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HUGO VON HOFMANNSTHAL

UMA CARTA1

Esta é a carta que Philipp Lord Chandos, o filho mais novo do Conde Bath,
escreveu a Francis Bacon, futuro Lord Verulam e Visconde de St. Albans, para
desculpar-se junto a este amigo de sua completa renúncia à atividade literária.

***

É bondade sua, meu muito estimado amigo, ter relevado meu silêncio de dois
anos e escrever-me como o faz. É mais que amabilidade exprimir seu cuidado
comigo, sua surpresa pela letargia mental em que lhe pareço ter caído, nesse tom de
gracejo e leveza só dominado pelos grandes homens que, sem perderem coragem, se
impuseram perante os perigos da vida.
Conclui o senhor com o aforismo de Hipócrates: “Qui gravi morbo correpti
dolores non sentiunt, iis mens aegrotat”2 e opina que necessito da medicina não
apenas para dominar meu mal, mas mais ainda para aguçar minha compreensão
sobre meu estado interior. Gostaria de responder-lhe como o merece; gostaria de
abrir-me de todo com você e não sei como proceder. Mal sei se ainda sou o mesmo a
quem sua preciosa carta se dirige. Sou hoje, aos vinte e seis anos, o mesmo que aos
dezenove escreveu o “Novo Paris”, o “Sonho de Dafne”, um “Epithalamium”, os jogos
pastoris de cujo esplendor uma rainha celestial e alguns lordes e senhores de todo
indulgentes se dignam ainda se recordar? Ou por outra: sou também aquele que, aos
vinte e três anos, sob as arcadas de pedra da grande praça de Veneza, descobria em
si mesmo um encadear de períodos latinos cujo plano e cuja construção encantaram-
no interiormente mais do que os edifícios de Palladio e Sansovin que emergiram do
mar? E se sou um outro de mim mesmo, como poderia eu ter perdido do meu interior
incompreensível todos os traços e cicatrizes dessa criação / quimera do meu
pensamento mais tenso, a ponto de, em sua carta, que tenho à minha frente, o título
desse meu pequeno tratado me encarar, frio e estranho, e não o poder compreender
imediatamente como a imagem familiar de uma combinação de palavras, mas apenas
palavra a palavra, como se meus olhos vissem pela primeira vez tais vocábulos latinos
ligados dessa forma? Entretanto sou o mesmo, e essas perguntas são retóricas,
retórica que é boa para mulheres ou para a Câmara dos Comuns, cujos poderes, tão
superestimados por nosso tempo, não conseguem penetrar o âmago das coisas.

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Tradução de Carlinda Fragale Pate Nuñez, a partir de original alemão. Fonte:
HOFMANNSTHAL, Hugo von. “Ein Brief”. In: Mathias Mayer (ed.), Der Brief des Lord
Chandos. Schriften zur Literatur, Kultur und Geschichte. Stuttgart: Reclam, 2000. Pp.
46-59.
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Aqueles que, afligidos por grave doença, não sentem dores, estão doentes da mente.
Hipócrates, citado por Francis Bacon, em The Advancement of Learning (1592: 2.22.1). (Nota
da tradutora.)

