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Planejamento Tributário

Marciano Seabra de Godoi


Mestre e Doutor em Direito Tributário. Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –
PUC Minas. Presidente do Instituto de Estudos Fiscais - IEFi (Belo Horizonte). Advogado.

Introdução

O planejamento tributário e seus limites são o tema sobre o qual mais estudei,
escrevi e publiquei em minha trajetórica acadêmica. Para responder às sempre
inteligentes e perspicazes questões que o Prof. Hugo de Brito Machado formula aos
autores convidados a contribuir com os volumes da tradicional Coleção de Estudos
Tributários do ICET, utilizei no presente estudo alguns textos que escrevi em livros,
capítulos de livros e artigos sobre o tema1, procurando produzir como resultado final um
texto claro, coerente, maduro e propositivo. O marco teórico que sempre me guiou na
investigação desse tema foi a obra do professor espanhol Carlos Palao Taboada. No
presente estudo não foi diferente.

Questões formuladas:

1. Relevância do tema e conceitos jurídicos envolvidos


1.1. O tema planejamento tributário, escolhido para nossa pesquisa, tem relevância
prática?

1
Os textos que utilizei para responder algumas perguntas foram os seguintes: GODOI, Marciano Seabra
de. Estudo comparativo sobre o combate ao planejamento tributário abusivo na Espanha e no Brasil.
Sugestão de alterações legislativas no ordenamento brasileiro. Revista de Informação Legislativa, v.
194, 2012, 117-146; GODOI, Marciano Seabra de & FERRAZ, Andrea Karla. Planejamento tributário e
simulação: estudo e análise dos casos Rexnord e Josapar. Revista Direito GV, v. 15, 2012, p. 359-379;
GODOI, Marciano Seabra de. A figura da fraude à lei tributária na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal. Revista Dialética de Direito Tributário, v. 79, 2002, p. 75-85; GODOI, Marciano Seabra de. A
figura da fraude à lei tributária prevista no parágrafo único do art.116 do Código Tributário Nacional.
Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, v. 68, 2001, p. 101-123; GODOI, Marciano Seabra
de. Fraude a la ley y conflicto en la aplicación de la legislación tributaria, Madrid: Instituto de
Estudios Fiscales, 2005; GODOI, Marciano Seabra de. Comentarios sobre el cuadro actual de aplicación
de normas generales anti-elusión en España. In: FERREIRA, Eduardo Paz; TORRES, Heleno Taveira;
PALMA, Clotilde Celorico (Orgs). Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, v.
II, Coimbra: Almedina, 2013, p. 93-119; GODOI, Marciano Seabra de. Interpretação do Direito
Tributário. In: ROCHA, Sérgio André (Org.). Curso de Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin,
2011, p. 209-248; GODOI, Marciano Seabra de & SALIBA, Luciana Goulart. Interpretação e Aplicação
da Lei Tributária. In: MACHADO, Hugo de Brito (Org.). Interpretação e Aplicação da Lei Tributária.
São Paulo/Fortaleza: Dialética, 2010, p. 268-293; GODOI, Marciano Seabra de. O quê e o porquê da
tipicidade tributária. In: RIBEIRO, Ricardo Lodi & ROCHA, Sérgio André (Orgs.). Legalidade e
Tipicidade no Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 72-99; GODOI, Marciano Seabra
de. Uma proposta de compreensão e controle dos limites da elisão fiscal no direito brasileiro - estudo de
casos. In: YAMASHITA, Douglas (Org.). Planejamento tributário à luz da jurisprudência, São Paulo:
LEX, 2007, p. 237-288; GODOI, Marciano Seabra de. Dois conceitos de simulação e suas consequências
para os limites da elisão fiscal. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Org.), Grandes Questões Atuais do
Direito Tributário - 11.º Volume, São Paulo: Dialética, 2007, 272-298.

1
Esta é talvez a única questão sobre planejamento tributário que não desperta
polêmica ou discordância. A relevância prática do tema é inegável, inquestionável, e
pode ser aferida, por exemplo, pela quantidade imensa de livros, artigos, dissertações,
teses, congressos e seminários que, no Brasil e em diversos países, têm este tema como
objeto exclusivo ou principal. Também atesta a importância prática do tema o número
considerável de lançamentos tributários de valores expressivos, em que a autoridade
administrativa qualifica de abusivo, simulado ou fraudulento o planejamento tributário
posto em prática pelo sujeito passivo da obrigação tributária.
A atividade do planejamento tributário impacta diretamente a forma pela qual os
atos e negócios jurídicos são efetuados por pessoas físicas e jurídicas, e tem
consequências óbvias sobre o volume de recursos carreados aos cofres públicos.
Naturalmente, os mais interessados no tema são os contribuintes com maior riqueza e
com maior poder de promover variações, de fundo e de forma, espaciais e temporais, na
maneira pela qual seus negócios são realizados. Com efeito, o planejamento tributário é
algo quase desconhecido para os contribuintes de fato (que suportam o peso do tributo
sem serem contribuintes) e para as pessoas físicas assalariadas cujo ônus tributário é
quase todo ele incidente na fonte, mas tem uma importância vital para grandes
conglomerados multinacionais assessorados pelas empresas de consultoria conhecidas
como “big four” (Price, Delloite, KPMG e EY) e por influentes e especializados
escritórios de advocacia.
Do ponto de vista puramente econômico, e supondo a existência de uma carga
tributária relevante (de 20 a 40% do Produto Interno Bruto, tal como ocorre nas
economias capitalistas contemporâneas), o planejamento tributário tem pelo menos dois
impactos importantes. Na microeconomia, o planejamento tributário buscado pelos
agentes econômicos impacta diretamente a margem de lucro dos negócios, daí por que
os tributaristas são sempre consultados – e não raro com nítido protagonismo – antes de
se efetuar um grande investimento. Na macroeconomia, o planejamento tributário afeta
a distribuição da carga tributária entre os agentes econômicos (deslocando a carga
tributária para os ombros dos que não têm acesso ao planejamento tributário) e também
o grau de eficiência e produtividade dos fatores de produção.
Quanto a este último aspecto, da influência do planejamento tributário sobre o
grau de eficiência e produtividade dos fatores de produção, a explicação é a seguinte:
não raro acontece de determinados negócios serem efetuados com uma configuração
ótima do ponto de vista tributário (ou seja, provocando a menor incidência tributária
possível, ou mesmo nenhuma incidência tributária), a custo de uma consequente
configuração não-ótima (e muitas vezes uma configuração bastante ineficiente) do
ponto de vista operacional ou produtivo. Um tributarista dos Estados Unidos cunhou
uma definição de “tax shelter” que ilustra muito bem, e com bom humor, este aspecto:
“a tax shelter is a deal done by very smart people that, absent tax considerations, would
be very stupid”2.

1.2. Quais principais conceitos da Teoria Geral do Direito estão envolvidos no


estudo do planejamento tributário?

2
GRAETZ, Michael J.. 100 Million Unnecessary Returns, New Haven: Yale University Press, 2010,
116. Num vocabulário jurídico mais rigoroso, “tax shelter” pode ser definido como um artificioso e
distorcido esquema negocial levado a termo para evitar ou reduzir obrigações tributárias (cf. LYONS,
Susan M. (Ed.), International Tax Glossary, 3rd. edition, Amsterdam: IBFD, 1996, 304).

2
Há vários conceitos da Teoria Geral do Direito envolvidos no tema. Eis os que
considero mais relevantes: interpretação/aplicação, qualificação, subsunção, legalidade,
analogia, fraude à lei, abuso do direito. Esses conceitos serão trabalhados nas respostas
às próximas perguntas.
Vê-se, portanto, que o planejamento tributário é um tema profundamente ligado
à teoria jurídica, e ao mesmo tempo um tema de extraordinária relevância prática.
Aqui se deve fazer uma advertência muito importante. É que além de teórico, o
planejamento tributário é um tema carregado de ideologia política e econômica, o que
quase sempre deixa de ser devidamente explicitado e assumido pelos autores que
escrevem sobre o assunto. A visão e as opiniões que uma pessoa tem sobre o
planejamento tributário são necessária e fortemente condicionadas pela visão que a
mesma pessoa tem sobre a natureza e as funções do Estado, a natureza e as funções do
tributo e do direito tributário.
Um juiz que considere que o direito existe principalmente para assegurar a paz
social e, intervindo o menos possível na vida privada e na livre-iniciativa dos cidadãos,
garantir a certeza e a segurança-previsibilidade nas relações entre indivíduos
maximizadores de riqueza e bem-estar, provavelmente decidirá casos difíceis de
planejamento tributário de forma distinta de um juiz que, aplicando as mesmas leis e a
mesma Constituição a um mesmo caso concreto, acredite que o fim supremo do direito
e do Estado é promover a justiça, assegurando a todos os cidadãos igualdade efetiva de
oportunidades para desenvolverem com ampla liberdade sua personalidade, suas
escolhas e seus talentos pessoais. O primeiro juiz tende a ser muito mais permissivo do
que o segundo com relação a planejamentos tributários ousados ou agressivos.
O mesmo ocorre com relação à visão do tributo e do direito tributário. Se o
tributo é visto como uma “norma de rejeição social” e o direito tributário como sendo
exclusivamente um mecanismo de defesa e proteção dos indivíduos contra o Estado,
então o planejamento tributário será envolto numa aura de sacralidade e heroísmo, e sua
prática considerada a quintessência do engenho humano e da liberdade individual. Essa
visão ideológica libertária ou libertarista é muito arraigada na doutrina brasileira, o que
explica, a meu juízo, a forte aversão de boa parte dos autores nacionais a qualquer tipo
de norma geral destinada a coibir planejamentos tributários abusivos3.

1.3. A expressão abuso de forma tem o mesmo significado de abuso de direito?

Quando se discute sobre o significado de expressões como abuso de forma,


abuso do direito, fraude à lei, simulação etc., é necessário abandonar ingênuas
pretensões conceitualistas e essencialistas. Segundo tais pretensões, essas expressões
teriam uma e somente uma significação correta, verdadeira, imutável, oriunda da mais
autorizada ciência jurídica. Essa é uma visão tola e equivocada. Trata-se na verdade de
institutos jurídicos que recorrem em grande medida a cláusulas gerais, conceitos abertos
que em cada cultura jurídica e em cada período histórico assumem conteúdos mais ou
menos precisos. O método correto para estudar esses conceitos não é o lógico-dedutivo.

3
Para uma crítica à visão libertarista do tributo e do direito tributário, cf. GODOI, Marciano Seabra de. O
tributo, o direito tributário e seu significado atual para a ordem constitucional: crítica à postura libertarista
presente na doutrina brasileira, In: OTERO, Paulo; ARAÚJO, Fernando; GAMA, João Taborda da
(Orgs.). Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Vol. III, Lisboa: Coimbra
Editora, 2011, 447-458. Para uma amostra da aversão doutrinária às normas gerais antiabuso, vide a
petição inicial da ADI 2.446, ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio em 2001 e até hoje não
levada à pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal.

3
Deve-se, ao contrário, estudar as especificidades da manifestação dessas ideias gerais na
experiência concreta (legislação, jurisprudência, doutrina) de cada ordenamento jurídico
e em cada momento histórico.
A relação entre planejamento tributário e a noção de abuso de formas tem lugar
e data de nascimento: Alemanha, 19194. O Código Tributário alemão editado neste ano
dispunha em seu § 5 que “a obrigação tributária não pode ser eludida ou reduzida
mediante o emprego abusivo de formas e configurações do direito civil”. A ideia é
simples: o contribuinte não pode evitar a obrigação tributária recorrendo à manipulação
ou à concatenação manifestamente artificiosa e descontextualizada de atos ou negócios
jurídicos.
Eis um exemplo antigo, simples e esclarecedor do abuso de formas: para escapar
do imposto sobre transmissão de bens imóveis por ato oneroso inter vivos, duas pessoas
criam uma sociedade, com uma delas aportando ao capital da sociedade um imóvel, e a
outra aportando ao capital da sociedade uma quantia em dinheiro, correspondente ao
valor do imóvel. Algum tempo depois da constituição da sociedade, esta é liquidada por
comum acordo entre os sócios, definindo-se que a propriedade do imóvel será entregue
ao que aportara dinheiro, e que o caixa da sociedade será entregue ao que aportara o
imóvel.
Na lógica da norma alemã, o exemplo acima engendra um abuso de formas: a
forma ou configuração contratual, o negócio jurídico da constituição de sociedades foi
usado de maneira inadequada, artificiosa, abusiva, como meio para evitar o imposto
sobre a transmissão do imóvel. Quando isso ocorre, a norma alemã criada em 1919 e em
vigor até hoje determina que “o crédito tributário nasce como teria nascido com uma
configuração jurídica adequada aos fatos econômicos”. A redação atual da norma
alemã, alterada pela última vez em 2007 e em vigor a partir de 1.1.2008, é mais
complexa, mas permanece fiel à lógica da teoria do abuso das formas criada em 1919
(tradução para o espanhol do Prof. Carlos Palao Taboada):

§ 42. Abuso de las posibilidades de configuración jurídica

4
Sobre o abuso de formas no direito tributário alemão, cf. SCHIESSL, Martin. “Branch Report – Germany
– Summary”, IFA, Form and substance in tax law, Cahiers de Droit Fiscal International,
Vol.LXXXVIIa, Haia: Kluwer, 2002, 311-312; PALAO TABOADA, Carlos. Algunos problemas que plantea
la aplicación de la norma española sobre el fraude a la ley tributaria”, Crónica Tributaria, n.º 98, 2001,
127 e ss, Idem. “Tipicidad e igualdad en la aplicación de las normas tributarias (La prohibición de la
analogía en Derecho tributario)”, Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de
Madrid, núm.1, 1997, 219 e ss; FISCHER, Peter. “L’esperienza tedesca”, DI PIETRO, Adriano (Dir.),
L’elusione fiscale nell’esperienza europea, Milão: Giuffrè, 1999, pp.203-249; RÄDLER, Albert.
“General Description: Germany (Stautory Interpretation – Substance over form)”, AULT, Hugh (Dir.).
Comparative Income Taxation, Haia: Kluwer Law International, 1997, pp.62-70, PISTONE, Pasquale.
Abuso del Diritto ed elusione fiscale, Pádua: CEDAM, 1995; KRUSE, Heinrich Wilhelm. “Il risparmio
d’imposta, l’elusione fiscale e l’evasione”, AMATTUCCI, Andrea (Dir.). Trattato di Diritto Tributario,
Vol. III, Pádua: CEDAM, 1994, pp.207-223; SCHOUERI, Luis Eduardo. Planejamento fiscal através de
acordos de bitributação, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, pp.40-50; HARTZ, Wilhelm.
Interpretação da lei tributária, tradução de Brandão Machado, Resenha Tributária, São Paulo, 1993,
KRAMER, Jörg-Dietrich. “Abuse of law by tax saving devices”, Intertax, n.º 2, 1991, pp.96-102,
ROTHMANN, Gerd Willi & PACIELLO, Gaetano. “Elisão e Evasão Fiscal”, Elisão e Evasão Fiscal,
Caderno de Pesquisas Tributárias – Vol.13, São Paulo: Resenha Tributária – Centro de Estudos de
Extensão Universitária, 1988, pp.398-414; BEISSE, Heinrich. “O criterio económico na interpretação das
leis tributárias segundo a mais recente jurisprudencia alemã”, MACHADO, Brandão (Dir.). Direito
Tributário – Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira, São Paulo: Saraiva, 1984,
pp.5-39; PAULICK, Heinz. Estudio Preliminar a la Ordenanza Tributaria Alemana, Madrid:
Instituto de Estudios Fiscales, 1980, pp.47 e ss.

4
(1) La ley tributaria no pude ser eludida mediante el abuso de las
posibilidades de configuración jurídica. Si se realiza el presupuesto de hecho
de una regulación contenida en una ley tributaria cuyo fin sea impedir la
elusión fiscal, las consecuencias jurídicas son las establecidas en este
precepto. En otro caso, cuando exista abuso en el sentido del apartado 2 el
crédito tributario nace como hubiera nacido con arreglo a la configuración
jurídica adecuada a los hechos económicos.
(2) Existe abuso cuando se adopte una configuración jurídica inadecuada,
que ocasione para el obligado tributario o un tercero una ventaja fiscal no
prevista por la ley en comparación con una configuración adecuada. Lo
anterior no es aplicable cuando el obligado tributario demuestra que la
configuración adoptada tiene motivos no fiscales relevantes atendiendo al
conjunto de las circunstancias.

Vejamos agora brevemente a noção de abuso do direito, e como essa noção foi
relacionada historicamente com o tema do planejamento tributário. A ideia que subjaz à
secular noção de abuso do direito é que o titular de um direito subjetivo não pode
exercê-lo com a finalidade exclusiva de causar dano a um interesse legítimo de um
terceiro, nem exercê-lo de um modo incompatível com a boa-fé ou com a função
econômico-social daquele direito. A milenar regra do direito romano segundo a qual
“quem exercita um direito seu não provoca dano a ninguém” já havia sido rechaçada
pela teoria medieval dos atos de emulação, segundo a qual o titular de um direito
subjetivo pratica ato ilícito se exerce seu direito com a única finalidade de causar dano a
terceiros, realidade corriqueira principalmente nas relações de vizinhança. Na era
contemporânea, coube aos tribunais franceses5 a primazia no uso da expressão abuso do
direito no sentido de uma teoria geral destinada a coibir o exercício de direitos
subjetivos próprios de modo caprichoso, antissocial ou de má-fé.
O abuso do direito foi positivado originalmente no Código Civil alemão de
1896, e, seguindo uma larga tendência mundial, a partir de 2002 também é regulado
expressamente pelo Código Civil Brasileiro, que a ele faz menção na norma segundo a
qual “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes” (art.187).
Se coube aos tribunais franceses a primazia do uso da teoria do abuso do direito
no âmbito do direito de propriedade e de vizinhança, a esses mesmos tribunais se deveu
a primazia da vinculação dessa ideia com os limites do planejamento tributário6. Com
5
A célebre sentença do Tribunal de Colmar de 1855 (em que se puniu a conduta de um proprietário que
construiu em seu imóvel uma falsa chaminé somente para prejudicar a luminosidade do imóvel do seu
vizinho) costuma ser apontada como o grande marco histórico da adoção contemporânea da teoria do
abuso do direito.
6
Sobre o tema, cf. LEHÉRISSEL, Hervé. “Rapport de Groupement – France”, IFA, Form and substance in
tax law, Cahiers de Droit Fiscal International, Vol.LXXXVIIa, Haia: Kluwer, 2002, pp.263-286;
CHEVALIER, Jean Pierre. “L’esperienza francese”, DI PIETRO, Adriano (Dir.), L’elusione fiscale
nell’esperienza europea, Milão: Giuffrè, 1999, pp.5-32; GEST, Guy. “General Description: France –
Anti-avoidance doctrines and rules”, In: AULT, Hugh (Dir.). Comparative Income Taxation, Haia:
Kluwer Law International, 1997, pp.47-48; GEST, Guy y TIXIER, Gilbert. Droit fiscal international, 2.ª
edição, Paris: Presses Universitaires de France, 1990, pp.523-525; COZIAN, Maurice. “What is abuse of
law”, Intertax, n.º 2, 1991, pp.103-107; FROMMEL, Stefan N. “United Kingdom tax law and abuse of
rights”, Intertax, n.º 2, 1991, pp. 55-60; MASSON, Charles Robbez. La notion d’évasion fiscale en Droit
interne français, Paris: Librairie Genérale de Droit et de Jurisprudence, 1990; GOLDSMITH, J.C.
“Rapport National – France”, IFA. Évasion Fiscale – Fraude Fiscale, Cahiers de Droit Fiscal
International, Vol.LXVIIIa – premier sujet, Haia: Kluwer, 1983, pp.377-379.

5
efeito, nas décadas de 20 e 30 do século XX, o Conselho de Estado da França adotou
um movimento de abandono do formalismo em direção ao “realismo fiscal”7, no qual
passou a aplicar no julgamento de lides tributárias a doutrina do abuso do direito,
determinando que a Administração tinha a faculdade de desconsiderar atos e negócios
jurídicos cuja formalização era incompatível com as verdadeiras finalidades empíricas
das partes, até que em 1941 criou-se uma norma legislativa nesse sentido. Na redação
que, com pouquíssimas modificações, perdurou de 1981 até 2008, a norma francesa
dispunha que (Article L64, Livre de Procédure Fiscale):

Ne peuvent être opposés à l'administration des impôts les actes qui


dissimulent la portée véritable d'un contrat ou d'une convention à l'aide de
clauses :
a) Qui donnent ouverture à des droits d'enregistrement ou à une taxe de
publicité foncière moins élevés ;
b) Ou qui déguisent soit une réalisation, soit un transfert de bénéfices ou de
revenus ;
c) Ou qui permettent d'éviter, en totalité ou en partie, le paiement des taxes
sur le chiffre d'affaires correspondant aux opérations effectuées en exécution
d'un contrat ou d'une convention.

Apesar de não haver referência no texto legislativo à figura do abuso do direito,


a doutrina e a jurisprudência sempre se referiram e estudaram a norma segundo os
pressupostos dessa teoria. Além disso, no sistema francês a figura do abuso do direito
no campo tributário comporta uma dualidade básica: segundo a jurisprudência do
Conselho de Estado, a norma acima mencionada constitui o fundamento legal tanto para
coibir atos simulados ou fictícios, que a doutrina chama de “abus de droit – simulation”,
quanto atos que, não obstante não incorram em simulação, têm o propósito exclusivo de
evitar tributos mediante uma “montagem”, uma operação anormal, não-usual ou
artificial8, que a doutrina chama de “abus de droit – fraude d´intention”9.
Em dezembro de 2008, a redação da norma francesa foi alterada, passando a
usar expressamente a expressão abus de droit, e incorporando também na própria norma
a distinção, antes jurisprudencial, entre o abuso do direito – simulação e o abuso do
direito – fraude de intenção:

Art.L64. Afin d'en restituer le véritable caractère, l'administration est en


droit d'écarter, comme ne lui étant pas opposables, les actes constitutifs d'un
abus de droit, soit que ces actes ont un caractère fictif, soit que, recherchant
le bénéfice d'une application littérale des textes ou de décisions à l'encontre
des objectifs poursuivis par leurs auteurs, ils n'ont pu être inspirés par aucun
autre motif que celui d'éluder ou d'atténuer les charges fiscales que
l'intéressé, si ces actes n'avaient pas été passés ou réalisés, aurait
normalement supportées eu égard à sa situation ou à ses activités réelles.

