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garantismo que entreabre um horizonte de esperança (de esperan- Penal sem Limite
tar), seja no sentido da urgente responsabilidade que pesa sobre os
operadores de contenção da violência institucional, seja no sentido
do derradeiro imperativo humanista e societário de invenção de mo-
delos não violentos de controle social. o conceito paradigmático de Direito penal na modernidade é o
de um Direito identificado com a lei (normatividade) e a Ciência Pe-
nal dogmática ou Dogmática penal, racionalizadordo poder punitivo
estatal e assim sacralizado como Direito garantista.
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3 Politicidade do Direito Penal: Do Limite do Poder Penal ao Poder Penal sem Limite
PELAS MÃOS DA CRIMINOLOGIA· O controle penal para além da (des)ilusão
289WEBER, Max. o político e o cientista. Trad. Carlos Grigo Babo. Lisboa: Presença,
1979. p. 17. ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. O {caro da modernidade: direito e po-
'88Segundo a distinção entre delitos "naturais" e "artificiais'; devida a Rafael Garofalo lítica em Max Weber. São Paulo: Acadêmica, 1997.
(Criminologia: estudo sobre o delito e a repressão penal. Tradução por Júlio Matos. 290SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da pena. Fundamentos políticos e aplicação judi-
São Paulo: Teixeira & Irmãos, 1983), considera-se que apenas os delitos "artificiais" re- cial. Curitiba: ICPClLumen Juris, 2005. v. 1. p. 5.
presentam, excepcionalmente, violações de determinados ordenamentos políticos e 291WEBER, Max. O político e o cientista. Trad. Carlos Grigo Babo. Lisboa: Presença, 1979. p. 17.
econômicos e resultam sancionados em função da consolidação destas estruturas.
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3 Politkiâade do Direito Penal: Do Limite do Poder Penal ao Poder Pena/sem Limite
PELAS MÃOS DA CRIMINOLOGIA • O controle penal para além da (des)ilusão
e
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PELAS MÃOS DA CRIMINOLOGIA· Ocontrole penal para além da (des)ilusão 3 Politicidade do Direito Penal: Do Limite do Poder Penal ao Poder Penal sem Limite
tico), mas sim passa a ocupar, ora simbólica ora instrumentalmente, Há mortes em confrontos armados (alguns reais e a maioria si-
o próprio centro do político, que com ele se mimetiza, a ponto de mulada, ou seja, fuzilamentos sem processo). Há mortes por gru-
converter o Estado densamente em Estado penal, num tempo em pos parapoliciais de extermínio em várias regiões. Há mortes por
que a pena, notada mente de prisão, não apenas perdeu a funciona- grupos policiais ou parapoliciais que implicam a eliminação dos
lidade declarada e o sentido, dando vazão ao cenário das "penas per- competidores em atividades ilícitas (disputa por monopólio de
distribuição de tóxicos, jogo, prostituição, áreas de furtos, roubos
didas" (Louk Hulsrnan-?'), mas em grande medida a perdeu porque
domiciliares etc.). Há 'mortes anunciadas' de testemunhas, juizes,
órfã está de todo limite. Se o Direito penal aí subsiste, e só faz se agi-
fiscais, advogados, jornalistas, entre outros. Há mortes de tortu-
gantar com a criação a cada dia de mais leis penais e programações rados que 'não aguentaram' e de outros com que os torturadores
criminalizadoras, e se as penas se desnudam como penas ilimitadas 'passaram do ponto: Há morte> 'exemplares' nas quais se exibe o
(penas arbitrárias e cruéis) no limite genocidas (penas de morte indi- cadáver, às vezes mutilado, ou se. enviam partes do cadáver aos
retas), dentro e fora das masmorras prisionais como penas sem fun- familiares, praticadas por grupos de extermínio pertencentes ao
ções úteis e sem sentido, é porque empírica e criminologicamente pessoal dos órgãos dos sistemas penais. Há mortes por erro ou
demonstrado parece estar, limite da pena, o Direito penal, na melhor negligência, de pessoas alheias a qualquer confi ito. Há mortes do
das hipóteses, não é mais. pessoal dos próprios órgãos do sistema penaLHáaltafrequência
de mortes nos grupos familiares desse pessoal cometidas com as
A conclusão fundamental de Zaffaroni-" nesse sentido é: (a) na mesmas armas cedidas pelos órgãos estatais. Há mortes pelo uso
América Latina o sistema penal não viola unicamente os direitos hu- de armas, cuja posse e aquisição são encontradas permanente-
manos dos criminalizados, mas de seus próprios operadores, dete- mente em circunstâncias que nada têm a ver com motivos dessa
riorando regressivamente os que o manejam ou assim o creem; (b) instigação pública. Há mortes em represália ao descumprimento
de palavras dadas em atividades ilícitas cometidas pelo pessoal
a deslegitimação do sistema penal é não apenas teórica, mas visivel-
desses órgãos do sistema penal. Há mortes violentas em motins
mente empírica, resultante da evidência dos próprios fatos.
