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Introdução
O planejamento tributário e seus limites são o tema sobre o qual mais estudei,
escrevi e publiquei em minha trajetórica acadêmica. Para responder às sempre
inteligentes e perspicazes questões que o Prof. Hugo de Brito Machado formula aos
autores convidados a contribuir com os volumes da tradicional Coleção de Estudos
Tributários do ICET, utilizei no presente estudo alguns textos que escrevi em livros,
capítulos de livros e artigos sobre o tema1, procurando produzir como resultado final um
texto claro, coerente, maduro e propositivo. O marco teórico que sempre me guiou na
investigação desse tema foi a obra do professor espanhol Carlos Palao Taboada. No
presente estudo não foi diferente.
Questões formuladas:
1
Os textos que utilizei para responder algumas perguntas foram os seguintes: GODOI, Marciano Seabra
de. Estudo comparativo sobre o combate ao planejamento tributário abusivo na Espanha e no Brasil.
Sugestão de alterações legislativas no ordenamento brasileiro. Revista de Informação Legislativa, v.
194, 2012, 117-146; GODOI, Marciano Seabra de & FERRAZ, Andrea Karla. Planejamento tributário e
simulação: estudo e análise dos casos Rexnord e Josapar. Revista Direito GV, v. 15, 2012, p. 359-379;
GODOI, Marciano Seabra de. A figura da fraude à lei tributária na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal. Revista Dialética de Direito Tributário, v. 79, 2002, p. 75-85; GODOI, Marciano Seabra de. A
figura da fraude à lei tributária prevista no parágrafo único do art.116 do Código Tributário Nacional.
Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, v. 68, 2001, p. 101-123; GODOI, Marciano Seabra
de. Fraude a la ley y conflicto en la aplicación de la legislación tributaria, Madrid: Instituto de
Estudios Fiscales, 2005; GODOI, Marciano Seabra de. Comentarios sobre el cuadro actual de aplicación
de normas generales anti-elusión en España. In: FERREIRA, Eduardo Paz; TORRES, Heleno Taveira;
PALMA, Clotilde Celorico (Orgs). Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, v.
II, Coimbra: Almedina, 2013, p. 93-119; GODOI, Marciano Seabra de. Interpretação do Direito
Tributário. In: ROCHA, Sérgio André (Org.). Curso de Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin,
2011, p. 209-248; GODOI, Marciano Seabra de & SALIBA, Luciana Goulart. Interpretação e Aplicação
da Lei Tributária. In: MACHADO, Hugo de Brito (Org.). Interpretação e Aplicação da Lei Tributária.
São Paulo/Fortaleza: Dialética, 2010, p. 268-293; GODOI, Marciano Seabra de. O quê e o porquê da
tipicidade tributária. In: RIBEIRO, Ricardo Lodi & ROCHA, Sérgio André (Orgs.). Legalidade e
Tipicidade no Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 72-99; GODOI, Marciano Seabra
de. Uma proposta de compreensão e controle dos limites da elisão fiscal no direito brasileiro - estudo de
casos. In: YAMASHITA, Douglas (Org.). Planejamento tributário à luz da jurisprudência, São Paulo:
LEX, 2007, p. 237-288; GODOI, Marciano Seabra de. Dois conceitos de simulação e suas consequências
para os limites da elisão fiscal. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Org.), Grandes Questões Atuais do
Direito Tributário - 11.º Volume, São Paulo: Dialética, 2007, 272-298.
1
Esta é talvez a única questão sobre planejamento tributário que não desperta
polêmica ou discordância. A relevância prática do tema é inegável, inquestionável, e
pode ser aferida, por exemplo, pela quantidade imensa de livros, artigos, dissertações,
teses, congressos e seminários que, no Brasil e em diversos países, têm este tema como
objeto exclusivo ou principal. Também atesta a importância prática do tema o número
considerável de lançamentos tributários de valores expressivos, em que a autoridade
administrativa qualifica de abusivo, simulado ou fraudulento o planejamento tributário
posto em prática pelo sujeito passivo da obrigação tributária.
A atividade do planejamento tributário impacta diretamente a forma pela qual os
atos e negócios jurídicos são efetuados por pessoas físicas e jurídicas, e tem
consequências óbvias sobre o volume de recursos carreados aos cofres públicos.
Naturalmente, os mais interessados no tema são os contribuintes com maior riqueza e
com maior poder de promover variações, de fundo e de forma, espaciais e temporais, na
maneira pela qual seus negócios são realizados. Com efeito, o planejamento tributário é
algo quase desconhecido para os contribuintes de fato (que suportam o peso do tributo
sem serem contribuintes) e para as pessoas físicas assalariadas cujo ônus tributário é
quase todo ele incidente na fonte, mas tem uma importância vital para grandes
conglomerados multinacionais assessorados pelas empresas de consultoria conhecidas
como “big four” (Price, Delloite, KPMG e EY) e por influentes e especializados
escritórios de advocacia.
Do ponto de vista puramente econômico, e supondo a existência de uma carga
tributária relevante (de 20 a 40% do Produto Interno Bruto, tal como ocorre nas
economias capitalistas contemporâneas), o planejamento tributário tem pelo menos dois
impactos importantes. Na microeconomia, o planejamento tributário buscado pelos
agentes econômicos impacta diretamente a margem de lucro dos negócios, daí por que
os tributaristas são sempre consultados – e não raro com nítido protagonismo – antes de
se efetuar um grande investimento. Na macroeconomia, o planejamento tributário afeta
a distribuição da carga tributária entre os agentes econômicos (deslocando a carga
tributária para os ombros dos que não têm acesso ao planejamento tributário) e também
o grau de eficiência e produtividade dos fatores de produção.
Quanto a este último aspecto, da influência do planejamento tributário sobre o
grau de eficiência e produtividade dos fatores de produção, a explicação é a seguinte:
não raro acontece de determinados negócios serem efetuados com uma configuração
ótima do ponto de vista tributário (ou seja, provocando a menor incidência tributária
possível, ou mesmo nenhuma incidência tributária), a custo de uma consequente
configuração não-ótima (e muitas vezes uma configuração bastante ineficiente) do
ponto de vista operacional ou produtivo. Um tributarista dos Estados Unidos cunhou
uma definição de “tax shelter” que ilustra muito bem, e com bom humor, este aspecto:
“a tax shelter is a deal done by very smart people that, absent tax considerations, would
be very stupid”2.
2
GRAETZ, Michael J.. 100 Million Unnecessary Returns, New Haven: Yale University Press, 2010,
116. Num vocabulário jurídico mais rigoroso, “tax shelter” pode ser definido como um artificioso e
distorcido esquema negocial levado a termo para evitar ou reduzir obrigações tributárias (cf. LYONS,
Susan M. (Ed.), International Tax Glossary, 3rd. edition, Amsterdam: IBFD, 1996, 304).
2
Há vários conceitos da Teoria Geral do Direito envolvidos no tema. Eis os que
considero mais relevantes: interpretação/aplicação, qualificação, subsunção, legalidade,
analogia, fraude à lei, abuso do direito. Esses conceitos serão trabalhados nas respostas
às próximas perguntas.
Vê-se, portanto, que o planejamento tributário é um tema profundamente ligado
à teoria jurídica, e ao mesmo tempo um tema de extraordinária relevância prática.
Aqui se deve fazer uma advertência muito importante. É que além de teórico, o
planejamento tributário é um tema carregado de ideologia política e econômica, o que
quase sempre deixa de ser devidamente explicitado e assumido pelos autores que
escrevem sobre o assunto. A visão e as opiniões que uma pessoa tem sobre o
planejamento tributário são necessária e fortemente condicionadas pela visão que a
mesma pessoa tem sobre a natureza e as funções do Estado, a natureza e as funções do
tributo e do direito tributário.
Um juiz que considere que o direito existe principalmente para assegurar a paz
social e, intervindo o menos possível na vida privada e na livre-iniciativa dos cidadãos,
garantir a certeza e a segurança-previsibilidade nas relações entre indivíduos
maximizadores de riqueza e bem-estar, provavelmente decidirá casos difíceis de
planejamento tributário de forma distinta de um juiz que, aplicando as mesmas leis e a
mesma Constituição a um mesmo caso concreto, acredite que o fim supremo do direito
e do Estado é promover a justiça, assegurando a todos os cidadãos igualdade efetiva de
oportunidades para desenvolverem com ampla liberdade sua personalidade, suas
escolhas e seus talentos pessoais. O primeiro juiz tende a ser muito mais permissivo do
que o segundo com relação a planejamentos tributários ousados ou agressivos.
O mesmo ocorre com relação à visão do tributo e do direito tributário. Se o
tributo é visto como uma “norma de rejeição social” e o direito tributário como sendo
exclusivamente um mecanismo de defesa e proteção dos indivíduos contra o Estado,
então o planejamento tributário será envolto numa aura de sacralidade e heroísmo, e sua
prática considerada a quintessência do engenho humano e da liberdade individual. Essa
visão ideológica libertária ou libertarista é muito arraigada na doutrina brasileira, o que
explica, a meu juízo, a forte aversão de boa parte dos autores nacionais a qualquer tipo
de norma geral destinada a coibir planejamentos tributários abusivos3.
3
Para uma crítica à visão libertarista do tributo e do direito tributário, cf. GODOI, Marciano Seabra de. O
tributo, o direito tributário e seu significado atual para a ordem constitucional: crítica à postura libertarista
presente na doutrina brasileira, In: OTERO, Paulo; ARAÚJO, Fernando; GAMA, João Taborda da
(Orgs.). Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Vol. III, Lisboa: Coimbra
Editora, 2011, 447-458. Para uma amostra da aversão doutrinária às normas gerais antiabuso, vide a
petição inicial da ADI 2.446, ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio em 2001 e até hoje não
levada à pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal.
3
Deve-se, ao contrário, estudar as especificidades da manifestação dessas ideias gerais na
experiência concreta (legislação, jurisprudência, doutrina) de cada ordenamento jurídico
e em cada momento histórico.
A relação entre planejamento tributário e a noção de abuso de formas tem lugar
e data de nascimento: Alemanha, 19194. O Código Tributário alemão editado neste ano
dispunha em seu § 5 que “a obrigação tributária não pode ser eludida ou reduzida
mediante o emprego abusivo de formas e configurações do direito civil”. A ideia é
simples: o contribuinte não pode evitar a obrigação tributária recorrendo à manipulação
ou à concatenação manifestamente artificiosa e descontextualizada de atos ou negócios
jurídicos.
Eis um exemplo antigo, simples e esclarecedor do abuso de formas: para escapar
do imposto sobre transmissão de bens imóveis por ato oneroso inter vivos, duas pessoas
criam uma sociedade, com uma delas aportando ao capital da sociedade um imóvel, e a
outra aportando ao capital da sociedade uma quantia em dinheiro, correspondente ao
valor do imóvel. Algum tempo depois da constituição da sociedade, esta é liquidada por
comum acordo entre os sócios, definindo-se que a propriedade do imóvel será entregue
ao que aportara dinheiro, e que o caixa da sociedade será entregue ao que aportara o
imóvel.
Na lógica da norma alemã, o exemplo acima engendra um abuso de formas: a
forma ou configuração contratual, o negócio jurídico da constituição de sociedades foi
usado de maneira inadequada, artificiosa, abusiva, como meio para evitar o imposto
sobre a transmissão do imóvel. Quando isso ocorre, a norma alemã criada em 1919 e em
vigor até hoje determina que “o crédito tributário nasce como teria nascido com uma
configuração jurídica adequada aos fatos econômicos”. A redação atual da norma
alemã, alterada pela última vez em 2007 e em vigor a partir de 1.1.2008, é mais
complexa, mas permanece fiel à lógica da teoria do abuso das formas criada em 1919
(tradução para o espanhol do Prof. Carlos Palao Taboada):
4
Sobre o abuso de formas no direito tributário alemão, cf. SCHIESSL, Martin. “Branch Report – Germany
– Summary”, IFA, Form and substance in tax law, Cahiers de Droit Fiscal International,
Vol.LXXXVIIa, Haia: Kluwer, 2002, 311-312; PALAO TABOADA, Carlos. Algunos problemas que plantea
la aplicación de la norma española sobre el fraude a la ley tributaria”, Crónica Tributaria, n.º 98, 2001,
127 e ss, Idem. “Tipicidad e igualdad en la aplicación de las normas tributarias (La prohibición de la
analogía en Derecho tributario)”, Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de
Madrid, núm.1, 1997, 219 e ss; FISCHER, Peter. “L’esperienza tedesca”, DI PIETRO, Adriano (Dir.),
L’elusione fiscale nell’esperienza europea, Milão: Giuffrè, 1999, pp.203-249; RÄDLER, Albert.
“General Description: Germany (Stautory Interpretation – Substance over form)”, AULT, Hugh (Dir.).
Comparative Income Taxation, Haia: Kluwer Law International, 1997, pp.62-70, PISTONE, Pasquale.
Abuso del Diritto ed elusione fiscale, Pádua: CEDAM, 1995; KRUSE, Heinrich Wilhelm. “Il risparmio
d’imposta, l’elusione fiscale e l’evasione”, AMATTUCCI, Andrea (Dir.). Trattato di Diritto Tributario,
Vol. III, Pádua: CEDAM, 1994, pp.207-223; SCHOUERI, Luis Eduardo. Planejamento fiscal através de
acordos de bitributação, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, pp.40-50; HARTZ, Wilhelm.
Interpretação da lei tributária, tradução de Brandão Machado, Resenha Tributária, São Paulo, 1993,
KRAMER, Jörg-Dietrich. “Abuse of law by tax saving devices”, Intertax, n.º 2, 1991, pp.96-102,
ROTHMANN, Gerd Willi & PACIELLO, Gaetano. “Elisão e Evasão Fiscal”, Elisão e Evasão Fiscal,
Caderno de Pesquisas Tributárias – Vol.13, São Paulo: Resenha Tributária – Centro de Estudos de
Extensão Universitária, 1988, pp.398-414; BEISSE, Heinrich. “O criterio económico na interpretação das
leis tributárias segundo a mais recente jurisprudencia alemã”, MACHADO, Brandão (Dir.). Direito
Tributário – Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira, São Paulo: Saraiva, 1984,
pp.5-39; PAULICK, Heinz. Estudio Preliminar a la Ordenanza Tributaria Alemana, Madrid:
Instituto de Estudios Fiscales, 1980, pp.47 e ss.
4
(1) La ley tributaria no pude ser eludida mediante el abuso de las
posibilidades de configuración jurídica. Si se realiza el presupuesto de hecho
de una regulación contenida en una ley tributaria cuyo fin sea impedir la
elusión fiscal, las consecuencias jurídicas son las establecidas en este
precepto. En otro caso, cuando exista abuso en el sentido del apartado 2 el
crédito tributario nace como hubiera nacido con arreglo a la configuración
jurídica adecuada a los hechos económicos.
(2) Existe abuso cuando se adopte una configuración jurídica inadecuada,
que ocasione para el obligado tributario o un tercero una ventaja fiscal no
prevista por la ley en comparación con una configuración adecuada. Lo
anterior no es aplicable cuando el obligado tributario demuestra que la
configuración adoptada tiene motivos no fiscales relevantes atendiendo al
conjunto de las circunstancias.
Vejamos agora brevemente a noção de abuso do direito, e como essa noção foi
relacionada historicamente com o tema do planejamento tributário. A ideia que subjaz à
secular noção de abuso do direito é que o titular de um direito subjetivo não pode
exercê-lo com a finalidade exclusiva de causar dano a um interesse legítimo de um
terceiro, nem exercê-lo de um modo incompatível com a boa-fé ou com a função
econômico-social daquele direito. A milenar regra do direito romano segundo a qual
“quem exercita um direito seu não provoca dano a ninguém” já havia sido rechaçada
pela teoria medieval dos atos de emulação, segundo a qual o titular de um direito
subjetivo pratica ato ilícito se exerce seu direito com a única finalidade de causar dano a
terceiros, realidade corriqueira principalmente nas relações de vizinhança. Na era
contemporânea, coube aos tribunais franceses5 a primazia no uso da expressão abuso do
direito no sentido de uma teoria geral destinada a coibir o exercício de direitos
subjetivos próprios de modo caprichoso, antissocial ou de má-fé.
O abuso do direito foi positivado originalmente no Código Civil alemão de
1896, e, seguindo uma larga tendência mundial, a partir de 2002 também é regulado
expressamente pelo Código Civil Brasileiro, que a ele faz menção na norma segundo a
qual “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes” (art.187).
Se coube aos tribunais franceses a primazia do uso da teoria do abuso do direito
no âmbito do direito de propriedade e de vizinhança, a esses mesmos tribunais se deveu
a primazia da vinculação dessa ideia com os limites do planejamento tributário6. Com
5
A célebre sentença do Tribunal de Colmar de 1855 (em que se puniu a conduta de um proprietário que
construiu em seu imóvel uma falsa chaminé somente para prejudicar a luminosidade do imóvel do seu
vizinho) costuma ser apontada como o grande marco histórico da adoção contemporânea da teoria do
abuso do direito.