7
Cfr. MASSON, Charles Robbez. La notion d’évasion fiscale en Droit interne français, Paris: Librairie
Genérale de Droit et de Jurisprudence, 1990, pp.194 e ss.
8
Cfr. FROMMEL, Stefan N. op.cit., p.58.
9
Cfr. MORELLO, Umberto. “Il problema della frode alla legge nel Diritto tributario”, Diritto e Pratica
Tributaria, n.º 1, 1991, p.17.

6
Voltemos agora à formulação da pergunta: A expressão abuso de forma tem o
mesmo significado de abuso de direito? Qualquer resposta peremptória a essa pergunta
cairia no erro do conceitualismo e do essencialismo. Por isso minha resposta é a
seguinte: a expressão abuso de forma remete à precursora experiência alemã (1919) no
combate legislativo aos planejamentos tributários levados a cabo mediante um uso
inadequado e artificioso das possibilidades de configuração negocial oferecidas pelo
ordenamento jurídico, enquanto a expressão abuso do direito remete à experiência
francesa de combate (inicialmente jurisprudencial, posteriormente mediante norma
legislativa) a condutas que buscam evitar ou minorar tributos mediante: a) atos
simulados-fictícios; ou b) atos que se valem de uma interpretação literal de normas
ditadas com distinta finalidade e não são motivados por qualquer outro propósito que
não o de minorar ou evitar os tributos que seriam normalmente suportados caso a
conduta abusiva não fosse realizada.
A resposta ainda comporta uma advertência final muito importante. Se se analisa
a vasta doutrina sobre a norma alemã, vê-se que a maioria dos autores considera que a
norma consiste na aplicação ao campo tributário da teoria da fraude à lei10, conceito que
trabalharemos melhor nas respostas às perguntas a seguir. Mas há também autores que
veem na norma alemã a aplicação da teoria do abuso do direito e não da teoria da fraude
à lei11. No próprio direito civil, berço das teorias sobre a fraude à lei e o abuso do
direito, os conceitos não raro se embaralham, sendo conhecida a opinião de Josserrand
segunda a qual “a fraude à lei não seria outra coisa que uma forma concreta de cometer
um abuso do direito”12.
Se se faz abstração dos rótulos abuso de forma, abuso do direito e fraude à lei e
se analisam os critérios objetivos e subjetivos contidos nas normas alemã (§ 42 do
Código Tributário) e francesa (no que se refere à segunda categoria de atos previstos no
art.L64 do Livre de Procédure Fiscal) atualmente em vigor sobre os limites do
planejamento tributário, vê-se que as técnicas são muito semelhantes: ambas se referem
à possibilidade de a Administração desconsiderar condutas que engendram aplicações
distorcidas e artificiosas do direito, buscando consequências não previstas ou não
queridas pela lei, e que adicionalmente possuem como único propósito relevante a
redução de tributos.

1.4. A palavra simulação é sinônimo da palavra dissimulação?

A resposta a essa pergunta é crucial para explicar como as autoridades


administrativas e judiciais controlam atualmente, no Brasil, os planejamentos
tributários.
Como se explicará com mais detalhes nas respostas às perguntas a seguir, há
dois tipos básicos de controle dos planejamentos tributários abusivos: ou se lhes
controla mediante a aplicação de uma norma geral antiabuso, como se dá na Alemanha,
França ou Espanha; ou se lhes controla mediante a aplicação de um conceito amplo de

10
HENSEL, Albert. Diritto tributario, tradução de Dino Jarach, Milão: Giuffrè, 1956, pp.143-147;
KRUSE, op.cit., p.213; FISCHER, op.cit., pp.222-223. PALAO TABOADA, Carlos. “Algunos problemas que
plantea la aplicación de la norma española sobre el fraude a la ley tributaria”, Crónica Tributaria, n.º 98,
2001, pp.127 e ss..
11
PISTONE, Pasquale. Abuso del Diritto ed elusione fiscale, Pádua: CEDAM, 1995, p.27-28; 44-65.
12
Apud DÍEZ-PICAZO, Luis, “El abuso del Derecho y el fraude de la Ley en el nuevo Título Preliminar
del Código Civil y el problema de sus recíprocas relaciones”, Documentación Jurídica, núm.4, 1974,
p.1342.

7
simulação, que, na prática, é muito semelhante ao funcionamento de uma norma geral
antiabuso.
O ordenamento brasileiro passou a contar com uma norma geral antiabuso em
2001 (art.116, parágrafo único do CTN, introduzido pela LC 104/2001), conforme será
explicado mais detalhadamente ao final deste estudo. Como essa norma geral ainda não
foi regulamentada nem posta em prática no âmbito federal, os planejamentos tributários
são controlados pelas autoridades administrativas mediante a aplicação de um conceito
amplo de simulação. Portanto, quem quiser compreender realmente como a
jurisprudência atual concebe e valora as operações de planejamento tributário
(mantendo algumas de pé e desclassificando outras) deve voltar sua análise à teoria e à
prática da simulação. Vejamos mais de perto essa questão.

 Simulação: conceito aparentemente simples e incontroverso na


doutrina, mas problemático e controvertido na jurisprudência

A grande maioria da doutrina explica e utiliza o conceito de simulação como se


se tratasse de um problema simples e já resolvido, que não despertasse maiores
controvérsias, seja na doutrina, seja na jurisprudência. Alberto Xavier afirma que a
simulação é um vício que afeta o elemento vontade dos atos e negócios jurídicos, e
assim a define: "a simulação é um caso de divergência entre a vontade (vontade real) e a
declaração (vontade declarada), procedente de acordo entre o declarante e o declaratário
e determinada pelo intuito de enganar terceiros"13.
Os autores em geral situam essa divergência entre a vontade interna e a vontade
manifesta como o principal requisito da simulação14. Na clássica explicação de Ferrara,
na simulação a “não-conformidade entre o que se quer e o que se declara é comum a
ambas as partes e concertada entre elas”15.
É neste sentido que Alberto Xavier afirma que os negócios simulados são "falsos
e mentirosos"16. Os exemplos de negócios simulados que os doutrinadores geralmente
oferecem confirmam essa visão da simulação como mentira ou falsidade: compra e
venda em que na verdade não há pagamento do preço (simulação para fugir ao imposto
sobre doações), compra e venda com preço declarado inferior ao efetivamente pago
(simulação para fugir ao imposto de renda sobre o ganho de capital), contrato de
prestação de serviços sem que tenha havido prestação efetiva nem pagamento do preço
(simulação para lastrear dedução de despesas na base de cálculo do imposto de renda)17.
Mas se a simulação é mesmo algo tão simples de definir e identificar, como
explicar as renhidas disputas travadas no antigo Conselho de Contribuintes do

13
XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva, São Paulo: Dialética,
2001, p.52.
14
Vide MOREIRA ALVES, José Carlos. “Abuso de formas, abuso de direito, dolo, negócios jurídicos
simulados, fraude à lei, negócio indireto e dissimulação”, Anais do Seminário Internacional sobre
Elisão Fiscal, Brasília: ESAF, 2001, pp.64-65. Sílvio Venosa afirma de forma categórica: “A
característica fundamental do negócio simulado é a divergência intencional entre a vontade e a
declaração” – VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Parte Geral, 3.ª ed., São Paulo: Atlas, 2003,
p.467. A mesma concepção baseada na teoria da manifestação da vontade é adotada por Pontes de
Miranda: “na simulação, quer-se o que não aparece e não se quer o que aparece” – PONTES DE
MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, Parte Geral – Tomo I, Rio de Janeiro:
Borsoi, 1954, p.53.
15
FERRARA, Francesco. A simulação dos negócios jurídicos, Campinas: Red Livros, 1999, p.52.
16
XAVIER, op.cit., p.67.
17
XAVIER, op.cit., p.57.

8
Ministério da Fazenda (CCMF) e atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
(CARF), em que os julgadores utilizam conceitos bem diferentes de simulação para
qualificar os atos e negócios praticados pelo contribuinte? Se em seus votos todos os
julgadores recorrem aos mesmos dispositivos do Código Civil (art.102 do Código de
1916 e art.167 do Código de 2002), se o conceito de simulação do direito civil é o
mesmo que vigora no direito tributário 18 , se "os civilistas brasileiros concordam na
análise dos pressupostos da simulação relativa"19, e ainda se os tributaristas "sempre
caminharam de passo certo com os civilistas na temática da simulação"20, como explicar
que o conceito mais controverso (e decisivo) nos julgamentos sobre os limites da elisão
seja exatamente o conceito de simulação?

 Afinal o que é um negócio "não-verdadeiro"? Duas respostas básicas

O Código Civil de 2002 (art.167, § 1.º) não alterou a redação do dispositivo que,
no Código anterior (art.102), definia as hipóteses de simulação. A legislação brasileira
dispõe desde 1916 que há simulação quando: 1. negócios jurídicos "aparentarem
conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se
conferem ou transmitem"; 2. negócios jurídicos "contiverem declaração, confissão,
condição ou cláusula não verdadeira"; 3. instrumentos particulares forem antedatados
ou pós-datados.
A terceira hipótese (documentos antedatados ou pós-datados) é mais precisa e
fácil de identificar na realidade, bastando apurar os fatos para se chegar a uma
conclusão segura sobre se houve ou não simulação. Mas a primeira e a segunda
hipóteses, ao contrário do que em princípio se poderia pensar, comportam interpretações
diversas. A idéia fundamental presente em ambas as hipóteses é a de simulação como
aparência não verdadeira, mas o dispositivo legal não desenvolve o conceito de
aparente ou de não verdadeiro. E não é preciso ser filósofo ou linguista para constatar
que há mais de uma maneira de compreender a contraposição entre verdade e mentira,
realidade e aparência.
Há situações em que ninguém discute que o negócio jurídico é mera aparência:
um contrato de prestação de serviços em que nenhum serviço é prestado (simulação
absoluta), ou um contrato de compra e venda cujo preço declarado na escritura é
diferente do que foi pago pelo comprador ao vendedor (simulação relativa ou
dissimulação).
Mas os casos reais de planejamento tributário questionados pela fiscalização e
postos ao crivo dos Conselhos de Contribuintes e do Judiciário não se referem a
negócios jurídicos cujo caráter de mera aparência é assim tão óbvio. Mesmo que todas
as provas tenham sido produzidas e não remanesça dúvida quanto aos fatos concretos,
ainda assim haverá duas formas básicas de enxergar o caráter não verdadeiro de um
negócio jurídico.
Tomemos o conhecido caso da incorporação às avessas e seus diversos
julgamentos no CCMF (Câmara Superior e 1.º Conselho). Essas incorporações foram
18
Cfr. PEREIRA, César A. Guimarães. Elisão tributária e função administrativa, São Paulo: Dialética,
2001, p.216. Em sentido contrário, TÔRRES, Heleno. Direito Tributário e DireitoPrivado –
Autonomia Privada, Simulação, Elusão Tributária, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp.363-
364.
19
TORRES, Ricardo Lobo. "Elisão abusiva e simulação na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e
do Conselho de Contribuintes", In: YAMASHITA, Douglas (coord.). Planejamento tributário à luz da
jurisprudência, São Paulo: Lex, 2007, p.334.
20
Ibid., p.335.

9
uma espécie de "resposta do mercado" à revogação do art.64, § 5.º do Decreto-lei
1.598/77, que permitia que a incorporadora compensasse os prejuízos fiscais da
incorporada. Até então, incorporavam-se empresas com vultosos prejuízos fiscais
somente para – ato contínuo – compensar seus prejuízos com os lucros da
incorporadora. A partir da revogação daquele dispositivo, os assessores fiscais
desenvolveram um procedimento bem mais complexo e artificial: os sócios da empresa
operativa e lucrativa adquiriam o controle da empresa com prejuízos (geralmente
desativada) e em seguida promoviam a incorporação da empresa lucrativa pela empresa
desativada. Logo após a incorporação, desconfigurava-se completamente a identidade
da empresa incorporadora: seu nome, objeto social, endereço, corpo diretivo e clientes
passavam a ser os da empresa incorporada, que havia sido extinta na operação de
incorporação.
Ninguém discute que essa incorporação será um ato simulado, à luz do Código
Civil brasileiro, se considerarmos que a operação não é verdadeira, que a operação
somente aparenta transmitir direitos e deveres da incorporada para a incorporadora.
Mas o Código Civil não contém normas – nem o de 1916 nem o de 2002 – que nos
respondam claramente quando um negócio é aparente e quando é real! Então como o
julgador decidirá o caso? A prática demonstra que ele decidirá o caso (reputando o
planejamento tributário simulado ou não) a partir de sua convicção a respeito do papel
ou da importância jurídica da finalidade prática ou da substância econômica que
normalmente subjaz a um determinado negócio jurídico.
Se um juiz ou um conselheiro considera que os negócios de direito privado
(constituição de uma sociedade, incorporação de uma sociedade por outra, aumentos e
diminuições de capital etc.) existem e são regulados tanto pelo direito privado (direito
societário) quanto pelo direito público (direito tributário) para servir a determinadas
finalidades práticas ou a determinados propósitos econômicos mais ou menos definidos,
então esse juiz ou conselheiro muito provavelmente considerará que as circunstâncias
que cercam a chamada incorporação às avessas indicam que se trata de uma operação
aparente, não verdadeira. Pois para essa postura, para o negócio ser real, verdadeiro,
efetivo (e portanto não simulado), as circunstâncias e propósitos concretos que cercam
cada negócio jurídico devem guardar uma mínima congruência com a função
econômico-social que a ordem jurídica supõe estar subjacente ao próprio negócio.
Segundo essa visão, se as partes usam um contrato de incorporação societária (no bojo
de uma sequência preordenada de atos) para atingir objetivos concretos estranhos (ou
mesmo opostos) à finalidade prática subjacente ao contrato de incorporação, o contrato
posto em prática pelas partes será visto como simulado.
Agora imaginemos que não entre na cabeça de um juiz que os negócios jurídicos
existentes no ordenamento jurídico suponham alguma finalidade prática ou alguma
substância econômica a eles subjacente. Para esse julgador, as circunstâncias, os
motivos e os propósitos concretos buscados pelas partes que praticaram um determinado
negócio jurídico são irrelevantes para determinar se o ato foi ou não simulado: o
relevante é saber se a estrutura formal do negócio foi respeitada e se as partes
declararam algo falso ou esconderam algo verdadeiro nas cláusulas de um contrato. Não
havendo esse tipo de mentiras ou falsidades, não haverá simulação.
Essas duas posições acima se refletem diuturnamente nos julgados
administrativos, inclusive nos veredictos que se formaram no CCMF sobre o caso da
incorporação às avessas. Em alguns julgados prevaleceu a posição segundo a qual as
circunstâncias do caso concreto (a incorporadora ser inativa, os sócios da incorporada
haverem adquirido previamente o controle da incorporadora, a incorporadora haver se

10
desfigurado completamente após a operação) indicavam que houve simulação (Acórdão
da CSRF 01-02.107, julgado em 1996 e Acórdão da 3.ª Câmara do 1.º Conselho 103-
21.046, julgado em 2002). Em outros julgados, prevaleceu a posição de que as
circunstâncias acima (e ainda a circunstância adicional de que as operações se repetiam
ao longo dos anos) eram irrelevantes para a configuração da simulação, pois "os
objetivos visados com a prática do ato não interferem na qualificação do ato praticado"
(ementa oficial dos Acórdãos da CSRF 01-01.874 e 01-01.857, ambos julgados em
1995).

 Conceito restritivo de simulação e suas consequências sobre os


limites da elisão fiscal. A figura do negócio jurídico indireto

Segundo sua visão restritiva, a simulação só ocorre quando as partes de um


negócio jurídico declaram, num contrato ou numa escritura, algum fato concreto que se
mostra falso (p.ex. declara-se que o preço de venda de um imóvel é de R$ 500 mil mas
o vendedor recebe do comprador de fato R$ 1 milhão). Ou então se as partes omitem ou
escondem, num contrato ou numa escritura, um fato real que nega o que está declarado
no documento. A simulação seria portanto uma questão de fingimento ou manipulação
dos fatos praticados21, com intuito de lesar a terceiros, inclusive o fisco.
Em suma: para essa visão restritiva, na simulação as partes mentem sobre fatos
concretos, escondendo-os ou inventando-os, total ou parcialmente, qualitativa ou
quantitativamente. Por isso Ricardo Lobo Torres afirma que na simulação “discute-se
sobretudo a respeito da matéria de fato”, e a prova “é seu ponto nevrálgico”22.
Exatamente por conceberem a simulação como mentira sobre fatos concretos, os
autores que adotam essa concepção restritiva afirmam que a prática da simulação
submete o contribuinte a multas administrativas qualificadas23.
Aplicando-se esse conceito restritivo ao caso da incorporação às avessas, a
conclusão é de que não há simulação. A maioria dos acórdãos do CC-MF que
mantiveram de pé o planejamento tributário da incorporação às avessas aplicou esse
conceito restritivo de simulação (p.ex. os acórdãos da CSRF n.ºs 01-01.874, 01-01.857,
01-01.756, em julgamentos realizados em 1994 e 1995).
Outra característica – nem sempre admitida – dessa concepção restritiva da
simulação é a tendência de considerar de forma isolada e atomizada os negócios
praticados pelas partes, recusando-se a ampliar o foco para avaliar o sentido jurídico
global de uma concatenação de negócios jurídicos – e suas circunstâncias – postos em
prática pelos contribuintes.
Quando se utiliza esse conceito restritivo de simulação e se chega à conclusão de
que determinado planejamento tributário não engendra qualquer ato simulado, então o
mais comum será classificar esse planejamento como um negócio jurídico indireto.
O negócio jurídico indireto é uma construção teórica oriunda do pandectismo
alemão do século XIX que foi notavelmente desenvolvida (e que sempre encontrou

21
TORRES, Ricardo Lobo. op.cit., p.334
22
Ibid., p.345.
23
Alberto Xavier afirma que toda simulação praticada com intuito de lesar o fisco configura a fraude e o
conluio previstos nos arts. 72 e 73 da Lei 4.502/1964, sendo portanto cabível a aplicação de multas
agravadas contra os atos de simulação – XAVIER, op.cit., p.79. Esse entendimento costuma não
prevalecer no Conselho de Contribuintes, que em muitos casos reconhece a ocorrência de simulação, mas
não aplica a multa agravada prevista nos referidos dispositivos legais.

11
muitas reservas e contestações) na doutrina italiana do início do século XX24. O negócio
jurídico indireto (cuja modalidade mais célebre é o negócio fiduciário) seria aquele em
que há uma incongruência entre a função econômico-social típica do negócio e os
objetivos concretos visados pelas partes que se utilizaram do negócio em determinadas
circunstâncias. O exemplo mais familiar de negócio jurídico indireto é a venda em
garantia (fiducia cum creditore): o vendedor do bem busca obter um empréstimo do
comprador, o qual deseja para si algo mais forte que uma garantia real. Então ao invés
de se entabular um contrato de mútuo com garantia real, realiza-se uma compra e venda
(tendo por preço exatamente a quantia emprestada) com pacto de retrovenda (retrovenda
que se fará pelo valor do principal mais os juros do mútuo). Há um descompasso entre o
propósito concreto das partes (efetuar um empréstimo oneroso de dinheiro) e o
propósito típico (transferir a propriedade) do negócio realizado (compra e venda).
Quando se utiliza o conceito restritivo de simulação, quase todas as operações
sofisticadas de planejamento tributário se encaixam nesse conceito amplo de negócio
jurídico indireto. Pois nesses casos o que o contribuinte faz é exatamente isso: o
legislador tributário se refere a estruturas negociais típicas, então o contribuinte usa uma
estrutura negocial típica de forma artificial para atingir objetivos contrastantes com as
finalidades para as quais essa estrutura está prevista no ordenamento jurídico. Não por
acaso, nos Acórdãos 01-01.874 e 01-01.857 (CSRF, sessão de 15.05.1995) e também no
Acórdão 101-94.127 (1.ª Câmara do 1.º Conselho, sessão de 28.02.2003), a operação de
incorporação às avessas foi caracterizada como negócio jurídico indireto. E mesmo nos
acórdãos em que o Conselho considerou como simulada a operação de planejamento
tributário, a tese vencida (sustentada pela defesa do contribuinte) era exatamente a de
que se deveria adotar um conceito mais restrito de simulação para concluir que a
operação praticada era um autêntico negócio jurídico indireto (vide Acórdãos 101-
94.771 e 101-94.340, ambos da 1.ª Câmara do 1.º Conselho).
Já vimos os motivos pelos quais o conceito restritivo de simulação leva a que a
maioria das operações de planejamento tributário seja considerada como uma forma de
negócio jurídico indireto. E quais as consequências de se ter praticado um negócio
jurídico indireto para contornar ou rodear leis tributárias com o fito de pagar menos
tributo? Nesse ponto abrem-se duas alternativas.
Para os autores ultraformalistas que consideram a tipicidade fechada uma
decorrência necessária do princípio da segurança jurídica, da livre-iniciativa e do direito
à propriedade privada 25 , o contribuinte teria um direito constitucional de praticar
negócios jurídicos indiretos com o fito de evitar o pagamento de tributo, direito (à elisão
tributária) que seria imune a qualquer restrição legal (ou mesmo via emenda
constitucional) que introduzisse normas gerais tais como as existentes há décadas na
generalidade dos países europeus ocidentais26.
Todos os civilistas que estudaram o negócio jurídico indireto ou fiduciário
aceitavam que, se o negócio é efetuado para esquivar normas cogentes, haverá fraude à

24
Para uma análise crítica das teorias que criaram a figura do negócio jurídico indireto, vide DE
CASTRO Y BRAVO, Federico. El negocio jurídico, Madri: Civitas, reimpressão de 1997, p.443-457 e
MORELLO, Umberto. Frode alla legge, Milão: Giuffrè, 1969, pp. 208-224.
25
Neste sentido, vide as posições de Alberto Xavier (Tipicidade da tributação..., pp.111-149,
“Tipicidad y legalidad en el derecho tributario”, Revista de Derecho Financiero y Hacienda Pública,
n.º 120/1975, pp. 1.257-1.309.) e Ives Gandra da Silva Martins (“Norma Antielisão é Incompatível com o
Sistema Constitucional Brasileiro”, In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.), O Planejamento
Tributário e a Lei Complementar 104, São Paulo: Dialética, 2001, pp. 117-128).
26
Para uma resenha dessas normas gerais, vide GODOI, Marciano S., Fraude a la ley y conflicto en la
aplicación de las leyes tributarias, Madri: Instituto de Estudios Fiscales, 2005, pp.136-183.

