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Michael Ayers

LOCKE

IDÉIAS E COISAS

Tradução - José Oscar de Almeida Marques

Copyright 1997 by Michael Ayers - Título original em inglês: Locke. Ideas


and Things, publicado em 1997 pela Phoenix, uma divisão da Orion
Publishing Group Ltda.
Copyright 1999 da tradução brasileira: Fundação Editora da UNESP (FEU)
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara


Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ayers, Michael, 1935-


Locke: idéias e coisas / Michael Ayers; tradução de José Oscar de Almeida
Marques. - São Paulo: Editora UNESP, 2000. - (Coleção grandes filósofos)

Título original: Locke. ISBN 85-7139-272-2

1. Empirismo 2. Filosofia inglesa 3. Locke, John, 1632-1704 I. Título.


II. Série.

Índice para catálogo sistemático: 1. Locke: Filosofia inglesa 192

SUMÁRIO

Introdução 9
Idéias e coisas 13
Qualidades primárias e secundárias, poderes e conhecimento sensível 17
Qualidades primárias e "a nova filosofia" 29
Substância, acidente e dúvidas sobre a essência 35
Mente e matéria 43
Espécies 49

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INTRODUÇÃO

John Locke viveu de 1632 até 1704, um período de desordens e


transformações políticas e intelectuais na Europa, e mais ainda na
Inglaterra. Locke esteve no coração
disso tudo desde que deixou Oxford, com trinta e poucos anos, para ligar-
se à casa do primeiro conde de Shaftesbury, fundador do partido Whig.
Tornou-se amigo de
cientistas de destaque, entre eles "o pai da química" Robert Boyle, o
eminente médico Thomas Sydenham, e o maior deles todos, Isaac Newton.
Locke colaborou, em particular,
com Sydenham, e praticou ele próprio a medicina. Exerceu brevemente um
cargo governamental quando Shaftesbury esteve no poder sob Carlos II, mas
mais tarde escreveu
e, muito provavelmente, conspirou contra Carlos e seu irmão James II.
Viajou para a França na década de 1670, entrando em contato com
cientistas e filósofos. Em
1683, após a conspiração para assassinar Carlos e James, Locke exilou-se
na Holanda, completando ali três grandes trabalhos que ainda fazem parte
do cânon. A Carta
sobre a tolerância e os Dois tratados sobre o governo versaram sobre os
dois grandes temas políticos da época - a tolerância religiosa e o
governo constitucional.
Seu mais importante trabalho, contudo, Um ensaio sobre o entendimento
humano, tratava de filosofia geral. Voltando à Inglaterra com a deposição
de James, Locke continuou
a escrever extensamente sobre filosofia e religião até sua morte, mas
esses interesses não absorveram

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todas as suas consideráveis energias. Foi conselheiro econômico do


governo e ocupou o importante posto de Secretário da Câmara de Comércio e
Colônias de 1696 a 1700.
Em metafísica e epistemologia, Locke lutou em duas frentes principais. O
aristotelismo escolástico, ainda que intelectualmente bastante desgastado
nas últimas décadas
do século XVII, ainda gozava de voz e influência, e o Ensaio proveu uma
teoria alternativa detalhada - de fato um texto universitário
alternativo. Mais importante,
junto com os Principia de Newton os argumentos do Ensaio decidiram
efetivamente a questão na batalha entre "deuses" e "gigantes". Esses
adversários, hoje conhecidos
como "racionalistas" e "empiristas", eram, de um lado, os proponentes da
nova abordagem mecanicista à física, principalmente os cartesianos, que
adotavam uma epistemologia
em boa parte neoplatônica, concebendo o conhecimento em termos de um
acordo entre idéias humanas e divinas; e, de outro, os que adaptaram a
nova física a uma teoria
do conhecimento menos teológica e mais sensorial e naturalística, e foram
influenciados especialmente pelo epicurista Pierre Gassendi. Durante os
primeiros vinte
ou trinta anos do século XVIII, o Ensaio e os Principia gradualmente
obscureceram seus rivais Cartesianos, e foi em sua sombra que o novo
grande movimento filosófico,
o idealismo, gradualmente adquiriu sua forma e vigor.
Talvez nenhum filósofo moderno, com a exceção de Kant, tenha tido uma
influência tão ampla quanto Locke, e o próprio Kant teve um profundo
débito com seu célebre
predecessor. Contudo, Locke não tem tido uma boa recepção no século XX, e
a importância histórica de sua filosofia pode surpreender alguém que dá
os primeiros mergulhos
no Ensaio e julga, talvez, que seu estilo divagante, repetitivo,
figurativo e contencioso, sua retórica e sua rude ironia são indignos de
um intelecto filosófico
de aclamado vigor. Mesmo os filósofos acadêmicos, ao que parece, tiveram
dificuldade em penetrar além da imprecisão superficial do texto de Locke
e chegar às teses
musculosas e radicais ali propostas. Mas Locke escreveu para sua

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época e para um público que ele compreendia. Embora possamos lamentá-lo,


é pouco apropriado criticar o estilo desse inusitado empreendimento, um
influente best-seller
em metafísica que permaneceu por mais de um século nessa posição. O
Ensaio pode ser, hoje, um livro difícil de ler, mas sua reputação está
sendo reavivada. Filósofos
estão começando a reaprender como ele foi capaz de mudar o rumo do
pensamento europeu, e a encontrar nesse livro, por datado e problemático
que seja, lições que
são ainda pertinentes para nós.
Saber se um realismo lockeano não-dogmático, talvez revisto e corrigido,
é ou não preferível a alguma espécie de idealismo kantiano, talvez
modificado e atualizado,
permanece uma questão filosófica atual - talvez a questão metafísica
central de nosso tempo. Este pequeno livro, entretanto, tentará apenas
expor e explicar alguns
elementos do extenso argumento de Locke contra os filósofos dogmáticos da
ciência, englobando sua concepção da relação entre experiência e teoria.
O material discutido
foi selecionado de uma filosofia ramificada, sistemática e de largo
alcance, uma filosofia que ajudou a determinar o que conta como filosofia
na moderna cultura
européia.

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IDÉIAS E COISAS

Um conceito-chave da filosofia de Locke, bem como de muito da filosofia


de seu tempo, é o de uma "idéia". Idéias são que a mente "se ocupa quando
está pensando".
Elas constituem o conteúdo do pensamento, um conteúdo exprimível de
diversas maneiras por substantivos, adjetivos e verbos, ou seja, palavras
que podem funcionar
como sujeitos ou predicados. Em um sentido, "idéias" são conceitos, ou
modos de conceber coisas, mas também são objetos de pensamento,
"conceitos" no sentido antiquado
de "coisas tal como concebidas", ou aspectos de coisas tais como
capturados no pensamento. A tese epistemológica primordial de Locke é que
os modos pelos quais concebemos
o mundo, incluindo nós próprios, são determinados pelos modos pelos quais
o experenciamos. Não há idéias inatas, e não há nenhuma apreensão inata
de como o mundo,
em última análise, é.
Suponhamos então que a mente seja, como dizemos, um papel branco
desprovido de todos os caracteres; sem quaisquer idéias. Como é que ela
chega a ser preenchida?
De onde provém esse vasto painel que a diligente e ilimitada imaginação
do homem pintou sobre ela, com uma variedade quase infinita? De onde
obtém ela todos os materiais
da razão e do conhecimento? A isso respondo em uma palavra: da
experiência, na qual todo nosso conhecimento está fundado e da qual em
última análise se deriva. Nossa
observação, empregada quer sobre objetos externos sensíveis, ou sobre as
operações internas de nossas mentes, percebidas e refletidas por nós
mesmos, é o que supre
nosso entendimento com todos os materiais do pensamento. Estas são as
duas fontes do conhecimento, das quais provêm todas as idéias que temos,
ou que podemos naturalmente
ter. (Um Ensaio sobre o entendimento humano, II.i.2)

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A proposta de Locke, aqui, está em direta oposição a um famoso argumento


de Descartes de que as diversas sensações causadas por um pedaço de cera
derretida requerem
interpretação pelo intelecto, empregando a idéia inata e não sensorial de
matéria, antes que possam constituir a experiência de um material
substancial e permanente
sofrendo mudança. Outra importante diferença em relação a Descartes está
na concepção de Locke de nossa consciência das "operações de nossas
mentes", que ele chama
"reflexão". Tradicionalmente, tanto na filosofia aristotélica como na
cartesiana, a consciência reflexiva que a mente tem de sua própria
atividade, consciência que
origina conceitos de diferentes tipos de pensamento, é uma função do
intelecto, não do sentido. De fato, para os cartesianos, é a
autoconsciência reflexiva que nos
permite obter um acesso explícito a idéias intelectuais inatas como as de
substância, duração, pensamento, e mesmo (pela reflexão sobre nossas
próprias imperfeições)
à idéia positiva de perfeição, ou Deus. Para Locke, em contraste,
"reflexão" é simplesmente uma parte da "experiência": "embora não seja
sentido, pois nada tem a
ver com objetos externos, é porém muito semelhante a ele e poderia de
forma bastante apropriada ser chamada sentido interno" (lI.i.4). Uma
importante implicação
é que o pensamento não é, como sustentou Descartes, transparente para si
mesmo. Assim como os sentidos nos dão apenas um conhecimento superficial
e grosseiro dos
objetos externos, do mesmo modo a "reflexão" nos torna conscientes de
nosso pensamento, mas não da natureza última do pensamento.
A tese de que todas as nossas idéias derivam em última análise da
experiência traduz-se na asserção de que toda idéia é ou diretamente dada
à experiência, ou construída
de algum modo a partir de idéias dadas. Daí a distinção de Locke entre
idéias simples e complexas. Sua explicação das idéias simples envolve,
porém, certas dificuldades:
1 ... Embora as qualidades que afetam nossos sentidos estejam tão unidas
e misturadas nas próprias coisas que não há nenhuma

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separação, nenhuma distância entre elas, é contudo evidente que as idéias


que elas produzem na mente ingressam pelos sentidos de forma simples e
não misturada. Pois
embora a visão e o tato muitas vezes adquiram diferentes idéias do mesmo
objeto no mesmo instante - como quando um homem vê simultaneamente
movimento e cor, a mão
sente maciez e calor no mesmo pedaço de cera - as idéias simples assim
unidas no mesmo objeto são, não obstante, tão perfeitamente distintas
quanto as introduzidas
por diferentes sentidos. O frio e a dureza que um homem sente em um
pedaço de gelo são, na mente, idéias tão distintas quanto o odor e a
brancura de um lírio, ou
o gosto do açúcar e o cheiro de uma rosa; e nada pode ser mais evidente
para um homem que as percepções claras e distintas que ele tem dessas
idéias simples; cada
uma nas quais, sendo em si mesma não-composta, não contém em si senão uma
única e uniforme aparência ou concepção na mente, e não é distinguível em
diferentes idéias.

2 ... Logo que o entendimento é equipado com essas idéias simples, ele
tem o poder de repeti-Ias, compará-las e uni-Ias em uma variedade quase
infinita de maneiras,
e assim pode produzir à vontade novas idéias complexas. (II.ii.1-2)

Para Locke um objeto parece possuir uma variedade de distintas qualidades


sensíveis, não porque as qualidades percebidas realmente constituam
entidades distintas
no objeto (no qual estão, ao contrário, "unidas e misturadas"), mas
simplesmente pó causa da variedade de maneiras pelas quais os objetos
atuam sobre nós através
dos sentidos. Qualidades são aspectos das coisas, distinguidas umas das
outras apenas pelas diferentes maneiras que temos de perceber coisas.
Alguém poderia objetar
que, por mais plausível que possa ser essa alegação com respeito à
distinção entre o cheiro de um lírio e sua brancura, ou mesmo entre a
dureza e o frio do gelo,
a distinção conceitual entre a forma de uma coisa e seu movimento, por
exemplo, ou entre sua forma e sua cor, não se deve a uma articulação
primitiva ou dada da
aparência sensorial. Uma mancha rosa não aparece como uma dualidade de
forma e cor, por mais natural que possa ser abstrair uma da

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outra. Há, então, desde sua primeira exposição, algo problemático na


concepção lockeana de idéias simples dadas. Ocasionalmente - por exemplo,
ao considerar a questão
de se as idéias de extensão são simples - o próprio Locke confessa, de
forma algo truculenta, que o modelo composicional simples-complexo
adapta-se a alguns casos
apenas aproximadamente: "É o bastante para o Sr. Locke que se possa
entender o que ele tem em mente. É muito comum observar discursos
inteligíveis arruinados por
excessiva complexidade ao refinar as divisões". (Quinta edição, II.xv.9,
nota de rodapé). O que Locke tem em mente, sem dúvida, é que quaisquer
idéias que tenham
sido elas mesmas dadas na experiência devem ser construídas por meio de
algum tipo de extrapolação a partir de idéias dadas na experiência, mesmo
que elas não sejam
diretamente compostas de tais idéias.