6
Sobre o tema, cf. LEHÉRISSEL, Hervé. “Rapport de Groupement – France”, IFA, Form and substance in
tax law, Cahiers de Droit Fiscal International, Vol.LXXXVIIa, Haia: Kluwer, 2002, pp.263-286;
CHEVALIER, Jean Pierre. “L’esperienza francese”, DI PIETRO, Adriano (Dir.), L’elusione fiscale
nell’esperienza europea, Milão: Giuffrè, 1999, pp.5-32; GEST, Guy. “General Description: France –
Anti-avoidance doctrines and rules”, In: AULT, Hugh (Dir.). Comparative Income Taxation, Haia:
Kluwer Law International, 1997, pp.47-48; GEST, Guy y TIXIER, Gilbert. Droit fiscal international, 2.ª
edição, Paris: Presses Universitaires de France, 1990, pp.523-525; COZIAN, Maurice. “What is abuse of
law”, Intertax, n.º 2, 1991, pp.103-107; FROMMEL, Stefan N. “United Kingdom tax law and abuse of
rights”, Intertax, n.º 2, 1991, pp. 55-60; MASSON, Charles Robbez. La notion d’évasion fiscale en Droit
interne français, Paris: Librairie Genérale de Droit et de Jurisprudence, 1990; GOLDSMITH, J.C.
“Rapport National – France”, IFA. Évasion Fiscale – Fraude Fiscale, Cahiers de Droit Fiscal
International, Vol.LXVIIIa – premier sujet, Haia: Kluwer, 1983, pp.377-379.
5
efeito, nas décadas de 20 e 30 do século XX, o Conselho de Estado da França adotou
um movimento de abandono do formalismo em direção ao “realismo fiscal”7, no qual
passou a aplicar no julgamento de lides tributárias a doutrina do abuso do direito,
determinando que a Administração tinha a faculdade de desconsiderar atos e negócios
jurídicos cuja formalização era incompatível com as verdadeiras finalidades empíricas
das partes, até que em 1941 criou-se uma norma legislativa nesse sentido. Na redação
que, com pouquíssimas modificações, perdurou de 1981 até 2008, a norma francesa
dispunha que (Article L64, Livre de Procédure Fiscale):
7
Cfr. MASSON, Charles Robbez. La notion d’évasion fiscale en Droit interne français, Paris: Librairie
Genérale de Droit et de Jurisprudence, 1990, pp.194 e ss.
8
Cfr. FROMMEL, Stefan N. op.cit., p.58.
9
Cfr. MORELLO, Umberto. “Il problema della frode alla legge nel Diritto tributario”, Diritto e Pratica
Tributaria, n.º 1, 1991, p.17.
6
Voltemos agora à formulação da pergunta: A expressão abuso de forma tem o
mesmo significado de abuso de direito? Qualquer resposta peremptória a essa pergunta
cairia no erro do conceitualismo e do essencialismo. Por isso minha resposta é a
seguinte: a expressão abuso de forma remete à precursora experiência alemã (1919) no
combate legislativo aos planejamentos tributários levados a cabo mediante um uso
inadequado e artificioso das possibilidades de configuração negocial oferecidas pelo
ordenamento jurídico, enquanto a expressão abuso do direito remete à experiência
francesa de combate (inicialmente jurisprudencial, posteriormente mediante norma
legislativa) a condutas que buscam evitar ou minorar tributos mediante: a) atos
simulados-fictícios; ou b) atos que se valem de uma interpretação literal de normas
ditadas com distinta finalidade e não são motivados por qualquer outro propósito que
não o de minorar ou evitar os tributos que seriam normalmente suportados caso a
conduta abusiva não fosse realizada.
A resposta ainda comporta uma advertência final muito importante. Se se analisa
a vasta doutrina sobre a norma alemã, vê-se que a maioria dos autores considera que a
norma consiste na aplicação ao campo tributário da teoria da fraude à lei10, conceito que
trabalharemos melhor nas respostas às perguntas a seguir. Mas há também autores que
veem na norma alemã a aplicação da teoria do abuso do direito e não da teoria da fraude
à lei11. No próprio direito civil, berço das teorias sobre a fraude à lei e o abuso do
direito, os conceitos não raro se embaralham, sendo conhecida a opinião de Josserrand
segunda a qual “a fraude à lei não seria outra coisa que uma forma concreta de cometer
um abuso do direito”12.
Se se faz abstração dos rótulos abuso de forma, abuso do direito e fraude à lei e
se analisam os critérios objetivos e subjetivos contidos nas normas alemã (§ 42 do
Código Tributário) e francesa (no que se refere à segunda categoria de atos previstos no
art.L64 do Livre de Procédure Fiscal) atualmente em vigor sobre os limites do
planejamento tributário, vê-se que as técnicas são muito semelhantes: ambas se referem
à possibilidade de a Administração desconsiderar condutas que engendram aplicações
distorcidas e artificiosas do direito, buscando consequências não previstas ou não
queridas pela lei, e que adicionalmente possuem como único propósito relevante a
redução de tributos.
10
HENSEL, Albert. Diritto tributario, tradução de Dino Jarach, Milão: Giuffrè, 1956, pp.143-147;
KRUSE, op.cit., p.213; FISCHER, op.cit., pp.222-223. PALAO TABOADA, Carlos. “Algunos problemas que
plantea la aplicación de la norma española sobre el fraude a la ley tributaria”, Crónica Tributaria, n.º 98,
2001, pp.127 e ss..
11
PISTONE, Pasquale. Abuso del Diritto ed elusione fiscale, Pádua: CEDAM, 1995, p.27-28; 44-65.
12
Apud DÍEZ-PICAZO, Luis, “El abuso del Derecho y el fraude de la Ley en el nuevo Título Preliminar
del Código Civil y el problema de sus recíprocas relaciones”, Documentación Jurídica, núm.4, 1974,
p.1342.
7
simulação, que, na prática, é muito semelhante ao funcionamento de uma norma geral
antiabuso.
O ordenamento brasileiro passou a contar com uma norma geral antiabuso em
2001 (art.116, parágrafo único do CTN, introduzido pela LC 104/2001), conforme será
explicado mais detalhadamente ao final deste estudo. Como essa norma geral ainda não
foi regulamentada nem posta em prática no âmbito federal, os planejamentos tributários
são controlados pelas autoridades administrativas mediante a aplicação de um conceito
amplo de simulação. Portanto, quem quiser compreender realmente como a
jurisprudência atual concebe e valora as operações de planejamento tributário
(mantendo algumas de pé e desclassificando outras) deve voltar sua análise à teoria e à
prática da simulação. Vejamos mais de perto essa questão.
13
XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva, São Paulo: Dialética,
2001, p.52.
14
Vide MOREIRA ALVES, José Carlos. “Abuso de formas, abuso de direito, dolo, negócios jurídicos
simulados, fraude à lei, negócio indireto e dissimulação”, Anais do Seminário Internacional sobre
Elisão Fiscal, Brasília: ESAF, 2001, pp.64-65. Sílvio Venosa afirma de forma categórica: “A
característica fundamental do negócio simulado é a divergência intencional entre a vontade e a
declaração” – VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Parte Geral, 3.ª ed., São Paulo: Atlas, 2003,
p.467. A mesma concepção baseada na teoria da manifestação da vontade é adotada por Pontes de
Miranda: “na simulação, quer-se o que não aparece e não se quer o que aparece” – PONTES DE
MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, Parte Geral – Tomo I, Rio de Janeiro:
Borsoi, 1954, p.53.
15
FERRARA, Francesco. A simulação dos negócios jurídicos, Campinas: Red Livros, 1999, p.52.
16
XAVIER, op.cit., p.67.
17
XAVIER, op.cit., p.57.
8
Ministério da Fazenda (CCMF) e atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
(CARF), em que os julgadores utilizam conceitos bem diferentes de simulação para
qualificar os atos e negócios praticados pelo contribuinte? Se em seus votos todos os
julgadores recorrem aos mesmos dispositivos do Código Civil (art.102 do Código de
1916 e art.167 do Código de 2002), se o conceito de simulação do direito civil é o
mesmo que vigora no direito tributário 18 , se "os civilistas brasileiros concordam na
análise dos pressupostos da simulação relativa"19, e ainda se os tributaristas "sempre
caminharam de passo certo com os civilistas na temática da simulação"20, como explicar
que o conceito mais controverso (e decisivo) nos julgamentos sobre os limites da elisão
seja exatamente o conceito de simulação?
O Código Civil de 2002 (art.167, § 1.º) não alterou a redação do dispositivo que,
no Código anterior (art.102), definia as hipóteses de simulação. A legislação brasileira
dispõe desde 1916 que há simulação quando: 1. negócios jurídicos "aparentarem
conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se
conferem ou transmitem"; 2. negócios jurídicos "contiverem declaração, confissão,
condição ou cláusula não verdadeira"; 3. instrumentos particulares forem antedatados
ou pós-datados.
A terceira hipótese (documentos antedatados ou pós-datados) é mais precisa e
fácil de identificar na realidade, bastando apurar os fatos para se chegar a uma
conclusão segura sobre se houve ou não simulação. Mas a primeira e a segunda
hipóteses, ao contrário do que em princípio se poderia pensar, comportam interpretações
diversas. A idéia fundamental presente em ambas as hipóteses é a de simulação como
aparência não verdadeira, mas o dispositivo legal não desenvolve o conceito de
aparente ou de não verdadeiro. E não é preciso ser filósofo ou linguista para constatar
que há mais de uma maneira de compreender a contraposição entre verdade e mentira,
realidade e aparência.
Há situações em que ninguém discute que o negócio jurídico é mera aparência:
um contrato de prestação de serviços em que nenhum serviço é prestado (simulação
absoluta), ou um contrato de compra e venda cujo preço declarado na escritura é
diferente do que foi pago pelo comprador ao vendedor (simulação relativa ou
dissimulação).
Mas os casos reais de planejamento tributário questionados pela fiscalização e
postos ao crivo dos Conselhos de Contribuintes e do Judiciário não se referem a
negócios jurídicos cujo caráter de mera aparência é assim tão óbvio. Mesmo que todas
as provas tenham sido produzidas e não remanesça dúvida quanto aos fatos concretos,
ainda assim haverá duas formas básicas de enxergar o caráter não verdadeiro de um
negócio jurídico.
Tomemos o conhecido caso da incorporação às avessas e seus diversos
julgamentos no CCMF (Câmara Superior e 1.º Conselho). Essas incorporações foram
18
Cfr. PEREIRA, César A. Guimarães. Elisão tributária e função administrativa, São Paulo: Dialética,
2001, p.216. Em sentido contrário, TÔRRES, Heleno. Direito Tributário e DireitoPrivado –
Autonomia Privada, Simulação, Elusão Tributária, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp.363-
364.
19
TORRES, Ricardo Lobo. "Elisão abusiva e simulação na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e
do Conselho de Contribuintes", In: YAMASHITA, Douglas (coord.). Planejamento tributário à luz da
jurisprudência, São Paulo: Lex, 2007, p.334.
20
Ibid., p.335.
9
uma espécie de "resposta do mercado" à revogação do art.64, § 5.º do Decreto-lei
1.598/77, que permitia que a incorporadora compensasse os prejuízos fiscais da
incorporada. Até então, incorporavam-se empresas com vultosos prejuízos fiscais
somente para – ato contínuo – compensar seus prejuízos com os lucros da
incorporadora. A partir da revogação daquele dispositivo, os assessores fiscais
desenvolveram um procedimento bem mais complexo e artificial: os sócios da empresa
operativa e lucrativa adquiriam o controle da empresa com prejuízos (geralmente
desativada) e em seguida promoviam a incorporação da empresa lucrativa pela empresa
desativada. Logo após a incorporação, desconfigurava-se completamente a identidade
da empresa incorporadora: seu nome, objeto social, endereço, corpo diretivo e clientes
passavam a ser os da empresa incorporada, que havia sido extinta na operação de
incorporação.
Ninguém discute que essa incorporação será um ato simulado, à luz do Código
Civil brasileiro, se considerarmos que a operação não é verdadeira, que a operação
somente aparenta transmitir direitos e deveres da incorporada para a incorporadora.
Mas o Código Civil não contém normas – nem o de 1916 nem o de 2002 – que nos
respondam claramente quando um negócio é aparente e quando é real! Então como o
julgador decidirá o caso? A prática demonstra que ele decidirá o caso (reputando o
planejamento tributário simulado ou não) a partir de sua convicção a respeito do papel
ou da importância jurídica da finalidade prática ou da substância econômica que
normalmente subjaz a um determinado negócio jurídico.
Se um juiz ou um conselheiro considera que os negócios de direito privado
(constituição de uma sociedade, incorporação de uma sociedade por outra, aumentos e
diminuições de capital etc.) existem e são regulados tanto pelo direito privado (direito
societário) quanto pelo direito público (direito tributário) para servir a determinadas
finalidades práticas ou a determinados propósitos econômicos mais ou menos definidos,
então esse juiz ou conselheiro muito provavelmente considerará que as circunstâncias
que cercam a chamada incorporação às avessas indicam que se trata de uma operação
aparente, não verdadeira. Pois para essa postura, para o negócio ser real, verdadeiro,
efetivo (e portanto não simulado), as circunstâncias e propósitos concretos que cercam
cada negócio jurídico devem guardar uma mínima congruência com a função
econômico-social que a ordem jurídica supõe estar subjacente ao próprio negócio.
Segundo essa visão, se as partes usam um contrato de incorporação societária (no bojo
de uma sequência preordenada de atos) para atingir objetivos concretos estranhos (ou
mesmo opostos) à finalidade prática subjacente ao contrato de incorporação, o contrato
posto em prática pelas partes será visto como simulado.
Agora imaginemos que não entre na cabeça de um juiz que os negócios jurídicos
existentes no ordenamento jurídico suponham alguma finalidade prática ou alguma
substância econômica a eles subjacente. Para esse julgador, as circunstâncias, os
motivos e os propósitos concretos buscados pelas partes que praticaram um determinado
negócio jurídico são irrelevantes para determinar se o ato foi ou não simulado: o
relevante é saber se a estrutura formal do negócio foi respeitada e se as partes
declararam algo falso ou esconderam algo verdadeiro nas cláusulas de um contrato. Não
havendo esse tipo de mentiras ou falsidades, não haverá simulação.
Essas duas posições acima se refletem diuturnamente nos julgados
administrativos, inclusive nos veredictos que se formaram no CCMF sobre o caso da
incorporação às avessas. Em alguns julgados prevaleceu a posição segundo a qual as
circunstâncias do caso concreto (a incorporadora ser inativa, os sócios da incorporada
haverem adquirido previamente o controle da incorporadora, a incorporadora haver se
10
desfigurado completamente após a operação) indicavam que houve simulação (Acórdão
da CSRF 01-02.107, julgado em 1996 e Acórdão da 3.ª Câmara do 1.º Conselho 103-
21.046, julgado em 2002). Em outros julgados, prevaleceu a posição de que as
circunstâncias acima (e ainda a circunstância adicional de que as operações se repetiam
ao longo dos anos) eram irrelevantes para a configuração da simulação, pois "os
objetivos visados com a prática do ato não interferem na qualificação do ato praticado"
(ementa oficial dos Acórdãos da CSRF 01-01.874 e 01-01.857, ambos julgados em
1995).
21
TORRES, Ricardo Lobo. op.cit., p.334
22
Ibid., p.345.
23
Alberto Xavier afirma que toda simulação praticada com intuito de lesar o fisco configura a fraude e o
conluio previstos nos arts. 72 e 73 da Lei 4.502/1964, sendo portanto cabível a aplicação de multas
agravadas contra os atos de simulação – XAVIER, op.cit., p.79. Esse entendimento costuma não
prevalecer no Conselho de Contribuintes, que em muitos casos reconhece a ocorrência de simulação, mas
não aplica a multa agravada prevista nos referidos dispositivos legais.
11
muitas reservas e contestações) na doutrina italiana do início do século XX24. O negócio
jurídico indireto (cuja modalidade mais célebre é o negócio fiduciário) seria aquele em
que há uma incongruência entre a função econômico-social típica do negócio e os
objetivos concretos visados pelas partes que se utilizaram do negócio em determinadas
circunstâncias. O exemplo mais familiar de negócio jurídico indireto é a venda em
garantia (fiducia cum creditore): o vendedor do bem busca obter um empréstimo do
comprador, o qual deseja para si algo mais forte que uma garantia real. Então ao invés
de se entabular um contrato de mútuo com garantia real, realiza-se uma compra e venda
(tendo por preço exatamente a quantia emprestada) com pacto de retrovenda (retrovenda
que se fará pelo valor do principal mais os juros do mútuo). Há um descompasso entre o
propósito concreto das partes (efetuar um empréstimo oneroso de dinheiro) e o
propósito típico (transferir a propriedade) do negócio realizado (compra e venda).