12
lei 27 . Mas os tributaristas adeptos do ultraformalismo não admitem (ao contrário da
maioria dos civilistas28) a figura da fraude à lei tributária. Portanto, para esses autores,
os negócios jurídicos indiretos praticados para evitar a incidência da norma tributária
somente podem ser combatidos com regras específicas ou pontuais que “fechem a
porta” caso a caso para a última moda do planejamento tributário.
Já para os autores que consideram que o legislador pode criar normas gerais
destinadas a combater aqueles planejamentos tributários baseados em formas
artificiosas e que abusam das possibilidades de configuração dos negócios jurídicos, a
caracterização de um planejamento como negócio jurídico indireto (e não como ato
simulado) é o primeiro passo para uma possível aplicação da norma geral antiabuso. Ou
seja, descartada a hipótese de simulação (utilizada em seu sentido restritivo), examina-
se – à luz da norma geral antiabuso eventualmente existente no ordenamento – se o
negócio jurídico indireto praticado engendra ou não alguma forma de abuso do direito,
fraude à lei ou outro conceito jurídico indeterminado (que somente se concretiza
paulatinamente pela jurisprudência) previsto na norma geral. No acórdão 101-94.127
(1.ª Câmara do 1.º Conselho de Contribuintes, sessão de 28.02.2003) a operação de
incorporação às avessas foi caracterizada como negócio jurídico indireto e não como
simulação, o que motivou as seguintes observações da Conselheira-Relatora Sandra
Maria Faroni:

A previsão legal para a tributação de operações como a objeto do presente


litígio só surgiu no direito pátrio com a Lei Complementar n.º 104/2001, que
acrescentou um parágrafo ao art.116 do Código Tributário Nacional (...).
Não restou, assim, caracterizada a declaração enganosa de vontade,
essencial na simulação, mas sim, um planejamento tributável, possivelmente
enquadrável na hipótese descrita no art.14 da Medida Provisória n.º 66/2002
[que regulamentava o art.116, parágrafo único mas não foi convertida em
lei], não vigorante à época e não mais em vigor hoje.

Em suma: quando um doutrinador ou um julgador ultraformalista utiliza um


conceito restritivo de simulação e constata que não houve simulação e sim negócio
jurídico indireto, o caminho estará totalmente livre para o planejamento tributário, pois
para essa concepção o negócio jurídico indireto é praticamente sinônimo de elisão
tributária lícita e eficaz.
Já quando se trata de um doutrinador ou de um julgador não-formalista, a
consequência do uso do conceito restrito de simulação será obrigar a administração
tributária a usar a norma geral antiabuso (e não as normas que sancionam a simulação)
para combater os casos de negócios jurídicos indiretos praticados com abuso de formas
jurídicas ou com fraude à lei tributária. Ocorre que, mesmo aqueles que veem no
art.116, parágrafo único do CTN uma norma geral antiabuso e aceitam sua
constitucionalidade, não podem aplicar o referido dispositivo pelo fato do mesmo ainda
não ter sido regulamentado mediante lei ordinária.

27
Por exemplo FERRARA, op.cit., p.96: “Os negócios fraudulentos são negócios reais indiretos que
procuram conseguir, pela combinação de diversos meios jurídicos realizados seriamente, o mesmo
resultado que a lei proíbe ou, pelo menos, um equivalente”. Em outras partes de sua obra, Ferrara deixa
claro que a fraude à lei também se aplica a normas imperativas, e não somente às proibitivas. Em sua
opinião a fraude à lei somente não seria possível no caso de leis permissivas.
28
Pontes de Miranda (op.cit.¸ p.46) afirmava que “as leis de tributação são freqüentemente expostas à
fraude” e Haroldo Valladão cita as normas tributárias como especialmente passíveis de sofrer a fraude à
lei – Direito Internacional Privado, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1978, p.509.

13
 Conceito amplo de simulação (vício na causa do negócio jurídico) e
suas consequências sobre os limites da elisão fiscal

O conceito de simulação é, no âmbito do próprio direito civil brasileiro,


bastante controverso. Ainda que nem sempre deixem isso explícito, diversos autores
definem e aplicam o conceito de simulação com base numa visão causalista. A causa
dos negócios jurídicos pode ser definida como o “fim econômico ou social reconhecido
e garantido pelo direito, uma finalidade objetiva e determinante do negócio que o agente
busca além da realização do ato em si mesmo”29.
A causa é portanto o propósito, a razão de ser, a finalidade prática que se
persegue com a prática de determinado negócio jurídico. Orlando Gomes inclusive
promove uma classificação dos negócios jurídicos com base nas causas típicas de cada
um deles (a cada negócio “corresponde causa específica que o distingue dos outros
tipos”): o seguro é por exemplo um negócio jurídico cuja causa é a “prevenção de
riscos”, ao passo que o contrato de sociedade tem como causa uma associação de
interesses, compondo a categoria dos “negócios associativos”30.
Fixado esse conceito de causa dos negócios jurídicos, como encarar a figura da
simulação? Na simulação há um vício na causa, pois as partes usam determinada
estrutura negocial (compra e venda) para atingir um resultado prático (doar um
patrimônio) que não corresponde à causa típica do negócio posto em prática. Na
formulação de Orlando Gomes sobre a simulação relativa, “ao lado do contrato
simulado há um contrato dissimulado, que disfarça sua verdadeira causa” 31 -
destacamos.
Os autores causalistas ressaltam que na simulação não há propriamente um
vício do consentimento (como no erro ou no dolo), pois as partes consciente e
deliberadamente emitem um ato de vontade32. O que ocorre é que o ato simulado não
corresponde aos propósitos efetivos dos agentes da simulação. Por isso diversos autores
vêem na simulação uma “divergência consciente entre a intenção prática e a causa típica
do negócio” 33 . O espanhol Federico de Castro y Bravo sustenta que a natureza
específica da simulação não é a de “uma declaração vazia de vontade”, mas a de uma
“declaração em desacordo com o objetivo proposto [pelas partes], ou, o que é o mesmo,
uma declaração com causa falsa”34 – destacamos.
Tanto na concepção causalista ora estudada, quanto na concepção restritiva
vista na seção anterior, o negócio simulado é visto como “não-verdadeiro”. Mas a partir
de perspectivas diferentes. Com efeito, na perspectiva causalista haverá simulação
mesmo que as partes não inventem nem escondam de ninguém um fato específico no
bojo de cada um dos negócios praticados. Aliás, somente nessa perspectiva causalista se
pode explicar por que há simulação no exemplo clássico das doações indiretas ou por

29
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Volume I, Rio de Janeiro: Forense,
2005, p.505. Para uma visão mais aprofundada do tema, vide CLAVERÍA GOSÁLBEZ, Luis Humberto.
La causa del contrato, Bolonha: Publicaciones Del Real Colegio de España, 1998.
30
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1977, pp.364-365.
31
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1977, p.516.
32
Cfr. ABREU, José. O negócio jurídico e sua teoria geral, São Paulo: Saraiva, 1988, pp.276-277.
33
BETTI, Emílio. Teoria Geral do Negócio Jurídico – Tomo II, tradução de Ricardo Rodrigues Gama,
Campinas: LZN, 2003, p.277.
34
CASTRO Y BRAVO, Federico de. El negocio jurídico, Madri: Civitas, 1985, reimpressão de 1997, p.
336.

14
interposta pessoa (a chamada simulação subjetiva). Se a doação de A para C é vedada
pelo ordenamento jurídico; se A doa um imóvel a B (cumprindo para tanto todas as
exigências formais e materiais) e após alguns dias B doa o mesmo imóvel a C
(cumprindo igualmente todas as exigências formais e materiais), por que se afirma que
há simulação nos termos do art.167, § 1.º, I do Código Civil?
Parte da doutrina aponta que esse dispositivo (anteriormente no art.102, I do
Código Civil) aplica-se inclusive aos casos em que o intermediário “aparece como parte
real”, que efetivamente recebe e transmite direitos 35 . Mas vistos e analisados
separadamente cada um dos dois contratos de doação, onde está a mentira ou a
falsidade? Não se descobrirá qualquer invenção nas cláusulas dos dois contratos;
tampouco cabe falar que as cláusulas do primeiro contrato omitiram ou esconderam que
haveria um segundo contrato, pois não faz parte da estrutura do contrato de doação
considerações sobre o destino ulterior do bem ou do direito doado. Portanto só podemos
falar a rigor em mentira ou falsidade se analisarmos globalmente toda a concatenação
de negócios (algo que a concepção restritiva de simulação reluta muito em aceitar). E a
mentira e a falsidade se descobrem muito mais facilmente se buscarmos – ao invés de
fatos específicos omitidos ou inventados – qual era a finalidade prática buscada pelos
agentes dos negócios concatenados (transmitir gratuitamente o imóvel de A para C) e a
compararmos com a estrutura formal colocada em prática pelas partes.
Já deve ter ficado claro que a visão causalista da simulação coloca essa figura
numa relação de muita proximidade com a construção doutrinária do negócio jurídico
indireto, pois ambos supõem anomalias na causa dos negócios. Na definição de um de
seus grandes cultores e divulgadores (o italiano Tulio Ascarelli), o negócio jurídico
indireto se daria “quando as partes recorrem no caso concreto a um negócio
determinado, para por meio dele alcançar consciente e consensualmente fins diversos
daqueles típicos da estrutura do negócio mesmo” 36 . Veja-se a semelhança com o
conceito causalista de simulação adotado por Heleno Tôrres: “presença de duas normas
jurídicas, postas pelas partes, com causas que se anulam no seu propósito negocial
(simulação relativa), ou mesmo a formulação de um negócio sem causa (simulação
absoluta)”37 - destacamos.
Tanto num caso como no outro as partes buscam uma finalidade prática
distinta da finalidade que se considera típica do negócio jurídico que aparece à luz do
dia. Os autores – principalmente os mais simpáticos à autonomia dogmática do negócio
jurídico indireto – costumam dizer que no negócio jurídico indireto as partes querem
realmente os negócios jurídicos, ao passo que na simulação essa vontade não existe38.
Mas não raro os exemplos de simulação dados por alguns autores são os mesmos que
outros autores dão para a figura do negócio jurídico indireto, como ocorre com a doação
35
LIMA, João Franzen de Lima. Curso de Direito Civil Brasileiro – Vol. I, Rio de Janeiro: Forense,
1977, p.315. Também José Abreu afirma, comentando o inciso I do art.102 do Código de 196, que “esta
interposição pode ser real quando a pessoa que assume a intermediação adquire os direitos para depois
transferi-los ao real destinatário” – op.cit., p.278.
36
Apud DE CASTRO Y BRAVO, Federico. op.cit., p.447.
37
TÔRRES, Heleno. Direito Tributário e Direito Privado – Autonomia Privada, Simulação, Elusão
Tributária, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.309.
38
Vide a comparação de Ferrara entre os negócios fiduciários (a categoria mais prestigiada dos negócios
indiretos) e os negócios simulados: “os negócios fiduciários são sérios e efetivam-se realmente entre as
partes com o fim de obter um efeito prático determinado. Os contratantes querem o negócio com todas as
suas consequências jurídicas, ainda que se sirvam dele para uma finalidade econômica diversa” –
FERRARA, Francesco. A simulação dos negócios jurídicos, Campinas: Red Livros, 1999, p.76. O
exemplo mais conhecido de negócio fiduciário, a venda para fins de garantia, é considerada na Espanha
como um negócio simulado – vide GODOI, Marciano S. Fraude a la ley..., pp.51-54.

15
indireta 39 . Por isso, uma vez concebida a simulação em termos de vício de causa,
compreende-se muito bem a afirmação de Betti segundo a qual “a distinção,
convencional e puramente dogmática, entre negócio simulado e negócio indireto, nada
tem de absoluto e de fixo, nem pode aspirar ao rigor científico de outras
classificações”40.

• Jurisprudência: negócio simulado como forma oca e sem qualquer


substância

Os tributaristas brasileiros em geral acreditam num conceito restritivo de


simulação (simulação como vício de vontade, como mentira quanto a fatos
determinados), não aceitando a visão causalista do fenômeno simulatório. Mas civilistas
brasileiros de prol argumentam que a causa pode não ter sido regulada expressamente
no Código Civil (de 1916 ou de 2002), mas sua relevância na análise das vicissitudes do
negócio jurídico sempre existiu e decorre do ordenamento como um todo41.
Quanto à jurisprudência, vem ganhando terreno tanto nos tribunais quanto no
Conselho de Contribuintes/CARF uma concepção de simulação que está longe de
corresponder à visão restritiva da simulação. É cada vez mais comum o contribuinte
escudar-se na teoria do negócio jurídico indireto para demonstrar a inexistência de ato
simulado, mas os julgadores aplicarem um conceito amplo de simulação, que leva em
conta as circunstâncias do caso concreto e indaga a substância real do negócio.
Até 1996, todos os julgados da CSRF adotavam a postura de que se a
incorporação às avessas se fez conforme os trâmites formais previstos no direito
privado, não havia simulação e a autoridade fiscal não poderia desconsiderá-la para
efeitos tributários. Mas num julgamento de 1996 (Acórdão CSRF/01-02.107) a CSRF
passou a lançar mão de um conceito mais amplo de simulação para coibir a manobra,
que alcança operações artificiosas que, para atrair a aplicação de uma norma tributária
benéfica (como a de compensação de prejuízos fiscais) que de outra forma não seria
aplicável, usam a estrutura formal de contratos e outros institutos jurídicos esvaziando-
os de qualquer substância jurídica real.

39
A doação indireta é exemplo de negócio jurídico indireto para José Abreu (op.cit., p.155), e exemplo de
simulação por interposição de pessoas para Humberto Theodoro Júnior (Comentários ao Novo Código
Civil – Volume III, Tomo I, Rio: Forense, 2006, p.483. Francesco Ferrara, que confiava plenamente
numa rígida separação entre negócio simulado e negócio indireto, considerava que a doação indireta, em
que intervém um “intermediário real”, poderia configurar uma fraude à lei (se burlasse normas cogentes)
mas nunca uma simulação – FERRARA, op.cit., pp.309-310. A mesma posição (doação indireta como
possível fraude à lei mas não como simulação) tem Pontes de Miranda – Tratado de Direito Privado,
Parte Geral - Tomo IV, Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p.387.
40
BETTI, Emílio. op.cit, pp.278-279. Segundo o autor, o único critério plausível para diferenciar o
negócio simulado do negócio indireto é a “diferente medida da discrepância entre causa e intuito:
discrepância, que na simulação toma o caráter de incompatibilidade, ao passo que no negócio indireto e
no fiduciário se apresenta como uma simples incongruência ou uma deficiente adequação” – op.cit.,
p.287.
41
Neste sentido, vide as posições de José Abreu (op.cit., p.134) e principalmente do civilista Antônio
Junqueira de Azevedo na sua obra Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, 4.ª edição atualizada
de acordo com o Novo Código Civil, São Paulo: Saraiva, 2002, pp.159-161 e em sua palestra sobre o
negócio jurídico indireto na Mesa de Debates do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) de 04
de maio de 2006 (disponível em www.ibdt.com.br/integra_04052006.htm). Na área tributária,
tradicionalmente adepta de um conceito bem restrito de simulação (deixando um amplo campo para o
negócio jurídico indireto), Heleno Tôrres adota um conceito de simulação assumidamente centrado na
causa dos negócios jurídicos e não nas noções de falsidade ou vício de vontade – TÔRRES, Heleno.
op.cit., pp.282 e seguintes.

16
Duas notas desse conceito amplo de simulação (que propomos chamar de
simulação-elusão) merecem destaque. Por um lado, a simulação passa a ser um conceito
mais fluido e dinâmico, que indaga o grau de “artificialidade” do planejamento
tributário (p.9 do voto do relator no Ac. CSRF/01-02.107) e, levando em conta os
“verdadeiros efeitos econômicos subjacentes”, não consente que o aplicador fique
“aprisionado aos princípios do direito privado no que diz respeito à definição dos efeitos
tributários dos atos e fatos jurídicos” (p.11 do voto do relator no Ac. CSRF/01-02.107).
Por outro lado, a jurisprudência mais recente das Câmaras do 1.º Conselho de
Contribuintes vem distinguindo essa simulação-elusão da tradicional simulação-
evasão-sonegação (prevista nos arts.71 a 73 da Lei 4.502/64) e não vem aplicando à
primeira as multas agravadas previstas para a segunda.
Essa bifurcação entre simulação-elusão e simulação-evasão é baseada em que
na simulação-elusão haveria “atendimento a todas as solicitações do Fisco e observância
da legislação societária, com a divulgação e registro nos órgãos públicos competentes”,
enquanto que na simulação-sonegação haveria “um evidente intuito de fraude” (neste
sentido, vide Acórdão 103-21.046 – 3.ª Câmara, j.16.10.2002, Relator o Conselheiro
Paschoal Raucci, o voto do Relator Conselheiro Luiz Martins Valero no Acórdão
Acórdão 107-07.596 – 7.ª Câmara, j.14.04.2004 e o voto do Relator Conselheiro Valmir
Sandri no Acórdão 101-94.771 – 1.ª Câmara, j.11.11.2004).
Na jurisprudência que as Câmaras do 1.º Conselho de Contribuintes vêm
desenvolvendo após aquele julgamento paradigmático da CSRF ocorrido em 1996,
nota-se uma clara influência desse novo conceito de simulação-elusão. Num julgamento
de 2002, a 3.ª Câmara (Acórdão 103-21.046) analisou diversos elementos de fato
registrados pelo agente autuante (término das atividades da incorporadora, venda de seu
imobilizado, entrega em comodato de suas instalações físicas) para concluir que a
incorporação in casu era mera “roupagem jurídica” e configurava “negócio jurídico
indireto” em que “os atos jurídicos caracterizam hipótese de simulação” – note-se que
numa visão causalista os conceitos de simulação e negócio indireto se misturam.
Mesmo nos casos em que os Conselheiros concluem que o contribuinte praticou elisão,
os acórdãos não manejam mais aquele conceito estrito de simulação e atentam para
elementos fáticos com conteúdo econômico, tais como a circunstância de que a
sociedade incorporadora, apesar de deficitária, era operativa, e a circunstância de que a
incorporada fazia parte do grupo societário da incorporadora (vide Acórdão 107-07.596,
j.14.04.2004, Redator-Designado Natanael Martins).
A jurisprudência atual do CC-MF abandonou a postura tradicional de
considerar que todo e qualquer planejamento tributário que não se configure como
simulação-evasão-sonegação (“fingimento na manifestação da vontade para realizar ato
jurídico de natureza diversa daquele que, de fato, se pretende concretizar”) qualifica-se
automaticamente como uma indefectível elisão.
Na prática, o CC-MF passou portanto a reconhecer três possibilidades (e não
duas como insiste a visão tradicional da doutrina) de qualificação do planejamento
tributário: elisão lícita e eficaz (Acórdão 107-07.596), simulação-dissimulação-elusão
(passível de desconsideração mesmo antes da LC 104 mas não de punição com multa
agravada – conclusão do Acórdão 103-21.046), e simulação-evasão-sonegação
(passível de desconsideração e de punição com multa agravada – conclusão do Acórdão
101-94.771).
No Poder Judiciário, o tema da simulação e da elisão tributária ainda não conta
com uma jurisprudência consolidada. Mas as manifestações iniciais dos tribunais
superiores têm sido no sentido de confirmar a visão ampla de simulação oriunda do CC-
MF.

17
Há um julgado do Tribunal Federal de Recursos ocorrido no ano de 1987 que
merece ser comentado (Apelação Cível 115.478, j.18.02.1987, Relator o Ministro
Américo Luz). Trata-se da conhecida operação pela qual uma empresa industrial com
faturamento acima do limite máximo de enquadramento no regime do lucro presumido
cria oito empresas atacadistas (de propriedade dos diretores da empresa industrial) e
passa a vender para essas atacadistas sua produção industrial, com o que consegue
reduzir o volume de seu faturamento para se encaixar no regime do lucro presumido,
reduzindo o volume de imposto de renda a pagar.
No CC-MF, a defesa do contribuinte se baseou na regularidade jurídica da
constituição e registro das empresas atacadistas e no fato de tudo ter sido feito “às
claras”. Ou seja, o contribuinte insistiu na lógica do conceito restritivo de simulação:
não tendo havido “mentira” nem “ocultação” de nenhum fato concreto pelo
contribuinte, o caso não seria de simulação e portanto a operação seria válida e eficaz,
independentemente das motivações, das circunstâncias, das finalidades práticas, enfim
do fato de que a “causa concreta” da operação nada tinha a ver com a “causa típica” do
contrato de constituição de sociedade. Essa tese do contribuinte foi aceita por metade
dos Conselheiros, e somente pelo voto de qualidade a operação foi considerada como
simulada, mas sem que tivesse havido imposição de multa agravada (portanto adotou-se
a qualificação da simulação-elusão e não da simulação evasão). Já no TFR a tese de que
a operação era simulada foi acatada à unanimidade, sendo que um dos julgadores
(Ministro Eduardo Ribeiro) foi além: “montou-se uma gigantesca fraude”.
E em que se baseou o TFR (que adotou a fundamentação da sentença) para
vislumbrar a simulação? Em diversos fatores que fazem parte do conceito amplo de
simulação comentado acima. Inicialmente, o Judiciário reconheceu que não havia
qualquer “irregularidade formal sob o aspecto jurídico” e que tudo foi feito às claras:
registro na Junta Comercial, contabilização etc. Mas “o envoltório jurídico”, “as
vestimentas, os paramentos jurídicos”, segundo o acórdão, não bastam para afastar a
simulação, pois as empresas “só existiram no papel”. A simulação foi descoberta
exatamente nas circunstâncias 42 e nas finalidades práticas que apontavam o caráter
extremamente artificioso da operação. O Poder Judiciário revolveu as causas concretas
do negócio e considerou a operação de extrema “anormalidade”. As pessoas jurídicas
foram consideradas “artificiosas” pois “criadas tão somente para dar lucro à autora
[empresa industrial]” e sem “finalidade própria”. Outro aspecto importante desse
acórdão é sua visão global do negócio, que lhe permitiu enxergar “simulacros de
pessoas jurídicas cujas atividades são pré-ordenadas mediante um plano concebido por
três sócios da autora”. Em suma: tanto pela sua conclusão (manutenção da autuação
fiscal) quanto pela sua fundamentação (comentada acima), esse precedente do TFR
aponta para uma compreensão ampla da simulação.
Em duas recentes decisões colegiadas, proferidas nas Apelações Cíveis
2004.71.10.003965-9/RS e 2002.04.01.014021-6/RS, a 1.ª e a 2.ª Turma do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região seguiram a mesma linha da nova tendência
jurisprudencial do Conselho de Contribuintes43.
Três notas merecem destaque no julgamento da Apelação Cível nº
2004.71.10.003965-9/RS, Relator Desembargador Federal Dirceu de Almeida Soares

42
As oito empresas atacadistas foram constituídas no mesmo dia pelos diretores da empresa industrial,
quatro delas tinham apenas um empregado e todas tinham o mesmo endereço da empresa industrial.
43
A presente análise foi retirada do estudo GODOI, Marciano Seabra de & FERRAZ, Andrea Karla.
Planejamento tributário e simulação: estudo e análise dos casos Rexnord e Josapar, Revista Direito GV,
n. 15, 2012, 359-379.

