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Dados de Catalogação na Publicaç ão (CIP) Internacional

(Cãmara Br asileira do Livro , SP, Brasil) A Joseph Chaikin

Sontag, Susan, 193.3-


S686 v A vontade radical : est il os I Susan Sontag ; tra-
dução João Rcb e r to Mart ins Filho . -- São Paulo : C01Jt"
panhia das Letras , 19 87.

ISBN 85-85095-19- 9

1. Ensaios norte-americanos I. Tftulo.

87- 0503 CDI>--814 . 5


Indicas para catálago sistemático:

1. Ensaios : Sêculo 20 Literatura nort~americana


814.5
2. sécul o 20 : Ensaios Literatura nort~americana
814.5

Copyright © 1966, 1967, 1968, 1969 by Susan Sontag

Título original:
Styles of Radical Will
Capa:
Ettore Bottini
Revisão:
Genulino Santos
Teima Domingues
Sy/via Corrêa_

1987
Editora Schwarcz Ltda.
Rua Barra Funda, 296
01152 - São Paul P
F n ·s: (011) 82"· "2fh t• 7·91 t
A ESTÉTICA DO SILÊNCIO

Toda época deve reinventar seu próprio projeto de ''espiri-


tualidade". (Espiritual idade = planos, terminologias, noções de
conduta voltados para a resolução das penosas contradições estru-
turais inerentes à situação do homem, para a perfeição da consciên-
1f
'
cia humana e a transcendência.)
Na era moderna, uma das mais ativas metáforas para o proje-
to espiritual é a ~~k.:1A~~tiv~dades do pintor, do músico, do poeta,
do bailarin.o, uma vez reunidas-sob esst ~~s·i ~nàçãô')ehen~ (um
gesto relativamente recente), mostraram-se um ugar particular-
mente propício à representaçã.o dos dramas formais que assediam
a consciência, tornando-se cada obra de arte individual um para- .
digma mais ou menos perspicaz para a regulamentação ou a recon-
ciliação de tais contradições. Por certo, o lugar exige contínua
renovação . Seja qual for o objetivo colocado à arte, ele afinal sere-
vela restritivo, se comparado às metas muito mais amplas da cons-
ciência. A alje,_ela própria uma J orma de mistificação, sofre uma
sucessã~ cris~-=-d e desmistificação; antigas metas artí~tTc~;"Sãõ
atacadas e, ost~m;ivamente, substituídas; mapas usados da cons-
ciência são refeitos. Mas o ue dá a todas essàs crises a sua energia
-uma ener ia usufruída ~rn c~mum, pÕr ~~simdízêr :_T a
- mÓ-
pria unificação de numerosas e díspares atividades em l,If!l gênero
untco , õii1omento em gy~aArte ~emà luz~-cÕmeça a nova etapa
arte. aí em iantê,Cíualg,gg das_atividades aí reunidas passa a
ser lima ati~id~de prof~ndamente problemá,.iJs..ã;êÕm j odÕ1 os -;eu1- ~~
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fi I () ' uim ntos e, em última instância, com o seu próprio direito de
I li r , endo passíveis de questionamento. diação. A arte torna-se a inimiga do artista, pois nega a realização
' da promoção das artes à Arte que provém o mito dominan- - a transcendência - que ele deseja.
obrc a arte, o do caráter absoluto da atividade do artista. Na sua Portanto a arte passa a ser considerada como algo que deve)
versão inicial e menos refletida, o mito tratava a arte como uma ex- ser superado . Um novo elemento ingressa na obra de arte indivi-
pressllo da consciência humana, da consciência que busca conhecer dual e se torna parte constitutiva dela: o apelo (tácito ou aberto) à
a si mesma. (Os padrões valorativos gerados por essa versão do mi- sua própria abolição - e, em última instância, à~ ão da p.ró-
to foram facilmente alcançados: algumas expressões eram mais ria arte.
completas, mais dignificantes, mais informativas ou ricas que ou-
tras.) A versão mais recente do mito postula uma relação mais com-
plexa e ~á~a entré arte e consciência. Negando que a arte Sê,Ja 2
simples e xpressão, o mito mais novo relaciona a arte à necessidade
o u capacidade da' d;';;iiú para ·a auto-~li~nação. A arte deixa 'áe ser A cena converte-se para uma sala vazia.
entendi da como a consciênciã que expre; sa e, portãilt9,im licit~­ Rimbaud partiu para a Abissínia a fim de fazer fortuna no
mente fir~a si própria. Ela não é a consciência per se mas, ao comércio de escravos. Wittgenstein, após um período como mestre-
contráno , seu antídoto , que deriva do âmago da própria consciên- escola de aldeia, escolheu um trabalho servil como empregado de .
cia. (Os padrões valorativos gerados por tal versão do mito mostra- hospital. Duchamp voltou-se para o xadrez. Como acompanha-
ram-se muito mais difíceis de ser alcançados.) mento dessas renúncias exemplares a uma vocação, cada um deles
O mito mais recente, derivado de uma concepção pós-psicoló- declarou que via suas.realizações prévias na poesia, na filosofia ou
gica de consciência, instala no seio da atividade artística muitos dos na arte como fúteis , insignificantes.
1 radoxos envolvidos na aquisição de um estado de ser absoluto, Contudo a opção pelo silêncio permanente não nega a sua
d scrito pelos grandes místicos religiosos. Assim como a atividade obra. Pelo contrário, de modo retroati~o confere e_ crescent ~Ç,a
d mi tico deve culminar em uma via negativa, em uma teologia da ~~que foi interrompido - o repúdio à obra tornan-
lUScncia de Deus, em uma ânsia da névoa de desconhecimento do-se uma nova fonte, de sua vitalidade, um certificado de incontes-
li m do conhecimento, e do silêncio além do discurso, a arte deve tável seriedade. Essa seriedade consiste em não encarar a arte (ou a
I ncl r à antiarte, à eliminação do "tema" (do "objeto", da ima- filosofia praticada como uma forma de arte: Wittgenstein) como
•n), à substituição da intenção pelo acaso e à busca do silêncio. algo cuja seriedade persiste para sempre, um "fim", um veículo
Na primeira e linear versão da relação da arte com a consciên-
l ' l, dls' rn ia-se uma luta entre a integridade "espiritual" dos im-
pu! o Tlttivos e a " materialidade" perturbadora da vida comum,
permanente para a ambição espiritual. A a~aipe~~e }l
~a.é-a que €-ncara a firte como um "melo" para alguma coisa que
talvez só pQssa ser atingida pelo abandono da arte; num julgamen-
1
q11 I llll ,, b táculos coloca à trajetória da sublimação autêntica. to mais impaciente, a arte é um falso caminho ou (na expressão' do
l'tll 111 l v rs mais recente, em que a arte é parcela de uma tran- artlstã dadá ·Jacques Vaché) uma estupidez. - - "
• 1 •• d ti li ' 1 c m a consciência, apresenta um conflito mais pro- - - Embora não seja mais uma confi;são, a arte é mais do qu~
llllldtt 1 1111 Ir 111 1 . O.,;.:,espírito" que busca a corporifi~acão nããrfe nunca uma libertação, um exercício de ascetismo. Através dela o
ll11t 1 '11111 o • ráter "material" dà própnã arte. A arte é des- artista torna-se purificado - de si próprio e, por fim, de sua arte. O

---
lr ' lt 1ld 1 ttllll<l rutu ita e a própria concretude dos instrumentos artista ainda está envolvido num progresso em direção ao "bem" .
d11 1111 I 1 ( 1 1111 f u·t i ular, no caso da linguagem, sua historicida- Mas , enquanto anteriormente o bem do artista era o domínio e o
1I '"11111 um ardil. P raticada em um mundo provido de
~ - ~
pleno desempenho de sua arte, agora o seu bem maisJ!levãdo é atin:.
I lllldH mão e especificamente confundida pela trai-· gifõpo-ntõ onde tais metas-de excelência tornam-se insi_gnificantes

13
12
,,
. j., ·~
r~
I
\: para si, emocional e eticamente, e ele fica mais satisfeito por estar I literalmente silencioso. O mais usual é que Qgntinue a falar, mas de
v -· ehrsilêncio que por encontrar uma voz na arte.O silêncio nesse sen- uma maneira que seu público não pode ouvir. A maioria da arte de
c ~ tlâo-;-como término, p~opõe um estado de (;spírito de ultimação an- : valor de nosso tempo tem sido experimentada pelo público como
um movimento em direção ao silêncio (ou à ininteligibilidade, à
.í.'\ ~ , titético àquele que informa o uso sério tradicional do silêncio pelo
"-.. ~......, artista autoconsciente (descrito de maneira magistral por Valéry e
\ ~ · Rilke): como uma zona de meditação, de preparação para o apri-
l !ny:i§illl~.fl~~~· à i~audi~de); _c9!!!2_UJTI ~esmJI.Qtelm]le_n!o da
~.competencia,do artista, de seu sentido responsavel de voc.a ção- e,
~nto, êomo-umaãgress"ãõ contrá eles.
:, J \ moramento espiritual, uma ordália que finda na conquista do direi- ·-
O hábito crônico da arte mÕderna de desagradar, provocar ou
~ · to de falar.
,>... ~ \ Na medida em que é sério, o artista é continuam~nte tentado frustar o seu público pode ser encarado como uma participação
, '\ ~ \ a cortar o diálogo que mantém com um público. O silêncio é a mais · limitada e vicária no ideal de silêncio que foi elevado como modelo
)'~ ):. ampla extensão dessa relutância em se comunicar, dessa ambivalên- máximo de "seriedade'", na estética contemporânea.
~ -~ cia quanto a fazer contato com o público, que constitui um tema Porém é ao mesmo tempo uma forma contraditória de parti-
~ fundamental da arte moderna, com seu infatigável compromisso cipar do ideal de silêncio -não apenas porque o artista continua a
~ ~com o "novo" e/ou com o "esotérico". O~ilêncio é o último gesto realizar obras de arte, mas também porque o isolamento da obra
2> extr~terreno do artista: através do silêf!CÍO e_le se libe.rta do cativeiro em relação a seu público nunca perdura. Com a passagem do tem-
~\ servil face ao mundo, que aparece como patrão, chente, consum,i- po e a intervenção de obras novas e mais difíceis, a transgressão do
Oõr", oponente, árbitro e desvirtuador de sua obr . artista torna-se agradável e, afinal, legítima. Goethe acusou Kleist
o avia não se poae deixar de perceber nessa renúncia à "so- de ter escrito suas peças para um "teatro invisível". Contudo, pos-
ciedade" um gesto altamente social. As pistas para a libertação teriormente, o teatro invisível toma-se "visível". O feio, discor-
final do artista, diante da necessidade de praticar sua vocação, pro- dante e sem sentido, passa a ser "belo". A história da arte é uma
vêm da observação de seus companheiros artistas e da comparação sucessão de transgressõe:s bem-sucedidas.
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de si próprio com eles. Uma decisão exemplar dessa espécie só pode Q_ lvo característico_d_a art~mo_der..na - ser inaceitá:uel-para
ser efetuada após o artista ter demonstrado que possui gênio e tê-lo seu público -:c:- afirma de maneira invers&. a inaceitabilidade~para
exercido com autoridade. Uma vez suplantados seus pares pelos pa- o.Jlr.tistà da própria pr,esença de um públiGo (no sentido atual,
drões que reconhece, há apenas um caminho para seu orgulho. Pois ~m conjunto d~ espectadores voyeuristas). Pelo menos desde que
ser vítima de ânsia de silêncio é ser, ainda num sentido adicional, Nietzsche observou, em O Nascimento da Tragédia, que um público
superior a todos os demais. Isso sugere que o artista teve a sagaci- de espectadores como o conhecemos, aquelas pessoas presentes que
dade de levantar mais indagações que as outras pessoas, e que pos- os atores ignoram, era desconhecido entre os gregos, uma boa par-
sui nervos mais fortes e padrões mais elevados de excelência. (Pare- cela da arte contemporânea parece movida pelo desej~ de.eliminar--
ce desnecessário demqnstrar...._q~JI.~po~t;, Qersistir na inquiri- b público da arte, uma empresa que, com freqüência, se apresenta
ção de sua arte até que~le ou_esJ_a estej~.ést~Como escreveu como uma tentativa de eliminar a própria Arte. (Em benefício d
René Char: "Nenhum pássaro tem-ânimo para cãntar num matagal
de indagações".) ----
·'Vlcrã'-·. - - - - - ------·
Comprometida com a idéia de que o poder da arte se localiza
em seu poder de negar, a última arma na inconsistente guerra do ar-
tista com seu público é inClinar-se cada vez mais ao silêncio. A lacu-
na sensorial ou conceitual entre o artista e seu público, o espaço do
3
diálogo perdido ou rompido podem também constituir os funda-
A exemplar opção do artista moderno pelo silêncio raramente mentos para uma ~~m~~~céticâ.i Beckett fala de "meu sonho
é levada a tal ponto de simplificação final, de forma que se torne de uma arte resignada com sua insuperável indigência e demasiado

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rgulhosa para a farsa de. dar e receber". ~as ~ão s~ po~e abolir nha ciência de nenhum estímulo ou que era incapaz de elaborar
~ma transação mínima, um intercâmbip _I]Íí~0;,.9 e dons .- da uma resposta. Mas tal não pode acontecer; tampóu'co pode ser in-
mesma forma que não existe nenhum ascetf~mo tal_entoso e n~_oro­ duzido programaticamente. A não-ciência de nenhum estímulo e a
so que, seja qual for a sua intenção, não produza um ganho (ao in- incapacidade para elaborar uma resposta somente podem resultar
vés de uma perda) na capacidade para o prazer. de uma presença deficiente da parte do espectador, ou de uma má
E nenhuma das agressões cometidas intencional ou inadverti- compreensão de suas próprias reações (induzidas em erro por idéias
damente pelos artistas modernos foi bem-sucedida, seja ao tentar restritivas sobre qual deveria ser uma resposta "relevante"). Sendo
abolir o público, seja ao tentar transformá-lo em alguma outra coi- o público, por definição, constituído por seres sensíveis efi'fUffiã
sa, numa comunidade engajada em uma atividade comum. Eles são daâa "situação", é-lhe impossível não ter resposta alguma. - -
incapazes disso. Até onde a arte é entendida e valorizada como uma j Nem pode o silêncio, em seu estado literal, existir como apro-
atividade "absoluta", será uma atividade separada e elitista. As eli- j priedade de uma obra de arte- mesmo de obras como OS.(!_ady-_,
tes pressupõem as massas. Na medida em que a melhor arteaehne- l mades* de Duchamp ou o 4'33" de Cage, nas quais o artista visi-
se por objetivos essencialmente "clericais", ela pressupõe e confir- velmente nada mais fez para satisfazer qualquer critério estabeleci-
ma a existência de uma laicidade voyeurista relativamente passiva, do de arte que colocar um objeto em uma galeria ou situar uma exe-
jamais plenamente iniciada, que é com regularidade convocada cução em um palco de concertos. Não há superfície neutra, discur-
para assistir, ler ou escutar, sendo depois dispensada. so neutro, tema ou forma neutras. Uma coisa é neutra apenas com
O máximo que o artista faz é modificar os termos djfer~ntes relação a algo mais - como uma intenção ou uma expectativa. En-
nessa Situação vis-à-vis com o público e ele próprio. Discutir a idéia quanto propriedade da obra de arte em si, o silêncio pode existir
do silêncio na arte é discutir as várias alternativas no interior dessa apenas num sentido arquitetado ou não-literal. (Colocando-se de
situação em essencial inalterável. 7 /' ·., 11 lj t/Íf' t//( I outro modo: se uma obra de arte existe de alguma forma, seu silên-
cio é apenas um elemento nela.) Em lugar do silêncio puro ou al-
l;t/\. Ü,' cançado encontram-se vários movtme~mosn o sentiaõâe~um senrre
4 reffóêêdente horizonte de silêncio - movimêritõs qué,Pôr defini-
ção, jamais podem serlíÜrâ"rnentê consumado . Um dos·resultãdos
_Quão literalmente o silêncio figura na arte? --é um tipo de ;rte que muitas-pessoas caracterizam, de modo pejora-
J}o silêncio existe como uma decisão - no suicídio exemplar tivo, como taciturna, deprimida, submissa e fria. No entanto essas
do artista (Kleist, Lautréamont), que desse modo testemunha que qualidades privativas existem no contexto da intenção objetiva do
foi "demasiado longe", e nas já mencionadas renúncias modelares artista, que é sempre discernível. Cultivar o silêncio metafórico
à vocação artística. sugerido por temas convencionalmente sem · como em boa
O silêncio também existe como uma punição (autopunição) ce a a arte Pop) e onstrúir ormas "mínimas" parecem
- na loucura exemplar de artistas (Hõlderlin, Artaud) que de- carecer de ressonância emocwnal são em -si o ões vigorosas e com
monstram que a própria sanidade pode ser o preço da violação das freqüência estimulantes. . _
fronteiras aceitas da consciência e, com certeza, nas penalidades Por hm, mesmo sem atribuir intenções objetivas à obra de
(que vão da censura e da destruição física das obras de arte às mui- arte, persiste a verdade inescapável sobre a percepção: a positivida-
tas, ao exílio, à prisão do artista) impostas pela "sociedade" face de de toda experiência em todos os momentos dela. Como insistiu
ao inconformismo espiritual ou à subversão da sensibilidade do Cage: "Não existe o silêncio. Sempre há alguma coisa acontecendo
\ grupo, por parte do artista.
O silêncio não existe, porém, num sentido literal, como a ex- ,.----::-1•) Objetos manufaturados promovidos à condição de objetos artísticos por
periência de um público. Isso significaria que o espectador não ti- ~ do artista. (N .T.)

