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Notas de Saúde Pública e Ambiental

ÁGUA E SAÚDE

Pediram-me para falar sobre água e saúde e,


também, na perspectiva correcta, da água como
alimento.

Como começar? Lembrei-me de ir a um site da


Internet e procurar uma das muitas águas que se
vendem por aí. Logo à primeira, verifiquei que
publicitava, entre muitas outras coisas, dez razões
para a consumir. Passo a citá-las e a comentar.
Primeira: - “A água é essencial à vida”. Esta frase é
tão evidente que nem merece comentários. Apenas
algumas curtas observações. A vida começou na
água, o nosso corpo é essencialmente constituído por
água e aquela frase segundo a qual viemos do pó e
ao pó regressaremos melhor seria substitui-la por da
água viemos e à água regressaremos! Segunda
razão: - “É uma fonte de beleza e de juventude”. São
várias as lendas da procura da fonte de juventude.
Faz parte da cultura de muitos povos que procuram
nas águas a forma de impedir o envelhecimento. Mas
considerá-la hoje na forma engarrafada é muito
menos poético. Quanto à beleza, nada a dizer até

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Salvador Massano Cardoso

porque a água não é só um alimento, mas


desempenha função primordial na higiene dos corpos,
base da conservação da beleza, para a quem a tem,
como é evidente. Terceira razão: - “Ajuda a recuperar
de uma ressaca”! Por esta não esperava. Claro que
uma bebedeira se acompanha de transtornos do
equilíbrio hídrico com perdas devido à acção do
álcool, o que leva os cultivadores ou os ocasionais
dos excessos de bebidas alcoólicas a terem de beber
grandes quantidade de água no dia seguinte. Para o
efeito basta qualquer tipo de água, desde que não
esteja contaminada, quer por bactérias, vírus,
parasitas ou eventual álcool. Quarta: - “Facilita a
recuperação muscular”. Este aspecto relaciona-se
com o facto de algumas águas serem mais
mineralizadas do que outras o que ajuda a repor as
perdas de sais e iões indispensáveis ao normal
funcionamento dos músculos. Quinta: - “Facilita a
digestão”. Neste aspecto, reconheço propriedades
terapêuticas tão procuradas nas águas ao longo dos
tempos quer na forma de banhos ou ingestão. Sexta:
- O facto de ser considerada como uma bebida
natural isotónica vem na sequência do que já foi dito,
a propósito de um elevado teor de sais minerais que
muitas águas apresentam Sétima: - “Realça o paladar
dos alimentos”. Neste caso, sou obrigado a comentar

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que já foi criada, em 2004, a “Confraria da Água -


Associação dos Provadores de Água de Portugal” que
tem como missão “valorizar, promover e dignificar a
água natural portuguesa, tanto na vida como na
mesa”. A razão de ser desta organização assenta em
outras semelhantes, como é do caso do vinho
Segundo uma notícia publicada na altura, “A nova
Confraria”, com o objectivo de dinamizar a presença
da água natural nos restaurantes, a par da habitual
“carta de vinhos”, propõe que haja, também, uma
“carta de águas” para o consumidor escolher a mais
adequada para acompanhar a refeição, e desenvolver
“acções de divulgação e sensibilização para a
preservação das águas naturais e salvaguarda dos
recursos hidrogeológicos, preservando-os das
contaminações e poluição provenientes do
desenvolvimentos não sustentado”. Quanto à
segunda parte estou perfeitamente de acordo, porque
os riscos de contaminação hídrica são cada vez mais
preocupantes. Relativamente à primeira, e apesar de
ainda há pouco tempo ter recebido um pequeno, mas
ilustrativo manual explicando como fazer a selecção
das águas para acompanhar os diferentes pratos e
alimentos, reconheço não ter grande queda nem
capacidades para desfrutar as alegrias de uma
degustação hídrica. Oitava: - “Protege os dentes”.

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Neste aspecto, muitas águas mineralizadas contém


flúor, elemento indispensável ao combate da cárie
dentária. Realmente as pessoas que vivem em zonas
de águas ricas em flúor estão mais protegidas desta
afecção, se bem que corram riscos de intoxicação,
caso da fluorose. De um modo geral, as águas
portuguesas não contêm teores elevados de flúor,
excepto algumas, nomeadamente, as mais
mineralizadas. Mas também não há casos de fluorose,
salvo nos Açores. De qualquer modo, este achado
esteve na base da técnica de fluorização das águas de
abastecimento, mas que acabou por ser abandonada
ao fim de algum tempo, devido aos efeitos
secundários. Nona: - “Pode ajudar a regular o
colesterol”. Neste caso, sabe-se, desde há muito
tempo, que as pessoas que vivem em zonas cujas
águas são ricas em cálcio e em magnésio têm uma
mortalidade mais baixa de doenças cardiovasculares.
Pessoalmente, durante muitos anos efectuei muitas
experiências nesta área, com diversas espécies de
animais, tendo concluído por um efeito protector
cardiovascular e hipolipediamente das águas mais
ricas em cálcio e magnésio, facto que pode explicar
as variações regionais de mortalidade e morbilidade
cardiovascular. Décima: - “É uma fonte natural de
cálcio”. De facto, o cálcio, e muitos outros elementos

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encontram-se na forma iónica o que confere


actividade bioquímica mais intensa. A quantidade de
cálcio que algumas águas apresentam, sobretudo as
do Centro da Europa, propiciam um suplemento
alimentar nada discipiendo, mas que em Portugal, de
um modo geral, não ocorre, já que a tendência das
nossas águas é para a hipomineralização.

Gostaria agora de analisar alguns conceitos sobre a


água numa perspectiva de sociologia médica. A água
é fonte da vida mas também é de morte. Podemos
afirmar, sem exagero, que, ainda hoje, a maior parte
das doenças são transmitidas ou relacionadas com
este elemento, não só no mundo subdesenvolvido,
mas à escala global. A atitude humana face à água é
de facto única. São-lhe atribuídas nalguns casos
propriedades miraculosas. Águas santas ocorrem em
todos os países e continentes e são procuradas com
muito afinco para a solução de muitos problemas. A
procura da água pura é uma constante, perfeitamente
compreensível, mas começa a atingir foros
preocupantes. Senão vejamos: quem diria que o
negócio das águas engarrafadas constituiria um dos
mais lucrativos negócios dos nossos tempos? Tornou-
se um verdadeiro acessório, publicitada a todos os
níveis, lembrando às pessoas que têm a obrigação de

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proteger a sua saúde, como se a água da torneira


constituísse um atentado à integridade física das
pessoas! Uma reunião que se preze tem sempre uma
garrafa de água à nossa frente. As marcas são as
mais variadas. Serve para humedecer a língua nos
longos parafraseados, intervalar nos momentos mais
aborrecidos, ler os interessantes rótulos, analisar a
composição química (para os mais curiosos e desde
que tenham uma boa visão, podem ser utilizados
para testar a acuidade visual), conhecer um pouco
mais de geografia, ao descobrir o local da colheita,
equacionar a hipótese de quão útil seria verter o
precioso líquido na cabeça de certos oradores, aliviar
o stress, apertando e estalando a embalagem de
plástico e muito mais.

A competição entre as marcas leva os produtores a


utilizarem aditivos, transformando-as em
“aquacêuticos”, sempre com o objectivo de as
purificar cada vez mais e reforçar os seus efeitos
terapêuticos. Claro que tudo tem um preço. O
equivalente da água engarrafada face à água corrente
é só 1.000 vezes mais! Não há melhor negócio.

A água da torneira é, frequentemente, objecto de


apreensão, com o argumento de que pode fazer mal à
saúde! Às vezes pode ter um pouco de cloro a mais, é

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verdade, mas daí a fazer mal à saúde vai uma grande


distância. É raro pedir água e apresentarem um jarro.
No entanto, lembro-me que, durante vários anos em
que participei em reuniões na Comissão Europeia, no
Luxemburgo, a água vinha em jarros. Seria o bom e o
bonito se nos apresentassem água engarrafada de
um qualquer país que não fosse o nosso. Ainda
arranjariam algum problema diplomático! Pelo menos
foi essa a explicação da distribuição da água feita sob
esta forma. Tem lógica, reconheço. Em algumas
capitais europeias, muitos restaurantes apresentam
água da torneira. Prática corrente e económica, já
que não a cobram.

A obsessão da água engarrafada chega ao ponto de


ser vendida a preços exorbitantes. A água favorita da
cantora Madona provém das fontes da Montanha
Kaballa ao preço de 10 euros o litro! Atribuem a esta
água pretensas propriedades tais como: absorção das
radiações, o alívio do reumatismo, além de evitar o
envelhecimento! Claro que tudo isto provém do facto
de ser abençoada por um líder espiritual. Cara
bênção! Mas há outras, umas consideradas
analgésicas, porque contêm salicilina, outras capazes
de melhorar a pele porque as “memórias negativas”
foram removidas da água, algumas óptimas para o

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Salvador Massano Cardoso

cabelo… Não tarda muito que os industriais comecem


a engarrafar águas milagrosas de uma forma
sistemática. A este propósito, em Portugal não faltam
fontes, e, algumas, que não sendo milagrosas,
também podem ser abençoadas, enganando os mais
crédulos que também não faltam.

Como é do conhecimento geral fazer certas


afirmações sobre as propriedades terapêuticas de
alimentos, e a água também é um alimento, exige
provas científicas. Muitas pessoas são altamente
crédulas ao ponto de aceitar que determinados
produtos são mesmo bons para a saúde, desde que
esteja “comprovado cientificamente”!

O Júri de Ética do Instituto Civil da Autodisciplina da


Publicidade classificou como “enganosa” parte da
informação publicitária relativa a certos produtos que
grassam entre nós, ao ser realçado algumas
propriedades terapêuticas. Há tempos, tentei
encontrar os trabalhos científicos de alguns produtos,
sobretudo águas que "não têm calorias"(!) e que
“emagrecem”, ou que "ajudam a converter a gordura
em energia", por exemplo. Mas nada! Alguns dos
proprietários desses produtos alimentares, que são
rotulados como “nutracêuticos”, afiançam que há
evidências científicas. Fiz algumas pesquisas com o

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objectivo de estudar e analisar esses artigos, segundo


os quais estão afiançadas as suas propriedades
terapêuticas, mas não consegui encontrá-los em
nenhuma revista científica com ou sem peer review.
Sendo assim, é fácil de concluir que a dita
“cientificidade" dos “nutracêuticos” deixa muito a
desejar, contribuindo para o descredibilizar da ciência
e para o enriquecimento menos "ético" de muitos
operadores industriais. Clientela não falta. O que falta
é uma regulamentação e informação adequadas. Uma
coisa é certa, pelo menos para mim: recuso a aceitar
que transformem os alimentos e bebidas,
nomeadamente a água, em “nutracêuticos”. São
alimentos e basta. A forma como os utilizamos é que
faz a diferença entre “fazer bem ou mal”. O que
importa é que seja garantida a qualidade e a
segurança dos mesmos.

Uma pequena chamada de atenção para as águas


termais. Estas têm características muito específicas
que, ao longo do tempo, muitas vezes de forma
verdadeiramente empírica, revelaram e continuam a
revelar acções positivas. Devido ao seu contexto
teríamos que recuar muito no tempo para explicar o
sucesso das águas termais “inventadas” pelos
Lacedemónios, cidadãos de Esparta. Mas não é nosso

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Salvador Massano Cardoso

objectivo enveredar por esta área.

Para terminar não queria deixar de focar alguns


aspectos relacionados com a doença. Não vou realçar
os perigos da contaminação microbiológica. Presumo
que é do conhecimento geral a importância da
mesma o que obriga a um rigoroso e escrupuloso
cumprimento da Lei da Água de forma a garantir a
sua qualidade. Mas a par da contaminação
microbiológica, a contaminação química é, também,
um problema grave cujo controlo está, igualmente,
estabelecido no mesmo documento. A
obrigatoriedade das instituições fornecedoras de água
em a vigiar está regulamentada, verificando-se, de
ano para ano, melhorias significativas. Importa,
apesar de tudo, afirmar que a nossa saúde e bem-
estar depende destas instituições.

Queria chamar, também, a atenção para


determinados contaminantes que podem originar
problemas de saúde e na ecosfera. Destaque, por
exemplo, para o uso de desinfectantes, cujos
subprodutos, trialometanos e cloraminas, podem ter
alguma responsabilidade em certas forma de cancro,
na reprodução, atraso do crescimento, defeitos do
tubo neural e abortamentos espontâneos. Nitratos,
pesticidas, componentes dos combustíveis,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

exploração animal e fertilizantes têm sido


responsabilizados em muitas situações clínicas,
sobretudo nas crianças. Um pequeno parêntesis. As
crianças são muito mais vulneráveis do que os
adultos, porque o seu metabolismo e fisiologia são
diferentes, mas também, porque consomem muito
mais água em função do peso do que um adulto.
Deste modo, os efeitos de uma substância tóxica
revela-se com muita mais facilidade numa criança do
que num adulto.

Muitas substâncias são hoje designadas como


disruptores endócrinos e provêm das águas
contaminadas com microquantidades de
determinadas substâncias, algumas já conhecidas, ao
passo que outras ainda não foram identificadas. Os
efeitos destas substâncias revelam-se a longo prazo,
na maior parte das vezes. A própria natureza tem
vindo a evidenciar alterações do equilíbrio muito
preocupantes, sobretudo a nível dos répteis, peixes e
batráquios que começam a diminuir e a apresentar
malformações. Os efeitos dos denominados
disruptores endócrinos são devidos a modificações
das funções hormonais. A própria redução da
fertilidade humana, e não só, é em grande parte
devido à contaminação hídrica. Mas a par destas

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Salvador Massano Cardoso

substâncias, começam a levantar-se problemas


decorrentes do uso de medicamentos. Muitos
cientistas começam a denunciar um grave problema
de poluição motivado pelo uso dos diferentes
fármacos. Têm sido detectadas na água de
abastecimento, por esse mundo fora, dezenas de
substâncias, tais como, antibióticos, tranquilizantes,
hormonas sexuais, anticonvulsivantes, analgésicos,
antihipertensores, antihipercolesterolémicos,
antiinflamatórios, entre muitas outras. As
concentrações são da ordem de partes por milhão,
por bilião ou mesmo por trilião, muito abaixo dos
níveis das doses médicas, pelo que as águas são
consideradas seguras. Mas serão mesmo? Os
diferentes produtos e seus derivados alcançam os
aquíferos através da eliminação dos esgotos
contaminados pelos excreta dos que tomam
medicamentos. As centrais de tratamento dos
“esgotos” e das águas de abastecimento não
conseguem eliminar totalmente os fármacos e os
seus derivados. Atendendo ao número de pessoas
que os tomam, para não falar dos que são usados na
agropecuária, não é de admirar que este fenómeno
comece a preocupar os responsáveis, tanto mais que
alguns estudos apontam para efeitos negativos nos
diversos ecossistemas e, em última análise, o homem

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

também não irá escapar. Se quisermos ainda ir mais


longe, seria interessante analisar o que acontecerá
com certas drogas proibidas e os seus metabolitos.
Há tempos, investigadores chegaram a calcular que,
por exemplo, no rio Pó, são lançados, diariamente,
através dos esgotos cerca de 4 kg de cocaína e seus
derivados! Face à multiplicação de estudos, alertando
para os efeitos na saúde humana e dos animais,
resultantes da exposição, ainda que em doses baixas,
de muitas substâncias, começam a ser descritas
modificações comportamentais em diferentes
espécies. Garças, gaivotas, caracóis, codornizes,
ratos, macacos, mosquitos, falcões, rãs, entre outros,
têm sido estudados, verificando-se alterações
importantes no acasalamento, na formação de
ninhos, na aprendizagem, no forragear, no voo, no
cantar, alguns não conseguem fugir dos predadores,
outros procuram membros do mesmo sexo, enfim, o
mundo animal começa a apresentar sinais bizarros
provocados pela exposição a muitos químicos em
baixas concentrações. Houve quem, em jeito de
graça, afirmasse que os peixes se tornam
hiperactivos – às tantas até saltam
desesperadamente para os anzóis dos pescadores –
as rãs tornam-se estúpidas (também nunca me
apercebi que fossem inteligentes), os ratos intrépidos

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Salvador Massano Cardoso

e muitas gaivotas despenham-se em pleno voo. Se no


futuro, estes dados forem confirmados, então, quem
sabe, se muito daquilo que observamos no nosso dia
a dia poderá ser explicado pelas mesmas substâncias
que provocam aqueles efeitos nos animais!

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

QUALIDADE NA SAÚDE: TERRA, ÁGUA E AR

O tema proposto para esta conferência desperta de


imediato um conjunto de reflexões. De facto, as
palavras terra, água e ar fizeram-me recordar, com
toda a naturalidade, a fundação da primeira teoria
explicativa geral do mundo, a teoria dos quatro
elementos: água, ar, terra e fogo. Segundo esta
teoria a combinação dos quatro elementos seria a
origem de todas as coisas. A sua união e desunião
ocorreriam em função de dois princípios antagónicos:
o amor que une e o ódio que separa. Empédocles de
Agrigento, filósofo, médico, poeta, político, profeta e
místico, foi o autor desta teoria. Aristóteles
desenvolveu-a de tal forma que reinou durante largos
séculos até à Renascença.

Teoria simples que qualquer um assimilava, já que


era perfeitamente identificada com os quatro
elementos da Natureza.

Nesta conferência não me foi pedido para falar sobre


o quarto elemento, o fogo. De todos é o mais puro,
não é contaminado, mas pode ser fonte de
contaminação dos demais, conforme teremos
oportunidade de verificar. Mesmo assim, a sua

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Salvador Massano Cardoso

presença está implícita no tema, já que a água, a


terra e até o próprio ar dependem da sua presença e
da sua força catalizadora. A principal fonte está a 150
milhões de km, aquecendo o nosso planeta, sendo
fonte e garante da vida. Não deixa de ser curioso que
o próprio Empédocles, que se considerava como
sendo dotado de poderes mágicos, quis provar a sua
origem divina mergulhando, em 430 a.C., na cratera
do vulcão Etna. O elemento fogo deverá tê-lo
convencido da precariedade humana. Não sei se teve
tempo para se aperceber deste pormenor.

Sem sombra de dúvida que os referidos elementos


constituíram o caldo germinador da vida em
condições muito diferentes do presente. As formas de
vida actuais dependem das condições do ar, da água
e da terra. Tentaremos dar um panorama sobre o
passado recente, o presente e um futuro nada
promissor.

Durante cerca de quatro milhões de anos, os seres


humanos estavam dispersos, praticavam o
nomadismo, as comunidades eram reduzidas, a caça
e a colecta constituíam a fonte do sustento, tinham
patologias próprias, eram menos atreitos a doenças
infecciosas e a doenças carenciais. A esperança de
vida era fraca, mas mesmo assim, e com toda a

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

probabilidade, superior à verificada em épocas mais


recentes, sobretudo após a última glaciação.

As condições verificadas a nível da terra, do ar e da


água influenciavam, com toda a certeza, as suas
vidas. Mas estas áreas não sofriam dos efeitos
antropogénicos tal como hoje acontece. Muito longe
disso!

A qualidade da terra tem a ver com as suas


características e efeitos a vários níveis. Numa
perspectiva humana a diversidade é importante, mas
no que toca à sua composição e frutos, entendendo
por frutos os diversos tipos de expressão vegetal,
ocorrem efeitos que não podem deixar de serem
tomados em linha de consideração. Mesmo na
ausência de contaminação antropogénica, o uso
reiterado da produção florestal, por exemplo, a
devastação de amplas superfícies, a sua substituição
por outras espécies e a utilização de terras para a
produção de diferentes monoculturas são, sem
excepção, motivos de desequilíbrios ambientais
susceptíveis de reflexos na saúde humana. Basta que
hajam perturbações ambientais para originar o
aparecimento de vários tipos de doenças. Muitas
afecções, ditas emergentes, traduzidas por diversos
vírus, têm como causas próximas alterações

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Salvador Massano Cardoso

ecológicas profundas. A desorganização está


associada com novas formas de equilíbrio e com o
aparecimento de espécies diferentes para as regiões
em causa e a libertação na ecúmena de novos/velhos
agentes patogénicos.

Os solos podem ser contaminados com várias


substâncias potencialmente perigosas, quer sob o
ponto de vista químico, quer sob o ponto de vista
biológico, com repercussão na saúde pública. Podem
conter níveis elevados de chumbo ou de cádmio com
sérios problemas de saúde para as populações locais.
O caso da Capadócia, no centro da Turquia, ilustra os
efeitos perversos e naturais dos solos. De facto,
ocorre nestas populações uma prevalência elevada de
uma forma rara de cancro relacionada com o
amianto. Os solos da Capadócia são ricos neste
mineral. Em contrapartida, teores baixos em
elementos essenciais podem ser responsabilizados
pelas carências alimentares importantes. O caso do
iodo é paradigmático, já que a sua carência pode
provocar bócio e idiotia nas crianças e jovens. É
interessante ler os relatos dos médicos dos exércitos
napoleónicos quanto à dificuldade em recrutar jovens
na península ibérica, aquando das invasões, em
virtude do elevado número de idiotas, devido,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

sabemos hoje, à carência de iodo. No norte da


Espanha, mais concretamente nas Astúrias um adágio
popular ilustra bem o baixo teor dos terrenos neste
elemento: ”Quem não tem papo não é guapo”.

Se relativamente ao ar e à agua poluídas é


relativamente fácil identificar as principais vias de
exposição, no tocante ao solo, a contaminação faz-se
através de várias formas, nomeadamente, comendo
terra, alimentos, bebendo água, inalando partículas
do solo ou vapores ou através do contacto dérmico.

No caso de ingestão de terra – não é preciso recorrer


a casos patológicos de geofagia – partículas do solo
contaminado podem ser ingeridas directamente por
acidente e contacto casual das mãos com a boca. O
solo pode aderir às superfícies das plantas (alimentos
mal limpos) e as partículas muito finas não são
facilmente removíveis durante a preparação culinária.
Enfim, é fácil concluir que as crianças (<3 anos)
geofágicas podem chegar a ingerir mais de 10
gramas de terra por dia e, nalguns casos, mesmo 25-
60 gramas. Uma criança dita normal, entre os 1 e os
5 anos, chega a ingerir entre 40 a 200 mg de
terra/dia.

As crianças são particularmente mais sensíveis à

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Salvador Massano Cardoso

exposição de terra contaminada, mas não são as


únicas. Os que trabalham na terra são muito atreitos
à exposição. Não só os agricultores, mas muitos
outros, tais como os que exploram petróleo, ou os
que escavam túneis. Ainda recentemente, aquando
da construção do Millennium Dome em Londres, foi
necessário preparar os terrenos que estavam
formalmente contaminados com químicos, os quais
originaram dermatites de contacto nos trabalhadores.

Vários estudos revelam o impacto das terras


contaminadas na saúde humana, tais como o caso do
gás radão, típico das zonas graníticas, e que pode
constituir um importante factor de risco de cancro do
pulmão, ou a contaminação das terras do famoso
Love Canal, nas cataratas do Niagara, utilizado como
aterro para produtos altamente tóxicos. Muitos
estudos avaliam o efeito e impacto dos diferentes
aterros nas populações vizinhas, nomeadamente
crianças e grávidas. As conclusões são muito
importantes. Podemos afirmar que seria muito fácil,
documentar com toda a propriedade a problemática
da contaminação dos solos e os seus efeitos na saúde
das populações quer as vizinhas, quer mesmo as
mais afastadas, já que a distribuição dos produtos
alimentares contaminados pode atingir muitas

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

pessoas. Por uma questão metodológica e como


paradigma da importância da qualidade das terras,
exemplifiquemos os seus impactos através da
descrição de alguns estudos: o caso do mesotelioma
da Capadócia, que já comentámos, e que tem a ver
com a presença do amianto nos terrenos, o caso da
contaminação industrial do Jinzu Valley no Japão com
cádmio, o qual foi o responsável por uma grave
afecção denominada itai-itai. Não podemos esquecer
as mais recentes evidências que associam os
diferentes tipos de aterros e as malformações
congénitas e abortamentos.

A qualidade das terras tem sido objecto de


regulamentação com o pressuposto em evitar não só
desequilíbrios ecológicos, mas também proteger a
população humana.

A conquista do planeta por parte dos seres humanos


acompanhou-se, e continua acompanhar-se, da
produção de lixo e substâncias poluentes. Existe um
paralelismo marcante entre o número de habitantes e
o grau de desenvolvimento com as substâncias
poluentes.

As nossas sociedades são sociedades de “lixo” e de


poluentes. A produção de lixo e de poluentes é

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Salvador Massano Cardoso

proporcional ao produto nacional bruto. Havendo um


progressivo desenvolvimento é de prever que o futuro
irá reservar-nos surpresas muito desagradáveis.
Conscientes destes problemas, têm sido realizadas,
sem grande sucesso, encontros internacionais
destinados a contrariar muitos dos efeitos perniciosos
da actividade humana. A cimeira do Rio de 92, a de
Joanesburgo em 2002 e o protocolo de Quioto são
apenas algumas, entre outras, iniciativas tendentes a
encontrar soluções para uma actividade
verdadeiramente planeticida.

Todas as grandes iniciativas têm demonstrado


vontade em atingir soluções práticas e de rápida
concretização; importa pois, que, através de
diferentes medidas, possamos contribuir para um
melhor e mais saudável ambiente, ajudando a
diminuir as agressões antropogénicas ao sistema
fechado que é o planeta Terra que, possuindo uma
notável capacidade de auto-regeneração, pode, na
perspectiva da sua deusa – Gaia –, reagir de uma
forma inusitada contra os virulentos antigénios,
denominados seres humanos, provocando-lhes
sofrimento e doenças. Apesar de não partilhar da
teoria de Gaia, não posso deixar de lhe reconhecer
um simbolismo preocupante, a que não é alheio as

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

últimas notícias sobre uma catástrofe a nível global.


O relatório Meeting The Climate Change ilustra bem o
perigo do aquecimento global, resultante das
actividades humanas que ocorreram sobretudo após o
início da era industrial e que se traduz pela emissão
de gases de estufa.

A poluição atmosférica não é sinal dos nossos


tempos. Se fizermos uma incursão na história do
homem verificamos que começou há 6.000 anos
atingindo pela primeira vez um pico máximo nos
tempos dos gregos e romanos. Em 500 a.C., o teor
de chumbo no ar era quatro vezes superior ao
verificado antes dos europeus começarem com a
fundição dos metais. Séneca já se queixava do ar
pesado na Roma antiga.

Em 1285 o ar de Londres estava tão poluído que o rei


Eduardo I estabeleceu a primeira comissão da
poluição do ar, proibindo, 22 anos mais tarde, a
queima de carvão (lei sem sucesso).

Não resisto à tentação de contar uma pequena


história sobre a poluição de Londres.

A longevidade sempre seduziu o homem. Na


Inglaterra, Thomas Parr, que deverá ter nascido em
1483, foi levado, no seu centésimo quinquagésimo

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Salvador Massano Cardoso

segundo ano de vida, à presença do rei Carlos I, que


tinha muita curiosidade em ver tão idosa pessoa.

O conde de Arundel transportou-o com todo o


cuidado e carinho até à corte. O rei encorajou-o a
comer carne e muitos outras delícias alimentares.
Verdadeira hospitalidade real. Coitado do "Old Parr"!
Um vegetariano a cometer excessos! Morreu ao fim
de algumas semanas depois de ter chegado a Londres
(1635) e foi sepultado na famosa abadia de
Westminster.

William Harvey, o ilustre médico que descobriu a


circulação do sangue, autopsiou-o concluindo que o
"Old Parr" morreu devido a alterações da dieta e à
poluição da cidade.

A cidade de Londres era tão poluída que levou o


poeta Shelley a afirmar que “o inferno deve ser
parecido muito com Londres, uma cidade populosa e
cheia de fumo”

As razões para tamanha poluição eram conhecidas e,


com o tempo, melhorou consideravelmente.

A chamada poluição grosseira é tão evidente que


facilmente qualquer um, sem o auxílio de
aparelhagem e doseamentos complexos, consegue

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

detectar, fazendo todos os possíveis para se furtar a


tão perigosas agressões. O problema equaciona-se,
hoje em dia, face a um conjunto de poluentes que
não são detectáveis pelos nossos órgãos dos
sentidos, mas que são susceptíveis de provocarem
graves danos. Naturalmente que não vou enunciá-los
todos, já que se contam pelas largas dezenas de
milhares, havendo anualmente novos produtos e
substâncias que podem provocar problemas a médio
e a longo prazo. Destaco apenas algumas dessas
substâncias. Muitas são consideradas como
disruptores endócrinos actuando a níveis tão baixos,
mas com um impacto violento no funcionamento
normal dos organismos, colocando-nos em situações
deveras preocupantes. É o caso das dioxinas, PCBs,
bifenilos polibromados, DDT, que provocam redução
da fertilidade, atrofias testiculares, alterações dos
níveis das hormonas, caso das tiroideias, alterações
dos linfócitos, cancros e endometriose, só para falar
de algumas.

Podemos afirmar que, hoje em dia, estamos a


confrontar-nos com novos problemas ambientais
devido às novas tecnologias, os quais por não
estarem devidamente estudados e divulgados,
constituem sérias ameaças para os seres humanos e

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Salvador Massano Cardoso

outros animais. Os disruptores endócrinos ou


fisiológicos são agentes que interferem na síntese, no
armazenamento, na libertação, na secreção, no
transporte, na eliminação, na ligação, ou na acção
das hormonas.

Estudos efectuados em animais permitem-nos


concluir que as ligeiras flutuações das hormonas
podem influenciar a morfologia genital, o momento
da puberdade, a atracção sexual e o próprio
comportamento sexual.

Os seres durante o seu desenvolvimento embrionário


sofrem alterações cuja expressão ocorrerá muito mais
tarde durante a vida adulta.

Quanto aos efeitos adversos há muitas perguntas


para responder sobre o efeito dos disruptores
endócrinos na saúde humana. Quais as substâncias?
Quanto tempo é necessário para detectarmos as
alterações? Os estudos epidemiológicos não
abundam, mas mesmo assim começam a avolumar-
se evidências para esta preocupante situação.

Numa perspectiva crónica, podemos afirmar que na


década de trinta várias substâncias químicas foram
consideradas como tendo propriedades estrogénicas,
tais como PAHs, Bisfenol-A (plásticos, resinas epóxi e

26
Notas de Saúde Pública e Ambiental

retardadores de chama), DDT (efeitos estrogénicos


em frangos desde 1950), o DES (dietilstilboestrol), o
qual foi ministrado a milhões de mulheres grávidas
devido a um hipotético efeito protector contra o
abortamento, o qual, posteriormente se verificou não
possuir, antes pelo contrário! A lista destas
substâncias alarga-se aos alquilfenóis, ftalatos e mais
de quarenta pesticidas, dioxinas, furanos, PCBs e
compostos organoclorados.

Quantos aos efeitos, tal como já afirmámos, são


variados. A redução da fertilidade, a atrofia testicular
e alterações dos níveis hormonais são, sem dúvida,
os mais frequentes e problemáticos.

Não podia deixar de aproveitar a oportunidade para


ilustrar as consequências de exposição ambiental,
menos conhecida, mas nem por isso menos
interessante.

Como é do conhecimento geral o mundo químico é


uma realidade. Muitas das substâncias utilizadas
protagonizaram verdadeiras revoluções. Na década
de sessenta os contraceptivos orais contribuíram para
a "libertação" da mulher e o controlo demográfico.

Os efeitos podem ter tradução mais grave como é o


caso do cancro. O cancro da mama tem vindo a

27
Salvador Massano Cardoso

aumentar, assim como o cancro do testículo. Nas


últimas décadas aumentou de uma forma inesperada,
sendo que nalguns países atinge 4 a 5 vezes mais nos
últimos 30 anos. São os países ao redor do mar
Báltico, Alemanha, Reino Unido, EUA, Nova Zelândia
e Dinamarca que apresentam as taxas mais elevadas.
Além dos tumores tem-se observado incremento
significativo de anomalias do sistema reprodutor
(criptorquidia e hipospadias).

Os acidentes ambientais têm os seus paradigmas tais


como a célebre explosão de Seveso (10/6/1976),
acompanhada de emissão de dioxinas, cujos efeitos
se manifestam de uma forma inequívoca passados
mais de 20 anos, traduzidos por uma prevalência
mais elevada de cancros da mama, mielomas,
cancros linfohematopoiéticos, leucemias e alteração
da razão de masculinidade - passaram a nascer mais
meninas do que meninos, os quais, hoje em dia,
também procriam muito mais meninas,
demonstrando um efeito curioso que não se esgota
na geração atingida mas continua nas seguintes.

A endometriose tornou-se epidémica no mundo


ocidental, assim como a diminuição dos
espermatozóides e da sua qualidade de forma
significativa.

28
Notas de Saúde Pública e Ambiental

O que estamos a analisar é fruto do novo mundo


químico que teve o seu “boom” no início da década de
40. Deste modo, foram, e continuam a ser, lançadas
no ar, na água e nos solos milhares de produtos.
Cada um dos presentes nesta sala, comporta 100
químicos que não existia no corpo de ninguém há 50
anos atrás.

Disse no início desta conferência que o elemento fogo


não fazia parte do título. Mas, mesmo assim o fogo é
responsável pela libertação de substâncias muito
perigosas, nomeadamente dioxinas. As fontes são as:
incineradoras hospitalares, as incineradoras
municipais, os combustíveis fósseis, refinarias, fusão
de metais, fogos, vulcões, etc.

A selecção das dioxinas é feita no pressuposto de ser


sinónimo da moderna industrialização.

Os seres humanos podem ser contaminados através


dos alimentos (principal fonte), carne, peixe e
produtos lácteos. As crianças são muito mais
sensíveis, porque, proporcionalmente, comem mais
em relação ao peso. São múltiplos os seus efeitos.
Vários tipos de tumores têm sido descritos nos seres
humanos, mas também nos animais. Os cães
militares utilizados na Guerra do Vietname

29
Salvador Massano Cardoso

apresentavam mais carcinomas testiculares do que


aqueles que ficaram nos E.U.A., e até os próprios
cães de estimação não se livram dos efeitos
perniciosos destas substâncias apresentando mais
linfomas.

Um dos aspectos que mais preocupa os profissionais


de saúde tem a ver com a resistência aos
antibióticos. As causas são múltiplas, algumas da
responsabilidade dos próprios profissionais, mas há
outras que têm a ver com a qualidade da água e dos
próprios solos.

Para terminar não queria deixar de comentar um


pouco a responsabilidade política para as situações
ambientais entretanto criadas.

Os políticos necessitam, cada vez mais, de dados de


natureza científica para tomarem decisões.
Aparentemente não há nada a opor, pelo contrário,
até é desejável, porque medidas técnicas e
cientificamente avalizadas permitirão soluções mais
adequadas para a salvaguarda dos cidadãos e da
sociedade. Assim, não é de estranhar que,
progressivamente, se venham a constituir comissões
de cientistas para se pronunciarem sobre casos
concretos. Até aqui, tudo bem. O pior é quando se

30
Notas de Saúde Pública e Ambiental

verifica distorção dos princípios. A possibilidade de


manipulação da ciência é um perigo real que importa
ter em conta. Para o efeito, ilustramos com a
manipulação subtil da indústria tabaqueira que,
através da constituição de organizações científicas,
encorajava a desacreditar os estudos de associação
entre o fumo passivo e a doença (caso da
Advancement for Sound Science Coalition criada em
1993 — verdadeira 5ª coluna da tabaqueira Philip
Morris). Mas, a par desta "solução", outras foram alvo
de atenção; nomeadamente a campanha das "boas
práticas epidemiológicas" para estabelecer elevados
padrões de qualidade. Aparentemente, estamos
perante uma óptima iniciativa. Na prática, o objectivo
consistia em explorar algo que os cientistas
conhecem muito bem: a incerteza científica, ou seja,
a ausência de uma relação evidente entre a causa e o
efeito. Ao mesmo tempo eram criadas condições que
permitiam realçar outras causas ambientais,
deslocando os focos de investigação!

A poluição grosseira tem os seus dias contados, o pior


são, repito, as muitas substâncias lançadas no
ambiente, na sequência de actividades humanas, as
quais têm sido responsabilizadas, mesmo em doses
baixas, por alterações fisiológicas de muitas espécies,

31
Salvador Massano Cardoso

incluindo o homem. As modificações operadas a nível


dos organismos condicionam e propiciam o
aparecimento de muitas doenças, nomeadamente,
degenerativas. Estes achados têm sido alvo de
atenção e preocupação por parte dos cientistas, os
quais vão alertando para a necessidade de evitar e
minimizar as consequências nefastas, mas,
aparentemente, sem grande sucesso. Paralelamente
a estes factos, adicionam-se outros, que, são
igualmente preocupantes. De facto, começam a ser
descritas modificações comportamentais em
diferentes espécies.

A descoberta da agricultura, que tem a ver com a


terra e a sua qualidade, ocorreu pouco tempo após a
última glaciação, originando uma revolução social,
política, demográfica e sanitária sem precedentes. O
nascimento da agricultura constituiu o primeiro
choque em termos de saúde. Ao aumentar a
disponibilidade alimentar, favoreceu a explosão
demográfica mas também foi determinante no
aparecimento de doenças. Até aqui, a diversidade
alimentar era uma característica. Em seguida, ao
consumir mais alimentos, a diversidade diminuiu,
com a subsequente deficiência de ingestão de alguns
nutrientes susceptíveis de provocarem doenças.

32
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Paradoxo: mais alimentos, mais gente, mais doenças.


Na história da alimentação observamos uma
constante: o fenómeno “mais doença” ocorre sempre
que surge uma revolução alimentar.

Hoje em dia, contabiliza-se por larguíssimas centenas


de milhões o número de mulheres que tomam a
milagrosa e ansiolítica pílula. Tratando-se de produtos
artificiais são metabolizados e eliminados pela urina.
Deste modo, milhares de milhões de litros de urina de
mulher contendo estrogénios sintéticos são largados,
todos os dias, na Natureza, directamente, ou através
de esgotos, indo contaminar os sistemas hídricos. A
Natureza “engole”, desta forma, uma “grande pílula”,
sem estar ameaçada de qualquer perigo de
fecundação! Em contrapartida, certas espécies correm
riscos, tal como a que foi demonstrada recentemente.

As trutas macho vêem o seu potencial de fertilização


gravemente reduzido quando expostas a níveis muito
baixos de etinilestradiol (um dos componentes da
pílula).

Não se sabe bem se os sistemas de drenagem dos


esgotos, o tratamento (mesmo no caso das ETARs
funcionarem!), ou a presença de outras substâncias
possam ou não alterar estes efeitos, reduzindo-os,

33
Salvador Massano Cardoso

neutralizando-os ou potenciando-os. O facto é que é


ainda muito cedo para avaliar o impacte ambiental
destas substâncias, mas é provável que possam a vir
a ter consequências nada desprezíveis. Para já, as
trutas-macho já se "queixam".

Não é preciso recorrer à pílula para analisarmos o


impacte na fertilização de certas espécies. O próprio
homem tem vindo a sofrer efeitos na qualidade e
quantidade dos seus espermatozóides, neste último
meio século. Uma das hipóteses deste declínio é
atribuída ao efeito de certas substâncias químicas
dotadas de actividade hormonal, dentro das quais se
destacam os ftalatos.

Os ftalatos, muito provavelmente, são das


substâncias mais utilizadas, entrando na constituição
de muitos plásticos (outro símbolo de grande
revolução), brinquedos, material médico, cosméticos
e desodorizantes.

Estudos recentes revelam a presença destas


substâncias no esperma e na urina de homens com
dificuldades em conceber. Peritos em toxicologia já
contribuíram para a suspensão de alguns destes
produtos, os quais se revelaram tóxicos em animais,
levando a União Europeia a proibir o seu uso na

34
Notas de Saúde Pública e Ambiental

cosmética.

O melhor é pensar duas vezes de manhã, após o


banho, se valerá a pena ou não usar o desodorizante.
Mas, se já marcou presença, com descendência,
então talvez valha a pena contribuir para um odor
colectivo mais agradável…

A utilização dos antibióticos como factor estimulante


do crescimento é conhecida, desde há muitos anos,
na produção de alimentos, quer de origem animal ou
vegetal. Cerca de 50% de todos os antibióticos são
utilizados na produção animal, incluindo a
piscicultura. O objectivo é acelerar o crescimento. A
eliminação através dos excreta contaminam aquíferos
podendo, através de mecanismos vários, contribuir
para o aumento crescente da resistência bacteriana.

Não deixa de ser curioso enunciar uma hipótese


recente que tenta explicar o aumento da obesidade
nas crianças com a utilização e contaminação
ambiental pelos antibióticos. A melhoria das
condições alimentares verificadas nas últimas
décadas não é suficiente para explicar tão grave
fenómeno. A ingestão de pequenas quantidades de
antibióticos poderá ter um efeito equivalente na
nossa espécie, justificando em parte o aumento do

35
Salvador Massano Cardoso

peso e aceleração de crescimento entretanto


verificado. As consequências são, como é de esperar,
graves a todos os títulos.

A exploração da "incerteza" (ausência de uma


evidência inquestionável entre o factor em causa e os
seus efeitos) constitui um instrumento para a sua
propagação, permitindo atrasar a elaboração da
adequada legislação. Esta filosofia de explorar a
"margem de incerteza" é utilizada não só pela
indústria tabaqueira, mas também pelos políticos,
com objectivos não consentâneos com o bem-estar
das pessoas e das comunidades, mas com interesses
estratégicos e económicos. Basta ver o
comportamento do presidente Bush que justifica a
não ratificação do protocolo de Quioto, com base na
ausência de evidências científicas inquestionáveis
sobre as verdadeiras causas das alterações
climáticas. Ao preferir jogar nas incertezas, adia a
não ratificação, enquanto os cientistas não
fornecerem dados seguros sobre a matéria em
apreço, apelando para que as provas da origem
humana sejam apresentadas — cientificamente —
dentro de dois a cinco anos! Esta atitude deve ser
considerada condenável, porque muitos organismos,
como a EPA (Agência de Protecção Ambiental norte

36
Notas de Saúde Pública e Ambiental

americana), admitem a actividade humana como um


dos principais contribuintes do aquecimento global.

É difícil estabelecer nexos de causalidade de uma


forma categórica. A dúvida e a incerteza estão
sempre presentes, e, por vezes, necessitamos de
muitos anos de estudo e de observação para
concluirmos de uma forma conclusiva. Mas, à medida
que vamos acumulando evidências ou mesmo
suspeitas de uma eventual relação causal, importa
que sejam tomadas medidas de protecção do cidadão
e do ambiente de modo a evitar problemas graves. A
"margem de incerteza" deve ser utilizada em sentido
contrário aquele que foi exposto, numa perspectiva
de defesa e não para justificar interesses de cariz
económico, político ou estratégico. Esperemos que os
políticos não enveredem pela exploração das
incertezas científicas. Se o fizerem estão a enviesar o
papel da ciência e a prejudicar os direitos dos
cidadãos.

37
Salvador Massano Cardoso

38
Notas de Saúde Pública e Ambiental

DOENÇAS, ETNIAS E DESIGUALDADES SOCIAIS

Em 2005, a FDA aprovou, pela primeira vez, um


fármaco (combinação de dois velhos medicamentos)
para o tratamento de doentes negros com
insuficiência cardíaca grave. Qual é o significado
desta medida? Que existem diferenças étnicas! É do
conhecimento geral que certas etnias apresentam
maior ou menor susceptibilidade a certas doenças.
Tal facto é o resultado da interacção entre o
património genético e o meio ambiente. Dentro dos
vários exemplos que podíamos seleccionar, como
paradigma da Medicina Darwiniana, a “hipótese do
sódio” revela-se de uma forma particular. Tudo
aponta para que a sensibilidade ao sódio tenha
ocorrido há cerca de dois milhões de anos durante o
Pleistoceno em África. Razões? Alguns autores
apontam que caçar e perder sódio pela transpiração
não é desejável em populações que vivam em climas
quentes e zonas pobres em sal. É compreensível!
Vários estudos efectuados em negros e brancos
norte-americanos revelam diferenças na prevalência
de muitos genes, nomeadamente os responsáveis
pela “hipertensão”. A frequência, por exemplo, do
alelo T do M235T - variante do gene AGT

39
Salvador Massano Cardoso

(angiotensina) é dupla nos negros americanos e


caribenhos face aos brancos de origem europeia.
Evidentemente, não podemos inferir causalidade
directa com a hipertensão, porque se trata de uma
doença multifactorial.

No Brasil, a hipertensão arterial é muito grave nos


negros pelo que correm maior risco de DCV e morte
súbita. Estes elementos são importantes contributos
para a hipótese do “gene africano” que influencia a
captação celular de sódio e cálcio, assim como o
transporte renal (gene economizador do sódio). No
Sul dos E.U.A., na zona conhecida pela “Cintura do
AVC”, os negros sofrem 3 a 4 vezes mais AVCs,
mesmo depois de serem controladas as diferentes
variáveis de confundimento de natureza cultural,
social e económica. Recentemente, chegou-se à
conclusão de uma interessante associação entre a
latitude, o genótipo e a hipertensão arterial. Tudo
aponta para que a distribuição de cinco genes,
relacionados com a hipertensão, seja mais prevalente
nas latitudes mais baixas. Um deles, o gene GNB3-
825T, que contribui para a grande variação mundial
da pressão sanguínea, revela estar associado à
latitude, permitindo explicar que os oriundos de
climas mais quentes sejam mais susceptíveis à

40
Notas de Saúde Pública e Ambiental

hipertensão do que os oriundos das zonas mais frias.

Face a estes achados é pertinente colocar a seguinte


questão: Qual foi o papel da escravidão na
hipertensão arterial, sobretudo em Portugal? Neste
caso, podemos afirmar que o navegador Antão
Gonçalves, capitão do Infante D. Henrique,
transportou o primeiro lote de escravos africanos
para Portugal em 1441. Comprou-os na costa de
Arguim (actual Mauritânia). O comércio deve ter sido
muito lucrativo, porque entre l450 e 1500 chegaram
a Lisboa cerca de l50 mil escravos. Em meados do
século XVI, 10% da população da capital era
constituída por negros. De facto, Portugal devia estar
cheio de negros. A este propósito, o livro de Joris
Tulkens, “Perro Cristão entre Muçulmanos”, sobre
Nicolau Clenardo, humanista e teólogo flamengo
(Diest 1493 - Granada 1542), atribui a este pensador,
ao chegar a Évora, onde foi mestre do futuro Cardeal
D. Henrique, a seguinte afirmação: “Portugal está
cheio de negros”! Uma passagem desta obra é
paradigmática: “...Sempre que um senhor sai a
cavalo, saem dois negros à sua frente; um terceiro
transporta-lhe o chapéu; um quarto o manto; um
quinto segura as rédeas do cavalo; um sexto
transporta as pantufas de seda; um sétimo apresenta

41
Salvador Massano Cardoso

a escova para o vestuário; um oitavo seca o suor do


cavalo; um nono entrega o pente ao seu senhor; um
décimo supervisiona todo este exército. Eu apenas
falo do que vi...” Portugal sofreu três vagas de genes
africanos. A primeira foi há 6.000 anos, aquando da
desertificação do Saará, a segunda com a invasão
magrebina há 1300 anos e a terceira correspondeu ao
período de escravidão. A tolerância nacional face aos
filhos das escravas deverá ter contribuído para a
disseminação dos genes africanos entre nós. A
elevada prevalência de hipertensão arterial não pode
ser explicada apenas através dos nossos hábitos
alimentares, nomeadamente o elevado consumo de
sódio. Será que a prevalência dos “genes da
hipertensão” pode contribuir para este fenómeno?
Afinal o que é um português? A sua origem é muito
complexa. No entanto, ao lermos o livro da jornalista
brasileira, Ângela Dutra de Menezes, “O Português
que nos Pariu”, podemos analisar, de uma forma
agradável, os principais ingredientes para a receita
“Como fazer um português!”: homens pré-históricos
do vale do Tejo e do Sado; um punhado de povos
indígenas, principalmente lusitanos; celtas, apenas
para polvilhar; bárbaros: alanos caucasianos,
vândalos germânicos e escandinavos, suevos e
visigodos, estes últimos dissolvidos na civilização

42
Notas de Saúde Pública e Ambiental

romana; mouros, tribos islamizadas de Marrocos e da


Mauritânia; judeus sefarditas (coloque um punhado
entre um ingrediente e outro e reserve a porção
maior para o final da receita) e, por fim, cristãos a
gosto! Curiosamente, esqueceu-se dos escravos
negros. Quanto ao modo fazer, o melhor é ler o livro.
Voltando à iniciativa da FDA, de há três anos, em que
foi proposta uma terapêutica racial, é preciso ter
muito cuidado, porque estas atitudes podem
desencadear reacções negativas ao servirem de
argumento aos defensores do racismo, além de
poderem prejudicar os “brancos”, porque os genes
em questão (“africanos”) também podem estar
presentes em muitos indivíduos louros e de olhos
azuis que andam por aí...

Se os factores “étnicos” são impossíveis de controlar


o mesmo não se pode dizer dos factores sociais.
Friedrich Engels (1820-1895), amigo e colega de Karl
Marx, chamou a atenção para a saúde dos
trabalhadores relacionada com os factores sociais.
Descreveu o papel dos tóxicos ambientais, a
intoxicação pelo chumbo, a elevada prevalência das
doenças infecciosas, como a tuberculose pulmonar e
o tifo, a má alimentação e o fornecimento de
alimentos, o problema do alcoolismo, a má

43
Salvador Massano Cardoso

distribuição do pessoal médico, as elevadas taxas de


mortalidade nas classes mais desfavorecidas, os
acidentes e as doenças ocupacionais. Os seus
relatórios anteciparam, e em muito, o papel social no
sofrimento e morte dos seres humanos. Mas foi
Rudolf Virchow (1821-1902), que podemos classificar
como o “Pai” da Medicina Social, quem estabeleceu a
necessidade de reformar a medicina com base nos
seguintes princípios: a saúde das pessoas é um
problema social; as condições socioeconómicas têm
um papel importante na saúde e na doença e as
relações entre elas deverão ser sujeitas a
investigação científica, e as medidas destinadas a
promover e a combater as doenças deverão ser tanto
sociais como médicas.

As desigualdades socioeconómicas são fonte de vários


tipos de patologia. Em Portugal a situação é
verdadeiramente desconfortável a nível dos países da
U.E. Também é do conhecimento geral que o fosso
ricos-pobres se alarga de ano para ano. Neste
momento, cerca de dois milhões de portugueses têm
um rendimento inferior a 350 euros/mês. As
comunidades mais ricas são mais saudáveis, ao
contrário das mais pobres, devido a diferentes
comportamentos e estilos de vida. As últimas bebem

44
Notas de Saúde Pública e Ambiental

mais, fumam mais, adoecem mais e, naturalmente,


morrem mais cedo. Os mais favorecidos conseguem
controlar melhor os factores de risco e promover os
factores de protecção, enquanto nos pobres é
precisamente o contrário. Pretende-se resolver
muitos dos problemas de saúde graças a uma
melhoria de acesso aos cuidados e à realização de
exames mais sofisticados, mas a verdade é que não
conseguem resolver todos, além de contribuírem para
o agravamento do financiamento na área da saúde.
Quando o gradiente socioeconómico é curto a
produção da riqueza alcança todos os membros dessa
comunidade desde os mais ricos aos menos ricos. À
medida que o gradiente vai aumentando corre-se o
risco de os mais pobres ficarem excluídos da
distribuição da riqueza. Em termos sociais, o
investimento público do qual resulte bem-estar para
todos, mas sobretudo para os mais desfavorecidos,
permite que estes obtenham mais rendimentos e
aquisição de comportamentos mais saudáveis. O
investimento público diminui de uma forma acelerada
à medida que os mais favorecidos se afastam dos
mais pobres. Neste caso, os últimos, “cansados”,
acabam por “desviar” grande parte dos seus
rendimentos (depois de cumprirem com as suas
obrigações fiscais!) para o seu próprio bem-estar.

45
Salvador Massano Cardoso

Como? Através dos seguros de saúde, de


condomínios fechados, opção por escolas privadas,
“deliciarem-se” com águas engarrafadas, enfim, todo
um conjunto de conforto virado para o seu próprio
bem-estar deixando de “investir no bem comum”. O
que é que esta atitude pode originar? Maior
distanciamento entre os mais ricos e os mais pobres
e, consequentemente, mais doenças. A esperança de
vida constitui, a par de muitos outros, um bom
indicador do desenvolvimento de uma comunidade.
Quando Cristo andava pela terra, a esperança de vida
rondava os 25 anos, mantendo-se praticamente
inalterável até meados do século XIX, período em que
começou a aumentar, atingindo os 40 anos no
princípio do século XX. Desde então, nos povos mais
desenvolvidos, tem sofrido um aumento substancial
aproximando-se dos 80 anos, contrastando com os
mais pobres. A diferença actual entre os dois mundos
é da ordem dos 30 anos! Enquanto nos mais ricos a
esperança de vida aumentou sete anos desde 1970-
75, nos mais desfavorecidos, caso dos povos
subsaarianos, o aumento foi apenas de quatro meses!
As causas destas diferenças são conhecidas,
originando a criação de um novo síndroma, a
“síndroma do status”, sinónimo de desigualdades
sociais. Acontece que esta síndroma não se verifica

46
Notas de Saúde Pública e Ambiental

somente entre os países mais ricos e os mais pobres.


Também, dentro do mesmo pais, é possível encontrá-
la. Há mais de 25 anos, no famoso estudo Whitehall,
o epidemiologista britânico, Professor Marmot, tinha
chegado à conclusão de que o risco de morrer era
quatro vezes superior nas camadas sociais mais
baixas face às das classes mais elevadas. Em
Portugal, por exemplo, a prevalência da diabetes, da
hipertensão arterial, das doenças cardiovasculares
são inversamente proporcionais aos graus
académicos. Mais prevalentes nos analfabetos,
seguidos dos que têm o ensino básico, mais baixa nos
que conseguiram atingir o secundário, para alcançar
os valores mais reduzidos nos que têm ou
frequentaram o ensino superior. A “síndroma de
status” é uma realidade entre nós, verificando-se
mesmo com diferenças culturais e académicas
mínimas, o que torna mais relevante a importância da
formação académica, cultural e económica. Adoecer e
morrer prematuramente têm a ver com as condições
socioeconómicas, as quais estão associadas à
pobreza, às más condições alimentares, às deficientes
condições das habitações, às atitudes e
comportamentos face aos diferentes tipos de factores
de risco. Se em Portugal o gradiente socioeconómico
continuar a aumentar, e tudo aponta para que sim, é

47
Salvador Massano Cardoso

de esperar um menor investimento nos sectores mais


desfavorecidos. As desigualdades são passíveis de
serem estudadas através de vários índices. Um deles,
o índice Robin Hood - cujo simbolismo é mais do que
evidente -, permite afirmar que, caso aumente,
venhamos a observar: “mais” diabetes; “mais”
obesidade; “mais” hipertensão; “mais” doenças
cardiovasculares; “mais” pobreza, e muito “mais”
doenças... Passados mais de 150 anos, depois de
Virchow ter “criado” a Medicina Social, podemos
afirmar que são necessárias terapêuticas “políticas”
para resolver muitos dos nossos problemas... O
século XIX ficou conhecido como o Século da
Liberdade e muitos esperavam que o século XX
acabasse por ser conhecido pelo Século da Justiça
Social, mas, infelizmente, não foi! A seguinte frase,
da autoria de Virchow, encerra em si muito do
potencial para a resolução dos problemas de saúde:
“A medicina é uma ciência social e a política não é
mais do que a medicina em grande escala”. Haja
vontade para a praticar como deve ser...

48
Notas de Saúde Pública e Ambiental

POLÍTICA DE AMBIENTE E SAÚDE

O filme “Uma Verdade Inconveniente” com Al Gore


foca de uma forma brilhante o problema do
aquecimento global. Presumo que são muito poucos
os que ainda não aceitam este fenómeno, por
interesse ou por eventual, e ingénua, incredulidade.

As consequências não são nada agradáveis. A


emergência de muitas doenças infecciosas mergulha,
em parte, neste fenómeno, e o reavivar de velhas
doenças, que tinham sido eliminadas em certas
latitudes, caso da malária, correm o risco de
reaparecerem. Veja-se a descrição de um caso
recente na Córsega. Mas, mesmo nos povos onde ela
grassa, equaciona-se a hipótese de voltar a utilizar o
velho DDT para controlar os vectores. Sabendo dos
efeitos deste pesticida, nada de bom se avizinha.

O equilíbrio planetário é cada vez mais delicado,


fazendo-se à custa de uma imensa entropia negativa,
quer no verdadeiro sentido da palavra, com todos os
inconvenientes energéticos, quer em sentido figurado
pelos receios resultantes das medidas a adoptar.

A par deste fenómeno, complexo, outros merecem a

49
Salvador Massano Cardoso

nossa atenção. O caso da poluição atmosférica é uma


realidade inquestionável que não atinge apenas as
vias respiratórias, mas acaba por contribuir para o
aparecimento de problemas congénitos, tumorais e
cardíacos.

O relatório sobre Ambiente e Saúde publicado pela


Agência Europeia do Ambiente realça os efeitos da
poluição na saúde humana. As consequências
ocorrem a vários níveis e resultam de vários
poluentes. Dentro destes destacamos os níveis
excessivos de partículas no ar provenientes da
utilização dos diversos combustíveis os quais
provocam elevada mortalidade. A OMS calcula que as
partículas no ar sejam responsáveis por 100 mil
mortes e 750 mil anos de vida perdidos (dados de
2004).

As partículas mais finas estão a ser alvo de atenção


redobrada de forma a reduzir a sua produção. A
inalação crónica de baixas concentrações provoca
graves problemas de saúde. Ultimamente tem sido
discutido o papel da poluição atmosférica nas doenças
cardiovasculares caso do enfarte do miocárdio e dos
acidentes vasculares cerebrais. Aparentemente, esta
associação não seria de esperar. No entanto, alguns
estudos epidemiológicos e experimentais em animais

50
Notas de Saúde Pública e Ambiental

revelam que a associação existe.

É muito mais prático abordar o problema da


obesidade, que constitui, também, um excelente
exemplo de outro tipo de poluição ambiental
relacionada com vários factores, em parte, genéticos,
sem dúvida, mas, sobretudo, com interesses
económicos e inoperância política, nomeadamente em
termos legais. Os portugueses são
extraordinariamente obesos o que constitui um risco
elevado de virem a sofrer diabetes,
hipercolesterolemia, enfarte e acidente vascular
cerebral. Deste modo, podemos afirmar que ser
obeso é um factor de risco cardiovascular nada
desprezível, mas no caso de viver em meio poluído,
caso das grandes cidades ou zonas industrializadas, o
risco de enfarte ou de acidente vascular cerebral
aumenta de forma significativa.

