Uma garota de três anos de idade num programa de calouros pode surpreender.
Essa é a história de minha irmã Cenha, em início de carreira artística.
As fotos, em preto e branco, eram para ocasiões especiais. Nos casamentos e aniversários, tinha. O fotógrafo, nos parabéns, mandava apagar a lâmpada. Era para não dar sombra na imagem. Imagens em movimento, só no cinema, ou, para quem tinha, na TV, também, em preto e branco. Sobrava o áudio para nos fascinar. Os long plays de vinil rodavam, em casa, em toca-discos e vitrolas. Era assim o som. E os mais privilegiados podiam ouvir Roberto Carlos, Luiz Gonzaga, Rita Lee, Scorpions, Pink Floyd e toda a plêiade da época, à hora que quisessem. Mas ainda mais fascinante, era o rádio. Descobri um dia que naquela caixa de madeira envernizada e de cantos arredondados não ficavam mulheres e homens pequeninos que falavam e falavam. A mágica era outra. Perdi essa inocência dos meus sete anos, quando fui assistir a um programa de rádio, ao vivo. O programa do Canarinho era semanal, nos domingos de manhã, na Rádio Manhumirim. Ou, melhor dizendo, KYL, Rádio Sociedade “A Voz de Manhumirim”, ondas médias, operando na frequência de 1510 KHz, como era enunciado pelos locutores, o indicativo de identificação da emissora. Eloquente, embora desnecessário, já que era a única. O auditório se enchia. As várias atrações incluíam o sorteio de brindes. Sanfonas era outra forma de fascínio, nas manifestações de áudio. No salão, repleto de cadeiras coladas como as de cinema, gente com sanfonas, que eram várias e de muitas cores, e com violões também. O programa era todo de música ao vivo. Com veteranos que iam ao palco, revezavam calouros, que enganavam bem, às vezes, ou que apenas rachavam a taquara mesmo. Descobri que para além da caixinha de madeira, o rádio era uma festa. Nesse dia, minha mãe foi contemplada com uma panelinha de alumínio, a segunda desse metal prateado a entrar na nossa casa. Ficou feliz e fiel. Nos domingos seguintes, estávamos sempre lá. No rádio, ao longo da semana, a programação não era tão calorosa, mas fascinava assim mesmo. — Escuta, escuta. Vai passar... Vai passar aquela. — Aquela era uma que dizia assim: “Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui”. Se tivesse como, poríamos no loop, par ouvir várias vezes. E quem também gostava e começava a acompanhar o cantor era a Cenha, minha irmãzinha. Com os dias, ela evoluiu. Quando ela demonstrou saber o refrão completo e mais dois versos, decidimos por ela que, agora sim, o Canarinho teria uma atração à altura. Só três anos, rechonchudinha, vestidinho rosa e laço de fita no cabelo, ia fazer bonito. Eu, quatro anos mais velho, dominando o refrão e a primeira estrofe, fui incumbido de ensaiá-la. Aguardávamos atentos que Jesus Cristo voltasse ao longo do dia. E ele voltava, entre comerciais: “Lojas Pernambucanas vão aquecer o seu lar”; notas de falecimentos: comunicamos, com pesar, o falecimento... eu tinha vontade de chorar, mesmo não conhecendo o defunto, por causa da música de fundo, fúnebre, pavorosamente fúnebre, que sei agora que se chama “Toque de Silêncio”, e está no Youtube. Jesus Cristo voltava entre as participações de ouvintes: Meisa está aniversariando hoje e seu esposo, Dulciano, lhe dedica a canção Decolores, com muito amor e carinho. Mas não só essa, uma dúzia de outras, Jesus Cristo, inclusive. Decolores, no entanto, era o nome de música que eu achava o mais horrível do mundo. Eu ficava imaginando que no aniversário da Meisa ia ter torta, por aniversário sempre tem torta. Ficava matutando sobre a torta da Meisa: deveria ser diferente. A nossa era bolo de tabuleiro de padaria, com camadas de goiabada derretida e cobertura daquela coisa branca feita de clara de ovo. E era bom. Mas a da Meisa deveria ser melhor. E Jesus Cristo, para nossa sorte, aparecia ainda, mais à tarde, no Show da Juventude, do locutor Luiz Carlos Santana. Cenha não ensaiava direito. Fugia. Quando o gatinho passava, ela ia atrás. Entretanto, estava implícito que o resultado não dependeria tanto do desempenho, mas do charme e da precocidade da menininha. O domingo chegou. Minha mãe costurava para fora e para dentro. O que sobrava de fora, retalhos de diversas cores, era aproveitado dentro. Fui o último a ficar pronto, porque, na fila do banho, a prioridade de uso da bacia era desfavorável a mim. Quando me olhei no espelho, vi um pimpolho colorido. Só não reconheci ali o Falcão e o Tiririca, porque ainda não os conhecia. Chegamos e logo fomos anunciar ao apresentador a nossa atração. — Tudo bem. Tudo bem. Aguarda que eu vou chamar. Foi muito demorado. Subiram e desceram do palco, calouros e veteranos, e nem prestamos atenção. Não queríamos que cantassem, mas só que terminassem a música para chegar a nossa vez, o nosso instante de fama. — E depois da dupla que vem agora, vamos aplaudir, cai cantara pra nós a garotinha Cenha!, de apenas três anos . Recebam agora, com aplausos, a dupla Folha Verde e Café Maduro! Já fomos nos aproximando e levando a cantora. Nesse ponto ela parecia um pouco ressabiada, no colo, movendo a cabeça como um ventilador e olhando arregalado para os lados. Enfim, diante do microfone, rebaixado à altura adequada, o apresentador: — Cenha, Cenha, Cenha... Sua vez... O que você vai cantar? — E ela responder rápido: — Eu num vô cantá nada não! Ãh! — E uma gargalhada da plateia encerra o show.