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RICARDO MARTINS VALLE

A construção
“ Pero la suerte es falta;
da posteridade
esperanza no falta,

ou A gênese mas falta lo esperado

muchas vezes”

como ruína (Sá de Miranda).

(Um ensaio
sobre Cláudio Manuel
da Costa)

“n aõ permittio o Ceo, que alguns

influxos, que devi ás agoas do


Mondego, se prosperassem

por muito tempo: e destina-

do a buscar a Patria, que por espaço de

cinco anos havia deixado, aqui entre a


grossaria dos seus genios, que menos pu-

dera eu fazer, que entregar-me ao ócio, e

sepultar-me na ignorancia! Que menos, do


que abandonar as fingidas Ninfas destes

rios; e no centro delles adorar a preciozidade


RICARDO MARTINS
VALLE é mestrando em daquelles metaes, que tem attrahido a
Literatura Brasileira da
FFLCH-USP, desenvolvendo este clima os coraçoens de toda a Europa!
pesquisa sobre as obras de
Cláudio Manuel da Costa Naõ saõ estas as venturozas prayas da
com financiamento da
Fapesp. Arcadia; onde o som das agoas inspirava

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a harmonia dos versos. Turva, e feya a
corrente destes ribeiros primeiro, que arre-

bate as idéas de hum Poeta, deixa ponde-

rar a ambicioza fadiga de minerar a terra;


que lhe tem pervertido as côres!

A desconsolaçaõ de naõ poder substabe-

lecer aqui as delicias do Tejo, do Lima, e


do Mondego, me fez entorpecer o enge-

nho dentro do meu berço: mas nada


bastou para deixar de confessar a seu

respeito a mayor paixaõ. Esta me per-


suadio a invocar muitas vezes, e a escre-

ver a Fabula do Ribeiraõ do Carmo, rio o

mais rico desta Capitania; que corre, e


dava o nome á Cidade Mariana, minha

Patria, quando era Villa” (1).

O “Prólogo ao Leitor” que introduz


as Obras, de 1768, de Cláudio Manuel

da Costa – e significativamente a passa-


gem trazida acima – é um documento

indicativo, por um lado, de certas con-

dições e descontinuidades gerais da in-


trodução e fixação de uma civilização

adventícia em parte dos territórios da


América Portuguesa, e, por outro, das

condições e descontinuidades específi-


cas do estabelecimento e circulação de

práticas poéticas, as quais, já nas pri-


meiras décadas do XIX, tenderiam a

desaparecer em seus modos, metros,


1 Cláudio Manuel da Costa,
“Prólogo ao Leitor”, in Obras,
topoi e vínculos institucionais. Não foi, Coimbra, Na Officina de Luiz
Secco Ferreira, 1768, pp. XIX-
porém, uma poesia destinada ao efê- XX.

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mero de sua execução e reprodução ins- sia um dever patriótico que nem sempre
titucional, em seu presente. Pelo contrário: considerou bem cumprido; para a história
poderíamos pensar justamente numa poe- literária, a periodologia estabelece verda-
sia que se realizava pela construção da des sobre as etapas da História do Espírito
posteridade. Mas, como a História não tem que situarão Cláudio como manifestação,
sentido, a posteridade construída não atin- ora mais avançada ora mais atrasada, de
giu ao fim que se fez pensando num fim. A um curso preexistente. Em ambos os casos,
civilização a cuja civitas Cláudio pertence- uma história das deformações do objeto
ra ruiu com estrépito, e os moenia dentro coincide com a história de suas apropria-
dos quais sua poesia se fizera vieram abai- ções, que, positivas, negativas ou suposta-
xo, deixando sob os escombros a posteri- mente neutras, são sempre leituras interes-
dade projetada, a qual, incapaz de redimir sadas, excludentes, deformadoras, ideoló-
suas instituições mais poderosas, não pôde gicas (como esta).
redimir também a instituição poética. Se Já as primeiras histórias literárias brasi-
não subsistiram senão ruínas da teologia, leiras se ocuparam da situação de Cláudio
da monarquia e da retórica, também não entre as categorias convencionais de estilo
poderiam perpetuar-se nem nome nem ver- e época: “barroco”, “árcade” ou “pré-ro-
sos de Cláudio, senão como peças de uma mântico”. As posições vão de um extremo
cerâmica finamente pintada mas esmiga- a outro, passando pelas transições e apro-
lhada pelo soterramento do tempo. Já no ximações possíveis, ou não. Não foram
início do XIX, porém, outros homens, ou- poucos os historiadores que fizeram de
tra civitas e outros muros constituirão ou- Cláudio um árcade ainda preso ao “velho
tro horizonte de leitura, escólios de uma estilo” de Góngora e Marino, mas precur-
posteridade imprevista que comentarão os sor do byronismo no Brasil. O imperativo
versos de Cláudio, reinventando-os como, da síntese cria, assim, um desvão histórico
em geral, se inventará o “Brasil colônia”: para que Cláudio possa ocupar o lugar, algo
não do nada, mas das rei da história, esco- vácuo, de pós-barroco proto-romântico.
lhos de instituições náufragas que o tempo Dentro dos termos convencionados pela
permitiu se depositassem na praia abissal historiografia literária, as discrepâncias po-
deste presente mais presente do que nunca, deriam ser sintetizadas por três assertivas
porque a si institui-se como télos. críticas modelares:
Nestes outros e imprevistos horizontes 1) “Não haverá erro em dizer-se que,
de leitura em que se estabelecerão outras fundamentalmente, Cláudio Manuel da
verdades e imprevistos deveres para a poe- Costa ainda pertence à era barroca” (Sér-
sia de Cláudio, o “Prólogo ao Leitor” foi gio Buarque, Capítulos de Literatura Co-
justamente causa das maiores discrepân- lonial);
cias entre as postulações e esquemas da crí- 2) “Foi ele certamente do grupo minei-
tica e da historiografia ao longo dos sécu- ro o mais preso aos modelos arcádicos”
los XIX e XX. Entre as verdades e deveres (Manuel Bandeira, Apresentação da Poe-
que couberam à poesia de Cláudio, as diver- sia Brasileira);
gências que mais ocuparam os discursos de 3) “Cláudio é, ao que suponho, o mais
sua recepção recaem quase sempre sobre dois subjetivista de todos os nossos poetas clás-
pontos: 1) a situação de Cláudio na história sicos e pode ser considerado o predecessor
literária, entre “barroco”, “árcade” e “pré- do byronismo de nossos românticos” (Síl-
romântico” (entendido, este, como uma sor- vio Romero, História da Literatura Brasi-
te de proto-historicidade); 2) a situação de leira).
Cláudio numa dilemática nacional entre “pa- A última hipótese, ao contrário do que
triotismo” e “lusitanismo”. Trata-se, no se- é costume supor, não foi produzida pela
gundo caso, de uma postulação; no primei- crítica romântica. A romantização pelo cri-
ro, de um esquema; para a dilemática nacio- tério do “subjetivismo” de Cláudio como
nal, a crítica estabeleceu para aquela poe- dos outros árcades parece ter sido produto