Quando se utiliza o conceito restritivo de simulação, quase todas as operações
sofisticadas de planejamento tributário se encaixam nesse conceito amplo de negócio
jurídico indireto. Pois nesses casos o que o contribuinte faz é exatamente isso: o
legislador tributário se refere a estruturas negociais típicas, então o contribuinte usa uma
estrutura negocial típica de forma artificial para atingir objetivos contrastantes com as
finalidades para as quais essa estrutura está prevista no ordenamento jurídico. Não por
acaso, nos Acórdãos 01-01.874 e 01-01.857 (CSRF, sessão de 15.05.1995) e também no
Acórdão 101-94.127 (1.ª Câmara do 1.º Conselho, sessão de 28.02.2003), a operação de
incorporação às avessas foi caracterizada como negócio jurídico indireto. E mesmo nos
acórdãos em que o Conselho considerou como simulada a operação de planejamento
tributário, a tese vencida (sustentada pela defesa do contribuinte) era exatamente a de
que se deveria adotar um conceito mais restrito de simulação para concluir que a
operação praticada era um autêntico negócio jurídico indireto (vide Acórdãos 101-
94.771 e 101-94.340, ambos da 1.ª Câmara do 1.º Conselho).
Já vimos os motivos pelos quais o conceito restritivo de simulação leva a que a
maioria das operações de planejamento tributário seja considerada como uma forma de
negócio jurídico indireto. E quais as consequências de se ter praticado um negócio
jurídico indireto para contornar ou rodear leis tributárias com o fito de pagar menos
tributo? Nesse ponto abrem-se duas alternativas.
Para os autores ultraformalistas que consideram a tipicidade fechada uma
decorrência necessária do princípio da segurança jurídica, da livre-iniciativa e do direito
à propriedade privada 25 , o contribuinte teria um direito constitucional de praticar
negócios jurídicos indiretos com o fito de evitar o pagamento de tributo, direito (à elisão
tributária) que seria imune a qualquer restrição legal (ou mesmo via emenda
constitucional) que introduzisse normas gerais tais como as existentes há décadas na
generalidade dos países europeus ocidentais26.
Todos os civilistas que estudaram o negócio jurídico indireto ou fiduciário
aceitavam que, se o negócio é efetuado para esquivar normas cogentes, haverá fraude à
24
Para uma análise crítica das teorias que criaram a figura do negócio jurídico indireto, vide DE
CASTRO Y BRAVO, Federico. El negocio jurídico, Madri: Civitas, reimpressão de 1997, p.443-457 e
MORELLO, Umberto. Frode alla legge, Milão: Giuffrè, 1969, pp. 208-224.
25
Neste sentido, vide as posições de Alberto Xavier (Tipicidade da tributação..., pp.111-149,
“Tipicidad y legalidad en el derecho tributario”, Revista de Derecho Financiero y Hacienda Pública,
n.º 120/1975, pp. 1.257-1.309.) e Ives Gandra da Silva Martins (“Norma Antielisão é Incompatível com o
Sistema Constitucional Brasileiro”, In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.), O Planejamento
Tributário e a Lei Complementar 104, São Paulo: Dialética, 2001, pp. 117-128).
26
Para uma resenha dessas normas gerais, vide GODOI, Marciano S., Fraude a la ley y conflicto en la
aplicación de las leyes tributarias, Madri: Instituto de Estudios Fiscales, 2005, pp.136-183.
12
lei 27 . Mas os tributaristas adeptos do ultraformalismo não admitem (ao contrário da
maioria dos civilistas28) a figura da fraude à lei tributária. Portanto, para esses autores,
os negócios jurídicos indiretos praticados para evitar a incidência da norma tributária
somente podem ser combatidos com regras específicas ou pontuais que “fechem a
porta” caso a caso para a última moda do planejamento tributário.
Já para os autores que consideram que o legislador pode criar normas gerais
destinadas a combater aqueles planejamentos tributários baseados em formas
artificiosas e que abusam das possibilidades de configuração dos negócios jurídicos, a
caracterização de um planejamento como negócio jurídico indireto (e não como ato
simulado) é o primeiro passo para uma possível aplicação da norma geral antiabuso. Ou
seja, descartada a hipótese de simulação (utilizada em seu sentido restritivo), examina-
se – à luz da norma geral antiabuso eventualmente existente no ordenamento – se o
negócio jurídico indireto praticado engendra ou não alguma forma de abuso do direito,
fraude à lei ou outro conceito jurídico indeterminado (que somente se concretiza
paulatinamente pela jurisprudência) previsto na norma geral. No acórdão 101-94.127
(1.ª Câmara do 1.º Conselho de Contribuintes, sessão de 28.02.2003) a operação de
incorporação às avessas foi caracterizada como negócio jurídico indireto e não como
simulação, o que motivou as seguintes observações da Conselheira-Relatora Sandra
Maria Faroni:
27
Por exemplo FERRARA, op.cit., p.96: “Os negócios fraudulentos são negócios reais indiretos que
procuram conseguir, pela combinação de diversos meios jurídicos realizados seriamente, o mesmo
resultado que a lei proíbe ou, pelo menos, um equivalente”. Em outras partes de sua obra, Ferrara deixa
claro que a fraude à lei também se aplica a normas imperativas, e não somente às proibitivas. Em sua
opinião a fraude à lei somente não seria possível no caso de leis permissivas.
28
Pontes de Miranda (op.cit.¸ p.46) afirmava que “as leis de tributação são freqüentemente expostas à
fraude” e Haroldo Valladão cita as normas tributárias como especialmente passíveis de sofrer a fraude à
lei – Direito Internacional Privado, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1978, p.509.
13
Conceito amplo de simulação (vício na causa do negócio jurídico) e
suas consequências sobre os limites da elisão fiscal
29
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Volume I, Rio de Janeiro: Forense,
2005, p.505. Para uma visão mais aprofundada do tema, vide CLAVERÍA GOSÁLBEZ, Luis Humberto.
La causa del contrato, Bolonha: Publicaciones Del Real Colegio de España, 1998.
30
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1977, pp.364-365.
31
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1977, p.516.
32
Cfr. ABREU, José. O negócio jurídico e sua teoria geral, São Paulo: Saraiva, 1988, pp.276-277.
33
BETTI, Emílio. Teoria Geral do Negócio Jurídico – Tomo II, tradução de Ricardo Rodrigues Gama,
Campinas: LZN, 2003, p.277.
34
CASTRO Y BRAVO, Federico de. El negocio jurídico, Madri: Civitas, 1985, reimpressão de 1997, p.
336.
14
interposta pessoa (a chamada simulação subjetiva). Se a doação de A para C é vedada
pelo ordenamento jurídico; se A doa um imóvel a B (cumprindo para tanto todas as
exigências formais e materiais) e após alguns dias B doa o mesmo imóvel a C
(cumprindo igualmente todas as exigências formais e materiais), por que se afirma que
há simulação nos termos do art.167, § 1.º, I do Código Civil?
Parte da doutrina aponta que esse dispositivo (anteriormente no art.102, I do
Código Civil) aplica-se inclusive aos casos em que o intermediário “aparece como parte
real”, que efetivamente recebe e transmite direitos 35 . Mas vistos e analisados
separadamente cada um dos dois contratos de doação, onde está a mentira ou a
falsidade? Não se descobrirá qualquer invenção nas cláusulas dos dois contratos;
tampouco cabe falar que as cláusulas do primeiro contrato omitiram ou esconderam que
haveria um segundo contrato, pois não faz parte da estrutura do contrato de doação
considerações sobre o destino ulterior do bem ou do direito doado. Portanto só podemos
falar a rigor em mentira ou falsidade se analisarmos globalmente toda a concatenação
de negócios (algo que a concepção restritiva de simulação reluta muito em aceitar). E a
mentira e a falsidade se descobrem muito mais facilmente se buscarmos – ao invés de
fatos específicos omitidos ou inventados – qual era a finalidade prática buscada pelos
agentes dos negócios concatenados (transmitir gratuitamente o imóvel de A para C) e a
compararmos com a estrutura formal colocada em prática pelas partes.
Já deve ter ficado claro que a visão causalista da simulação coloca essa figura
numa relação de muita proximidade com a construção doutrinária do negócio jurídico
indireto, pois ambos supõem anomalias na causa dos negócios. Na definição de um de
seus grandes cultores e divulgadores (o italiano Tulio Ascarelli), o negócio jurídico
indireto se daria “quando as partes recorrem no caso concreto a um negócio
determinado, para por meio dele alcançar consciente e consensualmente fins diversos
daqueles típicos da estrutura do negócio mesmo” 36 . Veja-se a semelhança com o
conceito causalista de simulação adotado por Heleno Tôrres: “presença de duas normas
jurídicas, postas pelas partes, com causas que se anulam no seu propósito negocial
(simulação relativa), ou mesmo a formulação de um negócio sem causa (simulação
absoluta)”37 - destacamos.
Tanto num caso como no outro as partes buscam uma finalidade prática
distinta da finalidade que se considera típica do negócio jurídico que aparece à luz do
dia. Os autores – principalmente os mais simpáticos à autonomia dogmática do negócio
jurídico indireto – costumam dizer que no negócio jurídico indireto as partes querem
realmente os negócios jurídicos, ao passo que na simulação essa vontade não existe38.
Mas não raro os exemplos de simulação dados por alguns autores são os mesmos que
outros autores dão para a figura do negócio jurídico indireto, como ocorre com a doação
35
LIMA, João Franzen de Lima. Curso de Direito Civil Brasileiro – Vol. I, Rio de Janeiro: Forense,
1977, p.315. Também José Abreu afirma, comentando o inciso I do art.102 do Código de 196, que “esta
interposição pode ser real quando a pessoa que assume a intermediação adquire os direitos para depois
transferi-los ao real destinatário” – op.cit., p.278.
36
Apud DE CASTRO Y BRAVO, Federico. op.cit., p.447.
37
TÔRRES, Heleno. Direito Tributário e Direito Privado – Autonomia Privada, Simulação, Elusão
Tributária, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.309.
38
Vide a comparação de Ferrara entre os negócios fiduciários (a categoria mais prestigiada dos negócios
indiretos) e os negócios simulados: “os negócios fiduciários são sérios e efetivam-se realmente entre as
partes com o fim de obter um efeito prático determinado. Os contratantes querem o negócio com todas as
suas consequências jurídicas, ainda que se sirvam dele para uma finalidade econômica diversa” –
FERRARA, Francesco. A simulação dos negócios jurídicos, Campinas: Red Livros, 1999, p.76. O
exemplo mais conhecido de negócio fiduciário, a venda para fins de garantia, é considerada na Espanha
como um negócio simulado – vide GODOI, Marciano S. Fraude a la ley..., pp.51-54.
15
indireta 39 . Por isso, uma vez concebida a simulação em termos de vício de causa,
compreende-se muito bem a afirmação de Betti segundo a qual “a distinção,
convencional e puramente dogmática, entre negócio simulado e negócio indireto, nada
tem de absoluto e de fixo, nem pode aspirar ao rigor científico de outras
classificações”40.
39
A doação indireta é exemplo de negócio jurídico indireto para José Abreu (op.cit., p.155), e exemplo de
simulação por interposição de pessoas para Humberto Theodoro Júnior (Comentários ao Novo Código
Civil – Volume III, Tomo I, Rio: Forense, 2006, p.483. Francesco Ferrara, que confiava plenamente
numa rígida separação entre negócio simulado e negócio indireto, considerava que a doação indireta, em
que intervém um “intermediário real”, poderia configurar uma fraude à lei (se burlasse normas cogentes)
mas nunca uma simulação – FERRARA, op.cit., pp.309-310. A mesma posição (doação indireta como
possível fraude à lei mas não como simulação) tem Pontes de Miranda – Tratado de Direito Privado,
Parte Geral - Tomo IV, Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p.387.
40
BETTI, Emílio. op.cit, pp.278-279. Segundo o autor, o único critério plausível para diferenciar o
negócio simulado do negócio indireto é a “diferente medida da discrepância entre causa e intuito:
discrepância, que na simulação toma o caráter de incompatibilidade, ao passo que no negócio indireto e
no fiduciário se apresenta como uma simples incongruência ou uma deficiente adequação” – op.cit.,
p.287.
41
Neste sentido, vide as posições de José Abreu (op.cit., p.134) e principalmente do civilista Antônio
Junqueira de Azevedo na sua obra Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, 4.ª edição atualizada
de acordo com o Novo Código Civil, São Paulo: Saraiva, 2002, pp.159-161 e em sua palestra sobre o
negócio jurídico indireto na Mesa de Debates do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) de 04
de maio de 2006 (disponível em www.ibdt.com.br/integra_04052006.htm). Na área tributária,
tradicionalmente adepta de um conceito bem restrito de simulação (deixando um amplo campo para o
negócio jurídico indireto), Heleno Tôrres adota um conceito de simulação assumidamente centrado na
causa dos negócios jurídicos e não nas noções de falsidade ou vício de vontade – TÔRRES, Heleno.
op.cit., pp.282 e seguintes.
16
Duas notas desse conceito amplo de simulação (que propomos chamar de
simulação-elusão) merecem destaque. Por um lado, a simulação passa a ser um conceito
mais fluido e dinâmico, que indaga o grau de “artificialidade” do planejamento
tributário (p.9 do voto do relator no Ac. CSRF/01-02.107) e, levando em conta os
“verdadeiros efeitos econômicos subjacentes”, não consente que o aplicador fique
“aprisionado aos princípios do direito privado no que diz respeito à definição dos efeitos
tributários dos atos e fatos jurídicos” (p.11 do voto do relator no Ac. CSRF/01-02.107).
Por outro lado, a jurisprudência mais recente das Câmaras do 1.º Conselho de
Contribuintes vem distinguindo essa simulação-elusão da tradicional simulação-
evasão-sonegação (prevista nos arts.71 a 73 da Lei 4.502/64) e não vem aplicando à
primeira as multas agravadas previstas para a segunda.
Essa bifurcação entre simulação-elusão e simulação-evasão é baseada em que
na simulação-elusão haveria “atendimento a todas as solicitações do Fisco e observância
da legislação societária, com a divulgação e registro nos órgãos públicos competentes”,
enquanto que na simulação-sonegação haveria “um evidente intuito de fraude” (neste
sentido, vide Acórdão 103-21.046 – 3.ª Câmara, j.16.10.2002, Relator o Conselheiro
Paschoal Raucci, o voto do Relator Conselheiro Luiz Martins Valero no Acórdão
Acórdão 107-07.596 – 7.ª Câmara, j.14.04.2004 e o voto do Relator Conselheiro Valmir
Sandri no Acórdão 101-94.771 – 1.ª Câmara, j.11.11.2004).
Na jurisprudência que as Câmaras do 1.º Conselho de Contribuintes vêm
desenvolvendo após aquele julgamento paradigmático da CSRF ocorrido em 1996,
nota-se uma clara influência desse novo conceito de simulação-elusão. Num julgamento
de 2002, a 3.ª Câmara (Acórdão 103-21.046) analisou diversos elementos de fato
registrados pelo agente autuante (término das atividades da incorporadora, venda de seu
imobilizado, entrega em comodato de suas instalações físicas) para concluir que a
incorporação in casu era mera “roupagem jurídica” e configurava “negócio jurídico
indireto” em que “os atos jurídicos caracterizam hipótese de simulação” – note-se que
numa visão causalista os conceitos de simulação e negócio indireto se misturam.
Mesmo nos casos em que os Conselheiros concluem que o contribuinte praticou elisão,
os acórdãos não manejam mais aquele conceito estrito de simulação e atentam para
elementos fáticos com conteúdo econômico, tais como a circunstância de que a
sociedade incorporadora, apesar de deficitária, era operativa, e a circunstância de que a
incorporada fazia parte do grupo societário da incorporadora (vide Acórdão 107-07.596,
j.14.04.2004, Redator-Designado Natanael Martins).
A jurisprudência atual do CC-MF abandonou a postura tradicional de
considerar que todo e qualquer planejamento tributário que não se configure como
simulação-evasão-sonegação (“fingimento na manifestação da vontade para realizar ato
jurídico de natureza diversa daquele que, de fato, se pretende concretizar”) qualifica-se
automaticamente como uma indefectível elisão.
Na prática, o CC-MF passou portanto a reconhecer três possibilidades (e não
duas como insiste a visão tradicional da doutrina) de qualificação do planejamento
tributário: elisão lícita e eficaz (Acórdão 107-07.596), simulação-dissimulação-elusão
(passível de desconsideração mesmo antes da LC 104 mas não de punição com multa
agravada – conclusão do Acórdão 103-21.046), e simulação-evasão-sonegação
(passível de desconsideração e de punição com multa agravada – conclusão do Acórdão
101-94.771).
