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http://dx.doi.org/10.1590/S0101-32621997000200002
Avaliar a questão das diferenças, tão cara à antropologia e tão desafiadora no campo
pedagógico justamente por sua característica institucional homogeneizadora, não é uma
tarefa simples. Desde sempre, a antropologia e a educação têm se defrontado com
universos raciais, étnicos, econômicos, sociais e de genêro, entre tantos outros, como
desafios que limitam ou impedem que se atinjam metas, engendrando processos mais
universalizantes e democráticos. No tempo presente, com tantas mudanças numa
sociedade que se globaliza, estas questões não só não se encontram resolvidas, como
renascem com intensidade perante os contextos em transformação.
Por que ser discípulo de Franz Boas importa? Antes de mais nada, por ser ele mesmo
um aluno de Morgan - outra referência axial na antropologia -, que, rompendo com o
mestre, abre as portas para a fecundidade e as multiplicidades de pensamentos que
orientarão novas abordagens teóricas que alimentam a antropologia do século XX. Os
discípulos de Boas, neste início de século, dão continuidade ao próprio Boas, quando
este nos alertava para o fato de que tínhamos um modelo pedagógico ocidental que iria
nos conduzir a uma pedagogia da violência.
Hoje, quando vemos as dificuldades das escolas, em particular, das escolas públicas de
periferia, o fato de a escola como valor não fazer eco entre os estudantes, a indisciplina
violenta, a evasão escolar e sua face mais cruel, a exclusão social, só para citar alguns
problemas de nosso tempo, cabe perguntar qual a natureza dos riscos de que falava
Boas. Qual a natureza dos riscos de hoje? Para ele, a realidade de seu tempo apontava
um risco para os povos do futuro e para o futuro da própria civilização. A razão era que,
historicamente, a nossa sociedade e a escola que lhe é própria não desenvolviam - e não
desenvolvem - mecanismos democráticos, perante as diversidades social e cultural.
O fato mais curioso nesse encontro de culturas de que resultou a conquista da América
foi provavelmente a surpresa de ambos, espanhóis e indígenas, ao se depararem. Uns
jamais suspeitaram da existência dos outros. Para se livrarem do incômodo desse
assombro, ambas as partes mergulharam nas suas tradições míticas, a fim de
encontrarem indícios reveladores ou presságios que os ajudassem a identificar e
esconjurar os espectros com que haviam topado. Que estranha tribo desgarrada dos
filhos de Israel seriam esses gentios, perguntavam os espanhóis? Que pavorosos deuses
vingadores eram aquela gente barbada, toda revestida de metal e montada em veados
gigantes, clamavam os indígenas? (Nicolau Scevcenko. Folha de S. Paulo/Ilustrada,
domingo 2/2/1985, p. 53)
O que tem a ver com antropologia e educação o texto acima? O texto conta a história do
contato entre espanhóis e indígenas (astecas, maias, incas) na conquista da América. É
um fato real, histórico e concreto, em que dois povos e duas culturas distintas mostram
o espanto do olhar - do europeu e do indígena, ambos envolvendo de imediato a
percepção de um sobre o outro. Trata-se de um olhar etnocêntrico, fruto, como diz
Azcona (1989), da experiência do agir humano, segundo um modelo explicativo do
conhecimento e também como realidade da cultura, entendida como o sentir, o pensar, o
agir do homem em coletividade. Qualquer experiência vivida, referida a objetos,
situações, fatos, são, diz o autor, intersubjetivos, porque vivemos no mundo da cultura
"como homens entre outros homens, ligados a eles por influências e trabalhos comuns,
compreendendo os outros e sendo objeto de compreensão para outros" (p. 49).
Compreende-se, então, que o mundo da cultura e seu movimento, como parte da história
de um povo, de uma tradição e herança, ao ser confrontado com outros universos,
pressupõe interesses diversos postos numa relação de alteridade (o eu e o outro em
relação) mais que de diversidade (o eu e o outro). Resultam, daí, processos de
manipulação da realidade, segundo diferentes formas de percepção e conhecimento. A
experiência de contato entre povos diferentes e culturas diversas coloca em questão um
espaço de encontro, de confronto e de conflito, marcado pelo diverso, pelo diferente.
