Costa Biancardi
Vice-Diretor: Prof. Dr. Sylvio Guilherme de Mello

Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo- DAUP


Chefe:
Vice-chefe:

Conselho Editorial
Elaine da Graça de Paula Caramella
José Claudio Gomes
Kleber Pinto Silva
Luiz Gastão de Castro Lima
Paulo Roberto Correa

Projeto Gráfico (capa)


Dorival Campos Rossi

Projeto Gráfico (miolo)


Cassia Leticia Carrara Domiciano

Produção Editorial
Área de Publicações do DAUP

Publicação Semestral
Av. Luís Edmundo C. Coube, s/n; 17033-360 - Bauru - SP
Tel: (014) 2302111 r. 146; Fax: (014)2304470
SUMÁRIO
03 O OLHAR DO ARTISTA PROBLEMAS DE ESTILO E FORMA NAS ARTES VISUAIS
Mário Henrique Simão D’Agostino

16 O MOVIMENTO NEOCOLONIAL NA ARQUITETURA NO BRASIL


William Seba Mallmann Bittar

28 “PUTRID MIASMATA”: HIGIENISMO E ENGENHARIA SANITÁRIA NO SÉCULO XIX


Carlos Roberto M. de Andrade

40 O SISTEMA DE PARQUES PÚBLICOS NA HISTÓRIA DO PAISAGISMO.


Emilia Falcão Pires

47 UMA VISÃO TÉRMICA DA ÁREA URBANA: O CASO DA CIDADE DE SÃO CARLOS -SP
Léa Cristina Lucas de Souza

53 AVALIAÇÃO DO USO DAS TERRAS DA BACIA DO RIBEIRÃO ANHUMAS (SP) ATRAVÉS DE TÉCNICAS DE
GEOPROCESSAMENTO
Natalio Felipe Koffler
Emília Falcão Pires*
Isabella B. Muniz Barbosa
Rosaly Tereza S. Palanca
O OLHAR DO ARTISTA
PROBLEMAS DE ESTILO E FORMAS
NAS ARTES VISUAIS
Mário Henrique Simão D’Agostino*

Há um quadro do pintor vienense Gustav Klimt, de 1898, no qual Palas Atena investe-se do poder de deusa
das artes, portando como indumentária a máscara de Sileno e, na mão, esfíngica, uma musa sensual, a se exibir
para o espectador com o espelho da verdade. Reconciliação da Cidade com o Poeta, após séculos de um mal-estar
«transcendental», a certeza de que na arte pode-se ver, não ídolos, mas a autêntica fisionomia de um povo conjuga-
se bem com a atmosfera da Viena fin-de-siècle; difícil negar, no entanto, que o quadro acena para convicções de
vasto consenso, que guarnecem a nossa era. Esta não é a primeira vez que se representa a deidade aos mortais,
invitando-os, de olhos ardentes, a beber da sua taça; mas tal inerência da arte aos muros da pólis, se na Grécia de
Winckelmann emana do mármore apolíneo como consonância da ética com a estética, na carnação das tintas de
Klimt muda de tom. Pâmpanos, palmetas, arabescos, hieróglifos... a atenção do pintor pelas formas e cores, pelo
tratamento das superfícies, compete, por assim dizer, com o significado das imagens, com a sedução de suas figuras
desconcertantemente mundanas. Na mesma época e em grande parte na mesma Viena (caminham por suas ruas,
dentre outros, Gottfried Semper, Aloïs Riegl, Franz Wickhoff, Camillo Sitte e Otto Wagner) a teoria da forma ¾ou
purovisibilismo (Sichtbarkeit)¾ ganha seus contornos característicos.
Aquele que se dispõe ao estudo do formalismo sente por Klimt um fascínio singular. Seus quadros parecem refletir
interesses e preocupações que motivaram não só o artista mas toda uma época: ornamentação, abstração formal,
efeitos táteis, materialidade pictórica, empatia etc.. Bastam algumas leituras, porém, para a imagem de unidade, vívida
em suas pinturas, esvair-se; equívocos, divergências de análise e rupturas teóricas de maior alcance assomam-se,
pouco a pouco, por sobre as nuanças de enfoque entre os autores. É propósito do presente estudo examinar três dos
chamados conceitos fundamentais do purovisibilismo, quais sejam: formas de visão, intenção artística e visão pura.
Deambulando pela polissemia e arte combinatória dos termos pretende-se, por uma parte, a inspeção dos alicerces
do edifício teórico (as divergências, desvios e insuficiências entre os expoentes da escola); por outra, a cartografia dos
territórios e campos de força no interior da construção. Por fim, consoante à inquirição do arcabouço conceitual, cumpre
averiguar a pertinência e o alcance dos elementos da crítica.

I. OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Lionello Venturi, Roberto Salvini, Cornelis Van de Ven e outros historiadores têm elaborado um quadro abrangente
das principais obras do purovisibilismo, esquadrinhando os pressupostos gerais e os vetores básicos da crítica. À luz
desses estudos, intenta-se aqui delimitar melhor o orbe de alguns conceitos estratégicos.

a. As formas de visão

Não são menosprezáveis as dissenções sobre o conceito de forma entre os protagonistas da escola. Adolf von
Hildebrand principia seu O problema da forma na obra de arte advogando sobre o caráter ativo da praxis artística: o
artista visa a claridade na representação formal, por isso, «não pode confiar nos conhecimentos do receptor mas tem
que proporcionar realmente os fatores nos quais descansa nossa representação»; escapa ao receptor comum toda
a multitude de estímulos que a aparência comporta para a representação espacial e formal1. Discípulo de Konrad

03
Fiedler, o escultor neoclássico memora que, na vida quotidiana, bastam poucos «pontos de apoio» para que os
indivíduos se orientem e levem a termo suas atividades perceptivas; os empréstimos permanentes a outros sentidos
(sobretudo o tato) e a elaborações mentais mais elevadas, com o intuito da «correta» compreensão da forma do
objeto, testemunham as insuficiências da representação visual, e cumpre-se com eles igualmente «certo abandono
das percepções e imagens»2.
O parentesco de idéias entre epígono e mestre, no entanto, não escamoteia as discrepâncias conceituais. Para
Fiedler a reflexão sobre as formas visuais propugna a ab-rogação do conceito de forma real do objeto, Hildebrand
apenas marca a diferença entre forma real (Daseinsform) e forma aparente, ativa (Wirkungsform)3. Convém deter-se
nesta divisa. Hildebrand orienta seus estudos para a apreensão de «leis» visuais que, subjacentes à mutabilidade das
imagens, revelam algo de fixo e constante: «a tarefa [do artista] será compreender e expor, a partir de um ponto de
vista particular, essa regularidade geral.»4 Porém, se ele, seguindo os passos de Fiedler, não prescreve leis a priori ao
artista (como as da geometria para a construção das formas regulares5), a senda ora percorrida extravia-se em muito
dos horizontes outrora visados.
Hildebrand finaliza o prólogo dizendo que a «forma fundamental da aparência» (Erscheinungsform) na arte de
determinado período histórico tem sua origem na experiência artística, não na «pura recepção»6. Sob a orientação
mestra, convém inquirir, dados diferentes «modos de aparecer» (ou «formas de intuição») artísticos, o conceito mesmo
de polimorfia visual. O oriente do texto é inequívoco: o conhecimento das leis da forma é cumulativo e risca uma
trajetória progressiva no controle dos princípios formais; em Hildebrand, a noção de forma una permanece incólume7.
O éthos de Fiedler é outro. Sua conhecida asserção da arte como «uma forma determinada de desenvolvimento da
vida consciente» exige ser lida na integridade do estudo Sobre a origem da atividade artística: em revista aos domínios
da cognitio, compete «conceber a atividade artística como a evolução, para formas determinadas, do que se inicia
com a percepção do olho (...) A consciência não é algo que permaneça igual a si mesmo, acompanhando as diversas
atividades humanas; pelo contrário, se apresenta nestas como algo susceptível do desenvolvimento mais variado.»8
Súmula: formas, no plural. As explanações sobre teoria do conhecimento, pronau da obra, lançam claridade maior às
suas palavras: a positividade da «coisa em si», incognoscível, ou a crença em um mundo exterior, independente de
toda representação, desfaz-se com a elucidação mesma de que «a existência de tudo o que se mostra como ente está
vinculada às condições de nossa consciência»; porém, diferentemente de Kant, tais condições não estão dadas como
um a priori mas são igualmente formadas pela atividade ininterrupta de nossa consciência9.
Apenas Heinrich Wölfflin aproxima-se desta concepção fiedleriana; não obstante, sequer aí os parâmetros do
historiador fazem jus à matriz filosófica: sua definição das formas de visão (Bildformen) com frequência alude ao objeto
«real» ou «coisa em si»10. Mas é legítimo que as precauções do teórico da forma passem a balizar as investigações do
historiador dos estilos de visão? O parti pris de toda a escola não sofre uma sorte de petição de princípio? A questão
remete ao segundo dos conceitos fundamentais do purovisibilismo.

b. A intenção artística11

Para melhor fixar estes «pontos de partida» da escola, convém avizinhá-la ao edifício filosófico kantiano. De
imediato, as divergências principiam com o deslocamento de interesse do juízo estético para a atividade artística; mas
a fervorosa defesa da arte como flama da «vita ativa», praxis destrelada da esfera fixa da «vita contemplativa», da
pura recepção, não intenciona extrapolar as divisas filosóficas inaugurais, e sim cumprir o seu decurso necessário. Na
Crítica do Juízo, Kant mensura a distância entre a atividade judicativa do belo e a atividade artística que realiza uma
obra bela. Reportando-se aos ajuizamentos da beleza como conceito confuso da perfeição (Leibnitz) ou conhecimento
sensível confuso, porém claro (Baumgarten), o filósofo interdita: «um juízo estético é único em sua espécie e não fornece
absolutamente conhecimento algum (tampouco um confuso) do objeto», aclaração que incide sobre a intencionalidade

04
artística com significativas consequências, visto aí o juízo pautar-se pela ponderação dos propósitos ou finalidade da
obra12.
Tal demarcação kantiana se esvaece sob a ótica purovisibilista da intenção artística. A «regularidade» formal
¾que em Kant consente o livre jogo das faculdades de representação (posto nenhum obstáculo ou discordância
comprometer a pura aparição) sem jamais reclamar conhecimento¾ deve agora ser compreendida pelo «fruidor» da
obra, assim solicitado a dirigir o espírito para a inspeção das regulae, enquanto Kant tem em vista regras «livres de
toda coerção». Fiedler:
«Se a compreensão da atividade artística está impedida a muitos, a compreensão suprema e exaustiva de uma
obra de arte está reservada a quem a produz. (...) A possibilidade de entender-lhe descansa em que outros vivam em
si mesmos a evolução especial da consciência que ele realiza em sua atividade. (...) O interesse predominante pela
visualidade enquanto tal vai unido ao reconhecimento de um estado subdesenvolvido e confuso, inerente a ela, e à
necessidade de ver realizada em uma imagem plástica as percepções do olho para o olho. Somente quem seja dessa
índole por natureza viverá internamente aquilo pelo que se esforça incessantemente o artista.»13
Artista e espectador devem compreender as leis da visibilidade. Malgrado este deslizamento do juízo estético para
a intenção do artista (ou da intuição para a cognição da ordem e regularidade) se efetue com um vocabulário afeito à
gramática kantiana14, ele de fato corrobora o retorno à concepção da Estética como cognitio.
Com sua obra o artista proporciona uma representação visual clara. Por ironia, Fiedler, empenhado em ultimar
o litígio sobre o verdadeiro e o aparente da representação visual, parâmetros definidos em relação a um suposto
objeto «real», termina por fornecer, à sua revelia, as balizas para a reflexão sobre a objetividade na arte. Centro das
indagações da escola, a questão da «forma objetiva» («sachliche» Form) imprime uma direção peculiar ao estudo
da representação. Em O problema da forma na obra de arte, Hildebrand distingue a «forma real», abstrata, obtida
«em parte por meio do movimento, em parte da aparência do objeto», de modo que «conseguimos atribuir uma forma
às coisas à margem das mudanças da aparência», e a «forma ativa», integralmente dada na visão, produto «em
parte da iluminação do objeto, em parte do em torno e do ponto de vista adotado»15; a aquisição da primeira se faz
pela «visão próxima», fragmentária, e como que por tateamento, por isso, está destituída de valor artístico pois não
possibilita uma representação ótica da forma (própria da «visão à distância»)16. Instabilizando tal partilha, Aloïs Riegl,
em Arte industrial tardo-romana, expõe como povos antigos, ao suprimirem da arte todo ilusionismo espacial, objetivam
mostrar as coisas como «aparências “reais”», subsumindo a representação ótica aos imperativos táteis ¾com o que
assinala, igualmente, o princípio de contradição seminal da forma plástica ou concepção em profundidade («Como
pode uma entidade material ser visível dentro do plano se igualmente não se projetar dele, seja por um mínimo?»)17.
Em Abstração e Empatia, por fim, Worringer polariza afãs de estesia artísticos condizentes a representações visuais
dotadas de «objetividade» (anelantes pela «coisa em si» e pela forma «real») e representações visuais «naturalistas»
ou «ilusionistas» (atentas às condicionantes «subjetivas»)18.
No caleidoscópio destas clivagens categorizais, a «intenção artística» mantém posto central. Se o espaço, versa
a Estética Transcendental, «é uma representação a priori necessária que subjaz a todas as intuições externas», isto
não significa que, enquanto a forma da realidade objetiva, não comporte em si formas diferenciadas de objetivação:
p.ex., a «unidade corpórea» das coisas (a concepção volumétrica do objeto arquitetônico) será plenamente abolida
pela arquitetura moderna (que, como se diz, «explode o cubo»). Que se considere a objetividade, ou a visibilidade
«liberada da forma real», trata-se sempre de apreender diversas intenções. Estas não se limitam a esquadrinhar
formas dadas a priori, leis da «pura recepção», mas, pelo contrário, a constituir diferentes formas de visão.
Ora, tudo isto só faz sentido se o artista se dirige ex-professo para o problema da forma. Pode-se admitir tal
pressuposto como constante histórica?
As pré-condições da intenção artística purovisibilista são: 1) que o interesse do artista não esteja voltado para
o significado das formas e a exposição do tema (nos quais a clareza da composição se mede pela eficiência da

05
imagem); 2) que a forma não seja considerada pela capacidade de suscitar emoções. «A arte», ajuíza Fiedler, «cria
valores emotivos e significantes de uma classe muito especial, não se pode negar. Porém, (...) a sensibilidade e o
pensamento destruem a visualidade do fenômeno e põem em seu lugar outra forma de ser.»19 Formulação rigorosa,
porém circunscrita à teoria da forma. O estudo da intenção repõe as dúvidas sobre a pertinência da «história da
visão».

c. A visão pura

O desafio do purovisibilismo está na equação das pré-condições da intenção artística com a gênese das formas.
Em polêmica contra os semperianos, proêmio de Problemas de Estilo, Riegl dá o primeiro passo. Seu alvo, o tecnicismo
e determinismo materialista20. Os procedimentos técnicos podem ter papel crucial na transformação e progresso das
formas, mas elas só se consumam na medida em que eles se subordinam a um interesse livre especificamente formal:
«o impulso não provém da técnica mas sim da decidida volição artística.»21 Em Arte industrial tardo-romana, o autor
declara «liberar-se daquela teoria, comumente relacionada ao nome de Gottfried Semper, segundo a qual a obra de
arte não seria nada mais que o produto mecânico de três fatores: o uso a que é destinada, a sua matéria e a técnica
empregada. (...) Em contraposição, (...) eu tenho ¾ao que me parece, pela primeira vez¾ proposto uma hipótese
teleológica, enquanto tenho visto na obra de arte o resultado de uma determinada e consciente vontade artística, que
se substitui, com dura luta, à finalidade, à matéria e à técnica. Estes três últimos fatores não têm mais aquela função
positivamente criadora que Semper havia lhes confiado, mas, antes, representam um caráter repressivo, negativo:
estes são os coeficientes de atrito no produto geral.»22
Antes de Riegl, Fiedler via enleados o manejo purovisibilista e a operação técnica; com as condicionantes
psicológicas (temperamento, gosto, «sentimento da forma» etc.) incrementam as dificuldades para a assertiva da
intenção formal autônoma. Na conclusão de Conceitos fundamentais da história da arte, Wölfflin recapitula o problema:
sobre a transformação das formas de visão, trata-se de saber se decorre de uma evolução interna, «evolução que se
processa de certo modo espontaneamente no mecanismo de concepção», ou se o fator condicionante é «um estímulo
externo, um outro interesse, um outro posicionamento frente ao mundo». É prudente repelir esse éter do qual as
artes teriam a inspiração e o movimento, impoluta mecânica interna; o que, segundo o autor, nada afeta a adesão ao
purovisibilismo23. Como o pórtico da obra reza, o impulso de transformação toma alento com o sopro do exterior, mas
a constituição da nova forma se faz com moto-motor.
Acautela Wölfflin ser «arriscado falar apenas de estados de visão», pontuando: toda concepção artística se
organiza de acordo com certas noções de gosto; as visões linear e pictórica estão permanentemente unidas a noções
de beleza; as formas de visão, inseparáveis do que se tem ao olhar, ligam-se a visões de mundo ¾ mas, com mesma
diligência, pontifica: o senso da visibilidade artística prescinde destas condicionantes externas.
«Se estes conceitos mais gerais [respectivos às formas de visão] levam em conta também um tipo especial
de beleza, não estaríamos retornando ao início, onde o estilo havia sido concebido como a expressão direta do
temperamento, fosse ele de uma época, de um povo, ou de um indivíduo?» Wölfflin é peremptório: «Quem assim
pensa, desconhece que a nossa segunda série de conceitos pertence, por sua própria natureza, a um gênero diferente,
visto que esses conceitos, em suas transformações, obedecem a uma necessidade interior. Eles representam um
processo psicológico racional.»24
Desligada da esfera dos significados e do sentimento, a forma de visão revela legalidade e vida próprias,
necessidade interior, enfim, um lógos puramente visual; sua unidade com padrões de gosto e com a expressão de
sentimentos destitui-se de valor para o estudo da forma. Mas por qual metafísica razão as formas de visão, posto
seu livre curso, jamais se separam das condicionantes externas? Se a transformação das formas de visão parte de
condicionantes externas, abrindo novas perspectivas e incitando novos interesses formais, estas condicionantes, por

06
sua vez, não consistem em outros tantos «coeficientes de atrito», permanentemente dificultando a possibilidade de uma
atitude «indiferente» frente às formas (i.e.: quanto aos valores emocionais, gosto etc.), cerceando sua «autonomia»?
É sabido o argumento do historiador sobre a disjunção entre visão pura e expressão dos sentimentos: «o linear
e o pictórico são como que dois idiomas, através dos quais tudo pode ser dito»25; não faria sentido conceber tais
condicionantes externas como fatores repressivos ou de atrito. No ano de 1915, Erwin Panofsky, em artigo sobre uma
célebre palestra proferida por Wölfflin em 1911 na Academia prussiana de Ciências, descredita os assertos do autor:
«se é verdade que o modo de representação, “incolor em si mesmo, ganha cor, tonalidade emotiva, somente quando
uma determinada vontade expressiva dele se serve”, também à vontade expressiva não deveria ser de todo indiferente
a escolha do modo de que se serve?», concluindo: «a forma que esse [conteúdo expressivo] assume em uma época
participa de tal modo de sua essência que, em uma outra forma, ele de fato não seria mais o mesmo conteúdo.»26
Trata-se de postular uma visão pura ou considerá-la no horizonte de uma intencionalidade formal historicamente
constituída? «O conceito de “pura visão” é uma abstração», pondera Edgar Wind, intelectual ligado ao círculo de
Panofsky; «o que conceitualmente pode-se considerar “puramente visual” não está nunca completamente isolado do
contexto da experiência em que se produz.»27
A resposta de Wölfflin vem com o Posfácio ao Conceitos fundamentais da história da arte, de 1933. Primeiramente,
o historiador reconsidera a relação entre visão e expressão, eixo da crítica de Panofsky (assente na distinção dos
conceitos de «visão», «olho» e «ótico»). Sobre as analogias da forma como continente neutro que recebe diferenciados
conteúdos ou teia que comporta distintas tecelagens, Wölfflin avalia: «eu as evitaria agora, por tornarem o conceito
de forma demasiado mecânico e por conduzirem à noção errônea de que a forma e o conteúdo se justapõem como
dois elementos facilmente diferenciáveis. No entanto, cada forma de visão pressupõe uma realidade já observada,
e cabe perguntar até que ponto uma é condicionada pela outra.»28.A inquirição deste condicionamento mútuo deixa
pendente, porém, a equação entre visão e expressão, escopo do artigo de Panofsky. «Utilizando nossas próprias
palavras: “em cada novo estilo de visão cristaliza-se um novo conteúdo do mundo” (...) Mas, então, por que não atribuir
tudo isto à “expressão”? ¾e aqui a réplica de Wölfflin¾ A resposta é a seguinte: para fazer justiça ao seu [arte] caráter
específico de representação figurada. O fato de essa representação coincidir com a história geral do espírito só se
explica parcialmente pela relação de causa e efeito: o essencial continua a ser a evolução específica a partir de uma
raiz comum.»29 Não há porque rejeitar, em arte, preocupações voltadas especificamente para a forma e os problemas
de representação; esta assertiva, porém, vem agora acompanhada pela ressalva de tais interesses ganharem vida em
permanente, mútua interferência com a esfera dos conteúdos, com a expressão dos sentimentos, em suma, «a partir
de uma raiz comum».
Perante estas reparações em negativa ao «expressionismo» panofskyniano, o segundo núcleo de questões tratado
no Posfácio mostra-se bem mais insuficiente. As críticas à historiografia purovisibilista ¾i.é: abordagem em separado
das formas de visão¾ são rebatidas com argumentos inócuos, sem préstimos para desautorizar as proscrições do
iconólogo. O foco está na transformação das formas de visão, na relação entre condicionantes externas e internas:
«é claro que a evolução não pode significar um desenvolvimento mecânico, algo que se consuma por si só, e sob
quaisquer condições. (...) será “impulsionada por um sopro que deve provir do espírito”.»30. Expressa referência a
Panofsky, com ela Wölfflin se limita a reiterar que a «necessidade imanente» das formas de visão não é incompatível
com as disposições espirituais e sentimentais de cada época31. «Quanto à evolução da representação em geral da
imagem», finaliza, «a sua “racionalidade” é a mesma que serve de base à evolução da vida espiritual e do sentimento
dos povos europeus»32; nenhuma revisão metodológica resulta da constatação.
Ora, exatamente porque as formas de visibilidade estão na base das disposições espirituais e emocionais, elas
não podem ser consideradas em separado, mesmo admitindo-se uma intenção artística especificamente formal (cujo
grau de «autonomia» só se apreende em consideração às «condicionantes externas»). Longe de reiterar o método,
tal expediente necessita ter em conta «as forças que se desenvolvem em sua interação»(Wind), as interferências, e

07
não a «racionalidade imanente»; as quais são estudadas com vistas à constituição da intencionalidade em um contexto
histórico determinado. Em termos metodológicos, a visão pura converte-se aqui em uma «mediação estratégica»,
imprescindível, é verdade, porém uma abstração conceitual que, em si mesma, está destituída de qualquer validade
histórica33.

II. OS ELEMENTOS DA CRÍTICA

Convém o exame mais pormenorizado das críticas que se deixam entrever com a análise dos conceitos. Em
essência, elas reportam a duas prerrogativas básicas da teoria da forma: a inteligência do lógos da forma e o acesso
ao éthos do artista.

a. O circulus vitiosus da análise

No estudo das artes visuais, os embaraços no delineamento do objeto somam-se a turvações nos meios de tê-lo
em mãos. A hermenêutica das formas, se imprescinde da interação de condicionantes materiais, técnicas, sentimentais
etc., padece, adstrita à análise formal, de vícios epistemológicos análogos aos do purovisibilismo.
Pode-se falar, p. ex., da importância da utilização de modelos em argila para a plena conquista do movimento nas
estátuas em pedra gregas, e, igualmente, reconhecer que a intenção formal é «indiferente» ao material, pois mimetizar
em argila um efeito (plástico) próprio da talha significa ignorar as possibilidades formais (pictóricas) da técnica do
modelato. Igualmente, se mudanças do sentimento pedem novas formas de expressão, estas não são geradas ab
ovo, por assim dizer, mas com frequência tomam empréstimos do passado, de fórmulas que, em contraste com as
tradições vigentes, respondem melhor às novas exigências expressivas; assimilações estilísticas que tanto atendem
a determinadas motivações como põem outros obstáculos e incompatibilidades (p. ex., a melancolia «policleteana»
das estátuas gregas clássicas soa estranha ao páthos das cópias romanas). O intérprete das obras de arte almeja
compreender a lógica com que estes elementos se unem: por que ¾retomando um exemplo clássico de Riegl¾ a arte
tardo-romana combina o tratamento «impressionista» das figuras à tradicional «rigidez» dos contornos, se resquício
estilístico a ser superado ou connexio necessária. Mas ao propósito de extrair a intenção artística que está em sua
base e que a explica antepõem-se obstáculos.
Em 1920, nessa ocasião com um estudo sobre Riegl, Panofsky retoma as disquisições metodológicas (o artigo
reporta-se expressamente ao publicado cinco anos antes), alertando contra a ambivalência da interpretação das obras
de arte, fortuna inexorável que parece recair sobre o historiador. Toda análise interpretativa parte da obra para, numa
espécie de círculo vicioso, chegar a ela:
«Ou somos informados sobre os reais propósitos psicológicos do artista», expõe Panofsky, «apenas através das
obras de que dispomos (as quais, porém, somente podem ser explicadas com base nessas intenções): (...) com isto
não apenas afirmamos coisas que são indemonstráveis, mas ainda caímos em um circulus vitiosus constituído pelo
fato de interpretar a obra de arte com base em noções que devemos a uma interpretação da própria obra ¾ ou, em
certos casos, a nós são transmitidos positivos enunciados de artistas que eram capazes de empreender reflexões
e que tinham em conta a própria intenção artística: mas agora estes conhecimentos não servem muito, porque eles
mostram necessariamente quão pouco a vontade do artista intelectualmente formado e consciente corresponde a isto
que parece propor-se como a verdadeira tendência do seu fazer.»34
Por uma parte, o recurso à «literatura artística» mostra-se indispensável, visto ser «impossível definir as
“intenções”, per se, com precisão científica». Manuais, tratados, manifestos, cartas, registros de emoções... documentos
cruciais para o historiador. Nem sempre, porém, o artista tem domínio intelectual do modus operandi, recorrendo a
procedimentos estabelecidos, práticas tradicionais; e ainda que se possa identificar com exatidão a «vontade» do