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É o meu âmago, entretanto, o que eu preciso lhe expor, esta singularidade, este
vício, quem sabe uma doença do meu espírito, se é que lhe interessa compreender
que um tão intransponível abismo me separa, quer dos trabalhos literários que
parecem estar à minha frente, quer dos que deixei para trás e me soam tão estranhos
que hesito em chamá-los meus.
Não sei se devo admirar mais a sua incoercível benevolência ou a incrível
agudeza de sua memória, quando você torna a evocar para mim os diversos
pequenos projetos com que me deleitei nos dias de belo entusiasmo que
compartilhamos. Realmente eu queria descrever [darstellen] os primeiros anos do
reinado do nosso glorioso soberano Henrique VIII! As notas deixadas por meu avô, o
duque de Exeter, sobre suas negociações com a França e Portugal, davam-me uma
espécie de fundamento. E de Salústio defluíam, naqueles dias propícios, animados,
como através de um canal perfeitamente desobstruído, o conhecimento da forma que
me chegava dessa maneira profunda, verdadeira, interior, que só do outro lado da
barreira dos artifícios retóricos pode ser pressentida, e da qual não se pode mais dizer
que ela ordena a matéria, pois a penetra, a eleva e ao mesmo tempo cria a poesia e a
verdade, uma contrapartida de forças eternas, algo magnífico como a música e a
álgebra. Esse era meu plano dileto. Que é o homem para fazer planos!
Eu brincava também com outros planos. Sua benévola carta também os fez
emergir. Cada um deles está intumescido com uma gota de meu sangue; eles
dançam perante mim como mosquitos tristes num muro sombrio, sobre o qual já não
se derrama o sol dos dias felizes.
Queria as fábulas e narrativas míticas que os Antigos nos legaram e nos quais
os pintores e escultores encontram um gosto sem fim e irreflexivo, queria decifrá-los
como a hieróglifos de uma sabedoria secreta e inesgotável, cuja exalação eu
acreditava por vezes farejar como através de um véu.
Recordo-me desse projeto. Ele se baseava não sei em que prazer sensual e
espiritual / intelectual [geistige3 Lust]: como o cervo acossado dentro d’ água, eu
ansiava por adentrar aqueles corpos nus, rutilantes, aquelas sereias e dríades,
aqueles Narcisos e Proteus, Perseus e Actéons: queria desaparecer neles e falar,
imbuído deles, com o dom das línguas. Queria isso. Queria muitas coisas mais.
Pensava reunir uma coleção de apotegmas, como a que compilou Júlio César: Você
recorda a citação em uma carta de Cícero. Aqui pensava eu reunir as frases mais
curiosas que conseguisse recolher de minhas viagens, através do trato com homens
sábios e mulheres engenhosas de nosso tempo ou com criaturas excepcionais do
povo, ou ainda com pessoas cultas e notáveis: para dar-lhes unidade, acrescentaria
belas frases e reflexões extraídas das obras dos Antigos e dos italianos, e todos os
adornos intelectuais que encontrasse nos livros, manuscritos ou conversações; além
disso, a organização de festas e procissões de especial beleza, crimes e casos de
demência extraordinários, a descrição das maiores e mais singulares edificações dos

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O adjetivo geistig traz consigo a problemática do Geist, conceito que se traduz tanto por
“mente” quanto por “espírito”. Aqui optamos por manter a dualidade “espírito/intelecto”, tendo
em vista o momento de crise do sujeito e da linguagem, de descrédito na força da linguagem
poética para enfrentar a contraditoriedade do mundo. A insegurança da existência, que é
emblemática em muitos artistas, no início do século XX, se cristaliza com intensidade em
Hofmmansthal, ao ponto de determinar uma guinada em sua biografia intelectual. Na segunda
fase de sua obra, Hofmannsthal se dedica ao teatro e à ópera.

