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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)


Cláudia Aparecida Marliére de Lima – Reitora

Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS)


Profa. Dra. Margareth Diniz – Diretora

Departamento de Letras (DELET)


Profª. Drª. Eva Ucy Miranda Sá Soto – Chefe

Programa de Pós-Graduação em Letras


Prof. Dr. Clézio Roberto Gonçalves – Coordenador

Comissão Organizadora Profa. Ma. Dayse Garcia Miranda (UFOP)


Prof. Dr. Paulo Henrique A. Mendes (UFOP)
Prof. Dr. Alexandre Agnolon
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Profa. Dra. Ivanete Bernardino Soares (UFOP)
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Prof. Dr. Clézio Roberto Gonçalves (UFOP) UFOP/ DELET/POSLETRAS/CAPES/FAPEMIG
Profa. Dra. Mônica Gama (UFOP)

ISSN 2595-0932
DIADORIM TRANS? PERFORMANCE, GÊNERO E
SEXUALIDADE EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Laísa Marra de Paula Cunha BASTOS


UFMG

Resumo: O trabalho problematiza questões de gênero e sexualidade


em Grande Sertão: Veredas, argumentando em favor não apenas da
possibilidade de leitura homoerótica da obra de Guimarães Rosa,
mas também da interpretação de Diadorim enquanto personagem
que confunde essas categorias (gênero e sexualidade) a partir de
uma performance trans e de uma afetividade homosseuxal.
Argumenta-se que o corpo nu de Diadorim não pode ser lido
enquanto confissão de sua verdadeira identidade de gênero, haja
vista que nesse momento da narrativa o corpo está morto e a
personagem já não pode disputar com o narrador sobre a
interpretação de sua identidade.

Palavras-chave:Grande Sertão: Veredas; Identidade de gênero;


Homoerotismo.

O exercício a que se propõe este estudo não está no sentido


de conceituar sertão, no entanto é relevante destacar algumas
características a ele atribuídas, haja vista a influência que teve,
nesse contexto, seu entendimento em relação às problemáticas de
identidade nacional, regional e de gênero. Dessa forma, a pergunta
que se pretende discutir neste trabalho delineia-se da seguinte
forma: como são performatizadas as categorias de gênero sexual no
sertão, lugar onde imperaria a violência e a ordem do mais forte,
pois "sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus
mesmo, quando vier, que venha armado!" (ROSA, 1976, p. 17-18)? E,
mais especificamente, como pensar o gênero e a sexualidade de
Diadorim em um romance marcado pela ambiguidade (GALVÃO,
1986)?
Por performance de gênero refiro-me ao conceito de Judith
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Diadorim trans? performance, gênero e sexualidade

Butler (2013), feminista crítica da naturalização tanto do gênero,


como do sexo biológico, para quem:

[...] atos, gestos e desejo produzem o efeito de um


núcleo ou substância interna, mas o produzem na
superfície do corpo, por meio do jogo de ausências
significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o
princípio organizador da identidade como causa. Esses
atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais,
são performativos, no sentido de que a essência ou
identidade que por outro lado pretendem expressar são
fabricações manufaturadas e sustentadas por signos
corpóreos e outros meios discursivos. O fato de o corpo
gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele
não tem status ontológico separados dos vários que
constituem sua realidade. (2013, p. 194, grifos do
original).

Butler (2013) argumenta que a identidade de gênero não está


dada a priori pelo corpo, não havendo, portando gênero verdadeiro
ou falso. O fato de alguém fabricar (consciente e/ou
inconscientemente) uma expressão corporal, linguística
culturalmente relacionada a um gênero pode, ou não, significar
identificação psicológica. A autora utiliza-se bastante dos exemplos
das identidades travestidas (travestis, buch1etc.), pois elas
performatizam ao extremo linguagem, gestos e vestimentas
culturalmente relacionadas a um determinado sexo, chegando a
uma paródia capaz de expor a artificialidade desses construtos
sociais dicotômicos (mulher/homem). O gênero seria um "'ato', por
assim dizer, que tanto é intencional como performativo, onde
'performativo' sugere uma construção dramática e contingente de
sentido" (BUTLER, 2013, p. 199, grifos do original).
No Grande Sertão: Veredas2, de Guimarães Rosa (1976), o
sertão é acionado não apenas como cenário, mas, principalmente,
como "forma de pensamento" (BOLLIE, 2004, p. 47-90) de onde
emergem as várias problemáticas de seu narrador Riobaldo.