18
(2.ª Turma, DJ 06.09.2006). A primeira é que o acórdão fez a distinção tradicional entre
elisão fiscal (utilização de meios lícitos e diretos, anteriormente à ocorrência do fato
gerador, para evitar ou minimizar a tributação) e evasão fiscal (utilização de meios
ilícitos para reduzir a carga tributária, posteriormente à ocorrência do fato gerador), para
concluir que é admitida a elisão fiscal quando não houver simulação do contribuinte.
Mas o conceito de simulação adotado pelo acórdão foi um conceito amplo, que leva em
conta as condições econômicas e operacionais da operação como um todo.
A segunda nota é que o acórdão não tomou como sinônimas as expressões
simulação e evasão, na medida em que distinguiu a evasão ou fraude fiscal (utilização
de meios ilícitos para ocultar, enganar, iludir o fisco) da elisão fiscal com simulação
(utilização de meios lícitos, porém indiretos, anteriormente à ocorrência do fato
gerador, para burlar norma tributária, com vistas à redução ou à eliminação da
tributação por meio da realização de negócios jurídicos artificiais e desprovidos de
qualquer racionalidade negocial).
Um terceiro aspecto que merece ser considerado é que o acórdão não só
examinou a operação do ponto de vista econômico, para concluir que as circunstâncias
levavam à inviabilidade da operação de incorporação da empresa superavitária pela
empresa deficitária, como também examinou outros aspectos relacionados a questões
societárias, como a manutenção, após a incorporação, da razão social, do
estabelecimento, dos funcionários e dos membros do Conselho de Administração. Ou
seja, após a análise global da situação, e não apenas do ato de incorporação
isoladamente considerado, concluiu o Tribunal que restou demonstrado que, de fato, a
incorporada é que “absorveu” a deficitária/incorporadora, e não o contrário, “tendo-se
formalizado o inverso apenas a fim de serem aproveitados os prejuízos fiscais da
empresa deficitária, que não poderiam ter sido considerados caso tivesse sido ela a
incorporada, e não a incorporadora, restando evidenciada, portanto, a simulação.”
Já no julgamento da Apelação Cível 2002.04.01.014021-6/RS (Relatora
Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz Leiria – DJ 22.06.2005), a 1ª Turma do TRF
4ª Região buscou marcar a diferença entre a elisão fiscal eficaz e a ineficaz, valendo-se
da tese de que se configura elisão fiscal se o ato de evitar o recolhimento do tributo
ocorreu em momento anterior à ocorrência do fato gerador. Contudo, se já ocorrido o
fato gerador, a solução para o não-pagamento do tributo devido configura evasão fiscal.
A despeito de se utilizar de um aspecto insuficiente para fazer a distinção entre
elisão e evasão fiscal, qual seja o momento em que ocorrido o fato gerador do tributo,
chama a atenção o fato de que o acórdão não analisou somente a última operação do
negócio, mas todo o conjunto fático-probatório, inclusive o substrato econômico da
operação, para concluir que existiu uma incongruência entre a realidade dos fatos e a
argumentação ou a pretendida atitude das partes envolvidas.
No caso concreto da Apelação Cível 2002.04.01.014021-6/RS (empresa
Rexnord), houve diversas incorporações às avessas ao longo do tempo: uma mesma
empresa (Rexnord Correntes) formalmente “morria” (visto que era incorporada) e
materialmente “renascia” (pois a empresa incorporadora passava a adotar todas as
características operacionais e societárias da empresa incorporada) várias vezes. O
contribuinte se batia por uma aplicação formalista do conceito de simulação, alegando
que “não existem falhas formais ou legais nas operações realizadas”. Mas o acórdão
subscreveu a conclusão da sentença, segundo a qual há simulação se a operação “não
refletir a realidade econômica do negócio” ou se o negócio “for realizado com o único
objetivo de permitir o aproveitamento de prejuízos fiscais ou de balanços negativos para
a redução da carga tributária”.

19
Num exemplo de como o tribunal valorizou aspectos negociais e econômicos da
operação, foi ressaltado o fato de que, nas duas últimas incorporações, o pagamento
pela aquisição do controle das empresas que posteriormente viriam a ser incorporadoras
foi feito pela própria empresa incorporada, em momento anterior à incorporação. Numa
postura bastante realista e atenta à causa concreta da operação naquele caso em
particular, a sentença confirmada pelo acórdão observou que “no mundo dos negócios
as coisas não acontecem dessa maneira; claramente o que ocorreu foi a inversão de
papéis com o objetivo de lograr a situação fiscal mais favorável”.
A conclusão é que o TRF 4ª Região julgou a questão aplicando um conceito
ampliado de simulação, identificando a causa concreta das incorporações efetuadas
pelas empresas Josapar e Rexnord, comparando-a com a causa típica do contrato de
incorporação, para concluir – num tom claramente causalista – que “não é lícito que se
realizem cisões, incorporações ou fusões levadas não pelo conteúdo próprio desses
negócios, mas sim de modo diferente da forma que tais negócios normalmente se
realizam, mediante incorporação das empresas deficitárias pelas lucrativas, das
empresas de menor patrimônio pelas de maior patrimônio”. Restou clara, assim, a
adesão do tribunal a uma posição que se dispõe (independente do resultado a que se
chegue em cada caso) a avaliar a operação no seu todo, levando em conta as
circunstâncias que compõem a causa concreta do negócio, e dessa forma medir o quão
artificioso foi o caminho escolhido pelo contribuinte.
O contribuinte (empresa Josapar) que saiu perdedor na AC 2004.71.10.003965-
9/RS interpôs recurso especial dirigido ao Superior Tribunal de Justiça, alegando que o
acórdão recorrido violou o dispositivo do Código Civil que dispõe sobre os casos em
que se configura simulação. Sua alegação foi a de que houve violação ao “art.102 do
CC/1916, pois a operação de incorporação realizada foi lícita e não representou
simulação para evasão de tributos”.
De fato, caso se utilize o conceito restritivo e tradicional de simulação, que se
recusa a ver determinado ato jurídico no contexto amplo de toda uma estrutura negocial
e econômica posta em prática em busca de certa finalidade concreta, o acórdão do TRF
da 4.ª Região pode ser visto como um caso de violação aos dispositivos do Código Civil
que regulam o instituto jurídico da simulação.
Por isso mesmo o veredicto do STJ nesse processo específico era muito esperado
tanto pelo fisco quanto pelos contribuintes em geral, pois, conforme o art.105 da
Constituição Federal de 1988, cabe exatamente ao STJ a função de uniformizar a
interpretação da legislação federal – no caso concreto, a legislação que dispõe sobre o
conceito de simulação.
Do ponto de vista estritamente processual, a 2.ª Turma do STJ se recusou a
entrar no mérito da ocorrência de violação do acórdão do TRF ao art.102 do Código
Civil, alegando que para entrar nesse mérito teria que proceder à “análise de todo o
arcabouço fático apreciado pelo Tribunal de origem e adotado no acórdão recorrido, o
que é inviável em Recurso Especial, nos termos da Súmula 7/STJ”. A nosso ver, essa
razão processual dada para o não-conhecimento do recurso não procede, pois o
contribuinte não pedia em seu recurso especial que o STJ revisse algum aspecto
estritamente fático quanto às provas produzidas e valoradas nas instâncias inferiores. O
que o contribuinte requeria é que o STJ decidisse se estava ou não acorde com o art.102
do CC a maneira pela qual o TRF interpretou e aplicou o instituto da simulação.
Portanto, é manifestamente errônea a assertiva do Relator do acórdão do STJ segundo a
qual “não há controvérsia quanto à legislação federal”. Havia claramente uma
controvérsia de mérito: tratava-se de duas posições antagônicas (a do recorrente e a do
acórdão recorrido) sobre o conteúdo do conceito jurídico de simulação.

20
Se do ponto de vista processual o STJ se recusou indevidamente a enfrentar o
mérito da questão, o fato é que, de um ponto de vista pragmático, o acórdão do STJ
pareceu apoiar a postura interpretativa do TRF da 4.ª Região. O seguinte parágrafo,
contido no voto do Relator Ministro Herman Benjamin, indica que implicitamente o
STJ concordou com a valoração jurídica efetuada pelo TRF da 4.ª Região, ou seja, com
a maneira causalista pela qual o acórdão recorrido concebeu e aplicou ao caso concreto
o instituto da simulação:

Assim, para chegar à conclusão de que houve simulação, o Tribunal de


origem apreciou cuidadosa e aprofundadamente os balanços e
demonstrativos de Supremo e Suprarroz [empresas envolvidas na
incorporação], a configuração societária superveniente, a composição do
conselho de administração, as operações comerciais realizadas pela
empresa resultante da incorporação. Concluiu, peremptoriamente, pela
“inviabilidade econômica da operação” simulada (fl.1.133, verso).

A empresa recorrente defendia em seu recurso especial que o conceito de


simulação agasalhado no Código Civil só permite avaliar isoladamente cada ato
jurídico, e não consente com que se leve em consideração aspectos como a situação dos
balanços contábeis, a configuração societária superveniente à incorporação, a mudança
na composição do Conselho de Administração etc.. Ora, se o TRF da 4.ª Região decidiu
com base exatamente nesses aspectos, e o STJ considerou que ocorreu no acórdão
recorrido uma apreciação cuidadosa e aprofundada de determinados fatos que
apontavam a “inviabilidade econômica da operação”, então houve implicitamente a
emissão de um juízo por parte do STJ segundo o qual o conceito de simulação deve sim
ser sensível a tais ordens de fatos e circunstâncias, ao contrário do que sustentava a tese
de mérito do recurso especial do contribuinte.
Relembre-se que o que o contribuinte sustentava é que a simulação (definida
como divergência entre a vontade interna e a vontade manifesta) só ocorre se as partes
de um negócio jurídico enganam, ocultam, iludem ou dificultam a autuação fiscal, tal
como se dá nos casos clássicos de simulação presentes na doutrina tradicional: compra e
venda em que na verdade não há pagamento do preço (simulação para fugir ao imposto
sobre doações), compra e venda com preço declarado inferior ao efetivamente pago
(simulação para fugir ao imposto de renda sobre o ganho de capital), contrato de
prestação de serviços sem que tenha havido prestação efetiva nem pagamento do preço
(simulação para lastrear dedução de despesas na base de cálculo do imposto de renda).
Mas o acórdão do STJ afirmou que “não se trata de discutir a regularidade
formal da incorporação, como faz a recorrente”, e reconheceu que o TRF levou em
conta diversos aspectos contábeis, operacionais e societários para afirmar que foi a
empresa incorporada que “de fato” incorporou a pretensa empresa incorporadora. Ao
invés de levar em conta os topoi do conceito tradicional de simulação, tais como
falsidade, ocultação e divergência entre vontade real e declarada, o STJ preferiu
relacionar o tema da simulação com a constatação do artificialismo da concatenação
negocial e com a “inviabilidade econômica da operação”. Ao decidir, nestes termos,
pela manutenção do acórdão proferido pelo Tribunal de origem, o STJ corroborou o
conceito causalista de simulação adotado pelo TRF da 4ª Região, considerando como
válida a solução interpretativa e aplicativa de buscar a verdadeira causa concreta de
atos e negócios jurídicos artificiosos postos em prática pelos contribuintes e terceiros, e
verificar suas possíveis incompatibilidades com a causa típica em função da qual o
ordenamento concebeu e regulou referidos atos e negócios jurídicos.

21
Em suma: atualmente a jurisprudência brasileira (administrativa e judicial)
combate os planejamentos tributários tidos por abusivos com a aplicação de um
conceito amplo e causalista de simulação, conceito este que exerce, do ponto de vista
pragmático, o papel de norma geral antielusão do ordenamento. Portanto, ainda que os
procedimentos para aplicação do art.116, parágrafo único do CTN não tenham sido até
o presente momento definidos pelo legislador, os objetivos que esse mesmo legislador
perseguia com a criação de referida norma são atualmente alcançados, ainda que por
uma via distinta.

1.5. Quais conceitos da Teoria do Direito Tributário têm sido utilizados nos
estudos do planejamento tributário?
1.6. O que significa a expressão economia de impostos?
1.7. O que significa a expressão engenharia tributária?
1.8. O que significam as expressões elisão fiscal, elusão fiscal, evasão fiscal e fraude
fiscal?
1.9. O que significa a expressão planejamento tributário?
1.10. Qual o limite existente entre o planejamento tributário e a fraude fiscal?

São muito antigas as tentativas dos estudiosos de classificar as diversas reações


dos contribuintes que resistem a se submeter ao pagamento dos tributos. Para a Ciência
das Finanças, o mais importante consiste em saber se o contribuinte irá modificar ou
não sua atuação econômica real para evitar o pagamento do tributo. Se o contribuinte,
por exemplo, modifica seus hábitos de consumo ou substitui suas opções de poupança e
investimento para impedir a incidência de um tributo mais gravoso, dá-se a remoção
desse tributo. Ao contrário, se o contribuinte não muda seu comportamento econômico
mas simplesmente oculta do fisco determinadas operações para impedir a apuração da
incidência tributária e, consequentemente, a cobrança do tributo, ocorre o fenômeno que
a Ciência das Finanças reputa de evasão tributária44.
Portanto, na perspectiva da Ciência das Finanças o decisivo é se o contribuinte que
evitou o pagamento do tributo mudou ou não seu comportamento econômico. O
enfoque do direito tributário é um tanto distinto. Trata-se de saber se a conduta do
contribuinte que buscou evitar o pagamento do tributo é válida/lícita (e, portanto, deve
ser aceita pelas autoridades administrativas e pelos tribunais) ou inválida/ilícita (e,
portanto, não atingirá seu objetivo pois será frustrada pelas autoridades administrativas
e pelos tribunais). Contudo, a aparente simplicidade deste critério válido x inválido é
desmentida pela enorme quantidade de termos e idéias distintos e desencontrados que os
juristas, legisladores e juízes utilizam para classificar os tipos de reações dos
contribuintes que querem evitar o pagamento do tributo.
Enfrentando a questão na perspectiva do direito tributário 45 , comecemos pelo
ponto pacífico e universalmente aceito de que o contribuinte que pratica o fato gerador

44
Cfr. EINAUDI, Luigi. Principios de Hacienda Pública, Cidade do México: Aguilar, 1948, pp.260-264;
JARACH, Dino. Finanzas Públicas y Derecho Tributario, 2.ª edição, Buenos Aires: Abeledo-Perrot,
1996, pp. 354-355; SOUSA FRANCO, Antonio L. Finanças Públicas e Direito Financiero, 4.ª edição,
Coimbra: Almedina, 1997, pp.211-212.
45
A ciência das finanças e a economia não dão tanta ênfase ao critério da elisão ser ou não lícita. Mesmo
sendo lícita, a elisão provoca distorções nos mecanismos de concorrência e pode gerar importantes
mudanças no mercado e na distribuição do ônus tributário entre os diversos agentes econômicos. Cfr.
BROOKS, Michael & HEAD, John. “Tax Avoidance: in Economics, Law and Public Choice”, In: COOPER,
Graeme (Dir.), Tax Avoidance and the Rule of Law, Amsterdã: IBFD, 1997, pp.54-55.

22
de um tributo e se furta ao seu pagamento comete um ato de evasão tributária.
Tampouco há dúvida de que a evasão tributária, quando acompanhada de ocultações,
falsificações e outras figuras dolosas, configura sonegação/fraude e por isso é castigada
pelo direito penal de diversos países46.
No pólo oposto ao da evasão está o campo que no Brasil chamamos
tradicionalmente de elisão tributária. Nesse terreno estão as condutas dos contribuintes
que logram evitar a incidência da norma tributária e, portanto, colocam-se licitamente
fora do alcance da obrigação tributária. A esse fenômeno universal dá-se o nome de
“economía de opción” na Espanha, de “tax planning” nos Estados Unidos, “risparmio
d´imposta” na Itália e “optimisation fiscale” na França47.
Algumas condutas estão inegavelmente no campo da economia lícita de tributos: o
contribuinte que deixa de investir suas economias na bolsa de valores e passa a investir
no mercado imobiliário para afastar a incidência de um novo imposto sobre operações
financeiras; ou o contribuinte que deixa de consumir determinado produto em virtude de
um aumento em sua carga tributária 48 . Tampouco levantam dúvidas as condutas de
economia tributária que os contribuintes adotam como resposta a uma indução
promovida pela própria legislação tributária. Com efeito, a partir do século XX, passou
a ser muito comum a utilização do tributo – muitas vezes de forma exagerada e com
graves efeitos colaterais – como instrumento para implementação de variados objetivos
industriais, políticos ou sociais (extrafiscalidade).
Há, contudo, outro tipo de conduta tomada pelos contribuintes que o direito
positivo da maioria dos países considera não estar contido no campo da elisão tributária.
Trata-se da conduta em que o contribuinte modifica e distorce artificiosamente as
formas jurídicas de sua atuação, com o objetivo de se colocar fora do alcance de uma
norma tributária ou com o objetivo de se colocar dentro do alcance de um regime
tributário mais benéfico criado pela legislação para atingir outras situações. Para
distinguir e combater esse tipo de conduta, por alguns chamada de engenharia
tributária, nos países da família romano-germânica o legislador tributário lança mão de
institutos seculares como a fraude à lei (Alemanha, Holanda, Espanha) ou o abuso do
direito (França). Já nos países anglo-saxões, são geralmente os tribunais que
desenvolvem técnicas para conter aquelas práticas. Esse fenômeno, que não se confunde
com a evasão, é conhecido como “tax avoidance” nos Estados Unidos e Grã-Bretanha,
“elusione fiscale” na Itália, “elusión tributaria” na Espanha.
A maioria das legislações e dos juristas dos países ocidentais comunga da
consciência de que, a partir de um certo ponto, o planejamento tributário ou a elisão
fiscal, ainda que não configurem evasão/fraude, já não se mostram mais capazes de
atingir seus objetivos. Por isso esses países dividem os comportamentos dos
contribuintes que resistem aos tributos em três campos: elisão/economia de tributos
(lícita, eficaz), evasão tributária (ilícita e sujeita a multas e sanções penais) e elusão
tributária (ineficaz ou incapaz de atingir sua finalidade de economia fiscal) 49 . As
condutas consideradas elusivas são identificadas e combatidas por diversos países do

46
Cfr. IFA. Évasion Fiscale – Fraude Fiscale, Cahiers de Droit Fiscal International, Vol.LXVIIIa –
premier sujet, Haia: Kluwer, 1983.
47
Cfr. DI PIETRO, Adriano (Dir.), L’elusione fiscale nell’esperienza europea, Milão: Giuffrè, 1999.
48
É interessante lembrar que até o final do século XVIII, em muitas regiões da Europa, a legislação
obrigava as famílias a consumir determinada quantidade de sal, e por isso um aumento nos impostos
sobre esse produto não poderia ser evitado com a mudança dos hábitos de consumo dos contribuintes -
cfr. EINAUDI, op.cit., pp.263-264.
49
Vide ZIMMER, Frederik. “General Report”, IFA, Form and substance in tax law, Cahiers de Droit
Fiscal International, Vol.LXXXVIIa, Haia: Kluwer, 2002, pp. 21-67.

