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ANTROPOLOGIA GERAL E O

DEBATE MULTICULTURAL

ETAPA 1
CENTRO UNIVERSITÁRIO
LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, nº 1.040, Bairro Benedito
89130-000 - INDAIAL/SC
www.uniasselvi.com.br

Curso sobre Antropologia Geral e o debate multicultural


Centro Universitário Leonardo da Vinci

Autora
Luciane da Luz
Pedro Fernandes da Luz

Organização
Fábio Roberto Tavares

Reitor da UNIASSELVI
Prof. Hermínio Kloch

Pró-Reitoria de Ensino de Graduação a Distância


Prof.ª Francieli Stano Torres

Pró-Reitor Operacional de Ensino de Graduação a Distância


Prof. Hermínio Kloch

Diagramação e Capa
Letícia Vitorino Jorge

Revisão
Fabiana Lange Brandes
José Roberto Rodrigues
O HOMEM: DO ANTIGO AO MODERNO

APRESENTAÇÃO

Prezado aluno, alguma vez você já se indagou a respeito de sua condição, não
enquanto indivíduo, mas enquanto ser humano? Você já se percebeu enquanto apenas
um exemplar, uma pessoa, no meio de um vasto conjunto, a humanidade (desde seu
surgimento até hoje)? O que significa para você pertencer à espécie humana?

Certamente você deve ter uma resposta a esta questão, afinal, está experimentando
o que é ser humano neste exato momento! Mas se você examinar criticamente a resposta
que dá a este questionamento, perceberá que outra pessoa pode não concordar com
certas características que você atribua ao ser humano, ainda mais se esta pessoa for de
outra cultura.

Se você ouvir as respostas que pessoas de diferentes povos dão à indagação


do que é ser humano, verá uma variedade grande de respostas, algumas conflitantes.
Igualmente, se você examinar a resposta que pessoas de outras épocas deram a esta
mesma questão, constatará grandes diferenças nas respostas.

De fato, ao longo da história, e em diferentes culturas, procurou-se descrever o


que é pertencer à humanidade, e as respostas que foram dadas diferem enormemente!

Neste curso veremos como uma ciência desenvolvida tardiamente, a Antropologia,


procurou responder a esta questão e como este conhecimento nos ajuda a lidar com
a problemática colocada pelo multiculturalismo. Por ora, vejamos as transformações
que se deram ao longo da história, dentro da tradição do conhecimento ocidental, na
concepção acerca do ser humano, e as principais características que foram atribuídas à
nossa espécie como distintivas desta.

Esperamos que ao final desta etapa você seja capaz de se posicionar criticamente
diante da experiência humana ao longo da história.

Bem-vindo ao conhecimento e bons estudos!


2 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
FIGURA 1 - A CONDIÇÃO HUMANA, NOSSA PRINCIPAL REFLEXÃO

FONTE: Disponível em: <http://www.revistaogrito.com/page/wpcontent/uploads/2008/03/forca_6.


jpg>. Acesso em: 22 abr. 2016.

1 A CONCEPÇÃO DE SER HUMANO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA

O professor Pommer (2015, p. 55), ao discutir a condição humana considerada


na Antiguidade Clássica, chama a atenção para o fato de os autores deste período, e
daqueles que escrevem sobre o mesmo, mostrarem uma notável predileção por “reis,
filósofos, artistas e guerreiros”, negligenciando claramente os trabalhadores, as mulheres
e as crianças.

Este autor prossegue destacando que pouco ou nada se fala sobre os escravos
(ainda que estes compusessem o maior estrato da sociedade da época), e quando se
faz isso é somente quando os mesmos se encontram em situação de excepcionalidade.
Quanto à mulher, esta só é digna de nota quando, ou prostituta, ou rainha, ou exemplo
de abnegação e submissão ao homem, nada se falando sobre a mulher comum em seu
cotidiano.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 3

FIGURA 2 - MULHER GREGA NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA, FIANDO

FONTE: Disponível em: <http://www.planetaeducacao.com.br/portal/imagens/artigos/historia/


antiguidade_classica_01.jpg>. Acesso em: 22 abr. 2016.

Também os outros povos eram diminuídos em sua condição, quando avaliados


pelos povos dominantes do período, como os gregos e romanos, que desprezavam as
outras culturas.

Mas, se quisermos, como Pommer (2012) destaca, compreender como eram os


seres humanos no mundo antigo, devemos lançar nosso olhar sobre todos os aspectos da
vida, como o trabalho, o lazer, as atividades políticas, econômicas, religiosas, artísticas
e demais. Isto porque a Antropologia, como veremos na segunda etapa, tem uma
abordagem total do ser humano.

Este autor (POMMER, 2012) chama a atenção para uma característica marcante dos
povos da Antiguidade Clássica, povos estes que são fundamentais para a compreensão
do pensamento ocidental (destacando-se os gregos, romanos e israelitas, mas incluindo
também os egípcios), que seria o caráter patriarcal e tribal (pelo menos inicialmente)
destas sociedades.

Uma das consequências de uma organização do tipo tribal, tal como se dava esta
na Antiguidade Clássica do Ocidente, era a existência de uma chefia centralizada, que
era, entretanto, devedora à tradição. Isto quer dizer que o rei, ou chefe, tinha poderes
de mando, mas devia orientar suas decisões e ordens pela tradição e pelos costumes.

Na Grécia antiga, esta sociedade tribal evolui para um sistema democrático,


baseado na cidade-estado, ou pólis, processo similar, apesar das distinções marcantes,
ao que se deu em Roma.

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4 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
Quanto à característica patriarcal destas sociedades, a mesma impõe à mulher
uma condição subalterna na vida social, com estes povos valorizando somente a
capacidade reprodutiva feminina e relegando sua participação a um papel secundário
em relação ao homem, que é valorizado por suas qualidades viris e guerreiras.

Em todos estes povos é notável a instituição da escravidão, a inclinação à


beligerância, com a guerra de conquista sendo uma constante, e o conflito aberto entre
as elites da sociedade e seus estratos mais desfavorecidos (POMMER, 2012).

FIGURA 3 - GUERREIRO ROMANO

FONTE: Disponível em: <http://img.ibxk.com.br/2014/10/29/29172644756801.jpg?w=1040>. Acesso em:


22 abr. 2016.

Para Pommer (2013), quando lançamos nosso olhar sobre os gregos antigos, chama
nossa atenção a maneira peculiar pela qual este povo se expressava. De fato, as estratégias
de discurso, o modo de dizer algo, eram uma preocupação central na cultura grega.
Esta, por ser não alfabetizada em seus primórdios, privilegiava a enunciação poética dos
fatos, o que favorecia a memorização e transmissão dos mesmos às futuras gerações,
técnica da qual se valiam também os romanos e os hebreus, que assim preservavam
sua cultura e a mantinham coesa.

Com o desenvolvimento da cultura grega, e sua organização na pólis, a palavra


passa a ser também o principal instrumento de ação política e de exercício de poder,
sendo a via privilegiada para o exercício da autoridade e de influência sobre a sociedade
(VERNANT, apud POMMER, 2012).

Com a alfabetização da cultura grega, aqueles que se dedicam ao conhecimento


não mais precisam exercitar a memorização, o que os libera para exercitar a mente com
o pensamento especulativo, favorecendo assim o desenvolvimento da Filosofia e da
Ciência.

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De acordo com Pommer (2012), poderíamos definir o ser humano na Antiguidade


Clássica como comportando duas dimensões notáveis: de um lado enquanto guerreiro
e religioso, de outro enquanto pensador e inventor, lançando as bases do conhecimento
moderno.

2 A CONCEPÇÃO DE SER HUMANO DURANTE O MEDIEVO

Seguindo Pommer (2012) caracterizaremos o medievo aqui como aquele período


que vai do fim do Império Romano (século IV-V) ao século XV. A Idade Média, chamada
por alguns de “Idade das Trevas”, coincide assim com o início, apogeu e crise do
cristianismo.

Sem dúvida alguma, aquilo que é mais marcante no ser humano durante o
medievo é a religião cristã, de caráter monoteísta (contrastando com o politeísmo dos
antigos gregos e romanos), que moldou totalmente a visão de mundo neste período.

FIGURA 4 - CENA DA IDADE MÉDIA

FONTE: Disponível em: <https://s-media-cacheak0.pinimg.com/736x/ed/6a/98/


ed6a98f4327642c0796a8bfea62f0874.jpg>. Acesso em: 24 abr. 2016.

Devemos ter em vista, como Pommer (2012) destaca, que a religião cristã adquire
relevância e proeminência social depois de um período inicial de formação (que vai do
século I ao século IV), quando é adotada pelo imperador romano Constantino I (em 312
d.C.) e depois tornada religião oficial do Estado romano, com Teodósio I (em 380 d.C.),
quando então se dá sua articulação doutrinária, do século V ao VII, até sua consolidação
e dominância, do século VII ao XVI, quando se inicia sua crise com a reforma protestante.

É preciso ter em mente que a expansão inicial do cristianismo coincide com o


helenismo, a difusão da cultura grega pelo Ocidente, que é marcada por um pensamento
que se volta mais para as questões humanas, relativas à condição humana no mundo,
antes do que no conhecimento da natureza, o que influencia igualmente a formação do
homem medieval.

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6 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
Assim, nos primeiros três séculos do cristianismo, vemos o desenvolvimento
de uma síntese entre os ensinamentos judaico-cristãos e o platonismo, doutrina grega
formulada por Platão (POMMER, 2012). É deste período que nos vem o conceito de logos,
que concilia a visão grega da razão humana com a visão cristã da encarnação divina em
Cristo. Muitos contribuíram com a discussão em torno do logos, especialmente Paulo de
Tarso, que a partir deste termo defende a universalidade da religião cristã.

Com a adoção do cristianismo enquanto religião oficial do Estado romano, vemos


a consolidação deste e seu uso por parte da elite aristocrática romana, tendo em vista
a dominação ideológica das massas, o que leva à perseguição de grupos cristãos que
pregavam uma vida comunitária, a exemplo daquela descrita no “Ato dos Apóstolos”.
Desta forma, de acordo com Pommer (2012), o caminho do cristianismo no Ocidente
está indelevelmente associado ao poder imperial romano e se apoia em uma apropriação
desta religião de preceitos filosóficos gregos, que serviram à consolidação doutrinária
do cristianismo estatal.

Num primeiro momento, assistimos a um conflito entre a razão e a fé, quando


as mesmas se aproximam no pensamento do homem medievo inicialmente; entretanto,
com seu estabelecimento definitivo de religião oficial, o cristianismo procura conciliar
razão e fé, lançando as bases de um saber que articula uma determinada concepção da
realidade, com uma visão própria do ser humano, onde a culminância se encontra no
forjamento do conceito de pessoa (POMMER, 2013, p. 70).

FIGURA 5 - CENA DO COTIDIANO NA IDADE MÉDIA

FONTE: Disponívek em: <http://www.suapesquisa.com/uploads/site/imagem_servos.gif>. Acesso em


22 abr. 2016.

De fato, foi com o cristianismo que vemos o desenvolvimento do conceito de


pessoa, tendo por base o direito romano e adquirindo um caráter religioso. Inicialmente o
conceito de pessoa no cristianismo é colocado no campo metafísico, com Santo Agostinho
definindo esta enquanto substância e Boécio descrevendo a mesma enquanto “substância
individual de natureza racional” (POMMER, 2012, p. 71).

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 7

Assim, o conceito de pessoa, que marca a partir daí o pensamento ocidental, é


relativo à divindade e, a partir de São Tomás de Aquino, é marcado pela dinâmica da
relação entre homem e Deus, com este pensador afirmando que “o homem é pessoa
exatamente por ser, pela sua inteligência, memória e vontade, imagem de Deus uno e
trino” (PEREIRA apud POMMER, 2012, p. 71).

Esta concepção traz em si a ideia de pessoa em duas dimensões: a verdadeira,


ou seja, Deus, e sua imagem e semelhança, os seres humanos. Esta perspectiva está
fortemente implicada ainda naquela característica mais notável associada ao ser humano
na Idade Média, que é concebê-lo enquanto dicotômico, envolvendo duas dimensões:
a corpórea e a espiritual (POMMER, 2012).

Desta maneira, segundo Pommer (2013), a noção fundamental de ser humano na


Idade Média é marcada por sua condição de imagem e semelhança de Deus, onde seu
corpo é visto como um simulacro e sua alma pensada como aquilo que temos de mais
puro: Deus em nós. Assim, durante a Idade Média, o mais importante na concepção
de ser humano está na relação deste com a divindade, relação esta que é mediada pela
religião cristã.

FIGURA 6 - A RELAÇÃO HOMEM x DEUS NA VISÃO MEDIEVAL

FONTE: Disponível em: <https://encrypted-tbn1.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQ-


XvWGHxCO8CI1Fl_F5hfMIk_oHs3dwWtk6AO30PD-xezAUrk>. Acesso em: 24 abr. 2016.

O HOMO FABER COMO EMBLEMA DO CONCEITO MODERNO DE HOMEM:


A PERGUNTA PELO HOMEM E SUAS RESPOSTAS

1 INTRODUÇÃO

Com o advento da reforma protestante, a concepção medieval do ser humano


é colocada em xeque. A partir das teses de Lutero, a ideia de indivíduo vai adquirindo
relevância e acaba por se tornar um dos componentes ideológicos mais importantes da
modernidade.

Outros movimentos culturais do Ocidente, que foram fundamentais para forjar


a moderna visão de ser humano, foram o Renascimento, com a retomada do debate

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8 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
em torno dos textos e questões colocadas pelos pensadores da Antiguidade Clássica;
o Iluminismo, movimento filosófico do século XVIII que se baseia na confiança na
razão como capaz de solucionar os problemas práticos da vida humana, e, por fim,
as transformações que se dão quando da Revolução Industrial, que forja o mito do
progresso e a valorização da ciência.

Todo esse quadro contribui para o nascimento da moderna visão de mundo do ser
humano, que se fia na razão e na experiência e que apresenta autonomia, autocontrole
e postura reflexiva, prezando antes de tudo a liberdade e fundando suas relações de
trocas econômicas no livre mercado (LEITE DA LUZ; BOHMANN, 2013).

Com a modernidade surge então a concepção de Homo faber, o ser humano


enquanto capaz de controlar seu destino e meio ambiente através da invenção e fabrico
de instrumentos e ferramentas por meio de seu engenho, noção essa fundamental para
compreender a visão de mundo da humanidade neste período histórico.

FIGURA 7 - O HOMO FABER

FONTE: Disponível em: <http://www.przewodnik-wroclaw.eu/wp-content/uploads/2013/12/Homo-


faber-2-300x94.jpg>. Acesso em: 24 abr. 2016.

De acordo com Pommer (2012), o mais notável no conceito de Homo faber relaciona-
se com a ideia do ser humano, expressa pelo termo faber, não só como aquele que fabrica
e opera ferramentas, mas, antes de mais nada, como aquele que inventa, que cria tendo
em vista o fazer, alguém que pela invenção interfere e transforma o mundo por seu
desejo e/ou necessidade.

O surgimento do Homo faber só seria possível, assim, a partir da adoção da postura
ereta para o caminhar e da liberação dos membros superiores para a manipulação de
objetos, marcando na história de nossa evolução nossa distinção, enquanto espécie, do
restante dos animais (POMMER, 2012).

Para nós, é significativa a perspectiva de Homo faber como aquele que foi capaz de
produzir cultura e desenvolver a sociabilidade, constituindo-se historicamente. Desta
forma, aborda-se o ser humano a partir de suas atividades, onde o trabalho e a técnica
mostram-se constitutivos da especificidade da experiência humana (POMMER, 2012).

Tendo em vista esta dimensão humana, aquela do trabalho e do emprego de técnicas,

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a humanidade define-se através do trabalho, imperativo colocado a todas as gerações


através da história e que adquire feições específicas ao longo desta, caracterizando-nos
desta forma. Assim, na Antiguidade Clássica, o trabalho é desvalorizado, visto como um
empecilho ao desenvolvimento do intelecto, que só é possível no ócio. Já no medievo, o
trabalho é tido como um empecilho à verdadeira realização humana, que é espiritual e
se dá por uma relação com Deus. Com a modernidade, assistimos à valorização da ideia
de trabalho, que passa a ser visto como caminho da realização humana, pelo menos até
ser alienado, no capitalismo (POMMER, 2012).

Somente com o Homo faber, produzindo os meios de sua subsistência, é que
adquirimos nossa especificidade face aos outros animais. De fato, de acordo com
Marx (MARX, 1982 apud POMMER, 2012), quando produzimos nosso meio de vida, e
consequentemente nossa vida material, é que nos tornamos humanos, pois o ser humano
se forja através dos meios pelos quais este produz aquilo que necessita, enquanto parte
de um grupo social. Assim, a existência individual do Homo faber, enquanto ser cultural
e social que é, é devedora de sua ação produtiva.

Desta forma, Pommer (2012, p. 182) chama a atenção para o fato do emblema
do homem moderno ser sua condição de “(...) tirar da natureza com as mãos e com o
cérebro, isto é, com a força física e com a inteligência, as condições reais para a vida (...)”.

FIGURA 8 - TEMPOS MODERNOS, O TRIUNFO DO TRABALHO

FONTE: Disponível em: <http://www.angelfire.com/sk/holgonsi/chaplin.jpg>. Acesso em: 25 abr. 2016.

2 A PERGUNTA PELO HOMEM E SUAS RESPOSTAS

É fato que o ser humano indaga-se a respeito de si mesmo desde os primórdios


de nossa existência, entretanto, estes questionamentos só adquirem um caráter científico
a partir de meados do século XIX, com a constituição das chamadas “Ciências Sociais”,
como a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia, entre outras.

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10 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
Chamamos a atenção aqui, prezado aluno, para uma importante característica dos
questionamentos que nos colocamos a respeito de nós mesmos: esses são condicionados
pela sociedade e cultura à qual pertencemos. Assim, as perguntas que nos colocamos
acerca de nossa condição humana variam espaço e temporalmente, sendo devedoras da
cultura onde estamos inseridos e da sociedade à qual pertencemos. Da mesma forma,
as respostas que damos aos nossos questionamentos variam de acordo com a sociedade
e tempo histórico.

Na modernidade, as indagações que fazemos sobre nós relacionam-se com a


visão típica desta época histórica, sendo devedoras da razão e da empiria, da ideia
de indivíduo livre, reflexivo, autônomo e autocontrolado, próprias deste tempo. As
ciências sociais, desta maneira, mostram-se como resultante do crescente processo de
racionalização e positivação do mundo (LEITE DA LUZ; BOHMANN, 2013).

Outro fato marcante das reflexões que se dão a partir da modernidade está no
encontro do Ocidente com outras civilizações, que fomenta as especulações acerca da
natureza humana e de sua universalidade ou não.

Assim, a abordagem científica do ser humano, seja na Antropologia, na Sociologia


ou na Psicologia, só se constitui enquanto tal a partir do século XIX, quando está
consolidado o processo de estabelecimento do capitalismo enquanto modo de produção
da humanidade.

Somente no século XIX é que se mostrou possível o estabelecimento de uma


investigação propriamente científica do ser humano, a partir da influência no pensamento
ocidental do racionalismo, do empirismo e do positivismo na Ciência.

O ser humano passa então a ser investigado quanto às suas “(...) ações, emoções,
afetos, posturas morais, formas de sociabilidade, formas jurídicas e políticas, formas
estéticas, razões ou racionalidades” (POMMER, 2012, p. 98). Cabe à Antropologia,
à Sociologia e à Psicologia, a partir daí, o estabelecimento dos padrões culturais e
comportamentais típicos da humanidade, como caracterizados por estas disciplinas,
e que servem na orientação, quando da formulação de leis, projetos e programas de
governo, por parte destas, muitas vezes objetivando o controle social. Todas estas ciências
estão, em seus questionamentos e respostas propostas, desta forma, indelevelmente
marcadas pela “(...) ideia de progresso, de liberdade e de autoafirmação humanos”
(POMMER, 2012, p. 100).

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 11

FIGURA 9 - CENA DA SOCIEDADE BRASILEIRA NO SÉCULO XIX

FONTE: Disponível em: <http://www.historiaviva.com.br/noticias/img/paisagens_do_brasil_do_


seculo_xix_1__2012-10-30164115.jpg>. Acesso em: 25 abr. 2016.

O SER HUMANO: SUAS MANIFESTAÇÕES MAIS SIGNIFICATIVAS

1 INTRODUÇÃO

Apesar de termos visto que o ser humano se define e se constitui enquanto tal de
acordo com a época histórica e a cultura da qual faz parte, determinadas características
vêm sendo consideradas como mais significativas e mais importantes em marcar a
especificidade do humano face aos outros animais.

Ainda que possa variar nosso entendimento acerca destes de acordo com a época
histórica e a cultura estudada, certos atributos humanos perpassam nossa história como
sendo importantes para nós, para nos diferenciarmos dos outros seres, de acordo com
nossa visão de nós mesmos.

Assim, escolhemos nos contrastar com os outros seres da natureza a partir de


certas características que nos são gratas e nos parecem exclusivas.

Dentre estas, destacaremos aqui a corporalidade, a racionalidade, a volição, a


aspiração à liberdade, o amor, nossas relações com a natureza, nossa capacidade técnica, a
consciência de nossa finitude, nossa religiosidade e nossas concepções espaçotemporais.
São estas que trataremos aqui. Bons estudos!

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12 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
FIGURA 10 - A ESPECIFICIDADE DO SER HUMANO FACE AOS OUTROS ANIMAIS

FONTE: Disponível em: <http://livrespensadores.net/wp-content/uploads/2012/05/homem-e-macaco.


jpg>. Acesso em: 25 abr. 2016.

2 O SER HUMANO EM SUA DIMENSÃO CORPORAL E RACIONAL, SUA


VOLIÇÃO E ASPIRAÇÃO À LIBERDADE

Um dos aspectos de nossa experiência, a corporalidade é aquele que nos traz, mais
do que todos os outros, a noção de individualidade, de estar separado dos demais e de
ser único. Se a pressão evolutiva liberou as nossas mãos para o trabalho, esse acabou
por produzir nosso próprio corpo (POMMER, 2012).

Uma das maneiras de compreender a dimensão corpórea do ser humano é vê-la


como fazendo parte da expressão do ser, do existir. Assim, o corpo comporta tanto seu
aspecto de substância material, ou seja, sua totalidade física, quanto de organismo, isto é,
totalidade biológica. Mas (e isso é o que nos interessa aqui) este compreende também a
noção de corpo enquanto individualidade, sendo este uma totalidade intencional. Desta
forma, enquanto totalidade intencional, o corpo pode ser pensado como Eu corporal
(LIMA VAZ, 2011, apud POMMER, 2012).

Podemos notar, como Pommer (2012) chama a atenção, que o corpo próprio de
cada indivíduo, aquele que “é enquanto sou”, é um dado da experiência que nos informa
que, enquanto penso, falo, desejo, durmo, como, trabalho ou executo qualquer outra
atividade, é o corpo quem o faz. O corpo, em sua unidade, que possui as faculdades,
capacidades e competências que apresentamos, inclusive as emoções, a razão e as
sensações, tudo isso sendo ordenado pela mente, que nada mais é que uma estrutura
especializada deste mesmo corpo.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 13

FIGURA 11 - O CORPO HUMANO

FONTE: Disponível em: <http://www.fatosdesconhecidos.com.br/wp-content/uploads/2014/07/


sistemas-corpo-humano-atividades-espa%C3%A7o-educar.jpg>. Acesso em: 26 abr. 2016.

Ora, isso nos remete à razão, esta capacidade, expressa no real através de nosso
corpo, de escolher, decidir, classificar e separar, emitir juízos e opiniões e também acolhê-
los. É pela razão que nós apresentamos a capacidade, mediada pelo nosso aparelho
sensório, de proteger nossa integridade física, fazer as escolhas que nos são favoráveis,
prever os acontecimentos que podem nos afetar e criar tudo aquilo de que necessitamos
para viver e para tentar explicar a nossa existência para nós mesmos (POMMER, 2012).

Como nos informa Bornheim (1996, apud POMMER, 2012, p. 210): “a razão servia,
assim, para o homem prover-se, defender-se e, em última instância, para inventar a sua
própria criatividade”.

Nota-se, desta forma, que entre nós a evolução biológica acaba por forjar um
corpo ereto que tem as mãos liberadas para o trabalho e que, com a capacidade de
manipular o mundo e transformá-lo com nossa atividade produtiva, desenvolvemos
igualmente a possibilidade de refletir sobre este e sobre nosso papel no mesmo. Assim,
foi pela atividade que nos veio a faculdade racional e sua vocação primeira está em
possibilitar ao ser humano se ocupar de sua existência cotidiana (BORNHEIM, 1996,
apud POMMER, 2012).

Falávamos anteriormente, entretanto, de corpo enquanto totalidade intencional, ora,


esta nada mais é do que o corpo enquanto totalidade volitiva. Nós, seres humanos, agimos
a partir de nossa intenção, e essa não é devedora somente da razão, mas igualmente dos
nossos desejos, embora não coincidam com estes totalmente. Desta maneira, podemos
ver que nossa volição, nossa vontade, nada mais é do que expressão do movimento do
corpo na direção de um objetivo, indo este ao encontro de um desejo (POMMER, 2012).