08
artista, isto não significa que, por seu intermédio, o «sentido» da obra seja revelado. Na terminologia de Panofsky, faz-
se necessário distinguir intenção artística e intenção do artista. A razão por que o artista age de determinada forma,
sua motivação, é algo que não se limita à volição artística (observação que pode ser identicamente estendida ao estudo
dos «documentos» literários).35 Esquadrinhar o methodos deste projeto historiográfico ¾Iconologia¾ ultrapassa os
propósitos deste texto, mas a revisão e reorientação da análise formal que ele objetiva requer atenção.
Nada assegura que a reconstituição da intenção do artista em função de um «modo de agir» fundamental
(condicionado pela visão de mundo da época) não obnubile igualmente o que é próprio da estese artística. Neste
circulus methodicus antevê-se o perigo de desvio das questões artísticas, alertado pelos próprios iconólogos em
atenção aos trabalhos de Aby Warburg. «A preocupação original de Warburg com o artista e a obra de arte», pondera
Fritz Saxl, «desenvolveu-se em um interesse mais amplo por toda a imagética, pela imagem como expressão da mente
humana. (...) Posto que o propósito de Warburg era a psicologia histórica, as formas artísticas deveriam ser estudadas
em relação com outras expressões da mente humana.»36 Ao historiador da arte, porém, pede-se menos do que uma
«psicologia histórica geral» e mais do que esta oferece. Nem forma aquém do conteúdo, como no purovisibilismo, nem
imagem dentre outras extra-artísticas, ao historiador cabe mostrar como a «forma artística» pressupõe um interesse em
si mesma (constituindo-se, portanto, como valor) e como ¾aqui reside o problema¾ esse interesse ou intencionalidade
se configura em permanente, mútua interação com a esfera dos «conteúdos»37.
Tais diretrizes, contudo, sempre orbitam em torno da mesma premissa de base, e convém desconfiar se também
elas não incorrem em círculo vicioso de segunda espécie. A «tendência mais geral» do fazer artístico ¾considerada
nos marcos da aísthesis própria da arte¾ põe-se impreterivelmente como sintoma de um modo de ser, tendência da
mente humana? Se os pilares do edifício iconológico contrastam com os prismas do constructo purovisibilista, resta
sondar os alicerces.
b. O Espírito da arte

Meyer Schapiro publica Estilo em 1953; muitos dos argumentos da obra dirigidos ao purovisibilismo têm em mira,
concomitantemente, a iconologia (cujos problemas metodológicos estavam definidos há não mais de uma década38).
Dos pressupostos basilares do formalismo, dois são postos em tela: a unidade estilística e, a ela coordenada, a
extrinsecação na arte das disposições anímicas do artista, grupo ou período (em síntese, a quaestio da alienação do
Eu na obra de arte).
Em contraponto à idéia generalizada de o estilo constituir um todo homogêneo ¾como no templo grego os membros
parecem compor uma «família de formas»¾, o historiador enfatiza a fragmentação estilística, obras com diverso tratamento
das partes (fundo e figura, áreas marginais e áreas dominantes etc.) 39. Riegl, na impossibilidade de conectar os caracteres
do estilo pela lente da «intenção», toma transitório o convívio de formas contrárias; Schapiro aponta «estilos nos quais
grandes partes da obra são diversamente concebidas e executadas sem que isso destrua a harmonia do conjunto».
Desoportuno pensar aí em fatores «repressivos» ou «promotores» da unidade intencional, «a noção de estilo perde a
nota de cristalina uniformidade e simples correspondência de parte a todo.»40. A integração de qualidades estilísticas
heterogêneas contraria parâmetros como impulso formal unitário, lógica visual etc., é, conclui o autor, «mais uma questão
de interdependência funcional do que de repetição de um mesmo modelo para todas as partes.»41
O alcance deste novo enquadramento mede-se pelos remanejos categorizais que demanda: contabilizadas as
divergências estilísticas da obra, compete aditar as respectivas intencionalidades, plurais, lindando seus territórios
pelas funções em que cobram vida? as funções são condicionantes externas? enfim, a objetiva de Riegl caiu em
desuso ou perdeu o foco? Sustentar de forma incondicional o conceito riegliano supõe admitir o conceito de imanência
ao qual segue unido: a intenção artística, quer se a considere vontade ou tendência mental, atividade cognitiva ou
estado de consciência, expressa sempre uma atitude, uma disposição do artista ou do grupo (juízos que cingem,
em simultâneo, ao problema da expressão artística). Perseguindo os movimentos da consciência, para além das

09
individualidades, Riegl aspira ao Espírito da arte42. E aqui as turvações não enganam, fluem da mesma nascente as
vertentes purovisibilista e iconológica.
«As leis superiores da arte não são reconhecíveis com igual clareza para todos os gêneros artísticos. Isto se verifica
sobretudo na arquitetura e na arte industrial, enquanto elaborada com motivos não figurativos: estas manifestam as
leis dominantes, e com matemática precisão.» Com essas palavras, Riegl apresenta sua Arte industrial tardo-romana,
finalizando: «na escultura e na pintura as leis não resultam com a mesma clareza e simplicidade: o que não depende,
de fato, da figura humana em si mesma (queremos dizer, do movimento e da aparente assimetria que lhe é resultante),
mas do “conteúdo”, ou seja, dos pensamentos de natureza poética, religiosa, didática, patriótica etc., que se ligam às
figuras humanas.»43 Adiantada a leitura, a concordância das artes quanto às «leis dominantes» e «fases evolutivas» da
puravisibilidade (p. ex., recusa de ilusionismo espacial na pintura, escultura e arquitetura egípcias; efeito tridimensional
por superfícies tangíveis, nas pinturas, frisas e templos gregos; individualização do espaço, cujo exemplo paradigmático
do Panteão reúne-se às demais artes tardo-romanas) faz lastro ao proêmio da obra, confiante na unidade de espírito e
conexão das atitudes próprias a cada arte ¾tácita asseveração de um Espírito da Época (Zeitgeist).
Schapiro se detém sobre as idéias de Riegl no capítulo quinto de Estilo, criticando em pormenor a justificativa
da vontade artística por disposições raciais; não obstante, conclui o breve exame ressaltando os aspectos positivos
de sua obra e, como outrora Panofsky, em especial a concepção da arte como atividade criativa: «é da vontade do
artista, empenhado em resolver problemas especificamente artísticos, que surgem as novas formas.»44 Mas o conceito
riegliano não possui, agora, mesmo élan e vitalidade, privou-se da aura da criação.
Para o historiador, a interpelação do Deus das artes pelo espelho da psyché está longe de ser unívoca. Em
determinados casos, pergunta, será razoável falar de formas de visão ou categorias de representação? O concerto
do estilo com concepções de mundo, formas de pensar e de sentir comporta suspeições análogas, e as prognoses de
Schapiro vaticinam a judiciosa revisão da «história da cultura» empreendida por Ernst Gombrich45.
«Se nos restringimos às correlações históricas mais modestas entre os estilos e os tipos dominantes de
personalidade das culturas ou grupos que os criaram, encontramo-nos com diversas dificuldades, algumas delas já
antecipadas ao se discutir o problema geral da unidade do estilo. 1) A variação de estilos de uma cultura ou grupo é
frequentemente considerável dentro do mesmo período. 2) Até há pouco, e em geral, os artistas que criavam o estilo
levavam um gênero de vida distinto ao dos destinatários das artes, sendo os pontos de vista, interesses e características
destes últimos evidentes em sua arte. (...) 3) Aquilo que é constante em todas as artes de um período (ou de vários
períodos) pode ser menos essencial para a caracterização do estilo que os aspectos variáveis.»46
As «convenções» e «fórmulas» empregadas na arte podem se manter tão afastadas das disposições anímicas do
artista quanto a máscara parece estar do fundo dos olhos. Assinalando o paralelismo das mudanças na representação
dos olhos, ou do drapejado das vestimentas, nos sucessivos estilos da escultura grega, chinesa e européia, Schapiro
salienta como certos esquemas cíclicos condizem essencialmente a etapas de desenvolvimento da representação;
«caberia perguntar se esquemas formais, como o de Wölfflin, não constituem veladas categorias de representação.»47.
Na esfera dos sentimentos, a velatura das fórmulas igualmente empana as expectativas de desnudar a alma do artista,
a centelha do Espírito48.
À guisa de conclusão, algumas considerações sobre o crescente ceticismo a respeito da intenção artística. A
moderna historiografia da arte tem se empenhado em retificar a concepção das formas de visão como «idiomas através
dos quais tudo pode ser dito», substituindo a clavis universalis wölffliniana pela investigação d’«o que é possível
dizer com cada um desses idiomas» (superado o expressionismo no qual todo o dizível sempre é «sintomático» das
disposições anímicas do artista). As tradições estilístico-figurativas sublinham as múltiplas possibilidades expressivas
das formas; «imagens que possuem um significado especial em um momento e lugar», observa Saxl, «uma vez criadas,
exercem um poder magnético de atração sobre outras de sua esfera». Mas a demarcação dos níveis de significado nas
artes visuais não para aí: o estudo sobre o que é possível dizer, o que se quis dizer e o que se disse afinal reúne-se ao

10
do que os espectadores acabaram ouvindo. Neste ponto, duplo equívoco alenta os ceticismos supra referidos.
Oculta permanentemente sob o véu de maia da polissemia das formas, a intenção artística parece destituir-se de
«eficiência». Ao historiador, conjectura-se, cabe sobretudo elencar os vários sentidos com que se reveste o visível.
É fácil perceber a «orgia» do signo e do significado na qual pode recair essa semiologia, a reduzir toda investigação
histórica à aplicação do mesmo método «classificatório», e, entorpecida pela copiosidade de sentidos (cuja vertigem
máxima está no «jogo de espelhos» entre intérprete e interpretante), a nivelar todos os significados em jogo nas artes
visuais. Por sua vez, crer que a solução para a «ineficiência» da intenção artística está no reconhecimento e no recurso
à multiplicidade semântica da forma pelo próprio artista, tal crença endossa (ainda que assim o faça para melhor
rechaçar) a convicção purovisibilista em uma atividade criativa circunscrita à clareza da forma, à pureza do cristal.
«Sempre é certo que a obra de arte fala cada vez de um modo especial e sem dúvida sempre como ela mesma»;
estas palavras de Gadamer permitem subverter as fronteiras então estatuídas49. Ao ouvir da flauta suave melodia não
podemos precisar com exatidão os sentimentos que o compositor acorda com os sons, embora saibamos tratar-se de
uma música triste. Aqui a polissemia não suplanta a transparência, ou vice-versa, e a arte pode ser ¾quase sempre
é¾ a tênue ponte que se estende entre o comedido e o incomensurável da visão.
1 HILDEBRAND, Adolf von. El problema de la forma en la obra de arte (1893), trad. de María I.P.Aguado, Visor, Madrid, 1988, p.22.
2 Cf. FIEDLER, Konrad. “Sobre el origen de la actividad artística” (1887), in Escritos sobre Arte, Visor, Madrid, 1991, p. 214.
3 Fiedler adverte: «Não tem nenhum sentido dizer que o olho não pode fazer justiça plena à forma das coisas enquanto esta ainda possa
ser medida e calculada com maior precisão, como se existisse uma forma em si, e como se os distintos órgãos dos sentidos só fossem os
instrumentos mais ou menos adequados para apropriar-se desta forma. De que serve à forma que surge por e para o olho aquela forma que não
se pode apresentar como visível em nossa consciência perceptiva e representativa?»; idem, p. 211. Croce traduz «Daseinsform» por «forma
existencial do objeto como ele é na natureza», porém, optou-se aqui por «forma real», tradução mais frequente e menos literal, que assinala
melhor (embora com certo reducionismo) a distinção visada por Hildebrand; cf. CROCE, Benedetto. “La teoria dell’arte come pura visibilità”, in
Storia dell’estetica per saggi, Ed. Laterza, Bari, 1967, p.263.
4 Op. cit., pp.31-32.
5 «Os produtos de uma visão ativa», diz Fiedler, «por infinitamente diversas que sejam as maneiras em que se apresentem, hão de satisfazer
determinadas exigências que a consciência coloca à visualidade. Não se pode prescrever à atividade artística leis a priori que o artista deveria
obedecer se pretendesse produzir obras de arte legítimas e não só aparentes. Porém (...) não poderá descansar até que seus produtos tenham
adotado uma forma que seja efetivamente conforme a leis»; idem, ibidem, pp. 261-62.
6 Idem, p. 23.
7 Lionello Venturi ressalta que, para Hildebrand, os princípios formais, consolidados no curso da história da arte, constituem-se como normas
(pode-se acrescentar que o escultor oficializa seu classicismo pela «legitimação teórica» da norma), mas «para que a teoria formalista fornecesse
a exata medida de suas possibilidades no âmbito do juízo da arte, precisava renunciar ao seu valor normativo e reconhecer que a sua aplicação
na história possui um caráter relativo»; VENTURI, L. Storia della critica d’arte, Giulio Einaudi ed., Torino, 1993, p.291.
8 Idem, ibidem, pp. 241-42 (g.n.).
9 A consideração do movimento da consciência tanto pela realização das capacidades cognitivas como pela superação-determinação de novas
capacidades pode sugerir uma proximidade entre o pensamento de Fiedler e o de Hegel ¾embora ele refute expressamente a idéia do Ser
verdadeiro. Entretanto, o autor não dá margens para tais associações: «parece absurdo dizer deste mundo tão irrefutavelmente real que ele não
só está vinculado à existência da nossa consciência na possibilidade do ser, mas que todo seu ser consiste unicamente nas formas eternamente
variáveis, que surgem e desaparecem, que manifesta a ininterrupta atividade sensível e espiritual de nossa consciência. Quem confie no são
entendimento deveria pensar que seu âmbito não é a verdade mas o compromisso.» Sobre o hegelianismo, em particular: «Quando se deixa de
crer na absoluta realidade do mundo objetivo se pensa na existência de um mundo dado como representação», contra a qual Fiedler objeta: «com
isto não se elimina o caráter do ser em si e para si como substância permanente»; ibidem, pp. 200-01. Sobre as influências e as divergências
em relação a Kant, cf. CARREÑO, F. P. “Konrad Fiedler, La producción de lo real en el arte”, in FIEDLER, K. Op. cit., especif. pp. 17-27 («[Para
Fiedler] se a crítica de Kant chegava até a negação do caráter absoluto do conhecimento, a manutenção de alguma forma absoluta de Ser [a
“coisa em si”] não se justificava em absoluto e era só um resto dogmático de sua filosofia»; p.25).

11
10 “Dada sua amplitude, todo o processo de transformação no âmbito da representação foi englobado em cinco pares de conceitos. Podemos
chamá-los de categorias da visão, sem corrermos o risco de as confundirmos com as categorias de Kant. Ainda que apresentem uma tendência
nitidamente paralela, elas não derivam de um mesmo princípio (ao modo de pensar kantiano, elas forçosamente pareceriam um simples “apanhado”
de conceitos). (...) De qualquer modo, elas se condicionam reciprocamente até um certo grau, e se não quisermos empregar literalmente
a expressão categoria, é perfeitamente possível concebê-las como cinco modos diferentes de se ver uma mesma coisa.» Paralelamente à
definição das categorias kantianas, o problema do que seja a «coisa em si» subjaz aos múltiplos sentidos que ela venha a adquirir no domínio da
experiência ou sob formas de visão determinadas. Contudo, se Wölfflin ressalta que «não só se vê apenas de uma outra maneira, mas também
se vêem outras coisas», deixa igualmente claro que, em arte, o interesse volta-se para a visibilidade em si mesma; cf. WÖLFFLIN, Heinrich.
Conceitos Fundamentais da História da Arte (1915), trad. de João Azenha Jr., Livraria Martins Fontes Ed., São Paulo, 1984, p.252.
11 Sobre o conceito paralelo de «vontade artística» (Kunstwollen), proposto por Riegl, Panofsky observa que «parece distinguir-se do conceito
de intenção artística apenas convencionalmente, isto é, em relação ao alcance de seu âmbito de aplicação; o conceito de vontade artística se
aplica prevalescentemente a fenômenos artísticos globais, a criações de uma época inteira, de um povo ou de uma personalidade em seu todo,
enquanto o termo “intenção artística” se usa em geral sobretudo para caracterizar a obra de arte singular.»; PANOFSKY, Erwin. “Il concetto del
«Kunstwollen»”, in La prospettiva como “forma simbolica” e altri scritti, trad. de Enrico Filippini, Feltrinelli Ed., Milano, 1982 p.154.
12 «O juízo chama-se estético precisamente porque o seu fundamento de determinação não é nenhum conceito, e sim o sentimento (do sentido
interno) daquela unanimidade no jogo das faculdades do ânimo, na medida em que ela pode ser somente sentida»; em relação à arte: «com
efeito, quer se trate da beleza da natureza ou da arte, podemos dizer de um modo geral: belo é aquilo que apraz no simples ajuizamento (não
na sensação sensorial nem mediante um conceito). Ora, a arte tem sempre uma determinada intenção de produzir algo. (...) Portanto, embora a
conformidade a fins no produto da arte bela na verdade seja intencional, ela contudo não tem que parecer intencional; isto é, a arte bela tem que
passar por natureza, conquanto a gente na verdade tenha consciência dela como arte»; KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do julgamento,
trad. de Valerio Rohden e António Marques, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1993, §§ (15) e (45), pp. 74 e 152. Não cabe aqui um estudo
aprofundado das reflexões de Kant sobre o juízo estético e a intenção artística (relacionada à noção de gênio); especif. sobre as diferenças entre
a «Analítica do Belo» e a concepção baumgarteniana da cognitio sensitiva, bem como o alcance das idéias kantianas em relação à arte moderna,
cf. LEBRUN, Gérard. “A Finalidade Sem Fim e a Ambiguidade do belo”, in Kant e o Fim da Metafísica, trad. de Carlos A. R. de Moura, Livraria
Martins Fontes Ed., São Paulo, 1993, Partes I e II, pp.441-55.
13 Idem, p.268-69.
14 «[Aquele que não é artista,] ao fazer-se presente a atividade [do artista]», conclui Fiedler, «ao procurar segui-la, ver-se-á involuntariamente
arrastado para fora de todas as esferas do sentimento e do pensamento nas quais se mantém frente à realidade, dissolverá cada vez mais a
confusão em que estava enredada a visualidade das coisas para sua consciência. Ver-se-á elevado efetivamente ao mundo puro da arte, onde
a aparência das coisas se apresenta ao seu olho regida pela determinação, a ordem e a regularidade. Nesse momento, e só então, a arte se
converte em revelação»; ibidem, p.296.
15 Idem, p.33.
16 «A vista se transforma verdadeiramente em tato e em um ato de movimento, e as representações que se apoiam nela já não são representações
óticas, mas representações de movimento e constituem o material da visão e representação abstratas da forma»; op. cit., p. 26.
17 RIEGL, Aloïs. Arte tardoromana (1901), trad. de Licia C. Ragghianti, Einaudi Ed., Torino, 1959, p.32.
18 Deve-se a Riegl a análise em termos «objetivístico» e «subjetivístico» da atitude do artista com relação ao objeto (proposta no estudo sobre
retratos de grupos feitos por artistas holandeses dos séculos XVI e XVII). Sobre a conquista do «ilusionismo espacial» ou «forma plástica»
convém algumas observações. Para Riegl, a plena aquisição da forma espacial, na modernidade, radica na passagem da visão «tátil» para a
visão «ótica» (ou da aparência «real» para a aparência «ativa», se estendermos a associação com a terminologia de Hildebrand). Em Conceitos
fundamentais da história da arte, Wölfflin complica o esquema evolutivo traçado por Riegl: a passagem do «tátil» para o «ótico» também ocorre no
interior da forma plástica já definida. Assim, embora Hildebrand contraponha a «visão à distância» ¾verdadeiramente artística, responsável pela
representação ótica da forma¾ à «visão próxima, tátil», suas análises (e professa defesa da arte clássica) estabelecem a constituição da forma
plástica por princípios tais como: forma fechada; efeito de profundidade definido a partir do plano; claro-escuro etc.. Como evidencia Wölfflin em
A Arte Clássica (também influenciado pelos estudos de Bernard Berenson sobre Giotto), trata-se aí da constituição de uma forma espacial onde,
sem nenhuma atenção à «forma real», o «tátil» predomina na representação ótica. Nesta trilha, e igualmente prescindindo de qualquer referência
à «forma real», em Conceitos Fundamentais Wölfflin estuda a forma plástica, definida na modernidade («os estágios que antecedem o apogeu
do Renascimento não podem ser ignorados, mas eles representam uma forma arcaica de arte, a arte dos Primitivos, para a qual ainda não existe

12
uma forma plástica definida»), incorporando as duas ordens de visão em jogo (esquadrinhadas pelos cinco pares de conceitos: linear-pictórico;
plano-profundidade; forma fechada-forma aberta; pluralidade-unidade; clareza absoluta-relativa). Isto posto, cabe concluir que os conceitos
fundamentais não podem ser considerados como «categorias», no rigor do termo: a visibilidade pictórica se contrapõe à tátil enquanto «libera-se
do plano», mas une-se a ela por operar com a «forma aberta», fragmentária e ligada ao movimento; nenhum dos pioneiros do purovisibilismo
vêem os conceitos como excludentes entre si (o que será próprio de um reducionismo posterior, preocupado em «classificar» os elementos da
imagem visual). Compreende-se ainda que a questão da perspectiva exata, precisamente porque se reporta à «forma real, objetiva», não ocupe
um lugar de destaque nas reflexões de Wölfflin; com anterioridade, Fiedler ponderava: «a existência de algo visível só pode estar em seu ser
visto ou representado como visto. Na visão não se trata de equiparar a imagem visual subjetiva a uma existência objetiva perceptível pela vista.
(...) Se observamos que a vista nos engana sobre a situação de um objeto no espaço, não poderemos dizer que a vista percebe o objeto em um
lugar distinto daquele onde ele é visível; só podemos dizer que o olho vê o objeto em um lugar distinto daquele onde o sente o tato, por exemplo»;
op. cit., pp. 209-10. Ora, Panofsky apercebe-se claramente do que fica sub-reptício nesta «exclusão da perspectiva»: a «montagem» da história
pelos critérios purovisibilistas. Em parte, a conquista da visão «pictórica» não somente se revela in potentia na perspectiva «linear» mas em
uma espécie de coincidentia oppositorum com ela; por sua vez, a perspectiva matemática «institui» o problema da objetividade no domínio do
visível («por um lado [a perspectiva] reduz os fenômenos artísticos a regras matemáticas sólidas e exatas, porém por outro as faz dependentes
do homem, do indivíduo, na medida em que as regras se fundamentam nas condições psico-fisiológicas da impressão visual e na medida em
que seu modo de atuar está determinado pela posição de um “ponto de vista” subjetivo eleito à vontade.»; cf. PANOFSKY, E. La prospettiva
como “forma simbolica” e altri scritti, op. cit. - sobre o reducionismo teórico de Worringer frente às idéias de Riegl, v. ainda p. 168, nota 7).Da
Psicologia da Gestalt à Nova Objetividade (Neuesachlichkeit) vemos reaparecer, na Arte Moderna, a mesma polarização entre «subjetividade» e
«objetividade». Bastam aqui as palavras de Mondrian: «A pintura pode ser uma expressão puramente abstrata (...). Em escultura e arquitetura, a
obra consiste em uma composição de volumes, os quais possuem expressão naturalista [i.e.: ilusionismo espacial]. Entretanto, vistas como uma
multitude de planos, a escultura e a arquitetura podem ser uma manifestação abstrata. Movendo-se ao redor ou dentro de um objeto ou edifício
retangular, este pode aparecer como bidimensional (...). A expressão da estrutura, forma e cor dos planos pode ter uma relação mútua e contínua
que produz uma imagem verdadeira do todo. Este fato mostra a unidade intrínseca da pintura, escultura e arquitetura. (...) A arte abstrata tende
a destruir a expressão corporal do volume; a ser um reflexo do aspecto universal da realidade»; MONDRIAN, Piet. “Un nuevo realismo” (1943),
in Arte Plastico y Arte Plastico Puro, trad. de Raúl R. Rivarola e Aníbal C. Goñi, Ed. Victor Leru S.R.L., Buenos Aires, 1961, pp. 45-46.
19 Idem, p.256.
20 «Enquanto Semper diz que na origem de uma forma artística entram em consideração matéria e técnica, os semperianos sustentam de
imediato que a forma artística é um produto de matéria e técnica»; mais à frente: «Nada mais distante de mim que negar a significação dos
procedimentos técnicos para a transformação e progresso de certos motivos ornamentais. Será sempre um imperecível mérito de Gottfried
Semper manter-nos a este respeito de olhos abertos»; Riegl, Aloïs. Problemas de Estilo (1893), trad. de Federico M. Saller, Gustavo Gili Ed.,
Barcelona, 1980, pp. 2 e 15.
21 Idem, p.20.
22 Op. cit., pp.9-10 (g.n.).
23 Mesmo prefiguradas como possibilidades, observa Wölfflin, «se as formas de visão chegam a se desenvolver, e o modo como o fazem,
dependerá das circunstâncias externas»; op. cit., p.255. Cabe cotejar estas palavras com a crítica ao hegelianismo que o autor desenvolve em
sua obra de juventude Renascença e Barroco, comprometida com a psicologia da forma: «a história dificilmente se enquadrará nessa construção
[na qual o contrário seria o elemento motor], e os fatos deveriam submeter-se à mesma violência que sofreram quando se pretendeu explicar a
história da filosofia pela relação dos conceitos entre si no pensamento abstrato»; op. cit. (1888), trad. de Mary A. L. de Barros e Antonio Steffen,
Ed. Perspectiva, São Paulo, 1989, p.89.
24 Idem, p.17. Lionello Venturi e Roberto Salvini têm insistido sobre o caráter arbitrário desta ordem de sucessão, observando que, na história
da arte, muitos são os momentos em que o processo se inverte e, p. ex., a «forma aberta» passa a anteceder a «forma fechada» (da arte
helenística e paleocristã à bizantina; do Barroco ao Neoclassicismo; do Oitocentos, com o Impressionismo, ao Novecentos; etc.); todavia, a
ordem de necessidade postulada por Wölfflin deve ser considerada em relação à conquista plena da forma espacial, sem o que a asserção perde
totalmente o sentido. A crítica de Venturi, neste sentido, não se limita a constatar a «inversão da ordem», mas objetiva distiguir necessidade lógica
e processo histórico: «a história nos ensina que as mudanças de gosto não dependem da lógica e que da forma aberta muitas vezes se volta
para a fechada»; op. cit., p. 300. Cf. SALVINI, Roberto. La critica d’arte della pura visibilità e del formalismo, Aldo Garzanti Ed., 1977, Milano, p.
31. Sobre a concepção da história da arte como processo que vai do «linear» ao «pictórico», do «tectônico» ao «atectônico» etc., protagonizada
por Riegl e Wölfflin, o historiador Ernst Gombrich tem ressaltado sua dívida com as Lições de Estética de Hegel; cf. GOMBRICH, E.H. “Padre

13
de la Historia del Arte: Lectura de las Lecciones sobre Estética de G.W.F.Hegel (1770-1831)”, in Tributos, trad. de Alfonso Montelongo, Fondo de
Cultura Económica, México, 1991, especif. pp.58-90.
25 Op. cit., p.12 (a afirmativa vem acompanhada, não sem certo paradoxo, pela constatação: «embora cada um tenha a sua força voltada para
uma direção e tenha-se concretizado a partir de uma perspectiva diferente»).
26 PANOFSKY, Erwin. “Il problema dello stile nelle arti figurative”, in op. cit., pp. 147-48; o artigo é publicado na mesma data de Conceitos
fundamentais da história da arte.
27 WIND, Edgard. “El concepto de «Kulturwissenschaft» en Aby Warburg y su importancia para la estética” (1930), in La elocuencia de los
símbolos, trad. de Luis Millán, Alianza Ed., Madrid, 1993, p.66.
28 WÖLFFLIN, H. “Posfácio: Uma Revisão” (1933), op. cit., p.267.
29 Idem, p.267.
30 Idem, ibidem, p.270.
31«Mas como é que esta vida autônoma da arte pôde coincidir com o curso da história geral do espírito? (...) nossa história da visão artística pode
ser realmente considerada uma história centrada em determinados fenômenos distintos? Apenas em parte. Os processos internos, de acordo
com sua natureza sensitiva e espiritual, sempre se subordinam à evolução geral mais abrangente de cada época. Não se trata de processos
distintos, ou autônomos»; ibidem, p. 270.
32 Ibidem, p.271.
33 Apenas Paul Frankl, discípulo de Wölfflin, apercebe-se claramente desta natureza da investigação formal «pura»; porém, ao separá-la das
questões de caráter histórico, deixa explícito seu desinteresse pelos problemas de método ora em questão ¾vale dizer: se, no processo efetivo
da gênese das formas, determinadas condições históricas (disposições emocionais, técnicas etc.) podem ser decisivas ou empecilhos para as
conquistas formais; cf. FRANKL, Paul. “Introducción: Problema y método”, in Principios fundamentales de la Historia de la Arquitectura (1914),
trad. de H. Dauer, Gustavo Gili Ed., Barcelona, 1981, pp. 19-39 («Estas questões autenticamente estéticas acompanham as de caráter histórico,
e com razão se exigirá que a explicação do processo não destaque apenas as obras decisivas quanto ao aspecto histórico-evolutivo, mas
também aquelas que são perfeitas no mencionado sentido duplo, e quiçá surja uma terceira pergunta: a de como se comportam as questões de
importância histórica frente às perfeitamente estéticas. Aqui excluo ex professo esta questão»; p.33).
34 PANOFSKY, Erwin. “Il concetto del «Kunstwollen»”, in op. cit., p. 155.
35As considerações de Panofsky podem ser relacionadas às experiências «fundantes» de sua escola. Estudando a arte de povos indígenas do
Novo México, o historiador Aby Warburg propõe uma explicação para o estranho rito da dança da chuva, no qual os índios bailam com cobras
na boca, devolvendo-as depois para baixo da terra como mensageiras da chuva. Por seu intermédio, o significado e o páthos da representação
do raio como serpente era desvendado, e a «intenção» devia ser considerada por um «modo de agir» inconsciente aos próprios índios: «O índio
assustado ¾relata Fritz Saxl¾ procura fazer inteligível a aparência momentânea do raio comparando-o com a serpente, que pode tocar. Ou
melhor, as duas coisas se unem porque é típico em seu raciocínio que o “como”, que separa as duas partes de uma comparação, se omita: para
ele, raio “é” serpente»; SAXL, Fritz. “La visita de Aby Warburg a Nuevo Méjico”, in La vida de las imágenes, trad. de Federico Zaragoza, Alianza
Ed., Madrid, 1989, pp.291-92.
36 SAXL, F. “Herbert Horne, Aby Warburg, Jacques Wesnil”, in op. cit., p. 305; o autor assim conclui o artigo: «Mesnil não criou teorias de largo
alcance como Warburg, e ainda que não compartilhou da austeridade de Horne e do credo estético inglês possuiu um refinamento estético similar
ao de Horne e do qual careceu Warburg»; p. 306.
37 Um ano depois da célebre definição do método iconológico apresentada como introdução aos Estudos sobre Iconologia, de 1939, Panofsky
volta à questão, enfatizando a experiência estética: «Só aquele que se abandona simples e totalmente ao objeto de sua percepção poderá
experimentá-lo esteticamente. (...) Se escrevo a um amigo, convidando-o para jantar, minha carta é, em primeiro lugar, uma comunicação.
Porém, quanto mais eu deslocar a ênfase para a forma do meu escrito, (...) a forma de minha linguagem (...), mais a carta se converterá em uma
obra de literatura ou poesia. Assim, a esfera em que o campo dos objetos práticos termina e o da arte começa, depende da “intenção” de seus
criadores. Essa “intenção” não pode ser absolutamente determinada. Em primeiro lugar, é impossível definir as “intenções”, per se, com precisão
científica. Em segundo, as “intenções” daqueles que produzem os objetos são condicionadas pelos padrões da época e meio ambiente em que
vivem»; PANOFSKY, E. “A história da arte como uma disciplina humanística” (1940), in O Significado nas Artes Visuais, trad. de Maria Clara F.
Kneese e J. Guinsburg, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1976, pp. 31-32.

