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Uma introdução às contribuições da epistemologia

ARTIGO ARTICLE
contemporânea para a medicina

An introduction to the contributions


of contemporary epistemology to medicine

Charles Dalcanale Tesser 1


Madel Therezinha Luz 2

Abstract This paper discusses critically the Resumo O artigo parte de alguns dilemas clí-
hegemonic epistemology as applied to scien- nicos vividos pelos profissionais e doentes, tais
tific medicine and its connections to some of como dificuldades de enquadramento diagnós-
the clinical dilemmas experienced by profes- tico e relacionamento médico-paciente, para
sionals and sick people, such as the difficulties relacionar aspectos desses dilemas com a epis-
in diagnostic fit and the doctor-patient rela- temologia hegemônica aplicada na biomedi-
tionship, fragmentation of diseases due to med- cina, a qual é caracterizada por um paradig-
ical specialization, growing iatrogenesis, etc. ma biomecânico, positivista e representacio-
It also makes the connection between this epis- nista, centrado nas entidades doenças da no-
temology and the lack of a better and more sografia biomédica. Estabelece conexão entre
harmonious relationship between scientific esta epistemologia e a ausência atual de um
medicine and other forms of knowledge and maior e mais harmonioso entrosamento da
practices in health. This hegemonic epistemol- biociência com outros saberes/práticas de saú-
ogy is characterized by a bio-mechanical, rep- de não-científicos. Como contribuição à bus-
resentational, positivist paradigm, based in ca de resolução dos problemas discutidos, são
diseases from the scientific lexicon. The arti- introduzidas algumas idéias epistemológicas
cle then introduces a new epistemological view- provindas da convergência teórica de autores
point with ideas from the theoretical conver- da epistemologia contemporânea das ciências
gence of contemporary authors from the nat- naturais que se constituem em viga mestra de
ural sciences who form the front line in an in- uma inovadora vertente epistemológica ainda
novative epistemological current still under em formação, aqui chamada “co-construtivis-
formation called “co-constructional.” Finally, ta”. Por fim, são esboçados alguns desdobra-
the text outlines some of the possible develop- mentos da aplicação deste “co-construtivismo”
1 Departamento
de Medicina Preventiva
ments in the application of this “co-construc- na saúde, indicando possíveis contribuições e
e Social, Faculdade de tion” in health, indicating contributions and desafios propostos por essa perspectiva episte-
Ciências Médicas, challenges proposes by this new epistemologi- mológica para a área da saúde e para a pes-
Universidade de Campinas.
Cidade Universitária
cal perspective for the are of health and scien- quisa biomédica.
Zeferino Vaz, 13081-970, tific research. Palavras-chave Epistemologia, Metodologia,
Campinas SP. Key words Epistemology, Metodology, Alter- Medicina alternativa, Medicina social, Medi-
charlestesser@uol.com.br
2 Instituto de Medicina native medicine, Social medicine, Preventive cina preventiva
Social da Universidade medicine
Estadual do Rio de Janeiro.
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Tesser, C. D., & Madel, T. L.

Introdução municação e de confiança entre doentes e tera-


peutas, notoriamente em relação aos médicos.
Este artigo oferece uma introdução a certas Esses problemas podem ser exemplificados por
idéias da epistemologia contemporânea e sua situações muito comuns: médicos e doentes se
aplicação preliminar ao universo do saber e fa- desentendem; os processos diagnósticos não
zer em saúde, procurando explorar algumas raro se frustram, geram situações anômicas e
contribuições dessas idéias para atenção à saú- por vezes são iatrogênicos. Feitos os diagnósti-
de biomédica e à pesquisa em saúde. cos, freqüentemente surgem dilemas terapêuti-
Trata-se de um ensaio que oferece uma crí- cos, limites terapêuticos ou mesmo ausência de
tica à epistemologia hegemônica na saúde to- terapêutica. Quando a terapêutica é cientifica-
mada como visão epistemológica aplicada na mente consensual, aparecem de novo proble-
atenção à saúde (e na pesquisa biomédica). mas quanto a seus riscos, seus custos, suas ia-
Discute alguns desdobramentos problemáticos trogenias e suas restrições de abrangência (re-
dessa visão na prática médica e no relaciona- ferenciada na patologia, deixa de lado a “longi-
mento da biomedicina com outras medicinas tudinalidade” do processo saúde-doença do
ou tradições de cura. Como contribuição ao paciente). São comuns os dissensos simbólicos
enfrentamento das questões levantadas, apre- entre profissional e doente e, quando isso não
senta algumas idéias que se constituem em eixo ocorre, aparecem as dificuldades de adesão aos
de uma tendência ainda em formação na epis- tratamentos médicos prolongados, principal-
temologia contemporânea das ciências natu- mente nas chamadas doenças crônicas, cuja in-
rais. Por fim, ensaia uma primeira aplicação cidência e prevalência parecem só aumentar.