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14 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
Sabemos que o desejo de liberdade costuma ser elencado como uma das
características humanas, todavia, o conceito de liberdade, a concepção do que é ser livre,
varia de acordo com a época histórica e sociedade onde foi formulado. Na antiguidade
clássica, com a crença na força do destino, a liberdade individual era pensada como
submetida aos desígnios divinos. Com o cristianismo, a ideia de destino é mediada pela
de livre-arbítrio, que colocaria em nossas mãos a escolha entre o bem e o mal. Com a
modernidade, fortalece-se a ideia de liberdade individual, com a concepção, tanto das
garantias dos direitos, quanto a de livre iniciativa econômica e, por fim, o conceito de
liberdade como ligado ao término das desigualdades sociais (POMMER, 2012).

Assim, a liberdade, embora se apresente como uma aspiração humana universal,


tem, na verdade, características que são relativas às sociedades que as produziram,
apresentando uma história própria no Ocidente.

FIGURA 12 - LIBERDADE: ASPIRAÇÃO HUMANA

FONTE: Disponível em: <https://encrypted-tbn1.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRgtrEASK-VZ1bf2


f6HX1CD149sYZtFb9ROyudSxUf8ZT-4Ufiv>. Acesso em: 26 abr. 2016.

3 O SER HUMANO E A QUESTÃO DO AMOR, A RELAÇÃO HOMEM/NATUREZA,


A TÉCNICA, A CONSCIÊNCIA DA FINITUDE E A QUESTÃO DA MORTE, O
TEMPO E A RELIGIOSIDADE

Como Pommer(2012) chama a atenção, o amor, embora possa expressar-


se fisicamente, não existe como um ser absoluto, sendo antes relativo às pessoas.
Considerado assim, o amor é dado pela nossa condição de humanidade.

Desta forma, tanto nossa capacidade, ou não, de amar, quanto o tipo e a


expressão do amor que apresentamos, estão relacionados com a sociedade, cultura a
que pertencemos e às condições biopsíquicas que possuímos.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 15

Assim, a capacidade de amar é imanente à própria condição humana, mas


encontra estas diferentes elaborações e concepções, bem como expressões, variáveis
historicamente e dependentes dos meios socioculturais onde se manifestam.

FIGURA 13 - O BEIJO ENTRE OS INUIT

FONTE: Disponível em: <https://encrypted-tbn1.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQmtfJdxqj0iUJW0


ppuvo2cIMFr1X63UVsq8FFfKKMsy-PFj0HRmg>. Acesso em: 26 abr. 2016.

Embora tenhamos a tendência a querermos nos distinguir dos animais, a realidade


é que nós, seres humanos, somos parte da natureza. Só podemos nos pensar enquanto
integrantes desta, pois quando falamos de “natureza”, estamos na verdade nos referindo
a uma paisagem que já sofreu a influência humana, que foi modificada por nossa ação
na mesma (POMMER, 2012).

Quando definimos natureza, já estamos nos colocando nesta, a natureza é sempre


pensada em relação a nós. Modificamos o meio natural por nossa ação e, assim, também
mudamos nossa relação com essa.

Ao longo da história, nossa relação com a natureza foi sempre mediada pelo
aparato técnico que possuímos. Nossa relação com a técnica e a tecnologia nos constitui,
embora esta possa também levar-nos a nos negar. Isso porque, através das invenções
técnicas, nós produzimos as condições materiais de nossa existência, entretanto, essas
podem servir à nossa alienação e controle social (POMMER, 2012).

Não existe sociedade humana que não apresente tecnologia, esta deve ser pensada
como tudo o que o engenho humano produz tendo em vista a transformação da natureza
para a produção dos bens que necessitamos. Nossa relação com a técnica e a tecnologia
é fundamental para nos constituirmos enquanto humanos, sendo a mesma distintiva
de nossa espécie, ainda que possa apresentar uma enorme variabilidade, conforme o
tempo histórico e as condições socioculturais onde estão presentes.

Outro traço que desde a Antiguidade Clássica vem sendo pensado como

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16 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
tipicamente humano é nossa consciência de finitude. Sabermos que nossa existência
individual terá um fim é um dado estrutural da vida humana, que, como tal, precede
nossa experiência enquanto pessoa no mundo. Desta maneira, a morte é aquela realidade
inescapável que a todos atinge e diante da qual todos refletimos. Talvez seja esta a
origem de nossas especulações filosóficas e religiosas: diante da morte nos indagamos
acerca do que está além, a mesma é o primeiro mistério com o qual nos defrontamos e
também muito do que nos move na busca do conhecimento (POMMER, 2012).

Uma das questões que a morte nos coloca é aquela referente ao tempo. Podemos
ter consciência de que, para além de nossa existência individual, o mundo tem uma
existência temporal. De fato, são as mudanças que observamos no real que nos levaram
a conceber a ideia de tempo, enquanto seres humanos nós só existimos historicamente,
nada do que é humano se dá fora do tempo (POMMER, 2012).

Assim, o tempo marca a humanidade, mas este é meramente convencional,


sua construção é cultural, dependente, portanto, da maneira pela qual agimos no
real, daquilo, dos fenômenos e fatos observáveis, que selecionamos para marcar a
temporalidade e nossa trajetória no mundo.

FIGURA 14 - O TEMPO: CONSTRUÇÃO HUMANA

FONTE: Disponível em: <http://noticias.universia.com.br/br/images/imagenes%20especiales/a/ap/ape/


apersistenciadamemoria.jpg>. Acesso em: 26 abr. 2016.

Outro problema colocado pela morte está nas diferentes manifestações de


religiosidade que nossa espécie vem apresentando ao longo de sua história.

De fato, não conhecemos sociedade humana que não apresenta uma ou mais
religiões. Parece que a religiosidade é uma expressão humana universal, sendo que
muitos associam seu início às especulações de nosso pensamento a partir da consciência
de nossa finitude e da realidade inexorável da morte. Se muitas vezes a religião serviu
para aplacar nossa angústia diante da morte, em casos ainda mais numerosos esteve
esta a serviço da manutenção da ordem social e do status quo vigentes.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 17

Novamente, a universalidade de um traço cultural não deve nos cegar para


o fato das religiões apresentarem uma imensa variedade de formas, expressões e
conteúdos, que são relativos às culturas onde estão manifestados. Ainda que seja assim,
os antropólogos identificam uma constante em todas as religiões: a divisão dicotômica
entre sagrado e profano.

Chauí (2009, apud POMMER, 2012, p. 235) destaca que: “O sagrado é a experiência
simbólica da diferença entre os seres, da superioridade de alguns sobre os outros –
superioridade e poder sentidos como espantosos, misteriosos, desejados e temidos”.

O sagrado, desta forma, pensado como o extraordinário e habitado por seres


poderosos, opõe-se ao profano, o espaço das atividades ordinárias e cotidianas dos
seres humanos. A religião, assim (POMMER, 2013), apresenta-se como consequência da
ideia de sagrado, estabelecendo a ligação deste com o profano, com a esfera humana,
seja para favorecer-nos, seja para eximir-nos de nossas culpas.

Prezado aluno, nesta etapa vimos algumas das características do ser humano.
Na próxima unidade nos familiarizaremos com aquela ciência que se ocupa de estudar
este, a saber: a Antropologia, bons estudos!

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18 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
REFERÊNCIAS

ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert. História da Antropologia.


Petrópolis: Vozes, 2012.

ESPINA BARRIO, Angel-B. Manual de Antropologia Cultural. Recife: Editora


Massangana, 2005.

GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: ciência do Homem.,filosofia da cultura. São


Paulo: Contexto, 2013.

HOEBEL, E. Adamson; FROST, Everest L. Antropologia Cultural e Social. São Paulo:


Cultrix, 2006.

LUZ, Pedro Fernandes Leite da; BOHMANN, Junqueira Katja. Sociologia crítica.
Indaial: Uniasselvi, 2013.

LARAIA, R. B. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zelia Maria Neves. Antropologia: uma


introdução. São Paulo: Atlas, 2001.

POMMER, Arildo. Antropologia filosófica e sociológica. Indaial: Uniasselvi, 2012.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O
DEBATE MULTICULTURAL

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Curso sobre Antropologia Geral e o debate multicultural


Centro Universitário Leonardo da Vinci

Autora
Luciane da Luz
Pedro Fernandes da Luz

Organização
Fábio Roberto Tavares

Reitor da UNIASSELVI
Prof. Hermínio Kloch

Pró-Reitoria de Ensino de Graduação a Distância


Prof.ª Francieli Stano Torres

Pró-Reitor Operacional de Ensino de Graduação a Distância


Prof. Hermínio Kloch

Diagramação e Capa
Letícia Vitorino Jorge

Revisão
Fabiana Lange Brandes
José Roberto Rodrigues
A CIÊNCIA ANTROPOLÓGICA

APRESENTAÇÃO

Prezado aluno, convidamos você a se familiarizar com a Ciência Antropológica,


travar conhecimento com o contexto histórico no qual surgiu esta disciplina e saber
quais as características específicas da mesma em relação às outras Ciências Sociais.

Num primeiro momento, nós veremos o que é Antropologia, seu objeto e método.

Sendo parte da tradição do saber científico, embora tenha se estabelecido como


ciência somente no final do século XIX, a Antropologia, ramo tardio das Ciências Sociais,
nos servirá de instrumento para a compreensão dos fenômenos humanos, notadamente
aqueles de caráter socioculturais.

Para nos valermos da Antropologia como ferramenta em nossa prática profissional


e crescimento pessoal, precisamos saber no que ela consiste exatamente, quais as
pretensões e alcance desta disciplina e como a mesma pode nos servir no entendimento
do fenômeno conhecido como multiculturalismo.

Analogamente a toda disciplina científica, a Antropologia apresenta um objeto


de investigação próprio e uma abordagem metodológica específica. Enquanto saber,
a Antropologia se constrói por etapas e apresenta diversos campos de investigação,
como veremos aqui.

A seguir, revelaremos a você, prezado leitor, tanto as definições mais aceitas desta
disciplina, explicitando do que a mesma se ocupa (qual o objeto de sua investigação),
quanto as maneiras pelas quais a Antropologia se aproxima da realidade que ela pretende
elucidar, seu método próprio e quais são seus campos de pesquisa.
2 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
FIGURA 1 - A EVOLUÇÃO CULTURAL DO SER HUMANO

FONTE: Disponível em: <http://teianeuronial.com/a-evolucao-do-homem-branco/>. Acesso em: 5 abr.


2016.

1 A ANTROPOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA

Embora a Antropologia possa ser vista, como de fato foi por alguns autores, em
outras dimensões que não a científica (por exemplo, enquanto Filosofia ou Arte), aqui
nós focaremos em analisar este saber enquanto ramo da Ciência.

Sob este aspecto, seguindo o exemplo de Marconi e Presotto (2001), levamos em


conta que a Antropologia, inserida no campo científico, abarca três aspectos, em função
de sua abordagem característica (que procura dar conta do fenômeno humano como
um todo), a saber (LEITE DA LUZ et al., 2015, p. 8-9):

a) Enquanto Ciência Social, procurando conhecer o ser humano em sua di-


mensão de participante de grupos sociais organizados diversos, como uma
determinada sociedade, por exemplo.
b) Enquanto Ciência Humana, voltando-se para a totalidade da experiência
humana, como sua história, usos e costumes, linguagem e demais fenômenos
relacionados ao ser humano.
c) Enquanto Ciência Natural, a Antropologia investiga as características psi-
cossomáticas do ser humano e sua evolução no mundo natural.

Notamos, desta forma, que a Antropologia pretende abordar o ser humano de


maneira integral, lançando um olhar sobre seus aspectos físicos, socioculturais e ainda
filosóficos. Procura a Antropologia, através de suas pesquisas, capturar e transmitir o
modo de vida dos povos que estuda, em todos os aspectos possíveis.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 3

Assim procedendo, a Antropologia objetiva travar conhecimento do ser humano


em sua totalidade, abarcando seu aspecto biológico (estudando a evolução de nossa
espécie) e cultural (investigando sua maneira de agir, sociabilidade e produção cultural).
Segundo Marconi e Presotto (2001), nenhuma outra disciplina científica procede com
uma investigação tão sistemática e unificada das manifestações e atividades humanas.

Sob o aspecto de Ciência da Humanidade e da Cultura, a Antropologia comporta


um imenso campo de investigação. Em termos espaciais, abrange esta todas as regiões
habitadas de nosso planeta, em termos temporais tem a mesma o alcance de por volta
de dois milhões de anos (quando apareceram os primeiros primatas que evoluíram
no ser humano moderno), procura a Antropologia igualmente dar conta de todas as
sociedades humanas que a história registrou (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

A Antropologia, desta maneira, dá uma grande contribuição para a compreensão,


em nível teórico, do que consiste o ser humano. Isto em vários sentidos e dimensões,
que (...) “dizem respeito à humanidade, em si e para si, a partir de si mesma, de seu
logos, sua razão autorreflexiva” (LEITE DA LUZ et al., 2015, p. 10).

A Antropologia procede, com isso, de maneira própria, com teorias e métodos


produzidos e utilizados neste campo da ciência, o que lhe legitima e confere uma
exclusividade diante do saber humano.

Destacando-se no campo científico pela investigação que leva adiante acerca


do ser humano e da cultura, a Antropologia congrega em si a dimensão teórica, mas
igualmente o aspecto prático. O saber antropológico, desta maneira, nos auxilia, tanto
a refletirmos sobre nós mesmos, quanto a levarmos adiante mudanças positivas em
nossa vivência planetária e a tratarmos das questões que nos dizem respeito, enquanto
humanidade, com mais eficácia.

Buscando atingir aquele conhecimento total (ou idealmente total) do ser humano,
os teóricos do saber antropológico procuram uma compreensão mais aguda da
humanidade, com a intenção de dar aplicações práticas ao conhecimento que produzem,
tendo em vista beneficiar efetivamente as diversas populações humanas com as quais
lidam.

Os antropólogos mostram-se conscientes e zelosos para que o saber por eles


produzido seja aplicado de maneira ética, segundo os princípios defendidos pela
Antropologia. Entre estes princípios estão o respeito aos diferentes valores que cada
cultura apresenta e à diversidade cultural.

Partindo deste ponto de vista, a ação do antropólogo e a aplicação de seu saber


devem conduzir-se pelo reconhecimento da autonomia dos diferentes grupos humanos

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4 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
e o direito dos mesmos à autodeterminação.

FIGURA 2 - A DIVERSIDADE CULTURAL DA HUMANIDADE

FONTE: Disponível em: <http://www.prof2000.pt/users/maceira/saber_estudar/geografia/conteudos/


culturas/imagens_tratadas/racas2.jpg>. Acesso em: 7 abr. 2016.

De uma maneira geral, poderíamos delimitar duas grandes áreas na Antropologia,


a saber: a Antropologia Cultural e a Antropologia Social.

De acordo com Espina-Barrio (2005, p. 19), Antropologia Cultural seria “... o


estudo e descrição dos comportamentos aprendidos que caracterizam os diferentes
grupos humanos”. Este autor acrescenta que o ofício daquele que se dedica a esta área
do saber consistiria em proceder à investigação dos feitos e obras de cunho material
e social produzidos por nós, seres humanos, ao longo de nossa caminhada enquanto
Homo sapiens sapiens, que serviram ao nosso relacionamento em sociedade e à nossa
apropriação e transformação da natureza de forma a assegurar nossa sobrevivência.

Segundo Marconi e Presotto (2001), a Antropologia Cultural destaca-se pelo


enfoque maior e mais abrangente que apresenta a mesma dentro do campo da ciência
antropológica. Assim, a Antropologia Cultural, na visão das autoras, abarcaria o estudo
do ser humano enquanto ser cultural, isto é, produtor de cultura.

Desta forma, o antropólogo cultural se ocuparia da pesquisa investigativa relativa


às diferentes culturas, por todo o período da existência humana no planeta e em todo
o espaço que nossa espécie logrou ocupar, investigando a origem e desenvolvimento
das diversas culturas, suas semelhanças e diferenças. O interesse primordial estaria
em travar conhecimento acerca do comportamento humano em seu aspecto cultural,
ou seja, as formas pelas quais nós guiamos nossas ações em função da cultura na qual
estamos inseridos.

Hoebel e Frost (2006, p. 7) igualmente chamam atenção para o aspecto investigativo


acerca das maneiras pelas quais o comportamento humano se manifesta, procedido
pela Antropologia Cultural, afirmando que a mesma: “... trata das características do
comportamento civilizado nas sociedades humanas passadas, presentes e futuras”.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 5

Fica claro, assim, que a Antropologia Cultural tem seu foco privilegiado na
investigação do desenvolvimento das sociedades humanas, ao longo de toda sua
história. A Antropologia Cultural pesquisa os comportamentos que apresentam os
diferentes grupos humanos, investigando, entre outros aspectos, os costumes, hábitos,
práticas e convenções de origens sociais e culturais; como surgiram e se desenvolveram
as diversas instituições que caracterizam as sociedades humanas, a saber: a família, a
religião e outras; e, igualmente, como evoluíram as técnicas que nós seres humanos
desenvolvemos com o fito de lidar com a natureza e prover nossas necessidades nesta.

A Antropologia Cultural encontra-se mais consolidada e avançada, dentro do


quadro histórico do desenvolvimento da disciplina antropológica, nos Estados Unidos
da América.

Já na tradição britânica da Antropologia, vemos o surgimento e o desenvolvimento


da Antropologia Social.

De acordo com Espina-Barrio (2005 p. 21), a Antropologia Social trataria daquela


problemática relativa à estrutura social, ou seja: das questões que dizem respeito às
relações estabelecidas pelos membros de um determinado grupo social entre si, e
com os de fora, bem como as diferentes instituições sociais, forjadas por nós, seres
humanos, como a família, o parentesco, os grupos de caráter político e semelhantes,
que determinam o conteúdo e a forma destas relações.

Já Marconi e Presotto (2001) destacam o fato de a Antropologia Social ter


seu enfoque privilegiado naqueles processos culturais e da estrutura social que se
manifestam nas instituições sociais e na sociedade como um todo.

De acordo com estas autoras, o trabalho do antropólogo social está centrado na


análise das diferenças e semelhanças passíveis de serem observadas entre os diversos
grupos humanos, no que diz respeito às formas pelas quais estes interiorizam, regulam
e normatizam as relações sociais estabelecidas pelos indivíduos uns com os outros,
enquanto pertencentes a uma dada sociedade.

Neste sentido, a Antropologia Social, a partir do entendimento das diversas


instituições como fazendo parte de um todo articulado, a sociedade, enfoca
preferencialmente os aspectos da vida social que dizem respeito à família e ao parentesco,
e também ao domínio do econômico, do político, do religioso e do jurídico.

Assim (MAIR, 1972, p. 14, apud MARCONI; PRESOTTO, 2001), seria da


competência do antropólogo social proceder com a observação das relações sociais
que se dão entre os membros de uma sociedade, considerada em sua totalidade. Ao
observar e estudar a sociedade dentro da perspectiva de seu conjunto, tendo por base
suas diferentes instituições, o praticante da Antropologia Social mostrar-se-ia capaz

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6 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
de chegar a caracterizar cientificamente a organização e estrutura de uma sociedade
qualquer.

De acordo com Hoebel e Frost (2006), destaca-se como a característica mais notável
da Antropologia Social o enfoque sincrônico desta e sua resistência à diacronia, ou
seja, a Antropologia Social não leva em conta a reconstituição histórica das instituições
que observa em uma dada sociedade, mas, antes, dá privilégio à comparação das
mesmas com outras observadas em sociedades diversas. Segundo estes autores, os
antropólogos sociais mostram-se especialistas nas relações sociais que se apresentam
manifestas na família e no parentesco, bem como nos diferentes grupos de idade, na
organização política e jurídica e nas atividades econômicas, ou seja, aquilo que os
mesmos denominam de estrutura social.

FIGURA 3 - FAMÍLIA YANOMAMI

FONTE: Disponível em: <http://estaticos02.elmundo.es/elmundo/imagenes/2009/11/04/1257358580_


extras_portadilla_0.jpg>. Acesso em: 7 abr. 2016.

Diferenciar a Antropologia Cultural da Antropologia Social não se mostra tão


fácil assim de fazer. Pode-se notar que em suas pesquisas uma privilegia a cultura e, a
outra, a sociedade. Isto, porém, nos traz um problema, pois as diferenças entre “social”
e “cultural”, como vemos em Marconi e Presotto (2001), não seriam tão marcantes
assim. Não seria tanto no conteúdo que se encontrariam essas diferenças, mas, antes,
nos enfoques teóricos e tendências na investigação, com a Antropologia Cultural se
vinculando à tradição norte-americana, ao passo que a Antropologia Social se vincularia
à tradição britânica da Antropologia.

De acordo com Espina-Barrio (2005), na Antropologia norte-americana vemos um


peso maior no conceito de cultura, já na Antropologia britânica destaca-se o conceito de
sociedade. Na prática, os antropólogos britânicos privilegiam as “vinculações concretas”,
ou seja, as relações sociais, enquanto que os antropólogos norte-americanos estão mais
preocupados com os valores dos povos que investigam.

O conhecimento antropológico é constituído por etapas que comportam as


dimensões da pesquisa e da reflexão teórica. O caminho a ser percorrido na construção

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 7

deste saber passa pela etnografia e pela etnologia. Mas no que consistem estas,
exatamente?

2 A ETNOLOGIA E A ETNOGRAFIA

Para saber o que é etnografia, busquemos a origem etimológica da palavra


para entendê-la melhor. Etnografia tem origem no grego έθνος, ethno - nação, povo
e γράφειν, graphein – escrever. Numa tradução literal, “etnografia” seria “escrever sobre
os povos” (HOEBEL; FROST, 2006, p. 8).

Desta forma, etnografia mostra-se como a maneira através da qual a Antropologia


coleta dados que utilizará em suas especulações, resultando a etnografia do encontro
entre a subjetividade do pesquisador e aquela dos membros das culturas que o mesmo
estuda. Assim, poderíamos dizer que a etnografia consiste em um “estudo descritivo
das sociedades humanas” (HOEBEL; FROST, 2006, p. 8-9).

Destaque-se aqui que as etnografias seminais não foram realizadas por


antropólogos. Muito antes da Antropologia se constituir enquanto ciência, já se
registravam descrições de outros povos feitas por pensadores de culturas diversas.

Em sua origem, até mesmo a Antropologia lidava com relatos feitos por
exploradores, missionários, funcionários administrativos, viajantes, comerciantes,
soldados e demais indivíduos que tiveram contato com povos distintos e descreveram
estes. É apenas no final do século XIX que os antropólogos passam a ir a campo e é então
que eles mesmos começam a fazer as descrições dos povos que investigam.

Atualmente, a maior parte das etnografias é feita por antropólogos treinados


nas diferentes técnicas antropológicas contemporâneas de coleta de dados e registro de
culturas distintas. Essas técnicas implicam necessariamente no convívio participativo e
empático em meio aos povos por eles pesquisados (HOEBEL; FROST, 2006).

Na Antropologia atual, uma das grandes “provas iniciáticas”, que fazem parte do
processo de se tornar antropólogo, consiste em realizar a etnografia da cultura sobre a
qual o antropólogo pretende refletir. No ideário da profissão, todo antropólogo deveria
começar sua carreira realizando a descrição etnográfica de algum povo, cultura, ou
grupo social, foco de suas pesquisas.

Apesar de ter um caráter prático, a etnografia não se mostra isenta da influência das
teorias que a Antropologia produz, isto porque toda etnografia é (LEITE DA LUZ et al.,
2015, p. 19): “(...) informada por certo referencial teórico que lhe dá uma estrutura e enfoque
próprio, muito embora as descrições etnográficas não se ocupem de problemas teóricos,
nem formulem hipóteses ou teses acerca dos fenômenos sociais e culturais que descrevem”.

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8 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
Nota-se, desta forma, que etnografia originalmente designaria o estudo e descrição
de um dado povo ou cultura, sendo, preferencialmente, abrangente e sistemática,
contemplando todos os aspectos, da religião à economia, dos povos sob sua investigação
(GOMES, 2013). Trata-se, portanto, de um documento que consiste “(...) na base empírica
da legitimação da Antropologia enquanto ciência” (LEITE DA LUZ et al., 2015, p. 11).

Sobre essa questão, Marconi e Presotto (2001, p. 27) citam Lévi-Strauss (1967),
o qual afirma que a etnografia:

consiste na observação e análise de grupos humanos considerados em sua


particularidade (frequentemente escolhidos, por razões teóricas e práticas, mas
que não se prendem de modo algum à natureza da pesquisa, entre aqueles que
mais diferem do nosso), e visando à reconstituição, tão fiel quanto possível, da
vida de cada um deles.