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QUALIDADES PRIMÁRIAS E SECUNDÁRIAS, PODERES E CONHECIMENTO SENSÍVEL.

Não é nem a forma precisa do construtivismo de Locke nem sua


sustentabilidade que examinarei aqui, mas sim os argumentos nos quais ele
desenvolve a noção de uma
diferença entre como algo é em si mesmo e como ordinariamente e
concebemos. As seções seguintes são preliminares à sua famosa distinção
entre qualidades primárias
e secundárias:

7 Para melhor revelar a natureza de nossas idéias e para discorrer


inteligivelmente sobre elas, será conveniente distingui-las conforme
sejam idéias ou percepções
em nossas mentes e conforme sejam modificações da matéria nos corpos que
causam em nós tais percepções; para que assim seja-nos possível não
pensar (como talvez
usualmente se faça) que elas sejam exatamente as imagens e semelhanças de
algo inerente ao objeto, uma vez que a maioria dessas sensações são, na
mente, tão pouco
os símiles de algo que existe fora de nós quanto os nomes que as
representam são símiles de nossas idéias, apesar de serem capazes de
excitá-las em nós ao serem
ouvidos.

8 Chamo idéia tudo o que a mente percebe em si mesma ou é o objeto


imediato da percepção, pensamento ou entendimento; e chamo o poder de
produzir uma idéia qualquer
em nossa mente, uma qualidade da coisa na qual está esse poder. Assim, no
caso de uma bola de neve dotada do poder de produzir em nós as idéias de
branco, frio e
redondo, chamo esses poderes de produzir essas idéias em nós, conforme
estejam na bola de neve, qualidades; e conforme sejam sensações ou
percepções em nossos entendimentos,
chamo-os idéias; e se algumas vezes falo dessas idéias como estando nas
próprias coisas, devo ser entendido como referindo-me às qualidades nos
objetos que as produzem
em nós. (II.viii.7-8)

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Apesar dessas explicações, a terminologia empregada na discussão
subseqüente é notoriamente escorregadia. A distinção aqui traçada entre
idéias sensoriais e as "modificações
da matéria" causalmente responsáveis por essas idéias e as idéias
produzidas, não são firmemente mantidas. Por exemplo, Locke propõe aqui
chamar certos poderes,
conforme estejam nos corpos ("conforme estejam na bola de neve"),
"qualidades"; e chamá-los, conforme sejam experimentados ("conforme sejam
sensações ou percepções
em nossos entendimentos"), "idéias". Isto faz da "idéia", efetivamente, o
modo pelo qual o objeto nos aparece, e da "qualidade" o poder do objeto
de aparecer desse
modo. Contudo, o uso tradicional das expressões "no objeto" e "na mente
(entendimento)" tornou possível dizer que a idéia é a qualidade tal como
está na (isto é,
aparece à) mente, e que a qualidade é a idéia tal como está no objeto.
Conseqüentemente, como sua próxima sentença concede, Locke usa
"qualidade" e "idéia" (ou "idéia
simples") de forma virtualmente intercambiável, deixando de seguir sua
própria proposta.
Além disso, o "poder" ou "qualidade" no objeto não é algo distinto da, ou
adicional à "modificação da matéria" (isto é, a propriedade intrínseca do
objeto material)
em virtude da qual o objeto aparece daquele modo particular. Locke
detalha isso ao discutir diretamente a própria idéia de poder. Ele
atribui a idéia de poder à
experiência de padrões regulares de mudança - experiência que dá origem,
inicialmente, a expectativas de que "mudanças semelhantes serão no futuro
realizadas nas
mesmas coisas por agentes semelhantes e de maneiras semelhantes", e, a
seguir, ao pensamento de que na primeira coisa existe a possibilidade de
ser modificada e
na segunda "a possibilidade de realizar essa mudança". E assim formamos a
idéia de poder, ativo e passivo: o poder do fogo de derreter a cera e o
poder da cera de
ser derretida são aspectos do fogo e da cera conhecidos e identificados
apenas pelo seu efeito conjunto. A idéia de um poder de produzir X é,
assim, uma
concepção

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indireta de um atributo do qual a ocorrência de um X é o signo


observável, um atributo que poderia em princípio ser conhecido
diretamente. Podemos portanto nos
referir em pensamento, ainda que indiretamente, a esse atributo
desconhecido. Tudo isso explica como - para antecipar a próxima passagem
- Locke pode declarar que
"o que é doce, azul ou morno em idéia [isto é, em aparência, "na mente"]
não é nada mais que a dimensão, figura e movimento das partes
imperceptíveis nos próprios
corpos, assim denominados por nós".
Queixas sobre o uso frouxo que Locke faz de sua própria terminologia são
comuns, mas sua prática simplesmente se coaduna com os modos
ordinariamente escorregadios
de se falar sobre aparências e sobre os objetos da percepção e do
pensamento. Por exemplo, se minha miopia me faz ver o H no quadro de meu
oculista como um N, há
uma razão para afirmar, mas também uma razão para negar, que o N
existente apenas "na minha mente" é o H "no objeto", erroneamente
percebido. Nem a afirmação nem
a negação da identidade são "corretas" em oposição uma à outra. Sem
dúvida, Locke julgava que era o bastante "que fosse possível entender o
que ele tem em mente".
Uma maneira de expressar o que ele tem em mente na próxima passagem é
dizer que algumas propriedades que supomos perceber nas coisas são
intrínsecas a elas, ao passo
que outras são relativas à percepção - não mais que poderes de aparecer
de um certo modo em virtude de propriedades intrínsecas de outro modo
imperceptíveis.

9 Qualidades assim consideradas nos corpos são, primeiramente, aquelas


que são absolutamente inseparáveis do corpo qualquer que seja o estado
deste; aquelas que
ele constantemente preserva por mais alterações e mudanças que sofra, por
mais força que se exerça sobre ele; aquelas que o sentido invariavelmente
encontra em qualquer
partícula de matéria que tenha dimensão suficiente para ser percebida e
que a mente julga inseparável de qualquer partícula material, ainda que
de dimensões menores
que o necessário para ser isoladamente percebida por nossos sentidos. Por
exemplo, tome um grão de trigo e divida-o em duas partes;

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cada uma delas continua possuindo solidez, extensão, mobilidade; divida-o


de novo, e ele ainda preserva essas mesmas qualidades. Continue a dividi-
lo desse
modo até que as partes se tornem imperceptíveis: elas ainda deverão
manter, cada uma delas, todas essas qualidades. Pois a divisão (que é
tudo que um moinho, ou
pilão, ou qualquer outro corpo faz a outro, ao reduzi-lo a partes
imperceptíveis) não pode jamais eliminar nem a solidez, nem a extensão,
nem a figura ou mobilidade
de qualquer corpo, mas apenas produz duas ou mais massas materiais
separadas distintas a partir do que antes era apenas uma; e todas essas
massas distintas, tomadas
como outros tantos corpos distintos, perfazem após a divisão um certo
número. A estas chamo qualidades originais ou primárias do corpo, as
quais penso que se pode
verificar que produzem idéias simples em nós, a saber, solidez, extensão,
figura, movimento ou repouso, e número.

10 Em segundo lugar, há aquelas qualidades que na verdade nada são, nos


próprios objetos, senão poderes de produzir em nós diversas sensações,
como cores, sons,
gostos etc., por meio de suas qualidades primárias, isto é, pela
dimensão, figura, textura e movimento de suas partes insensíveis. A estas
chamo qualidades secundárias
e a elas se poderia acrescentar um terceiro tipo que se admite serem
meramente poderes, embora sejam no objeto qualidades tão reais como as
que eu, para aceder ao
modo ordinário de expressão, chamo qualidades, mas, para distingui-las,
qualidades secundárias. Pois o poder que há no fogo de produzir uma nova
cor ou consistência
na cera ou argila por meio de suas qualidades primárias é uma qualidade
no fogo tanto quanto o poder que ele tem de produzir em mim uma nova
idéia ou sensação de
calor ou queimadura que eu antes não sentia, por meio das mesmas
qualidades primárias, a saber, a dimensão, textura e movimento de suas
partes imperceptíveis. (II.viii.9-10)

Aqui Locke está na realidade promovendo sua versão favorita da "nova


filosofia", ou "nova ciência", isto é, a concepção dominante no fim do
século XVII de que o
mundo físico é, em última análise, inteligível como uma vasta máquina
composta de uma matéria uniforme que forma pequenos "corpúsculos" (grosso
modo, a teoria atômica,
embora nem todos os "corpuscularistas" aceitassem átomos indivisíveis).
Na medida

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em que essas seções constituem um argumento em favor - e não meras


asserções - do corpuscularismo mecanicista, ele é, primeiro, que a mera
experiência ou concepção
de um objeto ou corpo externo exige que esse corpo seja experimentado ou
concebido como possuindo qualidades "primárias". Segundo, podemos
entender como as "partes
imperceptíveis" de um corpo, em virtude de suas qualidades primárias
determinadas, podem agir sobre nossos órgãos dos sentidos de modo a
causar sensações de cor
e outras semelhantes. Locke conclui que não há uma diferença importante
de status entre dois tipos de poder que um corpo pode ter, ambos devidos
a sua estrutura
corpuscular: seus poderes de causar mudanças em outros corpos, e seus
poderes de causar sensações de qualidades secundárias em seres capazes de
percepção.
Pode-se perguntar por que Locke deveria assumir que o poder de aparecer
como vermelho não é em geral simplesmente em razão de o corpo ser
intrinsecamente vermelho,
como o poder de aparecer como quadrado é, em geral, nós assumimos, em
virtude de ele ser quadrado. Alternativamente, poderíamos questionar esta
última suposição:
como podemos estar certos de que o poder de aparecer como quadrado não
está baseado em alguma outra propriedade, talvez completamente
inimaginável, do objeto? Em
certos pontos esta última questão reflete o modo como o próprio Locke
aborda o assunto, a julgar por sua explicação geral do "conhecimento
sensível" que temos da
existência de objetos externos:
2 É, portanto, o efetivo recebimento de idéias a partir de fora que nos
notifica da existência de outras coisas e faz-nos saber que, nesse
instante, existe alguma
coisa fora de nós que causa em nós aquela idéia, embora talvez nem
saibamos nem consideremos como ela o faz; pois a certeza de nossos
sentidos e das idéias que por
eles recebemos não é diminuída por não sabermos a maneira pela qual são
produzidas. Por exemplo, enquanto escrevo isto, produz-se em minha mente,
pela atuação do
papel sobre meus olhos, aquela idéia tal que qualquer objeto que a cause
eu o chamo branco, e pela qual eu sei que aquela qualidade ou acidente

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(isto é, cuja aparência diante de meus olhos sempre causa essa idéia)
existe realmente e tem um ser fora de mim. E disso, a maior garantia que
posso ter, e que minhas
faculdades podem alcançar, é o testemunho de meus olhos, que são os
únicos juízes apropriados desse tipo de coisa...