14
38 Cf. supra nota (37); à exposição «clássica» do método proporcionada por Panofsky, em 1939, convém reunir o Estudo das Ciências da Cultura
(Kulturwissenschaften) de Ernst Cassirer, publicado em 1942.
39 SCHAPIRO, Meyer. Estilo, trad. de Martha Scheinker, Ediciones 3, Buenos Aires, 1962, pp. 21-ss.
40 Idem, pp. 22-23.
41 Idem, ibidem, p.28 (g.n.).
42 Riegl «verte o sistema hegeliano para termos psicológicos», segundo a expressão de Gombrich; já na introdução de Problemas de Estilo o
autor alerta que Goodyear, obsecado por estabelecer conexões históricas, «passa por alto o autêntico espírito grego na ornamentação micênica»;
op. cit., p.5.
43 Op. cit., p. 18.
44 Idem, p.46.
45 GOMBRICH, Ernst H. “In Search of Cultural History”, in Ideals and Idols, Phaidon Press Limited, Oxford, 1979; e “A psicologia e o enigma do
estilo”, in Arte e Ilusão, trad. de Raul de Sá Barbosa, Livraria Martins Fontes Ed., São Paulo, 1986.
46 Idem, ibidem, pp. 58-9.
47 Ibidem, p.41..
48 Dentre outros exemplos, Schapiro destaca o preenchimento da folha de papel com elementos estreitamente amontoados e em repetida
sequência, característico do esquizofrênico: «este modelo, originado em um só artista de tipo esquizóide, pode cristalizar-se como norma comum,
aceita por outros artistas e público enquanto satisfaz uma necessidade e é sumamente adequada para um especial problema de decoração
ou representação, sem que isto signifique uma mudança notável nos hábitos e atitudes gerais do grupo»; op. cit., pp. 60-61. No Em busca da
História Cultural, Gombrich se utiliza de exemplo análogo («O amplo êxito dos padrões chamados psicodélicos não mantém relação com o vigor
deste culto absurdo e suicida, porém compartilha, de certo modo, o sabor do conformismo escapista, que não é, espero, um portento do futuro»);
vide ainda, sob mesmo enfoque, os estudos de Jan BIALOSTOCKI, reunidos em Estilo y Iconografia, trad. de José M. Pomares, Barral Editores,
Barcelona, 1973 (em particular, “O Problema do «modo» nas artes plásticas”).
49 GADAMER, Hans-Georg. La actualidad de lo belo, trad. de Antonio G. Ramos, Ed. Paidós, Barcelona, 1991, p.79 (g.n.).

15
O MOVIMENTO NEOCOLONIAL NA ARQUITETURA NO BRASIL
William Seba Mallmann Bittar*

INTRODUÇÃO

Este trabalho abordará o Movimento Neocolonial, presente na produção arquitetônica no Brasil a partir de meados
da segunda década do século XX.
Trata-se de assunto pouco abordado na historiografia oficial, dificultando a plena compreensão de suas
características principais, principalmente devido à sua proximidade cronológica com o Movimento Moderno que, com
seu dogmatismo, procurou apagar qualquer possibilidade de manifestação que viesse a ameaçar sua glória.
Esta sintética abordagem, decorrente do espaço disponível, apresentará seus antecedentes, seus conceitos
básicos, características significativas, arquitetos e intelectuais envolvidos no movimento e algumas notas sobre a sua
expansão.
Voltamos a este tema, após a publicação nossa de 19831, principalmente porque pouco foi publicado posteriormente
sobre o assunto e quando isto ocorreu, apresentou-se com alguns equívocos e incorreções, por vezes decorrentes da
falta de informações ou mesmo de algum arraigado preconceito modernista na interpretação2 que agora pretendemos
esclarecer.

ANTECEDENTES

A proximidade da Primeira Grande Guerra alterou substancialmente o estado de euforia da sociedade, dominante
desde a entrada no século XX.
A expectativa de tempos melhores, com todos os recursos que a tecnologia colocava ao dispor da humanidade
se dissipou à primeira explosão da primeira bomba e continuou em declínio conforme aviões e tanques, a face cruel do
poder da era da máquina, se disseminavam por sobre a Europa, trazendo destruição e não tempos melhores.
Era uma Guerra cruel, de grandes sofrimentos e profundos traumas. Uma Guerra que abalou para sempre
o Ocidente com suas imagens de trincheiras enlameadas, corpos deteriorando-se nas cercas retorcidas de arame
farpado à vista de jovens aterrorizados com tão dantesca visão, principalmente para quem esperava um paraíso de um
mundo melhor, a “Guerra para evitar todas as guerras”.
O mundo assistia atônito ao desenrolar dos acontecimentos, inicialmente incapaz de tomar decisões, diante do
impacto totalmente inusitado do que era realmente uma Guerra.
O conflito ocorreu em terras européias, porém seus reflexos diretos e indiretos atingiram praticamente todo o
ocidente, naquela ocasião dependente econômica ou culturalmente da Inglaterra ou França. No mínimo, era um
momento de reflexão.
A América, por sua vez, também apresentava conflitos internos, como a Revolução Mexicana, impregnada de
sentimentos nacionalistas, que pouco a pouco se espraiavam e ganhavam eco em outros pontos do continente,
nem sempre com a prática revolucionária, mas procurando resgatar raízes então obscurecidas pela longa influência
estrangeira. Uma verdadeira redescoberta cultural de valores, há muito apenas presentes nas cabeças de alguns
poucos artistas e intelectuais: no México, Diego Rivera com seu muralismo engajado, expunha cenas da Revolução,
enquanto Alfonso Reyes resgatava temas nacionais na poesia; no Equador, Icaza modernizava a poesia com temas
regionais; a Argentina, também em crise interna, culminada com a Grande Greve de 1919 contra o ditador General
Dellepiane, produzia uma literatura neonacionalista, representada pelo Grupo “Martin Fierro”; a Colômbia iniciava o

16
ciclo de seu romance social engajado. Enfim uma sucessão de atitudes, sempre impregnadas do “espírito” modernista
que resultam na seguinte hipótese: nos primeiros anos do século XX, pelo menos nas Américas, ser moderno era ser
nacionalista, ou por mais paradoxal que pareça, ser moderno era ser tradicional.
Na arquitetura, desde o final do século XIX, exemplares de influência hispânica eram produzidos no sul dos
Estados Unidos, principalmente em edificações para as classes dominantes, ou programas mais complexos como
hotéis ou universidades (Palo Alto, Califórnia), porém sem o suporte ideológico que o movimento adquiriria no decorrer
das primeiras décadas do século XX. Tratava-se de mais uma incursão pela liberdade formal proporcionada pelo
Ecletismo Internacional, mas que reapresentava formas até então esquecidas ou repudiadas por seu caráter passadiço
ou antiquado, na visão dos tempos modernos. Este repertório, na década de 10, também se expandiu para outras
regiões sob influência político-cultural direta dos Estados Unidos, como Cuba ou Panamá, ou ainda suscetíveis
aos reflexos de revistas ou indústria cinematográfica americana em franca ascenção, que apresentavam mansões
californianas ou “mexican style” como formas ideais do bem-morar.
O restante da América,. incluindo o Norte dos Estados Unidos, continuava produzindo sua arquitetura eclética,
com predominante influência francesa.

ORIGENS NO BRASIL

Constitui-se em opinião próxima da unanimidade atribuir-se a Ricardo Severo, engenheiro-arquiteto português


radicado em São Paulo, integrante do Escritório Técnico Ramos de Azevedo, a origem do discurso neocolonial no
Brasil, principalmente pela conferência “A Arte Tradicional no Brasil: a Casa e o Templo”, realizada em julho de 1914,
na Sociedade de Cultura Artística.
A prática do discurso, construída entre 1914 e 1917, divide os méritos entre o mesmo Ricardo Severo, com o
projeto da Residência Numa de Oliveira e Victor Dubugras, arquiteto franco-argentino, com o projeto da residência
Horácio Sabino, ambas na Avenida Paulista, hoje demolidas.
Cabe ressaltar que ambas as propostas baseavam-se na produção luso-brasileira, estando portanto afastadas
das tendências hispano-americanas, que diversos autores insistem em afirmar como origens deste discurso em toda
a América Latina.
Mas foi no Rio de Janeiro que o movimento neocolonial encontrou espaço para sua expansão e afirmação,
graças a um cenário favorável composto de toda a tradição de uma história de quatrocentos anos de transformações
constantes, bem diferente de São Paulo, um núcleo estagnado por trezentos anos, povoado por padres, índios e
sertanistas sempre arredios, reclusos em suas construções de taipa de pilão, com poucas aberturas para o exterior e
econômicas na ornamentação, até por impossibilidades técnicas, totalmente distante da produção erudita de outros
pontos da colônia. Seria muito difícil para o paulista entender e produzir exemplares neocoloniais de boa qualidade,
se lhe faltava o contato direto com a verdadeira tradição do fazer, além do grande contingente de imigrantes, sem
qualquer vínculo com país, ávidos pelo progresso e pelo futuro, pouco favoráveis a um movimento aparentemente
tradicionalista.3
O Rio de Janeiro, repleto de notáveis exemplares do período colonial como o Mosteiro de São Bento, o Convento
de Santo Antônio, o Paço dos Vice-Reis, a Fazenda do Capão do Bispo, a Casa do Bispo, com artistas como o
Mestre Valentim, Xavier de Brito, o Brigadeiro Alpoim, Frias de Mesquita ou Frei Bernardo de São Bento, poderia, com
segurança, sediar os estudos seguintes sobre as idéias iniciais de Ricardo Severo.
O Escritório Técnico Heitor de Mello, responsável por inúmeros projetos na década de 10, com arquitetos
renomados como seu proprietário, além de Archimedes Memoria, também produziu obras de gosto neocolonial, porém
ainda impregnadas de um sentimento eclético, sem os princípios que norteariam os trabalhos após a consolidação do
movimento.

17
Além disso, na então Capital Federal residia um abastado médico pernambucano, profundo admirador da Arte
Brasileira, que constituir-se-ia na alma do movimento: Dr. José Marianno Carneiro da Cunha Filho(1881/1946).
Apesar das acusações de racismo, fascismo, xenofobia, radicalismo que lhe imputam alguns autores (os mesmos
que não reconhecem a importância do movimento), graças às suas iniciativas, nos concursos que promoveu ou
influenciou, fundação de revistas especializadas, organização do Instituto dos Arquitetos e principalmente na introdução
da matéria de Arquitetura no Brasil no curso de Arquitetura, que seria por ele ministrada, impedido pela sua não
habilitação profissional, mais do que um “estilo”, José Marianno introduziu uma nova maneira de pensar a produção de
arquitetura e um novo modo de se compreender o Brasil, principalmente quanto ao riquíssimo acervo artístico colonial,
até então renegado ou abafado pela frenética admiração por modelos europeus.
“De resto, como se poderiam eles informar, se na própria escola não existe uma cadeira de cultura artística e histórica
dedicada à arte nacional? O tempo ali é pouco para se dizerem coisas pernósticas sobre Phidias e Praxiteles.” 4

O MOVIMENTO NEOCOLONIAL

Faltavam ainda argumentos consistentes, no campo da arquitetura, que justificassem a defesa das teorias que
José Marianno iria difundir.
Presidente da Sociedade Brasileira de Belas-Artes, composta por alguns intelectuais renomados, não é difícil
perceber como as conferências de Ricardo Severo na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo chegaram ao seu
conhecimento. Lá estavam exemplos, propostas e projetos que pouco a pouco se materializavam, ainda de forma
tímida, apoiados numa concepção de formação eclética, mas que poderiam transformar-se em ponta de lança do
movimento imaginado pelo médico pernambucano.
Em 1921, através do Instituto Brasileiro de Arquitetos, José Marianno patrocinou a realização de um concurso
para uma “Casa Brasileira”, obrigatoriamente projetada dentro do espírito tradicional luso -brasileiro, vencido pelos
arquitetos Nereu Sampaio e Gabriel Fernandes.
Em 1923, com a intenção de construir uma casa para si, em amplo e arborizado terreno à rua Jardim Botânico,
outro concurso foi promovido: “Solar Brasileiro”. O primeiro lugar foi obtido por Ângelo Bruhns, o mesmo arquiteto
responsável pelo futuro projeto vencedor para a Escola Normal (atual Instituto de Educação), ficando o jovem estudante
de arquitetura Lucio Costa com o segundo prêmio.
Os resultados não agradaram plenamente ao responsável pelos concursos, que acabou por utilizar os projetos
apenas como base para a residência que ele próprio elaborou, o Solar de Monjope, nome da propriedade de sua família
em Pernambuco, contratando o engenheiro Mário Perry para execução das plantas e respectiva responsabilidade
técnica.5 Sobre esses resultados, José Marianno escreveu:
“Quando, há mais de dez anos, quebrando a calmaria reinante nos arraiais arquitetônicos, comecei a agitar a
opinião pública em favor do velho estilo brasileiro, os próprios arquitetos saídos da Escola de Belas Artes, entorpecidos
pelos estilos de conserva do academismo francês, não sabiam como acudir ao meu apelo. Os primeiros concursos
que provoquei demonstraram à sociedade que os nossos artistas ignoravam, naquela época, os fatos elementares da
evolução arquitetônica nacional.”6
O Solar de Monjope, síntese e bandeira das idéias de José Marianno Filho constituía-se de uma edificação de
planta quadrangular, desenvolvendo-se em torno de um amplo pátio interno circundado de galerias alpendradas, com
telhados em capa e bica apoiado sobre colunas toscanas. No centro do pátio, um belo chafariz colonial autêntico,
recolhido de antigas construções pernambucanas. A própria setorização da residência inspirava-se nos moldes
coloniais: uma área social, imediatamente contígua à varanda de acesso, sucedida por um confortável setor íntimo, de
concepção moderna, onde se distribuíam suítes compostas por quarto de dormir, quarto de vestir, saleta, banheiro e
pequena varanda, chegando, em alguns aposentos, a cerca de 100m2 de área útil e, finalmente, um setor de serviço

18
composto por sala de almoço, sala de jantar, cozinha e despensa. Acrescentava-se ao pavimento térreo quatro “torres”
dispostas simetricamente sobre os quadrantes, comportando biblioteca, depósito, aposentos para hóspedes e um coro
para a capela, que dividia as atenções da fachada principal, integrada por uma “loggia” central, o corpo do elemento
religioso e uma torre lateral com vão guarnecido por um muxarabi. Completava o desenho um painel de azulejos,
também presentes em diversos outros aposentos do Solar7, elementos vazados permitindo uma boa ventilação e
volutas ladeando o frontispício da referida capela.
Esta descrição pretende, principalmente, conferir ao movimento neocolonial a consistência que realmente possui,
diferente da opinião corrente da maioria dos autores que o consideram meramente formal ou mais uma continuação do
ecletismo ou ainda um estilo que nunca existiu.
Há uma preocupação formal clara, principal atrativo do discurso, porém encontramos uma declarada intenção
de adequar arquitetura ao clima, à paisagem e mesmo aos materiais disponíveis, atitude inexistente desde o período
colonial.
“Empregae o ferro, ou a madeira se não dispuzerdes do ferro, mas não simulae a materia de nenhum deles.”...”não
poderiamos pensar numa casa a moda daquellas que faziam a felicidade tartigrada dos nossos avós. Nós só podemos
reviver um estylo architectonico, se esse estylo puder representar e attender as exigências prementes da vida moderna
do instante, por assim dizer, universal que vivemos.”...8
Entre o primeiro concurso (1921) e a construção do Solar de Monjope (aprovado em 1924), um evento foi o grande
responsável pela difusão e aceitação do modelo que se iniciava no Brasil: a Exposição Internacional Comemorativa do
Centenário da Independência, realizada na cidade do Rio de Janeiro, na área resultante do desmonte parcial do Morro
do Castelo, nas imediações da Praça XV de Novembro.
Esta importante exposição, pouco valorizada pela historiografia oficial, abrigou por sete meses (setembro de 1922
a março de 1923) 26 pavilhões dos mais importantes países de então, construídos entre a Praça XV de Novembro, nas
imediações do atual edifício do Museu da Imagem e do Som (antigo Pavilhão da Adminstração) e o Palácio Monroe,
na Avenida Rio Branco, que aqui apresentaram seus produtos e curiosidades, num espaço de festas constantes,
ainda que o anfitrião iniciasse um período de efervescência política com a revolta tenentista, que só arrefeceria com a
Revolução de 30.
Dos 26 pavilhões principais (também existiam “stands” de empresas), 13 eram nacionais e 13 estrangeiros
(Argentina, Bélgica, Dinamarca, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Itália, Japão, México, Noruega, Portugal (2)
e Tchecoslováquia). Dos exemplares brasileiros, alguns já utilizavam o repertório neocolonial em seus projetos (
Viação e Agricultura, de Morales de los Rios Filho; Pequenas Indístrias, de Nestor de Figueiredo e C. San Juan; Caça
e Pesca, de Armando de Oliveira; Porta Monumental Norte, de Raphael Galvão), num resultado que foi apreciado
nacionalmente e elogiado pelos estrangeiros, impressionados pelo “exotismo”, ainda que Portugal também utilizasse
formas semelhantes em um de seus pavilhões.
Do conjunto, apenas quatro exemplares chegaram até hoje: o edifício que abriga o MIS, já citado, o antigo
Pavilhão de Estatística, atualmente Saúde dos Portos, o pavilhão da França, atual Academia Brasileira de Letras, três
representantes do ecletismo, enquanto o único exemplar neocolonial remanescente desta exposição, hoje o Museu
Histórico Nacional, apresenta uma curiosidade. Tratava-se de uma edificação do século XVIII, a Casa do Trem e
do Arsenal de Guerra, inteiramente reformada por Archimedes Memoria e F. Couchet para abrigar o Pavilhão das
Grandes Indústrias, onde foram incluídos azulejos, telhas de louça esmaltada e muxarabis, dispostos numa planta que
procurava atender às necessidades de um espaço expositivo.
A observação dos pavilhões estrangeiros nesta exposição também apresenta um importante parâmetro para
reflexão: mesmo com os diversos movimentos de vanguarda já existindo na Europa, nenhum exemplar refletiu qualquer
filiação modernista, atestando a real situação marginal destes movimentos em seu local de origem. A Arquitetura Oficial
de países desenvolvidos como França, Estados Unidos, Inglaterra ou Itália ainda utilizava o Ecletismo como sua

19
representação, enquanto Dinamarca, México, Noruega ou Tchecoslováquia optavam por representações de caráter
regionalista, conceitualmente próximas ao movimento neocolonial brasileiro.
São Paulo também participou das comemorações do Centenário da Independência, inclusive com a construção
dos monumentos do Caminho do Mar, antiga estrada para Santos, em 1922, projetados por Victor Dubugras, com
azulejos de José Washt Rodrigues, dupla que, em 1919, já havia reurbanizado o Largo da Memória, na capital, todos
dentro do espírito luso-brasileiro.
Concursos promovidos pelo Instituto Brasileiro de Arquitetos, fundado em 1921, ou pela Sociedade Central dos
Arquitetos, fundada no mesmo ano por dissidentes do Instituto, escolha para os pavilhões da Exposição do Centenário,
influência de revistas ou do cinema americano e até mesmo as conseqüências da Semana de Arte Moderna, em São
Paulo, em fevereiro de 1922, tudo propiciava o fortalecimento destes ideais nacionalistas, fundamento do movimento
neocolonial.
Ainda que pareça estranho relacionar aqui a Semana de Arte Moderna, freqüentemente tratada como um momento
de ruptura, o ideal de nacionalismo cada vez mais presente após a eclosão da I Guerra associava-se, no Brasil, ao
ideal de modernidade. Nas artes em geral, exceção feita à Arquitetura, a temática nacionalista era apresentada sob um
invólucro modernista, sem nenhum demérito nesta postura. A afirmação “ser moderno é ser nacionalista”, implícita na
exposição do Teatro Municipal de São Paulo, em 1922, estava presente nos temas cotidianos (na pintura: A estudanta
russa, O Homem Amarelo, O Japonês, de Anita Malfati, Bohemios, de Di Cavalcanti, Tédio, de Martins Ribeiro, Lenda
Brasileira, de Vicente do Rego Monteiro; na escultura: Soror Dolorosa, de Brecheret; na poesia: Tu, de Mário de
Andrade9 ou Os Sapos, de Manoel Bandeira10, recitado por Ronald de Carvalho) expostos de uma nova forma, com
uma nova técnica, incomodando aos “tradicionalistas” pela sua dupla ousadia. A arquitetura ali presente alternava-se
entre o neocolonial de Pzyrembel (Taperinha da Praia Grande) e projetos de Moya, com alusões a influências pré-
colombianas, demonstrando o desconhecimento das correntes de vanguarda presentes na Europa, ainda de circulação
restrita, praticamente vedadas ao rígido ensino acadêmico vigente.
Os desdobramentos dos ecos da Semana de 22, pelo menos em algumas de suas vertentes apresentavam forte
influência nacionalista como no “Manifesto Pau-Brasil”, onde Oswald de Andrade escrevia “...Os casebres de açafrão
e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.(...)A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar
domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para a
flauta e a Maricota lendo o jornal. no jornal anda todo o presente....”11. Tarsila do Amaral pintava A negra (1923), São
Paulo (1924) ou Anjos (1925), abordando paisagens, tipos e costumes provincianos; Vicente do Rego Monteiro insistia
na temática indígena (O Atirador de Arco, 1925).
Este nacionalismo ainda perduraria por toda a década de 20, se fazendo presente nas mais variadas manifestações
artísticas, como pintura, escultura, música, literatura e arquitetura, às vezes permitindo incorporar influências externas,
desde que devidamente “deglutidas”.
“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.(...) Tupi or not tupi that is the
question.(...) Só me interessa o que não é meu.(...) Lei do homem. Lei do antropófago....”12
Enquanto Oswald publicava seu manifesto, Mário de Andrade escrevia Macunaíma (1928) e Tarsila do Amaral
pintava O Abaporu e Antropofagia (1928).
Na arquitetura, o neocolonial ganhava consistência e aceitação se fazendo presente em construções oficiais,
abastadas ou em modelos populares.
Em 1924, José Marianno Filho promoveu, através da Sociedade Brasileira de Belas-Artes, da qual era presidente,
viagens de estudos para Minas Gerais, com o objetivo de organizar um grande catálogo de detalhes da arquitetura colonial,
oferecendo subsídios para o desenvolvimento de projetos futuros. Tratava-se de uma contribuição muito particular que
procurava minimizar as deficiências do Curso de Arquitetura que continuava por não abordar a produção nacional.
Destas viagens participaram alguns dos mais importantes arquitetos que viriam a utilizar com maestria o repertório