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de uma visão situada fora do que chama- dos esquemas historiográficos e
mos Romantismo. Comparando as perspec- interpretativos. José Veríssimo e João Ri-
tivas de Sílvio Romero e de Garret (2), nota- beiro limitam-se a empregar as duas ex-
se que o subjetivismo que o positivismo pressões que já se encontram em Garret. E
programático do primeiro aponta como pre- Antonio Candido recorre aos termos
cursor do Romantismo passa despercebido cultismo (e “culteranismo”) e estilo sim-
para o escritor programaticamente român- ples (ou natural) para designar o que a
tico. Como toda interpretação está histori- periodização costuma chamar “barroco” e
camente situada e todo olhar sobre o passa- “neoclássico”.
do está comprometido de saída, já não é Entretanto, a categoria estilo culto (e
dado ao historiador do final do século XIX também “culterano”, pesada agudeza de
compreender imediatamente o que chama- Quevedo contra Góngora) (8) não dá conta
mos Romantismo, menos ainda a poesia do da poesia e da oratória que chamam “bar-
XVIII: daí a possibilidade de aproximação. rocas”, porque designa apenas uma das
Os que situam Cláudio entre “barroco” variedades de estilo codificadas pelos
e “árcade” supõem deduzir do “Prólogo ao tratadistas do século XVII. Mesmo Gracián,
Leitor” tal esquema. Partindo do prólogo, preceptor da poética da agudeza no século
em 1805, Bouterwek, o primeiro leitor da XVII lido por Cláudio no final do XVIII,
cadeia de sua recepção, já considerara Cláu- não pretere nem prefere o cultismo em re-
dio um dos introdutores de “um estilo mais lação ao que, já àquela época, chamava
nobre na poesia portuguesa”, se bem que estilo natural. Vieira condena o discurso
ainda transparecesse “a poesia empolada escuro dos adeptos daquele “desventurado
dos sonetistas do século XVII”, do “mari- estilo” (9), que é como chama o estilo culto
2 Almeida Garret (1825), in
nismo português” (3). Seu esquema, po- dos seus rivais dominicanos. Para Vieira, o Guilhermino César (org.), His-
toriadores e Críticos do Roman-
rém, foi reproduzido por Sismondi, Garret, desvio não está numa falta contra a norma tismo , São Paulo, Edusp,
Varnhagen, Sílvio Romero, José Veríssimo, ilustrada que desde o fim do XVIII impõe 1978; Sílvio Romero, História
da Literatura Brasileira (1888),
Antonio Candido, etc. a clareza indistintamente a todos os discur- Rio de Janeiro, 1980.
Os termos com que a questão foi trata- sos, mas numa falta contra a adequação do 3 Friedrich Bouterwek (1805),
in Guilhermino César, op.
da, ao longo de dois séculos de recepção, meio a seu fim, isto é, contra o decoro do
cit., p. 9.
identificam irrestritamente o “velho” esti- estilo em sua especificidade discursiva, no
4 Antonio Candido, Formação
lo culto (ou “culterano”) à poesia do século caso a clareza da elocução do gênero mé- da Literatura Brasileira (1959),
5a ed., vol. I, Belo Horizonte/
XVII, “barroca”, e o estilo natural (ou sim- dio, didático, adequada à pregação. Acon- São Paulo, Itatiaia-Edusp,
ples) ao “novo estilo” da poesia do XVIII, tece que a tradição teórica que inventou o 1973, pp. 96-100; ver tam-
bém de Candido: “Os Poetas
“neoclássica” ou “arcádica”. Candido Barroco no século XX tende a identificar da Inconfidência”, in IX Anuá-
rio do Museu da Inconfidên-
(1959), por exemplo, situa Cláudio no li- toda a escrita dos Seiscentos com o estilo cia, Ouro Preto, 1993, p.136.
miar do novo estilo (4), na mesma linha de culto, “artificioso y dificultoso”, como diz
5 José Veríssimo, História da Li-
José Veríssimo (5), que o considerava “o Gracián. Efetuou-se, assim, a fácil oposi- teratura Brasileira (1915),
Brasília, UnB, 1963, p. 98.
mais seiscentista e simultaneamente o mais ção entre estilo “culto” e estilo “simples”
6 João Ribeiro, in Obras Poéti-
arcádico” da “plêiade mineira”. Antes de- para nomear a poesia dos séculos XVII e cas de Cláudio Manuel Costa
les, João Ribeiro (6) apontava no “árcade XVIII, respectivamente. Tal oposição, que 1903, p. 19.

mineiro” “o mau gosto gongórico, o abuso serve à reposição das categorias dicotô- 7 Almeida Garret, op. cit., p.
356.
de exageradas imagens e amplificações”; micas de Wöllflin para “o Clássico” e “o
8 João Adolfo Hansen lembra
apreciação, cujos suportes críticos mais Barroco”, é o tipo de simplificação que que “data de 1624 a cunha-
remotos são seguramente Sismondi (1813) transforma o hipérbato em critério descri- gem do termo ‘culterano’, que
relaciona ‘culto’ e ‘luterano’,
e Garret (1825), que já na primeira metade tivo para a classificação, supostamente his- usado para classificar a poe-
sia de Góngora como heresia
do século XIX repunham a partir de tórica, de um “objeto literário” como “bar- poética” (J. A. Hansen, “Retó-
Bouterwek (1805) o esquema de Cláudio roco”, à semelhança das imagens em espi- rica da Agudeza”, in Letras
Clássicas, no 4, São Paulo,
êmulo de Metastásio, apesar dos “vários ral e da profusão das formas nas artes plás- Humanitas, 2000, p. 329).
resquícios de gongorismo e afetação ticas, ou da polifonia na música. Porém, o 9 “Sermão da Sexagéxima”, in
seiscentista” (7). A permanência dos juízos “rebuscamento sintático”, muitas vezes Antonio Vieira, Sermões (orga-
nização de Alcir Pécora), vol.
críticos constitui uma história da reposição subentendido na expressão “estilo culto”, I, São Paulo, Hedra, 2001.

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não é distintivo único da poesia do século opiniaõ, te naõ ha de agradar a elegancia,
XVII; o próprio Gracián, ainda na primeira de que saõ ornadas. Sem te apartares deste
metade do século XVII, elogia o estilo de mesmo volume, encontrarás alguns luga-
um contemporâneo, dizendo que “parecen res, que te daráõ a conhecer, como talvez
prosa en consonancia sus versus”, tal é a me naõ he estranho o estilo simples; e que
sua fluência (10). Por outro lado, o que se sei avaliar as melhores passagens de
deve entender por “estilo simples”, que Cláu- Theocrito, Virgilio, Sanazaro, e dos nossos
dio no prólogo declara conhecer e aprovar, Miranda, Bernardes, Lobo, Camoens, &c.
não se reduz à clareza da linguagem e à or- Pudera desculpar-me, dizendo, que o genio
denação da frase no verso, mas estende-se à me fez propender mais para o sublime: mas
moderação das imagens e das translações, temendo, que ainda neste me condemnes o
segundo os critérios mais estritos de veros- muito uzo das metaforas; bastará, para te
similhança, prescritos por uma parcela das satisfazer, o lembrar-te, que a mayor parte
poéticas do século XVIII. Na leitura desses destas Obras foraõ compostas ou em
velhos textos, não devemos supor, sem Coimbra, ou pouco depois, nos meus pri-
mediação, referentes modernos para velhas meiros annos; tempo, em que Portugal ape-
vozes; por isso a necessidade de reconstruir nas principiava a melhorar de gosto nas
os dispositivos discursivos que os construí- bellas letras. A lição dos Gregos, Francezes,
ram, porque, nos lembra Leon Kossovitch, e Italianos sim me fizeraõ conhecer a
“o evento não é um dado, mas fruto de uma differença sensivel dos nossos estudos, e
elaboração textual” (11). dos primeiros Mestres da Poezia. He infe-
O prólogo, como parte retoricamente licidade, que haja de confessar; que vejo, e
instituída de um livro, deve inserir-se após approvo o melhor; mas sigo o contrario na
a dedicatória e regula-se segundo princí- execução” (13).
pios determinados pela mesma retórica.
Deve dirigir-se, em estilo médio, ao con- Sabe-se que o tempo em que esteve em
junto dos leitores, “dando-lhes razão da Coimbra, tendo deixado a pátria “por es-
obra, do estilo e divisão dela”. Diferente paço de cinco anos”, entre 1749 e 1754, foi
deve ser a dedicatória, que, em estilo alto precisamente o período mais intenso da
por ser um encômio, se dirige ao mecenas, polêmica suscitada pela publicação anôni-
individualmente, mas compreendido como ma do Verdadeiro Método de Estudar, de
instituição hierarquicamente superior. In- Luís Antônio Verney, em 1746: de um lado,
tegrados na arte de persuadir, dedicatória e as preceptivas, por assim dizer, oficiais, que,
prólogo têm por objetivo “ganhar a bene- até a reforma da Universidade de Coimbra
volência do ouvinte ou leitor” (12), seja o e o banimento da Companhia de Jesus por
10 Baltasar Gracián, Agudeza y
patrono, instituído nominalmente, seja o Pombal, fundamentavam o ensino da elo-
Arte de Ingenio (1648), leitor, instituído pelos pressupostos de lei- qüência e, como dependência dela, o ensi-
Madrid, 1987, tomo II, pp.
242-53. tura que o livro requer. Nesse sentido, o no da poesia; de outro, as preceptivas “no-
11 Leon Kossovitch, “O Plástico e “Prólogo ao Leitor” de Cláudio Manuel da vas”, radicadas em Boileau e Muratori,
o Discurso”, in Discurso, no 7, Costa situa a obra com categorias bastante defendidas em Portugal por Verney, por
São Paulo, 1976.
específicas e indica, não sem afetar modés- Francisco José Freire e outros, as quais se
12 Reflexoens Apologeticas á
Obra Entitulada Verdadeiro tia, as razões que fazem seu estilo censurá- institucionalizariam a partir dos dois even-
Methodo de Estudar … por vel para uma recepção coeva cujo juízo tos referidos e da instituição da Arcádia
Nicolau Francisco de Siom, Lis-
boa, 1748; apud Aníbal P. de tendia a condenar certos empregos do su- Lusitana. A disputa dogmática iniciada por
Castro, Retórica e Teorização
Literária em Portugal, Coimbra, blime, repreensíveis sobretudo quando a Verney é o contexto discursivo em que o
1973, p. 446. matéria é humilde, isto é, quando falam as “Prólogo ao Leitor” se insere entre o vitu-
13 Cláudio Manuel da Costa, “Pró- personae pastoris da poesia bucólica. pério ao ensino oficial, em que estavam in-
logo ao Leitor”, op. cit., pp. XX-
XXI. seridas as práticas poéticas coevas, e a de-
14 Ver “A Retórica na Polêmica do “Bem creyo, que te naõ faltará, que censu- fesa da mais larga elegância com que fosse
Verdadeiro Método de Estu- rar nas minhas Obras, principalmente nas lícito ornar a poesia (14). O dissenso não
dar”, in Aníbal P. de Castro,
op. cit., pp. 441-513. Pastoriz; onde preoccupado da commua diverge quanto à essência (ou sujeito) da