A par da poluição global, cujos efeitos começam a ser


bem conhecidos, não obstante a falta de colaboração
das autoridades que só muito a custo, e à força de
lóbis ambientalistas, é que exercem actividades
fiscalizadoras, de acordo com os tratados e
convenções internacionais, devemos citar o problema
do tabaco, e do fumo passivo, claro. O ditador Fidel
Castro, que deixou de fumar em 1986, consciente dos

51
Salvador Massano Cardoso

malefícios, apresentou um argumento digno de um


génio: “a melhor coisa a fazer é dá-los (tabaco) ao
teu inimigo”. Mesmo assim, é muito pouco provável
que os prisioneiros políticos de Cuba estejam a
receber caixas de charutos!

Sabemos que as medidas legislativas são


indispensáveis para reduzir as consequências deste
factor altamente nocivo. Aguardamos há bastante
tempo legislação neste sentido. No entanto, tudo
aponta para um recuo nos objectivos iniciais, pondo
em causa os interesses e direitos de muitos cidadãos.
Todos sabemos a importância de medidas legislativas
adequadas na modificação de comportamentos
impróprios para a saúde.

Esta abordagem tem um objectivo: afirmar que a


patologia ambiental é mais do que um problema de
saúde pública. Sendo, basicamente, um problema
político, e caso não ocorra uma inflexão nesse
sentido, não iremos muito longe. Acabaremos por
continuar a ser agredidos de várias maneiras, através
do ar, da água, dos alimentos, das condições
ambientais no local do trabalho, das novas
tecnologias, dos diferentes sistemas políticos e
económicos, entre outros.

52
Notas de Saúde Pública e Ambiental

A capacitação do cidadão em termos de controlo


ambiental está bem definida através de várias
convenções que aconselham os estados a legislar no
sentido de produzirem normativos adequados às
novas realidades ambientais. É indispensável que
sejamos dotados desses meios, mas tardam.

Claro que os problemas de poluição “grosseira” são


fáceis de detectar por qualquer um de nós, graças
aos nossos sentidos, e mesmo assim eles ocorrem de
uma forma obscena debaixo dos nossos olhos e
narizes, sem que os responsáveis accionem os
mecanismos adequados à sua prevenção. Se assim é,
e estamos a falar do nosso país, o que dizer da
chamada poluição “fina”, a que não se vê, a que não
se cheira, a que não mata imediatamente e, mesmo
provocando doenças, porque provocam, demoram
décadas a manifestarem-se, acabando por serem
interpretadas como meras fatalidades da velhice?

Muito da patologia que nos atinge tem a ver com o


meio ambiente em geral e do trabalho em particular.
Claro que os estudos nestas áreas não são nada
fáceis de realizar, por falta de patrocinadores, de
interesse do próprio estado, cúmplice de interesses
instituídos e que não pretende mexer. Lá sabem as
razões. Não é preciso transformar um português

53
Salvador Massano Cardoso

numa Erin Brockovich, até, porque entre nós, seria


muito perigoso.

Começam a aparecer alguns estudos ambientais que


revelam efeitos negativos na saúde dos nossos
concidadãos, mas não são acarinhados e, pelos
vistos, nem bem-vindos, ao porem em causa muitas
situações negativas.

As próprias autoridades de saúde deveriam efectuar


mais estudos e fiscalização nestas áreas, mas não me
parece que seja o caso, infelizmente. Compete aos
médicos diagnosticar, denunciar e propor medidas
que possam contribuir para a melhoria do ambiente
que bem precisa, quer à escala global, mas também à
nossa escala, não esquecendo que estamos perante
uma forma de disfunção transnacional.

Importa ainda afirmar que os múltiplos e crescentes


efeitos da poluição não são estáticos mas sim
dinâmicos a ponto de provocarem efeitos nas
próximas gerações mesmo antes de virem a ter
contacto com o futuro ambiente que, esperemos, seja
muito melhor do que o presente. O que não é justo é
terem de pagar pelos disparates dos seus
antepassados.

O fenómeno epigenético começa a ser uma realidade

54
Notas de Saúde Pública e Ambiental

incontestável, e, por isso mesmo, tem de ser tomado


em linha de conta nas políticas ambientais. Crianças
ou jovens adultos expostos a contaminação ambiental
poderão sofrer efeitos na sua estrutura susceptível de
provocar problemas a nível do ADN de tal modo que
os descendentes, directos ou mais longínquos,
venham ainda a sofrer na pele as consequências da
exposição dos seus antepassados. Esta nova
realidade obriga-nos a pensar duas vezes sobre o que
andamos a fazer, sobretudo quando as vítimas
poderão ser aqueles que não tiveram qualquer quota-
parte na produção da poluição. A responsabilidade
transgeracional é uma nova realidade a desenvolver e
a esclarecer.

Importa destacar o papel da chamada de


responsabilidade dos decisores políticos, por parte
dos cidadãos, quando, sabendo de antemão das
vantagens de determinadas decisões, as protelam. O
recente exemplo espanhol é bastante esclarecedor
desta postura. De facto, a introdução das medidas de
sistema de pontos para reduzir a sinistralidade
rodoviária acompanhou-se de efeitos muito
significativos, ao ponto dos cidadãos questionarem o
seguinte: se o Estado sabia dos efeitos positivos
desta medida, por que é que a não tomou há mais

55
Salvador Massano Cardoso

tempo? O mesmo se pode dizer em relação ao fumo


passivo, à poluição citadina, às agressões dos
processos industriais, devido à localização ou tipo de
produtos utilizados. Mutatis mutandi, se já sabiam
dos seus efeitos, por que razão ou razões não
tomaram medidas mais cedo? A resposta que salta de
imediato, além da irresponsabilidade, é a falta de
coragem política que mata mais do que pensamos,
traduzindo uma forma de poluição muito difícil de
eliminar.

Importa que os cidadãos disponham de meios e


mecanismos de forma a exercer os seus direitos
protegendo-se das múltiplas agressões ambientais. A
problemática ambiental constitui uma das principais
preocupações a nível mundial. O elevado número de
convenções, cimeiras e protocolos são prova de um
verdadeiro desassossego ambiental. Apesar de todos
os esforços, não tem sido possível evitar as múltiplas
e constantes agressões ambientais.

A par da educação e formação cívica torna-se


imperioso criar legislação adequada para minimizar e
reduzir as consequências, salvaguardando deste
modo as diferentes espécies. A legislação criada ao
redor da poluição ambiental é vasta e naturalmente
muito importante, mas mesmo assim não é

56
Notas de Saúde Pública e Ambiental

suficiente, já que a sua aplicação prática não é


consentânea com os fenómenos que, quase
diariamente, são noticiados, os quais provocam
ansiedade e preocupação nas comunidades.

Nas últimas décadas assistimos a uma crescente


consciencialização dos problemas ambientais, como é
o caso de Portugal. Facto que consideramos
naturalmente muito positivo, mas que originou vários
problemas, nomeadamente desconfiança por parte
das populações, face às empresas poluidoras ou
potencialmente poluentes, assim como em relação às
organizações estatais a quem compete fiscalizar a
aplicação de um conjunto, cada vez mais vasto de
normativos nacionais e comunitários.

Existe uma natural e perfeitamente aceitável


desconfiança das populações face à implantação de
focos potencialmente poluidores, além dos já
existentes. Esta percepção colectiva de risco
“imposto” origina frequentemente movimentos de
contestação e de revolta contra o estabelecimento de
novas unidades e até mesmo das já existentes. As
razões aduzidas são compreensíveis. As autoridades
nem sempre cumprem a sua missão, as instituições
também não, violando frequentemente de uma forma
descarada os preceitos legais que têm como missão,

57
Salvador Massano Cardoso

precisamente, proteger a saúde dos cidadãos e do


ambiente em geral.

Quanto ao cidadão deverá ter voz activa em todo este


processo de controlo ambiental. Não basta existirem
organismos oficiais a quem compete fiscalizar ou
associações ambientalistas que denunciem e
equacionem os problemas. É preciso que o cidadão
tenha acesso aos dados que, por lei, as empresas e
organismos têm de efectuar relativamente ao
cumprimento das normas ambientais. Deste modo,
poderá exercer o seu direito de cidadania.

A convenção de Aarhus assenta basicamente em três


pilares: o primeiro possibilita ao cidadão o direito de
acesso à informação em matéria ambiental; o
segundo permite intervir nos processos de decisão e,
por fim, o terceiro assegura o acesso à justiça. Esta
tríada é fundamental para fechar o círculo dos
intervenientes e responsáveis pelas condições e
equilíbrio ambiental, com a inclusão do elemento
mais “fraco” e menos respeitado, ou seja o vulgar
cidadão. A sua presença nesta dinâmica é imperiosa
para a resolução dos problemas.

A possibilidade dos cidadãos exercerem este direito


será determinante para uma maior confiança por

58
Notas de Saúde Pública e Ambiental

parte dos mesmos, e organizações ambientalistas, e


um controlo eficaz das medidas de prevenção
ambiental. Qualquer cidadão deverá, legalmente, ter
acesso à informação em matéria de ambiente,
sempre que considere estar em causa o meio em que
está inserido, protegendo-se e protegendo a sua
comunidade. A disponibilidade da informação, a
participação activa e a transparência de todos os
fenómenos contribuirão para eliminar a desconfiança
comunitária, face a determinadas situações
complexas.

Ao ratificarmos esta convenção, na última legislatura,


demonstramos um sinal de maturidade e empenho na
resolução dos muitos problemas que nos afligem,
com a possibilidade de uma participação activa e
dinâmica do cidadão, sinal de uma verdadeira
capacitação, base de uma intervenção
verdadeiramente activa e eficaz.

A amplitude dos problemas relacionados com a saúde


é muito vasta. De qualquer modo, importa abordar
dois ou três aspectos mais concretos que nos
permitam analisar a complexidade e a interacção com
o nosso bem-estar.

Uma das áreas mais em foco tem a ver com a

59
Salvador Massano Cardoso

problemática da emissão de subprodutos tóxicos e


partículas finas resultantes da combustão e
tratamentos térmicos de resíduos perigosos. Os
processos térmicos e a combustão dominam a
poluição atmosférica. A atenção tem sido dada aos
principais contribuintes, caso do ozono, compostos
orgânicos voláteis, óxidos de azoto e produtos de
combustão incompleta. Contudo, poluentes orgânicos,
tais como benzeno, dioxinas e furanos, acrilonitrilo e
brometo de metilo, são exemplos de combustão
incompleta de carbono, carbono e cloro, carbono e
azoto, e carbono e compostos de brometo,
respectivamente.

Muitos destes poluentes estão, frequentemente,


associados com partículas finas e ultrafinas. As
partículas finas são definidas de acordo com o
diâmetro. As PM2,5 e as PM0,1 têm diâmetros
inferiores a 2,5 e a 0,1 micra, respectivamente.
Muitos poluentes estão associados com partículas
finas, as quais são responsáveis por muitas doenças
respiratórias e cardiovasculares. A evidência científica
revela que estas partículas são responsáveis pelo
stress oxidativo que, por sua vez, está implicado no
desencadear de muitas patologias. Os
hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, os

60
Notas de Saúde Pública e Ambiental

hidrocarbonetos clorados, incluindo dioxinas e


furanos, os metais tóxicos, os radicais livres estão
associados com as partículas geradas pela combustão
e têm sido responsabilizadas por vários problemas de
saúde.

Dentro de classe dos principais poluentes, resultantes


da combustão e degradação dos resíduos perigosos,
destacam-se os derivados de hidrocarbonetos de
cloro e de bromo, diversos radicais e partículas finas
e ultrafinas. As partículas ultrafinas, nanopartículas,
não são eficientemente capturadas pelos dispositivos
de controlo da poluição, penetram profundamente
nas vias respiratórias, e são susceptíveis de serem
transportadas à distância, produzindo graves
prejuízos.

As partículas de maiores dimensões PM10 depositam-


se na parte superior das vias respiratórias e podem
ser limpas através do sistema mucociliar. Em
contrapartida as PM2,5 e as PM0,1 atingem os
alvéolos pulmonares onde penetram rapidamente o
epitélio. A sua clearance é mediada através da
actividade fagocítica e dissolução das partículas. No
tocante às nanopartículas (PM<0,1), estas
conseguem ter um impacto muito significativo
noutros órgãos.

61
Salvador Massano Cardoso

Os radicais livres presentes nas partículas finas e


ultrafinas podem produzir alterações do ADN. Mas as
suas acções manifestam-se a nível pulmonar com
diminuição da função, alterações inflamatórias cujos
efeitos não ficam acantonados ao órgão de choque,
indo exercer os seus efeitos em várias partes da
economia humana. A função imunológica sofre,
igualmente, os efeitos, ao modular a resposta devido
a certas infecções respiratórias.

São inúmeros os estudos epidemiológicos que


revelam aumento da mortalidade associada a níveis
elevados de PM. A hospitalização de crianças em
idade pré-escolar, assim como pessoas de idade
duplica nas comunidades onde as PM10 atingem
concentrações superiores ao recomendado. Os
macrófagos alveolares humanos apresentam
diminuição significativa de certos número de
receptores para a defesa do hospedeiro quando
expostos às PM. Por exemplo, a capacidade de
produzir ROS (reactive oxygen species), que são
muito importantes na destruição de microrganismos,
fica substancialmente reduzida dentro de 18 horas,
assim como uma diminuição significativa da sua
capacidade fagocítica.

Além de múltiplas perturbações da função pulmonar,

62
Notas de Saúde Pública e Ambiental

o desenvolvimento pulmonar nas crianças pode ficar


comprometido. O sistema cardiovascular não está
imune aos seus efeitos. De tal modo, que a taxa de
mortalidade cardiovascular pode ser superior à taxa
de mortalidade respiratória nos picos de poluição
atmosférica. A associação temporal entre a
hospitalização e a mortalidade cardiovascular e as
partículas ambientais é muito curta (0 a 3 dias)
sugerindo que o incremento observado seja devido a
isquémia miocárdica, enfartes e/ou arritmias
ventriculares. A longo prazo a inflamação
cardiovascular torna-se uma realidade responsável
por vários fenómenos degenerativos. Os mecanismos
precisos, através dos quais as PM aumentam o risco
cardiovascular ainda não estão perfeitamente
esclarecidos. De qualquer modo, a evidência aponta
para o papel das citocinas, para a absorção pelo
sangue e transporte até ao coração. As partículas
ultrafinas parecem que penetram profundamente no
organismo humano, através do tracto respiratório
inferior, difundindo-se pelo organismo, através da
corrente sanguínea.

A genotoxicidade, que resulta em alterações do ADN,


assim como perturbações da reprodução, é, a par de
outras, objecto de atenção e de estudo dos efeitos

63
Salvador Massano Cardoso

das diversas partículas que não se esgotam nas


tradicionalmente já, relativamente, bem conhecidas
PM10, mas, sobretudo nas mais finas, nomeadamente
nanopartículas.

Um dos problemas que mais preocupam as


autoridades de saúde pública diz respeito aos
chamados disruptores endócrinos que são agentes
que interferem na síntese, armazenamento,
libertação, secreção, transporte, eliminação, ligação,
ou acção das hormonas. Obviamente as
consequências da sua exposição dependem do
momento, duração e intensidade de exposição. É no
decurso do desenvolvimento fetal e nas crianças que
ocorrem as denominadas janelas de vulnerabilidade.

Estudos efectuados em animais, no decurso do


desenvolvimento fetal, revelam alterações da
morfologia genital, do momento da “puberdade”, da
atracção e comportamento sexuais e do nível de
descendência. Tudo isto provocado por ligeiras
flutuações das hormonas esteróides devido ao efeito
de múltiplas substâncias disruptoras.

As observações experimentais revelam uma relação


entre a exposição fetal e fenómenos que
comprometem a saúde na vida adulta, traduzindo um

64
Notas de Saúde Pública e Ambiental

longo intervalo de tempo entre a exposição e o


aparecimento de perturbações ou doenças.

A perspectiva histórica é recente. Na década de 30


várias substâncias químicas foram consideradas como
tendo propriedades estrogénicas, tais como PAHs
(hidrocarbonetos aromáticos policíclicos), bisfenol-A
(plásticos, resinas epóxi e retardadores de chama)
cuja actividade estrogénica é reconhecida desde
1938, DDT, DES (dietilstilboestrol) que chegou a ser
ministrado a milhões de mulheres grávidas.

A lista de substâncias consideradas como disruptoras


endócrinas é extensa. Destacamos os alquifenóis, os
ftalatos, mais de quarenta pesticidas, dioxinas,
furanos, PCBs e compostos organoclorados. Os seus
efeitos abrangem a redução da fertilidade, atrofia
testicular, alterações de hormonas tiroideias,
perturbações do funcionamento dos linfócitos,
bloqueio de receptores androgénicos, entre outros.
Fungicidas, insecticidas, detergentes, tintas, plásticos
podem conter disruptores. Os ftalatos, grupo de
substâncias químicas mais abundante de origem
humana, apesar de terem fraca actividade
estrogénica, podem ser responsáveis por muitas
perturbações e doenças.

65
Salvador Massano Cardoso

Sabemos que muitas doenças têm vindo a aumentar,


caso, por exemplo, do cancro da mama, o qual tendo
na sua génese vários factores responsáveis, também
está associado à exposição a estrogénios. A exposição
a substâncias com actividades estrogénica durante a
vida fetal, puberdade e adolescência pode ter algum
papel no incremento observado nas últimas décadas.

O cancro testicular, raro, deixou de o ser nos últimos


trinta anos. Nalguns países a incidência quintuplicou,
e não é por acaso que ocorra em países
caracterizados por rápido desenvolvimento industrial
e fenómenos de poluição.

Em 1976 Seveso sofreu os efeitos de uma explosão


durante a qual se formou uma nuvem de dioxinas que
é um importante disruptor endócrino. Em 1989,
começou a suspeitar-se de aumento do número de
cancros que podia ser atribuído à exposição ocorrida
vinte e três anos antes. O número era pequeno, pelo
que não foi possível tirar conclusões significativas.
Mas, em 1999, os estudos epidemiológicos
permitiram verificar riscos relativos significativos de
vários tipos de cancros, quer para os homens, quer
para as mulheres. Aumentos de mieloma, cancros
linfohematopoiéticos, leucemias, (número pequeno),
e alteração da razão de masculinidade.

66
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Em termos de Saúde Pública podemos enunciar que


os disruptores endócrinos poderão ter a sua quota
parte de responsabilidade no aumento do cancro da
próstata, no declínio do número de contagem de
espermatozóides, por alterações neurológicas
(memória e atenção), do comportamento (sexual), da
aprendizagem, pela endometriose e ovários
poliquísticos, constituindo uma área de investigação
científica de primeira linha, já que os seus efeitos,
nada discipiendos, não se esgotam na população
alvo, mas podem dar verdadeiros saltos
transgeracionais, comprometendo a saúde e a
qualidade de vida dos nossos descendentes,
obrigando que a actual geração proceda à sua
identificação, controlo e eliminação.

Koffi Annan, a propósito da recente conferência da


ONU sobre alterações climáticas, em Nairobi,
afirmou: “As nossas sociedades ainda estão a tempo
de mudar de rumo. Não temamos os eleitores nem
subestimemos a sua vontade de fazer investimentos
importantes e mudanças a longo prazo!”.

É melhor actuar enquanto há tempo. Depois…

67
Salvador Massano Cardoso

68
Notas de Saúde Pública e Ambiental

AMBIENTE E SAÚDE

Falar de ambiente e de poluição é um dos principais


imperativos sociais e científicos do nosso tempo.

Como é do conhecimento geral, somos o resultado de


uma interacção ocorrida ao longo de milhões de anos
entre o património genético e o meio ambiente.
Poluição houve sempre, mas os tempos actuais são
muito férteis em factores poluentes cujos efeitos
começam a ser preocupantes quer para a nossa
espécie, mas também para as demais.

O tema é tão vasto e complexo que dificilmente


poderemos abordá-lo em toda a extensão. Sendo
assim, nada melhor do que focalizar ou particularizar
alguns aspectos, susceptíveis de chamar a atenção
obrigando-nos a pensar e a reflectir.

Há pouco tempo li uma notícia interessante que dava


conta de um fenómeno muito estranho ocorrido na
Austrália: “chuva de pássaros mortos”.

Neste país continente, numa pequena cidade


portuária, curiosamente chamada Esperança(!), os
habitantes começaram a observar um estranho
fenómeno: os pássaros tombavam mortos dos céus,

69
Salvador Massano Cardoso

sem que houvesse um ataque maciço de chumbadas


por parte dos caçadores! Como a hipótese de morte
súbita por enfarte do miocárdio não foi colocada, os
habitantes, alarmados, denunciaram a situação às
autoridades, exigindo que as mesmas dessem
explicações. As autoridades de saúde afiançaram que
não tinham que se preocupar, mesmo depois de
terem encontrado níveis elevados de chumbo e níquel
nos tanques de água da chuva, a principal fonte
naquelas paragens. Nalgumas amostras os níveis
ultrapassavam em 130 vezes os limites. Milhares de
pássaros morreram envenenados por chumbo.

Esperança é um porto através do qual são exportados


níquel e carbonato de chumbo para a Ásia.

Agora interromperam as operações depois do chumbo


ter poluído o ar, a água e o mar.

As populações estão indignadas, e muito


preocupadas, pelo facto das autoridades terem
demorado meses a esclarecer a situação, com a mais
perfeita e despudorada arrogância de quem detêm o
poder, apesar das evidências terem tido início meses
antes!

Pensava eu que só no nosso terceiro-mundismo


comunitário é que seria possível observar uma

70
Notas de Saúde Pública e Ambiental

inoperância desta natureza, mas afinal também


ocorre em países mais desenvolvidos do que o nosso.

Para esclarecer o problema criaram uma comissão (os


mecanismos são os mesmos).

O ministro da saúde considera a situação


preocupante, em termos de saúde pública, mas, logo
a seguir, o responsável técnico do departamento de
saúde australiano vem afirmar que os níveis de
chumbo no sangue das pessoas não são assim tão
elevados, em muitas pessoas. Logo, a causa não está
perfeitamente esclarecida!

Entre nós não há registo, felizmente, de pássaros a


caírem do céu. Mas as afirmações de que as
incineradoras no meio da cidade são a “coisa” mais
natural do mundo, ou que a emissão de poluentes
provenientes da combustão de resíduos industriais
perigosos é inferior aos combustíveis habituais dão
que pensar.

Em síntese, os responsáveis não são muito dados a


respeitar os direitos dos cidadãos. Austrália ou
Portugal, qual a diferença?

71
Salvador Massano Cardoso

Já afirmei que a poluição também atinge outras


espécies e a este propósito não queria deixar de focar
que muitas substâncias lançadas no ambiente, na
sequência de actividades humanas, têm sido
responsabilizadas, mesmo em doses baixas, por
alterações fisiológicas de muitas espécies, incluindo o
homem. As modificações operadas a nível dos
organismos condicionam e propiciam o aparecimento
de muitas doenças, nomeadamente, degenerativas.
Estes achados têm sido alvo de atenção e
preocupação por parte dos cientistas, os quais vão
alertando para a necessidade de evitar e minimizar as
consequências nefastas, mas, aparentemente, sem
grande sucesso. Paralelamente a estes factos,
adicionam-se outros, que são igualmente
preocupantes. De facto, começam a ser descritas
modificações comportamentais em diferentes
espécies. Garças, gaivotas, caracóis, codornizes,
ratos, macacos, mosquitos, falcões, rãs, entre outros,
têm sido estudados, verificando-se alterações
importantes no acasalamento, na formação de
ninhos, na aprendizagem, no forragear, no voo, no
cantar, alguns não conseguem fugir dos predadores,
outros procuram membros do mesmo sexo, enfim, o
mundo animal começa a apresentar sinais bizarros
provocados pela exposição a muitos químicos em

72
Notas de Saúde Pública e Ambiental

baixas concentrações. Houve quem, em jeito de


graça, afirmasse que os peixes se tornam
hiperactivos – às tantas até saltam
desesperadamente para os anzóis dos pescadores –
as rãs tornam-se estúpidas (também nunca me
apercebi que fossem inteligentes), os ratos intrépidos
e muitas gaivotas despenham-se em pleno voo.

Se no futuro, estes dados forem confirmados, então,


quem sabe, se muito daquilo que observamos no
nosso dia poderá ser explicado pelas mesmas
substâncias que provocam aqueles efeitos nos
animais!

Esta abordagem ilustra que os comportamentos de


muitos animais começam a ser preocupantes,
constituindo indicadores da gravidade de exposição
ambiental que não se esgotam nas actividades
industriais já que muitos cientistas começam a
denunciar um grave problema de poluição motivado
pelo uso dos diferentes fármacos. Têm sido
detectadas na água de abastecimento, por esse
mundo fora, dezenas de substâncias, tais como,
antibióticos, tranquilizantes, hormonas sexuais,
anticonvulsivantes, analgésicos, antihipertensores,
antihipercolesterolémicos, antinflamatórios, entre
muitas outras. As concentrações são da ordem de

73
Salvador Massano Cardoso

partes por milhão, por bilião ou mesmo por trilião,


muito abaixo dos níveis das doses médicas, pelo que
as águas são consideradas seguras. Mas serão
mesmo?

Os diferentes produtos e seus derivados alcançam os


aquíferos através da eliminação dos esgotos
contaminados pelos excreta dos que tomam
medicamentos. As centrais de tratamento dos
“esgotos” e das águas de abastecimento não
conseguem eliminar totalmente os fármacos e os
seus derivados. Atendendo ao número de pessoas
que os tomam, para não falar dos que são usados na
agropecuária, não é de admirar que este fenómeno
comece a preocupar os responsáveis, tanto mais que
alguns estudos apontam para efeitos negativos nos
diversos ecossistemas e, em última análise, o homem
também não irá escapar.

Ao reflectir sobre este assunto, perpassou-me pela


cabeça que os produtos homeopáticos deveriam ser
considerados como “ecológicos”, já que não havendo
comprovação científica da sua eficácia, aliada,
praticamente, à “ausência” de moléculas activas nos
seus produtos, não contaminam o meio ambiente.

74
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Claro que os medicamentos homeopáticos não podem


produzir alterações ambientais. Mas o mesmo não se
passa em relação aos plásticos, infelizmente.

Já tive oportunidade de escrever sobre a


problemática da poluição provocada pelos plásticos.
De facto, os oceanos, e não só, estão cheios de
produtos à base deste material, os quais constituem
focos de atracção para várias espécies marinhas. Ao
ingeri-los acabam por sofrer consequências muitas
vezes mortais. Tartarugas, golfinhos, baleias e muitas
aves, nomeadamente albatrozes, são vítimas deste
grave atentado ambiental.

Dentro do “mundo plástico”, os sacos que utilizamos


no dia a dia, e que começaram a ser introduzidos na
década de setenta, constituem uma das principais
fontes. Basta dizer que globalmente utilizamos entre
500 mil milhões a um trilião por ano, qualquer coisa
como 150 sacos por pessoa, ou seja a um ritmo de
um milhão de sacos por minuto. Não esquecer que o
tempo médio de vida de um saco de plástico é
bastante miserável, cerca de 12 minutos, o que
contrasta com a sua permanência no meio ambiente
que se pode contabilizar por dezenas e mesmo
centenas de anos! Tudo isto, porque degradam-se
muito lentamente. A natureza não previu que um dia

75
Salvador Massano Cardoso

aparecessem coisas “estranhas” e,


consequentemente, não desenvolveu mecanismos
adequados à sua destruição. Tanto é assim que neste
momento está a constituir-se no oceano Pacífico um
novo continente feito à custa de plásticos, fruto das
condições marítimas que levam para aquelas bandas
o lixo de plástico planetário.

Há que interromper este ciclo. O facto de começarem


a surgir movimentos contra o uso sacos de plástico,
estimulando o uso de materiais biodegradáveis é de
louvar e de encorajar.

A este propósito, a cidade de Modbury, na Grã-


Bretanha, passou a constituir o primeiro local a abolir
os sacos de plástico nas compras. Todos os 43
comerciantes desta localidade passaram a receber
sacos de papel reciclável ou sacos reutilizáveis feitos
de algodão, de juta e de outros materiais
biodegradáveis.

A ideia partiu da fotógrafa Rebeca Hosking que, numa


viagem ao Havai, acabou por verificar que os
albatrozes, e sobretudo os seus filhotes, morriam
devido ao facto de se alimentarem com tudo o que
era plástico que encontravam nas suas longas
peregrinações em busca de alimentos. Tudo o que

76
Notas de Saúde Pública e Ambiental

brilha à superfície é interpretado como alimento, é


“pescado” e ao fim de centenas e centenas de milhas,
pensando que carregam alimentos para os filhotes,
acabam por lhes enfiar nas goelas brinquedos,
plásticos variados e até isqueiros. Claro que os
animais morrem e os seus corpos ao degradarem-se
revelam as causas já que no meio das carcaças
surgem os tais plásticos prontos a serem novamente
“pescados” ou engolidos por outras espécies,
perpetuando a morte.

Chocada com este quadro, Rebeca conseguiu


convencer os comerciantes de Modbury a associarem-
se a este projecto. Não importa se é ou não a
primeira localidade a assumir este comportamento,
até, porque São Francisco na Califórnia acabou, muito
recentemente, por tornar-se na primeira cidade a
proibir o uso de sacos de plástico nos grandes
supermercados e farmácias. Apesar de todo o
processo legislativo ainda não estar completo, os
envolvidos manifestaram o seu acordo e não deve
haver grandes problemas (supermercados com
facturação superior a dois milhões de dólares por ano
e farmácias com mais de cinco filiais).

A necessidade em promover a reciclagem não é nova.


Até o próprio Bangladesh, pais paupérrimo, já proibiu

77
Salvador Massano Cardoso

o uso de sacos de plástico quando se descobriu que o


sistema de esgotos do país ficava entupido,
contribuindo para o agravamento de inundações tão
comuns naquela parte do globo.

Aqui está uma medida simples, perfeitamente


acessível, capaz de contribuir para um ambiente
melhor e estimular a consciência ambiental dos
cidadãos, preservando um planeta que tem sido tão
mal tratado. Uma medida simples arrasta outras
medidas simples.

Alguns supermercados começam a tomar medidas,


utilizando, por exemplo, materiais recicláveis. Um
bom princípio, mas manifestamente insuficiente sem
o concurso dos restantes operadores, comerciantes e
clientes.

Já lancei o repto de Coimbra aderir a um projecto


desta natureza. Bastaria que os comerciantes da
nossa cidade, com a ajuda dos responsáveis locais e
com a “anuência” do cidadão anónimo aceitassem.
Com tanta discussão ao redor dos perigos ambientais,
bem poderíamos mostrar que também somos capazes
de os evitar...

Fala-se muito sobre poluição atmosférica. De facto,


Coimbra, apesar de ser uma cidade mediana já tem

78
Notas de Saúde Pública e Ambiental

problemas de poluição atmosférica.

A poluição atmosférica não se cinge apenas aos


órgãos de choque, vias respiratórias, pele, olhos, mas
também a outros órgãos da nossa economia, caso do
coração.

O relatório sobre Ambiente e Saúde publicado pela


Agência Europeia do Ambiente realça os efeitos da
poluição na saúde humana. As consequências
ocorrem a vários níveis e resultam de vários
poluentes. Dentro destes destacamos os níveis
excessivos de partículas no ar provenientes da
utilização dos diversos combustíveis os quais
provocam elevada mortalidade. A O.M.S. calcula que
as partículas no ar sejam responsáveis por 100 mil
mortes e 750 mil anos de vida perdidos (dados de
2004).

As partículas mais finas estão a ser alvo de atenção


redobrada de forma a reduzir a sua produção. A
inalação crónica de baixas concentrações provoca
graves problemas de saúde: desencadeiam ataques
de asma além de graves doenças pulmonares e
cardíacas. Os novos limites a propor são
manifestamente inferiores aos existentes o que exige
a tomada de medidas bastante drásticas. Não

79
Salvador Massano Cardoso

esqueçamos que os veículos a gasóleo e as fontes


que utilizam carvão são as principais fontes destas
partículas.

Ultimamente tem sido discutido o papel da poluição


atmosférica nas doenças cardiovasculares, caso do
enfarte do miocárdio e dos acidentes vasculares
cerebrais. Aparentemente, esta associação não seria
de esperar. No entanto, alguns estudos
epidemiológicos e experimentais em animais revelam
que a associação existe e poderá ser explicada
através de fenómenos inflamatórios que, ocorrendo a
nível pulmonar, acabam por se repercutir a nível
sistémico. Assim, no caso de artérias apresentarem
lesões ateroscleróticas o processo inflamatório pode
agravá-las e desencadear uma situação de obstrução.

A obesidade constitui uma das mais graves epidemias


do mundo ocidentalizado e tem uma influência
negativa na saúde dos vasos sanguíneos. Os
portugueses e, sobretudo, as portuguesas estão cada
vez mais obesos, ao ponto de 52% das últimas, com
idade igual ou superior a 18 anos, ultrapassarem um
perímetro abdominal de 88 cm, o que constitui um
risco elevado de virem a sofrer diabetes,
hipercolesterolemia, enfarte e acidente vascular
cerebral.

80
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Deste modo, podemos afirmar que ser obeso é um


factor de risco cardiovascular nada desprezível, mas
se viver em meio poluído, caso das grandes cidades
ou zonas industrializadas, o risco de enfarte ou de
acidente vascular cerebral aumenta de forma
significativa. Se for obeso ou praticar uma dieta não
saudável, por exemplo rica em gorduras, é melhor
não respirar as partículas provenientes da combustão
de gasóleo ou do carvão.

Comer uma refeição rica em gorduras num


restaurante ou numa esplanada na Avenida na Fernão
de Magalhães em Coimbra ou na Avenida da
Liberdade em Lisboa pode constituir uma associação
muito perigosa para as nossas artérias…

Se eu disser que pode haver alguma relação entre


aspirina e a poluição, alguém acreditará? Pois parece
que sim.

Vejamos o seguinte: eu faço parte de um grupo que


não tem grande receio em andar de avião, até,
porque, frequentemente, chego a adormecer mesmo
antes de levantar voo! Das duas uma, ou é alguma
falta de oxigenação que ataca o meu cérebro, ou,
então, este quer “desligar-se” de qualquer coisa. Mas,
adiante. O que me incomoda mais é a falta de

81
Salvador Massano Cardoso

espaço. Apesar de não preencher os critérios de ser


um “avantajado”, sinto-me apertado e não sei onde
meter as pernas.

Há já algum tempo foi descrito um novo síndroma,


denominado da “classe económica” que, segundo
alguns autores, é uma designação errada, já que
pode atacar os passageiros da classe executiva e,
até, mesmo os que viajam noutros meios de
transporte. Afinal, tudo se resume à formação de
pequenos trombos nas veias das pernas devido à
imobilização das mesmas. Assim, quanto maior for o
tempo da viagem sem mobilização dos membros
inferiores maior é o risco de vir a sofrer uma
“trombose venosa profunda” a qual pode libertar
trombos capazes de se alojarem nos pulmões,
podendo, nalgumas circunstâncias, provocar a morte.
Para evitar tal situação recomenda-se várias práticas
que vão desde a utilização de meias elásticas,
movimentos com contracção dos músculos das
pernas, tentar andar pelo corredor, uso de aspirina, e
até mesmo de anticoagulantes, sobretudo nas
pessoas de elevado risco, caso de idosos ou quem
tenha sido sujeito a cirurgia.

A par da situação já descrita, veio agora juntar-se


mais alguns dados novos. Ou seja, novas “causas”

82
Notas de Saúde Pública e Ambiental

para a denominada “trombose venosa profunda”.

A poluição atmosférica tem sido ultimamente


responsabilizada por vários problemas, caso de
acidentes cardiovasculares, nomeadamente enfarte
do miocárdio. Pois bem, tudo aponta para que as
pessoas que habitem, ou trabalhem, em zonas
poluídas corram riscos acrescidos de virem a sofrer
“trombose venosa profunda” semelhante ao já
definido “síndroma da classe económica”. E o risco
não é nada pequeno, chega a ser 75% superior nas
áreas mais poluídas! Deste modo, o que poderá ser
feito para as pessoas que respiram ar poluído?
Mexerem as pernas? Já as mexem! Às tantas, os
autarcas das zonas mais poluídas das suas cidades
ainda vão começar a distribuir meias elásticas ou
aspirinas para prevenirem o problema. Aqui está um
bom mote para uma campanha eleitoral. “Pela minha
parte comprometo-me a oferecer a todos os
munícipes das zonas poluídas um par de meias
elásticas e uma caixa de aspirinas para prevenir a
“síndroma da classe económica”.

Como andamos a sofrer “embolias” de vários tipos


sempre é uma ajudita...

Não queria terminar sem fazer uma abordagem ética

83
Salvador Massano Cardoso

sobre os problemas de poluição ambiental.

A razão de sexos ao nascimento é definida pelo


número de crianças do sexo masculino versus os do
sexo feminino. Por cada 100 raparigas nascem
105/106 rapazes. Especula-se muito sobre as razões
deste fenómeno. Em certos países e regiões foram
observados desvios e inversões desta razão. Quanto
às causas, são muitos os factores invocados. Entre
estes, destacam-se os de origem ambiental,
constituindo a inversão da razão de masculinidade –
para alguns autores – um “bom” sinal de alerta de
agressão durante a gravidez, já que o sexo masculino
é mais sensível às “agressões” químicas do que os
indivíduos do sexo feminino. Não obstante a
controvérsia entre os diferentes autores, não é de
excluir esta hipótese, reforçada por vários estudos
recentes.

As comunidades remotas que vivem ao redor do


Círculo Polar Árctico apresentam duas vezes mais
raparigas do que rapazes. Curiosamente, países como
os Estados Unidos e Japão exibem, pela primeira vez,
um predomínio feminino!

Os cientistas concluíram que a poluição química é o


principal responsável por tão preocupante fenómeno.

84
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Os poluentes são canalizados pela acção dos ventos e


dos rios, “afundando-se” numa zona muito sensível
do planeta, acabando por contaminar a cadeia
alimentar e, consequentemente, atingindo os seres
humanos e outros animais.

A Gronelândia apresenta a maior proporção de


mulheres do mundo.

O Árctico já demonstrou a sua “utilidade” ao


contribuir para o diagnóstico das alterações climáticas
em curso. Agora, está a “mostrar” o que pode
acontecer à Humanidade em termos de poluição. Na
prática, não se vislumbram grandes preocupações
nesta matéria.

Muitos dos poluentes de origem humana – frutos da


actividade industrial – são dotados de actividade
semelhante às hormonas femininas. A inundação
destes disruptores no meio ambiente é cada vez mais
preocupante. Importa, naturalmente, aplicar medidas
preventivas à escala planetária, antes que seja tarde
de mais, a fim de evitar uma catástrofe difícil de
quantificar. Não é "só" o fenómeno de inversão que
está em causa. Outras consequências a nível da
saúde são muito sérias para as ignorarmos.

"Um problema de ética ambiental" que urge

85
Salvador Massano Cardoso

resolver...

Tenho muito respeito pelos movimentos


ambientalistas que têm desempenhado um papel
muito importante como denunciadores e
consciencializadores da opinião pública.

Os movimentos ambientalistas têm algumas tiradas


capazes de provocar avinagradas reacções face a um
aparente “patetismo”. No entanto, importa saber que,
ao chegarem a essas atitudes, despoletadoras de
críticas, já decorreram muitas e muitas tragédias
tradutoras de incúria e falta de respeito pelo
ambiente, além dos fatais interesses económicos.

As evidências científicas têm vindo a esclarecer


muitas dúvidas, alertando para situações que, à falta
de melhor expressão, poderemos classificar como
dramáticas. Caso das modificações do
comportamento e sobrevivência de batráquios e
répteis e agora de aves.

O uso indiscriminado de pesticidas tem tido efeitos


muito nefastos. O velho DDT, usado
indiscriminadamente durante muitos anos, e apesar
de ter sido abandonado, continua a fazer das suas.
Quem diria que certas partes dos cérebros de tordos,
responsáveis pelas “cantigas” e pelo acasalamento,

86
Notas de Saúde Pública e Ambiental

sofrem uma atrofia quando expostas a níveis


elevados daquele pesticida? É verdade. O facto da
natureza não conseguir degradar de forma adequada
este químico, já que continua a persistir desde a
década de sessenta, assusta qualquer um com
interesses nestas áreas.

Como a poluição é fundamentalmente “feminina”, os


machos são os mais atingidos. As partes do cérebro
mais sensíveis às hormonas reprodutivas, associadas
com o canto e o acasalamento, são bastante
afectadas. Coitados! Querem cantar e devem sair
sons que aos ouvidos das fêmeas devem a soar a
perfeitos castrati, ou, então, querem acasalar mas,
quando chegam a vias de facto, não devem saber
como! O estudo incidiu em tordos, mas é muito
provável que atinja outras aves e que outros
pesticidas possam ter efeitos semelhantes.
Desconhecem-se, como é óbvio, as consequências
neurológicas e comportamentais nos seres humanos,
mas não é de excluir alguns efeitos. O tempo o dirá.
Quem sabe se muitas das atitudes, face ao aparente
“patetismo” dos que pretendem defender o meio
ambiente, não são já uma tradução do atrofiamento
do cérebro provocado pelos pesticidas, isto para não
nos envolvermos com certas formas de “cantar”…

87
Salvador Massano Cardoso

88
Notas de Saúde Pública e Ambiental

AMBIENTE, EVOLUÇÃO E PATOLOGIA HUMANA

Há cerca de 2.500 anos, Demócrito afirmou que “tudo


o que existe no universo é fruto do acaso e da
necessidade”. Em 1970, Jacques Monod, prémio
Nobel francês, escreveu um ensaio com o título “O
acaso e a necessidade”. Na sua obra, Monod escreve
que “a antiga aliança foi quebrada; o homem,
finalmente, sabe que está sozinho na imensidão
indiferente do universo, do qual emergiu por acaso.
Seu dever, como seu destino, não está escrito em
lugar nenhum”. O nosso destino não está escrito, mas
está fortemente condicionado pelas interacções entre
um património genético seleccionado para viver em
determinadas circunstâncias e a realidade actual,
para não falar da futura. Assim, nasce a necessidade
de conhecer as causas do sofrimento e da doença
que, desde todo o sempre, acompanhou e continua a
acompanhar a nossa espécie e todas as outras.

Há, de facto, uma constante ligada à vida que é a


existência da doença. Em termos evolutivos é uma
fatalidade, ou melhor uma necessidade. Não podemos
ignorar que a doença é um processo biológico mais
antigo que o homem. Antigo como a própria vida,

89
Salvador Massano Cardoso

porque é um atributo da vida. Sendo assim, todo o


esforço efectuado no sentido de a evitar estará, em
princípio, condenado ao fracasso.

Podemos afirmar que dentro dos inúmeros objectivos


da espécie humana, há um que poderemos considerar
como universal: viver mais e de preferência com
saúde. Os esforços indirectos ocorridos ao longo da
nossa história e os directos desenvolvidos, sobretudo,
no último século, em termos de qualidade de saúde
permitiram que a esperança de vida tivesse sofrido
um acréscimo significativo no período compreendido
entre o início do século XX e os nossos dias, passando
dos 40 para os cerca de 80 anos, facto que contrasta
com os 25 da pré-história e até mesmo com os 30
anos no período áureo do império romano.

A forma de morrer e de adoecer reflectem as


diferentes eras e épocas. Com o aumento da
esperança de vida, novas, ou melhor, situações não
previstas durante a evolução primordial tornaram-se
bastante prevalentes, constituindo focos de atracção
e de investigação que estão na base da compreensão
dos seus mecanismos e, consequentemente, na luta e
prevenção das mesmas.

Face à situação actual, quais são os cenários que se

90
Notas de Saúde Pública e Ambiental

colocam ao homem para viver mais anos e com mais


saúde? Podemos considerar três: viver mais uns
anitos, graças à genética (mas não para já), à
medicina preventiva e à intervenção médica
secundária. Podemos, caso consigamos alcançar os
meios necessários, viver muitos mais anos, mas
dificilmente evitaríamos a demência e, por fim, no
limite, traduzindo anseios divinos alcançar a eterna
juventude e a imortalidade. Não podemos esquecer
que, depois de termos comido o fruto da árvore da
sabedoria, andamos a lamber os frutos da árvore da
vida.

A investigação médica-biológica centra a atenção em


três grandes áreas: reparação das lesões cancerosas,
reparação das lesões arteriais e dos neurónios.
Mesmo na hipótese de cura destas três grandes tipos
de lesões, não conseguiríamos atingir a imortalidade
e, nem sei se valeria a pena, basta ver o que
aconteceu a Titonus quando a deusa Aurora se
apaixonou por este mortal. Pediu a Zeus a
imortalidade para o seu amado. Zeus concedeu-lhe,
mas imortalidade não é sinal de juventude eterna.
Assim, Titonus envelheceu, envelheceu até que ficou
totalmente demente. Como não podia morrer, Aurora,
piedosamente, transformou-o em gafanhoto, símbolo

91
Salvador Massano Cardoso

da eternidade. Não vejo vantagens em sermos


“gafanhotos”.

Através de um exercício académico podemos calcular


o que aconteceria se, por artes mágicas, fosse
possível eliminar todas as doenças cardiovasculares,
neoplásicas e todas as causas de morte natural,
ganharíamos cerca de 46 anos de vida. Se
adicionássemos à esperança de vida actual cerca de
78 anos, iríamos viver quase tanto como Jeanne
Louise Calment que morreu aos 122 anos, porque
tinha que morrer.

Esta introdução tem como objectivo ilustrar que o


conhecimento das causas das doenças e a capacidade
para as eliminar ou reduzir não irão permitir viver
mais do que aquilo que “merecemos”, e ainda bem. O
ideal seria viver mais anos e de preferência com
saúde.

Para combater as doenças e preveni-las temos de


conhecer as causas. Hoje, já sabemos muito, mas
não tanto como desejaríamos. Na análise das doenças
focamos a atenção às causas próximas das doenças,
ou seja, sal em excesso, consumo de tabaco, de
gorduras, exposição ao sol, falta de exercício,
exposição a noxas ambientais, agressões sociais e

92
Notas de Saúde Pública e Ambiental

psicológicas, entre muitas outras. Mas, esquecemos


de focar a nossa atenção nas causas remotas. As
explicações prévias permitem compreender porque é
que algumas pessoas adquirem a doença e outras
não, ao passo que as explicações evolucionistas
mostram, porque é que em geral os seres humanos
são susceptíveis a algumas doenças e não a outras. A
perspectiva darwiniana da medicina abre novas e
interessantes explicações para as doenças,
recordando que não podemos encarar somente as
causas próximas, mas também temos de entrar em
linha de conta com as causas evolucionárias. As
explicações próximas respondem ao “o quê?” e ao
“como?” (perguntas sobre estruturas e mecanismos).
As explicações evolucionárias respondem ao
“porquê?” (perguntas sobre a origem e funções).

A selecção natural originou órgãos tão complexos


como os olhos, o cérebro, o coração e mecanismos de
defesa tão sofisticados como o sistema imunológico.
Mas não conseguiu dotar-nos de mecanismos que
possibilitem substituir um dedo quando o perdemos,
reparar uma artéria obstruída ou viver 200 anos. O
estudo da fisiologia humana e dos diferentes sistemas
são verdadeiramente maravilhosos, mas,
aparentemente a natureza não explica certos “erros”.

93
Salvador Massano Cardoso

Porque razão a vias digestivas e área se cruzam?


Para nos engasgamos? Não. Estamos perante velhos
compromissos da evolução. Do mesmo modo
poderíamos perguntar porque razão um quarto da
população mundial sofre de miopia? Porque é que não
foram eliminados os genes responsáveis ao longo da
evolução? São inúmeros os exemplos que podíamos
descrever para demonstrar a incongruência em
termos evolutivos de determinadas características.

Viver comporta uma dose elevada de ansiedade que,


tal como a dor, é indispensável para nos protegermos
das agressões do meio ambiente, só que as
agressões modernas são bastante diferentes das
primitivas. A selecção de algumas patologias poderão
ilustrar a importância das causas remotas ou
evolucionárias no seu desencadeamento ou
aparecimento.

O sistema nervoso autónomo é um sistema de


respostas altamente adaptativo e bastante primitivo,
já que foi encontrado nos organismos primitivos. Uma
das situações não previstas durante a evolução
primordial do sistema autónomo é a emergência das
doenças crónicas. Muitas doenças humanas podem
ser consideradas como desvios evolucionários, e as
distorções do equilíbrio autónomo podem participar

94
Notas de Saúde Pública e Ambiental

na patogenia. Muitas doenças cardiovasculares que


afligem a maioria das populações do mundo ocidental
reflectem mal adaptação da tríada da resposta ao
trauma: adrenergia, inflamação e coagulação. O
trauma desempenhou um papel determinante na
selecção natural da evolução pré-moderna. A
competição ecológica foi sempre uma constante.
Traumatismos mortais e subletais, resultantes de
conflitos com outros indivíduos ou em interacção com
o meio ambiente, obrigavam à manifestação de um
conjunto de mecanismos de defesa, sem os quais, a
probabilidade de sobreviver seria praticamente nula.
Deste modo, os componentes do trauma, adrenergia,
inflamação e coagulação limitavam (e continuam a
limitar) as perdas de volume intravascular, a defesa
das feridas contra os microorganismos e o início da
reconstrução dos tecidos. Os traumatismos
desempenharam um papel preponderante na
construção evolucionária e na fisiologia do organismo.
Muitas doenças cardiovasculares podem reflectir,
modernamente, desvios à resposta traumática
adaptativa. A alimentação, os diferentes estilos de
vida, o aumento da esperança de vida constituem
novos agentes stressizantes dos nossos sistemas
fisiológicos. O tabaco, a hipercolesterolemia, a
hipertensão e a diabetes convergem e provocam

95
Salvador Massano Cardoso

microagressões nos vasos sanguíneos com a


subsequente disfunção endotelial. Trauma do
endotélio, inflamação a nível dos vasos e coagulação
são manifestações da tríade do trauma que, no caso
dos traumatismos, salvam as vidas, mas que
reportadas a nível de uma artéria coronária
constituem uma catástrofe, por vezes mortal.
Estamos perante um exemplo de um desvio
caracterizado por má adaptação não prevista na
evolução.

O próprio sistema renina-angiotensina é


filogeneticamente muito antigo, observado em
espécies tão velhas como os elasmobranquios. Há
mais de 500 milhões de anos possibilitou a invasão
da terra de organismos aquáticos. Sem este sistema
não seria possível regular o tonus vascular, nem o
volume sanguíneo. Com mais de 500 milhões de
anos, hoje, o homem luta, frequentemente, contra
uma sistema que é responsável em grande parte pela
hipertensão arterial. Um sistema que esteve na base
da própria vida e da adaptação ao meio ambiente
acaba, muitas centenas de milhões de anos depois,
de ser um alvo preferencial na prevenção secundária
das doenças cardiovasculares.

Uma das áreas de saúde mais preocupantes diz

96
Notas de Saúde Pública e Ambiental

respeito à saúde mental. O número crescente de


patologias mentais leva os responsáveis a considerá-
las como verdadeiras epidemias pondo em causa o
bem-estar pessoal e social. Dentro do vasto universo,
destacamos a doença afectiva sazonal. Existe a
convicção de que terá tido um papel nada despiciendo
no decurso da evolução. O sofredor típico, nas
latitudes moderadas, sente-se bem na Primavera e no
Verão. Nestas alturas um terço dos sofredores até
tem comportamento hipomaníaco de grau variável.
Os meses de Outono e do Inverno são penosos
devido à sintomatologia. As alterações do humor e do
comportamento são originariamente genéticas e
influenciadas pelo meio ambiente. Quando o homem
começou a migrar há 150.000 anos a partir das
regiões mais equatoriais, esta anomalia já existiria.
Alguns autores consideram que haveria três grupos
de Homo sapiens: indivíduos que eram muito
sensíveis às mudanças sazonais (que não
sobreviveram). Aqueles que eram moderadamente
sensíveis (antepassados das actuais pessoas com
doença afectiva sazonal) e aqueles com baixa
sensibilidade cujos descendentes sobreviveram e
floresceram. Não deixa de ser interessante verificar
que existe uma associação entre elevados níveis de
capacidade intelectual e a sazonalidade. Vejamos o

97
Salvador Massano Cardoso

caso da Escócia. País pequeno mas desproporcionado


em termos de importantes invenções: logaritmos,
televisão, telefone, penicilina, clorofórmio, anti-
sepsia, máquina a vapor….

A ciclotomia estimulada ou desenvolvida pela


sazonalidade acompanha-se de um aumento da
criatividade. A vantagem selectiva tem repercussão a
nível da reprodução e no timing da procriação. Os que
sofrem de doença grave estão em desvantagem, por
motivos óbvios. À medida que o homem migrou para
longe do equador a ligeira ou moderada depressão do
Inverno evoluiu com vantagem tornando-se
geneticamente transmissível. Só que, hoje em dia, a
forma como está organizada a sociedade,
nomeadamente o trabalho indoor, transformou a
“depressão do Inverno” em doença. Agora, sobretudo
nas latitudes mais nórdicas, as populações
geograficamente imóveis começam a sofrer
desvantagens reprodutivas, o que permite antever
que nos próximos milhares de anos seja menos
comum.

A principal queixa que os médicos se confrontam nos


primeiros três meses da vida são as cólicas das
crianças. A situação é muito comum e está associada
com níveis elevados de stress maternal. A razão tem

98
Notas de Saúde Pública e Ambiental

a ver com a interpretação dada à situação, já que é


considerada como um sinal de grave problema. A
situação chega a ser responsável de abusos graves e
até, por vezes, de morte ocasional.

A cólica pode ser analisada numa tripla perspectiva:


trata-se de uma situação que as crianças fazem, de
uma situação exacerbada pelas condições de vida
típica das sociedades industrializada ou, então, de
uma situação que faz todo o sentido em termos
evolucionários. Passando a analisar este último
aspecto, podemos afirmar que as cólicas nas crianças
!Kung San (caçadores-colectores do Botswana) são
particularmente interessantes. Além de uma natural
indulgência, as crianças são transportadas
constantemente nos braços das mães ou num sling
(kaross). Estão em contacto directo com o corpo da
mãe. A posição vertical assumida assenta numa
cultura própria a um melhor desenvolvimento. As
mães permitem que as crianças se alimentem
“continuamente” (3 a 4 vezes por hora durante 1 a 2
minutos) e respondem acto contínuo às solicitações
das crianças, ou seja, são muito mais rápidas que as
ocidentais (92% respondem em menos de 10
segundos). As ocidentais estão mais frequentemente
separadas e refreiem as respostas em 40% do

99
Salvador Massano Cardoso

tempo. A frequência dos gritos é a mesma mas a


duração é metade do observado no ocidente.
Aspectos idênticos foram observados nos macacos
rhesus, esquilos e macacos rabo de porco (macaca
nemestrina).

A composição do leite e o tipo de estratégia de


cuidados estão relacionados. Espécies com baixos
níveis de proteínas e de gordura têm taxas baixas de
sucção mas frequentes a intervalos curtos. Espécies
com elevados teores de proteínas e de gordura têm
comportamentos opostos. O comportamento da cólica
é universal. Outros aspectos podem e devem ser
tomados em linha de conta, nomeadamente, o facto
de que a resposta à cólica produz uma redução da
duração e, consequentemente, poupança de energia
para o crescimento e maior probabilidade de
sobrevivência, à qual se associa um aumento da
frequência da amamentação. O aumento paralelo da
prolactinemia e da anovolução jogam em favor do
interessado, assim como uma maior proximidade e
maior protecção face aos predadores. No fundo,
razões de ordem económica apontam para a
sobrevivência do indivíduo. Actualmente, a não
aplicação dos conhecimentos evolucionários
asseguram interpretações erradas, do género de

100
Notas de Saúde Pública e Ambiental

doença grave, de fome ou de falta de cuidados


adequados. Numa perspectiva evolucionária faz todo
o sentido a criança gritar e, daqui a muito milhares
de anos, continuarão a gritar nos ambientes
tecnológicos mais sofisticados e inimagináveis,
comportando-se mesmo no longínquo espaço de uma
forma idêntica aos caçadores-colectores que nos
procederam. Convém não esquecer esta condição.

As doenças susceptíveis de interpretação darwiniana


são múltiplas e algumas têm a ver com a evolução
das condições higiénicas. De facto, a evolução das
condições higiénicas constitui uma das maiores
conquistas da humanidade. Praticamente, iniciou-se
em meados do século XIX, através do controlo da
qualidade da água, a eliminação dos dejectos, a
melhoria da qualidade e quantidade alimentar, a
construção de habitações adequadas, o controlo das
noxas químicas e biológicas, a implementação da
vacinação, a incorporação de medidas de higiene
pessoal e colectiva, o desenvolvimento da
puericultura e vigilância gravídica e o estabelecimento
de medidas de organização laboral.

As medidas descritas, as quais se foram


desenvolvendo ao longo do tempo, permitiram, sem
sombra de dúvida, contribuir para que, no mundo

101
Salvador Massano Cardoso

ocidental, sejamos uma sociedade mais saudável e,


simultaneamente, sofredora face a novas/velhas
patologias.

Hoje, é visível um agravamento substancial de


determinadas patologias, as quais são interpretadas
de acordo com as agressões do mundo moderno.
Neste caso particular destacamos as alergias de todos
os tipos, quer cutâneas, quer respiratórias, quer
alimentares. O aumento que se tem observado,
nestes últimos anos, tem sido atribuído a uma maior
exposição a substâncias provenientes da actividade
humana. Será correcto atribuir o acréscimo
substancial, por exemplo, da asma às tais
substâncias? Podemos afirmar que talvez não seja
assim. O facto de vivermos num ambiente cada vez
mais "higienizado", sobretudo nos primeiros tempos
da existência, leva as crianças a não terem contacto
com determinados germens e sofrerem os respectivos
"ataques". Esta falta de agressão pode ser
responsável por uma maior fragilidade face aos
alergenos circulantes. É um paradoxo! O "excesso de
higiene" pode ser responsável, por acréscimo, pelo
agravamento de determinados tipos de patologia. A
tendência para "excessos" de cuidados higiénicos
pode provocar, curiosamente, desequilíbrios da

102
Notas de Saúde Pública e Ambiental

relação entre o homem e o meio ambiente,


transferindo a responsabilidade do aparecimento de
algumas afecções para certos tipos de agentes, os
quais, tendo o seu papel, talvez não sejam tão
culpados como se crê à primeira vista. O exemplo do
cancro do estômago que diminui à medida que as
condições alimentares e higiénicas melhoram
constitui, também, um bom exemplo. A associação
com o Helicobacter pylorii está bem definida,
sobretudo com alguns serótipos. Hoje, é possível, em
termos epidemiológicos, estudar a prevalência dos
mesmos nos quatro cantos do mundo. Também se
começa a verificar que a sua ausência pode trazer
benefícios em termos de agressividade gástrica, mas,
em contrapartida, pode ser fonte de partida para o
aumento da prevalência de uma forma mortal de
adenocarcinoma esofágico. De facto, a presença do
Helycobacter determina uma redução da acidez
gástrica, mas até um certo ponto. Na sua ausência, o
pH pode baixar muito mais e, consequentemente,
originar um factor de agressão para o esófago,
explicando, o incremento de uma das formas de
cancro. Este desequilíbrio ecológico, determinado por
muitos milhares de anos acaba por ter
consequências, positivas por um lado e negativas por
outro.