Esta tensão é essencial à constituição e ao desenvolvimento da antropologia como
ciência e como prática.
O que é o saber? Segundo Galli, é uma dimensão social holística 3 que vai do caos à
ordem, para outra ordem; que se desconstrói com bases em pressupostos construtivos,
postos em movimento pela experiência e pela vivência. Trata-se da fruição da cultura,
que gera um fazer reflexivo e crítico, por vezes chamado educação.
Para exemplificar que todas as sociedades possuem técnicas para estimular e corrigir
seus membros da infância à idade adulta, via transmissão de conhecimento, valores e
normas, Melatti (1979) relata o processo educativo de uma criança marubo. Diz ele:
"Durante o tempo em que o indivíduo é uma criança de colo, sem dúvida já se inicia sua
formação como marubo". Ela pressupõe desde o contato com os alimentos até outros
hábitos como amarrar os pulsos, os braços, os tornozelos e as pernas para que
engrossem, fazendo dele um bom trabalhador no futuro. À medida que cresce, está
sujeito a tapas, empurrões ou ainda a punições quando faz algo de errado. Uma punição
comum é a urtiga que é passada no corpo para que a criança deixe de ter preguiça e
torne-se aplicada no trabalho. Da mesma forma, quando maiores, tomam a "injeção de
sapo", uma espécie de queimadura em pele viva, que espanta a preguiça e o panema
(azar) (op. cit., pp. 291-301).
Este e outros exemplos entre grupos tribais como os Arapesh, estudados por Mead, ou
os japoneses, estudados por Ruth Benedict, revelam a existência de um sistema de
interpretação de um modo de vida, mas também uma pedagogia, como diz Galli, que se
formaliza como técnica e ritual educativo, criando sistemas especializados nessas
técnicas e ritos. Nesse sentido, cultura e educação são termos que se invocam e se
concitam mutuamente, como afirmam Cazanga M. e Meza (1993). Segundo esses
autores, "permanentemente envolvido no processo educativo e pelo simples fato de estar
vivendo, o homem está aprendendo na sociedade pela cultura; a sociedade é o meio
educativo próprio do homem, ainda que a todo momento não tenha consciência disso"
(p. 82).4
Isto não quer dizer que os indivíduos sejam produtos mecânicos de uma linha de
montagem. O homem como ser variável, mutável no temperamento e no
comportamento, não fica à mercê de sua natureza e de sua cultura, mas sim está sujeito
a condições históricas determinadas e determinantes do universo em que está inserido.
É comum entre antropologia e educação, portanto, tal como afirma Galli, a existência
real e concreta de diferentes grupos humanos. Uma existência que, segundo Lara
(1990), mostra o mundo cultural marcado por uma luta de interesses, com tudo o que ela
implica: a dominação, a espoliação, entre outras coisas. Para esse autor, os caminhos da
produção cultural de um povo foram, muitas vezes, obstruídos, "enquanto memória
negada ou recalcada, enquanto memória distorcida ou mesmo completamente deturpada
por aqueles que têm a força para se impor. A história cultural de um povo, na maioria
dos casos, fica sendo a história das dimensões hegemônicas dessa cultura" (p. 104).
Retomando pois, o caso dos espanhóis e dos indígenas, fica clara a imposição das
crenças dos valores dos conquistadores em nome de um domínio que nega ao outro a
própria existência de seu mundo. Diziam alguns sábios astecas: "Somos gente simples/
somos perecíveis, somos mortais,/ deixai-nos, pois, morrer,/ deixai-nos perecer,/ pois
nossos deuses já estão mortos" (Scevcenko op. cit., p. 53). O processo político que
impõe a cultura do outro à revelia dos sujeitos sociais conduz à violência que mata o
corpo (genocídio), como também mata a alma, preservando o corpo físico (etnocídio).