carcerários, de presos e de pessoal penitenciário. Há mortes por
A "ética deslegitimante" do Direito penal é a própria morte hu- violência exercida contra presos nas prisões. Há mortes por do-
mana, ou, mais dramaticamente, "a magnitude e notoriedade do fato enças não tratadas nas prisões. Há mortes por taxa altíssima de
morte que caracteriza seu exercício de poder': de forma que implica suicídios entre os criminalizados e entre o pessoal de todos os
órgãos do sistema penal, sejam suicídios manifestos ou incons-
"um genocídio em marcha, em ato'?", pois, como dramaticamente
cientes. Há mortes [...l'
mapeia Zaffaroni?", na geografia do poder punitivo:
A partir dessa perspectiva é que se justifica e se compreende a
294 HULSMAN, Louk; BERNAT DE CELlS, Jacqueline. Penas perdidas: o sistema penal em
função de "salvamento de vidas humanas'; que Zaffaronf''" atribui à
questão. Tradução por Maria Lúcia Karam. Rio de Ja neiro: Luam. 1993. Criminologia, em especial na América Latina:
295 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do
sistema penal. Tradução por Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio [...] a criminologia não é 'uma cíência, mas o saber - proveniente
de Janeiro: Revan, 1991.p. 143-144. de múltiplos ramos - necessário para instrumentalizar a decisão
296 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La crítica ai derecho penal y el porvenir de Ia dogmática
política de salvar vidas humanas e diminuir a violência política
jurídica. In: CUESTA, Jose Luis de Ia et 01.(Comp.). Criminologia y derecho penal ao ser-
vicio de Ia persona. Libro-Homenage aI profesor Antonio Berinstaino. San Sebastián:
em nossa região marginal com vistàs a se alcançar, um dia, a su-
Instituto Vasco de Criminologia, 1989. p. 434; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das pressão dos sistemas penais e sua substituição por formas efeti-
penas perdidas: a perda de legitimidade dosisterna penal. Tradução por Vânia Roma-
no Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 38, 67.
297 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do 298 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do
sistema penal. Tradução por Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio sistema penal. Tradução por Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio
de Janeiro: Revan, 1991. p. 125. de Janeiro: Revan, 1991. p. 171-172.
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PELAS MÃOS DA (RIMI NOLOGIA • O controle penal para além da (des)ifusão 4 Identidade e Funcionalidade do Judiciário: ..•
penal), definindo os contornos da crise do Judiciário e entreabrindo tutiva de sua matriz. Não é por outra razão que o rosto deste sobe-
com radicalidade o interrogante sobre as responsabilidades institu- rano produziu, para funcionalizá-Io, uma cultura jurídica positivista,
cionais dos atores do controle. de inspiração liberal (formalista e conservadora), cujo subproduto
mais secularizado é um saber, a chamada Dogmática jurídica, disci-
O Poder Judiciário que herdamos é um elemento coconstitutivo
plina esta bifurcada em tantos ramos quantos direitos se criaram e se
da modernidade, de seu desenvolvimento contraditório e, portanto,
criam, e que constitui até hoje a matriz da formação dos operadores
de seus déficits e excessos funcionais, de suas promessas não cum-
jurídicos, produzindo um jurista-tipo (técnico) e um senso comum
pridas e de sua crise (que aparece como uma crise estrutural), ao
jurídico e punitivo que se mantêm e se encontram fortalecidos em
tempo em que constitui um locus de seus sintomas. tempos de globalização neoliberal. É por isso que a lógica estrutural
Qual é, pois, a identidade ou rosto do "Poder Judiciário"que emer- de funcionamento do Judiciário no universo do sistema de justiça é a
o
ge nesse modelo? Emerge rosto de um poder que,sacralizado pela seletividade (a gestão diferencial da justiça), que expressa e reprod uz
teoria da separação dos poderes ·e iristitucionallzado no marco do a desigualdade de classe, a hierarquia de gênero e a discriminação
Estado de direito liberal edo direito estatal {a lóqica mora sua contradição estrutural com a igualdade jurídica (cida-
do Direito), deveria confinar o exercício de sua soberania "à boca que dania); seletividade que o tema do acesso àjustiça apenas tangencia,
pronuncia as palavras da lei"301.Um Poder Judiciário independente e epidermicamente.