1
O termo não é traduzido nas edições em português, mas pode-se dizer,
resumidamente, que ele designa mulheres que performatizam o gênero
masculino.
2
Será utilizada a abreviação GSV para indicar Grande Sertão: Veredas.
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Problemáticas estas de cunho metafísico, literárias, e também de


gênero –, já que um dos leitmotivs apontados pelo personagem-
narrador para contar a história de sua vida situa-se em Diadorim,
por quem nutre durante boa parte da narrativa um desejo
homoerótico (SILVA, 2008).
Entende-se que o patriarcalismo e falocentrismo não são
exclusividades do sertão, sendo as performances de gênero
rigidamente fixadas em todo território nacional. Entretanto,
diferentemente do litoral, o sertão fora visto pelos contemporâneos
de Euclides da Cunha como local tão isolado que era capaz de
manter conservadas tradições e costumes brasileiros. O sertão era
visto, portanto, como o lugar do Brasil verdadeiro:

A empreitada [de construção da nação e da identidade


nacional] implicou em construir uma imagem do bom
sertão, do sertanejo rude, porém forte, lugares e gentes
depositários da verdadeira nacionalidade brasileira, por
oposição ao litoral contaminado de 'europeismos'.
(ALENCAR, 1973, p. 247).

Segundo Albuquerque (2000), Gilberto Freyre desgostava-se


com a situação do sertão nordestino naquela virada de século (XIX-
XX), pois percebia nela uma perda de virilidade:

Só agora a influência da cidade, do mundo moderno,


parecia trazer à tona uma série de seres estranhos que
não se enquadravam nesta natural bipartição fundada
sobre o sexo. Os lugares bem demarcados entre homem
e mulher começavam a ser contestados, a prevalência do
masculino, sua dominação, começavam a ter que ser
respostas em novas bases, o devir-mulher parecia
ameaçar seres como o moleque Ricardo [do romance O
moleque Ricardo, de José Lins do Rego, publicado em
1935] que, uma vez fora do engenho, se vê confrontado
com uma nova possibilidade de identidade de gênero,
com novo modelo de subjetividade, o do ser
homossexual. (ALBUQUERQUE, 2000, p. 30).

A imagem do cabra macho inscreve-se, pois, nessa tentativa


de localização dos valores genuinamente brasileiros no sertão, uma
vez que lugar incorruptível pelas práticas negativas da
modernidade. Sob essa ótica, destaca-se a honra como central no
contorno das relações humanas no sertão. Além da importância

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Diadorim trans? performance, gênero e sexualidade

dada à palavra, podemos inferir que o conceito de honra perpassa


as práticas de gênero e sexualidade nas sociedades sertanejas.

Reinaldo e Riobaldo, uma rima, mas não uma solução

A partir do supracitado, as performances de gênero no


sertão de Grande Sertão: Veredas são analisadas aqui sobretudo em
contraponto com a lógica da honra sertaneja. Para adentrar tal
discussão, considere-se um episódio exemplar do romance, no qual
a macheza de Reinaldo/Diadorim é questionada por dois jagunços
que vinham de outro grupo e que se juntavam provisoriamente ao
de Riobaldo: "Mas Diadorim sendo tão galante moço, as feições tão
finas caprichadas. Um ou dois, dos homens, não achavam nele jeito
de macheza [...]." (ROSA, 1976, p. 123). O desenrolar dessa situação
se dá com provocações de um desses jagunços, que se refere a
Diadorim como "o delicado" e improvisa uma dança cheia trejeitos.
Diadorim responde com um "sopapo", um chute tão forte que
derruba o homem no chão, pressionando, logo em seguida, um
punhal em sua garganta. Contudo, percebendo que não seria
honroso matar o homem sem dar-lhe chance de revidar: "Diadorim
mandou o Fancho se levantasse: que puxasse também da faca,
viesse melhor se desempenhar" (ROSA, 1976, p. 124). Essa cena está
em concordância com o que aponta Renato da Silva Dias (2009)
sobre as ações cabíveis em casos desonra: "Isso [o código simbólico]
significa que, o menor sinal de desonra ou infâmia feita ao sertanejo
ou à sua família devia ter resposta pronta e imediata, sendo a
querela resolvida à faca ou à bala [...]" (2009, p. 37).
O episódio mencionado não termina em morte, pois os
homens modificam o tom do discurso: "Mas o Fancho-Bode se riu,
amistoso safado, como tudo tivesse constado só duma brincadeira: –
'Oxente! Homem tu é [...]'" (ROSA, 1976, p. 124). Chama atenção, no
entanto, que Riobaldo ressinta o fato de tal forma que pense em
vingar a desonra um dia, mesmo que seja através de sua terceira ou
quarta geração. Afinal, Riobaldo comenta que os homens (ou talvez
apenas um) morreram em tiroteio e que os outros jagunços
atribuíram a ele a autoria do assassinato, o que ele nega em fala
ambígua3.