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Poesia, nem sobre suas propriedades (ou é, de nobres e letrados, entre os quais não
acidentes), mas quanto à medida (ou mesu- entraria Emma Bovary, que não é ingeniosa
ra) em que resida a virtude do artifício. Que nem hidalga.
seja a Verdade a essência da Poesia e que Não é também possível falar propria-
os muitos gêneros de artifício sejam pró- mente em “renovação” do estilo ou em su-
prios da Arte Poética nenhuma das partes peração de um gosto “ultrapassado” ou
litigantes duvida. Ambos os códigos cons- “desgastado”, pois não pertence ao tempo
troem-se sobre as mesmas categorias. O de Cláudio o relativismo histórico que hoje
dissenso diz respeito à boa medida na in- nos impede de comparar qualitativamente
venção e disposição dos ornamentos, que Homero e Virgílio, por exemplo:
sempre (tanto para supostos “barrocos”
como para “neoclássicos”) podem dar ele- “Homero é grande, é natural, tem pensa-
gância nas belas letras. A atitude dos se- mentos elevadíssimos, e excede nisto a
gundos em relação aos primeiros foi decer- Virgílio; contudo, este, que escreveu de-
to polêmica, mas não se tratava de opor-se pois, ainda que tenha menos natureza mos-
à “escola”, “tendência”, “estilo” ou “perío- tra mais arte que Homero, pois soube evitar
do” “anterior”, no que se supõe uma atitu- um defeito que freqüentemente se acha em
de negativa; tratava-se de restringir “la Homero, que é amontoar supérfluos epí-
diversidad de gustos” (15) de uma parcela tetos, e às vezes insulsos, como também as
dos cânones ligados ao XVII. digressões e colóquios insípidos, sem ne-
Se lermos com atenção, o prólogo de cessidade alguma” (16).
Cláudio refere a dita polêmica, mas é quan-
to à medida da ornamentação que o poeta Homero como Virgílio parecem vestir
se justifica a fim de “prevenir a mordacida- meião e peruca de laço. O passado era aí
de dos críticos”. Em tempo: por “críticos” compreendido como tempo único, sendo
também não deveríamos compreender essa avaliado segundo critérios do presente e
instituição pós-revolucionária que serve de em função de uma idéia de civilização po-
mediadora jornalística entre a obra literá- lida e ilustrada. O fato de Virgílio ter escri-
ria e seus leitores-cidadãos-iguais-peran- to depois dava-lhe a possibilidade de cor-
te-a-lei; “crítica” também não constituía rigir Homero segundo melhor gosto, dan-
uma atividade negativa que, no século XX, do à natureza melhor arte. É um argumen-
em âmbito quase sempre universitário, plei- to semelhante o que Cláudio usa ao dizer
teou para si um lugar de resistência. Na que “a mayor parte destas Obras foraõ com-
terminologia do século XVIII português, a postas ou em Coimbra, ou pouco depois,
“crítica” é a arte de discernir o verdadeiro nos meus primeiros annos; tempo, em que
do falso: como arte, a “crítica” era regulada Portugal apenas principiava a melhorar de
por critérios dogmáticos e, como discerni- gosto nas bellas letras”. Seja ou não isso
mento, constituía uma atividade do juízo, o uma “informação verdadeira” (o que não
qual oferece cada predicado de uma subs- muda quase nada), não ter Cláudio escrito
tância como verdadeiro ou como falso ao depois persuasivamente justifica a impos-
entendimento, potência da alma de que o sibilidade de corrigir segundo melhor gos-
juízo é um ato. Como se vê, crítica, juízo e to os próprios versos. Com efeito, Cláudio,
entendimento não são aí categorias kantia- nimium amator ingenii sui, faz de si êmulo
nas ou pós-kantianas; são aristotelicamente de Ovídio, nome que o autoriza por ter sido
codificadas por uma doutrina da alma que cristalizado pela posteridade como poeta
vigoraria em Portugal até além do tempo pouco dado a emendas mas cujo engenho
de Cláudio. A crítica, portanto, era um pre- fez indelével seu nome, imune à fúria de
dicado inerente aos leitores a que o livro de Júpiter, ao ferro, ao fogo e ao tempo voraz. 15 B. Gracián, op. cit., p. 45.
Cláudio se dirigia, os quais não formavam Vê-se que Cláudio não nos entrega candi- 16 Luis Antonio Verney, Verdadei-
um público em geral, mas um círculo de damente um testemunho de seu “contexto ro Método de Estudar (1746),
Lisboa, Sá da Costa, 1950,
melhores e de, digamos, melhorados, isto histórico-literário”, nem de suas perplexida- vol. II, p. 235.

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Homero des em face da “dinâmica colonial”. Se é qual teria participado, opera-se em função
possível ver em sua poesia perplexidades da noção de uma verdade poética por opo-
entre Virgílio
dessa natureza (e creio mesmo ser possível), sição ao erro em que os homens teriam caí-
e Dante, de são perplexidades nossas, não dele. Ao refe- do sobretudo durante o “século da ignorân-
Rafael rir a polêmica das belas letras e seu cia”. Não por serem velhas, mas por serem
confinamento na pátria, ele tem em vista piores, devem-se evitar “aquelas ridículas
constituir-se como autoridade poética, emu- composições que tanto reinaram no século
lando outra, e outras. Não há nisto tudo uma da ignorância (digo no fim do século XVI de
preocupação periodológica ou formativa, o Cristo e metade do XVII) e, desterradas dos
que deveria ser evidente. Não pertence a essa países mais cultos, ainda hoje se conservam
época o problema do desgaste pela satura- em Portugal e nas mais Espanhas” (17). Na
ção; problema moderno que impõe uma dinâmica do dissenso em que Cláudio está
evolução em função do novo, o que só viria inserido, não se combatem procedimentos
a acontecer com a generalização dos Ro- “desgastados” ou “ultrapassados”, mas os
mantismos. A suposta “transformação lite- procedimentos considerados falsos, repug-
17 Idem, ibidem, p. 210. rária” que Cláudio teria presenciado, e da nantes à “boa razão” (que, é bom dizer, não