3 A notícia que temos por meio de nossos sentidos da existência de coisas


fora de nós, embora não seja de modo algum tão certa como nosso
conhecimento intuitivo
ou as deduções de nossa razão, quando empregados sobre as idéias
abstratas claras de nossas próprias mentes, e contudo uma garantia que
merece o nome de conhecimento.
Se nos persuadirmos de que nossas faculdades atuam e nos informam
corretamente acerca da existência dos objetos que as afetam, isso não
pode passar por uma confiança
infundada, pois penso que ninguém pode, seriamente, ser tão cético aponto
de estar incerto da existência das coisas que vê e sente. Pelo menos,
aquele que leva sua
dúvida a tal ponto (seja como for que se relacione com seus próprios
pensamentos) jamais terá comigo qualquer controvérsia, dado que nunca
poderá estar certo de
que estou dizendo algo contrário à sua opinião. Quanto a mim, penso que
Deus deu-me suficientes garantias da existência de coisas fora de mim,
visto que, por suas
diferentes aplicações, posso produzir em mim prazer e dor, o que tem
muita importância em meu presente estado. É certo que a confiança de que
nossas faculdades nisto
não nos enganam é a maior garantia que podemos obter quanto à existência
de seres materiais. Pois não podemos atuar em nada a não ser por meio de
nossas faculdades,
nem falar sobre o próprio conhecimento a não ser com o auxílio dessas
faculdades, que são adequadas para apreender até mesmo o que o
conhecimento é. (IV.xi.2-3)

Locke está aqui declarando enfaticamente, contra Descartes e outros, que


os sentidos, eles mesmos, provêem conhecimento sem a necessidade de
ratificação ou interpretação
pela razão ou intelecto. Os sentidos são faculdades cognitivas básicas,
independentes, mesmo que o conhecimento do mundo que eles proporcionam
seja de valor mais
prático que teórico. Dado que na sensação estamos conscientes não apenas
de uma aparência ou "idéia", mas de que algo está atuando sobre nós e
causando a idéia,
somos capazes de caracterizar ou

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identificar essa causa externa mediante a idéia, precisamente coisa que


causa regularmente essa idéia (Locke diz aqui, de forma demasiado forte,
"sempre causa").
Assim, a idéia sensorial de branco serve no pensamento como um signo
daquele aspecto das coisas que regularmente causa essa idéia ou
aparência. Meu conhecimento
perceptual de que alguma coisa branca existe diante de mim é, portanto,
independente de qualquer hipótese sobre em que, no objeto, consiste seu
ser branco.
A explicação de Locke do "conhecimento sensível" não discrimina entre
qualidades primárias e secundárias. Com respeito a nosso conhecimento
perceptual primitivo,
ao que parece, coisas que se sabe existir são conhecidas simplesmente
como sujeitos de poderes de causar sensações. Consistentemente com esta
proposta, Locke trata
a distinção entre qualidades primárias e secundárias não como algo
evidente na própria percepção sensorial, mas como uma hipótese razoável
sobre a natureza da realidade,
um fragmento de "filosofia natural" que vai além do conhecimento
sensível. Mas o que, então, torna essa hipótese razoável? Visto desta
perspectiva, o que pede justificação
não é tanto a proposta de que cores em objetos são meros poderes de
aparecer de certos modos, mas antes a suposição de que idéias de
qualidades primárias são mais
do que causalmente correspondentes a certos atributos desconhecidos das
coisas. A resposta de Locke é sua alegação de que qualidades primárias
proporcionam nosso
único modo de entender tanto o que os objetos externos efetivamente são,
quanto o que eles fazem. Este último ponto é particularmente enfatizado:

11 A próxima coisa a considerar é como corpos produzem idéias em nós, e


isso é manifestamente por impulso, a única maneira pela qual concebemos
que corpos operam.

12 Se, então, os objetos externos não estão unidos a nossas mentes quando
ali produzem idéias; e no entanto percebemos essas qualidades originais
naqueles que são
isoladamente apreendidos

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por nossos sentidos, é evidente que algum movimento deve prolongar-se a


partir deles pelos nossos nervos ou espíritos animais, por algumas partes
de nossos corpos,
até o cérebro ou a sede da sensação, para ali produzir em nossas mentes
as idéias particulares que temos deles. E dado que a extensão, figura,
número e movimento
de corpos de tamanho observável podem ser percebidos à distância pela
vista, é evidente que alguns corpos isoladamente imperceptíveis devem
partir deles e chegar
aos olhos, e daí transmitir ao cérebro algum movimento que produz as
idéias que deles temos em nós.

13 Da mesma maneira que se produzem em nós as idéias dessas qualidades


originais, podemos conceber que são também produzidas as idéias de
qualidades secundárias,
a saber, pela operação de partículas imperceptíveis sobre nossos
sentidos. Pois é manifesto que há corpos, e uma grande quantidade deles,
cada um dos quais tão pequeno
que não podemos, por nenhum de nossos sentidos, discernir sua dimensão,
figura ou movimento, como é evidente no caso das partículas do ar e da
água, e outras extremamente
menores que essas, talvez tão menores que as partículas de ar ou água
quanto estas são menores que ervilhas ou pedras de granizo. suponhamos
pelo momento que os
diferentes movimentos e figuras, dimensão e número dessas partículas, que
afetam os vários órgãos dos nossos sentidos, produzam em nós as
diferentes sensações que
temos das cores e cheiros de corpos; por exemplo, que uma violeta, pelo
impulso dessas partículas imperceptíveis de matéria de figuras e
dimensões peculiares, e
em diferentes graus e modificações de seus movimentos, cause a produção,
em nossas mentes, das idéias da cor azul e do doce aroma dessa flor.
Conceber que Deus tenha
anexado tais idéias a tais movimentos, com os quais eles não guardam
semelhança, não é mais impossível que conceber que ele tenha anexado a
idéia de dor ao movimento
de uma peça de aço dividindo nossa carne, com o que aquela idéia não
guarda semelhança. (II. viii.11-13 )

A posição de Locke, então, é que as qualidades primárias são


privilegiadas no interior de uma ampla suposição ou hipótese sobre
objetos externos que nos permite
entender em termos gerais como eles podem atuar uns sobre os outros e
sobre os órgãos dos sentidos, e em última instância no cérebro, para dar
origem à experiência
sensorial. Não há nenhuma razão semelhante para considerar idéias de
qualidades

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secundárias como mais que simples efeitos, comparáveis à dor


garantidamente causada por certas circunstâncias:

16...Por que o frio e o branco estariam na neve, e a dor não, se a neve


produz tanto uma como outra dessas idéias em nós; e não pode produzir
nenhuma delas a não
ser pela dimensão, figura, número e movimento de suas partes sólidas?
(II.viii.16)

Locke parece estar negando, paradoxalmente, que a neve seja branca e


fria, e, de um certo modo, ele está. Mas não está negando que posso
distinguir pela visão os
casos em que, num sentido ordinário, existe alguma coisa branca diante de
mim. Ele está antes tentando, por assim dizer, remover o caráter
subjetivo, qualitativo
da brancura daquilo que a brancura é "no objeto", como se fosse o
primeiro caráter, puramente visual, que o termo "branco" primordialmente
ou estritamente significa.
Sua objeção não é tanto ao que ordinariamente queremos dizer com "a neve
é branca", mas sim à linguagem que empregamos para veicular isso que
queremos dizer, a qual
lhe parece envolver um equívoco vulgar:

2 ...E estamos certos [de que todas as nossas idéias simples] concordam
com a realidade das coisas. Pois se o açúcar produz em nós as idéias que
chamamos brancura
e doçura, estamos certos de que há no açúcar um poder de produzir essas
idéias em nossas mentes, caso contrário não poderiam ter sido produzidas
por ele.
E assim, como cada sensação responde ao poder que opera em qualquer de
nossos sentidos, a idéia assim produzida é uma idéia real (e não uma
ficção da mente, que
não tem o poder de produzir nenhuma idéia simples), e não pode ser senão
adequada, dado que precisa apenas responder àquele poder; e assim todas
as idéias simples
são adequadas. É verdade que só um pequeno número das coisas que produzem
em nós essas idéias simples são denominadas como se fossem simplesmente
as causas delas;
tratamo-las antes como se essas idéias nelas realmente existissem. Pois
embora o fogo seja chamado doloroso ao toque, significando-se com isso o
poder de produzir
em nós a idéia da dor, ele é também denominado luminoso e quente, como se
a luz e o calor

Pág. 26

fossem realmente alguma coisa no fogo, mais do que um poder de excitar em


nós essas idéias, sendo, portanto, chamados qualidades no fogo; ou do
fogo. Mas como estes,
na verdade, não são mais que poderes de excitar tais idéias em nós, deve-
se entender nesse sentido minhas palavras quando falo de qualidades
secundárias como estando
nas coisas, ou de suas idéias como estando nos objetos que as excitam em
nós. Tais modos de falar, embora ajustados às noções vulgares sem as
quais não se pode ser
bem compreendido, não significam efetivamente nada a não ser aqueles
poderes, existentes nas coisas, de excitar certas sensações e idéias em
nós. Pois se não houvesse
órgãos adequados para receber as impressões que o fogo produz na visão e
no tato, nem uma mente conectada a esses órgãos para receber as idéias de
luz e calor por
meio dessas impressões do fogo ou do Sol, já não haveria dor caso não
houvesse criaturas dotadas de sensibilidade para senti-la, embora o Sol
continuasse exatamente
como é hoje, e o monte Etna flamejasse mais alto do que jamais o fez. A
solidez, a extensão, e a figura, que é o seu limite, juntamente com o
movimento e o repouso,
dos quais temos as idéias, continuariam a existir realmente no mundo como
existem, quer houvesse ou não algum ser dotado de sensação para percebê-
los; e, portanto,
temos razões para considera-los como as reais modificações da matéria, e
como as causas que estimulam todas as várias sensações que temos dos
corpos. (II.xxxi.2)
Note-se que Locke afasta-se aqui do seu uso previamente recomendado de
"qualidade" para designar o poder no objeto, empregando em vez disso a
palavra, talvez de
maneira mais natural, para o modo qualitativo como o objeto se apresenta
à experiência sensível. Mas note-se igualmente sua insistência de que,
quando qualidades
secundárias são predicadas ordinariamente de coisas, o que os predicados
"verdadeiramente significam" são poderes "de excitar certas sensações ou
idéias em nós";
isto é, de aparecer de certas maneiras. Essas proposições, segundo Locke,
são ordinariamente expressas em uma linguagem que reflete uma falsa
suposição, mas não
são elas próprias falsas. Desse modo, o "conhecimento sensível" não fica
impugnado.

Pág. 27

A posição de Locke é assim bastante sutil, mas acha-se aberta a certas


objeções. Em particular, parece equivocada a sugestão de que termos como
"branco" e "doce",
em seu sentido próprio ou primário, signifiquem idéias, em vez de serem
predicáveis de coisas. Opor idéias e coisas desse modo assume uma
interpretação radical e
problemática do modelo causal de representação desenvolvido na explicação
lockeana do conhecimento sensível. Pois isso sugere que uma idéia é um
efeito mental não
designado que o sujeito pode denominar, por exemplo, "branco",
independentemente de qualquer referência a objetos ou situações externos
que causam essa idéia; como
se só depois desse ato privado de denominação "branco" pudesse ser
predicado de objetos em um sentido secundário ou vago, de modo a
significar capaz de causar idéias
brancas, do mesmo modo que uma sela desconfortável é uma sela capaz de
causar desconforto. Mas isso é afastar-se do modelo preferível, discutido
acima, que toma
uma "idéia" como o modo pelo qual alguma coisa aparece ou é concebida -
ou, para usar uma formulação tradicional, como algo percebido ou
concebido, tal como é percebido
ou concebido. Ora, "branco" não é, em seu sentido primário, um predicado
de efeitos mentais não designados, mas é um predicado de coisas tal como
aparecem à vista,
conotando o modo pelo qual elas aparecem. Mas se é isso que se pretende
ao dizer que "branco" em seu sentido próprio significa uma idéia, então
isso é precisamente
como o termo está sendo usado quando se diz que o açúcar é branco, e a
queixa de Locke sobre a linguagem é errônea. A tensão entre esses dois
modelos traz dificuldades
em outros pontos da filosofia de Locke e, de fato, na filosofia posterior
a Locke. (Wittgenstein ataca o primeiro modelo em seu famoso argumento da
"linguagem privada").
Há outros problemas com as listas de Locke das qualidades primárias e
secundárias. Um é que nenhuma das listas é conceitualmente uniforme.
Tanto a brancura como
a doçura são fortemente relativas aos sentidos, por se ligarem
estreitamente, do ponto de vista conceitual, aos modos particulares

Pág. 28

como as coisas aparecem à visão e ao paladar. Se não existisse nada


semelhante à visão mas houvesse criaturas inteligentes que, por meio de
alguma sensibilidade
não visual à luz, pudessem identificar precisamente, por meio da
percepção, a classe de coisas que nós identificamos como brancas, essas
criaturas não saberiam,
com isso, o que a brancura é. Como insiste Locke, um cego de nascença não
pode aprender precisamente o que significam "branco" e "vermelho". Calor
e luz, porém,
são conceitualmente diferentes. São estados ou processos naturais com
aparências características, mas alguém incapaz de sentir calor poderia
mesmo assim entender
muito bem o que significa "quente", por exemplo, o que quer dizer o
enunciado de que a água ferve quando é esquentada. O termo está
semanticamente ligado à realidade
física, mais do que à sua aparência sensorial. Isso foi verdade mesmo
quando não se sabia, ou não se sabia tão bem como agora, o que é em
última análise o calor,
dado que este foi sempre identificado por meio de toda uma variedade de
efeitos e manifestações observáveis, não simplesmente em função de como o
sentimos.