Desta forma, o etnógrafo apresenta-se como aquele especialista no conhecimento


“exaustivo” da cultura dos povos que pesquisa, procedendo com a observação, descrição,
reconstituição e análise de diversos povos nativos, coletando informações de maneira
abrangente sobre todos os elementos culturais passíveis de serem observados e descritos
por ele para o entendimento dos povos estudados (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

FIGURA 4 - CURT NIMUENDAJÚ, UM DOS MAIS IMPORTANTES ETNÓGRAFOS DE NOSSA


HISTÓRIA

FONTE: Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/pt/thumb/8/85/Nimuendaju.


jpg/200px-Nimuendaju.jpg>. Acesso em: 8 abr. 2016.

Vencida esta etapa do fazer antropológico, vem o exercício da etnologia, vejamos


no que consiste esta.

Podemos afirmar que a etnologia segue-se à etapa da etnografia na edificação


do conhecimento antropológico, sendo feita depois de procedido o levantamento das
informações e dados, realizado na etnografia.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 9

Desta maneira, a etnologia apresenta-se como a reflexão, ou estudo, que tem por
base os fatos e acontecimentos documentados no registro de uma cultura, dentro da
perspectiva da apreciação analítica destes e de sua comparação com dados análogos
de outros povos.

A etnologia caracteriza-se igualmente por se valer de um método próprio,


chamado por Espina-Barrio (2005 p. 37) de “método comparativo transcultural”: a partir
dos dados empíricos coletados durante a etnografia, procede-se com a comparação
das informações pertinentes a cada povo, com a intenção de se inferir algo acerca da
humanidade.

Consiste, pois, o objetivo da etnologia em, partindo-se de estudos aprofundados


de caráter empírico de uma dada cultura, vir-se a revelar algo acerca da humanidade
como um todo, comparando-se os diferentes povos, para então atingir-se o campo da
teoria acerca do ser humano.

Espina-Barrio (2007, p. 21) destaca o fato de a etnologia superar a simples descrição


das diversas culturas, realizada pela etnografia, com a intenção de, pela comparação
entre as diferentes etnografias, “analisar as constantes variáveis que se dão entre as
sociedades humanas, e estabelecer generalizações e reconstruções da história cultural”.

Assim, a etnologia consiste no estudo das diferentes populações humanas, como


a palavra, de origem grega, revela: éthnos, (em grego έθνος), povo; logos (no original
λόγος), estudo. Entretanto, como afirmamos anteriormente em relação à etnografia,
foi somente depois do Iluminismo que se tornou possível um estudo de caráter
propriamente científico dos seres humanos, com base na comparação entre os povos.

Ainda que na Antiguidade Clássica determinados autores realizassem a


comparação dos costumes das diferentes populações humanas de sua época, somente
quando surge a percepção de unidade da espécie humana é que pôde se constituir a
ciência antropológica.

Notemos que a primeira vez que se empregou modernamente o termo etnologia


foi no final do século XVIII, o chamado século das luzes. Foi Adam Franz Kollár (1718-
1783), jurista e etnólogo na corte do Império Austro-Húngaro, o pioneiro no emprego do
termo. Segundo este autor, etnologia se definiria como: "a ciência das nações e povos, ou
o estudo dos eruditos no qual investigam nas origens, línguas, costumes e instituições
das várias nações, e finalmente, na pátria e antigas sedes para poder julgar melhor as
nações e povos de seus próprios tempos” (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/
Etnologia>. Acesso em: 14 abr. 2016).

Esta definição deixa claros os fundamentos científicos da prática etnológica,

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10 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
que tem por base dados empíricos, a comparação destes e a concepção da unidade da
espécie humana.

FIGURA 5 - ADAM FRANTIŠEK KOLLÁR DE KERESZTÉN, PIONEIRO NO EMPREGO DO TERMO


ETNOLOGIA

FONTE: Disponível em: <http://www.oskole.sk/images/cinovy_slachtic.jpg>. Acesso em: 8 abr. 2016.

Considerada enquanto etapa da construção da Antropologia, a etnologia está


inserida no campo da ciência da cultura.

Consiste a mesma em, tendo por fundamento os dados coletados e registrados em


uma etnografia, proceder com a comparação das informações pertinentes às diferentes
culturas e analisá-los e interpretá-los, sob a perspectiva das semelhanças e diferenças
observadas, tentando-se a compreensão das inter-relações que apresentamos e de nossas
relações com o meio ambiente. É também objetivo do etnólogo observar e analisar o
ser humano, tanto no nível do indivíduo, quanto este enquanto membro de uma dada
sociedade ou cultura, concomitantemente à busca pela revelação de como operam e se
modificam estas últimas (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

De acordo com Gomes (2013, p. 63), a etnologia se revestiria de um estatuto


científico superior à etnografia, sendo um “estudo comparativo de etnografias”, estudo
o qual facilita um aprofundamento da reflexão dos traços e temas comuns às populações
comparadas, fundamentando assim a produção de teorias mais amplas, estas de cunho
antropológico. Gomes revela assim uma hierarquia entre os termos etnografia-etnologia-
antropologia, que ele diz ter ampla aceitação entre os antropólogos.

A etnologia, análise científica dos povos, suas culturas e suas trajetórias, enquanto
tal, ao longo da história, representa uma superação da produção etnográfica, procurando,
dentro da perspectiva científica, revelar e compreender as relações que os diversos
povos estabelecem com o ambiente, natural e social, onde se dão suas vivências, e ainda

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 11

a relação dos seres humanos com as culturas a que pertencem e das culturas entre si e
suas diferenças (HOEBEL; FROST, 2006).

Prezado aluno, esperamos que por agora você já tenha uma boa ideia do que seja
a Antropologia e das etapas que constituem o fazer antropológico. Chegou a hora de
lançarmos um olhar sobre o contexto histórico no qual a disciplina foi forjada.

3 CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DA ANTROPOLOGIA

Dentro da perspectiva das Ciências Sociais, a Antropologia apresenta-se como


um ramo do conhecimento que deve sua gênese à constituição da modernidade.
Conceituaríamos a modernidade como o quadro que se configura no Ocidente a partir
do conjunto de mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais que se deram na
Europa a partir do século XVII (LEITE DA LUZ; BOHMANN, 2013).

Foram estas transformações na sociedade que resultaram nas características que


hoje se observa nesta, a saber: “(...) a confiança na razão e na experiência, a instituição
da economia de mercado e a ideia de indivíduo livre, autônomo, autocontrolado e
reflexivo (...)” (LEITE DA LUZ; BOHMANN, 2013, p. 3).

Como dissemos anteriormente neste trabalho, devemos entender a Antropologia


como ligada ao movimento filosófico do século XVIII conhecido como Iluminismo.
Este advogava um papel central para a ciência e para a racionalidade na construção do
conhecimento, favorecendo uma análise do ser humano sob este ponto de vista.

FIGURA 6 - OS FILÓSOFOS ILUMINISTAS

FONTE: Disponível em: <https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQ-zMGr0LcnWm


Kdn5rexkA6MZ42SDUJc0u_5yS4Zr9brY2adHdc>. Acesso em: 13 abr. 2016.

Entretanto, a Antropologia, considerada um ramo tardio da Ciência, só veio a se


fazer presente e a ocupar os primeiros espaços na academia no século XIX.

3.1 O SURGIMENTO DA ANTROPOLOGIA

De acordo com Eriksen e Nielsen (2012), a Antropologia surge a partir de


mudanças amplas nas sociedades e na cultura europeia que levaram ao estabelecimento
do capitalismo enquanto modo de produção, ao individualismo como ideologia

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12 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
dominante, à ciência secular, ao nacionalismo e à reflexividade cultural.

Liga-se o aparecimento da ciência antropológica igualmente à expansão europeia,


que levou estas sociedades a travarem conhecimento de outros povos, o que teria, de
acordo com Eriksen e Nielsen (2012), levado os intelectuais da Europa a perceberem a
diversidade da vida social e a possiblidade de mudanças sociais.

Com o final do século XVIII e o início do século XIX, vemos uma série de
transformações técnicas no modo de produção capitalista que levaram à Revolução
Industrial. Esta teve como consequência o deslocamento de vastos contingentes
populacionais do campo para a cidade e o estabelecimento do trabalho fabril, com longas
e penosas jornadas de trabalho, muitas vezes em condições sub-humanas. Paralelamente,
vemos o desenvolvimento da resistência e reflexão contra o sistema capitalista, que
levou ao florescimento do pensamento social (ERIKSEN; NIELSEN, 2012).

De acordo com Eriksen e Nielsen (2012), a expansão do modo de produção


capitalista a partir da industrialização implicou ainda na expansão cultural da Europa
e no estabelecimento de novas relações entre os administradores coloniais e os povos
nativos. Estas novas relações de dominação acabaram por gerar teorias que procuravam
ou justificar ou condenar o sistema colonial.

Para Eriksen e Nielsen (2012, p. 28): “Não surpreende que a Antropologia


tenha surgido como disciplina neste período. O antropólogo é um pesquisador global
prototípico que depende de dados detalhados sobre pessoas em todo o mundo. Agora
que esses dados se tornavam disponíveis, a Antropologia podia estabelecer-se como
disciplina acadêmica”.

Pudemos ver como a constituição da Antropologia, enquanto disciplina científica,


liga-se ao processo histórico europeu e vai ao encontro das necessidades das sociedades
europeias de se relacionarem com outros povos a partir da perspectiva colocada pela
expansão do sistema capitalista e a imposição de sua lógica.

Entretanto, se num primeiro momento a Antropologia serviu ao projeto


colonial, não só justificando ideologicamente este, mas também instrumentalizando
os administradores coloniais com um saber que favoreceria a dominação dos povos
colonizados, logo esta disciplina faz a crítica deste sistema e se volta contra o racismo.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 13

FIGURA 7 - ADMINISTRADORES COLONIAIS ALEMÃES E NATIVOS NA ÁFRICA

FONTE: Disponível em: <http://www.germanyonstamps.iblogger.org/Colonies/Port/Historia_OAfrica.


html>. Acesso em: 13 abr. 2016.

Agora, chegou a hora de nos determos na análise da Antropologia em relação


às outras Ciências Sociais.

4 A ESPECIFICIDADE DA ANTROPOLOGIA NO CAMPO DAS CIÊNCIAS


SOCIAIS

De fato e de direito, a Antropologia, apresentando um objeto e método próprio,


pode ser considerada uma disciplina científica autônoma, mas, ainda assim, não
prescinde a mesma de relacionar-se e trocar experiências e conhecimentos com outras
ciências afins, notadamente as ditas Ciências Sociais, entre estas a Sociologia, a Psicologia,
a História, a Geografia, a Economia e a Ciência Política. Vejamos como isso se dá.

4.1 A ANTROPOLOGIA DIANTE DAS OUTRAS CIÊNCIAS

Marconi e Presotto (2001) destacam a Sociologia como aquela disciplina com a


qual a Antropologia mantém relações mais estreitas, tendo em vista ambas apresentarem
o mesmo interesse teórico e prático. É muito comum as duas disciplinas compartilharem
dados de pesquisas, dando então, cada uma delas, seu tratamento teórico específico
aos mesmos.

Antropologia e Sociologia têm de fato prestado uma grande ajuda uma à outra
na elucidação de questões de caráter gerais relativas ao ser humano enquanto ser social.
De fato, como Marconi e Presotto (2001) chamam a atenção, as duas disciplinas têm se
emprestado mutuamente conceitos próprios, a primeira cedendo à segunda o conceito
de cultura; e a segunda o conceito de sociedade àquela outra, ambos os conceitos sendo
instrumentais tanto à Antropologia, quanto à Sociologia.

Classicamente, tem-se atribuído à Antropologia o estudo das sociedades simples


e à Sociologia o estudo das sociedades complexas. Entretanto, contemporaneamente

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14 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
nós vemos antropólogos pesquisando subculturas urbanas, como os punks, os emos
etc., ou setores marginalizados de grandes cidades, como traficantes e prostitutas, ao
mesmo tempo em que vemos sociólogos realizando estudos de cultura popular, como,
por exemplo, a análise de festas de caráter sagrado e profano.

Muito embora os temas de pesquisas possam muitas vezes se aproximar,


Antropologia e Sociologia ainda mantêm enfoques teórico-metodológicos distintos,
destacando-se o emprego do trabalho de campo e da observação participante, por parte
da Antropologia.

FIGURA 8 - GRUPO DE PUNKS LONDRINOS

FONTE: Disponível em: <http://www.fashionbubbles.com/files/2009/08/47london_punks2.jpg>. Acesso


em: 14 abr. 2016.

Com relação à Psicologia, Marconi e Presotto (2001) colocam como fator principal
do estreito relacionamento que esta mantém com a Antropologia, o fato de as duas
disciplinas terem interesse no comportamento humano, a primeira centrando no
indivíduo, enquanto que a Antropologia se ocupa do comportamento grupal.

Desta maneira, os antropólogos seriam devedores dos dados levantados pelos


psicólogos, que os auxiliariam na compreensão das complexidades apresentadas pelas
culturas e comportamentos do ser humano em sociedade, servindo ainda a interpretação
dos sistemas culturais e dos tipos de personalidade que os mesmos forjam (MARCONI;
PRESOTTO, 2001).

As questões colocadas pelas contribuições da Psicologia à Antropologia


relacionam-se com a problemática dos motivadores da ação humana, qual o peso e papel
da cultura no processo de adaptação do ser humano e no forjamento dos diferentes
tipos de personalidade que as culturas apresentam.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 15

Embora a Antropologia trabalhe com conceitos e dados produzidos no campo da


Psicologia, a mesma tem um enfoque próprio, destacando-se a distinção entre as duas
pela pouca relevância que tem o indivíduo para a Antropologia, que se preocupa antes
com a cultura no qual este se insere, tentando aprendê-la como um todo.

Quanto à Economia e à Política, Marconi e Presotto (2001) nos informam que, ao


lançar seu olhar sobre a totalidade da cultura, a Antropologia interessa-se de maneira
notável pelas instituições políticas e econômicas das sociedades que estuda. Isto
devido ao fato de os grupos humanos em sua totalidade, independentemente de sua
complexidade, apresentarem uma organização econômica sistematizada, baseada tanto
nos recursos disponíveis, quanto no trabalho empregado na transformação destes em
bens e serviços.

A Antropologia, ao pesquisar e registrar os diferentes sistemas econômicos,


seria capaz de ir além da Economia, que, através de suas teorias, procura dar conta
dos diversos procedimentos propriamente econômicos de nossa espécie, tendo uma
perspectiva mais ampla do setor econômico da cultura.

Uma vez que não existe sociedade humana que não se organize politicamente,
isto por meio de diferentes instituições responsáveis pela distribuição do poder,
manutenção da ordem e da integridade do grupo, faz parte das preocupações centrais
da disciplina antropológica registrar e analisar como isto se dá nas diferentes sociedades.
Uma das grandes contribuições da Antropologia neste sentido foi demonstrar a relação
intricada que há entre os diversos sistemas de parentesco, os ritos e a noção de sagrado
nas sociedades simples, e suas respectivas formas de organização política (MARCONI;
PRESOTTO, 2001).

FIGURA 9 - RITO DE NOMINAÇÃO ENTRE OS KAYAPÓ

FONTE: Disponível em: <http://img.socioambiental.org/d/213642-1/kayapo_11.jpg>. Acesso em: 14 abr. 2016.

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16 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
Vimos que a Antropologia, embora se insira no campo das Ciências Sociais e
dialogue fortemente com estas, apresenta uma especificidade que a distingue enquanto
ramo da ciência. De acordo com Leite da Luz et al. (2015, p. 59): “De fato, a Antropologia
adquire sua especificidade face às outras ciências que tratam do ser humano, não só pelo
recorte total que dá a este, mas principalmente por se valer da investigação empírica
em seus estudos”.

Lembrando que um conhecimento, para constituir-se enquanto disciplina


científica, deve apresentar um objeto e um método próprio. No caso da Antropologia,
seriam estes a cultura e a observação participante.

Mais adiante veremos como a Antropologia se apropria do conceito de cultura


e qual o papel deste na análise antropológica. Aqui e agora discorreremos um pouco
acerca do método próprio da Antropologia, que seria a “observação participante”.

Quanto à essa, em Leite da Luz et al. (2015, p. 63) vemos as seguintes definições:

Para Gomes (2013, p. 56), a observação participante seria o método mais as-
sociado à Antropologia e distinção desta entre as ciências humanas. Para este
autor, malgrado o método de observação participante ser difícil de aplicar, este
seria de grande importância para nossa disciplina e representaria a própria
diferença entre ser ou não antropólogo. Segundo Gomes, observação partici-
pante consiste em “o pesquisador buscar compreender a cultura pela vivência
concreta nela, ou seja, morar com os ‘nativos’, participar de seus cotidianos,
comer suas comidas, se alegrar em suas festas e sentir o drama de ser de outra
cultura - tudo isso na medida do possível”. A ideia por detrás deste método,
tão característico da Antropologia, está em considerar que o estudo de uma
determinada cultura é privilegiado (ou em última análise, somente possível)
através da imersão nesta mesma cultura. Assim, não seria suficiente observar os
fenômenos sociais e anotar os comentários dos que deles participam, tampouco
basta conhecer a produção documental e ideológica da cultura pesquisada, é
preciso, antes de tudo, vivenciá-la!

Esperamos que tenha ficado claro para você como e por que surgiu a Antropologia,
o que esta faz enquanto ciência e qual sua especificidade diante das outras Ciências
Sociais. Na etapa seguinte veremos aqueles conceitos antropológicos fundamentais para
a compreensão do fenômeno do multiculturalismo.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 17

REFERÊNCIAS

ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert. História da Antropologia.


Petrópolis: Vozes, 2012.

ESPINA-BARRIO, Angel-B. Manual de Antropologia Cultural. Recife: Editora


Massangana, 2005.

GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: ciência do homem, filosofia da cultura. São


Paulo: Contexto, 2013.

HOEBEL, E. Adamson; FROST, Everest L. Antropologia Cultural e Social. São Paulo:


Cultrix, 2006.

LUZ, Pedro Fernandes Leite da; BOHMANN, Junqueira Katja. Sociologia crítica.
Indaial: Uniasselvi, 2013.

MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zelia Maria Neves. Antropologia: uma


introdução. São Paulo: Atlas, 2001.

POMMER, Arildo. Antropologia filosófica e sociológica. Indaial: Uniasselvi, 2012.

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Curso sobre Antropologia Geral e o debate multicultural


Centro Universitário Leonardo da Vinci

Autora
Luciane da Luz
Pedro Fernandes da Luz

Organização
Fábio Roberto Tavares

Reitor da UNIASSELVI
Prof. Hermínio Kloch

Pró-Reitoria de Ensino de Graduação a Distância


Prof.ª Francieli Stano Torres

Pró-Reitor Operacional de Ensino de Graduação a Distância


Prof. Hermínio Kloch

Diagramação e Capa
Letícia Vitorino Jorge

Revisão
Fabiana Lange Brandes
José Roberto Rodrigues
AS CONTRIBUIÇÕES DA ANTROPOLOGIA PARA O MULTICULTURALISMO

APRESENTAÇÃO

Prezado aluno, na etapa anterior vimos não só o contexto histórico do surgimento


da Antropologia e no que consiste esta enquanto ciência, como também a especificidade
da mesma em relação às outras Ciências Sociais.

Com isto, pudemos ter uma noção do que a Antropologia faz como disciplina
científica e a compreensão que esta traz para a resolução dos questionamentos acerca do
ser humano, isto com uma perspectiva total deste, própria deste ramo do conhecimento.

Também vimos como a Antropologia se relaciona com outras disciplinas do


campo das Ciências Sociais, notando como esta tem uma abordagem específica a
problemas comuns, abordagem esta que acaba por enriquecer o debate das questões
sobre a qual se debruçam os cientistas sociais.

Chegou o momento de nós lançarmos um olhar sobre aqueles conceitos e aquelas


contribuições específicas da Antropologia que enriquecem e ajudam a esclarecer o debate
contemporâneo acerca deste fenômeno conhecido como multiculturalismo.

Ao longo de sua história, o exercício da Antropologia levou os cientistas deste


campo a forjarem uma série de conceitos instrumentais, reflexo de suas contribuições
teóricas ao debate acerca do ser humano, que constituem naquele olhar específico da
disciplina.

Alguns destes conceitos mostraram-se extremamente ricos na compreensão dos


fenômenos que procuram investigar, o que levou os mesmos a transpor os limites do
fazer antropológico, servindo também a outros campos do saber, notadamente aqueles
da área das Ciências Humanas.

Nesta etapa trataremos dos conceitos de cultura, etnocentrismo e relativismo


cultural, que são de domínio imprescindível àqueles que pretendem refletir e debater
a problemática relacionada ao multiculturalismo.

Por isso convidamos você, leitor, a nos acompanhar no desvelamento destes


conceitos sob a ótica específica da Antropologia, certos de que isto o fará compreender
melhor o que afinal é o multiculturalismo, ajudando-o a desenvolver uma consciência
crítica em relação a este, o que o possibilitará a fazer um juízo próprio do mesmo.

Seja bem-vindo ao estudo!


2 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
FIGURA 1 - A CONVIVÊNCIA ENTRE DIFERENTES CULTURAS

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=&esrc=s&source=images&


cd=&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwjqi6XmjZHMAhUFvZAKHWo0BPoQjRwIBw&url
=http%3A%2F%2Fwww.saladacorporativa.com.br%2F2011%2F01%2Fmulticulturalismo-
no-ambiente-de-trabalho%2F&psig=AFQjCNFfV5G_soTKF8rw0AMS4OwaKBO7qA&u
st=1460825590343800>. Acesso em: 15 abr. 2016.

1 OS CONCEITOS ANTROPOLÓGICOS E SUA RELEVÂNCIA PARA A


COMPREENSÃO DO FENÔMENO DO MULTICULTURALISMO. A CULTURA

Se fosse pedido a nós, antropólogos, que nomeássemos aquele que consistiria no nosso
“conceito básico e central”, conforme afirmou Leslie A. White (In KAHN 1975, p. 129, apud
MARCONI; PRESOTTO, 2001), o mesmo seria, longe de todo questionamento, o conceito de
cultura.

Aqui é importante notar que o senso comum difere de maneira significativa da visão
científica da Antropologia na compreensão daquilo em que consiste a cultura. De uma maneira
geral, a visão leiga tende a relacionar cultura com o domínio do conhecimento de diversos
conteúdos nos campos artístico e intelectual adquiridos pela instrução. Assim, nesta perspectiva,
alguém pode ser considerado “culto” ou “inculto”, de acordo com o credo popular.

Só que esta crença não se coaduna com a visão da Antropologia nesta questão, onde está
ausente este sentido do termo e não se faz juízo de valor quanto às diferentes culturas. Para o
saber antropológico, todo grupamento humano é portador de cultura e “(...) nenhuma cultura
é qualitativamente superior a outra, nem pode alguém ser destituído de cultura” (LEITE DA
LUZ et al., 2015, p. 36). De fato, a cultura marca a especificidade dos seres humanos, sendo uma
das características distintivas da humanidade.

Apreendida sob o ponto de vista da Antropologia, cultura (MARCONI; PRESOTTO,

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 3

2001, p. 42) tem um sentido ampliado, com este termo designando as formas através das quais
os seres humanos dão orientação a seu comportamento e constroem suas crenças, e que são
transmitidas e aprendidas por meio da vida social, em meio a uma determinada sociedade ou
grupamento humano.

Prezado leitor, a esta altura você já deve, pelo que foi dito, ter intuído a relevância que o
conceito de cultura apresenta para a Antropologia e como esta disciplina aprimorou este termo
ao longo de seu desenvolvimento.

Isto se deu de fato no decorrer da história da Antropologia, com a elaboração e


reelaboração do conceito de cultura, tendo por base os diferentes pontos de vista teóricos que
este ramo do conhecimento desenvolveu para o entendimento do fenômeno humano.

Devido ao período relativamente longo durante o qual a Antropologia se desenvolveu


e floresceu, a mesma veio a adquirir a capacidade de aprimorar, refinar e adaptar o conceito de
cultura às demandas explicativas da disciplina, de acordo com as teorias que surgiram neste
campo de reflexão e aos questionamentos que dizem respeito ao ser humano, sobre o qual a
mesma lançou o seu olhar analítico.

Em decorrência disto, de acordo com o período histórico e o enfoque teórico do


pesquisador em Antropologia, o conceito de cultura apresenta aspectos distintos, sem deixar,
todavia, de ter uma centralidade neste campo do saber e determinadas características que
acompanharam a evolução do termo.

Os antropólogos geralmente têm compreendido cultura tanto como comportamento


adquirido, quanto como abstração do comportamento, e este ao nível do campo das ideias, sendo
a cultura entendida igualmente enquanto objetos imateriais, materiais ou ambos (MARCONI;
PRESOTTO, 2001).

Uma primeira definição de cultura foi dada pelo antropólogo britânico Edward B. Tylor,
que assim se referia à mesma: “Cultura... é aquele todo complexo que inclui o conhecimento,
as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos
pelo homem como membro da sociedade”.

