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Hatha-yoga: a espiritualidade do corpo


Msd.Roberto Simões

Introdução.

Nossa tarefa no presente texto será indicar que, apesar das diferenças entre o pensamento oriental
e o ocidental, é possível construir uma ponte acadêmica entre eles pela corporeidade. Estabeleceremos
essa dialética entre o yoga, especificamente a tradição medieval do hatha-yoga, com o saber ocidental da
fisiologia e filosofia. Temos plena consciência que o tema não é novo e, nem tampouco pretendemos de
forma alguma esgotar o assunto ou ingenuamente expor uma filosofia sobrepondo-se a outra, num
discurso vazio e estéril de quem é o melhor. O intuito é exclusivamente contribuir a um intercâmbio
saudável, científico e não-excludente entre esses dois saberes.

Para isso, a imagem que pretendemos (des)construir primeiramente é o yoga do corpo, que
aparece com mais força no continente indiano, fruto, por sua vez, de um movimento contracultural, o
Tantra. O Tantra cresce junto às classes populares da Índia e com uma conotação religiosa centrada na
magia, na alquimia do corpo, além de um resgate ao culto da Deusa Mãe1. Este movimento religioso e
cultural, segundo o indólogo e historiador Henrich Zimmer, é fruto de um passado indiano neolítico,
“eclipsado durante quase mil anos pelas divindades masculinas do panteão patriarcal ariano” 2. A filosofia
tântrica, ainda segundo o mesmo autor, de forma simplificada, coloca o corpo e a alma ou Self no mesmo
patamar de igualdade quando fazemos referência à transcendência, ou seja, como outro radical da
condição humana ou iluminação, moksa e kaivalya na tradição oriental3. É, portanto, embebida desta
cultura religiosa tântrica medievalista, que a tradição hatha-yoga se desenvolve e se populariza no
continente indiano e, agora se difunde em nossa moderna sociedade4. E, como o corpo é o centro dos atos
hatha-yoguicos nada mais natural que estudá-lo pelo viés da fisiologia, que como veremos também nasce
e se desenvolve envolta em dilemas entre corpo e alma.

Pensamento oriental e ocidental.

Grosso modo, iniciaremos nossa jornada esclarecendo que assim como muitos filósofos
ocidentais, a principal finalidade do pensamento oriental, segundo Zimmer, não está em descrever e
explorar o mundo visível, empírico. O que os orientais objetivaram ao longo de milênios foi a descoberta
e a exploração do Self, esse algo que busca sentido criador à vida e vive em tensão constante com o corpo.
Mas, enquanto o Self, de certa forma parece “pressentir” certa imortalidade, o corpo, assim como pode
nos trazer prazer, nos lembra todos os dias de nossa finitude, dor e morte5.

1
FEUERSTEIN (2004), p.26, p.29: “(...) Contudo, até mesmo um vira-lata da casta inferior que conheça o kula (Kula-Arnava Tantra)
é superior a um brâmane”.
2
ZIMMER (2000), p.393.
3
ZIMMER (2000), p.390.
4
Cf.FEUERSTEIN (2004); E para um entendimento maior sobre as mais variadas escolas tântricas, recomendamos Cf.SATI (2006).
5
ZIMMER (2000), p.18.
2

Parte da filosofia oriental sustenta o Self “como uma entidade imperecível e independente,
alicerce da personalidade consciente e da estrutural corporal” e, todo o resto como impermanente e fruto
do tempo, do espaço e da causalidade 6. Mas, enquanto que para alguns o corpo é apenas um obstáculo
“(...) um mero conglomerado de ossos, pele, tendões, músculos, medula, carne, sêmen, sangue, muco,
lágrimas, fezes, urina, gases, bílis e catarro”7; para outros, em contrapartida, o corpo não é um estorvo
para a “iluminação religiosa”, mas o meio de alcançá-la. Para os tântricos, por exemplo, o corpo é visto
de forma positiva, considerando todas as manifestações da criação, preservação e destruição e, portanto,
todos os seres viventes como a mesma e única manifestação do poder Divino (sakti): “(...) a realidade é
uma e a mesma. A diferença está apenas no nome. Quem é Brahman é, em verdade, Atman e também
Bhagavant, o Senhor Bem-aventurado”8. Para os tântricos e, logo, para os hatha-yogues, nossa alma,
mesmo percebendo a possibilidade da transcendência, está em contato inexorável com o corpo,
influenciando e sendo influenciada por este em suas experiências sensoriais psicofísicas9.

(...) ainda que a meta seja aquela do iogue (sic) meditativo, a maneira de aproximar-se
não é a da negação, é a da afirmação. (...) Nesse caso, o candidato à sabedoria não busca atalhos
para evitar a esfera das paixões – reprimindo-as em seu interior e fechando seus olhos para suas
manifestações exteriores (...). Muito pelo contrário, o herói (vira) tântrico passa diretamente
através da esfera de maior perigo. 10

Nosso fim aqui, no entanto, não é debater a metafísica das diversas tradições yoguicas, mesmo
porque isso foge das ciências, mas simplesmente apresentar o leitor sucintamente à filosofia em que se
afirma o hatha-yoga e o problema dualista e monista de se conhecer este Self também no oriente.
Percebemos que independente das diversas tradições yoguicas e religiosas como um todo e, suas formas
de compreender o mundo, o corpo está sempre em ação: ou como um empecilho ou como um meio para a
salvação e compreensão deste jogo de tensões (ambigüidades - lila) que nós seres humanos vivemos11.

Apesar de suas diversas interpretações metafísicas, as tradições yoguicas concordam num


mesmo ponto: a inquietação da mente é a responsável em produzir essa ilusão no qual vivemos (maya) e,
é este fato, que nos impede de conhecer o nosso Self. Por isso, a atenção focada, presente e plena na
incessante movimentação de nossos pensamentos (meditação), têm sido o meio para se livrar desse
engodo12. Neste sentido, as diversas escolas de yoga se apresentam como caminhos ou sistemas de atos
espirituais que podem conduzir o ser humano a uma vida mais plena e harmônica (kaivalya) a partir do
entendimento de como nosso corpo se afeta com o mundo e produz respostas (volições - vrittis).

O que é importante ficar claro desde já, é que para Zimmer, a filosofia oriental sempre transitou
em sua história com vínculos muito mais fortes com a religião do que o pensamento crítico e secularizado
do mundo ocidental moderno. O pensamento oriental, portanto, está mais próximo de pensadores como
Pitágoras, Platão e místicos, como Mestre Eckhart, Santo Agostinho e filósofos românticos como

6
ZIMMER (2000), p.18 se referindo à tradição dual do samkhya, por exemplo, que dista dos vedas, mas todos absorvidos pelo
hinduísmo.
7
FEUERSTEIN (2004), p.67-68.
8
ZIMMER (2000), p.390.
9
ZIMMER (2000), p.397-400; FEUERSTEIN (2004), p.68.
10
ZIMMER (2000), p.397.
11
FEUERSTEIN (2004), p.68-70.
12
ZIMMER (2000), p.204.
3

Schopenhauer13. Por este mesmo motivo, Zimmer relata que Georg Hegel (1770-1831), filósofo alemão,
em sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas suprimiu as filosofias da Índia e da China, considerando-as
“como uma espécie de prelúdio antes de se erguer” a verdadeira filosofia pelos gregos14. O argumento de
Hegel é que, ao contrário da história da filosofia grega, às orientais lhes faltam um contato mais estreito
com as ciências naturais, ou seja, com “seus métodos críticos em contínuo aperfeiçoamento e sua
concepção secular, não teológica, praticamente anti-religiosa, do homem e do mundo”, nas palavras de
Zimmer15. E assim, se delimitou, segundo o mesmo autor, toda uma complexa e multifacetada filosofia a
um único sítio por parte de uma boa parcela de intelectuais modernos: a filosofia e a religiosidade
produzida no oriente ficaram reduzidas, portanto, a um pensamento selvagem e primitivo. Este fato não
aniquilou sua força, tanto que o yoga sobrevive ainda hoje, mas limitou em parte sua compreensão
acadêmica e delegou suas compreensões às mais diversas interpretações16.