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foi inventada pelo século XVIII). Para com- O assunto é tratado nos termos de um
preender o “Prólogo ao Leitor” e levantar processo de lesa-pátria, tomando os dis-
categorias pertinentes para a interpretação cursos como provas factuais, que são o que
das obras poéticas de Cláudio, é preciso, vale para uma argumentação crítica inte-
portanto, ter em vista as duas tradições de grada na negatividade positiva dos siste-
tratadistas, que não se articulam pela nega- mas cientificamente assentados do fim do
ção e que, olhadas de perto, sequer se apre- XIX. Seu positivismo não permite ponde-
sentam como duas. rar que o estatuto de verdade de um discur-
Quanto ao dever patriótico que esta so será sempre relativo aos estatutos de sua
posteridade imprevista exigiu de Cláudio, construção, que é discursiva, não factual.
leia-se a argumentação de Sílvio Romero: Para a positividade chata e pesada desse
tipo de leitura, tudo se torna fato objetivo,
“Tem-se dito que Cláudio desdenhava os subjetivado, ainda quando o engenho e a
assuntos brasileiros e suspirava pela vida fantasia poética sejam essencialmente não-
de Portugal. O fato é que ele escreveu sobre fatos, porque a experiência objetiva e a
a história da capitania de Minas, e que no expressão subjetiva não foram causas efi-
Vila Rica ocupou-se de assunto pátrio… cientes da poesia em todos os tempos.
O certo é ainda que, até nos assuntos mais Seria pertinente investigar de que ma-
gerais e vagos de seus versos, era ele um neira a referência (19) da pátria e da con-
brasileiro na maneira de sentir e de dizer. dição de “exilado” ou de “peregrino” inte-
A acusação origina-se de uma passagem gra-se em matrizes tradicionais da poesia,
que se lê em suas Obras no Prólogo ao pois é lícito duvidar da atribuição de um
Leitor. É esta: nativismo espontâneo, seja pela suposição
‘Não permitiu o céu, que alguns influxos, do culturalismo, que postula a grande poe-
que devi às águas do Mondego, se prospe- sia como manifestação do Espírito de um
rassem por muito tempo; e destinado a bus- povo, seja pela suposição psicológica que
car a Pátria, que por espaço de cinco anos propõe o decalque das “impressões indelé-
havia deixado, aqui entre a grossaria dos veis dos primeiros anos” (para utilizar a
seus gênios, que menos pudera eu fazer, influente expressão de João Ribeiro). Res-
que entregar-me ao ócio, e sepultar-me na taria ainda pensar o significado que teria
ignorância! Que menos, do que abandonar para Cláudio, em meados do século XVIII,
as fingidas Ninfas destes rios, e no centro a noção de pátria, dentro do processo de
deles adorar a preciosidade daqueles me- introdução e fixação de uma civilização ad-
tais, que têm atraído a este clima os cora- ventícia ou, para dizer com propriedade,
ções de toda a Europa! dentro da empresa civilizatória portuguesa
Não são estas as venturosas praias da Ar- cuja orientação político-religiosa preten-
cádia; onde o som das águas inspirava a dia dilatar, sobre todo o mundo, os muros
harmonia dos versos. Turva, e feia a corren- de uma cidade e os signos de uma civilida-
te destes ribeiros, primeiro que inspire as de. A sua pátria certamente não é a mesma
idéias de um poeta deixa ponderar a ambici- dos românticos, que, por sua vez, não é a
osa fadiga de minerar a terra, que lhe tem mesma que sustentou as primeiras ditadu-
pervertido as cores! A desconsolação de ras republicanas, que também não é a mes-
18 Sílvio Romero, op. cit., p. 449.
não poder substabelecer aqui as delícias do ma dos modernistas, dos integralistas, dos
19 Em todo este trabalho, os ter-
Tejo, do Lima e do Mondego, me fez entor- getulistas... A questão – Cláudio foi ou não mos “referir” (não reflexivo) e
pecer o engenho dentro do meu berço…’ patriota? – vale-se de uma incógnita que “referência” não se enquadram
no ausente presente do esque-
Deve-se, porém, advertir que o poeta acres- cada autor irá preencher segundo a sua sig- ma funcionalista de Jakobson,
nem na positividade de coisa
centa: ‘mas nada bastou para deixar de con- nificação historicamente circunscrita. O real, que chamamos contexto.
fessar a seu respeito a maior paixão’. problema radical está em empregar a no- Uso-os na acepção mais pri-
mária, transitiva direta, cunha-
Aquele trecho citado como corpo de delito ção de pátria como absoluto, cuja signifi- da no fero, feras, fere… lati-
cação, em-si, independeria de especifica- no; “referir” = trazer, e trazer
contra Cláudio, não comporta as ilações de novo ; repor um lugar
que dele querem tirar” (18). ção. Como mostra o “Prólogo ao Leitor”, retórico.

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não foi invenção da crítica romântica a indica noções específicas de pátria, de
paixão de Cláudio pela pátria, pois isso ele poesia e de Estado. Mântua, província de
mesmo afirmou. Uma investigação perti- Roma, é chamada pátria, terra natal e se-
nente seria pensar os seus significados den- pultura de seus patres; Míncio é o pátrio
tro da hierarquia política em que o termo rio, que corta Mântua antes de desaguar no
era empregado, ou seja, dentro de um regi- Pó, ambos tardi porque correm pela planí-
me monárquico, dinástico, teologicamente cie da Gália Cisalpina. As musas trazidas
fundamentado, com dimensões imperiais e do vértice Aônio referem, pelo patronímico,
com pretensões universais. Perfeitamente Hesíodo, lido retoricamente n’Os Traba-
integrada na ordem desse Estado político, lhos e os Dias como auctoritas didática, de
a poesia de Cláudio refere o solo da capita- gênero médio, cuja elocução e matéria as
nia de Minas Gerais como sua pátria, as- Geórgicas de Virgílio emulam. As palmas
sim como Virgílio refere Mântua como a Iduméas aludem às vitórias de Augusto no
terra em que se enterraram seus pais e para Oriente, celebradas em mais de um passo
onde ele mesmo leva os signos da civitas das Geórgicas (20). É preciso anotar ainda
romana: que a adoração de César como a um deus
lê-se também na Bucólica I, de Virgílio,
“Primus ego in Patriam mecum, modo uita citada por Cláudio na carta dedicatória que
[supersit, antecede a Écloga III, “Albano”, em lou-
Aonio rediens deducam uertice Musas; vor dos feitos bélicos do futuro marquês de
Primus Idumaeas referam tibi, Mantua, Pombal, ainda conde de Oeiras: “Entrou
[palmas; em Roma o Pastor de Manthua; e dos
Et viridi in campo templum de marmore beneficios, que lá recebera, tirou a conse-
[ponam quencia, de que devia adorar por Deos ao
Propter aquam, tardis ingens ubi flexibus seu Augusto” (21). Em nota, Cláudio re-
[errat produz os versos diretamente em latim e
Mincius et tenera praetexit harundine sem mais quaisquer referências: “Namque
[ripas. erit ille mihi semper Deus: illius aram saepe
20 É de se ler, por exemplo, o In medio mihi Caesar erit templumque tener nostris ab ovilibus imbitet agnus”
epílogo do último livro das [tenebit” (“Com efeito será ele para mim sempre
Geórgicas (Virgílio, Georgica
IV, vv. 558-565): “Haec super (Virgílio, “Geórgica III”, vv. 10-16). Deus: seu altar sempre receberá um tenro
arvorum cultu pecorumque
canebam/ Et super arboribus,
cordeiro de nossos currais”). A ausência de
Caesar dum magnus ad altum/ (“Eu sou o primeiro que de volta à Pátria, qualquer menção além de “o Pastor de
Fulminat Euphraten bello ,
victorque volentes/ Per populos [conquanto a vida subsista, Manthua” distingue o círculo de leitores a
dat jura , viamque affectat desde o cume Aônio conduzirei comigo as que as Obras se dirigem e indica como a
Olympo / Illo Vergilium me
tempore dulcis alebat / [Musas; circulação desses versos é corrente nos
Parthenope studiis florentem
ignobilis oti/ Carmina qui lusi eu primeiro te trarei, ó Mântua, as palmas meios letrados de então. Da citação extraí-
pastorum, audaxque juventa,/ [Iduméas; da à Bucólica I (vv. 7-8), tira-se o argu-
Tityre, te patulae cecini sub
tegmine fagi” (“Eis que eu can- e também construirei em verde campo um mento hiperbólico que alça o ministro por-
tava sobre o culto das terras e
dos rebanhos/ e sobre as árvo-
[templo de mármore tuguês à estatura de Augusto e que aproxi-
res, enquanto o grande César/ junto à água, onde em tardas voltas ingente ma Virgílio e o árcade ultramarino. Na
junto ao fundo Eufrates fulmina
com a guerra, e vitorioso/ pro- [corre mesma carta dedicatória, outra citação,
fere as leis perante o povo Míncio, e com tenras canas recobre as agora da Bucólica IV, “Pollio”, vem pro-
obediente, e aspira o caminho
para o Olimpo./ Nesse tem- [margens. porcionar a hipérbole: Virgílio, continua
po, Parténope alimentava a
mim, Virgílio,/ na idade No meio para mim estará César e dele será Cláudio, “naõ tardou a equivocar entre os
florente, com doces obras de [o templo). louvores de Augusto as glorias de Polliaõ”
rústico ócio./ Versos imitei de
pastores e, audaz, na juventu- (22). O elogio ao general romano, cujos
de/te cantei, Títiro, sob a som-
bra de uma faia estendida”).
A importância desses versos para a com- feitos bélicos contribuem para a sustenta-
preensão das Obras de Cláudio não é pe- ção do Império, serve de modelo ao poeta
21 “Carta Dedicatória” à Égloga
III, “Albano”, in Obras, p. 107. quena e por isso devem ser lidos com cui- do século XVIII, que se propõe a “cantar a
22 Idem, ibidem, p. 108. dado. Alusivamente, a passagem de Virgílio segurança da Monarquia Portugueza”. O