dessas idéias à saúde, discutindo algumas po- No dia-a-dia da clínica biomédica é muito fre-
tencialidades e mudanças desafiadoras, daí ad- qüente que doentes sejam dispensados ou reen-
vindas, na pesquisa médica futura e na clínica caminhados a outra especialidade por falta de
biomédica. diagnóstico. Ou ainda, que sejam tratados de
O artigo sintetiza resultados parciais de pes- duas doenças como se fossem dois pacientes,
quisa de doutorado em andamento, numa abor- devido à suposta especificidade da terapêutica
dagem voltada para os desafios da atualidade da (Sayd, 1998). Não é raro que a doença diagnos-
atenção à saúde, sendo por isso um texto propo- ticada pelo médico tenha pequena intersecção
sitivo. Enfatiza aspectos aplicados de idéias epis- com a constelação de sintomas, sinais, símbo-
temológicas, sem objetivar discuti-las em sua los e sentidos elencados pelo doente como seus
profundidade especializada ou cotejá-las no de- problemas de saúde. Igualmente é comum que
bate epistemológico atual, assim como não pre- o médico esgote rapidamente seu arsenal tera-
tende tratá-las historicamente ou teoricamente, pêutico sem resolubilidade clínica satisfatória
o que não caberia num artigo deste porte. Pro- (Tesser, 1999). Podemos chamar de crise de har-
põe-se a apresentá-las e discuti-las resumida- monia clínica ao conjunto desses dilemas e ten-
mente, dada a hipótese de sua considerável rele- sões que ocorrem cotidianamente nos atendi-
vância, pouca difusão e alguma originalidade. mentos biomédicos nos serviços de saúde.
Desde já, reconhecemos que fatores históri- Existiriam aspectos epistemológicos do sa-
cos, políticos e contextuais têm profunda in- ber/prática médicos envolvidos de forma rele-
fluência nos problemas abordados, tanto no vante nesses problemas? Nossa hipótese é que
que diz respeito às questões conceituais quanto sim. Todavia, antes de os abordarmos, vale co-
práticas. O desvio proposital desses fatores se mentar que, por outro lado, nos últimos 30
justifica pelo objetivo de fazer um zoom em anos, no mundo ocidental, outras medicinas e
certos aspectos epistemológicos aplicados, que práticas de cuidado e tratamento de saúde vêm
julgamos dignos de atenção por si só e que co- ganhando força e adeptos de forma consisten-
mumente não são tratados de forma específica. temente crescente. Seja por seu caráter mais
Um dos nossos pontos de partida é a per- econômico ou por estarem angariando cliente-
cepção da existência de dilemas e conflitos na la cada vez maior, seja por questões mais pro-
interação entre médicos e pacientes (Luz, 1997) fundas envolvendo méritos próprios dessas tra-
e entre médicos e demais curadores na socie- dições e práticas de cura, os tratamentos ditos
dade, problemas esses cuja existência é relevan- alternativos, paralelos ou complementares vêm
te e notória (Barros, 1997; 2002). sendo cada vez mais respeitados, procurados e
Focalizando a prática clínica biomédica a- inseridos nos âmbitos institucionais de pesqui-
tual, desnudam-se tensões e problemas de co- sa e atenção à saúde.
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Luz (1996), estudando esse movimento, cu- nica e de convivência entre terapeutas (ou me-
nhou a categoria “racionalidades médicas”, sig- dicinas) diferentes, sintetizaremos a seguir uma
nificando um sistema lógica e teoricamente es- breve crítica da epistemologia hegemônica apli-
truturado que apresenta cinco dimensões in- cada no cotidiano da atenção à saúde e suas im-
terligadas, a saber, uma doutrina médica, uma plicações nos problemas dessa atenção. Depois
morfologia, uma dinâmica vital, um sistema de disso, discutiremos em linhas gerais uma nova
diagnose e um sistema de terapêutica, embasa- perspectiva epistemológica ainda nascente na
das em uma cosmologia. Distinguiu, assim, en- ciência e suas possíveis repercussões benéficas
tre racionalidades médicas e o que se chamou sobre a área da saúde e sobre as tensões entre
de terapêuticas alternativas, as quais não apre- as medicinas existentes, finalizando com algu-
sentam pelo menos uma dessas dimensões. Se- mas perspectivas daí advindas para a pesquisa
gundo a autora, essas racionalidades e outras biomédica e a própria clínica.
práticas tradicionais de cura têm a contribuir:
1) na reposição do sujeito doente como centro
do paradigma médico; 2) na ressituação da re- A epistemologia hegemônica na saúde
lação médico-paciente como elemento funda-
mental da terapêutica; 3) na busca de meios te- A medicina científica moderna, a partir do nas-
rapêuticos simples, despojados tecnologica- cimento da clínica descrito por Foucault (1980)
mente (menos dependentes de tecnologia “du- até os dias atuais, desenvolveu progressivamen-
ra”), menos caros e, entretanto, com igual ou te entre seus praticantes e pesquisadores um
maior eficácia em termos curativos nas situa- imaginário nitidamente mecanicista e analíti-
ções mais gerais e comuns de adoecimento da co, em que o todo é dado pela soma das partes
população; 4) na construção de uma medicina e impera uma noção de causalidade linear, ape-
que busque acentuar a autonomia do paciente, sar das recentes mudanças ocorridas na cosmo-
e não sua dependência em termos de relação logia científica, principalmente provindas da
saúde/enfermidade; por fim, 5) na afirmação física (Camargo Jr., 1993). A perspectiva epis-
de uma medicina que tenha como categoria temológica da biomedicina é positivista, assen-
central de seu paradigma a categoria de Saúde tada na pressuposição de encontrar na Razão
e não a de Doença (Luz,1997). (...) um critério inequívoco de determinação de
Porém, ainda que socialmente isso se verifi- cientificidade, freqüentemente associado de mo-
que, a velocidade da repercussão dessas mu- do excludente a ideais de verdade e reprodução
danças no trato cotidiano dos doentes pelas fidedigna de um mundo “real” (Idem). Ou seja,
instituições de saúde biomédicas e seus profis- trata-se aí de estudar o que ocorre na realidade
sionais tem sido lenta. Academicamente, o es- observada de forma “objetiva”. Essa perspectiva
tudo dessas diferentes tradições de cura tem se pressupõe que a realidade está dada, à espera
resumido ao enfoque socioantropológico e po- de um agente cognitivo – o cientista – “que des-
lítico, cujo poder de diálogo e influência na ceu de pára-quedas num mundo pré-dado e
atenção à saúde oficial e no ensino médico é que extrai suas características essenciais por
mínimo, se houver. Para além das barreiras po- um processo de representação” (Varela et al.,
líticas, outras de natureza epistemológica con- 1991). O conhecimento científico seria uma re-
tribuem para dificultar o estudo de e o diálogo presentação fiel da realidade observada e a cog-
com diferentes medicinas ou tradições de cura, nição, o processo pelo qual se chega a esta re-
deixando entrever o que poderíamos chamar presentação.