Assim, a filosofia ocidental, na interpretação de Zimmer sobre Hegel, tornou-se o “anjo-da-


guarda” do pensamento correto, crítico e sem preconceitos”17 devido ao seu contato estreito com o
pensamento progressista das ciências. A filosofia oriental, por sua vez, manteve-se “tradicional”, mas, de
certa forma ainda, amparada e em constante transformação assim como a ocidental, mas pelas
experiências interiores de seus praticantes e pela religiosidade popular, e não pelas experiências de
laboratórios e dos rígidos métodos científicos ocidentais. No ocidente, pelo contrário, os conhecimentos
humanos (religioso, filosófico e científico) se distanciaram para romper seus laços medievalistas
culminando em sociedades secularizadas, que se expandem hoje a praticamente todas as culturas
modernas.

Fisiologia ontem.

A fisiologia como entendemos aqui, é uma ciência que estuda e integra o corpo humano em seus
mais diversos sistemas: bioquímicos e nutricionais, neuromusculares, endócrinos, cardiorrespiratórios,
imunológicos e neurofisiológicos18 e teve seu início, como a maioria das ciências, na filosofia. Já a
corporeidade, conceituamos sendo o meio como este complexo psicofisiológico mente-corpo (Soma)
interage dinamicamente com o ambiente19.

Para contar a origem da fisiologia ocidental devemos remontar a Aristóteles (384-322 a.C.) em
seus escritos filosóficos sobre a psychê e a contração muscular voluntária. Aristóteles comparava as
relações do corpo com a alma análoga às relações entre a visão e o olho: o corpo existe para o bem da
alma, assim como o olho para o bem da visão (DA, 412 b17-24)20. Mas foram, sobretudo nas observações
de Galeno (129-200) sobre o gesto humano, que se inaugura uma nova perspectiva ao funcionamento do
corpo. Galeno percebe que a medula espinal e o cérebro estão diretamente ligados aos movimentos

13
ZIMMER (2000), p.19.
14
ZIMMER (2000), p.32-33.
15
ZIMMER (2000), p.33.
16
Cf.ZIMMER (2000), p.17-47.
17
ZIMMER (2000), p.33.
18
Cf.McARDLE, KATCH & KATCH (2003), p.xv-lix;
19
Corporeidade é a maneira pela qual o cérebro reconhece e utiliza o corpo como instrumento relacional com o mundo
SCORSOLINI-COMIN & AMORIM (2008);
20
BENNET & HACKER (2003), p.25-56.
4

voluntários e reflexos e, associa o cérebro inteiro às capacidades mentais dos seres humanos, como a
percepção, e não apenas aos ventrículos e ao coração como havia feito Aristóteles21. Nemesius (c.390),
um bispo da Síria, por sua vez, desenvolve e amplia o conceito da localização ventricular aristotélica a
partir de análises de lesões encefálicas e, ao contrário de Galeno, localiza a percepção e a imaginação nos
dois ventrículos laterais atribuindo ao ventrículo do meio, nossas aptidões intelectuais: “Se os ventrículos
frontais sofrerem qualquer tipo de lesão, os sentidos ficam diminuídos, mas a faculdade intelectual
continua como anteriormente”, observa empiricamente Nemésius22. Andreas Vesalius (1514-1564), na
Universidade de Lovaina em 1503, nota a partir das análises de Nemesius e de desenhos ventriculares
mais pormenorizados, que a anatomia dos ventrículos era muito parecida quando comparado em diversos
outros mamíferos (inclusive os humanos) e, portanto, era incorreto afirmar que as faculdades psicológicas
como raciocínio, poderiam estar associadas aos ventrículos23. Mas, é realmente a partir dos estudos de
Fernel (1497-1558), numa obra intitulada De Naturali parte Medicine, publicada em Paris em 1542, que a
palavra physiologia é citada pela primeira vez. Nela define-se que “a fisiologia refere as causas das ações
do corpo”, estuda o que são os processos ou funções do corpo, diferindo de anatomia, que segundo
Fernel, refere-se apenas onde os processos têm lugar. O livro de Fernel, em sua edição de 1554, fora
reintitulado como Physiologia, e considerado por quase um século o maior tratado sobre o assunto24.

A fisiologia de Fernel, no entanto, vai perdendo sua influência em meados do séc. XVIII, quando o
pensamento teleológico aristotélico já não era mais viável frente à física de Kepler e Galileu e suas
explicações mecanicistas. Influenciado por esses novos ideais, o médico britânico William Harvey (1578-
1657) descreve experimentalmente a circulação sangüínea pela primeira vez, e a fisiologia moderna se vê
inaugurada definitivamente na apresentação da circulação pulmonar do médico Miguel Servet (1511-
1553). Porém, é René Descartes (1596-1650), sem dúvidas, o filósofo que modifica e influencia
profundamente o pensamento europeu frente ao corpo e a mente e, apesar de grande parte de suas
investigações se revelarem incorretas à luz da psicofisiologia moderna, proporcionou fôlego à pesquisa
fisiológica, pondo fim à doutrina ventricular e marcando uma concepção de mente e corpo bem distintas:
a mente é um princípio do pensamento ou consciência, e todas as outras funções essenciais para a vida
animal são atributos da mecânica do corpo. Segundo ele, apesar de mente e corpo estarem unidos de
forma íntima era substancialmente distintos25.

Com o pensamento fisiológico moderno, Thomas Willis (1621-1675), a partir da análise


neurofisiológica e neuroanatômica em seus pacientes com problemas neurológicos comparou seus
cérebros em exames pós-morte. Estas observações permitiram a este Professor de Medicina de Oxford
concluir que a psique dos seres humanos está funcionalmente dependente do córtex cerebral, ou seja,

21
BENNET & HACKER (2003), p.35.
22
BENNETT & HACKER (2003), p.35-6.
23
BENNETT & HACKER (2003), p.37.
24
BENNETT & HACKER (2003), p.38.
25
Para maior aprofundamento sobre a influência cartesiana na fisiologia cf. BENNETT & HACKER (2003), p.40-44.
5

alterações fisiológicas no cérebro de seus pacientes seriam a causa de seus problemas neurológicos 26. De
Pierre Paul Brocca a António Damásio hoje, todos mantém de certa forma esses conceitos.

A fisiologia marcadamente mecanicista caminha ainda com as descobertas de Galvani (1737-1798)


sobre a eletricidade animal, Charles Bell (1774-1842) e François Magendie (1783-1855) na identificação
dos nervos espinais como responsáveis pelo movimento motor voluntário. Bell e Magendie em específico,
apesar de se ausentarem da discussão do local da “morada da alma” descobrem que o controle motor de
alguns gestos animais é independente do cérebro, portanto, da glândula pineal, morada, segundo
Descartes, da alma. Este fato estimula as idéias de Robert Whytt (1714-1766), que em seu livro Essays on
the Vital and Involuntary Motions of Animals apresenta uma clara descrição que o comportamento reflexo
pode ocorrer na ausência de qualquer consciência. Whytt em 1751 demonstra que animais sem cérebro,
mas com medula espinal intacta, poderiam responder a um estímulo de forma reflexa, claramente
inspirado por Bell e Magendie27. A Hipótese de Bell-Magendie, como ficou conhecida, levantou de certa
forma a controvérsia de como ser possível sentir, portanto iniciar um movimento, sem um cérebro, sem
uma alma.