20
apreendido em Ouro Preto, S.João d”El Rei, Congonhas ou Diamantina: Nestor de Figueiredo, Nereu Sampaio, Ângelo
Bruhns e Lúcio Costa.13
Em 1925, Lucio Costa vencia o concurso para o pavilhão do Brasil na Exposição da Filadélfia com uma proposta
bem ao gosto de José Marianno. Tratava-se de uma edificação que agregava diversas referências da arquitetura
civil e religiosa do período colonial como arcadas, à feição de um claustro franciscano na fachada, que ladeavam,
simetricamente, uma portada elaborada, ao gosto das igrejas mineiras. O conjunto era coroado por amplo telhado
em capa e bica, como nas casas-grandes dos engenhos canavieiros, arrematados nos cunhais por coruchéus. Esta
aparente “coleção” dispunha-se de forma simétrica, bem composta, num resultado bem proporcionado, representando
o modelo arquitetônico “oficial” adotado pelo estado, passível de ser bem aceito num contexto favorável como era a
América nos 20, aparentemente procurando sua independência cultural e econômica.
Com a posse de Antonio Prado Jr. como prefeito do Rio de Janeiro e Fernando de Azevedo, amigo particular de
José Marianno, na Diretoria de Instrução Pública, iniciou-se um programa educacional muito bem estruturado, que
pretendia atingir gradativamente toda a população do Distrito Federal. As novas escolas primárias deveriam abrigar,
além das salas de aula convencionais, uma série de aposentos especiais: gabinete médico, oftamológico, dentário,
orientação educacional, sala de leitura, atividades, ginásio coberto, refeitório e até mesmo um pomar. Cogitou-se,
inclusive, a inclusão de um programa especial para “crianças débeis”, que buscava adequá-las à escola tradicional,
após um período de adaptação cumprido em edificação especial, construída para este fim na Quinta da Boa Vista, onde
hoje funciona a Administração do Jardim Zoológico.
Seguindo a tese14 de José Marianno, formulada na Segunda Conferência de Educação em Belo Horizonte, em
1928, para que “nossas escolas expressem em suas linhas o sentimento arquitetônico da nacionalidade”15, que por
sua vez inspirava-se no exemplo mexicano, já utilizado por Heitor de Mello no Grupo Escolar Pedro II, em Petrópolis,
os novos edifícios escolares construídos no Rio de Janeiro entre 1928 e 1930, além da adoção do novo programa de
Fernando de Azevedo, utilizavam o repertório luso-brasileiro em suas formas e materiais.
Foram projetadas por Nereu Sampaio e Gabriel Fernandes as escolas Uruguai (R. Ana Néri, 192), Argentina
(depois Sarmiento, à Rua Vinte e Quatro de Maio, 391) e Estados Unidos (R. Itapiru, 453)16. Todos esses edifícios
apresentavam,. além das referências formais quase “obrigatórias” mencionadas, uma consistente preocupação com
a funcionalidade e o conforto de suas dependências, solucionados através de uma correta disposição de fluxo das
circulações ou da adoção de pátios internos, ventilação alta e proteção em relação à insolação. O conjunto dividia-
se em blocos interligados por passadiços (Escola Uruguai e Sarmiento), ou em torno de amplo pátio com galerias
alpendradas (Escola Estados Unidos) com destaque para o setor administrativo, contíguo ao átrio, composto por corpo
central com portada elaborada em destaque, encimada por balcão, ladeada por painéis em azulejos representando o
mapa do Brasil (à direita) e do então Distrito Federal (à esquerda), com suas principais indicações geo-políticas. “...O
cenário onde vivemos a nossa mocidade não mais se apaga em nossa mente. Assim, o aluno familiariza-se desde tenra
idade com a arte que lhe cumpre defender mais tarde. É, como vemos, uma verdadeira iniciação artística de caráter
nacionalizador....”17. O coroamento apresentava volutas caprichosamente dispostas, enquadrando uma cartela com a
data da inauguração.
O modelo adotado acabou por se expandir, servindo de inspiração para outros estabelecimentos escolares, públicos
ou privados, ao longo da década de 20, e que só nos anos trinta receberiam um tratamento modernista, em projetos de Enéas
Silva inspirado em Mallet-Stevens, numa arquitetura de “estilo arquitetônico ‘caixa dágua’” ou “transatlânticos de cimento
armado”, na opinião de José Marianno18, mas que de fato apresentava soluções inferiores quanto ao condicionamento
climático, com abuso de panos de vidro, “Os grandes janelões angulares, aplicados discricionariamente, abrasam as
salas de estudo(...)A cobertura (...) é feita com lage de cimento(...) que recebendo, de chapa, os raios solares, a placa de
cimento se aquece de tal modo, que o calôr se irradia pela face interna da cobertura para o interior da habitação.”19, ou
mesmo na distribuição de espaços internos, onde encontramos incorreto cruzamento de fluxos e disposição de aposentos

21
de forma a comprometer seu correto funcionamento, como no caso de salas de aula dispostas junto à cantina e cozinha,
na Escola República da Argentina (Boulevard Vinte e Oito de Setembro, n.125 )20.
A apoteose destas propostas seria, em 1928, o concurso de projetos para a Escola Normal do Distrito Federal,
hoje Instituto de Educação ( R.Mariz e Barros, n. 273), vencido por José Cortez e Ângelo Bruhns. Diria José Marianno:
“...Vai, afinal, possuir a cidade a sua Escola Normal vasada de acordo com as necessidades pedagógicas que ela
deve atender. O ilustre Sr. Fernando de Azevedo estabeleceu, nas próprias condições do edital de concorrência, que
o projeto deveria inspirar-se na arquitetura tradicional brasileira. É que não passou despercebida ao ilustre educador
a significação cívica da escolha do estilo tradicional brasileiro num edifício onde se vai plasmar a mentalidade de
milhares de jovens patrícios. (...) Com o edifício da Escola Normal o estilo arquitetônico brasileiro dá a sua grande
batalha campal. As suas qualidades excelsas, a nobreza, a diginidade, a simplicidade acolhedora transparecem nas
linhas arquitetônicas. ...”21.
Inaugurado em 1930, trata-se de edifício de grandes dimensões, com predomínio horizontal, em três pavimentos,
apresentando amplo pátio interno à semelhança de claustro, com grande chafariz em pedra, circundado por três
galerias superpostas, suportadas por arremates diferenciados de vãos, compondo a circulação principal para as salas
de aula, gabinetes e laboratórios. Em um dos quadrantes do pátio, aquele contíguo à fachada principal, há um corpo
em destaque arrematado por frontispício com volutas, enquadrando um relógio, por sobre um único balcão, à feição
de púlpito, que se dispõe por sobre uma tribuna coberta. Este conjunto sugere o local destinado às autoridades, em
ocasiões especiais, ou simplesmente a “torre de controle”, já que dali é possível observar todo o movimento de galerias
e pátios, como no “panóptico” descrito por Foucault.22
A planta é perfeitamente setorizada, atendendo ao extenso programa original proposto por Fernando de Azevedo,
que incluía laboratórios, biblioteca, salas para atividades especiais, distribuídos por aposentos amplos, com alto pé-
direito, além de um confortável auditório e ginásio coberto.
A fachada principal apresenta uma composição simétrica, com pórtico central destacado, em arco pleno, como
base de corpo composto por elementos ornamentais como volutas e nicho. Nas extremidades estão dispostos o ginásio
e o auditório, marcados por volumes que se destacam do corpo central, mantendo, no entanto, repertório decorativo
semelhante, onde predomina o pó-de-pedra em tom marrom, destacando-se da alvenaria pintada em branco, conferindo
um tom austero ao conjunto, aproximando-o de edifícios conventuais franciscanos.
“Os senhores Cortez & Bruhns fizeram sérias investigações antes da elaboração de seu projeto. Documentaram-
se, estudaram as proporções dos bons modelos, sobre os quais se basearam a composição original que acaba de
conquistar o primeiro prêmio no concurso aberto pela Diretoria de Instrução Municipal.(...) A demonstração que acaba de
ser dada, da maneira mais brilhante, das qualidades de adaptação rigorosa da velha arquitetura da raça à necessidade
da vida aual, confirma a sinceridade dos conceitos que eu venho há longos anos afirmando.”23
No mesmo ano de 1930, em junho, alguns meses antes da inauguração da Escola Normal, um evento parecia
reafirmar a extensão do movimento neocolonial. O Rio de Janeiro abrigava o IV Congresso Pan-Americano de Arquitetura,
que iria assistir a uma importante batalha conceitual entre um modelo considerado conservador, o Neocolonial, e a
proposta dita de ruptura, o Movimento Moderno, já anunciado em São Paulo em 1925 e publicado no jornal “Correio
da Manhã” do Rio de Janeiro, em 1o de novembro do mesmo ano, sob o título “Acerca da Architecura Moderna”, de
Warchavchik, que inclusive já construíra uma residência dentro deste discurso.
A batalha afinal não aconteceu, pois dos supostos “lideres” da corrente moderna, Jaime da Silva Telles, Warchavchik
e Flavio de Carvalho, todos representantes de São Paulo, apenas o último apresentou uma tese intencionalmente
polêmica, como era o seu feitio: “A cidade do homem nu”. Assim, ainda que com a presença de profissionais ilustres
como Alfred Agache24, Prestes Maia25 e Carmem Portinho26, José Marianno dominou as atenções do Congresso,
assumindo a defesa do papel dos arquitetos na sociedade e da causa da nacionalidade dos países americanos de
forma tão intensa e entusiástica que lhe valeu homenagens de diversas delegações presentes. Suas idéias foram

22
aclamadas, entre estas a recomendação aos governos americanos para que os edifícios escolares de todo o continente
fossem projetadas nas linhas tradicionais de cada país27, como já o fizera o México e o Brasil.
O encerramento extra-oficial do Congresso aconteceu no principal reduto neocolonial, o Solar de Monjope, já
concluído, onde uma grande festa junina ocupou os extensos jardins e pomares da propriedade, reunindo congressistas,
membros da sociedade e muitos daqueles que, pouquíssimo tempo depois, viriam a “trair a causa”, passando para o
lado “inimigo”, na opinião de José Marianno28.
Tratava-se de uma glória pouco saboreada. No mesmo mês de outubro, quando se inaugurava a Escola Normal,
obra mestra do movimento, eclodiu a Revolução de Trinta, que levaria Getúlio Vargas ao poder e alteraria profundamente
o cenário cultural do país, principalmente no discurso oficial.
O neocolonial saía de cena, persistindo no entanto por mais duas décadas em construções residenciais e
particulares em todo o país, substituído por propostas modernizantes e por um grande número de construções art-
déco, a neutralidade que convinha ao governo que se implantava.

A EXPANSÃO DO MOVIMENTO

Após a Revolução e a troca de cargos-chaves na política, havia a necessidade de mudança, ainda que aparente,
da situação vigente, visando principalmente demonstrar que a “Revolução veio para transformar”.
Como a Arquitetura é um dos mais eficazes instrumentos de propaganda, mais uma vez foi eleita como tal,
ainda que submetida aos variados gostos dos diferentes ministros que chegavam ao poder, sempre “honrados” pelo
presidente Vargas em seus gostos pessoais. Assim, Souza Costa ganhou para seu Ministério da Fazenda um edifício
“neo-grego”, ainda que o projeto vencedor do concurso tenha sido uma obra de concepção modernista de Enéas Silva
e Wladimir Alves de Souza; Gustavo Capanema “patrocinou”, em meio a um jogo de farsas e fraudes, a construção
do “prédio do MEC”, o antigo Ministério da Educação e Saúde, verdadeiro ícone e dogma dos modernistas, embora o
vencedor do concurso tenha sido uma proposta mais conservadora, de inspiração art-déco, de autoria de Archimedes
Memoria e Francisque Couchet; Rego Falcão recebeu seu Ministério do Trabalho sem muitos problemas, aceitando o
vencedor do concurso, um projeto simples e principalmente “neutro”, como cabia a um ministério com suas intenções.
O movimento neocolonial estava colocado “À margem do problema arquitetônico nacional”, título do livro que
José Marianno Filho publicou em 1943, uma coletânea de diversos artigos de jornais da década de 30, de sua autoria,
onde suas idéias foram expostas de forma apaixonada, com um discurso às vezes raivoso, ou mesmo racista, onde
insinuava seus preconceitos contra judeus e comunistas. Já na apresentação comentava: “...quando me vi impedido
de prosseguir na campanha cujo fracasso os comunistas se incubiram de proclamar(...)enquanto se construiram no
Brasil escolas, hospitais e ministérios copiados da Rússia e da Suécia...”29, ou mais adiante “O sentido da tradição
arquitetônica envolve sentimentos de pura espiritualidade racial, menos para os judeus, que não possuindo pátria,
despresam os sentimentos dos que as possuem”30, ou “...Uma das maiores curiosidades dessa arquitetura apelidada
‘funcional’, é que a ‘função’ muitas vezes se exerce contra os próprios habitantes que se deixaram seduzir pelas frases
mentirosas do judeu errante Le-Corbusier”31 ou ainda “o dano feito à cidade com as primeiras construções funcionais
do judeu Warchavich, (denodado cidadão, que veio da Rússia, nos ensinar a viver), foi insignificante”32
Tais posições extremistas não eram necessárias, pois ele já havia percebido que os princípios do movimento
tinham germinado. O Brasil inteiro já produzia e consumia uma arquitetura neocolonial33, talvez não com a pureza
estética defendida por seu principal idealizador, mas adequando-se às diversas realidades sócio-culturais, como muitas
vezes ele mesmo havia preconizado.
Ainda hoje encontramos exemplares nas mais diversas regiões do país, como Rondônia, Ceará, Natal, Pernambuco,
Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, além de São Paulo e Rio de Janeiro, não
apenas nos grandes centros, mas também em núcleos de projeção bem menor no cenário nacional.

23
A filiação luso-brasileira, inicialmente a única aceita, incorporou diversas outras influências recebidas através de
revistas ou do cinema americano Projetavam-se ou construíam-se exemplares missões espanholas, californianos ou
mexicanos. Às vezes, um pouco de cada, conforme a capacidade do arquiteto ou do mestre-de-obras.
Apenas para permitir uma melhor compreensão, sem estabelecer “receitas para identificação”, algumas diferenças
formais podem ser destacadas:
- o modelo luso-brasileiro, considerado ideal pelos seguidores de José Marianno, incorporava uma ornamentação
mais elaborada. Utilizava painéis de azulejos, telhas em louça esmaltada nos beirais que arrematavam os generosos
telhados em capa e bica. A argamassa de revestimento externo, quase sempre em branco, amarelo ou ocre, apresentava-
se corrugada, sugerindo um trabalho rústico, como na taipa. Havia uma valorização do elemento religioso, representado
por imagens em nichos iluminados ou em simples painéis de azulejos (Solar de Monjope, demolido em 1973, ou na
Residência Peixoto de Castro, à rua Santa Amélia, demolida em 1981) aplicados à fachada, que era arrematada por
frontão curvilíneo, ornado por volutas de inspiração barroca. A varanda era indispensável, sempre um grande colchão
de sombra a destacar-se no conjunto. Ainda poderíamos encontrar, em algumas situações, portadas rebuscadas ou
colunas torsas ou salomônicas, de clara inspiração em elementos decorativos da arquitetura religiosa colonial;
- o modelo hispano-americano caracterizava-se por uma certa economia nos elementos ornamentais, geralmente
concentrados em torno da abertura dos vãos, numa composição mais contida e geometrizada. Havia um claro predomínio
dos cheios sobre os vazios, beirais mais curtos, às vezes inexistentes, demonstrando o baixo índice pluviométrico de
seu local de origem. O elemento religioso persistia, porém sem o mesmo compromisso de destaque. Podemos
classificar de “mexicano” quando encontramos torres quadrangulares, terraços descobertos e varandas arqueadas
no pavimento térreo, como no edifício da Sede Social do Botafogo Futebol e Regatas, à rua Venceslau Brás n. 20, ou
“californiano”, com torres cilíndricas, algumas vezes em destaque na composição de dois ou três pavimentos, como no
exemplar residencial encontrado à rua Luís Carlos junto ao viaduto sobre a linha férrea, em Todos os Santos, ou ainda
“missões espanholas” às edificações mais simplificadas, com frontões triangulares, pequenas varandas entaladas
nas fachadas, sobre embasamento de poucos degraus, com acesso decorado por pedras dispostas de “forma casual”
na argamassa corrugada como na Residência Raul Pedrosa, atual RioArte, na Rua Rumânia n. 20 (projeto de Lucio
Costa)34, ou à Rua Paschoal Carlos Magno, n. 108 (projeto de Egar Vianna)35.
Praticamente todos os programas de arquitetura, além da residências abastadas, incorporaram o gosto neocolonial
ao seus projetos: escolas, clubes, igrejas, hospitais36, hotéis e até mesmo casas em série, mais modestas, ou vilas
e conjuntos de moradia para camadas mais pobres da polulação. O Dr. José Marianno, talvez mesmo sem perceber
até sua morte, em 1946, como sugerem os seus últimos artigos publicados na coletânea “À Margem do Problema
Arquitetônico Nacional” (1943), havia conseguido realizar muito de seus ideais.
“...O problema da arquitetura nacional exige o conhecimento perfeito das condições mesológicas, étnicas,
e sociais da nacionalidade, enquanto o problema industrial da arquitetura visa apenas o interesse comercial dos
proprietários...”37
“... VI - Lembra-te que tua arquitetura vive da mesma terra e do mesmo ar que respiras.(...) X - Não te envergonhes
de tua arquitetura materna. Defende-a, porque só ela se harmoniza com a tua alma.”38

BIBLIOGRAFIA

Livros:
ALVAREZ, Maurício. Este Sólido e Imponente Edifício. Niterói: Cromos, 1992.
AMARAL, Aracy (cord.). Arquitectura Neocolonial: América Latina, Estados Unidos e Caribe. São Paulo: Memorial/
Fondo de Cultura Económica, 1994.

24
_______________ Artes Plásticas na Semana de 22. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1979.
ANDRADE, Mário de. Aspectos das Arte Plásticas no Brasil. 2. ed. São Paulo: Martins, 1975.
________________. Mário de Andrade (Seleção de textos por João Luiz Lafetá). São Paulo: Abril Educação, 1982.
ANDRADE, Oswald. Oswald de Andrade (Seleção de textos por Jorge Schwartz). São Paulo: Abril Educação, 1980.
ARTE NO BRASIL. São Paulo: Abril, 1979.
AZEVEDO, Fernando. A Cultura Brasileira. 4. ed. Brasília: UnB, 1963.
BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1981.
COSTA, Lúcio. Documentação Necessária. In: ARQUITETURA CIVIL II (Textos escolhidos da Revista do Patrimônio
histórico e Artístico Nacional). São Paulo: USP, 1975.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1983.
MARIANNO FILHO, José. À Margem do Problema Arquitetônico Nacional. Rio de Janeiro: s.n. 1943.
SANTOS, Paulo F.. Quatro Séculos de Arquitetura. Rio de Janeiro: IAB, 1981.
SANTOS SIMÕES, J.M. dos. Azulejaria Portuguesa no Brasil (1500-1822). Lisboa, 1965.
VERÍSSIMO, Francisco Salvador e BITTAR, William S.M.. Inventário Arquitetônico: Neo-colonial no município do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: FAU-UFRJ, 1983.

Periódicos:

Architecura, Mensário de Arte. Rio de Janeiro, 2, jul. 1929.


Architectura no Brasil. Rio de Janeiro, 24, set.1924.
___________________. Rio de Janeiro, 3, dez. 1921.
___________________. Rio de Janeiro, 24, set. 1924.
___________________. Rio de Janeiro, 25, nov.1925.
___________________. Rio de Janeiro, 28, abr/mai. 1926
___________________. Rio de Janeiro, 27, fev/mar. 1926.
Arquitetura Revista. Rio de Janeiro, 8, 1990.
Arte em Revista. São Paulo, 4, ago. 1980.
Boletim da Prefeitura do Distrito Federal. Rio de Janeiro, jul. 1928.
Correio da Manhã. Rio de Janeiro, nov. 1925.
________________. Rio de Janeiro, mai. 1930.
Ilustração Brasileira. Rio de Janeiro, abr. 1922.
Revista da Semana. Rio de Janeiro, jun. 1930.
_________________. Rio de Janeiro, out. 1930.
Revista de Arquitetura e Urbanismo. Rio de Janeiro, 5, set/out. 1938.

25
Arquivos:
Arquivo da Divisão de Material e Patrimônio da Secretaria Municipal de Educação e Cultura.
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
Arquivo Geral de Edificações do Rio de Janeiro.

* Professor Assistente, Universidade Gama Filho

1 Francisco S. VERÍSSIMO, e William S.M. BITTAR . Inventário Arquitetônico - Neo-Colonial - Município RJ. Rio de Janeiro: FAU-UFRJ, 1983.
2 Carlos A.C. LEMOS. El Estilo que nunca existió in Arquitectura Neocolonial - América Latina, Caribe, Estados Unidos, publicação coordenada
por Aracy AMARAL, São Paulo: Memorial/Fondo de Cultura Económica, 1994. p.147-164
3 Yves BRUAND. Arquitetura Contemporânea no Brasil, 1981. p. 54.
4 José MARIANNO FILHO. À Margem do Problema Arquitetônico Nacional,1943. p. 7.
5 Conforme consta das plantas aprovadas existentes no Arquivo Geral de Edificações do Rio de Janeiro.
6 José MARIANNO FILHO. op. cit. p. 7.
7 Segundo J.M. dos SANTOS SIMÕES, em Azulejaria Portuguesa no Brasil (1500-1822), Lisboa,1965, “José Marianno Filho adquiriu os azulejos
antes mesmo de ter mandado projectar o ‘solar’ e preocupou-se com a sua instalação por forma a conservar os ambientes primitivos(...) Em todo
o redor foram dispostos os azulejos que José Marianno Filho trouxe do atigo convento de S. Francisco do Paraguassú - que havia adquirido já
arruinado - e que constituem o ‘fundo’mais importante da azulejaria da casa”.
8 Os Dez Mandamentos do Estylo Neo-Colonial, aos jovens archictetos, redigidos por José MARIANNO FILHO na Revista Architectura no Brasil,
n. 24, set.1924, p.161.
9 ...”Mulher feita de asfalto e de lamas de várzea/ toda insulto nos olhos/toda convite nessa boca louca de rubores!/Costureirinha de São Paulo/
ítalo-franco-luso-brasílico-saxônica/gosto de teus ardores crepusculares/crepusculares e por isso mais ardentes/bandeirantemente!”
10 “Enfunando os papos/Saem da penumbra/ Aos pulos, os sapos./ A luz os deslumbra.//Em ronco que aterra,/Berra o sapo-boi:/- Meu pai foi à
guerra!/ -Não foi! - Foi! - Não foi!”
11 Oswald de ANDRADE. Manifesto Pau-Brasil in Correio da Manhã, 18 mar.1924.
12 Oswald de ANDRADE. Manifesto Antropófago in Revista de Antropofagia, Ano 1, n.1, mai.1928.
13 José MARIANNO FILHO. op. cit. p. 7.
14 idem. p. 65.
15 idem. p.50.
16 Francisco S. VERÍSSIMO e William S.M. BITTAR. op. cit. p.9-14
17 José MARIANNO FILHO. op. cit. p. 50.
18 idem. p. 76
19 idem. p. 83.
20 Rachel SISSON. Escolas Públicas do Primeiro Grau. Inventário, Tipologia e História. in Arquitetura Revista v.8, 1990. p. 74.
21 José MARIANNO FILHO. op. cit. p. 50-51.
22 Michel FOUCAULT. Vigiar e Punir. 1983. p. 174.
23 José MARIANNO FILHO. op. cit.p. 51.
24 Urbanista francês, autor de um Plano de Remodelação do Rio de Janeiro, conhecido como Plano Agache.

26
25 Autor de um Plano de Remodelação de São Paulo, em conjunto com Ulhoa Cintra.
26 Engenheira, exerceu influência na produção da arquitetura moderna brasileira, principalmente devido ao seu estreito contato com Affonso
Eduardo Reidy. Apresentou no Congresso o Plano de Remodelação de Natal.
27 Paulo F. Santos. Quatro Séculos de Arquitetura, 1981. p 102.
28 José MARIANNO FILHO. op. cit. p.78.
29 José MARIANNO FILHO. op. cit. p.3.
30 idem. p. 12.
31idem. p. 83.
32idem. p. 86.
33 “Ficou provado aqui no Rio, em São Paulo, na Baía, como em Pernambuco, e Minas, em todos os pontos da nação, onde repercutiu
a campanha tradicionalista brasileira, que o malsinado estilo tradicional, possuindo extrema plasticidade, se acomoda docilmente às novas
exigências sociais (higiênicas, inclusive).” idem. p. 26.
34 Francisco S. VERÍSSIMO e William S.M. BITTAR. op. cit. p. 29.
35 idem. p.27.
36 idem.
37 José MARIANNO FILHO. op. cit. p. 11.
38 José MARIANNO FILHO. Decálogo do Arquiteto Brasileiro, op. cit. p. 4.

27
“PUTRID MIASMATA”:
HIGIENISMO E ENGENHARIA
SANITÁRIA NO SÉCULO XIX

Carlos Roberto M. de Andrade*

1. A Cidade e a Peste: Cartografias

No relatório de viagem de uma comissão médica francesa enviada à Andaluzia, quando da epidemia que se
abatera sobre esta região, em 1800, se lê: “A arte de conservar os homens é um ramo essencial da arte de os
governar”. Expressa-se aí o sentido político das ações médicas e de saúde pública que irão se desenvolver por toda
Europa, e daí para outros continentes, ao longo do século XIX e até início do século XX. Acompanhar essa viagem
poderá nos introduzir nas estreitas relações entre a cidade e a peste1, quando esta passa a ameaçar a própria ordem
urbana, e talvez, também fornecer subsídios para que possamos entender os meios territoriais empregados no controle
das epidemias.
Duas observações iniciais, feitas pelos médicos daquela comissão, destacam-se: a primeira estabelece uma
relação entre o clima e as condições atmosféricas, com as doenças, ou mais precisamente, com algumas de suas
manifestações, como o “gênio bilioso e pútrido”. A outra constata o caráter contagioso da doença da Andaluzia, sua
capacidade de rápida e fatal propagação, flagelando aqueles que entram em contato ou co-habitam com pestosos. No
fim do relatório os médicos anunciam sua descoberta - “o contato imediato não é sempre necessário para a propagação
da infecção”, admitindo “a possibilidade do transporte do vírus contagionista a uma certa distância, com a ajuda do
veículo geral de todas as emanações, isto é, por meio do ar” 2. Teoria mesológica e teoria do contágio buscavam
explicar as condições do meio que favoreciam as doenças, bem como o modo delas se propagarem. Assim, após a
descrição da topografia sanitária das cidades assoladas pelo mal, segue-se o registro dos pontos de passagem ou
estadia dos doentes, bem como a condenação de reuniões e cerimônias coletivas. Revela-se, assim, que o controle
das epidemias passará por uma ciência do território, dependerá de uma geopolítica e será exercido sobre grandes
massas populacionais, anunciando modernas formas de controle político3.
Como escreve John Snow, em meados do século XIX, ao comentar as circunstâncias ligadas ao
avanço do cólera, já tendo identificado a via hídrica como meio transmissor, em vez do ar da teoria
miasmática, mas antes ainda dos avanços da bacteriologia: “Ele se move ao longo das grandes trilhas
de convivência humana, nunca mais rápido que o caminhar do povo, e via de regra, mais lentamente.
Ao se propagar a uma ilha ou continente ainda não atingidos, surge sempre primeiramente em um
porto marítimo. Jamais ataca as tripulações de navios que vão de um país livre de cólera para outro
onde ela está se desenvolvendo, até que eles tenham entrado em um porto, ou que tenham tido
contato com o litoral. O seu avanço preciso de cidade para cidade nem sempre pode ser seguido;
contudo, o cólera jamais apareceu exceto onde tenha havido abundantes oportunidades para que
fôsse transmitido por convivío humano” 4. Vão ser reiterados, ao longo do século XIX, os argumentos
que localizam nas condições do meio as causas das doenças - “mudanças bruscas na temperatura da
atmosfera”, “meteoros passageiros”, “a situação dos lugares ou algumas circunstâncias puramente
locais”, mas também aqueles “essencialmente dependentes do estado particular de certos indivíduos”.
Para o raciocínio mesológico, a topografia sanitária de uma região ou cidade explicaria as causas do
meio que estariam provocando ou estimulando a propagação da doença, juntamente com a análise das
características culturais dos habitantes, como veremos melhor mais adiante.