Pág. 29

QUALIDADES PRIMÁRIAS E "A NOVA FILOSOFIA"

Finalmente, a lista de Locke das qualidades primárias está aberta a


objeções. Número parece fora de lugar, dado que, quando muitas coisas têm
um efeito conjunto,
não é o seu número que produz o resultado. Solidez tem um status
questionável pela razão contrária. Aceitando uma analogia comum entre
mecânica e geometria, Locke
assumiu que as propriedades presentes dos corpos acarretam seus poderes -
isto é, o modo como irão interagir - quase da mesma forma que teoremas
são acarretados
pelas propriedades definidoras das figuras geométricas. Assim como Boyle
antes dele, Locke freqüentemente nos lembra de como relógios devem suas
particulares capacidades
à sua estrutura mecânica perceptível presente:

25...Não duvido que, se pudéssemos descobrir a figura, tamanho, textura e


movimento das partes diminutas que constituem dois corpos quaisquer,
conheceríamos muitas
de suas operações recíprocas sem recorrer à experiência, do mesmo modo
que conhecemos hoje as propriedades de um quadrado ou de um triângulo. Se
conhecêssemos os
efeitos mecânicos das partículas de ruibarbo, cicuta, ópio e de um homem
tão bem quanto um relojoeiro conhece as partes de um relógio pelas quais
este realiza suas
operações, e de uma lima, que ao ser friccionada nelas irá alterar a
figura de qualquer das engrenagens, seriamos capazes de dizer de antemão
que o ruibarbo irá
purgar, a cicuta, matar e o ópio, fazer um homem dormir; tão bem quanto
um relojoeiro pode dizer de antemão que um pedacinho de papel posto sobre
o balancim impedirá
o relógio de funcionar até que seja removido, ou que ao se Friccionar uma
pequena peça dele com uma lima, o mecanismo irá

Pág. 30

perder definitivamente seu movimento e o relógio não mais funcionará. Que


a prata se dissolva na água-forte e o ouro na água-régia, e não vice-
versa, não seria,
talvez, nesse caso, mais difícil de conhecer do que o é, para um
serralheiro, entender por que uma fechadura se abre com o giro de uma
certa chave, e não de outra.
(IV. iii.25)

Em termos gerais, essa concepção tinha sido advogada por Descartes, mas
com importantes diferenças. Descartes rejeitou o próprio conceito de
espaço vazio, sustentando
como evidente à razão que as propriedades fundamentais da matéria são
simplesmente a extensão, e, decorrentes da extensão, o movimento e o
repouso geometricamente
definidos. A lei fundamental da inércia, da qual Descartes pretendia
deduzir todas as outras leis, é preservada em um Deus imutável enquanto
Ele mantém o mundo em
existência. Do ponto de vista oposto de Locke, que é um desenvolvimento
da posição de Robert Boyle, a solidez cumpre dois papéis. Ela é,
primeiramente, uma propriedade
dos corpos que os distingue conceitualmente do espaço vazio; em segundo
lugar, é uma propriedade presente subjacente aos poderes dos corpos de
interagir mecanicamente
de acordo com leis derivadas de sua própria natureza como corpos, sem
recurso à agência divina:

1 Recebemos a idéia de solidez pelo nosso tato, e ela decorre da


resistência que encontramos em um corpo à entrada de outro corpo no lugar
que ocupa, até que o desocupe.
Não há nenhuma idéia que nos seja fornecida mais constantemente pela
sensação que a de solidez. Quer estejamos em movimento ou em repouso, e
qualquer que seja nossa
postura, sempre sentimos algo sob nós que nos dá sustentação e nos impede
de afundar; e os corpos que diariamente manipulamos fazem-nos perceber
que, quando estão
entre nossas mãos, impedem com uma força insuperável a aproximação das
partes das mãos que os tocam. Aquilo que impede desse modo a aproximação
de dois corpos, quando
se movem um em direção ao outro, chamo solidez... [A palavra] veicula
algo de mais positivo do que impenetrabilidade, que é negativa e é,
talvez, antes uma conseqüência
da solidez, e não a solidez ela mesma...

Pág. 31

2 Essa é a idéia que pertence ao corpo, pela qual o concebemos como


preenchendo espaço. A idéia desse preenchimento de espaço é que, sempre
que imaginamos qualquer
espaço tomado por uma substância sólida, concebemos que o ocupa de modo a
excluir todas as outras substâncias sólidas...

5 ...Da solidez dos corpos também depende seu impulso mútuo, resistência
e protrusão...

6 Se alguém me pergunta O que é essa solidez, remeto-o a seus sentidos


para essa informação... As idéias simples que temos são aquelas que a
experiência nos fornece;
mas se para além disso esforçarmo-nos, por palavras, para torná-las mais
claras à mente, não teremos mais sucesso do que se procurássemos iluminar
a escuridão da
mente de um cego pela fala, e infundir-lhe pelo discurso as idéias de luz
e cores. (II.iv.1-2, 5-6)

A distinção de Locke entre solidez e o poder de impenetrabilidade, e sua


insistência de que a solidez é uma qualidade sensível indefinida que pode
ser apreendida
por nós mediante uma única experiência sensorial, estão de acordo com sua
sugestão de que suas qualidades primárias constituem o que é necessário
para qualquer entendimento
do que os corpos fundamentalmente são, e, conseqüentemente, do que eles
fazem. Subentende-se que "corpos sólidos são impenetráveis" é um axioma
que liga uma propriedade
presente, intrínseca (comparável em status à forma) a uma propriedade
causal ou poder. Mas essa sugestão é e sempre foi insustentável. Sentir a
solidez de um objeto
não é perceber uma qualidade sensível simples, cuja natureza é capturada
pelo modo como esse objeto é sentido, e em virtude da qual o objeto está
interagindo mecanicamente
com seu corpo - suportando-o, pressionando-o etc. Antes, como a própria
linguagem de Locke pode sugerir, é estar tactilmente consciente de uma
tal interação. O aspecto
qualitativo do que é sentir algo pressionando nosso corpo, ou mantendo
nossas mãos separadas, não fornece nenhum insight de uma propriedade
intrínseca do corpo responsável
pela resistência que nele sentimos. Mas é isso que seria necessário

Pág. 32

para satisfazer o ideal mecanicista de inteligibilidade, e o programa de


reduzir poderes a propriedades presentes.
Por mais coerente que possam ser algumas ou todas dentre estas objeções à
distinção de Locke, não fica abalado seu propósito epistemológico mais
geral, que é estabelecer
que, em si mesmos, os objetos da experiência sensível podem ser muito
diferentes de como ordinariamente os concebemos com base nessa
experiência. Hoje isso pode
parecer uma verdade óbvia, mas os aristotélicos não tinham considerado
uma divisão como a que Locke reconheceu entre o nível da "história
natural", ou observação
e experimento, e o nível do entendimento científico. Eles assumiram que a
reflexão racional sobre generalizações baseadas na experiência conduz
naturalmente à "ciência",
isto é, ao conhecimento sistemático das essências funcionais ou naturezas
dos diferentes tipos de coisas, essências em termos das quais podem-se
explicar as propriedades
das coisas (como as propriedades observáveis de um coração, por exemplo,
podem ser explicadas por sua função). Descartes, em contraste, reconheceu
uma nítida divisão
entre uma crença experiencial natural e uma teoria sobre a natureza
última das coisas. Mas Descartes sustentava que o puro intelecto é
inatamente capaz de "ciência"
- de apreender os princípios da física mecanicista sem referência à
experiência. Conseqüentemente, ele dedicou consideravelmente menos tempo
e respeito que Locke
à crença pré-teórica ou probabilidade. A perspectiva cartesiana sofreu a
oposição de dois princípios lockeanos de senso comum: primeiro, que os
próprios sentidos
proporcionam conhecimento de nosso ambiente embora um conhecimento tosco
e fenomênico; e, segundo, que o que está além da experiência permanece
assunto de especulação
apoiada na experiência, e objeto de conclusões no máximo prováveis.
Este núcleo de senso comum, antidogmático, do argumento de Locke pode
parecer, em sua discussão central das qualidades primárias e secundárias,
encoberto por um
desejo de estabelecer a natureza dos corpos em si mesmos. Locke pode

Pág. 33

simplesmente parecer ansioso por substituir uma concepção da matéria por


outra - a de Descartes pela de Boyle. Contudo, ao passo que Descartes
apelou para o suposto
poder da razão de perceber clara e distintamente - e portanto
infalivelmente a - essência da matéria, Locke apelou para aquilo que, em
seu juízo, fazia mais sentido,
ou algum sentido que seja, para as limitadas faculdades humanas. A
"hipótese corpuscularista" é simplesmente aquela que "parece avançar mais
em direção a uma explicação
inteligível das qualidades dos corpos", mas está ainda bastante longe de
uma compreensão clara e segura da necessidade natural (IV.iii.16).

Pág. 35

SUBSTÂNCIA, ACIDENTE: DÚVIDAS SOBRE A ESSÊNCIA.


A mesma atitude ambivalente com relação ao corpuscularismo mecanicista
percorre a teoria lockeana da substância, uma polêmica resposta a teorias
anteriores que constitui
um desenvolvimento importante da distinção experiência-teoria. Aqui está
a famosa abertura do capítulo "De nossa idéia complexa de substância":

1 Visto que a mente, como declarei, está provida de um grande número de


idéias simples, introduzidas pelos sentidos quando se encontram nas
coisas exteriores, ou
pela reflexão sobre suas próprias operações, ela também observa que um
certo número dessas idéias simples andam constantemente juntas, as quais
- presumindo-se pertencerem
a uma coisa única, e sendo as palavras apropriadas para apreensões comuns
e utilizadas pata rápido expediente - são chamadas, quando assim unidas
em um único objeto,
por um nome único, com o que, por inadvertência, temos posteriormente a
inclinação de falar de e considerar como uma idéia simples única algo que
é na verdade um
complexo de muitas idéias reunidas, porque, como eu disse, ao não
imaginarmos como essas idéias simples possam subsistir por si mesmas,
acostumamo-nos a supor um
certo substratum no qual elas subsistem e do qual resultam, o qual, em
conseqüência, chamamos substância.