No Poder Judiciário, o tema da simulação e da elisão tributária ainda não conta
com uma jurisprudência consolidada. Mas as manifestações iniciais dos tribunais
superiores têm sido no sentido de confirmar a visão ampla de simulação oriunda do CC-
MF.
17
Há um julgado do Tribunal Federal de Recursos ocorrido no ano de 1987 que
merece ser comentado (Apelação Cível 115.478, j.18.02.1987, Relator o Ministro
Américo Luz). Trata-se da conhecida operação pela qual uma empresa industrial com
faturamento acima do limite máximo de enquadramento no regime do lucro presumido
cria oito empresas atacadistas (de propriedade dos diretores da empresa industrial) e
passa a vender para essas atacadistas sua produção industrial, com o que consegue
reduzir o volume de seu faturamento para se encaixar no regime do lucro presumido,
reduzindo o volume de imposto de renda a pagar.
No CC-MF, a defesa do contribuinte se baseou na regularidade jurídica da
constituição e registro das empresas atacadistas e no fato de tudo ter sido feito “às
claras”. Ou seja, o contribuinte insistiu na lógica do conceito restritivo de simulação:
não tendo havido “mentira” nem “ocultação” de nenhum fato concreto pelo
contribuinte, o caso não seria de simulação e portanto a operação seria válida e eficaz,
independentemente das motivações, das circunstâncias, das finalidades práticas, enfim
do fato de que a “causa concreta” da operação nada tinha a ver com a “causa típica” do
contrato de constituição de sociedade. Essa tese do contribuinte foi aceita por metade
dos Conselheiros, e somente pelo voto de qualidade a operação foi considerada como
simulada, mas sem que tivesse havido imposição de multa agravada (portanto adotou-se
a qualificação da simulação-elusão e não da simulação evasão). Já no TFR a tese de que
a operação era simulada foi acatada à unanimidade, sendo que um dos julgadores
(Ministro Eduardo Ribeiro) foi além: “montou-se uma gigantesca fraude”.
E em que se baseou o TFR (que adotou a fundamentação da sentença) para
vislumbrar a simulação? Em diversos fatores que fazem parte do conceito amplo de
simulação comentado acima. Inicialmente, o Judiciário reconheceu que não havia
qualquer “irregularidade formal sob o aspecto jurídico” e que tudo foi feito às claras:
registro na Junta Comercial, contabilização etc. Mas “o envoltório jurídico”, “as
vestimentas, os paramentos jurídicos”, segundo o acórdão, não bastam para afastar a
simulação, pois as empresas “só existiram no papel”. A simulação foi descoberta
exatamente nas circunstâncias 42 e nas finalidades práticas que apontavam o caráter
extremamente artificioso da operação. O Poder Judiciário revolveu as causas concretas
do negócio e considerou a operação de extrema “anormalidade”. As pessoas jurídicas
foram consideradas “artificiosas” pois “criadas tão somente para dar lucro à autora
[empresa industrial]” e sem “finalidade própria”. Outro aspecto importante desse
acórdão é sua visão global do negócio, que lhe permitiu enxergar “simulacros de
pessoas jurídicas cujas atividades são pré-ordenadas mediante um plano concebido por
três sócios da autora”. Em suma: tanto pela sua conclusão (manutenção da autuação
fiscal) quanto pela sua fundamentação (comentada acima), esse precedente do TFR
aponta para uma compreensão ampla da simulação.
Em duas recentes decisões colegiadas, proferidas nas Apelações Cíveis
2004.71.10.003965-9/RS e 2002.04.01.014021-6/RS, a 1.ª e a 2.ª Turma do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região seguiram a mesma linha da nova tendência
jurisprudencial do Conselho de Contribuintes43.
Três notas merecem destaque no julgamento da Apelação Cível nº
2004.71.10.003965-9/RS, Relator Desembargador Federal Dirceu de Almeida Soares
42
As oito empresas atacadistas foram constituídas no mesmo dia pelos diretores da empresa industrial,
quatro delas tinham apenas um empregado e todas tinham o mesmo endereço da empresa industrial.
43
A presente análise foi retirada do estudo GODOI, Marciano Seabra de & FERRAZ, Andrea Karla.
Planejamento tributário e simulação: estudo e análise dos casos Rexnord e Josapar, Revista Direito GV,
n. 15, 2012, 359-379.
18
(2.ª Turma, DJ 06.09.2006). A primeira é que o acórdão fez a distinção tradicional entre
elisão fiscal (utilização de meios lícitos e diretos, anteriormente à ocorrência do fato
gerador, para evitar ou minimizar a tributação) e evasão fiscal (utilização de meios
ilícitos para reduzir a carga tributária, posteriormente à ocorrência do fato gerador), para
concluir que é admitida a elisão fiscal quando não houver simulação do contribuinte.
Mas o conceito de simulação adotado pelo acórdão foi um conceito amplo, que leva em
conta as condições econômicas e operacionais da operação como um todo.
A segunda nota é que o acórdão não tomou como sinônimas as expressões
simulação e evasão, na medida em que distinguiu a evasão ou fraude fiscal (utilização
de meios ilícitos para ocultar, enganar, iludir o fisco) da elisão fiscal com simulação
(utilização de meios lícitos, porém indiretos, anteriormente à ocorrência do fato
gerador, para burlar norma tributária, com vistas à redução ou à eliminação da
tributação por meio da realização de negócios jurídicos artificiais e desprovidos de
qualquer racionalidade negocial).
Um terceiro aspecto que merece ser considerado é que o acórdão não só
examinou a operação do ponto de vista econômico, para concluir que as circunstâncias
levavam à inviabilidade da operação de incorporação da empresa superavitária pela
empresa deficitária, como também examinou outros aspectos relacionados a questões
societárias, como a manutenção, após a incorporação, da razão social, do
estabelecimento, dos funcionários e dos membros do Conselho de Administração. Ou
seja, após a análise global da situação, e não apenas do ato de incorporação
isoladamente considerado, concluiu o Tribunal que restou demonstrado que, de fato, a
incorporada é que “absorveu” a deficitária/incorporadora, e não o contrário, “tendo-se
formalizado o inverso apenas a fim de serem aproveitados os prejuízos fiscais da
empresa deficitária, que não poderiam ter sido considerados caso tivesse sido ela a
incorporada, e não a incorporadora, restando evidenciada, portanto, a simulação.”
Já no julgamento da Apelação Cível 2002.04.01.014021-6/RS (Relatora
Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz Leiria – DJ 22.06.2005), a 1ª Turma do TRF
4ª Região buscou marcar a diferença entre a elisão fiscal eficaz e a ineficaz, valendo-se
da tese de que se configura elisão fiscal se o ato de evitar o recolhimento do tributo
ocorreu em momento anterior à ocorrência do fato gerador. Contudo, se já ocorrido o
fato gerador, a solução para o não-pagamento do tributo devido configura evasão fiscal.
A despeito de se utilizar de um aspecto insuficiente para fazer a distinção entre
elisão e evasão fiscal, qual seja o momento em que ocorrido o fato gerador do tributo,
chama a atenção o fato de que o acórdão não analisou somente a última operação do
negócio, mas todo o conjunto fático-probatório, inclusive o substrato econômico da
operação, para concluir que existiu uma incongruência entre a realidade dos fatos e a
argumentação ou a pretendida atitude das partes envolvidas.
No caso concreto da Apelação Cível 2002.04.01.014021-6/RS (empresa
Rexnord), houve diversas incorporações às avessas ao longo do tempo: uma mesma
empresa (Rexnord Correntes) formalmente “morria” (visto que era incorporada) e
materialmente “renascia” (pois a empresa incorporadora passava a adotar todas as
características operacionais e societárias da empresa incorporada) várias vezes. O
contribuinte se batia por uma aplicação formalista do conceito de simulação, alegando
que “não existem falhas formais ou legais nas operações realizadas”. Mas o acórdão
subscreveu a conclusão da sentença, segundo a qual há simulação se a operação “não
refletir a realidade econômica do negócio” ou se o negócio “for realizado com o único
objetivo de permitir o aproveitamento de prejuízos fiscais ou de balanços negativos para
a redução da carga tributária”.
19
Num exemplo de como o tribunal valorizou aspectos negociais e econômicos da
operação, foi ressaltado o fato de que, nas duas últimas incorporações, o pagamento
pela aquisição do controle das empresas que posteriormente viriam a ser incorporadoras
foi feito pela própria empresa incorporada, em momento anterior à incorporação. Numa
postura bastante realista e atenta à causa concreta da operação naquele caso em
particular, a sentença confirmada pelo acórdão observou que “no mundo dos negócios
as coisas não acontecem dessa maneira; claramente o que ocorreu foi a inversão de
papéis com o objetivo de lograr a situação fiscal mais favorável”.
A conclusão é que o TRF 4ª Região julgou a questão aplicando um conceito
ampliado de simulação, identificando a causa concreta das incorporações efetuadas
pelas empresas Josapar e Rexnord, comparando-a com a causa típica do contrato de
incorporação, para concluir – num tom claramente causalista – que “não é lícito que se
realizem cisões, incorporações ou fusões levadas não pelo conteúdo próprio desses
negócios, mas sim de modo diferente da forma que tais negócios normalmente se
realizam, mediante incorporação das empresas deficitárias pelas lucrativas, das
empresas de menor patrimônio pelas de maior patrimônio”. Restou clara, assim, a
adesão do tribunal a uma posição que se dispõe (independente do resultado a que se
chegue em cada caso) a avaliar a operação no seu todo, levando em conta as
circunstâncias que compõem a causa concreta do negócio, e dessa forma medir o quão
artificioso foi o caminho escolhido pelo contribuinte.
O contribuinte (empresa Josapar) que saiu perdedor na AC 2004.71.10.003965-
9/RS interpôs recurso especial dirigido ao Superior Tribunal de Justiça, alegando que o
acórdão recorrido violou o dispositivo do Código Civil que dispõe sobre os casos em
que se configura simulação. Sua alegação foi a de que houve violação ao “art.102 do
CC/1916, pois a operação de incorporação realizada foi lícita e não representou
simulação para evasão de tributos”.
De fato, caso se utilize o conceito restritivo e tradicional de simulação, que se
recusa a ver determinado ato jurídico no contexto amplo de toda uma estrutura negocial
e econômica posta em prática em busca de certa finalidade concreta, o acórdão do TRF
da 4.ª Região pode ser visto como um caso de violação aos dispositivos do Código Civil
que regulam o instituto jurídico da simulação.
Por isso mesmo o veredicto do STJ nesse processo específico era muito esperado
tanto pelo fisco quanto pelos contribuintes em geral, pois, conforme o art.105 da
Constituição Federal de 1988, cabe exatamente ao STJ a função de uniformizar a
interpretação da legislação federal – no caso concreto, a legislação que dispõe sobre o
conceito de simulação.
Do ponto de vista estritamente processual, a 2.ª Turma do STJ se recusou a
entrar no mérito da ocorrência de violação do acórdão do TRF ao art.102 do Código
Civil, alegando que para entrar nesse mérito teria que proceder à “análise de todo o
arcabouço fático apreciado pelo Tribunal de origem e adotado no acórdão recorrido, o
que é inviável em Recurso Especial, nos termos da Súmula 7/STJ”. A nosso ver, essa
razão processual dada para o não-conhecimento do recurso não procede, pois o
contribuinte não pedia em seu recurso especial que o STJ revisse algum aspecto
estritamente fático quanto às provas produzidas e valoradas nas instâncias inferiores. O
que o contribuinte requeria é que o STJ decidisse se estava ou não acorde com o art.102
do CC a maneira pela qual o TRF interpretou e aplicou o instituto da simulação.
Portanto, é manifestamente errônea a assertiva do Relator do acórdão do STJ segundo a
qual “não há controvérsia quanto à legislação federal”. Havia claramente uma
controvérsia de mérito: tratava-se de duas posições antagônicas (a do recorrente e a do
acórdão recorrido) sobre o conteúdo do conceito jurídico de simulação.
20
Se do ponto de vista processual o STJ se recusou indevidamente a enfrentar o
mérito da questão, o fato é que, de um ponto de vista pragmático, o acórdão do STJ
pareceu apoiar a postura interpretativa do TRF da 4.ª Região. O seguinte parágrafo,
contido no voto do Relator Ministro Herman Benjamin, indica que implicitamente o
STJ concordou com a valoração jurídica efetuada pelo TRF da 4.ª Região, ou seja, com
a maneira causalista pela qual o acórdão recorrido concebeu e aplicou ao caso concreto
o instituto da simulação:
21
Em suma: atualmente a jurisprudência brasileira (administrativa e judicial)
combate os planejamentos tributários tidos por abusivos com a aplicação de um
conceito amplo e causalista de simulação, conceito este que exerce, do ponto de vista
pragmático, o papel de norma geral antielusão do ordenamento. Portanto, ainda que os
procedimentos para aplicação do art.116, parágrafo único do CTN não tenham sido até
o presente momento definidos pelo legislador, os objetivos que esse mesmo legislador
perseguia com a criação de referida norma são atualmente alcançados, ainda que por
uma via distinta.
1.5. Quais conceitos da Teoria do Direito Tributário têm sido utilizados nos
estudos do planejamento tributário?
1.6. O que significa a expressão economia de impostos?
1.7. O que significa a expressão engenharia tributária?
1.8. O que significam as expressões elisão fiscal, elusão fiscal, evasão fiscal e fraude
fiscal?
1.9. O que significa a expressão planejamento tributário?
1.10. Qual o limite existente entre o planejamento tributário e a fraude fiscal?
44
Cfr. EINAUDI, Luigi. Principios de Hacienda Pública, Cidade do México: Aguilar, 1948, pp.260-264;
JARACH, Dino. Finanzas Públicas y Derecho Tributario, 2.ª edição, Buenos Aires: Abeledo-Perrot,
1996, pp. 354-355; SOUSA FRANCO, Antonio L. Finanças Públicas e Direito Financiero, 4.ª edição,
Coimbra: Almedina, 1997, pp.211-212.
45
A ciência das finanças e a economia não dão tanta ênfase ao critério da elisão ser ou não lícita. Mesmo
sendo lícita, a elisão provoca distorções nos mecanismos de concorrência e pode gerar importantes
mudanças no mercado e na distribuição do ônus tributário entre os diversos agentes econômicos. Cfr.
BROOKS, Michael & HEAD, John. “Tax Avoidance: in Economics, Law and Public Choice”, In: COOPER,
Graeme (Dir.), Tax Avoidance and the Rule of Law, Amsterdã: IBFD, 1997, pp.54-55.
22
de um tributo e se furta ao seu pagamento comete um ato de evasão tributária.
Tampouco há dúvida de que a evasão tributária, quando acompanhada de ocultações,
falsificações e outras figuras dolosas, configura sonegação/fraude e por isso é castigada
pelo direito penal de diversos países46.
No pólo oposto ao da evasão está o campo que no Brasil chamamos
tradicionalmente de elisão tributária. Nesse terreno estão as condutas dos contribuintes
que logram evitar a incidência da norma tributária e, portanto, colocam-se licitamente
fora do alcance da obrigação tributária. A esse fenômeno universal dá-se o nome de
“economía de opción” na Espanha, de “tax planning” nos Estados Unidos, “risparmio
d´imposta” na Itália e “optimisation fiscale” na França47.
Algumas condutas estão inegavelmente no campo da economia lícita de tributos: o
contribuinte que deixa de investir suas economias na bolsa de valores e passa a investir
no mercado imobiliário para afastar a incidência de um novo imposto sobre operações
financeiras; ou o contribuinte que deixa de consumir determinado produto em virtude de
um aumento em sua carga tributária 48 . Tampouco levantam dúvidas as condutas de
economia tributária que os contribuintes adotam como resposta a uma indução
promovida pela própria legislação tributária. Com efeito, a partir do século XX, passou
a ser muito comum a utilização do tributo – muitas vezes de forma exagerada e com
graves efeitos colaterais – como instrumento para implementação de variados objetivos
industriais, políticos ou sociais (extrafiscalidade).
Há, contudo, outro tipo de conduta tomada pelos contribuintes que o direito
positivo da maioria dos países considera não estar contido no campo da elisão tributária.
Trata-se da conduta em que o contribuinte modifica e distorce artificiosamente as
formas jurídicas de sua atuação, com o objetivo de se colocar fora do alcance de uma
norma tributária ou com o objetivo de se colocar dentro do alcance de um regime
tributário mais benéfico criado pela legislação para atingir outras situações. Para
distinguir e combater esse tipo de conduta, por alguns chamada de engenharia
tributária, nos países da família romano-germânica o legislador tributário lança mão de
institutos seculares como a fraude à lei (Alemanha, Holanda, Espanha) ou o abuso do
direito (França). Já nos países anglo-saxões, são geralmente os tribunais que
desenvolvem técnicas para conter aquelas práticas. Esse fenômeno, que não se confunde
com a evasão, é conhecido como “tax avoidance” nos Estados Unidos e Grã-Bretanha,
“elusione fiscale” na Itália, “elusión tributaria” na Espanha.