Os indígenas não são, assim, indiferentes às condições vividas, aprendem com elas, e se
os espanhóis foram: "adorados inicialmente como deuses, temidos depois como
demônios e desprezados por fim apenas como bárbaros", é porque os indígenas
perceberam a "cupidez dos europeus e na sua obsessão proselitista, a raiz de todo o
sofrimento em que submergiram (...) esse sentimento (...) transformou-se numa pulsação
de resistência e é até os nossos dias revivido cerimonialmente como na periódica
dramatização da morte de Atahualpa" (idem; ibidem).
Assim, num processo inverso ao da homogeneização proposta pelo campo político das
relações entre povos e culturas distintas, renasce a diferença, celebra-se a alteridade. A
realidade vivida implica um fazer e refazer constantes, via processos culturais que, no
dizer de Lara, produzem e veiculam projetos de vida humana, com propostas tidas como
válidas e como tais transmitidas. Daí que o processo de ver-se e ver a outros homens, só
pode ocorrer em contextos históricos concretos, seja em termos do senso comum, seja
em termos do conhecimento científico.
A primeira dessas teorias, que nasce junto com a própria ciência antropológica, foi o
evolucionismo. As idéias de evolução e progresso, inspirados em princípios da biologia
e, portanto, das ciências naturais do século XIX, conduzem a que se pensem as
diferenças entre grupos e sociedades numa escala evolutiva que toma o mundo europeu
como modelo único de humanidade. A concepção etnocêntrica de mundo vê o "outro" a
partir de si mesma e estabelece um fazer científico de base discriminatória e racista, já
que entende que branco, europeu e cristão constituem a superioridade da condição
humana, enquanto os demais povos e culturas representam um atraso, uma
sobrevivência do passado do homem e, como tal, uma condição inferior da própria
humanidade. Um evolucionista importante, no século XIX, foi L. Morgan, inspirador de
muitos pensadores, entre eles seu aluno Franz Boas.
Franz Boas vivencia todas as descobertas de seu tempo e chega ao presente século
trazendo para debate, agora, através de seus próprios alunos, importantes antropólogos
da primeira metade do século XX, uma crítica contundente ao pensamento de seu
mestre L. Morgan. Boas considera a idéia de que cada grupo, cada cultura têm uma
história singular, própria, que depende do que é a vida do grupo, no aqui e agora de sua
existência. Não se trata, portanto, de olhar as diferenças próprias do modo de ser do
"outro" como sobrevivência de um momento já superado pela evolução da humanidade
e, como tal, exemplo vivo de atraso social e cultural. A possibilidade de que a história
da humanidade não tenha seguido um único caminho e direção faz do pensamento de
Boas uma condição revolucionária na compreensão das realidades humanas. Como
história múltipla e variada, elimina o viés do pensamento evolucionista etnocêntrico.
Com este princípio, Boas mostra a imensa riqueza do social humano e a natureza da
cultura como não determinada biologicamente. A cultura, e não a biologia, torna-se
referência para pensar as diferenças e compreendê-las em suas bases constitutivas. O
pensamento de Boas, ao investir contra o evolucionismo de Morgan, possibilita também
a crítica aos valores liberais e de igualdade postos pelo campo político do século XIX,
como modelo autocentrado para as sociedades humanas e suas instituições, entre elas, a
escola e seu modelo pedagógico ocidental.
Boas será um crítico atuante diante do sistema educativo americano, denunciando, entre
outras coisas, a ideologia que lhe serve de base, centrada na idéia de liberdade, e sua
prática educativa de cunho conformista e coercitivo, visando criar sujeitos sociais
adequados ao sistema produtivo, segundo um modelo ideologizado de cidadão.