16 17
que provoca um som". (Cage descreveu como, mesmo numa câma- própria arte - não podem ser tomados por seu valor nominal, de
ra silenciosa, ainda ouvia dois sons: a batida de seu coração e o flu- forma não-dialética. O silêncio e idéias afins (como vazio, redução,
xo do sangue em suas têmporas.) Da mesma forma, não existe o es- "grau zero") são noções-limite com uma série de usos muito com-
paço vazio. Na medida em que o olho humano está observando, plexa, termos dominantes de uma retórica espiritual e cultural espe-
sempre há algo a ser visto. Olhar para alguma coisa que está "va- cífica. Descrever o silêncio como um termo retórico não significa,
zia" ainda é olhar, ainda é ver algo- quando nada, os fantasmas obviamente, condenar tal retórica como fraudulenta ou de má-fé.

li de suas próprias expectativas. Para perceber o volume, a pessoa\'


preci~ reter um agudo sentido d; ~azio que o destaca; inversamen_-
'fe, para perceber o vazio, é necessário apreender outras zonas do
Os mitos do silêncio e do vazio são quase tão férteis e viáveis quan-
to se podia imaginar em uma época doente - que é, necessaria-
mente, uma era em que estados psíquicos "doentios" fornecem as
IJ1U~omo pr~enchidas. (Em Através do Espelho, Alice encontra·
1 energias para a maior parte das obras superiores nas artes. Todavia
uma loja "que parecia estar cheia de toda sorte de coisas curiosas não se pode negar o pathos desses mitos.
- mas a parte mais estranha de tudo isso é que sempre que ela fixa- Esse palhas aparece no fato de que a idéia de silêncio possibi-
va os olhos numa prateleira, a fim de divisar exatamente o que ha- ~' lita, no essencial, apenas dois tipos de desenvolvimentos valiosos.
via sobre ela, aquela prateleira particular estava sempre absoluta- Ou ela é tomada até o ponto da total autonegação (como arte), ou é
mente vazia, embora as outras ao redor dela estivessem tão abarro- praticada de uma forma que é heróica e engenhosamente inconsis-
tadas quanto podiam".) 11 tente.
O "silêncio" nunca deixa de implicar seu oposto e depender i'
de sua presença: assim como não pode existir "em cima" sem "em-
.. 6
baixo" ou "esquerda" sem "direita", é necessário reconhecer um ~
meio circundante de som e !in ua em para se admitir o silênc·o. Es- arte de nosso tempo é ruidosa, com apelos ao silêncio.
e n o apenas existe em um mundo pleno de discurso e outros sons, ·v'· Um niilismo coquete e mesmo JOVial. econ ece-se o impera-
como ainda tem em sua identidade um espaço de tempo que é per- ::\ tivo do silêncio, mas continua-se a falar da mesma forma. Quando
furado pelo som. (Assim, grande parte da beleza do mutismo de se descobre que não se tem nada a dizer, ~~se uma mane1ra
Harpo Marx deriva do fato de ele estar cercado de conversadores ·' · 'élediZerlsso~- - .____. - --
maníacos.) ··"-
,, \J --- Beckett expressou o desejo de que a arte deveria renunciar a
Um vazio genuíno, um puro silêncio não é exeqüível- seja todos os projetos adicionais por questões problemáticas no "plano
conceitualmente ou de fato. Quando nada, porque a obra de arte ,· do exeqüível", de que a arte deveria aposeniar-se, "farta de explo- ..~
existe em um mundo preenchido com muitas outras coisas, o artista ; rações insignificantes, farta de simular ser capaz, de ser capaz, de );--
que cria o silêncio ou o vazio deve produzir algo dialético: um vá- fazer um pouco melhor a mesma velha coisa, de dar um passo a
cuo pleno, um vazio enriquecedor, um silêncio ressoante ou elo- . mais em uma estrada melancólica". A alternativa é uma arte que

~
, qüente. O silêncio continua a ser, de modo inelutável, uma fo rm_3 ' ' '~· consiste na "expressão de que nada há a expressar, nada do que ex-
~ discurso(em muitos exemplos, de protesto ou acusação) e um :. pressar, nenhum poder a expressar, nenhum desejo de expressar,
elemento~ u;; diálogo. - ' I
além da obrigação de expressar". De onde então provém essa obri- (,,
gação? A própria estética do desejo de morte parece fazer desse ~-:r
sejo alguma coisa incorrigivelmente viva.
5 • Apollinaire diz: '' J'ai fait des gestes blancs parmi les solitu-
des". Contudo ele está gesticulando.
Os programas em defesa de uma redução radical de meios e Uma vez que o artista não pode literalmente abraçar o silên-
efeitos na arte - incluindo a exigência recente de uma renúncia à cio e permanecer um artista, o que a retórica do silêncio indica é

18 19
uma determinação em perseguir suas atividades de forma mais errá-
ti a que antes. Uma maneira é indicada pela noção da "margem de novas áreas e objetos de atenção. Essa tarefa ainda é admitida,
plena" de Breton. O artista é recomendado a se devotar ao preen- mas se tornou problemática. A própria faculdade de atenção pas-
chimento da periferia do espaço artístico, deixando em branco a sou a ser questionada e sujeita a padrões mais rigorosos. Como diz
área central de uso. A arte torna-se privativa, anêmica- cQIDo su- Jaspers: "Já é muito ver alguma coisa claramente, pois nós não ve-";?y:-
gere o título do único esfor o de realiza ão cinem to ráfica de Du- mos nada claramente''. · ·· · r

lc amp, mema nemico um trabalho de 1924-26. Beckett projeta


~a de uma "pintura empobrecida", que é "autenticamente in-
..- Talvez a qualidade da atenção que se aplica a alguma coisa seja
melhor (menos contaminada, menos distraída) se se oferece menos.
Supridos com a arte empobrecida, purificados pelo silêncio, talvez
frutífera, incapaz de qualquer imagem, seja ela qual for". O mani-
festo de.Jerzy .protowski em defesa do Teatro Laboratório, na Po- possamos então começar a transcender a frustrante seletividade de
lônia, é denominado "Apelo por um Teatro Pobre". Tais progra- atenção, com suas inevitáveis di~torções de experiência. Idealmen-
mas a favor de um empobrecimento da arte não devem ser com- te, seríamos assim capazes de 'Prestar atenção-a todas as coisas.
preendidos apenas como admoestações terroristas ao público, mas A tendência é caminhar para cada vez menos. Contudo nunca
principalmente como estratégias para o aprimoramento da expe- o "menos" apresentou-se de modo tão ostensivo como "mais". ..;L-
riência do público. As noções de silêncio, vazio e redução delineiam À luz do mito dominante, em que a arte visa tornar-se uma
novas receitas para os atos de 'o lhar, ouvir etc. -as qua1s ou pro- "experiência total", solicitando atenção total, as estratégias de em-
movem uma experiência de arte mais imediata e sensível, ou enfren- pobrecimento e redução indicam a ambição mais exaltada que a
tam a obra de arte de uma maneira mais consciente e conceitual. arte pode adotar. Debaixo do que parece ser uma vigorosa modés-
tia, senão real debilidade, deve-se discernir uma enérgica blasfêmia
secular: o desejo de atingir o ilimitado, não-seletivo e completo co-
7 nhecimento de "Deus".

Considere-se a correlação entre a ordem de uma redução dt:


meios e efeitos na arte, cujo horizonte é o silêncio, e a faculdade da 8
atenção. Em um de seus aspectos, a arte é uma técnica para a con-
centração da atenção, para o aprendizado de habilidades de aten- Linguagem parece ser uma metáfora privilegiada para expres-
ção. (Embora o conjunto do ambiente humano possa ser assim des- sar o caráter mediado da criação artística e da obra de arte. Por um
crito - como um instrumento pedagógico -, essa descrição apli- lado, o discurso é ao mesmo tempo um meio imaterial (se compara-
ca-se particularmente às obras de arte.) A história das artes equiva- do, digamos , às imagens) e uma atividade humana com um interes-
le à descoberta e formulação de um repertório de objetos sobre os se aparentemente essencial no projeto de transcendência, de se mo-
quais dispensar atenção. É possível traçar exata e ordenadamente ver além do singular e contingente (sendo todas as palavras abstra-
- 'como o olho da arte garimpou o nosso meio ambiente, ''nomean- ções que apenas grosseiramente se baseiam ou fazem referência a
do'', efetuando sua seleção limitada de coisas que as pessoas pas-
.---
sam a perceber então como entidades significativas, agradáveis e
complexas. (Oscar Wilde salientou que as pessoas não viam os ne'J
voeiros antes que certos poetas e pintores do século XIX lhes ensi- '
arte.
------
particulares concretos). Por outro lado, a linguagem é o mais impu-
t:Q, contaminado e ~esgota o e toôos os materiãis de- qués ê- faz a

' ...,
~- -.. - -- - .. ..- - --·--
Esse caráter dual da linguagem - sua abstração e sua "pros-
nasse como fazê-lo; e pode-se dizer que ninguém via tanto da varie- tração" na história- serve como um microcosmo do caráter infe-
dade e da sutileza do semblante humano antes da era do cinema. rt.--""' liz das artes de hoje. A arte está tão avançada nas trilhas labirínti-
1
Outrora, a tarefa do artista parecia ser a simples inauguração cas do projeto de transcendência, que dificilmente se pode conceber
que ela volte atrás, a não ser pela mais drástica e punitiva "revolu-
20
21
-- ~ - --- ~~ ~ . -

ção cultural". Todavia a arte está também soçobrando na maré 9


debilitante do que antes parecia ser a realização final do pensamen-
.0 to europeu: a consciência histórica secular. Em pouco mais de dois A arte que é "silenciosa" constitui uma aproximação a essa
j
':f séculos, a consciência da história transformou a si própria de uma condição visionária e a-histórica.

7
~ libertação, um abrir de portas, uma iluminação abençoada, em_ ~ Considerem-se as diferenças entre olhar (looking) e fitar (sta-
~ .j, uma carga quase insuportável de autoconsciência. É quase impõSsi- i ring). Um olhar é voluntário e também móvel, crescendo e decres-
)' ,.f
( Vel para0 artista escrev.er Uma palavra (OU transmitir Uma imagem, I cendo em intensidade à medida que seus focos de interesse são per-
ou realizar um gesto) que não o relembre de algo já efetuado. ._/ cebidos e então esgotados. O fitar tem, essencialmente, o caráter de
- Como diz Nietzsêhe: " Nossa preeminência: vivemos em uma uma compulsão: é estável, não-modulado, "fixo" .
era de comparação, podemos verificar como nunca foi verificado A arte tradicional convida a olhar. A arte silenciosa engendra
antes" . Como conseqüência, "gozamos diferentemente, sofremos o fitar. A arte silenciosa - ao menos em princípio - não permite
diferentemente: nossa atividade instintiva é comparar um número liberar-se da atenção, porque nunca houve nenhuma solicitação de-
~mais ouvido de cojsas" la. QJi.!ill' t_alvez seja o mais_af~stado da história~ o mais próximo\
Até certo ponto, a comunidade e a historicidade dos meios do da eternidade que a arte contemporânea é -capaz de atingir. _.....~
artista estão implícitos no próprio fato da intersubjetividade: cada
pessoa é um ser-no-mundo. Entretanto hoje, em particular nas ar-
tes que empregam a linguagem, esse estado comum das coisas é sen- 10
tido como um problema extraordinário e esgotante.
A linguagem é experimentada não meramente como algo O silêncio é uma metáfora para uma visão asseada, não-inter-
compartilhado, mas como uma coisa corrompida, vergada pelo pe- ferente, apropriada a obras de arte que são"(il lãíterente] antes de se-
so da acumulação histórica. Assim, para cada artista que a conhe- rem vistas, invioláveis em sua integridade essencial pelo escrutínio
ce, a criação de uma obra significa enfrentar dois domTnios ·poten- humano. O espectador se aproximaria da arte como o faz de uma
cialmente antagônicos de significado e suas relaÇú·s:- Ümdeles é paisagem . Uma paisagem não exige sua " compreensão", suas
seu próprio significado (ou ausência de); o o_utro é o_conjunto de imputações de significado, suas angústias e suas simpatias; ao con-
significados de segunda ordem, os quais, ao mesmo tempo que es- trário, requer sua ausência, solicita que ele não acrescente nada a
tendem sua próp ria linguagem, a oneram, a comprometem e a isso. A contemplação; do ponto de vista estrito, acarreta o auto-es::-7
adulteram. O artista acaba por escolher entre duas alterm.tivas ine- quecimento por parte do espectador: Url! obj eto digno de contem-
rentemente limitantes, forçado a tomar uma posição que é ou ser- lação é a uele que, com efeito, flrrima o su · elto ue a ercebe0
vil, ou insolente. Ou ele adula e satisfaz seu público, oferecendo- A uma ta plenitude 1aea a que o público nada pode acrescen-
lhe o que este já sabe, ou comete uma agressão contra seu público, tar' análoga à relação estética com a natureza, aspira uma grande
dando-lhe o que este não quer. parcela da arte contemporânea - através de várias estratégias de
Assim, a arte moderna transmite com lenitude a alienação brandura, redução, desindividualização, alogicidade. Em princí-
roduz1 a e"'ã consciência histórica. Seja o que for que o artista pio, o público não pode sequer adicionar seu pensamento. Todos os
faz está li~ ad()) (de forma em geral cÕnséiente) cõrii algo já- feito objetos, corretamente percebidos, já são plenos. Deve ser isso o
antes, produzindo uma compulsão de estar sempre conferindo sua que Cage quer dizer quando, depois de explicar que não existe o si-
situação, sua própria postura, frente àquelas de seus predecessores lêncio pois sempre há algo ocorrendo que produz um som, acres-
e contemporâneos. fara compensar essa ignominiosa escravid~ :o centa: "Ninguém pode ter uma idéia uma vez que começou real-
diante da história, o ~~tista exalta a si próprio com o sonho de uma mente a ouvir''.
arte totalmente a-histonca e, portanto, não-alienada. ~ Plenitude - experimentar todo o espaço como preenchido,

22 23
I f'ormu que as idéias não possam entrar - significa impenetrabi-
ll l t l . Um individ uo que permanece silencioso torna-se opaco ao
ui ro; si! ncio de alguém inaugura uma série de possibilidades de
ui ·rpr· tação desse silêncio, de imputação de discurso a ele.
modo como essa opacidade induz à vertigem espiritual é o
l
1
ambiciosa, a dek~a do_§.@.ncio expressa um proj~tg}nítjç_o de liJ2.~r­
t~ção total. 9 que se visa é nada m~~os q~e ãlib_:~tação d~ta
de si próprio, da arte em relação à obra de arte particulãr e em_rela-
çª o à história, do espírito face à matéria, da mente face às suas lirni-
j ações perceptivas e intelectuais.
/
:JI
I na de Persona, de Bergman. O silêncio deliberado da atriz tem Como algumas pessoas atualmente sabem, hámodos de pen-
lols aspectos: co nsiderado enquanto decisão aparentemente rela- samento que ainda não conhecemos. Nada poderia ser mais impor-
·J mrda a ela mesma , a recusa a falar é manifestadamente a forma tante ou precioso que tal conhecimento, embora em gestação. O
~~ ela deu ao desejo de pureza ética; mas é também, enquanto sentido de urgência, a infatigabilidade espiritual que engendra não
'·omportamen to, um instrumento de poder, uma espécie de sadis- podem ser aplacados e continuam a alimentar a arte radical deste
111 , uma posição de força de virtual inviolabilidade de onde ela século. Através de sua defesa do silêncio e da redução, a arte come-
manipula e confu nde sua acompanha nte, a quem cabe o ônus de te um ato de violência contra si própria, transformando-se em urna
ru lar. espécie de táu'tomanijnilaçãÕ', de conjuração - procurando trazer à
Contudo a opacidade do silêncio pode ser concebida de forma luz essas novas formas de pensamento.
mais positiva, enquanto livre de angústia. Para Keats, o silêncio da O silêncio é uma estratégia para a transformação da arte,
urna grega é um lugar de nutrição espiritual: as melodias "não-ou- sendo ela própria a mensageira de uma antecipada transposição ra-
vida " perma necem, ao passo que as que soam como flautas ao dical dos valores humanos. Mas o sucesso de tal estratégia deve sig-
"ouvid o sensual" decaem. O silêncio é equiparado ao tempo inter- nificar o seu abandono final, ou, no mínimo , sua significativa
r mpido (" câmara lenta"). Pode-se fitar eternamente uma urna modificação.
gr ga . A eternidade, no argumento do poema de Keats, é o único O si lêncio é uma profecia e as ações dos artistas podem ser
stimulo interessante ao pensamento e também a ocasião exclusiva compreendidas como uma tentativa de , concomitantemente,
p ra se chegar ao término da atividade mental, que significa ques- cumpri-la e revertê-la.
tões intermináveis e irrespondidas ("Tu, forma silenciosa, provo- . Do mesmo modo que a linguagem aponta para sua própria
ca-no além do pensamento/como a eternidade"), a fim de chegar transcendência no silêncio, este aponta para sua própria transcen-
u uma equação final de idéias ("a beleza é verdade, a verdade bele- dêncià para um discurso além do silêncio.
?a"), que é ao mesmo tempo absolutamente vazia e plena. De mo- Porém o conjunto da empresa não pode se tornar um ato de
d bas tante lógico , o poema de Keats finda com uma alternativa má-fé, se o artista também souber disso?
que parecerá, se o leitor não acompanhou seu raciocínio, uma sabe-
d ria oca, uma banalidade. Assim como o tempo, ou a história, é o
meio do pensamento definido, determinado, o silêncio da eternida-
de prepara-se para um pensamento além do pensamento, que deve
aparecer, da perspectiva do julgamento tradicional e dos usos cor- 12
r ntes, como inexistência de pensamento- embora possa ser o em-
blema de um julgamento novo e " difícil". Uma citação famosa: "Tudo o que pode ser pensado, pode
ser pens;J,do claramente. Tudo o que pode ser dito , pode ser dito
11 claramente. Mas nem tudo o que pode ser pensado pode ser dito".
Note-seque Wittgenstein, com seu curdado escrupuloso de
I or trás do apelos ao silêncio repousa o desejo de uma fábu- evitar a questão psicológica, não pergunta por que, quando e em
la f't/S(I , p rc pti va e cultural. E, em sua vers!_o mais exort~ória e que circunstâncias alguém desejaria colocar em palavras "tudo o