Marshall Hall (1790-1857) em sua comunicação de 1833 intitulada Sobre a função reflexa da
medulla oblongata e da medulla spinalis, retoma este assunto perturbador e esclarece que existem nervos
sensoriais que não produzem sensações e nervos motores que não se limitam a apenas mediar atos
volitivos, em outras palavras, há gestos que não precisam ir dos músculos ao cérebro para “gerarem” uma
resposta reflexa. Ao invés disso, a própria medula espinal geraria esse movimento, sem a intermediação
do cérebro28. Este trabalho anteciparia um importante artigo científico publicado em 1910 na Journal of
Physiology por Charles Sherrington (1857-1952), grande fisiologista lembrado ainda hoje em todos os
livros acadêmicos e percussor de muitos outros fisiologistas importantes. Sherrignton descreve pela
primeira vez o reflexo-flexão, que juntamente com outras publicações, lançam o esquema que esclarece o
papel da medula espinal no andar e a posição do pé, e ao fazer isso complementa as pesquisas de Marshall
Hall, tendo como conseqüência a extinção da noção de “alma espinal” em vigor na época. Além disso,
Sherrington lança as bases sem equívoco que possuímos uma região em nosso cérebro que se comunica
com todos os músculos e órgãos de nosso corpo e estimula as pesquisas em torno do mapeamento de
nosso cérebro e suas relações com o corpo, que possibilita, em parte, a base empírica para os estudos
sobre corporeidade como entendida hoje.

Edgar Adrian (1889-1977) contemporâneo de Sherrington, com quem compartilhou o premio Nobel
em 1932, complementando seus estudos sobre a atividade elétrica das fibras nervosas motoras e
sensoriais, percebe suas limitações como fisiologista e reluta de certa forma, em especular sobre como o
cérebro se relaciona com a mente 29. Essa discussão volta à tona somente com John Eccles (1903-1997),
doutor em Filosofia e pós-doutorando com Sherrington30. Eccles estimulado pelas inspiradoras

26
BENNETT & HACKER (2003), p.45.
27
BENNETT & HACKER (2003), p.48-51.
28
BENNETT & HACKER (2003), p.52.
29
BENNETT & HACKER (2003), p.61-2.
30
Eccles fez os primeiros registros intracelulares dos potenciais pós-sinápticos dos neurônios motores que permitiram a
descoberta das microanatomias funcionais entre cerebelo, tálamo e hipocampo, completando assim, o programa de investigação
6

experiências conduzidas por R.W.Sperry e colegas nos anos setenta sobre hemisferectomia, se junta ao
filósofo Karl Popper e escrevem Self and the Brain (1977) onde levantam hipóteses sobre como nos
relacionamos com o mundo físico, mental e dos pensamentos31.

Atualmente, após o advento das máquinas de ressonância magnética e tomografias por emissão
de pósitrons, a fisiologia tem ancorado melhor sua discussão entre mente-corpo. Nossa contenda, no
entanto, se pautará principalmente nas pesquisas do nobelista Dr. Eric Kandel em seu Princípios da
Neurociência do Comportamento e nas observações de António Damásio, neurocientista português
radicado na América do Norte, que mantém viva a contenda entre mente-corpo na fisiologia, assim como
todos os seus predecessores fizeram. Damásio mantém a discussão dicotômica agora revisando as análises
monistas de Espinosa pelo viés neurocientífico e respaldado com a mais alta tecnologia em imageamento
cerebral e pesquisas em neurociências. Seus três livros são bem explícitos na crítica ao pensamento
dualista que separa mente e corpo, portanto, idealista, de um mundo longe do real, como podemos ler em:
O erro de Descartes, onde aborda o papel dos sentimentos na tomada de decisões; em O mistério da
consciência, descrevendo o papel das emoções e sentimentos na construção de quem somos (Self); e Em
busca de Espinosa, expondo os sentimentos como a “expressão do florescimento ou do sofrimento
humano, na mente e no corpo”32.

No entanto, como veremos nas pesquisas neurocientíficas atuais, a relação entre alma e o córtex,
ou, entre a mente e o cérebro, continuou a incomodar os fisiologistas33 e, segundo Bennet & Hacker em
seu livro Fundamentos filosóficos da neurociência (2003), este fato se mantém ainda obscuro, pois os
fisiologistas em geral insistem em delegar ao empirismo um assunto puramente conceitual, que cabe aos
filósofos responderem. Por vezes, continuam Bennet & Hacker, os fisiologistas parecem aceitar
ingenuamente (e erroneamente) que a mente possui um corpo, mesmo que “não sejam as mentes que tem
corpos, mas sim os seres humanos”34. Segundo o fisiologista Bennett e o filósofo Hacker, neurocientistas
como António Damásio, Eric Kandel e outros “discípulos de Sherrington”, segundo os autores, vivem
uma “falácia mereológica”, ou seja, substituem o dualismo cartesiano de mente e corpo, que tanto
combatem, pelo dualismo análogo do cérebro e corpo. Segundo os mesmos autores, os neurocientistas
modernos imputam apenas ao cérebro atributos que deveria estar relacionado ao ser humano como um
todo e não apenas a um de seus órgãos35. Em Fundamentos os autores propõem um “projeto de
cooperação” entre a filosofia e a fisiologia, pois segundo eles, os fisiologistas estão empreendendo
conjurações que competem aos filósofos, como por exemplo, investigar as “relações lógicas entre
conceitos”; os fisiologistas deveriam se preocupar em orientar essas investigações conceituais e pesquisar
o corpo-cérebro-mente, para que assim a compreensão do ser humano se torne um empreendimento em
conjunto36.

descrita por Sherrington em seu The Integrative Action of the Nervous System há cinqüenta anos antes (BENNET & HACKER, 2003,
p.63-4).
31
Pormenores sobre os conceitos e críticas sobre os três mundos de Eccles e Popper cf. BENNETT & HACKER (2003), p.63-71.
32
DAMÁSIO (2004), p.14-5.
33
BENNETT & HACKER (2003), p.55-6.
34
BENNETT & HACKER (2003), p.58-9.
35
BENNET & HACKER (2003), p.127.
36
BENNET & HACKER (2003), p.15.
7

George Lakoff (1941), professor de lingüística e o filósofo Mark Johnson (1949), ambos dos Estados
Unidos, parecem atender a essas exigências e nos ajudar com esta “falácia mereológica”. Lakoff e
Johnson teorizam que as metáforas, mais do que representar uma linguagem, nos permitem estruturar
conceitos a partir de outros mais básicos, mas a forma pelo qual desenvolvemos este processo depende da
experiência direta do mundo, que em última instância passa pelo corpo37. Outro aspecto de suas
investigações, que nos interessam está proposto no livro Philosophy in the Flesh, the embodied mind and
its challenge to Western Thought (1999), onde declaram que nossas metáforas mais fundamentais estão
ligadas diretamente às nossas percepções da realidade, e, portanto, dependem da relação do nosso corpo
com o mundo38. Essa filosofia corporificada, como ficou conhecida, inaugura, de certa forma, a
corporeidade e permite revisitarmos fisiologicamente o pensamento monista de Espinosa, pelo qual
Damásio vai buscar defender em seus trabalhos, apesar de criticado, como vimos.