Demonstra, através de estudos diretos obtidos no campo educacional, que a escola
inexiste como instituição independente e, como tal, não possibilita independência e
autonomia dos sujeitos que aí estão. A meta da escola centra-se num aluno-modelo que
desconsidera a diversidade da comunidade escolar e, para contê-la, atua de forma
autoritária.
Outros antropólogos que também discutem a escola e a educação nesse período são M.
Herskovits, R. Redfield e C. Kluckholn, que apontam para a questão da escolha cultural,
do papel da cultura e das experiências vividas que marcam e constituem um universo
centrado no relativismo. São parte da discussão: a negação dos chamados "testes de
inteligência", tão em voga nos anos 30/40; as dificuldades de integração cultural do
diferente, em face da visão etnocêntrica da organização escolar; a questão da tarefa do
educador perante as experiências pessoais e a herança cultural e, ainda, a questão dos
valores de cada grupo em face dos conflitos entre grupos e perante as diferenças. A
relativização dos saberes e as conexões entre saberes diversos só se fizeram possíveis
em razão das experiências vividas e da integração no mundo e na cultura de cada um. A
exigência, portanto, de se pensar um saber e uma aprendizagem diversa, porém de igual
valor, coloca em vigência uma ética no fazer antropológico e lhe dá uma dimensão
política afinada com seu tempo.
Por sua vez, o funcionalismo dos anos 20/30 baseava-se no fato de que as necessidades
de um povo, grupo ou indivíduo, dadas pela vida em sociedade, encontram na cultura os
caminhos de sua satisfação e conduzem às respostas originais, singulares e coletivas,
que demarcam e estruturam formas próprias de ser e de pensar o mundo, diferentes para
cada povo ou grupo, já que são dependentes da dinâmica de diversos sistemas sociais e
de seu funcionamento. Como conseqüência, a melhor forma de compreender os
diferentes povos é estar com eles, viver em profundidade o universo de suas práticas,
entendendo-as como práticas "encarnadas", como diria Malinowski, ou seja, como
práticas que possuem um sentido e um significado. A perspectiva de que o homem não
apenas vive, mas que, ao viver, questiona, cria sentidos, valores, mitos, artes e
ideologias que ordenam sua compreensão de mundo, revoluciona o fazer etnográfico,
pois impõe o trabalho empírico, de campo, como fundamental na compreensão de
outros povos e de nós mesmos.
Segundo Ruth Cardoso (1986), no campo das ciências humanas o desafio atual é o de
conciliar a conquista do trabalho de campo, sistematizada pelo positivismo e, ao mesmo
tempo, dar conta de esquemas explicativos de outra natureza, centrados na questão das
sociedades complexas, as sociedades de classe, revelada pelas teorias mais críticas e
menos positivistas, tais como o estruturalismo e o marxismo. Diante do trabalho de
campo e do desafio da interpretação, a antropologia e a educação se debatem com o fato
de que sempre existiu "um modelo positivista de sociedade (...) e uma tendência
interpretativa ou compreensiva" das mesmas (Lovisolo 1984, p. 66). Para este autor, a
antropologia interpretativa é aquela que hoje é aceita, tanto no campo das ciências
humanas como na educação, e nisso consiste o desafio de agora. Em debate, o
questionamento das práticas científicas e das práticas educativas no tocante ao trabalho
de campo e ao fazer etnográfico que, desenvolvidos na trajetória da antropologia como
ciência, são hoje, década de 1990, campos comuns e conflitivos no diálogo entre
antropologia e educação.
Notas
Bibliografia
NOVAES, Regina R. "Um Olhar Antropológico." In: Teves, Nilda (org.). Imaginário
social e educação. Rio de Janeiro, Gryphus/FE.UFRJ, 1992, pp. 122-143. [ Links ]
SANCHIS, Pierre. "A crise dos paradigmas em antropologia." In: Dayrell, Juarez
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SANTOS, Boaventura Souza. "Para uma pedagogia do conflito." In: Silva, Luiz H. et
alii (orgs.). Novos mapas culturais. Novas perspectivas educacionais. Porto Alegre,
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