103
Salvador Massano Cardoso

Os constantes desequilíbrios provocados pelo homem


obrigam-no a procurar novas soluções e
compromissos, só que são, cada vez, mais instáveis,
já que põem em causa interesses adaptativos. As
doenças não podem deixar de serem consideradas
numa perspectiva evolucionista e ecológica. Tivemos
oportunidade, através, de alguns exemplos justificar
a análise das causas remotas das doenças face às
causas próximas, estas mais fáceis de estudar e de
quantificar. Muitas outras poderiam ter sido alvo,
desde a fibrose quística e a protecção contra a
Salmonella typhi e o vibrião colérico, à
hemocromatose e a protecção contra patogénios
intracelulares, à heterozigotia dos genes de
histocompatibilidade major e a atracção sexual,
passando pela clássica drepanocitose e malária, até
ao aparecimento da diabetes tipo 1 em consequência
da severa descida de temperatura verificada durante
no Younger Dryas há 14.000 a 11.400 anos atrás,
traduzindo um efeito de selecção ambiental
patogénica, equivalente à selecção epidémica
patogénica e ao papel da acne na selecção sexual
precoce. O desenvolvimento da medicina darwiniana
irá recondicionar muitas das políticas da saúde e
conferir novas interpretações capazes de contribuírem
para explicar fenómenos, muitas vezes erradamente

104
Notas de Saúde Pública e Ambiental

assumidos, contribuindo desta forma para uma maior


e efectiva prevenção e até tratamento. Quanto à
perspectiva ecológica importa considerar alguns
aspectos, magistralmente retratados na obra de Jared
Diamond. No seu livro, “Guns, Germs and Steel”,
descreve no primeiro capítulo a razão de ser da sua
obra. Fala de Yali, um habitante da Nova Guiné que
um dia lhe pôs uma questão tão importante e tão
pertinente como a seguinte: “Porque é que vocês,
brancos, desenvolveram tanto cargo (equivalente
para designar tecnologias) e trouxeram-no para a
Nova Guiné, enquanto nós, pretos, temos tão pouco
cargo?” A palavra cargo utilizava-se para tudo o que
era inovação e inexistente na Nova Guiné, quando, há
200 anos, chegaram os primeiros brancos com os
seus utensílios, rodas, chapéus, remédios, roupas,
etc., os quais foram instantaneamente reconhecidos
pelos autóctones. Daqui o título do primeiro capítulo.
Diamond descreve que após a última glaciação, há
cerca de 13.000 anos, todos os povos do planeta
encontravam-se em pé de igualdade em termos de
desenvolvimento. Eram caçadores-colectores. Mas,
em 1500 d.C., os povos encontravam-se em fases
muito distintas. Na Europa, a situação era totalmente
diferente de outros povos que acabavam de entrar na
idade do Bronze, enquanto outros permaneciam na

105
Salvador Massano Cardoso

idade da Pedra. O que motivou a disparidade que


originou a conquista e a colonização pela civilização
ocidental? Foram diferentes taxas de
desenvolvimento em diferentes comunidade. Se um
viajante extraterrestre tivesse chegado a este planeta
há 50.000 anos, nunca teria previsto que a Europa
seria um dia a vencedora, até porque não tinha sido
ainda povoada. Provavelmente apontaria para a
África ou Austrália, já que a primeira foi o berço da
humanidade e a ilha-continente albergava humanos
anatómica e comportamentalmente modernos, além
de indícios de dispositivos de transporte aquáticos. A
Euro-Ásia, com a sua morfologia e biodiversidade,
tornou-se palco de interacção entre as comunidades,
permitindo que a taxa de invenção fosse mais veloz e
a taxa de perdas culturais mais lenta face às outras
áreas em que a interacção entre as populações eram
mais fracas, fruto das condições geográficas e do
número de indivíduos. Rapidamente, a produção
alimentar e as reservas subsequentes obrigaram ao
desenvolvimento da escrita e ao nascimento de
sistemas políticos centralizados, assim como o
desenvolvimento metalúrgico. A partir daqui é
compreensível explicar tudo aquilo que nos rodeia. O
Ocidente “vencedor”, à custa das armas, do aço e da
ajuda dos microrganismos, definiu as regras e os

106
Notas de Saúde Pública e Ambiental

códigos, cujos efeitos não serão os mais benéficos


para a própria espécie e o planeta. O autor equaciona
o que teria acontecido se fossem os ameríndios ou os
africanos a imporem as suas regras, invadindo a
Europa. As estratégias desenvolveram-se à custa de
vários fenómenos. A interacção social, aliada ao
aproveitamento das condições ecológicas criaram o
caldo para o progresso que acabou por ser imposto a
tudo e a todos. O crescimento e o desenvolvimento é
feito de uma forma intensa e perigosa. O acaso
também teve a sua quota parte neste capítulo e a
necessidade de adaptação cultural às novas
realidades criadas pelo homem tornou-se vital à sua
sobrevivência como espécie.

As novas/velhas doenças surgem assim de um


confronto entre os eternos caçadores-colectores e um
ambiente em constante evolução, mais fragilizado,
mais agressivo, mais competitivo e estranhamente
incapaz de impor as leis da evolução à espécie que
viu nascer. A “recusa” em se submeter às regras da
evolução levam-no, inclusive, quem sabe um dia, a
impor mudanças na sua própria espécie recriando-se
continuamente, originado novas espécies…

107
Salvador Massano Cardoso

108
Notas de Saúde Pública e Ambiental

ALIMENTAÇÃO, AMBIENTE E EVOLUÇÃO

O homem tal como qualquer outra espécie sofreu


influências ambientais que moldaram a sua fisionomia
e fisiologia. Fruto de um acaso e de uma necessidade,
apresenta-se a nível planetário como rei e senhor.
Tudo é analisado e discutido numa base
antropomórfica que nem sempre é sinónimo de
equilíbrio e de respeito pela natureza. Pelo contrário,
frequentemente, causa distúrbios e atentados,
contribuindo para um crescente e preocupante
desequilíbrio à escala planetária, comprometendo o
futuro de muitas espécies e a sua naturalmente.

A grande revolução humana iniciou-se após a última


glaciação ocorrida há cerca de 13.000 anos. Na altura
todos os núcleos humanos encontravam-se no
mesmo estadio e tinham comportamentos idênticos.
Alimentavam-se de uma forma idêntica (caçadores –
colectores), aproveitando o que tinham à mão. Não
havia superioridade civilizacional. O meio ambiente
condicionava o modo e o estilo de vida, com aspectos
evidentes para a alimentação. De facto, a
alimentação constituiu, a par das condições
ambientais, um dos factores mais importantes em

109
Salvador Massano Cardoso

termos de evolução humana. Os nossos antecessores


evoluíram de acordo com as disponibilidades
alimentares. No caldo africano, as condições do meio
ambiente foram propícias à sua evolução. Os
alimentos que disponham eram variados,
contribuindo com os seus princípios imediatos para
uma alimentação variada e curiosamente rica e
equilibrada. Para justificar esta afirmação, não
podemos deixar de relembrar que a selecção natural
privilegiou os mais aptos e seleccionou os genes mais
adequados para uma vivência equilibrada com o meio
ambiente. A pressão selectiva foi enorme, originando
o aparecimento de genes económicos. Ou seja, a
diversidade humana funda-se num genótipo
económico. E compreende-se a razão. Face às
dificuldades ambientais e às pressões selectivas
torna-se imperioso que os recursos existentes sejam
aproveitados ao máximo. De outro modo, o sucesso
de uma espécie, seja a humana ou outra qualquer,
estará votada ao fracasso. Assim se explica que a
principal característica humana se baseie na
capacidade de viver na pobreza e na carência.

O homem é um ser preparado para viver não na


abundância, mas sim na penúria. Este conceito é
muito importante e vital para compreendermos a

110
Notas de Saúde Pública e Ambiental

evolução e o comportamento do homem no tocante


ao binómio saúde - doença.

A esperança de vida dos nossos antepassados era


manifestamente inferior à dos nossos dias devido às
condições de higiene, estilos de vida e à interacção
com o submundo microscópico.

A alimentação paleolítica era adequada e respeitadora


de uma fisiologia própria. Tal conceito é hoje
abordado e considerado como positivo a tal ponto que
há defensores de tal prática. De facto, o tipo de
alimentação dita paleolítica era muito mais
diversificada e os nutrientes ocorriam numa
proporção adequada às necessidades do perfil
humano. A paleonutrição aponta para uma ausência
de doenças nutricionais. A descoberta da agricultura
que ocorreu pouco tempo após a última glaciação
originou uma revolução social, política, demográfica e
sanitária sem precedentes. A globalização pré-
civilizacional era uma realidade. Os mesmos
comportamentos, as mesmas necessidades e
idênticas soluções. No final do século XV e princípio
do século XVI, o desequilíbrio social, militar e
civilizacional era uma outra realidade.

O que é que determinou este desfasamento entre os

111
Salvador Massano Cardoso

povos do planeta Terra, originando potências e


civilizações avançadas e povos que “teimavam” viver
nas mesmas condições do período pós glaciar? Como
é possível em pouco mais de 10.000 anos a
humanidade apresentar-se em fases tão distintas? A
alimentação foi o primum movens para este
fenómeno. A domesticação das espécies vegetais e
animais levou a uma produção alimentar com
excedentes. Alguns povos, em certas regiões do
globo, confrontaram-se pela primeira vez com a
necessidade de gerir os seus excedentes alimentares
deixando de ter a necessidade de continuarem a
senda de caçadores - colectores. Havia necessidade
de gerir bens tão preciosos como os alimentares,
mão-de-obra para a produção alimentar, mais
gestores dos bens e seus distribuidores, necessidade
de organização burocrática, hierarquias sociais,
libertação de muitos braços para fins de protecção e
de conquista de novos espaços. Em suma, começou a
complexidade da sociedade, com o nascimento de
sociedades hierarquizadas, em que cada um ocupava
o seu espaço. Os povos que habitavam certas partes
do globo e que não disponham das mesmas
facilidades, riquezas agrárias e outros recursos
naturais continuaram na senda primitiva. Não é por
acaso que, nalgumas partes do planeta, o

112
Notas de Saúde Pública e Ambiental

desenvolvimento se tenha feito de uma forma mais


acelerada do que noutras ou, então, não houve
nenhum como ainda se pode verificar nos nossos
dias. Claro que a par da evolução da alimentação
surgiu a cultura do ferro e a supremacia do mais forte
legitimada através da conquista, da morte e da
escravidão. Aqui os microrganismos tiveram a sua
quota e acção.

A civilização nasceu fruto de um controlo da produção


alimentar. O nascimento da agricultura constituiu o
primeiro choque em termos de saúde. Por um lado
aumentou a disponibilidade alimentar favorecendo a
explosão demográfica mas também o aparecimento
de doenças. Até aqui, a diversidade alimentar era
uma característica. Passou-se em seguida a consumir
mais alimentos, mas a diversidade diminuiu, com a
subsequente deficiência de ingestão de alguns
nutrientes susceptíveis de provocarem doenças.
Paradoxo: mais alimentos, mais gente, mais doenças.
Aliás, na história da alimentação é uma constante
este fenómeno de mais doença sempre que surge
uma revolução alimentar. E, ultimamente, as
revoluções alimentares são cada vez mais frequentes
originando o aparecimento de novos problemas. Uma
fatalidade a que não podemos escapar, que acabamos

113
Salvador Massano Cardoso

por compreender e modificar mas só ao fim de muitas


e muitas gerações.

A fome é um dos principais arquétipos e motores da


sobrevivência dos seres vivos. O que não fazem os
animais e os humanos quando tem fome e, no nosso
caso, mesmo não a tendo! A história da humanidade
está repleta de comportamentos verdadeiramente
horrorosos e indignos que, no fundo, traduzem um
imperativo de sobrevivência a todo o custo. A fome é
má conselheira, e os comportamentos dos humanos,
neste caso concreto, dispensam quaisquer
comentários, pois põem a descoberto o que é mais
primitivo e mais baixo.

A fome e a sexualidade são os dois pilares da


sobrevivência das espécies. Estão tão ligadas na sua
finalidade, que não é difícil encontrar semelhanças e
traços comuns nestas duas áreas tão interessantes. A
este propósito não posso deixar de expressar o
pensamento de um célebre escritor francês ao afirmar
que “o homem é o único animal que come sem ter
fome, bebe sem ter sede e faz amor em todas as
estações”!

O homem está preparado para viver na penúria e não


na riqueza e na abundância. Por esta razão tem de

114
Notas de Saúde Pública e Ambiental

sofrer as consequências da violação deste princípio


através de inúmeras doenças.

Ao longo dos últimos milénios as doenças tem-se


abatido sobre a nossa espécie de formas diversas
consoante a época e o grau de desenvolvimento. De
qualquer modo, a alimentação é a principal causa,
quer de uma forma directa, quer favorecendo o
aparecimento de outras relacionadas com os
microrganismos.

As técnicas de conservação de alimentos têm sofrido


uma grande evolução. Uma das mais primitivas tem a
ver com a utilização do sal. Logo após a descoberta
da agricultura, o homem começou a utilizar o sal
como forma de conservar os alimentos evitando que
se tornem perecíveis, sobretudo os ricos em
proteínas. O consumo excessivo deste nutriente
tornou-se uma constante e deu origem ao
aparecimento de novas afecções que ainda hoje
perduram na nossa sociedade. Não é por acaso que o
livro mais antigo que se conhece seja um livro de
medicina, já que a preocupação com a saúde e com a
doença sempre perseguiu o homem. Não bastou
conhecer como fugir à fome, pois a fuga a este
flagelo foi acompanhada de novas e preocupantes
doenças. O livro do Imperador Amarelo relata que as

115
Salvador Massano Cardoso

pessoas que tinham um pulso duro morriam mais


cedo do que os outros. Este livro escrito poucos
milénios depois da introdução do sal na alimentação é
paradigmático da não adaptação a uma nova forma
de alimentação. Tanto mais que o homem nasceu e
evoluiu em ambientes muito pobres em sal, o que
originou a selecção de genes “poupadores” do
mesmo. Face à abundância, as conclusões são de
esperar: mais doenças.

A filosofia aplicada ao fenómeno sal - doença, coloca-


se relativamente a muitas outras doenças
metabólicas que afligem a humanidade dos nossos
dias. A hipercolesterolemia, a diabetes, a obesidade
são algumas anomalias que ilustram bem a complexa
e difícil interacção do homem com o novo meio
ambiente em que estamos inseridos. Comportamo-
nos diariamente de uma forma primitiva face à
alimentação. Ou seja, apresentamos comportamentos
estereotipados que nos levam a ter com os alimentos
uma relação difícil de compreender. De um modo
geral alimentamo-nos como se não soubéssemos
quando vai ser a refeição seguinte! Convêm avisar
que daqui a seis a oito horas vamos comer
novamente! A análise do comportamento das pessoas
face aos alimentos é ilustrativa da influência dos

116
Notas de Saúde Pública e Ambiental

nossos arquétipos. Basta ver o comportamento em


reuniões festivas, ou não festivas... Não é nosso
objectivo fazer uma análise sociológica do fenómeno
alimentação. De qualquer modo também contribui
para o aparecimento e explicação de muitas doenças.
O ritual cronológico de praticarmos a alimentação
também não respeita as nossas verdadeiras
necessidades fisiológicas. O francesismo de
dividirmos as refeições ao longo do dia é mais uma
conveniência social, fruto de uma forma de estar de
algumas elites que se entretinham superiormente a
gozarem os seus dias do que um imperativo
nutricional devidamente fundamentado. Tudo está
construído de forma a dar a impressão que pequeno-
almoço, almoço, lanche, jantar é uma coisa tão
normal que eventualmente já era praticado no
período paleolítico! Coitados dos nossos avós!
Comiam quando podiam. E quando podiam deviam
comer até mais não, pois não sabiam a que horas era
servido o próximo jantar, se não fosse o caso de
serem eles próprios o jantar de outros com o mesmo
pensamento.

As variações fisiológicas do peso, aumentar quando


há abundância e diminuir quando há carência, deverá
ser mais fisiológico e natural do que esta tendência

117
Salvador Massano Cardoso

moderna para manter o peso constante a níveis


considerados “normais”, quando não se mantêm a
níveis exageradamente elevados.

Apesar de toda a evolução verificada na área da


alimentação, mesmo assim podemos afirmar que, no
mundo ocidental, pertencemos à primeira ou segunda
geração de indivíduos que não passam realmente
fome. As consequências traduzem-se pelo
aparecimento de inúmeras afecções. As doenças
cardiovasculares, o cancro, a diabetes e a obesidade
são por si perfeitamente conhecidas como reflexo de
vários factores entre os quais se destaca pelo papel
primordial a alimentação. No caso da diabetes,
epidemia mundial cuja tendência para se agravar nos
próximos anos é uma realidade, impondo um
conjunto de medidas à escala global de forma a
diminuir o impacto social e económico, é uma
consequência da inadaptação entre aquilo que nós
somos sob o ponto de vista genético e o mundo
criado por nós.

Os portadores dos genes “diabéticos” são os mais


adaptados para sobreviverem em condições
alimentares as mais desfavorecidas.

E os obesos? Cada vez há mais obesos. A situação

118
Notas de Saúde Pública e Ambiental

neste momento, nos povos ocidentais é muito e


muito preocupante. Como interpretar esta nova forma
de epidemia? De uma forma idêntica à apresentada
para os diabéticos. Se as condições ambientais forem
desfavoráveis, os mais propensos a sobreviverem são
precisamente os obesos, logo devemos encarar este
importante grupo da população como um garante da
sobrevivência da espécie humana em caso de
catástrofe alimentar. Afinal, fazem parte da
diversidade humana, só que vivem em épocas
diferentes daquelas em que são considerados como
os mais aptos a sobreviverem. No paleolítico não
havia restaurantes, grandes superfícies comerciais,
cafés, pastelarias, lojas de conveniência ou
mercearias de esquina. Logo, não havia obesos...
Sabemos que constituem um problema de saúde
pública, mas não devem ser considerados como
sinónimo de fealdade ou relegados para um plano
secundário na escala moderna de valores estéticos. A
mim não me repugna absolutamente nada a criação
de uma associação de protecção e defesa dos gordos,
pois, sem eles a humanidade pode, em qualquer
momento, ficar em causa, já que os obesos ou,
melhor, os portadores de genes propensos à
obesidade são um garante da perpetuação da
sobrevivência da espécie humana...

119
Salvador Massano Cardoso

Nos dias actuais o mundo apresenta uma enorme


variabilidade no tocante à alimentação: abundância
nalguns pontos e carência obscena noutros. Nunca
em toda a história da humanidade se alargou o fosso
entre os superalimentados e os desesperados
famintos. A amplitude da desigualdade faz-se sentir
de uma forma crescente, a tal ponto que a
preocupação número um situa-se nos
comportamentos alimentares excessivos com todas
as suas complicações a nível metabólico, cancerígeno
e cardiovascular. É certo que nos devemos preocupar
com estes aspectos. Importa naturalmente conhecer
como modificar e instituir medidas de forma a
minimizar os prejuízos em termos de saúde. Através
de uma educação dirigida, da aplicação correcta de
técnicas ligadas à produção, conservação,
distribuição, confecção e por fim ingestão. Não é fácil
instituir e divulgar certas normas e conceitos, porque
esbarram com muitos valores pessoais e culturais,
com interesses económicos, com pressões sociais
diversas, em suma, vai ser preciso muito e muito
tempo antes de conseguirmos transmitir e aplicar na
prática os muitos conhecimentos já produzidos.

Aparentemente, é frustrante este desajustamento


entre o que sabemos e a inexistência de medidas

120
Notas de Saúde Pública e Ambiental

práticas. São fenómenos de transição que fatalmente


todos os povos e culturas terão de calcorrear. Os
cientistas deverão ter consciência destes factos e
deverão começar a planear as adequadas estratégias
para um futuro um pouco mais distante.

A produção alimentar tem como objectivo facilitar a


aquisição de alimentos para todos em qualidade e em
quantidade e que sejam, igualmente,
economicamente acessíveis.

Os interesses económicos subjacentes condicionam


estratégias e a utilização de substâncias e técnicas
que comportam riscos. Resta saber se, se justifica
muitos desses riscos. Provavelmente não. Se
analisássemos profundamente este capítulo
verificaríamos que estamos rodeados de muitos
exemplos negativos. A necessidade de aumentar a
produção alimentar de proteínas animais levou a
exageros como a “carnivorização” indirecta de
herbívoros e a explosão de uma epidemia grave com
implicações na saúde humana ainda difícil de
quantificar, como é o caso da BSE e da sua variante
humana. Uma análise detalhada permite-nos verificar
que o interesse economicista é o principal
determinante de toda esta questão. Do mesmo modo,
a tendência universal de uniformização alimentar

121
Salvador Massano Cardoso

constitui um perigo para a saúde das populações já


que cada povo deveria alimentar-se de acordo com as
condições geográficas e climáticas do local onde
vivem. Se em termos genéricos os nossos organismos
necessitam dos mesmos nutrientes, a sua ingestão e
relacionamento implicam o respeito por regras
ambientais perfeitamente elaboradas numa base de
um adequado equilíbrio entre o homem e o meio
ambiente. A democratização e a globalização
alimentar, comendo os mesmos alimentos em
qualquer parte do mundo, além de constituir uma
eventual violação dessas regras, ainda têm o condão
de quebrar ou fazer desaparecer regras e
comportamentos sociais importantes nos equilíbrios
instáveis de muitas culturas. Não podemos esquecer
o importante factor cultural e sociológico inerente às
práticas alimentares. A este propósito, não queria
deixar de fazer uma incursão numa área que mexe
connosco, ou seja a tão propagada dieta
mediterrânica, que alguns especialistas querem impor
ao restante mundo com o objectivo de reduzir a
mortalidade cardiovascular.

Os “inventores” da dieta mediterrânica tornaram-se


nos povos mais obesos da Europa! De acordo com
vários trabalhos científicos os povos mediterrânicos

122
Notas de Saúde Pública e Ambiental

gozavam de melhor saúde e uma maior longevidade,


em virtude dos seus hábitos alimentares, definidos
como “dieta mediterrânica”. Estes aspectos eram
mais proeminentes no caso das doenças isquémicas
do coração e das neoplasias. Os hábitos ditos
mediterrânicos têm a ver com a pobreza típica do Sul,
levando as pessoas a consumirem alimentos próprios
da região e em quantidades próprias de acordo com o
poder de compra. O consumo de azeite, vegetais,
frutas, leguminosas, peixe e a ingestão de pequenas
quantidades de carne foram determinantes para um
determinado aspecto da saúde dessas populações. A
dieta mediterrânica tornou-se paradigma de uma
alimentação protectora em termos, sobretudo,
cardiovasculares e disseminou-se pelos quatro
campos do mundo dito “civilizado”. Paradoxalmente,
os povos que caracterizaram este tipo de alimentação
passaram a alimentar-se de modo diferente, copiando
hábitos e atitudes de países, onde a prática de má
alimentação por excesso se tornou clássica.

O aumento do poder de compra verificado nesses


países originou um aumento do consumo de
alimentos tipo fast food, ricos em gorduras e em
carne. A situação é de tal modo grave e caótica que
originou uma explosão de obesos nos países do Sul.

123
Salvador Massano Cardoso

Portugal, Grécia, Espanha vêem os seus habitantes a


tornarem-se cada vez mais gordos. A tal ponto que a
situação já teve “honras” de publicação na Times. O
articulista fazia referência aos dados da Eurostat.
“Um homem em quatro e uma mulher em cinco são
obesos na Europa”. É de realçar o aspecto menos
positivo dos portugueses, já que as portuguesas são
as mulheres mais obesas da Europa e os homens, a
continuarem por este caminho, não estarão muito
longe delas. Afinal, a dieta mediterrânica é
consequência da fome e da “pobreza mediterrânica”.
Diminuindo a pobreza, perde-se concomitantemente
a dieta típica e passa-se para uma dieta
ocidentalizada mais consentânea com a dos povos
mais ricos. Agora, voltar para trás não é fácil e
somente através de um processo educacional
complexo é que poderá haver benefícios. Vai levar
muito tempo a convencer os povos do Sul a
adoptarem o tipo de dieta que criaram ao longo os
séculos, fruto das condições geo-climáticas e
económicas.

Este pequeno exemplo ilustra muito bem a fragilidade


e a facilidade de um povo em assimilar novos
estereótipos, como é o caso dos portugueses que, à
sua alimentação tradicional, enxerta,

124
Notas de Saúde Pública e Ambiental

patologicamente, novos hábitos, decorrendo,


consequentemente, um agravamento das suas
patologias.

Se analisarmos o fenómeno alimentar verificamos que


é alvo preferencial de uma publicidade altamente
agressiva, continuada e até desajustada, contribuindo
para excessos perigosos. Basta olhar para a televisão,
jornais, revistas e propaganda diversa para termos a
noção do impacto desta actividade. É de tal forma
importante que, por sua vez, deu origem a uma
proliferação de indústrias paralelas com o objectivo
de combater as consequências, nomeadamente
clínicas de tratamento de obesidade ou reparadoras
plásticas de corpos violentados por anos a fio de
agressões e excessos, fármacos poderosos, mezinhas
milagreiras e sei lá o que mais. No fundo,
movimentam muitos milhares de profissionais,
constituindo um poderoso e muito “saudável” sector
económico que, por sua vez, será inevitavelmente
fonte de novos problemas, já que, decerto, irá criar
no futuro o aparecimento de novas indústrias e novos
interesses...

A conquista do bem-estar da humanidade fez-se, e


continua a fazer-se, à custa de violências e violações
ambientais.

125
Salvador Massano Cardoso

A poluição ambiental reveste-se sob muitas formas;


algumas demasiado visíveis, outras mais incipientes e
ocultas. Os chamados sistemas suportes de vida são
alvo de atenções particulares, porque são facilmente
reconhecíveis e motivo de preocupação imediata.
Hoje, o mundo é classificado com base no
desenvolvimento socioeconómico e muitos países do
primeiro mundo são alvo de inveja e de admiração
pelos restantes. Além disso, tornaram-se símbolos de
democracia, de mais cultura e são vistos como mais
civilizados, “verdadeiros” guardiães dos princípios e
valores morais, não desdenhando um crescente
chauvinismo, a meu ver, patético. O seu
desenvolvimento cifrou-se em valores diferentes
daqueles que hoje defendem, e alcançaram o seu
status à custa de catástrofes ambientais e
verdadeiros genocídios laborais. Sinal de hipocrisia
civilizacional.

As grandes catástrofes ambientais são divulgadas e


têm um impacto muito grande. No entanto, são
meros flashes de um filme mais dramático em que os
protagonistas acabam por sofrer e mesmo morrer.
Nos últimos tempos, acontecimentos como a doença
de Minamata, o síndroma de Love Canal, os acidentes
nucleares de Three Mile Island e de Chernobyll, o

126
Notas de Saúde Pública e Ambiental

obsceno acidente de Bhopal na Índia, Seveso,


Monsanto, são sinais evidentes do não respeito pelo
equilíbrio do planeta, traduzindo em muitos casos
falta de organização, desrespeito pelas normas de
segurança e por vezes inconfessáveis intenções,
mesmo criminosas, ao colocarem deliberadamente
em perigo a vida e a saúde de muitos seres humanos.

A par destas situações, não podem deixar de ser


focadas inúmeras outras que, não sendo tão
mediatas, acabam por ser mais perigosas devido ao
desconhecimento e ao volume de pessoas expostas.

Todos os anos surgem novas moléculas, as quais são


impossíveis de serem estudadas de forma adequada
quanto ao seu impacto ambiental e consequências
para a saúde dos seres vivos. São necessários anos e
anos de exposição para sabermos os seus reais
efeitos. Infelizmente, muitas vezes é tarde de mais
para minimizar os efeitos. Esta forma de poluição
«secreta» é um perigo muito grave pelos efeitos a
longo prazo. É certo que não queremos deixar de
desfrutar do bem-estar, mas é perfeitamente racional
que o mesmo pode ser obtido não de uma forma tão
rápida, traduzindo atitudes hedonísticas e egoístas e
interesses económicos que podem proporcionar
riqueza imediata, mas não garantem a riqueza de um

127
Salvador Massano Cardoso

futuro cada vez mais comprometido.

A poluição ambiental já foi incorporada como uma


importante prioridade, tornando-se preocupação de
todos (sobretudo dos habitantes do primeiro mundo).
Mas, curiosamente, não basta a percepção ou o
conhecimento dos fenómenos para os mesmos serem
combatidos ou eliminados. Tal como acontece com
certos estilos e comportamentos, os quais são
considerados perigosos para a saúde, mesmo assim,
não se conseguem eliminar ou reduzir de imediato.
Estamos perante fenómenos complexos capazes de
explicarem este paradoxo. Há uma décalage entre a
assimilação e incorporação dos conhecimentos e uma
prática positiva. Sempre foi assim e pelos vistos
continuará! Sabemos diagnosticar os problemas,
propor soluções, mas a sua concretização depende de
inúmeros factores difíceis de controlar e até em os
conhecer. Quais os problemas com que o mundo se
depara nos dias actuais? Basta estar atento à
comunicação social, para nos apercebermos que o
ambiente e a saúde constituem as duas principais
preocupações dos homens. E compreende-se porquê!
As alterações climáticas são um facto visível e muito
preocupante, porque se trata de uma força com
efeitos devastadores e humanamente incontrolável.

128
Notas de Saúde Pública e Ambiental

As discussões feitas ao redor deste tema têm sido


múltiplas, mas pelos vistos sem sucesso devido a
interesses económicos e estratégicos. Aqui também o
presidente da mais poderosa nação se escuda atrás
dos cientistas...

Afinal, o escudo da ciência serve para os interesses


políticos e económicos, quando devia estar ao serviço
dos interesses dos povos. Pensava que era uma
invenção nacional, mas pelos vistos não!

A poluição atmosférica ligada à indústria e circulação


automóvel começa a ser dramática com situações
algo caricatas. Pode poluir-se num lado e sofrer as
consequências noutros mesmo que sejam
aparentemente conotados como locais ecológicos e
saudáveis. A poluição deixou de respeitar fronteiras
ou regiões. A contaminação hídrica é um facto,
ultrapassando as capacidades regeneradoras, até
porque alguns dos poluentes não são
verdadeiramente biodegradáveis. A contaminação dos
terrenos, dos alimentos de origem hídrica e não
hídrica propicia a ingestão de produtos com
consequências imprevisíveis ou talvez não para os
seres humanos. Se fosse possível analisar os corpos
actuais com os de há cinquenta anos, verificaríamos
que transportamos actualmente 100 a 150 compostos

129
Salvador Massano Cardoso

com utilidade desconhecida mas com prováveis


efeitos nefastos para a nossa saúde. E o pior são as
crianças, por razões óbvias relacionadas com as suas
necessidades e forma de crescer, as quais irão,
quando adultos, sofrer consequências graves. Muitas
das substâncias perigosas para a saúde são
precisamente os xenobióticos, muitos deles dotados
de actividade hormonal e desreguladores fisiológicos
que, embora em doses muito baixas, acabarão por
originar o aparecimento de vários tipos de doenças.

Tal como já afirmei, este aparente «fenómeno


benigno» é, silenciosamente, criminoso e mais
criminosos são aqueles que, ao conhecerem os seus
efeitos, teimam em não colaborar na sua erradicação
ou substituição por outros, menos agressivos.

O ambiente não se cinge só aos sistemas de suporte


de vida. Há outros ambientes: os sociais, os laborais,
os políticos e muitos mais que também tem os seus
focos de poluição e são tão “mortíferos” como os
convencionais. As formas de trabalho, as relações
sociais, as novas formas de domínio e de escravidão
são evidentes e muito preocupantes. Não dispomos
de espaço para fazer investidas nestas áreas, mas é
bom que nos preocupemos com elas, porque, muito
brevemente, irão ser fonte de discórdia e de

130
Notas de Saúde Pública e Ambiental

discussão com o mesmo entusiasmo e calor que tem


presidido ao aparecimento dos grupos de
ambientalistas.

Mas será que o futuro é tão negro? É muito difícil


responder a esta questão. A Terra tem os seus
mecanismos de defesa. Ao longo da sua história já
deu provas do que era capaz. Sacrifícios de muitas
espécies e surgimento de novas. A capacidade de
auto regeneração é evidente, resta saber quem é que
irá ser sacrificado desta vez, se o homem ou o
próprio planeta. Os sinais de rejeição tal como os
anticorpos face a certos agressores têm surgido nos
últimos tempos. É bom estarmos atentos a todos os
fenómenos pois são sinais de que algo vai mal e,
como tal, impõe-se a tomada de medidas correctoras
e preventivas, até, porque tudo evidencia que apenas
somos tolerados e não desejados. Pode ser que tudo
se resolva, desde que o queiramos.

131
Salvador Massano Cardoso

132
Notas de Saúde Pública e Ambiental

”A PERGUNTA DE YALI”…

Jared Diamond, no seu livro “Guns, Germs and


Steel”, descreve no primeiro capítulo a razão de ser
da sua obra. Fala de Yali, um habitante da Nova
Guiné que um dia lhe pôs uma questão tão
importante e tão pertinente como a seguinte: “Porque
é que vocês, brancos, desenvolveram tanto cargo e
trouxeram-no para a Nova Guiné, enquanto nós,
pretos, temos tão pouco cargo?” A palavra cargo
(equivalente para designar tecnologias) utilizava-se
para tudo o que era inovação e inexistente na Nova
Guiné, quando há 200 anos chegaram os primeiros
brancos com os seus utensílios, rodas, chapéus,
remédios, roupas, etc., os quais foram
instantaneamente reconhecidos pelos autóctones.
Daqui o título do primeiro capítulo.

Após a última glaciação, todos os povos do planeta


encontravam-se em pé de igualdade em termos de
desenvolvimento. Eram caçadores-colectores. Mas,
1500 anos d.C., os povos encontravam-se em fases
muito distintas. Na Europa, a situação era totalmente
diferente de outros povos que acabavam de entrar na
idade do Bronze, enquanto outros permaneciam na

133
Salvador Massano Cardoso

idade da Pedra.

O que motivou a disparidade que originou a conquista


e a colonização pela civilização ocidental? A produção
alimentar e as reservas subsequentes obrigaram ao
desenvolvimento da escrita e ao nascimento de
sistemas políticos centralizados. A partir daqui é
compreensível explicar tudo aquilo que nos rodeia. O
Ocidente “vencedor” definiu as regras e os códigos,
cujos efeitos não serão os mais benéficos para a
própria espécie e o planeta. O crescimento e o
desenvolvimento são feitos de uma forma intensa e
perigosa. O ambiente é o caldo e a fonte de riquezas.
Mas as fontes não são inesgotáveis e, apesar da
elevada capacidade de auto-regeneração do planeta,
as cicatrizes começaram a tornar-se visíveis e
frequentes. Para obstar a estes inconvenientes o
Homem elaborou e continua a elaborar códigos de
conduta.

Na obra hipocrática estão referenciados normas e


códigos. Apesar de tudo, a história da humanidade
ilustra fenómenos e situações de acções nefastas
sobre os seres humanos, traduzidos em genocídios,
no papel negativo de profissionais que deveriam
salvaguardar a saúde, caso dos médicos nazis e que
originou o primeiro código de ética moderna,

134
Notas de Saúde Pública e Ambiental

relativamente à investigação médica, através do


famoso código de Nuremberga.

Para ilustrar o papel da violação do ambiente e as


suas repercussões na saúde humana e nos
ecossistemas, podemos citar o papel da economia e
seus interesses e da política. Em 1973, a crise
petrolífera foi o detonador desta situação. O Mundo
Ocidental tornou-se dependente dos fornecimentos do
petróleo dos países árabes. A OPEP decidiu atingir o
Mundo Ocidental culpabilizado do apoio político a
Israel. O preço quadruplicou! Em poucos anos os
países produtores de petróleo enriqueceram de forma
escandalosa. A maioria dessas dezenas de milhar de
milhões de dólares foi depositada nos principais
bancos europeus. A Europa vivia um período crítico
em termos económicos: a paragem do
desenvolvimento e a inflação. Os bancos europeus e
americanos não sabiam o que fazer com os elevados
depósitos dos produtores de petróleo. Deste modo,
optaram por conceder empréstimos aos países do
terceiro mundo. Empréstimos de elevado risco,
porque havia poucas garantias de reembolso e
pagamento dos juros. O dinheiro foi emprestado aos
governos e empresas públicas. Ao fim de alguns
anos, a dívida acumulada tornou-se monstruosa e

135
Salvador Massano Cardoso

começaram a surgir dúvidas a propósito dos


pagamentos. Apesar de grande parte destes
empréstimos nunca terem sido pagos (e em muitos
casos até foram perdoados), o que importa referir é
que os países devedores tiveram de pagar os juros
em bens. Uma parte desses bens traduziu-se numa
forte e tremenda desflorestação com as inevitáveis
consequências ambientais, nomeadamente a
emergência de doenças infecciosas, pretensamente
acantonadas, e que acabaram por ter repercussões
na saúde de muitas comunidades, no ambiente em
geral, além de modificações das culturas tradicionais
e importação de indústrias poluentes, susceptíveis de
provocarem desequilíbrios ecológicos muito graves à
escala mundial. Afinal, estamos a analisar um
problema de saúde pública, focando a atenção nos
factores a montante que são de natureza política e
económica. Há em todo este processo uma cadeia de
acontecimentos com vários participantes em que o
objectivo final é sempre o mesmo: o Homem.

A intervenção em termos de Saúde Pública pode e


deve fazer-se a todos os níveis sem excepção. Mas
não é fácil, porque mesmo que se identifique a
situação e sejamos capazes de intervir, aquilo que se
pode fazer é minimizar ou estabilizar o fenómeno em

136
Notas de Saúde Pública e Ambiental

níveis considerados críticos o que exige uma entropia


negativa nada fácil de atingir. Tudo, porque as
verdadeiras causas escapam ao controlo dos
profissionais da saúde, e até aos próprios políticos. A
Saúde Pública tem que ser analisada em várias
escalas. A primeira é sobretudo a nível global
(planetário), a segunda a nível loco-regional, a
terceira em comunidades devidamente delimitadas e
a quarta a nível individual. A tudo isto acresce a
necessidade de um ou vários sistemas organizativos
complexos. No fundo, os problemas de Saúde Pública
centram-se nos indivíduos (sua biologia e
comportamento), no ambiente e na organização dos
cuidados de saúde.

Os abusos de que tem sido vítima o nosso planeta


começa a preocupar-nos. Outro exemplo bem
conhecido e mais recente tem a ver com a BSE. A
crise das vacas loucas e o uso indevido de rações por
motivos económicos; alimentos contaminados por
dioxinas e outras substâncias cancerígenas; o uso
crescente do álcool, a não redução do consumo do
tabaco; as dúvidas sobre o perigo dos alimentos
transgénicos; a contaminação radioactiva ambiental;
os genocídios políticos; a explosão da mão de obra
infantil; o uso de materiais impróprios para a

137
Salvador Massano Cardoso

construção; o trabalho esforçado dos emigrantes, etc.

No fundo, o verdadeiro problema é de natureza


económica, com reflexos no ambiente, na saúde
animal e na saúde humana. A associação entre
economia, ambiente, patologia humana e ética está
bem patenteada nas diferentes formas de poluição,
indústria de resíduos perigosos e efeito estufa.

Todos já ouviram falar sobre a conferência de Rio de


Janeiro, o protocolo de Quioto ou, mais
recentemente, a conferência de Haia. As
recomendações são interessantes. No entanto, a
aplicação prática não é tão eficiente. Neste caso,
importa, em termos de ética ambiental, saber se
todas as recomendações, conferências e protocolos
estão de acordo com aquilo que se entende por ética
ambiental. Nesta última situação, estamos virados
mais para uma ética antropocêntrica. Gostaria de
saber quem é que legitimou desenvolver a ética neste
sentido. Ou será que a teremos de a redimensionar
em termos de uma ética mais ampla, mais global em
que o homem não está acima de nada, nem de
ninguém, mas em pé de igualdade?

Richard Routley, ambientalista e filósofo australiano,


define a nova ética ambiental antropocêntrica como

138
Notas de Saúde Pública e Ambiental

resultado do “chauvinismo humano”. Uma das


principais expressões do “chauvinismo humano” é
precisamente o “núcleo principal da ética ocidental”.
A filosofia liberal do mundo ocidental assenta em que
cada um pode fazer o que entender, desde que não
prejudique os outros, ou ele próprio, de forma
irreparável. Este princípio, denominado de “princípio
do prejuízo do dano”, impõe restrições reais nas
liberdades dos seres humanos, quando lidam com o
ambiente. Paralelamente à ética ambiental,
deveremos considerar um comportamento particular
da mesma, ou seja ética e ambiente de trabalho. É
reconhecida a importância do trabalho no
desenvolvimento da humanidade. No entanto, as
condições de trabalho, nem sempre foram as
melhores. Uma análise ultra rápida permite-nos
verificar que o mais comum foi, é e provavelmente
continuará a ser as más condições de trabalho. Houve
períodos de mudanças, rápidas, eficazes, explosivas e
ao mesmo tempo cruéis. A revolução industrial é
paradigmática. Mesmo nos nossos dias, muitos povos
cresceram e desenvolveram-se de tal forma que
constituem motivos de inveja para muitos outros. No
entanto, não esqueçamos que cresceram à custa de
verdadeiros genocídios laborais. Não foram sujeitos a
quaisquer julgamentos de condenação internacionais,

139
Salvador Massano Cardoso

não obstante o número de mortos, estropiados ou


inválidos terem atingido cifras obscenas. Era altura
desses mesmos países edificarem memoriais às
vítimas do trabalho.

As condições de trabalho têm sido alvos, sobretudo a


partir do século XIX (o chamado século da liberdade),
de muitas organizações, criadas para a defesa dos
trabalhadores. Códigos e mais códigos, com o
objectivo de defender a ética no “ambiente do
trabalho” (caso da OIT, legislação nacional, legislação
comunitária, reivindicações sindicais). O trabalho é
visto como fonte de produtividade, de
desenvolvimento social e de realização pessoal. Mas o
trabalho tem uma outra face (que não é oculta) e que
provoca doença, mal-estar e até mesmo a morte.
Consciente de todos estes problemas, os
responsáveis tem-se dedicado a legislar e a
regulamentar com o objectivo de proteger a saúde
dos trabalhadores.

O mundo actual (ocidental) é considerado como o


primeiro mundo (mundo civilizado). Era bom que
assim fosse, mas uma análise mais aprofundada
revela-nos que existe um mundo escravizado. São
novas formas de escravidão, mas não deixa de ser, e,
no futuro, os historiadores, os filósofos irão criticar a

140
Notas de Saúde Pública e Ambiental

violência, a falta de respeito e o espírito escravizador


da humanidade dos séculos XX e XXI. Não podemos
esquecer que somos contemporâneos de formas
violentas de trabalho: trabalho infantil, sobrecarga de
trabalho nocturno, controlo e manipulação de
trabalhadores e sectores intermediários,
trabalhadores migrantes, perigo de exposição às
condições de trabalho, etc.

141
Salvador Massano Cardoso

142
Notas de Saúde Pública e Ambiental

SAÚDE E TRABALHO

Na definição de saúde da OMS - definição política -


está contemplado que o nível mais elevado de saúde
é um objectivo social em todo o mundo, cujo alcance
exige a intervenção de muitos factores sociais e
económicos.

A saúde é coisa própria, a saúde ganha-se ou perde-


se. Neste jogo, os meios ambientes material, afectivo
e social jogam um papel importante, algo que,
consideramos singular: a organização do trabalho.

Quando se fala da famosa definição de saúde da


OMS, omite-se ou pára-se na primeira fase. Seria
conveniente continuar com a mesma para vermos a
importância do trabalho. A definição original de saúde
é retomada pela mesma organização de forma a
realçar aspectos importantes do meio e do trabalho.

A saúde não é a mera ausência de doença, mas sim


um estado óptimo de bem-estar físico, mental e
social. A saúde não é algo que se possua como um
bem, mas sim uma forma de funcionar em harmonia
com o meio (trabalho, lazer e forma de vida em
geral). Não significa somente ver-se livre de dores ou

143
Salvador Massano Cardoso

doenças, mas também a liberdade para desenvolver e


manter as capacidades funcionais. A saúde mantém-
se por uma acção recíproca entre o genótipo e o meio
em geral. Como o meio ambiente de trabalho
constitui uma parte importante do meio geral, a
saúde depende das condições de trabalho.

Não é vital neste momento analisar todas as


definições que, entretanto, foram criadas para
explicar o que é a saúde. O meio ambiente social e o
momento histórico são determinantes para
explicarem estes fenómenos, não a história natural
das doenças (existe?), mas sim a história social das
relações saúde-doença. Exemplo: o bacilo de Kock
existe há muitos milhares de anos. Foi sobretudo a
concentração dos agricultores deslocados para as
cidades, a desnutrição e as carências higiénico-
sanitárias da revolução industrial, as razões para o
desbravamento da tuberculose. As mudanças do tipo
de trabalho foram determinantes para a eclosão da
epidemia.

Na história sobre as epidemias da cólera, podemos


analisar as discussões ao redor da sua origem e
causas. Quer relativamente a uma e a outra,
prevaleceram (finais dos século passado) as razões
menos sociais, mas as mais práticas e mais aceitáveis

144
Notas de Saúde Pública e Ambiental

para a época e para o poder reinante. Assim, a cólera


transformou-se numa doença exótica importada do
Oriente e a sua causa era um gérmen transmitido
pela água. As causas reais, tais como as péssimas
condições de vida e de trabalho foram completamente
olvidadas.

Alguns autores, como Virchow, tentavam em vão


explicar que a doença era uma consequência social e,
a título de curiosidade, mostravam que, os mais
poderosos e ricos, não padeciam desta doença.

A saúde não é um dom. A saúde é coisa própria. A


saúde é a reserva mais importante que os
trabalhadores têm.

O Modelo Laboral Italiano define as grandes linhas de


orientação. Os indivíduos fundamentais na defesa da
saúde nos ambientes de trabalho são os próprios
trabalhadores. A saúde de quem trabalha não é uma
mercadoria para vender, mas sim um bem a defender
mediante a prevenção. A prevenção efectua-se com a
contribuição dos conhecimentos técnicos e científicos,
os resultados dos estudos ambientais e sanitários e a
avaliação subjectiva dos trabalhadores. Estes
diferentes conhecimentos podem ser sintetizados e
constituírem uma base da luta dos trabalhadores,

145
Salvador Massano Cardoso

mediante uma actividade colectiva de investigação e


propostas conduzidas conjuntamente por técnicos e
trabalhadores, nomeadamente no que respeita à
linguagem, aos instrumentos e fases operativas.

De acordo com estas regras verificamos que a


tendência é caminhar desde o direito à saúde até à
prevenção. É interessante verificar a tentativa de
ruptura com uma velha tradição que, infelizmente,
ainda permanece: a "monetarização da saúde". Ou
seja, a aceitação de recompensas ou incentivos
económicos a troco de condições de trabalho hostis.

Vejamos, em termos práticos, o discurso oficial,


relativamente à prevenção, assenta nos hábitos
pessoais, como sinónimo de responsabilidade do
estado de saúde-doença. Quando se fala em cancro,
a tónica da prevenção assenta nos riscos individuais,
esquecendo-se os factores ambientais e laborais; o
mesmo se passa num sem número de doenças,
inclusive as próprias doenças cardiovasculares. São
os trabalhadores com menores rendimentos os que
sofrem, bebem, fumam mais e têm as piores dietas.
A falta de decisão ou a sua limitação, aliada às
exigências de trabalho, e falta de suporte social,
determinam que os trabalhadores nestes patamares
estejam mais sujeitos ao stress no trabalho e,

146
Notas de Saúde Pública e Ambiental

consequentemente, expostos a um sem número de


problemas. Em síntese, o não reconhecimento destas
influências sociais e laborais limita naturalmente
qualquer tentativa de impacto da prevenção, em
virtude de centrar-se no indivíduo.

Algumas doenças laborais são conhecidas desde


longa data. Talvez a falta de prevenção nos
ambientes de trabalho e as suas consequências
estejam na origem dos patronos dos diferentes
ofícios: São José para os carpinteiros, São Lourenço
para os ferreiros, Santa Bárbara para os mineiros,
São Cosme e São Damião para os médicos e, mais
recentemente, São Isidoro de Sevilha eleito para os
cibernautas.

Nos finais de 1700, Sir Thomas Percival descrevia que


"as indústrias têxteis compram meninos em Londres
e noutras cidades por cinco libras. A urgência é tanta
para conseguir mercadoria barata, que se aceitava
um idiota por cada 12 normais". "A vida destes
meninos ficava totalmente à mercê dos industriais;
viviam em barracas e os horários de trabalho,
alimentação, roupa e assistência médica dependiam
deles, vocacionados em explorá-los ao máximo,
porque sabiam que se um deles morresse, havia
outro para ocupar o seu lugar". Sir Percival continuou

147
Salvador Massano Cardoso

a efectuar denúncias. No final do século XVIII, o


Parlamento Britânico terminou com a situação,
impedindo que os industriais obrigassem as crianças
a trabalhar mais de 12 horas por dia ou a efectuar
trabalho nocturno.

O impacto das más condições de trabalho na doença


e nos acidentes tem sido alvo de várias publicações e
reflexões. Renzo Richi, no seu livro "La muerte
obrera", afirmava que a Itália não é só uma terra de
poetas, de santos e de emigrantes. A sua fama na
história da civilização ocidental ficará também ligada
à primazia no campo dos acidentes de trabalho e
doenças profissionais.

O êxito da Itália no pós-guerra não contabilizou (os


políticos) o sofrimento dos trabalhadores em termos
de saúde. A guerra deslocou-se dos campos de
batalha para as fábricas e campos.

Mussolini, nas vésperas da declaração de guerra à


Inglaterra, disse a Badoglio que necessitava apenas
de alguns milhares de mortos para conquistar o
direito a sentar-se à mesa da paz em traje de guerra.
Resta saber quantos morreram ou ficaram
estropiados para que os políticos e empresários se
sentassem à mesa do progresso económico. Esta

148
Notas de Saúde Pública e Ambiental

reflexão está contida igualmente noutras obras.

O fluxo migratório de trabalhadores, ocorrido nos


E.U.A. para os diversos campos de batalha, onde
tiveram (e têm) que lutar contra os agentes químicos,
as más condições de trabalho, sujeitos a tensões
intensas quer do ponto de vista físico e emocional, é
paradigmático. Para estas vítimas, que se contam por
milhões de doentes e de mortos ou incapacitados,
não se erigem mausoléus, além de que, não seriam
mais do que um testemunho à negligência, a medidas
ineficazes e a ocasiões perdidas.

A deterioração da saúde perante as más condições de


trabalho é somente um indicador, um sintoma que
nos remete para as contradições sociais. Os acidentes
de trabalho são uma praga a nível mundial.
Anualmente ocorrem mais de 200.000 óbitos (o que
corresponde a 22 por hora). Sabemos que existe uma
correspondência da ordem de 750 acidentes por
óbito. Deste modo, estima-se em cerca de
150.000.000 de acidentes de trabalho a nível
mundial, por ano.

Um dos problemas que se nos coloca é a sub-


notificação das doenças profissionais. Mesmo nos
países desenvolvidos, dos quais Portugal faz parte,

149
Salvador Massano Cardoso

concluímos por cifras patéticas. As consequências são


óbvias, os interessados não recebem as respectivas
indemnizações, além de adiar ou impossibilitar as
necessárias acções preventivas.

Quando se fala de doenças do trabalho, devemos ter


em consideração dois conceitos: doenças profissionais
e doenças relacionadas com o trabalho. As doenças
profissionais são as originadas directa e
exclusivamente por um factor de risco próprio do
ambiente do trabalho (ex: surdez profissional,
silicose, bissinose, etc.). No entanto, o conceito de
doença profissional é um conceito meramente
legislativo, isto é, para assinalar as doenças, para as
quais, nos diferentes regimes de segurança social,
estão contempladas acções de indemnização. Há
países cujas listas de doenças profissionais são
limitadas. Pode acontecer que uma doença seja
considerada como profissional num país e não noutro.

O conceito de doença profissional é reducionista e


deixa de lado um grande número de doenças que,
não sendo exclusivas de agentes ou factores laborais,
se distribuem com predilecção especial entre os
trabalhadores. Estas afecções, que sendo
inespecíficas, porque não reconhecem um só agente
causal, são designadas como doenças relacionadas

150
Notas de Saúde Pública e Ambiental

com o trabalho. Podemos destacar doenças como o


cancro, o aborto, as doenças cardiovasculares, as
artroses, etc.

Alguns dados permitem-nos verificar a enorme


ignorância sobre estes temas. Se analisarmos as
dezenas de milhares de substâncias químicas
utilizadas, podemos afirmar que em 80% dos casos
não existem estudos de toxicidade; os médicos não
têm de um modo geral formação na área da saúde
ocupacional durante o seu percurso universitário
(uma a meia dúzia de aulas?); os trabalhadores
habitualmente não estão informados sobre os riscos
que correm, e os organismos estatais revelam
insuficiências e limitações confrangedoras.

A medicina do trabalho foca o seu interesse em áreas


muito importantes. Destaco o problema do stress
laboral, o envelhecimento precoce (medido através
da polipatologia), o desgaste laboral (morte
prematura - o risco de morrer entre trabalhadores
qualificados e executivos era 1,52 vezes superior na
década de 20 e aumentou para 1,78 na década de
70).

O desgaste pode ser definido como a perda de


capacidade efectiva e/ou potencial, biológica e

151
Salvador Massano Cardoso

psíquica. Os indicadores de desgaste mais utilizados


são os sinais e sintomas inespecíficos, o perfil
patológico, os anos de vida perdidos, o
envelhecimento precoce e a morte prematura.

Na realidade não há uma saúde física e uma saúde


mental. O processo saúde-doença obriga-nos a
encará-lo na totalidade. Muitas profissões estão
sujeitas a pressões diversas a nível laboral, das quais
resultam consequências graves. Stress, síndroma de
burn-out, alcoolismo e enfarte constituem alguns dos
principais problemas, nos quais o desgaste psíquico
desempenha um papel muito importante.

Em 1700 foi publicado o primeiro tratado médico de


especialidade. Foi precisamente na área da Medicina
do Trabalho. Bernardino Ramazzini, cuja reputação
mundial é reconhecida por todos, deu um impulso
notável à compreensão dos fenómenos que atingem
os trabalhadores. Estamos ainda a comemorar o
terceiro centenário do De Morbis Artificum Diatriba.

Efeito do mercúrio, problemas das tipografias,


patologias dos fabricantes de espelhos, soldadores,
químicos, ferreiros, pedreiros, manipuladores de
cereais, operários da indústria têxtil, do tabaco, entre
muitos outros, dão uma imagem muito séria das

152
Notas de Saúde Pública e Ambiental

condições laborais na saúde dos trabalhadores No


mínimo, o que se pode afirmar é que é notável a
perspicácia e o alcance deste professor de Modena,
que deixou um legado muito importante à
comunidade científica. No entanto, esta, atrasada,
não soube aproveitar os ensinamentos e os princípios
que muito mais tarde foram desenvolvidos. De facto,
no século XIX observou-se uma revolta e uma
consciencialização dos problemas laborais em todas
as dimensões, nomeadamente na área da saúde. A
medicina começou a ser considerada como uma
ciência social apenas em meados do século XIX. Foi a
última das disciplinas a ser abrangida pela revolução
científica dos séculos precedentes!

De acordo com George Rosen, no seu livro "Da Polícia


Médica à Medicina Social", Emil Behring verificou que
a associação causal entre a miséria social e a doença
constituía uma característica do pensamento médico
do século XIX.

Não há nenhum médico que desconheça o nome de


Rudolf Virchow. No entanto, é conhecido, sobretudo
como anátomo-patologista. Mas este ilustre autor
desempenhou, a par de outros cientistas, um papel
muito importante no desenvolvimento da medicina
social. Virchow foi um entusiasta do espírito

153
Salvador Massano Cardoso

revolucionário que varreu a Europa Central em


meados do séc. XIX. Aderente do movimento
revolucionário de 1848, defensor das barricadas dos
"Dias de Março" de Berlim, trocou as armas pela
escrita onde fez uma interessante e profunda análise
da concepção da medicina. Para Virchow a medicina
"É uma ciência social e a política nada mais é do que
a medicina em grande escala".

As principais razões para a medicina ser considerada


como uma ciência social assentaram na
industrialização e nos consequentes problemas
sociais, o que levou os investigadores a estudar a
influência de factores como a pobreza e a profissão
no estado da saúde.

Nomes como Villermé, Benoiston de Chateauneuf,


Guépin, Constatin Pecqueur, em França, foram os
mentores de novas ideias que irradiaram para a
vizinha Alemanha. Virchow defendia a profilaxia social
e proclamou alto e em bom som o "direito do cidadão
ao trabalho, princípio fundamental a ser incluído na
constituição de um estado democrático". Segundo
Rosen, "Virchow foi influenciado pelo Governo
Provisório Francês de 1848 que reconheceu o direito
ao trabalho - a doutrina de Droit au travail que Louis
Blanc propagava desde 1839"

154
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Segundo Virchow, "o proletariado em grau cada vez


maior é vítima de doenças e epidemias, e as crianças
morrem prematuramente ou tornam-se inválidas".
Para a resolução destes problemas, alguns autores
propuseram programas de higiene industrial com
ênfase na regulação legislativa das condições de
trabalho, nomeadamente a proibição do trabalho
infantil antes dos catorze anos, a redução do dia de
trabalho nas profissões perigosas, a protecção das
mulheres grávidas, ventilação dos locais de trabalho e
muitas outras medidas de carácter preventivo face às
noxas conhecidas. Podemos observar a existência
duma estreita correlação entre os conceitos de
medicina preventiva e o local de trabalho numa época
em que as condições laborais eram verdadeiramente
dramáticas.

A derrota da revolução de 1848 foi seguida não da


derrota das ideias de Virchow, mas do seu
adormecimento. O movimento da reforma médica
chegou ao fim. Virchow e os seus colaboradores não
tiveram a ocasião de ver o desabrochar das sementes
então lançadas. Os problemas de natureza social e
económica, considerados responsáveis pela doença
nos tempos de Virchow, tiveram igualmente outros
lutadores e pensadores que não podemos deixar de

155
Salvador Massano Cardoso

considerar como marcos importantes na história da


Medicina Preventiva. Além do mais, as condições de
trabalho foram os factores mais determinantes para o
desenvolvimento do conceito de Medicina Preventiva.
A este propósito não se pode deixar de citar o clássico
Inquiry into Sanitary Condition of the Labouring
Population of Great Britain de Chadwick em 1848.

Todos temos consciência da importância do campo da


Higiene Ocupacional nos nossos dias. Questionamos,
porquê é preciso proteger a saúde dos trabalhadores?
A protecção dos trabalhadores é o corolário
indispensável das actividades profissionais. A
protecção dos trabalhadores está incorporada na
própria organização científica e humana do trabalho,
é um complemento e também um factor de correcção
da produtividade.