2 De modo que se alguém examinar-se a si mesmo no que concerne a sua


noção de pura substância em geral, descobrirá que não possui
absolutamente nenhuma outra idéia
dela a não ser apenas uma suposição de um "não sei o quê" que dá suporte
a essas qualidades que são capazes de produzir idéias simples em nós,
qualidades essas que
são comumente chamadas acidentes. Se perguntar a alguém qual é o sujeito
no qual a cor ou o peso inerem,

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ele não poderá mencionar nada senão as partes sólidas extensas, e se lhe
perguntarem em que inerem a solidez e a extensão, ele não estará em
situação muito melhor
do que a do indiano antes mencionado, que, tendo dito que o mundo era
suportado por um grande elefante, a que sua resposta foi, uma grande
tartaruga, mas sendo mais
uma vez pressionado a dizer o que dava sustentação à tartaruga de costas
largas, respondeu que era algo que ele não sabia o que. E, assim, aqui
como em todos os
outros casos nas quais usamos palavras sem ter idéias claras e distintas,
falamos como crianças que, ao serem perguntadas o que é uma coisa que
elas não sabem e
quê, dão prontamente esta satisfatória resposta, de que é algo, uma
palavra que, na verdade, significa apenas, quando assim usada por
crianças ou por homens, que
eles não sabem o que, e que a coisa que eles pretendem conhecer e da qual
falam é algo de que eles não tem absolutamente nenhuma idéia distinta, e
com relação à
qual estão, portanto, em completa ignorância e na obscuridade. Com essa
idéia que temos e à qual damos o nome geral de substância não é nada mais
que o suposto,
mas desconhecido suporte das qualidades que vemos existirem e que
imaginamos incapazes de subsistir sine re substante, sem algo que lhes dê
suporte, chamamos então
esse suporte substantia, o que, de acordo com o verdadeiro significado da
palavra, é, em linguagem comum, o que está sob, ou o que sustenta.
(II.xxiii.1-2)

Locke está evidentemente levantando a questão da relação, acima


mencionada, entre coisas e suas qualidades sensíveis, mas tem havido
muito debate sobre seu objetivo
preciso. ("Coisas", deve-se dizer, são aqui "substâncias" no sentido
tradicional, incluindo objetos substanciais, bem como materiais
diversos). A chave para interpretar
a seção 1 é a acusação de Locke de que as pessoas (isto é, filósofos em
particular) supõem erroneamente que têm idéias simples de substâncias
quando de fato suas
concepções complexas são compostas de numerosas idéias de qualidades
("idéias simples") que a experiência descobriu "andarem constantemente
juntas" em casos individuais.
As explicações do próprio Locke tornam claro que o "nome único" que ilude
as pessoas é qualquer nome geral como "cavalo", "cisne", "ouro" ou
"água". Para os

Pág. 37

aristotélicos, uma definição "simples" é aquela que encapsula a essência


unitária do tipo de coisa definida, como se supunha que "homem é um
animal racional" fizesse.
Os cartesianos sustentaram uma posição aparentada, dado que, para
Descartes, as essências de suas duas substâncias, matéria e espírito, são
as "naturezas simples",
extensão e pensamento. Grosso modo, Locke está dizendo que nenhuma de
nossas definições ou concepções de tipos de substâncias leva-nos além de
uma lista de qualidades
e poderes observáveis, rumo à natureza subjacente intrínseca da
substância responsável por essas qualidades e poderes - rumo ao que a
substância realmente é. A própria
noção de uma substância (ou substratum - um termo aristotélico
aparentado) surge porque temos de supor algo mais unitário do que as
qualidades observáveis repetidamente
coexistentes, mas, fora isso, disparatadas, algo "de que elas resultam".
Mais uma vez, então, Locke está distinguindo entre coisas tal como
aparecem à observação e coisas como elas intrinsecamente são. Mas
enquanto ao identificar certas
qualidades como primárias Locke está postulando como as coisas (com toda
probabilidade) são em si mesmas, sua explicação de nossas idéias de
substâncias é visivelmente
menos otimista. Na seção 2 esta concepção mais cética da teoria
corpuscular é esmiuçada. A "noção de pura substância em geral" é
representada, de fato, como um mero
demarcador de lugar para a essência unitária desconhecida de qualquer
substância, em oposição a todas as suas qualidade observáveis ("comumente
chamadas acidentes",
isto é, o termo aristotélico para atributos não-essenciais). Dizer que
qualidades como cor e peso "inerem nas", e são produtos das "partes
sólidas extensas" de seu
sujeito (isto é, propor exatamente aversão da hipótese corpuscularista
que Locke, ele próprio, favorece) é deixar aberta a questão sobre o que é
isso em que a solidez
e a extensão inerem. É, em outras palavras, deixar sem explicação o que
torna sólidas e extensas essas partes e partículas. Tudo que podemos
dizer é que algo o faz.
Esse problema surge para Locke

Pág. 38

mesmo com respeito a "qualidades primárias" precisamente na medida em que


ele não está satisfeito com a teoria mecânica disponível.
Uma dificuldade em que Locke se concentra é a da coesão. Ele rejeita
tentativas contemporâneas de explicá-la, seja a coesão de partículas umas
com as outras, seja
a coesão interna das partículas individuais. Sem uma compreensão da
coesão, a própria extensão permanece misteriosa:

23 Se alguém diz que não sabe o que é isso que nele pensa, ele quer dizer
que não sabe qual é a substância dessa coisa pensante; não mais, eu digo,
do que sabe o
que é a substância dessa coisa sólida. Além disso, se ele diz que não
sabe como pensa, eu respondo que ele tampouco sabe como é extenso, como
as partes sólidas do
corpo estão unidas ou coerem entre si para produzir a extensão. Pois
embora a pressão das partículas de ar possa dar conta da coesão das
diversas partes da matéria
que são maiores que as partículas de ar e que têm poros menores que os
corpúsculos do ar, o peso ou pressão do ar não podem, no entanto,
explicar nem ser uma causa
da coerência das partículas de ar elas próprias. E se a pressão do éter
ou de alguma matéria mais sutil que o ar pode unir ou manter firmemente
juntas as partes
de uma partícula de ar, bem como de outros corpos, não pode contudo
produzir ligações para si mesma e manter unidas as partes que compõem
cada um dos menores corpúsculos
dessa matéria subtilis. De tal modo que essa hipótese, por mais
engenhosamente que seja explicada, ao mostrar que as partes de corpos
externos não perceptíveis,
não chega até às partes do próprio éter; e quanto mais torna evidente que
as partes de outros corpos são mantidas juntas pela pressão exterior do
éter e não podem
ter outra causa concebível de sua coesão e união, tanto mais nos deixa no
escuro a respeito da coesão das partes dos corpúsculos do próprio éter...

25 Admito que a maioria das pessoas usualmente se admira de que alguém


possa encontrar dificuldade em algo que julgam observar todos os dias.
Não vemos - elas estariam
prontas a perguntar - que as partes dos corpos estão firmemente presas
umas às outras? Haveria algo de mais trivial?

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Que dúvida se pode levantar quanto a isso? O mesmo ocorre, eu afirmo, com
relação ao pensamento e ao movimento voluntário: não os experimentamos a
cada instante
em nós mesmos? Como, então, manter alguma dúvida a respeito? Admito que a
questão factual é clara, mas quando desejamos examiná-la mais de perto e
considerar como
essas coisas são feitas, penso que sentimo-nos então perplexos.
(II.xxiii.23, 25)

O ceticismo de Locke dirigia-se não contra a perspectiva, da qual


compartilhava, de que muitos fenômenos aparentemente qualitativos têm
explicações mecânicas, mas
sim contra a suposição de que essas explicações, tal como correntemente
formuladas, poderiam prover a última palavra para fins explanatórios.
Pois elas próprias
pressupõem condições que são deixadas sem explicação. O ponto de Locke
poderia ser ilustrado por seu exemplo favorito. Num certo sentido,
talvez, ao ver como se
conectam as engrenagens de um relógio, vemos como ele deve funcionar. Mas
isso, na melhor das hipóteses, só ocorre sob a suposição de que as
engrenagens são coesas
e rígidas, e não frágeis e elásticas. Como Locke argumenta, a mera
familiaridade com objetos coesos não nos desobriga da necessidade de
explicar a coesão, se nosso
objetivo é um entendimento completo do que está acontecendo. E uma
explicação mecânica da coesão é circular.
Locke apresenta várias outras críticas contra o mecanicismo, desde a
dificuldade de dar sentido à divisibilidade infinita da matéria, e o
problema de entender como
um corpo "toma de empréstimo" um atributo, o movimento, de outro corpo
(II.xxiii.28; cf. II.xxi.4) , até o problema menos metafísico de entender
as "regras originais
[do movimento] e comunicação do movimento" (IV .iii.30) - leis que, para
Locke, somente poderíamos considerar como tendo sido identificadas quando
apreendêssemos
por que é necessário que sejam como são. Em escritos posteriores, Locke
pôs ênfase na gravidade, pois a lei do inverso do quadrado parecia-lhe
(assim como para Newton),
uma regularidade particularmente bruta, que pedia explicação adicional e
da qual estava ausente aquela
"inteligibilidade"

Pág. 40

quase geométrica de algumas outras leis newtonianas. Seus argumentos


podem lançar dúvidas sobre o próprio ideal mecanicista de
inteligibilidade, mas a
exigência de saber "que substância existe que não tem em si algo que
manifestamente desconcerta nosso entendimento" foi uma apropriada
resposta ao dogmatismo excessivamente
confiante, em particular dos cartesianos.

Foi igualmente apropriado formular esse saudável ceticismo no interior de


um argumento sobre "substância" e "acidentes". Um traço importante tanto
da teoria cartesiana
como do empirismo dogmático de Hobbes é a pretensão de ter esclarecido a
relação metafísica substância-acidente, a relação entre corpos e suas
propriedades. Explicações
aristotélicas dessa relação deixam-nos aparentemente com uma
multiplicidade de qualidades sensíveis ("formas sensíveis") e poderes
irredutíveis misteriosamente contidos
na substância unitária. Alguns escolásticos extraíram a conclusão
paradoxal de que acidentes são dependentes apenas de forma contingente e
natural das substâncias
nas quais inerem, alegando que Deus pode miraculosamente manter
qualidades sensíveis em existência sem a substância que naturalmente e
normalmente lhes dá suporte.
Essa tese, pressuposta na doutrina da transubstanciação, a interpretação
ortodoxa da Eucaristia (na qual se considerava que a substância da carne
e sangue de Cristo
subjaz às qualidades sensíveis do pão e vinho), foi apenas uma forma
extrema da concepção que Locke ridicularizou:

19 Aqueles que primeiro depararam com a noção de acidentes, como um tipo


de seres reais que necessitavam de algo em que inerir, foram forçados a
descobrir a palavra
substância para suportá-los... E aquele que investigou poderia ter
considerado tão boa a resposta de um filósofo indiano, de que a
substância, sem que se saiba o
que é, é o que dá suporte à Terra, como tomamos como uma resposta
satisfatória e boa doutrina de nossos filósofos europeus que a
substância, sem que se saiba o que
é, é aquilo que dá suporte aos acidentes. De modo que não temos nenhuma
idéia do

Pág. 41

que é a substância, mas apenas uma noção confusa e obscura do que ela
faz. (II.xiii.19)

Os "novos filósofos", por outro lado, alegaram haver reduzido essa


multiplicidade fenomênica e conceitual a uma unidade inteligível,
removendo o mistério da "inerência".
Se corpos nada mais são que matéria em movimento, e as diferenças
qualitativas entre eles são simplesmente, na expressão de Hobbes, "uma
diversidade de aparência",
então toda a problemática relação entre substâncias e acidentes reduz-se
à simples relação entre uma coisa extensa e sua forma (isto é, limites) e
movimento - em
termos cartesianos, à relação entre extensão e seus modos. Dado que, como
Hobbes observou, todos entendem essa relação, o problema ontológico
desaparece. A explicação
dada por Locke de nossa idéia de substância - e, em particular, de nossa
idéia de substância sólida extensa - foi um desafio a esse otimismo. A
nova filosofia pode
ter tornado redundante o elefante aristotélico, mas ainda necessitava de
sua tartaruga. O que vale para as idéias das espécies aristotélicas ou
tipos naturais vale
para as idéias dos tipos de substâncias postuladas pelos "novos
filósofos", matéria e mente, "corpo" e "espírito":
3 Tendo-se produzido assim uma idéia obscura e relativa de substância em
geral, chegamos a formar as idéias de tipos particulares de substância
coletando as combinações
de idéias simples que a experiência e observação dos sentidos humanos
revelam serem coexistentes e que são, portanto, consideradas como fluindo
da particular constituição
interna, ou essência desconhecida dessa substância. Chegamos assim a
formar as idéias de homem, cavalo, ouro, água etc., e deixo à experiência
de cada um a questão
sobre se alguém tem dessas substâncias alguma idéia clara além de certas
idéias simples existindo juntas. São as qualidades ordinárias observáveis
no ferro ou em
um diamante que, ao serem reunidas, produzem a verdadeira idéia complexa
dessas substâncias, que um ferreiro ou joalheiro conhece comumente melhor
que um filósofo,
o qual, por mais que fale de formas substanciais, não tem nenhuma outra
idéia dessas substâncias além da produzida por

Pág. 42

uma coleção das idéias simples nelas encontradas. Temos apenas de notar
que nossas idéias complexas de substâncias, além de todas essas idéias
simples de que são
compostas, sempre contêm a confusa idéia de um algo ao qual elas
pertencem e no qual subsistem; e, portanto, quando falamos de um tipo
qualquer de substância, dizemos
que é uma coisa que tem tais ou tais propriedades, como um corpo é uma
coisa que é extensa, tem uma certa forma e é capaz de movimento; um
espírito, uma coisa capaz
de pensar; e, do mesmo modo, a dureza, a frialdade e o poder de atrair o
ferro são, dizemos, qualidades encontradas na magnetita. Essas e outras
maneiras de falar
sugerem que a substância é sempre suposta como algo além da extensão,
figura, solidez, movimento, pensamento, ou outras idéias observáveis,
embora não saibamos o
que. (II.xxiii.3)

Há outras passagens em que Locke dá a entender que certas formas naturais


da linguagem "sugerem a confissão de toda humanidade" (III.vii.2) de que
somos ignorantes
das essências subjacentes das substâncias. Mas aqui ele se dedica à noção
de "coisas" como portadoras de substantivos-predicados primitivos, com
efeito, ao papel
das "substâncias" (coisas e materiais) como os sujeitos de predicação
primitivos e fundamentais nas linguagens naturais. Este célebre e
indubitável traço lógico
da linguagem natural certamente pede por uma explicação filosófica, mas a
análise de Locke (apesar de sua sobrevivência na filosofia posterior,
incluindo a de Kant)
é dificilmente sustentável. Contudo sua tese não está tão longe de
concepções que não são apenas sustentáveis mas provavelmente verdadeiras.
Entre elas está a concepção
de que as coisas materiais devem seu status como objetos primitivos do
discurso ao fato de serem indivíduos unificados natural e
independentemente, dados ou selecionados
como tais em experiência sensível pré-teórica, embora possam ser
desconhecidas as causas de sua unidade física e de suas outras
características observáveis.