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4 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
FIGURA 2 - O ANTROPÓLOGO BRITÂNICO TYLOR E SUA DEFINIÇÃO DE CULTURA

FONTE: Disponível em: <http://image.slidesharecdn.com/5-interculturalidadensalud-100823113824-


phpapp02/95/interculturalidad-en-salud-26-728.jpg?cb=1282563603>. Acesso em: 15 abr. 2016.

A partir de Marconi e Presotto (2001, p. 43), elencaremos aqui determinadas


definições de cultura que foram aventadas por diferentes antropólogos ao longo do
caminhar histórico da Antropologia e que nos ajudarão a ilustrar as transformações que
se deram neste conceito e os diferentes vieses teóricos que orientaram os antropólogos
que os formularam.

De acordo com Ralph Linton, a cultura consistiria “...na soma total de ideias,
reações emocionais condicionadas a padrões de comportamento habitual que seus
membros adquirem por meio da instrução ou imitação e de que todos, em maior ou
menor grau, participam”. De uma maneira geral, para este antropólogo a cultura
representa “a herança social total da humanidade”.

Já para Franz Boas, cultura seria “a totalidade das reações e atividades mentais
e físicas que caracterizam o comportamento dos indivíduos que compõem um grupo
social”.

Na visão de Malinowski, poderíamos conceituar cultura como “o todo global


consistente de implementos e bens de consumo, de cartas constitucionais para os vários
agrupamentos sociais, de ideias e ofícios humanos, de crenças e costumes”.

Segundo Kroeber e Kluckhohn, cultura se considera como “uma abstração do


comportamento concreto, mas em si própria não é comportamento”.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 5

Na definição de Leslie White, cultura seria “quando coisas e acontecimentos


dependentes de simbolização são considerados e interpretados num contexto
extrassomático, isto é, face à relação que têm entre si, ao invés de com organismos
humanos”.

Em uma concepção mais recente, Clifford Geertz propõe que a “cultura deve ser
vista como um conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instituições
– para governar o comportamento”.

Notamos assim, por estas definições alinhadas como exemplo, a variação que
se deu no conceito antropológico de cultura durante a evolução da disciplina, fato este
que revela as mudanças que ocorreram nos paradigmas da Antropologia, disciplina
que apresenta diferentes escolas teóricas, com cada uma delas forjando uma concepção
própria do que seja cultura.

Desta maneira, cultura é tida em determinados momentos como ideias, em


outros como abstrações do comportamento e, ainda como comportamento, como algo
extrassomático, como os elementos materiais e imateriais do saber humano e igualmente
enquanto mecanismo de controle do comportamento (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

Notamos que as definições de cultura são um reflexo das diferentes abordagens


da Antropologia à questão colocada pela existência humana. A mesma é passível de ser
analisada tendo por base diversos enfoques, levando-se em conta a cultura enquanto
o conjunto de ideias que apresentamos, sendo esta relativa, desta forma, ao campo do
saber e da filosofia; as crenças que apresentamos, associadas aos sistemas religiosos
e às superstições; os valores pelos quais nos guiamos, sendo relativos ao domínio da
ideologia e da moral; as normas que seguimos, relacionadas aos costumes e às leis;
nossas atitudes, que revelam nossos preconceitos e postura diante do outro; os padrões
de conduta usuais do grupo social ao qual pertencemos; a abstração do comportamento,
isto é, os símbolos que se mostram expressivos para nós; as instituições sociais, como
família e sistema econômico; as técnicas, que dizem respeito a nossas habilidades e arte
e, por fim, os artefatos que produzimos (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

Seria o caso aqui, caro aluno, de estar consciente de que a cultura nos distingue
enquanto espécie e que ela mesma é produto daquelas pressões evolutivas que acabaram
por nos forjar. Isto é, a cultura é algo que distingue o ser humano, foi no processo de
nos tornarmos quem somos, através das mutações genéticas que determinaram as
características atuais de nossa espécie, que nós adquirimos este admirável mecanismo
adaptativo que chamamos de cultura. Todavia, foi esta mesma cultura que veio a nos
proporcionar a possibilidade de escapar dos determinismos biológicos.

Isso nos abriu a chance de voar sem ter asas, atravessar os oceanos sem possuir

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6 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
escamas, nem barbatanas, nos locomover subaquaticamente sem ter guelras, habitar
o Ártico sem ter pelos espessos e realizar toda uma série de ações para as quais nossa
natureza biológica não nos capacitou, mas que conseguimos fazer a partir da cultura.

FIGURA 3 - NATIVO INUIT HABITANDO O ÁRTICO

FONTE: Disponível em: <http://www.geografia.seed.pr.gov.br/modules/galeria/uploads/2/


normal_776inuitesquimo.jpg>. Acesso em: 20 abr. 2016.

De acordo com Hoebel e Frost (2006), chamaríamos de cultura aquele sistema


integrado de padrões comportamentais aprendidos na vida social, padrões estes que
são característicos de uma determinada formação social, não sendo os mesmos, desta
forma, produto da herança biológica. Isto torna patente o aspecto não instintivo da
cultura. Desta maneira, as diversas expressões culturais não são inatas, mas mostram-se
totalmente arbitrárias, ou seja, apresentam-se como resultante do engenho e do desejo
humano. Ainda que a cultura seja comportamento apreendido, ela faz parte também
de nossa natureza, da mesma forma que o andar bípede e a postura ereta, exclusivas
de nossa espécie.

Sobrepujando inteiramente os instintos, a cultura adquire-se durante o processo


de socialização, pelo convívio com outros seres humanos, nos proporcionando o
conhecimento necessário para satisfazer nossas necessidades básicas. A cultura, desta
maneira, determina a forma pela qual nós fazemos o que fazemos, do jeito que o
fazemos. É exclusivamente através do convívio social que podemos adquirir e aprimorar
as habilidades precisas à nossa sobrevivência, isto pelo aprendizado da cultura onde
crescemos.

Para que fique claro como entre nós a cultura supera o instinto, vamos dar alguns
exemplos para você.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 7

É fato que todos os seres vivos têm que se alimentar, isto consiste naquilo que
chamamos de necessidade básica e, como tal, a mesma é inescapável. Procurar alimento
é um apelo do instinto, entre todas as espécies. Mas seria assim também entre os seres
humanos?

Ainda que seja um imperativo da natureza a ingestão de alimentos, nós, seres


humanos, discriminamos entre o que é considerado como um alimento próprio de
acordo com nossa cultura. Também seguimos determinadas maneiras através das quais
nós ingerimos este alimento, e regras de quando, na companhia de quem, de que forma
e outros tantos imperativos em relação à alimentação, de acordo com nossa sociedade.
Esta nos inocula essas normas e diretrizes culturais pelo processo de endoculturação,
ou seja, pela introjeção no indivíduo da cultura à qual o mesmo pertence.

Assim, se em determinados países da Ásia mostra-se permitido e desejável


ingerir carne de cachorro, nos países do Ocidente este hábito é totalmente rejeitado
pela cultura destas sociedades. No Brasil, a cultura local considera intragável a carne
de caracol, já na França esta se aprecia como uma iguaria. Em certos países da África,
a etiqueta permite se comer com as mãos, enquanto que entre nós usam-se talheres; já
na China e no Japão, o alimento é ingerido com o auxílio de duas varetas. Nas grandes
cidades brasileiras, comer sozinho é considerado normal, já entre os Hüpda (povo
indígena da Amazônia), ingerir qualquer alimento sem estar na companhia de alguém,
ou sem oferecê-la a outrem, é tido como uma grave ofensa. No sudeste e sul do Brasil,
é costume ingerir o almoço por volta do meio-dia, já nos seringais do Acre chama-se
“almoço” a refeição tomada em torno das 10h da manhã. Podemos notar que nenhum
destes comportamentos é determinado pelo instinto, mas antes, estes se apresentam
como uma determinação cultural dos diversos grupos sociais onde os mesmos ocorrem.

FIGURA 4 - ESCARGOTS PRONTOS PARA SEREM SERVIDOS

FONTE: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Escargotbordeaux.jpg>. Acesso em: 19


abr. 2016.

Vimos, assim, como a cultura determina nosso comportamento muito além


dos instintos e que essa faz parte de nossa natureza.

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8 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
Devemos considerar ainda que um aspecto destacado da cultura consiste no
seu caráter simbólico, este se transmite privilegiadamente por meio da linguagem,
o método exclusivo da humanidade, não instintivo, de comunicar ideias, emoções e
desejos (HOEBEL; FROST, 2006). Assim, a cultura encontra expressão através de um
conjunto de símbolos significantes que conferem conteúdo à cultura à qual pertencemos
e que são aprendidos no processo de endoculturação, quando então se dá o processo
de aquisição da cultura de nosso grupo.

Endoculturação consiste propriamente no processo, que dura desde a infância e


perdura por toda a existência, nunca cessando, de aprendizado de nossa cultura. Através
da endoculturação é que se estrutura e condiciona nossa conduta, proporcionando-
se assim coerência e estabilidade àquela cultura da qual fazemos parte (MARCONI;
PRESOTTO, 2001). É por meio do processo de endoculturação que temos nossos
atos, atitudes e comportamentos controlados pela cultura que vivemos, impedindo
os imperativos culturais que ajamos de forma diferente daquela determinada pelos
mesmos, mas antes, em conformidade com estes.

FIGURA 5 - A ENDOCULTURAÇÃO NO ESPAÇO ESCOLAR

FONTE: Disponível em: <http://blog.planalto.gov.br/wp-content/uploads/2010/03/Pag.-45.JPG>.


Acesso em: 20 abr. 2016.

Pudemos notar que cultura apresenta diferentes componentes e que estes


podem ser vistos como apresentando uma existência espaçotemporal, cuja localização
é determinada qualitativamente. Vejamos o que queremos dizer com isso.

Determinados aspectos da cultura, que seriam os conceitos, crenças, atitudes,


emoções, os produtos da imaginação, e afins, localizam-se intraorganicamente, ou seja,
são interiores ao ser humano.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 9

Aqueles aspectos da cultura que dizem respeito às relações que entabulamos


e às diferentes formas de interação que estabelecemos entre nós na vida social têm
localização interorgânica, ou seja, entre os organismos humanos.

Finalmente, as expressões materiais da cultura, que consistiriam nos diferentes


aparatos tecnológicos que a compõem, como arcos de caça, televisores etc., encontram-
se fora dos organismos humanos, localizando-se, desta maneira, extraorganicamente.

Essencialmente, poderíamos dizer que cultura comporta aspectos múltiplos,


como ideias, abstrações e comportamento.

De acordo com Marconi e Presotto (2001, p. 46), as ideias que nós seres humanos
apresentamos consistiriam em “... concepções mentais de coisas concretas ou abstratas,
ou seja, toda a variedade de conhecimentos e crenças teológicas, filosóficas, científicas,
tecnológicas, históricas etc”. Para exemplificar, estas autoras citam, no campo das
ideias, as diversas línguas que a humanidade produziu, a arte e as mitologias, que são
distintivas de nós, seres humanos.

Com relação às abstrações que consistiriam na cultura, seriam estas aqueles


aspectos imateriais, não observáveis e não palpáveis de nosso domínio mental.
Recordando aqui que a capacidade de abstrair se apresenta exclusiva à nossa espécie e
componente distintivo da cultura, que se expressa por meio de diferentes abstrações,
cujo significado e sentido estão na própria cultura que as produzem.

Finalmente, um dos aspectos mais notáveis da cultura seriam os comportamentos


que a mesma determina, comportamentos estes compreendidos aqui enquanto formas
de ação, ou conjunto de reações e atitudes compartilhadas pelos indivíduos em razão
de pertencerem a uma dada cultura, sendo, desta forma, não devedores aos instintos,
mas, antes, resultando do invento social e encontrando sua transmissão e apreensão
por meio da linguagem e do aprendizado (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

Tendo um papel tão determinante na vida do indivíduo, fica patente que a cultura
condiciona nossa visão de mundo e faz isso de tal forma que estamos convencidos da
espontaneidade e naturalidade de nossos atos. De fato, para aqueles que pertencem
a uma dada cultura, os preceitos desta são considerados verdadeiros e reais, de tal
maneira que a sua cultura parece-lhes ser superior às demais. Isto configura uma atitude
universal, própria de todos os grupos humanos, indistintamente. Este fato foi notável
para a Antropologia, que formulou um conceito próprio para designar este tipo de
postura. Esta atitude foi chamada pelos antropólogos de etnocentrismo, um dos conceitos
fundamentais para compreendermos e lidarmos com a questão do multiculturalismo,
assim como a própria cultura.

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10 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
2 ETNOCENTRISMO E RELATIVISMO CULTURAL

De acordo com Hoebel e Frost (2006, p. 446), etnocentrismo seria: “Visão das
coisas segundo a qual os valores e o modo de ser do próprio grupo são o centro de tudo,
e todas as outras são avaliadas e julgadas com referência a ela”.

Já Marconi e Presotto (2001) chamam atenção para o fato de o etnocentrismo


implicar na atitude do indivíduo de supervalorizar a sua própria cultura, em contraste
com as demais. Estas autoras marcam a característica etnocêntrica como a avaliação do
indivíduo acerca de outras culturas, tendo por base a cultura da qual faz parte. Levado
ao extremo, o etnocentrismo pode gerar um sentimento de superioridade e hostilidade,
e, em determinados casos, a agressão àqueles que são tidos como diferentes por fazerem
parte de outra cultura.

Todavia, no nível interno, o etnocentrismo apresentaria um papel positivo para


o próprio grupo, concorrendo para o ajuste do indivíduo à sua cultura e favorecendo
a coesão social, levando os membros de uma dada cultura a “considerar e aceitar o seu
modo de vida como o melhor, o mais saudável...” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p.
52-53).

É tendência preponderante em toda a cultura considerar suas crenças, seus


valores, práticas, hábitos e comportamentos como justos, bons e verdadeiros, e, como
chamamos atenção antes, até naturais. Para aqueles que fazem parte de uma dada
cultura, suas crenças e práticas são não só corretas, mas também naturais. Assim, os
jeitos e as maneiras das demais culturas são tidos como estando em contradição com a
natureza humana, sendo vistos como inferiores e imperfeitos.

FIGURA 6 - HÁBITOS ALIMENTARES DE OUTRAS CULTURAS

FONTE: Disponível em: <http://www.mochileiros.com/americana-cai-de-penhasco-e-sobrevive-por-


dias-comendo-insetos-t58742.html>. Acesso em: 20 abr. 2016.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 11

Podemos ver que este tipo de posicionamento proporcionado pela cultura


representa um sério obstáculo, tanto à análise científica dos povos, como ao
próprio convívio entre as diferentes culturas, afetando diretamente a questão do
multiculturalismo.

Isto exige uma posição clara da Antropologia face ao fenômeno do etnocentrismo.


Afirmamos aqui, anteriormente, que para os antropólogos não se pode afirmar que
nenhuma cultura é melhor ou superior a outra. Este ponto de vista teórico-metodológico
da Antropologia favoreceu a disciplina a criar o conceito de relativismo cultural. No
que consistiria este e como o mesmo serve à discussão acerca do multiculturalismo?

Segundo Hoebel e Frost (2006), ainda que as culturas possam compartilhar


determinadas características gerais, as mesmas sempre apresentarão uma variação em
certos pontos de seus postulados fundamentais. Parece correto afirmar isso, uma vez que
as culturas apresentam diferenças significativas umas das outras, em vários aspectos.

É do conhecimento de todos que a humanidade é uma só, entretanto, a


variabilidade cultural é notável. Povos que dividem o mesmo habitat ecológico muitas
vezes apresentam crenças e comportamentos tão distintos entre si como aqueles de
povos que habitam regiões muito afastadas umas das outras.

Ainda que seja assim, todavia, as culturas, em sua totalidade, mostram-se


suficientes nelas mesmas e a partir delas em dar conta da orientação de seus membros
quanto (LEITE DA LUZ et al., 2015, p. 53):

“(...) a suas relações com o meio ambiente e com os outros membros de sua e
de outras sociedades, fornecendo um sistema coerente que modela seu com-
portamento e as crenças, valores e ideologias que lhes dão sustentação”.

Dentro desta perspectiva, as culturas, em sua totalidade, mostram-se iguais e,


em função disto, devem ser respeitadas e admiradas da mesma forma. Muitas vezes
isso não significa que a cultura apresente-se sempre coerente, funcional e harmônica
(como pensaram alguns cientistas sociais no passado), mas a cultura, em todos os casos,
age sempre normatizando e mediando os conflitos que por acaso surjam em seu seio.

Desta forma, a Antropologia não pode discriminar entre as diversas culturas,


compreendendo todas como essencialmente iguais em seu caráter adaptativo no
que concerne à nossa espécie. O entendimento antropológico deste fato conduziu a
Antropologia ao desenvolvimento do conceito de relativismo cultural.

Para Hoebel e Frost (2006, p. 22), o método comparativo em Antropologia tem


como consequência direta o forjamento do conceito de relativismo cultural. Segundo
estes autores: “O conceito de relatividade cultural afirma que os padrões do certo e

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12 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
do errado (valores) e dos usos e atividades (costumes) são relativos à cultura da qual
fazem parte”.

Decorre daí, inevitavelmente, que cada prática ou costume cultural mostra-se


válido e correto nos termos próprios da cultura onde estão presentes.

Isto tem implicações tremendas para a Antropologia, fazendo com que esta
exija de seus profissionais um posicionamento firme no sentido de os mesmos não
exercerem um juízo acerca da cultura que investigam, mas que, pelo contrário, procurem
compreender e ter uma visão de mundo coerente com a do povo pesquisado, mostrando
empatia por este (em função da visão humanística inerente ao relativismo), sem deixar
de lado o rigor científico (HOEBEL; FROST, 2006).

Hoebel e Frost (2006, p. 22) vão mais longe, afirmando que sem a adoção do
relativismo cultural e a total rejeição ao etnocentrismo não seria possível vir-se a exercer
a Antropologia, ou seja, ser alguém capaz de “... assumir o papel de observadores
objetivos e não de apologistas, condenadores ou convertedores”.

De acordo com estes autores, a partir do exercício do relativismo cultural os


antropólogos adquirem certas qualidades: “sabem rir com o povo, não rir dele”. Assim,
para a prática da Antropologia, seria fundamental se ter um respeito profundo e sincero
por tudo o que diz respeito ao ser humano, independentemente de quem seja este.

Em Marconi e Presotto (2001) vemos que o relativismo cultural tem por base o
fundamento de que os indivíduos são condicionados por suas culturas (que determinam
o modo de vida próprio destes), e que, portanto, os mesmos apresentam identidades e
valores relativos à cultura da qual fazem parte.

Assim, as crenças, costumes e práticas dos diferentes indivíduos, enquanto


membros de uma cultura, devem ser considerados sempre em relação à cultura a que
pertencem, como partes integradas que são estes de um sistema que orienta para a ação
e reflexão àqueles que ali foram endoculturados.

A posição relativista exige que se considere os padrões e os valores relativos ao


que se tem como certo ou errado, bem como os usos e costumes, as crenças e discursos,
sempre em relação à cultura que os apresentam, e nunca a partir da cultura daquele
que a observa.

De acordo com Laraia (2004), toda cultura apresenta uma lógica própria e cada
hábito, prática ou crença cultural tem em si coerência em relação ao sistema a que
pertence. Para compreender cada cultura devemos, portanto, ter como ponto de partida
a lógica interna desta.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 13

Com o objetivo de tentar tornar ainda mais claro no que consistiriam exatamente
os conceitos de etnocentrismo e relativismo cultural, vamos reproduzir aqui um exemplo
que demos em outra obra de nossa autoria (LEITE DA LUZ et al., 2015, p. 54-55) sobre
esta questão e que é fruto de nossa experiência no trabalho de campo e no exercício da
Antropologia.
Estivemos durante um ano e quatro meses vivendo entre um grupo nômade
coletor-caçador do noroeste amazônico, conhecidos na literatura antropológica
como Hüpda. Neste período de nosso trabalho de campo, tivemos a oportuni-
dade de presenciar inúmeros deslocamentos que os Hüpda realizaram dentro
de seu território, por motivos diversos. Nestas ocasiões, os homens Hüpda
levavam consigo apenas seus arcos e flechas, zarabatanas e demais armas de
que dispunham, enquanto que as mulheres carregavam todo o peso, os perten-
ces, víveres, utensílios e demais bens “carregáveis” do grupo, em cestos que
portavam às costas. Ao observar tal costume, um desavisado poderia, a partir
de uma atitude etnocêntrica, julgar os homens Hüpda preguiçosos, por não
carregarem peso, e machistas, por fazerem suas mulheres carregarem o mesmo.
Mas um antropólogo treinado é capaz de observar este mesmo costume com
uma posição relativista, isto é, contextualizando o mesmo na cultura Hüpda,
para entendê-lo de acordo com a lógica desta. Assim vai perceber que durante
os deslocamentos na floresta equatorial úmida, onde habitam, os Hüpda ficam
expostos ao ataque de seus inimigos e de predadores deste ambiente, fazendo
todo sentido, de acordo com a cultura Hüpda, que os homens viajem com as
mãos livres, para que assim possam dispor rapidamente de suas armas. Desta
forma, um ato aparentemente machista em relação às mulheres, de acordo com
nossa cultura, revela-se um ato de cuidado e altruísmo em relação a estas, de
acordo com a cultura Hüpda.

FIGURA 7 - ÍNDIO HÜPDA FAZENDO FOGO

FONTE: Disponível em: <http://img.socioambiental.org/d/281932-4/maku_5.jpg?g2_


GALLERYSID=TMP_SESSION_ID_DI_NOISSES_PMT>. Acesso em: 20 abr. 2016.

3 A CONTRIBUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA PARA O CONVÍVIO EM UMA


SOCIEDADE MULTICULTURAL

Já vimos alguns dos conceitos fundamentais da Antropologia, entre eles os de


cultura, etnocentrismo e relativismo cultural. Ora, estes conceitos são centrais e sua
compreensão imprescindível para entendermos a questão do multiculturalismo.

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14 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
De fato, a Antropologia é a ciência da cultura por excelência e é desta disciplina que
nos vêm não só os conceitos instrumentais para o entendimento do multiculturalismo,
mas também a postura teórico-metodológica que devemos ter em face deste.

3.1 O APORTE ANTROPOLÓGICO AO DEBATE MULTICULTURAL

Em seus primórdios, a Antropologia, privilegiando sociedades simples, ditas


“primitivas”, em suas análises, lidava com culturas em grande parte homogêneas.
Apesar da realidade multicultural de nossa sociedade atual, especialmente a partir do
fenômeno da globalização, foram naquelas sociedades simples estudadas inicialmente
pelos antropólogos que se forjaram os conceitos e estratégias teórico-metodológicas
que nos permitem lidar, sob uma perspectiva científico-antropológica, com o fenômeno
conhecido como multiculturalismo, este típico de sociedades ocidentais contemporâneas.

FIGURA 8 - ABORÍGINES AUSTRALIANOS

FONTE: Disponível em: <http://planetasustentavel.abril.com.br/imagem/aborigenes-australianos.jpg>.


Acesso em: 20 abr. 2016.

Levando-se em conta que o multiculturalismo pode ser visto não apenas como a
coexistência em um mesmo território, seja país, região ou cidade, de diferentes culturas,
mas, principalmente, como a resistência à homogeneização destas e a promoção do
respeito mútuo entre as mesmas, fica patente o potencial do instrumental teórico da
Antropologia para compreendê-lo.

De fato, o próprio entendimento do que seja cultura, de acordo com o ponto de


vista científico, é devedor da ciência antropológica. No tópico anterior nós vimos como
a cultura determina a visão de mundo e o comportamento daqueles que pertencem à
mesma. Neste sentido, a cultura é avassaladora e inescapável e explica as atitudes e
pensamentos de seus membros.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 15

Isso coloca um problema: como conciliar diferentes concepções de mundo e


modos de agir neste, numa mesma sociedade?

Pelas próprias características da cultura, especialmente seu componente


etnocêntrico, que, como vimos, é uma atitude universal, fica problemático promover a
convivência pacífica, ou livre de conflitos, entre pessoas de credos e práticas tão diversos
entre si.

De fato, a rejeição de valores e hábitos culturais diferentes do nosso é usual


entre nós, seres humanos, e possível fonte de conflito em sociedades multiculturais.
Muitas vezes, determinados hábitos de outras culturas são francamente ofensivos à
nossa própria cultura. Como podemos conviver, de maneira proveitosa para todos, com
culturas diferentes da nossa? E mais do que isso, como é possível promover o respeito
àqueles que aos nossos olhos parecem tão diferentes de nós mesmos?

FIGURA 9 - A MULHER NO ISLÃ E NO OCIDENTE

FONTE: Disponível em: <https://encryptedtbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcTgtHh4pVLO_


cxE_QUD4ER4dtj7AoH9kEsqpl7y2x0ypFBzSLGWQ>. Acesso em: 20 abr. 2016.

Outros problemas que surgem a partir do etnocentrismo mostram-se
igualmente relevantes, como, por exemplo, como garantir a integridade de uma
cultura em meio a outra que a engloba e ameaça, a partir da difusão da cultura de
massa, sem que a mesma perca suas características fundamentais?