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elogio ao súdito é elogio à ordem do Estado que, nessa ordem de idéias que referimos
e, portanto, ao monarca, que o representa. aqui, a declaração de que “eu fui o primei-
O texto de Cláudio alinha as relações de ro” não pode ser lida na mesma escala da-
delegação do poder que constituem a idéia quele imenso Eu do tempo de Victor Hugo,
de ministerium na estrutura do Estado ca- do qual nós somos o colapso. Essa tradição
tólico. Já que o rei absoluto é ministro (ou do “primus ego” – isto é, da Biblioteca de
instrumento) de Deus, seus poderes de in- Alexandria às Arcádias do XVIII – não
tervenção no mundo laico podem ser dele- supõe também uma unidade lingüística ou
gados a súditos, os quais executam ou no- nacional. Por isso, não pode ser bem com-
vamente delegam as utilidades e os delei- preendida se nos mantivermos nos limites
tes do Estado. dos recortes que hoje se postulam para “a
Por meio de uma poética da alusão (23), literatura brasileira”, “a literatura latina”,
os versos das Geórgicas referem: 1) sua etc. O que comunica os autores que a com-
pátria, entendida como berço e sepultura, põem não é uma abstrata Kultur, de que
2) a natureza de sua poesia, que se autoriza eles seriam manifestações (ou geistige
pela emulação, e 3) o Estado político em Ausdrücke); o que os comunica é a própria
que se insere, isto é, a Roma imperialista emulação. E, se se quer a unidade, o que
do tempo de Augusto, que fulmina a Pales- reúne esses bibliotecários, esses amigos de
tina, numa violenta expansão civilizatória Mecenas, esses poetas de Corte, esses pri-
que se crê universal. Não é ocioso desdo- vados de príncipes, esses árcades de aquém
brar aqui essas alusões tão distantes se ti- e d’além mar, esses bacharéis, secretários,
vermos em vista que eram, para Cláudio, ouvidores da colônia é a presunção de uma
uma espécie de pão nosso de cada dia e que nobilitas que, por nascimento, favor ou
precisamente os dois primeiros versos da- estudo, os distingue da plebe ventosa. O
quele passo de Virgílio – “Primus ego in sufrágio universal é-lhes desprezível por-
Patriam mecum, modo uita supersit,/ Aonio que escrevem para poucos. Nesse sentido é
rediens deducam uertice Musas” (24) – que Cláudio pretende instituir-se como
abrem, como epígrafe, as Obras de Cláu- autoridade tendo em vista a construção de
dio. Re-significados pela citação, os dois sua posteridade: eis a razão da referência
versos ajudam a compreender o sentido e o de toda a cadeia da tradição bucólica quan-
lugar de sua poesia, a noção de pátria que do diz que sabe “avaliar as melhores passa-
esta traz implícita e a natureza do Estado gens de Theocrito, Virgilio, Sanazaro, e de
político a que está submetido. A epígrafe nossos Miranda, Bernardes, Lobo,
dá a Cláudio a coroa do “primus ego”, cara Camoens, &c.”; eis também a razão da re-
à poesia helenística, no sentido mais am- ferência reiterada de Ovídio, que autoriza
plo que posso conceber para esta expres- Cláudio na construção de sua persona poé-
são: desde os alexandrinos gregos e dos tica, que é elegíaca e não lírica. São as musas 23 Penso aqui nas palavras de
João Ângelo: “[…] o leitor con-
assim chamados “neotéricos” latinos até os dessa tradição helenística, exclusiva/ temporâneo considera estra-
últimos classicismos do século XVIII. Não excludente, que Cláudio traz em retorno à nha e difícil a poesia que pres-
supõe o conhecimento de uma
se trata de uma tradição contínua, não su- pátria, às margens do Ribeirão do Carmo, série de informações apenas
indicadas no poema, mas, na
põe uma formação, nem uma dialética. Os como o fez Virgílio à sua Mântua cortada
verdade, ausentes dele. Fábu-
vários “primus ego” que Virgílio, por exem- pelo Míncio. (Tudo, porém, afirmo, dentro las mitológicas, versos de ou-
tros poetas e eventos histórico-
plo, a si outorga articulam cadeias de emu- dessa sorte de invenção de si mesmo que políticos, tudo os poetas da An-
lação: Virgílio, êmulo de Homero na constitui a construção da própria persona tigüidade abordavam supondo
já ser bem conhecido do seu
Eneida, de Hesíodo nas Geórgicas e de poética, porque o real é intangível.) Sem- público, um público a que não
era necessário ser enfático. A
Teócrito nas Bucólicas, não é um imitador, pre como Virgílio, a introdução das letras poética antiga, como se vê é
se pensarmos em termos latinos; ele julga na Pátria está vinculada à sujeição ao Esta- alusiva […]” ( O Livro de
Catulo , São Paulo, Edusp,
a si mesmo o primeiro inventor de certos do monárquico em cujo cume está o rei de 1996, pp. 11-2).
gêneros em língua latina, introduzindo Portugal, como para Virgílio está o Caesar. 24 (“Eu sou o primeiro que de volta
novas matérias e novos metros, o que o eleva O projeto não é iluminista e, nos termos à Pátria, conquanto a vida
subsista,/ desde o cume Aônio
a autoridade na cadeia da emulação. Vê-se que este ensaio propõe, cultivar as letras conduzirei comigo as Musas”.)

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nesta terra inculta não o irmana a Castro samos deixar de pensar sua singularidade
Alves. na perspectiva indelével do presente, que,
Poderíamos dizer mesmo (e ainda) que enfim, é o que interessa.
a “Fábula do Ribeirão do Carmo” tem “as- Seguindo metros e topoi tradicionais
sunto pátrio” (para usar a expressão de Síl- adequados a um gênero tradicional, a “Fá-
vio Romero), mas o sentido de pátria que bula do Ribeirão do Carmo” enuncia o inau-
traz suposto está mais próximo daquele dos dito. A matéria nova – a história infeliz do
versos de Virgílio do que do paisagismo pátrio Rio, jamais ouvida por Fauno ou Pas-
patético da “Canção do Exílio”, porque em tor e jamais soada pela flauta silvestre das
Gonçalves Dias a paisagem pátria e o páthos Sicelides Musae do gênero de Teócrito –
nacional pretendem corresponder integral- permitirá que Cláudio requeira a coroa do
mente a um Estado nacional brasileiro, em “primus ego”, com que pretendia ser digno
processo inicial de invenção. Paisagem e de fama e construir a sua posteridade.
páthos, por um lado, tornam-se elemento
de poesia como o complexo imagem/senti- “A Vós, canoras Ninfas, que no amado
mento que, a partir do século XIX, o pen- Berço viveis do placido Mondego,
samento idealista propugnaria para a poe- Que sois da minha lira doce emprego,
sia; por outro lado, a paisagem e o páthos Inda quando de vós mais apartado;
nacionais tornam-se então signos de uma
nova empresa política, que se presumia li- A vós do patrio Rio em vão cantado
beral e culturalista, ainda quando monár- O sucesso infeliz eu vos entrego;
quica, católica e escravista. O conjunto de E a victima estrangeira, com que chego,
poemas reunidos por Cláudio no volume Em seus braços acolha o vosso agrado.
das Obras e em particular a “Fábula do
Ribeirão do Carmo” estão fora dessa Vede a historia infeliz, que Amor ordena,
universalização do liberalismo e do indige- Já mais de Fauno, ou de Pastor ouvida,
nismo, que só ocorre a partir das múltiplas Já mais cantada na silvestre avena.
rupturas do final do XVIII e início do XIX.
Ora, estar fora do mercado da originalida- Se ella vos dezagrada, por sentida,
de e da invenção culturalista da nacionali- Sabei, que outra mais feya em minha pena
dade não faz de Cláudio um repositor do Se vê entre estas serras escondida”
mesmo, e não é justo dizer que pertença ao (Soneto exordial da “Fábula do Ribeirão
servum pecus (ao rebanho servil) dos imi- do Carmo”).
tadores, impugnados por Horácio, antes de
Victor Hugo e Benedetto Croce. Os topoi, Cláudio forja para si essa persona ele-
metros e gêneros que Cláudio repõe são os gíaca que a si anuncia na última estrofe. Com
de sempre; mas os repõe non eadem, como ela pretende cristalizar a posteridade de seu
fica dito no epigrama latino que abre a se- nome. Inventada, pois, por uma fictícia
ção dos sonetos das Obras, a reposição se persona elegíaca cujas Tristia se singulari-
faz, portanto, não do mesmo modo. A sin- zam pelo exílio na própria pátria, a “Fábula
gularidade da “Fábula do Ribeirão do do Ribeirão do Carmo” é um pequeno mito
Carmo” não está em um suposto localismo de origem, cujo núcleo dramático é a queda,
paisagístico e/ou patético que fizesse dele mas sem esperança de retorno.
“um brasileiro na maneira de sentir”. Já que Os mitos de gênese se concebem como
ninguém seriamente falaria em localismo dádiva que põe em concerto a multiplicida-
de Virgílio, seria ao menos plausível pen- de do ser no espaço e ordena sua descon-
sarmos a “Fábula…” inventada por Cláu- tinuidade no tempo. A Criação dá aos seres
dio segundo uma noção de pátria que não singulares a existência e, como uma cente-
se identifica com a de Estado político e lha de seu princípio original, ensina-lhes
segundo uma noção de poesia que supõe a também os mecanismos de perpetuação da
emulação como valor. Nem por isso, preci- existência. Mas, se a origem não é com-