24 25
que pode ser pensado" (ainda que pudesse), ou mesmo expressar Ainda um outro uso do silêncio: fornecer tempo para a conti-
(seja ou não claramente) "tudo o que pode ser dito". nuação ou a exploração do pensamento. Notavelmente, o silêncio
encerra o pensamento. (Um exemplo: a empresa da crítica, na qual
não parece haver alternativa para o crítico a não ser afirmar que
13 um dado artista é isso, é aquilo etc.) Contudo se se decide que uma
questão não está encerrada, ela não está. É essa, pode-se presumir,
De tudo o que é dito pode-se indagar: por quê? (Incluindo: a razão que está por trás dos experimentos voluntários com o silên-
por que se deveria dizer isso? E: por que eu deveria dizer alguma cio que alguns atletas espirituais contemporâneos, como Buckmins-
coisa, de qualquer modo?) ter Fuller, efetuaram e do elemento de sabedoria no silêncio, de ou-
Além disso, falando-se em termos estritos, nada que é dito é tro modo basicamente autoritário e filistino, do psicanalista freu-
verdadeiro. (Embora uma pessoa possa ser a verdade, nunca se po- diano ortodoxo. O silêncio mantém as coisas "abertas".
de dizê-lo.) Mais um uso do silêncio: equiparar ou auxiliar o discurso a
Todavia as coisas que são ditas podem às vezes ser úteis- é o atingir sua máxima integridade ou seriedade. Todos têm a experiên-
que as pessoas geralmente querem _significar quando enxergam al- cia de como as palavras, quando pontuadas por longos silêncios,
guma coisa dita"como sendo verdad_eira. o discurso pode esclare- adquirem maior peso - tornam-se quase palpáveis; ou de como,
cer, lib-eta-r-;-cõnlündir, ·exaltar, corromper, hostilizar, gratificar, quando uma pessoa fa lia menos, começa-se a sentir mais plenamen-
afligir, aturdir ou animar. Enquanto a linguagem é regularmente te a sua presença física em um espaço dado. 9_silêncio solapa o
empregada para inspirar a ação, certas declarações verbais , sejam "discurso ruim", pelo que se pretende dizer o discurso dissociado
escritas ou orais, são elas próprias o desempenho de uma açã_o (co- -dissociado do corpo (e, portanto, do sentimento), o discurso não
mo ao se prometer, jurar, legar). u~ outro Usõ- o discurso - organicamente informado pela presença sensória e particularidade
quando nada, mais comum que o de provocar ações - é estimular concreta do locutor e pela ocasião individual para o emprego da
um discurso adicional. Mas o discurso pode também silenciar. Na linguagem. ld_vre do corpo, o discurso se deteriora. Transforma-se
verdade, é assim que deve ser: sem a polaridade do silêncio, todo o em falso, inane, ignóbil, sem importância. O silêncio pode inibir ou
sistema de linguagem fracassaria. E além de sua função genérica se contrapor a essa tendência, proporcionando uma espécie de las-
enquanto oposto dialético do discurso, o silêncio- como o discur- tro, monitorando ou mesmo corrigindo a linguagem quando ela se
so - tem igualmente usos mais específicos, menos inevitáveis. torna inautêntica.
Um dos usos do silêncio: atestar a ausência ou a renúncia ::~o Dados esses riscos à autenticidade da linguagem (que não de-
pensamento. O silêncio é com freqüência empregado como um pro- pende do caráter de nenhuma declaração isolada ou mesmo de uma
c~ to mágico ou mimético nas relações sociais repressivas, co- declaração de grupo, m~ da relação locutor/expressão/situação~,
mo nas normas jesuíticas sobre falar com os superiores e no disci- o projeto imaginário de dizer com clareza "tudo o que pode ~er di-
plinamento das crianças. (Isso não deve ser confundido com a prá- to", sugerido por Wittgenstein, parece temivelmente comph.c ado.
tica de certas disciplinas monásticas, como a ordem dos trapistas, (Quanto tempo se deveria ter? Seria necessário dizer com ra~1d~z?)
nas quais o silêncio, ao mesmo tempo que é um ato ascético, atesta O universo hipotético do discurso claro do filósofo (que atnbu1 ao
a condição de estar perfeitamente "pleno".) silêncio apenas "aquilo sobre o que não se pode falar") pareceria
Um outro uso, que aparenta ser oposto, do silêncio: testemu- um pesadelo de um moralista ou de um psiquiatra - no mínimo,
nhar a perfeição do pensamento. Nas palavras de Karl Jaspers: um lugar onde ninguém deveria ingressar despreocupadamente.
''Aquele que tem as respostas finais não pode mais falar a outrem, Existe alguém que queira dizer "tudo o que pode ser _d ito"? Ares-
r mpendo a comunicação genuína em benefício daquilo em que posta psicológica plausível seria aparentemente "não". Todavia o
acredita". sim também é plausível - como um ideal ascendente da cultura

26 27
~
Ji -1), 6,-i.
{}"' ~ \ '

~ ' <:5
S sufistas e zen.) A tradição ~ística se~_pre rec~nheceu, ~~expressão ~")
moderna. Não é isso que muitas pessoas de jato querem atualmen- ~ de Norman Brown, "o carater neurotlco da lmguagem . (De acor- ~­
te: dizer tudo que pode ser dito? Mas esse propósito não pode ser IJ do com Bõehme, Adão falava uma linguagem diferente de todas as ~
mantido sem conflito interno. Inspiradas em parte pela difusão dos ~ linguagens conhecidas. Era o "discurso sensorial", o instrumento 1
ideais da psicoterapia, ~.1E_essoas estão ansiando dizer·~· (des- expressivo não-mediado dos sentidos, apropriado a seres que são "{
e modo, entre outros resultados, estão minando ainda mais a des- ~" integralmente parte da natureza sensível - isto é, ainda empregado ~
moronante distinção entre os esforços públicos e privados~ entre ~ por todos os animais exceto esse animal doentio, o homem. Essa, ;;
f nformação e segredos). No entanto, num mundo super-habitado e
li~ado pela comunicação ektrônica global ~elas viagens a jato, a
~ que Bõehme denomina a única "linguagem natural", a única lin-
"' guagem livre de distorção e ilusão, é a que o homem falará outra ~
~

um ritmo demasiado rápido e violento para uma pessoa organica- ...., vez quando recuperar o paraíso.) Mas, em nossa época, o desenvol- - ~
mente saúdavel assimilá-lo sem choque, todos estão também so- 1 vimento mais surpreendente de tais idéias foi realizado pelos artis-
frendo de uma reação súbita a qualquer proliferação adicional de \.f tas (e por certos psicoterapeutas), e não pelos tímidos legatários das ~
discursos ou imagens. Fatores tão diferentes, como a "reprodução >: tradições religiosas. §:
tecnológica" ifímitada e a difusão quase universal da linguagem e ~ Em explícita revolta contra aquilo que se considera a vida ~ .,.,
do discurso impressos, bem como das imagens (das "notícias" aos (t' classificada e dessecada da mente comum, QJlrtista lança um apelo .S
"objetos de arte"), além da degeneração da linguagem pública
o~ pela re~isão da linguagem. Uma boa parc~~a ~a arte_~ontempo:â \ -~
dentro dos domínios da política, da publicidade e dos entreteni- Õ · nea é moviOã por essa busca de uma consciencia p~nf1cada da lin- (f ~
\ mentos, produziram, especialmente entre os habitantes melhor J ""' guagem contaminada e, em algumas versões, dí!s distorções produ
educados da moderna sociedade de massas, uma desvalorização da ~ zidas por conceber o mundo exclusivamente em termos verbais cos \"""\
linguagem. (Eu argumentaria, ao contrário de McLuhan, que uma
~val orização do poder e da credibilidade das imagens teve lugar
~ a tumeiros em seu senh o de ra_d~do "racion~is:• o~ "ló icos"). A--~
"\ ~ própria arte torna-se uma espec1e de contravwlencia, que busca 1- I
de forma não menos profunda e essencialmente semelhante à que ~;' b~rar a consciência dos ~itos qq_ verbaliz<!_çi!Q es! á!.!Ea e s~m vida, j
<\._atingiu a linguagem.) À medida gue o prestígio da linguagem cai, o
~ ~ressen!!_n~? ~]!Ode!~~ .cJ.e "dis_curso seqsoria " .•
.b.ssim, o volume de descontentes aun;t entou dt;_S-?~ que as~e_s
do silêncio sobe,
Refiro-me, neste ponto, ao contexto sociológico da ambiva-
:f /( ..
·~1 {{~ erdaram '? probl!!mfiL da .linguagem, d~- diS~\lrS_? r~hgi0~9·. ~ao se
ç
lência contemporânea diante da linguagem. Ãq_ÜeSfã~·certanrente, trata apenas de que as palavras, em ultima mstanc1a, sejam made-
é mais profunda que isso~ Além dÕs determinantes sociológicos quadas aos propósitos mais elevados da consciência, ou mesmo de
específicos, deve-se reconhecer a operação de algo como um des- que elas fiquem no meio do caminho. A arte expressa um_duplo
contentamento perene com a linguagem que tem sido formulado descontentamento. Faltam-nos palavras e dispomos de palavras em
em cada uma das principais civilizações do Oriente e do Ocidente, demasia. Ela levantããuas reClamaÇões _sobre a linguãge m: a~ ala-
sempre que o pensamento atinge uma certa ordem de complexidade vras são crüas-démais -etambé'm -ocuQadas demais- convidando a
e de seriedade espiritual elevada e cruciante. ,) uma hiperativfdade-cíac õnsciência quel:~ ~ãoãPenas disfuncional,
Tra dicionalmente, Ç> descon~entamento com a própria ling_ya- 1 ' em termos das capacidades humanas de sentir e agir, como de ma-
gem tem se registrado através do vocabulário religioso, com seus neira ativa debilita a mente e embota os sentidos .
1
' sa""grado" e "profano", "humano" e "divino" meta-absolutos .
A linguagem é rebaixada à condição de um evento. Alguma
·m part icular, os antecedentes dos dilemas e das estratégias das ar- coisa ocorre no tempo, uma voz que fala e aponta para o que ante-
l são encontrados na ala radical da tradição mística. (Confira, cede e para o que SUC(!de uma declaração: o silêncio. Este, então, é
ntr textos cristãos, Teologia Mística, de Dionísio, o Areopagi- ao mesmo tempo a precondição do discurso e o resultado ou alvo d~
ta, Nclvoa de Desconhecimento, de autor anônimo, os escritos de discurso adequadamente dirigido. Nesse modelo, a atividade do ar-
.I kob 11 h me e Meister Ec khart, e os paralelos em textos taoístas, . -

29
28
tista é a criação ou o estabelecimento do silêncio; a obra de arte efi- representa uma possibilidade igualmente inumana embora "mais
caz deixa o silêncio em seu rastro. O silêncio, administrado pelo ar- elevada'', a de uma apreensão translingüística, inteiramente não- 1
tista, é parte de um programa de terapia perceptiva e cultural, cal- mediada. ~~.m.~!ÜQ, 9 se.!:_~U_?l~~periJ!<~n~ce situ~o /
cado freqüentemente mais no modelo da terapia de choque que no ~.s..._d_o rei!!.9.Ê_ynguage~ . Mas, para que a natureza e, por-
da persuasão. Ainda que o meio do artista sejam as palavras, ele tanto, as coisas, as oultras pessoas, as texturas da vida comum se-
pode participar dessa tarefa: a linguagem pode ser empregada para jam experimentadas a partir de uma postura diversa da atitude mu-
1
"conter a linguagem, para expressar muhswo. Mallarmé pensavj tilada do mero espectador, .a linguagem precisa reconquistar sua ·
que era tarefa da poesia, utilizando as palavras, limpar a nossa rea- castidade . Conforme descrita por Rilke na nona elegia, à redenção
lidade atravancada de palavn~s- através da criação de silêncios ao d~-Íi~gu-~gem (o que significa dizer, a redenção do mundo através
redor das coisas. A arte precisa montar um ataque em ampla escala de sua interiorização na consciência) é uma tarefa longa e infini-
contra a própria linguagem, por meio da linguagem e seus substitu- tamente árdua. Os seres humanos estão de tal forma " decaídos", /I
tos, em benefício do modelo do silêncio . que precisa!ll coíTíéÇá[__çom g ato lingüístico mais simples: a-norni-,
·~n.~~Ó- d_gs_cq_isas. Talvez não se possa preserv!lr màfs que éssã f~n­
ção mínima da corrupção geral do discurso . E bem provável que a
14 linguagem tenha de continuar em um estado de redução permanen-
te. Embora, quando este exercício espiritual de confinar a lingua-
No fim, a crítica radical da consciência (delineada primeira- gem à nominação esteja completo, seja possível passar a outros e
mente pela tradição mística, agora administrada pela psicoterapia mais ambiciosos usos da linguagem, talvez nada deva ser tentado
não-ortodoxa e pela alta arte modernista) sempre culpa a lingua- que permita à consciência se tornar realienada de si própria.
gem. A consciência, experimentada como um ônus, é concebida co- Para Rilke, é possível conceber a superação da alienação da
mo a memória de todas as palavras alguma vez ditas. consciência; e não, como nos mitos radicais dos místicos, por meio
; / . Krishnamurti defende que precisamos renunciar à memória da ultrapassagem completa da linguagem. É suficiente reduzir dras-
f 12_sicológica enquanto distinta da fatual. De outra forma, continua- ticamente o âmbito e o uso da linguagem. Uma imensa preparação
remos a preencher o novo com o antigo, enclausurando a experiên- espiritual (o contrário da "alienação" ) é exigida para esse ato sim-
cia ao enganchar cada experiência à anterior. ples e enganador de nominação. Nada menos que o polimento _e o
Devemos destruir a continuidade (que é assegurada pela me- ~ie&e-a.guç;amen:to,dos sentid~ ani'é'iíte Õ o-posto de pro-
/mória psicológica), indo ao final de cada emoção ou pensamento. jetos tão violentos, voltados grosso modo para o mesmo fim e
E após o final o que advém (por algum tempo) é o silêncio. informados pela mesma hostilidade à cultura verbal-racional, co-
mo "desorganização silstemática dos sentidos").
A solução de Rilke situa-se a meio caminho entre a explora-
15 ção do entorpecimento da linguagem, enquanto uma instituição
cultural maciça e plenamente implantada, e o abandono à vertigem
Em Elegias de Duino, Rilke oferece na quarta elegia uma afir- suicida do puro silêncio. Contudo esse território intermediário da
mação metafórica do problema da linguagem e recomenda um pro- redução da linguagem à nominação pode ser reivindicado de uma
cedimento para o que considera a mais exeqüível aproximação do fo rma bastante diversa. da dele. Compare-se o nominalismo benig-
horizonte do silêncio. Um pré-requisito do "esvaziamento" é ser no proposto por Rilke (e proposto e praticado por Francis Ponge)
capaz de perceber do que se está "repleto", com que palavras e ges- com 9 nominalismo brutal adotado por muitos outros artistas. O
tos mecânicos se está, como uma boneca, recheado; somente então, recurso mais com um da arte moderna à estética do inventário nã~
em confronto polar com a boneca, aparece o "anjo", figura que - a·
efetuaaõ · como em FÜike_:-éom vistàs "humâni'zãr" a~ c~ls·;;.·
-~--\