Fisiologia hoje.

Nosso psicossoma, na atual linguagem fisiológica e, como vimos na história da fisiologia como
um todo, não pode mais ser caracterizado apenas por cem trilhões de células interligados umas as outras,
ou como um cérebro ligado a um tubo digestivo. Cem bilhões de nossas células compõem nosso encéfalo
(neurônios) que se comunica com todo o organismo determinando do tônus muscular aos processos
hormonais e atos conscientes e reflexos, mas também participam da genialidade de um bailarino, assim
como da mente brilhante de um Nietzsche e da sensibilidade de um Drummond. Cada poro, órgão, fibra
muscular, célula e enzima de nosso corpo estão, portanto, integradas a todo o nosso sistema nervoso
central, periférico e cognitivo. A Psicobiologia ou Neurociências do Comportamento e uma de suas
subdivisões, conhecida como Psicofisiologia têm nos proporcionado, nas últimas décadas, a possibilidade
de estudar a relação entre a fisiologia e os processos psicológicos em seres humanos com muito mais
rigor científico39. Os músculos, por exemplo, não são apenas comandados pelos neurônios, mas também o
influenciam profundamente e, por conseguinte, nossos processos mentais. Sabemos hoje, que tensão
muscular é também sinônimo de tensão neuronal-mental40.

Este complexo celular, que compõem nosso corpo-mente possui três funções distintas, mas
indispensáveis na formação de quem somos: sentir, processar e agir no mundo. Mais de 50% do nosso
córtex motor é destinado aos músculos das mãos e da face, por exemplo. E isso ocorre, pois estas regiões
neocorticais são as que mais “conversam” com o ambiente que nos rodeia sensivelmente. Quando
queremos compreender algo físico, nós não apenas filosofamos sobre este objeto, mas o pegamos,
sentimos seu peso, chacoalhamos, trazemos este objeto junto ao nosso corpo; e o fazemos isso, não de
forma arbitrária, tocamos este objeto com partes físicas específicas do nosso corpo, o tocamos com a
ponta dos dedos e das mãos ou o encostamo-nos ao nosso rosto quando pretendemos sentir sua suavidade
e temperatura, por exemplo, pois ali estão distribuídos muito mais neurônios que aferem esse sentir – ou
você já pensou em examinar a febre de seu filho com o cotovelo para verificar a sua temperatura de

37
LAKOFF & JOHNSON (2002), p.28.
38
Ibid., p.28-9.
39
KANDEL (2003), p.653-73; DAVIDOFF (2004), p.373-6; PINEL (2005), p.38-9.
40
Cf.GAIARSA (1995); PINEL (2005), p.200-6; McARDLE, KATCH & KATCH (2003), p.394-418; KOLB & WHISHAW (2002), p.354-397;
LARA (2009).
8

madrugada? Segundo a fisiologia humana e as neurociências são os estímulos, que nos chegam do
mundo, é que “disparam” em nós todas as alterações eletroquímicas, hormonais e demais bioestruturas
que compõem a nossa corporeidade. Os textos tântricos do hatha-yoga nos revelam o quanto o corpo é
importante em sua doutrina também:

Uma vez que o corpo permite à pessoa sábia a experiência do som, visão, paladar, tato e
olfato, bem como prosperidade e amizade, isso lhe traz vantagem. 41

No Hevajra-tantra, o Buda (Bhagavan) proclama que sem um corpo perfeitamente sadio


não é possível conhecer a beatitude.

Não vi ainda um lugar de peregrinação e beatitude comparável a meu corpo.

(...) de que maneira os yogis (sic) que não conhecem seu corpo como (sendo) uma casa
com uma coluna e nove portas, e presididas pelas cinco divindades tutelares, poderão atingir a
perfeição?42

Sensação na ciência psicofisiológica, portanto, é uma reação psicossomática ao mundo físico


produzido por estímulos, objetos ou informações (luz, temperatura, pressão, som, gravidade,
deslocamento, dor, paladar, olfação e tato) provenientes de vários receptores pelo corpo43. E, quando
atribuímos significado a um estímulo caracterizamos a essa sensação uma percepção44. É, portanto,
através das percepções que um indivíduo organiza e interpreta as suas impressões sensoriais do mundo
para atribuir sentido ao meio cultural onde vive45. Assim, a aprendizagem, a memória e os genes46 são os
três mecanismos pelo qual a realidade sensorial altera quem somos (comportamentos).

Uma sensação pode se associar a uma lembrança ou memória, muitas vezes na forma de uma
imagem mental, emoção e/ou gesto físico, ou dar origem a uma nova memória 47. Por isso, talvez
evolutivamente, mais de 90% de nossos neurônios tenham se desenvolvido para manterem-se a maior
parte do tempo “desligados” (hiperpolarizados); pois, do contrário, sofreríamos uma descarga
eletroquímica neuronal a cada estímulo (objeto) que nos apresentassem aos sentidos. A fisiologia afirma
que “a (nossa) atenção é atraída apenas por um objeto ocasional no nosso campo sensorial, e mesmo o
permanente ruído que nos cerca é geralmente irrelevante” 48; ou como declara analogamente o Shata-
Patha-Brahmana (10.5.2.20), um clássico texto de influência tântrica: “a pessoa se torna aquilo que
contempla”49.

Para o neurocientista Antonio Damásio, as emoções precedem os sentimentos; ou seja, muitas de


nossas emoções são expressas primeiro no “teatro do corpo” e sem o controle consciente: como
verificamos no embargo da voz, no rubor do rosto, em gestos específicos, níveis hormonais, sudorese e/ou
padrões eletroencefalográficos específicos, que muitas vezes podem estar inconscientes, mas encarnados

41
FEUERSTEIN (2004), p.73.
42
ELIADE (2001), p.192.
43
KANDEL (2003), p.410-4; p.430.
44
KANDEL (2003), p.412; p.472-3: “A percepção é um produto da abstração do cérebro e da elaboração da informação sensitiva
que chega”.
45
KANDEL (2003), p.412; DAMÁSIO (2004), p.91-2: “um sentimento é uma percepção de certo estado do corpo, acompanhado
pela percepção de pensamentos com certos temas e pela percepção de certo modo de pensar”.
46
Os genes também modificam nossos comportamentos, Cf. KANDEL (2003), p.1226.
47
DAVIDOFF (2004), p.204; KOLB & WHISHAW (2002), p.490; KANDEL (2003), p.1227-8; CHAUI (2009), p.132-42.
48
GUYTON E HALL (1998), p.325.
49
FEUERSTEIN (2004), p.72.
9

(corporificados). Já os sentimentos, que na linguagem de Damásio significa sentir a emoção, aparecem no


“teatro da mente”. Ambas, as emoções e os sentimentos, segundo o mesmo autor, contribuem para a
regulação da vida e de nossos comportamentos50. Textos yoguicos do séc. XI alertavam seus adeptos a
algo comparável:

Muito embora o corpo possa expor alguém a uma fieira completa de atividades
dolorosas e alegres, o sábio onisciente pode suportar com paciência todas as experiências. 51

A realidade de maya.
O armazenamento das informações do mundo, como vimos, é um procedimento que chamamos de
aprendizagem, e o processo complexo pelo qual codificamos, retemos e posteriormente recuperamos é o
que designamos como memória. Ambos, aprendizagem e memória, também são uma função das sinapses
que existem tanto no cérebro, quanto nas fibras musculares (junção neuromuscular) e diversos órgãos e
glândulas distribuídos em nosso corpo52. E, sempre que certos tipos de sinais sensoriais passarem por
uma seqüência de sinapses já armazenadas, ou seja, memorizadas, aprendidas (engramas53), estas se
tornam mais capazes de transmitir os mesmos sinais da próxima vez que este sentir (ou outro análogo) se
apresentar. Como exemplo se pode citar o gesto motor do andar: levamos (nós, seres humanos) mais de
um ano para desenvolver o engrama do andar em nós - um hipopótamo já nasce com este circuito
neuronal motor impresso em seus genes desde o nascimento, os seres humanos não, nós o aprendemos
pela experiência.