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preensível senão pela harmonização das par- caos, ou o nada, para criar um mundo ainda
tes no todo, como explicar a precariedade do em concerto; por outro, projetam essa or-
presente? Em textos ontogônicos como a dem, tangível apenas pelo milagre ou pela
Teogonia e o Gênesis, os entraves materiais metáfora, como esperança de retorno. Se os
do presente explicam-se miticamente pela mitos de origem principiam pela har-
Planta da
queda, ou quedas, que se seguem à primeira monização de tudo, seguem a ela os suces-
Ordem, à primeira distribuição da natureza sivos desconcertos que conduzem a história cidade de
das coisas. O presente é sempre precário, à inexorável nossa condição, que concerne Mariana,
porque há sempre a morte, a dor, a subsis- a todos os tempos históricos.
tência, o trabalho, e outras misérias. Sem a A condição atual em que surge a “Fá-
original do
fenda mítica do milagre ou da metáfora, o bula do Ribeirão do Carmo” é composta Arquivo
presente só pode enunciar a si pelo lamento por uma rede de precariedades e não pode Histórico do
de sua precariedade; na sua contingência, só ser reduzida a estes ou aqueles pressupos-
se produz a maravilha pela suspensão da tos teóricos que, em última análise, perse- Exército, Rio
natureza, ou pelo transporte dessa natureza guem a univocidade positiva do fator — o de Janeiro (séc.
para outra. Por isso, o aedo ou o profeta fa- “indivíduo”, a “nação”, a “tópica”, etc. Mas
XVIII). Do
lam de mundos que superam as asperezas e uma constatação é necessário fazer a res-
limitações do presente; a precariedade pre- peito da situação desse poema, publicado livro Imagens
sente conduz a um passado inventado para em 1768, no volume das Obras: a “Fábula de Vilas e
além da memória e projeta o futuro como do Ribeirão do Carmo” é decerto cunhada
superação, para além da esperança. As nar- por uma tradição helenística, cujos princí-
Cidades do
rativas míticas, por um lado, concatenam o pios normativos estão mortos para nós; traz, Brasil Colonial

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porém, o vinco da singularidade, o que não Apagando Lucina, a luminoza,
altera o seu valor, de cunhagem, mas pro- A lampada brilhante,
duz o interesse dessa inglória posteridade, Nasci; tendo em meu mal logo taõ dura,
que atende pelo pronome nós. Como em meu nascimento, a desventura”
A “Fábula” narra o inaudito mito do (vv. 1-12).
turvo rio que corta Mariana, antiga Vila do
Ribeirão do Carmo, pátria de Cláudio como A dicção está envelhecida e exige o
Mântua e Míncio para Virgílio. Trata-se de convívio com vozes perdidas, mas, ainda
uma prosopopéia em que fala o próprio que palidamente, mantém a força de um
Ribeirão e seu enredo remonta aos esque- mito fundador, em cujo tempo, fictício, a
mas das Metamorfoses de Ovídio, onde, a ira dos falsos deuses impostores decretava
partir da criação do mundo e das sucessivas o fado dos primeiros seres.
quedas que a seguiram, se vêem formas Inicialmente, o mito, que a si cria, orde-
corpora versa novas. Não interessa, porém, na espaço e tempo. Por determinação de
aqui a identificação dos “lugares do poeta Júpiter, a porção “extrema e rara” dessa
latino”, como se diria com vozes de Cláu- “inculta região” (isto é: a porção de terra
dio. Antes de transformar-se no rio da in- mais alta e descampada de uma região
fausta glória do ouro, que movimentaria os ainda não civilizada) coube a Itamonte, per-
trabalhos e os dias dos homens na Idade do sonificação titânica da pedra do Itacolomy,
Ferro, o Ribeirão do Carmo fora um belo que preside à encosta em que se assenta
pastor que, seguindo “pela cândida estra- Ouro Preto, antiga Vila Rica do tempo de
da” “da idade florente”, foi levado pelas Cláudio. Como “parto da terra”, que, na
maquinações de Amor ao destempero, con- linguagem das ordenanças régias, signifi-
vertendo a ventura passada em desventura ca tanto o feto nascido como o produto da
presente, no transcorrer, eminentemente terra, o gigante é ser vivente e inanimado,
trágico, de apenas um dia. Ao tentar roubar segundo a própria dualidade da proso-
uma pastora, prometida pelo pai a Apolo, o popéia.
deus converte o jovem pastor numa peque- O mito dá parto ao mundo: da terra nas-
na corrente de água turva, que conserva a ce a pedra e da pedra nascerá o rio no mo-
cor do sangue derramado pelo pastor. Para mento preciso em que Lucina, deusa lumi-
maior rigor da pena imposta, seu leito guar- nosa que preside os partos, faz o dia escu-
da o ouro que levará a humana indústria e recer. Os agouros do nascimento anunciam
a ambiciosa tirania de mineirar a rasgarem- que, à primeira queda, ordenada pela ira de
lhe as entranhas com o ferro duro. Jove ao pai do futuro Ribeirão, seguirá a
O futuro Ribeirão nasceu ao cair da noite segunda, ordenada pela ira de Apolo ao filho
ou sob o efeito de um eclipse, fruto do conluio do monte Itacolomy. São vários os sinais
entre uma penha e um gigante transformado de mau agouro que anunciam essa segunda
em monte; tem em seu nascimento os signos queda, mas ao jovem pastor, filho de
que anunciam sua queda: a dureza da pedra Itamonte e futuro Ribeirão, a vaidade não
e o agouro da treva são para ele índices de permitia perceber os sinais do fado antes
que logo terá tão dura a desventura. que sucumbisse à queda:

“Aonde levantado “Fui da florente idade


Gigante, a quem tocara, Pela candida estrada
Por decreto fatal de Jove irado, Os pes movendo com gentil vaidade;
A parte extrema, e rara E a pompa imaginada
Desta inculta região, vive Itamonte, De toda a minha gloria n’hum só dia
Parto da terra, transformado em monte; Trocou de meu destino a aleivozia.