de crise de convivência social e cultural de vá- O cientista, no nosso caso, é o investigador
rias formas diferentes de entendimento e trata- biomédico e a realidade a ser estudada e trata-
mento em saúde-doença. da são as doenças dos pacientes.
Doutra parte, a própria epistemologia hoje Segundo Camargo Jr. (1993), não há pro-
hegemônica aplicada na área da saúde e na me- priamente uma teoria ou um conceito biomé-
dicina obscurece vários pontos críticos do sa- dico de doença explicitamente posto. Todavia,
ber científico e de sua aplicação na clínica, difi- há algumas proposições que não estão escritas
cultando uma melhor resolução cotidiana dos em lugar nenhum, que operam como se fossem
dilemas da atenção à saúde biomédica, seja na uma “teoria das doenças”: as doenças são coisas,
prevenção, seja na terapêutica. de existência concreta, fixa e imutável, de lugar
Iniciando uma discussão dos aspectos epis- para lugar e de pessoa para pessoa; elas se expres-
temológicos desses problemas de harmonia clí- sam por um conjunto de sinais e sintomas, que
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são manifestações de lesões, que devem ser busca- e da própria fisiologia já foi iniciado na litera-
das no âmago do organismo e corrigidas por al- tura, ainda que recentemente, (por exemplo,
gum tipo de intervenção concreta. Não sendo ex- Sacks, 1997a; e b; Dossey, 1998; Benson & Stark,
plicitadas, tais proposições não podem ser con- 1998; Castiel, 1994; Costa, 1994), mas pouco ou
frontadas nem discutidas, impregnando cada quase nada interferiu nas direções do desenvol-
palmo da atividade médica. vimento teórico da medicina em geral e nas rea-
Assim, na lógica hegemônica da biociência, lidades da prática de atenção à saúde biomédi-
a realidade supostamente objetiva da doença se ca. A chamada teoria molecular da causação das
manifestaria através dos “dados objetivos” ob- doenças, se já apresentou grandes resultados e
tidos de maneira sistemática, seja das pesquisas ainda promete muitos, parece que pouco satis-
científicas, seja de cada doente. Das primeiras faz a necessidade de abordagem de doenças e
obter-se-ia a real definição, classificação e meca- agravos que resistem à objetivação material de
nismos de ação das doenças, com respectivos cor- mecanismos de causação que possam ser com-
retivos mecânicos e químicos – no que consiste o batidos físico-quimicamente de forma eficaz
saber médico diagnóstico e terapêutico. De cada como “causas” ou mesmo como mecanismos fi-
doente só se teria que resolver o enigma de desco- siopatogênicos (Castiel, 1994; Sabroza, 1994).
brir qual a entidade doença que nele se apresenta Conforme discutimos em outro momento
e eliminá-la (Tesser, 1999). (Tesser, 1999), pode-se dizer que a vigência ple-
Esta ontologização das doenças, no entanto, na de um paradigma biomecânico (que chama-
mostra-se ilusória. Porém, o caráter construti- mos de positivismo mecanicista) na pesquisa e
vo das mesmas não é fácil de ser percebido. As na atenção à saúde biomédicas reforça ceguei-
disciplinas que definem as doenças operacio- ras e dilemas importantes nessas dificuldades
nalmente são, em essência, a clínica e a epide- de “intercâmbio cultural” e de significação dos
miologia (Camargo Jr, 1993). A articulação teó- adoecimentos e tratamentos envolvidas no que
rico-metodológica que envolve, por um lado, a chamamos de crise de harmonia na atenção à
clínica e suas disciplinas auxiliares (anatomia, saúde, seja entre médicos e doentes, seja entre
fisiologia etc.) e, por outro lado, a epidemiolo- médicos e demais curadores não-científicos.
gia, é complexa. Ela ocorre de tal modo que as Na acepção de Kuhn (1986, 1989), toda ma-
primeiras (o primeiro lado) usufruem da legi- triz disciplinar ou paradigma, orientador de
timação e usam os resultados fornecidos pela uma “fase normal” do desenvolvimento de uma
segunda como dados da realidade e vice-versa disciplina científica, é pouco ou nada questio-
(Mendes Gonçalves, 1994; Almeida Fº, 1992; nada internamente pelos seus praticantes. Isso
1994). Isso, juntamente com a tradição disci- aplicado à biomedicina de hoje, que pode ser
plinar e o estilo de pensamento próprios de ca- considerada, em parte, um campo científico
da área, gera um apoio tautológico operacional em desenvolvimento “normal”, resulta em que
que obscurece o processo de construção das en- certas categorias e conceitos recebem muito
tidades doenças. Tal apoio mútuo cumpre o pa- empenhamento, ontologizando-se e monopoli-
pel de criar a ilusão da preexistência das doen- zando a atenção.