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Países Baixos, da França, da Itália e ainda muitas coisas mais. A obra inteira, porém,
se devia intitular “Nosce te ipsum4”.
Para ser breve: toda a existência se me aparecia, naquela época, numa espécie
de embriaguez contínua, como uma grande unidade: eu não via nenhuma oposição
entre o mundo espiritual e o físico, tampouco entre maneiras corteses e brutais, a arte
ou não-arte [Unkunst], a solidão e a convivência; em tudo sentia a natureza, tanto nas
aberrações da loucura quanto nos mais extremos requintes de um cerimonial
espanhol; não menos nas torpezas de jovens campesinos que nas mais doces
alegorias; e em toda a natureza sentia-me eu mesmo; quando, em minha cabana de
caça, bebia do leite espumoso e morno que uma pessoa desgrenhada mungia de uma
bela vaca de olhos ternos em um balde de madeira, em nada isso diferia de quando,
sentado à janela de meu study, sorvia de um in-folio o suave e espumante alimento do
espírito. Uma experiência era como a outra; nenhuma era subestimada em relação à
outra, nem em idealidade sobrenatural, nem em força material, e o mesmo se repetia
em toda a extensão da vida, à direita e à esquerda; qualquer que fosse o lugar, eu me
encontrava justamente no cerne, jamais notando algo de fantasioso [scheinhaft]: ou
intuía que tudo seria uma parábola, e cada criatura, a chave das outras; e sentia-me
bem, a ponto de as colher pela corola, uma após a outra, para com elas abrir tantas
outras quantas pudesse. Assim se explica o título que eu pensava dar àquele
enciclopédico livro.
Quem compreende tais convicções como um plano bem ordenado da
Providência divina pode considerar que meu espírito inchado de arrogância devia cair
nesse extremo de pusilanimidade e impotência que é agora o meu estado
permanente. Porém tais apreciações religiosas não exercem poder algum sobre mim;
elas são como as teias de aranhas, através das quais meus pensamentos escapam
para o vazio, enquanto tantos dos seus companheiros lá ficam presos e encontram o
repouso. Para mim os mistérios da fé se condensaram numa sublime alegoria que
paira sobre os campos da minha vida como um luminoso arco-íris, numa distância
constante, sempre pronto a recuar, se eu quisesse correr para ele e me envolver nas
dobras de seu manto.
Mas, meu estimado amigo, também as noções terrenas me escapam da mesma
maneira. Como devo fazer para lhe expor esses estranhos tormentos espirituais, esse
brusco aprumar-se dos ramos carregados de frutos para longe de minhas mãos
estendidas, este refluir da água murmurante ante meus lábios sequiosos?
Meu caso é, em resumo, o seguinte: perdi por completo a capacidade de pensar
ou falar coerentemente sobre o que quer que seja.
No início, foi-se-me tornando pouco a pouco impossível comentar qualquer tema
elevado ou de caráter geral e empregar sem vacilo essas palavras de que costumam
servir-se correntemente todas as pessoas. Sentia um incompreensível desconforto
tão-somente ao pronunciar as palavras “espírito”, “alma” ou “corpo”. Em meu íntimo,
resultava-me impossível emitir um juízo sobre os assuntos da Corte, os
acontecimentos do parlamento ou o que você imagine. E não por escrúpulos de
qualquer gênero, pois você conhece minha franqueza às raias da imprudência, mas
sim porque as palavras abstratas, das quais forçosamente se tem que servir a língua
para manifestar qualquer opinião, se me desintegravam na boca como cogumelos
podres. Aconteceu-me repreender minha filha de quatro anos, Catarina Pompília, por
uma mentira infantil de que se fizera culpada e, ao querer guiá-la à necessidade de ser
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Trata-se da máxima socrática “Conhece-te a ti mesmo”. (Nota da tradutora.)