23
mundo mediante doutrinas criadas na prática dos tribunais (nos países anglo-saxões), ou
mediante a aplicação de institutos seculares do direito civil (abuso do direito, fraude à
lei) que passam a ser incorporados por normais gerais antiabuso ou antielusão
promulgadas pelo Poder Legislativo.
No Brasil, a maioria dos tributaristas atuais ainda se recusa a admitir a existência
de um terceiro campo distinto da elisão e da evasão tributária. Por isso mesmo é que, ao
contrário dos demais países, não existe um termo ou uma expressão consagrada na
doutrina brasileira para designar os fenômenos que vimos chamando neste estudo de
elusão tributária50. Em estudo publicado em 2001, afirmamos que “talvez seja chegada a
hora de passar a diferenciar elisão tributária de elusão tributária (…) um tipo de
planejamento que não é nem propriamente simulado nem propriamente elisivo.” 51 .
Heleno TÔRRES publicou recentemente uma obra52 que utiliza exatamente a expressão
elusão tributária para designar o conjunto de atos que se diferenciam tanto da elisão
quanto da evasão. Apesar de não concordarmos integralmente com o conceito que esse
autor dá aos atos de elusão53, considero correta a atitude de classificar as atuações dos
contribuintes em três campos (e não em dois como ainda é usual na doutrina brasileira)
e reservar o termo elusão para nomear o conjunto das condutas pelas quais o
contribuinte procura evitar a incidência da norma tributária mediante formalizações
jurídicas artificiosas e distorcidas. Afinal de contas, elusão, ainda que não
dicionarizado, é termo que deriva do verbo eludir, cujo sentido é bem conhecido e se
ajusta à perfeição ao comportamento que queremos estudar no presente artigo: “evitar
algo de modo astucioso, com destreza ou com artifício”54.
A maioria dos autores brasileiros só reconhece e nomeia dois campos de atuação
do contribuinte: o da elisão (lícita) e o da evasão (ilícita)55. Se o contribuinte não pratica
simulação (no sentido de uma declaração de vontade total ou parcialmente falsa),
falsificação documental ou outras fraudes do gênero (que caracterizam evasão), sua
conduta é considerada inatacável, mesmo que o contribuinte tenha adotado formas
jurídicas manifestamente artificiosas para atingir resultados práticos completamente
distanciados daqueles para os quais as tais formas jurídicas foram criadas pelo direito
positivo.
Para essa posição ainda majoritária da doutrina brasileira, os princípios da
“reserva absoluta de lei em sentido formal”, “tipicidade fechada” e da proibição de
tributar mediante analogia tornariam inconstitucional qualquer combate a operações de
planejamento tributário mediante a aplicação de institutos como o abuso do direito ou a

50
Na tradução de um texto de um autor suíço (Raoul Lenz) sobre o controle dos limites da elisão no
sistema suíço, BRANDÃO MACHADO propôs a utilização no Brasil da expressão “elusão fiscal”. Princípios
tributários no direito brasileiro e comparado, Rio: Forense, 1988, p.586.
51
GODOI. Marciano Seabra de. “A figura da fraude à lei tributária prevista no parágrafo único do art.116
do CTN”, Revista Dialética de Direito Tributário, n.º 68, 2001, p.110 (nota 23).
52
TÔRRES, Heleno. Direito Tributário e Direito Privado. Autonomia Privada, Simulação, Elusão
Tributária, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
53
O conceito de elusão do autor é o seguinte: "elusão tributária consiste em [o contribuinte] usar de
negócios jurídicos atípicos ou indiretos desprovidos de 'causa' ou organizados como simulação ou fraude
à lei, com a finalidade de evitar a incidência de norma tributária impositiva, enquadrar-se em regime
fiscalmente mais favorável ou obter alguma vantagem fiscal específica" – op.cit., p.189.
54
Cfr. HOUAISS, Antonio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio:
Objetiva, 2001, p.1.113. O exemplo escolhido por esse dicionário para ilustrar o uso do vocábulo foi
exatamente eludir a lei.
55
Nesse sentido, BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário, São Paulo: Lejus,
1998, p.130.

24
fraude à lei 56 . Nem mesmo por força de uma emenda constitucional essa forma de
combater determinados planejamentos tributários poderia ser adotada no direito
brasileiro57. Ou seja, uma prática que há décadas se desenvolve na grande maioria dos
países de democracia liberal-capitalista 58 somente poderia ser introduzida no Brasil
mediante uma ruptura institucional ou um golpe de Estado que instituísse uma nova
ordem constitucional em substituição ao atual Estado Democrático de Direito.
Constitui um formalismo exacerbado e uma visão libertarista/ultraliberal essa
postura que não aceita nem mesmo discutir as bases ou os termos mediante os quais
figuras como a fraude à lei e o abuso do direito podem incorporar-se ao direito tributário
brasileiro, com o objetivo de impor limites a determinadas operações de planejamento
tributário. O ataque ou a defesa de figuras como o abuso do direito e a fraude à lei
tributária não são regidos por axiomas lógicos ou por dados ou evidências
empiricamente irrefutáveis. Se defendem ou se atacam essas figuras a partir de certos
valores, e por trás dessa postura radicalmente contra as normas gerais antiabuso estão
algumas premissas ideológicas: o tributo visto como uma agressão ou um castigo que se
aceita mas não se justifica; a segurança jurídica como um valor absoluto; a aplicação
mecânica e não-valorativa da lei como um mito sagrado; o individualismo e a
autonomia da vontade sobrevalorizados e hipertrofiados, como se vivêssemos em pleno
século XIX.
É muito importante lembrar que os autores que podemos chamar clássicos, que
iniciaram a construção científica do direito tributário no Brasil, encaravam com muito
mais naturalidade a aplicação de técnicas como a fraude à lei tributária. E muitos desses
autores defenderam especificamente a contenção da elusão tributária mediante a técnica
da fraude à lei tributária ou do abuso de formas. Autores como Rubens Gomes de
SOUSA59, Amílcar de Araújo FALCÃO60, Ruy Barbosa NOGUEIRA61 e Geraldo ATALIBA62
sustentaram pontos de vista muito mais equilibrados sobre os limites do planejamento
tributário.
Ademais, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal dos anos 50 e 60,
diversos Ministros reconhecidamente de sólida formação acadêmica se manifestaram
expressamente a favor da aplicação do secular instituto da fraude à lei no direito
tributário brasileiro. Luiz Gallotti, Orosimbo Nonato e Nelson Hungria, dentre outros,
analisaram um planejamento tributário difundido no Brasil no final da década de 40
envolvendo seguros de vida e chegaram à conclusão (contestada por outros Ministros)

56
O autor que expõe com maior clareza e rigor técnico essa corrente doutrinária é Alberto Xavier. Vide
XAVIER, Alberto. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva, São Paulo: Dialética,
2001.
57
Essa foi a conclusão da maioria dos doutrinadores que participaram de um Congresso de Direito
Tributário em São Paulo no ano de 2000, cujas conclusões estão refletidas na seguinte publicação:
MARTINS, Ives Gandra da Silva (Dir.). Direitos Fundamentais do Contribuinte, São Paulo: Centro de
Extensão Universitária - Revista dos Tribunais, 2000.
58
Para comprovar isso, vide ZIMMER, op.cit., passim.
59
SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária, 5.ª edição, São Paulo: Resenha
Tributária, 1975, pp.75-82.
60
FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução ao Direito Tributário, 4.ª edição, Rio: Forense, 1993 (1.ª
edição de 1959), pp. 61 e ss. e Fato Gerador da Obrigação Tributária, 6.ª edição, Rio: Forense, 1995
(1.ª edição de 1964), pp.32 e ss.
61
NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da Interpretação e da Aplicação das Leis Tributárias, 2.ª edição, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1965, pp.65-66 e Curso de Direito Tributário, 12.ª edição, 1994, p.93.
62
ATALIBA, Geraldo. Apontamentos de Ciência das Finanças, Direito Financeiro e Tributário, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1969, p.295, e Interpretação no direito tributário, São Paulo: Saraiva –
EDUC, 1975, p.193.

25
de que a operação praticada constituía uma fraude à lei tributária e deveria ser frustrada
pelo Poder Judiciário63.

2. O Direito ao planejamento tributário

2.1. O planejamento tributário tem fundamento jurídico?


2.2. Existe, ou não existe, relação entre o direito ao planejamento tributário e a
garantia constitucional de livre iniciativa econômica?
2.3. O princípio da legalidade tributária teria alguma implicação no planejamento
tributário?
2.6. Nosso ordenamento jurídico alberga o princípio da tipicidade tributária?
2.7. Nosso ordenamento jurídico admite a tributação por analogia?
2.8. Evitar o planejamento tributário é um problema do legislador, ou do aplicador
da lei tributária?

É tênue e quase sempre controversa a linha que separa uma conduta de simples
elisão de uma conduta de elusão (no sentido de planejamento tributário abusivo). Essa
zona de penumbra existe porque há dois princípios constitucionais de alta hierarquia
que tendem a indicar soluções opostas para o intérprete/aplicador do direito tributário.
Por um lado, em todos os Estados de Direito ocidentais contemporâneos64 aceita-se sem
maior polêmica que, dados os princípios da legalidade e da livre iniciativa, os
contribuintes não têm o dever de configurar seus negócios e sua vida econômica sob as
formas jurídicas que provoquem maior incidência tributária. Ou seja, os agentes
econômicos são livres para efetuar o planejamento fiscal, cujo objetivo é encontrar
formas de fazer negócio que possam provocar o menor ônus tributário possível.65
Inclusive nos Estados Unidos, onde os tribunais interpretam e aplicam o direito
tributário de uma forma que privilegia a substância econômica dos atos dos
contribuintes em detrimento da forma jurídica das operações, a Suprema Corte
reconhece aos contribuintes o direito de escolher as vias menos onerosas do ponto de
vista fiscal. Já em 1935, no famoso caso Helvering v. Gregory, a Corte afirmou que
“não se pode duvidar do direito do contribuinte diminuir a carga tributária que de outro
modo lhe seria exigida, ou eliminá-la completamente através de meios legais”66.
Contudo, há que impor limites a esse princípio de liberdade de eleição e
configuração das formas jurídicas menos onerosas do ponto de vista fiscal. Se não se
impõem limites a esse princípio, a consequência é a completa frustração do princípio da

63
Vide GODOI, Marciano Seabra de. “A figura da fraude à lei tributária na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal”, Revista Dialética de Direito Tributário, n. 79, pp.75-85 e, defendendo posição
contrária, TROIANELLI, Gabriel Lacerda. “A fraude à lei tributária”, Revista Dialética de Direito
Tributário, n. 84, pp.68-74.
64
Pasquale PISTONE ressalta que também na Rússia e em outros países do antigo bloco soviético esse
princípio começa a se afirmar na legislação e na jurisprudência – cfr. PISTONE, Pasquale. Abuso del
Diritto ed elusione fiscale, Pádua: CEDAM, 1995, p.6.
65
Klaus Vogel cita uma série de precedentes judiciais de diversos países afirmando tal princípio - VOGEL,
Klaus. Klaus Vogel on Double Taxation Conventions, 3.ª edição, Haia-Londres-Boston: Kluwer Law
International, 1997, Art.1 n.º 77.
66
Cfr. GUSTAFSON, Charles H. “The Politics and Practicalities of Checking Tax Avoidance in the United
States”, In: COOPER, Graeme S.(Dir.), Tax Avoidance and the Rule of Law, Amsterdã: IBFD, 1997,
p.349.

26
igualdade entre os contribuintes que possuem a mesma capacidade contributiva. O
ponderado jurista alemão Klaus VOGEL afirma com total clareza que “o planejamento
tributário pode alcançar um ponto acima do qual não pode ser tolerado por um sistema
jurídico que pretende conformar-se a princípios de justiça” 67.

A tipicidade tributária é mais do que a legalidade genérica

A expressão “tipicidade tributária” não consta expressamente de textos legais no


direito brasileiro. Mas tanto a doutrina68 quanto a jurisprudência recorrem ao conceito
de tipicidade tributária em seus raciocínios argumentativos.
A legalidade tributária é a exigência de que os tributos sejam criados por lei, no
sentido de um ato emanado do Poder Legislativo. Já o conceito de tipicidade tributária
remete ao sentido em que se há de interpretar o verbo “estabelecer” contido no art.150, I
da Constituição, que veda aos entes federativos “exigir ou aumentar tributo sem lei que
o estabeleça” – destacamos.
A lei que estabelece a exigência ou o aumento do tributo não pode ser lacônica
nem genérica. O art.97 do Código Tributário Nacional, detalhando ou desdobrando a
norma do referido art.150, I da Constituição, estabelece que a própria lei (e não um ato
infralegal que atue por delegação do legislador) deve definir o sujeito passivo e o fato
gerador do tributo, bem como fixar sua forma de cálculo (geralmente estabelecendo
bases de cálculo e alíquotas). Vale dizer, os principais elementos da obrigação tributária
devem ser definidos pela própria lei. O legislador, portanto, não pode simplesmente
autorizar a cobrança de um tributo e deixar que seus elementos principais sejam fixados
por ato do Poder Executivo.
Mas a tipicidade ainda significa algo mais do que isso. Significa que a lei deve
definir os principais aspectos do tributo com um alto grau de precisão e concreção, sem
recorrer a conceitos vagos ou indeterminados. A jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal reconhece essa exigência de precisão e concreção na definição dos elementos
principais do tributo como um aspecto particular do princípio da legalidade tributária.
Uma consequência da tipicidade tributária (ou da legalidade estrita que vigora
no âmbito tributário) é a impossibilidade de aplicar a analogia para exigir tributo não
previsto em lei (art.108, § 1.º do CTN). Outra consequência é a ausência de
discricionariedade administrativa no âmbito da aplicação das normas que definem as
obrigações tributárias, daí o CTN definir que o tributo será cobrado “mediante atividade
administrativa plenamente vinculada” – destacamos.
Em suma, a legalidade tributária (art.150, I da Constituição), qualificada pela
tipicidade, tem uma conotação muito mais rígida e exigente do que a legalidade
genérica estabelecida no art.5.º, II da Constituição (“ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”). Exaustividade, precisão,
delimitação conceitual e impossibilidade de delegação a atos infralegais são notas da
legalidade tributária-tipicidade, mas não da legalidade genérica do art.5.º, II da
Constituição.

A tipicidade tributária é menos do que o normativismo conceitualista supõe


ou deseja

67
VOGEL, op.cit., Art.1 n.º 77.
68
Cfr. XAVIER, Alberto. Tipicidad y legalidad en el Derecho Tributario, Revista de Derecho
Financiero y Hacienda Pública, n.º 120, 1975, pp.1257-1309; DERZI, Misabel de Abreu Machado.
Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.

27
Alguns doutrinadores têm uma concepção da tipicidade tributária que vai muito
além da descrição oferecida na seção anterior. Para essa concepção, a tipicidade
tributária exige que a lei esgote totalmente qualquer espécie de valoração no que diz
respeito à interpretação e aplicação da norma de incidência tributária, devendo os
órgãos aplicadores se limitarem a uma “pura subsunção lógica dos fatos na norma”69.
Alberto Xavier afirma que no direito tributário continuaria imperando a visão
dos albores do iluminismo racionalista segundo a qual as leis devem ser de tal modo
claras, unívocas e rigorosamente elaboradas, que os órgãos de sua aplicação devem se
limitar a funcionar “como meros autômatos”, restringindo-se a uma rigorosa atividade
lógico-subsuntiva70. Por isso o autor agrega ao termo tipicidade o adjetivo (que poderia
em princípio parecer redundante) fechada, no sentido de que a lei deve conter em si
“todos os elementos para a valoração dos fatos e produção dos efeitos, sem carecer de
qualquer recurso a elementos estranhos [à lei] e sem tolerar qualquer valoração que se
substitua ou acrescente à contida no tipo legal”71 - destacamos.
Não há dúvida de que o intérprete/aplicador não pode substituir a valoração contida na
lei, mas isso já está claro no próprio conceito de tipicidade. O que é problemático na
tese do autor é pensar que a atividade de interpretação e aplicação do direito tributário
substantivo possa realmente ocorrer por simples subsunção lógica, como se em todos os
casos houvesse uma e apenas uma solução, e que essa solução fosse exatamente a que
se extraiu logicamente da lei, sem que o intérprete tivesse que recorrer a nenhum
elemento estranho à própria lei.
Em outra passagem, Xavier afirma que segundo a tipicidade “a decisão do caso
concreto se obtém assim por mera dedução da própria lei, limitando-se o órgão de
aplicação a subsumir o fato na norma, independentemente de qualquer livre valoração
pessoal” - destacamos72. Não há dúvida de que a atividade interpretativa e aplicativa do
direito não é livre, nem pessoal, mesmo que não se esteja no campo da tipicidade. O
problema é supor que a realidade concreta possa ser qualificada pelo
intérprete/aplicador “por mera dedução” lógica da própria lei 73 . O normativismo
conceitualista acredita que, após interpretar corretamente a lei (descobrindo seu
verdadeiro sentido), o intérprete obtém algo como um metro articulado74; basta colocar
este metro articulado sobre os fatos concretos para, medindo-os segundo os parâmetros
legais, operar a subsunção lógica, cujo resultado acredita-se ser a fiel expressão da
vontade da lei para aquele caso concreto.
O direito tributário como um reino frio – mas acima de tudo seguro – da lógica
racional-subsuntiva também é pressuposto no modelo de interpretação e aplicação de

69
XAVIER, op.cit., p.1.280.
70
XAVIER, op.cit., p.1.279-1.280
71
XAVIER, op.cit., p.1.304.
72
XAVIER, op.cit., p.1.278.
73
No final do seu texto, Alberto Xavier parece abrandar o grau de conceitualismo de suas formulações,
admitindo que “não existem conceitos absoluta e rigorosamente determinados” e que “a problemática da
indeterminação não é tanto de natureza como de grau. Após perguntar-se o que seria para o direito
tributário um conceito indeterminado, a resposta dada – que me parece exata – é a de que “a
indeterminação conceitual relevante para o Direito dos Impostos é precisamente aquela que afeta a
segurança jurídica, a mencionada susceptibilidade de previsão objetiva [por parte dos contribuintes acerca
de seus direitos e deveres tributários]”. Mas logo após essa resposta o texto volta a impregnar-se de
exagerado conceitualismo ao fornecer a seguinte caracterização do “conceito determinado”: aquele “no
qual o órgão de aplicação do direito deve descobrir imediata, direta e exclusivamente o conteúdo que,
deste modo, é lógica e conceitualmente unívoco” – op.cit., p. 1.308
74
Cfr. LARENZ, Karl. op.cit., p.201.

28
Alfredo Augusto Becker, que em sua Teoria Geral afirma que “para o juiz a lei é um
fato essencialmente imutável (salvo pelo advento de uma nova lei) e que só admite uma
única interpretação” 75, que “a lei impõe a todos e particularmente ao juiz um modo
determinado e único de pensar e é precisamente o modo indicado pelo legislador”76.
Para constatar o equívoco de tal modelo normativista-conceitualista não é
necessário tomar conhecimento da vasta e variada gama de obras jurídicas, produzidas
nos últimos 100 anos 77 , que demonstraram que o sentido da norma não é um dado
anterior à sua interpretação e sim um produto desta; que a interpretação da norma não é
tarefa prévia (lógica ou cronologicamente) à sua aplicação aos fatos, pois a aplicação da
norma aos fatos e condutas é um aspecto essencial e imbricado logicamente na
interpretação da própria norma78.

• Qual o sentido atual do normativismo conceitualista?

O modelo normativista e conceitualista da chamada “tipicidade fechada” não


tem o menor poder explicativo sobre a realidade atual do direito tributário, cuja
legislação é rica em cláusulas gerais e tipos. Então por que esse modelo continua sendo
reproduzido em larga escala na doutrina e na jurisprudência como o mais apto para
refletir e justificar a realidade da interpretação e da aplicação do direito tributário? Em
minha opinião, a reprodução desse modelo deve ser vista como uma atitude valorativa
da realidade. O modelo não tem mais qualquer apelo explicativo ou metodológico em
relação ao conhecimento da realidade jurídico-tributária circundante, mas continua
influenciando valorativamente essa mesma realidade. Essa influência valorativa deixa-
se notar particularmente no âmbito do debate sobre os limites do planejamento
tributário, como se verá a seguir.

• O porquê da tipicidade tributária

O princípio da legalidade tributária, determinando que os tributos sejam


estabelecidos por atos do Poder Legislativo, tem uma clara relação com o princípio
democrático. Trata-se de fornecer legitimidade ao dever de pagar tributos, garantindo-se
sua autonomia no sentido de que o povo tributa-se a si mesmo na medida em que seus

75
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário, 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1972,
p.98.
76
BECKER, op.cit., p.99.
77
Não me refiro somente aos autores pós-positivistas. Alfredo Augusto Becker apóia a teoria normativa
de Hans Kelsen e critica asperamente os que criticam o autor austríaco (cfr. BECKER, op.cit., pp.54-55).
Contudo, as afirmações de Becker tais como a de que “para o juiz a lei é um fato essencialmente imutável
(salvo pelo advento de uma nova lei) e que só admite uma única interpretação”, ou a de que ““a lei impõe
a todos e particularmente ao juiz um modo determinado e único de pensar e é precisamente o modo
indicado pelo legislador” são completamente contrárias à teoria kelseniana da interpretação jurídica
contida no último capítulo da Teoria Pura do Direito (“assim como da Constituição, através da
interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por
interpretação, obter as únicas sentenças corretas” – KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, São Paulo;
Martins Fontes, 1994, p.393).
78
A aplicação “não é um evento subseqüente ou ocasional em relação ao fenômeno da compreensão, mas
co-determina a compreensão como um todo desde o começo”. “O trabalho de interpretação é concretizar
a lei em cada caso específico – ou seja, é um trabalho de aplicação” – GADAMER, Hans-Georg. Truth
and Method, 2.ª ed., New York: Continuum, 1997, pp. 324 e 329, respectivamente.

29
representantes eleitos (e não a Administração ou os Tribunais) são os responsáveis pela
definição qualitativa e quantitativa dos encargos tributários79.
A tipicidade, exigindo que o estabelecimento dos tributos por parte do legislador
contemple as notas de exaustividade, precisão, delimitação conceitual e impossibilidade
de delegação a atos infralegais, se justifica por questões de certeza e de segurança
jurídica80. Além de reforçar e dar substância ao princípio democrático (impedindo que a
legalidade se corrompa numa simples autorização legal de cobrança de tributos), a
tipicidade existe para elevar a um grau qualificado a certeza e a segurança jurídica no
âmbito do direito tributário. Alberto Xavier ressalta com propriedade a relação íntima
entre certeza e segurança jurídicas e a chamada proteção da confiança. Segundo Xavier,
a doutrina alemã e a jurisprudência do Tribunal Constitucional daquele país situam a
essência da segurança jurídica na susceptibilidade de previsão objetiva, por parte dos
particulares, de seus direitos e deveres. A segurança jurídica teria sob esse prisma um
conteúdo formal (estabilidade do direito) e um conteúdo material (proteção da
confiança).
Parece-me totalmente aplicável ao direito brasileiro a justificativa da tipicidade
(ressaltada pela doutrina e jurisprudência alemãs81) como exigência de que seja dada ao
contribuinte a possibilidade de conhecer e computar seus encargos tributários com base
exclusivamente na lei. Daí concordarmos com Carlos Palao82 que a vedação da analogia
na aplicação das normas instituidoras de tributos tem raiz constitucional e não constitui
simplesmente uma opção do legislador.