ças da nosografia biomédica, tanto para os mé- As entidades doenças são os construtos teó-
dicos como para os doentes. Isso é um exemplo rico-operacionais em torno dos quais gira toda
do processo de transformação de conexões cog- a abordagem da biomedicina. Devido ao exces-
nitivas ativas (pressuposições, teorias, concei- so de importância metodológica que converge
tos, saberes aceitos etc.) em passivas (resulta- para elas, as doenças tornaram-se, para efeitos
dos obtidos da realidade) e vice-versa; trans- práticos, ontologizadas, ou seja, são tão pro-
formação esta ininterrupta e típica da ativida- fundamente defendidas que adquirem um em-
de cognitiva em geral e também científica, con- penhamento metafísico e passam a dominar to-
forme descrito por Fleck (1986). Outrossim, do o proceder investigativo (metodológico),
um dos principais resultados sociocognitivos teórico e terapêutico biomédico, tornando-se
da construção das verdades e fatos científicos partes da realidade. Os biomédicos, por isso,
em geral é o completo apagamento do árduo, estão sempre referenciados nelas na sua ativi-
polêmico e tortuoso caminho dessa constru- dade de cura ou de investigação e têm seu olhar
ção, até que tais verdades pareçam pura evi- restringido e dirigido por elas e pelos saberes
dência (Latour, 1997; 2000). instituídos a seu respeito: evolução, mecanis-
Por outro lado, o questionamento dos mo- mos fisiopatogênicos, terapêutica, prognóstico
delos biomecânicos de explicação das doenças etc. Outros padrões, formas e possibilidades de
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interpretações de adoecimentos (outras manei- vel, fonte de todo poder/saber e toda responsa-
ras de “construir” doenças) não são admitidos. bilidade terapêutica: a instituição Ciência. É ela
Nesse contexto, curas, agravações, sintomas agora que deverá resolver todos os problemas
ou sinais que sejam inexplicáveis, não previstos de saúde, ao menos no âmbito do saber. E os
ou contraditórios pelas teorias em vigor (ou sujeitos terapeutas, médicos e demais profissio-
não se enquadram na grade nosológica cientí- nais de saúde, passaram progressivamente a ser
fica) são negados, reinterpretados ou omitidos técnicos, como que cientistas aplicadores da
pelos biomédicos. Não chegam, assim, a ser ciência “normal” (cf. Kuhn, 1986) que devem
construídos como fatos, no cotidiano da aten- resolver um pequeno enigma a cada novo doen-
ção à saúde, nem fenômenos dignos de interes- te: qual a doença que o doente tem? Resolvido
se na pesquisa científica (cf. Kuhn, 1986; Fleck, esse enigma, acabaram seus problemas e desa-
1986). Costumam ser reinterpretados como er- fios: é aplicar a terapêutica padronizada em vo-
ros diagnósticos, evoluções anômalas, reações ga na atualidade científica. Se o doente não me-
adversas ou idiossincráticas, sintomas psicos- lhora, ou piora, ou “reage”, ou “muda de doen-
somáticos etc. Esse processo de “cegueira para- ça”, nada se pode fazer. Os doentes e a socieda-
digmática” ajuda a entender por que tradições de esperam dos médicos o brilhantismo da cu-
terapêuticas diferentes são reconhecidas à luz ra, mas, paradoxalmente, é deles que foi extir-
da biomedicina e da ciência apenas como má- pada toda a responsabilidade e o poder da tera-
gicas, místicas, crendices etc. (cf. Fleck, 1986). pêutica, entregue à indústria farmacêutica e
E faz também com que algum conteúdo “empí- ou, na melhor das hipóteses, à pesquisa cientí-
rico-factual”, ali por ventura existente, mereça fica (supondo esta distinta daquela).
atenção somente como indício para pesquisa As doenças, seus critérios diagnósticos e fa-
futura nos moldes biomédicos existentes. tores de risco, de intersecção variável com o
Centrada nos procedimentos padronizados adoecimento e a vida vividos pelos doentes, obs-
referidos às doenças, a atenção à saúde biomé- curecem um vislumbre sobre a evolução global
dica tende a se tecnificar e se desumanizar. do paciente. Este está “esquartejado” epistemo-
Dessa forma, contribui para a confusão entre a logicamente por síndromes e doenças de apa-
“má prática” e as limitações do próprio saber e relhos orgânicos (e especialistas) bem separa-
diminui o potencial terapêutico da própria dos por uma fisiologia e fisiopatologia biome-
biomedicina. Além disso, essa perspectiva re- cânica que sabe muito de patologias, microor-
força a ênfase, hoje vigente, no uso de tecnolo- ganismos, moléculas, órgãos, tecidos e sistemas
gia biomédica dura (materializada em equipa- do corpo e pouco das ligações e inter-relações
mentos diagnósticos e terapêuticos interpostos sutis e complexas entre tudo isso e a vida vivi-
entre o médico e o doente), obscurece a impor- da do doente.