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sempre veraz, os conceitos que afluíram a meus lábios adquiriram de repente uma cor
tão cintilante e se embaralharam de tal modo que, balbuciando, terminei a frase da
melhor forma que pude, como se me sentisse indisposto. E, de fato, estava pálido e
sentia uma violenta pressão na fronte. Deixei só a criança, bati a porta atrás de mim e
só a cavalo, numa boa galopada pelo prado solitário, me refiz de algum modo.
Pouco a pouco, entretanto, esses acessos se alastraram, como a corrosão que a
tudo ao redor devora. Até mesmo nas conversas familiares e corriqueiras todos os
juízos que se fazem à-toa e com uma segurança de sonâmbulo tornaram-se
duvidosos, tão graves, que tive de deixar de participar em tais conversas. Uma
inexplicável ira, que a duras penas conseguia disfarçar, me invadia, quando ouvia
coisas como: ”O caso terminou bem ou mal para fulano ou sicrano; o xerife N. é mau,
o pregador T. é boa pessoa; sinto muito pelo caseiro M., que tem filhos perdulários;
beltrano é invejável, porque suas filhas são econômicas; essa família progrediu,
aquela está decadente”. Tudo isto me parecia tão indemonstrável, tão falso, tão
inconsistente quanto apenas possível. Meu espírito me forçava a ver com uma
proximidade inquietante todas as coisas que apareciam em tais conversas: da mesma
forma que vira uma vez, com uma lente, um pedaço de pele de meu dedo mínimo que
parecia um extenso campo com sulcos e grutas, o mesmo me ocorria agora com os
homens e suas ações. Não conseguia apreendê-los com o olhar simplificador do
hábito. Tudo se decompunha para mim em partes, partes que se repartiam outra vez,
e nada mais se deixava abarcar em um conceito. As palavras ilhadas nadavam à
minha volta; coagulavam em olhos que me fixavam e aos quais eu precisava fixar os
meus: são remoinhos que me dão vertigens quando neles precipito o olhar, que giram
sem cessar e através dos quais se chega ao vazio.
Fiz uma tentativa para escapar a este estado, refugiando-me na cultura dos
Antigos. Evitei Platão, pois temia o perigo de seu vôo imagético. Pensei em ater-me
principalmente a Sêneca e Cícero. Esperava curar-me com a harmonia dos conceitos
limitados e ordenados de ambos. Mas não consegui chegar até eles. Esses
conceitos, eu os compreendia bem: via ascender ante mim o jogo maravilhoso de suas
relações, como soberbas fontes d’água que, em seu jorrar, jogam com pelotas
douradas. Podia planar sobre eles e ver como jogavam entre si: mas eles só tinham a
ver um com o outro, e o mais profundo, o mais pessoal de meu pensamento
permanecia excluído da sua roda. Invadiu-me a sensação de uma solidão terrível;
sentia-me tão desencorajado como alguém que tivesse sido trancado em um jardim
habitado apenas por estátuas sem olhos; fugi de novo para o exterior.
Desde então levo uma existência que, temo, você com dificuldade poderá
compreender, tão trivial, tão sem reflexão ela é; uma existência que certamente pouco
difere da de meus vizinhos, de meus parentes e da maioria dos nobres proprietários
de terras deste reino, sem estar de todo isenta de momentos ditosos e estimulantes.
Não me é fácil explicar-lhe em que consistem esses bons momentos; as palavras
voltam a faltar-me. Pois o que se me anuncia em tais momentos é uma coisa que não
tem (e certamente não pode ter) nome, uma aparição [Erscheinung] que enche, como
a um vaso, o ambiente cotidiano que me rodeia com um fluxo transbordante de vida
superior. Não posso esperar que você me compreenda sem um exemplo e devo
pedir-lhe indulgência pela trivialidade de meus exemplos. Um regador, um sedeiro
abandonado no campo, um cão ao sol, um cemitério pobre, um mutilado, a pequena
casa de um camponês, tudo isso pode se converter no recipiente de minha revelação.
Cada um destes objetos e os mil outros semelhantes sobre os quais um olhar costuma
vagar com natural indiferença, podem, a qualquer momento, momento esse que de
modo algum eu tenho o poder de estimular, adquirir para mim um cunho sublime e

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comovente; para exprimi-lo, todas as palavras me parecem demasiado pobres. Sim,