30 31
mas principalmente com ~.s,.a~nfirmar a sua desumanidade, · Tal arte também poderia ser descrita como o estabelecimento
sua impessoalidade, sua mdiferença) às preocupações humanas e de grandes "distâncias" (entre o espectador e o objeto artístico, en- t
sçu isolamento delas. (Exemplos da preocupação "desumana" com tre o espectador e suas emoções). Mas, ào ponto de vista psicológil , ,
a nominação: lmpressions d'Ájrique de Roussel; as pinturas em ' êo, ~~aestá cq_m_freqüência vin.culada.a.o estadoJ!!<!i~)nt~n- 1 '.?
silk-screen e os fi.lmes iniciais de Andy Warhol; os primeiros sõâe_sentimento, no qual a frieza ou a impesso~lidade çom g~l- "-
.Jr_omances de Robbe-Grillet, que procuravam confinar a função da g-\!!!la_coisa é ~ratad~ d~o ~ medida do insaciável interesse _qu~ · "'J
llmguagem à simples descrição e localização físicas.) _ desperta em nos. A distancia que uma boa parcela da arte "anti-hu- '
Rilke e Ponge assumem que h{: prioridades: objetos ricos em ~ãnista" propõ~ é na realidad~ equivalente à~ .se~sã . -um as--
oposição a objetos vazios, eventos êOm uma-c~rtà fa'Sanaçãd. (Esse _pecto do envolvimento em "coisas" de que não aparece sugestão
é o incentivo para tentar despir ~-· li..!J.&uagem, çleixandó ~as....pr~ó-
,y no nominalismo "humanista" de Rilke.
_,prias "coisas" falem ,) De liiõdo mais decisivo, eles assumem que,
se existem estados de falsa consciência (embaraçados pela lingua-
gem), h~ ainda autênticos estados de consciência - que é função 16
da arte promover. A.visão alternativa nega as hierarquias tradicio-
nais de interesse e significado, nas quais algumas coisas têm mais "Há algo estranho nos atos de escrever e falar", dizia Novalis
"importância" que outras. A distinção entre experiência falsa e · em 1799. "O equívoco ridículo e divertido que cometem as pessoas
verdadeira também é rejeitada: em princípio, deve-se desejar prestar é o de acreditar que empregam as palavras em relação com coisas.
atenção a todas as coisas. Tal visão, formulada de modo mais ele- Elas não tem consciência da natureza da linguagem - que é ser a
gante por Cage (embora sua prática seja bastante difundida) é que sua própria e única preocupação, o que faz dela um mistério tão
leva à arte do inventário, do catálogo, das superfícies; e do fér~il ~ esplêndid~. ua~do ~lguém fala so~ente por amor à fala, /
"acaso" . Não é função da arte sancionar qualquer experiência esta dizendo a coisa mats ongma e verdadeira ue ode dizer."
específica, com exceção do estado de estar aberto à multiplicidade a Irmativa de Novalis pode auxiliar na explicação de um
de experiências - que termina, na rática numa decidida ênfase paradoxo aparente: que na era da defesa disseminada do silet •.:io da
~ coisas comumente consideradas triviais ou sem Importância,_ arte, um número cada vez maior de obras de arte esteja marcado
A vinculação da arte contemporânea ao princípio narrativo pela tagarelice. ;\ loquacidade e a repetitividade são em Qarticular
"mínimo" do catálogo ou do inventário parece quase parodiar a notáveis nas artes temporais da prosa de ficção, do cinema, da mú-
visão de mundo c,a pitalista, em que o meio ambiente é atomizado síca, e da dan@, muitas das quais cultivam uma espécie de gagueira
em "itens" (uma categoria que compreende coisas e pessoas, obras õntológica- facilitada por sua recusa dos incentivos a u~ discurso
de arte e organismos naturais), e em que todo item é uma mercado- ~'claro e anti-redundante, amparado pela construção linear de come-
ria - isto é, um objeto discreto e portátil. Incentiva-se um nivela- ço-meio-e-fim. Porém, na verdade, não há contradição. O apelo
mento geral do valor na arte do inventário, a qual apenas é, ela mes- contemporâneo ao silêncio nunca indicou meramente uma rejeição
ma, uma das aproximações possíveis a um discurso idealmente não- hostil à linguagem. Ele também significa uma altíssima estima pela
modulado. Tradicionalmente, os efeitos de uma obra de arte têm linguagem - por seus poderes, sua força passada e os perigos
sido distribuídos com desigualdade, a fim de induzir no público correntes que coloca à uma consciência livre. Dessa avaliação in-
uma certa seqüência de experiências: em primeiro lugar, despertar; tensa e ambivalente procede o impulso a um discurso que parece ao
depois, manipular e, finalmente, satisfazer as expectativas emocio- mesmo tempo irreprimível (e, em princípio, interminável) e estra-
nais. O que se propõe a ora é um discu :s~Qrovido de ênfases no nhamente desarticulado, penosamente reduzido . Discernível na fic-
entido tra icional. (Ainda uma vez, o princípio do fitar em oposi- çãQde Stein, Burroughs e Beckett há a idéia subliminar de que seria
ção ao olhar:r~ ·possível falar mais alto que a linguagem ou persuadir~se ao silêncio.
,______

32 33
Não se trata de uma estratégia muito promissora, consideran- buscado não é tanto a redução mas a metamorfose da linguagem
do os resultados que podem razoavelmente ser antecipados a partir em algo mais solto, mais intuitivo, II].Enos organizado e flexionado,
dela. Mas talvez não seja tão estranha, quando observamos com não-linear (para usar a terminologia de McLuhan) e'- notadamen-
que freqüência a estética do silêncio aparece ao lado de uma mal !e - mais loquaz. Mas, é certo, são justamente essas qualidades que
controlada rejeição do vazio. caracterizam muitas das grandes narrativas em prosa de nossa épo-
A acomodação desses dois impulsos contrários pode produzir ca. Joyce, Stein, Gadda, Laura Riding, Beckett e Burroughs em-
a necessidade de preencher todos os espaços com objetos de peso pregam uma linguagem cujas normas e energias provêm do discur-
emocional insignificante, ou com amplas áreas de cor apenas mo- so oral, c~ll!leus movimentos circulares repeJitivos e.SUª-.VOZ essc:;Ô
dulada, ou com objetos uniformemente detalhados; ou engendrar c·almente na Rrimeira pessoa., -
um discurso com um mínimo possível de inflexões, de variações "Falar por amor à fala é a fórmula para a libertação", disse
emotivas e de aumentos e diminuições de ênfase. ~l2f~dimen- )' Novalis. (Libertação do quê? Da fala? Da arte?)
os parecem semelhantes ao comportamento de um neurótico ob- . Em minha opinião, Novalis descreveu sucintamente a abor-
se sivo precavendo-se-contra um perigo. Os atos de uma tal pessoa '·
devem ser repetidos de forma idêntica, pois o perigo continua o mes-
dagem correta do escritor à linguagem e ofereceu o critério básico
para a literatura enquanto uma arte. Porém a extensão em que o
dis.surso oral é ~ n:od.elo privilegiado para o discurso da literatura
I
mo; e precisam ser repetidos infindavelmente, pois o risco nunca
parece acabar. No entanto o combustível emocional que alimenta o
discurso artístico de modo análogo à obsessão pode ser diminuído a
! como~ constitUI amda uma questão em aberto.

tal ponto que quase se pode esquecer que está ali. Então, tudo o
que se deixa ao ouvido é uma espécie de zunido ou zumbido cons- 18
tantes. O que se deixa à vista é o puro preenchimento de um espaço
com coisas ou, mais precisamente, a transcrição paciente dos deta- Um dos corolários do crescirnento dessa concepção da lingua-
lhes superficiais das coisas. gem da arte enquanto autônoma e auto-suficiente (e, afinal, auto-
Nessa visão, o "silêncio" das coisas, imagens e palavras é reflexiva) é um declínio no "significado" como é tradicionalmente
uma~ paasuâ proliferação. Se fosse dotado de uma buscado nas obras de arte. "Falar por amor à fala" nos força a
·ccarg; mais potente, individual, cada um dos vários elementos da recolocar o significado das afirmativas lingüísticas ou paralingüísti-
obra de arte reivindicaria mais espaço psíquico e, então, seu núme- cas. Somos levados a abandonar o significado (no sentido de refe-
ro total talvez tivesse de ser reduzido. rências a entidades externas à obra artística) como critério para a
linguagem da arte. E o fazemos em benefício do "uso". (âJamosa
!ese de Wittgenstein, "o significado é o uso", pode e deve ser rigo-
17 rosamente aplicada à arte.)
.,.. O "significado" parcial ou totalmente convertido em "uso"
Algumas vezes, a acusação não é dirigida a toda a linguagem, é o segredo que se encontra por trás da estratégia amplamente
mas apenas à palavra escrita . Assim, Tristan Tzara exortava a quei- difundida de literalidade, um dos mais importantes desenvolvimen-
ma de todos os livros e bibliotecas para trazer à luz uma nova era de tos da estética do silêncio. Uma variante dela: a literalidade oculta,
lendas orais. E McLuhan, como todos sabem, faz a distinção mais exemplificada por escritores tão diferentes como Kafka e Beckett.
aguda entre linguagem escrita (que existe no "espaço visual") e dis- As narrativas de Kafka e Beckett parecem enigmáticas porque apa-
curso oral (que existe no "espaço auditivo"), louvando as vanta- rentemente convidam o leitor a atribuir significados simbólicos e
gens psíquicas e culturais do último como base para a sensibilidade. alegóricos intensos a elas, ao mesmo tempo que parecem repelir tais
Se a linguagem escrita é singularizada como ré, o que será atribuições. No entanto, quando a narrativa é examinada, desven-

34 35
da apenas o que significa de modo literal. AJorça de sua linguagem_ invoca a idéia do "inefável". A teoria supõe que o território da arte
deriva precisamente do fato de o significado ser tão simp~s . é "o belo", o que implica efeitos de indizibilidade, indescritibilida-
c:: · O efeito de tal simplicidade é com freqüência uma espécie de de e inefabilidade . Na verdade, a busca de expressão do inexprimí-
I ansiedade - como a angústia produzida quando coisas familiares vel é assumida como o próprio critério da arte; e, às vezes, torna-se
não estão em seu lugar ou não desempenham o seu papel costumei- a oportunidade para uma distinção estrita - e,Jml mip.ha con ep-
ro. É possível fazer com que se fique tão angustiado ela literalida:_ ção, insustentável- entre literatura em prosa e poesia. Foi a partir
de inespera a cori10 pelos objetC?s ''perturbadores" e pela escala e essa posiÇão que Valéry apresentou seu famoso argumento (repe-
cond1çao mesperadas dos obJetos, que os surrealistas reúnem em tido num contexto completamente diferente por Sartre) de que o (
uma paisagem Imaginária. Tudo o que é totalmente misterioso é a romance não é, do ponto de vista restrito, uma forma de arte. Seu ('
um só tempo em termos psíquicos liberador e angustiante. (Uma raciocm10 é o de que, sendo o objetivo da prosa a comunicação, o \
máquina perfeita para agitar esse par de emoções contrárias: um uso da linguagem em prosa é perfeitamente direto. A poesia, en-
desenho de Bosch em um museu holandês que mostra árvores equi- quanto arte, deve ter propósitos bastante diferentes: expressar uma
padas com duas orelhas nos cantos de seus troncos, como se esti- experiência que é no essencial inefável; utilizar a linguagem para-'!'-"
vessem ouvindo a floresta, enquanto o chão está semeado de expressar Ó rputismo . Em contraste com os escritores em prosa, os
olhos .) Diante de uma obra de arte consciente, sente-se algo como a poetas estão engajados em subverter o seu próprio instrumento e em
combinação de angústia, isolamento, lascívia e alívio que uma pes- procurar ir além dele.
soa com o físico sadio sente ao vislumbrar um amputado . Beckett é Essa teoria, até onde assume que a arte relaciona-se à beleza,
favorável a uma obra de arte que seria um "objeto total, munido não é muito interessante. (A estética moderna está mutilada por sua
de todas as partes faltantes, ao invés do objeto parcial. Uma ques- dependência desse conceito fundamentalmente vago. Como se a ar-
tão de grau" . te "dissesse respeito" à beleza, assim como a ciência "diz respeito"
Mas o que é totalidade e o que constitui a inteireza na arte (ou à verdade!) No entanto, ainda que a teoria dispense a noção de be-
em qualquer outra coisa)? Esse problema, em princípio, parece leza, há uma objeção mais séria: a visão de que expressar o inefável
insolúvel. Seja qual for a forma de uma obra de arte, ela poderia é uma função básica da poesia (considerada como um paradigma de
,tter sido - poderia ser - diferente. A necessidade dessas partes todas as artes) é ingenuamente a-histórica . O inefável, embora cer~
Ff nunca é dada: é conferida. tamente uma categoria perene de conhecimento, nem sempre teve
A recusa a admitir essa contingência (ou abertura) essencial é na arte a sua moradia. Seu abrigo tradicional esteve no discurso
o que inspira a vontade do público de confirmar o caráter fechado
de uma obra, interpretando-a, e o que cria o sentimento comum en-
tre os artistas e críticos ponderados de que a obra artística está sem:
-·reiigios..Q e, secundariamente (como narra Platão na "sétima Epís-
tola"), na filosofia. O fato de os artistas contemporâneos estarem
preocupados com o silêncio (e, portanto, em certa extensão, com o
pre, de alguma maneira, em dívida com o seu "tema" (ou é inade~ inefável) deve ser compreendido, do ponto de vista histórico, como
quada a ele). Entretanto, a menos que se esteja comprometido com uma conseqüência do mito contemporâneo dominante do "caráter _ \
a idéia de que a arte "expressa" algo, tais procedimentos e atitudes absoluto" da arte. O valor que se atribui ao silêncio não aparece>
estão longe de ser inevitáveis. ,..em virtude da natureza da arte, mas deriva da atribuição contem-
\';{ porânea de algumas ~~ida~~~abso~t~s"~a_2_ol;ljeJ.9.~de..ru:t0-~ à
f\ atividade do artista.
19 - -A eXtêilsãÕem que a arte e§tá envolvida com o inefável é mais
específica; bem como contemporânea: a arte, na concepção moder-
Esse conceito persistente da arte como "expressão" deu ori- na, sempre se vincula a transgressões sistemáticas de convenções
gem à versão mais comum, e dúbia, da noção de silêncio - a qual formais mais antigas, praticada pelos artistas, o que confere às

36 37
obràs uma certa aura de indizibilidade - por exemplo, quando o A outra maneira de falar do silêncio é mais cautelosa. Essen-
público sente com descon forto a presença negativa de alguma coisa cialmente, representa a si própria como uma extensão de um traço
que podia ser, mas não está sendo,dita; ou quando qualquer "de- básico do classicismo tradicional: a preocupação com os modos de
claração'' efetuada em uma forma agressivamente nova ou difíci l correção, com os padrões de compostura. O silêncio é apenas a
tende a parecer equívoca ou apenas vaga. Porém tais características "reserva" elevada à enésima potência. É certo que, na transferên-
de inefabilidade não devem ser reconhecidas às custas da consciên- cia de tal preocupação de sua matriz da arte clássica tradicional, o
cia da positividade da obra de arte. A arte contemporânea, não im- tom se modificou - da seriedade didática à liberalidade irônica,
portando como tenha se definido por um gosto pela negação, ainda Embora o estilo clamoroso de proclamação da retórica do silêncio
pode ser analisada como um conjunto de asserções de tipo formal. possa parecer mais apaixonado, seus defensores menos exaltados
Por exemplo , cada obra de arte nos dá uma forma, paradig- (como Cage, Johns) estão dizendo algo igualmente drástico. Rea-
ma ou modelo de conhecimento de alguma coisa, uma epistemolo- gem à mesma idéia das aspirações da arte ao absoluto (por meio das
gia. Mas, encarada como um projeto espiritual, um veículo de aspi- rejeições programáticas da arte); partilham o mesmo desdém pelos
fãÇôes voltadas para um absoluto, o que toda obra de arte oferece ''significados'' estabelecidos da cuTtura burgm!sa racionalista, na
é um modelo específico para a habilidade metassocial ou metaética, verdade, p~la própria cultura no sentido comum. o que é expresso
um padrão de decorum. Cada obra artística indica a unidade pelos futuristas, por alguns dos artistas dadá e por Burroughs co-'
de certas preferências sobre o que pode e o que não pode ser dito mo sendo uma rude desesperança e uma perversa visão do apoca-
(ou representado). Ao mesmo tempo que pode fazer uma proposta lipse não perde sua seriedade por ser proclamado em uma voz poli-
~ tácita de derrubada das regras previamente consagradas quanto ao da e como uma seqüência de afirmações jocosas. Com efeito, é pos-
l, que pode ser dito (ou representado), lança seu próprio conjunto sível argumentar que o silêncio talvez permaneça como uma noção
de limites. ' viável para a~oconhecimento modernos somen!e ~e emprega-.
do com uma ironia onsiderável, quase sistemática.
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20 21