Mas os engramas também podem se apresentar sob a forma emocional, como no caso do medo
do mar após um acidente de quase-afogamento ou da experiência de “bem-estar” que muitos sentem após
um culto religioso ou uma prática de hatha-yoga. A emoção que o Pai-Nosso gera em um devoto cristão é
adquirido pela experiência pessoal, singular e armazenada na forma de engramas emocionais. O ato de
sugar, no entanto, é herdado, nascemos com este engrama. O medo ou a alegria associado a objetos e
situações, portanto, podem se estabelecer culturalmente devido às sentimentos benfazejos ou nefastos
(prazer e dor) que nós adquirimos ao longo de nossas vidas, portanto, frutos de nossas experiências
sensoriais também54. A fisiologia nos explicita isso da seguinte maneira:

Depois de os sinais sensoriais terem passado pelas sinapses (engramas*) certo número
de vezes, as sinapses tornam-se tão facilitadas que sinais gerados dentro do próprio cérebro
também podem causar a transmissão de impulsos pelas mesmas seqüências sinápticas (engramas
consolidados, facilitados*) apesar de a entrada sensorial não ter sido existido fisicamente, ou seja,
fora de nós: mesmo imaginando a mesma situação, o engrama neuronal é acionado. Isso dá ao ser
humano, a possibilidade de experimentar (e criar) situações imaginando-as, apesar de, com efeito,
serem apenas memórias das sensações (pensar no gesto motor excita os neurônios motores, pensar
no dia do casamento ou num ritual religioso, pode resgatar as mesmas emoções daquele
momento*)55.

Dito de outra forma, após este engrama estar registrado em nosso corpo-mente – e entenda que
um engrama nunca mais poderá ser “apagado”, somente sobreposto ou reprimido - qualquer situação real
ou imaginada parecida com aquela registrada desencadeará as mesmas reações físicas e emocionais: tudo

50
DAMÁSIO (2004), p.35.
51
Abordagem tântrica expressa no Yoga-Vasishtha (4.23.18-24) do séc.XI d.C apud FEUERSTEIN (2004), p.73.
52
KANDEL (2003), p.1227-46; PINEL (2005), p.297.
53
PINEL (2005), p.297: engrama é uma “mudança no cérebro que armazena determinada memória”.
54
GUYTON & HALL (1998), p.326.
55
GUYTON & HALL (1998), p.326; *Notas do autor.
10

se passará como se fosse real, mesmo que só imaginado. É comum sentirmos até o odor de lugares,
pessoas e roupas resgatando uma lembrança por um esforço intelectual ou uma situação semelhante
vivida realmente. Os relatos de meditações yoguicas e budistas sobre determinadas emoções, ilustra bem
o que pretendemos esclarecer pela fisiologia do conhecer56.

Quando Fernando Pessoa em o “O guardador de rebanhos” nos diz que seu rebanho é os seus
pensamentos, e que seus pensamentos são só sensações e, que “pensar uma flor é vê-la e cheirá-la e
comer um fruto é saber-lhe o sentido”57, está na verdade demonstrando exatamente o que estamos
expondo pelo pensamento fisiológico e filosofia, numa linguagem poética: nós somos em boa parte
pensamentos, memórias e emoções que armazenamos, resgatamos e acumulamos ao longo de nossas
vidas (experiências) pelo corpo-mente e eles surgem concomitantemente, nunca separados.

Hatha-yoga e sua prática

A palavra yoga deriva da raiz verbal yuj, que significa jungir ou unir, arrear. E segundo Georg
Feuerstein, historiador das religiões de descendência germano-canadense, indologista especializado em
yoga e fundador-diretor do Yoga Research Center, o que deve ser reunido ou unificado é a atenção do ser
humano58. Já a palavra “corpo” em sânscrito é deha, derivado do radical dih, que ao mesmo tempo em
que pode significar “macular” ou “estar manchado” - que indica uma forte imagem do corpo contaminado
- se refere a “ungir”, como “aquilo que é untado ou investido”. Ou ainda, o “corpo” pode ser designado
por uma palavra sânscrita bem mais antiga: sharira, do radical shri, que significa “sustentar” ou “apoiar”,
como vendo o corpo como “meio do qual o Self pode vivenciar o mundo”59.

O hatha-yoga busca identificar e se desvencilhar, como uma espécie de teoria da personalidade


ou de um “novo Ser”, a resistência consciencial e todos os “recalques” 60 ocasionados pelo inconsciente
em nós através de práticas psicofísicas. Para os hatha-yogues, o mundo não é mera ilusão. O hatha-yoga
não separa a realidade em duas substâncias, mas acredita que o mundo sensível e o material são um só e a
manifestação da suprema Realidade. Como tudo é Divino, o corpo também o é. “O corpo é uma peça do
mundo (...) e quando entendemos o corpo verdadeiramente, descobrimos o que é o mundo, que em
essência é divino”61, nos exemplifica Feuerstein. Muitos associam, por desconhecer, a prática do hatha-
yoga por uma suspensão das emoções, quando na verdade é ao contrário, o hatha-yogue não esconde seus
sentimentos, pensamentos e memórias, mas busca compreendê-los como estados da mesma substância
para transformar seus corpos-mentes em adamantinos (vajra), numa espécie de alquimia ou elogio ao
corpo62. Textos tântricos refletem isso:

Como pode alguém vir a conhecer o propósito da vida humana sem possuir um corpo
humano? Por esta razão, tendo obtido a dádiva de um corpo humano, poderia realizar feitos
meritórios 63.

56
DANUCALOV & SIMÕES (2009), p.222-6.
57
PESSOA (2001), p.44.
58
FEUERSTEIN (2005), p.35.
59
FEUERSTEIN (2004), p.68
60
JUNG (1982), p.59; FADIMAN & FRAGER (1986), p.316-38.
61
FEUERSTEIN (2004), p.68.
62
FEUERSTEIN (2005), p.481.
63
Kula-Arnava-Tantra (I, 18) apud FEUERSTEIN (2004), p.69.
11

No entanto, filósofos monistas como Espinosa nos apontam algo parecido, tomado suas devidas
distinções:

É preciso saber o que pode o corpo. 64

Ninguém poderá compreender a Mente humana de maneira adequada; ou seja, distinta,


se não conhecer primeiramente de maneira adequada a natureza de nosso Corpo. 65

O hatha-yoga inicia o controle psicossomático dos pensamentos tendo como foco a atenção na
vida diária estabelecida por yamas e niyamas (conduta ética), nos músculos, órgãos e glândulas pelos
kryias, ásanas, bandhas e mudras (limpezas orgânicas, posturas físicas, contrações e selos corporais), e
na respiração pelos pranayamas. A partir daí, uma seqüência cada vez mais apurada de estados
psicossomáticos pode ser identificada e desenvolvida a partir das diversas técnicas meditativas (dhyana)
que produzem também feedbacks para o sistema nervoso central, diminuindo as ações neuronais, e
gerando assim estados neurofisiológicos específicos, no caso do hatha-yoga, um estado mental ou modo
de consciência dito transcendente (samadhi).