28
Mas, ao tratar de “algumas noções topográficas relativas à cidade de Carlota”, o relatório da comissão médica
francesa constatava o caráter “très-sain” desse burgo, “já que ele está construído sobre uma colina elevada; localizado
no meio de terras bem cultivadas e bastante produtivas; suas casas são cômodas, bem construídas, e as ruas largas
e bem abertas”, o que fazia seus habitantes terem “um ar de limpeza que anuncia o bem-estar” 5. Se as condições
do meio não favoreciam a doença, então não restava dúvida, esta havia sido trazida de fora, de Cadiz ou de Sevilha
talvez. Na persistente busca da Comissão pelos pontos de passagem ou irrupção da doença - como o bairro Sta. Maria,
em Cadiz, “localizado a leste da cidade cujas ruas são estreitas e normalmente menos limpas que as ruas de outros
bairros, e que é principalmente habitado pelos marinheiros, os trabalhadores do porto e os empregados da alfândega”
- realiza-se uma cartografia do território, demarcando fronteiras, lugares de travessia, postos de vigilância e controle,
barreiras e pedágios.
O cordão sanitário já era, há tempo, medida corriqueira adotada pelas autoridades urbanas como forma de conter
a penetração da peste em um determinado território. Meio de controle geopolítico, o cordão sanitário estendia-se nas
escalas as mais diversas, de um quarteirão às fronteiras nacionais, hierarquizando-se segundo graus de vigilância e
controle e sendo garantido, quase sempre, pela força militar e com o uso da violência. No limite, em sua escala celular,
o cordão sanitário, enquanto estratégia de confinamento, fazia de cada moradia uma prisão, a prisão domiciliar. A
eficácia, muitas vezes aparente, do cordão ou da quarentena - práticas sempre associadas - faz com que, até hoje, elas
sejam acionadas pelos serviços sanitários no caso de uma ameaça epidêmica. De qualquer modo, o cordão sanitário,
como outras medidas de controle de epidemias, reafirmava o poder do governo da cidade que a peste ameaçava
aniquilar, tal qual fazia com um número crescente de seus habitantes.
Além do cordão sanitário e da quarentena, outras práticas também visavam afastar a peste da cidade, como as
fumegações, as fogueiras aromáticas, lavagens de cal branca, sem contar fervorosas correntes de orações, procissões
e outros rituais que as igrejas realizavam buscando esconjurar o mal. No entanto, uma vez a cidade empesteada, ou
com a peste já batendo às suas portas, o recurso largamente usado era a fuga da cidade, a debandada em direção a
aldeias e vilarejos rurais, ou, para aqueles de maiores posses, a retirada para suas propriedades no campo ou para
estações medicinais, acompanhando o surgimento dos primeiros “spas” e balneários. A desurbanização era, no entanto,
uma solução paliativa, nem sempre bem sucedida, sobretudo quando os errantes eram escorraçados das aldeias rurais
temerosas em receber doentes e que montavam um rude cordão sanitário, obrigando os fugitivos a acamparem em
barracas pelo campo, ou sairem perambulando em busca de algum abrigo. Sobretudo a desurbanização, como as
elevadas e crescentes taxas de cadáveres, rompiam radicalmente com a vida cotidiana, instaurando o pânico e o medo
na cidade6, mas também negando a ordem estabelecida e comprometendo as relações sociais de uma maneira geral,
produzindo uma desestabilização do conjunto da sociedade, além de enormes prejuízos econômicos. Daí o cordão
sanitário não apenas impedir a entrada de pestosos na cidade, mas também a fuga dela, evitando a subversão do
cotidiano.
Meio de controle de fluxos, o cordão sanitário também constituía um obstáculo ao comércio, para o qual toda e
qualquer barreira territorial é sempre um entrave e uma ameaça. Os custos pela implantação de um cordão sanitário
nunca foram, portanto, pequenos, sejam os propriamente econômicos, como também os sociais, daí seus diversos
níveis de rigor, tempo de aplicação e extensão. Já a quarentena, como define um tratado de polícia sanitária de 1885,
é “a estada forçada fora da cidade em que se chega e o sequestro ao qual se submete, em casos determinados, os
que chegam por mar, a fim de se assegurar, durante sua duração, que eles não encerram nenhum germe contagioso e
destruir pelos meios adequados aqueles que eles poderiam conter”7. O fim da quarentena é, pois, impedir o contágio,
podendo ser “de observação” ou “de rigor”, e demandando um lugar específico para sua aplicação - os lazaretos ou
hospitais de isolamento.
Assim, com o cordão sanitário e a quarentena realizam-se conjuntamente as três principais estratégias de
territorialização - fixação, enclausuramento e esquadrinhamento do espaço - de uma política de controle da população

29
através de seu confinamento celular e de vigilância e registro de seus movimentos. Tais observações, exaustivamente
já trabalhadas por Foucault8, nos conduzem à idéia de que as medidas policiais adotadas contra uma epidemia visavam
menos esta e mais seus efeitos deletérios em relação à ordem social e política estabelecida.
De qualquer modo, cidade e peste são duas palavras que parecem estar associadas ao longo da história da
humanidade, bem como as descrições de uma cidade pestilenta são recorrentes na literatura. Da “peste de Atenas”,
narrada por Tucídides, ao Diário do Ano da Peste (1665), reportado por Daniel Defoe9, até os exaustivos relatórios
de médicos e higienistas do século XIX, as imagens se repetem, permitindo que caracterizemos a peste como um
fenômeno anárquico de dissolução das formas de sociabilidade. Mas insistamos sobre as tensas relações que se
estabelecem entre a cidade, signo da ordem e de um poder centralizado, e a peste, marca da desordem e do acaso.
Antonin Artaud, ao tratar das origens do teatro na sociedade, localiza-as no delírio da peste, na dança frenética
e enlouquecida de homens e mulheres entre ratos10. Artaud observa que, em uma cidade pestilenta, os quadros da
sociedade se desfazem, pois, sob a ação do mal, a ordem cai. Aí então, “a gratuidade imediata que impele a atos inúteis
e sem lucros para a atualidade”11, contrapõe-se de modo subversivo às formas de sociabilidade estabelecidas.
Já Tucídides, em sua descrição da peste, observava: “A violência do mal era tal que não se sabia mais o que fazer
e perdia-se todo o respeito pelo que é divino e respeitável. (...) Ninguém era contido nem pela crença dos deuses nem
pelas leis humanas; (...) antes de sofrer, valia mais aproveitar da vida alguma alegria...” 12. Artaud propõe “considerar o
flagelo como o instrumento direto ou a materialização de uma força inteligente em estreita relação com o que chamamos
fatalidade” 13. Sournia e Ruffie, ao analisarem a etiologia das doenças pestilentas, afirmam que “perante uma mesma
agressão, nem toda a gente tem a mesma possibilidade de morte ou de cura. (...) Certos indivíduos ‘passam entre
as malhas’...” 14, por possuirem um patrimônio hereditário que cria um terreno resistente à doença. Não obstante,
acrescentam: “qualquer contaminação depende, em grande parte, de fatores aleatórios” 15, o denominado “aleatório
ecológico”.
A própria peste parece ser desprovida de lei, sua aparição no corpo são traz a desordem dos humores, desperta
a loucura e provoca o torpor. A origem etimológica da palavra tifo é vapor, fumaça, do grego “estupor”. Sua tradução
em um grupo de doenças remete a um “estado vaporoso ou de nebulosidade em que fica a consciência, gravemente
pertubada e como envolta em uma névoa de fumaça”16. Através de observações sistematizadas, a medicina procurou
detectar regras comuns entre as diversas epidemias que estudou. E foi na evolução clínica do mal, por meio do
registro de sintomas, que a lei foi buscada. Curvas térmicas caracterizando as diversas febres, o controle do pulso, da
respiração, do coração - órgãos, como lembra Artaud, sobre os quais a vontade humana pode atuar.
De qualquer modo, a ciência moderna nascente irá se estarrecer frente um fenômeno marcado pelo acaso, pois,
apesar do caráter contagiante das epidemias, nem todos os que mantêm contato com a doença a adquirem, e alguns
que a contraem, se curam. A ação do mal parece se fazer sem regras, de modo imprevisto. As expedições médicas,
realizando a cartografia da peste, mostram, em seus relatórios de viagem, saltos inesperados ao longo da rota do
flagelo. Este parece se interromper sem motivo definido, cessa sua ação e repousa pronto para voltar a agir a qualquer
momento. Como afirma Canetti: “Na epidemia parece atuar uma força desconhecida, vivendo-se uma terrível espera
na qual se desfazem todos os outros laços humanos” 17. Tais dados suscitam a indagação: não seria a instauração do
acaso e da fatalidade nas existências dos homens e da cidade, no conjunto das relações sociais enfim, mais que o
número de mortes provocadas pelas epidemias, e sua representação em uma taxa de cadáveres, o fato que moveria
as ações dos governos urbanos visando evitar ou debelar a peste do interior de seus territórios ?
A peste na história da humanidade sempre pareceu carecer da cidade, da vida urbana. Alimentando-se da
densidade social que a concentração populacional propicia, a peste é urbana por excelência. Não apenas porque
dissemina-se pelo contágio promovido pelas aglomerações urbanas, mas também porque segue as trilhas da circulação
dos homens, apoiando-se em redes de cidades, atravessando fronteiras, desembarcando em portos. Mas, ao afirmar
sua natureza urbana, a peste também a nega, por subverter toda e qualquer forma de sociabilidade. Para Canetti,

30
“o elemento de contágio é de tal modo importante em caso de epidemia, que tem por efeito levar as pessoas a se
isolar”18. Com a peste realiza-se a dissolução do tecido social e a negação da territorialidade urbana, através da fuga
da cidade e da dispersão pelos seus arredores, como apontamos, ou então pelo isolamento quase absoluto: “Cada
um evita o outro. Manter a distância é a última esperança” 19. A peste, contra a cidade, afirmará uma territorialidade
essencialmente nômade, centrípeta, onde, ao invés da concentração e fixação, os princípios de territorialização serão
a dispersão e a mobilidade, instaurando-se uma errância absoluta, aquela dos bandos de leprosos ou da nau dos
insensatos, deambulando de cidade em cidade, de porto em porto.
Entretanto, como observa Canetti, uma epidemia também tem uma história, um caminho percorrido, atravessando
fronteiras e oceanos, para irromper subitamente em alguma hospedaria junto a um cais e daí alastrar-se por um
território que a medicina da Ilustração procurará mapear. Assim, muito antes dos procedimentos policiais de investigação
que, como notou Walter Benjamin, estão diretamente relacionados à forma da cidade e aos modos dos cidadãos se
apropriarem dos espaços públicos, a medicina sistematizou métodos de investigação resultantes das inúmeras viagens
de comissões médicas, que visavam registrar os percursos da doença, além de determinar suas características e
modos de contágio. Desse modo, como afirma Bresciani, “a epidemia de cólera que toma conta dos bairros operários de
Londres e de Manchester no ano 1832 foi um dos primeiros sinais alarmantes fazendo com que os médicos passassem
a se preocupar de forma sistemática com as condições de vida e de trabalho das populações” 20, desenvolvendo práticas
de observação da cidade que serão fundamentais para a própria emergência do urbanismo como uma ciência.
É preciso, no entanto, lembrarmos que, na história das epidemias, à festa coletiva da peste, contra sua fatalidade
e errância, irá se contrapor o regime disciplinar. Como mostrou Foucault, o correlato da cidade pestilenta é a utopia
da cidade perfeitamente governada. Trata-se para a cidade não apenas de pôr em prática mecanismos de segregação
espacial, como a quarentena ou o cordão sanitário, visando controlar a difusão da epidemia, mas também impedir que
o mal irrompa, eliminando as condições propícias para que isto aconteça, através da criação de uma cidade salubre.
Como preconizava o médico Aquino Fonseca, em meados do século XIX, em Pernambuco, “os meios de evitar essas
moléstias não eram as quarentenas, nem os cordões sanitários, mas obras e medidas sanitárias que tenham por fim
remover e prevenir as diferentes condições localizadoras” 21, anunciando o que a engenharia sanitária e, sobretudo,
o urbanismo sanitarista, irão promover contra o acaso da peste - a definição de um plano para a cidade, onde seu
funcionamento e expansão estarão previstos.

2. O Movimento Higienista e a Teoria dos Meios

Talvez não seja exagero afirmarmos que o século XIX foi o século da higiene para o mundo europeu. Alterando
profundamente hábitos cotidianos arraigados, redesenhando radicalmente a cidade e construindo uma nova cultura
técnica, a difusão do higienismo implicou em enormes rupturas nas formas de sociabilidade urbana que vigoraram até
a Revolução Francesa. Assim, o movimento higienista no século XIX foi, sobretudo, um movimento de reforma da vida
cotidiana, no bojo de estratégias que, conforme Bresciani, visavam “arrancar o homem do tempo regulado pela natureza
e pela lógica da necessidade”22. Embora as classes pobres e dominadas tenham sido objeto privilegiado das ações
higienistas, estas atingiram o conjunto do corpo social, estipulando modos de ser ou viver, isto é, modos de morar, de
se comportar em público e no âmbito familiar, que foram testados e adotados em setores diversos da população.
Mais ainda, talvez seja mesmo possível se dizer que a higiene gestou o homem moderno do século XX, promovendo
uma noção e uma determinada sensação de conforto, caracterizada pelo ambiente íntimo do “sweet home” das classes
burguesas do período vitoriano, bem como implantando a estética esquadrinhadora e redutora das vilas operárias,
familistérios e primeiros grandes conjuntos habitacionais de trabalhadores, tributária da tradição dos monastérios e
modernas arquiteturas disciplinadoras, do sistema pavilhonar ao panóptico. Em uma sociedade do confinamento, como
aquelas da quase totalidade dos países europeus do século XIX, herdeiras do “grand refermement” do século XVII,

31
a higiene desempenhará a função principal de impedir o contágio em uma situação de amontoamento, desfazendo
misturas e domesticando os corpos, impedindo a estagnação dos elementos do meio, como o ar e a água, e controlando
os fluxos de toda natureza.
É preciso se lembrar, entretanto, para que não se caia nas malhas do anacronismo, que a higiene sempre foi,
desde suas primeiras manifestações na história, um conjunto de técnicas responsável por certas formas de sociabilidade
relativas ao uso do corpo e às suas relações com seu meio físico. Nesse sentido, a higiene, mais que um atributo de
certas sociedades, é uma determinação de toda cultura, que necessita, para se constituir, normatizar modos de uso do
corpo, gestos e posturas corporais, relações do corpo com a água, com o ar, com o fogo e com a terra, mas também
carece limitar o campo da escatologia e demarcar as fronteiras do limpo e do sujo. A higiene, enquanto uma técnica
social, estará, pois, diretamente relacionada aos sentidos e às suas percepções, como também às representações
feitas, por uma certa sociedade, das doenças e dos modos de cura. Para que possamos deslindar alguns dos sentidos
que a higiene moderna produziu desde o início do século XIX, precisamos esclarecer os efeitos da redefinição do
ar e da água em suas relações com a saúde, a partir dos novos conhecimentos da química pneumática e da teoria
microbiana de Pasteur, os quais subvertem totalmente as representações pretéritas sobre as origens e as causas de
transmissão das doenças.
Antes porém de verificarmos os novos sentidos que a higiene moderna atribuiu a práticas sociais como a lavagem
e banho dos corpos, vejamos, ainda que resumidamente, as principais formulações e aspectos da teoria dos meios,
que fundamentaram as ações médicas e higienistas até fins do século XIX, adentrando o século XX. A primeira
sistematização da teoria dos meios foi a do pai da medicina, Hipócrates, em seu ensaio sobre a influência do clima, da
água e da localização geográfica, sobre a saúde humana, intitulado, “Dos Ares, das Águas, dos Lugares” 23. Hipócrates
estabeleceu aí uma relação de determinação das características do meio físico sobre as condições de saúde, os
aspectos físicos e os costumes dos habitantes de uma certa localidade. Recomenda, aos que pretendem exercer a
medicina, considerarem os seguintes elementos: o efeito de cada uma das estações do ano e as diferenças entre elas;
os ventos frios e quentes; a natureza da água utilizada para abastecimento; cada uma das faces da cidade, conforme
os pontos cardeais; as características do solo e de sua cobertura vegetal; e, por último, a vida dos próprios moradores
locais. Hipócrates chama a atenção para o caráter previsivo que as observações a serem feitas poderão ter: “com a
passagem do tempo e a mudança das estações (um médico) saberia que epidemias esperar (...) e que desvantagens,
em particular, ameaçam um indíviduo que muda seu modo de vida. Familiarizando-se com o progresso das estações
e as datas de surgimento e desaparecimento das estrelas, ele poderia prever o progresso do ano” 24. Associando
diretamente as condições do meio com o modo de vida e a saúde do corpo, Hipócrates revela o caráter holístico de sua
teoria, ressaltando a importância da astronomia para a medicina e indicando que as condições mesológicas devem,
ao determinar as especificidades de uma certa localidade, levar em conta a totalidade de seus aspectos, dos mais
próximos, como o clima e o solo locais, aos mais abrangentes, como os astronômicos.
Ao analisar diversas situações em que interagem as variáveis determinantes das condições do meio, influenciando
a saúde e mesmo as características físicas da população, Hipócrates destaca também o efeito dessas condições sobre
o caráter dos habitantes. É assim que, ao comparar as diferenças físicas entre asiáticos e europeus, afirma: “as grandes
variações climáticas a que os asiáticos são sujeitos, suportando extremos de frio e calor, são responsáveis por sua
lassidão mental, assim como por sua covardia” 25, acrescentando, em seguida, que uma outra causa da “fraqueza” dos
asiáticos está presente em seus costumes, isto é, o fato de grande parte deles estarem sob leis monárquicas. Nesta
passagem Hipócrates parece querer demonstrar as virtudes de uma forma de governo baseada na auto-determinação,
em que os homens se governam por si próprios e são seus próprios mestres. É esta associação estreita entre aspectos
diversos, como as condições do meio, costumes locais, incluindo aí a forma política que assume o governo, e o caráter
dos habitantes, que fazem pioneiras as formulações hipocráticas no sentido de uma teoria mesológica.
Outra concepção da teoria dos meios aparece também no mundo clássico, na obra do arquiteto romano Marco

32
Lucio Vitruvio, Os Dez Livros de Arquitetura. Já no primeiro capítulo, ao responder sobre o que devem saber os
arquitetos, Vitruvio afirma: “a medicina é necessária ao arquiteto para conhecer quais são os aspectos do céu, que os
gregos chamam ‘climas’, as condições do ar em cada lugar; que paragens são nocivas, e quais são saudáveis, e que
propriedades têm suas águas, porque sem o conhecimento destas circunstâncias não é possível construir edifícios
sãos”26, indicando que a principal fonte de suas idéias é o texto de Hipócrates que comentamos acima.
No capítulo III de sua obra principal, Vitruvio divide a arquitetura em três partes: a construção, a gnômica e a
mecânica, e afirma que toda construção deve buscar solidez, utilidade e beleza. É a utilidade de um edíficio que visa,
além de distribuir corretamente os membros do edíficio, implantá-lo em um sítio adequado, o que depende da escolha
de lugares sãos. Ao expor os critérios de escolha dos lugares saudáveis e recomendar locais com bons ares, altitudes
elevadas, clima temperado e não expostos às brumas nem às geadas, nem ao calor, nem ao frio, Vitruvio inclui também
a recomendação de se afastar de lugares pantanosos “para evitar que as exalações dos animais palustres, mescladas
com as névoas que ao sair o sol surgem daquelas paragens, viciem o ar e difundam seus eflúvios nocivos nos corpos dos
habitantes e façam, portanto, infecto e pestilento o lugar” 27. O exame das vísceras de animais sacrificados possibilitava
aos antigos a verificação da qualidade das águas e pastos locais, condição prévia para a eleição do lugar para se
fundar uma cidade, pois, “o primeiro a se levar em conta, ao edificar uma cidade, será um lugar saudável.”
No entanto, Vitruvio já antevia a solução que os modernos implantariam. “Sem dúvida, nem sempre deve-se
pensar que as cidades edificadas em terrenos pantanosos junto ao mar foram mal localizadas, se se der o caso de
que os tais pântanos mirem ao Septentrião ou estejam entre o Septentrião e o Levante, e sobretudo se estes pântanos
estiverem em nível mais elevado que o do mar, porque em tais circunstâncias é fácil, mediante canais, derivar a água
até o mar”28.
Também na construção de um teatro, a preocupação primeira de Vitruvio diz respeito à escolha de uma localização
saudável, procurando fugir de lugares viciados - como aqueles próximos a pântanos, cujas emanações prejudiciais
poderiam atingir os espectadores - e escolher lugares com ares saudáveis. Mas é no primeiro capítulo do sexto livro -
“Da disposição dos edifícios conforme as diversas propriedades dos lugares” - que Vitruvio retoma a tradição hipocrática
da teoria dos meios. Começa por reiterar a consideração que a localização de edifícios deve ter com sua orientação,
em relação ao Sol e ao eixo da terra , e com o clima local, recomendando se “atender na contrução dos edifícios
às diversidades de países e à diferença de climas” 29. Estabelecendo correlações entre as condições do meio, a
conformação física dos corpos de diversos povos e certos comportamentos ou aspectos do caráter dos seus habitantes
- como a inteligência, agilidade no pensar, a coragem ou a covardia - além do tom de suas vozes, Vitruvio delimita a
linha que separa o Oriente do Ocidente, afirmando: “parece que a máquina geral do Universo está combinada seguindo
as regras de uma consonância harmônica que tem como regulador o Sol”30. “A Providência Divina foi, pois, a que situou
a capital do povo romano em uma região de clima excelente e temperado, a fim de que fosse capaz de se fazer dona
de todo o mundo” 31, quem sabe, pretendendo reaproximar-se aqui das crenças que, como lembrava Hipócrates, vê a
doença como algo sagrado e as convulsões febrís dos corpos pestilentos como manifestações divinas.
A teoria mesológica, fundada por Hipócrates e seus discípulos da escola de Cos, no século V e IV a.C., e retomada
por Vitruvio, chegará até a Idade Moderna com a teoria neo-hipocrática da medicina naturalista do século XVIII e, como
observou Corbin, com a vigilância atmosférica que a sustenta, “suscitará a epidemiologia do Antigo Regime” 32. Com
Cabanis (1757-1808), médico e professor na Escola Central de Medicina de Paris, e que pertenceu à corrente dos
chamados “ideólogos”, as condições do meio atuarão tanto sobre “o físico”, quanto sobre “o moral”, que só poderiam
ser entendidos de maneira conjugada. Como afirma no prefácio de seu livro Rapports du Physique et du Moral (1799),
“o estudo do homem físico é tão interessante para o médico quanto para o moralista”33, estabelecendo uma relação
estreita entre a medicina e a ética. Ou, retomando explicitamente Hipócrates, Cabanis apontará a influência do clima
sobre os hábitos morais, enfatizando que “o clima não pode se restringir às circunstância particulares das latitudes, ou do
frio e do calor; ele inclui, de uma maneira absolutamente geral, o conjunto das circunstâncias físicas vinculadas a cada

33
local; ele épropriamente este conjunto”34. Tais formulações de Cabanis influenciarão desde Comte - aliás responsável
pelo termo “teoria dos meios” - e Saint-Hilaire, herdeiros de Lamarck, até a higiene do século XIX, que será sempre
referida a um certo meio - higiene rural ou urbana, higiene dos quartéis, de prisões, de hospitais, de escolas, da fábrica,
mas também higiene pública e privada, como reiteram os inúmeros manuais, tratados e enciclopédias de higiene da
época35.
Sem pretendermos aqui rastrear as diversas formulações da teoria dos meios, mas apenas visando apontar a
forte influência que ela exercerá na higiene e engenharia sanitária do século XIX - mesmo após as descobertas de
Pasteur, que serão responsáveis por seu questionamento, sobretudo no que se refere à explicação sobre as origens
e transmissão das doenças - mencionemos um autor positivista que, vindo ao Brasil, influenciará decisivamente, entre
outros, o principal engenheiro sanitarista do período - Saturnino de Brito. Trata-se de L.A. Segond que, em sua obra
Histoire et Systématisation Générale de la Biologie, publicada em Paris, em 1851, afirma: “...esta grande parte da ciência
(Segond refere-se aqui à biologia), na qual, sendo conhecidos os seres vivos tanto quanto a cosmologia, buscar-se-á
determinar as influências recíprocas entre as coisas que vivem e aquelas que não vivem. Assim se chegará finalmente
a precisar todos os caracteres que podem afetar um ser, e a traçar verdadeiros limites de sua reação sobre o mundo
exterior” 36, enfatizando a necessidade de se desenvolver o estudo das relações dos seres com um meio dado, para
que se possa compreender ambos.
Outros desdobramentos da teoria dos meios estarão também presentes nos trabalhos do biólogo alemão Ernst
Haeckel, que propõe em 1869 o vocábulo “ecologia” como a ciência que estudaria as relações recíprocas entre um
ser vivo e seu meio, bem como nas formulações de Ratzel, em sua Anthropogéographie, que é de 1882. Por outro
lado, vale lembrar, apoiando-nos em Foucault, que a medicina social urbana desenvolvida na França, desde fins do
século XVIII, já era uma medicina das coisas, isto é, “uma medicina das condições de vida e do meio de existência” 37.
É assim, que, retomando a noção de meio dos naturalistas de fins do século XVIII, “a medicina passou da análise do
meio à dos efeitos do meio sobre o organismo e finalmente à análise do próprio organismo” 38. Aparece, no bojo dessas
formulações, a noção de salubridade, entendida como “a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde
possível dos indivíduos” 39 e a higiene pública como “técnica de controle e de modificação dos elementos materias do
meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a saúde” 40.
Não será à toa, portanto, a presença de higienistas e sanitaristas entre os principais formuladores das concepções
organicistas da cidade, assim como as frequentes analogias entre a saúde da cidade e a do corpo humano. Embora
ampliando o escopo de sua intervenção em relação à higiene urbana do século XIX, o urbanismo mantem como seu
objeto a transformação do meio. No entanto, o meio não será mais apenas um ambiente fisíco, mas sim a unidade
formada pelo quadro de vida e o grupo humano elementar, o lar e a família. Saturnino de Brito, argumentando contra as
práticas sanitaristas que promoviam o constrangimento dos corpos e a invasão dos lares pelos inspetores sanitários,
baseadas segundo ele em conhecimentos suspeitos e práticas infundadas, recomendava “a moderação nos processos
administrativos da higiene, quer dizer o seu desenvolvimento pela educação, isto é, pela razão e pelo sentimento; essa
moderação torna-se indispensável porque é incongruente pretender cuidar da higiene social ou individual por meio
de processos que pertubem a integridade do homem e a paz salutar dos lares” 41. Faz-se ecoar, assim, no Brasil, o
postulado organicista segundo o qual o quadro urbano e a vida social formam um todo indissociável, de tal modo que
remodelar aquele é reorganizar o próprio cotidiano das populações, seus hábitos e costumes.
Mas vejamos, ainda que de modo sumário, como a idéia de meio redefiniu-se de Le Play à sociologia de Durkheim.
Introduzindo o estudo substantivo e empírico da comunidade no século XIX, com o livro Les Ouvriers Européens, de
1855, Le Play chama a atenção para a existência de fatores objetivos da miséria fisíca e moral das classes trabalhadoras,
entre os quais destaca o meio no qual essas classes viviam. Seu raciocinio, refeito por higienistas e sanitaristas
da segunda metade do século XIX e pelos reformadores urbanos do início do século XX, parte da constatação da
aglomeração de trabalhadores nos centros manufatureiros em formação, a conseqüente precariedade dos alojamentos