A Medicina do Trabalho é o paradigma da Medicina


Preventiva e pode contribuir para uma melhoria
significativa não só da saúde dos trabalhadores, como
também da saúde da comunidade, com ganhos
deveras importantes a todos os níveis, com lucros
impossíveis de contabilizar.

A necessidade de produzir legislação nesta matéria


não é de hoje, e Portugal até foi um dos pioneiros.

156
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Infelizmente, a abundante legislação nacional não se


acompanhou (nem se acompanha), da adequada
implementação de medidas correctivas e de
prevenção, necessárias para proteger a saúde dos
trabalhadores. Há uma verdadeira hipocrisia social
nesta área. As directivas comunitárias têm sido
transcritas para o normativo interno. Na prática,
vemos que o mesmo não é cumprido de forma
adequada, não obstante algum esforço por parte dos
empresários e alguma fiscalização. Mas estamos
longe de atingirmos não o ideal, mas o mínimo
desejável, já que todos os trabalhadores sem
excepção correm riscos de acidentes e de doenças
profissionais, incapacitantes e por vezes mortais. A
falta de cultura, e as insuficiências na materialização
dos projectos estão à vista de todos. Basta ver o que
se passa no caso dos acidentes de trabalho, para
concluir que pertencemos, ainda, a um “terceiro-
mundismo”, não obstante sermos parte integrante da
União Europeia. E no caso das doenças profissionais?
Bom, neste caso, o melhor é nem falar, porque
devemos ser um paraíso e exemplo para muitos
outros - bem mais desenvolvidos - visto que,
praticamente, não temos nada de especial, salvo
alguns casos de surdez, de silicose e de dermatoses!

157
Salvador Massano Cardoso

A área da Medicina do Trabalho é vital para o


desenvolvimento do país. É preciso investir mais, não
só no caso da Medicina do Trabalho, mas também na
Segurança e na Higiene. É preciso que os políticos
acordem para estes temas e acendam a luz verde
para que os diferentes técnicos nacionais possam
actuar no terreno. Apesar das limitações quantitativas
em certos domínios, Portugal possui neste momento
bons e bem treinados profissionais, capazes de
revolucionar o panorama nacional. Aliás, a talhe de
foice, é obrigatório recordar o já longínquo ano
Europeu de Segurança, Higiene e Saúde do Trabalho,
no qual tivemos oportunidade de acompanhar e que
teve um impacto substancial, a tal ponto que, todos
nós, envolvidos no processo acalentámos uma
esperança - esperança vã - de continuar na senda
adequada. Infelizmente, e como já é habitual, as
boas ideias e iniciativas não têm o seguimento
necessário, fruto da falta de visão de responsáveis
que, nas substituições periódicas, acabam por
eliminar os mais dotados e esclarecidos,
comprometendo todo um processo que consideramos
vital ao bom funcionamento do país.

Mas é tudo uma questão de tempo. Mais tarde ou


mais cedo - inclinamo-nos para mais tarde -

158
Notas de Saúde Pública e Ambiental

acabaremos por atingir os nossos desideratos. De


qualquer forma, não se pode deixar de afirmar que a
área em causa vai, por força das circunstâncias,
atingir uma importância crucial. Assim, a medicina e
os seus praticantes especializados neste sector irão
ser chamados a contribuírem decisivamente para o
bem-estar e desenvolvimento da sociedade
portuguesa.

159
Salvador Massano Cardoso

160
Notas de Saúde Pública e Ambiental

DOENÇAS PROFISSIONAIS. “UM ASSASSINO

SILENCIOSO”

O facto de ter sido convidado para participar neste


seminário subordinado ao tema “Dia Nacional da
Prevenção no Trabalho – Que Prevenção?”,
organizado pela UGT, constitui uma honra que não
posso deixar de agradecer.

Quando me propuseram o tema “Doenças


Profissionais – Um Assassino Silencioso” fiquei logo
entusiasmado pela provocação e profundidade do
tema, assim como, pela possibilidade de poder
dissertar e analisar uma área que não tem sido
objecto de atenção e cuidados adequados no mundo
em geral e no laboral em particular.

Em primeiro lugar, queria afirmar que é impossível


erradicar a doença. De facto, e parafraseando George
Rosen, “A doença é um processo biológico mais
antigo que o próprio homem. Antigo como a própria
vida, porque é um atributo da vida”.

Não obstante todos os esforços, todos os


conhecimentos e todas as potencialidades técnicas e
científicas, quer actuais, quer as que irão emergir no

161
Salvador Massano Cardoso

futuro, iremos confrontar-nos sempre com a doença


e, naturalmente, com a morte.

Há aqui, nesta introdução, um fatalismo evidente.


Mas, então, o que fazer? Muito. Todos os nossos
objectivos, quer da prevenção primária à terciária,
passando pela promoção da saúde, têm como
objectivo contribuir para aquilo que podemos chamar
o fenómeno da contracção da morbilidade e da
mortalidade. Ou seja, fazer todos os possíveis para
adiar para os últimos dias da nossa existência as
doenças e o sofrimento, adicionando, entretanto,
mais anos à nossa existência. Viver mais tempo, com
mais saúde, transferindo e concentrando para o
último período da nossa vida a doença e o sofrimento
que a acompanha. Utopia? Talvez sim, talvez não.
Aliás, muito daquilo que fazemos hoje e a que
chamamos prevenção, não é mais do que o
adiamento do aparecimento das doenças.

Fala-se muito em cancro e em doenças


cardiovasculares, as quais constituem as principais
causas de morte e nas respectivas medidas de
prevenção, subjacente às mesmas, traduzidas por um
conjunto de factores de risco, muitos dos quais são
do conhecimento de todos. Prevenir é, no fundo,
adiar e não evitar. Esta é uma realidade que temos

162
Notas de Saúde Pública e Ambiental

de aceitar. Morrer por enfarte do miocárdio não é tão


mau como dizem. Pelo contrário, até é uma óptima
forma de morrer, subitamente, face às alternativas
que não são nada agradáveis. A diferença está em
morrer aos 40, 50 ou 60 anos ou, então, a partir dos
90 ou mesmo após os 100 anos de uma vida plena de
saúde.

Esta observação constitui o ponto número um desta


intervenção: a doença é uma fatalidade. Antes de o
homem aparecer já existia.

A saúde do homem depende das suas características


biológicas traduzidas na biodiversidade que
caracteriza cada um de nós. Apesar das expectativas
surgidas face às modificações a operar a nível
genético, não nos parece que nos tempos mais
próximos se consiga obter uma resistência global e
tão pouco será desejável, porque contraria uma das
regras da perpetuação das espécies, à qual o homem
está também intimamente ligado, não obstante o seu
distanciamento face às mesmas. As outras duas
áreas, responsáveis pela saúde, assentam no
ambiente e no comportamento. Esta observação é
igualmente verdadeira quer no cômputo geral, quer
no cômputo mais específico ligado ao trabalho. E, é
aqui que iremos daqui a uns instantes focar a nossa

163
Salvador Massano Cardoso

atenção tentando analisar o assassino silencioso que


são as doenças profissionais. De facto, o
comportamento e o ambiente são os responsáveis por
80% das nossas doenças. Existe um quarto campo de
saúde, designado por organização dos cuidados de
saúde que, no tocante à patologia laboral, passa
necessariamente pelos serviços de segurança e saúde
no trabalho.

As doenças profissionais são uma constante do


homem desde que foi expulso do paraíso. O momento
em que o homem nasceu, simbolicamente
representado pela expulsão do Éden, coincide com a
tomada de consciência da sua existência. Saber que
existia constituiu um drama que hoje continua. Teve
que começar a trabalhar e logo de imediato começou
a sofrer doenças ligadas ao trabalho. Logo, a
patologia laboral é tão antiga como o homem e faz
parte da nossa vida, já que estamos condenados a
trabalhar. E, mesmo os que não trabalham também
sofrem patologias próprias, denominadas patologias
do desemprego. São inúmeras as doenças provocadas
e relacionadas com o trabalho. Para ilustrar é
suficiente dar uma espreitadela à longa lista de
doenças profissionais.

Não querendo ser fastidioso, vou seleccionar apenas

164
Notas de Saúde Pública e Ambiental

dois grandes grupos de doenças que são as mais


prevalentes e objectos de atenção e de preocupação
por parte das autoridades e investigadores. Doenças
cardiovasculares e cancro. O que é que têm a ver
com as doenças profissionais? Mais do que se supõe.
Quando se fala nestes dois grupos vem logo à liça, o
tabaco, a diabetes, a hipertensão arterial, o colesterol
elevado, o sedentarismo, o consumo de álcool, a
obesidade, os desvios alimentares, as substâncias
químicas, os efeitos físicos das radiações, as acções
cancerígenas de determinados agentes virusais, etc.

No caso do cancro existem estudos que permitem


estabelecer um perfeito nexo de causalidade com os
diferentes agentes causais. Noutras circunstâncias a
associação não é tão evidente. Excluindo as situações
caracterizadas por forte associação entre o agente
responsável e certas formas de cancro, as quais são
naturalmente doenças profissionais assassinas, mas
não silenciosas, queria tecer algumas considerações
sobre aquelas que são consideradas como uma
fatalidade e quase, ou nunca, relacionadas com o
trabalho.

Muitos agentes, em exposição mínimas, acabam por


desencadear, provocar ou acelerar muitos problemas.

165
Salvador Massano Cardoso

Sabendo que é a partir dos 60 – 64 anos que o


cancro apresenta a sua maior incidência, não
podemos esquecer que resulta, na sua grande
maioria, de uma exposição demorada, ocorrida ao
longo da vida, na qual o trabalho constitui um factor
de risco. Desta forma, o aparecimento de muitos
casos é considerada como “normal”, dependendo da
idade e de múltiplos factores, dos quais são,
curiosamente, excluídos os factores profissionais.

Queria afirmar nesta mesa – redonda que a forma


como se organiza o trabalho é tão importante como a
avaliação dos factores de risco. Um grau permanente
de insatisfação laboral, aliado a situações
stressizantes e instabilidade profissional, podem ser
verdadeiramente dramáticos ao condicionar e limitar
a capacidade de defesa e reparação do organismo. A
diminuição da capacidade de vigilância imunológica é
uma realidade e está perfeitamente documentado o
seu papel no desencadear das doenças neoplásicas.
Deste modo, podemos questionar: quantos e quantos
cancros, que irão atingir e vitimar muitos cidadãos,
estarão relacionados com o trabalho ou são
considerados como doenças profissionais?
Provavelmente muitos. E, se as campanhas de
prevenção de riscos e detecção e tratamento precoce

166
Notas de Saúde Pública e Ambiental

constituem armas ao nosso alcance, não podemos e


nem devemos deixar de incidir a nossa atenção no
controlo, na monitorização das condições de trabalho
em termos químicos, físicos ou biológicos, mas
também em termos de organização laboral, das
condições de trabalho e do grau de satisfação no
trabalho.

Um grau de satisfação elevado constitui um factor


muito importante para minimizar ou prevenir muitas
doenças profissionais, verdadeiros assassinos
silenciosos.

Este ponto da minha intervenção focou uma das


formas de doença profissional ou relacionada com o
trabalho que podemos considerar como um
verdadeiro assassino silencioso.

Podemos perguntar, até que ponto a organização


social e do trabalho pode provocar este tipo de
doenças?

A organização social e do trabalho dos tempos


modernos caracteriza-se, entre outros aspectos, por
taxas elevadas de desemprego e pela precariedade
das ligações laborais. As causas são múltiplas e,
ciclicamente, observamos situações preocupantes, em
virtude do impacto nas vidas dos atingidos.

167
Salvador Massano Cardoso

Alguns trabalhos vêm revelando a existência de


associação entre o desemprego e taxa de mortalidade
elevada, comparativamente aos que estão
empregados. Este indicador, de patologias do
desemprego, também se reflecte nos diferentes tipos
de vínculo laboral.

Um trabalho recente, efectuado na Finlândia,


compreendendo mais de 26.000 homens e mais de
65.000 mulheres, observados durante onze anos,
revelou que o emprego temporário estava associado
com mortalidade mais elevada dos que tinham
emprego permanente, mas com taxas inferiores aos
desempregados. Curiosamente, no mesmo estudo,
verificou-se redução da mortalidade daqueles que
transitavam de empregos temporários para empregos
fixos.

Os desempregados de longa duração,


comparativamente aos que tinham emprego fixo, têm
duas a quatro vezes mais risco de morrer por todas
as causas e doenças cardiovasculares e três a cinco
vezes mais por doenças relacionadas com o álcool.

Mortalidade por doenças relacionadas com o álcool,


com o tabaco e com o stress são mais frequentes
neste grupo de trabalhadores (emprego temporário),

168
Notas de Saúde Pública e Ambiental

facto que obriga a cuidados, sempre que se faça a


abordagem dos estudos, em termos de associação
entre os que não trabalham e os que trabalham, já
que estes últimos correm riscos diferentes, consoante
o tipo de vínculo. Por outro lado, a prevenção de
riscos, que estão subjacentes a muitas doenças dos
nossos dias, tem de ter em linha de conta não só os
comportamentos individuais e as agressões
ambientais, mas também a própria forma de
trabalhar.

O elevado número de desempregados, mais o


crescente número de empregados em situação
temporária, constituem, eventualmente, um factor de
risco de mortalidade através de doenças relacionadas
com o consumo de álcool, tabaco e "causas externas"
nada desprezíveis.

Esta abordagem talvez fuja à ortodoxia esperada.


Mas é precisamente através desta reflexão que
podemos iniciar novas áreas de investigação e
determinar novos rumos conducentes a um melhor
conhecimento que possa contribuir para o bem-estar
dos trabalhadores.

Não queria deixar de referir, antes de terminar, que


ao longo da história da humanidade e, mais

169
Salvador Massano Cardoso

recentemente, durante e após a revolução industrial


ocorrem nos países que, hoje, consideramos os mais
desenvolvidos do mundo, verdadeiros genocídios
laborais frutos do não respeito pelas regras de
segurança e saúde no trabalho. Essas doenças
profissionais são bem conhecidas de todos e foram
símbolos de assassínios colectivos mas não
silenciosos.

Paralelamente, continuamos a observar novas


epidemias, mortíferas, silenciosas, as quais implicam
um redobrar da nossa atenção, quer como
investigadores, quer como médicos do trabalho, os
quais têm a responsabilidade de diagnosticar, de
prevenir e combater todas as formas de injustiças
médico-laborais, facto que obriga a reequacionar
todos os sistemas e organização da segurança,
higiene e saúde do trabalho.

É altura de dar visibilidade ao “assassino silencioso”


que são as doenças profissionais. Hoje, tornaram-se
um pouco mais visíveis, mas não o suficiente.
Paralelamente ao discurso científico e técnico é vital a
associação com o discurso político e, até, porque não,
dar uma visibilidade pública, tal como um memorial
às vítimas das doenças e acidentes profissionais. Não
conheço nenhum e as vítimas ultrapassam de longe o

170
Notas de Saúde Pública e Ambiental

somatório dos diferentes genocídios praticados até


hoje. O genocídio laboral foi uma constante no
passado e continua a ocorrer debaixo dos nossos
olhos…

171
Salvador Massano Cardoso

172
Notas de Saúde Pública e Ambiental

“O MÉDICO DO TRABALHO FACE À MEDICINA

ITINERANTE: OS NOVOS ANDARILHOS”

Uma das minhas paixões é a medicina preventiva.


Entendi muito cedo, logo nos bancos da universidade,
que manter a saúde das pessoas constitui uma das
tarefas mais nobres da medicina. Não é que não
sentisse a importância das diferentes disciplinas
básicas e clínicas, às quais, invariavelmente, me
atirava como gato a bofes com o objectivo de
aprender o máximo possível. Se assim o pensei,
melhor o fiz.

Curiosamente, na minha altura, só havia uma


disciplina que abordava a prevenção e o carácter
social das doenças. Era ministrada no quarto ano e
não despertava grande interesse na maioria dos
alunos. Recordo-me, como hoje, que uma turma
como a minha, comportando centenas de alunos,
mais de quatrocentos, talvez um dos maiores cursos
de sempre no pré 25 de Abril, apenas meia dúzia ou
talvez menos aguentou na parte final do curso as
aulas teóricas do então jovem professor que, muito
provavelmente vendo o meu interesse e assiduidade,
acabou, inexplicavelmente para mim, na altura, por

173
Salvador Massano Cardoso

convidar-me a colaborar com ele, mesmo antes de


fazer exame à disciplina. Não me esqueço da
conversa tida numa tarde de sexta-feira no seu, que
é hoje o meu, gabinete, pelas 14 horas. Perguntou-
me se gostava destas áreas e obrigou-me a dissertar
sobre problemas sociais e médicos. Fi-lo com a
ingenuidade e voluntariedade própria da idade, tinha
acabado de fazer 21 anos, e da época, estávamos em
1972. De qualquer maneira, hoje à distância, e
apesar de não me recordar dos conteúdos da
conversa, identifico-me com a forma de pensar e de
actuar que na altura demonstrei. Sou o mesmo.
Sinto. Além do mais, as preocupações que na altura
me atormentavam continuam a manifestar-se hoje
em dia.

A razão de ser desta pequena introdução,


autobiográfica, tem, naturalmente uma razão de ser,
ou seja, preocupo-me com os problemas médico-
sociais e a medicina preventiva, como todos, penso,
que sabem. Cultivo, estudo e analiso as diferentes
formas, tentando dinamizar um dos mais profícuos e
prometedores campos de saúde.

No fundo, o que já fiz ao longo destas décadas teve


um ponto de partida, consigo identificá-lo com uma
precisão matemática, e, ao mesmo tempo, delicio-me

174
Notas de Saúde Pública e Ambiental

a partilhá-lo convosco.

O destino de cada um é talhado por pequenas


grandes coisas, e o meu não é diferente dos outros. O
que é certo é que agradeço aquele convite numa bela
tarde primaveril.

Ao longo dos tempos, dediquei-me a estas áreas com


paixão. Os meus colegas achavam um desperdício
enveredar por estes campos em detrimento da clínica
que, curiosamente, nunca abandonei, nem abandono,
porque o médico deve manter laços de proximidade e
de intimidade com a realidade nua crua do sofrimento
e da miséria humanas, porque tal facto faz-nos
recordar a necessidade de cultivar o humanismo que,
na área da saúde, é vital, para compreender a outros
níveis os porquês e os "comos" do seu aparecimento,
fugindo às analises desapaixonadas e frias.

Tentar vender estas ideias não é fácil. Impor os


conceitos da epidemiologia e da medicina preventiva
foi muito difícil. Pertenço a uma geração de meia
dúzia de pessoas que tudo fizeram para enobrecer e
divulgar estas áreas do conhecimento. Conseguimos,
apesar de faltar ainda muito para atingir o nosso
desiderato.

Certas leituras marcam-nos para sempre. Muitos dos

175
Salvador Massano Cardoso

nossos mestres desconhecem os seus seguidores.

Um ensaísta, humanista e hematologista francês,


Jean Bernard, escreveu um dia que a medicina actua
de quatro formas. Para ilustrar a sua afirmação
socorreu-se de quatro verbos: cortar, substituir,
modificar e prevenir. Os três primeiros têm
correspondência na cirurgia, medicina e na
transplantação. Todas são formas de corrigir o que
está mal, ao passo que o último verbo, prevenir,
constitui uma forma elegante, ao manter a saúde,
impedindo a doença. Aliás, este desiderato deve ser
um dos únicos comuns a todas as sociedades, e tem
evoluído de forma particular ao ser integrado como
um direito universal. Todos têm direito à saúde e à
preservação da mesma. Conceito interiorizado, na
maioria das sociedades, mas cuja evolução foi lenta e
precedida por uma outra, que grande parte de nós
viveu, caracterizada pelo direito a ter acesso a
cuidados de saúde e ao tratamento. Hoje, predomina
a prevenção da doença e, podemos afirmar, mesmo a
promoção da saúde. Ou seja não basta evitar a
doença, mas inclusive dar mais saúde à saúde.

Sendo assim, o verdadeiro paradigma da medicina


preventiva é a medicina do trabalho. A sua
importância e alcance não é de hoje, é mesmo muito

176
Notas de Saúde Pública e Ambiental

antiga, mas indo aos tempos mais próximos, a obra


genial de Bernardino Ramazzini, “As doenças dos
trabalhadores”, cuja primeira edição, em latim, foi
publicada em 1700, personifica esta área e a
importância da actuação médica. Tenho lido e relido
com particular curiosidade, e muita satisfação, a
tradução brasileira da mesma. Recomendo-a a todos,
porque o passado ensina-nos que muitas das nossas
preocupações não foram inventadas por nós, longe
disso, outras cabeças já tiveram oportunidade de as
analisar.

Não vou enfatuar-vos com a história da medicina do


trabalho, mas vou saltar para a realidade dos nossos
dias.

Seria uma estultice demonstrar a importância desta


área. De qualquer modo, não quero deixar de passar
a oportunidade para afirmar que o sucesso da
civilização e a riqueza de muitos povos se fez à custa
de verdadeiros genocídios laborais. Logo após a
revolução industrial, muitos investigadores tomaram
consciência da necessidade de melhorar as condições
laborais, propiciando aos trabalhadores os meios para
evitarem que adoecessem. Muito foi feito,
naturalmente, mas na maioria das vezes de forma
muito lenta, porque tentar travar certos interesses

177
Salvador Massano Cardoso

não é fácil, e exige medidas de carácter social e


politicas muito fortes. Foi o que aconteceu no decurso
do século XIX.

Compete aos médicos do trabalho inúmeras funções


que estão bem estabelecidas por lei e regulamentos.
No entanto, na prática, o que observamos permite-
nos concluir que estamos muito aquém do desejável.
Passámos por um período de grave carência de
médicos do trabalho. Foi só no início da década de
oitenta, através de novos cursos, Coimbra e Porto,
que começamos a produzir mais técnicos qualificados.
Não foi fácil implementar os novos cursos, mas lá se
conseguiu e, em pouco tempo, foi possível diplomar
algumas centenas de médicos para satisfazer grande
parte das necessidades do pais. Um período bastante
fértil. A partir do momento em que foi exigido por lei
que só especialistas em medicina do trabalho podiam
exercer, as coisas complicaram-se. Ainda hoje, digo
com toda a sinceridade, não compreendo esta
alteração legislativa que veio causar alguma
perturbação, diminuindo, não os diplomados, mas os
especialistas, cerceando aos interessados o
recrutamento dos mesmos. Se adicionarmos a
redução de número de médicos, então é fácil de
concluir que a situação não se afigura muito positiva

178
Notas de Saúde Pública e Ambiental

em termos de satisfação legal, em medicina do


trabalho.

A tudo o que já disse, acresce que muitos dos


diplomados e, até, mesmo os que alcançaram o título
de especialistas, não praticam, porque optaram pela
dedicação exclusiva nas suas carreiras. Talvez, mas
já por mais de uma vez tive oportunidade de
constatar que não é bem assim, possam, após a
passagem à reforma, dedicarem-se a esta actividade.
De qualquer modo, nada nos surpreende que, muito
provavelmente, iremos assistir a uma grave falta de
médicos do trabalho.

Outro aspecto que rouba alguma dignidade,


podemos, sem qualquer espécie de rebuço, fazer esta
afirmação, diz respeito à inexistência de carreiras de
medicina do trabalho. A este propósito fiz todos os
meus possíveis, aquando da minha passagem pela
Assembleia da República para que fosse aprovado um
projecto de resolução com o objectivo de obrigar o
governo da República a criar uma carreira de
medicina do trabalho de forma idêntica às existentes,
ou seja, a carreira hospitalar, a carreira de clínica
geral e a de saúde pública. Ainda consegui que desse
entrada na mesa da Assembleia, mas nunca foi
discutido e, afirmo, publicamente, que nunca houve

179
Salvador Massano Cardoso

qualquer manifestação de interesse em abordar este


assunto, apesar de todo o meu esforço e capacidade
de argumentação. Chocou-me esta forma de estar de
responsáveis políticos, da minha própria área, o que
me permitiu, a par de outros acontecimentos, concluir
que somos atrasados, porque muitos dos que nos
governam manifestam total e obscena inconsciência
dos verdadeiros interesses do pais. Sei que este
desabafo não é para aqui, mas não resisti a farpá-los.
Tanto mais que para se alcançar o título de
especialista é necessário que a Ordem dos Médicos
defina o programa curricular do médico. Se quanto à
obrigatoriedade em obter o curso de medicina do
trabalho não há qualquer dúvida, o mesmo não se
pode dizer no tocante aos locais de estágio. Como na
função pública não há, ou melhor há apenas alguns
serviços, e, mesmo assim, sem a dimensão
necessária para a prática estagiária, restam-nos os
serviços privados, alguns dos quais com elevada
qualidade e dimensão. Mas as directivas comunitárias
exigem que o estágio de qualquer interno seja
remunerado. Não estou a ver o sector privado a
financiar estas áreas, nem o Estado a pagar para que
o mesmo seja feito nesses serviços. Sendo assim,
está criado um grande imbróglio que eu, por mais de
uma vez denunciei, e para o qual não vejo solução,

180
Notas de Saúde Pública e Ambiental

atrapalhando e limitando as actividades do Colégio de


Especialidade.

Mas há mais, muito mais. E, aproveito para dizer que


a qualidade de prestação dos cuidados em medicina
do trabalho, por parte de grande número de
empresas, está aquém do desejável. A não
certificação das mesmas, por parte de uma entidade
que tem vindo a cair e a desvalorizar-se, caso do
actual, e penso que moribundo, ISHST, determina
que a actual situação seja aquela que muitos de nós
conhecem e que outros intuem.

Seria interessante que a fiscalização actuasse e nos


desse o verdadeiro panorama da nossa realidade.
Numa altura em que se fala tanto de certificação e de
acreditação, controlo de qualidade e quejandos,
poderemos perguntar, para quando a regulação
efectiva deste sector?. Não podemos esquecer que
estamos perante um negócio, e que negócio! Só que
o paradigma da medicina preventiva exige muito
mais, sobretudo excelência. Muitos empresários que
recorrem a serviços externos fazem-no por obrigação
e não por devoção, logo, procuram os que lhe dêem
mais vantagens, sobretudo operacionais e
racionalização dos custos. A ideia de que o sector da
medicina do trabalho deve ser considerado não como

181
Salvador Massano Cardoso

um custo, mas sim como um investimento, está


muito longe de ser uma verdade e, até, alimentada
pela própria postura de muitos responsáveis pela
medicina do trabalho.

Dentro desta esfera de actuação, sinto-me um pouco


constrangido, quando vejo caravanas com publicidade
à medicina do trabalho a calcorrear tudo quanto é
sítio, num verdadeiro nomadismo da medicina.
Afianço, desde já, que não sou anti-semita, mas
custa-me ver este espectáculo, quer no meio de
grandes cidades, como é o caso de Lisboa, quer nos
inúmeros aglomerados urbanos ou não, do
aparecimento da “carrinha” para serem efectuados os
exames obrigatórios.

É certo que a medicina do trabalho enquadra-se num


dos quatro tipos de exames médicos. Os outros são a
consulta habitual, em que os responsáveis são o
médico e o doentes, o diagnóstico precoce, também
da responsabilidade dos dois já enunciados
protagonistas, o rastreio, da responsabilidade das
autoridades e o nosso, ou seja, as consultas de
medicina do trabalho, fruto de imperativos
administrativos. O facto de ser imposto pela lei, e não
por opção ou escolha da pessoa, não diminui a
dignidade do próprio acto. Há uma imposição, facto

182
Notas de Saúde Pública e Ambiental

que já por si limita o nível de confiança entre


trabalhador e médico, agravado, naturalmente, se o
exame for efectuado em condições menos próprias.
Diga-se em abono da verdade que este sistema, que
peca muitas vezes pelo não cumprimento legal,
quanto às condições em que se deve efectuar o
exame, e que passo por cima, porque é mais do que
evidente as violações, rouba ainda mais a
necessidade de fortalecer o relacionamento,
contribuindo para a despersonalização do mesmo.

Se esta solução "nomádica" fosse, realmente,


benéfica, já o senhor ministro da saúde teria
adquirido vários camiões TIR, devidamente
apetrechados para fornecer, sobretudo às pobres
populações do interior, os cuidados médicos de base,
numa altura em que as vias de comunicação
constituem um argumento de peso para obrigar à
deslocação das populações em caso de urgência, tal
como está a ser desenhado neste momento.

Parece-me, pois, não muito curial que, numa altura


em que as populações mais idosas e menos
desfavorecidas são “convidadas” a procurar outros
locais para satisfazerem as suas necessidades de
saúde, haja tamanho “benefício” para as populações
trabalhadoras.

183
Salvador Massano Cardoso

Sendo assim, importa que a medicina do trabalho


seja transformada numa carreira médica, com acesso
idêntico às restantes carreiras, que o governo crie
condições no sector público para o estágios dos
internos, que o governo cumpra a lei, que tanto exige
ao sector privado, já que a grande maioria dos seus
serviços não dispõe medicina do trabalho, que a
regulamentação se faça sentir, impondo critérios de
elevada exigência, de forma a transpor situações de
“dumping” e de má qualidade, quase que diria
generalizada, que seja permitido aos detentores dos
que possuem só os cursos de medicina do trabalho a
prática da mesma, pelo menos nos tempos mais
próximos, de forma a ultrapassar as enormes
dificuldades no seu recrutamento, enfim, que sejam
criadas as condições para dignificar uma das mais
importantes áreas da medicina, que é precisamente a
medicina preventiva, consubstanciada na medicina do
trabalho.

184
Notas de Saúde Pública e Ambiental

SAÚDE DOS TRABALHADORES E OS RISCOS

BIOLÓGICOS

Microcosmo biológico e evolução

O microcosmo biológico emergiu há cerca de 3,5 mil


milhões de anos, constituindo a fonte primária de
todas as formas de vida. Representam, actualmente,
mais de 95% por cento de todas as espécies. Ao
longo de todo o processo evolutivo, as diferentes
espécies foram condicionadas por este mundo, do
qual dependem.

O homem, no seu trajecto evolutivo, fruto de um


acaso e de uma necessidade, deve muito das suas
características aos microorganismos. Estes exerceram
uma forte pressão selectiva, conjuntamente com
outros factores ambientais. Mesmo quando foi capaz
de adquirir autonomia cultural, o que lhe permitiu a
conquista da ecúmena, os agentes microscópicos
continuaram a exercer os seus efeitos. Continuaram e
continuam.

185
Salvador Massano Cardoso

Germes, aço e armas

Os germes, mais o aço e as armas (utilizando o título


da obra do biólogo Jare Diamond), formam a tríade
que permitiu em pouco tempo criar uma diversidade
cultural e níveis civilizacionais muito distintos. Basta
recordar que após a última glaciação, ou seja há
cerca de 13.000 anos, todos os povos do planeta se
encontravam no mesmo plano. Mas, em 1500 d.C., os
povos deste planeta distribuíam-se e hierarquizavam-
se numa diversidade que ia desde os povos cultos da
Europa, a outros que viviam na idade da pedra ou
que acabavam de entrar na idade do bronze. É fácil
de compreender as consequências resultantes destas
discrepâncias com a conquista, o domínio e a
exploração dos povos menos desenvolvidos. Nesta
história, os germes não deixaram de dar o seu
contributo, no desenvolvimento de uma verdadeira
patologia biológica da conquista e colonização.

Alimentação e infecções

As deficiências de natureza alimentar, uma constante


da história humana, associadas à falta de condições e

186
Notas de Saúde Pública e Ambiental

práticas de higiene, proporcionavam óptimas


condições para o aparecimento das infecções, causa
principal de morte, a qual se manteve até meados do
século XX, no mundo ocidental, e que se mantém,
infelizmente, nos países em desenvolvimento.

Infecções, trabalhadores e Ramazzini

A importância das mesmas está bem patenteada num


sem número de obras. No caso dos trabalhadores,
podemos citar Bernardino Ramazzini que na sua obra
De Morbis Artificum Diatriba, publicada em 1700,
descreve vários e interessantes relatos de doenças
dos trabalhadores. Não obstante o seu
desconhecimento sobre a origem microbiana de
muitas delas, é possível verificar o papel deste
agente. Para o efeito, ilustro esta exposição com
algumas passagens do famoso mestre de Modena.

A arte do pisoamento, consistia, durante os priscos


tempos, em limpar lãs e, sobretudo, em desfazer
manchas das vestes…era, pois bastante comum,
antigamente, que os pisoeiros utilizassem urina para
limpar as lãs e os vestidos, como hoje se faz.
Marinello traz várias histórias de Hipócrates sobre as

187
Salvador Massano Cardoso

enfermidades dos pisoeiros. “Pisoeiro doente da


cabeça e do pescoço”. “Pisoeiro louco em Sira, por
inflamação das pernas”. É verdadeiramente curiosa a
história de Hipócrates, sobre as condições mórbidas,
com carácter epidémico, que os pisoeiros suportam.
“Incham-se as virilhas, ficando endurecidas e
indolores, perto do púbis, e no pescoço, igualmente,
aparecem tubérculos grandes e febre, antes do
décimo dia.

Noutra passagem, a propósito das doenças das


parteiras, Ramazzini diz: Seja qual for a condição do
sangue menstrual, tal como crêem aqui e ali, não há
dúvida de que o fluxo uterino que precede e sucede
ao parto é maligno e virulento; demonstra-o
suficientemente a repentina supressão ou redução
dos lóquios, pois logo sobrevêm febres malignas que
matam as míseras puérperas…Fernélio, considerando
o poder das doenças contagiosas, diz que uma
parteira, ao atender a uma parturiente sofreu tais
lesões em uma das mãos, que terminou aleijada; a
puérpera acrescenta Farnélio, tinha estado infectada
de lues gálica. Da mesma forma a nutriz que
amamenta a uma criança infectada contrai lues
primeiramente nos seios….

188
Notas de Saúde Pública e Ambiental

A propósito das doenças dos agricultores: não é raro


que os agricultores sofram, no Verão, febres altas,
ainda mais quando começa a abrasar seus corpos “a
ira do vesânico leão”; assim, no Outono, padecem de
disenteria que pode ser atribuída às frutas da época e
a outros erros alimentares….

Revolução industrial e riscos biológicos dos


trabalhadores

A época da revolução industrial foi acompanhada de


fenómenos com grande impacto na saúde das
comunidades, nomeadamente da trabalhadora. Se
analisarmos a tuberculose, podemos afirmar que
existiu desde sempre, como testemunha a
paleopatologia. No entanto, nunca, ao que se saiba,
tomou formas epidémicas. A concentração dos
agricultores deslocados para as cidades, aliada à
desnutrição e consequente perda da resistência,
constituem as razões para o desbravamento da
tuberculose. As mudanças do tipo de trabalho foram
determinantes para a eclosão da epidemia que, desde
então, assumiu proporções catastróficas, tal como
aconteceu durante o século XIX.

189
Salvador Massano Cardoso

Riscos biológicos actuais

Os trabalhadores estão sujeitos a inúmeros riscos de


natureza variada, e os riscos biológicos constituem
uma área particular que continua a preocupar os
responsáveis, apesar de nos encontrarmos numa era,
aparentemente confortável, onde se pensava -
erradamente - que seria possível lutar com grande
eficiência contra as doenças microbianas e virusais.
Sabemos que não é assim, e, a testemunhar,
salientamos o ressurgir com virulência de certas
doenças, e a emergência de novas.

Na prevenção de muitas afecções, no caso presente,


infecções, medidas normativas contribuem de forma
positiva. Neste sentido a produção de legislação
nacional e comunitária é sinónimo de preocupação e
interesse pelos agentes biológicos no ambiente de
trabalho. Acresce, ainda, as medidas de carácter
geral sobre os mesmos agentes.

A título de exemplo citamos as directivas


comunitárias relativas à protecção dos trabalhadores
contra os riscos ligados à exposição a agentes
biológicos (7ª Directiva especial) com as
consequentes adaptações, assim como o decreto-Lei
que regula a utilização e comercialização de

190
Notas de Saúde Pública e Ambiental

organismos geneticamente modificados - facto que


ilustra o alcance dos riscos biológicos que não se
limita aos agentes microbianos e virusais. A legislação
nacional estabelece as regras de protecção dos
trabalhadores contra os riscos de exposição a agentes
biológicos, assim como a classificação dos mesmos.

Classificação dos riscos biológicos

Estes são classificados em quatro grupos. No primeiro


grupo enquadram-se aqueles cuja probabilidade de
causar doenças no ser humano é baixa. No segundo,
apesar dos agentes poderem causar doenças e
constituir um perigo para os trabalhadores, é escassa
a probabilidade de se propagarem na colectividade,
além de que existem, em regra, meios eficazes de
profilaxia ou tratamento. Os agentes que podem
causar doenças no ser humano e constituir risco
grave para os trabalhadores e que sejam susceptíveis
de propagação na colectividade, mesmo que existam
meios eficazes de profilaxia ou de tratamento,
enquadram-se no terceiro grupo. Por fim, temos o
quarto grupo; no qual se encaixam os agentes
responsáveis de doenças graves no ser humano,
nomeadamente trabalhadores, sendo susceptíveis de

191
Salvador Massano Cardoso

apresentarem elevados níveis de propagação na


colectividade e para o qual não existem, em regra,
meios eficazes de profilaxia ou de tratamento.

Riscos biológicos “banais” e sua importância


actual

Com base nas características clínico-epidemiológicas


dos diferentes agentes, não é difícil agrupá-los nesta
classificação. Apesar dos agentes dos grupos três e
quatro serem, naturalmente, os mais preocupantes,
tal facto não significa que devemos desvalorizar os
pertencentes aos grupos mais “benignos”, os quais
sendo mais comuns, acabam por ter efeitos gravosos
em termos de bem-estar e de produtividade laboral.
Infecções simples e banais podem traduzir-se em
problemas complicados, quer a nível individual, quer
a nível da organização do trabalho, quer a nível do
desenvolvimento do país.

Novas perspectivas dos riscos biológicos para os


trabalhadores e para os que contactem com os
mesmos

A abordagem deste tema desperta naturalmente por

192
Notas de Saúde Pública e Ambiental

parte dos participantes, expectativas sobre que tipo


de análise irá ser efectuada a propósito de
determinados tipos de doenças, tais como, a sida, a
hepatite, a tuberculose, entre outras. O risco de
propagação é elevado, sobretudo nos profissionais de
saúde, facto que exige medidas de prevenção a
vários níveis.

A identificação dos riscos biológicos está


minimamente reconhecida a nível laboral. Conhecem-
se as diferentes profissões mais sujeitas a contraírem
problemas, assim como implementar as medidas
adequadas. Seria exaustivo e recorrente uma análise
sobre estes aspectos, os quais constituem motivo de
horas e horas de ensino para os diferentes
profissionais da área da Segurança, Higiene e Saúde
no Trabalho.

O risco profissional não pode ser dissociado da


eventual propagação aos utentes das diferentes
actividades. Senão vejamos: se um profissional de
saúde corre risco de contrair uma doença infecciosa,
pode igualmente ser fonte de propagação. Estão
descritos casos de cirurgiões e dentistas que
contaminaram os seus doentes. Mas não deixa de ser
curioso é o impacto de certas medidas em termos de
saúde pública.

193
Salvador Massano Cardoso

Uma das explicações para a grave crise de epidemia


da sida no continente africano assenta nos factos de
que a actividade sexual contribui com cerca de 90%,
as transfusões e infecção mãe-filho com 5% e as
agulhas contaminadas com outros 5%. Mas, estudos
recentes permitiram reanalisar estes dados. O curioso
é que o sexo não seguro não contribui com mais de
um terço dos casos, enquanto a utilização de agulhas
contaminadas contribui com 50%. De acordo com os
autores a promiscuidade servia como explicação,
como consequência dos preconceitos ocidentais
acerca da sexualidade africana. A baixa taxa atribuída
às agulhas e seringas contaminadas revela o medo da
perda de confiança nas instituições de saúde e nas
imunizações. Se tivermos em conta que anualmente
são ministradas 7,5 mil milhões de injecções com
agulhas não devidamente esterilizadas, é fácil
verificar como uma actividade profissional tão nobre,
como a prestação de cuidados de saúde, pode
originar problemas tão graves.

Os riscos biológicos têm sido alvos de particular


atenção por parte dos políticos, face à sua utilização
como armas. Não é de hoje, a prática do
bioterrorismo. Lançar corpos contaminados com
peste, ou envenenar poços, constituem algumas das

194
Notas de Saúde Pública e Ambiental

práticas de guerra utilizadas, e, diga-se em abono da


verdade, muitas vezes com sucesso.

A facilidade na sua elaboração preocupa os


responsáveis, já que o risco não se coloca só aos
militares, mas também à população em geral e,
particularmente, a sectores de actividade profissional
que constituam os principais núcleos da actividade
produtiva e económica de um povo.

Medidas de carácter preventivo deverão ser tomadas


de forma a impedir a destruição de sectores vitais.

Trabalhadores imunodepressivos

Tive já a oportunidade de falar das consequências


resultantes das infecções ocorridas ao longo da
história da humanidade. A fragilidade imunitária
decorrente de uma alimentação deficiente e a
ausência de condições higiénicas colectivas e
pessoais, explicam a elevada mortalidade.

Hoje em dia, a alimentação melhorou de uma forma


substancial, a tal ponto, que é a fonte número um de
problemas de saúde no mundo ocidental. No entanto,
podemos afirmar que, graças à conquista da medicina

195
Salvador Massano Cardoso

e da higiene, vivemos cada vez mais. As pessoas


idosas são mais susceptíveis às doenças, mas não
podemos deixar de equacionar um novo paradoxo
que se prende com as nossas resistências
imunológicas. Cada vez há mais pessoas que
sobrevivem e vivem com deficiências imunitárias,
resultantes de transplantações, terapêuticas
imunosupressoras e de doenças degenerativas.
Muitos, mas mesmo muitos, são jovens e adultos e
consequentemente são trabalhadores. Numa
perspectiva de saúde ocupacional, não podemos
deixar de analisar este novo grupo face às agressões
biológicas. E sendo certo que os agentes dos grupos
três e quatro são perigosos para todos, tenham ou
não saúde, os do grupo um e dois podem
transformar-se em agentes mesmo perigosos para
este novo grupo de trabalhadores. Importa deste
modo debruçar-nos em termos de segurança, higiene
e saúde no trabalho, face aos imunodeprimidos.

Riscos biológicos e interacção com os riscos


químicos

A análise actual dos riscos biológicos não pode ser


dissociada da exposição química e física. Existe uma

196
Notas de Saúde Pública e Ambiental

interacção entre os mesmos que merece algum


destaque. O nosso mundo biológico é antigo, como já
sabemos, mas o mundo químico é particularmente
recente. A introdução de milhares de novas moléculas
originou muitas patologias. A exposição a estas
substâncias, mesmo em doses baixas, muito
provavelmente originará modificações biológicas nos
nossos organismos, tornando-os sensíveis à acção de
agentes que habitualmente não provocariam
transtornos. A este propósito, não deixaria de invocar
o aparecimento de um novo paradigma que poderá
explicar muitos sintomas e até doenças para as quais
se desconhecem as causas. A perda da tolerância
induzida pelos tóxicos (TILT) tornaria muitas pessoas
sensíveis à toxicidade dos mesmos com expressão
multifactorial. Não podemos deixar de equacionar que
nesta perspectiva a interacção germes-toxicidade
induzida a baixas doses possam desencadear novas
situações.

Riscos biológicos e stress

Já citei o papel da imunodepressão no desencadear


de doenças infecciosas. Situações como as
decorrentes de várias terapêuticas, doenças

197
Salvador Massano Cardoso

neoplásicas e transplantes, são muito relevantes no


contexto actual. Mas há ainda outras situações, tais
como, os já citados efeitos tóxicos e o efeito
imunossupressor do stress. Sendo o trabalho a
principal fonte de stress, é de prever que nas
circunstâncias actuais hajam muitos trabalhadores
com compromissos imunitários que, embora ligeiros,
possam ser suficientes para os tornar vulneráveis a
infecções banais com repercussões a vários níveis.

Riscos biológicos e organização do trabalho

Gostaria de expressar que, de acordo com os actuais


conhecimentos, a análise dos riscos biológicos não
pode ser efectuado sem o concurso de outras áreas,
nomeadamente organização do trabalho, fontes de
stress laboral, condições físicas de trabalho,
exposição a tóxicos e a condição prévia do estado de
saúde.

A interpenetração destas áreas é fundamental para a


compreensão e inclusive protecção dos trabalhadores.

198
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Riscos biológicos e condições físicas do local do


trabalho

As condições físicas do local de trabalho obrigam-nos


a algumas considerações. Trabalhar em edifícios
aparentemente inteligentes é agradável, mas a
existência de sistemas de ventilação e arejamento
colocam problemas delicados, tais como o
desenvolvimento de germes patológicos e de outros
que, não o sendo em condições normais, acabam por
produzir problemas de saúde ocupacional. Deste
modo, quem diria que um funcionário de serviços,
trabalhando em ambiente agradável de iluminação e
de temperatura, mas com deficiente organização de
trabalho e estando sujeito a stress laboral aliado a
exposição de substâncias, embora mínimas,
provenientes dos vários produtos utilizados na
construção e equipamento está mais vulnerável a
bactérias e vírus, sofrendo as naturais
consequências?

Mutações dos germes

Para que possamos instituir medidas adequadas para


a prevenção e redução de doenças profissionais

199
Salvador Massano Cardoso

associada aos riscos biológicos, necessitamos de


conhecer as características dos germes, a sua
evolução e como se transformam rapidamente, já que
começam a resistir às terapêuticas existentes ou a
adquirir mutações virulentas. Situação preocupante,
face às novas características dos indivíduos.

Buraco 10/90

Necessitamos de investir em novos meios de


terapêutica, já que existe um buraco 10/90 entre o
mundo ocidental e os países em desenvolvimento. De
facto, 90% dos recursos existentes para a saúde são
despendidos para resolver 10% da patologia, que
afligem os primeiros, e apenas se despendem 10%
para os 90% da patologia que atingem os menos
favorecidos. A “vingança” do terceiro mundo paira
sobre as nossas cabeças e é bom que estejamos
atentos.

Viver na proximidade de um aeroporto internacional


ou trabalhar no mesmo é um risco para contrair o
paludismo.

200
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Medidas de prevenção

Necessitamos criar boas condições de trabalho, no


seu sentido mais lato, evitando o stress (utopia),
exposição profissional e favorecendo sempre que
possível a utilização de equipamentos e de protecção
individual.

Medidas de natureza ambiental, nomeadamente o


controlo de alterações climáticas, permitem evitar no
alastramento para latitudes mais longínquas de
velhas-novas doenças.

Necessitamos evitar que os interesses económicos


favoreçam a propagação de doenças infecciosas.
Basta recordar a poupança energética na renovação
do ar nos aviões e o risco - aumentado - de contrair
graves doenças infecciosas.

Conclusão

O mundo dos riscos biológicos exige cada vez mais


compreensão e estudo, já que novas interacções,
novos germens, novas condições de risco e novos
paradigmas, estão a emergir, complexizando uma das

201
Salvador Massano Cardoso

áreas mais interessantes e fontes de eternos


problemas, sem os quais, curiosamente, não
conseguimos sobreviver, porque traduzem um
baluarte da própria vida, apesar do risco de vida que
muitos de nós corre face à sua presença.

202
Notas de Saúde Pública e Ambiental

SEGURANÇA, HIGIENE E SAÚDE NO TRABALHO

A Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho constitui


uma das principais áreas de actividade humana por
vários motivos.

O trabalho é a realização máxima da nossa espécie.


Fomos desde muito cedo, em termos evolutivos,
“condenados” a ganhar o pão com o suor do rosto.
Mas não é preciso ganhá-lo à custa da doença, da
invalidez e da morte. Infelizmente, em muitas
situações, é mesmo assim. Se olharmos para o nosso
passado colectivo, verificamos facilmente que as
conquistas da humanidade, feitas à custa do trabalho,
foram em muitas circunstâncias, verdadeiros
genocídios laborais, que continuam, apesar de todos
os esforços em sentido contrário, nos nossos dias, em
todos os países e regiões com os seus figurinos
próprios.

Todos os esforços feitos no sentido da protecção da


saúde e da sua promoção relativamente ao trabalho
são bem-vindos. Muitas das conquistas da libertação
do homem tiveram como causas e consequências as
condições laborais. Não havendo tempo para ilustrar,
mesmo recentemente, estes aspectos, que foram

203
Salvador Massano Cardoso

mais mediatizados após a revolução industrial e


durante o século XIX – também designado pelo
século da liberdade -, passaremos ao tema que hoje
nos propusemos abordar: falar de segurança e saúde
no trabalho para jovens trabalhadores que vão entrar
na vida activa.

Esta temática é alvo prioritário dos responsáveis


europeus. A Comissão Europeia está atenta e a título
de curiosidade informo que na semana passada foi
publicado um relatório da Agência Europeia para a
Segurança e a Saúde no Trabalho sobre jovens
trabalhadores.

É do conhecimento geral que o número de jovens


está a diminuir em quase todos os Estados-Membros
devido à redução da taxa de natalidade. Seria de
esperar que, havendo menos jovens, houvesse mais
emprego. Mas não é o caso. O facto de haver menos
jovens trabalhadores tem a ver com o fenómeno
demográfico já citado, assim como ao prolongamento
e à generalização da formação, não esquecendo que
os jovens são vítimas preferenciais, se assim
podermos afirmar, da recessão económica.

Em 2005, cerca de 194 milhões de indivíduos


estavam empregados na UE-25, dos quais 20,4

204
Notas de Saúde Pública e Ambiental

milhões eram jovens. Estes representavam 10,5% da


força de trabalho. Quanto à taxa de desemprego esta
atingia 18,7% nos jovens ou seja mais do dobro da
taxa geral de desemprego (9%). Facto revelador que
nalgumas regiões chegava a atingir 59%! No nosso
pais atingia, em 2005, 16%.

São várias as áreas que pretendemos abordar,


embora de forma aligeirada: o emprego, obviamente,
o tipo de trabalho e respectivos locais, as diferenças
de género, a exposição aos riscos, as consequências
para a saúde e as necessidades de prevenção e de
investigação.

Uma boa politica é o primeiro passo para a


empregabilidade e para a adequada integração dos
jovens na sociedade e nas empresas, indispensável
ao seu bem-estar e saúde. Não esqueçamos que a
falta de emprego é fonte de doença, porque a par da
patologia dita profissional também há uma patologia
associada ao desemprego e à insegurança tão
marcantes nos nossos dias vitimando e cerceando as
legítimas aspirações dos mais novos.

A percentagem de jovens com emprego a tempo


inteiro na EU-25 era inferior aos restantes e tinham
mais contratos temporários (39% contra 14%). Em

205
Salvador Massano Cardoso

2005, um em cada quatro jovens trabalhadores tinha


emprego a tempo parcial. Os que estão nestas
circunstâncias têm menos oportunidade de formação
e de progressão na carreira, os níveis salariais são
mais baixos, têm menos benefícios da segurança
social, os trabalhos são geralmente monótonos, o
trabalho por turnos são mais frequentes, factos que
podem comprometer a saúde dos jovens.

Mas onde é que trabalham mais os jovens? Na UE-25


a taxa mais elevada de jovens trabalhadores ocorre
na hotelaria e restauração (22,7%) e no comércio
(16,3%). Em Portugal os três primeiros lugares são
ocupados pelo comércio (14,9%), hotelaria e
restauração (13,4%) e construção (12,5%).

Esta análise é muito importante pelas implicações em


termos de segurança e de saúde no trabalho. Baixos
salários, sazonabilidade do emprego, condições de
trabalho deficientes e desgaste físico intenso são uma
constante. Muitos destes sectores e profissões
caracterizam-se por riscos elevados de acidentes e
exposição a substâncias perigosas nos locais de
trabalho.

É difícil estabelecer diferenças entre os géneros em


termos de saúde e de exposição a riscos profissionais.

206
Notas de Saúde Pública e Ambiental

De qualquer modo, são mais os jovens do sexo


masculino a trabalhar do que do sexo feminino, 11,1
milhões de rapazes contra 9,3 milhões de raparigas.
Evidentemente que há profissões mais femininas e
outras mais masculinas não obstante a tendência
para uma equalização do género. Queria, no entanto,
chamar a atenção para o facto das raparigas serem
mais vulneráveis em termos de agressão. Não por
serem mais fracas, muito pelo contrário. As raparigas
são biologicamente mais resistentes que os rapazes,
mas, atendendo ao seu papel na reprodução, poderão
sofrer efeitos muito perniciosos comprometendo a
sua saúde reprodutiva e até a dos seus descendentes.
Estes aspectos são cada vez mais importantes numa
época em que as agressões ambientais em geral, e a
do ambiente de trabalho em particular, se revelam
perigosas para a nossa espécie.

A exposição aos riscos profissionais são múltiplos,


mas os mais comuns, a que estão expostos os jovens
trabalhadores, são físicos, caso de ruído, vibrações,
calor e frio e manuseamento de substâncias
perigosas. Os produtos químicos utilizados na
agricultura e na construção são preocupantes aos
quais se associam os utilizados na limpeza, os
solventes orgânicos e muitos outros com efeitos

207
Salvador Massano Cardoso

genotóxicos e cancerígenos nada desprezíveis.

Sabemos que estamos a envelhecer quando


aparecem certos sinais ou sintomas. Um deles diz
respeito à maldita dores nas costas. Pois bem, já não
é um sinal de envelhecimento, porque é tão comum
que começa a atingir as pessoas em idades cada vez
mais jovens. As perturbações músculo-esqueléticas
constituem a situação profissional mais comum a que
os jovens trabalhadores não estão isentos, fruto de
posturas e de actividades ergonómicas impróprias,
causando mal-estar, absentismo e reformas
prematuras relacionadas com as actividades
profissionais. Outro aspecto muito frequente tem a
ver com os fenómenos repetitivos causadores de
tendinites variadas que chegam a ser altamente
invalidantes. Vejam o uso intensivo de computadores
e dos ratos, só para dar um exemplo, para
rapidamente se aperceberem desta situação. Quem
sabe se entre os presentes não haverá alguém que
sofra ou tenha sofrido desta perturbante doença
reumatismal. E são jovens! Agora imaginem o que
poderá acontecer daqui a mais alguns anos.

O trabalho por turnos não é fisiológico, podendo


originar graves alterações que comprometem o
normal funcionamento do organismo e da mente.

208
Notas de Saúde Pública e Ambiental

O stress tem como principal fonte o trabalho. São três


os determinantes para o seu aparecimento: agressão
intensa e prolongada, falta de apoio social nas
empresas e ausência de capacidade de decisão.
Quando se associam é certo e sabido que o stress
emerge em toda a plenitude. Pois bem. Agressões
intensas não faltam. Falta de apoio social por parte
das empresas é uma constante. São muito poucas as
que desenvolvem esta área. Como é do conhecimento
geral o mobying – também conhecido por assédio
moral – ocorre com alguma frequência com o
objectivo de criar más condições ao trabalhador
levando a que este se despeça sem que a empresa
incorra na responsabilidade em o indemnizar. Esta
situação não é rara podendo atingir os 4 a 5%.
Desconhece-se qual o verdadeiro peso entre os
jovens trabalhadores. Mas deve existir, apesar das
condições de precariedade dos jovens quase o
dispensar. O terceiro determinante da origem do
stress laboral tem a ver com a ausência da
capacidade de decisão. Quando está limitada, e a
grande maioria dos jovens estão limitados em tomar
decisões, o stress aumenta. A presença desta
situação é muito comum e provoca vários tipos de
sofrimento psíquico e físico.

209
Salvador Massano Cardoso

Já que falámos de mobying, assédio moral, e de


stress, devemos falar, também, de assédio sexual.
Por exemplo, as jovens com empregos precários em
hotéis e empresas prestadoras de serviços têm muito
mais probabilidades de ser assediadas.

A sinistralidade laboral é uma realidade que,


felizmente, entre nós tem vindo a decrescer, embora
as taxas sejam ainda das mais elevadas, traduzindo
posturas e comportamentos de risco quer por parte
dos trabalhadores quer por parte dos empregadores.

Os dados nacionais e europeus revelam que os jovens


trabalhadores correm mais riscos de acidentes de
trabalho, em média 40% superior no grupo etário dos
18 aos 24 anos. No entanto, apesar dos acidentes
serem mais frequentes nos jovens os acidentes
mortais são menos comuns, o que não quer dizer que
nalgumas actividades, por exemplo, agricultura,
transportes e comunicações, possam ser
consideráveis.

No tocante às doenças profissionais os riscos dos


jovens trabalhadores são inferiores aos de mais
idade, na medida em que o factor tempo, exposição
ao risco, ter um papel fundamental no aparecimento
e no desencadear de muitas situações. As mudanças

210
Notas de Saúde Pública e Ambiental

constantes de emprego aliadas aos novos tipos de


contrato laboral, muitas vezes de curta duração,
levam a que as exposições a certos factores de risco
sejam reduzidas. No entanto, convém recordar que,
na globalidade, o somatório das diferentes exposições
não deixarão de ocasionar novos tipos de patologia
profissional fruto precisamente desta miscelânea de
riscos.

Mesmo assim é já possível fazer um pequeno balanço


sobre a frequência das doenças profissionais mais
frequentes. “As cinco principais doenças que afectam
os trabalhadores entre os 15 e os 35 anos na Europa
são as reacções alérgicas, a irritação da pele, as
lesões pulmonares, as doenças infecciosas e as lesões
músculo-esqueléticas. Cerca de 87% dos problemas
de saúde comunicados pelos trabalhadores,
associados a lesões pulmonares, e que causaram
mais de duas semanas de absentismo, diziam
respeito a trabalhadores com menos de 25 anos.
Quase metade (48,9%) de todos os problemas de
saúde comunicados pelos trabalhadores, associados a
stress, depressão e ansiedade, e que causaram mais
de duas semanas de absentismo diziam respeito a
jovens trabalhadores com menos de 25 anos”. Estes
últimos dados confirmam a frequência do stress e de

211
Salvador Massano Cardoso

outras perturbações psíquicas relacionadas com o


trabalho, para não falar das relacionadas com a falta
do mesmo.

Quais as causas para estes perfis de doenças e


acidentes profissionais? Podemos invocar as
seguintes: falta de experiência dos jovens,
imaturidade física e psicológica, falta de sensibilização
para os problemas de segurança e de saúde no
trabalho – formação muito deficiente a todos os
níveis – nas quais se integram também os
empregadores que não compensam estes aspectos
com prévia formação, supervisão e medidas de
protecção adequadas sobretudo aos jovens que
corram mais riscos.

“Os riscos relacionados com o trabalho a que estão


sujeitos os jovens trabalhadores devem ser
encarados com grande seriedade.

Muitos dos factores de risco continuam a ser


encarados como inerentes aos seus comportamentos
de risco ou à natureza temporária do seu trabalho. É
necessário adoptar medidas de enfoque específico no

ensino e na formação, bem como na prática


quotidiana dos locais de trabalho”.