Alterações cerebrais podem perturbar tanto o funcionamento do nosso corpo quanto de nossa
mente e emoções. Na verdade, como viemos tentando demonstrar pela dialética entre a filosofia hatha-
yoguica e a fisiologia: o corpo, a mente, o cérebro e as emoções não se desligam uns dos outros, mas
funcionam como um só organismo 66. Neste sentido, fisiologistas da religião vêem explorando o controle
do sistema nervoso autônomo e subseqüentes alterações neuromusculares, cardiorrespiratórias,
bioquímicas, imunológicas e endócrinas causadas não só pela prática contínua do hatha-yoga, mas
também por outras tradições religiosas e espirituais e por abordagens mais geralistas, mas que levam em
consideração a religião como forma de conhecimento e interpretação do mundo. Estes pesquisadores
estudam, sobretudo sob três grandes áreas fisiológicas da religião: (1) Terapêutica, relacionada à saúde e
cura67; (2) Mística, relacionada às experiências meditativas em seus aspectos neurofisiológicos 68; e (3)
Comportamental e Cognitiva69, relacionada ao objetivo último do yoga, um desenvolvimento integral e
pleno do ser humano. É sob este terceiro aspecto que pretendemos investigar a sua possibilidade de
aplicabilidade e dialética pela leitura fisiológica.

Fisiologia da prática hatha-yoguica

Antes de nos aventurarmos na discussão propriamente dita entre os atos do hatha-yoga advindo
do pensamento vedantino advaita, portanto não-dualista com a corporeidade na religião, se faz necessário
apresentar primeiramente o filósofo Bento de Espinosa. Espinosa (1632-1677) de família judaica
portuguesa nasce na Holanda e aos vinte e quatro anos de idade é excomungado da sinagoga onde
freqüentava, em Haia, devido a seus postulados frente a Deus. Se já não bastasse isso, ou também por
causa disso, a sua filosofia monista, segundo Damásio, fora considerada como maldita mesmo após sua

64
Espinosa (III.2, esc) apud SANTOS (2009), p.29.
65
Espinosa (III.13, sc) apud SANTOS (2009), p.29.
66
Cf.LARA(2009).
67
DANUCALOV & SIMÕES (2009), p.271-91.
68
DAVIDSON (1976); NEWBERG, A.B.; D´AQUILI, E. & RAUSE, V. (2002); LABATE & ARAÚJO (2004), p.623-729; ÁVILA (2007), p.102-
131.
69
Cf. LIBERMAN (2008); Cf.LARA (2009).
12

morte70. Isso se deveu em parte, porque Espinosa defendia que Deus era imanente à natureza e ao
universo, a Bíblia uma obra metafórica e alegórica e as emoções (Corpo) tão importantes quanto à razão
(Mente). O peso destes fatos foi tão devastador, que segundo Damásio, durante cem anos que se seguiram
à sua morte, nenhum outro pensador apoiou suas idéias, pois isso significaria na época, um “suicídio
intelectual”71. Sua redenção, no entanto, começa a surgir com pensadores como Goethe, Georg Hegel e,
mais tarde no séc.XIX, por Wilhelm Wundt e Herman Von Helmholtz, fundadores das ciências da mente.
Entre outros cientistas que leram Espinosa mais tarde, estão nomes como Johannes Muller, Haeckel,
Taine, Wallace e Darwin 72. Damásio em seus livros, de certa forma não se apóia em Espinosa para
argumentar seus estudos, mas busca fundamentar a filosofia espinosista nos avanços da fisiologia e
neurociências. Damásio afirma, por exemplo, que nossas emoções são reações psicossomáticas a certos
estímulos e, sempre que tomamos consciência destas emoções, sentimos a emoção, ou seja, surgem os
sentimentos, que por sua vez, refletem em atividades neuronais e comportamentais73.

Mas, o que isso tem haver com hatha-yoga? Pois bem, a definição de yoga elaborada no seu
texto mais antigo conhecido como Yoga-Sutras de autoria de Patanjali, que data aproximadamente de
2500 a.C., e considerada também pela tradição hatha-yoguica, é bem clara: o yoga é a inibição, cessação
ou “des-identificação” voluntária das modificações ou volições mentais (vrittis)74. Essa não-identificação
do sentir não significa abster-se dos sentimentos, pois assim estaríamos diante de uma visão dualista. A
intenção é encarar a ambivalência humana e perceber quanto nos afetamos pela realidade que nos rodeia,
diferenciando e compreendendo as ficções (metáforas) criadas pelo nosso corpo-mente ao longo de nossas
experiências, originado de nossas reações automáticas (maya)75 aos objetos (causados pelos klesas).

No sistema de atos estabelecidos pela doutrina hatha-yoga o praticante experimenta o samadhi,


uma experiência mística, mas como toda experiência humana numa visão monista, psicossomática. A
partir de graus diferentes de samadhis, o hatha-yogue vai percebendo a ilusão no qual vive (maya). E
quando o adepto, após longos anos de prática consegue livrar-se deste engodo permanentemente, se
realiza em kaivalya76 (beatitude) e, emancipa-se da roda de renascimentos ou samsara. Este, portanto, é o
objetivo de sua prática: uma espécie de estado psicossomático ou modo de consciência da “esfera
existencial”, expressão esta elaborada e preconizada pelo Psiquiatra e Doutor em Bioquímica Diogo
Rizzato Lara, Titular da Faculdade de Biociências da PUC-RS. As idéias ou princípios básicos
desenvolvidos em seu artigo Os princípios da mente e da personalidade, trata (1) desta ambivalência do
jogo de opostos que produz uma “resultante ou síntese”, que o autor aplica também a relação mente-
corpo, que ele intitula como ativação, inibição e controle. E, de outro princípio básico e universal, que (2)
“compreende a relação do indivíduo com o meio em diferentes níveis hierárquicos de organização”, que
correspondem desde a relação do indivíduo com ele mesmo até, numa esfera mais ampla, do indivíduo

70
DAMASIO (2004), p.264-71.
71
DAMASIO (2004), p.264-71.
72
DAMÁSIO (2004), p.272.
73
Cf. DAMÁSIO (2001); (2004).
74
Cf. TAIMNI (2001); cf. GULMINI (2002), sutra I.2.
75
Esclareceremos melhor o conceito de maya (ficção) quando comentarmos o pensamento de Winnincott.
76
Cf.GULMINI (2002), p.255: derivado de kevala, que significa só, somente ou lit.liberação ou isolamento no absoluto.
13

com o mundo e o universo. É justamente desta última esfera que nos referimos: a esfera em que o
indivíduo busca sentido criativo e verdade para a sua existência77 que o hatha-yoga se refere.

Para fundamentar nossa dialética sobre o conceito de corporeidade e de ilusão (ou metáfora de
Lakoff & Johnson) do hatha-yoga (maya) com o pensamento ocidental, nos valeremos da psicologia de
Winnicott. Donald Woods Winnicott (1896-1971) pediatra e psiquiatra inglês, desde cedo percebe o
perigo que a medicina corria em separar o físico do psíquico, e de uma visão da saúde apenas como
ausência de doenças e um bom funcionamento dos órgãos e suas funções. Em 1920, ainda em sua
formação médica, Winnicott postula o que só em 1948 a Constituição da Organização Mundial de Saúde
estabelecerá: “que saúde é um completo bem-estar físico, mental e social e não apenas ausência de
doenças ou enfermidades”78.