Ora, acreditamos que a Antropologia pode dar uma resposta vigorosa e


eficaz a estas questões, senão vejamos: a partir da etnografia podemos registrar
uma cultura de maneira a promover o conhecimento da mesma a todos aqueles que
leem a caracterização desta feita pelo antropólogo. É fato que se respeita e teme-se
menos aquilo que é conhecido, o que favorece a atuação benéfica da Antropologia
na promoção do convívio e respeito entre as diversas culturas. Através do estudo
comparativo feito pela etnologia, podemos ver que as diferenças culturais são
apenas formais e de conteúdo, e que toda cultura procura dar conta de determinadas
questões que nos afetam enquanto seres humanos, independente da sociedade a que

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16 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
pertencemos. Pela postura metodológica conhecida como relativismo cultural, pode a
Antropologia favorecer o diálogo, a aceitação e a compreensão das diversas culturas
entre si, demonstrando como cada traço cultural deve ser referenciado ao conjunto
a que pertence, isto é, a cultura onde o mesmo ocorre. Documentando e estudando
uma determinada cultura, pode a Antropologia contribuir de maneira significativa
para a preservação da mesma, sendo os trabalhos antropológicos uma fonte perene
de informações acerca das tradições de uma cultura, inclusive para seus membros.
Isto facilita a preservação dos saberes e atitudes próprios de uma cultura em face de
outras que são dominantes.

Esperamos, prezado aluno, que você, a partir de nosso texto, tenha


condições de relacionar o conhecimento antropológico às questões colocadas pelo
multiculturalismo, vendo como esta disciplina científica contribui de maneira
significativa para a convivência pacífica e respeitosa entre os diversos povos dentro
de uma mesma sociedade.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 17

REFERÊNCIAS

ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert. História da Antropologia.


Petrópolis: Vozes, 2012.

ESPINA-BARRIO, Angel-B. Manual de Antropologia Cultural. Recife: Editora


Massangana, 2005.

GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: ciência do homem, filosofia da cultura. São


Paulo: Contexto, 2013.

HOEBEL, E. Adamson; FROST, Everest L. Antropologia Cultural e Social. São Paulo:


Cultrix, 2006.

LUZ, Pedro Fernandes Leite da; BOHMANN, Junqueira Katja. Sociologia crítica.
Indaial: Uniasselvi, 2013.

MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zelia Maria Neves. Antropologia: uma


introdução. São Paulo: Atlas, 2001.

POMMER, Arildo. Antropologia filosófica e sociológica. Indaial: Uniasselvi, 2012.

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Curso sobre Antropologia Geral e o debate multicultural


Centro Universitário Leonardo da Vinci

Autora
Luciane da Luz
Pedro Fernandes da Luz

Organização
Fábio Roberto Tavares

Reitor da UNIASSELVI
Prof. Hermínio Kloch

Pró-Reitoria de Ensino de Graduação a Distância


Prof.ª Francieli Stano Torres

Pró-Reitor Operacional de Ensino de Graduação a Distância


Prof. Hermínio Kloch

Diagramação e Capa
Letícia Vitorino Jorge

Revisão
Fabiana Lange Brandes
José Roberto Rodrigues
APRESENTAÇÃO

Olá, cursistas! Sejam bem-vindos ao curso livre de Antropologia Geral e o Debate


Multicultural.

Nesta etapa do curso vamos trabalhar o conceito de multiculturalismo,


enfatizando as origens do surgimento do movimento, procurando destacá-lo tanto do
ponto de vista político (movimentos sociais multiculturais e políticas públicas) e teóricos
(ciências multiculturalistas), visando oferecer conteúdo de base para a interpretação
deste campo de estudos.

Em um segundo momento vamos apresentar o contexto de surgimento do debate


multicultural.

Em um terceiro momento traremos o conceito de Políticas Públicas e Políticas


Públicas de Ação Afirmativa, com o objetivo de nivelar os conhecimentos acerca destes
temas de estudos, que servirão de base para a compreensão das ações multiculturais.

Na sequência apresentamos o contexto de surgimento das políticas multiculturais


nos Estados Unidos, destacando a trajetória histórica dos índios norte-americanos e o
processo de escravidão ocorrido no país.

Para complementar, destacamos a importância dos movimentos negros e suas


principais lideranças para as políticas de ação afirmativas nos Estados Unidos, como
o movimento pelos direitos civis de Martin Luther King, que objetivou a integração
racial; o movimento promovido por Malcom X, que visava a separação racial; e por fim
o Black Panters, movimento armado que exigia compensação financeira pelos séculos
de exploração promovida pela população branca.

Por fim, apresentamos como resultado das lutas sociais da década de 1960 nos
Estados Unidos, a conquista da Lei dos Direitos Civis e as primeiras políticas de ações
afirmativas no País.
2 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
1 CONCEITUANDO MULTICULTURALISMO

Nesta etapa do curso vamos trabalhar o conceito de multiculturalismo,


enfatizando as origens do surgimento do movimento, situando-o do ponto de vista
político (movimentos sociais multiculturais e políticas públicas) e teóricos (ciências
multiculturalistas), visando oferecer conteúdo de base para a interpretação deste campo
de estudos.

Conhecer o conceito de multiculturalismo e suas origens é importante, pois, ao


longo de sua trajetória profissional e pessoal, você certamente os utilizará para interpretar
as diferentes realidades sociais nas quais estiver inserido. Portanto, bons estudos!

Como a própria etimologia da palavra nos sugere, o termo “multi” significa


vários, o termo “culturalismo” refere-se à cultura, e o sufixo “ismo” está associado
às posições assumidas ou ideias aceitas sobre as possibilidades de conhecimento, ou
seja, no caso do multiculturalismo significa uma posição assumida sobre as diferentes
relações entre as várias culturas.

O “multiculturalismo” é um termo polissêmico e existem, pelo menos, dois


sentidos diferentes em que este pode ser utilizado. Um primeiro sentido é
descritivo e reporta a um fato da vida humana e social, que é a diversidade
cultural étnica, religiosa que se pode observar no tecido social, ou seja, um
certo cosmopolitismo que atualmente é fácil de ver em qualquer grande ci-
dade da Europa e da América do Norte. Um segundo sentido é prescritivo e
está associado às chamadas políticas de reconhecimento da identidade e/ou
da diferença que os poderes públicos prosseguem, ou deveriam prosseguir,
segundo os seus defensores, em nome dos grupos minoritários e/ou “subal-
ternos” (FERNANDES, 2011, p. 2).

Dito de outra forma, MULTICULTURALISMO significa a existência de grupos


de diversas culturas, assim como o embate político, econômico e social travado pelos
diferentes grupos sociais na luta pelo respeito à diversidade. Por isso, além de estudos
teóricos e empíricos, o termo implica na conquista de reivindicações das chamadas
minorias ou grupos marginalizados, como os negros, índios, mulheres, homossexuais
e outros tantos, que buscam assegurar seus direitos sociais através de políticas públicas
de ação afirmativa.

O multiculturalismo é pluralista, porque as diferenças coexistem em um mesmo


país ou região. Ali convivem diferentes culturas, valores e tradições. Há o diálogo e
convivência pacífica entre as culturas diversas. No entanto, esta coexistência pacífica não
significa negar as diferenças entre as culturas, nem homogeneizá-las, mas compreendê-
las, a partir de uma visão dialética sobre os termos igualdade e diferença, à medida em
que não se pode falar em igualdade sem levar em conta as diferenças culturais, e não
se pode relacionar a diferença como medida de valor.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 3

O sociólogo português Boaventura Souza Santos explica: "temos direito a


reivindicar a igualdade sempre que a diferença nos inferioriza, e temos direito de
reivindicar a diferença sempre que a igualdade nos descaracteriza”.
FONTE: Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/veracandau/multicutaralismo.
html>. Acesso em: 10 abr. 2016.

Nesse sentido, entendemos que igualdade e diferença não são termos opostos.
De fato, a IGUALDADE opõe-se à desigualdade, enquanto DIFERENÇA opõe-se à
padronização, à homogeneização, à produção em série.

Assim, o objetivo do multiculturalismo é lutar pela igualdade e pelo reconhecimento


das diferenças. Por este motivo, um dos temas centrais para o multiculturalismo tem
sido o DIREITO À DIFERENÇA e à DIMINUIÇÃO DAS DESIGUALDADES, bandeira
de luta de vários movimentos sociais contemporâneos espalhados pelo mundo inteiro.

2 ONDE E QUANDO SURGIU O MULTICULTURALISMO?

O termo “multiculturalismo” é relativamente recente e sua utilização ocorreu pela


primeira vez na Inglaterra, entre as décadas de 1960 e 1970. De acordo com FERNANDES
(2006), o “multiculturalismo” surgiu na linguagem oficial do Canadá e na Austrália, para
designar as políticas públicas com o objetivo de valorizar e/ou promover a diversidade
cultural. Ainda neste período, o autor destaca que outros países anglo-saxônicos, como o
Reino Unido, a Nova Zelândia e os EUA, também iniciam políticas públicas qualificadas
como “multiculturais”.

NOT
A!

PAÍSES ANGLO-SAXÔNICOS: são países cujos descendentes são
provenientes de povos germânicos (anglos, saxões e jutos). Esta
denominação é resultado da fusão desses povos que se fixaram ao sul e
leste da Grã-Bretanha, no século V.

Mesmo que o termo tenha surgido no Canadá e Austrália, o multiculturalismo tem


suas raízes na década de 1960, com os movimentos sociais da década de 1960 (movimento
negro, hippie, feminista e outros), nos Estados Unidos, sendo que o movimento negro
foi preponderante neste processo.

Para entender o motivo pelo qual estes movimentos surgiram, devemos resgatar
o aspecto da constituição histórica dos Estados Unidos, marcada por um longo processo
de colonização, que teve como base a eliminação e a opressão das diversas tribos

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4 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
indígenas que ali estavam. Além disso, prezado(a) aluno(a), devemos levar em conta
o processo de escravidão que ocorreu no país, no qual os negros serviram como base
para o desenvolvimento da nação.

Estas posturas dos colonizadores norte-americanos foram influenciadas pelos


valores religiosos de igrejas protestantes, comuns à maioria dos colonos de origem
anglo-saxã. Esta influência permeou o pensamento e as atitudes dos colonizadores
norte-americanos em relação aos demais grupos, desencadeando, mais tarde, uma série
de movimentos pela busca de justiça social.

Para falarmos sobre as políticas multiculturais nos Estados Unidos, realizamos


um resgate histórico da constituição do território, enfatizando a relação dos colonos
norte-americanos com os nativos, assim como com os escravos trazidos da África. Além
disso, destacaremos a importância do movimento negro em prol da luta pelos direitos
civis. Em seguida, traremos o debate sobre políticas públicas e demonstraremos as
políticas afirmativas que, no geral, visam proteger as minorias étnicas que tenham sido
discriminadas no passado, dando a elas condições de acesso ao trabalho, universidades
e posições de liderança.

3 CONCEITUANDO POLÍTICAS PÚBLICAS E DE AÇÃO AFIRMATIVA

3.1 POLÍTICAS PÚBLICAS

Para compreendermos o debate do multiculturalismo do ponto de vista das ações


políticas, precisamos refletir primeiramente sobre o conceito de “políticas públicas”.

No decorrer das pesquisas para o desenvolvimento deste curso, nos deparamos


com vários conceitos de “política pública”, porque, assim como o multiculturalismo, o
conceito representa, ao mesmo tempo, aspectos políticos (ações e programas de governo)
e acadêmicos (áreas de conhecimento que discutem teoricamente o tema). Podemos
dizer, portanto, que o conceito é múltiplo, porque o campo de discussão é muito vasto,
e pode ser entendido como uma área interdisciplinar de conhecimento.

De acordo com pesquisas de SOUZA (2006, p. 24):

não existe uma única, nem melhor definição sobre o que seja política pública.
Mead (1995) a define como um campo dentro do estudo da política que analisa
o governo à luz de grandes questões públicas, e Lynn (1980), como um conjunto
de ações do governo que irão produzir efeitos específicos. Peters (1986) segue
o mesmo veio: política pública é a soma das atividades dos governos... que
influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza: “política pública é o que
o governo escolhe fazer ou não fazer”. A definição mais conhecida continua a
ser a de Laswell: “decisões e análises sobre política pública implicam responder
às seguintes questões: quem ganha o quê, por que e que diferença faz”.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 5

Segundo Simões Pires (2001), as políticas públicas devem ser desenvolvidas, à


medida em que se leve em consideração as posições e interesses da sociedade, através
de um processo democrático de participação.

As políticas públicas devem ser - em sua formulação - a expressão pura e genu-


ína do interesse geral da sociedade, o que, num processo legítimo, pressupõe
seja a demanda social auscultada em instâncias democráticas, enfrentada de
forma realística pela instituição formuladora e solucionada à luz do possível
consenso dos atores sociais, sem prejuízo da adoção de critérios de conheci-
mento tecnicamente racionais para a solução de problemas sociais, a partir de
eficaz fluxo de informações (SIMÕES PIRES, 2001, p. 192).

Em última análise, entende-se que as “políticas públicas” devem representar


o conjunto de ações políticas desenvolvidas e implementadas por todos os atores
políticos, de maneira que garantam a satisfação das demandas sociais levantadas nas
mais diversas áreas.

3.2 CONCEITUANDO POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA OU POLÍTICAS


MULTICULTURAIS

No caso das políticas de ações afirmativas, o termo está relacionado ao contexto


dos movimentos sociais da década de 1960, na América do Norte, especialmente a partir
do movimento negro. O termo “ações afirmativas” surge pela primeira vez no ano de
1961, durante o governo Kennedy, que se preocupava com a possibilidade de igualdade
para negros e brancos no mercado de trabalho.

Atualmente, o termo “políticas de ações afirmativas” pode ser entendido como:

[...] o conjunto de políticas públicas para proteger minorias e grupos que, em


uma determinada sociedade, tenham sido discriminados no passado. A ação
afirmativa visa remover barreiras, formais e informais, que impeçam o acesso
de certos grupos ao mercado de trabalho, universidades e posições de lideran-
ça. Em termos práticos, as ações afirmativas incentivam as organizações a agir
positivamente, a fim de favorecer pessoas de segmentos sociais discriminados
a terem oportunidade de ascender a postos de comando. Nessa perspectiva, a
subrepresentação de minorias, em instituições e posições de maior prestígio e
poder na sociedade, pode ser considerada um reflexo de discriminação. Por-
tanto, visa-se, por um período provisório, a criação de incentivos aos grupos
minoritários, que busquem o equilíbrio entre os percentuais de cada minoria na
população em geral e os percentuais dessas mesmas minorias na composição
dos grupos de poder nas diversas instituições que fazem parte da sociedade.
(OLIVEN, 2007, p. 30)

As políticas de ação afirmativa também são comumente chamadas de “políticas


multiculturais”, referindo-se ao caráter das lutas políticas do movimento. Por outro
lado, as políticas de ação afirmativa são entendidas pelos críticos do movimento
multiculturalista como movimentos de “discriminação positiva”.

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6 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL

NOT
A!

DISCRIMINAÇÃO POSITIVA trata deliberadamente os candidatos de
forma desigual, favorecendo pessoas de grupos que tenham sido vítimas
habituais de discriminação. O objetivo de tratar as pessoas desta forma
desigual é acelerar o processo de tornar a sociedade mais igualitária,
acabando não apenas com desequilíbrios existentes em certas profissões,
mas proporcionando também modelos que possam ser seguidos e
respeitados pelos jovens dos grupos tradicionalmente menos respeitados.
(…)
A discriminação positiva é apenas uma medida temporária, até que a
percentagem de membros do grupo tradicionalmente excluído reflita mais
ou menos a percentagem de membros deste grupo na população em geral.
Em alguns países é ilegal; noutros, é obrigatória.

FONTE: Adaptado de <cadernosociologia.blogspot.com/2011_03_01_


archive.html>. Acesso em: 2 jun. 2016.

4 MULTICULTURALISMO NOS EUA: CONTEXTO DE SURGIMENTO E


POLÍTICAS MULTICULTURAIS

Como mencionamos na primeira unidade deste caderno, para compreendermos


o contexto de surgimento das políticas multiculturais nos Estados Unidos da América,
devemos resgatar o processo de constituição do Estado norte-americano, especialmente
os aspectos: das populações indígenas no território, a chegada dos primeiros colonos,
as diferentes religiões que foram trazidas, e a herança anglo-saxã, que serviu como base
para a constituição da elite econômica e política nos EUA, assim como o período da
escravização dos negros e do apartheid.

4.1 OS ÍNDIOS DA AMÉRICA DO NORTE

Com relação à questão indígena, podemos dizer que, antes da vinda dos primeiros
colonos para a América do Norte, a região já era habitada por diversos povos nativos.
Semprini (1999) estima que tenha havido um total de três a quatro milhões de índios
no território norte-americano na época da colonização, no século XVII. Havia uma
infinidade de povos ameríndios, entre os principais podemos destacar as tribos: Apaches,
Navajos, Cheroqui, Moicanos, Comanches, Aruaques, Chibchas, Mapuche e outros.

NOT
A!

Ameríndios ou nativos americanos: são os nomes dados aos povos que
habitavam as Américas antes da chegada dos europeus.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 7

FIGURA 1– GERÔNIMO: CHEFE APACHE- CHIRICAHUA

FONTE: Disponível em: <http://envolverde.com.br/sociedade/mundo-sociedade/com-o-coracao-


enterrado-na-curva-do-rio/>. Acesso em: 5 jul. 2011.

Até o século XIX a população de ameríndios nos EUA foi praticamente


exterminada. Segundo Semprini (1999), o número de sobreviventes deste genocídio,
confinados em reservas, não chegava a 200 mil pessoas.

O massacre físico se prolongaria ao longo do século XX, por uma política


sistemática de assimilação forçada e de enraizamento cultural: deslocamen-
to de populações, mistura de tribos diferentes, proibição de práticas rituais
tradicionais de culto e do ensino da língua indígena (SEMPRINI, 1999, p. 13).

Entender o processo de extinção das tribos indígenas norte-americanas torna-se


importante para compreendermos os motivos que levam os grupos minoritários a buscarem
o mínimo de reparação para as suas inúmeras perdas, dentre as quais a perda da identidade
foi a mais importante. No entanto, no decorrer do processo de colonização, conforme comenta
Semprini (1999), o sangue indígena com o sangue de seus “conquistadores” misturou-se ao
longo do tempo e acabou ficando impresso na constituição da “raça” americana. No entanto,
somente há pouco tempo os norte-americanos passaram a considerar o elemento indígena como
parte da constituição de sua identidade e, portanto, aceitar essa perspectiva. Segundo Semprini
(1999, p. 14), assumir essa característica de sua identidade,

[...] significa entender que seu país foi construído sobre um genocídio. Esta
tomada de consciência resulta, então, na procura de uma nova continuidade.
Durante dois séculos o elemento índio havia representado a alteridade abso-
luta, a diferença que deveria ser eliminada para a afirmação de sua própria
identidade. Foi imposta uma descontinuidade absoluta, por extermínio, depois
por assimilação-apagamento, e em seguida por segregação.

Somente a partir dos anos 30, a política de eliminação da identidade indígena


foi sendo, aos poucos, abandonada. No entanto, somente a partir dos anos 60 é que a
questão indígena passa a ser levada em conta pela classe política e pela opinião pública,
no sentido de reconhecer a necessidade de uma compensação por tanta selvageria e
para que seja reconhecido às nações indígenas (Indian Nations) um estatuto oficial e
direitos próprios (SEMPRINI, 1999).

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8 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL

S!
DICA

Se você quiser saber mais sobre as diferentes tribos norte-americanas, visite


o site: <http://demandadodragao.blogspot.com/2007/03/povos-ndios-
maravilhosos-ndios-cada.html>.

4.2 A IMPORTÂNCIA DO MOVIMENTO NEGRO PARA AS POLÍTICAS DE AÇÕES


AFIRMATIVAS: ESCRAVIDÃO E APARTHEID

4.2.1 A escravidão

A história da escravidão nos Estados Unidos começa em 1619, com a chegada


dos primeiros escravos na Ilha de Jamestown, no Estado da Virgínia. Durante o período
de escravidão, os negros foram tratados como mercadoria. “Importados” da África,
eram separados de seus familiares e vendidos para os plantadores de algodão e demais
agricultores do Sul dos Estados Unidos. Foram os negros que serviram de mão de obra
para as plantações dos agricultores sulistas.

Pode-se discernir, sem maiores dificuldades, diversos elementos fomentadores


da questão negra atual na história da implantação desta minoria. O múltiplo
desenraizamento (geográfico, cultural, étnico, familiar) imposto aos escravos
pode ser tido como a origem do problema identitário que atormenta a minoria
negra. Privados de qualquer forma de enraizamento tradicional ou de afinida-
des, os escravos e seus descendentes somente puderam encontrar no isolamento
e separação da cultura branca dominante, os fragmentos de uma nova identi-
dade a ser reconstruída ou a ser totalmente recriada (SEMPRINI, 1999, p. 16).

Oficialmente, a escravidão durou até o dia 1º de janeiro de 1863, quando o então


presidente Abraham Lincoln assinou a Proclamação de Emancipação dos escravos,
(Emancipation Proclamation), que libertaria quatro milhões de escravos até o dia
1º de janeiro do ano seguinte. No entanto, Lincoln não tomou a posição em prol da
abolição porque comungava dos mesmos ideais que os defensores da abolição, mas sim
porque precisava do apoio dos democratas do Norte, entre os quais havia uma parcela
significativa de eleitores abolicionistas e simpatizantes da causa negra. Desta forma,
Lincoln conquistou o movimento abolicionista, mudando desta maneira o sentido da
Guerra de Secessão, incorporando também o fim da escravatura, como a preservação
da unidade nacional, como interesses principais do conflito. Os agricultores do Sul não
se conformaram com a situação, pois acreditavam que a estrutura agrária servia de
argumento para se afirmar a necessidade da escravidão na região, na medida em que
entendiam que os negros eram, intrinsecamente, inferiores aos brancos, o que justificaria
assim a discriminação racial.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 9

S!
DICA

Para saber mais sobre a GUERRA DE SECESSÃO, acesse o site: <http://


www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/guerra-da-secessao/guerra-da-
secessao1.php>.

Percebe-se, portanto, que a discriminação do povo norte-americano em relação à


comunidade negra foi profundamente enraizada na cultura estadunidense. De acordo
com Semprini (1999, p. 17):

O silêncio da Constituição Americana sobre a escravidão e o enraizamento deste


costume na economia e nos costumes dos Estados sulistas permitem compre-
ender a presença e a continuidade no tempo, dentro da mesma sociedade, de
uma corrente racista de tipo biológico ou essencialista. Durante muito tempo,
por exemplo, os tribunais do país aplicaram a regra denominada de “gota de
sangue” (one drop rule), segundo a qual o simples fato de ter um bisavô negro
[...] bastava para classificar um indivíduo como pertencente à “raça” negra.
Além de ridícula, a one drup rule expõe os defensores do racismo biológico
contra os negros e a obsessão de pureza da qual estão imbuídos.

Esta postura racista do povo norte-americano ainda permanece na organização


social do país, de forma intrínseca. É por este traço discriminatório enraizado na cultura
norte-americana que, de vez em quando, surgem “pesquisas” com base em argumentos
biológicos que procuram provar a inferioridade ou superioridade “natural” de algumas
“raças” sobre outras.

4.2.2 Segregação racial: a ideia de inferioridade biológica

Havia, e ainda há, portanto, uma característica fundamental na questão da


desigualdade racial nos Estados Unidos. Ela se desenvolveu e se mantém pelo processo
contínuo de separação racial ao longo do tempo e pela crença ontológica de que os negros
são, naturalmente, inferiores aos brancos. Oliven (2007, p. 31) destaca que,

apesar dos princípios igualitários da república, a economia norte-americana,


principalmente no Sul, apoiava-se no trabalho escravo. Mesmo após a abolição,
negros e brancos formavam mundos à parte. Essa realidade de segregação passa
a ter um fundamento legal a partir de uma decisão da Suprema Corte, em 1896,
que considerava constitucional acomodações separadas para brancos e negros
em transportes públicos, desde que fossem equiparáveis. A filosofia do “igual,
mas separado” ergueu uma barreira, negando aos não brancos o livre acesso à
moradia, restaurantes e à maior parte dos serviços públicos.

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10 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL

NOT
A!

Um aspecto bastante específico da realidade estadunidense é a forma
como são construídas as categorias relacionadas à cor dos indivíduos.
Para ser considerado negro basta ter tido um ancestral africano. Isso
gera um preconceito racial de origem, ao passo que no Brasil, como nos
esclarece Oracy Nogueira (1985), o preconceito racial é de marca. Para
os estadunidenses, mais importante na classificação racial é o genótipo,
enquanto que no Brasil o que importa é o fenótipo, a aparência física.