3
A fala inicia-se com: "Sempre disse ao senhor, atiro bem. E esses dois
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Como defendido por Barros (1988), vinculada à honra estão


rígidos parâmetros no que concerne à sexualidade feminina.
Entretanto, de maneiras diferentes, as normas sexuais também
estendem-se aos homens. Riobaldo, tentando esclarecer ao seu
ouvinte o caráter da amizade com Diadorim "defende-se": "homem
muito homem que fui, e homem por mulheres! – nunca tive
inclinação pra aos vícios desencontrados. Repilo o que, o sem
preceito." (ROSA, 1976, p. 114). Logo em seguida, contudo, o
personagem narra seus sentimentos por Diadorim:

Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o


senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita. Era ele
estar perto de mim, e eu perdia meu sossego. Era ele
estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não
entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não.
Eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela
meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de
sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo,
quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos
braços, que às vezes adivinhei insensatamente –
tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava.
(ROSA, 1976, p. 114, grifo nosso).

Segundo perspectiva de Riobaldo, o gênero deve ser


reforçado através da sexualidade, configurando-se como anormal
qualquer experiência fora da heteronormatividade. Em outras
palavras, Riobaldo entende que o gênero masculino é determinado
pela prática heterossexual. O personagem vê-se como jagunço,
sendo jagunço alguém homem muito homem, e, portanto, não
consegue relacionar seu gênero ao desejo por alguém do mesmo
sexo:

Nesse contexto aparentemente militar, por imitação,


Riobaldo constantemente questiona a si próprio, pois a

homens, Fancho-Bode e Fulorêncio, bateram a bota no primeiro fogo que se


teve com uma patrulha de Zé Bebelo." (ROSA, 1974, p. 124). Depois, há a
negativa do assassinato, seguida de: "Agora, com uma coisa, eu concordo: se
eles não tivessem morrido no começo, iam passar o resto do tempo todo me
tocaiando, mais Diadorim, para com a gente aprontarem, em ocasião,
alguma traição ou maldade." (Idem, ibidem, p. 125).
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Diadorim trans? performance, gênero e sexualidade

posição que ocupa, o lugar de onde fala com os


companheiros da mesma sina produzem discursos
homofóbicos que castram qualquer idéia que possa, por
parte de um dos sujeitos envolvidos nesse contexto
sociocultural, lembrar o estereótipo feminino, uma vez
que ser jagunço é, como demonstra Albuquerque Júnior
(2003), ―cabra macho, sim senhor‖ e este não pode, pela
lógica que rege a cultura do jagunço, permitir que
nenhum traço ou marca feminina interfira na confiança
que os demais membros do bando têm naquele que é
instrumento de equilíbrio na estrutura interna do
grupamento. (SILVA, 2008, p. 215).

Assim, Riobaldo busca respostas que situam-se em um


território tão desconhecido quanto seu desejo: feitiço, coisa feita,
tentação. Ao imaginar que sua situação não era natural, o narrador
realoca-a na esfera do sobrenatural, retirando de si toda agência do
desejo homoerótico. Ao ansiar pelo corpo do amigo, Riobaldo age
com insensatez, pois coloca em perigo seu lugar natural no gênero
masculino. A resposta que Riobaldo encontra, tanto nessa quanto
em outras partes, é simplesmente a negação, pois assim ele
(re)negaria "o que é motivo de negação de sua masculinidade,
ameaça a sua virilidade, rebaixamento de sua moral de jagunço"
(SILVA, 2008 p. 216). Silva, analisando o desejo homoerótico em
GSV, assim exprime-se:

Talvez a novidade dessa obra rosiana, no que tange ao


aspecto do exercício da sexualidade e das práticas de
gênero adotadas no conjunto de jagunços, resida
também [...] no fato de exibir um jagunço em meio a
uma aparente crise cultural, quando diante do amor por
outro homem (por quem nutre desejo, de quem
constantemente se lembra e tem ciúmes) e por quem,
por outro lado, não encontra a realização de seu desejo,
motivado pelo sentimento cultural de castração, de
repressão, de negação de um valor que é, assim,
interpretado como negativo e, se ratificado, visto como
transgressor. Essa transgressão acontece praticamente
da posição interna do sujeito, uma vez que, mesmo
deixando os demais do bando perceberem o tratamento
dele para com Reinaldo, sofre por dentro, angustia-se
sozinho, reclama um desejo interno, envergonhando-se
por senti-lo e por não poder torná-lo público, porque
feio, inválido, inaceitável, sem nenhuma possibilidade de

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tolerância por parte daqueles com os quais também se


identifica no grupo de pertença. (SILVA, 2008, p. 217).