tância da relação médico-paciente, secundariza Assim, o enrijecimento metodológico posi-
a terapêutica em favor do diagnóstico e subme- tivista do conhecimento médico em torno da
te os médicos a um racionalismo e a um objeti- objetivação das entidades doenças está envolvi-
vismo excessivos, induzindo, por fim, os não- do no desvio do interesse biomédico da cura
enquadráveis a uma via crucis pelas especiali- do doente em direção ao diagnóstico e cura da
dades médicas. doença (Luz, 1996). Tal desvio, que além de
Outra mudança significativa que foi pro- ocorrer na prática clínica, é epistemológico e
movida pela ideologia positivista na metodolo- metodológico, desdobra-se em dilemas ético-
gia médica foi o condicionamento da terapêu- terapêuticos cotidianos que estão envolvidos
tica ao conhecimento da doença ou de seus nas crises citadas de harmonia clínica e de con-
mecanismos fisiopatogênicos (Almeida, 1988). vivência da medicina científica com outras me-
Paradoxalmente, por outro lado, o grande pres- dicinas.
tígio simbólico da biociência impõe que dos
médicos e sua quimioterapia ou cirurgia deva
sair a cura de todos os males dos doentes. Isso Uma nova epistemologia
se traduz na prática clínica em medicalização co-construtivista
crescente de quaisquer sintomas e incômodos e
diminuição progressiva e contraprodutiva da A partir da década de 1960, uma nova tendên-
autonomia das pessoas em saúde (Illich, 1975). cia epistemológica contemporânea vem se con-
A cientifização positivista da medicina aju- formando, a qual chamamos aqui co-constru-
dou a gerar uma nova transcendência inatingí- tivista, provisoriamente e à falta de expressão
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Tesser, C. D., & Madel, T. L.

melhor. Em termos muito gerais, ela diferen- de Kuhn (1986), programas de pesquisa cientí-
cia-se dos construtivistas radicais, que defen- fica de Lakatos (1979), tradições de Feyerabend
dem que a realidade física e social é uma cons- (1991) e estilos de pensamento e coletivos de
trução sociolingüística, e dos realistas, os quais pensamento de Fleck (1986) – podemos pro-
pensam que a realidade pode ser “objetivamen- por que não é possível no conhecimento repre-
te descrita” pela ciência, ainda que esta descri- sentacional (ou sob a forma de pensamento)
ção seja imperfeita e sempre provisória. Encon- um acesso puro a algo que seria uma realidade
tramos essa tendência entre alguns autores objetiva. Sempre há esse intermediário seletivo
considerados pós-positivistas. Como na bio- e ao mesmo tempo gerador, base de todo mo-
ciência a tendência realista impera quase abso- vimento cognitivo, que é a cultura, os interes-
luta, daremos ênfase à possibilidade da leitura ses, os valores, as tradições, os paradigmas, os
construtivista desses autores, para tornar mais estilos de pensamento, o treinamento e a apren-
clara nossa proposta co-construtivista. dizagem que todas as pessoas carregam, que
Segundo os co-construtivistas, a realidade possibilitam o conhecimento desse tipo e do
vivida é formada pela interação do ser vivo, no qual só podem muito parcial e precariamente
nosso caso, do homem, com o mundo e já não se despir. Por mais honesta e esforçada que seja
se pode mais requisitar a fidelidade a dados in- essa busca de um puro conhecimento objetivo,
dependentes como único fundamento do sa- ela está fadada a um insucesso, restrita à cultu-
ber. Para eles, as realidades são acessíveis aos ra, a certos valores, objetivos e pressupostos fi-
homens e aos cientistas através de ativa co- losóficos e metafísicos.
construção perceptiva (cognitiva) dos que as Como propôs Benjamin Lee Whorf (1971),
estudam, norteada, direcionada e limitada pela ainda supondo o máximo de despojamento e
estrutura biológica do homem, pelo modo co- descolamento cultural, a própria linguagem (fa-
mo os cientistas pensam e agem, pelos seus lada) contém nas suas regras e estruturas uma
pressupostos cosmológicos, culturais e políti- modelagem do mundo, um certo pressuposto
cos, pelos métodos usados, pelos objetivos as- de como o mundo é, de tal forma que o inves-
pirados, pelo estilo de pensamento presente (cf. tigador estará restrito, desviado e limitado a
Fleck, 1986) etc. descrever ou se comunicar a respeito do mun-
Vários autores contemporâneos, como Kuhn do em termos que o enquadram, deformam, li-
(1986, 1989), Fleck (1986), Lakatos (1979), Fe- mitam e predeterminam.
yerabend (1979, 1982, 1985, 1991), Whorf Dessa forma, por estes autores que têm um
(1971), Varela & Maturana (1984, 1997), Matu- enfoque “externo” ao sujeito cognoscente, vem
rana (1998, 1999, 2001), Varela (1990), Varela que o próprio conhecer é cultural e social e es-
et al. (1991), dentre outros, constituem essa ten- tá já estruturando a realidade.