• Elusão tributária e tipicidade: sua relação no contexto de um Estado


Democrático de Direito

A versão normativista-conceitualista da tipicidade tributária há muito não tem


qualquer poder explicativo da realidade prática da interpretação e da aplicação do
direito tributário. A doutrina da única resposta, da aplicação mediante simples
subsunção lógico-dedutiva do fato na lei, e da vedação de qualquer valoração que
escape daquela exaurida pelo legislador simplesmente fala de outro mundo que não
aquele em que o direito é efetivamente interpretado e aplicado. Mas quando se trata de
avaliar se o intérprete ou o aplicador da norma tributária pode ou não reagir contra
formalizações artificiosas postas em prática pelo contribuinte para evitar, minorar ou
postergar a incidência tributária, então a versão normativista-conceitualista da tipicidade
tributária ressurge como o argumento central daqueles que apontam a

79
Cfr. PÉREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario – Parte General, 12.ª ed., Madri:
Civitas, 2002, pp.41-43; XAVIER, op.cit., pp.1.266-1.267.
80
XAVIER, op.cit., p.1.281; PALAO, op.cit., pp.226-228.
81
XAVIER, op.cit., p.1.282-1.283.
82
PALAO, op.cit., p.227. Contudo, há autores que rechaçam a analogia na aplicação das normas
tributárias com o argumento pretensamente “lógico” de que as normas tributárias não seriam aptas para a
analogia. Para autores como Werner Flume e Heinrich-Wilhelm Kruse, ao contrario dos demais ramos do
direito, o direito tributário careceria de uma “lógica objetiva” ou de uma razão subjacente que permitisse
ao aplicador “completar o direito, modificando-o”. Os fatos geradores nunca exigiriam “pela natureza das
coisas” um dado tratamento tributário. Tem razão Palao ao criticar essa postura, que sobrevaloriza a
importância do elemento objetivou ou da “natureza das coisas” nos outros ramos do direito, e que negam
de uma maneira peremptória qualquer conteúdo axiológico próprio do direito tributário: “los distintos
impuestos y el sistema tributario en su conjunto, por imperfectos que sean técnicamente, se inspiran en
principios que pueden servir perfectamente de criterio objetivo para el razonamiento por analogía.” –
PALAO, op.cit., p.232.

30
inconstitucionalidade de aplicar-se ao direito tributário a doutrina da fraude à lei, do
abuso do direito ou do abuso de formas.

• Tipicidade, segurança jurídica, proteção da confiança e elusão


tributária

A tipicidade tributária se explica e se justifica em termos de dois princípios


fundamentais: o princípio representativo (quem define os ônus tributários dos cidadãos
são seus próprios representantes eleitos periodicamente, o que dá legitimidade ao dever
de pagar tributos) e o princípio da segurança jurídica (a definição dos ônus tributários é
efetuada pelos representantes do povo de forma concreta e precisa, afastando-se o
recurso à analogia e a discricionariedade administrativa na fiscalização e cobrança dos
tributos).
Quanto à segurança jurídica, sem dúvida o princípio que sustenta a tipicidade
quando essa é analisada de forma separada da legalidade, sua significação prática é
garantir que o contribuinte possa, à luz das disposições do próprio legislador, conhecer e
medir os encargos tributários que pesam sobre suas atividades, com razoável grau de
certeza jurídica. Proteger essa confiança dos contribuintes é a teleologia da tipicidade
tributária.
Cabe então perguntar em que medida a tipicidade tributária pode constituir um
argumento contrário à iniciativa do intérprete/aplicador de combater as manobras de
elusão tributária, desconsiderando as formalizações artificiosas e torcidas e qualificando
a atuação do contribuinte conforme sua real substância jurídica. Chame-se o ato de
elusão (por exemplo a incorporação às avessas numa situação em que a incorporadora já
era uma empresa somente de papel – desativada, não operacional e descapitalizada) de
“abuso de formas”83, “fraude à lei” ou “simulação”, o fato é que o contribuinte que
assim procedeu provocou ele próprio uma situação inevitavelmente insegura. Neste
ponto são esclarecedoras as observações de Pedro Herrera Molina quanto à natureza do
ato de elusão, pelo qual o contribuinte tenta criar uma lacuna e a ela ter acesso mediante
mecanismos artificiosos. Daí Pedro Herrera afirmar que nesta situação não cabe pensar
que o princípio da segurança jurídica protege o contribuinte84.

83
Alguns autores como Luciano Amaro criticam a doutrina do abuso de formas (tal como tratada no
Código Tributário alemão de 1977) pressupondo que essa doutrina defende que, caso o contribuinte
encontre uma formalização “não usual” ou “pouco comum” de realizar determinado negócio, e essa
formalização represente menos ônus fiscais do que a formalização mais comum ou “típica”, o aplicador
da lei tributária deveria desconsiderar – para fins tributários - as ditas formas “não-usuais”. Mas essa
descrição da doutrina do abuso de formas não corresponde à doutrina e à jurisprudência que se formaram
na Alemanha sobre o art.42 do Código Tributário, as quais indicam que não é simplesmente o fato de ser
inusual ou pouco comum o que caracteriza as formas elusivas (cfr. Cfr. RÄDLER, Albert. General
Description: Germany (Stautory Interpretation – Substance over form), AULT, Hugh (Dir.).
Comparative Income Taxation, Haia – Londres – Boston: Kluwer Law International, , 1997, pp.62-70).
84
Para Pedro Herrera essas lacunas que a elusão procura criar seriam lacunas “indiretas”, diferentemente
das lacunas reais e diretas que são exploradas na elisão (chamada “economia de opción” na Espanha) e
que não podem ser colmatadas pelo intérprete pela integração analógica (a vedação da analogia vale tanto
no direito espanhol como no brasileiro): “En los dos supuestos se quiere evitar la carga fiscal, pero
además, en el fraude de Ley [que é a forma pela qual a elusão é qualificada principalmente na Espanha e
na Alemanha] se pretende eludirla, es decir evitarla artificiosamente: acceder a la laguna mediante una
actuación que no responde a ningún motivo económico válido (...) a través de negocios cuya finalidad
típica es otra, y que se eligen por ser la única vía para acceder a una laguna jurídica”, HERRERA
MOLINA, Pedro Manuel. Aproximación a la analogía y el fraude de Ley en materia tributaria,
Revista de Direito Tributário, n.73, 1999, pp.68-69. A mesma posição é defendida pelo autor no estudo
mais recente El fraude a la ley tributaria en el Derecho español, In: SERRANO ANTÓN, Fernando y

31
A tipicidade em sua versão normativista-conceitualista, que se opõe a que o
intérprete/aplicador reaja contra as condutas artificiosas do contribuinte (e critica
asperamente a “moralização” do direito contida em doutrinas como a do abuso do
direito), geralmente é defendida com argumentos pretensamente lógicos. Isso fica claro
na obra de Alfredo Augusto Becker: como o legislador esgota toda e qualquer valoração
e ao intérprete/aplicador só cabe descobrir o único sentido da lei e constatar a
incidência automática e infalível das normas sobre os fatos, seria logicamente
equivocada (porque contrariaria a natureza lógica do direito) qualquer doutrina (como a
do abuso do direito, da fraude à lei) que fugisse dessa lógica férrea da subsunção
dedutiva.
Mas num substancioso estudo sobre a legalidade e a tipicidade tributária que
Alberto Xavier publicou na Espanha, encontra-se uma completa defesa valorativa ou
axiológica (e não somente lógica) da tipicidade em sua versão normativista-
conceitualista. Neste estudo, apontam-se os princípios constitucionais – então vigentes
no direito português – que sustentariam a tipicidade com a conotação defendida pelo
autor. A defesa valorativa da tipicidade é empreendida com base nos seguintes
argumentos: a) o conteúdo material do Estado de Direito em sua “formulação original”
é a realização da justiça concebida sobretudo como “rigorosa delimitação da livre esfera
dos cidadãos, em ordem a prevenir o arbítrio do poder e a dar assim a maior expressão
possível à segurança jurídica”85 - destacamos; b) a segurança jurídica como principal
valor do Estado de Direito em sua versão demoliberal (século XVIII) não perde – pelo
menos no direito tributário – sua condição de conteúdo material da justiça no Estado
social do século XX pois a economia de mercado continua em vigor e a segurança
jurídica em seu grau máximo é estritamente necessária a um sistema econômico que tem
como “instituições fundamentais” a propriedade privada, a iniciativa privada e a
concorrência 86 . Daí sua conclusão de que num sistema econômico que tem como
princípios ordenadores a livre iniciativa, a concorrência e a propriedade privada, “torna-
se indispensável eliminar, no maior grau possível, todos os fatores que possam traduzir-
se em incertezas econômicas suscetíveis de prejudicar a expansão livre da empresa”87.
Essa explicitação inequívoca dos fundamentos constitucionais (de caráter
valorativo) que sustentam a versão normativista-conceitualista da tipicidade tributária
permite (ou mesmo impõe) que se faça a seguinte indagação: a ideologia constitucional
que perpassa os valores que dão sustentação àquela versão da tipicidade tributária se
identifica ou mesmo se parece com a ideologia do Estado Democrático de Direito?
É certo que o Estado Democrático de Direito é uma realidade fluida e de difícil
apreensão conceitual. Mas não parece aventurado afirmar que algumas idéias-força do
Estado Liberal foram senão alijadas, pelo menos substancialmente reconstruídas no
novo paradigma constitucional. E algumas dessas idéias-força são exatamente as que
são apontadas – pelos seus próprios defensores – como os verdadeiros sustentáculos
valorativos da versão normativista-conceitualista da tipicidade.
Os argumentos valorativos mencionados acima supervalorizam o papel da
segurança jurídica e dão uma importância quase que exclusiva aos valores da

SOLER ROCH, María Teresa (Dir.). Las medidas antiabuso en la normativa interna española y en los
convenios para evitar la doble imposición internacional y su compatibilidad con el derecho
comunitario, Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 2002, pp.19-57.
85
XAVIER, Alberto. “Tipicidad y legalidad en el Derecho tributario”, R.D.F.H.P., n.º 120, 1975, p.1267.
86
Ibid., pp.1285-1290.
87
XAVIER, op.cit., p.1.286.

32
propriedade privada e da autonomia negocial, deixando à sombra e à míngua valores
como o da função social da propriedade e o da livre concorrência.

• A liberdade de contratar e a liberdade fiscal

Em seu excelente livro Tipicidade da tributação, simulação e norma


antielisiva, Alberto Xavier afirma que “o objeto da garantia consagrada no princípio da
legalidade da tributação são os direitos do homem consistentes no direito de
propriedade e no direito de liberdade econômica, direitos esses preexistentes em relação
ao Estado de Direito e à Constituição, mas cuja incorporação na Constituição lhes
assegura o “status” de direitos fundamentais”88. Nem nesse parágrafo nem no restante
do livro chega-se a explorar, ou mesmo a se reconhecer, em relação ao princípio da
legalidade tributária, seu significado democrático (o povo tributando-se a si mesmo) e
consequentemente seu papel legitimador do dever tributário. A argumentação flui como
se o único aspecto da legalidade/tipicidade no contexto da forma de Estado em que
vivemos (a idéia de Estado Democrático de Direito não é mencionada no livro) fosse
sua faceta de direito subjetivo “defensivo”, direito de “paralisação ou bloqueio dos entes
públicos”89. A separação sociedade-Estado (típica do Estado Liberal) é tão forte e tensa
que chega a soar como uma confrontação. Por outro lado, a “constitucionalização” dos
direitos de propriedade privada e de liberdade econômica (direitos que teriam um
conteúdo preexistente à ordem jurídica) é mencionada como se se tratasse de um
fenômeno desprovido de historicidade, ou seja, como se fosse independente de em qual
paradigma constitucional ocorre a referida “recepção” dos direitos de propriedade e
liberdade econômica, sendo que o significado da noção constitucional de função social
da propriedade não é examinado na mencionada obra.
O raciocínio principal da parte introdutória da obra segue o seguinte itinerário
para ligar a legalidade (numa ponta) à vedação de qualquer combate
aplicativo/interpretativo à elusão tributária (na outra ponta): o objeto da proteção do
princípio da legalidade são o direito de propriedade e o direito de liberdade econômica.
O direito de liberdade econômica ou livre iniciativa tem como corolário o princípio de
liberdade de contratar, “que é também direito fundamental”, e essa liberdade de
contratar “é não só a possibilidade de opção entre uma pluralidade de tipos ou modelos
negociais (as “formas” de que fala o Direito alemão) que o Direito Privado oferece para
a realização do escopo prático dos particulares, mas também a liberdade de
configuração dos mesmos ... ao abrigo da autonomia da vontade”, no sentido de que “os
particulares se podem mover livremente, com segurança, para além das zonas
rigidamente demarcadas pelos tipos legais de tributos”90.
As consequências dessa tese são bem claras: quando o cidadão exerce o seu
direito de contratar frente a outros cidadãos, sua liberdade de contratar pode resvalar na
fraude à lei (art.167, VI do Código Civil) caso as formalizações postas em prática sejam
artificiosas e “driblem” determinada obrigação imposta pela lei; da mesma forma,
quando o cidadão exerce o seu direito de propriedade ou o seu direito de livre empresa
frente a outros cidadãos, o titular do direito pode perder a proteção da ordem jurídica
caso exerça esse direito de uma maneira que exceda manifestamente os limites impostos
pela boa-fé ou pelo fim econômico ou social daquele direito. Mas na ordem tributária

88
XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva, São Paulo: Dialética,
2001, p.31.
89
ibidem, p.33.
90
Ibidem, p.32.

33
tudo seria distinto, pois a tipicidade impediria que o aplicador da lei reagisse contra os
tipos de comportamentos (fraude à lei, abuso do direito) que, caso se dirigissem contra
outro cidadão, seriam frustrados pelo aplicador do ordenamento jurídico.
E tudo isso não deixa de ser consentâneo com a visão da norma de incidência
tributária como uma norma excepcional, que ao contrário da norma civil ou comum não
se deve respeitar por seus motivos ou por suas finalidades, e sim por sua clara expressão
literal, pois as exigências tributárias não encarnam – ao contrário das exigências da vida
civil – uma racionalidade que possa ser deduzida do ordenamento jurídico, consistem
meramente numa “providência singular”91, que não se explica ou se justifica a não ser
por uma decisão meramente “positivista” sem qualquer possibilidade de se lhe descobrir
uma natureza “justa”92.

2.4. Em nosso ordenamento jurídico o princípio da legalidade está sujeito a


exceções?
2.5. Como podem ser qualificadas as ressalvas feitas pela Constituição Federal, ao
princípio da legalidade, em face dos tributos com função extrafiscal?

Consideramos que tais perguntas fogem ao escopo do presente estudo, que já vai
longo e quiçá cansativo, pelo que preferimos deixar de respondê-las aqui e remeter o
leitor a uma obra em que as analisamos de forma específica93.

3. Planejamento e ilícito tributário

3.1. O que devemos entender por propósito negocial?


3.2. Por que que seria necessário um propósito negocial para a escolha da forma
dos atos jurídicos a serem praticados na atividade econômica?
3.3. O que devemos entender por propósito extratributário? A exigência de
propósito negocial é a mesma coisa que a exigência de um propósito
extratributário para validar a escolha da forma jurídica de atos empresariais?
3.4. Por que não seria válida a escolha de uma forma jurídica com motivo
exclusivamente tributário?
3.5. Qual seria o limite para a liberdade de escolha das formas jurídicas dos atos
praticados na atividade econômica?
3.6. O que devemos entender por abuso de direito?

Inicio a resposta às perguntas acima apresentando e analisando uma postura


doutrinária que considero inadequada e equivocada. Trata-se da postura segundo a qual,
se o contribuinte escolher determinada forma ou encadeamento negocial tendo por
motivo exclusivo ou preponderante a economia tributária, seu comportamento deve ser
ipso facto tido por abusivo, cabendo à Administração desconsiderar - para efeitos do
lançamento tributário - os atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte e/ou
terceiros.
Essa postura é na verdade uma versão simplista e equivocada da chamada
doutrina do propósito negocial ("business purpose"), surgida na jurisprudência dos

91
XAVIER, Tipicidad..., p.1.260.
92
Cfr. a crítica de Carlos Palao a essa postura de alguns doutrinadores alemães – PALAO, op.cit., p.230.
93
FERRAZ, Luciano; GODOI, Marciano Seabra de & SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de Direito
Financeiro e Tributário, Belo Horizonte: Editora Fórum, 235-243.

34
Estados Unidos a partir do julgamento do famoso caso Gregory x Helvering94. Neste
precedente, a Suprema Corte confirmou o resultado do julgamento de um tribunal de
segunda instância, relatado pelo conhecido juiz Learned Hand, segundo o qual os
negócios jurídicos praticados pelo contribuinte não se enquadravam na hipótese de
incidência de um regime fiscal privilegiado desenhado pelo legislador para os casos de
reorganizações societárias.
A rationale de referido julgamento foi a seguinte: o pressuposto de fato do
regime fiscal privilegiado no qual o contribuinte buscou se encaixar é a prática de
determinados atos de reorganização societária, como cisões, fusões e aquisições, atos
cuja causa jurídica (finalidade prática, função econômico-social) é a gestão ou condução
de negócios visando a expandir/integrar ou dividir/atomizar estruturas/operações
empresariais. Como o contribuinte praticara atos e negócios que, vistos em conjunto,
não revelavam a mínima presença dos propósitos/finalidades acima, constituindo tão
somente uma busca de evitar/reduzir tributos, então esses negócios não foram vistos
como capazes de atrair a aplicação do benefício fiscal. O tribunal não baseou sua
decisão na análise de quais teriam sido os motivos da conduta do contribuinte, baseou
sua decisão na análise da conduta do contribuite em si mesma. Como os
propósitos/finalidades de sua conduta divergiram manifestamente dos
propósitos/finalidades das condutas previstas na lei, negou-se a aplicação do regime
fiscal favorecido.
À luz da rationale e do resultado deste julgamento, adiro à posição de Carlos
Palao Taboada 95 , segundo a qual o que é relevante para a doutrina do “business
purpose”, tal como surgiu e se desenvolveu na jurisprudência e na legislação dos
Estados Unidos, não é a análise dos motivos dos atos do contribuinte (motivos no
sentido de razões que levam alguém a fazer algo) mas sim a análise dos próprios
atos/negócios praticados, submetidos a um exame quanto à sua efetiva finalidade
prática. Sendo assim, a doutrina do “business purpose”, ao contrário do que se poderia
pensar, é bastante similar às clássicas normas gerais antielusão do tipo fraude à lei,
abuso de formas etc., e também bastante similar à visão causalista do fenômeno da
simulação.
Respondo agora objetivamente às perguntas propostas:

3.1. O que devemos entender por propósito negocial?

Por propósito negocial devemos entender a finalidade ou o objetivo prático dos


atos e negócios jurídicos praticados pelo contribuinte, vistos esses atos/negócios em seu
conjunto, de forma global e não de forma atomizada e pontual. Na linguagem do direito
civil continental, trata-se da causa concreta da atuação jurídica do contribuinte. Não se
trata dos motivos que explicam por que o contribuinte teria entabulado esse ou aquele
negócio; trata-se da finalidade concreta para a qual o contribuinte praticou determinados
atos e negócios jurídicos.

3.2. Porque que seria necessário um propósito negocial para a escolha da forma
dos atos jurídicos a serem praticados na atividade econômica?

94
Cf. GODOI, Marciano Seabra de. Fraude a la ley y conflicto en la aplicación de las leyes
tributarias, Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 2005, 167-173.
95
PALAO TABOADA, Carlos. Los “motivos económicos válidos” en el régimen fiscal de las
reorganizaciones empresariales. In: PALAO TABOADA, Carlos. La aplicación de las normas
tributarias y la elusión fiscal. Madrid: Lex Nova, 2009, 209-220.

35
Entendido como finalidade e não como motivo, o propósito negocial é tão
necessário como o é a própria causa dos negócios jurídicos: o contrato de seguro supõe
que alguém busca prevenir-se contra determinados riscos; o contrato de sociedade supõe
que determinadas pessoas envidarão esforços conjuntos na busca de resultados
econômicos etc.. Ou seja, o pressuposto básico é o de que o direito não cria tais
estruturas contratuais/negociais como simples formas ocas e vazias, mas como
instrumentalizações para o atingimento de certas finalidades práticas.

3.3. O que devemos entender por propósito extratributário? A exigência de


propósito negocial é a mesma coisa que a exigência de um propósito
extratributário para validar a escolha da forma jurídica de atos empresariais?

A primeira parte da pergunta parece estar usando a expressão "propósito


extratributário" no sentido de "motivo extratributário", por isso ocorre o estranhamento
sugerido por esta e pelas perguntas seguintes. Caso se utilize a expressão no sentido de
“finalidade prática extratributária”, não haverá qualquer estranhamento. Ora, ao
contratar um empregado, uma empresa busca utilizar sua mão de obra para auferir
determinados resultados; ao constituir uma sociedade empresarial, determinadas pessoas
buscam envidar esforços em prol de ganhos econômicos. Se não há num caso concreto a
presença desses propósitos/finalidades típicos, e sim uma formalização oca cujo único
sentido é evitar tributos, então estaremos na presença de atos/negócios sem causa, ou
com causa falsa, configurando um planejamento tributário abusivo, uma fraude à lei
tributária, um abuso de formas etc., a depender de como determinado ordenamento
nacional denomina e emoldura doutrinariamente um mesmo fenômeno.
Não estamos aqui nos referindo aos motivos subjetivos dos contribuintes (o que
os levou a praticar determinado ato ou negócio), nem aos
desdobramentos/consequências tributários do ato/negócio; estamos nos referindo
simplesmente aos objetivos práticos daquele ato ou negócio em si mesmo considerado.
Neste sentido, a segunda parte da pergunta merece resposta afirmativa, desde que se se
entenda a expressão "propósito extratributário" no sentido de “finalidade prática
extratributária”.

3.4. Por que não seria válida a escolha de uma forma jurídica com motivo
exclusivamente tributário?

Como vimos acima, a doutrina jurisprudencial norte-americana do “business


purpose” não afirma que o contribuinte esteja impedido de escolher determinada
configuração negocial por motivos exclusiva ou preponderantemente fiscais. Ao
contrário, essa doutrina aceita como legítima e natural – numa economia capitalista de
mercado – essa motivação. Veja-se a formulação incisiva do juiz Learned Hand96:

“Una y otra vez los tribunales han dicho que no hay nada siniestro en
disponer los propios negocios de manera que lós impuestos se mantengan los
más bajos posibles. Todos lo hacen, ricos o pobres; y todos hacen bien,

96
Apud PALAO TABOADA, Carlos. Los “motivos económicos válidos” en el régimen fiscal de las
reorganizaciones empresariales. In: PALAO TABOADA, Carlos. La aplicación de las normas
tributarias y la elusión fiscal. Madrid: Lex Nova, 2009, 212.