Pág. 43

MENTE E MATÉRIA

Pensar que a substância é algo além da extensão, figura, solidez,


movimento ou pensamento é, para Locke, pensar que somos ignorantes da
natureza ou essência de tudo
o que é sólido e extenso, e de tudo que pensa. No capítulo sobre nossas
idéias de substância, Locke trata esse ponto em termos que parecem
pressupor que estes são,
de fato, dois tipos distintos de substância:

5 O mesmo acontece com as operações da mente, a saber, pensar,


raciocinar, temer etc., as quais, ao concluirmos que não subsistem por si
mesmas e ao não compreendermos
como poderiam pertencer ao corpo ou serem produzidas por ele, somos
levados a pensar que são ações de alguma outra substância que chamamos
espírito, com o que fica,
porém, evidente que, dado que não temos nenhuma outra idéia ou noção da
matéria senão a de um algo em que subsistem as várias qualidades
sensíveis que afetam nossos
sentidos, ao supor uma substância em que subsistem o pensar, o saber, o
duvidar e um poder de mover etc., temos uma noção tão clara dessa
substância do espírito
quanto a que temos da do corpo; esta última suposta (sem que se saiba o
que é) como o substrato daquelas idéias simples que recebemos a partir de
fora; e a primeira
(com igual ignorância do que é) tomada como o substrato daquelas
operações que experimentamos dentro de nós mesmos. É óbvio, assim, que a
idéia de uma substância
corpórea na matéria está tão distante de nossa concepção e apreensão
quanto a de uma substância espiritual ou espírito; e não podemos,
portanto, pelo fato de não
possuirmos nenhuma idéia da substância do espírito, concluir pela sua
inexistência mais do que podemos, pela mesma razão, negar a existência do
corpo; e é tão racional
afirmar que não há corpo por não termos nenhuma idéia clara e distinta da
substância da matéria como

Pág. 44

Dizer que não há espírito porque não temos nenhuma idéia clara e distinta
da substância de um espírito. (II.xxiii.5)

Esta seção introduz um contra o materialismo dogmático que percorre todo


o capítulo (moldando, por exemplo, a seção 23 antes citada). Contudo, o
argumento de que
temos do espírito uma concepção tão clara quanto da matéria, pela simples
razão de que nos falta uma concepção clara de qualquer um deles, é uma
base muito pouco
satisfatória para um dualismo mente-corpo, mesmo de caráter tentativo. A
única razão positiva dada para o dualismo é a sugestão de que o
pensamento nos aparece como
uma propriedade peculiarmente incapaz de explicação mecânica, mas do
próprio ponto de vista de Locke essa aparência poderia dever-se
simplesmente a nossa ignorância
de uma essência única subjacente tanto ao pensamento quanto às
propriedades mecânicas. Na realidade, uma outra passagem (que provê um
belo exemplo da retórica antidogmática
de Locke) detalha exatamente esse ponto:

6 ... Temos as idéias de matéria e pensamento, mas possivelmente jamais


seremos capazes de saber se algum ser meramente material pensa ou não; já
que é impossível
para nós, pela contemplação de nossas próprias idéias, sem a revelação,
descobrir se a onipotência não deu a alguns sistemas materiais
adequadamente organizados
um poder de perceber e pensar, ou se, ao contrário, adicionou e fixou à
matéria assim organizada uma substância imaterial pensante; e, no que diz
respeito a nossas
noções, não está muito mais distante de nossa compreensão conceber que
Deus pode, se quiser, adicionar à matéria uma faculdade de pensar do que
conceber que ele
adicione uma outra substância dotada da faculdade de pensar, dado que não
sabemos em que consiste o pensamento nem a que tipos de substância o
Todo-Poderoso decidiu
dar esse poder, que não pode existir em nenhuma criatura a não ser pela
boa-vontade e liberalidade do Criador. Pois não vejo contradição em supor
que o primeiro
ser pensante eterno poderia, se quisesse, dar a certos sistemas de
matéria criada inconsciente, organizada de modo que lhe parece adequado,
algum grau de sensação,
percepção e pensamento... Que certeza de conhecimento

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pode alguém ter de que algumas percepções, como por exemplo, prazer e
dor, não possam ocorrer em alguns dos próprios corpos, modificados e
movidos de certa maneira,
tão bem quanto podem ocorrer em uma substância imaterial em função do
movimento das partes do corpo; corpo esse que, tanto quanto podemos
conceber, só é capaz de
atingir e afetar outros corpos, e movimento esse que, de acordo com o
máximo alcance de nossas idéias, não é capaz de produzir nada senão
movimento, de tal modo
que, quando admitimos que pode produzir prazer e dor, ou a idéia de cor
ou som, resignamo-nos a abandonar nossa razão, ir além de nossas idéias,
e atribuir isso
inteiramente à boa-vontade de nosso Criador. Pois como temos de admitir
que ele anexou ao movimento efeitos que de nenhum modo podemos conceber
que este seria capaz
de produzir, que razão temos para concluir que ele não poderia ordenar
sua produção igualmente em um sujeito que não podemos conceber capaz
deles, tão bem quanto
em um sujeito sobre o qual não podemos conceber de modo algum que o
movimento da matéria possa operar? Não digo isto porque queira
minimamente enfraquecer a crença
na imaterialidade da alma; não estou aqui falando de probabilidade mas de
conhecimento, e penso não apenas que convém à modéstia da filosofia não
se pronunciar autoritariamente
quando nos falta a evidência própria para produzir conhecimento, como
também que nos é útil descobrir até onde nosso conhecimento pode
alcançar... Aquele que reflete
sobre como é difícil reconciliar, em nosso pensamento, a sensação com a
matéria extensa, ou a existência com alguma coisa que não tem
absolutamente nenhuma extensão,
confessará que está muito longe de conhecer com certeza o que é a sua
alma. Este é um ponto que me parece estar fora do alcance de nosso
conhecimento, e aquele que
se permitir refletir livremente e lançar o olhar para a parte intrincada
e obscura de cada hipótese, dificilmente julgará que sua razão é capaz de
leva-lo a concluir
firmemente a favor ou contra a imaterialidade da alma. Dado que, seja
qual for o lado de que a olhe, quer como uma substância inextensa, quer
como matéria extensa
pensante, a dificuldade de conceber qualquer uma delas irá, quando esta
estiver sozinha em seu pensamento, impeli-lo para o lado contrário. Não é
um procedimento
justo o adotado por alguns homens, que, ao encontrarem algo inconcebível
em uma hipótese, lançam-se impulsivamente à hipótese contrária, embora
esta seja tão completamente
ininteligível quanto a primeira para um entendimento imparcial. Isto
serve não apenas para mostrar a fraqueza e inadequação de nosso

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conhecimento, mas o triunfo insignificante dessa espécie de argumentos


que, obtidos a partir de nossas próprias opiniões, podem convencer-nos de
que não há como encontrarmos
certeza em um dos lados da questão, mas não nos ajudam absolutamente a
chegar à verdade quando precipitam-se para a opinião oposta, a qual, se
examinada, mostrar-se-á
embaraçada por iguais dificuldades. Pois que segurança, que vantagem pode
provir para quem quer que seja, com o fito de evitar os aparentes
absurdos e, a seu ver,
os insuperáveis obstáculos encontrados em uma opinião, buscar refúgio na
opinião contrária, que está fundada em algo tão completamente
inexplicável e igualmente
tão distante de sua compreensão? É inquestionável que temos em nós algo
que pensa; nossas próprias dúvidas sobre em que isso consiste confirmam a
certeza da existência
desse algo, embora tenhamos de nos resignar à ignorância de que tipo de
ser isso é; e é fútil tornar-se cético quanto a essa existência, assim
como não é razoável
na maioria dos outros casos pronunciar-se dogmaticamente contra a
existência de uma coisa qualquer porque não conseguimos compreender sua
natureza. Pois muito me
agradaria saber que substância existe que não tem em si algo que
manifestamente desconcerta nosso entendimento. (IV .iii.6)

Não é de surpreender que Locke tenha sido acusado de inconsistência por


um crítico, Stillingfleet, que viu o dualismo endossado na primeira
passagem (II.xxiii.5)
, mas o materialismo admitido na segunda. Locke respondeu que "espírito",
na primeira passagem, significa meramente "substância pensante", "sem
considerar que outras
modalidades ele tem, tal como se ele tem ou não a modalidade da solidez".
Nesse sentido não há dúvida de que espíritos existem, mas não podemos
constatar que não
são materiais, por mais improvável que seja essa possibilidade. Esta
defesa parece frágil, nem que seja apenas porque o que estava em jogo
para um materialista dogmático
como Hobbes era se faz ou não sentido a noção de um espírito imaterial.
Hobbes não negou, é claro, que coisas pensantes materiais existem. O
argumento de Locke contra
o materialista dogmático é que as operações ordinárias (e também a
natureza) da matéria são exatamente tão misteriosas para nós quanto o é o
pensamento; um ponto
que alguns

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materialistas (embora não Hobbes, para quem nada era misterioso) poderiam
estar prontos a admitir. O que Locke necessitava e presumivelmente tinha
em mente, era
simplesmente o anverso do argumento da segunda passagem (IV.iii.6) contra
o dualismo dogmático. Coisas pensantes continuam sendo misteriosas para
nós quer as tomemos
como inteiramente materiais ou como mentes imateriais operando em
combinação com corpos materiais.
Pode muito bem parecer, apesar de todos os apaziguamentos, que esta
continua sendo a situação atual - nem a física nem os discursos sobre as
almas tiveram sucesso
em explicar a consciência. A "inteligência artificial" surge como o passo
mais importante nessa direção, a ponto de alguns a considerarem apenas se
estivermos preparados
para acreditar que alguns computadores têm consciência e que a fisiologia
dos computadores não difere de maneira importante da fisiologia dos
cérebros e sistemas
nervosos. Contudo, por mais admiráveis e ainda relevantes que possam ser
as advertências de Locke contra as maneiras dogmáticas de pensar, o
dualismo de substâncias
é mais profundamente problemático do que o fisicalismo. O próprio Locke
aponta os problemas, nesta e noutras passagens. Se espíritos imateriais
existem no espaço,
surge não apenas a questão de como eles interagem com as coisas
materiais, mas do que é a existência espacial para algo que não ocupa
espaço como os corpos ocupam.
De fato, o que é existir no espaço para algo que não é parte da natureza
física, não é obediente às leis da física? Em que consiste, para essa
coisa, existir em
um lugar e não em outro, se ela está de tal modo desconectada do resto da
realidade? A posição alternativa, cartesiana, de que espíritos não
existem em nenhum lugar,
que são extra-espaciais (uma posição que Locke positivamente rejeitou),
deixa-nos com o intratável problema de dar sentido à individualidade dos
espíritos como "substâncias"
distintas umas das outras, de acordo com algum "princípio de
individuação" diferente daquele familiar, de que coisas substanciais
distintas ocupam distintas posições
espaço-temporais.