34
superpovoados e insalubres e com eles a desestabilização da família e o aviltamento moral do indivíduo, levando-o à
prostituição, ao alcoolismo e à vagabundagem, quando não ao suicídio. Visando o enquadramento dos trabalhadores
na esfera da vida privada e sua moralização, Le Play propõe agir sobre o meio que estrutura as condutas individuais.
Com Durkheim, entretanto, a organização social é o regulador das condutas individuais. Para ele, o fato urbano
já é, intrinsecamente, um fato social. Nessa medida, os urbanistas sob sua influência postularão a cidade ao mesmo
tempo como produto e como agente da organização social. Desse modo, reformula-se a concepção de meio elaborada
por Le Play. Durkheim, para dar conta das relações entre fenômenos fisícos e sociedade, elabora a noção de “substrato
social”: “a vida social repousa sobre um substrato que é determinado em sua grandeza como em sua forma. O que o
constitui é a massa de indivíduos que compõem a sociedade, a maneira pela qual eles estão dispostos sobre o solo,
a natureza e a configuração das coisas de todo tipo que afetam as relações coletivas” 42. É a partir desta noção que
Halbwachs, nos anos vinte, desenvolverá sua teoria da morfologia social, chegando a afirmar: “o estudo morfológico
das correntes de circulação e dos modos de povoamento nas grandes cidades (...) é a base indispensável de toda a
política de construção urbana”43.
A idéia de que as reformas urbanas - vale dizer, o saneamento e embelezamento das cidades - constituem
a via pela qual é possível se atingir a melhoria social, elevando-se o padrão moral das classes populares, surge
como princípio comum tanto a higienistas sociais, quanto a sociólogos ou partidários da “ciência das cidades”. Esta,
como observa Magri, caracterizando-se como multidisciplinar, visava operar uma síntese de todas as ciências do
homem. Conforme Jaussely, seu objetivo é fundar “uma ciência urbana única e total, coordenando e reunindo em leis
gerais todas as observações de cada uma das ciências urbanas”44. A partir da influência da sociologia de Durkheim
nos reformadores, as relações entre os diferentes componentes da cidade dadas pela solidariedade orgânica fará do
urbanismo uma “ciência de coordenação”. Nesse sentido, o “urbanisme” dos franceses será distinto do “town planning”
dos ingleses. Aquele sendo mais amplo, relativo às aglomerações urbanas, e o plano sendo considerado apenas um
instrumento que traduz as orientações de política de reforma da cidade. Como a cidade é considerada enquanto um
agrupamento moral, ao se passar de sua reforma parcial para o projeto global de sua transformação, “a moralização
cede lugar à pedagogia de uma vida coletiva refeita pelo novo quadro urbano”45, daí o uso pelos primeiros urbanistas
da palavra “cité”, “evocando a polis grega, como a forma mais evoluída da organização social da qual se destacam as
potencialidades “morais” 46.
A perspectiva organicista acima esboçada, comparando os aparelhos digestivo, respiratório e circulatório do corpo
humano, com o funcionamento da cidade, conduziam à idéia de que sobretudo a estagnação das águas, mas também
a do ar, eram responsáveis pelo surgimento de epidemias. Entretanto, para a teoria miasmática, não através de vetores
invisíveis, conforme a opinião dos defensores da teoria microbiana, mas sim devido à ação dos gens mórbidos e das
exalações pútridas vindas dos pântanos, brejos e demais águas paradas.
Para os higienistas as águas nas cidades não poderiam se estagnar. Seu objetivo principal era fazê-las fluir,
indicando um dos princípios da engenharia sanitária do século XIX, que afirmava: “se a água deve circular de maneira
salubre, que faça desaparecer suas qualidades mórbidas, é preciso ordenar seu curso por canais e esgotos. Se o ar,
cuja qualidade também depende da boa circulação, encontra-se bloqueado na cidade por acidentes naturais e artificiais,
tornando-se então veículo de moléstias, é necessário não só destruir morros e matas que impeçam a ventilação e
sanear pântanos produtores de miasmas, como também expulsar do centro da cidade matadouros, fábricas e hospitais,
e impedir o sepultamento no interior das igrejas” 47.
Mas é preciso enfatizar a necessidade de fazer circular os elementos do meio que, como observou Perrot, conduz
à elaboração de novas representações urbanas. É Corbin quem também observa: “A virtude dada ao movimento incita
às canalizações e à expulsão da imundície; (...) Secar uma cidade através da drenagem significa desativar a estagnação
pútrida genealógica, preservar o futuro desta cidade, garantir, através da técnica, a regulagem que a natureza sozinha
não poderia operar nesse locais de amontoamento artificial” 48. Além de evitar a estagnação das águas, o controle

35
destas possibilitava impedir sua ação destrutiva sobre a cidade no caso de enchentes, bem como criar terrenos para
urbanização, através do dessecamento e aterro de áreas inundadas ou inundáveis.
O movimento higienista, desde seus primórdios, em fins do século XVIII, considerando a cidade como um meio,
insistirá sobre os males advindos da estagnação de todo o tipo - de água, lixo e homens -, desse modo fará da circulação
a palavra de ordem que informará a engenharia sanitária. Mas é também a redefinição radical do uso da água como
elemento promotor da limpeza que explicará o surgimento das redes de saneamento a partir do segundo quartel do
século XIX. Pois, enquanto vigorou a concepção de permeabilidade da pele, vigente desde o fim da Idade Média, os
banhos, como observou Vigarello49, não podiam ser associados à limpeza ou à defesa do corpo contra as epidemias.
Muito pelo contrário, a idéia era a de que “os banhos ameaçavam romper um equilíbrio. Eles invadiam, precipitavam
e, sobretudo, abriam para outros perigos além daqueles do ar pestilento” 50, daí as práticas exclusivamente de banhos
secos e abluções, além do uso intenso de perfumes.
Enfim, como afirma Bresciani, “o reequacionamento da cidade com base na teoria dos fluidos - propiciar a circulação
do ar, da água, da luz, das mercadorias e das pessoas - exige um investimento razoável para ampliar a rede de esgotos
e de distribuição de água, exige a regulamentação das construções e o recorte ordenado de ruas e avenidas” 51. E, se
a forma aparente do consumo d’água é individual, no âmbito da família ou de instituições determinadas, seu consumo,
assim como a sua produção, têm de ser processos coletivizados. A noção de rede, que organiza a forma de distribuição
dos produtos de saneamento - água e esgoto - pressupõe e repõe o caráter coletivo e plenamente socializado da
produção do saneamento. É preciso, entretanto, quanto a esse aspecto, lembrar que nem toda técnica de saneamento
se estrutura a partir de redes que estriam o território, marcando-o segundo sentidos culturais diversos. Apenas com a
engenharia sanitária do século XIX, como observa Dupuy, “por exigência de ordem higiênica são recusadas as soluções
individuais de eliminação de dejetos domésticos em favor do ‘tout-à-l’égout’ “52, cuja implantação, particularmente em
Paris, não será feita sem resistências, como nos mostrou Jacquemet53.
Comforme Dupuy, na polêmica, por volta de 1880, sobre o que fazer com as águas coletadas, encontraremos três
escolas distintas: os quimistas, que defendiam o tratamento por produtos químicos, em particular o sulfato de alumínio
ou cal; os biologistas, com Pasteur à frente, que aceitavam o espargimento no solo (“épandage”) embora recusando a
irrigação de culturas; e os engenheiros de “Ponts-et-Chaussées”, que defendiam o “tout-à-l’égout” com espargimento
no solo54. Jacquemet observou que “Pasteur não condenou expressamente o `tout-à-l’égout’, mas, contra a irrigação
pelas águas de esgoto, mostrou que os germes do carbúnculo se conservavam vários anos no solo”55.Para Pasteur
seria necessário conduzir os esgotos até o mar por uma canalização separada56, o que, vale registrar, será a solução
adotada pelo Eng. Saturnino de Brito para os esgotos de várias cidades litorâneas, como Santos e Recife.
Com Pasteur, por fim, a teoria dos meios receberá seu golpe de morte. Se, desde o fim do século XVIII, a teoria
miasmática já demonstrava sua incapacidade em esclarecer a propagação veloz das epidemias, com a descoberta da
via hídrica como meio de contágio, por Snow57, as concepções mesológicas serão profundamente abaladas. Mesmo
assim, a teoria pastoriana não será aceita de imediato, como observamos ao estudarmos as concepções de Saturnino
de Brito a respeito58. Por outro lado, alguns trabalhos têm apontado para o fato da teoria pastoriana ter se construído
a partir de embates com seus contraditores. Latour59 destaca as críticas de Peter e Koch a Pasteur, acusado de
generalizar apressadamente a partir de casos mal esclarecidos. Conforme aquele autor, Peter se bate contra a “fúria
microbiana”, contra o que lhe parece uma “torrente” e mesmo “um cólera intelectual contra o qual é preciso também
saber tomar as medidas sanitárias”. Temple60, por sua vez, analisa as diferenças entre as teorias da fermentação, a
teoria vitalista de Pasteur, as teorias químicas de Liebig e de Berthelot, que se lhe opunham. Mostra como Pasteur fazia
uso de uma argumentação tautológica para provar que a fermentação é causada pela atividade vital de microorganismos
específicos. E ainda Latour sugere que tenha havido menos argumentos científicos e racionais na consolidação da
teoria pastoriana, do que se imagina, observando a importância da crença nas proposições de Pasteur para a evolução
da própria teoria e a oportunidade do estreito vínculo que se estabeleceu entre pastorianos e higienistas.

36
De qualquer modo, como afirma Vigarello, “o micróbio torna-se uma causa mais precisa, situável e identificável
ao mesmo tempo. Ele é independente do odor e é observável” 61. Tornando o inimigo invisível, como observa Latour,
“os pastorianos oferecem aos higienistas os pontos de passagem obrigatórios, sobre os quais as forças deveriam ser
concentradas” 62, transformando de modo radical a higiene e também a medicina. Com a valorização da água como
agente de limpeza, valoriza-se também a engenharia sanitária, cujas obras de saneamento passarão a redefinir a
paisagem de inúmeras cidades a partir da segunda metade do século XIX, devido a função preventiva em relação à
saúde que terão, garantindo condições adequadas de salubridade urbana.

* Professor Assistente - Doutor, Departamento de Arquitetura, EESC, USP.


1 O termo “peste” origina-se da narração, por Tucídides, da epidemia que grassou em Atenas no ano 430 a.C. Como observam Sournia e Ruffie,
a “peste de Atenas” não foi “aquilo a que chamaríamos hoje peste no sentido restrito. Loimos, em grego, e pestis, em latim, são termos vagos
que designam um ‘flagelo’ em geral; depois, pestis designou em francês, todas as doenças contagiosas, ao ponto de podermos falar ‘das pestes’,
mas atualmente não podemos empregar este termo senão perante certos sintomas clínicos, e depois da identificação do bacilo Yersinia pestis”
(As Epidemias na História do Homem, Edições 70, Lisboa, 1986, p. 79). Adotamos aqui o termo “peste” em seu sentido original e não no sentido
epidemiológico, apoiados no Novo Dicionário Aurélio da Lingua Portuguesa, para o qual “peste” pode significar tanto “doença contagiosa grave”,
quanto “qualquer epidemia caracterizada por uma grande mortandade”, distinguindo-se do termo “peste bubônica” que é “doença infecciosa
produzida pelo bacilo pestoso, e que é transmitida ao homem pela pulgas originárias de ratos acometidos da moléstia”.
2 BERTHE, J.M.; Précis Historique de la Maladie qui a Régné dans l’Andalousie en 1800, Déterville et Renaud, Paris, 1802. A título de curiosidade,
vale registrar que este livro raro, que encontrei no acervo da Biblioteca da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da USP, pertenceu ao Conde
D’Eu, como sugere sua assinatura na primeira folha.
3 Ver a respeito o ensaio de LOSCHAK, Danièle; “Espace et contrôle social”, In: CHEVALLIER, Jacques et alli; Centre, Périphérie et Territorie,
Presses Universitaires de France, Paris, 1978, pp. 151-203.
4 SNOW, John; On the Mode of Communication of Cholera, John Churchill, London, 1855. Usamos aqui a tradução para o português, Sobre a
maneira de transmissão do cólera, USAID/Bruno Buccini Editor, Rio de Janeiro, 1967, p. 12.
5 BERTHE, op.cit., p. 16.
6 Sobre o pânico e o medo em uma cidade pestilenta, consulte—se: DELUMEAU, Jean; História do Medo no Ocidente, 1300-1800, Editora
Companhia das Letras, São Paulo, 1989, em especial o capítulo III - “Tipologia dos comportamentos coletivos em tempo de peste”.
7 BREUILLAC, H-G.; De la Police Sanitaire, Aix, 1885.
8 FOUCAULT, Michel; Microfísica do Poder, Edições Graal, Rio de Janeiro, 1979, em especial o capítulo V - “O nascimento da medicina social”,
pp. 79-98.
9 DEFOE, Daniel; Um Diário do Ano da Peste, L&PM Editores, Porto Alegre, 1987.
10 Antonin ARTAUD; Le théâtre et son double, Éditions Gallimard, Paris, 1964.
11 ARTAUD, op.cit., p. 33.
12 Citado por Elias CANETTI; Masse et Puissance, Gallimard, Paris, 1966, p. 289.
13 ARTAUD, op.cit., p. 23, grifo nosso.
14 SOURNIA e RUFFIE; op.cit., p.55.
15 idem ibidem.
16 Conforme verbete do Novo Dicionário da Lingua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Nova Fronteira, Rio de Janeiro,
1975.
17 CANETTI; op.cit., p.291.
18 idem ibidem.

37
19 idem ibidem.
20 BRESCIANI, Maria Stella Martins; “Lógica e Dissonância. Sociedade de Trabalho: Lei, Ciência, Disciplina e Resistência Operária”, In: Revista
Brasileira de História, vol. 6, nº 11, ANPUH, Editora Marco Zero, set 1985 / fev 1986, São Paulo, pp. 7-44, p. 24.
21 Citado por ANDRADE, Gilberto de; A Cólera-Morbo. Um momento crítico da história da medicina em Pernambuco, Fundação Joaquim Nabuco,
Ed. Massangana, Recife, 1986, p. 34.
22 BRESCIANI; op.cit., p. 23.
23 HIPPOCRATES; The Medical Works of Hippocrates, Charles C. Thomas Publisher, Springfield, Illinois, USA, 1950.
24 HIPPOCRATES; op.cit., p. 90.
25 HIPPOCRATES; op.cit., p. 102.
26 VITRUVIO, Marco Lucio; Los Diez Libros de Arquitectura, Editora Iberia, Barcelona, 1986
27 VITRUVIO; op.cit., p. 17.
28 VITRUVIO; op.cit., p. 20.
29 VITRUVIO; op.cit., p. 140.
30 VITRUVIO; op.cit., p. 142
31 VITRUVIO; op.cit., p. 144.
32 CORBIN, Alain; Saberes e Odores. O olfato e o imaginário social nos séculos dezoito e dezenove, Editora Companhia das Letras, São Paulo,
1987, p. 22.
33 CABANIS, Pierre-Jean-Georges; Textes, Louis-Michaud Éditeur, Paris, s/d, p. 88.
34 CABANIS; op.cit., p. 140.
35 Ver a respeito, a título de exemplo: ROCHARD, Jules; Encyclopédie d’Hygiène et de Médecine Publique, Lecrosnier et Babé Libraires-Éditeurs,
Paris, 1891. Ou então, para tomarmos um exemplo nacional, PEIXOTO, Julio Afrânio; Higiene Geral, Livraria Francisco Alves, São Paulo, 1914.
36 SEGOND, L.A.; Histoire et Systématisation Générale de la Biologie principalement destinée à servir d’introduction aux études médicales, Chez
J.B. Baillière, Paris, 1851, p. 117.
37 FOUCAULT; Microfísica do Poder, op.cit., p. 92.
38 FOUCAULT; Microfísica do Poder, op.cit., p. 93.
39 Idem.ibidem
40 idem.ibidem.
41 BRITO, Saturnino de; Obras Completas, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1943/1944.
42 DURKHEIM, Émile; “Morphologie Sociale”, In: L’Année Sociologique, deuxième année (1897-1898), p. 520, citado por MAGRI, Susanna; “La
rationalisation urbaine dans les projets des reformateurs en France, 1900-1925. La conception organiciste de la ville: implications pratiques et
sources d’inspiration”, CNRS, Paris, 1988, p. 14.
43 HALBWACHS; “Morphologie Sociale”, In: L’Année Sociologique, nouvelle série, 1923-1924, t.I, p. 935, citado por MAGRI, op.cit., p. 15.
44 JAUSSELY, Léon; “Chronique de l’Urbanisme”, In: La Vie Urbaine 1-2, mars-juin, p. 187, citado por MAGRI; op.cit., p. 6.
45 (46) MAGRI; op.cit., p. 10. Veja-se o artigo de SORRE, Max; “Géographie Urbaine et Écologie”, In: vários autores; Urbanisme et Architecture,
Henri Laurens Éditeur, Paris, 1954, que também discutirá a noção de meio.
46 MAGRI, op.cit., p. 3.
47 BRITO, Saturnino de; Economia Sociologia e Moral, Obras Completas, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1943, vol. XXII, artigo “Função
Social do Engenheiro Sanitário” (1909), p. 43.

38
48 CORBIN; op.cit., p. 122. Neste mesmo parágrafo, Corbin faz referência ao livro de PERROT, Jean-Claude; Genèse d’une ville moderne. Caen
au XVIII siècle, 1975.
49 VIGARELLO, Georges; Le Propre et le Sale. L’Hygiène du Corps depuis le Moyen Âge, Éditions du Seuil, Paris, 1985.
50 VIGARELLO; op.cit., p. 19.
51 BRESCIANI; op.cit., p. 28.
52 DUPUY, Gabriel; Urbanisme et Technique: Chronique d’un Marriage de Raison, Centre de Recherche d’Urbanisme, Paris, 1978.
53 JACQUEMET, Gérard; “Urbanisme parisien: la bataille du tout-à-l’égout à la fin du XIXe siècle”. In: Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine,
tome XXVI, oct-déc/1979, pp. 505-548.
54 DUPUY; op.cit., p. 168.
55 JACQUEMET; op,cit., p. 512.
56 JACQUEMET; op,cit., p. 513.
57 SNOW, op.cit.
58 Veja-se ANDRADE; op.cit., capítulo 4.
59 LATOUR, Bruno; Les Microbes. Guerre et Paix, Éditions A.M. Métailié, Paris, 1984.
60 TEMPLE, Dennis; “Pasteur’s theory of fermentation: a ‘virtual tautology’ ?”, In: Studies in History and Philosophy of Science, vol.17, nº 4, 1986,
pp. 487-503.
61 VIGARELLO, op.cit., p. 218.
62 LATOUR, op.cit., p. 51.

39
O Sistema de Parques Públicos na História do Paisagismo.
Emilia Falcão Pires*

1. A introdução da vegetação no espaço público urbano.

Depois de terem sido perdidos em conseqüência de guerras e invasões na antiguidade romana, os espaços
públicos ajardinados voltam a aparecer em meados do século XVI no ocidente. A partir daí são introduzidos de modo
lento e gradual.
Parece ter sido em Antuérpia, na Bélgica, onde surge a primeira área ajardinada da europa: uma planta de
1569 registra a catedral dessa cidade com o adro arborizado. Também em Antuérpia a partir de 1578 as fortificações
de proteção da cidade, que eram muito largas e possuiam vias de circulação, transformaram-se em passeios com a
inserção de três linhas de árvores. Na América o primeiro espaço de uso público a ter jardins cultivados aparece no
México em 1592 por ordem do 8( vice-rei da Nova Espanha. (Segawa, 1994).
Esse quadro vai mudando a partir do século XVII onde encontramos em várias cidades européias passeios
ornamentados com árvores. Em Londres, Inglaterra, nesse século, já existiam as squares, gardens e os public walks.
Na Itália aparece o hábito do corso em vias arborizadas onde carruagens passeavam. Na França esse hábito acontece
nos espaços denominados cours e boulevards.
Os novos espaços livres públicos ajardinados têm na forma de uso um caráter diferente da praça medieval: não
são utilizados para festas populares ou como áreas de mercado. São novos espaços de recreio e acolhem novas
práticas sociais, nesse espaço a natureza vai ganhar atributo estético e cultural.

2. O salubrismo, um novo significado para a vegetação.

O salubrismo foi um conceito difundido no século XIX em função da necessidade de combate às epidemias que
atingiam principalmente as populações dos centros urbanos mais adensados. Graças a esse conceito foram mantidas
muitas áreas ajardinadas na Europa, principalmente em fins do século XVIII e durante o XIX, quando o acelerado
crescimento urbano subtraia todo e qualquer espaço livre disponível em favor de construções; ele foi essencial
também na criação de novas áreas , como parques públicos, em razão da importância que era dada à vegetação e ao
espaço aberto na cidade pela medicina sanitarista do século XIX. Porém, as críticas às condições de higiene no meio
urbano não são exclusivas do século XIX, já os discursos dos filósofos iluministas do século XVIII, na França, onde
em meio aos ataques à nobreza e à igreja católica falam da sujeira e da propagação da infecção na cidade de Paris.
Pierre Patte, arquiteto de Luiz XV, discorre em sua obra “Mémoires sur les objets les plus importants de l’Architecture”,
publicada em 1769, os procedimentos urbanísticos que considera necessários para a melhoria das condições de
salubridade nas cidades. Patte não fala especificamente em áreas arborizadas ou ajardinadas, está preocupado com
melhoria das condições higiênicas em geral. Mas ele fala em embelezamento da cidade associado a questão da
higiene, diz ser conveniente aliar o agradável ao útil, conservando na reforma do plano de uma cidade tudo o que
possa embelezá-la (Salgado, 1995). As preocupações de Patte vão se transformar em medidas efetivas de grande
amplitude no século XIX, com as obras de Haussmann em Paris, atribuindo aos espaços abertos com vegetação,
além do efeito de embelezamento, um caráter salubrista, como espaços necessários para a renovação do ar em
função da crença da existência de patologias causadas por miasmas.

40
Também na cidade industrial inglesa do século XIX, as condições de insalubridade se acirram, principalmente em
Londres que, já nos primeiros quarenta anos do século, possuia dois milhões de pessoas. Muitos relatos dão conta de
mostrar a sujeira nas ruas centrais onde a população operária se amontoava ao lado de ruas largas e bem iluminadas
com grandes mansões. Foi esse quadro que motivou a realização da grande pesquisa dirigida por Chadwick entre 1840
e 1845 em Londres, a montante de muitas outras, que confirmou a relação entre a insalubridade, as más condições de
habitação , uma taxa de mortalidade elevada, uma baixa esperança de vida e a doença. (Beguin, 1991)
Quase ao mesmo tempo em que se descobriu uma patologia urbana nos séculos XVIII e XIX, os meios técnicos
foram desenvolvidos objetivando conter as epidemias. A responsabilidade pela descoberta da associação entre o meio
insalubre e os males associados a ele foi da medicina sanitarista que no século XIX teve um avanço sem precedentes.
Cabia agora aos técnicos garantir as transformações do ambiente.
A associação da cidade ao corpo humano, onde as casas correspondiam à células, as ruas à artérias e parques
à pulmões (reservatórios de ar) desse organismo, foi utilizada para dar ao espaço aberto com vegetação na cidade
um novo significado: funcional e pragmático, com utilidade saneadora e higienizadora. A partir daí surgiu a noção da
vegetação como elemento importante na qualidade do ambiente. Não havia, no entanto, um consenso sob qual aspecto
ela era importante; uma corrente atribuía às árvores o poder de dissecar o solo, outra acreditava que produziam
oxigênio mas a mais aceita tributava à ventilação o controle sobre a proliferação de doenças transmitidas por miasmas
e sob essa perspectiva os grandes espaços livres ajardinados eram fundamentais.