A maioria das legislações e dos juristas dos países ocidentais comunga da
consciência de que, a partir de um certo ponto, o planejamento tributário ou a elisão
fiscal, ainda que não configurem evasão/fraude, já não se mostram mais capazes de
atingir seus objetivos. Por isso esses países dividem os comportamentos dos
contribuintes que resistem aos tributos em três campos: elisão/economia de tributos
(lícita, eficaz), evasão tributária (ilícita e sujeita a multas e sanções penais) e elusão
tributária (ineficaz ou incapaz de atingir sua finalidade de economia fiscal) 49 . As
condutas consideradas elusivas são identificadas e combatidas por diversos países do
46
Cfr. IFA. Évasion Fiscale – Fraude Fiscale, Cahiers de Droit Fiscal International, Vol.LXVIIIa –
premier sujet, Haia: Kluwer, 1983.
47
Cfr. DI PIETRO, Adriano (Dir.), L’elusione fiscale nell’esperienza europea, Milão: Giuffrè, 1999.
48
É interessante lembrar que até o final do século XVIII, em muitas regiões da Europa, a legislação
obrigava as famílias a consumir determinada quantidade de sal, e por isso um aumento nos impostos
sobre esse produto não poderia ser evitado com a mudança dos hábitos de consumo dos contribuintes -
cfr. EINAUDI, op.cit., pp.263-264.
49
Vide ZIMMER, Frederik. “General Report”, IFA, Form and substance in tax law, Cahiers de Droit
Fiscal International, Vol.LXXXVIIa, Haia: Kluwer, 2002, pp. 21-67.
23
mundo mediante doutrinas criadas na prática dos tribunais (nos países anglo-saxões), ou
mediante a aplicação de institutos seculares do direito civil (abuso do direito, fraude à
lei) que passam a ser incorporados por normais gerais antiabuso ou antielusão
promulgadas pelo Poder Legislativo.
No Brasil, a maioria dos tributaristas atuais ainda se recusa a admitir a existência
de um terceiro campo distinto da elisão e da evasão tributária. Por isso mesmo é que, ao
contrário dos demais países, não existe um termo ou uma expressão consagrada na
doutrina brasileira para designar os fenômenos que vimos chamando neste estudo de
elusão tributária50. Em estudo publicado em 2001, afirmamos que “talvez seja chegada a
hora de passar a diferenciar elisão tributária de elusão tributária (…) um tipo de
planejamento que não é nem propriamente simulado nem propriamente elisivo.” 51 .
Heleno TÔRRES publicou recentemente uma obra52 que utiliza exatamente a expressão
elusão tributária para designar o conjunto de atos que se diferenciam tanto da elisão
quanto da evasão. Apesar de não concordarmos integralmente com o conceito que esse
autor dá aos atos de elusão53, considero correta a atitude de classificar as atuações dos
contribuintes em três campos (e não em dois como ainda é usual na doutrina brasileira)
e reservar o termo elusão para nomear o conjunto das condutas pelas quais o
contribuinte procura evitar a incidência da norma tributária mediante formalizações
jurídicas artificiosas e distorcidas. Afinal de contas, elusão, ainda que não
dicionarizado, é termo que deriva do verbo eludir, cujo sentido é bem conhecido e se
ajusta à perfeição ao comportamento que queremos estudar no presente artigo: “evitar
algo de modo astucioso, com destreza ou com artifício”54.
A maioria dos autores brasileiros só reconhece e nomeia dois campos de atuação
do contribuinte: o da elisão (lícita) e o da evasão (ilícita)55. Se o contribuinte não pratica
simulação (no sentido de uma declaração de vontade total ou parcialmente falsa),
falsificação documental ou outras fraudes do gênero (que caracterizam evasão), sua
conduta é considerada inatacável, mesmo que o contribuinte tenha adotado formas
jurídicas manifestamente artificiosas para atingir resultados práticos completamente
distanciados daqueles para os quais as tais formas jurídicas foram criadas pelo direito
positivo.
Para essa posição ainda majoritária da doutrina brasileira, os princípios da
“reserva absoluta de lei em sentido formal”, “tipicidade fechada” e da proibição de
tributar mediante analogia tornariam inconstitucional qualquer combate a operações de
planejamento tributário mediante a aplicação de institutos como o abuso do direito ou a
50
Na tradução de um texto de um autor suíço (Raoul Lenz) sobre o controle dos limites da elisão no
sistema suíço, BRANDÃO MACHADO propôs a utilização no Brasil da expressão “elusão fiscal”. Princípios
tributários no direito brasileiro e comparado, Rio: Forense, 1988, p.586.
51
GODOI. Marciano Seabra de. “A figura da fraude à lei tributária prevista no parágrafo único do art.116
do CTN”, Revista Dialética de Direito Tributário, n.º 68, 2001, p.110 (nota 23).
52
TÔRRES, Heleno. Direito Tributário e Direito Privado. Autonomia Privada, Simulação, Elusão
Tributária, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
53
O conceito de elusão do autor é o seguinte: "elusão tributária consiste em [o contribuinte] usar de
negócios jurídicos atípicos ou indiretos desprovidos de 'causa' ou organizados como simulação ou fraude
à lei, com a finalidade de evitar a incidência de norma tributária impositiva, enquadrar-se em regime
fiscalmente mais favorável ou obter alguma vantagem fiscal específica" – op.cit., p.189.
54
Cfr. HOUAISS, Antonio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio:
Objetiva, 2001, p.1.113. O exemplo escolhido por esse dicionário para ilustrar o uso do vocábulo foi
exatamente eludir a lei.
55
Nesse sentido, BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário, São Paulo: Lejus,
1998, p.130.
24
fraude à lei 56 . Nem mesmo por força de uma emenda constitucional essa forma de
combater determinados planejamentos tributários poderia ser adotada no direito
brasileiro57. Ou seja, uma prática que há décadas se desenvolve na grande maioria dos
países de democracia liberal-capitalista 58 somente poderia ser introduzida no Brasil
mediante uma ruptura institucional ou um golpe de Estado que instituísse uma nova
ordem constitucional em substituição ao atual Estado Democrático de Direito.
Constitui um formalismo exacerbado e uma visão libertarista/ultraliberal essa
postura que não aceita nem mesmo discutir as bases ou os termos mediante os quais
figuras como a fraude à lei e o abuso do direito podem incorporar-se ao direito tributário
brasileiro, com o objetivo de impor limites a determinadas operações de planejamento
tributário. O ataque ou a defesa de figuras como o abuso do direito e a fraude à lei
tributária não são regidos por axiomas lógicos ou por dados ou evidências
empiricamente irrefutáveis. Se defendem ou se atacam essas figuras a partir de certos
valores, e por trás dessa postura radicalmente contra as normas gerais antiabuso estão
algumas premissas ideológicas: o tributo visto como uma agressão ou um castigo que se
aceita mas não se justifica; a segurança jurídica como um valor absoluto; a aplicação
mecânica e não-valorativa da lei como um mito sagrado; o individualismo e a
autonomia da vontade sobrevalorizados e hipertrofiados, como se vivêssemos em pleno
século XIX.
É muito importante lembrar que os autores que podemos chamar clássicos, que
iniciaram a construção científica do direito tributário no Brasil, encaravam com muito
mais naturalidade a aplicação de técnicas como a fraude à lei tributária. E muitos desses
autores defenderam especificamente a contenção da elusão tributária mediante a técnica
da fraude à lei tributária ou do abuso de formas. Autores como Rubens Gomes de
SOUSA59, Amílcar de Araújo FALCÃO60, Ruy Barbosa NOGUEIRA61 e Geraldo ATALIBA62
sustentaram pontos de vista muito mais equilibrados sobre os limites do planejamento
tributário.
Ademais, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal dos anos 50 e 60,
diversos Ministros reconhecidamente de sólida formação acadêmica se manifestaram
expressamente a favor da aplicação do secular instituto da fraude à lei no direito
tributário brasileiro. Luiz Gallotti, Orosimbo Nonato e Nelson Hungria, dentre outros,
analisaram um planejamento tributário difundido no Brasil no final da década de 40
envolvendo seguros de vida e chegaram à conclusão (contestada por outros Ministros)
56
O autor que expõe com maior clareza e rigor técnico essa corrente doutrinária é Alberto Xavier. Vide
XAVIER, Alberto. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva, São Paulo: Dialética,
2001.
57
Essa foi a conclusão da maioria dos doutrinadores que participaram de um Congresso de Direito
Tributário em São Paulo no ano de 2000, cujas conclusões estão refletidas na seguinte publicação:
MARTINS, Ives Gandra da Silva (Dir.). Direitos Fundamentais do Contribuinte, São Paulo: Centro de
Extensão Universitária - Revista dos Tribunais, 2000.
58
Para comprovar isso, vide ZIMMER, op.cit., passim.
59
SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária, 5.ª edição, São Paulo: Resenha
Tributária, 1975, pp.75-82.
60
FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução ao Direito Tributário, 4.ª edição, Rio: Forense, 1993 (1.ª
edição de 1959), pp. 61 e ss. e Fato Gerador da Obrigação Tributária, 6.ª edição, Rio: Forense, 1995
(1.ª edição de 1964), pp.32 e ss.
61
NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da Interpretação e da Aplicação das Leis Tributárias, 2.ª edição, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1965, pp.65-66 e Curso de Direito Tributário, 12.ª edição, 1994, p.93.
62
ATALIBA, Geraldo. Apontamentos de Ciência das Finanças, Direito Financeiro e Tributário, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1969, p.295, e Interpretação no direito tributário, São Paulo: Saraiva –
EDUC, 1975, p.193.
25
de que a operação praticada constituía uma fraude à lei tributária e deveria ser frustrada
pelo Poder Judiciário63.
É tênue e quase sempre controversa a linha que separa uma conduta de simples
elisão de uma conduta de elusão (no sentido de planejamento tributário abusivo). Essa
zona de penumbra existe porque há dois princípios constitucionais de alta hierarquia
que tendem a indicar soluções opostas para o intérprete/aplicador do direito tributário.
Por um lado, em todos os Estados de Direito ocidentais contemporâneos64 aceita-se sem
maior polêmica que, dados os princípios da legalidade e da livre iniciativa, os
contribuintes não têm o dever de configurar seus negócios e sua vida econômica sob as
formas jurídicas que provoquem maior incidência tributária. Ou seja, os agentes
econômicos são livres para efetuar o planejamento fiscal, cujo objetivo é encontrar
formas de fazer negócio que possam provocar o menor ônus tributário possível.65
Inclusive nos Estados Unidos, onde os tribunais interpretam e aplicam o direito
tributário de uma forma que privilegia a substância econômica dos atos dos
contribuintes em detrimento da forma jurídica das operações, a Suprema Corte
reconhece aos contribuintes o direito de escolher as vias menos onerosas do ponto de
vista fiscal. Já em 1935, no famoso caso Helvering v. Gregory, a Corte afirmou que
“não se pode duvidar do direito do contribuinte diminuir a carga tributária que de outro
modo lhe seria exigida, ou eliminá-la completamente através de meios legais”66.
Contudo, há que impor limites a esse princípio de liberdade de eleição e
configuração das formas jurídicas menos onerosas do ponto de vista fiscal. Se não se
impõem limites a esse princípio, a consequência é a completa frustração do princípio da
63
Vide GODOI, Marciano Seabra de. “A figura da fraude à lei tributária na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal”, Revista Dialética de Direito Tributário, n. 79, pp.75-85 e, defendendo posição
contrária, TROIANELLI, Gabriel Lacerda. “A fraude à lei tributária”, Revista Dialética de Direito
Tributário, n. 84, pp.68-74.
64
Pasquale PISTONE ressalta que também na Rússia e em outros países do antigo bloco soviético esse
princípio começa a se afirmar na legislação e na jurisprudência – cfr. PISTONE, Pasquale. Abuso del
Diritto ed elusione fiscale, Pádua: CEDAM, 1995, p.6.
65
Klaus Vogel cita uma série de precedentes judiciais de diversos países afirmando tal princípio - VOGEL,
Klaus. Klaus Vogel on Double Taxation Conventions, 3.ª edição, Haia-Londres-Boston: Kluwer Law
International, 1997, Art.1 n.º 77.
66
Cfr. GUSTAFSON, Charles H. “The Politics and Practicalities of Checking Tax Avoidance in the United
States”, In: COOPER, Graeme S.(Dir.), Tax Avoidance and the Rule of Law, Amsterdã: IBFD, 1997,
p.349.
26
igualdade entre os contribuintes que possuem a mesma capacidade contributiva. O
ponderado jurista alemão Klaus VOGEL afirma com total clareza que “o planejamento
tributário pode alcançar um ponto acima do qual não pode ser tolerado por um sistema
jurídico que pretende conformar-se a princípios de justiça” 67.
67
VOGEL, op.cit., Art.1 n.º 77.
68
Cfr. XAVIER, Alberto. Tipicidad y legalidad en el Derecho Tributario, Revista de Derecho
Financiero y Hacienda Pública, n.º 120, 1975, pp.1257-1309; DERZI, Misabel de Abreu Machado.
Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.
27
Alguns doutrinadores têm uma concepção da tipicidade tributária que vai muito
além da descrição oferecida na seção anterior. Para essa concepção, a tipicidade
tributária exige que a lei esgote totalmente qualquer espécie de valoração no que diz
respeito à interpretação e aplicação da norma de incidência tributária, devendo os
órgãos aplicadores se limitarem a uma “pura subsunção lógica dos fatos na norma”69.
Alberto Xavier afirma que no direito tributário continuaria imperando a visão
dos albores do iluminismo racionalista segundo a qual as leis devem ser de tal modo
claras, unívocas e rigorosamente elaboradas, que os órgãos de sua aplicação devem se
limitar a funcionar “como meros autômatos”, restringindo-se a uma rigorosa atividade
lógico-subsuntiva70. Por isso o autor agrega ao termo tipicidade o adjetivo (que poderia
em princípio parecer redundante) fechada, no sentido de que a lei deve conter em si
“todos os elementos para a valoração dos fatos e produção dos efeitos, sem carecer de
qualquer recurso a elementos estranhos [à lei] e sem tolerar qualquer valoração que se
substitua ou acrescente à contida no tipo legal”71 - destacamos.
Não há dúvida de que o intérprete/aplicador não pode substituir a valoração contida na
lei, mas isso já está claro no próprio conceito de tipicidade. O que é problemático na
tese do autor é pensar que a atividade de interpretação e aplicação do direito tributário
substantivo possa realmente ocorrer por simples subsunção lógica, como se em todos os
casos houvesse uma e apenas uma solução, e que essa solução fosse exatamente a que
se extraiu logicamente da lei, sem que o intérprete tivesse que recorrer a nenhum
elemento estranho à própria lei.
Em outra passagem, Xavier afirma que segundo a tipicidade “a decisão do caso
concreto se obtém assim por mera dedução da própria lei, limitando-se o órgão de
aplicação a subsumir o fato na norma, independentemente de qualquer livre valoração
pessoal” - destacamos72. Não há dúvida de que a atividade interpretativa e aplicativa do
direito não é livre, nem pessoal, mesmo que não se esteja no campo da tipicidade. O
problema é supor que a realidade concreta possa ser qualificada pelo
intérprete/aplicador “por mera dedução” lógica da própria lei 73 . O normativismo
conceitualista acredita que, após interpretar corretamente a lei (descobrindo seu
verdadeiro sentido), o intérprete obtém algo como um metro articulado74; basta colocar
este metro articulado sobre os fatos concretos para, medindo-os segundo os parâmetros
legais, operar a subsunção lógica, cujo resultado acredita-se ser a fiel expressão da
vontade da lei para aquele caso concreto.
O direito tributário como um reino frio – mas acima de tudo seguro – da lógica
racional-subsuntiva também é pressuposto no modelo de interpretação e aplicação de
69
XAVIER, op.cit., p.1.280.
70
XAVIER, op.cit., p.1.279-1.280
71
XAVIER, op.cit., p.1.304.
72
XAVIER, op.cit., p.1.278.
73
No final do seu texto, Alberto Xavier parece abrandar o grau de conceitualismo de suas formulações,
admitindo que “não existem conceitos absoluta e rigorosamente determinados” e que “a problemática da
indeterminação não é tanto de natureza como de grau. Após perguntar-se o que seria para o direito
tributário um conceito indeterminado, a resposta dada – que me parece exata – é a de que “a
indeterminação conceitual relevante para o Direito dos Impostos é precisamente aquela que afeta a
segurança jurídica, a mencionada susceptibilidade de previsão objetiva [por parte dos contribuintes acerca
de seus direitos e deveres tributários]”. Mas logo após essa resposta o texto volta a impregnar-se de
exagerado conceitualismo ao fornecer a seguinte caracterização do “conceito determinado”: aquele “no
qual o órgão de aplicação do direito deve descobrir imediata, direta e exclusivamente o conteúdo que,
deste modo, é lógica e conceitualmente unívoco” – op.cit., p. 1.308
74
Cfr. LARENZ, Karl. op.cit., p.201.