Ao longo do século XX, nos Estados Unidos, houve diversos episódios de


discriminação e segregação racial em relação aos negros, como: as perseguições por parte
de organizações racistas como a Klu Klux Klan, as discriminações no direito eleitoral,
no mercado de trabalho, no acesso ao ensino e à habitação. Isso tudo desencadeou uma
série de movimentos e levantes em prol da igualdade racial. Esses movimentos foram
marcados por várias personalidades que influenciaram de forma decisiva na luta pela
conquista dos direitos civis.

4.2.3 O movimento negro nos Estados Unidos e as principais lideranças

O pastor Martin Luther King Jr. foi um personagem que influenciou de forma
decisiva o movimento de luta por direitos. King foi um líder que, influenciado pelo
pensamento de Mahatma Gandhi, lutou pela integração dos negros na sociedade
americana. O movimento pelos direitos civis, liderado por ele pregava a não-violência
e contou com a adesão de muitos brancos que eram, também, a favor da causa.

FIGURA 2- MARTIN LUTHER KING

FONTE: Disponível em: <http://www.biography.com/people/martin-luther-king-jr 9365086#synopsis&


gid=ci01ac7ce9daca860c&pid=martin-luther-king-jr-at-march-on-washington>. Acesso em: 8
maio 2016.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 11

UNI

Martin Luther King, o homem que disse a famosa frase: “Eu tenho um
sonho”, morreu no dia 4 de abril de 1968. Ele foi um pastor protestante
e ativista político estadunidense, e tornou-se um dos mais importantes
líderes do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, e
no mundo, com uma campanha de não violência e de amor ao próximo.
Foi a pessoa mais jovem a receber o Prêmio Nobel da Paz, em 1964, pouco
antes de seu assassinato.
FONTE: Disponível em: <http://www.morreuhoje.com.br/sem-categoria/
martin-luther-king/>. Acesso em: 20 ago. 2011.

S!
DICA

Para saber mais sobre a vida e a luta de Martin Luther King assista o filme
“Selma: Uma Luta pela Igualdade”, que narra a história de sua história
como pastor protestante e ativista social, que acompanha as históricas
marchas realizadas por ele e manifestantes pacifistas em 1965, entre a cidade
de Selma, no interior do Alabama, até a capital do estado, Montgomery,
em busca de direitos eleitorais iguais para a comunidade afro-americana.

Contrariamente ao movimento pacífico liderado por Martin Luther King, que


tinha como objetivo a integração racial, as lideranças que continuaram a defender os
direitos dos negros, após seu assassinato lutavam pela separação racial, exigindo do
governo uma parcela de terras para viverem suas vidas, ou mesmo o retorno a suas
terras de origem. O principal expoente deste movimento era o líder Malcolm Little, mais
conhecido como Malcom X, que lutou pela independência econômica e pela criação
de um Estado autônomo para os negros. Malcom X viajava pelos principais estados
norte-americanos para pregar as suas ideias e defender a libertação dos negros, até ser
assassinado no ano de 1965, quando discursava no Harlem, Estados Unidos.

De acordo com Oliven (2007), a atitude radical desse movimento se constituiu


na antítese da filosofia de integração, que orientou o movimento pelos direitos civis.

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12 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
FIGURA 3 - MALCOM X: LÍDER NEGRO MUÇULMANO

FONTE: Disponível em: <http://acertodecontas.blog.br/wp-content/uploads/2008/02/malcolmx.jpg>.


Acesso em: 7 maio 2016.

Ainda em meados da década de 1960, na Califórnia, surge o movimento Black


Panther (Pantera Negra). Um movimento armado que exigia uma compensação
financeira da “América Branca” pelos séculos de exploração. Além disso, exigia também
a isenção de impostos, a permissão para o uso de armas, além de outras exigências. Esse
movimento cometeu muitos excessos, o que comprometeu o apoio da opinião pública
da época, motivo pelo qual o movimento se enfraqueceu. No entanto, com algumas
alterações nas estratégias de mobilizações, o movimento sobreviveu até o ano de 1986.

FIGURA 4 – ATIVISTAS DO MOVIMENTO BLACK PANTERS

FONTE: Disponível em: < http://newyorkibe.blogspot.com.br/2014/01/a-historia-dos-panteras-negras.


html>. Acesso em: 10 maio 2016.

4.2.4 A Lei dos Direitos Civis e as primeiras políticas de ações afirmativas

De maneira geral, os enfrentamentos e as lutas por direitos sociais nos Estados


Unidos, no início do século XX, dividiram as opiniões. De um lado, havia os grupos a
favor da integração racial e, de outro, os grupos segregacionistas, que não desejavam a
mudança, pois consideravam legítimas as desigualdades. De certa forma, o que ocorre

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 13

é que, no ano de 1964, o Congresso norte-americano aprovou o Civil Rights Act (Lei dos
Direitos Civis), que, além de banir todo o tipo de discriminação, concedeu ao Governo
Federal poderes para implementar a dessegregação.

O termo ações afirmativas foi primeiramente empregado em 1961, quando o


presidente Kennedy organizou um grupo de trabalho para refletir e deliberar sobre
a questão das oportunidades iguais no mercado de trabalho. Em seguida, em 1965, o
presidente Lyndon Johnson instituiu que as empresas prestadoras de serviço ao governo
deveriam assegurar um processo seletivo de trabalho de forma igualitária para todos os
cidadãos. Determinou ainda que as empresas deveriam promover ações afirmativas que
tivessem como objetivo combater a discriminação do passado. Com o passar do tempo,
na década de 1970, essa iniciativa do governo passa a ser implementada nas instituições
de ensino e nas empresas privadas, sendo punidas as instituições que desrespeitassem
as exigências oficiais dos planos e programas de ação afirmativa.

NOT
A!

Em termos demográficos, a presença da população negra na sociedade
americana é menor do que no Brasil, atingindo pouco mais de 10%, grande
parte dela concentrada em centros empobrecidos das grandes metrópoles.

A partir do momento em que a comunidade negra efetivamente começa a colher


os resultados da mobilização social, através de políticas afirmativas, outros grupos
começam a se organizar no sentido de acessar direitos próprios às suas especificidades.

De acordo com Oliven (2007), a luta dos movimentos sociais do período pode ser
em parte resumida como a tentativa de enfrentar a “supremacia WASP” (White, Anglo-
Saxan and Protestant), ou seja, enfrentar uma maioria branca, anglo-saxã e protestante,
entendidos como colonos “oficiais” do território. Hoje, em nossa concepção, essa sigla
poderia ser acrescida ainda com as letras “M” de masculino, “H” de heterossexual e
“U” de urbano.

NOT
A!

WASP: este termo é utilizado de forma pejorativa nos países norte-
americanos. Teoricamente, a palavra designa um grupo relativamente
homogêneo de indivíduos estadunidenses de religião protestante e
ascendência britânica que supostamente detêm enorme poder econômico,
político e social. Costuma ser empregada para indicar desaprovação ao
poder excessivo de que esse grupo gozaria na sociedade norte-americana.

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14 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
4.2.5 Grupos sociais atendidos pelas políticas de ações afirmativas

Do ponto de vista do desenvolvimento e ampliação das políticas afirmativas no


período, surgem quatro grandes grupos que passam atendidos sistematicamente. De
acordo com Oliven (2007), são eles:

1. African-Americans, negros nascidos nos Estados Unidos.


2. Native-Americans, descendentes de índios que pertencem a vários grupos,
grande parte deles vivendo nos territórios indígenas demarcados.
3. Asian-Americans, descendentes de asiáticos que formam um grupo muito
heterogêneo em termos de nacionalidades, etnias, culturas e nível de escolari-
dade; são, também, oriundos de períodos migratórios diferentes.
4. Hispanics, mexicanos, porto-riquenhos, cubanos e demais migrantes de
outros países da América Central e do Sul e seus descendentes, que podem ser
brancos, indígenas ou negros (OLIVEN, 2007, p. 35).

De acordo com essa classificação, do ponto de vista da promoção do acesso a direitos,


muitos grupos estariam mal representados, ou mesmo, sem representação, dada, por exemplo,
a infinidade de descendentes de imigrantes nos Estados Unidos. Nesse sentido, as políticas
de ação afirmativa tornam-se mais vulneráveis. Vejamos agora, sob a ótica Oliven (2007), um
pequeno texto sobre o debate da ação afirmativa nos Estados Unidos.

O DEBATE SOBRE A AÇÃO AFIRMATIVA NOS ESTADOS UNIDOS

Foi principalmente através da política de ação afirmativa que se acentuou a


diversidade no ensino superior norte-americano em termos de presença conspícua
de elementos pertencentes a minorias, nos campi de universidades mais seletas. Essa
política não tem sido facilmente aceita e tem suscitado uma discussão intensa, que
transcende os limites da universidade e, em última instância, liga-se à questão da
nacionalidade.

Glazer (1975), baseando seu argumento no fato de que os EEUU são o primeiro
país a se definir, não em termos de origem étnica, mas em termos de adesão a regras
comuns de cidadania, considera inconstitucionais as políticas governamentais que
justificam o que ele chama de “discriminação afirmativa”, ou seja, o favorecimento
de minorias com o fim de alcançar o objetivo da igualdade. O referido autor se
surpreende pelo fato de que políticas, que reverteram o consenso de dois séculos de
história americana, pudessem se estabelecer de forma tão poderosa no espaço de uma
década. Para se entender essa realidade é preciso levar em conta o fato de que a nação
norte-americana, embora tenha em seu ideário os princípios liberais de liberdade e
igualdade baseadas no mérito, paradoxalmente, conviveu, por muitos anos, com uma
realidade excludente, que aceitava o extermínio dos índios em prol do progresso,
a escravidão e discriminação dos negros e a própria marginalização das mulheres,
consideradas seres inferiores.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 15

Para Takaki (1994), asiático-americano e professor da Universidade da


Califórnia, os críticos das políticas de ação afirmativa, muitas vezes, omitem o fato
de que através da história norte-americana houve sempre discriminação positiva
para homens brancos, que se beneficiaram, durante muito tempo, de oportunidades
educacionais e profissionais que lhes eram reservadas. Eles desfrutavam de inúmeras
vantagens sociais, sem terem de enfrentar a concorrência de mulheres e de minorias
consideradas não brancas. À medida em que essas vantagens eram repassadas a seus
filhos brancos, por gerações e gerações, elas se tornavam cumulativas. Aqueles que
desejam abolir as políticas de ação afirmativa colocam vários argumentos, tais como:

• A existência de cotas acaba sendo injusta e mesmo desrespeitosa para os membros de


minorias que sejam realmente competentes, pois eles são invariavelmente tomados
como beneficiários de uma política de discriminação positiva a favor de seu grupo;
• Raça não é um sinônimo de condição social, ou seja, nem todos os negros são pobres
e nem todos os pobres são negros;
• As políticas de ação afirmativa deram origem a uma burocracia encarregada
de promover programas para combater a discriminação racial, e esse grupo de
burocratas tende a se expandir desenvolvendo interesses próprios.

Uma das formas de tornar mais aceitáveis as políticas de ação afirmativa é a


de apresentá-la não como uma política de discriminação positiva, mas como uma
forma de respeitar as diferenças culturais numa sociedade que se torna cada vez mais
multicultural.

Young (1995) chama a atenção para a necessidade de que as diferenças sociais,


que impliquem em relações de opressão, sejam trazidas a público e façam parte das
negociações políticas. Para a referida autora, a diferença tem de ser contextualizada, ela
faz parte de um processo relacional. A comparação de grupos sociais é algo bastante
complexo e envolve não apenas os grupos que são comparados, mas, também, os
critérios e os objetivos da comparação. É importante, também, não esquecer que o
fato de haver diferenças entre grupos não exclui a presença de atributos, experiências
e objetivos em comum (WILSON, 1994). Num enfoque que privilegia a perspectiva
da justiça social, Wilson aponta as limitações das políticas de ação afirmativa para a
solução dos graves problemas que afetam a população negra americana no presente.
Ele chama a atenção para o fato de que mudanças políticas e econômicas contribuíram
para a mobilidade individual de um segmento da população negra, o que propiciou
um processo de desracialização no setor econômico, ou seja, diferenças raciais perdem
a importância em determinar a ascensão social nos Estados Unidos. Se, por um lado,
o crescimento econômico deu origem a uma classe média negra, por outro lado, a
reorientação da economia, que seguiu ao período de prosperidade, tem diminuído as
oportunidades de quase toda a natureza para os outros segmentos da população negra.

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16 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
A mudança econômica, que se caracterizou pela desindustrialização de certos
setores e maior ênfase na prestação de serviços, tem tornado redundantes os negros,
trabalhadores industriais.

Muitas indústrias, que não necessitam mão de obra especializada, deixaram


as grandes metrópoles americanas para se instalar em países com mão de obra mais
barata. Assim, “os negros, principalmente os homens, essenciais na força de trabalho
no passado, têm se tornado, em grande parte, supérfluos como trabalhadores no
presente” (WILSON, 1994).

O referido autor é crítico da atmosfera de verdadeiro chauvinismo racial que


impregnou alguns representantes do que chama de “perspectiva negra”. Assim, as
atitudes de cooperação e integração entre as raças acabaram por ser desqualificadas
e a solidariedade dentro do grupo assumiu uma proporção indevida, que pregava a
hostilidade em relação aos brancos em geral. Essa perspectiva tirou de foco a discussão
de problemas relacionados com as mudanças estruturais da economia, que estavam
afetando profundamente as populações negras mais carentes; uma vez que o problema
era definido em termos raciais, as discussões de caráter mais econômico tornavam-se
secundárias.

Pode-se dizer que a política de ação afirmativa nas universidades tem muito a
ver com os valores norte-americanos: elementos das minorias, inclusive as mulheres,
passam a ter a sua chance de vencer na vida, de cada grupo são cooptados os melhores
para participar nas esferas econômica, acadêmica, política e, à medida em que eles são
bem-sucedidos, passam a servir de exemplo aos demais. Essa política é talhada para
reforçar a ideia de tipo ideal americano como the winner, o vencedor, e não se dirige
para a solução dos problemas que afetam um significativo segmento da população
– the losers, os perdedores –, aqueles que são deixados à margem na reestruturação
econômica da sociedade capitalista e que, ainda por cima, devem carregar o ônus da
responsabilidade de sua precária condição. É importante, no entanto, salientar que
as políticas de ação afirmativa favoreceram a mobilidade social de certos segmentos
da população negra e de outros grupos discriminados. Elas abriram as portas da
universidade para minorias até então praticamente excluídas. Mais do que isso, o
debate sobre a Ação Afirmativa traz à discussão a questão da discriminação social,
do ônus que isso representa para determinados grupos e das possíveis orientações
políticas que possam vir a combater uma situação social inerentemente injusta.

UM NOVO CENÁRIO

A Universidade da Califórnia, a maior e mais importante universidade pública


nos Estados Unidos, ainda na década de 60 foi uma das primeiras a estabelecer

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 17

programas que aumentassem a presença de minorias na sua comunidade acadêmica.


Em dezembro de 1994 foram amplamente noticiados os dados sobre o aumento do
percentual de minorias que passaram a representar 21% dos calouros. Galligani,
assistente do vice-presidente encarregado da parte acadêmica dos estudantes, disse
em entrevista: “É gratificante que o nosso comprometimento com a diversidade tenha
alcançado bons resultados”. No ano seguinte, no entanto, os Regents, responsáveis
pela universidade, aproveitando o recesso escolar, votaram, no mês de julho de 1995,
a suspensão dos programas de ação afirmativa baseados no critério racial.

Moehlecke (2004), ao analisar o caso da Universidade da Califórnia, mostra


como o abandono de cotas raciais, no final da década de 1990, fez o percentual dos
alunos negros retroceder aos níveis dos anos 60. No ano 2001, a Universidade passou,
então, a admitir automaticamente os melhores alunos das escolas públicas, elevando
assim o número de alunos negros; esses, no entanto, passaram a ser aceitos em campi
e cursos menos seletivos.

A referida autora conclui: o que vale observar das mudanças pelas quais a
Universidade da Califórnia passou ao longo desse processo é que, mesmo após os
reveses e a extinção de medidas raciais, a preocupação com a igualdade e a diversidade
de seus campi continua parte dos objetivos básicos da instituição. [...] O que se define
hoje como uma universidade de excelência nos Estados Unidos, diferentemente do que
ocorria nos anos de 1960, envolve necessariamente valores como a inclusão, igualdade
e diversidade (MOEHLECKE, 2004, p. 772).

Para Ibarra (2001), a maioria das pessoas, atualmente, pensa que as ações
afirmativas vão desaparecer do cenário da educação superior ou, ao menos, acreditam
que elas vão evoluir. No final da década de 90, as administrações de George Bush no
Texas e de seu irmão, na Flórida, instituíram a admissão garantida nas universidades
estaduais para os melhores alunos das escolas médias, com isso dificultando o acesso
de minorias ao ensino superior.

Essas decisões políticas representam uma mudança dramática para a educação


superior americana. Elas ocorreram paralelamente a recorrentes protestos de
discriminação e racismo institucional nos campi universitários em todo o país; acusações
que sempre deixam um sentimento amargo e uma sensação de perplexidade entre a
maioria dos homens que continuam a manter o predomínio entre o corpo docente e
de posições administrativas (IBARRA, 2001, p. 3).

O referido autor chama a atenção para o reduzido número de pesquisas feitas


sobre o aumento da diversidade nas universidades americanas. “A ação afirmativa tem
se tornado, simplesmente, a coisa certa a ser feita, e ninguém tem se empenhado em

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18 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL

justificar o seu valor de alguma forma mais objetiva. O resultado pela complacência
foi a debacle dos 1990s” (IBARRA, 2001, p. 4).

Em 2003, a Suprema Corte dos Estados Unidos reafirmou a constitucionalidade


de levar em conta raça e etnia na seleção dos alunos para a universidade. Essa decisão
judicial reacendeu o debate nacional e levou os grupos contrários às ações afirmativas
a intensificarem procedimentos outros que não os jurídicos, mudando a sua estratégia
política através da promoção de plebiscitos estaduais (MOSES, 2005).

FONTE: Disponível em: <revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/.../539/375>. Acesso


em: 17 ago. 2011.

Não falamos aqui sobre outros movimentos sociais da década de 1960 nos Estados
Unidos, porque o movimento negro foi o que mais teve peso na conquista dos direitos
civis, momento de abertura política para os movimentos em geral. No entanto, não
podemos deixar de admitir que muitos outros movimentos foram importantes para a
conquista das políticas multiculturais. Dentre eles, podemos destacar os movimentos:
operário, feminista, homossexual, hippie, religioso e outros.

S!
DICA

Para um aprofundamento destes temas, sugerimos:

Ler o livro: Geronimo e os Apaches, uma


autobiografia do Último Chefe Índio. Edição/
reimpressão: 2005. Editor: Edições Silabo. Coleção:
Líderes e Povos
Sinopse: Geronimo e os Apaches constitui um
documento escrito, simultaneamente genuíno e
raro, acerca dos índios norte‑americanos, elaborado
com infor­m ações narradas pelo último chefe
índio. A partir da sua história pessoal, Geronimo
descreve pormenorizadamente a vida da sua tribo,
revelando‑nos perspectivas fascinantes sobre os
Apaches – história, religião, organização social, costumes e tradições
–, dando‑nos testemunhos emotivos e apaixonantes, de inegável valor
histórico.
FONTE: Disponível em: <www.revistamilitar.pt/modules/articles/article.
php?id=85>. Acesso em: 20 ago. 2011.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 19

S!
DICA

   Assistir ao filme MALCOLM X, que trata da


biografia do famoso líder afro-americano (Denzel
Washington) que teve o pai, um pastor, assassinado
pela Ku Klux Klan e sua mãe internada por
insanidade. Ele foi um malandro de rua e, enquanto
esteve preso, descobriu o Islamismo. Malcolm
faz sua conversão religiosa como um discípulo
messiânico de Elijah Mohammed (Al Freeman Jr.).
Ele se torna um fervoroso orador do movimento e se
casa com Betty Shabazz (Angela Bassett). Malcolm X
ora uma doutrina de ódio contra o homem branco até
que, anos mais tarde, quando fez uma peregrinação
à Meca, abranda suas convicções. Foi nesta época que se converteu ao
original Islamismo e se tornou um “Sunni Muslim”, mudando o nome
para El-Hajj Malik Al-Shabazz, mas o esforço de quebrar o rígido dogma
da Nação Islã teve trágicos resultados.
FONTE: Disponível em: <www.adorocinema.com/filmes/malcolm-x/>.
Acesso em: 20 ago. 2011.

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20 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
REFERÊNCIAS

FERNANDES, José Pedro Teixeira. Multiculturalismo e segurança societal. Artigo


publicado na revista R: I Relações Internacionais, n. 9, p. 129-149, mar. 2006.
Disponível em: <http://www.jptfernandes.com/docs/Multiculturalismo_e_Seguranca_
Societal.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2011.

OLIVEN, Arabela Campos. Ações afirmativas, relações raciais e Política de


Cotas nas Universidades: uma comparação entre os Estados Unidos e o Brasil.
Porto Alegre, ano XXX, n. 1 v. 61, p. 29-51, jan./abr. 2007. Disponível em: <http://
revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/viewFile/539/375>. Acesso
em: 22 maio 2011.

SEMPRINI, Andreia. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 2005.

SIMÕES PIRES, Maria Coeli. Concepção, financiamento e execução de políticas


públicas no estado democrático de direito. Tribunal de Contas de Minas Gerais,
Belo Horizonte, v. 39, n. 2, p. 141-192, abr./jun. 2001.

______. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 1999.

SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. In: Sociologias, Porto
Alegre, ano 8, n. 16, jul./dez. p. 20-45, 2006.

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Curso sobre Antropologia Geral e o debate multicultural


Centro Universitário Leonardo da Vinci

Autora
Luciane da Luz
Pedro Fernandes da Luz

Organização
Fábio Roberto Tavares

Reitor da UNIASSELVI
Prof. Hermínio Kloch

Pró-Reitoria de Ensino de Graduação a Distância


Prof.ª Francieli Stano Torres

Pró-Reitor Operacional de Ensino de Graduação a Distância


Prof. Hermínio Kloch

Diagramação e Capa
Letícia Vitorino Jorge

Revisão
Fabiana Lange Brandes
José Roberto Rodrigues
APRESENTAÇÃO

Olá, cursistas! Sejam bem-vindos ao curso livre de Antropologia Geral e o Debate


Multicultural.

Nesta etapa do curso discutiremos o contexto histórico de surgimento do


multiculturalismo na Europa, no Canadá e na Austrália, e as políticas desenvolvidas a
partir de orientações multiculturais. Veremos que o surgimento do multiculturalismo,
em alguns países do Continente Europeu, aconteceu de maneira semelhante ao processo
ocorrido nos Estados Unidos, onde movimentos sociais e grupos de direitos humanos
reivindicaram políticas de ação multicultural; e em outros, de forma muito diferenciada,
onde os governos é que organizaram tais políticas com o objetivo de diminuir problemas
econômicos e sociais.

Também veremos as políticas multiculturais no Canadá e na Austrália, que


revelam maior integração entre imigrantes com os nativos desses países, buscando
valorizar a diversidade étnica e cultural dos estrangeiros através do respeito à sua
identidade cultural e sua inserção na comunidade local.

Na sequência traremos o contexto histórico do surgimento do multiculturalismo


na América Latina e as políticas desenvolvidas a partir de orientações multiculturais.
Veremos que o surgimento das políticas multiculturais em alguns países da América
Latina aconteceu apenas nas duas últimas décadas do século XX.

Por fim, falaremos sobre as políticas multiculturais no Brasil, dois dos principais
movimentos multiculturais do pais e o surgimento das primeiras políticas de ação
afirmativa durante o Governo Lula, por meio da criação de secretarias especializadas.
Enfatizaremos alguns elementos fundamentais para a discussão das políticas
multiculturais no país, que são as políticas de cotas nas universidades, o Estatuto
da Igualdade Racial e a criação das comunidades quilombolas e negras com vistas a
assegurar o direito à propriedade da terra e à manutenção da sua cultura.
2 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
1 MULTICULTURALISMO NA EUROPA, CANADÁ E AUSTRÁLIA

1.1 CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO DO MULTICULTURALISMO NA EUROPA

A partir da criação da União Europeia, com a união de 27 países europeus, esse


conjunto de países passa a preocupar-se também com questões culturais e identitárias,
pois para maior integração entre os países-membros, seria necessário elaborar e executar
políticas de integração cultural com o objetivo de diminuir os conflitos e problemas
gerados pelas diferentes culturas e etnias que habitam o Continente Europeu, mais
especificamente, a União Europeia.

Conforme K astoryano (2004), a Europa tem se preocupado em definir uma


identidade comum no seu continente, principalmente, após a consolidação da União
Europeia, com o objetivo de fortalecer economicamente os países-membros.