36
porque nadie tiene un deber público de pagar más de lo que exige la ley; los
impuestos son exacciones forzosas, no contribuciones voluntarias. Pedir más
en nombre de la moral son meras palabras pías”

Em suma: entendida como exigência de um preponderante motivo extratributário


para os atos e negócios jurídicos, a doutrina do “business purpose” seria o mesmo que
negar o direito ao planejamento tributário; entendida como exigência de uma finalidade
prática extratributária para os atos e negócios jurídicos, a doutrina do “business
purpose” não é nada mais que uma visão causalista e substancial dos atos e negócios
jurídicos.

3.5. Qual seria o limite para a liberdade de escolha das formas jurídicas dos atos
praticados na atividade econômica?
3.6. O que devemos entender por abuso de direito?

Em termos teóricos, proponho a seguinte resposta: o uso do direito de escolher


as formas jurídicas dos atos praticados na atividade econômica por motivos de
economia tributária converte-se em abuso quando, no caso concreto, aquelas formas
jurídicas deixam de possuir uma correlação efetiva com as finalidades práticas para as
quais foram criadas pelo ordenamento jurídico, e passam a ser simples artifícios ou
montagens destinados exclusivamente a evitar, reduzir ou postergar a incidência de
tributos.
Deixando o campo teórico e examinando a concretude do direito positivo de
países do nosso entorno cultural e jurídico, verifica-se que o chamado “business purpose
test” não é de forma alguma a proscrição da escolha de formas jurídicas por motivos
tributários.
As chamadas normas gerais antielisão ou antielusão em vigor na Espanha,
Portugal, Alemanha e França deixam claro que não existe algo como um “business
purpose test” autonomizado e apartado de considerações sobre o artificialismo e o abuso
de formas presente nas escolhas contratuais do contribuinte. Como afirma Violeta Ruiz
Almendral, “artifício y ausência de fin económico válido o razonable son dos caras de la
misma moneda”97.
A norma geral espanhola não adota como critério a motivação – exclusivamente
tributária ou não - dos atos/negócios escolhidos pelo contribuinte. Veja-se:

Art.15 da Lei Geral Tributária. Conflito na aplicação da norma tributária.


1. Entender-se-á que existe conflito na aplicação da norma tributária
quando se evite total ou parcialmente a realização do fato imponível ou se
diminua a base de cálculo ou o montante do tributo mediante atos ou
negócios nos quais estejam presentes as seguintes circunstâncias:
a) Que, individualmente considerados ou em seu conjunto, [os atos ou
negócios] sejam notoriamente artificiosos ou impróprios para a consecução
do resultado obtido;
b) Que de sua utilização não resultem efeitos jurídicos ou econômicos
relevantes, distintos da economia fiscal e dos efeitos que seriam obtidos com
os atos ou negócios usuais ou próprios.

97
RUIZ ALMENDRAL, Violeta. El fraude a la ley tributaria a examen, Cizur Menor: Thomson-
Aranzadi, 2006, 87.

37
A primeira pergunta é: vistos individualmente ou de forma global, os atos e
negócios são notoriamente artificiosos, impróprios para a consecução do objetivo
prático do contribuinte? A segunda pergunta, que complementa a primeira é: a escolha
por tais negócios alternativos produziu alguma consequência extratributária distinta da
que seria produzida caso houvessem sido praticados os negócios usuais ou próprios? Se
a resposta à primeira pergunta é positiva e à segunda pergunta é negativa, configura-se o
“conflito na aplicação da norma tributária”, denominação estranha mas que na verdade
aponta para o que a doutrina espanhola há muito tempo vem tratando como fraude à lei
tributária98.
A norma portuguesa segue a mesma lógica:

Artigo 38 da Lei Geral Tributária. São ineficazes no âmbito tributário os


actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios
artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução,
eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em
resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico,
ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou
parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação
de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as
vantagens fiscais referidas.

E também a norma alemã:

§ 42 do Código Tributário. Abuso de las posibilidades de configuración


jurídica
(1) La ley tributaria no pude ser eludida mediante el abuso de las
posibilidades de configuración jurídica. Si se realiza el presupuesto de hecho
de una regulación contenida en una ley tributaria cuyo fin sea impedir la
elusión fiscal, las consecuencias jurídicas son las establecidas en este
precepto. En otro caso, cuando exista abuso en el sentido del apartado 2 el
crédito tributario nace como hubiera nacido con arreglo a la configuración
jurídica adecuada a los hechos económicos.
(2) Existe abuso cuando se adopte una configuración jurídica inadecuada,
que ocasione para el obligado tributario o un tercero una ventaja fiscal no
prevista por la ley en comparación con una configuración adecuada. Lo
anterior no es aplicable cuando el obligado tributario demuestra que la
configuración adoptada tiene motivos no fiscales relevantes atendiendo al
conjunto de las circunstancias (tradução para o espanhol do Prof. Carlos
Palao Taboada).

Note-se que a ressalva final da norma alemã corresponde à segunda pergunta da


norma espanhola vista acima. É preciso saber se a atuação por assim dizer alternativa
do contribuinte provocou resultados práticos extratributários distintos daqueles
resultados práticos que teriam sido alcançados no caso de se terem praticado os atos
usuais ou próprios. Caso isso tenha ocorrido, afasta-se a pecha de abusividade.

4. A Norma Geral Antielisão

98
PALAO TABOADA, Carlos. La norma anti-elusión del Proyecto de Nueva Ley General Tributaria, In:
PALAO TABOADA, Carlos. La aplicación de las normas tributarias y la elusión fiscal. Madrid: Lex
Nova, 2009, 147-174.

38
4.1. O que devemos entender por norma geral antielisão?

O conteúdo das numerosas normas gerais antielisão (ou normas gerais


antielusão) há muitas décadas em vigor em diversos países é variável, mas a ideia básica
subjacente a todas elas é constante. Vejamos.
A norma de tributação, que define os fatos geradores dos tributos, é uma norma
jurídica ordinária, e não uma norma jurídica excepcional ou odiosa. Sendo assim, sua
interpretação/aplicação não se guia necessariamente pelo sentido literal mais restritivo
de seus termos e expressões, nem tem guarida a esclerosada máxima do in dubio pro
contribuinte 99 . O intérprete da norma de imposição tributária deve se guiar pela
compreensão do texto normativo que melhor se ajuste ao propósito ou à finalidade
prática da norma no contexto do momento atual da aplicação.
Mas o intérprete não pode se afastar dos possíveis sentidos literais da norma
impositiva e se lançar a uma espécie de livre investigação das relações econômicas
subjacentes aos negócios privados, tal como propunha a versão primitiva da
interpretação econômica, pois isso instauraria uma situação de incerteza, insegurança,
reduzindo a quase nada o princípio da legalidade/tipicidade.
O legislador em geral cria fatos geradores fazendo remissão a formas e
configurações jurídicas de direito privado, figuras que o direito privado desenvolveu ao
longo do tempo para que os agentes econômicos logrem determinados objetivos
patrimoniais típicos. Neste contexto, os contribuintes, em geral assessorados por
profissionais especializados, para evitar ou reduzir as obrigações tributárias, concebem
e implementam formalizações jurídicas alternativas às usuais, buscando alcançar os
mesmos resultados práticos a que conduzem as formalizações jurídicas previstas pelo
legislador para desenhar o fato gerador do tributo.
Alcançar os resultados econômicos desejados, por meio de formas e
formalizações jurídicas alternativas com o propósito de atrair menos obrigações
tributárias é um direito dos contribuintes, o direito ao planejamento tributário. Contudo,
“o planejamento tributário pode alcançar um ponto acima do qual não pode ser tolerado
por um sistema jurídico que pretende conformar-se a princípios de justiça”100, daí por
que o ordenamento impõe limites ao planejamento tributário.
Uma forma de impor esses limites é aquela pela qual o legislador, após constatar
a prática de determinadas operações de planejamento, “fecha a porta” para esses
planejamentos definindo normas específicas para as formalizações encontradas pelos
contribuintes. Essa forma é a preferida pelos planejadores tributários (grandes
contribuintes/assessores legais), pois premia e valoriza os que “primeiro tiveram a
brilhante ideia”, deixando-os livres do tributo, que somente passará a ser cobrado após a
entrada em vigor das normas específicas antiabuso.
A norma geral antielisão se guia por outra lógica, a lógica de impor de forma
geral alguns limites para o planejamento tributário, limites que nos países de civil law
são definidos pelo próprio legislador.
Assim, a função própria de todas as normas gerais antielisão é estabelecer sob
que critérios substantivos, e segundo qual procedimento formal, a Administração

99
Sobre o tema, cf. GODOI, Marciano Seabra de. A volta do in dubio pro Contribuinte: Avanço ou
Retrocesso?. In: Valdir de Oliveira Rocha. (Org.). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário,
Vol.17, São Paulo: Dialética, 2013, p. 181-197 e, à guisa de réplica, VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar.
In dubio pro contribuinte: continuação do debate, Revista Dialética de Direito Tributário, n. 220, São
Paulo: Dialética, 2014, p.104-124.
100
VOGEL, op.cit., Art.1 n.º 77.

39
tributária poderá distinguir a legítima elisão fiscal (“economía de opción”, “tax saving”)
do planejamento tributário abusivo (“elusión fiscal”, “tax avoidance”), desconsiderando,
somente para fins de lançamento tributário, a prática de determinados atos e negócios
jurídicos colocados em prática pelo sujeito passivo e por terceiros. Os critérios
concretos (abuso de formas, abuso do direito, fraude à lei, simulação) para distinguir a
elisão da elusão são matéria de direito positivo, variando segundo as tradições de cada
ordenamento jurídico101.
Não se deve esperar que a norma geral antielisão estabeleça critérios de
desconsideração precisos, fechados, cuja aplicação suponha uma simples subsunção
lógica. Isso seria impossível, dado seu caráter de cláusula geral valorativa. É certo que
os critérios não devem ser contraditórios, devem ter substância e racionalidade próprias,
mas mesmo assim serão necessariamente aproximativos e determináveis, ao contrário
das normas antielisão específicas, definidas segundo o figurino das regras fechadas e
determinadas.
Naturalmente não há uma solução que se possa dizer “a única correta” ou
mesmo “a mais correta”. As tradições jurídicas de cada país, o momento histórico e os
valores e a ideologia nele preponderantes, inclusive a forma de se entender a natureza
da atividade jurisdicional, tudo isso influi na conformação de peculiares sistemas de
combate à elusão.
Nos países com a tradição do civil law, cujo direito privado conhece há séculos
figuras como o abuso do direito ou a fraude à lei, essas figuras foram aplicadas – com
matizes próprios – ao terreno da elusão fiscal, seja mediante normas oriundas do
Legislativo (Alemanha, Espanha), seja mediante iniciativas do Judiciário (Suíça102), seja
por um processo que partiu do Judiciário e depois foi disciplinado em lei (França).
Ainda que existam especificidades técnicas no sistema de cada país, há três
parâmetros muito recorrentes para diferenciar a elisão da elusão 103 : 1. o manifesto
artificialismo das configurações ou formalizações jurídicas adotadas pelo contribuinte
(abuso de forma, abuso das possibilidades de configuração que o direito positivo
oferece, fraude à lei), 2. a completa inexistência de um motivo não-tributário que possa
explicar ou justificar a escolha do contribuinte por aquelas formas jurídicas artificiosas
e 3. a vulneração que seria promovida nos propósitos da lei e do sistema tributário, caso
pudesse prevalecer o esquema montado pelo contribuinte.
Há ordenamentos nacionais que privilegiam o primeiro critério mencionado
acima, como é o caso alemão 104 . A elusão se identifica basicamente pela forma
distorcida da transação ou da cadeia de transações, pela completa ausência de coerência
entre o objetivo prático a ser alcançado pelo contribuinte e os meios e formalizações por
ele escolhidos. É o caso de um contribuinte que, para vender certa participação
101
Cfr. CIPPOLINA, op.cit., p.125.
102
Vide WARD, David A. et al. "The business purpose test and abuse of rights", British Tax Review¸n.2,
1985, pp.72-73 e HÖHN, Ernst. “Evasão do Imposto e Tributação Segundo os Princípios do Estado de
Direito”, In: MACHADO, Brandão (Dir.). Direito Tributário – Estudos em Homenagem ao Professor
Ruy Barbosa Nogueira, São Paulo: Saraiva, 1984, pp.285-286.
103
Cfr. CYRILLE, David. “L’abus de droit en Allemagne, en France, en Italie, aux Pays-Bas et au
Royaume-Uni (essai de comparaison fiscale)”, Rivista di diritto finanziario e scienza delle finanze, LII,
2, I, 1993, pp.220-256, COOPER, Graeme S. “Conflicts, Challenges and Choices – The Rule of Law and
Anti-Avoidance Rules”, In: COOPER, Graeme S. (Ed.), Tax Avoidance and The Rule of Law, Amsterdã:
IBFD, 1997, pp.26-32.
104
Cfr. KRUSE, Heinrich Wilhelm. “Il risparmio d’imposta, l’elusione fiscale e l’evasione”, AMATTUCCI,
Andrea (Dir.). Trattato di Diritto Tributario, Vol. III, Pádua: CEDAM, 1994, pp.207-223, FISCHER,
Peter. “L’esperienza tedesca”, In: DI PIETRO, op.cit, pp.203-249 e KRAMER, Jörg-Dietrich. “Abuse of law
by tax saving devices”, Intertax, n.º 2, 1991, pp.96-102.

40
acionária a um terceiro, constrói e desfaz uma ou mais sociedades num curto intervalo
de tempo como meio de driblar a norma de incidência do imposto de renda sobre
ganhos de capital. O sistema alemão adota uma visão objetiva do fenômeno, baseada
nas características externas da transação, sem cogitar dos motivos subjetivos dos
contribuintes.
Por outro lado, há ordenamentos nacionais que privilegiam o segundo critério
acima mencionado, como ocorre na França relativamente à técnica de correção da
chamada “simulation – fraude d’intention”105. Nesse caso, a elusão é identificada por
um específico estado de espírito do contribuinte, um particular propósito de buscar
abusivamente a economia tributária, sem que a opção por determinada formalização
jurídica possa ser explicada por razões não-tributárias. Contudo, o estado de espírito do
contribuinte é em geral avaliado por meio de indícios objetivos, e portanto a diferença
entre os dois critérios acima mencionados não é tão acentuada, o mesmo podendo ser
dito quanto a seus resultados práticos106.
Por fim, o terceiro critério acima mencionado está presente, ainda que
implicitamente, em todos os sistemas de correção da elusão, pois o que esses sistemas
buscam acima de tudo é não permitir que a elisão se degenere num estado de coisas em
que os contribuintes com mais recursos financeiros e intelectuais manipulem a lei e o
sistema tributário como se se tratasse de um brinquedo, um jogo em que o mais
habilidoso transfere para o menos habilidoso o ônus e o peso de custear os gastos
públicos.
No Canadá e na Holanda, este terceiro critério tem um papel mais explícito e
mais específico. O Departamento de Finanças do governo canadense entende que a
norma geral antielusão não pode ser aplicada se o contribuinte demonstrar que as
transações que levou a cabo não se desviam do objeto e do propósito da legislação do
imposto sobre a renda considerada em seu conjunto107. Na Holanda, a Corte Suprema
reconheceu em diversos precedentes que as manobras dos contribuintes realmente
tinham a intenção exclusiva de economizar impostos, mas não considerou que havia
elusão (que na Holanda é considerada um ato de fraude à lei) porque a análise do
sistema legislativo e de seus precedentes históricos não demonstrava de forma
inequívoca que os atos dos contribuintes violavam o espírito da lei108.

105
Cfr. CYRILLE, David. op.cit., pp.229 y ss., LEHÉRISSEL, Hervé. “Rapport de Groupement – France”,
IFA, Form and substance in tax law, Cahiers de Droit Fiscal International, Vol.LXXXVIIa, Haia:
Kluwer, 2002, pp.263-286, CHEVALIER, Jean Pierre. “L’esperienza francese”, DI PIETRO, op.cit, pp.5-32,
GEST, Guy. “General Description: France – Anti-avoidance doctrines and rules”, In: AULT, Hugh (Dir.).
Comparative Income Taxation, Haia/Londres/Boston: Kluwer Law International, 1997, pp.47-48,
GEST, Guy y TIXIER, Gilbert. Droit fiscal international, 2.ª edição, Paris: Presses Universitaires de
France, Paris, pp.523-525, COZIAN, Maurice. “What is abuse of law”, Intertax, n.º 2, 1991, pp.103-107,
MASSON, Charles Robbez. La notion d’évasion fiscale en Droit interne français, Paris: Librairie
Genérale de Droit et de Jurisprudence, 1990, pp.242 y ss., GOLDSMITH, J.C. “Rapport National – France”,
IFA. Évasion Fiscale – Fraude Fiscale, Cahiers de Droit Fiscal International, Vol.LXVIIIa – premier
sujet, Haia: Kluwer, 1983, pp.377-379.
106
Destacando essas semelhanças de enfoque e de resultado, vide ZIMMER, op.cit., p.62, PALAO
TABOADA, Carlos. “Algunos problemas que plantea la aplicación de la norma española sobre el fraude a
la ley tributaria”, Crónica Tributaria, n.º 98, 2001, pp.127 y ss., VOGEL, Klaus. op.cit., Art.1, n.º 82,
WARD, David A. et al, op.cit., p.69.
107
Vide ARNOLD, Brian. “The Canadian General Anti-Avoidance Rule”, COOPER, Graeme (Dir.). Tax
Avoidance and the Rule of Law, Amsterdã: IBFD, 1997, p.233.
108
Vide. IJZERMAN, Robert L.H. “Branch Report – Netherlands”, IFA, Form and substance in tax law,
Cahiers de Droit Fiscal International, Vol.LXXXVIIa, Haia: Kluwer, 2002, pp.461-465.

41
Os três critérios acima expostos se comunicam e interagem: se se aplica o
critério do abuso de formas, estará aberta para o contribuinte a possibilidade de
demonstrar ao fisco ou aos tribunais que sua atuação também respondeu a um plausível
propósito não-tributário ou que sua conduta não violou a teleologia da legislação –
legislação que pode haver aceitado ou inclusive incentivado de uma forma ou de outra
as operações praticadas pelo contribuinte.

4.2. Como se deu a introdução da norma geral antielisão em nosso direito positivo?
4.3. A norma geral antielisão seria inconstitucional? Não sendo inconstitucional,
seria inútil?
4.4. É necessário um procedimento específico para a prática da desconsideração do
ato ou negócio jurídico? Onde está previsto tal procedimento?
4.5. Qual a consequência da não conversão em lei dos dispositivos da MP 66 que
cuidavam do aludido procedimento?
4.6. É válido o tratamento do que seria uma elisão, como infração à lei tributária?

Até o ano de 2001, a legislação brasileira não continha qualquer norma geral
(comparável às normas já estudadas supra) voltada ao tratamento dos limites entre a
elisão e a elusão, e a doutrina majoritária manejava unicamente os conceitos de evasão
(simulação, defraudação) e elisão (planejamento tributário lícito). Em 2001, o Poder
Executivo encaminhou ao Congresso Nacional um projeto que veio a ser convertido na
Lei Complementar 104/2001, que dentre outras providências incluiu no CTN o seguinte
dispositivo:

Art. 116, parágrafo único: A autoridade administrativa poderá desconsiderar


atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a
ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos
constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem
estabelecidos em lei ordinária.

A Exposição de Motivos do Projeto de Lei Complementar afirmava que a norma


constituiria “um instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento
tributário praticados com abuso de forma ou de direito”. Diante desta norma, parte da
doutrina nacional adotou a seguinte interpretação: o dispositivo regula a hipótese de
“atos ou negócios simulados” (“dissimulação” teria o sentido jurídico de “simulação
relativa”) e assim não trouxe nada de realmente novo, pois doutrina e jurisprudência há
muito chegaram a uma sólida posição de que os atos ou negócios simulados não fazem
parte da elisão tributária, mas constituem formas de praticar “infração tributária” ou
simplesmente “evasão”. Alberto Xavier 109 defendeu que o efeito do dispositivo teria
sido permitir que o fisco desconsiderasse o ato simulado sem ter que previamente
demandar a nulidade do ato em juízo (vide artigo 105 do antigo Código Civil).
Consideramos um equívoco essa afirmação, pois doutrina e jurisprudência anteriores à
LC 104 já consideravam sem maiores hesitações que o fisco, para combater a simulação
relativa praticada pelo contribuinte, não necessita requerer que o Poder Judiciário

109
XAVIER, Alberto. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva, São Paulo:
Dialética, 2001, p.70-73.

42
decrete a nulidade do ato simulado110, estando essa orientação implícita no art.149, VII
do CTN, posterior ao Código Civil de 1916.
Outra parte da doutrina brasileira preferiu a interpretação de que o dispositivo
veio, de maneira inconstitucional, proibir radical e terminantemente todo e qualquer
planejamento tributário, e para tanto deu poderes à Administração tributária para
realizar a interpretação econômica das normas impositivas e exigir tributos por
analogia. Essa é a interpretação defendida na petição inicial da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 2.446, proposta pela Confederação Nacional do Comércio em
2001 e até hoje não apreciada pelo STF. Essa Ação Direta – que lamentavelmente
tramita há mais de treze anos no STF sem qualquer manifestação do Tribunal a respeito
da matéria – reza o credo do ultraformalismo liberal e requer a declaração de
inconstitucionalidade da referida norma, por violação aos “princípios da legalidade e da
tipicidade cerrada e da certeza e segurança das relações jurídicas” (página 29 da petição
inicial).
Em minha opinião111, a alteração do CTN veio ao encontro de uma tendência
mundial de adotar normas gerais de combate à elusão tributária112: certamente continua
permitido o planejamento tributário, mas quando este promove uma distorção ou um
uso artificioso e forçado de determinados atos ou negócios jurídicos previstos na lei
civil ou comercial para outros fins, então as autoridades fiscalizadoras podem
desconsiderar tais formalizações e aplicar a norma tributária eludida ou defraudada.
Por outro lado, a existência de uma norma geral antielusão contida no Código
Tributário obriga o fisco a recorrer a tal via para corrigir os atos elusivos dos
contribuintes, não sendo correta a aplicação conjunta ou mesmo subsidiária das figuras
da fraude à lei e do abuso do direito previstas no Código Civil de 2002 (art.166, VI e
187, respectivamente). Neste particular, discordamos das orientações de Marco Aurélio
Greco, que defende que um caso de planejamento tributário com fraude à lei ou abuso
do direito pode ser combatido pela administração mediante a aplicação do Código Civil
- (GRECO, op.cit., 2011).
Em minha opinião, a sistematização que o Código Civil de 2002 imprimiu às
figuras da fraude à lei e do abuso do direito é inapropriada para o tratamento da elusão
tributária. Quanto à fraude à lei, a disciplina do Código Civil brasileiro considera nulo o
negócio praticado em fraude à lei (art.166, VI), e naturalmente faz depender essa
nulidade de uma sentença judicial, ao passo que todos os países que possuem normas
gerais antielusão utilizam a técnica da desconsideração ou inoponibilidade fiscal do ato
elusivo, que obviamente independe de uma decisão judicial (embora naturalmente a
desconsideração possa ser revista a posteriori por um ato judicial). Além disso, o
art.166, VI do Código Civil restringe-se aos negócios jurídicos em fraude à lei, sem

110
Sampaio Dória observava corretamente, que “o propósito fiscal é unicamente o de receber o tributo
devido pela prática do ato dissimulado, pouco importando a permanência dos efeitos jurídicos dos atos
aparentes”, concluindo que “a decretação de nulidade do negócio simulado, em seu aspecto substancial,
não é imprescindível para que o fisco receba os tributos devidos” – DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio.
Elisão e Evasão Fiscal, São Paulo: LAEL, 1971, p.42. Essa orientação sempre prevaleceu no Conselho
de Contribuintes do Ministério da Fazenda.
111
No mesmo sentido, vide TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito
Tributário, 4.ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006. Marco Aurelio Greco também sustentou desde a
década de 90 a necessidade de abandonar a visão formalista presente na maioria da doutrina brasileira (cf.
GRECO, Marco Aurelio. Planejamento Fiscal e Interpretação da Lei Tributária, São Paulo: Dialética,
1998, e Planejamento Tributário, 4.ª ed., São Paulo: Dialética, 2011).
112
Vale relembrar que a exposição de motivos do projeto de lei e os debates parlamentares sempre se
referiram claramente aos limites do planejamento e da elisão fiscal, e não à hipótese de simulação.