Os artistas contemporâneos defendem o silêncio em dois esti- Está na natureza de todos os projetos espirituais a tendência a
los: forte e brando. se consumirem a si mesmos - esgotando seu próprio sentido, os
O estilo forte é uma função da instável antítese de "pleno" e próprios significados dos termos em que estão calcados. (É por isso
"vazio". A sensível, extasiada e translingüística apreensão do ple- que a "espiritualidade" deve ser sempre reinventada.) Todos os
no é notoriamente frágil: num mergulho terrível e quase instantâ- projetos genuinamente finais de consciência acabam por se tornar
neo, pode cair em colapso no vazio do silêncio negativo. Com toda projetos para o deserrtaranhamento do próprio pensamento.
a sua percepção dos riscos assumidos (os perigos da náusea espiri- A arte, concebida como um projeto espiritual, não é uma
tual, mesmo da loucura), essa defesa do silêncio tende a ser frenéti- exceção. Como réplica abstrata e fragmentada do niilismo positivo
ca e supergeneralizante. É também com freqüência apocalíptica e exposto pelos mitos religiosos radicais, a arte série de nosso tempo
deve suportar a indignidade de todo o pensamento desse tipo: nota· deslocou-se acentuadamente na direção das mais cruciantes infle-
damente, deve vaticinar o fim , ver o dia chegar, sobreviver a ele e xões da consciência. É compreensível que a ironia seja o único con-
então marcar uma nova data para a incineração da consciência e a trapeso possível a esse uso grave da arte como arena para a ordália
poluição definitiva da linguagem, a exaustão das possibilidades do
discurso da arte. -
éíã consciência. A perspectiva presente é a de que os artistas conti~
n uarão a abolir a arte, apenas para exumá-la em uma versão mais

38 39
retraída. Enquanto a arte resistir sob a pressão da interrogação crô-
t nica, parecerá desejável que algumas das questões tenham uma cer-
ta qualidade espirituosa.
i
-Q.,r ironia.
Mas tal perspectiva depende, talvez, da viabilidade da própria

\ A partir de Sócrates, existem incontáveis testemunhos do va-


) lor da ironia para o indivíduo privado: .com o método complexo e
sério de busca e sustentação da verdade pessoal e meio de preservar
'trPfÕi:>ria sanidade. Contudo, à medida que a ironia se transforma
no bom-gosto daquilo que é, acima de tudo, uma atividade essen-
A IMAGINA ÇÃO PORNOGRÁFICA
cialmente coletiva - o fazer arte - , ela pode se mostrar menos
útil.
Não é necessário um julgamento tão categórico como o de
Nietzsche- o de que a difusão da ironia em uma cultura significa- 1
va a maré montante da decadência e a a proxim ação do final da
vitalidade e dos poderes dessa cultura. Na cosmópolis pós-política e Ninguém deveria iniciar uma discussão sobre pornografia an-
eletronicamente vinculada, na qual todos os artistas modernos sé- tes de reconhecer a existência das pornografias(há pelo menos três)
rios obtiveram cidadania prematura , certas conexões orgânicas en- e antes de se empenhar em considerá-las uma a uma. Há muito a se
tre cultura e "pensamento" (e a arte e de certo, hoje ·e m dià; uma ganhar em exatidão se a pornografia, como um item na história so-
l'õrma de pensamento) parecem ter sido rompidas, de modo que o cial, for tratada de modo totalmente separado da pornografia en-
êbagnóstlco de Nietzsche talvez precise ser modificado. Mas, se a quanto fenômeno psicológico (segundo a visão comum, sintomáti-
ironia tem recursos mais positivos que os reconhecidos por Nietzsche, co de deficiência ou deformidade sexual, tanto nos produtores co-
resta aind a uma interrogação sobre até onde os recursos da ironia mo nos consumidores) e se, em seguida, se distinguir dessas duas
podem ser estendidos. Parece improvável que as possibilidades'de--~ 1 uma outra pornografia: modalidade ou uso menor, mas interessan-
minar de maneira ininterrupta as afirmações de uma pessoa possam / te, no interior das artes.
se desenrolar indefinidamente no futuro, sem que sejam , afinal, 1 É a última das três pornografias que desejo focalizar. Mais
confrontadas pelo ~srer9 ou por uma/isâd~ que a deixe comple- _' especificamente, o gênero literário para o qual, na falta de um no-
tamente sem fôl ego. - me melhor, estou disposta a aceitar (na privacidade do debate inte-
lectual autêntico, não nos tribunais) o duvidoso rótulo de porno-
grafia. Por gênero literário pretendo dizer um corpo de obras per-
(1967)
tencentes à literatura considerada como uma arte, e ao qual conter-
nem padrões inerentes de excelência artística. Do ponto de vista dos
fenômenos sociais e psicológicos, todos os textos pornográficos
têm o mesmo status- são documentos. Porém, do ponto de vista
da arte, alguns desses textos podem se tornar alguma coisa além
disso . Não apenas obras como Trais Filies de leur Mere, de Pierre
Làuys, Histoire de /'Oeil e Madame Edwarda, de George Bataille, e

40
f as pseudônimas História de O e A Imagem pertencem à literatura,
mas é possível esclarecer por que esses livros, todos os cinco, ocu-

41
pam um grau mais elevado enquanto literatura do que, por exem- que qualquer dano causado pelos próprios livros. Tanto os libertá-
plo, Candy e Teleny, de Oscar Wilde, ou Sodom, do Conde de Ro- rios como os presumidos censores concordam em reduzir a porno-
chester, ou O Hospodar Devasso, de Apollinaire, ou Fanny Hill, grafia a um sintoma patológico e a uma mercadoria social proble-
de Cleland. A avalancha de obras artísticas comerciais vendidas ile- mática. Existe um consenso quase unânime sobre o que a pornogra-
galmente por dois séculos e, agora, cada vez mais, fora de merca- fia é - sendo identificada com noções sobre as fontes do impulso
do, não impugna a condição de literatura do primeiro grupo de li- de produção e consumo desses curiosos bens. Quando enfocada co-
vros pornográficos, na mesma medida em que a proliferação de li- mo um tema para análise psicológica, a pornografia raramente é
vros como The Carpetbaggers e O Vale das Bonecas não coloca em vista como mais interessante que textos que ilustram uma interrup-
questão as credenciais de Ana Karenina e de O .Grande Gatsby, ou ção deplorável no desenvolvimento sexual do adulto normal. Nesta
de The Man Who Loved Children. A proporção de literatura visão, tudo o que a pornografia significa é a representação das fan-
autêntica em relação ao refugo, na pornografia. talvez seja um tasias da vida sexual infantil, editadas pela consciência mais treina-
pouco menor que a proporção de romances de genuíno mérito lite- da, menos inocente, do adolescente masturbador, para ser compra-
rário face a todo o volume de ficção subliterária produzida para o da pelos chamados adultos . Enquanto fenômeno social (por exem-
gosto popular. Contudo é provável que não seja menor, por exem- plo, o surto na produção de pornografia nas sociedades da Europa
plo, que a de outro subgênero de reputação um pouco duvidosa e nos Estados Unidos a partir do século XVIII), a abordagem não é
com poucos livros de primeira linha a seu crédito: a ficção científi- menos inequívoca e clínica: a pornografia torna-se uma patologia
ca. (Enquanto formas literárias, a pornografia e a ficção científica de grupo, a doença de toda uma cultura, sobre cujas causas existe
assemelham-se uma à outra de várias e interessantes maneiras.) De umaconcordância geral. A crescente produção de livros "sujos" é
toda forma, a medida quantitativa fornece um padrão trivial. Por atribuída a um l~ado maligno da repressão sexual cristã e à merà
relativamente incomuns que possam ser, existem textos que nos pa- ignorância psicológica - essas antigas deficiências unindo-se agora
rece razoável chamar de pornográficos -considerando que o rótu- a eventos históricos mais próximos: o impacto dos drásticos deslo-
lo batido tenha algum uso -, aos quais, ao mesmo tempo, não se camentos nos modos tradicionais da família e da ordem política, e
pode recusar o crédito de literatura séria. a mudança anárquica nos papé:s sexuais. (O problema da porno-
A afirmação pode parecer óbvia. No entanto, a primeira vis- grafia é um "dos dilemas de uma sociedade em transição", disse
ta, não é isso o que acontece. Pelo menos na Inglaterra e nos Esta- Goodman, em um ensaio, alguns anos atrás.) Assim, há uma consi-
dos Unidos, a avaliação e o exame racionais da pornografia são derável harmonia quanto ao diagnóstico da pornografia. As discor-
efetuados firmemente no interior dos limites do discurso emprega- dâncias surgem somente na avaliação das conseqüências psicológi-
do pelos psicólogos, sociólogos, historiadores, juristas, moralistas cas e sociais de sua disseminação e, portanto, na formulação tática
profissionais e críticos sociais. A pornografia é uma doença a ser e política.
diagnosticada e uma ocasião para julgamento. É alguma coisa fren- Os arquitetos ínais esclarecidos da política moral estão indu-
te à qual se é contra ou a favor. E a tomada de posição sobre a por- bitavelmente preparados para admitir que existe algo que pode ser
nografia dificilmente é o mesmo como ser contra ou a favor da mú- chamado de "imaginação pornográfica", embora somente no sen-
sica aleatória ou da arte Pop, mas é um pouco como se posicionar tido de que as obras pornográficas são comprovações de uma falên-
sobre o aborto legalizado ou a ajuda federal às escolas paroquiais. cia ou deformação radical da imaginação. E eles podem garantir,
Com efeito, a mesma abordagem fundamental do tema é partilha- como sugeriram Goodman, Wayland Young e outros, que ~bém
da por eloqüentes defensores recentes do direito e da obrigação da existe uma "sociedade ornográfica": que, na verdade, a nossa
sociedade em censurar livros sujos (como George P. Elliott e Gear- sociedade constitui um florescente exempio dela, Jão hipócrita e
a Steiner) e por aqueles (como Paul Goodman) que antevêem as ' repressivamente construída que precisa produzir uma efusão de
t-oll , 111 o ias perniciosas de uma política de censura, muito piores pornografia, tanto com sua expressão lógica quanto com seu sub-

42 43
versivo e vulgar antídoto. Porém em nenhum ponto da comunidade ainda possui somente uma "intenção", ao passo que a obra de lite-
de letras anglo-americana encontrei qualquer indicação de que al- ratura de real valor contém muitas.
guns livros pornográficos são obras de arte de interesse e importân- Outra razão, adiantada por Adorno entre outros, é a de que
cia. Enquanto a pornografia for tratada apenas como um fenôme- nas obras de pornografia falta a forma de começo-meio-e-fim
no social e psicológico e um foco de preocupação moral, como po- característica da literatura. Uma peça de ficção pornográfica mal
de tal argumento ser apresentado? inventa uma indisfarçada desculpa para um início e, uma vez tendo
começado, avança às cegas e termina nenhures.
O argumento seguinte: o texto pornográfico não é capaz de
2 evidenciar nenhum cuidado com seu meio de expressão enquanto
tal (a preocupação da literatura), uma vez que o propósito da por-
Há uma outra razão, à parte essa classificação da pornografia nografia é inspirar uma série de fantasias não-verbais em que a lin-
como um tópico de análise, que explica por que a questão de saber guagem desempenha um papel secundário, meramente instrumental.
se as obras de pornografia podem ou não ser literatura nunca foi A última e mais importante alegação defende que o tema da
genuinamente debatida. Trata-se da própria visão de literatura literatura é a relação dos seres humanos uns com os outros, seus
mantida pela maioria dos críticos ingleses e norte-americanos - complexos sentimentos e emoções; a pornografia, em contraste
uma visão que, ao excluir os escritos pornográficos, por definição, desdenha as pessoas plenamente formàdas (a psicologia e o retr~t~
dos recintos da literatura, exclui muito mais além disso. social), é desatenta à questã~motivos e de sua credibilidad~.e
Por certo, ninguém nega que a pornografia constitui um ra- n~rra apenas as transações infatigáveis e imotivadas de órgãos

mo da literatura no sentido de que aparece na forma de livros im- des personalizados.


pressos de ficção. Entretanto, afora essa relação trivial, nada mais A simples extrapolação, a partir do conceito de literatura
se permite. O modo como a maioria dos críticos constrói a natureza mantido atualmente pela maior parte dos críticos ingleses e norte-
da literatura em prosa (na mesma medida que sua visão da natureza americanos, levaria à conclusão de que o valor literário da porno-
da pornografia) inevitavelmente coloca a pornografia em oposição grafia é nulo. Mas esses padrões não resistem, por si sós, a uma
à literatura. Esse é um argumento estanque, pois, se um livro por~ análise ma~s cuidadosa, tampouco se ajustam a seu objeto. Tome-se,
nográfico é definido como não pertencendo à literatura (e vice-ver- por exemplo, História de O. Ainda que o romance seja nitidamente
sa), não há razão para examinar as obras individuais. obsceno pelos padrões usuais, e mais eficiente qu e qualquer outro
· A maioria das definições entre si excludentes de pornografia e no despertar sexualmente o leitor, a excitação não parece ser a úni-
de literatura baseia-se em quatro razões diversas. A primeira é a de ca função das situações retratadas. A narrativa tem, com efeito,
que a maneira completamente unívoca em que os livros de porno- um começo, um meio e um fim definidos. É raro a elegância da
grafia se dirigem ao leitor, propondo-se a excitá-lo sexualmente, é escrita deixar a impressão de que o autor considere a linguagem
antitética à complexa função da literatura. Alega-se que o propósi- uma necessidade aborrecida. Além disso, as personagens possuem
to da pornografia, a indução da exçitação sexual, está em conflito de fato emoções intensas, embora obsessivas e, na verdade, bastan-
con1 o tranqüilo e desapaixonado envolvimento que evoca a genuí- te associais; e têm motivações, sem que sejam psiquiátrica ou
na arte. Mas essa mudança do argumento parece particularmente socialmente "normais". Em História de O, ·os protagonistas são
não-convincente, considerando-se o reverenciado apelo aos senti- dotados de uma es]pécie de ''psicologia' ', derivada da psicologia da
lll ntos morais do leitor tentado pela escrita "realista", para não
luxúria. E, embora aquilo que possa ser apreendido das persona-
111 11 • ontr o fato de que algumas obras-primas indiscutíveis (de
gens no interior das situações em que são colocadas seja severamen-
htlllll 1 1 I .uwr nce) contêm passagens que rematadamente exci-
te limitado - a maneira da concentração sexual e de comporta-
mento sexual explicitamente apresentado - , O e seus parceiros não
t 1111 1' 1t Intt lllfli s plausível apenas enfatizar que a pornografia