Esse debate sobre a questão de uma única identidade na Europa trouxe inúmeros
questionamentos, conforme nos diz Kastoryano (2004, p. 14):

[...] Como combinar a ideologia universalista dos Estados-Nações com o par-


ticularismo cultural e histórico que caracteriza cada uma das nações? Como
optar entre os interesses econômicos e uma vontade política comum, por um
lado, e, por outro, a soberania dos Estados e suas tradições políticas? Como
articular as pertenças plurais e complexas dos indivíduos, dos grupos e dos
povos, para lograr construir uma identidade política que seja europeia, ou,
antes, suscitar uma identificação com a Europa enquanto novo espaço político
de ação e de reivindicação?

Diante desses questionamentos, podemos dizer que a questão da identidade


comum entre os países europeus precisou levar em consideração as especificidades
locais e regionais, além das características culturais, linguísticas e religiosas de diversos
grupos que se estebeleceram no Continente Europeu.

Outro fator importante a ser considerado neste contexto são os imigrantes


provenientes dos mais diversos países e regiões do mundo que, após a Segunda Guerra
Mundial, povoaram os seguintes países da Europa: Alemanha, França, Bélgica, Holanda
e Inglaterra. Conforme Sansone (2003, p. 537-538), a base do multiculturalismo nestes
países encontra-se em três fontes clássicas:

Em primeiro lugar, há o pacto social – o compromisso do Estado e de parte


das elites de cuidar dos excluídos e pobres... A segunda fonte importante é o
passado colonial, quer dizer, a forma pela qual se procederam nas colônias a
organização e, às vezes, até a militarização do confronte em face da diversidade
cultural.... Esses estilos de colonialismo previam a institucionalização de algum
tipo de etnicização dos direitos e deveres, embora, depois da Segunda Guerra
Mundial, muitas vezes associados a um discurso de igualdade e de respeito à
diferença... A terceira fonte clássica é a tradição, que diz respeito às formas de
se lidar com as diferenças étnicas e regionais internas desses países europeus

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 3

(Lucassen e Pennix, 1994). Trata-se do assim dito “regionalismo” de alguns deles


que se afirmam como Estados-nação na Europa, a partir de um compromisso
com as diferenças culturais regionalizadas, redistribuindo recursos e poder
político para minorias e “colônias” internas. Refiro-me aos catalães, bascos,
bretões, galeses, sardos, corsos etc.

Nos países citados anteriormente, foram implementadas diversas políticas


públicas com o objetivo de amenizar as desigualdades sociais e fazer a redistribuição de
renda para que os conflitos sociais fossem menos impactantes para o país. Como exemplo
de uma dessas políticas públicas de inserção social, citamos o seguro-desemprego.

A difícil relação existente entre colônia e metrópole perdurou e ainda permanece


complexa até os dias atuais, onde as pessoas que habitavam as antigas colônias
dominadas por países europeus hoje vivem nas suas metrópoles e requerem os mesmos
direitos que as pessoas que ali nasceram. Não queremos dizer que, com essas ações
fundamentadas no multiculturalismo, os problemas relativos às diferenças étnico-
religiosas, de grupos migratórios e das chamadas minorias étnicas, terminou nos países
da Alemanha, França, Inglaterra, Bélgica e Holanda, mas pelo menos fez-se um esforço
no sentido de amenizar os conflitos e diminuir as tensões sociais ocasionadas por estes
grupos e os nativos desses países. Kastoryano (2004, p. 19) afirma que:

Na França, na Alemanha, na Grã-Bretanha, na Holanda etc., o termo multi-


culturalismo reporta-se, como nos Estados Unidos, à forma de organização
supostamente comunitária das populações resultantes da imigração em torno
de uma nacionalidade ou de uma religião comum (ou as duas coisas) e à rei-
vindicação das suas especificidades na esfera pública, como as minorias étnicas
ou os negros nos Estados Unidos.

Isso quer dizer que na França, na Alemanha, Grã-Bretanha e na Holanda, os


grupos provenientes do processo de imigração buscaram através da sua própria
organização reivindicar direitos e benefícios sociais dos governos que compõem esses
países. Portanto, o termo multiculturalismo surge com significado político, gerando
ações de inclusão social.

Na Europa, o multiculturalismo corresponde a situações diversas consoante à


estrutura do Estado e o reconhecimento das particularidades regionais e lin-
guísticas. Com efeito, alguns países do Velho Continente institucionalizaram
o pluralismo através da criação de regiões dotadas de poderes, como a Itália
e a Espanha; outros erigiram o Estado sobre um pluralismo linguístico, como
a Bélgica e a Suíça, com, em ambos os casos, comunidades linguísticas e ter-
ritoriais dotadas de instituições próprias (KASTORYANO, 2004, p. 18-19).

Segundo Kastoryano (2004, p. 19), “na Europa Ocidental, o emprego do termo


multiculturalismo marca a passagem de uma imigração econômica temporária a uma
presença permanente das populações imigrantes e, igualmente, o aparecimento de
estratégias políticas nessa via”.

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4 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
Isso significa dizer que o processo de implantação das políticas multiculturais
é muito diferenciado nos países da Europa, levando sempre em consideração as
particularidades regionais e culturais de cada país e as suas necessidades políticas e
sociais, que ora requerem um maior avanço e investimento nessa área e, outras vezes,
essas políticas passam a ser delegadas como questões de menor relevância e menos
investimento político e econômico.

Podemos dizer que a imigração e a situação dos direitos dos cidadãos estrangeiros,
bem como o desenvolvimento de políticas multiculturais, vêm sendo um dos assuntos
de grande destaque e relevância na União Europeia.

1.2 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA ALEMANHA

O termo multiculturalismo começa a ser usado na Alemanha nos anos 1980, onde
o Estado passa a desenvolver políticas multiculturais devido à crescente imigração no
país, tentando amenizar os conflitos existentes entre nativos e imigrantes e desenvolver
políticas sociais de apoio a esses estrangeiros. Segundo Kastoryano (2004, p. 19):

Na Alemanha, de fato, o termo multiculturalismo difunde-se a partir do início


dos anos 80. No município de Frankfurt é mesmo criado um setor de “Assuntos
Multiculturais”, cujo responsável, simultaneamente vice-presidente da autar-
quia, Daniel Cohn-Bendit, defende uma “democracia multicultural” inspirada
no Contrato Social de Rousseau.

Apesar de a Alemanha defender uma democracia multicultural onde os


estrangeiros possam ter seus direitos reconhecidos, grande parte da população
estrangeira que vive no país não tem o mesmo grau de escolaridade dos alemães, mais
de 20% dos filhos de imigrantes só possuem a escolaridade primária e estão destinados
aos piores empregos ou até ao desemprego, ficando, muitas vezes, dependendo da
assistência social oferecida pelo Estado.

Portanto, as políticas multiculturais na Alemanha não têm sido eficazes na


diminuição do preconceito existente entre as pessoas nascidas no país e os estrangeiros e
seus descendentes. O país ainda apresenta fortes traços racistas. De acordo com Sansone
(2003), nas escolas onde estudam filhos de imigrantes, os filhos de alemães não estudam,
formando verdadeiros guetos dividindo estrangeiros e seus descendentes nascidos na
Alemanha, dos filhos de casais alemães. Uma grande dificuldade de entrosamento das
crianças filhas e filhos de imigrantes com as crianças alemãs, de acordo com Sansone
(2003), tem sido a falta de domínio do idioma alemão, o que mais tarde dificultará a
entrada delas no mercado de trabalho.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 5

1.3 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA FRANÇA

A França, assim como a Alemanha, passa a ser chamada de sociedade multicultural


a partir da década de 1980, pois esse país recebe imigrantes desde a segunda metade
do século XIX, devido à falta de crescimento populacional do país entre 1850 e 1900,
quando necessitava de mão de obra para suprir as necessidades do mercado de trabalho
no processo de industrialização do país.

A partir de 1940, a França passa a restringir as políticas de incentivo à imigração.


No final da década de 1960 até 1977, o governo francês decide restringir a entrada de
trabalhadores estrangeiros devido à forte crise econômica que o país atravessava. Na
década de 1980 é que os grupos de direitos humanos passam a pressionar o governo
a instalar mecanismos com o objetivo de assegurar alguns direitos aos estrangeiros e
diminuir o preconceito contra essas pessoas.

Esta terminologia encontra legitimidade no discurso político que privilegiara


“o direito à diferença”, acompanhado, desde 1981, pela liberalização da lei so-
bre as associações de estrangeiros, que conferiu estatuto legal às organizações
que privilegiam as identidades, quer se definam como eminentemente sociais,
culturais, laicas ou religiosas (KASTORYANO, 2004, p. 19-20).

Recentemente, vimos que tais mecanismos não foram suficientes para conter a
onda de revolta dos estrangeiros em Paris, principalmente dos imigrantes provenientes
de países pobres, que se encontram marginalizados, em situações de pobreza e miséria,
morando nas regiões periféricas de Paris.

As políticas de inclusão social do Estado de Bem-Estar Social (investimento do


Estado em políticas sociais de assistência social, saúde, educação, trabalho e renda)
existentes nos anos 80 não existem mais hoje, onde a maioria dos países investe o mínimo
nas questões sociais (Neoliberalismo ou Estado Mínimo). Esse baixo investimento
do Estado nas questões sociais, o aumento do desemprego e o racismo sofrido pelos
imigrantes e seus descendentes foram fatores determinantes na explosão dos conflitos
vividos na França no início do século XXI.

1.4 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA SUÉCIA

Diferente dos demais países apresentados acima, a Suécia não se define como
um país de imigrantes. De acordo com Marques (2003, p. 14), “teve um fenômeno de
emigração relevante no século XIX, no entanto, depois da 2ª Guerra Mundial recebeu
muitos refugiados e, a partir de 1954, a chegada de muitos trabalhadores finlandeses [...]”.

A Suécia passou a ser um país que melhor recebe os imigrantes dentre os países
europeus, segundo um estudo realizado pela Política de Integração Migratória. A
Suécia foi considerada o melhor país para receber imigrantes levando em consideração

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6 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
os seguintes itens: emprego, direito dos imigrantes, ajuda para a família e leis contra
racismo.

A partir de 1975, a Suécia passa a desenvolver políticas multiculturais baseadas


em três pontos fundamentais, segundo Marques (2003, p. 14):

Igualdade: dar aos imigrantes o mesmo nível de vida que o resto da população;
Liberdade de escolha: iniciativas políticas que assegurem às minorias étnicas e
culturais na Suécia uma genuína escolha entre manter e desenvolver a identi-
dade cultural sueca; Parceria: promover os benefícios mútuos entre minorias
e população nativas, decorrente do trabalho conjunto. Muitas dessas políticas
resultam de estratégias que são dedicadas a grandes quantidades de refugiados
e envolvem diferentes graus de empenho da população.

Essas políticas proporcionaram aos imigrantes, até o final do século XX, uma
inserção social harmônica na sociedade sueca e os mesmos benefícios existentes para a
população nativa desse país.

Segundo informações do relatório de imigração elaborado por Rui Marques


(2003), no início do século XXI as políticas multiculturais sofrem um enfraquecimento
na Suécia, devido aos problemas socioeconômicos enfrentados pelo país, especialmente
com a elevação do índice de desemprego, onde imigrantes passam a ser vistos como
concorrentes das pessoas nascidas no país. Mesmo assim, esse país continua sendo o que
mais investe em políticas multiculturais na Europa. Mas, atualmente dois países fora do
Continente Europeu se destacam em relação à implantação de políticas multiculturais:
o Canadá e a Austrália.

1.5 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO CANADÁ

O Canadá foi o primeiro país a desenvolver políticas multiculturais. A partir de


1971, o Canadá passou a desenvolver políticas multiculturais com o objetivo de preservar
a cultura das minorias étnicas existentes no país e de desenvolver a integração entre
esses grupos, os imigrantes, e a população nativa.

Em 1972, a política multicultural ganhou um status importante no país, com a


nomeação de um ministro de Estado para o Multiculturalismo, e foi aprovada a Lei
de Direitos Humanos, que protege legalmente os imigrantes e minorias étnicas da
discriminação. Em 1981 essa política foi expandida com a inclusão das relações raciais,
e no ano de 1982 é promulgada a Carta de Direitos e Liberdades.

No ano de 1988 foi sancionada a Lei do Multiculturalismo, que trouxe como


princípios fundamentais a preservação da cultura e da língua de todos os membros
da sociedade canadiana, e as instituições governamentais da esfera federal devem
promover programas com o objetivo de assegurar a diversidade étnica e cultural de

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 7

todos os membros da sociedade do Canadá.

Na área da educação foram desenvolvidos diversos programas de ensino com


disciplinas de estudo sobre a temática do multiculturalismo e história étnica na educação
básica e nas universidades, fazendo com que os alunos passassem a compreender a
diversidade étnica racial existente no país. Os meios de comunicação, como rádios,
jornais e televisão, exibem programas em várias línguas, representando as mais diversas
culturas existentes no país.

Outra questão importante, que tem feito o governo do Canadá investir cada
vez mais em políticas multiculturais, é que os imigrantes trabalham em diversas áreas
de forma autônoma, não dependendo muito do incentivo governamental, e assim
economiza mais recursos, investindo mais na economia do país. Portanto, além da
riqueza cultural que trazem os imigrantes, eles têm contribuído de forma significativa
para a melhoria da economia do país.

1.6 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AUSTRÁLIA

Na atualidade a Austrália tem sido o país que mais investe em políticas


multiculturais como forma de agregar culturalmente e economicamente imigrantes
de diversos países, aumentando seu desenvolvimento econômico. Segundo Marques
(2003, p. 12):
Em 1989 foi definida uma “Agenda Nacional para a Austrália Multicultural”,
que vem sendo atualizada, tendo sido lançada em 1999 a “Nova Agenda para
a Austrália Multicultural”. Desde o início, inclui três dimensões distintas: O
direito à identidade cultural; à justiça social; Necessidade de eficiência eco-
nômica, que envolve a utilização dos talentos e das competências de todos os
australianos.

Com relação à primeira dimensão, direito à identidade cultural, trata-se do


respeito à diversidade linguística e o uso da língua das minorias étnicas no serviço
público, além do governo proporcionar o aprendizado da língua oficial do país, o inglês,
e oferecer também o aperfeiçoamento da língua do país de origem dos imigrantes. A
questão da comunicação social, onde existe a presença marcante dos grupos minoritários,
e a educação através do investimento em uma política intercultural que tem por objetivo
reforçar a diversidade nas relações sociais.

Na segunda dimensão, direito à justiça social, trata-se do direito à igualdade


de participação em todas as instâncias sociais, políticas, econômicas e jurídicas da
Austrália e acesso aos serviços públicos oferecidos, sem tolerância de qualquer forma
de discriminação racial ou étnica.

Na terceira dimensão, necessidade de eficiência econômica, que envolve a


utilização dos talentos e das competências de todos os australianos, tem por objetivo

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8 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
reconhecer a formação dos imigrantes no seu país de origem; disponibilizar as políticas
públicas de trabalho e renda e aproveitar o perfil profissional de todos, incluindo-os
no mercado de trabalho.

Além dos direitos descritos anteriormente, essa agenda prevê os deveres dos
imigrantes, que são:

Aceitação das estruturas e princípios básicos da sociedade australiana, incluin-


do a Constituição e o quadro legal vigente, tolerância e igualdade, democracia
parlamentar, liberdade de expressão e de religião, inglês como língua nacional,
igualdade de sexos, e obrigação de aceitar que os outros expressem seus valores
(MARQUES, 2003, p. 12).

Essa nova agenda para a Austrália Multicultural, lançada em 1999, traz o conceito
de “diversidade produtiva”, trata da junção do multiculturalismo com a economia,
objetivando os lucros resultantes da diversidade cultural da população australiana,
com a incorporação dos imigrantes no mercado de trabalho do país, reforçando a língua
e a cultura trazidas do seu país de origem, fazendo com que os mesmos possam ter
condições de atender às demandas de um mercado de trabalho cada vez mais exigente
e diversificado.

2 A FRAGILIDADE DAS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA LATINA

As políticas multiculturais na América Latina têm sido insuficientes para dar


conta de diminuir as desigualdades sociais ocasionadas pela exploração de vários povos,
como os indígenas e os negros. Isso acontece porque na América Latina, a discriminação
dirigida a negros, índios e tantas outras minorias étnicas, ocorre de forma velada, ou
seja, de forma indireta e personalista, como se a questão fosse individual e não social.
Ficando no nível pessoal, muitos governos não reconhecem esse problema, e, não o
reconhecendo, não planejam e executam políticas públicas nesta direção.

Esse processo começa com a colonização, que em praticamente todos os países


da América Latina foi de exploração, onde europeus, principalmente portugueses e
espanhóis, invadiram nossas terras em busca de riquezas e, para manter essas riquezas,
as metrópoles e os demais países da Europa contaram com a exploração dos índios
e dos negros. Quando esses povos chegaram à América Latina, a primeira coisa que
fizeram foi tentar “aculturar os índios”, ou seja, iniciaram um processo de culturalização
semelhante ao que eles tinham na sua cultura, não aceitando a diversidade cultural e
linguística que os índios tinham. Esse processo ocasionou muitos conflitos e choques
culturais, e quem saiu perdendo foram os habitantes nativos da América Latina recém
“descoberta” pelos europeus, pois de forma violenta e sem condições de defesa, vários
índios, dentre eles mulheres e crianças, foram mortos para que o projeto de exploração
desse território pudesse ser levado adiante sem a interferência dos nativos.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 9

Esse processo de colonização da América Latina, que perdurou até o início


do século XX, em alguns países, quase provocou a eliminação da cultura indígena
e a supremacia da cultura europeia. Portanto, a diversidade cultural aqui existente
foi praticamente esquecida, politicamente, e apenas no final do século XX, com as
constituições federais democráticas, é que alguns países começam a tentar corrigir
as injustiças praticadas contra esses povos e a iniciar um processo de resgate dessas
culturas, apesar da completa extinção de muitas tribos indígenas. Vieira e Pinto (2008,
p. 4) nos dizem que:

As novas constituições contêm algum tipo de reconhecimento da diversidade


cultural e linguística e, em alguns casos, estabelecem regimes jurídicos espe-
cíficos às comunidades indígenas. Algumas respostas são mínimas e pouco
satisfatórias, outras são amplas e de completa aplicação prática.

É diante desse contexto, onde todos os países da América Latina foram colônias
de exploração e continuam sofrendo até hoje as consequências sociais e econômicas,
especificamente para as culturas minoritárias, e ainda diante do processo de ditadura
militar que passou a maioria dos países, a partir de meados do século XX até a década
de 1980, é que temos que analisar as políticas multiculturais nesses países.

2.1 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA COLÔMBIA

As políticas multiculturais na Colômbia passam a desenvolver-se na década


de 1990, mais especificamente com a Constituição de 1991 definindo o país como
multicultural e multiétnico. Vieira e Pinto (2008, p. 2) dizem que na Constituição da
Colômbia de 1991:

[...] estão presentes os ideais de universalismo e de individualismo contidos nos


direitos fundamentais de caráter liberal e, ao mesmo tempo, o reconhecimen-
to das tradições morais particulares e do direito a autogoverno das minorias
culturais. Tal reconhecimento foi uma enorme conquista para os movimentos
sociais indígenas, que puderam se manifestar democraticamente na Assembleia
Constituinte de 1991. No entanto, a institucionalização de um ambiente jurídico
plural dentro de um Estado gera a questão de como compatibilizar as diferentes
ordens, principalmente quando a ordem local viola de qualquer forma a ordem
normativa nacional ou mesmo internacional. Os conflitos entre ordenamentos
na Colômbia têm sido resolvidos pela Corte Constitucional daquele país.

A Constituição Federal Colombiana de 1991 foi um importante instrumento


jurídico para aplicação de alguns direitos fundamentais para a população da Colômbia,
respeitando a diversidade cultural do país e garantindo autonomia e direitos específicos
para as minorias culturais, ou seja, as comunidades indígenas não são julgadas de
acordo com os mesmos parâmetros jurídicos (normas e leis) das demais comunidades,
não sofrendo as mesmas penalidades que são impostas aos brancos e negros quando
cometem algum delito ou crime. De acordo com Sansone (1998, p. 3):

Na história das relações raciais na Colômbia, três fases podem ser identificadas:

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10 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
o período colonial, a independência – à qual corresponde a criação de uma
comunidade nacional – e o desenvolvimento de novas perspectivas étnicas,
nas últimas décadas. Em cada uma delas o status do índio mostrou-se bastante
diferente daquele do negro.

Em 1993, o Congresso Colombiano aprovou a Lei nº 70 incorporada à Constituição


Federal, falando das comunidades negras. Essa lei estabelece os direitos essenciais à
sobrevivência dessas comunidades e torna ilegal a discriminação racial contra esse
grupo, além de definir os elementos específicos da cultura afro-colombiana. Sansone
(1998, p. 4) diz que:

Ela concede direitos fundiários às comunidades negras, mas exclui o controle


sobre os recursos naturais, o subsolo, os parques nacionais, as zonas de interesse
militar e às áreas urbanas. A lei prescreve que os recursos naturais sejam geren-
ciados pela comunidade, que está obrigada a fazê-lo de forma ecologicamente
sustentável. Em segundo lugar, a lei visa melhorar a educação, a formação,
o acesso ao crédito e, também, as condições materiais dessas comunidades.
A aplicação desse aspecto da lei deve ser garantida mediante a participação
de representantes das comunidades no Conselho Nacional de Planejamento,
assim como na divisão de Assuntos das Comunidades Negras que o governo
deverá criar.

Vejamos que, ao mesmo tempo em que a lei estabelece algumas garantias


fundamentais às comunidades negras colombianas, também delimita a sua ocupação
e a forma de ocupação nesse território, colocando as comunidades negras em espaços
específicos, longe do convívio com a comunidade urbana e determinando critérios
específicos de não exploração dos recursos naturais, mas, ao mesmo tempo, eles
são obrigados a cuidar e zelar pelos mesmos recursos, pois serão os frutos da sua
sobrevivência. Um dos aspectos principais dessa lei é sobre o direito à educação levando
em consideração os aspectos culturais dos afro-colombianos.

Apesar dessa lei, ainda existem na Colômbia enormes dificuldades para a sua
implantação, principalmente os objetivos referentes à proteção da cultura dos afro-
colombianos. Mas o maior benefício que ela trouxe para a sociedade colombiana foi
a organização das comunidades negras, que passaram a lutar por seus direitos e a
reconhecê-los enquanto um grupo étnico específico.

Mesmo com o início desse processo de organização das comunidades negras,


ainda existem inúmeros conflitos entre índios e negros pela posse das terras no campo,
onde ambos os grupos acusam de ocupação indevida o território delimitado para um
dos grupos, que, ao invés de lutar pelos seus direitos de posse e ocupação das terras
perante o governo, ficam brigando entre si, sem considerar a sua condição de grupos
minoritários perante uma estrutura governamental e social que há muitos anos os
excluíram.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 11

2.2 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO PERU

País colonizado pela Espanha, o Peru ainda guarda fortes marcas do seu
período colonial e de uma cultura homogeneizadora, como, por exemplo, falar a língua
espanhola, usar roupas ocidentais, morar na capital, são hábitos que fizeram com que
muitos índios se tornassem mestiços para serem reconhecidos na sociedade peruana.

A diversidade cultural, através da preservação da língua e dos costumes de


diversos povos indígenas que habitavam o Peru desde a colonização até o final do
século XX, tem sido esquecida pelo governo, existindo políticas públicas de afirmação
da identidade desses povos. Segundo Sansone (1998, p. 5):

O Peru apresenta grandes diferenças geográficas e étnicas. Segundo dados de


1981, a população (17 milhões) está distribuída desigualmente por três regiões:
na costa (50% em 1982), na serra (39%) e na selva (11%). Brancos e mestiços
predominam na costa, onde também se concentra a pequena minoria de ne-
gros (entre 6% e 10% da população); índios e mestiços predominam na serra;
e índios amazônicos, junto a um crescente número de imigrantes da serra e
da costa, na selva.

Para enfrentar os problemas étnicos que o país passava, pressionado pelos


movimentos indigenistas, o governo peruano promulgou a Carta de 1933, que faz com
o Estado tenha o compromisso em proteger os povos e as terras indígenas. Mesmo com
a promulgação desta Carta, os índios continuaram sendo discriminados pela sociedade
peruana, que tem privilegiado os brancos e os mestiços.

A denominação “índio” tem sido substituída pelo termo “campesino” (camponês),


porque este foi incluído em uma reforma agrária que aconteceu no país em 1969, com o
objetivo de proteger os pequenos agricultores e os sem-terra. Esses pequenos agricultores
e os sem-terra que habitavam a região da serra eram índios, mas a discriminação contra
esse povo foi tão forte no Peru, por isso houve a mudança da denominação.

2.3 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA VENEZUELA

A população da Venezuela é composta pela maioria de pardos (mistura entre


branco, índio e negro), cerca de 75% da população. Os demais 25% são brancos e negros.
Este país tem sido um dos poucos países na América Latina que tem construído políticas
de respeito à diversidade étnica e cultural, principalmente em relação aos negros.

Após a independência da Espanha em 1821, a Venezuela tem construído um


discurso de país onde predomina a democracia racial, e a cultura negra tem sido
respeitada.