28
Alfredo Augusto Becker, que em sua Teoria Geral afirma que “para o juiz a lei é um
fato essencialmente imutável (salvo pelo advento de uma nova lei) e que só admite uma
única interpretação” 75, que “a lei impõe a todos e particularmente ao juiz um modo
determinado e único de pensar e é precisamente o modo indicado pelo legislador”76.
Para constatar o equívoco de tal modelo normativista-conceitualista não é
necessário tomar conhecimento da vasta e variada gama de obras jurídicas, produzidas
nos últimos 100 anos 77 , que demonstraram que o sentido da norma não é um dado
anterior à sua interpretação e sim um produto desta; que a interpretação da norma não é
tarefa prévia (lógica ou cronologicamente) à sua aplicação aos fatos, pois a aplicação da
norma aos fatos e condutas é um aspecto essencial e imbricado logicamente na
interpretação da própria norma78.
75
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário, 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1972,
p.98.
76
BECKER, op.cit., p.99.
77
Não me refiro somente aos autores pós-positivistas. Alfredo Augusto Becker apóia a teoria normativa
de Hans Kelsen e critica asperamente os que criticam o autor austríaco (cfr. BECKER, op.cit., pp.54-55).
Contudo, as afirmações de Becker tais como a de que “para o juiz a lei é um fato essencialmente imutável
(salvo pelo advento de uma nova lei) e que só admite uma única interpretação”, ou a de que ““a lei impõe
a todos e particularmente ao juiz um modo determinado e único de pensar e é precisamente o modo
indicado pelo legislador” são completamente contrárias à teoria kelseniana da interpretação jurídica
contida no último capítulo da Teoria Pura do Direito (“assim como da Constituição, através da
interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por
interpretação, obter as únicas sentenças corretas” – KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, São Paulo;
Martins Fontes, 1994, p.393).
78
A aplicação “não é um evento subseqüente ou ocasional em relação ao fenômeno da compreensão, mas
co-determina a compreensão como um todo desde o começo”. “O trabalho de interpretação é concretizar
a lei em cada caso específico – ou seja, é um trabalho de aplicação” – GADAMER, Hans-Georg. Truth
and Method, 2.ª ed., New York: Continuum, 1997, pp. 324 e 329, respectivamente.
29
representantes eleitos (e não a Administração ou os Tribunais) são os responsáveis pela
definição qualitativa e quantitativa dos encargos tributários79.
A tipicidade, exigindo que o estabelecimento dos tributos por parte do legislador
contemple as notas de exaustividade, precisão, delimitação conceitual e impossibilidade
de delegação a atos infralegais, se justifica por questões de certeza e de segurança
jurídica80. Além de reforçar e dar substância ao princípio democrático (impedindo que a
legalidade se corrompa numa simples autorização legal de cobrança de tributos), a
tipicidade existe para elevar a um grau qualificado a certeza e a segurança jurídica no
âmbito do direito tributário. Alberto Xavier ressalta com propriedade a relação íntima
entre certeza e segurança jurídicas e a chamada proteção da confiança. Segundo Xavier,
a doutrina alemã e a jurisprudência do Tribunal Constitucional daquele país situam a
essência da segurança jurídica na susceptibilidade de previsão objetiva, por parte dos
particulares, de seus direitos e deveres. A segurança jurídica teria sob esse prisma um
conteúdo formal (estabilidade do direito) e um conteúdo material (proteção da
confiança).
Parece-me totalmente aplicável ao direito brasileiro a justificativa da tipicidade
(ressaltada pela doutrina e jurisprudência alemãs81) como exigência de que seja dada ao
contribuinte a possibilidade de conhecer e computar seus encargos tributários com base
exclusivamente na lei. Daí concordarmos com Carlos Palao82 que a vedação da analogia
na aplicação das normas instituidoras de tributos tem raiz constitucional e não constitui
simplesmente uma opção do legislador.
79
Cfr. PÉREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario – Parte General, 12.ª ed., Madri:
Civitas, 2002, pp.41-43; XAVIER, op.cit., pp.1.266-1.267.
80
XAVIER, op.cit., p.1.281; PALAO, op.cit., pp.226-228.
81
XAVIER, op.cit., p.1.282-1.283.
82
PALAO, op.cit., p.227. Contudo, há autores que rechaçam a analogia na aplicação das normas
tributárias com o argumento pretensamente “lógico” de que as normas tributárias não seriam aptas para a
analogia. Para autores como Werner Flume e Heinrich-Wilhelm Kruse, ao contrario dos demais ramos do
direito, o direito tributário careceria de uma “lógica objetiva” ou de uma razão subjacente que permitisse
ao aplicador “completar o direito, modificando-o”. Os fatos geradores nunca exigiriam “pela natureza das
coisas” um dado tratamento tributário. Tem razão Palao ao criticar essa postura, que sobrevaloriza a
importância do elemento objetivou ou da “natureza das coisas” nos outros ramos do direito, e que negam
de uma maneira peremptória qualquer conteúdo axiológico próprio do direito tributário: “los distintos
impuestos y el sistema tributario en su conjunto, por imperfectos que sean técnicamente, se inspiran en
principios que pueden servir perfectamente de criterio objetivo para el razonamiento por analogía.” –
PALAO, op.cit., p.232.
30
inconstitucionalidade de aplicar-se ao direito tributário a doutrina da fraude à lei, do
abuso do direito ou do abuso de formas.
83
Alguns autores como Luciano Amaro criticam a doutrina do abuso de formas (tal como tratada no
Código Tributário alemão de 1977) pressupondo que essa doutrina defende que, caso o contribuinte
encontre uma formalização “não usual” ou “pouco comum” de realizar determinado negócio, e essa
formalização represente menos ônus fiscais do que a formalização mais comum ou “típica”, o aplicador
da lei tributária deveria desconsiderar – para fins tributários - as ditas formas “não-usuais”. Mas essa
descrição da doutrina do abuso de formas não corresponde à doutrina e à jurisprudência que se formaram
na Alemanha sobre o art.42 do Código Tributário, as quais indicam que não é simplesmente o fato de ser
inusual ou pouco comum o que caracteriza as formas elusivas (cfr. Cfr. RÄDLER, Albert. General
Description: Germany (Stautory Interpretation – Substance over form), AULT, Hugh (Dir.).
Comparative Income Taxation, Haia – Londres – Boston: Kluwer Law International, , 1997, pp.62-70).
84
Para Pedro Herrera essas lacunas que a elusão procura criar seriam lacunas “indiretas”, diferentemente
das lacunas reais e diretas que são exploradas na elisão (chamada “economia de opción” na Espanha) e
que não podem ser colmatadas pelo intérprete pela integração analógica (a vedação da analogia vale tanto
no direito espanhol como no brasileiro): “En los dos supuestos se quiere evitar la carga fiscal, pero
además, en el fraude de Ley [que é a forma pela qual a elusão é qualificada principalmente na Espanha e
na Alemanha] se pretende eludirla, es decir evitarla artificiosamente: acceder a la laguna mediante una
actuación que no responde a ningún motivo económico válido (...) a través de negocios cuya finalidad
típica es otra, y que se eligen por ser la única vía para acceder a una laguna jurídica”, HERRERA
MOLINA, Pedro Manuel. Aproximación a la analogía y el fraude de Ley en materia tributaria,
Revista de Direito Tributário, n.73, 1999, pp.68-69. A mesma posição é defendida pelo autor no estudo
mais recente El fraude a la ley tributaria en el Derecho español, In: SERRANO ANTÓN, Fernando y
31
A tipicidade em sua versão normativista-conceitualista, que se opõe a que o
intérprete/aplicador reaja contra as condutas artificiosas do contribuinte (e critica
asperamente a “moralização” do direito contida em doutrinas como a do abuso do
direito), geralmente é defendida com argumentos pretensamente lógicos. Isso fica claro
na obra de Alfredo Augusto Becker: como o legislador esgota toda e qualquer valoração
e ao intérprete/aplicador só cabe descobrir o único sentido da lei e constatar a
incidência automática e infalível das normas sobre os fatos, seria logicamente
equivocada (porque contrariaria a natureza lógica do direito) qualquer doutrina (como a
do abuso do direito, da fraude à lei) que fugisse dessa lógica férrea da subsunção
dedutiva.
Mas num substancioso estudo sobre a legalidade e a tipicidade tributária que
Alberto Xavier publicou na Espanha, encontra-se uma completa defesa valorativa ou
axiológica (e não somente lógica) da tipicidade em sua versão normativista-
conceitualista. Neste estudo, apontam-se os princípios constitucionais – então vigentes
no direito português – que sustentariam a tipicidade com a conotação defendida pelo
autor. A defesa valorativa da tipicidade é empreendida com base nos seguintes
argumentos: a) o conteúdo material do Estado de Direito em sua “formulação original”
é a realização da justiça concebida sobretudo como “rigorosa delimitação da livre esfera
dos cidadãos, em ordem a prevenir o arbítrio do poder e a dar assim a maior expressão
possível à segurança jurídica”85 - destacamos; b) a segurança jurídica como principal
valor do Estado de Direito em sua versão demoliberal (século XVIII) não perde – pelo
menos no direito tributário – sua condição de conteúdo material da justiça no Estado
social do século XX pois a economia de mercado continua em vigor e a segurança
jurídica em seu grau máximo é estritamente necessária a um sistema econômico que tem
como “instituições fundamentais” a propriedade privada, a iniciativa privada e a
concorrência 86 . Daí sua conclusão de que num sistema econômico que tem como
princípios ordenadores a livre iniciativa, a concorrência e a propriedade privada, “torna-
se indispensável eliminar, no maior grau possível, todos os fatores que possam traduzir-
se em incertezas econômicas suscetíveis de prejudicar a expansão livre da empresa”87.
Essa explicitação inequívoca dos fundamentos constitucionais (de caráter
valorativo) que sustentam a versão normativista-conceitualista da tipicidade tributária
permite (ou mesmo impõe) que se faça a seguinte indagação: a ideologia constitucional
que perpassa os valores que dão sustentação àquela versão da tipicidade tributária se
identifica ou mesmo se parece com a ideologia do Estado Democrático de Direito?
É certo que o Estado Democrático de Direito é uma realidade fluida e de difícil
apreensão conceitual. Mas não parece aventurado afirmar que algumas idéias-força do
Estado Liberal foram senão alijadas, pelo menos substancialmente reconstruídas no
novo paradigma constitucional. E algumas dessas idéias-força são exatamente as que
são apontadas – pelos seus próprios defensores – como os verdadeiros sustentáculos
valorativos da versão normativista-conceitualista da tipicidade.
Os argumentos valorativos mencionados acima supervalorizam o papel da
segurança jurídica e dão uma importância quase que exclusiva aos valores da
SOLER ROCH, María Teresa (Dir.). Las medidas antiabuso en la normativa interna española y en los
convenios para evitar la doble imposición internacional y su compatibilidad con el derecho
comunitario, Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 2002, pp.19-57.
85
XAVIER, Alberto. “Tipicidad y legalidad en el Derecho tributario”, R.D.F.H.P., n.º 120, 1975, p.1267.
86
Ibid., pp.1285-1290.
87
XAVIER, op.cit., p.1.286.
32
propriedade privada e da autonomia negocial, deixando à sombra e à míngua valores
como o da função social da propriedade e o da livre concorrência.
88
XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva, São Paulo: Dialética,
2001, p.31.
89
ibidem, p.33.
90
Ibidem, p.32.
33
tudo seria distinto, pois a tipicidade impediria que o aplicador da lei reagisse contra os
tipos de comportamentos (fraude à lei, abuso do direito) que, caso se dirigissem contra
outro cidadão, seriam frustrados pelo aplicador do ordenamento jurídico.
E tudo isso não deixa de ser consentâneo com a visão da norma de incidência
tributária como uma norma excepcional, que ao contrário da norma civil ou comum não
se deve respeitar por seus motivos ou por suas finalidades, e sim por sua clara expressão
literal, pois as exigências tributárias não encarnam – ao contrário das exigências da vida
civil – uma racionalidade que possa ser deduzida do ordenamento jurídico, consistem
meramente numa “providência singular”91, que não se explica ou se justifica a não ser
por uma decisão meramente “positivista” sem qualquer possibilidade de se lhe descobrir
uma natureza “justa”92.
Consideramos que tais perguntas fogem ao escopo do presente estudo, que já vai
longo e quiçá cansativo, pelo que preferimos deixar de respondê-las aqui e remeter o
leitor a uma obra em que as analisamos de forma específica93.
91
XAVIER, Tipicidad..., p.1.260.
92
Cfr. a crítica de Carlos Palao a essa postura de alguns doutrinadores alemães – PALAO, op.cit., p.230.
93
FERRAZ, Luciano; GODOI, Marciano Seabra de & SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de Direito
Financeiro e Tributário, Belo Horizonte: Editora Fórum, 235-243.
34
Estados Unidos a partir do julgamento do famoso caso Gregory x Helvering94. Neste
precedente, a Suprema Corte confirmou o resultado do julgamento de um tribunal de
segunda instância, relatado pelo conhecido juiz Learned Hand, segundo o qual os
negócios jurídicos praticados pelo contribuinte não se enquadravam na hipótese de
incidência de um regime fiscal privilegiado desenhado pelo legislador para os casos de
reorganizações societárias.
A rationale de referido julgamento foi a seguinte: o pressuposto de fato do
regime fiscal privilegiado no qual o contribuinte buscou se encaixar é a prática de
determinados atos de reorganização societária, como cisões, fusões e aquisições, atos
cuja causa jurídica (finalidade prática, função econômico-social) é a gestão ou condução
de negócios visando a expandir/integrar ou dividir/atomizar estruturas/operações
empresariais. Como o contribuinte praticara atos e negócios que, vistos em conjunto,
não revelavam a mínima presença dos propósitos/finalidades acima, constituindo tão
somente uma busca de evitar/reduzir tributos, então esses negócios não foram vistos
como capazes de atrair a aplicação do benefício fiscal. O tribunal não baseou sua
decisão na análise de quais teriam sido os motivos da conduta do contribuinte, baseou
sua decisão na análise da conduta do contribuite em si mesma. Como os
propósitos/finalidades de sua conduta divergiram manifestamente dos
propósitos/finalidades das condutas previstas na lei, negou-se a aplicação do regime
fiscal favorecido.
À luz da rationale e do resultado deste julgamento, adiro à posição de Carlos
Palao Taboada 95 , segundo a qual o que é relevante para a doutrina do “business
purpose”, tal como surgiu e se desenvolveu na jurisprudência e na legislação dos
Estados Unidos, não é a análise dos motivos dos atos do contribuinte (motivos no
sentido de razões que levam alguém a fazer algo) mas sim a análise dos próprios
atos/negócios praticados, submetidos a um exame quanto à sua efetiva finalidade
prática. Sendo assim, a doutrina do “business purpose”, ao contrário do que se poderia
pensar, é bastante similar às clássicas normas gerais antielusão do tipo fraude à lei,
abuso de formas etc., e também bastante similar à visão causalista do fenômeno da
simulação.
Respondo agora objetivamente às perguntas propostas:
3.2. Porque que seria necessário um propósito negocial para a escolha da forma
dos atos jurídicos a serem praticados na atividade econômica?
94
Cf. GODOI, Marciano Seabra de. Fraude a la ley y conflicto en la aplicación de las leyes
tributarias, Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 2005, 167-173.
95
PALAO TABOADA, Carlos. Los “motivos económicos válidos” en el régimen fiscal de las
reorganizaciones empresariales. In: PALAO TABOADA, Carlos. La aplicación de las normas
tributarias y la elusión fiscal. Madrid: Lex Nova, 2009, 209-220.
35
Entendido como finalidade e não como motivo, o propósito negocial é tão
necessário como o é a própria causa dos negócios jurídicos: o contrato de seguro supõe
que alguém busca prevenir-se contra determinados riscos; o contrato de sociedade supõe
que determinadas pessoas envidarão esforços conjuntos na busca de resultados
econômicos etc.. Ou seja, o pressuposto básico é o de que o direito não cria tais
estruturas contratuais/negociais como simples formas ocas e vazias, mas como
instrumentalizações para o atingimento de certas finalidades práticas.
3.4. Por que não seria válida a escolha de uma forma jurídica com motivo
exclusivamente tributário?