Pela observação de bebês e suas mães, Winnicott caminha na direção de explicitar o que aflige
os recém-nascidos em relação aos seus mundos e como lidam com essa realidade 79, e conseqüentemente,
como nosso corpo-mente funciona. Outro fator decisivo na construção de sua teoria psicanalítica e
relevante para o nosso enfoque foram as descobertas de Winnicott como médico na Segunda Grande
Guerra, onde fora nomeado Psiquiatra Consultor do Plano de Evacuação Governamental de uma área de
recepção da Inglaterra. Foi justamente neste período que ele observa alguns aspectos teóricos
fundamentais de sua teoria do amadurecimento pessoal80, ainda embrionária na época, mas que veio
revelar a importância do ambiente na etiologia dos transtornos psíquicos delineados por Winnicott mais
tarde81.

Segundo Laurentiis, Winnicott percebe que o conhecimento (elaboração) que os bebês têm deles
mesmos (Eu, Self) advém de suas experiências no mundo 82. Quando o mundo (realidade) começa a não
responder suficientemente bem aos anseios das crianças, estes começam a reconhecer outro(s) Eu(s) (da
mãe, primeiramente). Em outras palavras, são as falhas graduais do mundo, ou seja, quando a realidade
não responde como ele deseja e espera, é que fornecem aos bebês a experiência do outro. Quando essa
“falha” ocorre, nas palavras de Laurentiis, “a mãe não se adapta mais tão perfeitamente (bem) às
necessidades da criança”, e o recém-nascido gera a dúvida e começa a “fazer previsões” 83: “será que serei
alimentado agora, pois da última vez eu senti fome e o seio não apareceu”, por exemplo 84. Mas, gerada a
dúvida, a incerteza e, com isso, muitas vezes, o medo, advém concomitantemente uma resposta, uma

77
LARA (2009): Apesar do autor se referir à magia como a “forma negativa” na ambivalência desta esfera ao lado do fanatismo, e a
fé a crença em seu lado positivo, desconsiderando as abordagens antropológicas e sociais de Weber e Bourdieu, que percebem a
magia não de forma negativa, mas de resistência ao poder religioso dominante e com sua própria lógica, Cf. WEBER (1999); Cf.
BOURDIEU (2007). MOURA (2009) também coloca a magia como uma das três formas de organizar uma sociedade, ao lado da
religião e da ciência atualmente. A importância do autor, no entanto, reside no fato que Lara consegue manter uma dialética entre
a ciência fisiológica com a religião, com o que intitulamos como fisiologia da religião de caráter cognitivo e comportamental e, se
destaca de outros pesquisadores que abordam a fisiologia da religião quase sempre apenas sob dois aspectos: o terapêutico e o
místico.
78
Constituição da OMS (1948): extraído do site http://apps.who.int/gb/bd/PDF/bd47/SP/constitucion-sp.pdf em 14/05/2010.
79
DIAS (2010), p.3. Extraído do site httpwww.centrowinnicott.com.brsaopaulouploadsc93f7194-434a-1081.pdf (14/05/2010).
80
LAURENTIIS (2008), p.12: “(...) entenda-se (amadurecimento) o percurso desde os primórdios, quando a dependência do bebê
em relação ao ambiente é absoluta, até o momento em que ele se torna uma pessoa independente, podendo colaborar com o
ambiente e até mesmo modificá-lo”.
81
DIAS (2010), p.4. Extraído do site httpwww.centrowinnicott.com.brsaopaulouploadsc93f7194-434a-1081.pdf (14/05/2010).
82
LAURENTIIS (2008), p.19.
83
LAURENTIIS (2008), p.20.
84
É lógico que o bebê não pensa assim, é apenas um modelo a título de exemplo do pensamento winnicottiano.
14

explicação, uma ficção, uma metáfora85 para explicar essas falhas ambientais mais graves que se formam
gradativamente86 e, como vimos, todo pensamento se configura ao lado de uma emoção específica que se
internaliza. Essas explicações criadas, imaginadas, “um mundo de fantasias”87, segundo a leitura de
Laurentiis sobre Winnicott, auxiliam os recém-chegados a esse mundo, suportarem, de forma criativa, a
dura realidade em que vivem.

O bebê, no entanto, enquanto amadurece não deixa para trás a ilusão que criou, mas a fantasia
(não-realidade) de sua onipotência e, com o tempo percebe que o mundo existe antes dele 88. Numa
linguagem neurofisiológica poderíamos dizer que os engramas de quem ele é (ou que a criança “pensa”
que é) estão se consolidando e, quanto mais vezes essas experiências acontecerem, as mesmas respostas
serão geradas ou não pelo bebê. Dito de outra forma: justamente por não compreenderem a realidade têm
dificuldade em afirmá-la. Ao invés da função mental entender o que se passa, inventa uma explicação,
mesmo que essa explicação não explique nada. Se o que é explicado corresponde ou não a realidade não
importa, o que está em jogo realmente é suportar a ambivalência da vida, que já se revela “trágica” desde
tenra idade. E, logicamente que não é o discurso de Winnicott, mas parece lícito supor, dentro da
linguagem hatha-yoguica sob o ponto de vista psicofisiológico, criam-se aí os primeiros mayas (ilusões,
metáforas).

Mas como afirmar essa realidade espiritual, religiosa, transcendente – livrar-se de maya – sem
inventar outra compensação às vicissitudes da vida? Espinosa responde essa questão propondo outro tipo
de “razão”, uma razão que não fosse uma compensação à ambivalência da vida, mas uma razão (que ele
chamou de Ética) que analisasse as “forças e fraquezas do corpo”89. Dentro da leitura espinosista
realizada por Damásio, não há uma primazia da razão (Mente) sobre os afetos (Corpo) (EII.13:SC)90 e sua
resposta, grosso modo, dirige-se na busca de vivenciar estados espirituais. Antonio Damásio entende que
podemos compreender o “estado espiritual” em termos fisiológicos, pois este estado é uma espécie de
sentimento e, portanto, está sujeito também a uma rede de regiões somatossensitivas: “manter tais estados
depende da riqueza do nosso pensamento, com relação à condição do nosso Self e à condição do Self dos
outros (...)”91. Isso nos faz lembrar a prática milenar do hatha-yoga que preconiza a atenção plena
(mindfullness), ou estar presente no agora com uma atitude positiva e de plena consciência de seus atos
perante o outrem e a você mesmo, sobretudo.

7:4. Eu sou Brahman, não sou nada mais; realmente sou Brahman e não me afeta o
sofrimento; sou sat-cit-ánanda, sempre livre; participo de uma única essência.92

IV:5.Assim como o sal que se dissolve na água se torna uma só coisa com ela, a alma e
a mente se fazem uma. Isso é o samádhi.