Segundo as pesquisas de Pollak-Eltz (1977); Wright (1990) e Bermúdez e Su-

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12 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
arez (1995), na Venezuela contemporânea o racismo é presente somente de
forma sutil, sobretudo no mercado matrimonial e nos concursos de beleza, e
não chega a bloquear a ascensão social dos negros, nem previne que algumas
importantes festas populares negras tradicionais se estejam tornando autênticas
festas nacionais, nas quais os brancos celebram a cultura negra como parte da
sua própria tradição cultural (SANSONE, 1998, p. 3).

Isso significa dizer que a cultura negra foi incorporada à cultura venezuelana,
mas que ainda existe discriminação entre os negros e demais etnias no país, pois devido
à forma velada de discriminação, ou seja, quando ela é considerada no nível pessoal e
não como um problema social, os governos tendem a fazer de conta que o problema não
existe, e, sendo assim, não desenvolvem políticas públicas de combate à discriminação.
Esse tipo de pensamento é encontrado na maioria dos países da América Latina.

2.4 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO MÉXICO

O México é o segundo país mais populoso da América Latina, ficando atrás


do Brasil, com uma população de 109,6 milhões de pessoas. A população mexicana é
constituída, em sua maioria, por euro-ameríndios, ou seja, pela mistura entre espanhóis e
índios. Esse grupo étnico responde por cerca de 60% dos habitantes do país. Os brancos
são cerca de 9% da população e os índios correspondem a 30% da população.

A ocupação do território mexicano ocorre de forma irregular, devido às


condições naturais do país, possuindo uma grande área de deserto. Determinadas
áreas são extremamente povoadas, enquanto em outras praticamente desabitadas. Essa
concentração de pessoas em apenas uma parte do território mexicano ocasiona graves
problemas socais, como os bolsões de pobreza encontrados na Cidade do México, uma
das mais populosas do mundo, com mais de oito milhões de pessoas.

Um dos problemas que o México vem enfrentando é a questão do sistema jurídico


ainda influenciado pelos colonizadores espanhóis, não reconhecendo a diversidade
étnica e cultural existente no país. São aproximadamente 58 etnias indígenas diferentes
no país, encontradas desde muitos anos antes da colonização espanhola.

A proposta é de legitimar os mecanismos e sistemas criados pelos diferentes


grupos indígenas, dando conta das suas especificidades étnicas e culturais, valorizando
a sua diversidade cultural, sem correr o risco de sufocar e influenciar esses povos
julgando-os através dos valores da cultura ocidental.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 13

3 MULTICULTURALISMO NO BRASIL

3.1 MOVIMENTOS MULTICULTURAIS NO BRASIL

No Brasil, temos vários movimentos sociais que ao longo da história foram


importantes para o desenvolvimento de políticas públicas multiculturais, como o
movimento campesino, o movimento negro, feminista, indigenista, entre outros. Por
necessidade de adequação ao padrão deste curso, vamos privilegiar as contribuições
do movimento negro e indígena, o que não significa que os outros não tenham sido
relevantes para a construção das políticas multiculturais brasileira.

3.1 MOVIMENTO INDÍGENISTA

Uma das principais bandeiras do Movimento Indígena no Brasil tem sido a luta
pela terra. Isso porque, desde que os portugueses chegaram ao nosso país, os índios
passaram a ser expulsos dos locais onde habitavam. Como vimos nesta unidade, os
mesmos nunca deixaram de lutar pelo seu território.

Historicamente, os povos indígenas sempre reagiram à violação e à conquista


de seus territórios tradicionais; e estas respostas variavam de acordo com o
desafio imposto pelos distintos momentos da expansão capitalista, inicial-
mente europeia e, mais tarde, condicionada à formação econômica brasileira
(BORGES, 2005, p. 42).

Durante séculos os povos indígenas foram massacrados em nome do


desenvolvimento do país, desenvolvimento este que não era capaz de pensar uma
política que respeitasse esses povos e seu habitat. Somente no início do século XX é
que o governo volta sua atenção para esta problemática e cria o Serviço de Proteção
aos Índios (SPI).

O objetivo do SPI era mediar e estabelecer um diálogo entre as frentes de ex-


pansão capitalista e os povos indígenas e, nesse sentido, atuar junto a questões
de âmbito nacional, como a viabilização da ocupação econômica de extensos
territórios no Sul e Centro-Oeste do país, em especial no interior de São Paulo
e estados do Paraná e Santa Catarina, nos quais grupos indígenas vinham te-
nazmente se opondo à invasão de seus habitats, seja por hordas migratórias,
seja por cafeicultores paulistas (BORGES, 2005, p. 42).

Portanto, o papel do SPI não era, de fato, ficar ao lado dos indígenas e protegê-
los, mas sim, conhecê-los melhor para convencê-los a permitirem a ocupação de seus
territórios, ficando do lado das oligarquias rurais que controlavam o país na época.

Além de controlar os territórios ocupados pelos índios, o interesse do governo


brasileiro, naquele período, era de que os mesmos servissem de mão de obra nas frentes
de expansão econômica do país. O governo não respeitava a cultura indígena, acreditava

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14 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
que os índios eram seres sem “civilização” e que precisavam ser educados e chegar ao
estágio de desenvolvimento superior.

O SPI foi substituído em meados dos anos 1960 pela FUNAI (Fundação Nacional
do Índio), que tinha praticamente o mesmo objetivo da política anterior, acelerando ainda
mais o processo de integração dos povos indígenas à expansão econômica do Brasil.

No entanto, ao mesmo tempo em que isso foi extremamente negativo para os


indígenas, proporcionou contato com a lógica desenvolvimentista da sociedade brasileira
na década de 1960. Conhecendo melhor esse processo, os líderes dos povos indígenas
começaram a elaborar formas de lutas, de acordo com a realidade social apresentada
naquele período.

A partir da década de 70, com regime militar no país e com a abertura econômica
desenfreada para o capital internacional, a FUNAI passa a adotar uma estratégia
integracionista, para que os índios não atrapalhem o desenvolvimento do Brasil. Neste
período, a Igreja Católica assume um papel importante na defesa dos povos indígenas,
reconhecendo seu erro no período do Brasil Colonial.

Apoiados pela Igreja Católica, os índios passam a realizar assembleias,


especialmente nos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Diversos povos
começaram a discutir a situação em que se encontravam, e suas principais reivindicações
foram: “a luta pela terra, participação na elaboração de diversas políticas indigenistas
oficiais e a necessidade de união entre diferentes povos indígenas” (BORGES, p. 42).

A reunião de diferentes tribos indígenas permitiu a esses povos perceberem


que os seus problemas eram praticamente os mesmos, ou seja, que todos os povos
indígenas no país eram explorados e que sua cultura e território não eram respeitados.
Para alcançar seus objetivos, eles perceberam que era necessária a articulação entre os
mais diferentes povos indígenas existentes no país.

Para fazer isso foi criada, em 1980, a União das Nações Indígenas (UNI), que
contou com o apoio de antropólogos, culminando na realização do 1º Seminário
de Estudos Indigenistas do Mato Grosso do Sul. Como a articulação dos diferentes
povos indígenas foi extremamente difícil de ser conseguida pela UNI, eles passaram
a organizar-se novamente de forma local e regional, criando a UNI/ACRE, que reunia
tribos do Acre e do Amazonas, e também a Aty Guasú Guarani, que congrega tribos
guaranis do Mato Grosso do Sul.

Com a necessidade de existir uma organização que respondesse às questões


indígenas em nível nacional, foi criado em 1992 o Conselho de Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (CAPOIB), com sede em Brasília.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 15

A partir daí, os índios perceberam que para conquistar seus objetivos seria
necessário realizar um diálogo com os representantes políticos do país. Atualmente,
os movimentos indígenas espalhados pelo Brasil inteiro congregam mais de 500
organizações locais e regionais, representando 300 tribos indígenas. Essas organizações,
representadas pelos seus líderes, estão procurando estreitar cada vez mais os laços com
a esfera política do país, pois perceberam que só através dela conseguirão conquistar
o direito à diferença, educação escolar própria, demarcação de suas terras e o direito
à saúde.

3.2 MOVIMENTO NEGRO

Assim como o Movimento Indígena, o Movimento Negro está presente na


sociedade brasileira desde o período da colonização, quando foram trazidos para o
Brasil e escravizados.

Como maior movimento de resistência à escravidão, temos a organização de


um movimento liderado que culminou com a criação de um território livre, chamado
Quilombo dos Palmares, local no qual os negros refugiados reuniam-se para lutar
contra a escravidão e a exploração imposta pelos brancos colonizadores. Sua principal
liderança chamava-se Zumbi.

Mais tarde, nas décadas de 1960 e 1970, período de ditadura militar, o movimento
negro espalhou-se por diversos estados no Brasil. Com a ditadura, as organizações negras
tiveram que transformar-se em entidades de cultura e lazer. Desta forma, formaram-se
grupos de teatro, música e dança que afirmaram a identidade e a cultura negra.

Nos anos 1970, também os negros pobres que moravam nas periferias das grandes
cidades do país foram fortemente influenciados por James Brow, cantor negro norte-
americano. Através da chamada soul music (música típica dos negros estadunidenses),
os bailes nos subúrbios cariocas deram origem ao movimento Black Rio. Este movimento
teve como modelo o Movimento Black Power dos Estados Unidos, conforme estudamos
na Unidade 2 deste caderno.

A juventude negra no Brasil, além de receber forte influência do Movimento


Black Power, também passou a ouvir as músicas negras vindas do Caribe, da Europa
e da África.

Um cantor que influenciou bastante a juventude negra da Bahia foi Bob Marley,
que com sua música reggae criou a doutrina rastafári, conscientizando os negros dos
problemas decorrentes da discriminação racial na sociedade.

Outros líderes negros, como Nelson Mandela na África do Sul, Samora Machel

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16 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
de Moçambique e Agostinho Neto de Angola, serviram de exemplo para o Movimento
Negro no Brasil.

Na década de 1970, com a finalidade de articular os negros do Brasil inteiro, surgiu


no dia 7 de julho de 1978 o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial.
Esse movimento teve um grande desafio de lutar contra o racismo em pleno período
de ditadura militar, pois os militares diziam que já se vivia numa democracia racial no
Brasil, portanto os negros não tinham nenhum objetivo para lutar.

Ainda neste momento histórico, surge no interior do Movimento Negro a


discussão específica das mulheres, lideradas por Lélia Gonzalez. Ela trouxe o argumento
de que existe diferenciação nas formas de sofrer o preconceito de acordo com o sexo,
ou seja, ser um homem negro é diferente de ser uma mulher negra no Brasil. Além de
levar em consideração a questão de gênero, é necessário levar em consideração também
a questão da classe social.

Diversas organizações negras para lutar contra a discriminação racial foram


criadas neste período. A maioria dessas organizações é de origem urbana, mas atualmente
o Movimento Negro tem atingido também a área rural, onde participa ativamente do
Movimento dos Sem Terra (MST). Outra área importante em que o Movimento Negro
tem atuado são as comunidades de remanescentes de quilombos. Sobre este assunto
nos aprofundaremos mais adiante.

Outra conquista importante do Movimento Negro do Brasil foi lutar para que o
governo brasileiro começasse a adotar medidas políticas de ação afirmativa, combatendo
o racismo e a discriminação racial. Uma dessas medidas adotadas foi a lei de cotas raciais
e sociais nas universidades.

3.3 O SURGIMENTO DAS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO BRASIL

As políticas multiculturais no Brasil surgiram durante o Governo Lula, no final


do século XX, e ampliaram-se no início do século XXI, através da criação de diversas
secretarias. Alguns elementos fundamentais para a discussão das políticas multiculturais
no país são a política de cotas nas universidades, o Estatuto da Igualdade Racial e a
criação das comunidades quilombolas e negras com direito à propriedade da terra e a
manutenção da sua cultura.

A seguir veremos que as políticas multiculturais existentes no Brasil são


importantes instrumentos de ampliação e consolidação das políticas públicas para a
diminuição das desigualdades sociais, na direção de um país mais justo e solidário, que
leva em consideração a diversidade étnica e cultural existente em seu território.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 17

O primeiro mandato do Governo Lula teve início no dia 1º de janeiro de 2003 e


se estendeu até dezembro de 2006. Luiz Inácio Lula da Silva venceu as eleições de 2002
após três tentativas. Foi a primeira vez na história do Brasil que um ex-operário chegou
ao cargo mais importante do país.

Nos governos anteriores a Lula, os investimentos realizados foram mais voltados


para a área econômica, pois o país passava por uma grande crise, com a inflação
descontrolada. Somente no governo FHC é que o país conseguiu controlar a inflação,
houve alguns investimentos em programas sociais com o objetivo de amenizar as
desigualdades sociais existentes no país. Mas em relação às políticas culturais e o
multiculturalismo:

[...] não há registros de que o governo FHC tenha realizado um processo de


debate público, ou seja, não houve uma abertura à participação popular sobre
o papel da Cultura na construção de uma sociedade democrática, não inserindo
a Cultura no desenvolvimento da cidadania [...] (PINTO, 2010, p. 14).

Isso significa dizer que apenas no final do século XX e início do século XXI é que
se iniciam efetivamente alguns investimentos em políticas multiculturais no Brasil e a
cultura passa a ser considerada um dos parâmetros para o desenvolvimento do país,
sendo prevista desde a Constituição Federal de 1988.

O governo Lula ampliou as políticas sociais iniciadas no governo FHC. Criou


o Programa Fome Zero, que consistia na transferência de renda direta para famílias
com renda per capita de R$ 69,01 a R$ 137,00, com o objetivo de diminuir a miséria e
a fome no país.

Também foram criadas no seu governo diversas secretarias com o objetivo de


respeitar a diversidade étnica e cultural existente no país e diminuir as desigualdades
sociais históricas, ocasionadas por questões de gênero e raça. Foram criadas as secretarias
de Direitos Humanos, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres e o Ministério de Desenvolvimento Social e
Combate à Fome. Vejamos a seguir quando foram criadas e qual o papel de duas
delas, que foram importantes para o que estamos nos propondo debater neste curso.
São elas: A Secretarias de Direitos Humanos, e a Secretaria de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial.

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18 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL

• Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) é responsável


pela articulação interministerial e intersetorial das políticas de promoção e
proteção aos Direitos Humanos no Brasil. Criada em 1977 dentro do Ministério
da Justiça, foi alçada ao status de ministério em  2003. No ano passado (2010) a
Secretaria ganhou o atual nome.

As principais atribruições da SDH/PR foram:

• Propor políticas e diretrizes que orientem a promoção dos direitos humanos, criando
ou apoiando projetos, programas e ações com tal finalidade.

• Articular parcerias com os poderes Legislativo e Judiciário, com os estados e


municípios, com a sociedade civil e com organizações internacionais para trabalho
de promoção e defesa dos direitos humanos.

• Coordenar a Política Nacional de Direitos Humanos segundo as diretrizes do


Programa Nacional de Direitos Humanos.

• Receber e encaminhar informações e denúncias de violações de direitos da criança e


do adolescente, da pessoa com deficiência, da população de lésbicas, gays, bissexuais
e transexuais e de todos os grupos sociais vulneráveis.

• A SDH/PR atua como Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos.


FONTE: Direitos Humanos (2011). Disponível em: <http://www.direitoshumanos.gov.br/sobre>.
Acesso em: 20 maio 2016.

• Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial: a SEPPIR (Secretaria de


Políticas de Promoção da Igualdade Racial) foi criada pelo Governo Federal no
dia 21 de março de 2003. A data é emblemática: em todo o mundo celebra-se o Dia
Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. A criação da Secretaria é
o reconhecimento das lutas históricas do Movimento Negro brasileiro. A missão
da SEPPIR é estabelecer iniciativas contra as desigualdades raciais no país. Seus
principais objetivos são:
• Promover a igualdade e a proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e
étnicos afetados pela discriminação e demais formas de intolerância, com ênfase
na população negra.
• Acompanhar e coordenar políticas de diferentes ministérios e outros órgãos do
governo brasileiro para a promoção da igualdade racial.
• Articular, promover e acompanhar a execução de diversos programas de cooperação
com organismos públicos e privados, nacionais e internacionais.
• Promover e acompanhar o cumprimento de acordos e convenções internacionais
assinados pelo Brasil, que digam respeito à promoção da igualdade e combate à

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 19

discriminação racial ou étnica.


• Auxiliar o Ministério das Relações Exteriores nas políticas internacionais, no que
se refere à aproximação de nações do Continente Africano.
A SEPPIR utiliza como referência política o programa Brasil sem Racismo,
que abrange a implementação de políticas públicas nas áreas do trabalho, emprego
e renda; cultura e comunicação; educação; saúde, terras de quilombos, mulheres
negras, juventude, segurança e relações internacionais. A criação da SEPPIR reafirma
o compromisso com a construção de uma política de governo voltada aos interesses
reais da população negra e de outros segmentos étnicos discriminados.

FONTE: Políticas de Promoção da Igualdade Racial (2011). Disponível em: <www.seppir.gov.br/


sobre>. Acesso em: 20 maio 2016.

Essas secretarias foram criadas para promover a cidadania e diminuir as


desigualdades sociais no Brasil, além de serem o alicerce na criação de políticas
multiculturais. Lembrando que, essas secretarias permanecem até os dias atuais,
promovendo suas ações durante os dois mandatos da presidente Dilma Rousseff.

Isso não quer dizer que a discriminação por raça, gênero, religião, etnia e classe
social tenha acabado no país, mas são políticas públicas importantes desenvolvidas
através destes ministérios e secretarias, instrumentos eficazes na construção de uma
sociedade brasileira mais justa e que respeite de fato a diversidade existente nesse
imenso país, para que a nossa nova história seja construída com a efetiva participação
de todos e de todas.

3.4 POLÍTICAS MULTICULTURAIS

3.4.1 O sistema de cotas

O Brasil inicia sua trajetória no sistema de cotas adotando politicas afirmativas


para dois grupos: deficientes e mulheres. Em relação aos deficientes, eforam estabelecidas
cotas para que possam ingressar no serviço público através de concurso, e também
programas exigindo que as empresas contratem um percentual de pessoas com
deficiências no seu quadro funcional. Esse ordenamento jurídico encontra seu respaldo
na Constituição Federal de 1988.

Além disso, o Brasil fixou a obrigatoriedade dos partidos políticos terem no


mínimo 20% do seu quadro eleitoral composto por mulheres.

Nas universidades, o sistema de cotas começa a entrar em vigor no ano 2000,


sendo que as primeiras universidades a adotarem esse sistema no vestibular no ano
de 2004 foram as universidades estaduais no Rio de Janeiro, garantindo que 50% das

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20 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
vagas fossem destinadas a estudantes de escolas públicas.

Logo em seguida, no dia 9 de novembro de 2001, a Lei nº 3.708/01 institui o


sistema de cotas para estudantes negros ou pardos, destinando 40% das vagas das
universidades públicas estaduais do Rio de Janeiro. Em 2002, a Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ) e a UENF passam a adotar essa política no seu vestibular. A
Universidade de Brasília (UNB) e a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) também
aderem ao sistema de cotas, adotando critérios socioeconômicos ou a cor ou raça em
seus vestibulares.

Nesta mesma perspectiva, para reforçar as políticas multiculturais em âmbito


nacional, foi criado o Programa Diversidade na Universidade, através da Lei Federal
nº 10.558/02, de 13 de novembro de 2002, conhecida como “Lei de Cotas”.

Existe muita resistência por parte de vários segmentos tradicionais da sociedade


brasileira em aceitar a Lei de Cotas nas Universidades, pois, para estes, esta lei reforça o
racismo já existente no país, fazendo com que negros e pardos ou pessoas de condições
socioeconômicas desfavoráveis acessem as universidades não pelo mérito, mas pelo
enquadramento em uma lei.

No entanto, como citamos anteriormente, esse sistema existe para equiparar


danos provocados a estas etnias e classes sociais que sempre foram marginalizadas no
decorrer da história do país.

Além do sistema de cotas, devem acontecer em paralelo outras programas sociais


que resolvam as deficiências estruturais da sociedade brasileira, focando em áreas como
educação, saúde, distribuição de renda, cultura, qualificação profissional, habitação,
entre outros.

O problema apresentado é que, gerando oportunidades para esta camada social, a


elite brasileira perde privilégios históricos, pois agora os seus filhos terão que concorrer
a uma vaga no mercado de trabalho com as “minorias étnicas ou com os pobres”. As
carreiras que antes só pertenciam a elas, como Medicina, Engenharia, Direito, dentre
outros cursos elitizados que entraram no sistema de cotas, agoram tornam-se acessíveis
a um maior número de brasileiros que, até então, não podiam sonhar em trilhar este
caminho.

O sistema de cotas geralmente possui um período determinado, ou seja, ele


perdura até eliminar a desigualdade e a exclusão ocasionadas a determinados grupos
sociais, como falamos anteriormente. Ele só terminará quando esses grupos sociais que
foram incluídos no sistema de cotas estiverem inseridos de maneira digna na sociedade
brasileira.

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 21

3.4.2 Estatuto da igualdade racial

Outro instrumento jurídico que reforça as políticas multiculturais no Brasil é o


Estatuto da Igualdade Racial, criado em 20 de julho de 2010, através da Lei Federal nº
12.288/2010. Este estatuto visa garantir à população negra a efetivação da igualdade de
oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate
à discriminação e às demais formas de intolerância étnica (BRASIL, 2010).

O Estatuto da Igualdade Racial estabelece a inclusão da população negra nas


políticas púlbicas de educação, cultura, esporte, lazer, saúde, o respeito às suas crenças
religiosas e liberdade de expressão, direito à terra e a moradia digna, políticas de inclusão
da população negra no mercado de trabalho, a valorização da herança cultural negra,
através dos meios de comunicação, combate à discriminação e às demais formas de
intolerância étnica, levando em consideração critérios como gênero e classe social.

Portanto, ele significa um importante avanço na promoção da igualdade de


oportunidades para a população negra no país, que desde o período de colonização
sofreu as consequências de uma sociedade eurocêntrica baseada na exploração de
negros, índios e mestiços, como forma de enriquecimento através de povos considerados
“inferiores e subalternos”.

3.4.3 Comunidades quilombolas e tradicionais: um caminho para o respeito à diversidade


étnica-cultural

Após grande pressão do Movimento Negro, foram criadas em 2003 as comunidades


quilombolas. Elas são definidas como remanescentes de Quilombo, com uma identidade
étnica comum diferente das demais existentes no país com ancestralidade negra, criadas
com o objetivo de fortalecer a cultura desses grupos e que estabelecem o direito à terra
de acordo com o Decreto nº 4.887/03. Atualmente, existem cerca de 3.524 comunidades
quilombolas no Brasil em 24 estados da federação, segundo dados da Fundação Palmares.

Os movimentos sociais também foram determinantes para que na Constituição


de 1988 aparecesse o termo “Comunidades Tradicionais”. A partir de 2002, um conjunto
de medidas governamentais possibilitou a sua implementação. Mas, como definir o que
são comunidades tradicionais?

O Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, Art. 30, define povos e comunidades


como (BRASIL, 2007):

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22 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL

I (…) grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais,


que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios
e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa,
ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição.

FONTE: Disponível em: <www.boell-latinoamerica.org/.../Observatorio_Quilombola_Maramba>.


Acesso em: 21 out. 2011.

E os seus territórios como sendo:

II (…) os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos


povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou
temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas,
respectivamente, o que dispõem o Artigo 231 da Constituição de 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações.

FONTE: Disponível em:<www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/.../D6040.htm>. Acesso


em: 21 out. 2011.

Em 2006, o Brasil começa a organizar uma política nacional dirigida para os


Povos e Comunidades Tradicionais através do Decreto de 13 de julho de 2006, criando
a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais (CNPCT). Esta comissão integra representantes de 15 Povos e Comunidades
Tradicionais e também representantes do Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome e do Ministério do Meio Ambiente, dois órgãos públicos federais aos
quais esta comissão está interligada.

Logo em seguida, através do Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, foi


criada a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais (PNPCT).

A instituição da PNPCT é fundamental não somente por propiciar a inclusão


política e social dos povos e comunidades tradicionais, como também por es-
tabelecer um pacto entre o poder público e esses grupos, que inclui obrigações
de parte a parte e um comprometimento maior do Estado ao assumir a diver-
sidade no trato com a realidade social brasileira. A PNPCT tem por objetivo
específico promover o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades
tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantir os seus
direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito
e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições
(OCARETE, 2016).

O PNPCT, bem como a definição e o reconhecimento das Comunidades


Quilombolas, é mais um importante passo na direção da manutenção da existência e
preservação da cultura de grupos marginalizados e explorados no decorrer da nossa

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ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL 23

história. Mostrando também que só é possível construir um país desenvolvido, com


dignidade, respeitando a diversidade étnica e cultural nele existente.

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24 ANTROPOLOGIA GERAL E O DEBATE MULTICULTURAL
REFERÊNCIAS

BORGES, Paulo Porto. O movimento indígena no Brasil: histórico e desafios.


Princípios. 80. ed., [s.l.], ago./set., 2005.

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