212
Notas de Saúde Pública e Ambiental

O conhecimento dos principais riscos para a saúde


implica igualmente que os empregadores e os jovens
trabalhadores devam ser sensibilizados para esses
riscos.

Em termos práticos a Agência Europeia para a


Segurança e a Saúde no Trabalho propõe as
seguintes medidas:

identificar os sectores em que os jovens


trabalhadores correm mais riscos;

identificar os riscos com maior prevalência, para


aumentar a sensibilização dos empregadores e dos
jovens trabalhadores;

promover a sensibilização das agências de emprego


para os riscos a que os jovens trabalhadores estão
expostos;

formar inspectores do trabalho nos sectores que


empregam mais jovens e sobre os riscos que eles
correm;

ter em conta as necessidades especiais de grupos


específicos de jovens trabalhadores
(masculinos/femininos, migrantes, etc.);

dar especial atenção aos trabalhadores temporários e

213
Salvador Massano Cardoso

a tempo parcial. O aconselhamento deve referir a


importância de se dar especial atenção aos jovens
trabalhadores e de se transmitir orientações
específicas aos empregadores, aos inspectores e aos
serviços de prevenção;

incluir a questão dos jovens trabalhadores nas


orientações relativas ao trabalho por turnos;

recentrar as políticas de reabilitação e


empregabilidade dos trabalhadores acidentados de
forma a incluir os jovens trabalhadores;

integrar a SST no ensino. Isto é especialmente


importante para aqueles que ocupam empregos
precários, dado que recebem menos formação no
trabalho e são difíceis de alcançar.

A Comissão Europeia está atenta a estes problemas e


pede que os Estados-Membros se debruçam e
reconheçam a importância das novas doenças
profissionais que começam a proliferar de forma
inusitada com consequências imprevisíveis e custos
muito elevados para todos.

O tema que me tinha sido proposto para esta


conferência, “Hoje é o primeiro dia do resto da tua
vida”, encerra em si um simbolismo próprio de quem

214
Notas de Saúde Pública e Ambiental

vai iniciar uma nova etapa, a etapa do trabalho, fonte


de realização, de bem-estar, mas também de
sofrimento e até de morte. O tema é forte, agressivo,
provocador mas nem por isso inútil ou errado. Tentei,
ainda de que forma sumária, sem pretensões de dar
um qualquer curso de Segurança e Saúde no
Trabalho, abordar as principais problemáticas que se
colocam aos jovens trabalhadores e os riscos que
podem correr. A organização e os novos tipos de
trabalho aliados à falta de formação e de
sensibilização por parte dos intervenientes, assim
como dos responsáveis políticos e operacionais em
matéria de fiscalização das normas e regulamentos
em vigor, constituem as principais causas de doença
profissional e de acidentes com todas as
consequências previsíveis em matéria de saúde e de
bem-estar. Não faz sentido que o trabalho seja fonte
de doença, mas, na prática, o número de doenças
ligadas ao trabalho ou agravadas por este aumentam
assustadoramente contribuindo para um
encurtamento da nossa existência ou fazendo com
que passemos tempo a mais no estado de doentes.
Viver mais e viver com mais saúde é um desiderato
perfeitamente ao nosso alcance, desde que se
respeitem certas regras. Na prática a realidade é
outra, muito distinta, o que obriga a que todos nós

215
Salvador Massano Cardoso

tenhamos consciência desses factos adoptando as


respectivas medidas de prevenção, promovendo a
formação, assimilando novas culturas, obrigando os
responsáveis a cumprir com as suas obrigações
legalmente definidas mas nem sempre cumpridas, ou
seja, contribuindo e adquirindo novas posturas
compatíveis com as actuais formas de organização de
trabalho e travando o crescendo de novas patologias.

Sendo assim preferia que o tema desta conferência


fosse não “Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida”
mas: “Hoje é o primeiro dia de uma longa e saudável
vida”. O trabalho pode e deve contribuir para alcançar
este objectivo.

216
Notas de Saúde Pública e Ambiental

DESABAFO SOBRE A HIPERTENSÃO ARTERIAL

Quando os deuses criaram Gilgamesh, deram-lhe um


corpo perfeito. Shamash o Sol glorioso dotou-o de
beleza, Adad o deus da tempestade dotou-o de
coragem, os grandes deuses fizeram sua beleza
perfeita, sobrepassando a todos outros, terrífico como
um grande touro selvagem. Dois terços lhe fizeram
deus e um terço homem.(...).

Gilgamesh procurou durante toda a sua vida a


imortalidade, mas aquele terço tão humano não lhe
permitiu alcançá-la. Os deuses não eram burros!

Todos os esforços feitos pelo homem têm na sua


génese algo de semelhante, mas a doença e a morte
são inevitáveis. Sem doença não poderíamos
sobreviver, porque “A doença é um processo biológico
mais antigo que o homem. Antigo como a própria
vida, porque é um atributo da vida” (George Rosen).
Sendo assim, muitas das afecções que atingem os
seres humanos têm explicações remotas de cariz
evolutivo, e causas próximas sujeitas a análise,
diagnóstico, “correcção” e prevenção.

A hipertensão arterial não foge à regra e, muito

217
Salvador Massano Cardoso

provavelmente, há 500 milhões de anos, a criação do


sistema renina-angiotensina foi vital para a evolução
das espécies entre as quais o futuro homem que hoje
combate com fármacos um dos principais factores de
risco cardiovasculares a fim de viver mais e melhor.

Apesar de ser um dentro de centenas de factores,


tem a particularidade de que uma ligeira diminuição
da mesma se traduzir numa acentuada redução da
morbilidade e da mortalidade. Este aspecto é
relevante e talvez explique a discrepância verificada
entre a redução da mortalidade e a manutenção dos
valores da prevalência da hipertensão. Não se
observa redução do número de hipertensos, mas
estes passaram a ser “menos hipertensos”. Do
mesmo modo os hipercolesterolémicos passaram a
ser “menos hipercolesterolémicos” e a mesma
observação se poderia fazer para os diabéticos. Estes
fenómenos poderão explicar o “paradoxo português”,
redução da mortalidade sem que seja acompanhada
da redução da prevalência dos principais factores de
risco, à excepação do tabaco que tem vindo a
diminuir nos homens, mas não nas mulheres e do
aumento da obesidade.

Portugal constitui um pais de alto risco cardiovascular


devido sobretudo à elevada incidência e prevalência

218
Notas de Saúde Pública e Ambiental

dos AVCs.

A análise dos anos de vida perdidos por óbitos


devidos a AVCs antes dos 70 anos impede o viés dos
“certificados de óbitos”, permitindo calcular que,
anualmente, se perdem, em média, mais de 40.000
anos de vida contra os 32.000 anos de vida perdidos
devido a doença coronária. Sabendo de antemão do
desfasamento etário destes dois tipos de rubrica,
ocorrência mais cedo na doença coronária versus
AVC, é fácil de compreender a importância desta
última no contexto nacional.

Apesar da paradoxal evolução de muitos factores de


risco em Portugal, aumento nos últimos anos do
consumo calórico, da prevalência da diabetes, da
hipercolesterolemia e da obesidade acompanhados de
fraca redução da prevalência da hipertensão arterial e
do consumo do tabaco, a mortalidade cardiovascular
está a diminuir. A explicação para este fenómeno
pode ser encontrada no facto da prevenção
secundária estar em franca evolução, não obstante o
facto de estar muito longe das suas reais
possibilidades. Mesmo assim, deverá ser a principal
explicação para o fenómeno. Vários estudos já
realizados apontam para esta tese.

219
Salvador Massano Cardoso

O combate e a prevenção da hipertensão arterial


constituem pontos-chave para minimizar este
problema. Neste momento, entre nós e dentro do
grupo etário dos 55 aos 84 anos, mais de 400.000
indivíduos (de uma população ao redor dos
2.500.000) correm o risco de vir a sofrer um AVC nos
próximos 10 anos. Sabendo da impossibilidade em
eliminar esta causa, é no entanto possível quantificar
o número de indivíduos que, beneficiando de uma
correcção dos seus valores tensionais, graças aos
actuais recursos, ficariam “isentos” de um AVC: cerca
de 175.000, cifra suficientemente elevada para a
tomarmos em linha de conta.

A política da prevenção da hipertensão arterial passa,


entre as medidas ditas clínicas, por medidas de cariz
político-social.

A hipertensão arterial é muito prevalente em


Portugal. Num recente estudo coordenado por nós,
W-Risk – Alterações Ponderais e Situações de Risco
em utentes do S.N.S., realizado em parceria com a
Associação de Médicos de Clínica Geral, foi possível
verificar que, numa amostra representativa de
utentes (cerca de 15.000) com idade igual ou
superior a 18 anos, a prevalência padronizada para a
população portuguesa era de 33%. Esta cifra

220
Notas de Saúde Pública e Ambiental

explicará em grande parte o grave problema das


doenças cardiovasculares em Portugal.

Estudos epidemiológicos revelam que um dos


principais factores responsáveis pela hipertensão tem
a ver com o consumo do sal. Neste momento, e na
sequência de estratégia de prevenção a nível
mundial, torna-se imperioso reduzir o consumo de sal
dos 9 a 12 g/dia para 5 a 6 g/dia. Importa esclarecer
que Portugal se encontra no limite superior, com o
pormenor de muitos portugueses ultrapassarem, e
em muito, o consumo dos 12 g/dia de sal. Uma
redução da ordem de grandeza enunciada permitiria
reduzir a pressão arterial de 7,2 a 11,2 mmHg para a
tensão arterial sistólica e 3,8 a 6,4 mmHg para a
tensão arterial diastólica nos hipertensos. Os
normotensos também sofreriam uma diminuição
significativa. Estas reduções seriam suficientes para
permitir salvar muitos milhares de vidas todos os
anos.

Num inquérito recente, destinado a avaliar os


conhecimentos e a relação do sal com a hipertensão
arterial, foi possível chegar às seguintes conclusões:
cerca de 77% dos hipertensos que tomam
medicamentos também fazem dieta com pouco sal,
dos quais 79% foi por indicação médica. Chamamos

221
Salvador Massano Cardoso

a atenção para o facto de 66% dos portugueses


considerarem as suas dietas normais em sal e 26%
considerarem mesmo pouco ricas! Só 7,6% é que
consideram a dieta muito rica. Provavelmente os que
consideram a dieta como pouco rica são precisamente
aqueles que adoptaram uma dieta mais pobre em sal,
devido à sua condição de hipertensos. Além do mais,
77% sabem que os alimentos pré-confeccionados, e
muitos produtos que compram nos mercados, têm
teores elevados de sal, ao passo que 23% não têm
opinião ou desconhecem mesmo.

No tocante à relação entre a tensão arterial elevada,


o consumo do sal e as doenças cardiovasculares
podemos afirmar que está perfeitamente identificada
na nossa população, já que 94% demonstram ter
esses conhecimentos.

Relativamente à opção de alimentos com teores


menos elevados de sal por parte dos portugueses
verificamos que 79% fariam essa opção contra 7,3%,
o que significa que a rotulagem dos alimentos, no que
respeita à indicação dos teores de sal, seria muito
bem-vista, já que 91% apoiam esta ideia.

Há de facto um conhecimento adequado sobre a


problemática do sal, hipertensão arterial e acidentes

222
Notas de Saúde Pública e Ambiental

vasculares cerebrais entre os portugueses, assim com


um “desejo” em modificar os seus hábitos, reduzindo
a ingestão de sal e procurando alimentos mais sadios,
facto que associado à prevenção médica secundária
originaria a curto prazo mudanças ainda mais
substanciais na morbi-mortalidade cardiovascular em
Portugal.

O homem, sendo dotado de percepção temporal,


uma das dimensões que o distingue de outras
espécies, necessita de referências, de datas, de
rituais, em que o tempo é dono e senhor. O
compasso temporal, não obstante as recordações
negativas entremeadas com alguns momentos de
felicidade, tranquiliza-nos na angústia permanente
da nossa existência.

As datas traduzem vida, morte, dor, felicidade,


momentos históricos e religiosos, orgulho,
identidade, iniciação… Enfim, tudo ciranda ao redor
de uma construção humana.

Os detractores dos dias nacionais ou internacionais


recusam-se a aceitar, na maior parte dos casos
mais uma artificialidade, ironizando, que, não tarda
muito se acabe por esgotar os poucos ainda

223
Salvador Massano Cardoso

disponíveis. Mas, não podemos deixar de salientar,


o facto de, pelo menos, nos obrigar a reflectir, a
conhecer, a identificar, a focar, ainda que
momentaneamente, a nossa irrequieta e saturada
atenção sobre alguns dos muitos problemas que
atormentam e penalizam as comunidades.

Em 2004 foi instituído pela primeira vez, em


Portugal, o Dia Nacional dos Acidentes Vasculares
Cerebrais, em 31 de Março, com o objectivo de
chamar a atenção para este flagelo médico-social.
A par deste dia, muitos outros já foram criados no
âmbito das doenças cardiovasculares.

Ir directamente a uma das principais causas


parece-nos ser evidente, plausível e com sucesso
garantido. Assim, não obstante a importância e o
significado do sal nas nossas vidas e na própria
evolução das espécies, seria curial a
implementação de um DIA DO SAL - CONVITE A
UMA UTILIZAÇÃO MAIS RACIONAL.

Até se poderia propor o 27 de Março ou o 24 de


Setembro. No primeiro caso corresponderia à
morte de São Ruperto, primeiro bispo de
Salzburgo. No segundo caso coincidiria com o

224
Notas de Saúde Pública e Ambiental

feriado da cidade de Salzburgo, antiga cidade


romana Juvavum, cidade do sal, sal que constitui o
símbolo de Ruperto, Apóstolo da Bavaria e Caríntia.
As relíquias do santo foram removidas para o altar
da nova catedral em 24 de Setembro de 1628.

Falar do sal, é falar da hipertensão. É falar dos


acidentes vasculares cerebrais. É falar do enfarte
do miocárdio. É falar das principais causas de
doença e de morte em Portugal. É falar da principal
causa de invalidez. É falar de tragédias humanas e
familiares. É falar de uma epidemia silenciosa em
termos políticos, mas gritante e exasperante para
as vítimas e suas famílias. É falar de projectos de
vida interrompidos conflituando, em muitos casos,
com uma auto-imagem negativa e uma humilhante
necessidade de ajuda de terceiros.

O problema dos acidentes vasculares cerebrais não


pode e nem deve cingir-se ao foro médico ou aos
cuidados de enfermagem ou familiares. Trata-se de
um problema de carácter individual, assente em
responsabilidades colectivas, influenciado por
factores económicos, culturais e, até, quem diria,
políticos!

225
Salvador Massano Cardoso

Anualmente morrem mais de 20.000 portugueses


só por acidentes vasculares cerebrais. Estamos a
falar de morte, que é um epifenómeno. Se
tomarmos em linha de conta o número de AVCs,
dos quais, cerca de um quarto se manifesta através
da morte e outros 25% por incapacidades graves,
necessitando a ajuda de terceiros, torna-se fácil
compreender o impacto desta entidade. Acresce
que, em Portugal este fenómeno é particularmente
violento, face aos restantes países comunitários.

As razões subjacentes a esta problemática são bem


conhecidas. Dentro dos múltiplos factores,
destacamos o consumo excessivo de sal, tão
característico do povo português, o não controlo
efectivo da hipertensão arterial, cuja elevada
prevalência é deveras preocupante e, os consumos
excessivos de álcool e do tabaco.

Apesar da tendência para a redução da mortalidade


verificada nas últimas duas décadas, mesmo assim,
a situação não deixa de ser dramática.

Muitos dos factores enunciados têm a ver com


hábitos e comportamentos pessoais, os quais,
paradoxalmente, se agravaram ou não sofreram

226
Notas de Saúde Pública e Ambiental

modificações significativas.

A necessidade de educar e informar os portugueses


a diferentes níveis é indispensável. Mas, a par das
medidas educacionais e informativas, as quais são
muito limitadas e, quase sempre restringidas à
área do foro da saúde, torna-se imperioso outras
atitudes que se revistam de carácter político.
Iniciativas legislativas que limitem o teor de sal dos
alimentos pré-confeccionados são vitais, já que
uma pequena redução do teor deste produto, na
ordem dos 10%, por exemplo, é susceptível de
uma redução substancial da morbimortalidade,
mesmo a curto prazo, sem implicar alterações de
fundo da qualidade e sabor dos produtos em causa.
É pena que certos opinadores da nossa praça ao
arvorarem-se em defesa das liberdades e lutando
contra correntes “fascizantes” que procuram
regulamentar comportamentos diversos pondo em
paralelo, por exemplo, a luta contra o tabaco e a
lei “contra o sal” fossem mais honestos ou menos
ignorantes, já que as medidas de carácter
legislativo a serem tomadas terão como objectivo a
rotulagem ou a redução da concentração dos
alimentos pré confeccionados permitindo que

227
Salvador Massano Cardoso

milhares de toneladas de sal deixem de percorrer,


anualmente, o nosso sistema sanguíneo reduzindo
os riscos cardiovasculares. Quanto aos “doutos”
fazedores de opinião têm todo o direito em ingerir
o sal que lhes aprouver respeitando não só a sua
liberdade de escolha mas também exprimir a sua
estupidez e que São Ruperto os proteja.

A restrição do uso de sódio deve associar-se à do


álcool cujo consumo excessivo está intimamente
associado com esta patologia. As medidas
enunciadas no Plano Nacional de Saúde podem
contribuir para minimizar o problema. Mas, as
medidas não passam só por estas vias. O
aconselhamento na confecção adequada dos
alimentos constitui um factor de promoção de
saúde cardiovascular. A par destas medidas,
destacamos a necessidade de uma utilização e
controlo mais eficiente da hipertensão arterial, a
qual exige não só o concurso da classe médica,
mas também uma adequada aderência à
terapêutica e, consequentemente, uma política de
medicamentos virada para esta patologia. Não
podemos esquecer que se trata de uma situação
crónica, a qual exige o concurso de medicamentos

228
Notas de Saúde Pública e Ambiental

consentâneos com a capacidade económica das


pessoas, que, na sua grande maioria não dispõem
de meios necessários. Acresce o facto de 50% não
aderirem à terapêutica com os inevitáveis
resultados negativos.

No entanto, o fenómeno, apesar de ser passível de


redução, é inevitável. Para os casos não passíveis
de prevenção, realça-se a necessidade de uma
terapêutica o mais rápido possível, sobretudo nas
primeiras três horas, de forma a aproveitar a
abertura de uma janela passível de controlar as
consequências. Esta prática exige o concurso de
conhecimentos por parte da população e a
disponibilidade dos serviços de urgência, através de
vias preferenciais.

Mesmo assim, irão ocorrer casos, por vezes graves,


que exigem o concurso de terceiros. Para o efeito,
a existência de estruturas sociais de reabilitação e
de assistência são essenciais.

A falta de uma rede capaz de cobrir estas


necessidades tem impacto a vários níveis,
nomeadamente familiar.

Em jeito de conclusão e apesar da evolução positiva

229
Salvador Massano Cardoso

da mortalidade cardiovascular em Portugal, não


podemos considerar o nosso país como de baixo
risco, pelo contrário, devido ao facto dos principais
factores de risco não terem sofrido a diminuição
esperada, até aumentou a prevalência de alguns
deles, apontando para um eventual agravamento. No
entanto, face ao arsenal terapêutico, ao nosso dispor,
é possível contrariar este efeito, já que a terapêutica
não está a ser efectuada de acordo com o seu
potencial. Assim, poderemos observar uma
estabilização nos próximos anos, a qual deverá sofrer
um desequilíbrio, perfeitamente explicável pelo
envelhecimento acentuado da população. Neste caso,
os acidentes vasculares sofrerão um agravamento
nas idades mais avançadas, o que não é nada mau. É
que morrer de doença vascular é a melhor forma de
morrer, sobretudo quando ocorre de forma súbita,
pois que as alternativas que estão ao nosso dispor,
não são nada agradáveis.

“Enkidu morre, e Gilgamesh, inconsolável, parte para


uma viagem em que espera encontrar o único homem
que lhe pode dizer como vencer a morte”…

230
Notas de Saúde Pública e Ambiental

O TABACO MATA SOB TODAS AS FORMAS"1

A história da introdução do tabaco na Europa está


associada a medidas restritivas e punitivas. Basta ver
o que aconteceu a Rodrigo de Jerez, membro da
tripulação de Colombo, quando começou a passear
pelas ruas de Sevilha a deitar fumo pelo nariz e pela
boca: acabou por ser preso nos calabouços da
Inquisição, onde passou sete anos, por ter
manifestado sinais, inequívocos, da presença do
diabo. Provavelmente nunca mais deve ter tido
vontade de fumar nos restos dos seus dias. Mas as
medidas de combate aos fumadores não ficaram por
aqui. Desde Murad IV, sultão louco de
Constantinopla, que se entretinha a perseguir, a
esquartejar, a enforcar e a entregar os fumadores aos
inimigos, passando pelas chicotadas do primeiro dos
Romanov, em Moscovo, até às atitudes, mais
civilizadas, diga-se de passagem, de combate ao
tabaco pelo rei Jaime I de Inglaterra que chegou a
taxar em mais de 4.000% o tabaco, não foi possível
travar este fenómeno que, em poucas décadas,

1
Dia Mundial sem Tabaco – 31 de Maio de 2006

231
Salvador Massano Cardoso

avassalou por completo a Europa e o resto do Mundo.


Acresce ainda que as eventuais propriedades
curativas do tabaco, num mundo desprovido de meios
terapêuticos adequados, contribuíram para a sua
popularização.

Em poucos séculos originou a maior epidemia de


toxicodependência jamais verificada à escala global.

Apesar de nas primeiras décadas do século XX


começarem a aparecer evidências bastante negativas
do seu uso, particularmente na Alemanha, onde
medidas de prevenção e combate ao tabagismo
precederam em muitos anos a abertura oficial de luta
contra o tabagismo, em 1964, mesmo assim estamos
muito longe de atingir os tais mínimos aceitáveis de
fumadores. É certo e sabido que muito dificilmente se
conseguirá erradicar algum dia este fenómeno. O que
importa é tomar consciência do fenómeno e
minimizá-lo a níveis tão baixos quanto possível.

Durante o século XX o tabaco matou 100 milhões de


pessoas no nosso planeta. Esta cifra é aterradora,
bastando para o efeito compará-la com os mortos das
Grandes Guerras e outros conflitos armados ou
mesmo com as pandemias de gripe verificadas.
Muitos estudos, campanhas e medidas têm sido

232
Notas de Saúde Pública e Ambiental

desenvolvidos com vista à luta e prevenção do


tabagismo. Resta saber se as medidas entretanto
anunciadas e aplicadas têm sido acompanhadas da
redução da mortalidade e da morbilidade tabágica.
Face a alguns indicadores entretanto publicados
poderíamos ficar entusiasmados com os resultados.
Mas não podemos, apesar de nalguns países se ter
verificado redução apreciável do número de
fumadores, esperar grandes mudanças à escala
global. De facto, a indústria do tabaco está de pedra
e cal, pelo menos no decurso do presente século. De
acordo com as estimativas da O.M.S. o número de
mortos que irão ocorrer no século XXI não serão 100
milhões, nem de perto, nem de longe, mas qualquer
coisa como 1.000 milhões!

Recentemente, surgiram novos problemas


relacionados com o tabaco, caso do fumo passivo. Foi
em 1976 que teve início a luta contra a contaminação
do tabaco no local do trabalho, graças ao papel de
Donna Shimp, empregada de uma companhia norte-
americana de telefones, que exigia um lugar de
trabalho sem fumo. O caso acabou no tribunal e
ganhou a causa. A luta contra o tabagismo passivo,
inicialmente considerado mais como um incómodo,
acabou por resvalar, ao fim de alguns anos e de

233
Salvador Massano Cardoso

muitas peripécias, como é de esperar, sempre que


estejam em confronto os direitos de fumadores e não
fumadores e os interesses da poderosa indústria,
para a proibição em vários locais. Hoje, está
documentado que o fumo passivo contribui para
aumentar o risco de cancro e de doenças
cardiovasculares em 30%. Só por si este facto obriga-
nos a reflectir sobre a responsabilidade dos
fumadores que insistem em contaminar o meio
ambiente de trabalho e de espaços de lazer públicos.
Quantas e quantas pessoas não deverão ter adoecido
e falecido graças à agressão tabágica de terceiros. É
preciso proteger os não fumadores. Competirá às
autoridades essa missão. A este propósito, o Dr.
André Dias Pereira ilustrará a importância da
legislação. A forma, muitas vezes egoísta, de muitos
fumadores não respeitarem a saúde e o bem-estar
dos não fumadores tem efeitos altamente nocivos nos
próprios familiares e descendentes. Esta atitude tem
os seus paladinos que, de forma verdadeiramente
despudorada, tal como aconteceu recentemente
numa crónica de Vasco Pulido Valente que, fazendo
uso da sua coluna, mandou recados ao senhor
ministro da Saúde, dizendo-lhe que não havia
quaisquer evidências cientificas de que o fumo
passivo fizesse mal a saúde. Isto a propósito da

234
Notas de Saúde Pública e Ambiental

proposta legislativa. A partir deste pressuposto é fácil


de compreender o que vinha a seguir. É verdade.
Evidências científicas apontam para riscos acrescidos
de doenças nos seus descendentes mesmo que estes
nunca venham a fumar. Os efeitos epigenéticos da
acção do tabaco acabam por se propagar aos
descendentes provocando-lhes doenças para as quais
não deram o seu contributo. Quem diria que um neto
possa ainda vir a sofrer as consequências do facto do
avô ter passado a vida a fumar, mesmo que o pai
nunca tenha sido fumador? A nossa responsabilidade
não se esgota na nossa geração mas estende-se às
gerações futuras, facto que nos obriga a reequacionar
a forma de encarar determinados fenómenos e
comportamentos.

Um dos aspectos mais comummente disseminados


entre a população de fumadores prende-se com o
conceito de, se fumarem pouco, apenas alguns
cigarritos por dia, não virão a sofrer graves
consequências. Conceito errado, já que o tempo de
exposição, por exemplo no cancro do pulmão, é mais
poderoso do que o número de cigarros fumados. Para
este tipo de cancro não há um limiar abaixo do qual a
exposição ao tabaco não aumente o risco. Um cigarro
diariamente consumido durante longo tempo

235
Salvador Massano Cardoso

aumenta o risco. Não há "petits fumeurs". O objectivo


é terminar o consumo e a exposição ao fumo do
tabaco.

Os esforços neste sentido estão consubstanciados na


Convenção Contra o Tabaco. Com este tratado, a
publicidade, a promoção e os patrocínios serão
proibidos e a saúde pública ficará protegida das
interferências da indústria.

Não tenho, pessoalmente, grande estima ou


admiração pelo ditador Fidel Castro que deixou de
fumar em 1986. Mas, não podia deixar de o invocar
pelo facto de ter proibido o consumo de tabaco nos
locais públicos, precisamente, na ilha produtora dos
famosos “habanos”. E, consciente dos malefícios,
apresenta um argumento digno de um génio: “ a
melhor coisa a fazer é dá-los (tabaco) ao teu
inimigo”. Mesmo assim, não acredito que os
prisioneiros políticos de Cuba estejam a receber
caixas de charutos!

Conscientes dos graves problemas resultantes do


consumo de tabaco, os cientistas fazem todos os
possíveis para contrariar esta tendência que atinge
particularmente os jovens. Realmente, se um
indivíduo não começar a fumar antes dos 20 anos as

236
Notas de Saúde Pública e Ambiental

probabilidades de se tornar fumador é muito baixa.


Logo, além das medidas educativas e legislativas há
quem preconize a utilização de vacinas anti-tabaco. O
processo consiste em imunizar as crianças com
super-vírus, os quais induzirão a produção de
proteínas capazes de bloquear ou reduzir os efeitos
das substâncias.

Aparentemente, o objectivo é muito louvável, criando


expectativas de segurança entre todos os agentes
envolvidos, as potenciais vítimas, as famílias e o
próprio estado. No entanto, podemos questionar
sobre a legitimidade ética de um processo desta
natureza. Não estamos a lidar com agentes invisíveis
perante os quais somos indefesos. Estamos a lidar
com efeitos de comportamentos adquiridos. Fumar é
uma questão de opção pessoal. Sofrer sarampo ou
poliomielite é uma fatalidade. É fácil perceber
quantos interesses estão em jogo, facto que augura
boas perspectivas para alcançar os objectivos em
curso. No entanto, terá que haver um longo e
profundo debate sobre este assunto, porque a medida
proposta pressupõe uma aplicação prática da tirania
da saúde, com a consequente diminuição da liberdade
individual. E a este propósito não posso, nem devo,
deixar de alertar para as terríveis consequências da

237
Salvador Massano Cardoso

intromissão da moral na saúde, a qual poderá


provocar graves discriminações.

O caso paradigmático conta-se em poucas linhas e


ocorreu há 13 anos, no Reino Unido.

Um homem a quem foi recusado efectuar testes para


a realização de um bypass cardíaco morreu, vítima de
enfarte. A recusa baseou-se no facto de ser fumador.
Só lhe faziam os exames se deixasse de fumar.
Perante esta exigência acabou por abandonar o vício
o que permitiu ao seu médico marcar para o dia 19
de Agosto a realização dos testes. Tarde demais
morreu dois dias antes.

O caso de Harry Elphick desencadeou um vivo debate


no Reino Unido. Até que ponto os médicos podem
tomar atitudes destas? A exigência do clínico baseou-
se em conceitos moralistas e não em critérios
médicos. É certo que o tabaco é um importante factor
de risco cardiovascular e não só. É certo que muitas
pessoas precisam de cuidados terapêuticos. É certo
que os custos com os cuidados de saúde aumentam
de forma exponencial. Mas não é correcto cercear
cuidados com base em princípios que violem os
direitos dos seres humanos.

Ao fim de mais de uma década, as autoridades de

238
Notas de Saúde Pública e Ambiental

saúde britânicas propõem que não sejam ministrados


tratamentos médicos aos doentes que recusem
modificar os seus estilos de vida não saudáveis.
Assim, se um fumador recusar abandonar os seus
hábitos, é-lhe vedada a cirurgia cardíaca, a menos
que faça uma promessa nesse sentido.

A moralização da medicina é um perigo real. Um dia


poderá acontecer que uma pessoa não tenha acesso
ao tratamento, porque, no entender da medicina
moralista, o cidadão bebe álcool, fuma, não tomou os
respectivos cuidados nas suas relações sexuais, não
usava o capacete de protecção no local de trabalho,
continua a ser um desbragado à mesa, passa a maior
parte do tempo sentado face ao televisor…

Combater estilos de vida não saudáveis é uma


obrigação dos responsáveis. Proibi-los ou tomar
atitudes discriminatórias é um erro e um sério perigo.
O melhor é alterar aquele princípio de que ninguém
deverá ser discriminado em função da raça, sexo,
idade, religião, estado socioeconómico,
acrescentando-lhe: ”nem em função dos seus vícios
públicos ou privados”. Se este último aspecto tivesse
sido tomado em linha de conta talvez Harry Elphick
não tivesse falecido aos 47 anos de idade….

239
Salvador Massano Cardoso

O tema desta conferência, “tabaco: mata sob todas


as suas formas”, exige, apesar de não ter feito uma
listagem das várias formas de matar, as quais irão
ser alvo das imagens chocantes que alguns
pretendem colocar nos maços de cigarros, uma
abordagem ao problema do terrorismo.

O contrabando do tabaco é um dos mais poderosos


negócios, movimentando muitos milhões e milhões de
euros, grande parte dos quais subsidiam movimentos
terroristas internacionais. Os esquemas que são
montados, por esse mundo fora, não são
complicados, sobretudo os norte-americanos, facto
curioso, já que são um dos alvos preferenciais do
terrorismo.

Num mundo em que a violência e o crescente número


de vítimas decorrentes de atentados é uma triste
realidade, importa que sejam tomadas todas as
medidas de carácter preventivo. No caso concreto do
consumo de tabaco, é bom que se saiba que os
cidadãos que não cumpram as suas obrigações fiscais
e legais, quer a nível dos consumidores, quer a nível
de revendedores, poderão estar a contribuir para
financiar grupos de terroristas. Afinal, não pudemos
esquecer que, quando alguém puxar de um cigarro,
está a prejudicar não só a sua saúde, mas também a

240
Notas de Saúde Pública e Ambiental

saúde dos que partilham o seu espaço e, no caso de


fumar tabaco de contrabando pode também estar a
ajudar a montar um armadilha ou bomba em
qualquer parte do globo.

241
Salvador Massano Cardoso

242
Notas de Saúde Pública e Ambiental

OBESIDADE INFANTIL E DO ADOLESCENTE

A Fundação Portuguesa de Cardiologia elegeu para


este ano (2004) a obesidade como tema de reflexão e
discussão. A escolha traduz a preocupação face a
uma situação cada vez mais prevalente e susceptível
de directa e indirectamente originar sofrimento e
morte através de múltiplas maleitas, dentro das quais
salientamos as doenças cardiovasculares. Não pondo
de parte outras patologias, nomeadamente certas
formas de cancro e a diabetes, convém destacar a
necessidade de definir um conjunto de directivas
susceptíveis de contrariar um dos aspectos mais
emblemáticos das sociedades desenvolvidas, que está
indissociavelmente ligada à patologia cardiovascular.
Convém, ainda que de uma forma breve, tecer
algumas considerações sobre as razões subjacentes a
esta anomalia.

Presumo que todos se identifiquem com a afirmação


de que os dois principais motores que estão na base
da nossa existência são a sexualidade e a
alimentação. E, em questão de prioridade, podemos
até conceder a primazia à alimentação. É fácil de
compreender que a fome desvie todas as energias na

243
Salvador Massano Cardoso

busca de alimentos. Primeiro, garantir a


sobrevivência individual e em seguida a sobrevivência
da espécie. Sendo assim, é perfeitamente
compreensível que, em termos evolutivos, as
diferentes espécies fossem seleccionadas de modo a
serem portadoras de genes ditos “económicos”.

Num mundo altamente competitivo, as


disponibilidades não abundavam e, em muitos sítios,
continuam a não abundar, de forma que o ser
humano, assim como muitas outras espécies, estão
preparados para viverem na penúria e não na
abastança. Tudo se alterou, quando o homem
conseguiu controlar e produzir mais alimentos.

A segunda grande revolução alimentar, traduzida pelo


nascimento da agricultura – a primeira foi a utilização
do fogo – não foi suficiente para originar a
abundância necessária, susceptível de provocar um
aporte excessivo aos nossos organismos. Mesmo após
a conquista de armazenamento dos alimentos, de
forma a contrabalançar os anos de penúria, não foi
suficiente para promover o aparecimento da
obesidade à escala global. A democratização da
obesidade é muito recente. Mesmo muito recente,
sobretudo em Portugal. Só na segunda metade do
século XX, por razões óbvias, é que os portugueses

244
Notas de Saúde Pública e Ambiental

começaram a ficar “rechonchudos e rechonchudas”.


Nas primeiras décadas do século passado, a fome, em
Portugal, era uma realidade protagonizada por
muitos. Os menos novos ouviram as desventuras e as
histórias contadas pelos familiares a propósito da
fome. Para ilustrar esta afirmação, e com base em
dados estatísticos, podemos afirmar que em 1937 o
consumo calórico médio dos portugueses oscilava ao
redor das 2.100 calorias. Valor baixo e, se
atendermos que se tratava de um valor médio,
significa que muitos chegavam a passar fome. Mas,
60 anos depois, em 1997, o consumo calórico médio
atingia as 3.550 calorias, ou seja um aumento da
ordem dos 65%.

Em cada 3,5 segundos, no Terceiro Mundo, morre um


ser humano devido á fome, sobretudo crianças.
Contraste obsceno com o que se passa no Ocidente
civilizado com percentagens elevadas de crianças e
adolescentes a sofrerem de excesso de peso.

Nos E.U.A 10% dos jovens são obesos e 30%


apresentam excesso de peso, enquanto no Norte da
Europa 20% sofrem excesso de peso, valores
inferiores aos do Sul com 20 a 35%. As crianças e
jovens portugueses só muito recentemente é que
começaram a engordar. De facto, num estudo

245
Salvador Massano Cardoso

efectuado há 22 anos, em mancebos da região


Centro, verificámos que ainda havia magreza. Cerca
de 18% eram magros e, numa análise mais
pormenorizada, nalgumas regiões as percentagens
eram substancialmente superiores. Nesse mesmo
estudo, 9,3% já apresentavam excesso de peso e
apenas 0,8% eram considerados obesos. Estes dados
reportam-se há duas décadas. Hoje, o panorama é
substancialmente diferente.

Os autores de um estudo, liderado pela professora


Cristina Padez, da Universidade de Coimbra,
concluíram que 31,5 por cento das crianças
portuguesas entre os sete e os nove anos têm
excesso de peso ou obesidade. A situação é
particularmente grave nas meninas. Não é de esperar
que aos 20 anos, os rapazes portugueses estejam
mais elegantes do que há duas décadas. Hoje em dia,
a problemática da obesidade estende-se também à
primeira infância. Uma investigação médica feita na
Grã-Bretanha permitiu concluir que mais de 20% das
crianças menores de 4 anos estão acima do peso
ideal e 10% do mesmo grupo já são classificadas
como clinicamente obesas. A investigação, liderada
pelo Dr. Peter Bundred, da equipa médica da
Universidade de Liverpool, examinou mais de 50 mil

246
Notas de Saúde Pública e Ambiental

crianças dos 0 aos 4 anos. O estudo, publicado no


British Medical Journal, concluiu que a percentagem
de crianças com o peso acima do normal passou de
14,7% em 1991 para 23,6% em 2004. No mesmo
período a percentagem de crianças obesas na
população britânica aumentou de 5,4% para 9,2%.
Este autor afirmou: “Já tínhamos verificado que
actualmente os adolescentes estavam a engordar
mais rapidamente, mas esta é a primeira vez que o
aumento de peso se verifica também durante a
primeira infância."

Os últimos relatos sobre a obesidade infantil são


muito preocupantes, mesmo dramáticos. O que fazer?
Ensinar, educar, aconselhar, ter cuidados com a
escolha de alimentos, não têm tido resultados
positivos. A enorme variedade e disponibilidade de
produtos alimentares, associada a uma intensa e
agressiva publicidade, complementada por um
sedentarismo infantil, resultante da exposição às
novas tecnologias, que absorvem e roubam o tempo
às crianças, impedem que estas se desenvolvam de
forma harmoniosa e saudável. Proibir a publicidade
de certos alimentos, obrigar à rotulagem de
perigosidade de outros, com a indicação expressa de
que são prejudiciais às crianças, poderá incomodar

247
Salvador Massano Cardoso

muita gente. É certo que a obesidade é um


verdadeiro problema social com consequências
médicas gravíssimas. Apesar da oposição esperada de
muitos que irão afirmar que não há alimentos
saudáveis ou não saudáveis, mas sim dietas salutares
ou não salutares, de acordo com as opções das
pessoas e da posição dos responsáveis pela
publicidade de que esta não aumenta o consumo
(então podemos perguntar por que a fazem!), é
urgente a tomada de medidas legislativas que
permitam travar e inverter este fenómeno,
susceptível de transformar as crianças em bombas de
gordura, anunciadoras de graves explosões.

A Organização Mundial de Saúde estabeleceu em 21


de Maio de 2004 um acordo sobre uma resolução
para combater a obesidade no mundo. A Estratégia
Global sobre Dieta, Actividade Física e Saúde,
subscrita por mais de 170 países na última
conferência da OMS, em Genebra realizada em 17 de
Junho de 2004, visa, entre outros objectivos,
aumentar o consumo de frutas e hortaliças, no
mínimo 400 gramas ou cinco porções diárias. Assim
como, incluir na alimentação diária os legumes,
cereais integrais e sementes; aumentar a quantidade
de actividade física para o mínimo de 30 minutos

248
Notas de Saúde Pública e Ambiental

diários (mínimo cinco dias na semana); diminuir o


consumo de gorduras saturadas e gordura do tipo
trans e substituí-las por gorduras insaturadas,
mantendo um limite para a ingestão total; reduzir a
ingestão de carnes gordas, leite integral e derivados;
reduzir a ingestão de açúcares, sacarose para o
máximo de 10% das calorias totais ideais para uma
dieta adequada; reduzir o consumo de sal,
observando o conteúdo de sódio dos produtos
industrializados e apoiar e incentivar a amamentação
natural exclusiva durante os seis primeiros meses de
vida da criança e orientar a partir dessa época as
práticas saudáveis de alimentação do lactante e da
criança pequena. A situação é de tal ordem que, caso
continue a agravar-se, é muito provável que, nalguns
países, a obesidade ultrapasse o tabaco como a
principal causa de mortes evitáveis. Esta afirmação
dá uma ideia muito precisa sobre a problemática da
obesidade no mundo ocidental.

No passado mês de Maio, na reunião do American


College of Cardiology foi afirmado que o número de
crianças com diabetes do tipo 2 ultrapassou a
diabetes juvenil do tipo 1 (E.U.A). Facto inaudito e
impensável que pudesse ocorrer há alguns anos, e
não muitos.

249
Salvador Massano Cardoso

Durante o meu curso de medicina aprendíamos que a


diabetes do adulto tinha tendência para ocorrer por
volta dos 40 anos. Se fizéssemos a afirmação de que
poderia ocorrer por volta dos 9, 10, 11 ou 12 anos, o
risco de chumbar no exame seria muito sério!

A Comissão Europeia considera a luta contra o


excesso de peso como de alta prioridade nos
próximos 5 anos. O alvo número um é combater a
“junk food”. São precisas iniciativas, muitas de
carácter político, para ajudar a travar a epidemia.
Numa primeira fase seria curial que os responsáveis
da indústria alimentar revissem as suas políticas,
assumindo um papel activo. As dúvidas sobre o seu
papel são legítimas, mas, caso não colaborem, é
necessário introduzir legislação específica. Bruxelas
está pronta a actuar segundo o comissário Markos
Kyprianou. Não podemos esquecer que neste
momento, na União Europeia, 2 a 8% das despesas
da saúde são devidas à obesidade.

Neste mundo complexo e cheio de problemas devido


à intervenção humana, poderíamos perguntar quais
as vantagens dos obesos? Além de alimentarem
verdadeiros exércitos de profissionais que navegam
nos oceanos da gordura, com as diferentes técnicas,
receitas, dietas, mezinhas e outras coisas

250
Notas de Saúde Pública e Ambiental

mirabolantes difíceis de descrever, apenas se


vislumbra um efeito positivo neste caso, ou seja, se
os obesos deste planeta acabassem por perder o peso
em excesso agravariam o efeito estufa, já que
libertariam milhões de toneladas de CO2 para
atmosfera.

Os Estado Unidos da América não ratificaram, como


todos sabem, o protocolo de Quioto, e são o principal
responsável pelas emissões do CO2. Imaginem o que
aconteceria se acabassem com os seus obesos. O
efeito estufa agravar-se-ia de uma forma substantiva!
Espero que não façam a apologia de uma obesidade
global…

Compete aos profissionais da saúde denunciar,


equacionar e promover as medidas destinadas à
resolução dos principais problemas de saúde. A
Fundação Portuguesa de Cardiologia com esta
iniciativa, na sequência de muitas outras, demonstra
uma vez mais, a necessidade de empenhamento, a
todos os níveis, desde os educacionais, aos aspectos
formativos exercendo pressão sobre quem tem
responsabilidade directa na produção, publicitação
dos alimentos, não descurando o poder político, o
qual tem a sua quota de responsabilidade e não é
pequena. Esperemos que a curto prazo seja possível

251
Salvador Massano Cardoso

travar a “michelinização” das crianças e adolescentes


portugueses e possamos enveredar por uma
crescente “gracilização”.

252
Notas de Saúde Pública e Ambiental

SEGURANÇA ALIMENTAR

A alimentação e a sexualidade foram os dois


principais determinantes da evolução de qualquer
espécie, à excepção das que não ligam a sexo, claro
está!

São tão fortes que até estão interligadas. Mas se


quisermos ordená-las até podemos colocar em
primeiro lugar a alimentação, já que esta é vital para
a funcionalidade da segunda.

Os organismos estão preparados para viverem na


penúria e não na abundância, facto que explica a
selecção de genes ditos “económicos” ou poupadores.
As razões são óbvias e dispenso-me de as enunciar.

Nos primórdios da existência, os nossos antepassados


mais distantes, hominídeos e pró hominídeos,
passavam as suas curtas existências à procura de
alimentos, a precaverem-se de serem alimentos para
outros e a reproduzirem-se. Presumo que não tenham
tido preocupações de segurança alimentar, ou
melhor, até começaram a ter, quando confrontados
com alguns produtos que lhes causava a morte. Neste
momento, os responsáveis passaram a conhecer e a

253
Salvador Massano Cardoso

identificar quais os alimentos venenosos e,


naturalmente, a transmitir esses achados aos
descendentes, como fazem, aliás, muitas outras
espécies. Sendo assim, poderíamos afirmar que as
preocupações em termos de segurança alimentar
antecedem o aparecimento da nossa própria espécie.

Feita esta nota introdutória, através da qual


pretendemos dar o mote para esta conversa
realçamos a necessidade de focarmos a nossa
atenção e conhecimentos nesta tão importante.

É óbvio que poderíamos ilustrar o papel dos alimentos


nas suas múltiplas funções tóxicas ao longo dos
milhares de anos e das suas consequências em
termos civilizacionais, as quais não foram nada
pequenas, antes pelo contrário. Povos que
enriqueceram, civilizações que desapareceram, países
que devem a sua existência mais a problemas de
segurança e de disponibilidade alimentares do que
propriamente à heroicidade dos seus exércitos são
uma constante histórica.

O tipo de alimentação praticada hoje em dia não tem


rigorosamente nada a ver com aquela que se
praticava ainda há poucos anos. De facto, os mais
velhos sabem que a nossa alimentação num passado

254
Notas de Saúde Pública e Ambiental

muito recente se caracterizava, basicamente, por um


consumo de produtos criados e obtidos localmente.
Claro que tinha que haver alguns cuidados, mas,
mesmo que houvesse problemas, as consequências
eram auto-limitadas. Hoje, não. Desconhecemos, na
maioria dos casos, onde e como foram produzidos os
alimentos que nos chegam à nossa mesa ou às
nossas mãos. Sem um conjunto de cuidados especiais
os riscos para a saúde poderiam ser muito
preocupantes.

Apesar de toda a legislação e da vigilância praticada,


mesmo assim, os riscos são reais.

Como o tema é demasiado vasto, arrisco-me a ser


parcial, ao pegar numa das múltiplas pontas. De
qualquer modo, tenho de correr algum risco e,
sobretudo, criar o ambiente necessário para o debate.
Aí sim! No debate podemos falar de coisas mais
importantes do que propriamente uma abordagem
teórica sobre o assunto.

A problemática das condições microbiológicas e do


seu controlo são mais do que evidentes, exigindo que
os produtos tenham a respectiva qualidade sem
provocar problemas. Dizer que as empresas de
alimentação deverão ter laboratórios adequados para

255
Salvador Massano Cardoso

exames microbiológicos e bromatológicos é uma


verdade de La Palisse. O que é certo é que algumas
não devem dispor, mas caso não os tenham têm que
socorrer aos laboratórios privados ou oficiais.

As consequências para a saúde de produtos


contaminados podem ser muito graves. A história da
alimentação está repleta destes casos, desde a velha
história da Maria Febre Tifóide, cozinheira irlandesa,
que, no princípio do século XX, provocou várias
epidemias, devido ao facto de ser portadora de
Salmonella typhi, originando uma verdadeira
perseguição policial pelos Estados Unidos, cheia de
episódios rocambolescos a epidemias de Escherichia
coli O157 em vários países, nomeadamente em 1996,
atingindo 8.000 crianças japonesas, passando pela
epidemia da síndrome do óleo tóxico em Espanha, ou
até à crise das vacas loucas em Inglaterra e que
depois se propagou a outros países e passando pelas
dioxinas dos frangos belgas, só para citar alguns.

O potencial impacto na saúde humana está bem


documentado pelas epidemias graves de Salmonella
typhimurium que, em 1985, atingiu 170.000 pessoas
através de leite pasteurizado, nos E.U.A.; ou a
epidemia devido a hepatite A por consumo de
moluscos atingiu cerca de 300.000 pessoas na China

256
Notas de Saúde Pública e Ambiental

De um modo geral, as causas subjacentes a muitos


dos problemas de toxicidade alimentar têm a ver com
interesses económicos a par de falta de cuidados
higiénicos. Se analisássemos profundamente, por
exemplo, a crise das vacas loucas, acabaríamos por
concluir que o primum movens teve a ver com
interesses meramente económicos, ou seja produzir
mais, com menos gastos e com mais lucros. O
exemplo é paradigmático e extensível a outras
situações de crise.

A segurança alimentar passa por um controlo


apertado, face à possibilidade de deterioração, no seu
sentido mais lato, dos produtos que consumimos, por
motivos económicos, por falta de preparação dos
responsáveis, pela sua transformação e
manuseamento – que também custam dinheiro, como
é fácil de compreender – visto que pessoas com mais
qualificação e laboratórios apetrechados serem
dispendiosos. A população recorre habitualmente a
produtos mais económicos e por este motivo
“contribuem” para que o fenómeno se arraste,
embora tenham consciência que um adequado
controlo é indispensável, além de exigirem produtos
de qualidade. A entrada de responsáveis pela
segurança alimentar está perfeitamente legitimada.

257
Salvador Massano Cardoso

Neste preciso ponto, importa introduzir o conceito de


“rastreabilidade”, segundo o qual é preciso seguir
todos os passos de quaisquer produtos alimentares
quer sejam para seres humanos, quer sejam para os
animais, incluindo todos os ingredientes, ao longo da
cadeia alimentar. Faz todo o sentido seguir o rasto de
tudo e de todos numa verdadeira perspectiva
sherlockiana, ou se preferirem, numa visão
bigbrotheriana, no seu sentido mais positivo. Se
assim for, é possível identificar e isolar o responsável
por qualquer efeito negativo, assim como
responsabilizar, a diferentes níveis, os diferentes
actores.

A segurança alimentar é uma das prioridade da União


Europeia, competindo à Autoridade Europeia para a
Segurança dos Alimentos (AESA) importantes
responsabilidades.

Dificilmente encontraremos uma área tão


regulamentada como esta, mas mesmo assim os
perigos espreitam.

O uso de aditivos constitui um grave problema para a


saúde das pessoas e animais. Muitos, apesar de
estarem regulamentados são suspeitos ou então são
utilizados de forma ilegal. Quem estiver atento à

258
Notas de Saúde Pública e Ambiental

comunicação social apercebe-se destes fenómenos,


como aconteceu recentemente com animais a quem
foram ministrados anabolizantes, com o tal fim de
retirar dividendos económicos, mas que são perigosos
para a saúde pública. Outros, apesar de legais,
podem estar na origem de situações de intoxicação,
como aconteceu há poucos dias com jovens ao
beberem bebidas estimulantes. Bebidas essas
passíveis de publicidade, como é do conhecimento
geral.

Passar para o campo da publicidade é aliciante, por


vários motivos. A possibilidade de permitir que certos
alimentos sejam apresentados como nutracêuticos,
dotados de propriedades farmacológicas capazes de
tratar certas doenças é preocupante. O interesse
económico está mais uma vez presente e a forma de
engodar papalvos está ao alcance dos promotores
que vendem saúde a troco dos seus produtos. “Este
produto não tem colesterol”. Está bem! O produto
não tem colesterol, mas será que um produto vegetal
tem colesterol? Que eu saiba não, mas são
apresentados como tal. É um problema de segurança
alimentar? Para mim é, porque induzem na procura
de certos produtos. Outros são mais preocupantes ao
fazerem afirmações de carácter científico que poderão

259
Salvador Massano Cardoso

desviar os interessados de uma intervenção


terapêutica mais sustentada, e perfeitamente cabal,
aumentando o risco de doença. Caso dos produtos
cuja rotulagem indicam que faz baixar o colesterol,
levando algumas pessoas a substituir as terapêuticas
pelo seu uso, contribuindo para riscos
cardiovasculares. A rotulagem obrigatória, séria,
objectiva e cientificamente comprovada deverá ser
alvo das autoridades legislativas comunitárias e
nacionais de molde a salvaguardar a segurança dos
consumidores.

Falar de segurança alimentar é falar também de


biossegurança.

A lógica que presidiu à construção deste termo foi


definida em 1975 aquando da Conferência de
Asilomar, na Califórnia. Nesta Conferência foram
analisados os possíveis riscos da manipulação do ADN
recombinante. A repercussão do evento foi tal que
marcou o início da necessidade da regulamentação da
biotecnologia.

A biossegurança implica, curiosamente, o


reconhecimento de agressões fisiológicas, promotoras
e indutoras da saúde. O mundo quase asséptico, que
se pretendeu construir, fruto da revolução biológica e

260
Notas de Saúde Pública e Ambiental

da medicina, não deixa de ser também perigoso, já


que a ausência de agressão é tão perigosa como o
excesso da mesma. Hoje, o excesso da higienização
levanta muitos problemas, estando-lhe associada o
aumento da prevalência de certas doenças, em que a
ausência de agressão ambiental nos primeiros tempos
de vida é determinante, e a outras que, sendo raras
há algumas décadas, acabaram por se tornar,
inesperadamente, frequentes, e vão exigir, no futuro,
paradoxalmente, agressões biológicas.

De facto, quem diria que uma das principais causas


do aumento da prevalência da asma no mundo
moderno se deve a uma higienização excessiva, na
qual está, implicitamente, a higiene alimentar. A
ausência de parasitas intestinais determina o fim de
uma relação muito antiga a que o nosso organismo se
habituou, desencadeando e estimulando várias
respostas que também tem repercussões a outros
níveis. Do mesmo modo, o aparecimento de doenças
inflamatórias crónicas intestinais parece ser, também,
pelo menos em parte, da sua responsabilidade. Mas
entenda-se o seguinte o facto do paradoxo de
higienização existir, tal não significa que advogue a
parasitação da humanidade, mas quem sabe se um
dia não irão aparecer produtos derivados dos

261
Salvador Massano Cardoso

parasitas para reduzir e controlar estas afecções, e


até outras? Afinal a segurança alimentar também tem
a sua face oculta que merece ser relevada.

Voltando à biossegurança, sabemos que tem sido


frequentemente relacionada, embora não
exclusivamente, com as tecnologias associadas à
produção de alimentos, nomeadamente os
organismos geneticamente modificados. Trata-se de
uma área muito importante e que tem suscitado
posições perfeitamente antagónicas entre, sobretudo,
o novo e o velho continente. As preocupações são
legítimas por parte de quem tem receio ou qualquer
tipo de apreensão face a estas formas de intervenção
deliberada num sector complexo como é o da
produção de alimentos. Além dos aspectos técnico-
científicos, levantam-se igualmente aspectos de
natureza ética, devido à sua utilização, e até mesmo,
em algumas circunstâncias, à não utilização. É uma
matéria controversa que exige, só por si, um
destaque particular.

Na prática, as culturas já existentes servem na sua


grande maioria interesses comerciais mais do que as
necessidades dos agricultores pobres do mundo. No
entanto, e apesar das naturais reticências, a FAO
refere que a biotecnologia representa um grande

262
Notas de Saúde Pública e Ambiental

potencial para a agricultura dos países em


desenvolvimento, mesmo que não seja uma solução
definitiva, manifestando-se favorável à sua
introdução.

Os alimentos são susceptíveis de ameaças


bioterroristas por motivos óbvios.

Na 55ª Assembleia Mundial de Saúde, em 2002, foi


discutido este tema, tendo os estados membros sido
recomendados a aumentar a sua capacidade nacional
de resposta.

Não é inédito situações bioterroristas envolvendo


alimentos. Em 1984 um grupo religiosos americano,
Rajneeshee foi responsável por 751 casos de
intoxicação por salmonelas em 10 bares de Oregon,
usando saladas e creme. Razão? Muito simples! Fazer
com que certos eleitores ficassem doentes,
possibilitando que determinado candidato ganhasse
as eleições a fim de adquirirem terras. Um verdadeiro
terrorismo alimentar de natureza politica.

O bioterrorismo pode ser utilizado com outros fins


políticos e económicos, caso do que aconteceu, por
exemplo, com as laranjas israelitas contaminadas em
1978 com mercúrio, ou com a contaminação de uvas
chilenas em 1989 com cianeto.

263
Salvador Massano Cardoso

Num estudo efectuado em 2005 sobre o modo como


os consumidores europeus se apercebem dos riscos
relacionados com a saúde e em particular com a
segurança alimentar merece uns breves comentários
finais.

A percepção da segurança alimentar é positiva, 42%


considera um risco potencial, embora a maioria, 61%,
refere que o risco número um é a poluição ambiental.

As grandes crises do passado, tal como a crise das


vacas loucas não são consideradas no top. Memória
curta!

À pergunta quais os principais problemas associados


com os alimentos, em primeiro lugar surge a
intoxicação alimentar, seguida dos químicos e em
terceiro da obesidade. As percentagens elevadas de
europeus preocupados ao redor de: resíduos de
pesticidas, novos vírus, resíduos na carne, más
condições de higiene fora de casa, poluentes como
mercúrio e dioxinas, organismos geneticamente
modificados, entre outros, demonstram,
inequivocamente, interesse em termos de segurança
alimentar.

Há de facto uma percepção de risco elevada.

264
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Para contrariar e minimizar muitas das situações


relacionadas com a segurança alimentar são
indispensáveis vigilância apertada, adequada
legislação, agências fiscalizadoras e controlos a vários
níveis, porque, no clima global em que vivemos, a
margem de segurança é cada vez mais apertada,
podendo, em qualquer momento, sair das
conformidades espalhando a doença, a morte e o
pânico.

No fundo, vivemos mesmo no fio da navalha.

265
Salvador Massano Cardoso

266
Notas de Saúde Pública e Ambiental

EPIDEMIOLOGIA DA ASSOCIAÇÃO DIABETES

MELLITUS – HIPERTENSÃO ARTERIAL

A diabetes mellitus afecta mais de 150 milhões de


pessoas a nível mundial. Os dados epidemiológicos
apontam para um agravamento da prevalência nos
próximos anos, quer nos países industrializados, quer
nos que se encontram em desenvolvimento. O facto
de ser tão prevalente revela que estamos perante
uma entidade que reflecte a interacção de vários
factores. De facto, os aspectos genéticos, que já são
relativamente bem conhecidos, traduzem pressões
selectivas ambientais. Sendo o homem fruto da
interacção entre o seu património genético e o
ambiente, é fácil de concluir que determinados genes
se tornaram mais prevalentes.

A selecção de genes ditos “económicos”, tais como os


que favorecem ou estão na génese da diabetes do
tipo 2 é vital para a sobrevivência da espécie. No
entanto, à medida que o progresso e o
desenvolvimento se vão processando, a produção, a
disponibilidade e a acessibilidade alimentar
transformaram-se numa realidade ao alcance de
grande parte dos seres humanos, nomeadamente, os

267
Salvador Massano Cardoso

que se encontram acantonados no mundo ocidental,


tornando “obsoletos” certos genes. Acresce que as
melhorias de condições de vida, que contribuíram
significativamente para o prolongamento da
sobrevivência humana, foram determinantes para a
expressão clínica e metabólica de uma das principais
doenças conotadas com a civilização.