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Há, então, boas razões para as suposições correntes de que o pensamento é


um processo físico, razões que são independentes do progresso realizado
em mapear
o funcionamento do cérebro. Contudo, o problema geral de integrar a
experiência subjetiva com a física pode muito bem levar mesmo hoje o
devoto a atribuir a relação
à "boa-vontade de nossa criador" - o que para Locke, deve-se dizer, era
simplesmente uma forma de confessar ignorância sobre a natureza criada.

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ESPÉCIES

A declaração aparentemente modesta de Locke de que nossas "idéias dos


tipos particulares de substâncias" são formadas de idéias das qualidades
e poderes "que a experiência
e observação dos sentidos humanos revela serem coexistentes" trazia
consigo de fato uma carga teórica pesada e, deve-se dizer, altamente
problemática. Ela foi uma
parte da resposta singularmente completa que Locke deu a um desafio que
qualquer proponente do corpuscularismo - mesmo tão cauteloso como ele -
tinha de enfrentar.
Tratava-se do problema de que dizer sobre espécies, dado que tanto as
espécies de coisas vivas quanto os tipos de substâncias químicas
desempenhavam um papel central
no aristotelismo e na ciência alquímica que a nova filosofia propunha-se
a substituir. O velho modelo em biologia era o de uma multiplicidade
hierárquica de espécies
e gêneros, cada um deles com sua própria natureza ou forma, uma
"essência" universal a ser identificada e definida. Nessa teoria, a
definição científica de um certo
tipo de coisas divide um gênero por meio da "diferença" essencial de um
gênero ou espécie inferiores, localizando o tipo em uma hierarquia
natural - na "árvore"
que se ergue da categoria de substância, divide-se em substâncias vivas e
não-vivas, cada ramo ou gênero dividindo-se de novo e assim por diante
até os últimos e
mais finos galhos, as espécies. Essa definição "real" difere da mera
"definição nominal". A "definição real" identifica a essência
explanatória da qual fluem outras
"propriedades" da espécie, isto é, atributos comuns e naturais a todos os
seus membros. Em conseqüência, a postura ereta, a posse de mãos e a
capacidade para a linguagem
e o riso dos

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seres humanos fluem supostamente de sua racionalidade definitória. A
"definição nominal", contudo, simplesmente provê critérios para
distinguir membros da espécie.
Em química, supunha-se que a natureza de cada substância era determinada
por uma proporção de elementos - terra, ar, fogo e água - eles próprios
definíveis pelos
"opostos" qualitativos quente e frio, úmido e seco. Se o corpuscularismo,
no entanto, expulsou a teoria das formas e dos elementos, como poderia
explicar o impressionante
aparecimento, no nível da observação ordinária, de uma hierarquia fixa de
tipos relacionados nos quais se encaixa cada uma das criaturas vivas? Ou
a divisão aparentemente
rígida entre, digamos, diferentes metais e ácidos, de cada um dos quais a
experiência revela que interage com outros e, em geral, que responde de
maneira confiável
a alterações de circunstâncias?

Locke não foi o primeiro dos novos filósofos a argumentar que a natureza
não é um lugar tão rotineiro e ordenado como assumiam os aristotélicos,
mas seu argumento
ocupa uma posição única por seu escopo e pelo seu recurso a princípios
filosóficos mais amplos. Aqui está sua concepção (algo inexata do ponto
de vista biológico)
da "grande cadeia dos seres":

12... Considero provável que haja mais espécies de criaturas inteligentes


acima de nós do que há de criaturas sensíveis e materiais abaixo de nós
pela seguinte consideração:
que em todo o mundo corpóreo visível não vemos hiatos ou brechas. Para
baixo de nós, a descida é por degraus suaves e por uma série continua de
coisas que a cada
passo diferem muito pouco uma da outra. Há peixes que têm asas e não são
estranhos às regiões aéreas, e há alguns pássaros habitantes das águas
cujo sangue é frio
como o dos peixes e cuja carne é tão semelhante à destes em gosto que são
permitidos aos devotos em dias de abstinência. Há animais tão aparentados
tanto aos pássaros
como às bestas que situam-se em uma posição intermediária entre eles;
animais anfíbios ligam os aquáticos aos terrestres, focas vivem na terra
e no mar, e toninhas
têm o sangue quente e as entranhas de um suíno, para não dizer o que se
relata confiantemente de sereias ou homens marinhos. Há alguns brutos que
parecem ter tanto
conhecimento e razão quanto alguns que

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são denominados homens, e os reinos animal e vegetal estão tão


estreitamente unidos que se tomarmos o membro mais inferior de um e o
mais elevado de outro será difícil
perceber alguma grande diferença entre eles; e assim por diante: até
chegarmos às partes mais inferiores e inorgânicas da matéria veremos por
toda a parte que as
diversas espécies estão conectadas e diferem apenas em graus quase
imperceptíveis. (III.vi.12)

Não apenas se questiona aqui a hierarquia ordenada de gêneros, mas põem-


se em dúvida até mesmo as divisões entre espécies. De fato, o mundo
natural de Locke é composto
de indivíduos conectados por uma rede de semelhanças cruzadas, mas
capazes de diferir "em graus quase imperceptíveis". Dada essa desordem e
quase-continuidades,
em que consistem os gêneros e espécies? A resposta de Locke é que são
construtos humanos, uma resposta que virtualmente se segue do fato de
serem universais, dado
que a universalidade é um produto da prática humana, em particular, da
prática de dar nomes gerais às coisas com base em semelhanças:

6 A próxima coisa a ser considerada é como as palavras gerais chegam a


ser criadas. Pois se todas as coisas que existem são apenas particulares,
como chegamos aos
termos gerais, ou onde encontramos essas naturezas gerais que eles
supostamente representam? Palavras tornam-se gerais ao serem feitas
signos de idéias gerais; e
idéias se tornam gerais ao serem separadas das circunstâncias de tempo,
lugar e quaisquer outras idéias que possam determiná-las a esta ou aquela
existência particular.
Por este modo de abstração elas se tornam capazes de representar mais
indivíduos que um único; cada um dos quais, tendo em si algo que está em
conformidade com aquela
idéia abstrata, é (como o chamamos) daquele tipo.

9 ...E aquele que pensa que as naturezas ou noções gerais são algo mais
que essas idéias abstratas e parciais de idéias mais complexas, tomadas
inicialmente de existências
particulares, sentir-se-á embaraçado, eu temo, ao tentar encontrá-las.
Pois que alguém reflita e depois me diga em que sua idéia de homem difere
da de Pedro, e Paulo,
ou sua idéia de cavalo, daquela de Bucéfal, a não

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Ser por deixar de fora algo que é peculiar a cada indivíduo e reter,
dessas idéias particulares complexas de diferentes existências
particulares, apenas aquilo em
que elas concordam? Das idéias complexas significadas pelos nomes homem e
cavalo, deixando de fora apenas aqueles aspectos em que diferem e retendo
apenas aqueles
em que concordam, e destes fazendo uma nova idéia complexa à qual se dá o
nome de animal, obtém-se um novo termo geral que abrange, junto com o
homem, diversas outras
criaturas. Deixe-se de fora da idéia de animal a sensação e o movimento
espontâneo, e a idéia complexa restante, formada pelas idéias simples
restantes do corpo,
vida e nutrição, torna-se uma idéia ainda mais geral, sob o termo mais
abrangente vivens [coisa viva]. E para não me estender mais sobre este
ponto tão evidente
em si mesmo, do mesmo modo a mente procede rumo a corpo, substância e por
fim a ser, coisa e termos universais como esses, que representam qualquer
uma de nossas
idéias. Para concluir, todo esse mistério de gêneros e espécies, que
produziu tanto alarido nas Escolas e é, com justiça, tão pouco levado em
conta fora deles, consiste
simplesmente em idéias abstratas, mais ou menos abrangentes, com nomes a
elas anexados. (III. iii.6, 9)

Esta proposta é sustentada por um apelo à teoria geral do significado de


Locke, que está de acordo com a forma integral de seu empirismo
construtivista. A próxima
passagem versa sobre "nomes" - Locke muitas vezes diz apenas "palavras",
apesar de sua diferente caracterização de palavras como "é", "mas" e
"porque". Os significados
dos nomes, afirma Locke, correspondem a modos de conceber as coisas; isto
é, as "idéias". Nomes são "signos de concepções internas", e idéias são
signos de coisas.

2... Palavras em sua significação primária ou imediata não representam


nada além das idéias na mente de quem as usa, por mais imperfeita e
descuidadamente que essas
idéias tenham sido recolhidas das coisas que se supõe que elas
representam. Um homem fala com outro esperando ser entendido, e a
finalidade da fala é que esses sons,
como marcas, possam tornar conhecidas suas idéias ao ouvinte. Aquilo,
então, de que as palavras são as marcas, são as idéias do falante, e
ninguém pode aplicá-las
imediatamente, como marcas,

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a nada além das idéias possuídas por ele mesmo, pois isso seria fazê-las
signos de suas próprias concepções e, não obstante, aplicá-las a outras
idéias, o que seria
fazê-las, ao mesmo tempo, signos e não-signos de suas idéias e, portanto,
torná-las na prática absolutamente sem significação. Como as palavras são
signos voluntários,
elas não podem ser signos voluntários impostos por ele a coisas que
desconhece. Isso seria fazê-las signos de nada, sons sem significação. Um
homem não pode fazer
de suas palavras signos quer de qualidades de coisas, quer de concepções
na mente de outrem, das quais ele não tenha nenhuma concepção própria.
Até que tenha suas
próprias idéias, ele não pode supor que elas correspondam às concepções
de outro homem, nem pode usar para elas quaisquer signos, pois então
estes seriam signos
ele não sabe de quê, o que, na verdade, é não ser signo de nada. Mas
quando ele representa para si mesmo as idéias de outro homem por meio de
algumas de suas próprias
idéias, se ele consente em dar-lhes os mesmos nomes que outros homens
dão, trata-se ainda de suas próprias idéias, idéias que ele tem, não
idéias que ele não tem.
3 Isto é tão necessário no uso da linguagem que, a esse respeito, o
conhecedor e o ignorante, o erudito e o inculto, usam todos de modo igual
as palavras que falam
(com qualquer significado). Estas, na boca de cada homem, representam as
idéias que ele tem, e que ele expressaria por meio delas. (III.ii.2-3)

Conseqüentemente, palavras não podem ser usadas, como implica a teoria


aristotélica, para nomear diretamente essências específicas no mundo, e a
definição de um
termo não pode ser nada além do desempacotamento de uma concepção humana,
uma "idéia abstrata" formada com base em semelhanças observadas:

13 Não quero, aqui, que se pense que esqueci - muito menos que estou
negando -que a natureza, ao produzir as coisas, faz muitas delas
semelhantes; nada há de mais
óbvio, especialmente nas raças dos animais e em todas as coisas
propagadas por semente. Penso, contudo, que podemos dizer que a
classificação dessas coisas sob nomes
é obra do entendimento, que tira proveito da similitude

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Que entre elas observa para formar idéias gerais abstratas e dispô-las na
mente, com nomes a elas anexados, como padrões ou formas (pois nesse
sentido a palavra
forma tem uma significação muito apropriada) com os quais, à medida que
coisas particulares existentes revelam-se concordantes, elas vêm a ser
daquela espécie, têm
aquela denominação, ou são postas naquela classis. Pois quando dizemos:
isto é um homem, aquilo, um cavalo; isto, justiça, aquilo, crueldade;
isto, um relógio, aquilo,
uma alavanca, que estamos fazendo senão organizar coisas sob diferentes
nomes específicos, à medida que concordam com aquelas idéias abstratas
para as quais estabelecemos
aqueles nomes como signos? E o que são as essências dessas espécies,
arranjadas e marcadas por nomes, senão aquelas idéias abstratas na mente
que são, por assim
dizer, os liames entre coisas particulares que existem e os nomes sob os
quais devem ser classificadas? (III.iii.13)