“Una y otra vez los tribunales han dicho que no hay nada siniestro en
disponer los propios negocios de manera que lós impuestos se mantengan los
más bajos posibles. Todos lo hacen, ricos o pobres; y todos hacen bien,
96
Apud PALAO TABOADA, Carlos. Los “motivos económicos válidos” en el régimen fiscal de las
reorganizaciones empresariales. In: PALAO TABOADA, Carlos. La aplicación de las normas
tributarias y la elusión fiscal. Madrid: Lex Nova, 2009, 212.
36
porque nadie tiene un deber público de pagar más de lo que exige la ley; los
impuestos son exacciones forzosas, no contribuciones voluntarias. Pedir más
en nombre de la moral son meras palabras pías”
3.5. Qual seria o limite para a liberdade de escolha das formas jurídicas dos atos
praticados na atividade econômica?
3.6. O que devemos entender por abuso de direito?
97
RUIZ ALMENDRAL, Violeta. El fraude a la ley tributaria a examen, Cizur Menor: Thomson-
Aranzadi, 2006, 87.
37
A primeira pergunta é: vistos individualmente ou de forma global, os atos e
negócios são notoriamente artificiosos, impróprios para a consecução do objetivo
prático do contribuinte? A segunda pergunta, que complementa a primeira é: a escolha
por tais negócios alternativos produziu alguma consequência extratributária distinta da
que seria produzida caso houvessem sido praticados os negócios usuais ou próprios? Se
a resposta à primeira pergunta é positiva e à segunda pergunta é negativa, configura-se o
“conflito na aplicação da norma tributária”, denominação estranha mas que na verdade
aponta para o que a doutrina espanhola há muito tempo vem tratando como fraude à lei
tributária98.
A norma portuguesa segue a mesma lógica:
98
PALAO TABOADA, Carlos. La norma anti-elusión del Proyecto de Nueva Ley General Tributaria, In:
PALAO TABOADA, Carlos. La aplicación de las normas tributarias y la elusión fiscal. Madrid: Lex
Nova, 2009, 147-174.
38
4.1. O que devemos entender por norma geral antielisão?
99
Sobre o tema, cf. GODOI, Marciano Seabra de. A volta do in dubio pro Contribuinte: Avanço ou
Retrocesso?. In: Valdir de Oliveira Rocha. (Org.). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário,
Vol.17, São Paulo: Dialética, 2013, p. 181-197 e, à guisa de réplica, VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar.
In dubio pro contribuinte: continuação do debate, Revista Dialética de Direito Tributário, n. 220, São
Paulo: Dialética, 2014, p.104-124.
100
VOGEL, op.cit., Art.1 n.º 77.
39
tributária poderá distinguir a legítima elisão fiscal (“economía de opción”, “tax saving”)
do planejamento tributário abusivo (“elusión fiscal”, “tax avoidance”), desconsiderando,
somente para fins de lançamento tributário, a prática de determinados atos e negócios
jurídicos colocados em prática pelo sujeito passivo e por terceiros. Os critérios
concretos (abuso de formas, abuso do direito, fraude à lei, simulação) para distinguir a
elisão da elusão são matéria de direito positivo, variando segundo as tradições de cada
ordenamento jurídico101.
Não se deve esperar que a norma geral antielisão estabeleça critérios de
desconsideração precisos, fechados, cuja aplicação suponha uma simples subsunção
lógica. Isso seria impossível, dado seu caráter de cláusula geral valorativa. É certo que
os critérios não devem ser contraditórios, devem ter substância e racionalidade próprias,
mas mesmo assim serão necessariamente aproximativos e determináveis, ao contrário
das normas antielisão específicas, definidas segundo o figurino das regras fechadas e
determinadas.
Naturalmente não há uma solução que se possa dizer “a única correta” ou
mesmo “a mais correta”. As tradições jurídicas de cada país, o momento histórico e os
valores e a ideologia nele preponderantes, inclusive a forma de se entender a natureza
da atividade jurisdicional, tudo isso influi na conformação de peculiares sistemas de
combate à elusão.
Nos países com a tradição do civil law, cujo direito privado conhece há séculos
figuras como o abuso do direito ou a fraude à lei, essas figuras foram aplicadas – com
matizes próprios – ao terreno da elusão fiscal, seja mediante normas oriundas do
Legislativo (Alemanha, Espanha), seja mediante iniciativas do Judiciário (Suíça102), seja
por um processo que partiu do Judiciário e depois foi disciplinado em lei (França).
Ainda que existam especificidades técnicas no sistema de cada país, há três
parâmetros muito recorrentes para diferenciar a elisão da elusão 103 : 1. o manifesto
artificialismo das configurações ou formalizações jurídicas adotadas pelo contribuinte
(abuso de forma, abuso das possibilidades de configuração que o direito positivo
oferece, fraude à lei), 2. a completa inexistência de um motivo não-tributário que possa
explicar ou justificar a escolha do contribuinte por aquelas formas jurídicas artificiosas
e 3. a vulneração que seria promovida nos propósitos da lei e do sistema tributário, caso
pudesse prevalecer o esquema montado pelo contribuinte.
Há ordenamentos nacionais que privilegiam o primeiro critério mencionado
acima, como é o caso alemão 104 . A elusão se identifica basicamente pela forma
distorcida da transação ou da cadeia de transações, pela completa ausência de coerência
entre o objetivo prático a ser alcançado pelo contribuinte e os meios e formalizações por
ele escolhidos. É o caso de um contribuinte que, para vender certa participação
101
Cfr. CIPPOLINA, op.cit., p.125.
102
Vide WARD, David A. et al. "The business purpose test and abuse of rights", British Tax Review¸n.2,
1985, pp.72-73 e HÖHN, Ernst. “Evasão do Imposto e Tributação Segundo os Princípios do Estado de
Direito”, In: MACHADO, Brandão (Dir.). Direito Tributário – Estudos em Homenagem ao Professor
Ruy Barbosa Nogueira, São Paulo: Saraiva, 1984, pp.285-286.
103
Cfr. CYRILLE, David. “L’abus de droit en Allemagne, en France, en Italie, aux Pays-Bas et au
Royaume-Uni (essai de comparaison fiscale)”, Rivista di diritto finanziario e scienza delle finanze, LII,
2, I, 1993, pp.220-256, COOPER, Graeme S. “Conflicts, Challenges and Choices – The Rule of Law and
Anti-Avoidance Rules”, In: COOPER, Graeme S. (Ed.), Tax Avoidance and The Rule of Law, Amsterdã:
IBFD, 1997, pp.26-32.
104
Cfr. KRUSE, Heinrich Wilhelm. “Il risparmio d’imposta, l’elusione fiscale e l’evasione”, AMATTUCCI,
Andrea (Dir.). Trattato di Diritto Tributario, Vol. III, Pádua: CEDAM, 1994, pp.207-223, FISCHER,
Peter. “L’esperienza tedesca”, In: DI PIETRO, op.cit, pp.203-249 e KRAMER, Jörg-Dietrich. “Abuse of law
by tax saving devices”, Intertax, n.º 2, 1991, pp.96-102.
40
acionária a um terceiro, constrói e desfaz uma ou mais sociedades num curto intervalo
de tempo como meio de driblar a norma de incidência do imposto de renda sobre
ganhos de capital. O sistema alemão adota uma visão objetiva do fenômeno, baseada
nas características externas da transação, sem cogitar dos motivos subjetivos dos
contribuintes.
Por outro lado, há ordenamentos nacionais que privilegiam o segundo critério
acima mencionado, como ocorre na França relativamente à técnica de correção da
chamada “simulation – fraude d’intention”105. Nesse caso, a elusão é identificada por
um específico estado de espírito do contribuinte, um particular propósito de buscar
abusivamente a economia tributária, sem que a opção por determinada formalização
jurídica possa ser explicada por razões não-tributárias. Contudo, o estado de espírito do
contribuinte é em geral avaliado por meio de indícios objetivos, e portanto a diferença
entre os dois critérios acima mencionados não é tão acentuada, o mesmo podendo ser
dito quanto a seus resultados práticos106.
Por fim, o terceiro critério acima mencionado está presente, ainda que
implicitamente, em todos os sistemas de correção da elusão, pois o que esses sistemas
buscam acima de tudo é não permitir que a elisão se degenere num estado de coisas em
que os contribuintes com mais recursos financeiros e intelectuais manipulem a lei e o
sistema tributário como se se tratasse de um brinquedo, um jogo em que o mais
habilidoso transfere para o menos habilidoso o ônus e o peso de custear os gastos
públicos.
No Canadá e na Holanda, este terceiro critério tem um papel mais explícito e
mais específico. O Departamento de Finanças do governo canadense entende que a
norma geral antielusão não pode ser aplicada se o contribuinte demonstrar que as
transações que levou a cabo não se desviam do objeto e do propósito da legislação do
imposto sobre a renda considerada em seu conjunto107. Na Holanda, a Corte Suprema
reconheceu em diversos precedentes que as manobras dos contribuintes realmente
tinham a intenção exclusiva de economizar impostos, mas não considerou que havia
elusão (que na Holanda é considerada um ato de fraude à lei) porque a análise do
sistema legislativo e de seus precedentes históricos não demonstrava de forma
inequívoca que os atos dos contribuintes violavam o espírito da lei108.
105
Cfr. CYRILLE, David. op.cit., pp.229 y ss., LEHÉRISSEL, Hervé. “Rapport de Groupement – France”,
IFA, Form and substance in tax law, Cahiers de Droit Fiscal International, Vol.LXXXVIIa, Haia:
Kluwer, 2002, pp.263-286, CHEVALIER, Jean Pierre. “L’esperienza francese”, DI PIETRO, op.cit, pp.5-32,
GEST, Guy. “General Description: France – Anti-avoidance doctrines and rules”, In: AULT, Hugh (Dir.).
Comparative Income Taxation, Haia/Londres/Boston: Kluwer Law International, 1997, pp.47-48,
GEST, Guy y TIXIER, Gilbert. Droit fiscal international, 2.ª edição, Paris: Presses Universitaires de
France, Paris, pp.523-525, COZIAN, Maurice. “What is abuse of law”, Intertax, n.º 2, 1991, pp.103-107,
MASSON, Charles Robbez. La notion d’évasion fiscale en Droit interne français, Paris: Librairie
Genérale de Droit et de Jurisprudence, 1990, pp.242 y ss., GOLDSMITH, J.C. “Rapport National – France”,
IFA. Évasion Fiscale – Fraude Fiscale, Cahiers de Droit Fiscal International, Vol.LXVIIIa – premier
sujet, Haia: Kluwer, 1983, pp.377-379.
106
Destacando essas semelhanças de enfoque e de resultado, vide ZIMMER, op.cit., p.62, PALAO
TABOADA, Carlos. “Algunos problemas que plantea la aplicación de la norma española sobre el fraude a
la ley tributaria”, Crónica Tributaria, n.º 98, 2001, pp.127 y ss., VOGEL, Klaus. op.cit., Art.1, n.º 82,
WARD, David A. et al, op.cit., p.69.
107
Vide ARNOLD, Brian. “The Canadian General Anti-Avoidance Rule”, COOPER, Graeme (Dir.). Tax
Avoidance and the Rule of Law, Amsterdã: IBFD, 1997, p.233.
108
Vide. IJZERMAN, Robert L.H. “Branch Report – Netherlands”, IFA, Form and substance in tax law,
Cahiers de Droit Fiscal International, Vol.LXXXVIIa, Haia: Kluwer, 2002, pp.461-465.
41
Os três critérios acima expostos se comunicam e interagem: se se aplica o
critério do abuso de formas, estará aberta para o contribuinte a possibilidade de
demonstrar ao fisco ou aos tribunais que sua atuação também respondeu a um plausível
propósito não-tributário ou que sua conduta não violou a teleologia da legislação –
legislação que pode haver aceitado ou inclusive incentivado de uma forma ou de outra
as operações praticadas pelo contribuinte.
4.2. Como se deu a introdução da norma geral antielisão em nosso direito positivo?
4.3. A norma geral antielisão seria inconstitucional? Não sendo inconstitucional,
seria inútil?
4.4. É necessário um procedimento específico para a prática da desconsideração do
ato ou negócio jurídico? Onde está previsto tal procedimento?
4.5. Qual a consequência da não conversão em lei dos dispositivos da MP 66 que
cuidavam do aludido procedimento?
4.6. É válido o tratamento do que seria uma elisão, como infração à lei tributária?
Até o ano de 2001, a legislação brasileira não continha qualquer norma geral
(comparável às normas já estudadas supra) voltada ao tratamento dos limites entre a
elisão e a elusão, e a doutrina majoritária manejava unicamente os conceitos de evasão
(simulação, defraudação) e elisão (planejamento tributário lícito). Em 2001, o Poder
Executivo encaminhou ao Congresso Nacional um projeto que veio a ser convertido na
Lei Complementar 104/2001, que dentre outras providências incluiu no CTN o seguinte
dispositivo:
109
XAVIER, Alberto. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva, São Paulo:
Dialética, 2001, p.70-73.
42
decrete a nulidade do ato simulado110, estando essa orientação implícita no art.149, VII
do CTN, posterior ao Código Civil de 1916.
Outra parte da doutrina brasileira preferiu a interpretação de que o dispositivo
veio, de maneira inconstitucional, proibir radical e terminantemente todo e qualquer
planejamento tributário, e para tanto deu poderes à Administração tributária para
realizar a interpretação econômica das normas impositivas e exigir tributos por
analogia. Essa é a interpretação defendida na petição inicial da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 2.446, proposta pela Confederação Nacional do Comércio em
2001 e até hoje não apreciada pelo STF. Essa Ação Direta – que lamentavelmente
tramita há mais de treze anos no STF sem qualquer manifestação do Tribunal a respeito
da matéria – reza o credo do ultraformalismo liberal e requer a declaração de
inconstitucionalidade da referida norma, por violação aos “princípios da legalidade e da
tipicidade cerrada e da certeza e segurança das relações jurídicas” (página 29 da petição
inicial).
Em minha opinião111, a alteração do CTN veio ao encontro de uma tendência
mundial de adotar normas gerais de combate à elusão tributária112: certamente continua
permitido o planejamento tributário, mas quando este promove uma distorção ou um
uso artificioso e forçado de determinados atos ou negócios jurídicos previstos na lei
civil ou comercial para outros fins, então as autoridades fiscalizadoras podem
desconsiderar tais formalizações e aplicar a norma tributária eludida ou defraudada.
Por outro lado, a existência de uma norma geral antielusão contida no Código
Tributário obriga o fisco a recorrer a tal via para corrigir os atos elusivos dos
contribuintes, não sendo correta a aplicação conjunta ou mesmo subsidiária das figuras
da fraude à lei e do abuso do direito previstas no Código Civil de 2002 (art.166, VI e
187, respectivamente). Neste particular, discordamos das orientações de Marco Aurélio
Greco, que defende que um caso de planejamento tributário com fraude à lei ou abuso
do direito pode ser combatido pela administração mediante a aplicação do Código Civil
- (GRECO, op.cit., 2011).
Em minha opinião, a sistematização que o Código Civil de 2002 imprimiu às
figuras da fraude à lei e do abuso do direito é inapropriada para o tratamento da elusão
tributária. Quanto à fraude à lei, a disciplina do Código Civil brasileiro considera nulo o
negócio praticado em fraude à lei (art.166, VI), e naturalmente faz depender essa
nulidade de uma sentença judicial, ao passo que todos os países que possuem normas
gerais antielusão utilizam a técnica da desconsideração ou inoponibilidade fiscal do ato
elusivo, que obviamente independe de uma decisão judicial (embora naturalmente a
desconsideração possa ser revista a posteriori por um ato judicial). Além disso, o
art.166, VI do Código Civil restringe-se aos negócios jurídicos em fraude à lei, sem
110
Sampaio Dória observava corretamente, que “o propósito fiscal é unicamente o de receber o tributo
devido pela prática do ato dissimulado, pouco importando a permanência dos efeitos jurídicos dos atos
aparentes”, concluindo que “a decretação de nulidade do negócio simulado, em seu aspecto substancial,
não é imprescindível para que o fisco receba os tributos devidos” – DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio.
Elisão e Evasão Fiscal, São Paulo: LAEL, 1971, p.42. Essa orientação sempre prevaleceu no Conselho
de Contribuintes do Ministério da Fazenda.
111
No mesmo sentido, vide TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito
Tributário, 4.ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006. Marco Aurelio Greco também sustentou desde a
década de 90 a necessidade de abandonar a visão formalista presente na maioria da doutrina brasileira (cf.
GRECO, Marco Aurelio. Planejamento Fiscal e Interpretação da Lei Tributária, São Paulo: Dialética,
1998, e Planejamento Tributário, 4.ª ed., São Paulo: Dialética, 2011).
112
Vale relembrar que a exposição de motivos do projeto de lei e os debates parlamentares sempre se
referiram claramente aos limites do planejamento e da elisão fiscal, e não à hipótese de simulação.
43
abranger os casos não incomuns de atos in fraudem legis que não são contratos ou
negócios jurídicos stricto sensu (cf. PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito
Privado – Parte Geral, Tomo I, Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p.45).