44 45
são mais reduzidos ou esboçados que as personagens de muitas muito menos complexo do que é), mas as complexidades do pró-
obras não-pornográficas da ficção contemporânea. prio conhecimento, como meio através do qual um mundo afinal
Apenas quando os críticos ingleses e norte-americanos desen- existe e é constituído, bem como uma abordagem de livros de fic-
volverem uma visão mais sofisticada de literatura, um debate inte- ção específicos que não desconsidera o fato de que eles existem em
ressante poderá ser desencadeado. (Afinal, tal debate seria não só diálogo uns com os outros. Desse ponto de vista, a decisão dos ve-
sobre a pornografia, mas sobre todo o corpo da literatura contem- lhos romancistas, de retratar o desenvolvimento dos destinos de
porânea insistentemente centrado em situações e comportamentos "personagens" agudamente individualizadas, em situações fami-
extremos.) A dificuldade surge porque inúmeros críticos continuam liares e socialmente densas, no quadro da notação convencional de
a identificar com a própria literàillraem prosa as conven~ões literá- seqüência cronológica, é apenas uma das muitas decisões possíveis,
rias partlcu ares o "rea 1smo~' (daquilo que se poderia toscamente não possuindo nenhum apelo inerentemente superior à fidelidade
is"sociar à tradição principal do romance do século XIX). Para dos leitores sérios. Nada existe de mais "humano" quanto a esses
exemplos de modos literários alternativos não estamos confinados procedimentos. A presença de personagens realistas não é, em si,
apenas à maior parte dos grandes textos do século XX (de Ulisses, alguma coisa benéfica, uma matéria-prima mais nutritiva para a
um livro que não trata de personagens mas dos meios de intercâm- sensibilidade moral.
bio transpessoal, de tudo o que liga a psicologia individual externa A única verdade segura sobre as personagens da ficção em
e a necessidade pessoal; ao surrealismo francês e seu produto mais prosa é que constituem, na expressão de Henry James, "um recur-
recente, o Novo Romance; à ficção "expressionista" alemã; ao so de composição". A presença-de figuras humanas na arte literária
pós-romance russo representado por São Petersburgo, de Biely, e pode servir a muitos propósitos. A tensão dramática ou a tridimen-
por Nabokov; ou às narrativas não-lineares e sem tensão, de Stein e sionalidade na apresentação das relações pessoais e sociais, com
Burroughs). Uma definição de literatura que culpa uma obra por freqüência, não é um objetivo do escritor e, nesse caso, pouco auxí-
ser enraizada na "fantasia", e não na apresentação realista de co- lio traz insistir nisso como um padrão genérico. Explorar idéias é
mo pessoas vivem umas com as outras em situações comuns, não um propósito igualmente autêntico da prosa de ficção, ainda que pe-
~/ pode sequer dar conta de convenções veneráveis como a pastoral, los padrões do realismo no romance esse objetivo limite em muito a
\que narra relações entre pessoas de forma certamente redutiva, in- apresentação de personagens reais. A construção ou a representa-
sípida e não-convincente. ção de algo inanimado, ou de uma parcela do mundo da natureza, é
A eliminação de alguns desses clichês persistentes é uma tare- também um empree:ndimento válido, e compreende uma regradua-
fa já há muito em atraso: ela promoveria uma leitura judiciosa da ção apropriada da figura humana. (A forma da pastoral envolve
literatura do passado, ao mesmo tempo que colocaria os críticos e ambos os propósitos: a representação de idéias e da natureza. As
os leitores em contato com a literatura contemporânea, que inclui pessoas são utilizadas somente na extensão em que constituem um
áreas de escrita que estruturalmente se assemelham à pornografia. certo tipo de paisagem, que é, de uma parte, estilização da natureza
~e fácil, e virtualmente sem sentido, exigir gue a literatura sç "real" e, de outra, paisagem de idéias neoplatônicas .) E são igual-
apegue ao "humano". O que está em jogo não é o "humano" em mente válidqs, corno tema para a narrativa em prosa, os estados
contraposição ao "inumano" (onde a opção pelo "humano" ga- extremos da consciência e dos sentime11tos humanos, aqueles tão
rante instantânea autocongratulação moral tanto ao autor como ao peremptórios que excluem o fluxo mundano de sentimentos e se li-
leitor), mas um registro infinitamente variado de formas e tonalida- gam apenas por contingência a pessoas concretas - é o que ocorre
des para transpor a voz humana para a narrativa em prosa. Aos com a pornografia .
olhos do crítico, a questão em pauta não é a relação entre o livro e Não se deve imaginar, a partir dos pronunciamentos confian-
"o mundo" ou a " realidade" (em que cada romance é avaliado co- tes sobre a natureza da literatura feitos pela maior parte dos críticos
1110 fosse um item único, e onde o mundo é visto como um lugar norte-americanos e ingleses, que um intenso debate sobre esse tema

46 47
vem se desenvolvendo por várias gerações. "Parece-me", escreveu
acques Rivi · velle Revue Française em 1924, "que esta- cana _ particularmente nesta última. No e~ta~to trata-se de um
mos presenciando uma crise muito grave na concepção do que é a brilho e um interesse erigidos sobre uma falenc1a ~o gosto e al~o
literatura''. Uma das diversas respostas ao ''problema da possibili- próximo de uma fundamental desonestidade ~e meto_do. A retr~­
dade e dos limites da literatura", notou Riviere, é a acentuada ten- grada percepção dos críticos face às novas e Impre_sswnantes rei-
dência da "arte (se ainda é possível manter o termo) a se tornar vindicações demarcadas pela literatura moderna, ah,~da ~ s_e~ des-
uma atividade completamente não-humana, uma função supersen- peito por aquilo que é comumente deAsig_nado com~ a reJei~ao _da
sorial, se posso usar a expressão, uma espécie de astronomia criati- realidade" e "a falência do eu", endem1cas nessa ht~ratura, 1~d1ca
va". Cito Riviere não porque seu ensaio, "Questionando o Concei- 0 ponto preciso em que a crítica literária anglo -amen~ana mais ta-
to de Litedtura' ', seja particularmente original, definitivo ou sutil, lentosa abandona a consideração das estruturas da htert<ltura e se
mas simplesmente para lembrar um conjunto de noções radicais so- transpõe para a crítica da cultura. . .
bre a literatura que constituíam quase obviedades críticas, quarenta Não pretendo repetir aqui os argume~t?s q~e adiantei em
anos atrás, nas revistas literárias européias. outros lugares, a favor de uma abordagem ,c~It1ca d1ferent~. Tod_a-
Até o momento, no entanto, esse fermento permanece alheio, via alguma alusão a tal abordagem é necessana. M~sm? a d1sc~ss~o
não-assimilado e persistentemente mal compreendido no mundo de uma obra específica, da natureza radical de f!zstozre de I Oez/,
das letras inglesas e norte-americanas: suspeito de provir de uma levanta a questão da própria literatura, da narrativa em pro~a co~­
coletiva falência cultural de energia; freqüentemente desconsidera- siderada como uma forma artística. E livros como ~s d~ Bataille_m~o
do como pura perversidade, obscurantismo ou esterilidade criativa. poderiam ter sido escritos se não fosse pela reaprec1açao ang~stl~~a
Os melhores críticos de língua inglesa, entretanto, dificilmente po- da natureza da literatura, que tem preocupado a Europa hterana
deriam deixar de notar quanto da grande literatura do século XX por mais de meio século; mas, faltando-lhes aquele ~ontex:o, neces-
subverte essas idéias, recebidas de alguns dos mais importantes ro- sariamente se mostram quase inassimiláveis aos leito:es mglese_s e
mancistas do século XIX, sobre a natureza da literatura, que conti- norte-americanos - exceto como "mera" pornogr~~Ia, como hxo
nuam a ecoar até hoje, em 1967. Mas a percepção de uma literatura de inexplicável extravagância. Se ainda é nec:_ssano ~evant~~ _a
genuína e nova foi geralmente oferecida pelos críticos em um espíri- questão de saber se a pornografia e a literatura sao ou nao antite~I ­
to muito semelhante ao dos rabinos, no século anterior ao princípio cas se é totalmente necessário afirmar que as obras d~ por~ografia
da era cristã, os quais, reconhecendo humildemente a inferioridade podem pertencer à literatura, então a afirmativa deve Implicar uma
espiritual de sua própria época frente à era dos grandes profetas, visão global do que é a arte. .
não obstante encerraram resolutamente o cânone dos livros proféti- -- · Para colocar a questão de forma mais geral: a art~ (e fazer
cos e declararam (com mais alívio que pesar, segundo se suspeita) arte) é uma forma de consciência; seus materiais_ são a vanedade de
que a era da profecia terminara. Assim a época daquilo que na crí- formas de consciência. Nenhum princípio estétzco pode fazer_ com
tica anglo-americana ainda é denominado, de forma bastante sur- que essa noção da matéria-prima da arte seja c_~ns~ruída exclumdo-
preendente, literatura "experimental" ou "de vanguarda", tem se mesmo as formas mais extremas de consc1encta: qu~ ~ranscen­
sido repetidamente declarada concluída. A celebração ritual do so- dem a personalidade social ou a individualidade psicologica.
lapamento operado por cada um dos gênios contemporâneos nas Na vida cotidiana, sem dúvida, podemos r~conhec~r u~a
velhas noções de literatura foi sempre acompanhada pela insistên- obrigação moral de inibir tais estados de consciência em nos pro-
cia nervosa em que a escrita vinda à luz era, com pesar, a última de prios. o que parece pragmaticamente justo, não apenas p~~a man-
sua nobre e estéril linhagem. Ora, os resultados dessa maneira in- ter a ordem social no sentido mais amplo, como para permitir que o
trincada e unilateral de examinar a literatura foram várias décadas indivíduo estabeleça e permaneça em contato hu,mano co:n outras
de interesse e brilho sem paralelos na crítica inglesa e norte-ameri- pessoas (embora se possa renunciar a isso por penodos mais ou me-
nos longos) . É bem conhecido que, quando as pessoas se aventu-
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49
ram em regiões longínquas da consciência, fazem-no com o risco de padrão especial está sendo aplicado aos temas sexuais. Isso se to.r~a
sua sanidade, isto é, de sua humanidade. Mas a "escala humana", mais claro quando se pensa em outro ti~o ?~ obra, em ou:ra ~s~ec~e
ou o padrão humanístico próprio à vida e à conduta normais, pare- de "fantasia". A paisagem irreal e a-histonca onde a aç~o e situ -
ce mal colocada quando se aplica à arte. Ela supersimplifica. Sedu- da, o tempo peculiarmente congelado em que os atos_sa~ dese~-
rante o último século a arte concebida como uma atividade autôno- enhados - esses traços ocorrem com a mesma freque?Cia na flc-
ma chegou a ser investida de uma estatura sem precedentes- a coi- ~ão científica e na pornografia. Não há nada de conclusivo no ~at~
sa mais próxima a uma atividade humana sacramental reconhecida bem conhecido de que a maioria dos homens e das mulheres nao e
pela sociedade secular - isso se deve a uma das tarefas que a arte capaz das proezas sexuais que as pessoas apare~tam desempenh~r
assumiu: a de efetuar incursões e conquistar posições nas fronteiras na pornografia; que o tamanho dos órgãos, o numero e a duraç~o
da consciência (em geral muito perigosas ao artista como pessoa), de orgasmos, a variedade e a praticabilidade _dos poderes sexuais,
para relatar o que lá encontrou. Sendo um livre explorador dos pe- bem como o total de energia sexual são grosseiram_e~te exa~erado~.
rigos espirituais, o artista ganha uma certa permissão para se com- É correto, da mesma maneira, que as naves espac~ms .e _os mcon~a­
portar diferentemente de outras pessoas; ao igualar a singularidade veis planetas retratados nos romances de ficçã_o CI.entlflca ta~be~
de sua vocação, ele pode ou não ser adornado com um estilo de vi- - . tem O fato de que o espaço da narrativa e um topos Idea
nao exis · .. . - · ·f d sua
da de conveniente excentricidade. Seu ofício é inventar troféus de não desqualifi~a nem.Jl pornografia, nem a flcçao ~Ienti Jca e
suas experiências -objetos e gestos que fascinam e encantam, não . condição de literatura. Tais negações do tempo S~Cial, ~o espaço e
meramente edificam e entretêm (como recomendavam as velhas no- da personalidade reais, concretos e tridimensionais (ass_Im como as
ções do artista). Seu principal meio de fascinação é avançar mais liações "fantásticas" da energia humana) são precisamente os
um passo na dialética do ultraje. Busca tornar sua obra repulsiva, ~~~edientes de um outro gênero de literatura, fundado num modo
obscura, inacessível; em suma, oferecer o que é, ou parece ser, não- diverso de consciência. .
desejado. Entretanto, por mais violentos que possam ser os ultrajes Os materiais das obras pornográficas tidas co~o ~Iteratura
que o artista perpetre a seu público, suas credenciais e sua autorida- são precisamente, uma das formas extremas de consciencJa ~~m~-
de espiritual dependem, em última instância, da consciência do pú- ' Sem dúvida muitas pessoas concordariam que a co~sciencJa
blico (seja algo conhecido ou inferido) sobre os ultrajes que ele co- na.ualmente ob~ecada pode, em princípio, ingressar na literatura
sex forma de arte. Literatura sobre a luxuna. , . ? p or que na-o?. Mas '
mete contra si mesmo. O artista moderno exemplar é um corretor como
da loucura. ·~ • - '
.......______~ d em seguida, elas comumente acrescen~am um~ cl~~su~a a~ ac~rd~:
A noçao a arte como um produto custosamente adquirido que na prática acaba por anulá-lo. Exigem que o autol teuha C: ad~
através de um imenso risco espiritual, cujo preço aumenta com o ada "distância" de suas obsessões para que possam con~Idera­
ingresso e a participação de cada novo jogador na partida, convida : literatura. Tal padrão é mera hipocrisia, revelan?o, _mms ~ma
a um conjunto revisado de modelos críticos. A arte produzida sob a . ez que os valores usualmente aplicados à pornografl~ sao, ~fmal,
égide de tal concepção não é - e não pode ser - "realista". Mas ~s ;ertencentes à psiquiatria e aos estudos sociais, mms que a arte.
expressões como "fantasia" ou "surrealismo", que somente inver- (Desde que a cristandade elevou a parada e se conce?trou no com-
tem a pauta do realismo, pouco esclarecem. A fantasia decai dema- ortamento sexual como a raiz da virtude, tudo aqmlo que perten-
siado_f'!cilmente em "simples" fantasia; o argumento definitivo é o P
ça a sexo tem SI'd o um "caso especial" em nossa cultura,
. provocan-
d v n

~
djetivo "infantil". qpde ter.m.!._na a fantasia (condenada por pa- do atitudes peculiarmente inconsistentes.) As pmturas e a
rões psiquiátricos e não-artísticos) e onde cbmeça a imaginação? Gogh preservam sua condição de obra de arte, embora aparente-
Como parece pouco provável q os críticos contemporâneos mente sua maneira de pintar se devesse menos a uma escolha cons-
desejem seriamente excluir as narrativas em prosa de caráter irrea- ciente de meios representativos do que a seu _ar desordenado, o qual
lista do domínio da literatura, somos levados a suspeitar que um realmente via o mundo da forma como o pmtava. Do mesmo mo-