Apesar de a crítica, no geral, não dar tanto destaque à


relação homoafetiva entre Riobaldo e Diadorim, defende-se não ser
exagero sublinhar o fato de que um dos romances mais canônicos
da literatura brasileira dispensa quase que a totalidade de suas
páginas à narração de uma inédita história de amor: "'Reinaldo...
Riobaldo...' – de repente ele [Diadorim] deixou isto em dizer: – '...
Dão par, os nomes de nós dois'". (ROSA, 1976, p. 112). São muitas as
partes de GSV que ajudam a compor a tradição literária sobre o
tema da impossibilidade de concretização amorosa, sem que, no
entanto, tudo resuma-se ao amor heterossexual. É claro que, com a
leitura do texto, descobre-se que Reinaldo é Maria Deodorina e isso
tem importantes implicações textuais, segundo o total da obra.
Discutiremos essa questão mais à frente, por ora, basta que se
concorde que, até a parte final do romance, o leitor está diante da
problemática de um jagunço em conflito, pois concorda com o
consolidado código de honra que repudia a homossexualidade, ao
mesmo tempo em que nutre fortes sentimentos por outro homem:
"Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor
mesmo amor, mal encoberto em amizade" (idem, ibidem, p. 220,
grifo nosso).
A força da heteronormatividade é tão expressiva no sertão
de GSV que nem mesmo o corajoso Riobaldo pode confrontá-la, sob
castigo de perder seu único bem naquele momento, sua honra:

De que jeito eu podia amar um homem, meu de


natureza igual, macho em suas roupas e suas armas,
espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a
culpa? Eu tinha a culpa? Eu era o chefe. O sertão não
tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor
bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos
governa... Aquilo eu repeli? (ROSA, 1976, p. 374).

Sendo o sertão um lugar sem janelas nem portas, onde,


portanto, é onipresente o código de honra sexual, não há solução
para o impasse em que se encontra Riobaldo. Se ao menos Diadorim
tivesse uma irmã (ROSA, 1976, p. 140), ou se ele passasse por
debaixo de um arco-íris, como sonhou Riobaldo (Idem, ibidem, p.
41). Mas não sendo nada disso possível, Diadorim configura-se
como um eterno e inquestionável repelível: "Um homem é um

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Diadorim trans? performance, gênero e sexualidade

homem, no que não vê e no que consome. Ah, não. Otacília, eu não


merecia. Diadorim era um impossível." (Idem, ibidem, p. 371).
Se dentro da lógica binária masculino-feminino, o gênero
deve reafirmar-se pelo comportamento (heteros)sexual, a quebra
dessa regra levaria à perda do status de homem de Riobaldo, o que
configura-se como uma não-opção a esse chefe de jagunços,
orgulhoso de sua própria macheza.
Como mencionado, no final do romance, Riobaldo conta ao
leitor que Diadorim era uma mulher (ROSA, 1976, p. 454), o que
obriga a analisar a personagem Reinaldo/Diadorim/Maria Deodorina
em retrospectiva. Contanto sua vida in medias res, o narrador
guarda o segredo de Diadorim para o final, mas, utilizando-se da
estratégia de verossimilhança, não deixa de apontar pistas acerca do
sexo do amigo em outros momentos da narrativa (lembre-se que
Diadorim tomava banho e cuidava de seus ferimentos longe das
vistas de outros). Daí, portanto, que Diadorim fora mulher todo o
tempo, excluindo-se a sugestão de homossexualidade e libertando
Riobaldo de qualquer culpa nesse sentido.