autônomo, signo da neutralidade ideológica que, garantindo-lhe a
Essalógica, empiricamente visível na justiça penal, estende-se em
serena condição de árbitro imparcial dos conflitos (interindividuais) e
maior ou menor grau a todo o modelo jurídico moderno. Se a neutra-
a segura aplicação da lei, garantidora dos direitos individuais, replica-
lidade deste "poder" reverteu nas "cinzas de um passado que nunca
va a confortável separação liberal entre poder (o Legislativo) e Direito
exlstiu'?", deixou-nos ele, entre tantas heranças, a força simbólica do
(o Judiciário despolitizado). mito. Imperioso, pois, enfrentar o mito: para além do mito da neutra-
Dessa forma, o Judiciário emerge na modernidade como porta- lidade, o mito da unidade.
dor de um conjunto de promessas ou funções declaradas, vincula-
De fato, se até aqui busquei apreender a unidade funcional do
das ao pilar da emancipação (defesa de interesses e direitos, justiça, Judiciário no universo do sistema de justiça e sua conexão funcional
solução de conflitos) e esta discursividade de um poder a serviço do com a sociedade (seletividade reprodutora de desigualdades), é pre-
homem constitui o horizonte ideológico sob o qual se desenvolve ciso passar agora do Judiciário no singular para oJudiciário no plural;
até hoje a sua legitimação e o horizonte simbólico onde têm sido
é preciso pluralizar este sujeito monumental para reencontrar as jus-
travadas infindáveis lutas pela efetividade dos direitos humanos e da
tiças plurais por meio das quais tanto aquela ambiguidade potencial
cidadania, com um impacto cotidiano sobre vidas humanas que não
quanto aquela unidade funcional se materializam. Primeiramente,
é possível contabilizar. porque o Judiciário não está só: ele integra um sistema de justiça
Mas, não obstante seus potenciais emancipatórios, o Judiciário- por meio do qual exerce a sua funcionalidade a várias mãos formais
-instituição foi desde sempre um braço nobre da regulação social (legislador, Polícia, Ministério Público, advocacia, prisão) e informais
e, portanto, um poder funcionalizado para a reprodução das estru- (escola, família, mídia, mercado de trabalho, religião, medicina, psi-
turas sociais (o capitalismo patriarcal e racista) de suas instituições
e relações sociais, marcado inteiramente pela ambiguidade consti- 302 SOUSA SANTOS,Boaventura de. Da sociologia da ciência à política científica. Revista
Crítica de Ciências Sociais. Coimbra, n" 1, p. 11-56, junho 1978. Coimbra. Disponível
em: <http://br.librosintinta.in/biblioteca/ver·pdf/www.boaventuradesousasantos.
301 MONTESQUIEU,Charles de Secondat. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, pt/ media/ pdfs/Da_socio log ia_ da_ ciencia_a_polit ica_cien tif ca_RC CS 1 .PDF.htx>.
1973. (Coleção Os pensadores, n 21.)
Q Acesso em: 10 jul. 2012.
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PELAS MÃOS DA CRIMINOLOGIA· O controle penal para além da (des)i1usão 4 Identidade e Funcionalidade do Judiciário: ...
quiatria etc.). A seguir, porque essa funcionalidade é exercida sobre de inclusão, a justiça penal é dimensão de exclusão social. São
objetos diferenciados, podendo-se falar, parafraseando Foucault, em processos contraditórios, então, no sentido de que a construção
arquipélagos judiciais: a divisão entre justiças militar e comum, pe- (instrumental e simbólica) da criminalidade pelo sistema de jus-
nal e civil, do trabalho, tributária, eleitoral, da infância e adolescência, tiça penal, incidindo seletiva e de modo estigmatizante sobre a
ambiental, do consumidor etc. pobreza e a exclusão social, preferencialmente a masculina e de
cor (veja-se a clientela da prisão nas sociedades capitalistas, pa-
_ Nenhuma diferenciação, entretanto, ilustra melhor a ambi-
triarcais e racistas), reproduz, impondo-se como obstáculo central
guidade constitutiva do Judiciário e a crescente colonização da
à construção da respectiva cidadania.