pode ser também a representação precisa de um objeto ausente que se depara com a
incompreensível eleição de ser preenchida até a borda com aquele caudal de
sentimento divino que cresce suave e subitamente. Assim foi que dei ordem,
recentemente, para que espalhassem suficiente veneno para ratos, que havia na
leiteria de uma de minhas quintas. Saí a cavalo ao entardecer e não pensei mais no
assunto, como bem você pode imaginar. Então, conforme vou cavalgando pela terra
profundamente arada, sem nada mais grave ao meu redor que uma ninhada de
codornizes espantadas, e, ao longe, sobre o campo ondulado, o grande sol poente,
abre-se subitamente ao meu interior aquele porão onde a confraria de ratos trava
combate de morte. Tudo estava dentro de mim: o denso e fresco ar do sótão, agora
saturado com o odor adocicado e penetrante do veneno, e a estridência dos gritos de
agonia que se espatifam contra os muros pútridos; as convulsões conflitantes de
debilidade, de desespero frenético; a procura ensandecida de saídas; a mirada fria de
cólera, quando dois animais se encontram diante de uma fresta tamponada. Mas por
que tento empregar de novo palavras que reneguei? Recorda, meu amigo, a
descrição magnífica de Tito Lívio, sobre as horas que precederam a destruição de
Alba Longa? Como as pessoas erravam pelas ruas que elas não voltariam a ver...,
como se despediam das pedras do solo? Eu lhe digo, meu amigo, que eu levava isso
em mim, e ao mesmo tempo Cartago em chamas; mas era mais do que isso, era uma
coisa mais divina e mais animalesca; e era o presente, o presente mais pleno e
sublime. Ali estava uma mãe que velava suas crias agonizantes ao redor e que olhava
não para os moribundos, não para os impiedosos muros de pedra, mas para o ar
vazio, ou, através do ar, lançava olhares ao infinito, olhares acompanhados de ranger
de dentes! – Se um escravo ficou estarrecido próximo à Níobe enrijecendo-se, deve
ter sofrido o que eu sofria, quando, em mim, a alma daquele animal que morriam
mostrava os dentes à monstruosa fatalidade.
Perdoa-me esta descrição, mas não pense que era compaixão o que me inflava.
Não o pensará certamente, senão eu teria de considerar meu exemplo muito torpe.
Era muito mais e muito menos que compaixão: uma enorme simpatia, um confluir com
cada criatura, ou um sentimento de que um fluido de vida e de morte, de sonho e de
vigília as percorreu por um instante – mas vindo de onde? Pois o que teria isso a ver
com compaixão ou com uma associação de pensamentos humanos compreensível,
se, numa outra noite, encontrei sob uma nogueira um regador cheio d´áqua até a
metade, lá esquecido por um jovem jardineiro, e quando este regador e a água nele
contida, tornada escura pela sombra das árvores, serviram a um besouro para nadar à
superfície duma borda escura à outra, - se este conjunto de insignificâncias me faz
estremecer com uma tal presença do infinito, tremer da raiz dos cabelos aos dedos
dos pés, a ponto de eu querer rebentar em palavras que, se as encontrasse, fariam
com que os querubins, nos quais não creio, se prosternassem. Então afastei-me
silencioso daquele lugar e, algumas semanas depois, quando vejo aquela nogueira,
passo olhando-a de soslaio, porque não quero afugentar a sensação do maravilhoso
que paira ao redor de seu tronco, nem expulsar os mais que terreais calafrios que
assombram ainda o arvoredo local.
Nesses momentos, uma criatura insignificante, um cão, uma ratazana, um
besouro, uma macieira raquítica, uma estradinha que serpenteia colina acima, uma
pedra coberta de musgo se converte, para mim, em algo mais precioso do que a mais
linda, a mais extremosa mulher, numa noite de felicidade, já o foi. Essas criaturas
mudas e às vezes inanimadas lançam-se de encontro a mim com uma tal plenitude,
uma tal presença de amor, que meu olhar venturoso pode enxergar vida, à sua volta,
até onde existe alguma nódoa de morte. Tudo, absolutamente tudo quanto existe,
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tudo de que me recordo, tudo o que toca meus confusos pensamentos me parece ser
algo assim. Até meu próprio peso, a habitual apatia de meu cérebro me parece ser
algo; sinto um jogo de forças encantador, absolutamente interminável, em mim e ao
redor de mim, e entre as matérias que jogam, contrapondo-se, não há nenhuma a que
eu não pudesse confluir. Parece-me então que meu corpo se compõe de cifras que
tudo decodificam. Ou que poderíamos entrar em novas e premonitórias relações com
toda a existência, se começássemos a pensar com o coração. Quando me abandona,
no entanto, este estranho encantamento, nada sei dizer a seu respeito; tampouco
poderia eu expressar com palavras sensatas em que consistiria essa harmonia entre
mim e o mundo inteiro e de que maneira ela se me tornou sensível, nem poderia dizer
algo de conclusivo sobre os movimentos interiores de minhas entranhas ou sobre as
estagnações de meu sangue.
À parte essas estranhas casualidades, que não sei ademais se se devem atribuir
ao espírito ou ao corpo, vivo uma vida inacreditavelmente vazia e custa-me ocultar de
minha mulher a letargia de meu interior, assim como aos de minha família a
indiferença que me infundem os assuntos da propriedade. A boa e severa educação,
da qual sou grato a meu falecido pai, e o hábito cedo inculcado de não deixar
desocupada nenhuma hora do dia são, parece-me, os fatores que garantem à minha
vida exterior um apoio suficiente e à minha condição e à minha pessoa uma aparência
condigna.
Estou construindo uma ala de minha casa e, de quando em vez consigo
conversar com o arquiteto sobre os progressos de seu trabalho; administro meus
bens, e o caseiro e os funcionários me acharão um pouco mais lacônico, porém não
mais inamistoso que antes. Quando, de boina na mão, diante da porta de suas casas,
me veem passar a cavalo, nenhum deles suspeitará que meu olhar, habitualmente
acolhido com respeito, palmeia com silenciosa saudade sobre as tábuas podres
debaixo das quais costuma buscar minhocas para a pesca; mergulha pelas grades da
estreita janela, no lúgubre quarto onde, num canto, a cama baixa com lençóis
multicoloridos parece esperar sempre por alguém que ali quer morrer, ou alguém que
deve nascer; que meu olho se detém demoradamente nos cãezinhos feios ou no gato
que desliza elástico entre os cacos (de vasos) de flores, e que busca, dentre todos os
objetos miseráveis e toscos da vida camponesa, aquele cuja forma simples e cujo ali
estar sem que ninguém o perceba, cuja existência é muda, possa converter-se na
fonte daquele enigmático e desenfreado encantamento. Pois uma felicidade indizível
[unbennant] me surgirá antes de uma solitária e longínqua fogueira de pastores que da
visão do céu estrelado; antes do último guizalhar de um grilo prestes a morrer, quando
o vento do outono arrasta nuvens invernais sobre os campos desertos, que do
majestoso fragor do órgão. E às vezes me comparo em pensamento com aquele
Crasso, o orador, do qual conta-se que se afeiçoou tão extraordinariamente por uma
moreia de olhos vermelhos, peixe mudo e insensível de seu viveiro, que se tornou
assunto de toda a cidade; e quando um dia, no senado, Domício, querendo tachá-lo de
louco, o reprovou por ter chorado a morte do peixe, Crasso lhe respondeu: “Fiz, na
morte de meu peixe, o que não fizestes quando da morte nem pela primeira, nem pela
segunda mulher”.
Não sei com que frequência Crasso e sua moreia me ocorrem como um reflexo
de mim mesmo vindo do abismo dos séculos. Porém não pela resposta que deu a
Crasso. A resposta pôs os risos do lado de Crasso, de maneira a encerrar o caso com
um chiste. Mas a mim o assunto me afeta, o assunto que permaneceria o mesmo, se
Domício tivesse vertido por suas mulheres, com a mais sincera dor, lágrimas de
sangue. Em tal caso, à sua frente estaria sempre Crasso com suas lágrimas pela