dência nascente e concordam em pôr fim à ilu- De forma convergente, por outra vertente
são representacionista do positivismo, que é de que analisa a cognição por um viés “interno”
certa forma de toda a filosofia, da epistemolo- ao sujeito cognoscente, Maturana (1998, 1999,
gia e da própria ciência em geral. Também Rorty 2001) e outros autores como Varela (1990) e
(1994) dedica toda uma obra a desmontar esta Varela et al. (1991) chegaram a conclusões se-
imagem da nossa “mente” como um espelho da melhantes. Maturana nos diz que a fisiologia
natureza, em que propõe dispensar a visão do dos seres vivos e do próprio sistema nervoso é
conhecimento como representação do mundo fechada funcionalmente sobre si ao mesmo
real. tempo que continuamente em interação com o
Baseados em trabalhos epistemológicos im- meio externo e que não é possível a geração de
portantes, representados por autores como representações ou linguagem de caráter objeti-
Kuhn, Lakatos, Feyerabend e Fleck, que desen- vo, independente do sujeito que faz a afirma-
volvem um enfoque epistemológico “externo” ção. Esta conclusão radical faz o autor recon-
aos sujeitos cognoscentes, podemos afirmar ceitualizar as noções de linguagem, conheci-
que o conhecimento sob forma de representa- mento, percepção etc., para propor a sua “bio-
ção, mesmo o científico, está enraizado e ligado logia do conhecer”. Nela, mostra que não é sus-
à comunidade humana específica que o pro- tentável, biológica e neurofisiologicamente,
duz, em termos culturais e sociológicos, não qualquer argumento em favor de uma objetivi-
sendo parecido com uma fiel representação da dade; ou seja, em favor de uma referência a al-
natureza ou da realidade. Através dos conceitos go objetivo e independente, transcendente ao
desenvolvidos por esses autores – paradigmas sujeito que afirma, sujeito este que teria algum
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acesso privilegiado ao real. Tal aspiração pode pelos médicos e doentes no seu processo de vi-
ser compreendida como um recurso político, ver, sofrer, interpretar e curar. Trata-se, pois, da
de poder: um argumento que exige submissão, evolução da co-construção de um mundo que
que quer ser absolutamente convincente e úni- se acopla a certo modo de viver, agir e perceber
co na definição de uma suposta “verdade” (Ma- que gera valores, técnicas, classificações de do-
turana,1999). enças, ações em saúde-doença etc. O instru-
As idéias destes dois grupos de autores (de mental biomédico constitui-se numa interpre-
enfoque externo e interno aos sujeitos da cog- tação possível dos fenômenos mórbidos e da
nição), mencionados apenas brevemente, per- vida, que permite determinados tipos de senti-
mitem esboçar um tendência inovadora em do e ação em saúde e acaba afastando outros.
epistemologia que chamamos, provisoriamen- Vistas sob esse ângulo co-construtivista, a
te, de co-construtivista. Pois que, no co-constru- medicina e a terapêutica podem mais facilmen-
tivismo, a realidade é pensada sempre em co- te se expandir para além da busca de uma su-
construção pela interação do ser cognoscente e posta verdade científica. E ficam mais fáceis de
seus pares com o mundo misterioso fora dele. serem superadas as disputas pelo poder social
Segundo Varela et al. (1991), o processo de travestidas de disputas epistemológicas pelo es-
cognição nos seres vivos e no homem apresen- tabelecimento das verdades ou dos métodos
ta certas características singulares diversas do para obtê-las. As tensões herdadas da persegui-
senso comum e da maioria das epistemologias. ção inicial da ciência pela religião podem se re-
Uma delas é que a cognição não é a representa- laxar um pouco e com isso o furor pela posse
ção de um mundo pré-dado, independente, da verdade pode se abrandar, contribuindo na
mas, em vez disso, é a criação de um mundo. O abertura de horizontes compreensivos e dialó-
que é criado não é “o” mundo, nem uma repre- gicos para com a diversidade das tradições e
sentação “do” mundo, mas sim “um” mundo. É práticas de cura presentes na nossa sociedade.
claro que não se trata de sustentar que há um Além disso, sob esta ótica, a biomedicina pode
vazio lá fora. Há um mundo lá, mas ele não ser analisada e, quiçá, enriquecida e transfor-
tem nenhuma característica predeterminada. mada internamente com um resgate mais fácil
Ou seja, não se afirma que não há nada, mas dos mistérios e desafios impostos pelo sofri-
sim que não existem “coisas”, que não há um mento vivido dos doentes, sejam diagnosticá-
mundo que seja independente do processo de veis ou freqüentemente não-enquadráveis. Tais
cognição. O que ocorre é que os seres vivos e sofrimentos podem ganhar, assim, espaço epis-
nós homens co-criamos um mundo na nossa in- temológico dentro do universo do saber-práti-
teração com a natureza, que nasce junto conos- ca biomédico. E merecer tematização para além
co e conosco se transforma. Não um mundo da doutrina que obriga o profissional a aliviar
imaginário, nem “o” mundo real (objetivo), mas a dor do paciente, a qual desemboca na atual
um mundo que é o “nosso” mundo. A cognição avalanche de uso dos sintomáticos químicos
aí não é só representação, mas co-construção industrializados para males físicos e mentais,
misteriosa que se dá na interação do ser vivo iatrogênica e desumanizante (Tesser, 1999).