43
abranger os casos não incomuns de atos in fraudem legis que não são contratos ou
negócios jurídicos stricto sensu (cf. PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito
Privado – Parte Geral, Tomo I, Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p.45).
Como o art.166, VI do novo Código Civil é claramente influenciado pelo Código
Civil italiano (arts.1.344 e 1.418), vale lembrar que a doutrina e os tribunais italianos113
consideram inapropriada a aplicação do art. 1.344 do Código civil114 à esfera tributária,
dentre outros motivos porque o Código civil italiano também considera nulo o negócio
em fraude à lei (art.1.418), e o combate à elusão tributária não se faz mediante anulação
judicial, e sim mediante desconsideração administrativa de atos.
Combater a elusão tributária mediante anulação judicial de atos da vida civil e
comercial significaria, além de procrastinar e tumultuar o procedimento, criar
desnecessariamente uma série de contratempos e efeitos colaterais a terceiros. Da
mesma forma que no Brasil a simulação dos atos dos contribuintes prevista no CTN
(por exemplo no art.149, VII) e em leis tributárias esparsas nunca foi demandada
previamente no juízo cível pela Fazenda Pública, e sim caracterizada pela autoridade
fiscal no exercício do lançamento, pensamos que a qualificação dos atos do contribuinte
como “elusivos” (e sua consequente “desconsideração”) somente deve ocorrer no bojo
dos procedimentos administrativos específicos previstos na parte final do art.116,
parágrafo único do CTN. Se a desconsideração se tornar definitiva na esfera
administrativa, então o contribuinte poderá questioná-la no Poder Judiciário, nas varas
competentes para examinar a matéria tributária, e não nas varas cíveis.
Foi saudável e mesmo necessária a iniciativa de criar legislativamente uma
norma geral antielusão como “um instrumento eficaz para o combate aos procedimentos
de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito”, expressão
utilizada na Exposição de Motivos do Projeto de Lei Complementar. O que me parece
criticável no art.116, parágrafo único do CTN é a falta de estabelecimento de critérios
substantivos para uma definição mais precisa do que se deve entender por atos ou
negócios jurídicos que pratiquem a “dissimulação da ocorrência do fato gerador ou da
natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”.
É certo que as normas gerais antielusão têm, por definição, uma textura aberta e
não se destinam a uma aplicação automática por mera subsunção lógica, cabendo à
jurisprudência o papel de ir paulatinamente definindo, à luz dos casos concretos, seus
contornos precisos. Contudo, comparada por exemplo com as normas gerais antielusão
de países como Espanha e Portugal (vistas anteriormente), a norma brasileira de 2001 se
destaca por sua redação lacônica e vaga, sem nem mesmo esboçar uma definição mais
concreta dos atos passíveis de desconsideração.
A norma portuguesa, assim como a norma espanhola atualmente em vigor,
estabelece o critério do abuso de formas jurídicas como a pedra de toque para a
interpretação e aplicação da norma geral. A referência no texto da norma aos motivos
exclusiva ou preponderantemente voltados à eliminação ou diferimento de tributos, e
cumulativamente ao caráter artificioso dos atos ou negócios jurídicos praticados,
constitui um valioso elemento inicial para que, a partir dele, a jurisprudência
desempenhe sua tarefa concretizadora.

113
Vide LUPO, Antonello. Branch Report – Italia, In: IFA, Form and substance in tax law, Cahiers de
Droit Fiscal International, Vol.LXXXVIIa, Haia: Kluwer, 2002, pp.357-377 e MORELLO, Umberto. Il
problema della frode alla legge nel Diritto tributario, Diritto e Pratica Tributaria, Pádua, n.º 1, 1991,
pp.8-41.
114
O art.1.344 determina que a causa do contrato é ilícita quando o contrato se utiliza como meio para
eludir a aplicação de uma norma imperativa.

44
O Poder Executivo buscou corrigir a vagueza ou o laconismo do art.116,
parágrafo único do CTN com a edição da Medida Provisória n.º 66, no ano seguinte à
aprovação da norma geral. Mas essa tentativa não se mostrou correta de um ponto de
vista técnico-jurídico, como se explicará a seguir.
A parte final do art.116, parágrafo único do CTN estabelece que a
desconsideração administrativa dos atos e negócios ali previstos deve ocorrer segundo
“procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”. No ano seguinte ao da
aprovação da Lei Complementar 104/2001, o Poder Executivo encaminhou ao
Congresso Nacional a Medida Provisória 66, de 29 de agosto de 2002, cuja ementa se
refere ao estabelecimento dos “procedimentos para desconsideração de atos ou negócios
jurídicos, para fins tributários”.
Os artigos 13 a 19 da Medida Provisória têm como epígrafe a expressão
“procedimentos relativos à norma geral anti-elisão”. O problema é que alguns desses
artigos não se referem em absoluto a procedimentos para aplicação da norma (como
manda a parte final do art.116, parágrafo único do CTN), e sim a critérios substantivos
sobre o alcance da norma, e sobre as consequências normativas de sua aplicação. Aliás,
isso é reconhecido na própria Exposição de Motivos da MP 66, quando se afirma:

11. Os arts. 13 a 19 dispõem sobre as hipóteses em que a autoridade


administrativa, apenas para efeitos tributários, pode desconsiderar atos ou
negócios jurídicos, ressalvadas as situações relacionadas com a prática de
dolo, fraude ou simulação, para as quais a legislação tributária brasileira já
oferece tratamento específico.
12. O projeto identifica as hipóteses de atos ou negócios jurídicos que são
passíveis de desconsideração, pois, embora lícitos, buscam tratamento
tributário favorecido e configuram abuso de forma ou falta de propósito
negocial.

O art.13, parágrafo único define que a norma geral não deve se aplicar a casos
de simulação, dolo ou fraude. O art.14 define que a identificação dos atos ou negócios
jurídicos passíveis de desconsideração deve levar em conta, “entre outras, a ocorrência
de falta de propósito negocial ou abuso de forma”, adotando-se em seguida uma
definição apressada e pouco técnica de cada um desses critérios. Tem razão a Exposição
de Motivos da MP quando afirma em seu item 13 que os conceitos de abuso de forma e
falta de propósito negocial “guardam consistência com os estabelecidos na legislação
tributária de países que, desde algum tempo, disciplinaram a elisão fiscal”, como de
resto deixou claro o estudo sobre a legislação espanhola que desenvolvemos
anteriormente. Contudo, a forma com que o art.14 da Medida Provisória 66 definiu e
regulou o abuso de forma e a falta de propósito negocial deixa muito a desejar do ponto
de vista técnico-jurídico.
O primeiro ponto a criticar é a referência ao abuso de forma e à falta de
propósito negocial como critérios que, “dentre outros”, presidem a aplicação da norma
geral. Ora, se o objetivo era definir critérios para a aplicação da norma, como aliás fica
expressamente registrado na Exposição de Motivos da Medida Provisória, não faz
sentido a menção vaga e aberta a “outros critérios” ou “outras circunstâncias” que
podem determinar a desconsideração administrativa de atos ou negócios jurídicos.
O segundo ponto a criticar é a forma tosca com que o art.14, § 3.º da Medida
Provisória definiu o critério do abuso de formas jurídicas: “considera-se abuso de forma
jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado
econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado”. Por um lado, há um problema de
lógica formal: a definição remete à figura do “negócio indireto”, que a norma não
45
define. Por outro lado, a definição não toca nos aspectos principais da figura do abuso
de forma: a artificiosidade dos atos e o abuso das possibilidades de configuração
oferecidas pelo direito, tal como consta do núcleo das normas gerais espanhola, alemã e
portuguesa.
De qualquer maneira, esses dispositivos da Medida Provisória nada têm a ver
com o estabelecimento de procedimentos para aplicação da norma (que o art.116,
parágrafo único manda serem definidos em lei ordinária), e sim com a delimitação
substantiva do que se deve entender por “dissimular a ocorrência do fato gerador do
tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”.
Essa delimitação das hipóteses em que se deve aplicar o art.116, parágrafo único
do CTN não pode ser feita por lei ordinária, mas sim por lei complementar de âmbito
nacional. A lei ordinária deve definir somente os procedimentos para a aplicação da
norma, conforme determina a parte final do art.116, parágrafo único do CTN. Caso se
pudesse disciplinar por lei ordinária os critérios substantivos para aplicação da norma
geral antielusão, haveria o risco de coexistirem vinte e sete normas gerais diferentes,
pois a legislação dos Estados e do Distrito Federal, tal como a União, poderia definir
critérios distintos para delimitar os casos de aplicação da norma.
Os arts.17, § 2.º e 18, caput, por sua vez, definem as consequências
sancionatórias da aplicação da norma geral: caso o contribuinte opte por pagar o tributo
e os juros de mora em 30 dias do despacho que promover a desconsideração, não se lhe
exigirá multa de ofício, a qual somente será lançada caso o contribuinte não pague o
tributo e os juros de mora naquele prazo. Tampouco aí reside qualquer definição de um
procedimento para aplicação da norma. Cobrar ou não multa de ofício não se refere aos
procedimentos, e sim às consequências da aplicação da norma.
Os procedimentos para aplicação da norma geral são definidos, isto sim, nos
arts. 15 a 19 da Medida Provisória (com exceção dos arts.17, § 2.º e 18, caput, como
explicado no parágrafo acima). Segundo as regras aí estabelecidas, o procedimento
começa com uma representação dirigida pelo servidor competente para lançar o tributo
à autoridade administrativa superior, que houver determinado a instauração do
procedimento de fiscalização do contribuinte. Essa representação deve ser precedida de
notificação ao sujeito passivo, notificação em que se relatarão os fatos que justificam a
desconsideração. O contribuinte então disporá de um prazo de 30 dias para apresentar
esclarecimentos e provas que considere cabíveis. Em seguida, o servidor deve remeter à
apreciação da autoridade administrativa superior a referida representação, que sobre ela
decidirá em despacho fundamentado (não há previsão de prazo). Caso conclua pela
desconsideração administrativa, a fundamentação da decisão deve explicitar quais
foram os atos ou negócios praticados e quais foram os elementos ou fatos
caracterizadores da dissimulação da ocorrência do fato gerador ou da natureza dos
elementos constitutivos da obrigação tributária. Além disso, a decisão deve fornecer a
descrição dos atos ou negócios equivalentes aos praticados, com as respectivas normas
de incidência, e descrever qual o resultado tributário produzido pela adoção dos atos ou
negócios equivalentes, com especificação, por tributo, da base de cálculo, da alíquota
incidente e dos encargos moratórios.
A regulação dos procedimentos de aplicação da norma do art.116, parágrafo
único do CTN termina com a regra (art.18 da Medida Provisória) de que a contestação
do despacho de desconsideração dos atos ou negócios jurídicos e a impugnação do
lançamento serão reunidas em um único processo, para serem decididas
simultaneamente no processo tributário administrativo.
Todos os dispositivos da Medida Provisória 66/2002 que tratavam da norma do
art.116, parágrafo único do CTN foram rechaçados pelo Congresso Nacional, e por isso

46
mesmo retirados do ordenamento jurídico. Desde então, o Poder Executivo deixou de
enviar propostas ao Congresso Nacional para fins de definição dos procedimentos de
aplicação da norma geral antielusão, por motivos que já ficaram claros neste estudo: já
existe na jurisprudência dos tribunais administrativos e judiciais uma norma geral
antielisão – o conceito causalista de simulação.

5. Para evitarmos a incompletude da pesquisa


5.1. Existe algum aspecto relevante do planejamento tributário não abordado nas
questões anteriores?
5.2. Quais as questões que poderiam ser colocadas, e quais seriam as correspondentes
respostas, para evitarmos a incompletude de nossa pesquisa?

• Sugestão de alterações legislativas no ordenamento brasileiro115


As propostas que ora fazemos não se dirigem a viabilizar o funcionamento
prático de uma norma geral antielusão no Brasil, pois em nossa jurisprudência já há uma
norma geral em funcionamento, como se viu supra.
A primeira questão que se deve enfrentar é se é ou não recomendável combater
os planejamentos tributários abusivos de um modo distinto do atual, com uma norma
geral distinta da que atualmente é reconhecida pela jurisprudência brasileira. Minha
opinião é que é recomendável essa mudança, pois o atual sistema, ainda que não chegue
a ser inconstitucional, gera uma carga excessiva e desnecessária de insegurança.
São dois os principais problemas do sistema atual. Em primeiro lugar, um
mesmo instituto jurídico – a simulação – é utilizado para combater situações bem
distintas do ponto de vista fiscal: os casos de sonegação/defraudação e os casos de
elusão. Pensamos que esses dois grupos de possíveis condutas do contribuinte devem
ter um tratamento claramente distinto por parte do ordenamento. Com o sistema atual,
ora os planejamentos tidos por abusivos são equiparados a atos de sonegação e sofrem
imposição de pesadas multas administrativas, ora são vistos como um tipo distinto de
simulação e, portanto, se veem livres de multas agravadas, sem que exista um claro e
racional discurso aplicativo que permita distinguir as razões que levam a uma ou outra
solução. Em segundo lugar, atualmente a desconsideração administrativa de atos e
negócios jurídicos é feita sem respeitar um procedimento que garanta que o contribuinte
possa, antes de se tomar a decisão por desconsiderar ou não os seus atos, conhecer os
fatos que levam a autoridade fiscal a considerar que seu planejamento é abusivo e
produzir os argumentos e provas que considere pertinentes. Vale dizer: atualmente os
objetivos do art.116, parágrafo único do CTN (combate dos planejamentos com abuso
de forma jurídica) vêm sendo perseguidos, sem que as garantias procedimentais para a
aplicação da norma sejam oferecidas ao contribuinte.
Aceita a premissa de que se deve alterar a via pela qual atualmente se combate a
elusão, a primeira questão que se coloca é: deve ser alterada a redação do próprio
art.116, parágrafo único do CTN por meio de uma lei complementar, ou deve ser
simplesmente disciplinado por lei ordinária o regime dos procedimentos para aplicação
da norma?
Pensamos que a própria redação do art.116, parágrafo único deve ser alterada, de
modo a introduzir no texto legal referências mais claras e concretas aos critérios com

115
As presentes propostas constam de nosso artigo “Estudo comparativo sobre o combate ao
planejamento tributário abusivo na Espanha e no Brasil. Sugestão de alterações legislativas no
ordenamento brasileiro”. Revista de Informação Legislativa, v. 194, 2012, 117-146

47
base nos quais a autoridade administrativa poderá promover a desconsideração de atos e
negócios jurídicos. Esses critérios podem perfeitamente ser os utilizados pelas normas
portuguesa, espanhola e alemã, ou seja, os critérios de notória artificiosidade e de
inexistência de efeitos econômicos ou jurídicos relevantes distintos da economia de
tributos e distintos dos efeitos derivados de uma formalização jurídica não abusiva dos
propósitos práticos buscados pelas partes.
A introdução desses critérios no próprio texto do art.116, parágrafo único do
CTN teria resultados muito positivos. Em primeiro lugar, acabaria com a ambiguidade
quanto ao sentido do verbo “dissimular” utilizado pela norma. Em segundo lugar, daria
à Administração e à jurisprudência uma orientação mais concreta sobre como se devem
estabelecer os limites entre o planejamento artificioso/abusivo e o planejamento lícito,
diminuindo sensivelmente o risco de que cada autoridade administrativa ou cada
tribunal administrativo ou judicial interprete e aplique de forma radicalmente distinta a
norma geral antielusão.
Essa definição dos critérios com base nos quais a autoridade administrativa
poderá promover a desconsideração de atos e negócios jurídicos deve também ser
acompanhada por uma norma legal que defina que, na presença desses critérios, afasta-
se a qualificação de simulação.
Alterada a redação do art.116, parágrafo único do CTN no sentido acima
proposto, coloca-se a questão de como regular os procedimentos para aplicação da
norma. Neste particular, pensamos que os procedimentos estabelecidos nos arts. 15 a 19
da Medida Provisória 66/2002 são bastante satisfatórios, visto que asseguram ao
contribuinte a oportunidade de conhecer os fatos com base nos quais o servidor pensa
estar configurada a elusão, e sobre esses fatos poder produzir provas e argumentos antes
que a decisão pela desconsideração esteja tomada (art. 16, §§ 1.º e 2.º da MP 66). Além
disso, os procedimentos aí previstos exigem que tanto a representação do servidor
(art.16, § 3.º) quanto a decisão da autoridade superior que eventualmente decidir pela
desconsideração (art. 17, § 1.º) sejam racionalmente fundamentadas, com a exigência de
expressa especificação dos atos ou negócios praticados, dos elementos ou fatos
caracterizadores de que os atos ou negócios jurídicos teriam sido praticados com abuso,
dos atos ou negócios equivalentes aos praticados, e do resultado tributário produzido
pela adoção dos atos ou negócios equivalentes.
Ainda com relação a esses procedimentos, consideramos que não se deve optar
por reservar a uma comissão de expertos ou de autoridades centrais da administração
tributária a decisão por desconsiderar ou não os atos e negócios praticados com abuso.
A experiência espanhola demonstra que tornar o procedimento de desconsideração
demasiado específico, e fazê-lo depender do funcionamento de uma Comissão
centralizada tem o efeito de aumentar consideravelmente o risco de a norma geral
antielusão simplesmente não sair do papel.
Por fim, consideramos que a definição dos elementos conceituais, dos
procedimentos e das consequências da aplicação da norma geral antielusão deve ser
acompanhada do estabelecimento, pela lei, de um dever de informação detalhada sobre
os atos de planejamento tributário, independentemente de sua qualificação como lícitos
ou abusivos. Trata-se de obrigar os sujeitos passivos que implementem operações de
planejamento tributário cuja economia alcançada supere determinada quantia a informar
à Administração, de maneira detalhada e no mesmo exercício fiscal em que as
operações tenham sido praticadas, quais foram os atos societários e comerciais eu
compuseram o planejamento, seja no Brasil ou no exterior.
Esses deveres de ampla e detalhada informação já existem sob diversas
modalidades na legislação de alguns países, e recentemente foram objeto de um estudo

48
específico do Comitê de Assuntos Fiscais da OCDE116. Com a existência desses deveres
de informação, acompanhada da previsão de sanções administrativas para os sujeitos
passivos que não os cumprirem, somente estariam livres de multas administrativas as
situações de elusão fiscal em que o contribuinte tenha informado detalhada e
tempestivamente sobre as operações comerciais e societárias por meio das quais
engendrou seu planejamento tributário.
Com efeito, no sistema atual, é uma meia verdade a afirmação de que nos casos
de planejamento tributário não simulado – seja lícito, seja com abuso de formas
jurídicas – os contribuintes nada ocultam nem escondem da Administração. No sistema
atual, os contribuintes que põem em prática complexas e sofisticadas operações de
planejamento tributário – quase sempre com atos e negócios praticados também no
exterior – têm somente o dever de fazer refletir tais operações em suas demonstrações
financeiras e em suas declarações, como a do imposto sobre a renda. Contudo, isso está
muito longe de um efetivo dever de propiciar à Administração o conhecimento do
contexto global dos planejamentos tributários. Com isso, os contribuintes que realizam
sofisticados planejamentos tributários internacionais se beneficiam da considerável
probabilidade de que a fiscalização tributária não consiga, dentro do prazo de
decadência, tomar conhecimento das operações praticadas, nem do nexo existente entre
elas.
O estabelecimento desses amplos deveres de informação sobre os planejamentos
tributários postos em prática pelos contribuintes não incidiria na definição das hipóteses
em que um planejamento tributário se considera abusivo ou não. Poderia ocorrer, por
exemplo, que um contribuinte providenciasse o envio das informações sobre
determinado planejamento e a Administração, considerando o caso como um
planejamento lícito, nada tivesse que lançar.
Em suma, com as propostas de previsão legislativa de critérios substantivos para
identificação dos casos de aplicação do art.116, § 1.º do CTN e de criação de deveres de
informação detalhada sobre os planejamentos tributários realizados, consideramos que
haveria sensíveis melhoras no que diz respeito ao grau de transparência, justiça e
segurança jurídica do sistema de combate aos planejamentos tributários abusivos.

116
OCDE, Tackling Agressive Tax Planning Through Improved Transparency and Disclosure,
Paris: OCDE, 2011.

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