Como o art.166, VI do novo Código Civil é claramente influenciado pelo Código
Civil italiano (arts.1.344 e 1.418), vale lembrar que a doutrina e os tribunais italianos113
consideram inapropriada a aplicação do art. 1.344 do Código civil114 à esfera tributária,
dentre outros motivos porque o Código civil italiano também considera nulo o negócio
em fraude à lei (art.1.418), e o combate à elusão tributária não se faz mediante anulação
judicial, e sim mediante desconsideração administrativa de atos.
Combater a elusão tributária mediante anulação judicial de atos da vida civil e
comercial significaria, além de procrastinar e tumultuar o procedimento, criar
desnecessariamente uma série de contratempos e efeitos colaterais a terceiros. Da
mesma forma que no Brasil a simulação dos atos dos contribuintes prevista no CTN
(por exemplo no art.149, VII) e em leis tributárias esparsas nunca foi demandada
previamente no juízo cível pela Fazenda Pública, e sim caracterizada pela autoridade
fiscal no exercício do lançamento, pensamos que a qualificação dos atos do contribuinte
como “elusivos” (e sua consequente “desconsideração”) somente deve ocorrer no bojo
dos procedimentos administrativos específicos previstos na parte final do art.116,
parágrafo único do CTN. Se a desconsideração se tornar definitiva na esfera
administrativa, então o contribuinte poderá questioná-la no Poder Judiciário, nas varas
competentes para examinar a matéria tributária, e não nas varas cíveis.
Foi saudável e mesmo necessária a iniciativa de criar legislativamente uma
norma geral antielusão como “um instrumento eficaz para o combate aos procedimentos
de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito”, expressão
utilizada na Exposição de Motivos do Projeto de Lei Complementar. O que me parece
criticável no art.116, parágrafo único do CTN é a falta de estabelecimento de critérios
substantivos para uma definição mais precisa do que se deve entender por atos ou
negócios jurídicos que pratiquem a “dissimulação da ocorrência do fato gerador ou da
natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”.
É certo que as normas gerais antielusão têm, por definição, uma textura aberta e
não se destinam a uma aplicação automática por mera subsunção lógica, cabendo à
jurisprudência o papel de ir paulatinamente definindo, à luz dos casos concretos, seus
contornos precisos. Contudo, comparada por exemplo com as normas gerais antielusão
de países como Espanha e Portugal (vistas anteriormente), a norma brasileira de 2001 se
destaca por sua redação lacônica e vaga, sem nem mesmo esboçar uma definição mais
concreta dos atos passíveis de desconsideração.
A norma portuguesa, assim como a norma espanhola atualmente em vigor,
estabelece o critério do abuso de formas jurídicas como a pedra de toque para a
interpretação e aplicação da norma geral. A referência no texto da norma aos motivos
exclusiva ou preponderantemente voltados à eliminação ou diferimento de tributos, e
cumulativamente ao caráter artificioso dos atos ou negócios jurídicos praticados,
constitui um valioso elemento inicial para que, a partir dele, a jurisprudência
desempenhe sua tarefa concretizadora.
113
Vide LUPO, Antonello. Branch Report – Italia, In: IFA, Form and substance in tax law, Cahiers de
Droit Fiscal International, Vol.LXXXVIIa, Haia: Kluwer, 2002, pp.357-377 e MORELLO, Umberto. Il
problema della frode alla legge nel Diritto tributario, Diritto e Pratica Tributaria, Pádua, n.º 1, 1991,
pp.8-41.
114
O art.1.344 determina que a causa do contrato é ilícita quando o contrato se utiliza como meio para
eludir a aplicação de uma norma imperativa.
44
O Poder Executivo buscou corrigir a vagueza ou o laconismo do art.116,
parágrafo único do CTN com a edição da Medida Provisória n.º 66, no ano seguinte à
aprovação da norma geral. Mas essa tentativa não se mostrou correta de um ponto de
vista técnico-jurídico, como se explicará a seguir.
A parte final do art.116, parágrafo único do CTN estabelece que a
desconsideração administrativa dos atos e negócios ali previstos deve ocorrer segundo
“procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”. No ano seguinte ao da
aprovação da Lei Complementar 104/2001, o Poder Executivo encaminhou ao
Congresso Nacional a Medida Provisória 66, de 29 de agosto de 2002, cuja ementa se
refere ao estabelecimento dos “procedimentos para desconsideração de atos ou negócios
jurídicos, para fins tributários”.
Os artigos 13 a 19 da Medida Provisória têm como epígrafe a expressão
“procedimentos relativos à norma geral anti-elisão”. O problema é que alguns desses
artigos não se referem em absoluto a procedimentos para aplicação da norma (como
manda a parte final do art.116, parágrafo único do CTN), e sim a critérios substantivos
sobre o alcance da norma, e sobre as consequências normativas de sua aplicação. Aliás,
isso é reconhecido na própria Exposição de Motivos da MP 66, quando se afirma:
O art.13, parágrafo único define que a norma geral não deve se aplicar a casos
de simulação, dolo ou fraude. O art.14 define que a identificação dos atos ou negócios
jurídicos passíveis de desconsideração deve levar em conta, “entre outras, a ocorrência
de falta de propósito negocial ou abuso de forma”, adotando-se em seguida uma
definição apressada e pouco técnica de cada um desses critérios. Tem razão a Exposição
de Motivos da MP quando afirma em seu item 13 que os conceitos de abuso de forma e
falta de propósito negocial “guardam consistência com os estabelecidos na legislação
tributária de países que, desde algum tempo, disciplinaram a elisão fiscal”, como de
resto deixou claro o estudo sobre a legislação espanhola que desenvolvemos
anteriormente. Contudo, a forma com que o art.14 da Medida Provisória 66 definiu e
regulou o abuso de forma e a falta de propósito negocial deixa muito a desejar do ponto
de vista técnico-jurídico.
O primeiro ponto a criticar é a referência ao abuso de forma e à falta de
propósito negocial como critérios que, “dentre outros”, presidem a aplicação da norma
geral. Ora, se o objetivo era definir critérios para a aplicação da norma, como aliás fica
expressamente registrado na Exposição de Motivos da Medida Provisória, não faz
sentido a menção vaga e aberta a “outros critérios” ou “outras circunstâncias” que
podem determinar a desconsideração administrativa de atos ou negócios jurídicos.
O segundo ponto a criticar é a forma tosca com que o art.14, § 3.º da Medida
Provisória definiu o critério do abuso de formas jurídicas: “considera-se abuso de forma
jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado
econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado”. Por um lado, há um problema de
lógica formal: a definição remete à figura do “negócio indireto”, que a norma não
45
define. Por outro lado, a definição não toca nos aspectos principais da figura do abuso
de forma: a artificiosidade dos atos e o abuso das possibilidades de configuração
oferecidas pelo direito, tal como consta do núcleo das normas gerais espanhola, alemã e
portuguesa.
De qualquer maneira, esses dispositivos da Medida Provisória nada têm a ver
com o estabelecimento de procedimentos para aplicação da norma (que o art.116,
parágrafo único manda serem definidos em lei ordinária), e sim com a delimitação
substantiva do que se deve entender por “dissimular a ocorrência do fato gerador do
tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”.
Essa delimitação das hipóteses em que se deve aplicar o art.116, parágrafo único
do CTN não pode ser feita por lei ordinária, mas sim por lei complementar de âmbito
nacional. A lei ordinária deve definir somente os procedimentos para a aplicação da
norma, conforme determina a parte final do art.116, parágrafo único do CTN. Caso se
pudesse disciplinar por lei ordinária os critérios substantivos para aplicação da norma
geral antielusão, haveria o risco de coexistirem vinte e sete normas gerais diferentes,
pois a legislação dos Estados e do Distrito Federal, tal como a União, poderia definir
critérios distintos para delimitar os casos de aplicação da norma.
Os arts.17, § 2.º e 18, caput, por sua vez, definem as consequências
sancionatórias da aplicação da norma geral: caso o contribuinte opte por pagar o tributo
e os juros de mora em 30 dias do despacho que promover a desconsideração, não se lhe
exigirá multa de ofício, a qual somente será lançada caso o contribuinte não pague o
tributo e os juros de mora naquele prazo. Tampouco aí reside qualquer definição de um
procedimento para aplicação da norma. Cobrar ou não multa de ofício não se refere aos
procedimentos, e sim às consequências da aplicação da norma.
Os procedimentos para aplicação da norma geral são definidos, isto sim, nos
arts. 15 a 19 da Medida Provisória (com exceção dos arts.17, § 2.º e 18, caput, como
explicado no parágrafo acima). Segundo as regras aí estabelecidas, o procedimento
começa com uma representação dirigida pelo servidor competente para lançar o tributo
à autoridade administrativa superior, que houver determinado a instauração do
procedimento de fiscalização do contribuinte. Essa representação deve ser precedida de
notificação ao sujeito passivo, notificação em que se relatarão os fatos que justificam a
desconsideração. O contribuinte então disporá de um prazo de 30 dias para apresentar
esclarecimentos e provas que considere cabíveis. Em seguida, o servidor deve remeter à
apreciação da autoridade administrativa superior a referida representação, que sobre ela
decidirá em despacho fundamentado (não há previsão de prazo). Caso conclua pela
desconsideração administrativa, a fundamentação da decisão deve explicitar quais
foram os atos ou negócios praticados e quais foram os elementos ou fatos
caracterizadores da dissimulação da ocorrência do fato gerador ou da natureza dos
elementos constitutivos da obrigação tributária. Além disso, a decisão deve fornecer a
descrição dos atos ou negócios equivalentes aos praticados, com as respectivas normas
de incidência, e descrever qual o resultado tributário produzido pela adoção dos atos ou
negócios equivalentes, com especificação, por tributo, da base de cálculo, da alíquota
incidente e dos encargos moratórios.
A regulação dos procedimentos de aplicação da norma do art.116, parágrafo
único do CTN termina com a regra (art.18 da Medida Provisória) de que a contestação
do despacho de desconsideração dos atos ou negócios jurídicos e a impugnação do
lançamento serão reunidas em um único processo, para serem decididas
simultaneamente no processo tributário administrativo.
Todos os dispositivos da Medida Provisória 66/2002 que tratavam da norma do
art.116, parágrafo único do CTN foram rechaçados pelo Congresso Nacional, e por isso
46
mesmo retirados do ordenamento jurídico. Desde então, o Poder Executivo deixou de
enviar propostas ao Congresso Nacional para fins de definição dos procedimentos de
aplicação da norma geral antielusão, por motivos que já ficaram claros neste estudo: já
existe na jurisprudência dos tribunais administrativos e judiciais uma norma geral
antielisão – o conceito causalista de simulação.
115
As presentes propostas constam de nosso artigo “Estudo comparativo sobre o combate ao
planejamento tributário abusivo na Espanha e no Brasil. Sugestão de alterações legislativas no
ordenamento brasileiro”. Revista de Informação Legislativa, v. 194, 2012, 117-146
47
base nos quais a autoridade administrativa poderá promover a desconsideração de atos e
negócios jurídicos. Esses critérios podem perfeitamente ser os utilizados pelas normas
portuguesa, espanhola e alemã, ou seja, os critérios de notória artificiosidade e de
inexistência de efeitos econômicos ou jurídicos relevantes distintos da economia de
tributos e distintos dos efeitos derivados de uma formalização jurídica não abusiva dos
propósitos práticos buscados pelas partes.
A introdução desses critérios no próprio texto do art.116, parágrafo único do
CTN teria resultados muito positivos. Em primeiro lugar, acabaria com a ambiguidade
quanto ao sentido do verbo “dissimular” utilizado pela norma. Em segundo lugar, daria
à Administração e à jurisprudência uma orientação mais concreta sobre como se devem
estabelecer os limites entre o planejamento artificioso/abusivo e o planejamento lícito,
diminuindo sensivelmente o risco de que cada autoridade administrativa ou cada
tribunal administrativo ou judicial interprete e aplique de forma radicalmente distinta a
norma geral antielusão.
Essa definição dos critérios com base nos quais a autoridade administrativa
poderá promover a desconsideração de atos e negócios jurídicos deve também ser
acompanhada por uma norma legal que defina que, na presença desses critérios, afasta-
se a qualificação de simulação.
Alterada a redação do art.116, parágrafo único do CTN no sentido acima
proposto, coloca-se a questão de como regular os procedimentos para aplicação da
norma. Neste particular, pensamos que os procedimentos estabelecidos nos arts. 15 a 19
da Medida Provisória 66/2002 são bastante satisfatórios, visto que asseguram ao
contribuinte a oportunidade de conhecer os fatos com base nos quais o servidor pensa
estar configurada a elusão, e sobre esses fatos poder produzir provas e argumentos antes
que a decisão pela desconsideração esteja tomada (art. 16, §§ 1.º e 2.º da MP 66). Além
disso, os procedimentos aí previstos exigem que tanto a representação do servidor
(art.16, § 3.º) quanto a decisão da autoridade superior que eventualmente decidir pela
desconsideração (art. 17, § 1.º) sejam racionalmente fundamentadas, com a exigência de
expressa especificação dos atos ou negócios praticados, dos elementos ou fatos
caracterizadores de que os atos ou negócios jurídicos teriam sido praticados com abuso,
dos atos ou negócios equivalentes aos praticados, e do resultado tributário produzido
pela adoção dos atos ou negócios equivalentes.
Ainda com relação a esses procedimentos, consideramos que não se deve optar
por reservar a uma comissão de expertos ou de autoridades centrais da administração
tributária a decisão por desconsiderar ou não os atos e negócios praticados com abuso.
A experiência espanhola demonstra que tornar o procedimento de desconsideração
demasiado específico, e fazê-lo depender do funcionamento de uma Comissão
centralizada tem o efeito de aumentar consideravelmente o risco de a norma geral
antielusão simplesmente não sair do papel.
Por fim, consideramos que a definição dos elementos conceituais, dos
procedimentos e das consequências da aplicação da norma geral antielusão deve ser
acompanhada do estabelecimento, pela lei, de um dever de informação detalhada sobre
os atos de planejamento tributário, independentemente de sua qualificação como lícitos
ou abusivos. Trata-se de obrigar os sujeitos passivos que implementem operações de
planejamento tributário cuja economia alcançada supere determinada quantia a informar
à Administração, de maneira detalhada e no mesmo exercício fiscal em que as
operações tenham sido praticadas, quais foram os atos societários e comerciais eu
compuseram o planejamento, seja no Brasil ou no exterior.
Esses deveres de ampla e detalhada informação já existem sob diversas
modalidades na legislação de alguns países, e recentemente foram objeto de um estudo
48
específico do Comitê de Assuntos Fiscais da OCDE116. Com a existência desses deveres
de informação, acompanhada da previsão de sanções administrativas para os sujeitos
passivos que não os cumprirem, somente estariam livres de multas administrativas as
situações de elusão fiscal em que o contribuinte tenha informado detalhada e
tempestivamente sobre as operações comerciais e societárias por meio das quais
engendrou seu planejamento tributário.
Com efeito, no sistema atual, é uma meia verdade a afirmação de que nos casos
de planejamento tributário não simulado – seja lícito, seja com abuso de formas
jurídicas – os contribuintes nada ocultam nem escondem da Administração. No sistema
atual, os contribuintes que põem em prática complexas e sofisticadas operações de
planejamento tributário – quase sempre com atos e negócios praticados também no
exterior – têm somente o dever de fazer refletir tais operações em suas demonstrações
financeiras e em suas declarações, como a do imposto sobre a renda. Contudo, isso está
muito longe de um efetivo dever de propiciar à Administração o conhecimento do
contexto global dos planejamentos tributários. Com isso, os contribuintes que realizam
sofisticados planejamentos tributários internacionais se beneficiam da considerável
probabilidade de que a fiscalização tributária não consiga, dentro do prazo de
decadência, tomar conhecimento das operações praticadas, nem do nexo existente entre
elas.
O estabelecimento desses amplos deveres de informação sobre os planejamentos
tributários postos em prática pelos contribuintes não incidiria na definição das hipóteses
em que um planejamento tributário se considera abusivo ou não. Poderia ocorrer, por
exemplo, que um contribuinte providenciasse o envio das informações sobre
determinado planejamento e a Administração, considerando o caso como um
planejamento lícito, nada tivesse que lançar.
Em suma, com as propostas de previsão legislativa de critérios substantivos para
identificação dos casos de aplicação do art.116, § 1.º do CTN e de criação de deveres de
informação detalhada sobre os planejamentos tributários realizados, consideramos que
haveria sensíveis melhoras no que diz respeito ao grau de transparência, justiça e
segurança jurídica do sistema de combate aos planejamentos tributários abusivos.
116
OCDE, Tackling Agressive Tax Planning Through Improved Transparency and Disclosure,
Paris: OCDE, 2011.
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