De huma penha, que espoza Pela floresta, e prado


Foi do invicto Gigante, Bem polido mancebo,

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Girava em meu poder taõ confiado, é “mortal, por não ter cura” – e desvenda os
Que athé do mesmo Febo signos opacos da noite e da pedra, que agou-
Imaginava o throno peregrino raram o nascimento do futuro Ribeirão.
Ajoelhado aos pes do meu destino” Entre os versos 47 e 144, narram-se os
(vv. 13-24). eventos propriamente ditos cujos traços
principais já foram esboçados. Eulina, fi-
O tempo troca a face das coisas: eis a lha de Aucolo, fora devotada a Apolo e por
tópica elegíaca que Glauceste Satúrnio tan- quinze anos conservaria sua frieza de vestal.
to visita. Não mais que um dia bastou para Dela se enamorou o jovem pastor, parto da
que a traiçoeira roda do destino trocasse “a pedra; mas, quanto mais sacrifica no altar
pompa imaginada”, revertendo em seu con- de Amor, mais rigoroso é o mesmo deus:
trário o enganoso cortejo da glória; glória
cuja soberba acreditava subjugar o trono “Naõ sabe o culto ardente
do mais belo deus. Nem mesmo aqueles De tantos sacrificios
deuses dos gentios, que compõem e ornam Abrandar o seu Nume: a dor vehemente,
a fábula, estavam absolvidos da ação do Tecendo precipicios,
tempo e do mover dos fados. Contudo, o Já quaze me chegava a extremo tanto,
despotismo da vaidade impede a visão da Que o menor mal era o mortal quebranto.
precariedade presente. Por isso, o “bem
polido mancebo” riscava seu nome nos tron- Vendo inutil o empenho
cos e pedras que enganosamente pareciam De render-lhe a fereza,
fixar o tempo da ventura: Busquei na minha industria o meu
[despenho:
“Naõ ficou tronco, ou penha, Com ingrata destreza
Que naõ désse tributo Fiei de hum roubo (oh mizero delicto!)
A meu braço feliz; que já desdenha, A ventura de hum bem, que era infinito”
Dispotico, absoluto, (vv. 73-84).
As tenras flores, as mimozas plantas,
Em rendimentos mil, em glorias tantas” O Amor, alimentado por ímpetos vicio-
(vv. 25-30). sos, leva à intemperança das paixões e ao
entorpecimento dos sentidos, que obcecam
Desdenhar o transitório e confiar na o juízo, “tecendo precipícios”. Mas pelo
segurança dos sólidos, para absolver-se do arbítrio imoderado é que se busca o des-
tempo, é não compreender o cerne do ins- penho, confiando ao delito o gozo interdito
tante presente, é faltar à intuição da preca- de “um bem que era infinito”. O imperfeito
riedade de tudo, porque a sorte deste mun- é o tempo verbal da plenitude na escritura
do é mal segura. Mas, quando a alegria mítica, porque só se compreende a infinitude
ainda gozava este doce engano, o Amor, edênica ou áurea no tempo da precariedade.
filho da sedução dos sentidos, conduziu-o, A estrutura da fábula tem os princípios
com arte traiçoeira, à ruína: organizadores dos mitos de queda; mas,
enquanto idílio pastoril, o lugar da hybris
“Mas ah! Que Amor tyranno, hesiódica ou do fruto proibido da árvore da
No tempo, em que a alegria ciência do bem e do mal é ocupado por Amor,
Se aproveitava mais do meu engano, ou Cupido, ameno como um afresco de câ-
Por aleivoza via mara setecentista. Na representação desse
Introduzio cruel a desventura, Amor, cuja matriz mais longínqua é sempre
Que houve de ser mortal; por naõ ter cura” e de novo Ovídio, há muito de uma tradição
(vv. 31-36). cristã que, de Andrea Capelanno a Pietro
Bembo, consolidou regras canônicas dos
Só a contemplação da ruína dá a medida decoros de Amor, entre o bom amor e o amor
do presente – sua precariedade perene, que louco do mundo. Há, por fim, o vinco dos

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Praça melodrammi de Metastásio na linha geral Do sangue, que exhalei, ó bela Eulina,
do enredo, fazendo desse crudele amore o A côr inda conservo peregrina.
Tiradentes,
fator da queda.
Ouro Preto, O jovem rouba os tesouros de seu pai, Porém, o ódio triste
original parto da terra, para fugir com a virgem, que De Apollo mais se accende;
pretendia arrebatar durante seu banho ao E sobre o mesmo estrago, que me assiste,
manuscrito do entardecer. É malograda sua indústria, por- Mayor ruina emprende:
IEB-USP (ca. que Eulina chama por Apolo, que no mesmo Que chegando a ser impia huma Deidade,
instante a resgata dos braços do pastor furio- Excede toda a humana crueldade.
1785-90). Do
so. Desatadas as rédeas da “paciência” (en-
livro Imagens tenda-se: tolerância da dor) e apagadas de Por mais desgraça minha,
de Vilas e todo as luzes do “acerto” (ou seja: do juízo), Dos thezouros preciozos
o pastor busca a “morte ímpia” (num uni- Chegou noticia, que roubado tinha,
Cidades do
verso católico: o suicídio) pela ponta fina de Aos homens ambiciozos;
Brasil Colonial um punhal. Após a inclemência, entra pela E crendo em mim riquezas taõ estranhas,
campina a banhar as flores de seu sangue. Me estaõ rasgando as mizeras entranhas.

“Inda naõ satisfeito Polido o ferro duro


O Numen soberano, Na abrazadora chama
Quer vingar ultrajado o seu respeito; Sobre os meus ombros bate taõ seguro,
Permittindo em meu damno, Que nem a dor, que clama,
Que em pequena corrente convertido Nem o estéril desvelo da porfia
Corra por estes campos estendido. Dezengana a ambicioza tyrannia”
(vv. 139-168).
E para que a lembrança
De minha desventura Está, enfim, criado o Ribeirão do Carmo.
Triunfe sobre a tragica mudança Mas: “Naõ saõ estas as venturozas prayas da
Dos annos, sempre pura, Arcadia; onde o som das agoas inspirava a

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harmonia dos versos. Turva, e feya a corren- opõe-se a beleza contingente da pastora,
te destes ribeiros primeiro, que arrebate as mal segura como todo viço; beleza que en-
idéas de hum Poeta, deixa ponderar a leia os sentidos, tolda o juízo e conduz ao
ambicioza fadiga de minerar a terra; que lhe desconcerto. E assim como a intemperança
tem pervertido as côres!”. A fábula inventa nos ritos de Amor desvirtua o princípio
a criação de um rio, nascido de uma pedra, apolíneo da beleza, que implica ordem, a
desentranhada de uma terra, que mais tarde vã cobiça conduz os homens à glória de
sustentará os cuidados dos homens presen- mandar, à ambição de império. Estas le-
tes. O mito inflete duas quedas, a do pai e a vam à discórdia o concerto das partes orde-
própria, e três numes atuam, como machina, nadas sob os reis virtuosos, que, é bom lem-
sobre a tragédia: Júpiter, Apolo e Amor. Para brar, ocuparão a sexta esfera cristalina, o
aquela civilização regida pelas ordenanças céu de Júpiter, na disposição de Dante e da
régias, as potências do concerto e do des- tradição monárquica católica.
concerto do mundo se sustentavam sobre os A este outro desconcerto, que chama-
atributos dessas três deidades pagãs as quais mos “colonização”, voltam-se as apóstro-
deviam servir de ornamentos ao documento fes do Ribeirão a partir do verso 169.
dos versos de Cláudio: Júpiter, Apolo e Amor
são ornamentos da ordem do Poder e da “Ah Mortais! Athé quando
Beleza, unos como as virtudes, e da desor- Vos cega o pensamento!
dem das Paixões, múltiplas como os vícios. Que maquinas estais edificando
“Que menos [pudera eu fazer], do que Sobre taõ louco intento?
abandonar as fingidas Ninfas destes rios; e Como nem inda no seu Reyno immundo
no centro delles adorar a preciozidade Vive seguro o Bárathro profundo!
daquelles metaes, que tem attrahido a este
clima os coraçoens de toda a Europa!”. Pela Idolatrando a ruina,
fábula, está inventada também a origem do Lá penetrais o centro,
tesouro, que o leito do pátrio Rio guardaria Que Apollo não banhou, nem vio Lucina;
até aquele presente que tristemente o de- E das entranhas dentro
canta; tesouro roubado à pedra pelo Rio; Da profanada terra,
pedra desentranhada de uma terra inculta, Buscais o desconcerto, a furia, a guerra”
que viria a sucumbir à tirania da ambição (vv. 169-180).
dos homens.
Resta compreender Eulina. A passagem Ainda que, como quase tudo até aqui,
da Pastora pelo destino do Ribeirão arruina- sejam topoi as imprecações contra as máqui-
do serve aos homens como documento (ou nas do malfadado “progresso” (ainda não
doutrina) do erro a que conduz o amor da inventado como tal), o locus horrendus
contingência; por isso, a memória de Eulina presentificado sob a pedra do Itacolomy e às
ainda vive, “Para brazaõ eterno da belleza,/ margens do Ribeirão do Carmo traz a singu-
Para injuria fatal da natureza” (vv. 41-2). A laridade do lugar e do momento que produzi-
agudeza dos opostos paralelos conduz à ram essa fábula. O modo como toda essa tra-
verdade negativa do espelho: todo emblema ma de lugares-comuns se articula é único,
que ostenta uma beleza perene é uma ofensa porque enfeixa, no século XVIII, um mo-
funesta à natureza (daí que o “brasão eterno mento específico do processo de ocupação
da beleza” seja “injúria fatal da natureza”), do Novo Mundo pelas “gentes de Europa”.
porque todo o mundo é composto de mudan-
ça, princípio geral da natureza das coisas “Em fim sem esperança,
criadas, no mundo sublunar; princípio de Que alivios me permitta,
que somente o Deus dos cristãos, incriado, Aqui chorando estou minha mudança;
está seguramente absolvido. E a enganadôra dita,
À beleza ordenada, atributo de Apolo, Para que eu viva sempre descontente,
duradoura porque assistida pelas musas, Na muda fantazia está prezente.