3. A evolução do uso da vegetação no espaço urbano: o aparecimento do parque público.

O advento do parque público como área de recreação urbana aconteceu em Londres, Inglaterra, com a abertura
ao uso público de um parque pertencente à coroa. O Saint James’s Park foi aberto em 1828 após ter sido reformado,
com projeto do arquiteto John Nash, adequando-se ao uso de pedestres.
Outros parques já haviam sido abertos ao público antes do Saint James’s. Em Munique, Alemanha, no século
XVIII, parques foram construídos no lugar de antigas fortificações e abertos a visitação. O Bois de Boulogne, parque de
caça da nobreza, em Paris, foi aberto por ocasião da Revolução Francesa, e mesmo em Londres parques reais como o
Whitehall, Hampton Court, Westminster Palace, o Greenwich Park e o Hyde Park tornaram-se acessíveis em 1649 por
determinação do parlamento (Segawa, 1994). A diferença entre esses parques e os londrinos do século XIX está no
fato de que alguns eram distantes do núcleo urbano e quase todos eram impróprios para o uso de pedestres. O Hyde
Park, por exemplo, construído entre 1630 e 1640, não possuía a pavimentação adequada, bancos e bebedouros que
permitissem o passeio a pé.
Na acepção que temos hoje, o parque público surgiu em Londres, primeiro com a abertura do Saint James’s como
dissemos acima, depois com o Regent’s Park. Este último fazia parte de um empreendimento da iniciativa privada com
residências ao seu redor que amortizaram o custo de sua implantação. O Regent’s Park, também desenhado por John
Nash, foi aberto (apenas um dos seus lados) por determinação do parlamento motivado por pressão popular.
Apesar de Londres ser reconhecida como uma cidade com enormes áreas verdes no centro, havia o grave problema
de que esses espaços concentravam-se todos a oeste do Rio Tâmisa, nas áreas mais nobres da cidade, onde também já
existiam as squares e outros jardins. Por volta de meados do século XIX começaram a haver mobilizações populares pela
construção de parques em partes ainda não beneficiadas por estes na cidade, como o leste e o sul. O que provavelmente
motivou essas reivindicações foi a divulgação das pesquisas de Edwin Chadwick sobre as condições de salubridade
urbana. Apontando alguns caminhos para a melhora dessas condições, ele reconheceu o valor dos passeios públicos e

41
dos parques para alterar essa situação (Chadwick, 1966). Em 1840 uma petição com 30.000 assinaturas
solicitava à coroa um novo parque no lado leste da cidade. O resultado desta mobilização foi a construção do Victoria
Park. Pouco mais tarde foi construído o Battersea Park ao sul do Tâmisa, numa área que já era usada para recreação
pela população. Ali fica o Vauxhall Gardens, uma das primeiras áreas verdes abertas ao público no século XVII.
Dessa forma, de um modo espontâneo, sem planejamento, Londres instaurou seu sistema de áreas verdes de
recreação.
Um dos fatos que podem explicar porque os primeiros parques foram abertos em Londres está no adensamento
populacional da cidade desde o século XVIII. Londres foi um importante centro comercial e financeiro e já no final do
século XVIII contava com uma população de um milhão de habitantes, dobrando esse número nos primeiros quarenta
anos do século XIX em função da migração do campo para a cidade causada pela Revolução Industrial.
Um outro aspecto do parque público é o de que ele veio amenizar de modo mais efetivo, pois as praças já o faziam
em menor escala, as grandes massas edificadas. Nesse sentido, o parque constitui-se em um refúgio às condições
adversas da cidade pois em função de suas dimensões perde-se a sensação que a grande cidade, barulhenta e
poluída, está a nossa volta. É um espaço de evasão.
O parque surge nesse contexto. Ele vem também responder às novas necessidades por equipamentos de
atividades de recreação e lazer decorrente da intensa expansão urbana e propiciar uma alternativa ao novo ritmo
introduzido pelo tempo artificial - tempo da cidade industrial - em contraposição ao tempo natural que é comum na vida
da zona rural ou em pequenas cidades (Kliass, 1993). Por outro lado, até sua introdução na vida urbana, as formas de
diversão advinham quase que exclusivamente das lojas de bebidas e a cidade era tida como um lugar desolado com
poucos espaços abertos..
Para que se chegasse a criação desse espaço o pensamento ocidental sobre a natureza passou por grandes
mudanças. Antes dos séculos XVII e XVIII o homem ainda temia as florestas e seus habitantes, considerando que o
desenvolvimento humano dependia do domínio sobre a natureza, porém paulatinamente, principalmente na Inglaterra
surgiram manifestações de apreço pela natureza e pela paisagem, como a poesia religiosa que acabou por inspirar a
poesia profana (Segawa, 1994). No século XVIII o hábito de viagens turísticas começou a ser disseminado e um dos
objetivos era conhecer a natureza selvagem.
O advento do parque público no ocidente se deve, não só às condições adversas da cidade industrial e à
mudança quanto ao conceito que se tinha sobre a natureza, como foi descrito acima, mas também à qualidade na
elaboração desse espaço, ou seja ao desenho.
A estética que predominava nos jardins da Inglaterra até o aparecimento do chamado “jardim naturalista”,
empregado nos parques públicos, era a do jardim renascentista e, a partir do século XVII, o jardim barroco de origem
francesa. Quem o trouxe para a Inglaterra, empreendendo-o em muitos parques reais foi Carlos II, influenciado pelas
correntes barrocas que conheceu em seu exílio. Andrés e Gabriel Mollet, filhos de Cláudio, mestre de Le Nôtre, se
estabeleceram de 1661 a 1666 trabalhando como jardineiros para Carlos II. Nesse período, o rei ordena os jardins de
Withehall, Hampton Court, St. James’s e Greenwich (este com o próprio desenho de Carlos II), (Valenzuela, 1995).
A origem do desenho do chamado “jardim inglês” é marcado, segundo Pevsner (1983), por um tratado denominado
“Gardens of Epicurus” escrito por William Temple, em 1685, onde Temple exalta o jardim que conhece depois de
uma viagem a China; nele a irregularidade do traçado dos caminhos é descrita com o termo sharawadgi (desordem
irregular e elegante). A configuração desse jardim é desenvolvida na China a partir de um sentimento contemplativo da
natureza, enquanto ordenamento simbólico e estético, cuja melhor interpretação poderia dá-la hoje, talvez, a essência
da filosofia Zen. (Buttlar, 1993)

42
O tratado de Temple encontrou campo fértil, um pouco mais tarde, no começo do século XVIII, coincidindo com
o florescimento do liberalismo na Inglaterra, em que o livre crescimento da árvore passa a ser interpretado como
símbolo do livre desenvolvimento do indivíduo, o caminho serpenteante como a liberdade inglesa de pensamento,
de ações, e a adesão à natureza no terreno comparada a adesão da natureza na ética e na política (Pevsner, 1983)
Esteticamente corresponde a uma imagem ideal de natureza, que decompunha o espaço do jardim em uma série de
vistas tridimensionais, (Buttlar, op. cit.). Paralelamente o jardim francês passa a ser rejeitado na Inglaterra.
Uma série de motivos são descritos como causa dessa rejeição. Um deles coloca a incompatibilidade entre o
desenho do jardim formal francês ( que pedia terrenos planos (em função da perspectiva axial) ( e a topografia mais
irregular da Inglaterra. Outro motivo consistia em que os jardins barrocos se ligavam à imagem do absolutismo francês,
, eram a expressão da dominação do homem sobre a natureza num Estado onde o homem - Rei Sol - dominava outros
homens.
No desenho do jardim francês tudo se estrutura a partir do edifício principal. O eixo central parte desse edifício
e apropria-se do horizonte. Nos canteiros há o predomínio de formas geométricas e não existe grande variedade de
vegetação, que é mantida pela poda topiária. Outras características são a simetria, a arborização em aléias e o uso da
água em superfícies planas e em canais.
Em contraposição a esse desenho é que surge o jardim naturalista, elaborado em propriedades privadas
inicialmente por amadores e mais a frente por profissionais que farão parte de uma escola denominada “Landscape
Gardening School” (Mariano, 1994).

4. O sistema de parques de Paris.

Se a Inglaterra foi pioneira abrindo os primeiros parques especificamente elaborados para uso público na primeira
metade do século XIX, a França também teve um papel relevante na segunda metade do mesmo século. Na reforma
implementada por Haussmann em Paris entre 1853 e 1869 o plano unificado ou plano global tinha os seguintes
propósitos: melhorar a circulação no geral e principalmente o acesso dos palácios e vias para todas as partes da cidade
em momentos de emergência1, melhorar a saúde pública limpando becos e introduzindo luz e ar; melhorar a aparência
da cidade e oferecer novos pontos interessantes além de expor melhor aqueles existentes. O objetivo de Haussmann
além de medidas que melhoravam a circulação e o saneamento, era criar parques e jardins ligados por boulevards.
Haussmann criou o primeiro sistema de espaços livres e parques urbanos, ligando áreas verdes de diversas
escalas através de vias de circulação arborizadas. A importância que Haussmann deu a essa parte do trabalho é
mostrado pelo pessoal técnico que executou esta tarefa: o Service de Promenade e Plantations sob supervisão do
engenheiro paisagista Jean Alphonse Alphand (Chadwick, 1966).
No que diz respeito aos parques públicos, Paris suplantou Londres na segunda metade do século XIX (Joest,
1991).
O primeiro ato da transformação de Paris num “teatro de áreas verdes” (usando expressão de Eugene Henard)
começou a oeste nas Toulleries, ao longo do eixo construído para criar uma perspectiva monumental atravessando
o Arco do Triunfo e seguindo pelos Champs Eliseés (que também foi remodelado) até o Bois de Boulogne (que já
havia sofrido uma reforma em 1852 para adequar-se ao traçado do jardim inglês). Napoleão III estava pessoalmente
interessado nessa reforma por ver no Bois um rival para o Hyde Park que havia conhecido enquanto esteve na Inglaterra
como refugiado. O objetivo era torná-lo um lugar de recreação para o mundo elegante.
Com o Bois de Vincenes o intuito foi proporcionar um lugar nobre para a classe trabalhadora (Joest, 1991). Os

43
trabalhos foram iniciados em 1858 e em 1860 estava aberto.
Outros três parques foram oferecidos a população: o Monceau, reformado em 1861, o Monsouris e o Buttes -
Chamount, que havia sido uma mina de calcário e é tido como o mais interessante entre todos.
Terminado o lay-out das grandes áreas verdes foi elaborado um plano de vinte e quatro praças nas áreas
residenciais. Essas praças são um exemplo dos “benefícios do patrocínio” de Napoleão III à população de Paris
(Joest, 1994). Durante sua temporada em Londres, o imperador ficou horrorizado com o contraste entre as squares
e as sórdidas condições dos “slums” onde moravam as famílias de trabalhadores, e instruiu Haussmann a avaliar as
possibilidades de construir muitas praças. Praças de relaxamento para todas as famílias e para todas as crianças,
ricas ou pobres. Essas praças foram embelezadas com pontes, fontes, caminhos e destinavam-se a levar ar puro para
diferentes partes de Paris. Algumas haviam sido construídas no passado para abrigar monumentos como a Chapele
Spiatori consagrada a Luiz XVI e a Maria Antonieta, outras eram miniaturas de parques.
Quase que paralelamente à implementação do sistema de parques francês, que teve muita repercussão na Europa
e Américas, aconteceu o Movimento de Parques Americanos.

5. O movimento dos parques americanos.

Para o paisagismo, o Movimento dos Parques Americanos foi fundamental pois definiu novos equipamentos (surgiu
aqui o conceito de lazer passivo e ativo), criou uma diversidade de escalas, e principalmente deu às áreas verdes
uma nova dimensão quanto ao seu papel na estruturação de uma cidade. É responsável também pelo reconhecimento
da necessidade de uma abordagem das questões ambientais. O conceito que temos hoje do que é paisagismo foi
extremamente influenciado pela história do movimento dos parques americanos. O Central Park, o primeiro parque
público na América, é um dos seus símbolos.
A defesa da necessidade de um parque em Nova York foi inicialmente feita por William Cullen Bryant, editor do
Evening Post, em função da expansão crescente a que a cidade estava sendo submetida. Um pouco depois, em 1848,
Andrew Jackson Downing, enfatizou a proposta de Bryant justificando-a com o sucesso que os parques cemitérios
faziam na época. Já na época do Central Park a idéia que Downing tinha sobre as áreas verdes de recreação para
Nova York não se restringia a apenas um parque. Frederick Law Olmsted e seu sócio Calvert Vaux compartilhavam
dessa opinião e mais tarde puderam realizar um sistema mais abrangente em Boston.
Olmsted, que acabou tornando-se a figura mais representativa do movimento, teve grande influência no desenho
das cidades americanas usando os parques na composição do desenho urbano, explorando seu potencial paisagístico.
Boston é o exemplo mais significativo, onde seu trabalho ultrapassou a dimensão do projeto do parque, ali foi estabelecido
um sistema de áreas verdes integradas por avenidas-parques preservando vales e beira- rios (Kliass, 1993).
Na concepção de Olmsted, um sistema de parques deveria atender toda a cidade. Em Boston essa idéia
foi utilizada originando as parkways. As parkways não eram caminhos ou avenidas arborizadas ligando parques ou
praças como acontecia em Paris, o objetivo com a construção dessas vias era que elas fossem prolongamentos dos
parques, possibilitando serem percorridas num clima de silêncio e muita vegetação. Esses caminhos deveriam garantir
a comunicação dos parques com áreas mais distantes da cidade, áreas existentes ou futuras, e o cruzamento com vias
normais da cidade deveria ser evitado ao máximo (Chadwick, 1966). O sistema de parques de Boston compreende o
número de dezenove parques com um parkway que varia de 60,00 a 450,00 metros.
Depois de Olmsted, a evolução das áreas recreacionais na América, já no fim do século XIX e começo deste
século, passou por um período denominado “reform park” onde entre outras características aparecem os “pocket

44
parks”, pequenos parques cujo espaço é composto quase que exclusivamente por áreas de piso e equipamentos de
lazer e estar.
A depressão americana e posteriormente a II Guerra levaram a um uso mais intenso de parques como opção
de recreação. Neste período, o planejamento e integração do sistema de parques chegou a sofisticação: o aumento
populacional causado pelo fim da guerra foi esperado com planos globais para espaços recreativos (Mariano, 1992).
Um novo período, na década de 60 deste século, é caracterizado com o aparecimento de novos paradigmas
que levam em consideração o meio ambiente para o estabelecimento das áreas verdes urbanas como também para
o uso da terra na área rural. Esses novos paradigmas se baseiam no conceito de desenvolvimento sustentado e na
minimização de impactos sobre os recursos naturais e culturais. Os precursores na elaboração desses conceitos são
os norte-americanos Ian McHarg da escola da Pennsylvania e Lawrence Halprin.
Sob essa ótica, a da preservação ambiental, estabelecem-se as áreas sujeitas a proteção permanente da
vegetação nativa em porções do território suscetíveis a transformações de difícil reversão.
Para os arquitetos paisagistas esses conceitos apresentam-se como uma nova linha de intervenção, assim
como para o estabelecimento das áreas verdes de recreação em meio urbano. Considerar as questões ambientais se
caracteriza como a grande evolução contemporânea.

6. Bibliografia.

BEGUIN, François. As Maquinarias Inglesas do Conforto. In: ESPAÇO E DEBATES, Revista de Estudos Regionais e
Urbanos, número 34, Ano XI, 1991.
BUTTLAR, Adrian Von, Jardines del Classicismo y el Romanticismo. Madrid: Editorial Nerea, 1993.
CHADWICK, George. The Park and the Town. London, The Architectural Press, 1964.
GOMBRICH, E. H.. Norma y Forma. Madrid, Alianza Ed., 1985.
JELLICOE, Geoffrey and Susan. The Landscape of Man, shaping the environmente from prehistory to the present day.
London: Thames and Hudson Ltd, 1995.
JOEST, Thomas von. Haussmann’s Paris: A Green Metropolis? In: THE HISTORY OF GARDEN DESIGN, edited by
Mosser, Monique and Teyssot, Georges. London: Thames and Hudson, 1991.
KLIASS, Rosa. Parques Urbanos de São Paulo, São Paulo: Editora Pini, 1993.
LAURIE, Michael. Introdución a la arquitectura de la paisaje. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1983.
MAGNOLI, Miranda Martinelli. Espaços Livres e Urbanização. Tese (Livre-Docência) - Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade de São Paulo, 1982.
MAGNOLI, Miranda Martinelli. O Parque no Desenho Urbano. ANAIS do II SEDUR. São Paulo: Pini, 1986.
MAGNOLI, Mirada Martinelli. O Jardim na Cidade é um Fragmento de Sonho. ANAIS do II Enepea. São Paulo: Unimarco
Editora, 1996.
MARIANO, Cássia Regina. Parques Metropolitanos de São Paulo: Subsídios para o desenho. Dissertação (Mestrado
em Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 1992.
McHARG, Ian. Design with nature. N. York, The Natural History Press, 1971
MORRIS, A. E. J.. História de la forma urbana. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1984.
PEVSNER, Nikolaus. Estudos sobre Arte, Arquitetura e Diseño. Barcelona: Gustavo Gili, 1983.
SALGADO, Ivone. Origens do pensamento racional sobre a cidade. Campinas: FAU, PUCCAMP, 1995.

45
SEGAWA, Hugo. Ao Amor do Público. Tese (Doutorado em Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, 1994.
SUTHERLAND Lyall. Landscape, Diseño del espacio público, Parques, Plazas, Jardines. Barcelona: Editorial Gustavo
Gili, 1991.
VIDLER, A.. Los scenários de la calle: transformaciones del ideal y de la realidad. In: CALLES- PROBLEMAS DE
ESTRUCTURA Y DISEÑO. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1981.
VALENZUELA, José. (Dir. Téc.). O jardín romántico en Inglaterra. In: Secuencias de Arquitetura e Construción, Jardines
5, número 9 - Marzo, Abril, Madrid, EFI, 1995.

* Professora Assistente, Departamento de Arquitetura, FAAC, UNESP.


1
O motivo que levou a essa preocupação foi a construção de barricadas antes, durante e logo depois da Revolução
Francesa, impedindo o exército de se movimentar em muitos bairros de Paris. Sobre essa questão, ver Vidler, 1981.

46
Uma Visão Térmica da Área Urbana: o Caso da Cidade de São Carlos -SP
Léa Cristina Lucas de Souza*

1. Introdução

Dos problemas gerados pela urbanização, é bastante conhecida, atualmente, a tendência da temperatura do ar
atingir graus mais elevados em áreas urbanas do que em áreas rurais, sendo este fenômeno chamado de ilha de calor.
No entanto, para as cidades brasileiras, poucos são as fontes bibliográficas disponíveis, que possibilitem os estudos
voltados para a análise da interação entre as edificações e as condições climáticas.
Visando contribuir para a geração de informações sobre o impacto climático das cidades situadas em regiões
tropicais, este trabalho apresenta uma comparação térmica entre área rural e urbana da cidade de São Carlos-SP.
Para esta abordagem são inicialmente feitas considerações sobre o contexto urbano da referida cidade, servindo
de base para a identificação das principais características físicas e articulações urbanas. Uma breve descrição do clima
da cidade e dos procedimentos aqui adotados são apresentados posteriormente. Em seguida são fornecidos dados de
temperatura do ar colhidos em área rural e urbana e é efetuada uma análise das influências térmicas urbanas.

2. Contexto Urbano de São Carlos

Situada em um bacia hidrográfica de declividade acentuada (Bacia do Rio Monjolinho), que, segundo Aguiar
(1989:28), alcança algumas vezes taxas de declividade superiores a 15%, a área urbana de São Carlos ocupa uma
região com relevo de conformação convexa. Em termos regionais, São Carlos é a cidade de maior altitude, 854 m em
média, o que a coloca em posição destacada em relação às cidades vizinhas. Suas coordenadas geográficas básicas
são: 22o01’S de latitude e 47o54’O de longitude.
Seu acesso viário conta com rodovias de ligação interurbanas como Washington Luiz (SP-310), Ribeirão Preto-
São Carlos (SP-318), Ribeirão Bonito-Descalvado (SP-215), duas das quais se configuram como elementos limítrofes
da mancha urbana, de aproximadamente 33 km2 (levantamento efetuado pelo Departamento de Transportes da EESC-
USP), e com uma pista de pouso em terra para aviões de pequeno porte (Aeroporto Salgado Filho).
É uma cidade de porte médio, segundo a classificação de Silva (1990:58), pois a população local está entre 100
e 500 mil habitantes, com população aproximada de 158.139 habitantes em 1991, incluindo-se zona rural (FIBGE
1993:79).
Típica do interior paulista, a cidade de São Carlos apresenta características urbanas que, de acordo com Bortolucci
(1994:54), tem sua ocupação, inicialmente, resultante da penetração de bandeirantes e do posterior crescimento
econômico incrementado pela cafeicultura e pela implantação da ferrovia. Seu traçado urbano é inicialmente marcado
por um padrão ortogonal, sofrendo alterações neste padrão a partir de 1884 devido a estrada de ferro. Aguiar (1989:22)
aponta que, em 1914, com a implantação da linhas de bonde seu traçado passou a permitir ligações entre bairros mais
afastados. A estrada de ferro é um elemento que de certa forma controlou o desenvolvimento deste traçado até 1960,
quando então a mancha urbana já atingia áreas mais abrangentes e passou a sofrer influência mais acentuada da
topografia acidentada e da localização de rodovias.
Grande parte de sua malha urbana respeita um padrão ortogonal de traçado, principalmente, no seu centro urbano,
com quadras de forma quadrangular e corredores de vias direcionadas a N-S e E-W. Essa forma, possivelmente, como
argumentam Aguiar (1989:28) e Sé (1992:103), surgiu pela influência “do paralelismo dos córregos e dos patamares
(altos) topográficos”. Estas quadras se formam por um conjunto de lotes de forma alongada, retangular (cerca de 10m

47
de testada por 30m de comprimento) e se articulam por vias de larguras médias de 12m (incluindo passeios). Os lotes
têm sua taxa de ocupação bastante variável conforme o bairro, podendo, alguns, alcançar até 90%. Silva & Ferraz
(1991:61) indicam que 36,62% da área urbana tem uma ocupação de quadras, que varia de 70 a 100%.
Grande parte da atual população é resultante da atração promovida por pólos de educação e cultura (Universidade
de São Paulo e Universidade Federal de São Carlos) e pelo grande número de indústrias na região (Faber, Malhas
Fiandeira, Hero, etc).
Uma visão espacial atual da cidade revela, dentro de uma topografia acidentada, um eixo urbano de referência
geral, longitudinal, representado pela av. São Carlos, que promove a ligação no sentido N-S, cortando, praticamente,
toda a cidade e servindo de principal acesso viário intra-urbano. A partir deste eixo, articula-se toda a vida urbana, seu
núcleo comercial e bairros residenciais. Baseado em Silva & Ferraz (1991:61), 67% da área da cidade destina-se a fins
residenciais e/ou comerciais.
Por outro lado, o eixo ferroviário (grande responsável pelo crescimento econômico e populacional da região a
partir da cafeicultura, e elemento que marcou uma alteração no formato original do traçado urbano ortogonal) corta a
região Sul da cidade (Vila Prado) e representa, hoje, uma barreira física às ligações entre o centro urbano e a região
sudoeste da cidade.
De certa forma, a linha férrea confere a esta parte da cidade um aspecto de descontinuidade, restringindo o fluxo
de pedestres e veículos e promovendo, no traçado urbano, elementos morfológicos tais como viadutos.
Complementando esta configuração espacial geral urbana, o córrego do Gregório, o rio Tijuco Preto e o rio
Monjolinho determinam um anel, que circunda grande parte do atual cenário de verticalização, desenvolvendo-se, as
suas margens, uma importante circulação viária, que possibilita o acesso a diversos pontos da cidade.
Como eixos secundários da rede viária, a av. Carlos Botelho e a rua XV de novembro representam a ligação
principal entre a região leste e a oeste da cidade, com um forte potencial de verticalização e desenvolvimento comercial.
Essa tendência é, em grande parte, explicada pelo processo de tombamento de algumas edificações contidas no atual
núcleo de comércios e serviços, o que impede a sua verticalização. Enquanto, por um lado, esta decisão legal garante
alguns aspectos espaciais, ao menos neste núcleo, por outro lado acaba estimulando uma concentração de edificações
de vários pavimentos em outras partes da cidade, principalmente, naquela que se desenvolve ao longo dos eixos de
ligação leste-oeste.
Um outro aspecto morfológico, que se pode ressaltar é a rugosidade promovida pela diferença de altura das
edificações. Nota-se uma pequena concentração de elementos verticais a partir do eixo referencial viário (av. São
Carlos) e que vai se diluindo a medida que se aproxima das regiões mais baixas. Com algumas exceções (Jardim
Santa Mônica), os bairros residenciais se configuram por uma ocupação basicamente composta por casas térreas. Na
região de padrão vertical de ocupação, no entanto, a rugosidade é maior, existindo uma grande diferenciação entre as
alturas das edificações. No quadro atual, existem ainda, muitas construções de um pavimento implantadas em lotes
vizinhos a edifícios de vários pavimentos e muitos lotes vazios (cerca de 65% das quadras com taxas de ocupação
menores que 70 %).
Por fim, complementando as considerações morfológicas mais relevantes, se destacam as áreas verdes e
vegetação em geral. Elemento de importante determinação morfológica e ambiental urbana, as áreas verdes existentes
no núcleo urbano de São Carlos são representadas, basicamente, por um pequeno número de praças e acompanhadas
de uma distribuição irregular, em relação às áreas impermeáveis.

3. Considerações Climáticas para o Procedimento

Com localização geográfica já mencionada em tópico anterior, a cidade de São Carlos está localizada na região
sudeste do país, no Estado de São Paulo. Devido a esta localização, está sujeita a grande diversificação climática,

48
com temperaturas elevadas no verão, porém se beneficiando de ondas de refrigério. O seu comportamento climático
transitório entre os climas de baixa latitude e os de média latitude, determina uma estação chuvosa e outra seca (verão
e inverno, respectivamente).
A topografia e a falta de obstáculos naturais nos quadrantes nordeste e sudeste favorecem à ventilação na área
urbana de São Carlos. Apresenta ainda escassa precipitação de maio a setembro e, de dezembro a março, temperaturas
do ar elevadas, com alto índice pluviométrico.
Com base em algumas destas características climáticas da cidade e em Souza (1996:46-86), as diferenças
térmicas entre a área rural e urbana são aqui estudadas. Para este fim são coletados dados diários, durante 24 horas,
de temperaturas do ar. Temperaturas médias, máximas e mínimas, são extraídas, correspondendo a valores diários e
médias mensais. São assim comparados os valores obtidos na estação meteorológica implantada em área rural com
os valores obtidos no posto de aquisição de dados instalado em área urbana.
Os dois postos de coleta de dados contaram, cada um, com um termohigrógrafo para registros contínuos das
temperaturas, no período de maio/94 a março/95. Este procedimento permite avaliar, para cada estação do ano, a
influência da área urbana de São Carlos sobre a temperatura. Destaca-se, no entanto, que esta metodologia visa
apenas constatar a existência da ilha de calor e não sua configuração ou extensão.

4. Indícios da ilha de calor em São Carlos

Os dados colhidos durante o período de observação foram tratados e suas médias diárias são expostas na Tabela 1.

5. Análise dos Resultados

Em função dos resultados obtidos, é feita uma análise para as temperaturas máximas, mínimas e médias, além
das amplitudes térmicas apresentadas pelas áreas urbana e rural.

5.1 Temperaturas Máximas

Para as temperaturas máximas, as médias mensais revelam haver um comportamento padrão para todo o ano,
indicando que a área urbana apresenta temperaturas máximas menores do que a área rural. As diferenças encontradas
entre os dados médios mensais variam de 0,4 a 2,3oC a mais para as temperaturas rurais, sendo agosto e setembro
os meses de menores diferenças e fevereiro o mês que apresentou maior diferença entre as médias das máximas. A
diferença média anual é de 1,5oC com desvio padrão de 0,7oC, indicando haver uma grande variação das diferenças
em relação a média.
O valor mais freqüente de temperaturas máximas na área urbana foi de 27,8oC e na área rural de 28,7oC. Quanto
às diferenças de temperaturas máximas entre a área urbana e a rural, o valor mais freqüente foi de 1,8oC a menos para
a área urbana.
Tomando-se os dados diários, a temperatura máxima confirma a tendência das diferenças encontradas, com
ressalva para os meses de agosto e setembro, para os quais ocorre o maior número de dias com temperaturas rurais
máximas mais baixas do que as urbanas (podendo significar uma atipicidade).
Os dados das temperaturas máximas revelam o menor acesso solar ocorrido na área urbana, podendo estar
relacionado não só ao número de edificações como também à emissão de poluentes, que resulta em maior turbidez
da atmosfera urbana.
As temperaturas máximas apresentaram uma relação uniforme, possibilitando o desenvolvimento de um modelo,
com um alto coeficiente de correlação, boa distribuição dos resíduos e histograma, que se aproxima de uma curva

49
normal.
Para um nível de confiança de 95 %, a equação resultante é: , com um coeficiente de determinação r2=0,91, onde
y é o valor da temperatura máxima ocorrida na área urbana e x é o valor da temperatura máxima ocorrida na área
rural.
A grande correlação entre as temperaturas máximas pode indicar que a influência da área urbana tende a ser
menor para os horários de grande insolação do que para os horários noturnos, uma vez que não é necessária a
inserção de nenhuma outra variável no modelo.

5.2 Temperaturas Mínimas

A análise ressalta a existência de praticamente 2 fases de comportamento de temperaturas mínimas: a primeira


fase, que se estende de maio/94 a setembro/94, e uma segunda fase, que se estende de outubro/94 a abril/95.
A primeira fase apresenta-se com maiores diferenças entre as temperaturas mínimas, onde a área urbana tem
suas médias mensais de 3,2 a 5,2oC mais altas do que as da área rural, resultando numa diferença média de 4,2oC
com o desvio padrão de 0,8oC. Para o mês de julho, que apresentou condições climáticas típicas do regime de inverno
(estação seca e fria), foram registradas as maiores diferenças entre as médias das mínimas. Os dias de maiores
diferenças corresponderam ao dia 15 de julho, 14 de agosto e 31 de agosto, com valores diferenciais de 8,8; 10 e 10oC,
respectivamente.
A segunda fase é representada por menores diferenças de temperatura, variando em média de 0,4oC a 2,7oC a
mais para as médias das temperaturas mínimas urbanas, com uma média das diferenças de 1,7oC e desvio padrão de
0,8oC. A grandeza do desvio padrão representa uma grande variação de temperatura, quando comparada às médias
das diferenças encontradas.
O mês de janeiro, que esteve sob condições típicas do regime de verão (estação quente e úmida) está associado
ao menor intervalo das médias das temperaturas mínimas. O mês de janeiro caracterizou-se como o de maior ocorrência
de temperaturas mínimas diárias urbanas mais baixas do que as rurais.
O intervalo de variação entre a temperatura mínima urbana e a rural mais freqüente foi de 3oC, sendo a moda das
temperaturas mínimas urbanas 19oC e a moda das temperaturas mínimas rurais 16,5oC.
De um modo geral, as maiores diferenças encontradas entre a área rural e a urbana se referem às temperaturas
mínimas, sendo as médias das mínimas registradas na área urbana sempre maiores do que aquelas da área rural.
A grande variação da relação entre as temperaturas mínimas urbanas e as rurais dificulta a sua modelagem, pois
seu comportamento irregular resulta em um baixo coeficiente de determinação entre as duas.
A ocorrência de maior temperatura mínima na cidade representa a formação de uma ilha de calor, e pode indicar
a menor capacidade de emissão de ondas longas para o espaço, uma vez que as mínimas ocorrem nos horários em
que este é o processo de transferência de calor predominante.
Além disso, este resultado demonstra que, para a modelagem das temperaturas mínimas urbanas, seria necessário
considerar outras variáveis que fazem com que a temperatura urbana se diferencie da área rural.
Apesar da baixa correlação encontrada, é possível constatar, através dos dados, o maior desenvolvimento da ilha
de calor no período de inverno. Para os meses de verão e os meses de transição entre inverno e verão ou vice-versa,
a ilha é mais fraca. É portanto observada a maior formação da ilha para meses de céu claro e baixa umidade do ar.