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moréia. E sobre essa figura, cujo ridículo e abjeção salta aos olhos, num senado que
dominava o mundo e discutia as mais elevadas questões, algo indefinível me obriga a
pensar nela de uma forma que me parece totalmente insensata, no momento em que
tento traduzir meu pensamento em palavras.
A imagem deste Crasso está em meu cérebro, e me vem, de quando em
quando, à noite, como um estilhaço que a tudo ao redor supura, pressiona, aferventa.
Então sinto como se eu mesmo entrasse em fermentação, produzisse borbulhas,
fervilhasse; reluzisse. E o todo é uma espécie de pensar febril, mas um pensar com
um material que é mais direto, fluido e ardente que as palavras. São igualmente
turbilhões, porém não como os turbilhões da linguagem que parecem conduzir ao
insólito; mas, de algum modo, a mim mesmo e ao mais profundo seio da paz.
Sobrecarreguei-o, meu estimado amigo, com esta alentada descrição de um
estado inexplicável, que costumo manter, não por poucas razões, encerrado em mim.
Você teve a bondade de externar seu descontentamento com o fato de não lhe
chegar nenhum livro escrito por mim que o “compensasse de ver-se privado de minha
companhia”. Senti, nesse momento, com uma certeza que não deixou de ser
dolorosa, que não escreverei nem no próximo ano, nem no seguinte, nem em mais
qualquer ano de minha vida um livro, em inglês ou em latim: e isto por uma única
razão, para mim embaraçosa, que deixo à sua infinita superioridade de espírito o
trabalho de situá-la, com olhar não obscurecido, no reino dos fenômenos espirituais e
corpóreos estendido harmonicamente ante você: ou seja, porque a língua na qual me
seria dado não apenas escrever, senão também pensar, não é nem o latim, nem o
inglês, nem o italiano, nem o espanhol, mas uma língua da qual não conheço sequer
uma palavra, uma língua na qual me falam as coisas mudas e na qual eu talvez um
dia, na tumba, prestarei contas ante um juiz desconhecido.
Quisera que me fosse dado, nas derradeiras palavras desta que será
provavelmente a última carta que escrevo a Francis Bacon, incluir toda a minha
afeição e reconhecimento, toda a imensa admiração que nutro pelo maior benfeitor de
meu espírito, pelo mais eminente inglês de minha época, a quem trago e trarei em
meu coração até que a morte o faça estalar.
A.D. 1603, nesse dia 22 de agosto.
Phi. Chandos

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