Diadorim: donzela guerreira ou guerreira donzela

A crítica literária tem analisado Diadorim principalmente


através do mito da donzela guerreira, o qual pode ser encontrado
em narrativas como a de Palas Atena, Parvati, Iansã, Joana D'arc etc.
(GALVÃO, 1981). Segundo Serra (1997, p. 212), o mito seria uma
manifestação do arquétipo do andrógino, um ser perfeito,
masculino e feminino ao mesmo tempo. A personagem Diadorim
pode ser compreendida segundo essa ideia, pois a donzela guerreira
é:

Filha única ou mais velha, raramente a mais nova, de pai


sem filhos homens, corta os cabelos, enverga trajes
masculinos, abdica das fraquezas femininas – faceirice,
esquivança, medo –, aperta os seios e as ancas, trata
seus ferimentos em segredo assim como se banha
escondida. Costuma ser descoberta quando, ferida, seu
corpo é desvendado; e guerreia; e morre. (GALVÃO,
1981, p. 9).

Concorda-se que a construção da personagem Diadorim


dialoga com o mito da donzela guerreira, mas isso não resolve o
problema. Primeiro porque, como aponta Passos (2000), Diadorim

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não se veste de homem para salvar/vingar o pai. Na verdade, a


personagem apresenta-se no masculino desde a infância-
adolescência, quando Riobaldo conhece o Menino, e será Diadorim
quem inspirará Riobaldo a ir à jagunçagem, não o contrário.
Também é Diadorim quem nunca vacila na coragem e na
determinação da guerra, mesmo quando Riobaldo sugere que eles
fujam do bando (PASSOS, 2000, p. 157-156).
Nunca saberemos por que Diadorim se apresenta como
homem. Seria apenas um disfarce, como sugere o mito da donzela
guerreira? Trata-se de uma identificação psico-social da personagem
com o gênero masculino? Sabemos contudo que é assim que ele se
apresenta enquanto personagem viva. Se, como afirmou Simone de
Beauvoir, uma mulher não nasce mulher, torna-se, podemos
conjecturar que Diadorim torna-se homem a partir de sua
performatividade masculina.
Também não sabemos precisar a razão pela qual Diadorim
entra para o jaguncismo (ainda que se possa deduzir que seu pai
serviu-lhe de inspiração). O que está claro na narrativa é que
Diadorim sabia desde a adolescência que ele precisaria ser diferente
– "Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser
diferente, muito diferente..." (ROSA, 1976, p. 86) –, que seu destino
não seria o das mulheres do sertão; nem o de Otacília, reclusa e
protegida em uma casa, e nem o de Nhorinhá, independente de um
homem enquanto dependente de vários. Diadorim, na contramão,
ocupa um espaço exclusivamente masculino e hostil às mulheres
(não por causa da guerra em si, mas pela objetivação sexual que os
jagunços faziam das mulheres).
Ao longo de GSV, são muitos os momentos em que Diadorim
demonstra bravura, força e sensibilidade – sem que tenhamos que
relacionar essas características a um gênero ou a outro –, no
entanto, é no final que a personagem poderia tornar-se herói.
Depois de páginas e mais páginas em busca do Hermógenes, o
clímax se dá na Fazenda dos Tucanos, onde tem lugar o combate
final. Lá, o bando dos Hermógenes e o bando de Urutu-Branco lutam
até a morte. Nesse contexto, no momento final e mais decisivo da
empreitada, Diadorim e Hermógenes vão resolver na faca, na luta
corpo a corpo, o resultado daquela guerra. É o momento mais
esperado da narrativa até então. Eis que Diadorim mata
Hermógenes, vinga Joca Ramiro e torna-se o responsável heróico
pela vitória da guerra, dando, para isso, a própria vida. Entretanto,
"ela não sai em posição de destaque como vencedora ou como

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 338


Diadorim trans? performance, gênero e sexualidade

heroína. O fato de ter morrido enquanto matava o Hermógenes é


apagado no deslumbramento de seu corpo feito cadáver." (TIBURI,
2013, p. 193).
Marcia Tiburi (2013) chama atenção, em seu texto, para o
fato de que Diadorim só aparece narrativa enquanto mulher quando
já está morta. A autora analisa o par mulher/morta como um topos
da literatura, argumentando que:

Em outras palavras, não é, no caso de Diadorim, apenas


uma mulher que é morta, mas, como precisamos ver,
que alguém de quem não sabemos que seja mulher até o
fim da leitura, só é mulher quando morta, ou seja,
simultaneamente mulher e morta (2013, P. 197).