emancipação pela regulação do que a referência às funções politi-
camente contraditórias que lhe foram atribuídas, a saber, de ser um A era da globalização do capitalismo, que arrasta consigo a glo-
dos protagonistas da construção social da criminalidade (da crimi- balização dos conflitos e dos riscos, é marcada, sob o domínio le-
nalização) e da construção social da cidadania. Daí resulta seu exer- gitimador da ideologia neoliberal, por um duplo movimento: (a)
cício de poder como justiça, que deve operacionalizar as promessas maximização do poder econômico globalizado versus minimização .
cidadãs potencialmente emancipatórias gravadas na Constituição (seletiva) do poder político nacional e (b) fragilização dos canais tra-
da República e as promessas crim inalizadoras da legislação penal dicionais de mediação política entre Estado e comunidade, ou seja,
que, não deixando de estar contidas no projeto constitucionaÇsão dos atores políticos tradicionais (partidos, parlamento, administra-
abertamente reguladoras. No exercício da primeira função, concor- ção) e do espaço público democrático.
re para distribuir seletivamente crimes e penas: o status negativo
No prolongamento desse movimento e como seu retrato in-
de criminosos e vítimas. No exercício da segunda, concorre para
trassistêmico se desenvolve outro, de reengenharia institucional:
distribuir seletivamente direitos e deveres sociais: o status positi-
o movimento de maximização do Estado penal versus minimiza-
vo de cidadania, Tais funções se antagonizam nos binômios punir
ção do Estado social (a que venho denominando Estado do mal-
versus prover e regulação violenta versus emancipação possível, no
-estar penal). Ao Estado neoliberal mínimo, no campo social e da
limite da regulação (compensação da seletividade c1assista,como
cidadania, passa a corresponder um Estado máximo, onipresente
na justiça do trabalho).
e espetacular, no campo penal. O Estado não apenas se retira da
Dessarte, enquanto a cidadania recoberta pelo direito consti- intervenção na ordem econômica e social, agravando o profundo
tucional é dimensão de luta pela emancipação humana, em cujo déficit de promessas não cumpridas, em cujo centro está o déficit
centro radica(m) oís) sujeito(s) e sua defesa intransigente (exercí- de direitos humanos e cidadania, sobretudo os de terceira geração,
cio de poder emancipatório), a criminalização pela justiça penal mas nesta retirada substitui o modelo de combate à pobreza, típico
(exercício institucionalizado de poder punitivo) é dimensão de do Welfare 5tate, pelo modelo de combate aos pobres e excluídos
controle e regulação social, em cujo centro se radica a reprodução dos benefícios da economia globalizada, um modelo abertamente
de estruturas e de instituições sociais e não a proteção do sujeito, excludente: assim como o poder está nu, o limite da luta de classes
ainda que em nome dele fale e se legitime. Enquanto a cidadania também está. Os déficits de dívida social e de cidadania são am-
é dimensão de construção de direitos e necessidades, a justiça pe- pla e verticalmente compensados com excessos de criminalização;
nal é dimensão de restrição e violação de direitos e necessidades. os déficits de terra, moradias, educação, estradas, ruas, empregos, j
Enquanto a cidadania é dimensão de luta pela afirmação da igual- escolas, creches e hospitais com a multiplicação de prisões; a ins-
dade jurídica e da diferença das subjetividades, a justiça penal é trumentalidade da Constituição, das leis e dos direitos sociais com
dimensão de reprodução da desig ualdade e de desconstrução das o simbolismo da lei penal; a potencialização da cidadania com a
subjetividades. Em definitivo, enquanto a cidadania é dimensão vulnerabilidade à criminalização.