A tese de Locke compromete-o com duas conseqüências, tão questionáveis


quanto radicais. Primeiro, se os significados são tão estreitamente
ligados a "idéias", segue-se
que os significados das pessoas diferirão tanto quanto diferem seus
conhecimentos. Esta é uma conseqüência que o próprio Locke endossa
abertamente: pessoas com diferentes
conhecimentos e concepções do "metal [que escutam ser] chamado ouro",
significarão coisas distintas pela palavra "ouro". Mas seja o que for que
possa estar errado
com este individualismo semântico, uma outra conseqüência de sua
explicação vem mais a nosso presente propósito. Pois sua explicação
implica que o nome geral de
uma coisa viva ou de um composto químico está ligado a uma aparência
complexa, tanto quanto o adjetivo "branco" está ligado a uma aparência
simples. Contudo, embora
possa ser em geral verdadeiro que classificamos coisas em tipos por suas
propriedades observáveis, fazemo-lo sob a suposição de que essas
propriedades são manifestações
de uma natureza subjacente que é o que realmente determina a participação
no tipo em questão. Leibniz apontou, numa critica direta a Locke, que
duas substâncias
podem ter a mesma aparência e, mesmo assim, diferentes naturezas. Isto
pode ser considerado, se não impossível, então incapaz de ser

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descoberto, se supusermos que a noção de "a mesma aparência" cobre todas


as possíveis observações. Contudo, como Leibniz argumentou, pode muito
bem ter ocorrido
que, em algum estágio do conhecimento humano do ouro, algo que não era
ouro tenha passado todos os testes para ouro. Um novo teste e observações
adicionais podem
então ter revelado a diferença oculta.
Reciprocamente, a mesma natureza subjacente poderia não ter se
manifestado da mesma maneira característica em todos os casos. Leibniz
argumentou que a capacidade
definidora do homem para o pensamento racional poderia estar presente em
um indivíduo, embora inibida por alguma anormalidade acidental.
Conseqüentemente, pode-se
sustentar que a questão de se duas pessoas significam ou não a mesma
coisa por "ouro" ou "humano" não depende de terem a mesma concepção ou de
empregarem os mesmos
critérios para aplicar o termo (a mesma "definição nominal"), mas
simplesmente de usarem-no para a mesma realidade ou natureza subjacente
desconhecida, ou antes,
indiretamente conhecida; isto é, de fato, se o usam para os mesmos
exemplos ou paradigmas do tipo em questão. Quer dizer, o que importa é
que seus diferentes critérios
mapeiem a mesma realidade e selecionem indivíduos do mesmo tipo real,
natural.
A recente teoria semântica tem mostrado tendência a confirmar a crítica
de Leibniz em importantes aspectos, mas sua defesa de suposições
aristotélicas não levantou
nenhum ponto que não tivesse sido considerado por Locke, o qual
argumentou explicitamente que é ilusória a suposição de que o significado
pode ser determinado pelo
que é apenas indiretamente conhecido. Como vimos, ele admitiu que
podemos, num certo sentido, referir-nos ao que não é diretamente
conhecido e, de fato, fazê-lo
mediante nossas idéias de qualidades e poderes secundários, mas ele
argumentou que tal referência é alcançada apenas em relação ao que é
conhecido e experienciado.
A ilusão, para Locke, é supor que podemos pensar sobre o desconhecido de
alguma maneira que não seja

Pág. 56

determinada pelo que é conhecido - que é o que seria necessário para que
o significado dos nomes fosse determinado por essências reais ocultas:
19... Pois embora alguém inclua em sua idéia complexa daquilo chamado
ouro algo que outro deixa de fora, e vice-versa, os homens não julgam
usualmente que com isso
a espécie se modifique, porque eles secretamente, em suas mentes, referem
esse nome, e o supõem anexado, a uma essência real imutável de uma coisa
existente da qual
essas propriedades dependem. Não se deve supor que aquele que acrescenta
à sua idéia complexa de ouro a idéia de estabilidade ou de solubilidade
em água-régia, que
antes nela não incluía, tenha modificado a espécie, mas apenas que
adquiriu uma idéia mais perfeita pelo acréscimo de outra idéia simples
que sempre está, de fato,
conjugada às outras das quais se compunha sua idéia complexa anterior.
Mas... por essa referência tácita à essência real daquela espécie de
corpos, a palavra ouro...
passa a não ter nenhuma significação, pois se apresenta como
representante de algo de que não temos absolutamente nenhuma idéia, e por
isso não pode significar absolutamente
nada quando o próprio corpo não está presente. Pois por mais que se possa
pensar que são a mesma coisa, uma adequada consideração revelará que há
muita diferença
entre discutir sobre ouro como nome e sobre uma porção do próprio
material, por exemplo, um pedaço de folha de ouro colocado diante de nós,
embora no discurso tenhamos
a inclinação de tomar o nome pela coisa, (III,x, 19)

Esse argumento, que liga estreitamente significado e conhecimento, não


exclui, rigorosamente, a possibilidade de que haja uma ordem natural de
espécies e gêneros,
mas tenta provar que, seja como for, não poderíamos esperar apreender
essa ordem por meio de nossa classificação, ou, caso a apreendêssemos,
reconhecer que o fizemos.
Para Locke não há possibilidade de identificar uma espécie - isto é, uma
essência específica - simplesmente por referência a paradigmas
individuais ("por exemplo,
um pedaço de folha de ouro colocado diante de nós"), dado que falar sobre
uma essência (na verdade, falar de "folha de ouro") já supõe uma
classificação:

Pág. 57

4 Que essência, no sentido ordinário da palavra, relaciona-se a tipos, e


que só é considerada em seres particulares enquanto estão classificados
em tipos, provém
disto: que basta retirar as idéias abstratas pelas quais ordenamos
indivíduos e os classificamos sob nomes comuns e instantaneamente
desaparece o pensamento de alguma
coisa essencial a qualquer deles; não temos nenhuma noção disto sem
aquilo, o que mostra claramente sua relação. É necessário para mim ser
como sou; DEUS e a natureza
fizeram-me dessa forma, mas não há nada que eu tenha que seja essencial a
mim. Um acidente ou doença pode muito bem alterar minha cor ou forma; uma
febre ou uma
queda podem fazer-me perder a razão, ou a memória, ou ambas, e uma
apoplexia, não deixar nem sensação, nem entendimento, nem vida. Outras
criaturas com minha forma
podem ser feitas com mais e melhores, ou com menos e piores, faculdades
do que as que tenho, e outras podem ter razão e sensação em uma forma e
corpo bem diferentes
dos meus. Nenhuma destas coisas é essencial para um, ou outro, ou
qualquer indivíduo que seja, até que a mente o refira a algum tipo de
espécie de coisas; e então,
logo em seguida, algo se revela essencial, em conformidade à idéia
abstrata daquele tipo. Que qualquer um examine seus próprios pensamentos,
e descobrirá que, tão
logo suponha ou fale de algo essencial, vem-lhe à mente a consideração de
alguma espécie, ou da idéia complexa significada por algum nome geral, e
é em referência
a esta que tal ou tal qualidade é dita ser essencial...

5...Pois eu perguntaria a qualquer um o que é suficiente para estabelecer


uma diferença essencial, na natureza, entre dois seres particulares
quaisquer, sem nenhum
recurso a alguma idéia abstrata tomada como essência e norma da espécie?
Se todos esses padrões e normas forem deixados de lado, os seres
particulares, considerados
apenas em si mesmos, exibirão todas as suas qualidades como igualmente
essenciais, e tudo, em qualquer indivíduo, será essencial para ele, ou, o
que é mais exato,
nada o será. Pois embora possa ser razoável perguntar se obedecer ao
magneto é essencial ao ferro, penso que é, contudo muito impróprio e sem
sentido perguntar se
isso é essencial à particular peça de metal com que corto minha pena, sem
considerá-la sob o nome ferro, ou sendo de uma certa espécie. E se, como
foi dito, nossas
idéias abstratas que têm nomes a elas anexados são as fronteiras das
espécies, nada pode ser essencial exceto o que está contido nessas
idéias. (III. vi.4-5)

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Esse argumento sobre classificação é bastante geral, mas é em boa parte


motivado por sua consonância com a crença de Locke quanto ao que mais
provavelmente subjaz
às propriedades observáveis das coisas, a saber, estruturas quase-
mecânicas sobrevivendo temporariamente em meio ao fluxo de corpúsculos.
Pois estas estruturas são
tão diferentes das essências universais de Aristóteles que parecem a
Locke incapazes de prover fronteiras entre espécies como o fazem, sem
decisão humana, as propriedades
observáveis elas mesmas. Dada uma classificação, podemos falar das
"constituições reais" de espécies - das estruturas que jazem por trás das
propriedades observáveis
que figuram em nossas definições - mas "constituições reais" de
indivíduos tomados mente como tais estão em fluxo contínuo. Locke
estabelece esse ponto ao distinguir
entre "essências reais" e "essências nominais", ecoando a distinção
aristotélica entre definições reais e nominais. Seu argumento é
dialético, visando primeiramente
a "essências reais" individuais e movendo-se a seguir para a posição de
que, dado que "essência... relaciona-se a tipos", o discurso
significativo sobre uma "essência
real" é sempre relativo a uma essência nominal.

19...Todas as coisas que existem, além de seu autor, são suscetíveis a


mudança, especialmente as coisas com as quais estamos familiarizados e
que classificamos em
grupos sob distintos nomes ou insígnias. Assim, isto que era hoje capim é
amanhã carne de um cordeiro, e alguns dias depois torna-se parte de um
homem; e é evidente,
em todas essas mudanças e outras assemelhadas, que sua essência real,
isto é, aquela constituição da qual dependem as propriedades dessas
diversas coisas é destruída
e perece com elas. Mas se essências forem tomadas como idéias,
estabelecidas na mente, com nomes a elas anexados, supõe-se então que
elas permanecem constantemente
as mesmas, sejam quais forem as mutações a que são suscetíveis as
substâncias particulares...Desse modo, a essência de uma espécie
permanece íntegra e segura, mesmo
sem a existência de um único indivíduo daquele tipo. (III.iii.19)

6 É verdade que mencionei muitas vezes uma essência real, distinta, nas
substâncias, das idéias abstratas delas que denominei sua

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essência nominal. Por essa essência real entendo a constituição real de


alguma coisa, que é o fundamento de todas aquelas propriedades que estão
combinadas na essência
nominal e que sempre se observa coexistirem com ela; aquela particular
constituição que cada coisa tem dentro de si mesma, sem nenhuma relação
com algo externo.
Mas essência, mesmo neste sentido, relaciona-se com um tipo, e supõe uma
espécie; pois sendo a constituição real da qual as propriedades dependem,
ela necessariamente
pressupõe um tipo de coisas, já que propriedades pertencem apenas a
espécies, e não a indivíduos. Por exemplo, supondo-se que a essência
nominal de ouro seja corpo
de uma tal cor e peso peculiares, com maleabilidade e fusibilidade, a
essência real é aquela constituição das partes de matéria da qual essas
qualidades e sua união
dependem, e é também o fundamento de sua solubilidade em água-régia, e
outras propriedades que acompanham aquela idéia complexa. Há aqui
essências e propriedades,
mas apenas sob a suposição de um tipo, ou idéia geral abstrata, que se
considera imutável; mas não há nenhuma porção individual de matéria à
qual qualquer destas
qualidades esteja associada de modo a ser-lhe essencial, ou inseparável
dela...De fato, quanto às essências reais das substâncias, apenas supomos
que existem, sem
conhecer precisamente o que são; mas aquilo que as liga às espécies é a
essência nominal, da qual elas são a suposta fundação e causa. (III.vi.6)
Tendo rejeitado o ideal de um "sistema natural" baseado em essências
reais, Locke desenvolve sua clássica e influente concepção de uma boa
classificação prática:
devemos traçar fronteiras onde quer que isso pareça mais útil para
coletar os resultados de cuidadosas observações e experimentos, sem
jamais perder de vista a importância
da concordância geral, sem o que a própria linguagem tende a perder sua
função. O argumento, como a maioria dos discutidos neste livro, tem mais
complexidades e
implicações do que se pode explorar aqui. E como todos os argumentos
discutidos, ele é uma parte da empreitada central de Locke de mapear a
relação entre experiência
e teoria. Os efeitos dessa empreitada, e dos insights e erros de Locke,
estão ainda conosco, muitas vezes como uma parte tão integral de nossa
herança intelectual
que sequer os notamos.

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