IV:6. Quando não há movimento de prána (durante o kúmbhaka) 93 e a mente se dissolve


na alma, tal estado de harmonia se denomina samádhi. 94

85
Dentro da ótica da corporeidade da filosofia corporificada Cf. LAKOFF & JOHNSON (2002).
86
LAURENTIIS (2008), p.21: “O soma vai se tornando pessoal, guardando as características de uma história que é única, e vai se
constituindo o mundo interno pessoal, um mundo de fantasias que são sentidas como localizadas dentro do corpo”.
87
LAURENTIIS (2008), p.21.
88
LAURENTIIS (2008), p.22.
89
SANTOS (2009), p.264.
90
apud SANTOS (2008), p.29.
91
DAMÁSIO (2004), p.299.
92
Cf.SOUTO (2002).
15

IV:7. Esse estado de equilíbrio que é a união da alma individual com a Alma
Universal (jivátman e Páramátman), em que as construções mentais (sankalpas) cessam de existir,
chama-se samádhi.95

No entanto, não devemos nos esquecer que Espinosa não descarta a razão ou coloca a emoção
em primazia. Ele apenas nos alerta que o “Intelecto Puro”, como defendido por alguns filósofos de sua
época, sob a ótica de Márcia Patrizio dos Santos, especialista neste filósofo, não era razão, recebia o nome
de razão, mas era uma ficção: “explicações idealistas, miraculosas e intervencionistas”, pois Razão, para
Espinosa, significava levar em conta também as emoções e sentimentos, ou seja, é só “analisando
(atenção plena ao seu corpo-mente*) as forças e fraquezas do corpo, suas aptidões e virtudes, suas ações
e reações (paixões) afetivas e só assim poder se posicionar de forma a aumentar seu conatus96 individual e
de sua comunidade”97, pois mente (como função mental e não como uma entidade física) e sentimentos
nascem concomitantemente e não em separados: “o corpo é uma maneira específica e determinada de ser
de Deus”98. Damásio, no entanto também, não aborda o hatha-yoga em seus trabalhos, mas nos ajuda a
entender um pouco melhor, conceitos um tanto obscuros de textos medievais do hatha-yoga, como ele
mesmo relata:

Compreender a neurobiologia das emoções e dos sentimentos é necessário para que se


possam formular princípios, métodos e leis capazes de reduzir o sofrimento humano e
engrandecer o florescimento humano. De fato, a nova perspectiva (da razão espinosista*) diz
respeito até ao modo como os seres humanos poderão abordar conflitos latentes entre
interpretações sagradas ou seculares da sua própria existência. 99

Mas, que tipo de conhecimento é produzido pela prática psicofísica do hatha-yoga e como ele se
relaciona com o saber científico e humano de uma forma geral? Durante sua prática o hatha-yogue se
mantém centrado atentivamente em seu corpo-mente e suas reações, como respiração, sentimentos e
pensamentos. Percebe, sobretudo pela experiência, que sua mente vagueia incessantemente alimentada
pelas sensações que chega pelo seu corpo, que como vimos, pode “ativar” memórias e emoções
específicas (vrittis?). Lembranças, esperanças, medos, devaneios são percebidos a partir desta
contemplação meditativa do corpo-mente. Formações mentais, que raramente nos apercebemos em nossa
vida atribulada (podem ficar inconscientes, mas encarnadas, corporificadas), podem então ser
concretizadas pela prática contínua do hatha-yoga (trazidos à consciência). Dito de outra forma, a nossa
função mental, pela prática hatha-yoguica, pode trazer à tona muito de nossos medos e anseios que foram
reprimidos (muitas vezes somatizados) para pacificar e apaziguar toda uma realidade “trágica” da vida.
Isso pode traduzir textos clássicos do hatha-yoga:

93
Aqui prana refere-se ao alento e kumbhaka a suspensão tanto da inspiração quanto da expiração. Devemos lembrar que
padrões mentais estão ligados diretamente a padrões respiratórios também Cf. DANUCALOV & SIMÕES (2009), p.249-62.
94
Cf.SOUTO (2000).
95
Ibid.
96
Palavra latina que se traduz por tendência, nas proposições VI, VII e VIII da Ética de Espinosa. Na interpretação de Damásio, é
tido como uma tendência natural do organismo vivo (construído ou inato) para lutar contra toda e qualquer ameaça, para a
manutenção da coerência das suas estruturas e funções, ou ainda, engramas ativados por certas condições ambientais internas ou
externas que levam à procura da sobrevida ou bem-estar do individuo, ou seja, harmonia de seu Soma (DAMÁSIO, 2004, p.43-5).
97
SANTOS (2009), p.264.
98
Cf.SANTOS (2009).
99
DAMÁSIO (2004), p.16.
16

Tudo neste mundo, tanto os seres animados como os objetos inanimados, são uma
criação da mente; quando a mente alcança o estado transcendente, deixa de experimentar-se a
dualidade.100

A partir dessa observação psicossomática, desta atenção plena em seu mente-corpo, o adepto do
hatha-yoga compreende que todos os seus vícios, sofrimentos, angústias e alegrias são impermanentes e
advêm de reações, muitas vezes, automatizadas às sensações de apego ao prazer, repulsa a dor, medo da
morte, ignorância e egoísmo, que nos afastam do percebimento da Realidade101 que podem direcionar
nossos comportamentos e condicionar nosso corpo-mente, portanto, nossas vidas também102.

Esses pensamentos condicionados, portanto, engramas ou memórias numa linguagem


psicofisiológica, ao longo de anos de prática meditativa (atenção plena), podem “perder sua força” e
deixar de imprimir sua marca neuronal? Ou, se repetidos de forma automática e inconscientes, se
fortalecerão? São hipóteses levantadas dentro de uma fisiologia que se ocupa dos atos religiosos e
espirituais dos seres humanos, a Fisiologia da Religião.

Conclusão.

A resposta do hatha-yoga para sair de maya é a percepção que não há como fugir do medo
inexorável da morte e de nossa finitude. Apesar de nos sentirmos eternos e infinitos um dia morreremos.
O hatha-yoga, ao invés de negar o corpo e seus sentidos (sentimentos), sabe que o medo, a morte, a
angústia e as vicissitudes da vida existem, e de forma heróica103 enfrenta à ambivalência humana. O
hatha-yoga ao lado de outros pensamentos e correntes filosóficas não-duais propõe uma nova perspectiva
sobre como percebemos o nosso corpo (emoções) e nossa mente (razão), a sua principal diferença foi ter
estabelecido de forma original e inédita uma prática psicofísica para alcançar êxito. Sua filosofia
eminentemente pautada na prática, não utiliza a psique dissociada do corpo, e percebe os subterfúgios
imaginários e instrumentos ineficazes de controle da realidade que construímos ao longo de nossa
existência. Busca construir um “Soma Adamantino” (Novo Ser) para compreender e viver no mundo e
não contra ele, controlando-o, mas imersos na vida. Por isso deixa claro em textos clássicos o perigo da
razão dissociada de suas experiências sensoriais que parece antecipar filosofias não-duais, como a de
Espinosa, Winnicott, Lakoff e Johnson:

Alguns se enganam com as promessas dos Ágamas*, outros, com os enigmas dos Vedas
e outros ainda com a dialética. Nenhum deles conhece aquilo com cuja ajuda pode-se atravessar o
oceano da existência.104

O hatha-yoga, no entanto, não é uma terapia, mas um modo de consciência que pode possibilitar
aos seus adeptos identificar suas angústias, colocando os hatha-yogues ao lado dos otimistas, pois
compreendem e aceitam o mundo em sua ambigüidade, pensam e vivem junto à existência e não contra
ela. Eles afirmam a realidade com todas as suas alegrias e tristezas, aprovando o mundo e não fugindo

100
Hatha-Yoga Pradipika (IV, 61) apud KUPFER (2002), p.87.
101
Todos estes fatores citados em itálico são conhecidos como klesas (obstáculos) no yoga.
102
TAIMNI (2001), p.111.
103
Vira, é um termo que significa herói em sânscrito e utilizado também para referir-se ao adepto tântrico.
104
Hatha-Yoga Pradipika (IV, 40) apud KUPFER (2002), p.83; *Ágamas se refere à tradição do Yoga, e designa o conhecimento
adquirido através das percepções sensoriais ou pelo testemunho de autoridades competentes.
17

dele e, assim, acreditam poder lidar melhor com seus afetos e o devir de forma criadora para lidar com a
realidade da melhor forma possível.

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