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do, Histoire de I'Oei! não se transforma num estudo de caso, mas
em arte, porque, como revela Bataille no extraordinário ensaio
autobiográfico acrescentado à narrativa, as obsessões do livro são 3
na verdade as suas próprias.
Duas obras francesas recentemente traduzidas para o inglês,
O que faz de uma obra de pornografia parte da história da
História de O* e A Imagem, ilustram convenientemente alguns
arte, ao in~~s ~e pu~a escória, não é a distância, a superposição de
uma consciencia mais conformável à da realidade comum sobre a aspectos envolvidos neste tópico, mal investigado na crítica anglo-
"consciência desordenada" do eroticamente obcecado. Em vez dis- americana da pornografia como literatura.
so, é~ originalidade, a integridade, a autenticidade e o poder dessa HistÓria de O, de autoria de "Pauline Réage", surgiu em
própna consciência insana, enquanto corporificada em uma obra. 1954 e tornou-se Imediatamente famosa, eni parte devido ao patro-
Do ponto .de vista da arte •. a exclusividade da consciência incorpo- cínio de Jean Paulhan, que redigiu o prefácio. Passou a ser ~rença
rada nos livros pornográficos não é, em si mesma nem anômala comúliiQUeo próprio Paulhan escrevera a obra- talvez devido ~o
nem antiliterária. ' ' precedente estabelecido por Bataille, que contribuíra com um ensmo
_ Tampouco o pretenso objetivo ou resultado, intencional ou (assinado com seu verdadeiro nome) ao seu •Madame Edwarda,
n~o, dessas obras (excitar o leitor sexualmente) chega a ser um de- quando este fora publicado pela primeira vez em 1937, sob o ps~u­
feit?· Somente ~ma noção empobrecida e mecanicista de sexo po- dônimo de "Pierre Angelique"; e também porque o nome Pauhne
~ena levar alguem a pensar que ser sexualmente estimulado por um sugeria Paulhan. Mas ele sempre negou ~ue tivess~ escrito História
hvro como Madame Edwarda é uma questão simples. A unilaterali- de o, insistindo que o livro fora na realidade escnto por uma mu-
dade de intenção, com freqüência condenada pelos críticos, com- lher, que nunca publicara antes e vivia em outra p~rt~ ?a França,
põe:se,. quando a obra merece o tratamento de arte, de muitas res- preferindo permanecer desconhecida. Embora a histona de Pau-
sona,ncias. A~ sensações físicas involuntariamente produzidas em lhan não tenha eliminado as especulações, a certeza de que ele era o
~lguem que leia a obra carregam consigo algo que se refere ao con- autor acabou por se desvanecer. Com o passar d~s anos.' diversas
.JUnto das experiências que o leitor tem de sua humanidade - e de hipóteses mais engenhosas, que atribuíam a autona do ~Iv.r? a ou-
~eus limites como personalidade e como corpo. A singularidade da tros notáveis do cenário político de Paris, ganharam credibilidade e
mt~nção pornográfica é, na realidade, espúria. Mas a agressividade logo foram abandonadas. A identidade real de "Pauline Réage"
da mtenção não o é. Aquilo que parece um fim é, na mesma medi- P2'Siste como um dos raros segredos bem guardados das letras co~-
da, um, meio, assustadora e opressivamente concreto. o fim, entre- temporâneas. ,
tanto, e menos concreto. A pornografia é um dos ramos da literatu- ~m foi publicado dois anos depois, em 195~, t,a~be~
ra - ao lado da ficção científica - voltados para a desorientação e sob um pseudônimo, ''Jean de Berg''. Para compor o misteno, fm
o deslocamento psíquico. dedicado a "Pauline Reage" e teve o prefácio escrito por ela, de
quem desde então nada se soube. (O prefác~o ~e "Réage" é conciso
Em certos aspectos, o uso de obsessões sexuais como tema da li-
e dispensável; o de Paulhan é extenso e mu.Ito mteress.ant~) Mas os
teratura assemelha-se ao uso de um tema literário cuja validade bem
'tomentários nos círculos literários de Pans sobre a Identidade de
poucas pessoas contestariam: as obsessões religiosas . Assim compa-
r~do, o fato con.hecido do impãcio definido e agressivo da pornogra- "Jean de Berg" são mais conclusivos que o trabalho de investiga-
ção sobre- "Pauline Réage". Apenas houve u~ boato que apontava
fia sobre seus leitores apresenta-se um pouco diferente. A sua inten-
para a mulher de um influente jovem romancista e que ganhou am-
ção notória de estimular sexualmente os leitores é na verdade uma
pla repercussão.
espécie de proselitismo. A pornografia que é autêntica literatura visa
"excitar" da mesma forma que os livros que revelam uma forma
extrema de e~eriência ~eligiosa tê~omo propósito 'convert~.
(*) Trad . bras. de Maria de Lourdes Nogueira Porto , Brasiliense, I985 .
(N.T.)
52
53
esquecido. Foi lido com entusiasmo por Flaubert, Baudelaire e pela
Não é difícil entender por ue a I . . maioria dos outros gênios radicais da literatura francesa de fins do
dade para especular sobre os doi; qu: e.s com. suficiente curiosi- século XIX. Um dos santos padroeiros do movimento surrealista,
nar para algum nome da co ~seudommos tiveram de se incli- Sade figura com destaque no pensamento de Breton. No entanto
França. Era pouco conceb' lmurudade das letras estabelecida da seria a discussão sobre ele, após 1945, que realmente consolidaria
filho único de um amado •v; q~~ qualquer dos dois livros fosse o
sua posição como um inesgotável ponto de partida para o pensa-
História de O e A lm r. or Iferentes que sejam um do outro
agem comprovam 1. ' mento radical sobre a condição humana. O conhecido ensaio de
~ode ser atribuída simplesmente a uma ab um~ q~a Idade que não Beauvoir, a extensa biografia erudita empreendida por Gilbert Lely
nos comuns da sensibilid .d d . undancm dos dotes literá- e escritos ainda hoje não traduzidos de Blanchot, Paulhan, Batail-
a e, a energia e da · t 1· ~ ·
d ons, bastante em evidência f m e Igencm. Tais le, Klossowski e Leiris são os documentos mais eminentes da reva-
vés de um diálogo de artifíci·o's oAran:bp~ocessados, por sua vez, atra- lorização do pós-guerra, que assegurou essa modificação surpreen-
. d' · · · so na autocons ·~ · d
t Ivas. . Ificilmente poderia est ar mais . Ionge da a ~Ciencia as narra- dentemente vigorosa da sensibilidade literária francesa. A qualida-
~~
·
abilidade normalmente c 'd d usencia de controle e de e a densidade teórica do interesse francês por Sade
h . ons1 era as como -
obsessiva. Intoxicantes como t expressao da luxúria vutua mente incom reensível para os intelectuais ingl~ses e norte-
e o ache apenas engraçado ou :~~st~~a (ca~o o leitor ~ão se desligue americanos, para os quais Sade é talvez uma figura exemplar na
preocupadas com o "u " d
so a matena pn
? :as .uas narrativas
· ·
estão mais !..A ~ psicopatologia, tanto individual como social, 12or@ ~
a "expressão" de! E .. - ma erotlca do que com
, a. a sua utilização é pre . ~é-lhes inconcebível levá-lo a sério como " ensador" .)
a outra palavra para d f' . I . , . emmentemente - não Mas o que está por trás de História de O não é somente Sade,
dh e m1- a - literana A · · -
e seus prazeres .
ultraJ· antes em R ' t , . d. Imagmaçao em busca
1s ona e O e em A 1 os problemas que levantou e os que foram suscitados em seu nome .
manece solidamente ancorad magem per- O livro também lança raízes nas convenções dos livretos "liberti-
de sentimentos intensos d a a cd~rtas noções de consumo formal nos" escritos na França do século XIX, tipicamente situados em
., . ' e proce 1mentos pa
nencia, que se ligam tanto a, J't 1 eratura e à hi t · · 1·
ra esgotar, uma · expe- uma Inglaterra fantasiosa, habitada por aristocratas brutais com
como
. ao domínio a-histo' r· d E
1co e ros E por q s o na- ? Iterana recente enormes equipamentos sexuais e gostos violentos, a ser saciados ao
cias não são pornográficas , . . ue na o. As experiên- longo do eixo do sadomasoquismo. O nome do segundo amante-
. ' so as Imagens e as r e -
uras da Imaginação) o são E' , . presentaçoes (estru- proprietário de O, Sir Stephen, presta clara homenagem à fantasia
t . f' · esse o mot 1vo por q 1.
nogra Ico com freqüência p o d e f azer o leitor . p ue um b ·Ivro por- desse período, assim como a figura de Sir Edmond de Histoire de
em outros livros oornogra'f' _ ensar, as1camente, l'Oeil. Além disso, deve-se acrescentar que a alusão a um tipo banal
· _ • ~ lCOS. e nao no ~evo - d'
Isso nao necessariamente em d 't . - .. u " nao-me Ia do - e de escória pornográfica situa-se, enquanto referência literária, exa-
Por exemplo o que ressoe nmento de sua excitação erótica. tamente no mesmo nível que o cenário anacrônico da ação princi-
lumoso corpo em' sua . a por toda a História de O é um vo-
, . • maior parte sem 1 d · pal, que é buscada diretamente do teatro sexual de Sade. A narrati-
graf1ca ou "libertina" t t . va o r' e literatura pomo- va abre-se em Paris (O vai ao encontro de seu amante René, em
. ' an o mg1esa como fra
seculo XVIII. A referência mais . o, bvia . e. a Sade ncesa,
M que remonta . _ ao uma carruagem, e é levada a um passeio), mas a maior parte da
mos pensar apenas nos escritos d . . . as aqm nao deve- ação subseqüente transfere-se a um terreno mais familiar, se bem
terpretação pelos intelectuais l't o p~opno Sade, mas na sua rein- que menos plausível: o castelo convenientemente isolado, com sun-
Guerra Mundial um moVI· I er~~os .franceses após a Segunda tuosa mobília e profusão de serviçais, onde um grupo de homens ri-
· ~ . ' mento cnt1co talve ·
Importancia e influência sobre . . .z comparavel (em sua cos se reúne e para onde são trazidas mulheres virtualmente escra-
real da ficção séria na França)o ,gosto :•terano educado e a direção vas a fim de se tornarem os objetos, partilhados em comum, da las-
pouco antes da Segunda G a reva orização de James lançada cívia brutal e inventiva do grupo. Há chicotes e correntes, máscaras
uerra nos Estados U 'd
f ato de que a revalorizaça-o f rancesa d urou m · tm os, exceto pelo vestidas pelos homens quando as mulheres são admitidas em 'sua
PIantado raízes mais profundas . (S a d e, evidentemente, . ais empo e nunca parece foi
ter
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presença, achas queimando na lareira, indignidades sexuais indizí-
v~is, chicoteamentos e formas mais engenhosas de mutilação física n parte cenário em que sobreviveu. (O manuscrito foi, por acaso,
diversas cenas de lesbianismo quando a excitação das orgias parec~ ;~sgatado da Ba~tilha após Sade ter sido forçado a deixá-lo_ para
~smorec~r. E,m ~esumo, o livro se apresenta munido de alguns dos trás quando o transferiram em 1798 para Charenton; todavia ele
Itens mais frageis do repertório da pornografia. acr:d itou, até a morte, que sua obra-prima se perdera quando a
. P.-t~ onde é possível considerá-lo seriamente? Um simples prisão foi destruída.) O trem express~ das imagens sade~nas v~a
mventano do enredo poderia dar a impressão de que História de o sobre um trilho interminável mas honzontal. Suas descnções sao
não é tanto pornografia mas.,_metapornografia, uma paródia bri- demasiado esquemáticas para serem sensuais. Em vez disso, as a_ções
lhante. ~lgo parecido foi alegado eni defesa de Candy quandõ este ficcionais são ilustrações de suas idéias incansavelmente repetJ?as.
'l'õiPubhcado aqui vários anos atrás, após um período de modesta Entretanto essas próprias idéias polêmicas, num exame refletld?,
existência em Paris como um livro "sujo" mais ou menos oficial. sugerem mais princípios de uma dramaturgia do que uma teo:Ia
Candy não era pornografia, argumentou-se, mas uma brincadeira substantiva. As idéias de Sade (da pessoa como " coisa
· " ou "ob1e- )
uma espirit~osa caricatura dos usos da narrativa pornográfica ba~ \ to'' do corp'o como máquina e da orgia como um inventário das
r~ta. ~m mmha própria visão, Candy pode ser engraçado, contudo i pÕs;>bd>dades esperançosas e ;nr;n;tas de vár,;~s mágm?as em ,cola,
amda e P?rnografia, pois esta é uma forma capaz de parodiar a si
mesma. E da natureza da imaginação pornográfica preferir con-
venções ataba?as de personagens, ce'illirio e ação. A pornografia é
l boração umas com as outras) parecem, no basic?, destmad~ ~ tor-
nar possível um gêneroinfindável e jamais culmil}ante ~e ~t.mdade ~
extremamente desprovida de afeto. Em contraste, J1_1stona de O
~m featro ~e tmos. não de indivíduo.s. Uma paródia da pornogra- tem um movimento definido, uma lógica de acontecimentos, e~
fia, na.medida em que tenha real competência, continua a ser por- contraposição ao princípio·sadeano estático do catálog~ ou da enci-
no,g~af!a. N~ verdade, ela é uma forma comum dos textos porno-
~rafJc?s. Sade ~ utilizou, com freqüência, mvertendo as ficções
moralistas de ~I~hardson, em que a virtude feminina sempre triun-
clopédia. Tal movimento da trama é favorecido em mmto pelo fato
I
de que, na maior p.arte da narrativa, o ~utor tolera pelo ~enos um
vestígio do "casal" (O e René, O e Sir Stephen)- u!!.la umdade e.!!!_
fa sobre a lubncidade masculina (seja dizendo "não" ou morrendo geral repudiada na literatura pornográfica . .
em seguida). No caso de História de O, seria mais preciso falar de E, sem dúvida, a figurá de O é, ela mesma, diferente. Seus
uma "utilização" que de uma paródia de Sade. sentimentos, por mais que se voltem para um tema, apresen~am
. O próprio tom de História de O indica que qualquer elemento alguma modulação e são descritos com mi.núcia. Embo:a ~~ssiva,
no hvro que pos~a ser !ido como paródia ou gosto por antigüidades o dificilmente se assemelha àquelas nulidades das histonas de
(uma pornografia da mandarins?) é apenas um entre vários elemen- Sade, que são detidas em castelos remotos para ser~m ator~enta~as
t?s que formam a narrativa. (Embora 'sejam graficamente escritas por nobres impiedosos e padres satân!cos. Além disso, O _e tambem
Situ_a~ões sex~ais que abrangem todas as variações previsíveis de mostrada como ativa: literalmente at1va, como na seduçao de. Ja~­
l~xuna, o c;._tllo narrativo é bastante formal, o nível de linguagem queline, e mais importante, profundamen_te ativa em sua propna
digno e quase casto.) Traços da encenação sadeana são usados para passividade. Ela se parece com seus protótipos sadeanos apenas na
aguçar a ação, mas a linha básica da narrativa difere no fundamen- superfície . Não existe consciência pessoal, exc~:o ~ do aut?r, nos
tal de tudo o que Sade escreveu. Em primeiro lugar, a obra de Sade livros de Sade . Mas o de fato possui uma consciencia,_ de CUJO p~n­
apresenta uma ilimitabilidade ou princípio de insaciabilidade ine- to de observação sua história é narrada. (Mesmo escnta na terceira
rent~s. Seu_Os_l20 J?ias de Sodofl!_a, provavelmente o livro porno- pessoa, a narrativa nunca se afasta do ponto de ~ista de O ou sabe
gráfico m~Is ambiciOso até hoje concebido (em termos de escala) é mais do que ela.) Sade visa neutralizar a sexu~l~dade de todas as
um_a espéc1e de suma da imaginação pornográfica; impressionante suas associações pessoais, representar uma :~peCI~ de e?co~~ro se-
e desconcertante, mesmo na forma truncada, em parte narrativà e xual impessoal_ ou puro. Mas o relato de . Pau!me Reage mos-
tra o agindo de formas bastante diferentes (mclus1ve no amor) com
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diferentes pessoas, notadamente com René, Sir Stephen, Jacqueli- pantes do ato sexual. A insipidez emocional da p~rn.ografia não
ne e Anne-Marie. constitui, portanto, nem uma falência de talento artJStlCO, nem um
Sade parece mais representativo dos principais usos da escri- indício de desumanidade básica. O estímulo de uma resp~sta sexual
tura pornográfica . Na medida em que a imaginação pornográfica no leitor exige isso. Apenas na ausência de emoções diretamente
tende a tornar cada pessoa intercambiável com outra e todas as pes- afirmadas pode 0 leitor de pornografia enc~~trar espaç~ . para suas
soas intercambiáveis com coisas, não é funcional descrever uma próprias respostas. Quando o fato narrado Ja vem revestldo.com ~s
pessoa da forma como O é descrita- em termos de um certo esta- sentimentos explicitamente declarados do a~to~, . p.elos qu~Is o lei-
do de sua vontade (da qual ela está tentando se descartar) e de seu tor pode ser despertado, torna-se então mms diflcil ser estimulado
entendimento. A pornografia é principalmente habitada por criatu- pelo próprio fato.* . d
ras como a Justine de Sade, desprovidas de vontade e de inteligên- A comédia do cinema mudo oferece mmtos exem los .e
cia e mesmo, aparentemente, de memória. Justine vive em um per- · al da a ita ão constante ou do moto-contl-
como o nnc IO .
pétuo estado de estupefação, jamais aprendendo alguma coisa das 0
(as comédias-pastelão) e o do sujeito inexpressivo converge~
violações admiravelmente repetidas de sua inocência. Depois de ~~mente par; 0 mesmo fim - um amortecim~nt?, uma neutrali-
cada nova traição, ela permanece a postos para um outro round, zação ou~ distanciamento das emoções do publico, de sua ca?~­
tão pouco instruída por sua experiência como sempre, pronta a cidade de se identificar em uma forma "humana'' e .de .e~etuar. JUI-
confiar no próximo libertino dominador e a ter sua confiança re- zos morais sobre situações de violência. O ~es.~o prmciplO esta em
compensada por uma renovada perda de liberdade, pelas mesmas operação em toda pornografia. Isso não sigmflca que .as person~­
indignidades e pelos mesmos sermões blasfemos em louvor do gens na pornografia não possam de forma concebivel pos~wr
vício. quaisquer emoções . Elas podem. Mas os princípios de sub-reaçao e
Em sua maior parte, as figuras que desempenham o papel de de agitação frenética tornam o clima emocional a.uto-anul~dor, de
objetos sexuai~ na pornografia são feitas da mesma massa que um modo que 0 tom básico da pornografia é a ausência de sentimentos
"cômico" principal de uma comédia. Justine é como Cândido, que e de emoções. 1 d
é também uma nulidade, um zero, um eterno inocente incapaz de Entretanto, é possível distinguir alguns graus des~a fa ~a e
' ilprender qualquer coisa de · suas atrozes provações. A estrutura sentimentos. Justine é o estereótipo do objeto sexual (I~v~nave~­
usual da comedia, que apresenta uma personagem como um centro mente feminino, uma vez que a maior parte da por~ografm e es.cn-
imóvel em meio ao ultraje (Buster Keaton é a imagem clássica), r. po- ho~ ons O" a p<>rtir do oonto de vista masculino estereotipa-
1 d
t (:! ! l UH,, ' U U..L • •

brota repetidamente na pornografia. Suas personagens, como as da do): uma vítima perplexa cuja consciência permanec~ ma tera a
comédia, são vistas somente do exterior, a partir de seu comporta- por suas experiências. Porém O é 11ma conhecedora; sej~ ~u~l for o
mento. Por definição, não podem ser observadas em profundida- e
preço, a dor e 0 medo, grata pela oportunidade de ser IlllCiada no
de, de modo tão verídico que envolva os sentimentos do público.
Na maioria das comédias, a graça reside precisamente na disparida-
de entre o sentimento atenuado ou anestesiado e um acontecimento
(*) Isso fica muito claro no caso das obras de Genet, que, apesar do caráter
ultrajante . A pornografia opera de uma maneira semelhante. Ore- explícito das experiências sexuais relatadas, não são sexualmente excttant~s ~ para a
sultado produzido por um tom inexpressivo, pelo que aparece ao maior parte dos leitores. o que o leitor percebe (e Genet o afirmou em vanas;~a­
leitor em um estado mental comum como a inacreditável sub-rea- siões) é que 0 próprio autor estava sexualmente excitado enquanto escrevia O ta-
ção dos agentes eróticos às situações em que são situados, não é a re da Rosa, Nossa Senhora das Flores etc. O leitor mantém um contato mten~o e
liberação da risada. Em vez disso, é a liberação da reação sexual, !erturbador com a excitação erótica de Genet, que é a força motnz dessa~narr;u~as
eivadas de metáforas; mas, ao mesmo tempo, a excitação do autor _1m':_e e a o :~­
originalmente voyeurista, mas que, é provável, necessita ser assegu- tor. Genet está perfeitamente certo quando afirma que seus hvros na o sao pornog -
rada por uma identificação direta subjacente com um dos partici-
fico s.