Segundo argumenta Tiburi e também outras feministas, tais


como Sherry B. Ortner (1996), uma personagem feminina que ousa
transgredir o espaço reservado a seu gênero é sempre castigada.
Ortner (1996), estudando as personagens femininas dos contos de
fadas dos irmãos Grimm, percebe que, ao contrário do que ela
mesma esperava, elas não são inicialmente descritas como fracas ou
passivas. O que ocorre é que a agência dessas mulheres é desfeita
durante a narrativa, e elas precisam pagar por suas ações até que
sejam colocadas em seus devidos lugares de mulheres inertes:

For all of the female protagonists, on the other hand


[different from the male protagonists], passage almost
exclusively involves the renunciation of agency. Agentic
girls, girls who seize the action too much, even for
altruistic reasons, are punished in one of two ways.
(ORTNER, 1996, p. 9)4

Sob essa perspectiva, entende-se que Diadorim não tem


espaço na narrativa de GSV enquanto mulher. Primeiramente,
porque performatiza o gênero masculino. Depois, porque seu ato
heroico, de matar o Hermógenes, é praticamente anulado na

4
"Para todas as protagonistas femininas, ao contrário [do que acontece aos
protagonistas masculinas], o rito de passagem quase sempre envolve a
renúncia da agência. Moças-agentes, moças que buscam ação em demasia,
mesmo que por razões altruístas, são punidas de uma forma ou de outra."
[Tradução livre].
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 339
Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

narrativa, que cede todo destaque à revelação de seu corpo de


mulher. Assim, ao invés de ganhar notoriedade por sua valentia,
esta é obliterada e o espaço conquistado na jagunçagem lhe é
tomado no momento final. É como se Diadorim estivesse apenas
travestida de jagunço, sendo sua condição de donzela a face
verdadeira:

Que sua aparição convoca ao cancelamento de qualquer


pergunta como se uma resposta estivesse
dogmaticamente em cena na equação que une
morte/nudez/verdade: podemos assumir que um
significante novo – o corpo de uma mulher morta –
trouxe-nos um outro significado – o que era homem era
falso e o que é mulher é verdadeiro [...] (TIBURI, 2013, p.
198)

Assim, o final de GSV é mais demonstrativo do status


patriarcal da tradição literária e da sociedade sertaneja do que
revelador do gênero de Diadorim ou da sexualidade de Riobaldo.
Isso acontece porque a narrativa de Riobaldo é subjetiva, com toda a
ambiguidade característica da primeira pessoa. Diadorim não fala, é
falado(a) por. Como afirma Judith Butler, "se o gênero são os
significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode
dizer que ele decorra de um sexo desta ou daquela maneira." (2013,
p. 24).
Defendo, portanto, que a aparente domesticação das
transgressões de gênero e sexualidade, dada ao final da narrativa, é
causada pela confiança depositada no narrador, que reorganiza sua
vida através da memória narrada. O problema em se confiar nesse
narrador é equivalente ao de se confiar no narrador-personagem
Bentinho, de Dom Casmurro, como portador da verdade sobre a
conduta de Capitu. Lembremos que até a década de 1960,
anteriormente ao trabalho de Helen Caldwell (2002), a crítica via
como ponto pacífico algo que hoje nos parece totalmente
enigmático: Capitu traiu ou não traiu? Da mesma forma, acredito
que seja impossível aceitar como única a interpretação que Riobaldo
dá ao gênero e sexualidade de Diadorim, como mulher
heterossexual.
Isto porque a leitura desse romance tão ambíguo não nos
permite conhecer com certeza se Diadorim era uma mulher
travestida, à moda do arquétipo da donzela guerreira, estando
portanto resolvido o desejo do casal dentro da lógica heterossexual,
ou se Diadorim era um homem transgênero, alguém que,

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Diadorim trans? performance, gênero e sexualidade

independente do sexo biológico, se veria como um homem,


partilhando com Riobaldo a confusão de desejar uma pessoa que se
percebe do mesmo gênero. Em outras palavras, se pensarmos em
Diadorim como um homem trans também ele nutriria pelo amigo
um desejo homoafetivo, irreconciável com a imagem que tem de si
mesmo com um "jagunço muito macho". Sob essa perspectiva, como
pode a crítica, a exemplo do personagem Riobaldo, afirmar com
exatidão o gênero de Diadorim? Esse é um problema que Riobaldo
resolve para si, mas que Guimarães Rosa não resolve para nós,
leitores.

Referências

ALBUQUERQUE JR., Durval. Cabra Macho, sim senhor! Identidade regional e


identidade de gênero no Nordeste. Territórios e Fronteiras. Cuiabá, v. 1, n. 1,
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