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Estamos, assim, diante de uma autêntica "indústria do contro- humanos e da cidadania sonegados pelos sistemas econômico e po-
le do crime'?", que realizando a passagem do "Estado-providência" lítico. A tradicional onipotência do Poder Judiciário é (re)posta em
para o" Estado-penitência'?" cimenta as bases de um "genocídio em cena, como se ele fosse capaz de operacionalizar aquela justiça total
marcha'; de um "genocídio em ato':3osTrata-sede um movimento de e totalizadora, que significa tudo e nada, e que o poder dramatúrgico
colonização do Estado e da justiça pelo sistema de justiça penal, cuja da mídia retrata a cada entrevista focada na dor: o que você deseja?
consequência direta, possibilitada pela revolução tecnológica, é a Que se faça justiça!
transfiguração da política em política-espetáculo, com o fortaleci-
Estamos diantedo movimento de"judicialização" dos conflitos ou
mento singular da mídia como loeus de controle social e de legitima-
dos problemas sociais no interior do qual o movimento de crimina-
ção do poder. Esta "boca do poder" se encarrega de encenar, entre o
lização (o preferido do poder globalizado) aparece como coloniza-
misto do drama e do espetáculo, uma sociedade comandada pelo
dor intrassistêmico. Esta sobrecarga, que tem sua matriz formal no
banditismo da crirninalidadee ao tornar este "inimigo" cenicamente
Legislativo (hiperinflação legislativa e criminalizadora), ou seja, no
. maior que todos os demais coconstítui e amplifica um imaqinário so-
input do sistema de justiça, potencializa os sintomas e as críticas de
cial amedrontado. Eis aí a engenharia e a cultura do medo.
lhéficlêncláémorosidade da resposta judicial, ou seja, no output do
o Estado, impossibilitado de oferecer soluções instrumentais e sistema, originando, a sua vez, um extraordinário e errático reformis-
democráticas para a conflitividade crescente gerada pelas condi- mo jurídico, sempre em nome das promessas déficitárias, sempre em
ções excludentes do poder econômico globalizado e agravada por busca da "eficiência perdida" (por isso "eficientista"), ai nda que à custa
sua própria ausência, produz um espetáculo continuado de soluções da crescente e aberta negação das garantias individuais: vivemos um
simbólicas, sendo um dos meios preferidos do Estado-espetáculo a tempo de reformas em todos os campos do direito, sob o signo da
produção de leis que prometem mais direitos e mais soluções, nota- sintomatologia da crise do Judiciário, mediante as quais os arquipé-
damente penais, para solucionar o gigante da criminalidade que ele lagos tendem a se bifurcar (penas e medidas alternativas, juizados
próprio cria. especiais cíveis e criminais em níveis federal e estadual, sucessivas
reformas processuais e penitenciárias etc.).
Estamos diante dos fenõmenos de hiperinflação legislativa e de
função simbólica do Direito e do sistema de justiça: um intrincado e A crise do Judiciário enquanto coconstitutiva e sintoma da crise
contraditório mosaico de leis produzidas para não serem cumpridas, estrutural da modernidade estaria configurada pelo seu desenvol-
sem possibilidade de operacionalização pelo próprio Judiciário, mas vimento desequilibrado entre regulação (excessiva) e emancipação
apenas para gerar a ilusão de solução dos problemas. E é justamente (déficitária), desequilíbrio agravado no presente pelo excesso de cri-
nesta espetacular constelação de circunstâncias e vazio de respostas minalização e pela colonização da justiça pela justiça penal, excesso
que se deve buscar compreender a extraordinária sobrecarga de fun- tensionado, a sua vez, por uma também estendida demanda pelo
ções e responsabilidades que tem sido canalizada e transferida ao cumprimento das promessas déficitárias, seja trazendo à cena velhas
Poder Judiciário, talvez um dos atores mais demandados neste início demandas e direitos de efetividade nula ou relativa, seja trazendo à
secular, para que concretize as promessas de realização dos direitos cena necessidades e direitos inéditos, por atores individuais e coleti-
vos, impondo ao Judiciário uma tarefa imensamente superior à sua
intrínseca capacidade.
303 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do delito. A caminho dos GULAGs em estilo
ocidental. Tradução por Luis Leiria. São Paulo: Forense, 1998.
Se o Judiciário atravessa a modernidade profundámente ten-
304 WACQUANT, Lõic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
305 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sionado pelas exigências contraditórias de regulação/emancipação
sistema penal. Tradução por Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio (dilema entre legalidade-segurança e justiça), sua ambiguidade
de Janeiro: Revan, 1991.
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