com o mundo. As produções epistemológicas dos autores
Olhando para a área da saúde sob a pers- co-construtivistas citados, no que elas conver-
pectiva co-construtivista esboçada, as realida- gem conforme resumido acima, apontam, já
des a serem investigadas ou tratadas pela medi- agora, para a quebra de preconceitos arraiga-
cina podem se ampliar e se tornar mais com- dos e de fortes ilusões sobre a construção e a
plexas. Podem não se referir apenas à entidade transformação dos saberes científicos e de ou-
doença e sua evolução no paciente. Não se tra- tros saberes. Aplicadas à medicina e à biociên-
ta de afirmar que as doenças não existem. As cia, elas podem facilitar a emergência da acei-
pessoas ficam doentes e sofrem. Pode-se dizer tação de que o doente, na sua vida, e o(s) tera-
que as doenças existem, mas que não têm ca- peuta(s), na sua interação com o doente e na
racterísticas específicas predeterminadas. No ação terapêutica, podem construir diferentes
encontro terapeuta-doente forma-se uma ou doenças e tratamentos, possivelmente coeren-
várias doenças. Todo o instrumental teórico, tes (ou não), consistentes (ou não) e eficazes
conceitual, clínico e tecnológico (duro) biomé- (ou não) que podem auxiliar o doente, melho-
dico não reflete alguma evolução que final- rar sua saúde, enriquecer sua vida e sua auto-
mente desvenda a real natureza das doenças e nomia (ou não), conforme certos valores e pers-
sua cura, porque as doenças são co-construídas pectivas. Estariam, assim, facilitados alguns ca-
370
Tesser, C. D., & Madel, T. L.

minhos epistemológicos para estudos e diálo- Como propôs Feyerabend (1991), podería-
gos não etnocêntricos com outras medicinas e mos considerar os saberes e práticas em saúde-
tradições de cura não-científicas, ditas alterna- doença como “tradições” de cura, das quais a
tivas ou complementares. Assim como ficariam biomedicina é mais uma, no momento a mais
facilitados melhores diálogos dos próprios bio- poderosa no Ocidente. Isso permitiria que o
médicos com seus doentes e com a sociedade monopólio ilusório da cura pela Ciência e pela
em geral. Diálogos estes que poderiam propi- corporação médica fosse aos poucos relativiza-
ciar uma interação que resultará, por hipótese, do, os preconceitos se atenuariam e diversas
e como experiências vem demonstrando (de tradições de cura, bem como distintas raciona-
que é exemplo a progressiva constituição do que lidades médicas, com seus valores vitais, cultu-
vem se chamando medicina complementar – rais e humanos, poderiam ser reconhecidos e
cf. Barros, 2002), em benefícios mútuos, parti- explorados nas suas contribuições para a me-
cularmente para os doentes. lhoria da atenção à saúde de forma geral, de
modo a enriquecer as possibilidades terapêuti-
cas para os doentes.
Conclusão: perspectivas para a saúde Além disso, a própria tradição biomédica
poderia se beneficiar do desenvolvimento da
As idéias co-construtivistas esboçadas acima, epistemologia co-construtivista, a qual, aplica-
aplicadas à saúde, ao esclarecerem o inexorável da à medicina, poderia facilitar uma melhor
vínculo do conhecimento com os sujeitos, sua autocompreensão do que fazem e sabem os te-
estrutura biológica, sua cultura, seus valores, rapeutas biomédicos e uma percepção mais
sua comunidade e seu modo de vida, vêm cla- tranqüila dos limites desse saber/prática e de
rear uma zona tensa e nebulosa que é a presen- suas potencialidades. Esse co-construtivismo
ça progressiva de várias medicinas e terapêuti- tenderia a facilitar o diálogo com os doentes e
cas no mundo contemporâneo, assim como a a devolução aos médicos do infindável desafio
ausência de um diálogo significativo entre elas de tratar o melhor possível os adoecimentos
e a biociência. dos seus pacientes, por misteriosos que eles se-
A epistemologia contemporânea co-cons- jam, para além de suas doenças cientificamente
trutivista pode contribuir para a compreensão definidas. E, ao mesmo tempo, contribuiria pa-
dos conflitos entre a medicina científica e as ra a responsável autorização filosófica, meto-
demais racionalidades médicas e terapias, ao dológica e ética para o uso e exploração cuida-
esclarecer que diferenças de estruturas de saber dosos de saberes/práticas em saúde estranhos,
e prática entre elas não se relacionam em geral não-científicos, antigos e recentes, hoje vetados
a hierarquias de veracidade (embora estas pos- aos biomédicos. A esse respeito, por exemplo,
sam existir), mas sim a perspectivas culturais e as idéias de Feyerabend (1979, 1982, 1985, 1991)
de valores distintas, cosmovisões e visões de ser são de grande valia teórica, filosófica e política.