O número total de diabéticos irá sofrer um acréscimo


muito significativo nos próximos anos, saltando dos
171 milhões em 2000, para 366 milhões em 2030.

Neste momento, em certos países, observa-se, pela


primeira vez uma epidemia de diabetes mellitus em
jovens e, até, mesmo em crianças. Verdadeiras
manifestações de excessos alimentares, das quais a
obesidade é um sinal evidente.

A pressão arterial é uma variável contínua


influenciada pela idade e que teve um papel
determinante na evolução das diferentes espécies,
inclusive a humana.

O sistema renina-angiotensina, que desempenha um


papel primordial na regulação da pressão arterial, é
filogeneticamente muito antigo, observado em
espécies tão velhas como os elasmobranquios. Há
mais de 500 milhões de anos possibilitou a invasão

268
Notas de Saúde Pública e Ambiental

da terra de organismos aquáticos. Sem este sistema


não seria possível regular o tonus vascular, nem o
volume sanguíneo. Com mais de 500 milhões de
anos, hoje, o homem luta, frequentemente, contra
uma sistema que é responsável em grande parte pela
hipertensão arterial. Um sistema que esteve na base
da própria vida e da adaptação ao meio ambiente
acaba, muitas centenas de milhões de anos depois,
de ser um alvo preferencial na prevenção secundária
das doenças cardiovasculares.

Podemos considerar a hipertensão arterial essencial


como uma doença multifactorial e poligénica,
resultante da interacção de vários genes, uns com
outros, e com o ambiente, manifestando-se sob
diferentes fenótipos, com uma hereditariabilidade
estimada em 30 a 50%. hereditário

A prevalência da hipertensão, em muitos países


desenvolvidos, particularmente nas sociedades
urbanas, é semelhante ao verificado nos países em
desenvolvimento, devido ao aumento da longevidade
e à concomitante prevalência de factores
contribuintes tais como a obesidade, a inactividade
física e alimentação não saudável. A nível mundial
estima-se em cerca de 7 milhões o número de mortes
prematuras e em cerca de 4,5% as doenças

269
Salvador Massano Cardoso

provocadas, ou seja, qualquer coisa como 64 milhões


de anos de vida incapacitantes.

Quer a diabetes, quer a hipertensão arterial,


constituem dois dos mais importantes factores de
risco cardiovascular, a par da hiperlipidemia e da
obesidade. Sendo as doenças cardiovasculares a
principal e a primeira causa de morte no mundo,
torna-se imperioso conhecer a dinâmica e a evolução
do fenómeno esclarecendo a intervenção e a
interacção dos principais factores de risco.

Apesar dos estudos e da controvérsia sobre a


existência de uma associação entre a resistência à
insulina e insulinemia com a hipertensão arterial, o
facto é que ambas estão frequentemente associadas,
traduzindo eventuais mecanismos subjacentes ou
respostas de sistemas independentes a agressões
ambientais e/ou interacção com outros factores de
risco, nomeadamente a obesidade.

No estudo Prevenção Secundária da Doença


Coronária – Estudo Fármaco-epidemiológico, em que
foram estudados cerca de 8.000 doentes com enfarte
do miocárdio e angina instável (todos sujeitos a
hospitalização), foi possível verificar que a
prevalência da diabetes tipo 2 ronda os 19,7%,

270
Notas de Saúde Pública e Ambiental

enquanto a hipertensão arterial atinge 47,6% dos


doentes. Uma análise mais pormenorizada permite
constatar que 12% dos doentes sofrem
simultaneamente de diabetes e hipertensão arterial.

Num outro estudo efectuado em 2.300 doentes


coronários (PIADC – Projecto de Investigação no
Âmbito da Doença Coronária em Portugal) tivemos
igualmente a oportunidade de verificar as elevadas
prevalências de diabetes e hipertensão arterial, 20%
e 54% respectivamente. Em 11% dos doentes
observámos uma associação diabetes mellitus e
hipertensão arterial. Mais recentemente num estudo
sobre a prevalência da obesidade nos utentes do
Serviço Nacional de Saúde abrangendo cerca de
15.000 pessoas foi possível verificar que a associação
entre diabetes e hipertensão ronda os 11,8% (W-
Risk). Os estudos apontam para cifras da ordem dos
12%, no tocante à associação diabetes e hipertensão
arterial, facto que justifica uma abordagem clínica,
terapêutica e investigacional no sentido de controlar
dois dos mais importantes factores de risco
cardiovasculares.

271
Salvador Massano Cardoso

272
Notas de Saúde Pública e Ambiental

DIABETES MELLITUS E “SÍNDROMA DE STATUS”

A diabetes mellitus adquiriu, em termos


epidemiológicos, uma relevância especial quando, em
1978, foi publicado, na sequência de uma conferência
internacional - a primeira sobre epidemiologia da
diabetes realizada pela Fundação Kroc na Califórnia -,
o livro de Kelly West em que a autora propôs a
classificação, a padronização de metodologias e dos
critérios de diagnóstico de uma realidade emergente
muito preocupante. Convém referir que, em tempos
idos, no século XII, Maimónidas tinha proferido a
seguinte frase: A diabetes mellitus é pouco frequente
na “fria” Europa e frequente na África “quente”.
Podemos considerá-lo como um dos primeiros
epidemiologistas da diabetes.

O que é certo é que nenhuma doença crónica teve um


incremento semelhante à diabetes cuja prevalência
duplicou num quarto de século, havendo mesmo
países em que chegou a quadruplicar,
nomeadamente, no Sul e Este asiático, caso da China
e da Índia.

Vivemos uma epidemia num crescendo incomparável.

273
Salvador Massano Cardoso

Morrer de diabetes ou, melhor, das suas


complicações, tornou-se numa regra universal que se
agrava com as situações de hiperglicémia que,
mesmo que não leve à “doença”, propriamente dita,
chega a matar mais de dois milhões de pessoas por
ano por doença cardíaca e acidentes vasculares
cerebrais às quais se deve somar o milhão de mortes
por diabetes!

Não é difícil prever as consequências sociais e


económicas desta doença em, praticamente, todas as
comunidades, tornando-se em muitas num verdadeiro
sorvedouro de recursos técnicos, sociais e
económicos dificilmente sustentáveis.

Para compreendermos melhor o panorama desta


afecção, devemos apontar vários factores, entre os
quais destacamos: o envelhecimento, o
“enriquecimento”, a “urbanização” e o sedentarismo.
Obviamente que os últimos justificam, plenamente, a
aquisição de novos hábitos alimentares.

A importância de que se reveste esta doença está


bem patenteada no facto de jovens e até crianças
começarem a adoecer de diabetes tipo 2, o que faz
pensar o que aconteceria aos colegas mais velhos,
aquando da passagem pelos bancos das faculdades

274
Notas de Saúde Pública e Ambiental

de medicina, se tivessem a ousadia de dizer que esta


forma de doença atingia, também, os miúdos.
Chumbo certo! Mas hoje, nalgumas comunidades
norte-americanas, a prevalência do tipo 2 começa a
ser tão ou mais prevalente que o tipo 1.

Portugal não foge à regra, antes pelo contrário,


apresenta indicadores de elevada gravidade a par da
obesidade. Apesar de ainda não possuirmos dados de
prevalência de base populacional – o estudo liderado
pela Sociedade Portuguesa da Diabetologia está em
curso –, muitos estudos epidemiológicos efectuados
nos utentes do Serviço Nacional de Saúde permitem,
após adequadas projecções, apontar para uma
prevalência de diabetes mellitus da ordem dos 9 a
10% na população adulta portuguesa, com mais de
18 anos de idade, o que é altamente preocupante.

A associação com a obesidade é um facto indiscutível


e se excluirmos os casos “patológicos”, que estão
devidamente esclarecidos, poderemos apontar para a
existência de uma verdadeira “obesidade social” a
que não é estranho a “predisposição da espécie”, o
aumento da produção alimentar, a capacidade de
armazenamento, uma maior eficiência na distribuição
de alimentos, assim como melhor acessibilidade, o
estímulo ao consumo, as mudanças do sistema

275
Salvador Massano Cardoso

laboral e, por fim, talvez a mais importante, o défice


cultural.

São precisamente os povos ou comunidades com


maior défice cultural, mas já com algum nível
económico, os mais permeáveis a certas condutas
que motivam o aumento da obesidade e da diabetes.
Entre nós, é patente a relação inversa entre o nível
académico e a prevalência da obesidade e da
diabetes, o que nos permite concluir que quanto
maior for o nível académico menor será a prevalência
destas afecções. Sendo assim, a luta contra as novas
pragas terá de passar, inexoravelmente, por um
aumento rápido do nível cultural e académico dos
portugueses, fenómenos que não se avizinham, face
à realidade social, o que nos permite concluir que as
situações patológicas, entre nós, irão manter-se e até
mesmo agravar-se.

Importa difundir o novo conceito de “síndroma de


status” tão brilhantemente descrito pelo
epidemiologista britânico, Professor Marmot. Segundo
este cientista, adoecer e morrer prematuramente têm
a ver com as condições socioeconómicas, as quais
estão associadas à pobreza, às más condições
alimentares, às deficientes condições das habitações,
às atitudes e comportamentos face aos diferentes

276
Notas de Saúde Pública e Ambiental

tipos de factores de risco. Há mais de 25 anos, no


famoso estudo Whitehall, Marmot já tinha chegado à
conclusão de que o risco de morrer era quatro vezes
superior nas camadas sociais mais baixas face às
classes mais elevadas. Hoje em dia, na Grã Bretanha,
pequenas diferenças de nível académico, por
exemplo, licenciados e mestres é suficiente para
explicar uma maior propensão de adoecer dos
primeiros! Facilmente se pode imaginar o que
acontecerá com diferenças culturais mais marcadas.

A diabetes mellitus encaixa-se na perfeição no


denominado “síndroma de status”, quase que a
poderíamos considerá-la como um paradigma. Deste
modo, só através de lutas contra as desigualdades
sócio-económicas e aumento do nível académico será
possível controlar e evitar o aparecimento desta
situação. Não descurando as medidas que já são do
conhecimento comum, em termos de prevenção
secundária e terciária, importa politizar, no
verdadeiro sentido da palavra, a maior epidemia que
alguma vez atingiu a espécie humana.

Enquanto responsáveis pela saúde dos nossos


doentes e compatriotas compete-nos “obrigar” o
poder politico a assumir as responsabilidades na
prevenção da obesidade e da diabetes.

277
Salvador Massano Cardoso

278
Notas de Saúde Pública e Ambiental

DIABETES E LITERACIA

Quando fui convidado para efectuar uma conferência


sobre “Diabetes e Literacia” não fiquei surpreendido.
Fiquei mesmo satisfeito com o desafio já que o
mesmo revela que as preocupações culturais com as
doenças começam a germinar dentro da nossa classe.
Óptimo sinal, porque não é suficiente conhecermos
aprofundadamente os mecanismos e as causas das
mesmas e as diferentes abordagens terapêuticas,
técnicas e até preventivas. É preciso ir mais longe, ir
às origens da patologia, à sua evolução e aos novos
figurinos culturais que têm marcado de uma forma
única o crescimento da humanidade, tentando desta
forma compreender melhor a patologia humana,
intervindo a níveis que nos escapam, enquanto
médicos, mas para os quais podemos ajudar com a
nossas capacidades diagnósticas e, porque não,
soluções sociais e politicas. Mas confesso que fiquei
um pouco apreensivo, porque o sucesso de uma
conferência deste nível depende da forma como se
transmitem certos conhecimentos e, sobretudo, como
criar novos paradigmas. Não basta chover no
molhado, temos que inovar, temos que especular,
temos que produzir novos conceitos que estejam na

279
Salvador Massano Cardoso

base de modernas formas de pensar e contribuir para


soluções mais eficientes. E é aqui que está o busílis
da questão: saber se é possível no fim ter uma nova
visão sobre um velho problema. Tentarei que haja,
mas também não prometo.

Ao idealizar uma conferência deste tipo estou a


estimular o pensamento, aprendendo e reflectindo e,
sobretudo, desejoso em provocar.

Quer a diabetes quer a literacia são dois fenómenos


marcadamente humanos, apesar da diabetes existir
noutras espécies e até de haver algumas que têm
comportamentos culturais, embora muito longe da
nossa.

A origem da nossa espécie e o seu divinal sucesso


que nos alcandorou até ao presente deve muito à
patologia e à cultura. Quanto à patologia, ela reflecte
as consequências de um mecanismo de vida
complexo e extremamente adaptável. Só com uma
grande capacidade de adaptação é possível
sobreviver, mas para isso é necessário abrir as portas
ao indesejável, ao inesperado, através das quais
entra o sofrimento e a morte. A doença é fonte da
vida, um paradigma que esquecemos, mas que é
absolutamente indispensável para a própria

280
Notas de Saúde Pública e Ambiental

sobrevivência das espécies, sejam elas quais forem.


No fundo, sendo a doença mais antiga do que o
homem, tão antiga como a própria vida, devemos
considerá-la como a essência da vida. Lutamos contra
ela desde que nos conhecemos. Temos tido vitórias
fabulosas, mas no fundo nunca conseguiremos
eliminá-la, porque se isso acontecesse, ou
deixaríamos de ter vida ou passaríamos a ser
qualquer coisa, diferente daquilo que entendemos por
vida.

Somos igualmente seres culturais e dependemos da


cultura para sobreviver. Há muito que somos
praticamente incapazes de usar os nossos
mecanismos de adaptação física, química e
microbiológica para aguentar as forças ambientais.
Criámos um novo e poderoso mecanismo, dito
cultural, sem o qual, a maioria de nós, não
conseguiria sobreviver alguns dias caso fossemos
lançados no seio da natureza bruta e selvagem.

São inúmeras as doenças que contribuíram para a


emergência da espécie humana. A diabetes constitui
uma delas e, devido às suas características podemos,
inclusive, afirmar que jogou um papel essencial e
determinante. Aquilo que hoje constitui uma das
maiores preocupações de qualquer sociedade, pelas

281
Salvador Massano Cardoso

elevadas prevalência, morbilidade, mortalidade e


astronómicos impactos sócio-económicos merece, e,
porque não dizer, - bem sei que é altamente
provocador – o nosso agradecimento. Sem diabetes
haveria a espécie humana tal como hoje a
conhecemos? É muito provável que não!

A diabetes mellitus, assim como muitas outras


afecções, sobretudo as de carácter metabólico, foram
determinantes para a nossa espécie. Não é por acaso
que estão tão intimamente associadas. Somos
descendentes de herbívoros, transformados em
carnívoros, condição essencial para a cerebrização
humana e acabámos em omnívoros. Vivemos em
paraísos terrestres entre há 15 e 6 milhões de anos;
fomos expulsos do paraíso há cinco milhões de anos,
carnívoros à força há dois milhões de anos acabando
por regressar ao Éden alimentar nos nossos dias.

Todos já ouviram falar de Lucy, a jovem


australopiteca com 3,5 milhões de anos, cuja
existência se limitava a uma procura incessante de
alimentos, comendo quando havia. Para sobreviver,
Lucy, deveria sofrer de “sensibilidade diferencial à
insulina”. Insulino-resistência, uma das muitas
conquistas que possibilitaram o aparecimento do
Homo sapiens sapiens e a sua propagação pela

282
Notas de Saúde Pública e Ambiental

ecúmena.

Quando li a obra, “O livro que desceu do céu”, de


Ahmad Vicenzo, sobre Zayd, o rapaz que escreveu a
primeira cópia do Alcorão, o primeiro capítulo
despertou-me a atenção quando li o seguinte
parágrafo: “A relação entre nómadas e sedentários é
um elemento fundamental da história de todas as
civilizações tradicionais e não só da islâmica. De
facto, o nomadismo representava a condição
ancestral, dos homens antigos, de natureza nobre e
desprendida dos bens terrenos. O povo de Israel foi
nómada até à construção do templo de Salomão, e o
próprio Cristo afirmou: “Os lobos têm covis e os
pássaros do ar ninhos, mas o Filho do Homem não
tem onde pousar a cabeça”. Na Arábia, até há
relativamente pouco tempo, era costume os povos
sedentários pagarem aos nómadas um “imposto da
fraternidade”, Khãwa (ou ikhãwa), em virtude de um
antigo pacto. Não se tratava de uma garantia contra
as suas incursões e sim de uma verdadeira
homenagem dos sedentários aos seus irmãos do
deserto que davam continuidade à vida nobre dos
antepassados, mantendo viva a memória”.

Este trecho obriga-nos a reflectir sobre as nossas


origens e a forma como viviam os nossos

283
Salvador Massano Cardoso

antepassados. O nomadismo era a realidade


quotidiana. O sedentarismo é uma conquista recente,
cultural e revolucionária. Indispensável ao nosso
progresso, mas, no fundo representa algo que não
estava previsto, se é que há alguma coisa prevista.
Para viver como nómada é indispensável uma
capacidade de adaptação fisiológica e metabólica,
para a qual deve ter contribuído, e de sobremaneira,
a tendência para uma situação que, muitas gerações
depois descambou na doença que hoje é objecto de
atenção e preocupação, por parte dos profissionais de
saúde, políticos, e cidadãos em geral, a diabetes.

Quando os sedentários árabes pagavam o imposto de


fraternidade aos seus irmãos nómadas faziam-no com
uma forma de reverência e de respeito não só pelas
velhas tradições mas sobretudo pelas origens da
espécie humana. Qual seria a prevalência dos genes
da diabetes entre os nómadas? Elevada sem dúvida.
Sem eles teriam conseguido sobreviver às agruras e à
penúria da fome? Quase que me atreveria afirmar –
mais uma provocação -, que os diabéticos dariam
bons nómadas, ou são dignos representantes de um
fenómeno original. Se lhes pagavam outrora, aos
nómadas, o imposto da fraternidade, hoje
poderíamos adaptá-lo, criando, para os diabéticos,

284
Notas de Saúde Pública e Ambiental

um imposto semelhante, o imposto da solidariedade.


No fundo é o que estamos a construir e a
desenvolver desde há algumas décadas, com os
cuidados, as preocupações e os avultados
investimentos neste tipo de patologia que acabou por
emergir fruto da sedentarização. Manifestações de
elevada solidariedade para com uma fatia muito
elevada da população. Neste particular, aproveito,
desde já, para expressar o destaque para o
pioneirismo mundial dos portugueses em matéria
social da diabetes que constitui uma forma particular
de elevadíssima cultura médico-social num povo de
crónica iliteracia.

O sedentarismo é um fenómeno muito recente na


longuíssima história da humanidade. Uma pequena
fracção de tempo, que já provou ser fonte de
benefícios e de conquistas que transcendem as
próprias aspirações humanas.

É tão recente o seu aparecimento que podemos datá-


lo. No final da última glaciação, ocorrida há cerca de
13.000 anos, todos os homens deste planeta
encontravam-se no mesmo nível cultural e
civilizacional. Em 1500 depois de Cristo, a amplitude
entre os homens era abismal. Povos civilizados
capazes de obras primas na literatura, na construção,

285
Salvador Massano Cardoso

na pintura, na ciência, na navegação, na escultura e


na música, contrastavam com outros menos
civilizados e, numa cadeia em decrescendo, mesmo
com homens a viver como há cerca de 13.000 anos
atrás, sem terem evoluído um miserável ano na
evolução cultural e civilizacional. Quais foram os
determinantes para estas discrepâncias, que
continuam a fazer-se sentir nas suas variantes, nos
dias actuais? As armas, os genes e o aço. As armas e
o aço, frutos da cultura, os genes os fiéis de uma
velha natureza. Na obra com o mesmo título, Jared
Diamond explica, e bem, o aparecimento destas
diferenças.

As mudanças sociais, culturais e civilizacionais


originaram novas formas de vida, de organização
social e de alimentação, a que o sedentarismo dá um
toque final, eliminando praticamente o nomadismo, o
verdadeiro primum movens da Humanidade.

É curioso verificar que as patologias emergiram com


um potencial maligno nunca visto até então quando
ocorreu a revolução agrícola. Pela primeira vez, o
homem conseguia domesticar e produzir alimentos
em quantidade, facto que originou o sedentarismo e
tudo o resto, necessidade de organização política e
militar, hierarquias sociais, cidades, bens de riqueza,

286
Notas de Saúde Pública e Ambiental

comércio e tudo o que já sabemos e dos quais


dependemos. A adaptação biológica acabou por ser
subjugada à adaptação cultural.

A revolução agrícola determinou verdadeiras


explosões demográficas, além das já propaladas
patologias e também promoveu o aparecimento de
novas culturas.

Mais gente, maior necessidade de alimentos mas,


mesmo assim, mais fome. Só muito recentemente, e
apenas na parte ocidental do mundo, é que se
conseguiu encontrar os meios para combater a fome.
Ou seja, pertencemos à primeira ou segunda geração
que, teoricamente, não passa fome. Na prática
significa que a maioria da população mundial continua
a sofrer do velho problema da fome. Os genes lá
estão para responderem a uma situação tão velha
como eles próprios: a eterna fome.

Um dos aspectos mais fáceis de analisar diz respeito


ao desenvolvimento sócio-económico, à fome e a
certo tipo de doenças.

Quando um povo começa a emergir em termos sócio-


económicos, as mudanças comportamentais fazem-se
sentir, numa primeira e longa fase, nos hábitos
alimentares. Mais dinheiro, menos fome. Em seguida

287
Salvador Massano Cardoso

aparecem a aquisição de outros bens. Matar a fome é


a primeira das prioridades, levando à aquisição de
vários tipos de produtos e ao seu consumo de forma
muito pouco criteriosa. Consequências imediatas? A
subida da taxa de diabetes, de obesidade, de
hipertensão, da hipercolesterolemia, de enfartes e de
acidentes vasculares cerebrais. Chamar a atenção
para os maus comportamentos alimentares que se
estão a adquirir é a solução? Não, obviamente! Não
são atendidos, porque, para tal é absolutamente
necessário uma formação cultural relativamente
elevada. E aqui entramos na chamada discrepância
entre a capacidade do poder de compra que vai
aumentando, mas que não é acompanhada pela
necessária evolução cultural. O típico fenómeno de
transição sociológica que ocorre em todas as
sociedades sem excepção.

Portugal, tirando alguns períodos da sua história não


se pautou por grandes rasgos culturais, à escala
global, porque em termos individuais não temos que
nos queixar. Acontece que perdemos um dos períodos
mais importantes da história contemporânea ao não
darmos a dimensão que outros povos concederam no
decurso do Iluminismo que, praticamente nos passou
ao largo, e para o qual contribuíram as invasões

288
Notas de Saúde Pública e Ambiental

francesas e as guerras civis do século XIX. A iliteracia


de então ainda hoje tem os seus reflexos, porque dar
cultura e instrução a um povo é uma tarefa de
gerações.

Augusto Gil há muitos anos escreveu um poema


intitulado “O Edital” dedicado ao grande João de
Deus. Fala de Manuel, um petiz de palmo e meio,
inteligente, bondoso, orgulho do professor devido ao
seu interesse no saber, sabia ler correctamente, fazer
contas que nem um banqueiro e que um dia, junto ao
adro da Igreja viu um bando de homens a olharem
para um papel afixado na porta principal. Ansiosos,
cada um lançava os seus palpites que iam desde mais
contribuições à lista pr´ás sortes. Nenhum sabia ler.
O Manuel lá ia furando para ver o que estava escrito
até que “um dos do bando agarrou-o então e
levantou-o com as mãos possantes e calejadas de
cavarem pão... “ Manuel, com uma voz clara e
melodiosa, leu o que o edital continha rodeado pelo
silêncio dos circunstantes.

No final, o abade ao presenciar esta cena disse:

Olhai amigos, quanto pode o ensino...

Sois homens, alguns, pais, e até avós,

289
Salvador Massano Cardoso

Pois só saber ler, este menino

É já maior do que nenhum de vós!

Esta era uma realidade daqueles tempos mas é


perfeitamente actual nas suas variantes modernas. A
falta de cultura é uma verdadeira praga.

A diabetes é uma doença dita da civilização, ou


melhor, resulta mais de uma inadaptação à
civilização. Calcula-se que 150 milhões de pessoas
sofram desta doença e que num curto período de
tempo, um quarto de século, duplicará. Presumo que
mais nenhuma outra maleita apresente esta
velocidade de agravamento.

Nos diferentes estudos realizados no nosso país é


possível verificar que os cidadãos com mais baixo
nível cultural apresentam prevalências mais elevadas
de diabetes, consomem mais medicamentos e estão
pior controlados.

Existem várias razões para explicar o aparecimento e


a explosão da diabetes mellitus. Algumas já foram
descritas. Muitas outras poderiam e deveriam ser
analisadas, desde o sedentarismo crescente, às
modificações do tipo de trabalho, passando pelo
aumento da disponibilidade alimentar, a

290
Notas de Saúde Pública e Ambiental

comportamentos atávicos face ao consumo de


alimentos, o comportamento menos ético das
indústrias ligadas à alimentação cujos objectivos
lucrativos são mais do que evidentes e a que não é
alheio a publicidade e manipulação intencional da
falta de cultura das sociedades.

A diabetes personifica no seu melhor o exemplo de


um síndroma de status. Este síndroma está
perfeitamente definido e traduz-se de várias formas.
Vejamos o caso da esperança de vida que no princípio
do século XX rondava os 40 anos e que actualmente
se aproxima dos 80 anos nos povos mais
desenvolvidos, em perfeito contraste com os mais
pobres. A diferença actual entre os dois mundos é da
ordem dos 30 anos! Enquanto nos mais ricos a
esperança de vida aumentou sete anos desde 1970-
75, nos mais desfavorecidos, caso dos povos
subsaarianos, o aumento foi apenas de quatro meses!

As causas destas diferenças são conhecidas,


originando a criação de um novo síndroma, a
“síndroma de status”, sinónimo de desigualdades
sociais.

Acontece que esta síndroma não se verifica somente


entre os países mais ricos e os mais pobres. Também,

291
Salvador Massano Cardoso

dentro do mesmo país, é possível encontrá-la. Há


mais de 25 anos, no famoso estudo Whitehall, o
epidemiologista britânico, Professor Michael Marmot,
tinha chegado à conclusão de que o risco de morrer
era quatro vezes superior nas camadas sociais mais
baixas face às classes mais elevadas.

Adoecer e morrer prematuramente têm a ver com as


condições socioeconómicas, as quais estão associadas
à pobreza, às más condições alimentares, às
deficientes condições das habitações, às atitudes e
comportamentos face aos diferentes tipos de factores
de risco.

Durante muito tempo chamou-me a atenção o facto


de muitos, mas mesmo muitos, filósofos e “homens
do pensamento” desfrutarem longas vidas, apesar
das épocas em que se notabilizaram não serem
profícuas em elevadas esperanças de vida! O
contraste é tão flagrante que acabei por admitir que a
melhor maneira de atingir idades provectas era
dedicar a vida ao “pensamento e à reflexão”. Quase
que me apeteceu chamar de “efeito do filósofo” a este
fenómeno de longevidade.

Mas tem que haver razões para isto tudo. De facto,


passar a vida a fazer o que se quer não é para

292
Notas de Saúde Pública e Ambiental

qualquer um, infelizmente. É preciso


“empoderamento”!

O “empoderamento” (em inglês: empowerment) “é


utilizado para designar um processo contínuo que
fortalece a autoconfiança dos grupos populacionais
desfavorecidos, os capacita para a articulação de seus
interesses e para a participação na comunidade e que
lhes facilita o acesso aos recursos disponíveis e o
controlo sobre estes”.

Há vários tipos de “empoderamento”. Um deles tem a


ver com as necessidades materiais, permitindo, por
exemplo, adquirir alimentos ou roupa para as
crianças. Se não conseguirem não têm capacitação. A
par deste tipo, outro, de origem psico-social, permite
o controlo das suas vidas e, por fim, destacamos
ainda um terceiro tipo, o empoderamento politico, ou
seja ter “voz activa”.

Um pais como o nosso, em que dois milhões de


pessoas vivem na pobreza, logo desprovidas de
“empoderamento económico”, a que podemos
associar ausência de “controlo das suas vidas” (neste
caso serão muito mais dos que os dois milhões), e a
dificuldade em usar a “voz” por motivos variados,
“explica” muito da patologia que infelizmente grassa

293
Salvador Massano Cardoso

por aí. E é precisamente neste franja importante da


nossa sociedade que a diabetes irá exprimir-se de
uma forma particularmente violenta, quer em termos
de prevalência, quer em termos de dificuldades em a
tratar com a emergência de complicações a todos os
níveis transformando os pobres em mais pobres e os
menos pobres também irão empobrecer-se ao serem
desviadas verbas para tão significativa e prevalente
doença, a qual se arrisca a ser o maior cancro da
sociedade portuguesa com prejuízos incalculáveis e
incomportáveis num país que tarda em se afirmar
como desenvolvido e justo.

Queria chamar a atenção para o facto dos


responsáveis governamentais “se esquecerem” das
chamadas terapêuticas políticas, descurando o campo
da medicina social tão bem desenhado há mais de
150 anos por Virchow. O enfoque dado às medidas
curativas, embora úteis, sem sombra de dúvida, não
consegue ir ao cerne da questão. As desigualdades
sociais que estão na base da “síndroma de status”
têm que ser tomadas em consideração, de outro
modo continuaremos a adoecer e a morrer de forma
desigual impedindo o desfrutar de algo semelhante ao
“efeito do filósofo”, mas com saúde. Mas para isso é
preciso investir muito, mesmo muito na literacia e na

294
Notas de Saúde Pública e Ambiental

cultura do povo português.

Termino, dizendo que pudemos saber muito sobre a


diabetes, sobre a sua origem e causas próximas.
Sabemos como a tratar e até como a prevenir.
Dispomos de meios e técnicas cada vez mais
elaboradas e sofisticadas, mas nunca iremos
conseguir travá-la e até minimizar o seu
aparecimento e controlá-la de modo eficaz sem
politicas adequadas, que são muitas, claro está, mas
todas dependentes de um elevado nível económico,
social e cultural. Quanto tempo necessitamos para
modificar o curso dos acontecimentos? Muitos anos e,
talvez, algumas gerações. Mas se começarmos a
apostar agora é muito provável que os nossos
descendentes ou, melhor, os filhos dos nossos filhos e
netos poderão usufruir de uma qualidade de vida
superior à nossa, agradecendo o nosso empenho e
dedicação, numa verdadeira e altruísta solidariedade
transgeracional.

Assim o queiramos.

295
Salvador Massano Cardoso

296
Notas de Saúde Pública e Ambiental

“SAL, HIPERTENSÃO E POLÍTICA”

Neste momento, e na sequência da estratégia de


prevenção a nível mundial, torna-se imperioso reduzir
o consumo de sal dos 9 a 12 g/dia para 5 a 6 g/dia.
Importa esclarecer que Portugal se encontra no limite
superior, com o pormenor de muitos portugueses
ultrapassarem, e em muito, o consumo dos 12 g/dia
de sal. Uma redução da ordem de grandeza
enunciada permitirá reduzir a pressão arterial de 7,2
a 11,2 mmHg para a tensão arterial sistólica e 3,8 a
6,4 mmHg para a tensão arterial diastólica nos
hipertensos. Os normotensos também sofrerão uma
diminuição significativa. Estas reduções são
suficientes para permitir salvar muitos milhares de
vidas todos os anos.

Por este motivo falar do sal, é falar da hipertensão. É


falar dos acidentes vasculares cerebrais. É falar do
enfarte do miocárdio. É falar das principais causas de
doença e de morte em Portugal. É falar da principal
causa de invalidez. É falar de tragédias humanas e
familiares. É falar de uma epidemia silenciosa em
termos políticos, mas gritante e exasperante para as
vítimas e suas famílias. É falar de projectos de vida

297
Salvador Massano Cardoso

interrompidos conflituando, em muitos casos, com


uma auto imagem negativa e uma humilhante
necessidade de ajuda de terceiros.

O problema dos acidentes vasculares cerebrais não


pode e nem deve cingir-se ao foro médico ou aos
cuidados de enfermagem ou familiares. Trata-se de
um problema de carácter individual, assente em
responsabilidades colectivas, influenciado por factores
económicos, culturais e, até, quem diria, políticos!

Anualmente morrem mais de 20.000 portugueses só


por acidentes vasculares cerebrais. Estamos a falar
de morte, que é um epifenómeno. Se tomarmos em
linha de conta o número de AVCs, dos quais, cerca de
um quarto se manifesta através da morte e outros
25% por incapacidades graves, necessitando a ajuda
de terceiros, torna-se fácil compreender o impacto
desta entidade. Acresce que, em Portugal este
fenómeno é particularmente violento, face aos
restantes países comunitários.

As razões subjacentes a esta problemática são bem


conhecidas. Dentro dos múltiplos factores,
destacamos o consumo excessivo de sal, tão
característico do povo português, o não controlo
efectivo da hipertensão arterial, cuja elevada

298
Notas de Saúde Pública e Ambiental

prevalência é deveras preocupante e, os consumos


excessivos de álcool e do tabaco.

A necessidade de educar e informar os portugueses a


diferentes níveis é indispensável. Mas, a par das
medidas educacionais e informativas, as quais são
muito limitadas, e quase sempre restringidas à área
do foro da saúde, torna-se imperioso outras atitudes
que se revistam de carácter político. Iniciativas
legislativas que limitem o teor de sal dos alimentos
pré-confeccionados são vitais, já que uma pequena
redução do teor deste produto, na ordem dos 10%,
por exemplo, é susceptível de uma redução
substancial da morbimortalidade, mesmo a curto
prazo, sem implicar alterações de fundo da qualidade
e sabor dos produtos em causa.

A abordagem deste problema é prioritária. Por quê?


Com base em dados recentes de um estudo, sobre a
probabilidade de risco de AVC em Portugal nos
próximos 10 anos, envolvendo mais de 20.000
utentes, com idades compreendidas entre os 55 e os
84 anos, podemos afirmar que cerca de 430.000
portugueses estão em risco. Destes, um quarto
morrerá nos primeiros meses, e um pouco mais de
um quarto ficará com limitações funcionais, bastante
comprometedoras. Também foi possível calcular que,

299
Salvador Massano Cardoso

através de medidas simples, mas eficientes, há um


potencial de redução da ordem dos 40%, ou seja,
qualquer coisa como 170.000 indivíduos, valor nada
discipiendo.

Compete a todos os agentes da saúde, a todos os


cidadãos, mas também ao poder político debruçarem-
se de uma forma consciente sobre uma situação que
irá constituir o fim de mais de 25% de todos nós,
mas também pode incapacitar-nos antes de
atingirmos uma idade em que por força da natureza,
sejamos confrontados inevitavelmente com a doença.

Conscientes de que não podemos evitar a doença, já


que é um atributo da própria vida, ao menos façamos
os possíveis para contribuir para a contracção do
fenómeno, transferindo para as últimas semanas da
nossa existência a doença e o sofrimento.

O que é certo é que uma percentagem significativa da


população portuguesa adulta, entre os 18-64 anos, é
hipertensa, e que apesar de tomarem medicamentos,
mesmo assim, não estão devidamente compensados.
Numa percentagem significativa, 76% dizem fazer
dietas pobres em sal, sendo que 79% destes foi por
indicação médica.

Chama-se a atenção para o facto de 66,2% dos

300
Notas de Saúde Pública e Ambiental

portugueses considerarem as suas dietas normais em


sal e 25,9% mesmo pouco rica! Só 7,6% é que
consideram a dieta muito rica. Provavelmente os que
consideram a dieta como pouco rica são precisamente
aqueles que adoptaram uma dieta mais pobre em sal,
devido à sua condição de hipertensos.

Por outro lado, 76,7% sabem que os alimentos pré-


confeccionados e muitos produtos que compram nos
mercados têm teores elevados de sal, enquanto
23,4% não têm opinião ou desconhecem.

A relação entre a tensão arterial elevada, o consumo


do sal e as doenças cardiovasculares está
perfeitamente identificada na nossa população, já que
94,0% têm esses conhecimentos.

Relativamente à opção de alimentos com teores


menos elevados de sal por parte dos portugueses
verificamos que 78,5% faria essa opção contra 7,3%.

A utilidade de rotulagem nos alimentos no que


respeita à indicação dos teores de sal é bem-vista, já
que 91,2% apoiaria esta ideia.

Os dados apresentados apontam para podermos


afirmar que certas medidas de cariz político poderão
dar um forte contributo à redução de tão importante

301
Salvador Massano Cardoso

factor de risco cardiovascular em Portugal.

Haja vontade!

302
Notas de Saúde Pública e Ambiental

ÁLCOOL

MEDICAMENTO REAL
Quando procuramos conhecer a origem dos
fenómenos esbarramos, quase sempre, com lendas e
mitos. Sempre é uma forma muito humana de cunhar
o nascimento de algo e localizá-lo na nossa lenta,
complexa e longa evolução.

O vinho deve ter “nascido” lá para as bandas da Ásia


Menor, já que as uvas selvagens são apreciadoras do
clima mediterrânico. Mas, o melhor é atribuir o seu
nascimento ao lendário rei persa, Jamshheed, que
gostava de comer uvas todo o ano. Para o efeito
eram armazenadas em jarras, potes ou tonéis, enfim,
num qualquer contentor da época.

Um dia, as uvas retiradas de um desses potes


estavam amargas, além da presença de um líquido
com estranho aroma. Foi considerado como veneno.
Uma das jovens da corte, concubina ou esposa, tudo
depende da versão escolhida, dada à tristeza e à
depressão, resolveu aproveitar o tal líquido
classificado como veneno para por fim à vida. E se
assim pensou, melhor o fez. Ao consumir o líquido
começou a sentir-se feliz e bem-disposta, não

303
Salvador Massano Cardoso

obstante ter bebido tamanha quantidade, já que


acabou por “adormecer”. Ao amanhecer, sentiu-se
diferente e comunicou ao rei os poderes de cura de
tão milagroso líquido – presumo que os efeitos da
ressaca não a deverão ter incomodado muito! O rei
experimentou, gostou, deu a beber aos seus súbditos
e proclamou o dito como “medicamento real”.

Assim nasceu o vinho! Como um medicamento que


evitou um suicídio! Nada melhor para fazer a sua
entrada na vida dos homens.

Mas a história deverá ter sido outra, não tão


“poética”!

Existem elementos que provam a produção


rudimentar de vinho no neolítico. Neste período há
indícios de “cozinhas” e de vários utensílios que
provam o armazenamento de grãos e de vinho. A
produção de bebidas alcoólicas não se cingia apenas
a este último, já que há, também, evidências de
cerveja.

A revolução culinária deste período deverá ter dado


origem à nouvelle cuisine neolítica. À noite
debicariam os diferentes pratos acompanhados de um
tinto, cuja qualidade desconhecemos, mas que,
ingerido em excesso, decerto, não deixaria de

304
Notas de Saúde Pública e Ambiental

provocar alguns conflitos. De qualquer modo as


ressacas neolíticas não deveriam ser muito diferentes
das de hoje, e as complicações sociais e familiares do
abuso, também não. Transformar um “medicamento”
num “veneno” social e biológico é típico dos
homens....

VINHO E CIVILIZAÇÕES

Não há civilização que se preze que não tenha a sua


própria atitude e história em termos de produção e de
consumo de bebidas alcoólicas.

Gregos, romanos babilónios, persas, hindus, egípcios,


entre outros, fazem referências ao vinho, às suas
virtudes, aos seus efeitos, realçando as suas
propriedades na arte, na literatura e nos mais
diversos eventos. Tal foi, e é, a importância do vinho
que, até, teve direito a atributos divinos
personificados em Dionísio ou em Baco, para não
falar no simbolismo cristão e uso na Eucaristia ou nas
múltiplas referências bíblicas que vão desde a
bebedeira de Noé à transformação de água em vinho
por Cristo, passando por símbolo de prosperidade ou
mesmo o seu uso como remédio, na perspectiva de

305
Salvador Massano Cardoso

São Paulo ao recomendar a Timóteo para beber um


pouco de vinho às refeições para não ficar fraco de
estômago e com dor de cabeça.

A difusão da cristandade acompanhou-se da


divulgação do vinho, tornando-se numa forma própria
de estilo de vida mediterrânica. Para o efeito,
algumas ordens monásticas deram um contributo
notável.

O comércio floresceu de tal forma que culminou numa


das mais lucrativas actividades humanas. Na
Inglaterra, sob o reinado de Isabel I, além da
ingestão já generosa de cidra e de cerveja,
consumiam-se, anualmente, mais de 40 milhões de
garrafas de vinho, para uma população de pouco
mais de 6 milhões!

CERVEJA

Falar de bebidas alcoólicas e só falar de vinho seria


uma heresia imperdoável.

A Suméria é considerada como berço da civilização,


mas também é a fonte da cerveja, ao ponto de
consagrar uma deusa a esta bebida: Ninkasi!

306
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Há cerca de 4.000 anos, um provável apreciador de


cerveja escreveu um poema homenageando Ninkasi
que, afinal, parece ser também uma receita para a
sua produção. Desde então, é raro o povo que não se
tenha tornado ninkasiano.

Há quem afirme que é a bebida alcoólica mais antiga


desenvolvida pelo homem. De qualquer modo, foi
considerada durante muito tempo como o pão dos
pobres e uma forma eficaz de evitar o consumo de
águas inquinadas. Apesar de hoje, nos países
ocidentais, não faltar pão e a água ter deixado de ser
veículo de infecções, os seres humanos continuam a
idolatrar de forma intensa, particularmente durante
as festividades, em certas épocas, do ano, a deusa
Ninkasi. O consumo da “bebida da felicidade” não
pára, nem para lá caminha...

VINHO E ALIMENTO

Um dos aspectos mais controversos tem a ver com o


consumo de álcool. Os seres humanos, assim como
outras espécies têm capacidade para metabolizar o
álcool. Numa perspectiva evolucionista, alguns
autores, entre os quais se destaca Dudley, realçam o

307
Salvador Massano Cardoso

impacto de pequena quantidades de etanol, em


determinadas épocas do ano. A fermentação natural
origina o aparecimento de pequenas quantidades de
etanol nos frutos, mas numa concentração inferior a
um por cento. Alem de eventuais mecanismos de
dispersão, estratégia assumida pelas árvores de
fruto, ao maximizarem a sua dispersão, e “utilizando”
o álcool como atractivo, em termos de sabor e de
odor, é admitido que, face às carências alimentares,
os seres vivos não podiam desperdiçar o seu uso.

Ao longo dos últimos 40 milhões de anos as


vantagens na utilização de frutos estão bem
documentadas, o que significa que a evolução
favoreceu os que a melhor utilizem, incluindo os
produtores de álcool. Quanto ao papel benéfico, em
termos fisiológicos do álcool, defendido por Duddley,
ao diminuir as doenças cardiovasculares e a
aumentar a esperança de vida não parece ser,
minimamente, convincente, porque naquelas eras
estes problemas não se punham, como é óbvio, já
que as doenças cardiovasculares se manifestam,
habitualmente, a partir de uma idade que os nossos
antepassados nem “sonhavam” que era possível
alcançar.

O facto do álcool ocorrer naturalmente em

308
Notas de Saúde Pública e Ambiental

determinadas épocas do ano, mas em pequenas


concentrações, e ter um papel nutritivo indiscutível,
face aos regimes alimentares então praticados,
parece ser interessante, justificando o seu uso.
Actualmente, esta posição encontra-se “desvirtuada”
face à facilidade com que se retira uma garrafa de
bebida com álcool de uma qualquer prateleira de um
qualquer supermercado!

Tal como tem sido demonstrado em muitas outras


áreas, as vantagens selectivas, em termos de
adaptação, do consumo de etanol acabaram – para
muitos seres humanos – por tornar-se desvantajosa.

VINHO E SAÚDE

Os efeitos nefastos do álcool são conhecidos desde os


primórdios. No livro de Bernardino Rammazzini, “Arte
de Conservar a saúde dos Príncipes, e das Pessoas da
Primeira Qualidade, como também das nossas
Religiosas”, publicado no início do século XVIII, o
professor de Modena afirma o seguinte: “Porèm naõ
há cousa alguma, que taõ clara, ou occultamente seja
mais contraria à saude dos Principes, ou outros
Grandes, como he o uso do vinho immoderamente; e

309
Salvador Massano Cardoso

o que mais he, que naõ só padece a sua saude, senaõ


a sua reputacaõ, e gloria.” Mais à frente cita
Androcidas homem muy sabio, escrevendo a
Alexandre Magno, como nos conta Plinio, para lhe
persuadir se abstivesse da desordem do vinho, lhe
lembra: Que em bebendo vinho bebia o sangue da
terra.

Quanto aos seus efeitos benéficos descreve: He certo


que o vinho em pouca quantidade, e com moderação,
fortifica o corpo; mas da mesma sorte he certamente
sem ella muy nocivo, e prejudicial! ... O vinho he
cousa da natureza do fogo, nenhuma cousa he mais
util, nenhuma cousa mais nociva.

Francisco de Mello Franco, médico, autor de várias e


importantes obras descreve nos “Elementos de
Hygiene, ou Dictames Theoreticos, e Practicos para
Conservar e Prolongar a Vida”, publicado no início do
século XIX, o seguinte: “O vinho bom agrada á vista
pela côr, e pureza, ao olfacto pelo cheiro, e ao
paladar pelo gosto. Com estas qualidades he
nutriente, e saudavel, se usarmos delle
moderadamente. Não se póde porém determinar ao
justo, qual seja o limite desta moderação...

Segundo o que temos observado em Portugal,

310
Notas de Saúde Pública e Ambiental

nenhum homem, ainda do maior trabalho corporal,


deve passar de meia canada de vinho até tres
quartilhos por dia. Os que tem vida menos activa, ou
sedentaria não devem exceder de hum até dous
quartilhos, quando muito, se o temperamento he
frouxo, e phlegmatico...

As mulheres, crianças, e pessoas moças devem


abster-se delle, a não ser aconselhado como
remédio...”

No livro “Do Vinho e do Haxixe comparados como


meios de multiplicação da individualidade” Baudelaire
afirma que “O vinho é semelhante ao homem: nunca
se sabe a que ponto se pode estimá-lo ou desprezá-
lo, amá-lo ou odiá-lo, nem de quantas acções
sublimes ou de proezas monstruosas ele é capaz.
...Confesso que perante os benefícios não tenho
coragem de contar os malefícios. Um homem que só
bebe água tem um segredo a esconder dos seus
semelhantes…” No entanto, no Le Spleen de Paris,
este autor, não deixa de apelar à embriaguez, e fá-lo
de uma forma curiosa: “É preciso que vos
embriagueis sem tréguas. Mas de quê? De vinho, de
poesia, ou de virtude, à vossa vontade”. Flaubert
(Correspondência a Georges Sand) opta por uma
postura mais equilibrada: “Que a clausura a que me

311
Salvador Massano Cardoso

condenei seja um estado de delícias, não! Mas que


fazer? Embriagar-me com a tinta vale mais do que
embriagar-me com aguardente”

O consumo imoderado de bebidas alcoólicas em


Portugal é relativamente recente. Carlos Veloso, no
livro “A Alimentação em Portugal no Século XVIII –
nos relatos de viajantes estrangeiros”, cita Saussure,
(Cartas, Lisboa, 1730): “ Em geral o Português é
sóbrio, quer na bebida quer na comida. Um inglês, à
sua conta, come mais carne de açougue e bebe mais
vinho que quatro ou cinco Portugueses juntos”. O
português tinha fama de frugal e de sóbrio, a atirar
mais para o primeiro. De qualquer modo, tudo aponta
para que o comportamento de não excesso de
bebidas alcoólicas fosse apanágio dos Reis de
Portugal, (desde D. João I). A “fama de tais virtudes”
era partilhada, em geral, pelos súbditos. Carlos
Veloso revela a existência de “Indícios seguros de que
a embriaguez era considerada como gravíssima falta
social (meios sociais médios e elevados).

Viajantes estrangeiros, apesar das criticas aos nossos


hábitos e costumes, são unânimes em considerar que
“Na Europa do século XVII e meados do Século XVIII,
não há povo que menos se entregue ao vício
indesculpável da bebida (Colbatch, Saussure,

312
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Merveilleux, Gorani, Dalrymple)”. Mas tudo muda! A


partir do reinado de D. José surgem mudanças. O
rei, que antes do terramoto era abstémio, deixou de
o ser. Depressão… terapêutica médica? Vinho! Gostou
e abusou… Mas as causas não ficaram por aqui,
porque também é imputada aos ingleses, à guerra e à
miséria a mudança dos hábitos alcoólicos dos
portugueses .

ÁLCOOL, DESPORTO E PUBLICIDADE

Um dos aspectos mais controversos prende-se com a


publicidade ao álcool. Os códigos são elaborados com
determinados fins, nomeadamente a protecção dos
consumidores.

O desporto congrega em si uma mensagem positiva


para a vida em sociedade mas a ânsia em procurar
financiamentos para as suas actividades, leva a uma
distorção do fenómeno desportivo para a promoção e
venda de produtos que são, obviamente,
contraproducentes para o objectivo desportivo.

Falar de publicidade das bebidas alcoólicas num


determinado contexto, mesmo que seja numa área

313
Salvador Massano Cardoso

restrita, é sem dúvida muito importante. De facto, a


associação de bebidas alcoólicas a figuras que
constituem referências e exemplos para jovens em
formação, assim como a diferentes e populares
práticas desportivas, podem induzir comportamentos
errados e fomentar o seu consumo.

A publicidade, em geral e a das bebidas alcoólicas em


particular tem sido alvo de atenções e de análises
mais ou menos complexas. As técnicas utilizadas são
cada vez mais sofisticadas e não deixam de ter como
alvo os jovens, mais permeáveis à interiorização de
certos conceitos, os quais com a idade vão sendo
abandonados.

Numa economia do álcool há que manter uma fatia


da população em permanente estado de consumo. As
pessoas à medida que envelhecem vão temperando
os seus hábitos, deixando de beber ou reduzindo a
ingestão, logo, há necessidade de fomentar o seu uso
na população adulta e nos jovens.

Os produtores de bebidas conhecem perfeitamente a


situação e não se ensaiam nada em promover
diferentes actividades que vão desde as desportivas
às culturais. Os investimentos apesar de vultuosos
têm retornos garantidos. Na luta contra o alcoolismo,

314
Notas de Saúde Pública e Ambiental

as medidas destinadas a limitar a publicidade e a


promoção das bebidas são bem vindas, desde que
devidamente estruturadas e fazendo parte de um
leque mais amplo.

A publicidade ao álcool movimenta montantes muito


elevados. Só nos E.U.A. são despendidos mais de mil
milhões de dólares anualmente. Em princípio, a
publicidade deveria transmitir informação ao
consumidor, mas na prática não acontece. Os
publicitários conduzem toda as acções para os
interesses dos promotores. Para isso é que recebem
dinheiro.

A publicidade aos produtos tem fundamentalmente


dois objectivos: aumentar o consumo e conquistar o
terreno da concorrência. O aumento do consumo de
um produto, ou a diminuição do mesmo, em
consequência da publicidade ou da sua proibição tem
os seus limites naturais. Há sem dúvida uma margem
do efeito publicitário que nalgumas circunstâncias,
caso das bebidas alcoólicas, tem tendência a
estacionar. Quando os conhecimentos de uma
população permitem conhecer melhor as
consequências dos efeitos nefastos para a saúde, o
consumo tende a deter-se. Neste caso a publicidade
não faz aumentar o consumo, mas sim desviar os

315
Salvador Massano Cardoso

consumidores de marca para marca. Ou seja,


mantêm-se a proporção dos consumidores, o que
varia é o tipo de consumo. A mudança de hábitos de
consumo de um determinado tipo para outro, caso do
vinho para a cerveja, foi determinada pela
agressividade da publicidade de uma delas, aliada aos
baixos preços na aquisição e a condições sociológicas.
No cômputo geral, o consumo per capita de álcool
não sofreu grandes variações. Mas, não deixa de ser
curioso que o consumo de cerveja se inicia mais cedo
do que o vinho e em circunstâncias sociais mais
promissoras. A guerra entre os diferentes tipos de
cervejas ilustra bem este fenómeno. A proporção de
consumidores mantêm-se estável, mas a alternância
das marcas são bem evidentes. A publicidade neste
caso não faz mais do que oscilar a escolha entre elas.

A procura de financiamentos para determinadas


actividades culturais e desportivas tem sido uma
constante em qualquer parte do mundo ocidental.
Muito daquilo que nos orgulha e que constitui um
símbolo da civilização tem na sua origem verbas
provenientes de actividades cujo impacto na saúde e
no comportamento é no mínimo curioso. Senão
vejamos: quantos festivais e eventos desportivos não
forma promovidos pela indústria tabaqueira?

316
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Incontáveis. À medida que se foi conhecendo os


efeitos na saúde, foram desencadeadas medidas
destinadas a reduzir o consumo. Uma das medidas
tem a ver com a publicidade que, lentamente, foi
atingindo patamares mais ambiciosos acabando pela
proibição total. Não deixa de ser curioso a influência
dos governos junto das autoridades de saúde mundial
no sentido de não ser incluída na convenção sobre o
tabaco o sentido da proibição do mesmo. Inicialmente
esteve contemplada, depois foi retirada e só com o
esforço de muitas individualidades e associações,
nomeadamente a Associação Médica Mundial, foi
possível voltar a reintroduzi-la e, estamos a falar da
OMS! Quais os motivos destas mudanças? Os
governos não queriam assumir a promoção de
determinados eventos que, pela sua natureza,
constituem encargos elevados, pelo que os próprios
fizeram esforços no sentido de evitar a proibição
publicitária. Verdadeira hipocrisia governamental. A
cultura e o desporto têm um preço e nada mais fácil
do que passar para promotores privados. Nada a
opor, desde que não haja conflitos com os interesses
superiores dos cidadãos, nomeadamente no que diz
respeito à sua saúde. Mutatis mutandis, podemos
afirmar que, no que toca à publicidade das bebidas
alcoólicas, há necessidade de rever a legislação, de

317
Salvador Massano Cardoso

forma a limitar os impactos negativos na saúde e


comportamento das pessoas, com particular
incidência nos jovens em formação.

As preocupações com os excessos do álcool começam


a ser alvo das atenções dos próprios industriais que,
serodiamente, vêm defendendo a necessidade de
consumos moderados. Vale mais tarde do que nunca.
De qualquer modo, esta preocupação que vemos
contemplada nos cartazes e noutros tipos de
publicação poderão ter algum impacto e antecipa um
conjunto de normativos comunitários destinados a
reduzir e a minimizar um dos mais graves problemas
de saúde pública que, entre nós, atinge foros de
calamidade, traduzidos no elevado número de
doentes, de mortos, de conflitos de vária espécie,
além de ser um factor de empobrecimento colectivo.

As bebidas alcoólicas, ao longo dos tempos esteve,


está e estará ligado de uma forma íntima ao homem.
Faz parte das culturas da quase totalidade dos povos,
constitui mesmo uma essência da vida, está na base
da sociabilidade, inspirador, inclusive, de muitos
feitos da criatividade, possui, dentro de determinados
limites, efeitos eventualmente protectores a nível da
saúde, mas tem um reverso que obriga a
regulamentar o seu uso, a par de uma formação e

318
Notas de Saúde Pública e Ambiental

informação adequada a todos os cidadãos, sobretudo


aos mais jovens. Limitar o seu consumo, em
determinadas circunstâncias é salutar e ninguém põe
em causa, as medidas referentes à condução
rodoviária ou no local do trabalho. No cômputo geral
as limitações ou mesmo a proibição da publicidade,
em determinados contextos, pode contribuir para
equilibrar a situação que é tão necessária e urgente
entre nós.

As medidas de carácter político têm, por vezes, muito


mais peso do que a aplicação no terreno dos
conhecimentos dos técnicos, cientistas ou
formadores, cujos efeitos exigem o passar do tempo,
característico de qualquer fenómeno de transição
sociológica. Mas, as primeiras têm o condão de se
impor quase que imediatamente garantindo e
promovendo a aceitação e a implementação das
medidas de carácter educacional e promotoras de
saúde.

ÁLCOOL E DOENÇAS CARDIOVASCULARES

A medicina “sabe” , desde há muitos anos, que o


álcool desempenha um papel protector em termos

319
Salvador Massano Cardoso

cardiovasculares, embora continuamos a discutir os


mecanismos da dita protecção.

É do conhecimento dos epidemiologistas que, os que


não bebem álcool e os que bebem em demasia
sofrem mais deste tipo de doenças. Este
comportamento em U é típico de várias situações,
podendo ser explicado, pelo menos em parte, devido
ao facto dos que não bebem poderem ser doentes, e
como tal não bebem, ou, então os que bebem muito,
adoecem e morrem por causa dos excessos. Ficam os
do “meio”, mais saudáveis e, consequentemente,
menos vulneráveis. De qualquer modo, o papel
"positivo" traduz-se num consumo muito moderado,
quase que diríamos em doses “terapêuticas”.

Quando se iniciou este debate, já lá vão muitos anos,


o consumo de vinho em Portugal era elevado.
Entretanto, fruto de vários condicionalismos, começou
a sofrer uma redução, sendo substituído por outros
tipos de bebidas. No cômputo geral não se observou
a desejada redução do consumo de álcool, tão
importante em termos de saúde pública.

A popularização de alguns conceitos começou a dar


forma, nomeadamente ao papel protector
cardiovascular do vinho, sobretudo através do já

320
Notas de Saúde Pública e Ambiental

famoso “Paradoxo francês“. Este conceito resulta do


facto dos franceses apresentarem taxas baixas de
mortalidade por doenças cardíacas, apesar de
comerem muito queijo e serem grandes fumadores,
“compensados” pelas grandes quantidades de vinho
tinto que vão ingerindo. Há quem afirme q forma de
“catalogar” as causas de morte poderão explicar as
diferenças. Veja-se que o “ataque cardíaco” tem
como contrapartida o diagnóstico de doença cardíaca
nas certidões de óbito inglesas, enquanto nas
francesas é aposto: “morte súbita”.

Nos países caracterizados por consumo exagerado de


bebidas alcoólicas, como é o caso de Portugal, e que
está na base de elevada morbilidade e mortalidade, é
um perigo ouvir certos discursos e mensagens,
porque certas pessoas, e não são poucas, sentem-se
legitimados a beber, sobretudo vinho. A conversa
“meio-fiada” que alastra na nossa sociedade, e com o
“alto patrocínio” de muitos médicos, aponta para as
virtudes terapêuticas do vinho tinto. E porquê o vinho
tinto?

De facto, o vinho tinto apresenta, entre centenas e


centenas de substâncias, algumas, como os
polifenóis, cuja acção antioxidante é reconhecida.
Resta saber se nas doses “prescritas” desempenhará

321
Salvador Massano Cardoso

ou não um papel protector.