5.3 Temperaturas Médias

Quanto às temperaturas médias do ar, suas médias mensais revelaram haver dois períodos distintos, em relação
ao seu comportamento: um período de maio/94 a set/94, para o qual as temperaturas urbanas são mais altas do que

50
as rurais, e o período de outubro/94 a abril/95, para o qual as temperaturas rurais são mais altas do que as urbanas.
O intervalo de variação para o período de maio a setembro é de 1,0 a 2,1oC a mais para a área urbana, com média
de 1,7oC e desvio padrão de 0,5oC, enquanto para o período de outubro a abril é de 0 a 1,9oC a mais para a rural, com
média de 0,8oC e desvio padrão de 0,7oC (desvio muito grande quando comparado à média). As maiores variações
correspondem aos meses de julho e agosto e as menores a novembro e março. A diferença média anual das médias é
de 0,3oC com desvio padrão de 1,4oC.
A diferença das médias mais freqüente no período analisado foi de 0,4 o C a menos para a área
urbana, enquanto a temperatura média mais freqüente na área rural foi de 23,6oC e na área urbana de 21,7oC.
Para as temperaturas médias, o mesmo tipo de análise estatística feita para as temperaturas máximas e mínimas
também indicou a dificuldade na sua modelagem, porém a análise visual dos dados permite verificar, mais uma vez,
o maior desenvolvimento da ilha, nos meses de inverno, para os quais as temperaturas médias urbanas são sempre
mais altas do que as rurais. Pela análise das temperaturas médias, fica definido o comportamento transitório do mês
de outubro, a partir do qual o acúmulo de calor na cidade, em comparação com a área rural, é menor. Assim, para os
meses de maior nebulosidade e umidade, a capacidade de perda de ondas longas das áreas urbana e rural tende a
se igualar.

5.4 Amplitude Térmica

Sendo a amplitude térmica a diferença entre a temperatura máxima e a temperatura mínima, os dados anuais
demonstram maior amplitude para os meses de junho, julho e agosto/94, que se justifica por serem meses da estação
seca, da mesma forma que o contrário é observado nos meses úmidos (ou seja, as amplitudes são menores).
Considerando as diferenças de amplitudes para os dois postos de coleta de dados, observa-se uma média para os
meses de inverno (junho, julho e agosto) de 5,4oC, com desvio padrão de 0,4oC, e para os meses de verão (dezembro,
janeiro e fevereiro) de 3,6oC, com desvio padrão de 0,3oC, sendo a amplitude do posto urbano mais baixa do que
aquela observada na área rural.
Em termos anuais, a amplitude média da área rural é de 14,6oC com desvio padrão de 2,4oC, enquanto a urbana é
de 10,4oC com desvio padrão de 1,9oC. A amplitude térmica mais freqüente na área urbana é 11oC e para a área rural
é 18oC. A moda relativa às diferenças de amplitude é de 2oC a mais para a área rural.
Quanto a amplitude térmica alcançada, fica evidente, a capacidade da área rural apresentar uma diferença entre
as temperaturas máximas e as mínimas maior do que a área urbana. Para todos os meses esta tendência se confirma,
do mesmo modo que para os dados diários, se excetuando poucos dias do ano.

6. Conclusões

Apesar de São Carlos ser uma cidade de médio porte, as influências das ações antrópicas sobre o meio se
manisfestam de forma significativa, evidenciando a importância dos estudos voltados para a busca de uma
instrumentação, que permita maior controle dos espaços, que são gerados na cidade.
A conformação convexa de seu relevo e a altitude mais elevada do que as cidades circunvizinhas, embora
favoreçam às trocas térmicas e eliminação de calor, não são suficientes para impedir a manifestação do fenômeno da
ilha de calor.
A influência da área urbana sobre as características térmicas mostrou-se mais significativa para o período noturno
(do pôr-do sol ao sol nascente), aspecto que pôde ser evidenciado quantitativamente pela modelagem matemática
estabelecida, através da correlação das temperaturas rurais e urbanas. O desenvolvimento de um modelo para o
comportamento das temperaturas máximas (temperatura que ocorre no período diurno) foi elaborado, apresentando

51
um alto coeficiente de correlação, mesmo sem a inclusão de variáveis respresentativas das relações espaciais urbanas.
No entanto, o mesmo não foi observado para as temperaturas médias e mínimas; nestes casos a simples correlação
entre as temperaturas urbanas e rurais mostrou-se insuficiente. Conclui-se, portanto, que um modelo para simulação
destas temperaturas deverá considerar variáveis do meio urbano.
Para o arquiteto é importante ressaltar que à cada intervenção na área urbana corresponde uma característica
térmica, que se reflete nas condições de conforto e na qualidade da cidade.

Bibliografia

AGUIAR, R.L. (1989). Mapeamento geotécnico da área de expansão urbana de São Carlos-SP. São Carlos. 2v.
Dissertação (Mestrado) - Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo.
BORTOLUCCI. M.A.P.C.S. (1994). Viagem à arquitetura do café na cidade de São Carlos. In: SEMINÁRIO DE HISTÓRIA
DA CIDADE E DO URBANISMO, 3, São Carlos, 1994. Caderno de Resumos. São Carlos, EESC-USP. p.54-55.
FIBGE - FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. (1993). Sinopse preliminar do
censo demográfico de 1991- Brasil. Rio de Janeiro, FIBGE.

* Professora Assistente - Doutora, Departamento de Arquitetura, FAAC, UNESP.

52
AVALIAÇÃO DO USO DAS TERRAS DA BACIA DO RIBEIRÃO ANHUMAS (SP)
ATRAVÉS DE TÉCNICAS DE GEOPROCESSAMENTO
Natalio Felipe Koffler*
Emília Falcão Pires*
Isabella B. Muniz Barbosa**
Rosaly Tereza S. Palanca***

1. Introdução

A ideologia do planejamento tal como foi difundida no País nas últimas décadas, objetivou apenas o reforço dos
interesses do poder político e financeiro, desvalorizando os centros de elaboração do conhecimento.
O incessante aumento da demanda humana de bens e serviços, aliado ao crescimento populacional, gerou forte
pressão sobre os recursos naturais, provocando o uso indevido da terra e o desequilíbrio de muitos sistemas ecológicos.
Como conseqüência alguns ecossistemas foram praticamente eliminados, sem que o homem relacionasse tais atos
com a sua própria manutenção na Terra.
Segundo Oliveira (1981) as bacias hidrográficas constituem unidades naturais com características singulares e
próprias, bastante adequadas para avaliar os efeitos ambientais do uso da terra e compor um trabalho de planejamento
regional e ambiental integrado.
As atividades humanas nas bacias hidrográficas, como urbanização, exploração madeireira, construção de
estradas, agricultura, mineração e industrialização, tendem a alterar ou destruir o equilibro existente entre os diversos
elementos que as compõem.
Tem-se verificado que a deterioração física, sócio-econômica e ambiental é hoje uma realidade constante em
diversas bacias hidrográficas do Brasil. Como conseqüência, a natureza responde com alterações climáticas, enchentes,
processos erosivos acelerados, desmoronamento de encostas, assoreamento de rios, etc.
Em vista disso, o redirecionamento das atividades referentes ao trabalho produtivo e ao uso da terra deve ser
conduzido sob uma nova abordagem ambiental para uma melhor produtividade e conservação da natureza, implicando
que a mesma seja considerada como um todo orgânico, do qual o homem faz parte.
O inventário e diagnóstico do recurso solo é parte integrante do trabalho de planificação de uma bacia hidrográfica.
Ocorre uma série de relações com estudos de outros recursos, sendo o solo uma importante fonte de dados para
diagnosticar e avaliar distorções existentes, quer seja pelo conflito de usos ou pela erosão que transporta sedimentos
e produtos químicos para os cursos d’água, quer pela utilização através de atividades agropecuárias acima da sua
capacidade produtiva natural.
O objetivo do presente trabalho foi estabelecer um quadro ideal do uso do solo através de uma classificação
interpretativa das terras abrangidas pela bacia hidrográfica do ribeirão Anhumas e diagnosticar as possíveis distorções
existentes. Procurou-se direcionar a distribuição espacial das terras propícias à agricultura, pastagens e silvicultura, de
acordo com as condições ambientais disponíveis, principalmente as referentes aos fatores solo e topografia
O diagnóstico consistiu basicamente no cruzamento, através de técnicas de geoprocessamento, de informações
oriundas de levantamentos de solos, de uso atual da terra e de cartas topográficas. O confronto entre a proposta de uso

53
racional da terra gerada pelo presente trabalho e o uso que realmente vem sendo conduzido possibilitaram identificar
as áreas adequadamente utilizadas, bem como áreas sub-utilizadas e as usadas além da sua capacidade natural.
A proposta de uso racional visou fornecer diretrizes na área física para o melhor aproveitamento do potencial
agrícola da região, induzindo o uso de técnicas de planejamento voltadas ao uso dos recursos naturais de forma
produtiva e a longo prazo. Os resultados deste trabalho poderão servir para avaliar e sugerir estudos para novos usos
dentro do planejamento da região, tais como localização de parques e núcleos urbanos, estradas, etc.

2. Características Gerais da Área

O ribeirão Anhumas é afluente da margem esquerda do ribeirão dos Patos, componente da bacia do Rio Tietê,
constituindo com seus tributários uma bacia hidrográfica posicionada no reverso da cuesta paulista. A topografia
dominante é do tipo colinosa, com resquícios da vegetação original de floresta tropical semi-decídua, ocorrendo
manchas de cerrado. Situa-se entre os paralelos 22o25’ e 22o28’ Sul e os meridianos 48o51’ e 48o44’ WG, ocupando
uma área de 5.250 ha, na porção Sudeste do município de Pederneiras-SP, distrito de Vanglória.

2.1 Geomorfologia e Geologia

A bacia do Anhumas está inserida no Planalto Ocidental Paulista, constituído de planaltos em patamares,
predominando declividades entre 2 e 5% relacionadas a um relevo suave ondulado de colinas amplas. Está incluída na
Bacia do Paraná com unidades estratigráficas do cenozóico e mesozóico. Os depósitos holocênicos aparecem expostos
nas áreas mais baixas do ribeirão Anhumas, representados por aluviões constituídos de areias e argilas (IPT, 1981).

2.2 Clima

De acordo com o Plano Regional de Bauru (São Paulo, 1981), a porção central do Estado de São Paulo onde
se encontra a bacia, está localizada na faixa tropical, a maior parte da região apresentando, segundo a classificação
de Koppen, clima mesotérmico (Cwa) de inverno seco e verão chuvoso, também chamado “clima tropical de altitude”.
É uma modalidade paulista de clima tropical úmido moderado de altitude, constituindo ambiente peculiar às porções
Nordeste, Centro-oeste e extremo Oeste do Estado.
A temperatura média anual é de 21oC e a mínima média de 14,5oC. As temperaturas mais altas ocorrem no
período de dezembro a março, com valores médios superiores a 22oC, e as mais baixas no bimestre junho-julho com
17oC de temperatura média. A precipitação pluviométrica no período de 1962-1971 apresentou uma média anual de
1.149mm com período chuvoso de outubro a março e período mais seco entre abril e setembro, quando a precipitação
média não atingiu 60mm mensais. A umidade relativa do ar foi de 65,5%, e os ventos dominantes sopraram de E-SE
(Fundação Educacional de Bauru, 1974).
O balanço hídrico feito para Bauru segundo o método de Thornthwaite & Mather, 1955, mostrou que a
evapotranspiração real (ER = 846 mm) é muito próxima da potencial (EP = 962 mm), resultando num déficit de 116 mm.
Os déficits concentram-se no período de abril a setembro, sendo mais significativos no trimestre julho-agosto-setembro.
Entretanto, de outubro a março, durante 6 meses, ocorrem precipitações que são suficientes para o desenvolvimento
de grande parte das culturas agrícolas, sejam de ciclo curto ou longo, forrageiras ou florestais, se considerado apenas
o critério climatológico.

54
2.3 Solos

Os solos da bacia do ribeirão Anhumas encontram-se mapeados ao nível de semi-detalhe (escala 1:100.000) no
levantamento realizado por Almeida et al. (1982), tendo sido identificados na área os seguintes grupamentos: Latossolo
Vermelho Escuro (Unidades Dois Córregos, Hortolândia e Limeira), Latossolo Roxo (Unidade Barão Geraldo), Latossolo
Vermelho Amarelo (Unidade Coqueiro), Terra Roxa Estruturada (Unidade Itaguaçu), Brunizem (Unidade Engenho) e
Gley ou Hidromórfico.
Observa-se uma maior ocorrência dos latossolos em toda região da bacia, principalmente no alto e médio curso
do ribeirão Anhumas, na porção Oeste, constituindo cerca de 90,3%, seguidos pela Terra Roxa (5,8%), Brunizem (3%)
e Gley (0,8%) que estão localizados no baixo curso do rio, na parte Leste.

2.4 Vegetação e Uso da Terra

A bacia do Anhumas era originalmente coberta pela floresta do tipo latifoliada tropical semi-decídua com manchas
de cerrado, ocorrendo atualmente apenas alguns remanescentes. Esta floresta caracteriza-se pela presença de
indivíduos arbóreos que não ultrapassam 20 a 25m de altura e 50cm de diâmetro. Outra característica marcante é a
perda de folhas no período do inverno. Ela está relacionada aos solos profundos de textura argilosa, menos pobres em
nutrientes, como os latossolos Barão Geraldo e Limeira e a Terra Roxa Estruturada.
Segundo levantamento realizado no presente trabalho através de uma imagem TM do satélite LANDSAT-5,
passagem de 1992, nas terras da bacia predominava a cultura de cana-de-açúcar (88%), seguida pelo reflorestamento
(5,7%), pastagem (4,5%), mata (1,4%) e cerrado (0,4%).

3. Material e Método

3.1 Instrumentos

A base de dados geográficos constituída pelas Cartas de Solos, Declividade e Uso da Terra foi elaborada no
sistema raster, ou seja, a área da bacia foi subdividida segundo uma malha de células correspondentes a 250m x
250m no terreno, cujos dados foram introduzidos num computador AT486DX, 50Mhz, RAM de 8Mb, tendo-se como
instrumento de análise o software SAMPA 2.0 - Sistema de Análise Ambiental para Planejamento Agrícola produzido
por Koffler et al. (1995). As informações foram organizadas usando-se os seguintes processos:

1. A Carta de Declividade foi elaborada por meio do método de amostragem sistemática de células, descrito por
Koffler (1994), sobrepondo-se a base cartográfica quadriculada de 5mm x 5mm, em papel poliéster, diretamente sobre
a carta topográfica em sistema convencional, escala 1:50.000, produzida pelo IBGE (1973).

2. A Carta de Solos foi extraída do levantamento semi-detalhado elaborado por Almeida et al. (1982) na escala
1:100.000, ampliada para a escala de 1:50.000 e transferida para a planilha matricial padrão.

3. A Carta de Uso da Terra foi produzida através da interpretação das imagens Thematic Mapper do satélite
LANDSAT-5, órbita WRS 221/075 D, passagem de 21/09/92, composição colorida (bandas 3B, 4G, 5R) e preto e

55
brancas (bandas 3 e 4), processadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE, na escala 1:100.000. A
metodologia de interpretação seguiu, em linhas gerais, o esquema descrito por Koffler (1990).

4. As informações climáticas fornecidas pela Estação Meteorológica do Instituto de Pesquisas Meteorológicas da


Universidade Estadual Paulista - Campus de Bauru, analisadas por meio do balanço hídrico de Thorntwaite & Mather,
1955, foram usadas como critérios para avaliação das condições climáticas para os 4 grupos de uso agrícola das terras
utilizados pelo programa SAMPA (ciclo curto, ciclo longo, pastagem e silvicultura).

5. As características físicas e químicas dos solos foram obtidas de Oliveira e Prado (1984), e organizadas segundo
uma planilha padrão do SAMPA.

6. Os dados organizados nas planilhas referentes aos solos, declividades e uso da terra foram introduzidas no
programa, através do teclado, sendo o cruzamento dos mapas e a análise das características químicas e físicas dos
solos realizados automaticamente. Os resultados foram fornecidos nas formas de mapas digitais (aptidão agrícola,
grupos de aptidão, uso preferencial e intensidade de uso) e tabelas de freqüência.

3.2 Condições Edafo-Climáticas

Quando se analisa o potencial do meio físico de uma região para o estabelecimento de atividades agropecuárias
é necessário considerar conjuntamente os elementos do clima e do solo face às exigências ambientais das culturas a
serem implantadas.
A pequena extensão da bacia do Anhumas aliada à insuficiente distribuição de postos meteorológicos, não
justificaram a utilização do clima como critério de compartimentação geográfica.
Por outro lado, as informações climáticas coletadas no posto meteorológico existente mostraram que não existem
limitações sérias para o desenvolvimento de atividades agropecuárias na região pelo menos para determinadas
espécies ou variedades enquadradas nas categorias genéricas avaliadas: culturas de ciclo curto, culturas de ciclo
longo, pastagem e silvicultura.
Ao contrário do clima, os solos da bacia são bastantes variados propiciando um zoneamento baseado em critérios
edáficos.

3.3 Fundamentos do SAMPA 2.0

O software SAMPA versão 2.0, é um sistema raster de análise espacial de componentes ambientais que executa
automaticamente os diferentes procedimentos que envolvem a avaliação de terras para a utilização agrícola.
É alimentado através do teclado com informações sobre os solos e suas características físicas e químicas, além
das classes de declividade presentes na área. Com essas informações, mais os dados fornecidos sobre o uso atual
das terras, classifica as distorções que possam estar presentes nesse uso.
Fundamenta-se para um nível de manejo médio que se caracteriza pela aplicação média de capital e de resultados
de pesquisas, sendo previsto o uso de corretivos e fertilizantes. Quanto ao clima, é aplicável a áreas com condições
favoráveis para culturas de ciclo curto, longo, pastagem e silvicultura.
A análise de dados é feita iniciando-se pela determinação das limitações agrícolas dos solos, como disponibilidade

56
de nutrientes, toxidês de alumínio, salinidade, profundidade efetiva, disponibilidade de água, drenagem interna,
suscetibilidade à erosão e mecanização das operações agrícolas. Em seguida compara essas limitações às exigências
culturais dos quatro grandes grupos de utilização da terra considerados.
Estabelece até 10 grupos de aptidão agrícola em que se enquadram os tipos de culturas adequados para cada
combinação solo x classe de declividade da área em estudo. Estabelece também o uso preferencial, dando prioridade
para culturas de ciclo curto nas áreas boas ou regulares para esse uso, seguindo-se as culturas de ciclo longo, pastagem
e silvicultura, nesta ordem. Produz os resultados da análise nas formas de mapas digitais e tabelas, estendendo esta
organização aos dados de entrada.
Gera mapas com estrutura integer/ASCII, arquivos .img e .doc, compatíveis com o programa IDRISI, o que amplia
significativamente os horizontes da análise espacial dos dados. Esses arquivos são armazenados automaticamente no
diretório PROJETOS, criado durante a instalação do programa.

4. Resultados

4.1 Aptidão Agrícola das Terras

Os resultados da avaliação da aptidão agrícola das terras executada pelo programa SAMPA, para todas as
combinações de solo x declividade existentes, mostraram que 20,3% da área da bacia é favorável (boa + regular) ao
desenvolvimento de culturas de ciclo curto, 95,2% ao desenvolvimento de culturas de ciclo longo, 100% são propícias à
pastagem e 99,1% à silvicultura. Constatou-se que ocorrem aptidões múltiplas em toda a área, indicando a possibilidade
de combinação de vários tipos de utilização.

4.2 Uso Preferencial das Terras

A Figura 1 mostra a distribuição do uso preferencial das terras da bacia do Anhumas e propõe um quadro
idealizado para o máximo aproveitamento da área agrícola, atendendo às qualidades e limitações das terras.

A principal vocação das terras é para culturas de ciclo longo, como cana ou citricultura, apresentando cerca de
3.970ha disponíveis para esse fim, ou seja 75,6% da sua área total. Em segundo lugar estão as culturas de ciclo
curto, como preferenciais, dispondo de 1.060ha para esse cultivo, cerca de 20% da área, seguida pelas áreas onde as
pastagens seriam a melhor opção, com apenas 220ha (4,2%).
As maiores áreas disponíveis para culturas de ciclo longo encontram-se no alto e baixo curso, concentrando-se no
Oeste da bacia, enquanto as culturas de ciclo curto são mais indicadas para o médio e baixo curso, no centro e Leste
da bacia. As pastagens seriam o uso preferencial em pequenas áreas distribuídas na bacia, margeando os afluentes
do Anhumas.

4.3 Análise Comparativa: Uso Preferencial x Uso Real

O cruzamento dos mapas de uso preferencial proposto pelo programa SAMPA e de uso real elaborado a partir
das imagens do satélite LANDSAT, mostrou que mais de 2/3 das terras da bacia estão sendo usados adequadamente,
havendo 1.570ha (29,9%) sub-utilizados e apenas 140ha (2,7%) com uso acima do potencial.
O uso adequado das terras ocorre predominantemente no alto curso, ou seja no Oeste da bacia. A sub-utilização

57
é observada a Noroeste, no médio e baixo curso. O uso excessivo encontra-se distribuído por pequenas áreas no
Noroeste e Centro da bacia.
A Tabela 1 mostra e quantifica os tipos de ocupação que ocorrem dentro das áreas de cada uso preferencial,
observando-se que os 1.060ha recomendados para culturas de ciclo curto estão sendo usados grande parte (1.000ha)
com cultura de ciclo longo (cana-de-açúcar) e parte com pastagem (50ha) e vegetação natural (10ha), constituindo-
se em sub-utilização da terra. A maior parte dos 3.970ha recomendados para culturas de ciclo longo estão sendo
adequadamente utilizados com o plantio de cana, havendo 130ha com pastagem, 290ha com silvicultura e 80ha com
vegetação natural. Grande parte da área recomendada para pastagem, perfazendo um total de 140ha está sendo
usada para ciclo longo (cana-de-açúcar) o que representa uso excessivo do solo, sendo 60ha usados adequadamente
e 10ha sub-utilizados com silvicultura.

Tabela1: Matriz de comparação entre o uso preferencial e o uso real em 1992.

5. Conclusões e Recomendações

A bacia do ribeirão Anhumas apresenta grande parte de sua área com condições favoráveis para utilização
agrícola. Predominam as terras com aptidão regular para culturas de ciclo longo, pastagem e silvicultura e restrita a
inapta para culturas de ciclo curto em cerca de 75% da área.
Grande parte das terras da bacia (67,4%) está sendo usada adequadamente atendendo favoravelmente tanto
as exigências sócio-econômicas como as limitações ambientais. A sub-utilização ocorre em quase 30% da área e,
apenas, 2,7% estão sendo utilizados além da capacidade natural.
Considerando que as áreas propícias para culturas de ciclo curto, que concentram a produção de alimentos para
a população, são as mais exigentes com relação às condições naturais, sua utilização atual deveria atender melhor ao
uso preferencial proposto, principalmente porque este apresenta-se limitado para essas culturas em termos espaciais.
Assim como a área usada com silvicultura poderia estar sendo melhor aproveitada com culturas de ciclo longo, como
cana-de-açúcar, de alta demanda pelas agro-indústrias da região.
Com relação ao uso excessivo, áreas que deveriam estar ocupadas, quando muito, com pastagens, encontram-se
com cana, o que pode estar acelerando processos de degradação do solo e/ou elevando demasiadamente os custos
de produção.
Observa-se que a maior parte da área utilizada com a cultura da cana-de-açúcar atende às condições que a
favorecem, embora aqui ocorram as maiores distorções com relação às culturas de ciclo curto, que foram totalmente
excluídas da região.
As áreas remanescentes de mata natural e cerrado, por serem muito limitadas, deveriam ser preservadas, podendo
servir como exemplos da vegetação nativa para eventual processo de recuperação.

6. Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Célio Luiz F. et al.. Levantamento pedológico semi-detalhado do Estado de São Paulo; Quadrícula de Jaú:
Escala 1:100.000. Campinas: Instituto Agronômico, 1982.
FUNDAÇÃO EDUCACIONAL DE BAURU. Um estudo do clima de Bauru, São Paulo. Bauru: Instituto de Pesquisas
Meteorológicas, 1974.

58
IBGE. Carta topográfica de Agudos: Escala 1:50.000. Rio de Janeiro: Superintendência de Cartografia, 1973.
IPT. Mapa geomorfológico do Estado de São Paulo: Escala 1:1.000.000. 2 volumes. São Paulo: Instituto de Pesquisas
Tecnológicas, 1981.
KOFFLER, Natalio F.. Uso das terras da bacia do Corumbataí-SP em 1990. Geografia, Rio Claro, 18(1):135-150,
1993.
__________ Carta de declividade da bacia do rio Corumbataí para análise digital (SIG). Geografia, Rio Claro, 19(2):167-
182, 1994.
__________ et al.. SAMPA: Sistema de análise ambiental para planejamento agrícola: Versão 2.0. Rio Claro: UNESP/
IGCE, 1995. (Manual do usuário).
OLIVEIRA, Francisco. Elegia para uma re(li)gião, SUDENE, Nordeste, planejamento e conflitos de classe. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1981.
OLIVEIRA, João Bertoldo e PRADO, Hélio. Levantamento pedológico semi-detalhado do Estado de São Paulo:
Quadrícula de São Carlos. II. Memorial Descritivo. Campinas: Instituto Agronômico, 1984.
SÃO PAULO. Governo do Estado. Plano regional de Bauru. São Paulo: Secretaria do Interior, 1981.

*Professores, Departamento de Arquitetura, FAAC, UNESP.


** FAAC, UNESP.
*** Fundação Educacional Dr. Raul Bauab, Jaú/SP

59
Aos colaboradores:

Cadernos de Arquitetura aceitará trabalhos inéditos que tratem de assuntos relativos à Arte, Arqui­tetura, Urbanismo e
ao Paisagismo;
Os artigos deverão ser enviados em disquetes de 3/2, digitados em WinWord 6.0 ou superior e acompanhados de duas
cópias impressas;
O texto não poderá exceder 15 laudas digitadas , tamanho ofício, com 25 a 30 linhas de 60 a 70 toques, em espaço 2;
Deverá ser apresentado com resumo de no máximo meia lauda e palavras-chave em Português e Inglês;
A bibliografia, bem como referências no texto, deverão as normas da ABNT;
Os originais serão submetidos ao Conselho Editorial, que reserva o direito de publicá-los ou não;
Os originais não publicados serão devolvidos aos autores;

Endereço para envio:

Cadernos de Arquitetura
Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo
FAAC/ Unesp
Av.Eng.Luis Edmundo C. Coube, s/n
Vargem Limpa
17033-360 - Bauru - SP

60

S-ar putea să vă placă și