humano diferentes, concepções de saúde e de Ensaiando um desdobramento disso na
doença diversas, bem como lutas políticas in- pesquisa biomédica, toda uma nova metodolo-
tensas, algumas atávicas e outras recentes (Fe- gia de teste terapêutico poderia ser desenvolvi-
yerabend, 1982, 1991). da para melhorar e adaptar os modelos alta-
A nosso ver, abrandando-se o componente mente restritivos, hoje em vigor, na validação
de luta pela verdade e pelo poder social – dos científica de intervenções, até para poder abar-
curandeiros oficiais da sociedade –, o que é fa- car a participação mais ativa dos próprios doen-
cilitado pela nova epistemologia aqui anuncia- tes nos seus tratamentos. Tal metodologia não
da, seria possível o nascimento e desenvolvi- precisaria estar somente atrelada às teorias acei-
mento de uma epistemologia comparada que tas na biociência, mas antes poderia ser plural
poderia dar à luz, num futuro não distante, uma sob o ponto de vista teórico, adaptando-se às
comparação entre sistemas médicos sem adesão distintas concepções, práticas e saberes de ou-
a priori a nenhum deles, pautada nos doentes e tras medicinas, também buscando testar e ou
sua evolução clínica global (ou seja, não cen- comparar tais saberes/práticas. Essa metodolo-
trada nos diagnósticos biomédicos, como ocor- gia poderia ser altamente apegada à evolução
re agora). Nesse sentido, todas as tradições de clínica dos doentes, como âncora empírico-
cura poderiam ser estudadas em seus próprios pragmática, de modo a libertar a terapêutica
termos e assim seria fomentado o seu desenvol- das definições de doenças, tanto da biociência
vimento e a sua ajuda mútua e comparação. como de outras teorias ou interpretações, bem
371

Ciência & Saúde Coletiva, 7(2):363-372, 2002


como respeitar e relativizar estas definições. E para obtenção da “verdade”. Justamente na saú-
poderia, simultaneamente, manter um realis- de, onde parece ser muito promissora, esta pers-
mo experimental sustentável eticamente, sem- pectiva co-construtivista é praticamente ausen-
pre discutido e compartilhado entre pacientes te. Por isso é que necessita ser divulgada e me-
e terapeutas. Ela poderia ser auto-reflexiva o lhor construída e desdobrada. (Um pequeno
bastante para flexibilizar sua rigidez racionalis- exemplo teórico de uma tal exploração encon-
ta sem abandonar a razão. Saber reconhecer-se tra-se em Chibeni [2000]: consiste numa leitu-
limitada, localizada em paradigmas e estilos de ra da homeopatia conforme proposta pelo seu
pensamento ou num sincretismo lúcido, assu- fundador S. Hahnemann à luz das idéias de La-
mido e dosado. Assim, estaria sendo preparado katos [1979]).
um terreno epistemológico e metodológico pa- Particularmente quanto à formação profis-
ra uma expansão e um enriquecimento da te- sional, uma nova concepção de saber poderia
rapêutica oficial, hoje dominada e restringida ser construída e ensinada aos terapeutas – mé-
pela quimioterapia e cirurgia e pelos padrões- dicos principalmente – de base co-construtivis-
ouro de validação de intervenções (ensaios clí- ta e centrada nos sujeitos, que facilitasse o res-
nicos controlados, coortes etc). Estes padrões gate do “adoecimento do doente” para dentro
pautam-se pelos critérios uniformizadores das da biomedicina, obstaculizado epistemologica-
entidades doenças e seus parâmetros rígidos, mente pela centralidade do diagnóstico e da te-
fatores de risco etc., exigidos pelos modelos es- rapêutica nas entidades doenças (Luz, 1996).
tatísticos e submetidos à grade nosológica e às Além disso, tal epistemologia, desenvolvida e
teorias fisiopatológicas em vigor, como se am- aplicada, poderia ajudar a entender a constru-
bas fossem universais. Tornando-se mais com- ção do saber sobre saúde-doença nos diversos
plexa, limitada e contextualizada, tal metodo- estilos de pensamento (inclusive na ciência),
logia, indiretamente, poderia contribuir para enriquecer a biomedicina em si e abrir o cam-
uma melhor formação e responsabilização te- po da terapêutica a outras medicinas para mú-
rapêutica dos biomédicos, contrabalançando a tua contribuição, em benefício dos doentes.
projeção excessiva de poder e responsabilidade É preciso enfatizar que as possibilidades
na instituição ciência. aqui sintetizadas não são mais que potenciali-
Para finalizar, resta comentar que essa ten- dades decorrentes do estudo dos autores da
dência co-construtivista aqui mencionada, se epistemologia citados e de uma primeira apli-
está solidamente esboçada de forma dispersa cação de suas idéias à saúde e à clínica. Julga-
em disciplinas várias – como a epistemologia, a mos relevantes tanto a elaboração teórica des-
sociologia, história e antropologia da ciência e sas idéias quanto a experimentação das possi-
as ciências humanas em geral –, é desconhecida bilidades práticas e metodológicas esboçadas,
ou pouco conhecida nas áreas científicas de desafiadoras que são, as quais apontam para di-
maior influência social e aí tem sido derrotada reções diferentes da trilha hegemônica da bio-
na práxis científica (Feyerabend, 1991). Um ciência. Nessas direções, no que concerne à
desses lugares de grande influência, até hoje re- academia, quase tudo ainda está por fazer. A
fratários a idéias desse tipo, parece ser a biome- nosso ver, muito desenvolvimento é necessário
dicina. Somos forçados a reconhecer que os para uma melhor compreensão, investigação e
atores sociais mais resistentes a mudanças co- desdobramento das sugestões aqui ensaiadas,
mo as propostas acima, talvez, sejam os pró- de modo a consolidar conhecimentos e práti-
prios cientistas e biomédicos, ainda submersos cas que dêem utilidade social e medicinal (te-
em convicções epistemológicas sobre a pureza rapêutica) ao tema. Isso parece ser tão necessá-
e exclusividade dos seus métodos científicos rio e promissor quanto difícil.

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