A procura incessante de mecanismos para explicar os


efeitos protectores em termos cardiovasculares não
se limitam aos polifenóis. O papel do álcool etílico
associado à cafeína na recuperação das lesões
cerebrais, causadas, experimentalmente, em ratos
sujeitos a obstrução de artérias cerebrais, parece
ser positivo, embora se desconheça o seu papel nos
seres humanos vítimas de acidentes vasculares
cerebrais.

Podemos considerar como extraordinária a posição


dos industriais ligados à produção de bebidas
alcoólicas que, recentemente, despertaram para a
necessidade de promoverem iniciativas, das mais
diversas, conducentes a uma ingestão moderada por
parte do cidadão, de forma a limitar ou impedir
consequências nefastas. Tais atitudes denunciam uma
antecipação de futuras medidas legislativas
comunitárias. De qualquer modo o poder dos lóbis
deste sector da economia é muito poderoso, e por
este motivo não deixarão de utilizar todas as espécies
de argumentos para travar e adiar medidas
legislativas.

Os movimentos destinados a salientarem os efeitos

322
Notas de Saúde Pública e Ambiental

benéficos das bebidas alcoólicas tem-se multiplicado


a um ritmo tal que não deverá haver alguém que não
“saiba” qualquer coisita sobre esta matéria. A
matéria é tão aliciante que já foi anunciado o efeito
positivo da cerveja na osteoporose, além do clássico
“tinto” nas doenças cardiovasculares. São alguns
exemplos que têm tido honras de primeira página e
dos noticiários televisivos. E como é raro o dia em
que não surgem novas “descobertas”, já se começa a
falar do resveratrol, substância que reduz de uma
forma intensa as complicações pulmonares
resultantes do efeito do tabaco, além de ser capaz de
prolongar a vida, pelo menos em animais de
experiência. Não tarda que passemos a ouvir também
o papel protector do vinho no “cancro” e no prolongar
da vida!

A polémica criada ao redor da taxa de alcoolemia está


ainda presente. O XIV Governo Constitucional baixou
a taxa máxima para 0,2 g/l, facto que originou
contestações a vários níveis. Foram ouvidos peritos
que argumentavam que a cifra proposta era a mais
adequada, face à elevada sinistralidade rodoviária
que caracterizava e continua a caracterizar o nosso
país. De facto, a medida tinha objectivos bem
definidos. No entanto os opositores a tal medida

323
Salvador Massano Cardoso

argumentavam que muitos países mantinham a taxa


de alcoolemia de 0,5 g/l e tinham taxas de
sinistralidade inferiores à nossa, que a medida iria
provocar colapso económico dos produtores de vinho
com impacto significativo na economia nacional, para
não falar de alguns que chegaram a afirmar que “ o
cozido à portuguesa sem o vinhito não seria o
mesmo”! Contra-argumentaram que os valores até
aquele limite não provocavam quaisquer alterações
do comportamento. Quanto aos efeitos na
sinistralidade rodoviária os representantes do lóbi do
álcool adicionaram mais argumentos do género: a)
Muitos dos sinistrados não apresentavam álcool no
sangue; b Os acidentes se deviam ao mau estado das
estradas e/ou das viaturas; c) A falta de civismo era
o factor mais importante (e realmente até é). Foram
tantos os argumentos e as pressões públicas que
levou à suspensão temporária da lei, até que foi
"restaurado" o limite anterior, na IX legislatura.

Um dos argumentos mais esgrimidos estribava-se no


facto de que, até 0,5g/l de álcool no sangue, não
ocorriam quaisquer alterações neurológicas que
pudessem por em causa a segurança rodoviária. Não
deixou de ser curioso que a grande maioria provava
inclusive com a sua experiência diária (subjectivismo

324
Notas de Saúde Pública e Ambiental

susceptível de erros grosseiros)!.

Em França o Ministro do Interior Francês, Nicolas


Sarkozy desenvolveu esforços no reforço das medidas
legais de condução sob o efeito do álcool. Daqui
resultou um conjunto de consequências conhecidas
pelo “Efeito Sarkozy”. O movimento de contestação
foi muito forte, porque a indústria francesa do vinho
sofreu graves dificuldades, não obstante os generosos
subsídios atribuídos, houve uma quebra de 10% na
exportação e uma quebra nas vendas internas na
ordem dos 5%.

A ciência fornece constantemente novos elementos


que podem influenciar as decisões políticas. Num
número recente da revista Science, foi publicado um
trabalho interessante de Richard Ridderinkhof da
Universidade de Amesterdão. Este autor provou que
uma zona particular do cérebro, responsável pela
monitorização de um processo de reconhecimento de
sinais de erro, sofre importantes alterações, mesmo
com doses moderadas de álcool (abaixo dos limites
aceites em muitos países, o nosso incluído). Como no
decurso da condução estamos constantemente a
corrigir erros, é fácil compreender as eventuais
consequências. Sendo assim, o álcool interfere com
um componente crítico do controlo cognitivo, o qual

325
Salvador Massano Cardoso

pode explicar, porque é que as pessoas sob o efeito


da influência do álcool não conseguem (nem
admitem!) reconhecer a má performance e persistem
nesta posição. Perante estes novos dados (e estudos
subsequentes) é de prever que, mais tarde ou mais
cedo (naturalmente mais tarde, por motivos
óbvios...), a taxa de alcoolemia irá sofrer uma
redução.

Convinha sensibilizar todos os agentes com interesses


neste sector (nomeadamente produtores e
consumidores de álcool) a adaptarem-se a uma nova
realidade. Isto de andar na estrada, sobretudo em
Portugal, é um perigo real de morte. O civismo não é
passível de decreto, mas a taxa de alcoolemia é.

De acordo com World Drink Trends, os maiores


produtores mundiais são os seguintes por ordem
decrescente: França, Itália, Espanha e Portugal.

A nível mundial o consumo médio de álcool oscila ao


redor dos 3,8 litros per capita, enquanto na Europa
sobe para os 9,3 litros. No caso do nosso pais sobe
ainda mais, para os 10,6 litros.

De acordo com World Health Report o consumo de


álcool é responsabilizado por cerca de 4% da
morbilidade global, 3,2% nos países desenvolvidos e

326
Notas de Saúde Pública e Ambiental

por 9,2% dos DALY (anos de vida ajustados à


incapacidade)

“BINGE DRINKING”

Ultimamente tem sido referenciado um determinado


tipo de comportamento designado por “binge
drinking”. Este termo significa ingestão excessiva ou
imoderada de bebidas alcoólicas com o objectivo de
obter um efeito de intoxicação etílica imediata. Sob o
ponto de vista psiquiátrico o “binge drinking” é
entendido com uma forma de ingerir bebidas de
forma prolongada descurando totalmente quaisquer
outras actividades pelo menos durante dois ou tês
dias. Muitas destas pessoas comportam-se
normalmente em termos de consumo moderado de
álcool durante alguns meses e, de repente, bebem
que nem uns desalmados, descurando actividades
pessoais, profissionais e familiares. Em termos
populares “binge drinking” é considerado como uma
simples sessão de procura, o mais rapidamente
possível, do estado de intoxicação alcoólica.

Há quem pretenda estabelecer pontos de corte para


definir este comportamento. Do outro lado do oceano,

327
Salvador Massano Cardoso

nos EUA, a ingestão de cinco bebidas uma atrás de


outra nos rapazes e quatro nas raparigas é
considerado como “binge drinking”. Há problemas
com o teor de álcool das mesmas, que varia de pais
para pais. Este conceito tem sido rebatido, devido ao
facto de uma pessoa poder ser considerada como
tendo um comportamento deste tipo, no decurso de
alcoolismo –

Quando uma pessoa começa a beber álcool não sente


necessidade do mesmo para se sentir bem. Com o
tempo as coisas podem mudar.

O etanol é um poderoso químico que sendo


ligeiramente tóxico estimula a libertação no cérebro
de grandes quantidades de dopamina. A dopamina
está associada a sensações de bem-estar e de prazer.
O cérebro “gosta” destas sensações e, com o tempo,
acaba por exigir a ingestão de mais álcool.

O uso frequente de álcool pode levar à depleção


cerebral de dopamina. Se a dopamina diminui a
“ordem” é para ingerir quantidades cada vez maiores
de álcool. A redução de dopamina origina sensação da
mal-estar, irritação, infelicidade, irritabilidade.

A rapidez com que um individuo se torna alcoólico


varia de pessoa para pessoa, com a idade e o sexo.

328
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Um adulto demora cerca de quatro ano ao alcoolizar-


se, ao passo que um adolescente pode demorar
apenas um ano.

Razões para a rapidez da alcoolização nos jovens:


flutuação hormonal, dimensões corporais inferiores,
células cerebrais mais sensíveis aos efeitos do álcool.

329
Salvador Massano Cardoso

330
Notas de Saúde Pública e Ambiental

"FAZ MAL, MAS SABE BEM"

Atitude hedonista

O homem é um animal muito especial. O facto de ter


consciência da sua existência determina que sofra de
ansiedade permanente face ao seu futuro, o qual,
inexoravelmente, termina na morte. Assim, a sua
pequenez e fragilidade é vital para compreender as
atitudes hedonistas que desde sempre procurou e que
continua a cultivar nas mais variadas formas.

Parafraseando um escritor francês, cujo nome já não


consigo recordar, “o homem é o único animal que
bebe sem ter sede, come sem ter fome e faz amor
em todas as estações”.

Ora aqui estão três coisas que sabem bem, mas


podem fazer mal.

De todas as actividades humanas há duas que são


vitais: a alimentação e o sexo. E, podemos mesmo
hierarquizar, afirmando que em primeiro lugar está a
alimentação – garantir a sobrevivência individual –
seguida pela actividade sexual, ou seja, garantir a

331
Salvador Massano Cardoso

perpetuação da espécie. Aliás, é muito difícil a última


prática com fome, como é evidente.

A procura dos alimentos, numa primeira fase da


nossa existência, não foi nada fácil e presumo que os
nossos antepassados não estariam muito
preocupados com questões de natureza
gastronómica. Ninguém consegue imaginar um
australopiteco, um Homo erectus, ou um sapiens
troglodita a escolher os alimentos mais saborosos.
Comiam o que havia e, mesmo assim, é muito pouco
provável que sofressem de graves carências
nutricionais.

A primeira grande revolução, a do fogo, permitiu uma


melhor utilização dos alimentos tornando-os mais
digestíveis e decerto mais saborosos. Quem sabe se
os primeiros efeitos de substâncias cancerígenas não
terão ocorrido nestes períodos. Carne mais saborosa,
acompanhada de carcinogénios.

Aqui está um belo exemplo da proposta que me foi


colocada “Sabe bem, mas faz mal”. Ainda hoje
mantêm a sua actualidade. O uso não correcto do
fogo pode originar benzopirenos. Cuidado com os
grelhados e a carbonização dos peixes, das febras e
churrascos.

332
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Sendo o cancro uma das principais causas de


mortalidade e de morbilidade e que resulta de uma
interacção entre os genes e o meio ambiente,
podemos afirmar que em 90% é da responsabilidade
ambiental e neste caso a alimentação é um dos
principais factores.

A formação de compostos dotados de actividade


carcinogénica ocorre em muitas outras situações. É o
caso dos nitritos adicionados intencionalmente aos
alimentos ou produzidos por bactérias nitrificantes, os
quais estão na base das nitrosaminas.

Já que falamos de presuntos, não podemos esquecer


os efeitos das fumagens, extensíveis aos enchidos
que são, confesso, uma das minhas perdições e que
contêm substâncias perigosas para a saúde. Julgo
que muitos ainda se recordarão dos velhos presuntos
conservados em salmoura. O teor de sal e também de
nitrosaminas deveriam ser monstruosos susceptíveis
de provocarem ou facilitarem o desencadeamento de
cancros e de hipertensão arterial, mas, mesmo assim,
não esquecemos, facilmente, os seus estranhos
sabores. Não podemos esquecer que a memória
proustiana é das mais poderosas.

Falemos de sal, o elemento que foi considerado como

333
Salvador Massano Cardoso

sinónimo de vida, e com toda a razão. Hoje, está


diabolizado e compreende-se por quê. Apesar de
algumas controvérsias, estão bem definidas as
consequências. Citamos a hipertensão que, entre nós,
atinge, ainda, valores muito exagerados,
ultrapassando as 12 g/dia e, nalguns casos em muito.
São inúmeros os alimentos ricos em sal. Na nossa
época os alimentos pré confeccionados são muito
apelativos e saborosos, mas contêm teores de sódio
muito elevados. Utilizados para conservar e dar-lhes
o tal sabor, são responsáveis, em grande parte, pela
hipertensão e, consequentemente, por muitos
acidentes cardiovasculares, nomeadamente acidentes
vasculares cerebrais. Já falamos do presunto das
salgadeiras, mas a panóplia é tão extensa que nem
as pipocas se safam.

Sabem bem, mas fazem mal. Se fosse possível


reduzir em apenas 10% o teor de sal nestes tipos de
alimentos poderíamos observar uma diminuição
substancial da morbilidade e mortalidade
cardiovascular. São necessárias medidas de carácter
político que auxiliem a luta contra a hipertensão.
Passam, nomeadamente, pela redução nos alimentos,
sobretudo os pré-confeccionados, assim como a
rotulagem dos mesmos. Hoje em dia, os portugueses

334
Notas de Saúde Pública e Ambiental

têm conhecimentos e apetência para modificarem os


seus hábitos, conforme tivemos, recentemente,
oportunidade de verificar através de um inquérito.

As conquistas observadas nas últimas décadas


permitiram produzir e conservar alimentos em
quantidade e em qualidade. No mundo ocidental é
muito difícil passar fome. Foi sobretudo, a partir das
últimas décadas que o acesso aos diferentes produtos
alimentares se liberalizou e democratizou. Basta ver a
prevalência de pessoas com excesso de peso e
obesas para concluirmos que não falta apetite aos
nossos concidadãos, os quais, habitualmente,
procuram dentro do mercado aqueles que são mais
saborosos e, muitas vezes também os mais
energéticos.

Uma boa conversa, uma comemoração, uma festa,


constituem motivos para circundarem mesas bem
recheadas de coisas boas, mas que poderão
eventualmente fazer mal.

O conceito de fazer mal é relativo e depende, entre


outros aspectos, das características fisiológicas dos
indivíduos e da abundância com que são ingeridos e
sua frequência. Paracelso, afirmou que a diferença
entre medicamento e veneno é apenas uma questão

335
Salvador Massano Cardoso

de dosagem. Ora, no que toca aos alimentos


podemos e devemos aceitar esta máxima. As
sardinhas não fazem mal, mas as sardinhadas sim, é
um exemplo.

As ditas “junk food” constituem um dos grupos de


alimentos mais problemáticos, susceptíveis de causar
situações desagradáveis para os seus habituais
consumidores. A tal ponto que, nos E.U.A., se pense
já começar com esquemas semelhantes ao observado
com o tabaco. Começam a aparecer processos
judiciais tipo Big Tobacco, agora na versão Big Fat,
responsabilizando as companhias pelas múltiplas
afecções e desvios metabólicos. É discutível, dirão
alguns, as atitudes dessas pessoas. Só come “junk
food” quem quer. Na prática, não é bem assim. Além
da publicidade aos produtos em causa, sabe-se que
devido à sua composição provocam modificações a
nível cerebral originando como que uma verdadeira
dependência. A satisfação é rápida e
simultaneamente fonte de prazer. De tal modo que
permite a ingestão de mais produtos ao fim de algum
tempo, contribuindo para um excessivo aporte
energético e desvio metabólico.

O álcool sabe bem. Tanto é assim que após a sua


descoberta, muito provavelmente acidental, o homem

336
Notas de Saúde Pública e Ambiental

nunca mais o largou. Hoje está presente de uma


forma absorvente e constitui um laço para fazer
amizades, para a socialização, para efectuar
negócios, para as mais diversas comemorações.
Todos temos consciência da sua importância,
abrangência social e consequências nefastas. O álcool
é um dos principais paradigmas do “sabe bem, mas
faz mal”. Faz mal, apenas quando não se respeita
certas regras e princípios. A publicidade que
ultimamente tem rodeado as bebidas alcoólicas,
relativamente ao seu papel protector, nomeadamente
cardiovascular, não tem sido devidamente
acautelado, até porque o consumo, ainda que
moderado pode ser perigoso, para as crianças
durante o seu desenvolvimento fetal, ou para a
própria mulher como co-responsável pelo
aparecimento da neoplasia da mama. Não sei se as
confrarias ligadas aos vinhos, às cervejas ou
quaisquer outras bebidas também publicitam estes
aspectos. Lá que apelam aos consumos moderados é
um facto.

337
Salvador Massano Cardoso

Tabaco

Seria uma estultícia falar para tão credenciada


audiência sobre os malefícios do tabaco. O problema
assenta nas consequências individuais e sociais. As
medidas destinadas a evitar este flagelo tem sido
amplamente divulgadas e alvo de comentários,
críticas e de medidas legislativas.

Quando se começa a fumar, o que sentimos – eu


também já fumei – é um terrível e estúpido mal-
estar. Só a partir do momento em que ficamos
dependentes é que começamos a sentir o prazer.
Pudera. Estamos dependentes!

As medidas de carácter legislativo, proibindo o seu


consumo em locais específicos, são bem-vindas e têm
dado bons resultados. Mas, há sempre um mas, e
neste caso, pode, eufemisticamente falando, fazer
mal. Não a sua proibição, mas o que lhe pode estar
associado. A melhor forma de traduzir este conceito é
através de um caso concreto. O caso de Harry Eiflick.

Em 17 de Agosto de 1993 um homem a quem foi


recusado efectuar testes para a realização de um

338
Notas de Saúde Pública e Ambiental

bypass cardíaco morreu, vítima de enfarte. A recusa


baseou-se no facto de ser fumador. Só lhe faziam os
exames se deixasse de fumar. Perante esta exigência
acabou por abandonar o vício o que permitiu ao seu
médico marcar para o dia 19 de Agosto a realização
dos testes. Tarde demais.

O caso de Harry Elphick desencadeou um vivo debate


no Reino Unido. Até que ponto os médicos podem
tomar atitudes destas? A exigência do clínico baseou-
se em conceitos moralistas e não em critérios
médicos. É certo que o tabaco é um importante factor
de risco cardiovascular e não só. É certo que muitas
pessoas precisam de cuidados terapêuticos. É certo
que os custos com os cuidados de saúde aumentam
de forma exponencial. Mas não é correcto cercear
cuidados com base em princípios que violem os
direitos dos seres humanos.

Ao fim de mais de uma década, as autoridades de


saúde britânicas propõem que não sejam ministrados
tratamentos médicos aos doentes que recusem
modificar os seus estilos de vida não saudáveis.
Assim, se um fumador recusar abandonar os seus
hábitos, é-lhe vedada a cirurgia cardíaca, a menos
que faça uma promessa nesse sentido.

339
Salvador Massano Cardoso

A moralização da medicina é um perigo real. Um dia


poderá acontecer que uma pessoa não tenha acesso
ao tratamento, porque, no entender do médico (?)
moralista, bebe álcool, fuma, não tomou os
respectivos cuidados nas suas relações sexuais, não
usava o capacete de protecção no local de trabalho,
continua a praticar exercícios violentos (já é a
segunda vez que parte a perna a fazer esqui!),
continua a ser um desbragado à mesa, passa a maior
parte do tempo sentado face ao televisor (já tinha
sido avisado de que tinha que exercitar o corpito). Se
os “doentes-desviantes” encontrarem um médico
“pecador”, talvez tenham sorte, senão…

Combater estilos de vida não saudáveis é uma


obrigação dos responsáveis. Proibi-los ou tomar
atitudes discriminatórias é um erro e um sério perigo.
O melhor é alterar aquele princípio de que ninguém
deverá ser discriminado em função da raça, sexo,
idade, religião, estado socioeconómico,
acrescentando-lhe: ”nem em função dos seus vícios
públicos ou privados”. Se este último aspecto tivesse
sido tomado em linha de conta talvez Harry Elphick
não tivesse falecido aos 47 anos de idade.

340
Notas de Saúde Pública e Ambiental

"Chocolate, Alimento ou medicamento?"…

O chocolate foi considerado como um dos alimentos


dos deuses e apenas os soldados de Montezuma
tinham o direito a usá-lo. Foi fácil para os
conquistadores da América identificar este alimento e
divulgá-lo pelo velho continente. Hoje, o seu consumo
está amplamente divulgado, constituindo um símbolo
de prazer, de festa e alegria. Contém várias
substâncias cujos efeitos são relativamente bem
conhecidos, a par do seu elevado valor energético. O
seu abuso origina quadros de “chocolatismo”, por
vezes bastante graves. É fácil de compreender que o
consumo excessivo é perigoso para a saúde das
pessoas. Mas, hoje em dia, começa a ser objecto de
alguns estudos com forte impacto nos hábitos das
pessoas legitimando ou apelando a um consumo
crescente. O fenómeno não é novo.

Recentemente, verificou-se que um dos constituintes


do chocolate, a teobromina, tinha um efeito
antitússico superior à codeína e sem os efeitos
secundários desta última. Outros apontam para o
facto de os bebés de mulheres que consumiram
chocolate durante a gravidez serem mais "felizes".
Outros estudos chegam a apontar para efeitos

341
Salvador Massano Cardoso

protectores cardiovasculares e até antihipertensores


devido à elevada taxa de flavonóides. Neste último
caso, quando mais negro for o chocolate melhor o
efeito. Mais recentemente constatou-se que as
mulheres que comem chocolate, diariamente,
apresentam níveis superiores de desejo sexual.
Perante estes dados, efeito estimulante da libido, o
chocolate nem devia ser considerado como alimento
mas mais como uma droga ou medicamento. A par
deste efeito, não deixa de ser curioso o facto dos
produtores de cigarros, com o objectivo de atraírem
novos consumidores, ensaiarem cigarros com "sabor"
a chocolate (e até a vinho!).

A divulgação pública, e a forma como fazem (quem


sabe se a comando dos produtores!), pode originar
novos comportamentos além de legitimar outros já
consolidados. Sofre de doença cardiovascular, ou
quer fazer prevenção? Coma uma tablete de
chocolate (mas só tinto… ou melhor só do negro e
amargo) de 45 gramas todos os dias e não se
esqueça do seu tinto! Fuma? Tem tosse? Coma
chocolate e procure aderir aos cigarros chocolatados!
O tabaco faz mal ao coração? Inibe o desejo sexual?
Coma chocolate! Está grávida? Quer que o seu filho
seja mais feliz? Coma chocolate!

342
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Se as coisas continuarem nesta senda ainda corremos


o risco de ao entrarmos numa farmácia encontrarmos
expositores dos mais diversos e ricos tipos de
chocolate. O problema é saber se deveremos optar
pelos de marca ou os genéricos. Os “chocolatólicos e
as chocolatólicas até veriam com muito agrado uma
eventual comparticipação pelo Serviço Nacional de
Saúde na compra da sua tablete diária…

Vigorexia e ortorexia

Actualmente somos confrontados com vários


movimentos destinados a catequizar as pessoas na
aquisição de estilos de vida saudáveis.
Aparentemente nada a opor, até pelo contrário, são
bem-vindos. Só que na prática podem originar
reacções por vezes negativas, já que existem pessoas
mais susceptíveis do que outras, acabando por
adquirir comportamentos, aparentemente, saudáveis,
mas podendo ser fonte de doenças.

A vigorexia, também conhecida por sindroma de


Adónis, é fruto de um estilo de vida, caracterizada
por excesso de treinos, acompanhada de stress,
perturbação do sono, falta de apetite, cansaço, perda

343
Salvador Massano Cardoso

de memória, irritabilidade, desinteresse sexual, só


para citar alguns sintomas. Paradoxalmente, a
procura da beleza e de uma melhor performance
física até tem rebates nos aspectos físicos e estéticos.
Se a estes factos, juntarmos o uso e abuso de
esteróides e anabolizantes, é fácil de compreender
que o risco de doenças hepáticas, cardiovasculares e
disfunções sexuais sejam mais frequentes. Claro que
as academias de ginástica alimentam-se de
verdadeiros candidatos a patologias narcisistas. A par
da vigorexia surge uma nova afecção designada por
ortorexia (apetite correcto). Afinal em que consiste
esta nova entidade? Face aos apelos das dietas ditas
naturais, algumas pessoas passam grande parte do
tempo a planear, a comprar e a confeccionar dietas
“esquisitas” de forma a consumirem apenas o que é
mais saudável, além de evitarem cair em tentações.
Claro que uma boa feijoada, um cozido, uma
caldeirada ou um bom prato de chanfana é uma
tentação, mas uma tentação deveras agradável.

As causas destas situações são complexas e os


atingidos enquadram-se já no foro da patologia. O
que é certo é que para além de uma eventual
susceptibilidade individual, o apelo constante às
práticas naturais e a uma boa performance física

344
Notas de Saúde Pública e Ambiental

podem levar alguns a sofrer de vigorexia e de


ortorexia.

No âmbito da vida social e política detectamos


comportamentos semelhantes à síndroma de Adónis e
à ortorexia, mas é provável que com o tempo
venham a perder o vigor e a ortodoxia “dietética”,
aproximando-se da desejada normalidade…

345
Salvador Massano Cardoso

346
Notas de Saúde Pública e Ambiental

“BIOÉTICA, REFLEXÕES A PROPÓSITO”

Apresentação do livro de Ramon La Feria


Coimbra, 27 de Abril de 2007

Minhas senhoras e meus senhores

Quando o meu colega Ramon La Feria me pediu para


fazer a apresentação do seu livro, “Bioética,
reflexões a propósito”, disse logo que sim, mas
sem uma certa apreensão. As razões são várias:
apresentar uma obra não é tarefa fácil, exige
preparação, muita reflexão e, sobretudo, capacidades
que permitem não trair ou diminuir o esforço do
autor. Além do mais, e apesar de estar habituado a
dar aulas e a fazer conferências, sinto uma certa
timidez expor, a tão selecta audiência, as minhas
apreciações.

Curiosamente é a terceira vez que faço a


apresentação de uma obra, donde poderem concluir
que não tenho um grande currículo nestas matérias.

Os autores das obras são todos médicos. Na primeira


vez apresentei um livro de contos em que a
personalidade do autor estava presente de uma
forma muito especial em muitas das linhas, e

347
Salvador Massano Cardoso

entrelinhas, encantadoras das narrativas. O facto de


conhecer a sua personalidade desde os bancos da
universidade permitiu-me sorrir e relembrar muitos
episódios vividos conjuntamente. Um leitor
privilegiado, portanto. Claro que tive que o
“desmascarar” perante a vastíssima audiência de
então. Acredito que tenham agradecido, e até o
próprio autor, conhecer a faceta do “eterno
malandro” que sabe transmitir humanidade e aceitar
a humildade.

A segunda vez foi mais complexa. O autor elaborou


uma verdadeira história, análise descritiva e ensaio
critico sobre os sistemas de saúde em Portugal. De
uma forma exaustiva conseguiu compilar
documentos, analisá-los e interpretá-los, contribuindo
de uma forma louvável, para quem queira conhecer
mais aprofundadamente tão importantes fenómenos
da nossa vida colectiva. Comunguei muito das suas
observações e expectativas e discordei de outras, até
porque pertencemos, naturalmente, a quadrantes
ideológicos diferentes, mas comungamos dos mesmos
problemas sociais. Temi pela apresentação, aprendi
com a mesma e penso ter sido esclarecedor, perante
uma obra politica e social.

Hoje, a obra que vou apresentar não é um conto, não

348
Notas de Saúde Pública e Ambiental

é uma história politica da saúde em Portugal, é uma


obra sobre bioética. Mas todas têm algo em comum,
além dos autores serem médicos, são verdadeiros
manifestos de cidadania e de muito respeito pelos
seres humanos. Expressões de profundo e sentido
humanismo, quase que diria comovente, porque
traduzem uma necessidade em respeitar e dignificar
valores e princípios. Para os leitores, estas obras são
fonte de prazer, de reflexão e de aprendizagem para
que o mundo se torne melhor. Acredito que todos,
sem excepção, somos capazes de mudar, dentro das
nossas esferas de acção, o mundo, o mundo brutal,
desumano e injusto.

Ao apresentar a obra de Ramon de La Feria estou a


dar um contributo nesse sentido e, ao mesmo tempo,
enriquecer-me com as suas notas, observações e
ensaios. Para já quero agradecer-lhe o facto de, ao
ler a sua obra, ter aprendido muitas coisas. Sinto que
fiquei mais rico em termos de ética, naturalmente,
mas também como homem. Afinal é isso que temos
de fazer, ensinar e aprender uns com outros.

Nascemos no mesmo ano, embora seja dois meses


mais velho, e licenciamo-nos em medicina também
no mesmo ano, embora em cidades diferentes.
Conhecemo-nos há pouco tempo, mas na prática é

349
Salvador Massano Cardoso

como se tivéssemos sido amigos desde sempre. Há


amizades pré estabelecidas à espera do momento
para se poderem concretizar.

O prefácio do seu livro é assinado por um grande


cirurgião, Fernandes e Fernandes, que, melhor do que
ninguém, consegue descrever a vida e o significado
da cirurgia nas suas múltiplas facetas, dramas,
vitórias e expectativas, além dos problemas éticos e
da dimensão humana desta tão importante área da
medicina.

O auto-retrato personalista do autor está descrito de


forma invulgar na introdução. Ao desnudar-se revela
a sua personalidade e os valores que o norteiam.
Claro que teve a felicidade de ser educado num
ambiente rico, em termos culturais e humanísticos.
Não o desperdiçou, antes pelo contrário, bebeu muito
e interiorizou valores e condutas que fazem com que
hoje seja respeitado e admirado pelos seu pares, e
não só. O seu sentido humanista, já revelado no
liceu, acabou mais tarde, não obstante as exigências
de cirurgião, por ser determinante para frequentar o
primeiro curso de mestrado em bioética da Faculdade
de Medicina de Lisboa.

Antes de entrarmos na obra propriamente dita, não

350
Notas de Saúde Pública e Ambiental

queria deixar de comentar a capa. A capa é bela.


Trata-se da chegada de Ulisses ao palácio de Alcinoo.
Mas qual o seu significado, o porquê da sua escolha?
O autor não se pronuncia, mas obriga-nos a reflectir
e procurar na Odisseia de Homero o seu simbolismo.

O canto VII descreve a entrada de Odisseu no palácio


de Alcínoo. Atena, disfarçada de garota, informa-o
onde procurar ajuda para regressar à sua Pátria.

No fundo, ao seleccionar a figura de Odisseu ou


Ulisses, o autor pretende, com toda a certeza, dizer
que o ser humano está em contínua transformação e
de que há forças misteriosas que podem ajudar a
vencer as barreiras e os perigos, mesmo aqueles que
consideramos intransponíveis e que a “nossa
aparência, a maneira como nos vêem ou nos vemos a
nós próprios, é subjectiva, transforma-nos conforme
o olhar que sobre nós incide”. Esta última análise não
é minha, mas de um especialista na interpretação da
Odisseia, Frederico Lourenço. Mas como conheço o
autor da obra que estou a apresentar, julgo poder
interpretar a sua escolha que está de acordo com o
conteúdo da sua obra.

A sua obra está dividida em onze curtos capítulos, de


leitura muito agradável, em que é possível analisar os

351
Salvador Massano Cardoso

dilemas éticos que, na prática, se colocam a quem


tem de tomar decisões tão importantes. Apraz-me
registar o primeiro capítulo com três dilemas que o
autor teve que resolver. Constituem, muito
provavelmente, alguns dos muitos casos que lhe
passaram pelas mãos. De forma simples, elegante, e
sobretudo pedagógica, permite aos estudiosos e, na
minha perspectiva, aos candidatos a médicos saber
quão difícil é a vida de um médico. Noutros capítulos
discorre com sobriedade e muita profundidade sobre
matérias e assuntos a que eu chamo os contornos
indefinidos da bioética, porque quando ao núcleo da
mesma, denso e consolidado, ninguém põe em causa,
havendo uma quase generalizada unanimidade.

Os conflitos da bioética nascem e reproduzem-se com


os avanços científicos e tecnológicos que, nos nossos
dias, ao explodirem a torto e a direito, provocam-nos
ansiedade e incerteza. Claro que para alguns,
dogmaticamente, as questões são facilmente
resolvidas, basta negar o direito e o acesso às novas
descobertas, aspirações ou desejos. Atitude básica
capaz de aliviar qualquer ansiedade. Mas não é assim
que se resolvem os desafios bioéticos. Se assim
fosse, muito daquilo que hoje consideramos como
normal, desejável, eticamente aceitável, nunca o

352
Notas de Saúde Pública e Ambiental

teria sido, privando a humanidade de belas


conquistas. Mas, também sabemos que não podemos
aceitar tudo o que nos parece ser uma solução. É
preciso encontrar consensos e, sobretudo, evitar cair
numa excessiva e desumana instrumentalização dos
seres humanos. O autor tem consciência desse facto
e, por esse motivo, aborda muitos fenómenos que
continuam a desafiar a bioética. Fá-lo de uma forma,
repito, objectiva, pedagógica e com profundo sentido
de querer contribuir para o progresso científico,
técnico e humanístico. Estamos perante uma
personalidade que, por força das condições, e opções,
é obrigado a manipular a vida, a enfrentar a morte e
a procurar a esperança, consequentemente, ir de
encontro aos desejos e aspirações dos seres
humanos.

Um pequeno livro e, simultaneamente, uma grande


lição, capaz de contribuir para o despertar do sentido
bioético, mas, também, por dar um contributo para o
engrandecimento ético que, nas nossas sociedades,
parece querer esboroar-se, documentado por tantos
comportamentos e outras tantas atitudes menos
dignas, quase que diria impróprios da condição
humana.

353
Salvador Massano Cardoso

354
Notas de Saúde Pública e Ambiental

APRESENTAÇÃO DO LIVRO “A SAÚDE, AS

POLÍTICAS E O NEOLIBERALISMO”

O Mário Jorge surpreendeu-me com o convite para


apresentar o seu livro “A Saúde, as Políticas e o
Neoliberalismo”. A minha primeira reacção foi porquê
eu? É que atendendo à sua personalidade e
trajectória não fazia muito sentido. A única razão que
eu encontrei foi o facto de sermos amigos há muitos
anos. Considero a amizade razão mais do que
suficiente para aceitar qualquer incumbência e por
este motivo nem o questionei, se bem que fiquei um
pouco preocupado atendendo ao perfil e conteúdo da
obra. Estar a apresentar algo da abrangência deste
calibre não é tarefa fácil, e exigiria, a meu ver,
pessoa muito mais qualificada para lhe dar o realce
merecido. De qualquer modo não me furto à tarefa e
procederei de acordo com uma perspectiva mais de
aprendiz do que de mestre. Sendo assim interpretarei
de baixo para cima com a humildade suficiente para
dizer que aprendi muito com a sua leitura e
interpretação. Os críticos, os mais entendidos nestas
matérias terão oportunidade de o discutir em
profundidade e com o detalhe necessário. Como
utilizador limitar-me-ei a transmitir as minhas
impressões.

355
Salvador Massano Cardoso

Mas antes de entrar propriamente na obra não queria


deixar de exprimir algumas palavras a propósito do
autor. Faço-o não só pelo respeito que me merece
mas porque é indispensável para a compreensão da
sua obra.

É muito fácil realçar as virtudes de qualquer um ou


enfatizar à exaustão as suas qualidades. Fica bem,
sobretudo numa sessão desta natureza. Ninguém
estará à espera de algo em contrário, como é óbvio.

O que eu queria dizer é o seguinte: o Mário Jorge tem


uma forma de estar e de ser verdadeiramente
surpreendentes. Frontal, determinado e sobretudo
muito educado. Crente das suas convicções, com uma
intervenção cívica bem conhecida, lutador leal,
energético, dotado de uma capacidade argumentativa
e dialéctica interessantes, apresenta a particularidade
rara de atacar os seus adversários ou manifestar as
suas opiniões de uma forma objectiva sem
tergiversações e que não conseguem serem
entendidas como ofensas. Ou seja atitudes
semelhantes na boca de uma outra pessoa seriam
interpretadas à luz de sentimentos negativos. Esta
rara particularidade de alguém que diz o que pensa
traduz, inexoravelmente, a meu ver, a sua forma
sincera de ver o mundo. Não é homem para pensar

356
Notas de Saúde Pública e Ambiental

uma coisa e dizer outra e quando diz, diz mesmo, não


usa metáforas ou envereda por discursos sinuosos,
vai directamente à questão e já está. De facto se
lermos com atenção a sua obra, verificamos que esta
característica está presente dizendo o que pensa das
atitudes e decisões de muitos, sobretudo da área
política, desenhando nas folhas o que chapava na
cara dos responsáveis.

É verdade, podemos dizer tudo o que pensamos dos


outros, mas é preciso saber dizer as coisas. Nem
todos conseguem atingir este estádio elevado. O
Mário Jorge sabe dizê-las e, quantas vezes, ao ler o
livro não concordando com a sua análise e
interpretações, não senti qualquer animosidade ou
desconforto, antes pelo contrário. É curioso uma
pessoa não concordar com o autor e ao mesmo
tempo sentir respeito e até ternura. É curioso
mesmo. Só consigo compreender esta situação
através da sua personalidade de homem que quer
verdadeiramente mudar o mundo, mudando-o ao
alcance do seu verbo e actuação cívica, acreditando
que vale a pena fazê-lo. Por estes motivos é uma
satisfação e honra tê-lo como amigo.

A obra do Mário Jorge envolve várias facetas: um


Mário Jorge historiador, um Mário Jorge cronista, um

357
Salvador Massano Cardoso

Mário Jorge ensaísta, um Mário Jorge político, um


Mário Jorge crítico e acima de tudo um Mário Jorge
humanista.

Começa por descrever alguns aspectos históricos da


saúde em Portugal que considero muito
interessantes. Focando a atenção no reinado de D.
João II podemos afirmar que já havia preocupação
em fiscalizar os numerosos estabelecimentos de
caridade os quais tinham a responsabilidade de cuidar
e tratar dos enfermos. O mesmo monarca procedeu a
reformas estruturais no sentido de reunir os hospitais
pequenos aos de maior dimensão. Reformar e
fiscalizar não são preocupações de hoje, perdem-se
na noite dos tempos, o que significa que estamos
uma área em permanente evolução e ebulição.

A nossa história, rica e pioneira em muitas acções,


leva-nos a pensar por que razão ainda não fomos
capazes de solucionar os problemas da saúde. Talvez
por uma razão muito simples: não são solucionáveis.
Os problemas avolumam-se, mudam de roupagem e
gerem novas preocupações, factos que nos obrigam a
responder da forma mais adequada em cada
momento. Acontece que a visão do mundo varia de
individuo para indivíduo e está sujeita a ideologias e a
filosofias. As ideias entram em confronto com muita

358
Notas de Saúde Pública e Ambiental

facilidade o que é bom. Melhor, é indispensável à


própria sobrevivência comunitária. Sendo um
fervoroso adepto da biodiversidade biológica e
cultural, também não podia deixar de o ser no
tocante às diferentes opiniões políticas.

Neste capítulo que considero muito rico e de grande


impacto para todos, mas sobretudo para os mais
jovens em fase de aprendizagem, podemos verificar
como é possível ter ocorrido tanta mudança no
decurso da nossa existência quer individual quer
profissional. Ao ler comecei a recordar muitos
acontecimentos. A descrição e análise dos factos
permitem considerar a obra como um documento
ímpar, onde, de uma forma simples, objectiva e
elegante, conseguimos identificar todo um percurso e
movimentos históricos que corriam o risco de se
perderem ou de caírem num esquecimento
susceptível de enviesar, no futuro, a realidade do
nosso passado mais recente.

As modificações operadas com o 25 de Abril estão


bem patenteadas permitindo-nos seguir toda a
trajectória da construção do S.N.S., os movimentos
sindicais, a criação do Ministério da Saúde as atitudes
e decisões dos diferentes ministros nos diferentes
governos, as reacções às mesmas, denotando a

359
Salvador Massano Cardoso

natural efervescência desta importante reacção


química revolucionária que antecedeu o equilíbrio
social. Em pouco tempo podemos ver quão dinâmica
e activa foi a intervenção na área da saúde.
Aparentemente parece que nada muda ou se muda é
muito lentamente. Mas não é o caso. Há uma vida
pujante por parte dos interessados, médicos, não
médicos e outros profissionais da saúde que
contrariam esta afirmação. Assim, quem se debruçar
sobre este documento saberá entender o que acabei
de dizer.

De uma forma tipo crónica o autor descreve, analisa e


comenta os factos até ao início de 2004. A partir
desta data descreve os acontecimentos de uma forma
sucinta, transcrevendo as notícias publicadas nos
diferentes órgãos de comunicação social numa ordem
cronológica até Fevereiro de 2005, deixando ao
cuidado de cada um a interpretação e a interessante
sequência temporal dos acontecimentos observados
na área da saúde.

É preciso ter muito cuidado com aquilo que fazemos


ou dizemos, senão ainda nos arriscamos a serem
plasmadas as nossas opiniões numa qualquer obra
desta envergadura. De facto, em alguns destes
acontecimentos tive a oportunidade de estar,

360
Notas de Saúde Pública e Ambiental

digamos por dentro. Mal sabia eu que uma dia ainda


teria de ver algumas posições transcritas. Afinal,
aquilo que dizemos ou fazemos é mesmo importante
e condiciona não só a nossa vida mas também as dos
outros.

Já agora, a título de exemplo, na página 162, o autor


transcreve a notícia do Jornal de Notícias de
10/11/2004 segundo a qual “Médicos do PSD criticam
actual política de Saúde”.

“Os médicos sociais-democratas levaram ao


congresso do PSD deste fim-de-semana uma moção
muito crítica à política do Governo na área da Saúde.”

“Os 39 subscritores da moção “salvar o Serviço


Nacional de Saúde”…

Ainda me lembro do momento da discussão e


assinatura da moção. Fui um deles. Partilho com o
autor, e muitos outros, que o S.N.S. constitui a pedra
fundamental do sistema de saúde do nosso país. -
Não é perfeito? Não! - Está ainda muito longe de
alcançar os seus objectivos? - Está! Mas, é sem
sombra de dúvida a base que mudou radicalmente a
nossa situação no panorama da saúde. Basta ver os
indicadores de saúde há algumas décadas e os
actuais para rapidamente testemunhar o efeito

361
Salvador Massano Cardoso

positivo do mesmo. Qualquer tentativa para evitar a


sua destruição é bem-vinda, já que possui
intrinsecamente um valor único. Trata-se de um
sistema que garante a qualquer cidadão estar em pé
de igualdade face às situações que diminuem um ser
humano: a doença. Esta conquista é motivadora de
satisfação e de orgulho face à solidariedade e ao
respeito da dignidade humanas. Há necessidade de
garantir esta igualdade no tratamento e no acesso.
Assusta-me quaisquer medidas que possam causar
discriminação nesta área. Partilho, pois, como é
evidente, das preocupações do autor, as quais estão
bem patenteadas nos seus ensaios ao longo desta
obra. As preocupações com estas matérias tão
sensíveis não são propriedade de qualquer ideologia.
A postura e os princípios podem ser semelhantes em
todos os sectores do pensamento. E ainda bem que é
assim, já que denota a defesa de valores muito
profundos que não se confundem nem se esgotam
em quaisquer correntes ideológicas.

Todo o cidadão deverá ter os mesmos direitos na


doença e na saúde. Quaisquer tentativas de
hierarquização deverão ser contrariadas, até mesmo
dentro do próprio S.N.S.

A este propósito não posso deixar de contar uma

362
Notas de Saúde Pública e Ambiental

pequena história passada comigo. Como sabem, os


médicos são uns privilegiados em matéria de histórias
e acontecimentos.

Um dia, uma doente, no âmbito de uma consulta de


rotina, descreveu um episódio passado com o seu
genro. Embora quisesse manter uma postura calma,
via-se, perfeitamente, que estava indignada. Sabendo
que na altura exercia funções políticas, era deputado,
aproveitou a ocasião para manifestar a sua
apreensão.

Contou-me que o seu genro teve que se deslocar ao


Porto. No regresso à capital, comeu uma sandes
assim que entrou no comboio, já que não teve tempo
para almoçar. O jovem, ao fim de algum tempo de
viajem, cerca de metade, começou a sentir-se mal
com vómitos e diarreia. Um quadro típico de
intoxicação aguda. Tentou telefonar à família para
que alguém fosse esperá-lo à estação do destino,
mas não conseguiu. O quadro clínico piorava a olhos
vistos o que motivou, assim que chegou à estação,
enfiar-se num táxi, pedindo para ir para o hospital
mais próximo. Foi o que o taxista fez. Levou-o a um
hospital privado, onde lhe foi dito que, devido à
gravidade do caso, teria que ficar hospitalizado. Tudo
bem. Precisava de cuidados imediatos e ia tê-los,

363
Salvador Massano Cardoso

mas, entretanto pediram-lhe qualquer coisa como


3.000 euros. Vómitos e diarreia não são nada
agradáveis, sobretudo quando se manifestam com
intensidade inusitada, mas colocar em cima uma
quantia destas, desarma qualquer cidadão normal!
Três mil euros? E agora? Doente e perturbado pediu
incessantemente que contactassem a família. Em
casa estava a sogra que, logo que tomou
conhecimento, correu para o hospital, “sacou” o seu
querido genro, levou-o a um hospital público, onde foi
visto, hidratado, tendo alta ao fim de alguma horas. A
sogra nunca o abandonou!

Apesar de existirem hospitais privados, há muitos


anos, entre nós, a tendência para que aumentem é
uma realidade, já que a apetência por sector está
num perfeito frenesim.

Não tenho nada contra o sector privado, pelo


contrário, mas tem que haver uma separação nítida
entre o público e o privado.

Sabendo que a área da saúde constitui um dos mais


graves problemas orçamentais para qualquer governo
– basta dizer que em Portugal a despesa total do
Estado com a saúde é de 9,2% do produto interno
bruto – fácil se compreende que haja necessidade de

364
Notas de Saúde Pública e Ambiental

conter os gastos e melhorar a produtividade. Este


facto contribuiu para mudanças radicais na gestão
dos hospitais dos quais se esperam resultados
superiores à gestão tradicional. Qualquer cidadão,
actualmente, pode utilizar estes hospitais de forma
idêntica aos de gestão tradicional. O problema é a
apetência dos diferentes grupos económicos para se
“apropriarem” dos hospitais, privatizando-os. O que
vai acontecer ao cidadão normal? Terá que fazer um
seguro de doença obrigatório? Terá que continuar a
descontar, como tem feito até aqui? Terá que
continuar a financiar a construção dos hospitais
(mesmo os que passarão para a gestão privada) com
o dinheiro dos seus impostos? E terá que pagar 3.000
euros em caso de diarreia? O melhor é ter sogra e
pedir-lhe ajuda…

Esta pequena história ilustra o efeito de desigualdade


no acesso aos serviços de saúde. - É preocupante? -
É!

Mas a situação não fica por aqui. Senão vejamos: Um


estudo recentemente publicado sobre as
desigualdades dos rendimentos, entre os mais ricos e
os mais pobres, nos diferentes países da União
Europeia, coloca Portugal numa situação
verdadeiramente desconfortável já que o fosso ricos-

365
Salvador Massano Cardoso

pobres está a alargar-se de ano para ano. Se


somarmos estes dados aos cerca de 2 milhões de
portugueses que têm um rendimento inferior a 350
euros por mês ficamos com uma ideia muito precisa
do que está a acontecer na nossa sociedade.

As implicações destes dados traduzem-se a diferentes


níveis, dos quais destacamos a saúde.

A emergência da epidemiologia social, há alguns


anos, permitiu analisar a saúde e a doença numa
perspectiva diferente da habitual. As comunidades
mais ricas são geralmente mais saudáveis. Todos
concordarão com esta afirmação. No entanto as
razões prendem-se não com o facto de haver
diferenças no acesso aos cuidados de saúde ou na
qualidade dos tratamentos, mas sim com os
comportamentos e estilos de vida dos mais pobres.
Estes são mais obesos, bebem mais, fumam mais,
vivem em áreas mais violentas e poluídas, têm
menos acesso aos confortos, sentem mais na pele o
facto de não terem os mesmos níveis de bem-estar
dos mais favorecidos, sendo, inclusive, massacrados
com os estereótipos das individualidades de
referência social, enfim são de facto mais pobres e
fazem-nos sentir isso mesmo, o que é
manifestamente mau. Deste modo, sempre que o

366
Notas de Saúde Pública e Ambiental

gradiente sócio-económico aumenta é de esperar


agravamento do estado de saúde dos menos
favorecidos (medido pelo índice Robin Hood). Não é
por acaso que a esperança de vida é mais baixa e que
a mortalidade por diversas doenças, desde as
cardiovasculares passando pelas tumorais atingem
valores elevados nesta importante fatia da
comunidade. Ora, aumentando o gradiente sócio-
económico em Portugal é de esperar um agravamento
da saúde dos nossos compatriotas. Os mais
favorecidos conseguem controlar melhor os factores
de risco que põem em causa a sua saúde, assim
como conseguem manter os factores que a
promovem. Nos pobres é precisamente o contrário.
Como estes estão a aumentar – o conceito de
pobreza relativa é muito importante – e os seus
rendimentos estão a diminuir face aos que ganham
mais, então é de esperar um agravamento do estado
de saúde do país. O problema de acesso aos cuidados
de saúde, assim como a realização de exames,
mesmos os mais sofisticados, não vão resolver o
problema, além de constituírem um factor de
agravamento em matéria de financiamento da saúde,
que já é muito preocupante.

Em termos sociais, o investimento público do qual

367
Salvador Massano Cardoso

resulte bem-estar para todos, mas sobretudo para os


mais desfavorecidos permitindo-lhes mais
rendimentos e aquisição de comportamentos mais
saudáveis, diminui de uma forma acelerada à medida
que os mais privilegiados se afastam dos mais
pobres. Aqueles desviam os seus rendimentos para o
seu próprio bem-estar: seguros de saúde, hospitais
privados, condomínios fechados, escolas privadas,
águas engarrafadas, enfim todo um conjunto de
conforto virado para o seu próprio bem-estar
deixando de investir no bem comum. Esta recusa de
investimento começa a verificar-se em muitos países
em que o status sócio-económico se vai alargando.
Portugal, face aos últimos dados, comporta-se como
um desses países em que o fosso se alarga de ano
para ano. Sendo assim, é de prever um agravamento
substancial do estado de saúde que não se
conseguirá travar com as medidas de apoio e
cobertura médicas ciclicamente anunciadas. Longe
disso, se quisermos dar saúde aos portugueses a
solução passa não só por um acesso universal aos
cuidados – que já é um dado adquirido – mas sim
através de uma diminuição das desigualdades dos
rendimentos, um maior investimento público nos
instrumentos sociais, assim como um controlo dos
agentes stressógenos de origem social que fazem

368
Notas de Saúde Pública e Ambiental

sentir mais pobres os que efectivamente já o são.

Aumentando os rendimentos de um povo permitiria


de uma cajadada eliminar ou reduzir um sem número
de doenças que nos atormentam a toda a hora.

Esta análise presume estar em consonância com as


consequências decorrentes do neo liberalismo a nível
da saúde do nosso povo. Apesar daquilo que nos
diverge, e ainda bem, repito, o que nos une é muito
mais forte, já que temos a mesma posição face aos
valores mais nobres de qualquer cidadão seja ele
quem for. Agora, a forma operacional para resolver
os problemas não é fácil. Os recursos não abundam
mas com arte, engenho, determinação e
profissionalismo havemos de encontrar soluções.

A obra do Mário Jorge é um notável contributo para


este objectivo e como tal deverá ser fonte de
inspiração e de discussão face ao nosso futuro e ao
futuro dos nossos no tocante às políticas de saúde.

Obrigado Mário Jorge!

369
Salvador Massano Cardoso

370
Notas de Saúde Pública e Ambiental

ACADEMIA PORTUGUESA DE MEDICINA

Declaração de aceitação como membro titular


Lisboa, 27 de Junho de 2003

Exmo. Senhor Presidente

Exmos. Senhores académicos

Algumas semanas atrás, encontrava-me no meu


gabinete, congeminando acerca de vários problemas,
alguns de cariz meio-existencialista, outros de
natureza ético-política, quando fui despertado por um
telefonema do senhor Professor Alexandre de Sousa
Pinto. De imediato, tentei prever o tema ou os temas
do inesperado, mas sem dúvida bem-vindo
telefonema. Reuniões; algo relacionado com a
Medicina do Trabalho, algum pedido de informação,
enfim, constituíram algumas das interrogações
despertadas no meu espírito, pronto a ser útil, no que
quer que fosse. Enganei-me. Falava o Presidente da
Academia Portuguesa de Medicina informando-me de
que tinha sido eleito como membro titular da
prestigiada academia. Fiquei estupefacto, numa
primeira fase, passando de imediato para um estado

371
Salvador Massano Cardoso

de satisfação. Registo nesta declaração de aceitação


este episódio que sem dúvida irá constituir uma das
principais marcas da minha vida. Claro que não pude
e nem podia, confesso, deixar de agradecer tamanha
honraria.

Saboreei o momento durante algum tempo, o qual


me alcandorou para um conjunto de acontecimentos,
os quais poderiam explicar a presente situação.
Afinal, todos os acontecimentos têm causas próximas
e remotas. Nós, médicos, habitualmente, no nosso
dia a dia profissional, damos mais relevo à
proximidade dos eventos, relegando para um plano
secundário os mais remotos, os quais se perdem na
noite dos tempos. Numa perspectiva de imitação dos
princípios da medicina darwiniana, mas à escala de
uma vida humana, tentei, repito, encontrar a
sequência de acontecimentos que estiveram na base
da eleição, para uma Academia, que alberga e
distingue tão numerosas personalidades, permitindo a
partilha de conhecimentos, valores e acima de tudo,
contribuir para a dignidade da nobre e eterna arte de
curar, tratar e prevenir as doenças.

Vi-me assim perante imagens do meu primeiro dia da


escola, no já distante ano de 1957. A data é fácil de
recordar, já que naqueles anos, o dia 7 de Outubro

372
Notas de Saúde Pública e Ambiental

marcava ritualmente o início da actividade escolar.


Recordei o dia calmo e ainda quente, a roupa, o
orgulho de uma mala de cartão a tiracolo, com um
caderno, um lápis e uma borracha. E também o
primeiro dissabor, quando a tira fina de couro da
mala se despregou da mesma, tendo que a
transportar, diga-se de passagem, com certa
dificuldade com ambas as mãos, já que não tinha
arcaboiço para a colocar debaixo do braço.

Em seguida, saltei para a quarta classe, a qual não


concluí, devido a doença, a qual se manteve nos anos
seguintes, obrigando a longas permanências no leito.
Este isolamento levou-me a procurar formas de
passar um tempo teimosamente lento e inibidor da
partilha com os colegas. Dedicava-me à leitura e a
criar um conjunto de regras que acabou por gerar
uma forma de autodidáctica e de autodisciplina
impróprias de uma criança. Quando recuperei a
normalidade, já me destacava pela exigência,
cumprimento das obrigações escolares, determinação
na prossecução dos objectivos, concorrendo comigo
próprio, tentando, sempre que possível executar as
múltiplas actividades que são inerentes ao
desenvolvimento de um jovem, e foram muitas. Com
uma particularidade: dava sempre a prioridade às

373
Salvador Massano Cardoso

actividades escolares. Ainda bem, se não fosse esta


disciplina, também não teria possibilidade de
prosseguir os estudos. Para poder estudar, só com
um bolsa de estudo, e naquele tempo, não
abundavam instituições escolares, e muito menos
promotores que possibilitassem aos jovens mais
carenciados estudarem. Foi-me atribuída uma bolsa
que me acompanhou até ao final da licenciatura.
Muitas outras passagens e marcas poderiam ter sido
descritas, mas quis com esta pública e primeira
confissão, demonstrar que o interesse pela medicina
e investigação, tem raízes que consigo perfeitamente
identificar. Afinal, se não fosse a doença, poderia ter
tido um trajecto totalmente diferente, e muito
provavelmente nem teria acedido ao ensino superior,
como tantos e tantos portugueses que, na altura, não
dispuseram das facilidades e meios de poderem tirar
um curso.

A este propósito, e mal grado as más recordações da


doença, não posso deixar de citar o famoso internista
espanhol, Gregório Maragnon, que dizia que a doença
nem sempre é má na sua finalidade.

A necessidade de agrupamento não é de hoje,


traduzindo a forma de dar consistência aos saberes e
permitir a criação de códigos. As Academias são

374
Notas de Saúde Pública e Ambiental

formas de agrupamento de individualidades que na


sua diversidade partilham princípios comuns e
fomentam a criatividade, além de propiciarem
espaços de reflexão. A Academia Portuguesa de
Medicina agrega diversas personalidades da medicina,
sintetizando-a e expandindo-a num continuum pulsar.
Aceitar fazer parte de uma agremiação de notáveis é
mais do que uma honra, é uma enorme
responsabilidade. Saber se estamos à altura, se a
nossa conduta se pauta ou não pelos padrões
estabelecidos, se a nossa produção técnica, científica,
pedagógica e cívica é ou não a desejada, são naturais
incógnitas, as quais só podemos resolver através de
um constante e apurado esforço no sentido
ascendente, factos que obrigam naturalmente a mais
trabalho. Se mais trabalho não é razão para assustar,
já o mesmo não se pode dizer das expectativas
criadas, as quais são fonte de uma ansiedade que não
se consegue ocultar.

Gostaria para terminar esta declaração de aceitação


dizer o que espero da Academia. Sendo, como já tive
oportunidade de dizer, uma agremiação de
personalidades que deram notáveis contributos nas
diferentes áreas da medicina e da saúde, importa que
contribua através do intercâmbio e reflexão das ideias

375
Salvador Massano Cardoso

dispersas, num motor de síntese do conhecimento. As


grandes conquistas nas áreas da saúde, biologia e
medicina, dispersaram e fragmentaram os
conhecimentos de tal forma, que transformaram os
médicos em verdadeiras subespécies, com grandes
dificuldades em se cruzarem. Se não houver cultores
da síntese do conhecimento, corremos o risco de não
compreendermos as verdadeiras causas dos
fenómenos e as formas mais correctas de resolver os
problemas, que afligem as comunidades.

Este espaço é deveras privilegiado para a síntese.


Face ao desenvolvimento tecnológico, cada vez há
menos sintetizadores do conhecimento. Sintetizar,
permite criar paradigmas, estabelecer nexos de
causalidade, elaborar teorias, propor soluções e
fomentar a dinâmica de novos conhecimentos e
pesquisas. Naturalmente que a Academia tem outros
objectivos, mas considero aquele que acabei de
formular um dos que mais me preocupa, face à
explosão da ciência e da tecnologia. A dispersão
resultante é de tal ordem de grandeza, que faz
recordar a expansão dos corpos do Universo que se
afastam cada vez mais uns dos outros. Nem o
conhecido princípio da rainha de copas, resultante da
obra de Lewis Carrol, na qual Alice pergunta à rainha:

376
Notas de Saúde Pública e Ambiental

- Por que estamos sempre a correr?

E a rainha responde:

- Para podermos ficar no mesmo sítio,

É satisfatório. Torna-se imperioso que se sintetize o


conhecimento médico, disperso por tão vastas e
complexas áreas.