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Hum murmurar sonoro Se attenda apenas o ruido horrendo
Apenas se me escuta; Do tosco ferro, que vay rompendo.
Que athé das mesmas lagrimas, que choro,
A Deidade absoluta Porém se Apollo ingrato
Naõ consente ao clamor, se esforce tanto, Foi cauza deste enleyo,
Que mova á compaixão meu terno pranto. Que muyto, que da Muza o bello trato
Se auzente de meu seyo,
Daqui vou descobrindo Se o Deos, que o temperado côro tece,
A fabrica eminente Me foge, me castiga, e me aborrece!
De huma grande Cidade; aqui polindo
A desgrenhada frente, Em fim sou, qual te digo,
Mayor espaço occupo dilatado, O Ribeiraõ prezado,
Por dar mais dezafogo a meu cuidado” De meus Engenhos a fortuna sigo:
(vv. 187-204). Commigo sepultado
Eu choro o meu despenho; elles sem cura
O rio assiste doridamente ao nascimen- Choraõ tambem a sua desventura”
to da civilização do ouro. Mas sua dor não (vv. 205-234).
é a do negro, ou a do índio, nem a do mártir
da nação inexistente, nem da “natureza” Esse epílogo da “Fábula do Ribeirão do
degradada pela urbanização e pelo pro- Carmo” remete inevitavelmente ao “Pró-
gresso. É outro o seu registro: o do homem logo ao Leitor”, porque Cláudio, ou a
letrado fadado ao esquecimento nesta ter- persona elegíaca com que pretendia ganhar
ra duplamente inculta; terra rasgada pelo a posteridade, considera-se um dos “Enge-
ferro infértil da mineração e terra sem le- nhos” cuja fortuna o Ribeirão diz que ora
tras, de tradições insepultas pelo segue e cuja história infeliz “se vê entre
descontínuo mudar dos anos e das ambi- estas serras escondida”: “A desconsolaçaõ
ções. Sobre esse duplo desenraizamento de naõ poder substabelecer aqui as delicias
(não cogitado nestes termos por um cére- do Tejo, do Lima, e do Mondego, me fez
bro canônico como o de Cláudio), cons- entorpecer o engenho dentro do meu ber-
trói-se a ruína e sem esperança de retorno, ço: mas nada bastou para deixar de confes-
porque a Idade do Ouro já nasce como sar a seu respeito a mayor paixaõ. Esta me
queda; a gênese, como ruína. persuadio a invocar muitas vezes, e a es-
crever a Fabula do Ribeiraõ do Carmo, rio
“Competir naõ pertendo o mais rico desta Capitania; que corre, e
Comtigo, ò cristallino dava o nome á Cidade Mariana, minha
Tejo, que mansamente vas correndo: Patria, quando era Villa”.
Meu ingrato destino Contudo, tanto no “Prólogo ao Leitor”
Me nega a prateada magestade, como na “Fábula do Ribeirão do Carmo”,
Que os muros banha da maior Cidade. a recepção de Cláudio sempre buscou a
positividade de um testemunho. Os princí-
As Ninfas generozas, pios positivos da historiografia desde o
Que em tuas prayas giraõ, início consideraram o prólogo como uma
Ó placido Mondego, rigorozas auto-explicação de um autor, Sujeito, so-
De ouvir-me se retiraõ; bre a própria obra, tateando as expectati-
Que de sangue a corrente turva, e feya vas de seu público, consumidor de bens
Teme Ericina, Aglaura, e Deyopéa. simbólicos, na preocupação autoral de “pre-
Naõ se escuta a harmonia venir a mordacidade dos críticos”. O pró-
logo, a que se passou a atribuir a função dos
Da temperada avena prefácios e apresentações no mercado edi-
Nas margens minhas; que a fatal porfia torial, forneceria, segundo essa leitura, os
Da humana sede ordena, primeiros subsídios para a contextualização

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do poeta na dilemática colonial e na nosamente vinculem as noções presentes
periodologia da história da literatura àqueles fragmentos de passado. Os casos
brasileira. Para quase toda a recepção de exemplares do triângulo “autor-obra-públi-
Cláudio nos séculos XIX e XX, o “Prólogo co” e de seu postulante pitagórico, o “críti-
ao Leitor” parece expor conscientemente co”, são quatro termos que, como quatro
duas coisas: 1) a situação das Obras na peças arqueológicas, encontram-se entre os
problemática nacional, entre centro e peri- escombros de um discurso do século XVIII
feria, entre importação e originalidade, e têm similares modernos também denomi-
antecipando no fundo do fundo do fundo a nados “autor”, “obra”, “público” e “crítica”.
dicotomia que se resolveria pela digestão Contudo, assim como a lareira etrusca não
macunaímica e oswaldiana dos anos de tinha a função da lareira tropical-kitsch, a
1920; e 2) a situação das Obras na “histó- coincidência vocabular não elimina a
ria” (compreendida como o comboio de descontinuidade entre aquelas e estas cate-
carros que conduz o que fomos ao que so- gorias homônimas, nem nos irmana numa
mos), tendo o prólogo de Cláudio suposta- Gemeinsamkeit de leitores. Preferiria pen-
mente caracterizado a etapa em que está sar, com Chantal Castelli, que deve haver
inserido no processo de formação da lite- “uma certa distância – diferente do distan-
ratura brasileira. Sob o que fomos e o que ciamento pensado pelo positivismo – neces-
somos supõe-se um nós, sujeito comum aos sária à interpretação, para que se possa dis-
dois verbos e Sujeito comum aos dois está- tinguir entre sujeito e objeto de pesquisa.
gios do Espírito em formação. A “Fábula Esse distanciamento deve partir também do
do Ribeirão do Carmo”, mencionada quase pesquisador em relação a si mesmo, que
sempre apenas pelo título, foi tomada para passa por sua vez a ser outro”. Pois quem
exemplo do primeiro problema, isto é, como escreve (ainda quando autobiograficamen-
a pré-história do processo formativo da te escreva) “nunca é neutro; ele é sempre o
nacionalidade; compreendida como etapa duplo de si mesmo, seu objeto é similar a ele
para um télos que historicamente a trans- e ao mesmo tempo diferente” (26). Com ela
cende, a “Fábula do Ribeirão do Carmo” pensemos, como método, numa espécie de
foi julgada esteticamente mal resolvida, dupla apostasia, pela desconfiança sistemáti-
devido, inclusive, à dificuldade de leitura ca em relação ao que positivamente denomi-
que, decerto, se atribui à dívida que Cláu- namos “objeto” e em relação aos pressupos-
dio tem com “o Barroco”. tos que nos fazem idealmente supor-nos “su-
Na base do pressuposto fundador da jeitos”, muito sabidos de nosso lugar históri-
reinvenção do passado colonial, em geral, e co. Como desconfiança sistemática – à ma-
do discurso exordial de Cláudio, em parti- neira do método antimétodo das meditações
cular, parece haver “as certezas bem anco- derradeiras de Descartes –, essa perspectiva
radas da objetividade crítica e de uma só se pode dar em movimento e pela metade,
epistemologia da coincidência entre o real e não podendo, por definição, fixar-se em um
seu conhecimento”; certezas que, para Roger estatuto de verdade, porque a dúvida sobre
Chartier, protegeriam a história (e as histó- uma verdade do objeto deve ser a dúvida cor-
rias literárias) de qualquer inquietude quan- respondente sobre a verdade da indagação.
to a seu regime de verdade (25). As catego- Longe de diluir-se na formulação de
rias “autor”, “sujeito”, consciência”, “pro- pseudoproblemas (como já deve estar julgan- 25 Roger Chartier, À Beira da
priedade”, “obra”, “público”, “bens simbó- do a estas horas de estórias certa parcela da Falésia. A História entre Certe-
zas e Inquietude, trad. Patrícia
licos”, “crítico”, “contexto”, “colonial”, crítica que se autodefine negativa), essa pers- Chittoni Ramos, Porto Alegre,
Ed. Universidade/UFRGS,
“periodologia”, “história”, “literatura brasi- pectiva impõe uma dupla negatividade que o 2002, p. 17.
leira”, etc., da maneira como hoje costumam mais possível se afaste da apologia seja do
26 Chantal Castelli, “Interpreta-
ser compreendidas, não têm um estatuto “ser” do “objeto”, seja do “dever-ser” dos ção e Vida: a Erlebnis em
Dilthey e as Críticas à
heurístico que as universalize. Não são no- pressupostos de valor que implicitam em nós Einfühlung”, in Magma. Revis-
mes idênticos à sua verdade, ainda quando um Subjekt superconsciente, como camun- ta de Teoria Literária e Literatu-
ra Comparada, no 7, 2001,
haja coincidências vocabulares que enga- dongos do subsolo. p. 54.

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