Aceitar fazer parte desta irmandade é comungar de


princípios nobres, acarretar mais responsabilidades,
com a certeza de poder receber ensinamentos
desejados mas nem sempre encontrados.

377
Salvador Massano Cardoso

378
Notas de Saúde Pública e Ambiental

SINISTRALIDADE

Falar de sinistralidade implica lidar com uma das


situações que provoca morte e incapacidade. Sendo
assim, todo o esforço desenvolvido no sentido de
evitar o sofrimento e/ou adiar a morte é bem-vindo,
constituindo, desde todo o sempre, um dos principais
objectivos da espécie humana.

O homem sempre sonhou com a imortalidade e com a


capacidade de prever o futuro biológico. No fundo,
quer ser um verdadeiro deus. Hoje, começa a
desenhar-se a possibilidade de no futuro se
concretizar ou pelo menos tentar alguns destes
objectivos. Muitos pertencem à área da ficção, mas,
mesmo assim, a história alerta-nos para o facto, de
que aquilo que é hoje ficção, amanhã pode
transformar-se em realidade.

A eliminação das doenças tem sido alvo de vários


ensaios. Não posso deixar de resistir à tentação de
citar "The Days of Solomon Gursky", a obra do
novelista Ian McDonald, que revela as consequências
da aplicação de novas tecnologias com o objectivo de
eliminar todas as doenças e manter uma performance
invejável. Deste modo, os "gurskys" seriam imortais,

379
Salvador Massano Cardoso

vivendo para além do próprio Universo. Mas, mesmo


os "gurskys" também têm de morrer, não de
doenças, mas de acidentes, suicídios e homicídios. Os
"gurskys" não teriam esperança de vida, mas semi-
vida (de forma idêntica às substâncias radioactivas).
Não havendo um limite de vida, calcula-se que a
semi-vida seria da ordem dos 500 anos, partindo do
pressuposto de que a taxa de mortalidade por
fenómenos violentos se mantivesse constante.

Significa esta introdução que havendo um potencial


extraordinário para combater e evitar as doenças, as
suas causas ou mesmo regenerando ad eternum os
organismos, mesmo assim a imortalidade será
impossível de alcançar devido à imprevisibilidade
inerente aos próprios acidentes. Ou seja: reduzindo
os factores, utilizando todos os meios de prevenção,
o acidente acabaria sempre por acontecer e
determinar a morte de qualquer ser que estivesse
imune a qualquer tipo de doença. No fundo, o
máximo que poderíamos alcançar era o estatuto de
seres não humanos mas seres gurskianos.

A sinistralidade abrange várias áreas. Para efeitos de


análise e compreensão convém reportar-nos aos
principais sectores. Sinistralidade rodoviária,
sinistralidade laboral, sinistralidade doméstica,

380
Notas de Saúde Pública e Ambiental

sinistralidade de lazer, constituem sem sombra de


dúvida os principais tipos.

Os acidentes de viação matam 1,2 milhões de


pessoas e causam ferimentos ou inutilizam mais de
50 milhões de indivíduos todos os anos2.

Trata-se de um dos mais graves flagelos que atinge a


humanidade e de acordo com as últimas previsões as
mortes nas estradas poderão aumentar na ordem dos
80% em 2020, nalgumas partes do globo, caso não
forem tomadas adequadas medidas3.

Diariamente, morrem cerca de três mil pessoas por


dia, constituindo a segunda causa de morte entre os
cinco e os 29 anos e a terceira entre os 30 e os 40
anos.

Na Europa, ocorrem cerca de 200.000 mortes devidas


a lesões acidentais. Todos os dias morrem, na União
Europeia, 14 crianças, 2240 são admitidas nos
hospitais e outras 28.000 recebem tratamento nas
urgências4.

2
Relatório da OMS e do Banco Mundial (7 de Abril de 2004)

3
Público, 7 de Abril de 2004, pág. 26
4
Cadernos da Direcção-Geral da saúde, nº3, Abril de 2004

381
Salvador Massano Cardoso

Os riscos têm de ser compreendidos e


consequentemente podem ser evitados. No fundo,
estamos um problema que é eminentemente político.
Só com vontade política é possível travar e inverter
esta situação.

Além da perda de vidas e de incapacitados, os


prejuízos económicos e sociais directos e indirectos
são muito difíceis de quantificar. De qualquer modo,
calcula-se na ordem dos 518 mil milhões de dólares
os prejuízos resultantes, cerca de um a dois por cento
do produto interno bruto à escala global. Na União
Europeia, estima-se que o orçamento socioeconómico
de todos os traumatismos, ferimentos e lesões,
provocados por acidentes, é de cerca de 400 mil
milhões de euros por ano. Nos países em
desenvolvimento a situação é particularmente grave
neutralizando toda a ajuda ao desenvolvimento dos
países. Podemos afirmar que os acidentes nos povos
em desenvolvimento provocam mais prejuízos, os
quais chegam a ultrapassar a totalidade das quantias
recebidas para o seu desenvolvimento.

Convém recordar que o investimento despendido


nestas áreas, em termos de prevenção e de
segurança, é manifestamente insuficiente e muito
inferior, por exemplo ao despendido na luta contra a

382
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Sida, na ordem de 30 vezes menos.

Em 2020 a previsão de óbitos por acidentes de viação


poderá atingir, a nível mundial, 2,3 milhões,
passando a constituir a terceira causa de morte.

O apelo efectuado pela OMS e o Banco Mundial,


centra-se na necessidade de mobilização de
governos, indústria e organizações não
governamentais, bem como à participação de pessoas
de diferentes disciplinas desde engenheiros de
estradas, “designers” de veículos, autoridades
responsáveis pela aplicação da lei e profissionais de
saúde.

O fatalismo faz parte da cultura portuguesa e, sem


sombra de dúvida uma das suas expressões mais
preocupantes manifesta-se na sinistralidade
rodoviária. É certo que houve uma evolução positiva
da taxa de mortalidade por acidentes de trânsito com
veículo a motor, padronizada pela idade. “Com efeito,
em 10 anos houve uma diminuição de 20 por 100.000
para 17 por 100.000, na taxa de mortalidade
padronizada pela idade, sendo, ainda mais acentuada
nos homens” 5. Só que o fenómeno não está a ser

5
Observações nº 22, Março 04. Observatório Nacional de Saúde.

383
Salvador Massano Cardoso

bem medido, devido aos “mortos a trinta dias”.

Em Portugal o custo económico dos acidentes de


viação em 2002 ultrapassa os investimentos na rede
ferroviária nos próximos dez anos para a circulação
do TGV.6 De acordo com o presidente da Associação
Portuguesa de Seguradores, a factura representa
cerca de três por cento do produto interno bruto
nacional. Mesmo reduzindo a sinistralidade, não
houve uma natural redução dos custos suportados
pelas seguradoras.

A intervenção na área da segurança rodoviária exige


três níveis de actuação: nível fiscalizador, nível
informativo e um nível educativo e formativo.

Mudar comportamentos é difícil, mesmo muito difícil.


Poderíamos explicar em função dos fenómenos de
transição sociológica, os quais se observam em
muitos fenómenos. De qualquer forma o investimento
tem de ser feito, apesar do retorno ser baixo. Mas, a
longo prazo, os resultados serão positivos. Estamos a
falar de fenómenos ditos transgeracionais. Os
comportamentos são mimetizados quer os maus quer
os bons. Como predominam aqueles, compreende-se

6
Diário As Beiras, 14 de Abril de 2004, pág. 19

384
Notas de Saúde Pública e Ambiental

a dificuldade em impor os últimos. Copia-se o estilo


do pai, ou do amigo, impede-se que o peão atravesse
a passadeira, desafia-se o amarelo ou chega a passar
o próprio vermelho!

Culturalmente, em Portugal também se sofre as


consequências do não cumprimento escrupuloso das
regras de trânsito estabelecidas. De todos os níveis
anunciados, aquele que permitirá uma mudança
substancial nas consequências trágicas dos acidentes
de viação, passa pelas medidas dita repressivas. O
apertar cada vez mais das medidas legislativas é
imperioso, numa sociedade que só de uma forma
lenta vai aprendendo o cumprimento de normas de
segurança.

Falar de acidentes e não falar do consumo do álcool


seria não falar da principal causa de risco de
acidente.

Um milhão e 800 mil portugueses consomem bebidas


alcoólicas em excesso. Na União Europeia três por
cento são alcoólicos contra oito em Portugal7.

A polémica criada ao redor da taxa de alcoolemia está


ainda presente. O governo anterior baixou a taxa

7
Diário Notícias, 9 de Abril de 2004, pág. 32

385
Salvador Massano Cardoso

máxima para 0,2 g/l, facto que originou contestações


a vários níveis. Foram ouvidos peritos que
argumentavam que a cifra proposta era a mais
adequada, face à elevada sinistralidade rodoviária
que caracterizava e continua a caracterizar o nosso
país. A medida tinha objectivos bem definidos. Os
opositores a tal medida argumentavam de todas as
maneiras possíveis: muitos países mantinham a taxa
de alcoolemia de 0,5 g/l e tinham taxas de
sinistralidade inferiores à nossa; que a medida iria
provocar colapso económico dos produtores de vinho
com impacto significativo na economia nacional, que
o cozido à portuguesa sem o vinhito não seria o
mesmo, que valores até este limite não provocavam
quaisquer alterações do comportamento, que muitos
dos sinistrados não apresentavam álcool no sangue,
que os acidentes se deviam ao mau estado das
estradas e/ou das viaturas, que a falta de civismo era
o factor mais importante (e realmente até é)... Os
argumentos foram tantos, que levou à suspensão
temporária da lei, até que foi "restaurado" o limite
anterior, na presente legislatura.

Um dos argumentos mais esgrimidos estribava-se no


facto de que, até 0,5g/l de álcool no sangue, não
ocorriam quaisquer alterações neurológicas que

386
Notas de Saúde Pública e Ambiental

pudessem por em causa a segurança rodoviária. A


grande maioria provava inclusive com a sua
experiência diária (subjectivismo susceptível de erros
grosseiros). A ciência fornece constantemente novos
elementos que podem influenciar as decisões
políticas. Num dos últimos números da revista
Science, foi publicado um trabalho interessante de
Richard Ridderinkhof da Universidade de Amesterdão.
Este autor provou que uma zona particular do
cérebro, responsável pela monitorização de um
processo de reconhecimento de sinais de erro, sofre
importantes alterações, mesmo com doses
moderadas de álcool (abaixo dos limites aceites em
muitos países, o nosso incluído). Como no decurso da
condução estamos constantemente a corrigir erros, é
fácil compreender as eventuais consequências. Sendo
assim, o álcool interfere com um componente crítico
do controlo cognitivo, o qual pode explicar, porque é
que as pessoas sob o efeito da influência do álcool
não conseguem (nem admitem!) reconhecer a má
performance e persistem nesta posição. Perante estes
novos dados (e estudos subsequentes) é de prever
que, mais tarde ou mais cedo (naturalmente mais
tarde, por motivos óbvios...), a taxa de alcoolemia irá
sofrer uma redução. Convinha sensibilizar todos os
agentes com interesses neste sector (nomeadamente

387
Salvador Massano Cardoso

produtores e consumidores de álcool) a adaptarem-se


a uma nova realidade. Isto de andar na estrada,
sobretudo em Portugal, é um perigo real de morte. O
civismo não é passível de decreto, mas a taxa de
alcoolemia é.

Não deixa de ser curioso a conduta de várias


personalidades de reconhecido mérito científico e
ético afirmarem que “apesar do grau de álcool na
sangue máximo permitido por lei ser de 0,5 g/l,
defenderem que quem apresentar entre este valor e
0,8 não pode ser considerado como criminoso. Pelo
contrário “se proibíssemos os portugueses de praticar
qualquer actividade até este valor ninguém fazia mais
nada. Com esse valor ninguém fica perturbado, até
um médico pode exercer a sua profissão de forma
respeitável”. Falar em termos científicos é uma coisa,
falar em nome de interesses económicos e de
poderosos lóbis é outro 8. É certo que o álcool não é o
único culpado.

Um dos aspectos que mais nos preocupa tem a ver


com o consumo de fármacos com acção a nível dos
sistema nervoso central e do envelhecimento
progressivo dos cidadãos com as consequentes

8
Diário Notícias, 10 de Junho de 2004, pág. 25

388
Notas de Saúde Pública e Ambiental

perdas de capacidades.

A par da sinistralidade rodoviária destacamos um


outro tipo com impacto e gravidade muito elevada, a
sinistralidade laboral. A deterioração da saúde
perante as más condições de trabalho é somente um
indicador, um sintoma que nos remete para as
contradições sociais. De acordo com a Organização
Internacional do Trabalho, todos os anos, morrem
cerca de dois milhões de homens e de mulheres
devido a doenças e acidentes relacionados com o
trabalho. Qualquer coisa como 5.000 óbitos por dia.
Os acidentes de trabalho são uma praga a nível
mundial. Calcula-se que ocorram cerca de 250
milhões de acidentes, por ano.

Uma reflexão mais profunda permite-nos concluir que


os acidentes e doenças profissionais têm contribuído,
ao longo da história do homem, para o
desenvolvimento das sociedades. Ou seja: os
benefícios adquiridos são frutos de verdadeiros
genocídios laborais. Provavelmente constituirá a
principal causa de morte e, no entanto não se
descortina qualquer monumento relativo à memória
das vítimas do trabalho.

Os indicadores de sinistralidade, relativos a Portugal

389
Salvador Massano Cardoso

revelam uma tendência para a diminuição da


sinistralidade global, que não é sinónimo de uma
melhoria real das condições de trabalho, dado que a
população activa empregada tem vindo a decrescer
nos últimos anos. Curiosamente, o aumento do
desemprego pode ser acompanhado de uma redução
dos acidentes, não devido à diminuição da população
empregada, mas devido à redução da notificação dos
casos.

Portugal, como é do conhecimento geral, é um dos


países que apresenta taxas de sinistralidade laboral
das mais elevadas. Anualmente ocorrem mais de
200.000 acidentes de trabalho dos quais cerca de 250
são fatais. O fenómeno não é só nosso. Na União
Europeia contabilizam-se, todos os anos, em 4,7
milhões o número de acidentes de trabalho que
determinam absentismo superior a três dias; se
incluirmos os que não exigem absentismo, então a
cifra aumenta para 7,4 milhões. A probabilidade de
um trabalhador estar envolvido num acidente de
trabalho é de 4,7% ou de 6,4% conforme ocorra ou
não ausência ao trabalho (superior a três dias) e a
incidência anual de mortes por acidente oscila ao
redor de 5 por 100.000 trabalhadores. Calcula-se em
150 milhões o número de dias de trabalho perdidos;

390
Notas de Saúde Pública e Ambiental

facto que tem implicações sociais e económicas


difíceis de quantificar. Um dos fenómenos que
caracteriza os acidentes de trabalho é um
comportamento cíclico de subidas e descidas. Tem
sido observada uma associação inversa com o nível
de desemprego. Um dos determinantes utilizados
para explicar este fenómeno, relação inversa entre a
taxa de acidentes de trabalho e o desemprego,
consiste no facto de que, quando há um maior
necessidade de trabalhadores (baixa taxa de
desemprego), a exigência e a "pressão" exercidas
sobre os mesmos serem consideradas os principais
factores. Em contrapartida, o desemprego determina
menos esforço e consequentemente menos acidentes.
No entanto, esta interpretação foi posta em causa,
recentemente, por um investigador (Jan Boone da
Universidade de Tilburg na Holanda e Centre
Economic Policy Research). O estudo baseia-se na
relação entre acidentes de trabalho e a taxa de
desemprego em 17 países da OCDE. O aumento do
desemprego acompanha-se de uma redução dos
acidentes não fatais, mas não se relaciona com os
acidentes fatais. Qual a explicação? Quando aumenta
o desemprego, a notificação de acidentes de trabalho
diminui de forma significativa, porque o trabalhador
tem receio de perder o emprego. A notificação dos

391
Salvador Massano Cardoso

óbitos não sofre alterações, por razões evidentes. Por


este motivo, não observamos variações cíclicas no
caso dos óbitos por acidentes de trabalho. Os
resultados encontrados neste estudo permitem
concluir que os acidentes de trabalho não fatais estão
inversamente relacionados com a taxa de
desemprego, mas não com o número de horas de
trabalho nem com as mudanças de emprego. Quanto
aos acidentes fatais não existem evidências de
estarem relacionadas com as variações das condições
laborais. As condições de trabalho não se
deterioraram durante as variações cíclicas, e, a
segurança no local de trabalho não sofreu igualmente
quaisquer variações. Ou seja, a determinante clássica
para explicar este fenómeno, terá de ser substituída
por esta última: o receio do desemprego determina
uma sub-notificação dos acidentes de trabalho
(naturalmente os menos graves), por parte dos
trabalhadores, nos momentos de crise. Em Portugal,
a taxa de desemprego tem vindo a aumentar,
fixando-se neste momento em cerca de 7%
(desemprego real). Sendo assim, é de esperar que,
nos tempos mais próximos, as estatísticas possam
revelar uma redução da sinistralidade laboral; mas
não devemos considerar este fenómeno como
resultado das melhorias de condições de trabalho, ou

392
Notas de Saúde Pública e Ambiental

de um investimento sério em termos de segurança e


higiene do trabalho, mas como um epifenómeno do
aumento da taxa de desemprego que entretanto se
observa entre nós.

Os problemas relacionados com a saúde e segurança


no trabalho, e em especial com a sinistralidade
laboral, são globais e transversais a todas as
sociedades modernas, onde a capacidade competitiva
das empresas é cada vez mais um dado importante e
um objectivo a prosseguir em função do crescimento
económico e consequente desenvolvimento e social
dos Estados.

A qualidade de vida, porém, é indissociável do


desenvolvimento económico, havendo necessidade de
conciliar o progresso e a salvaguarda da
competitividade das empresas com indicadores de
qualidade de vida. Daí a importância primordial da
promoção de saúde e segurança dos trabalhadores no
local do trabalho o que acabará, aliás e em última
análise, por constituir um factor da produtividade das
empresas.

Daí que seja por todos, unanimemente reconhecida a


actual importância da segurança, higiene e saúde no
trabalho ao nível da prevenção dos riscos

393
Salvador Massano Cardoso

profissionais, designadamente nos seguintes


vectores: formação e certificação dos profissionais de
segurança, higiene e saúde no trabalho; acreditação
dos serviços de SHST; instrumentos de planeamento
e avaliação dos serviços de prevenção das empresas.
Aspectos impostos pelo Direito Internacional do
Trabalho (Convenção nº 155 da OIT) bem como do
Direito Comunitário (Directiva nº89/391/CEE).

Em Portugal, as micro e pequenas empresas são a


parte mais significativa do tecido empresarial
português. A promoção das condições de trabalho e
protecção social contribuirá para a diminuição dos
prejuízos inerentes à sinistralidade e às doenças
profissionais, permitindo-lhes enfrentar a livre
concorrência e o fenómeno da globalização dos
mercados.

Apesar da existência de um conjunto de diplomas


legais significativo, que estabelecem prescrições
mínimas de segurança, higiene e saúde a observar
nos locais de trabalho, o cumprimento destes
diplomas ainda se encontra desvirtuado,
comparativamente ao que se passa nalguns outros
estados da União Europeia. No entanto, os
indicadores de sinistralidade, em Portugal, revelam
uma tendência para a diminuição da sinistralidade

394
Notas de Saúde Pública e Ambiental

global que, tal como já tivemos oportunidade de


referir, poderá não significar uma melhoria real das
condições de trabalho.

A título exemplificativo e de acordo com algumas


estatísticas oficiais disponíveis/divulgadas, o número
real de acidentes de trabalho:

- Em 1995 foi de 204.263

- Em 1996 foi de 216.115

- Em 1997 baixou para 161.740 acidentes

- Já os dados referentes ao ano de 2000


demonstram um número na ordem dos 200.000
acidentes de trabalho.

Entre 1994 e o ano de 2000 observou-se na União


uma redução da taxa fatal dos acidentes de trabalho.

Existe um perfil que permite caracterizar o acidente


na Europa:

Os homens têm mais acidentes do que as mulheres

Os trabalhadores novos (18-24 anos) têm uma taxa


mais elevada da incidência de acidentes

Os trabalhadores mais velhos (55-64 anos) têm

395
Salvador Massano Cardoso

acidentes mais fatais

Na indústria da madeira, cada ano, 10% dos


trabalhadores sofrem um acidente

A taxa de acidentes é mais elevada nas companhias


pequenas do que nas grandes

Os acidentes que ocorrem durante a noite tendem a


ser mais fatais

As extremidades são as partes mais atingidas pelos


acidentes de trabalho

As feridas e os ferimentos superficiais são o tipo mais


comum

17% de ausências ao trabalho são da


responsabilidade dos acidentes

Estima-se em 210 milhões os dias de trabalho


perdidos por acidentes de trabalho.

Os trabalhadores com menos de 5 anos de


antiguidade estão mais sujeitos a acidentes

Os que se deslocam têm taxas mais elevadas

2,3 milhões de trabalhadores europeus consideram-


se que têm uma inabilidade devido a um acidentes de

396
Notas de Saúde Pública e Ambiental

trabalho.

A prevenção dos acidentes de trabalho é um bom


investimento por motivos óbvios. Importa efectuar
investimentos neste sector, a todos os níveis. Não é
por acaso que os programas dos governos encerram
medidas de carácter político destinadas a inverter a
situação da epidemia de sinistralidade laboral. Esta
interiorização é efectuada de acordo com normas e
convenções internacionais que, desde há longas
décadas, têm vindo a alertar as autoridades e
responsáveis para a necessidade de por cobro e
reduzir a sinistralidade laboral. Infelizmente, o
sucesso não tem sido imediato, mas o esforço e a
dedicação dos interessados, a par de medidas de
carácter legislativo acabarão por “normalizar” a
situação.

Não podia antes de terminar chamar a atenção para


outras duas áreas responsáveis pela sinistralidade e
que merecem a nossa atenção, caso dos acidentes de
lazer e os domésticos. O aumento progressivo de
pessoas que ocupam os seus momentos de lazer tem
vindo a aumentar e, consequentemente susceptíveis
de vários tipos de acidentes que exigem medidas de
prevenção de forma a evitar o aparecimento de novas
formas de epidemias de sinistralidade. Também as

397
Salvador Massano Cardoso

condições e o progressivo aumento de factores de


risco domésticos, motivados pelas novas tecnologias
e manutenção das já existentes, propiciam condições
particularmente perigosas para os habitantes,
sobretudo crianças, o que exige conhecimentos e
técnicas cada vez mais sofisticadas.

398
Notas de Saúde Pública e Ambiental

MELHORAMENTO HUMANO EM GERAL

(ASPECTOS TÉCNICOS)

A aspiração em melhorar a espécie humana é uma


constante desde os primórdios dos tempos. Por
melhoria entende-se, numa primeira fase, e mesmo
hoje em dia, combater a doença, o sofrimento e
evitar a velhice. A história da humanidade e da
medicina em particular estão cheias de relatos que
revelam esses desideratos. No entanto, a partir do
momento em que as conquistas tecnológicas se
tornaram rotina, aproveitando as conquistas de
outras áreas do conhecimento, os seres humanos,
eternos futuristas, projectam os seus anseios e
aspirações para que sejam alcançadas as metas que
perseguem desde que tomaram consciência da
existência. Mas tudo leva a supor que poderá estar a
pensar ir longe de mais, e daí não se sabe!, porque
muito das fantasias e futurologia de hoje fácil e
rapidamente se transformarão em verdades amanhã.
Sendo assim, os problemas éticos que se avizinham
são tão vastos e tão complexos que poderemos
enveredar por uma “ética futurologista”, até, porque
muitos não querem morrer, ao passo que outros...

399
Salvador Massano Cardoso

Confunde-se com o próprio nascimento do homem o


desejo de ultrapassar determinadas limitações a fim
de melhor poder usufruir a vida. Ao tomar consciência
da sua existência, e precariedade, deverá ter pensado
como ultrapassá-las.

É muito provável que a cirurgia tenha sido a primeira


técnica utilizada pelo homem. Num artigo publicado
em 1922, no New York Times, já eram descritas
técnicas cirúrgicas e ortopédicas de correcção no
Paleolítico.

O trabalho de Nerlich e all, publicado no The Lancet,


descreve algumas técnicas utilizadas no Antigo
Egipto, nomeadamente a utilização de uma prótese
para substituir o dedo grande do pé numa mulher o
que lhe permitia caminhar normalmente.

Na Índia, 1500 a. C., já se faziam reconstruções dos


narizes. A mutilação constituía uma prática comum de
vingança de tal forma que o nariz era considerado o
órgão de respeito e de reputação. Esta prática
continuou durante o período colonial, e até nos
nossos dias, sendo o adultério uma dos principais
motivos. Deste modo, é compreensível a elevada
capacidade técnica utilizada desde há 3.500 anos,
contribuindo para o melhoramento humano.

400
Notas de Saúde Pública e Ambiental

É fácil demonstrar que desde os confins do tempo o


homem procurou sempre “melhorar-se”, em termos
técnicos, já que no restante mantém vivas chamas
atávicas prontas a manifestarem-se com violência,
resistentes à evolução e aos diversos códigos de
conduta entretanto produzidos.

Os três exemplos apontados representam,


simbolicamente, o desejo de resolver alguns
problemas funcionais em fases precoces da nossa
existência. Desde então nunca mais parámos ao
ponto das descobertas científicas e conquistas
técnicas adquirirem uma velocidade exponencial que
fazem inveja ao efeito da energia escura na expansão
do Universo.

A medicina surpreende-nos cada dia que passa. O


desenvolvimento e a inovação tecnológica são
notáveis, abrindo perspectivas jamais pensadas,
mesmo há poucos anos. Técnicas de exploração
imagiológica capazes de mostrar o funcionamento dos
tecidos, diversos tipos de implantes, próteses cada
vez mais sofisticadas, cirurgias menos “cirúrgicas”,
“regeneração de tecidos”, entre muitos outros, não
falando das potencialidades nanotecnológicas, e da
emergência do futuro homem biónico, obrigam-nos a
reflectir sobre o princípio da transhumanidade.

401
Salvador Massano Cardoso

O homem não se preocupa apenas em melhorar as


suas capacidades graças às novas tecnologias,
procura algo mais profundo, a imortalidade. Mas a
sua procura pode esbarrar em alguns problemas tão
bem traduzidos no mito de Titonus. A procura da
fonte da longevidade ou o elixir da vida é uma
obsessão a que não é alheio o medo da morte
empurrando-o à procura de um lugar próprio dos
deuses.

Não sei se valerá a pena ser imortal. Deve ser muito


cansativo. Além do mais, imortalidade sem juventude
não deve ser muito agradável, que o diga Titonus que
ao apaixonar-se pela deusa Eos (Aurora) fez com que
esta a pedisse ao todo poderoso Zeus para o seu
amado. Zeus, que não gostava muito que as suas
deusas se apaixonassem pelos mortais, satisfez-lhe o
desejo. Assim, Titonus alcançou a imortalidade mas
envelheceu tanto que ficou demente e como não
havia maneira de morrer, Aurora, sentindo pena do
seu amado, transformou-o numa cigarra, símbolo da
imortalidade.9

9
(A deusa Eos apaixonou-se por Titonus, um mero mortal. Consciente desse
facto, pediu a Zeus a imortalidade para o seu amado. Eos, ingloriamente, não
se apercebeu que imortalidade não é sinónimo de eterna juventude. Tinha
isso em mente, quando fez o pedido. Zeus que não é ingénuo e que não gosta
muito que as suas deusas se apaixonem por mortais, fez-lhe a vontade.
Titonus envelheceu, envelheceu, acabando por ficar totalmente demente. Eos

402
Notas de Saúde Pública e Ambiental

As novas técnicas, que são cada vez mais


diversificadas, não deixam de levantar numerosos
problemas éticos. Para evitar maus usos ou
descalabros, susceptíveis de por em causa a
dignidade humana, os responsáveis têm a obrigação
de definir as regras a seguir. Claro que nestes
aspectos há sempre os que fazem a sua própria
interpretação, sem que isso possa ser considerado
como um “desvio” às normas. No final prevalece as
opiniões da “maioria”. Afinal, mesmo em assuntos
delicados existe uma “ ética democrática”.

Quando se manipula a vida ou se interfere com a sua


própria evolução estamos a “mexer” em matérias
muito complexas e delicadas que, durante toda a
nossa existência, como humanos, era considerada
como atributos de forças superiores, divinas. Só que
o céu começa a baixar à terra. E, às vezes, o “céu cai
mesmo em cima de nós”.

A tentativa de conhecer a existência de uma anomalia


que comprometa o futuro de uma criança, ou a
utilização de “embriões-medicamentos” para salvar a

sofria tanto com a situação que, acabou por transformá-lo em cigarra,


segundo uns, em gafanhoto, segundo outros, símbolo da imortalidade na
mitologia grega.)

403
Salvador Massano Cardoso

vida de um filho constituem duas das principais


medidas enquadradas no diagnóstico pré
implantação. Há os que querem ir mais longe, numa
verdadeira selecção genética que, sendo condenável,
não tem o aval de médicos conscientes.

A decisão, desde que tenha enquadramento legal,


pertence sempre aos pais. É comum, de acordo com
as informações prestadas pelos colegas que se
dedicam a estas áreas, a tradicional pergunta: - O
que é que o senhor doutor faria se estivesse na nossa
posição? Sensatamente, os médicos não respondem,
porque não podem, nem devem saber. Claro que
quando estão do outro lado têm posições e ambições
como qualquer outro. É humano!

Os debates sobre estas matérias multiplicam-se e não


deixam de ser ricos e esclarecedores, mas o que é
problemático é considerar a doença como sinónimo
de “terrorismo” ou como algo evitável e que deveria
ser combatida a qualquer preço, justificando algumas
opções. Os que consideram a doença como sinónimo
de “terror” baseiam-se no facto de muitos de nós,
quando adoecemos, ficar aterrorizado, sobretudo se
estamos perante uma doença grave. Mas não
devemos aceitar esta posição. A razão é muito
simples e baseia-se na afirmação de um investigador

404
Notas de Saúde Pública e Ambiental

que em tempos afirmou: “A doença é mais antiga do


que o homem, é tão antiga como a própria vida,
porque é uma atributo da vida”. De facto, a evolução
da vida teve de ser feita à custa de compromissos
que, curiosamente, estão na base de muitas doenças,
inclusive o próprio cancro. Devemos lutar contra as
doenças? Claro que sim. Devemos fazer todos os
possíveis para a prevenir? Com certeza! Seremos
capazes de a eliminar? Provavelmente, não. Quando
tal acontecer, se é que isso irá algum dia acontecer,
deixaremos de ser humanos e passaremos a ser
transhumanos ou qualquer coisa semelhante. Afinal a
doença é uma inevitabilidade e temos de viver com
ela, porque é, paradoxalmente, essência da própria
vida. Mas daí a considerá-la como terrorismo vai um
grande passo.

Certas afirmações curiosas obrigam-nos a reflexões


profundas. Qual o significado da frase proferida por
um anti-darwinista convicto, o cientista António de
Lima-de-Faria, segundo a qual “Não está
cientificamente provado que uma pessoa tenha de
morrer”? Que somos potencialmente imortais? Que
poderemos utilizar todas as técnicas possíveis e
imaginárias a ponto de substituirmos tudo ficando só
com a essência da consciência?

405
Salvador Massano Cardoso

São vários os grupos de pessoas e de cientistas


ávidos de conquistar o Ansari X Prize, entre os quais
se conta o futurologista Ray Kurzweil. No seu último
livro, The Singularity is Near, analisa a união do
humano e da máquina, originando uma singularidade
em que a nossa inteligência se tornará não biológica
e triliões de vezes mais poderosa do que é
actualmente!

“Em termos práticos, conseguiremos reverter o


envelhecimento e a doença; a poluição parará, e a
fome e a pobreza mundial desaparecerão. A
nanotecnologia permitirá criar qualquer produto
usando informação sem custos e, por fim, a morte
transformar-se-á num produto resolúvel”. Nem mais.
Futurologia pura ou não tem os seus seguidores e
cultivadores. Resta saber se o tempo disponível para
alcançar ou produzir uma nova espécie é suficiente
face aos riscos planetários que corremos. “Em
alternativa, a sobrevivência dos seres humanos
depende da capacidade em encontrar novos lares,
algures no Universo, devido aos riscos de desastres
que poderão destruir a Terra”. Esta afirmação foi feita
pelo reputado cientista Stephen Hawking, em 2006,
em Hong Kong.

Mesmo que Ray Kurzweil seja um exagerado, o que é

406
Notas de Saúde Pública e Ambiental

certo é que o desejo de viver mais, com saúde e sem


envelhecer está bem patenteado no nosso dia a dia,
embora longe do sonho.

A curta obra, do novelista Ian McDonald, "The Days


of Solomon Gursky" revela, em termos de ficção
científica, a aplicação de novas tecnologias com o
objectivo de eliminar todas as doenças e manter uma
performance invejável. Deste modo, os "gurskys"
seriam imortais, vivendo para além do próprio
Universo. Mas, neste caso, mesmo os "gurskys"
também têm de morrer, não de doenças, mas de
acidentes, suicídios e homicídios. Os "gurskys" não
teriam esperança de vida, mas semi-vida (de forma
idêntica às substâncias radioactivas). Não havendo
um limite de vida, calcula-se que a mesma seria da
ordem dos 500 anos, partindo do pressuposto de que
a taxa de mortalidade por fenómenos violentos se
mantivesse constante.

No momento actual, a taxa de mortalidade aumenta


exponencialmente devido aos erros acumulados nos
nossos organismos. Cancro e doenças
cardiovasculares ilustram bem este fenómeno. A
maior parte das pessoas que morrem de doenças
cardiovasculares tem mais de 65 anos. Se fosse
possível reduzir em 50% a mortalidade por estas

407
Salvador Massano Cardoso

afecções estaríamos a contribuir com alguns (poucos)


anos para o aumento da esperança de vida dos seres
humanos. Com base nas análises da curva
exponencial de mortalidade é possível calcular o
limite superior de sobrevivência. Actualmente, nos
países desenvolvidos, o limite superior (calculado) é
de 103 anos para os homens e cerca de 109 anos
para as mulheres, cifras que se aproximam dos casos
relatados de pessoas que chegam a "atingir" os 120
anos.

Se fosse possível aplicar a tecnologia genética para


resolver muitas situações, verificaríamos que o limite
superior seria cerca de 115 anos. Neste cálculo
estariam excluídos as infecções, cancro, anomalias
congénitas, doenças relacionadas com a gravidez,
doenças endócrinas, hematológicas e dermatológicas.
Ou seja: a tecnologia genética aumentaria em mais
nove anos o limite actual. Mas, se conseguíssemos
um cenário mais optimista - aumentar a "melhoria"
tecnológica por um factor de dois, a duração máxima
de vida passaria para os 135 anos, e, no caso
extremo, de um aumento de dez vezes, passaríamos
a ter um limite superior de 180 anos, ou seja, se a
actual taxa de mortalidade fosse reduzida dez vezes
menos, passaríamos a alcançar "quase" o dobro do

408
Notas de Saúde Pública e Ambiental

limite actual de sobrevivência.

Na expectativa de que as futuras tecnologias não irão


tornar-nos em seres gurskianos, continuaremos a
sofrer dos erros acumulados ao longo da vida. Logo,
a curva de mortalidade continuará a ser uma curva
exponencial e não viveremos muito tempo com sinais
de debilidade mental. Afinal, a "opção Titonus" (vida
imortal com demência eterna) não ocorrerá, mesmo
com o advento de tecnologias avançadas contra o
envelhecimento.

No inicio desta curta reflexão sobre o “melhoramento


humano em geral” foram utilizados, simbolicamente,
três exemplos protagonizados pelos nossos
longínquos antepassados.

Ao longo da nossa existência, como espécie, fizemos


descobertas técnicas e científicas notáveis que
escaparam à maioria das mentes e se alguns as
equacionaram logo eram rotulados de insanos ou de
coisas ainda piores.

Pensar o futuro é projectar o presente, satisfazendo


os nossos anseios e desejos. Talvez a humanidade
nunca tenha produzido tanto e ido tão longe como a
de hoje, ao ponto de muitos sonhos se
materializarem na própria geração, o que estimula e

409
Salvador Massano Cardoso

reforça mais a necessidade e a esperança de ir mais


longe, cada vez mais longe, ao ponto de não saber se
haverá um limite.

A criação de um aparelho de diálise portátil,


recentemente publicitado, traduz uma evolução
tecnológica face ao universo de cerca de 1,3 milhões
de doentes cujas vidas estão bastante limitadas e
condicionadas pelas terapêuticas actuais. Obviamente
que a transplantação constitui a melhor das soluções
e, por si, já reflecte uma área muito importante que
tem contribuído para o “melhoramento humano”, mas
que já não consegue resolver os problemas, não
obstante todas as medidas que propiciam a colheita
de órgãos de cadáveres e de dadores vivos, sendo
por sua vez responsável pelo aparecimento de novas
dificuldades que põem em causa valores éticos, como
é o caso do tráfico de órgãos. A nova tecnologia
ajudará a resolver, pelo menos em parte, as
necessidades de muitos pacientes, enquanto o fabrico
de órgãos não ocorrer de forma a satisfazer as
necessidades dos seres humanos.

As recentes notícias sobre a possibilidade de, em


breve, obtermos as nossas próprias bexigas constitui
uma conquista das mais revolucionárias relacionadas
com o fabrico de órgãos, criando expectativas muito

410
Notas de Saúde Pública e Ambiental

fortes para a produção de outros, caso da criação de


“novo” de um coração de ratinho pela equipa de Doris
Taylor que, apesar da sua “fraquita” potência
bombeadora, permite franquear com muita confiança
as portas de uma modernidade inimaginável, mesmo
para as mentes mais “delirantes” em termos de
antecipação do futuro e de um homem muito
diferente do actual.

411
Salvador Massano Cardoso

412
Notas de Saúde Pública e Ambiental

BREVES REFLEXÕES SOBRE O

ENVELHECIMENTO

Conferência realizada no dia 25 de Setembro de


2008
EXPOVITA-SENIOR
Conimbriga

Pediram-me para fazer uma intervenção formal sobre


o envelhecimento. Tendo sido “nomeado” comissário
da EXPOVITA-SENIOR, facto que muito me honra,
não podia recusar o convite.

Vou tentar, no decurso dos próximos minutos, fazer


uma abordagem e algumas reflexões sobre um dos
fenómenos mais interessantes da espécie humana: o
envelhecimento

Convivi sempre com pessoas de idade e aprendi


muito com elas.

“O conceito de que a idade acarreta bom-senso, paz,


serenidade e sabedoria é verdadeiro mas só em
parte. Acompanha-a outras facetas, ângulos sombrios
e tristes, marcados pelo arrependimento, subversão,
doença, sofrimento e a estranha percepção de que o
fim está ao virar da esquina mais próxima” (Julian

413
Salvador Massano Cardoso

Barnes).

O livro, “A mesa de limão”, de Julian Barnes, escritor


britânico, demonstra, através de vários contos as
diferentes realidades emergentes no decurso do
envelhecimento. A escolha do título, também é
curiosa, o autor baseou-se na simbologia chinesa,
segundo a qual o limão representa a morte.

Ao mesmo tempo que lia esta obra, deliciava-me com


uma outra, “Gente de palmo e meio” de Augusto Gil.
Os contos deste genial autor focam as crianças com
as suas aspirações, visões do mundo, virtudes,
traquinices, medos, desejos, insegurança, tragédias,
alegrias e sempre muita esperança mesmo entre os
mais desafortunados; em perfeito contraste com a
obra de Barnes. Augusto Gil oferece-nos doces e
suculentas laranjas que, com o tempo, e na
perspectiva “barniana”, acabarão por se transmutar
em amargos limões.

A primeira vez que tive a noção do que era a


demência ocorreu quando tinha acabado de entrar na
faculdade. A tia São, que conheci sempre velha, e
que tinha perdido o único filho quando era nova e
depois o marido, era uma pessoa alegre, seca de
carnes, com um permanente sorriso infantil,

414
Notas de Saúde Pública e Ambiental

encantadora, exímia contadora de estórias, fazia de


tudo e, sobretudo, adorava conversar. Vivia num
concelho vizinho e, sempre que a visitava, fazia-me
uma festa dos diabos, do género: - Oh Manelzito,
como estás crescido! E logo a seguir: - E como vai a
escola? Contava-me estórias e preparava-me um
lanche em que era obrigado a comer um pão enorme
de centeio, quentinho, barrado generosamente com
manteiga e ornamentado com uma boa lasca de
presunto, acompanhado, quase sempre, de uma
valente caneca de café de cevada. Mas, às vezes,
sobretudo no Verão, sem que mais ninguém
soubesse, ofertava-me um copito de vinho
morangueiro, fraquito, que surripiava na adega, onde
me levava a pretexto de qualquer coisa. – Não digas
a ninguém que eu te dei o vinho! Estás a ouvir? Era a
única vez que ficava séria! Claro que não me fazia
rogado!

Quando adoeceu, foi para casa da minha avó, tinha


que ser, não havia outra possibilidade, a família tinha
que tomar conta dos velhos e dos doentes. Ao
princípio não me apercebi bem o que se passava.
Tinha longos momentos de lucidez. Mas de tempos a
tempos, virava-se para mim e dizia: - Oh Manelzito,
como estás crescido! Como vai a escola? E eu lá lhe

415
Salvador Massano Cardoso

dizia, meio surpreso, claro! Passados pouco minutos,


depois de silêncios confrangedores, olhava para mim
e perguntava: - Quem és tu? – Então tia, não me
está a reconhecer? Olhava, olhava e dizia com
expressão de satisfação: - Oh Manelzito, como estás
crescido! E como vai a escola? Depois abria a janela
da sua mente e conversava normalmente, contando
coisas do passado e interessantes estórias, lindas,
mesmo de encantar, algumas das quais nunca tinha
ouvido, e sempre com o seu sorriso infantil.

Com o tempo, os períodos de lucidez foram-se


apagando e os momentos de reconhecimento do
género: - “Oh Manelzito, como estás crescido! E como
vai a escola?”, tornaram-se menos frequentes, até
que a janela do tino se fechou definitivamente e
ficámos sem o seu sorriso infantil e sem as estórias
encantadoras, passando o resto da vida, se é que se
pudesse chamar vida, num estado lastimável.

Recordei-me da tia São, mulher do povo, dura,


simples e culta, que poucas vezes deverá ter saído de
um círculo com um raio de dez quilómetros, devido
aos seus contos - a lembrar, embora à distância,
Augusto Gil, obrigando-me no fim a retirar as
conclusões morais dos mesmos. E só me largava
quando ficava satisfeita. Um verdadeiro exame oral!

416
Notas de Saúde Pública e Ambiental

O fenómeno da demência está a tomar proporções


epidémicas, devido ao envelhecimento da sociedade.
Ainda há dias, a imagem de Adolfo Suarez, que
desempenhou um papel importante na transição
democrática em Espanha, ao lado do rei,
desconhecendo o papel que teve naquele país,
incomodou-me. Outros exemplos de políticos famosos
que exerceram com brilhantismo as suas actividades
acabaram por vir a sofrer desta terrível doença, caso
de Ronald Reagan e, mais recentemente, Margaret
Tatcher.

É estranho que muitas pessoas brilhantes, quer


tenham sido presidentes, primeiros-ministros,
cientistas, artistas ou simples mulheres e homens do
povo, mas que revelaram um qualquer traço de
superioridade ou até de genialidade, acabem por
perder o juízo.

Laranjas doces que na velhice acabam por


transformar-se em limões!

Desde sempre, tal como já disse no princípio desta


conferência, que convivi e aprendi muito com os mais
velhos. Também aprendi a viver outro fenómeno: a
morte. A morte que não escolhe idades mas que
privilegia, e ainda bem, os mais idosos. Horroriza-me

417
Salvador Massano Cardoso

que alguém morra sem a companhia de alguém


querido. Todos sabem que hoje em dia o mais comum
é morrer longe, às escondidas.

A primeira vez que assisti a uma morte tinha uns seis


anos. Não me custou nada. Um velho tio acabou os
seus dias no seu quarto acompanhado dos seus
familiares.

No último dia, ao fim da manhã, mandaram-me


chamar o padre Sobral, mais conhecido por padre
“Rodelas”, para ministrar a extrema-unção. Lá fui
mais o padre e as minhas primas para o quarto. O
padre “Rodelas” paramentou-se adequadamente e
começou a sua prédica, enquanto eu segurava o
balde com o hissope. Lembro-me como hoje, o
momento em que o tio Miguel foi aspergido pela água
benta a qual me salpicou os olhos. Naquela altura
olhava para o tecto onde estava pendurada, em cima
da cama, a velha bicicleta do meu tio. E, enquanto
limpava os olhos, perguntava aos meus botões: -
Como é que o tio Miguel conseguiu por a pasteleira lá
no tecto? E se ela caísse enquanto dormia? Este tio é
mesmo maluco!

Depois do almoço, o tio Miguel adormeceu para


sempre e nunca mais o veria a fazer os seus cigarros

418
Notas de Saúde Pública e Ambiental

de barba de milho e a contar as suas aventuras da


Grande Guerra. Morrer assim é outra coisa…

Acabo de falar de dois fenómenos comuns nos idosos,


a demência e a morte. Nestes dois casos, entre
muitos outros que vivi, pretendo demonstrar que as
pessoas de idade sempre tiveram quem os cuidasse
nas situações mais delicadas até ao momento final. A
família era o suporte de apoio geriátrico que ainda
hoje sobrevive. Mas os tempos mudam, as
necessidades alteram-se e as famílias modificam-se.
Cada vez é mais difícil solicitar aos familiares que
continuem a tomar conta dos seniores. Dispenso-me
de elencar as razões, porque são do conhecimento
geral.

O processo de envelhecimento é complexo e às vezes


um pouco misterioso.

Utilizo, com alguma frequência, a expressão “velho”.


Não me repugna nada esta designação, se bem que
as expressões velhice e velho, na perspectiva de
alguns, ao reflectirem um significado pejorativo,
foram substituídas por terceira idade e idosos, para
não ofender o pudor social.

Cícero usou a expressão terceira idade há dois mil


anos (séc. I, a.C.) na sua obra «De Senectute», ao

419
Salvador Massano Cardoso

referir-se a Nestor como o mais idoso príncipe que


assistiu ao cerco de Tróia.

Huet, na década de sessenta introduziu novamente


a expressão de terceira idade para suavizar a
conotação negativa atribuída à velhice. “Qualquer
das expressões são anacrónicas, porque não existem
em si mesmas e são sempre portadoras de uma
cultura”. “O que existe é o ser humano pleno a
caminho da sua auto-realização…”.

Deste modo, o conceito de terceira idade é uma


criação artificial. Montaigne nos seus 40 anos
descrevia a chegada da triste velhice e sentia-a…
Houve alturas em que aos 50, aos 60 anos já eram
considerados velhos e tinham comportamentos e
doenças graves. Hoje, velho aos 65 anos? Era o que
mais faltava!!!!! Hoje, aos 65 anos as nossas
capacidades físicas e mentais permitem-nos trabalhar
e desfrutar a existência de uma forma perfeitamente
normal. A maior conquista da humanidade foi
precisamente vulgarizar e democratizar a velhice em
condições que, por vezes, fazem inveja aos mais
novos.

Convém relembrar que a esperança de vida pouco se


alterou entre a pré-história e o momento em que

420
Notas de Saúde Pública e Ambiental

Cristo nasceu, passou de 25 para 30 anos e demorou


1900 anos para atingir apenas 40. No último século
praticamente duplicou para os 80 anos.

E agora? Podemos viver mais? Com saúde? Sem


saúde? É fácil de compreender que a patologia
aumenta com a idade, caso das doenças
cardiovasculares, cancro, doenças degenerativas
osteomusculares e demência, mas as conquistas na
área da saúde empurram cada vez para mais tarde o
seu aparecimento assim como as sequelas funestas.

A população envelhece a um ritmo acelerado,


esperando que muito em breve deixemos de ligar a
quem faça 100 anos. Começa a ser tão corriqueiro
que a comunicação social vai deixar de dar notícias
sobre essas pessoas, passando a referenciar apenas
quem faz 110 ou 115.

O Japão é o país do mundo com mais centenários,


36.000, e em 2050 atingirá o milhão. Por aqui
poderemos tirar as nossas medidas em matéria de
longevidade. Se agora temos bastante dificuldade em
apoiar os nossos seniores, então imaginem quando
passarmos a ter centenários. Dificuldades nos
cuidados sociais, médicos e até familiares, pois ter
filhos com 80 anos a cuidar dos pais não me parece

421
Salvador Massano Cardoso

ser muito razoável.

A nossa sociedade dispõe de alguns meios de apoio e


até de um Programa Nacional de Pessoas Idosas,
facto que releva o interesse e a preocupação com os
mais velhos. No entanto, é preciso manter as pessoas
de idade o mais activas possível, no seu ambiente,
manter e reforçar os laços familiares, que não se
esgotam nos filhos, devendo estender-se aos netos.
Deverão ser incentivados a ter participação activa na
sociedade de modo a enriquecê-la com as suas
experiências e sabedoria acumuladas ao longo da
vida, têm direitos a desfrutar de apoios sociais e
económicos de forma a ter uma vida condigna e
quando for caso disso de apoios.

Manter as pessoas de idade nas suas habitações é


essencial para preservar a saúde mental. Em caso de
necessidade, deverão usufruir de apoios técnicos,
assistenciais e clínicos. A preparação de técnicos
geriátricos capazes de resolver a maior parte dos
problemas é um imperativo que tarda em concretizar.
Os técnicos geriátricos deverão saber de
enfermagem, de medicina, de psicologia, de
sociologia, resolver problemas burocráticos e
administrativos relacionados com a vida dos idosos,
proporcionar convívio cultural, afectivo e artístico,

422
Notas de Saúde Pública e Ambiental

verdadeiras personalidades cujo polivalência é


determinante para ajudar e cuidar os mais
necessitados. É difícil de compreender que face a um
“mercado” em crescendo - entenda-se a palavra
mercado, no seu sentido mais lato -, que não tenha
sido ainda explorado. É inadmissível que o
acompanhamento e cuidados com os mais idosos
sejam feitos por pessoas indiferenciadas, cuja boa
vontade e solidariedade são manifestamente
insuficientes. A população a envelhecer a breve prazo
será diferente da actual, mais refinada, mais culta,
mais exigente e, por estas razões, necessitarão de
pessoal à altura, de forma a não criar situações
embaraçosas ou negativas.

As novas tecnologias já começaram a ser utilizadas


para apoio ao idoso. Possibilidade de contacto
permanente com as diferentes instituições, em
matéria de segurança, apoio médico, esclarecimentos
sociais, conversar com familiares e amigos irão ser
vitais para um novo enquadramento dos idosos, ao
qual se associará a construção de habitações
adaptadas às limitações próprias da idade. A
domótica constitui uma área a explorar e cheia de
potencial para facilitar a vida aos mais idosos. O
próprio urbanismo terá de ser equacionado para se

423
Salvador Massano Cardoso

adaptar à nova realidade demográfica. A distribuição


da população dentro das localidades portuguesas,
caracterizadas, de um modo geral, por uma
ancestralidade defensiva com os seus castelos
altaneiros, bonitas e funcionais para quem tem boas
articulações e bom coração, mas não para as pessoas
de idade, terá de sofrer alterações significativas para
áreas mais consentâneas com as suas características
e limitações. Os desafios colocados pela processo
gerontorevolucionário em curso, estendem-se a
muitas mais áreas tais como a do turismo sénior. Um
dos mercados mais florescentes que temos à nossa
porta e dentro de nós. Seria uma estultice da minha
parte enumerar a riqueza e o potencial de oferta do
nosso país em matéria de turismo adequado às
pessoas de idade que, aliás, começa a dar passos
muito interessantes. Os aspectos culturais e literários
também têm sido objecto de atenção, facto que
merece realce entre nós, graças às Universidades da
Terceira Idade. Enfim, muito mais haveria dizer sobre
a velhice, a senectude ou a terceira idade como
queiram chamar.

O que importa, neste momento é criar o máximo de


redes que envolvam as pessoas de idade e fazer com
que essas redes, de malhas cada vez mais finas,

424
Notas de Saúde Pública e Ambiental

possam entrosar umas nas outras de forma a


potenciar uma assistência de elevada qualidade. São
inúmeros os campos onde podemos actuar, conforme
tive oportunidade de abordar, ainda que
superficialmente.

Em pequeno, um dia perguntaram-me qual era o meu


maior desejo. Recordo ter disparado, de imediato, a
seguinte frase: “A minha maior aspiração é ser
velho”!

Muitos têm dificuldade em aceitar a velhice, lidando


muito mal com esta condição, que, de facto, é um
verdadeiro estado de excepção, porque a Natureza
não é muito adepta da velhice, basta ver o que
acontece com a maioria das espécies. Seja como for é
bom viver muitos anos, sobretudo com o mínimo de
capacidades, mas o risco de adoecer e de morrer
aumenta exponencialmente com a idade. Os diversos
factores que, diariamente, são enunciados como
responsáveis por muitas doenças devem ser
analisados em função do tempo.

A este propósito convém informar que quando


comemoramos o nosso aniversário não fazemos mais
um ano, mas sim “um ano e mais qualquer coisita”,
“qualquer coisita” que vai aumentando de ano para

425
Salvador Massano Cardoso

ano! O tempo biológico acelera enquanto o


cronológico se mantém constante. Este fenómeno foi
quantificado no século XIX por Benjamin Gompertz,
matemático judeu, que criou uma interessante
equação segundo a qual seria possível calcular o risco
de morte com a idade. Como estava ligado a
seguradoras viu aqui uma forma interessante de
calcular os prémios de seguro em função da idade.
Mas o que é curioso é o facto de que através desta
lei, Lei de Gompertz, que se aplica, também, às
outras espécies, ser possível calcular o tempo de
duplicação da taxa de mortalidade que é cerca de
uma semana nas moscas, três meses nos ratinhos e
de oito anos nos seres humanos. Deste modo,
partindo da “idade em que não se morre”, que na
nossa espécie oscila ao redor dos 10/11 anos, é fácil
de calcular que a taxa de mortalidade é duas vezes
superior aos 18 anos, quatro vezes aos 26 anos, oito
vezes aos 34 anos, dezasseis vezes aos 42 anos,
trinta e duas vezes aos 50 anos, sessenta e quatro
vezes aos 58 anos e o melhor é ficar por aqui para
não assustar mais!

Por cada dia que passa envelhecemos mais


rapidamente do que no anterior, numa aceleração
preocupante que, curiosamente, parece diminuir em

426
Notas de Saúde Pública e Ambiental

idades muito avançadas, não se sabendo se é por


falta de combustível ou por esquecimento de São
Pedro!

Este fenómeno biológico é curioso e tem como


correspondente a percepção da passagem do tempo.
Em criança e na adolescência o tempo demora a
passar, depois começamos a ter a percepção de que
acelera, mas a partir de certa altura nem damos pela
sua passagem.

E agora? Podermos ir até onde? Qual o limite da


duração da vida? A procura da imortalidade foi
sempre uma das maiores aspirações humanas.
Presentemente podemos viver “Mais uns anitos”, mas
alcançar a imortalidade não me parece ser uma boa
ideia. Basta recordar o Mito de Titonus.

Passo a contar a história:

Eos também conhecida como Aurora, a deusa da


madrugada, apaixonou-se por Titonus, mero mortal.
Consciente desse facto, pediu a Zeus a imortalidade
para o seu amado. Eos, ingloriamente não se
apercebeu que imortalidade não é sinónimo de eterna
juventude.

Tinha isso em mente, quando fez o pedido. Zeus que

427
Salvador Massano Cardoso

não é ingénuo e que não gosta muito que as suas


deusas se apaixonem por mortais, fez-lhe a vontade.
Titonus envelheceu, envelheceu, acabando por ficar
totalmente demenciado.

Eos sofria tanto com a situação, que acabou por


transformá-lo em gafanhoto, segundo uns, ou cigarra
segundo outros, símbolo da imortalidade na mitologia
grega.

Espero sinceramente que esta EXPOVITA-SENIOR


constitua um ponto de partida em que possamos
debater para conhecer e no fim resolver muitos dos
problemas que afligem neste momento grande parte
dos nossos concidadãos e, no futuro, nós próprios,
porque o tempo não perdoa. Mas afinal o que é o
tempo? Para o efeito socorro-me desta bela frase de
um dos maiores escritores de todos os tempos, Jorge
Luís Borges, “O tempo é a substância de que sou
feito”.

428
Notas de Saúde Pública e Ambiental

ÍNDICE

ÁGUA E SAÚDE ..........................................................................................1


QUALIDADE NA SAÚDE: TERRA, ÁGUA E AR ........................................15
DOENÇAS , ETNIAS E DESIGUALDADES SOCIAIS .....................................39
POLÍTICA DE AMBIENTE E SAÚDE ..........................................................49
AMBIENTE E SAÚDE .................................................................................69
AMBIENTE, EVOLUÇÃO E PATOLOGIA HUMANA ....................................89
ALIMENTAÇÃO, AMBIENTE E EVOLUÇÃO .............................................109
”A PERGUNTA DE YALI”… ...................................................................133
SAÚDE E TRABALHO ..............................................................................143
DOENÇAS PROFISSIONAIS. “UM ASSASSINO SILENCIOSO”..................161
“O MÉDICO DO TRABALHO FACE À MEDICINA ITINERANTE: OS NOVOS
ANDARILHOS” ........................................................................................173
SAÚDE DOS TRABALHADORES E OS RISCOS BIOLÓGICOS ....................185
SEGURANÇA, HIGIENE E SAÚDE NO TRABALHO .................................203
DESABAFO SOBRE A HIPERTENSÃO ARTERIAL .....................................217
O TABACO MATA SOB TODAS AS FORMAS " ..........................................231
OBESIDADE INFANTIL E DO ADOLESCENTE ..........................................243
SEGURANÇA ALIMENTAR ......................................................................253
EPIDEMIOLOGIA DA ASSOCIAÇÃO DIABETES MELLITUS – HIPERTENSÃO
ARTERIAL................................................................................................267
DIABETES MELLITUS E “SÍNDROMA DE STATUS” ...................................273
DIABETES E LITERACIA..........................................................................279
“SAL, HIPERTENSÃO E POLÍTICA” ........................................................297
ÁLCOOL ..................................................................................................303
"FAZ MAL, MAS SABE BEM" ..................................................................331
“BIOÉTICA, REFLEXÕES A PROPÓSITO” ................................................347
APRESENTAÇÃO DO LIVRO “A SAÚDE , AS POLÍTICAS E O
NEOLIBERALISMO” ................................................................................355
ACADEMIA PORTUGUESA DE MEDICINA ..............................................371
SINISTRALIDADE ....................................................................................379
MELHORAMENTO HUMANO EM GERAL (ASPECTOS TÉCNICOS) .........399
BREVES REFLEXÕES SOBRE O ENVELHECIMENTO ...............................413
ÍNDICE .....................................................................................................429

429

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