58 59
mistério, que é a perda do eu. O aprende, sofre, modifica-se. Passo . al cu·os danos mais graves quase todos,
da pela cristandade ocident ' .J . l gar a culpa e a ansiedade.
a passo, torna-se cada vez mais o que é, um processo idêntico ao egam Em pnme1ro u , . d
nessa cultura, carr - . .d des sexuais - conduz10 o, se
Em seguida, a reduçao _das ca·p~c~ ·~ez pelo menos à exaustão da
esvaziamento de si própria. Na visão de mundo apresentada por
História de O, o bem mais elevado é a transcendência da personali-
não à virtual impotência _ouda n~It 'lementos naturais do apeti-
dade. O movimento da trama não é horizontal, mas uma espécie de , · · n•pressao e mm os e ·
ascensão através da degradação. O não somente pãssa a seflaêntica energia erotJca e a • '' , di o transbordamento nas m-
" ersões ) Alem sso, t'
a.-sua disponibilidade sexual, como deseja atingir a perfeição de se te sexual (as , bl" pervc as .em que. as pessoas tendem a responder a no I-
transformar num objeto. Sua condição, se pode ser caracterizada discrições pu I ' . d tros com inveja, fascinação, re-
cias sobre os prazeres sexuais E~ odu sa contaminação da saúde se-
como de desumanização, não deve ser entendida como um subpro-
duto de sua escravidão a René, a Sir Stephen e ao outro homem em pulsa e 10 lIgnaç
. d" ão rancorosa
. . .
e se ong10a um .eno
~ ~meno como a pornogra f""dIa.
es

Roissy, mas como o ponto principal de sua situação, algo que ela xual da cu tura qu . m o diagnóstico histórico conti o
Não pretendo polermzar co l"d de ocidental Não obstao-
busca e por fim alcança. A imagem final de sua realização aparece nesse relato das deformações da sexualix; de visões su~tentado pela
na última cena do livro: O é levada a uma festa, mutilada, acorren- e decisivo no comp e t
tada, irreconhecível, fantasiada (como uma coruja) - tão convin- te, o que me parec . d d omunidade é um pressupos o
maioria dos membros educa os \~te sexual humano é, quando
centemente desumanizada, que nenhum dos convidados pensa em
se dirigir a ela de modo direto. mais questionável: o de que o apel a·da' vel· e o de que "o obsce-
a---umcL_f unÇão. natura
n~a""o""-"'p;;;;e;:;rv"'e>rr'fhíno,
r
- . agrt sobre' a natureza - por uma
- ·- a flcçao 1mpos a
no" é uma con~enç:!,9,
A busca de O resume-se, com concisão, na expressiva letra
que lhe serve de nome. "0" sugere uma caricatura de seu sexo, não há ai o de vil nas funções sexuais e, por
de seu sexo individual mas simplesmente da mulher, e também sociedade convicta de que l s- g "ustamente tais pressupostos que
equivale a nada. Contudo o que História de O revela é um parado- extensão, .no prazer slexua d. ~~ Jfrancesa representada por Sade,
são questiOnados pe a tra IÇ d R. tória de O e A Imagem.
xo espiritual, o do vazio preenchido e da vacuidade que é também
Lautréamont, Batail_le e os autorebs e !~ e' uma noção primai do
~m pie!!_um. A'fõrça do livro repousâexatamente na angústia des- Seus trabalhos sugere
m que "o o sceno
. . rofundo que a repercus-
pertada pela presença contínua desse paradoxo. "Pauline Réage" . h ano algo mmto mais P l"d d
levanta, de um modo muito mais orgânico e sofisticado que o reali- conhecimento um ' . iedade ao corpo. A sexua I a e
são de uma aversão doentia da soe. t- . um fenômeno altamente
zado por Sade, com suas desgraciosas exposições e discursos, o , , t 'lS expressões cns as, ·~
problema da condição da própria personalidade humana. Todavia, humana e, a parrtence e' ao menos em potencial ' mais às expenen-
enquanto Sade interessa-se pela eliminação da personalidade- do controverso e pe ' , Por domesticada que possa
cias humanas extremas que as comuns . .::!da:s forças demo-níacas na
ponto de vista do poder e da liberdaç!e -, o autor de História de O
ser, a sexualidade permane~e col~od um~s de quando em quando;
preocupa-se com a eliminação da personali'dade- do ponto de vis- ·~ . d homem Impe 10 o-n ' d .
ta da felicidade. (A afirmação mais próxima desse tema na litera- conSCiencia O . . se"os erigOSOS, que abrangem O Im-
tura inglesa: certas passagens de The Lost Girl, de Lawrence.) para perto de prOibições. e _de _Jolê!cia arbitrária contra outr~ pes-
pulso de cometer uma subJta vi . - da consciência, à ânsia da
Entretanto, para que o paradoxo ganhe real significado, o lei- . luptuoso de ext10çao . . -
tor deve compartilhar de uma certa visão de sexo, diferente da que é soa ao anseiO vo , 1 d simples sensação e disposiçao
própria morte. Mesmo no mve as Ih se a ter um ataque epilé-
sustentada pelos membros mais iluminados da comunidade. A vi- 1com certeza asseme a-
físicas, o ato sexua • d"d se não mais, que comer uma
são dominante - um amálgama de idéias rousseaunianas, freudia-
tico, pelo menos na mesma me I a, Todo indivíduo sentiu (no
nas e do pensamento social liberal - enfoca o fenômeno do sexo s·tr com uma pessoa.
como uma fonte perfeitamente inteligível, embora de grande valor, refeição ou ·conver · ' - ) o fascmiO , , er o' ti·co da crueldade física e uma
para o prazer físico e emocional. As dificuldades que possam advir . mínimo na, Jmag10aça~ . 'OJSaS VIS e. repu lSIVaS.
. . Tais fenômenos fazem d
originam-se da longa deformação dos impulsos sexuais administra- atração erotica em '· ,
parte do espectro genumo da sexua I a e, ,
r d d e se não devem ser es-

60 61
critos como meras aberrações neuróticas, o retrato parece diferente existência como ser sexual- enquanto na vida comu~ un~a pessoa
do que é incentivado pela opinião pública esclarecida, bem como saudável é aquela que impede que tal lacuna se amplie. E n?rmal
menos simples. nós não experimentarmos, pelo menos não querermos expenmen-
Seria possível defender plausivelmente que são razões bastan- tar nossa satisfação sexual como distinta de, ou oposta a, nossa sa-
te saudáveis as quais fazem a capacidade total para o êxtase no sexo tisfação pessoal. Mas talvez em parte elas. sejam distintas, quer
ser inacessível para a maioria das pessoas - pois a sexualidade pa- queiramos ou não. Na medida em que o sentimento sexual po?ero~
rece ser algo, como a energia nuclear, que se pode provar passível so efetivamente envolve um grau obsessivo de atenção, ele mclm
de domesticação para, em seguida, revelar o contrário. O fato de experiências nas quais uma pessoa pode sentir que está perdendo
que poucas pessoas tenham regularmente, ou tenham alguma vez, seu "eu". A literatura que vai de Sade a essas obras recentes, pa.:-
experimentado suas capacidades sexuais a esse nível perturbador sando pelo surrealismo, capitaliza esse mistério, isola-o e faz o lei-
não significa que o extremo não é autêntico ou que a possibilidade tor percebê-lo convidando-o a participar dele. .
jamais as assediou. (D..:pois do sexo, é provável que a religião seja o Tal liter~tura é ao mesmo tempo uma invocação do. erótico
segundo recurso mais anti o dis onível aos seres humanos ·para em seu sentido mais sombrio e, em certos casos, u_m exorcis~o. O
amp Iar sua consciência. Todavia, entre as multi ões de Ieis·, o ânimo reverente e solene de História de O é convementemente mva-
~umero dos que se aventuraram muito longe através desse estado riável; por sua vez, uma obra de estados de espírito ~isturados ~o
de mente também deve ser consideravelmente limitado.) Existe, e mesmo tema, uma jornada rumo à alienação do eu diante do_ pr?-
pode-se demonstrar, alguma coisa esboçada com imperfeição e pno.
eu, e' 0 filme de Buiiuel , L 'Age
. .d'Or. Enquanto
. forma, htera-
,
com potencial desorientador na capacidade sexual humana - pelo ria, a pornografia opera com dois modelo~: _um :~mvalente a .trage-
menos no que diz respeito à civilização. O homem, animal doentio, dia (como em História de 0), em que o sujeitO-VItima avança m:x?-
traz consigo um apetite que pode levá-lo à loucura . Essa é a com- ravelmente no sentido da morte, e o outro ~quivalente ~ _comedia
preensão de sexualidade (como algo além do bem e do mal, do (como em A imagem), no qual a busca obse_ssiva do e_:erciClO sexual
amor, da sanidade; como um recurso para a provação e o rompi- é recompensada por uma gratificação termmal, a umao com o par-
mento dos limites da consciência) que informa o cânone da literatu- ceiro sexual desejado de maneira inigualável.
ra francesa que venho analisando.
História de O, com seu projeto de transcender por completo a
personalidade, pressupõe integralmente essa visão negra e comple-
xa da sexualidade, t~o afastada da visão esperançosa esposada pelo 4
freudianismo americano e pela cultura liberal. A mulher a quem
ilão é dado outro nome que O progride simultaneamente rumo a Mais que qualquer outro, Bataille é o autor que apresent~ um
sua própria extinção como ser humano e à sua satisfação como ser sentido negro do erótico, de seus perigos de fascinação e humilha-
sexual. É difícil imaginar como alguém poderia afirmar se existe ou ção. Histoire de l'Oeil (publicado pela primeira vez~~ 1928),e Ma-
não, de modo real ou empírico, qualquer coisa na "natureza" ou dame Edwarda* qualificam-se como textos pornograflcos ate onde
na consciência humana que suporte essa divisão. Mas parece com-
preensível que a possibilidade sempre perseguiu o homem, por mais
acostumado que esteja a execrar tal cisão . (*) Infelizmente, a única tradução disponível em inglês do que simula ser Ma-
dome Edwarda, a que está incluída em The 0 /ympia Reader (Gr_ove Pr~ss, 1965.
O projeto de O sanciona, em outra escala, aquele que se per-
pp. 662-72), apenas apresenta metade da obra. Somente o réc~t fm trad~z1do. Con-
sonifica na existência da própria literatura pornográfica. O que a tudo Madame Edwarda não é um récit recheado com um prefac1o tambem de auto~
literatura pornográfica faz é justamente estabelecer uma ·cunha en- ria de Bataille. É uma criação em duas partes -ensaio e récit- e cada uma delas e
tre a existência de uma pessoa enquanto ser humano completo e sua quase ininteligível sem a outra.

62 63
seu tema é uma busca sexual exclusiva que aniquila toda consideca-
Çâo das pessoas estranhas a seus papéis na dramaturgia sexual, e na J·am quais . forem as dúvidas que o autor expresse so-
medida em que tal busca é descrita grafkamente. Mas essa descri- da á morte, se . sica de câmara
ção não transmüe a extraordinária quaJ;dade desses Hvros. A sim- bre sua sma.· ) ôs a maioda de seus livros. • aI (às mu vezes acompa-·
Ples expHcüação dos órgãos e atos sexurus não é necessariamente Bataille pcomp , f'ca na forma de recita o' pria consciên-
obscena; apenas passa a sê-lo quando é reaHzada em um tom part;- ornogra I ' 'f' dor é sua pr
~do e~tad~m::t~ ext;aordiná~ia
da literatura . ) O tema um rca d onia · no entan-
cular, quando adquiriu uma certa ressonãncla moral. Ocorre que o
rgu~a
nhado por um ensa:o e implacável
nUmero esparso de atos sexurus e profanações semi-sexuais relata- ela, uma mente e;;d;em que uma ment: teologia da agoura,
dos nas novelas de Batadle dWcilmente pode compet;r com a inter- to • na mesma me . poderia ter escnto u d "'do relatar algu-·
ntináveJ invenHvidade mecankista de Os 120 Dias de Sodoma.
Todavia, em virtude de Batadle possu;r um senHdo mais nno e pro-
em uma epo
. ca antenor
ma erótica da ago~I~.
. Preten e.,
uas narrativas, e e
Bataille escreveu u f ntes autobiografrcas de s • idas extraidas de
I

fundo de transgressão, o que ele descreve Parece de certa forma ma coisa sobre .as . o de /'Oeil várias ImagensUviv lembrança: seu
Sade.
mais forte e ultrajante que as mais lascivas orgias encenadas por acrescentou.a Hrstwe• . .nsultuosamente tm ivel -. ( rma · 1o .)
própria.'~fa_ncr~ ~emente, unn~-
sem consegut"
sua
P pmcurando depois de muitos
Uma das razões peJa qual Histoire de I'Oei/ e Madame Ed- ai cego, sifiiitico tralizou essas lembrança : ham e "somente
' plica neu der que tm
warda causam Unpressão tão poderosa e desconcertante é o fato de O tempo , ex ' grandemente o po d dificilmente reco-
BataWe entendec, com mais clareza do que qualquer outro escri- panos, elas perderam vez de modo deforma o , mido um signifi-
tor, que o tema da pornografia não é, em UlUma instância o sexo, odem vir à luz outra o dessa deformação, assu . e com simultfu
vitórias~
~becta
mas a fuorte. Não pretendo dizer que toda obra pornográfka fale, I do no curs Bataille revrv b
nhecive • ten "• A obscenidade, para ma;ca uma re
ou velada, da morte. Somente as obras que enfren- cado obsceno . ..ncias mais dolorosas e d xperiência erõuca,
tam essa inflexão especWca e mrus aguda dos temas da IUxuria, do neidaded suas ex pene isto é a extremidadeda.e ele no ensaio que
"obsceno", é que o fazem. É para as gratWcações da morte, suce- O obsceno, ' h anos, lZ E
aquela or. . 'tais Osseres um vés do excesso . o
dendo e ultrapassando as de Eros, que toda busca verdadeintntente é a raiz de energras vrEd;.arda, vive apenas atra se a um estado de
obscena se dhige. (Um exemplo de obra pornográfka cujo tema acompanha
P Mada";.' erspectiva" • ou do en.treg•:;. A maioria das
não é o "obsceno"; Trois Filies de leur Mére, a alegre saga de insa- razer depende dba topa' morte bem como a atl.egent.os · pretende·ser
clabWdade sexual de Louys. A Imagem representa um exemplo me- "ser aberto ••• a e r . · s sen . Im. • . ' Isso é to 1·rce,
sob;.:~:;:ndo distaf~~Iça~
. rseus pmpno
nos nüido. Embora as transações enigmáticas entre as três persona- pessoas procura o "horror" à a "atração"
gens sejam portadoras de um senso do obsceno - ma;, como uma receptiva· ao prazer 'll uma vez que horror re
d m Batai e, 0 ·
premonição, uma vez que o obsceno é reduz;do a apenas uma parte de acor o co . .. . ótica extrema e
constituinte do voyeurismo -.o livro tem um inequivoco nnal fe- . deseJO perrencra er . ·o
~
e excita o . . Bataille expõe na ex - transmite essa visa
J;z, com o narrador finalmente mUdo a Clah. Mas História de O
'scujasconseqüêncra~ P~
Aquilo
- que bterranea .com a morte.. Elesão naomor t'feras
I • espalhan-·
toma a mesma Unha de BataHJe, apesar de um Pequeno jogo inte- sua conexao su I H'stoire de I'Oeil,
lectual no nm; o Uvro termina de modo ambíguo, com divecsas J;. urdindo atos sexuar ativas (Na ternve r ·na com os tres
nhas destinadas a mostrar que existiam duas versões de um UlUmo do corpos1 po r suas narr .
pessoa morre; e o livro termi
. em seu camm . ho
capitulo, em uma das quais O recebia a permissão de Sir Stephen enas uma m à orgia
exemp o, ap . apósse entregare . em Gibraltar para
para morrer, quando ele estava prestes a descartar-se dela. Ainda aventureiros
d sexuaisE, nha adquirindo um Iate , todo mais eficaz
que esse d u pio final repüa satisfatoriamente a abertura do J; vro, em França e spa ' tes ) Seu m e
m-a com um peso, uma~g!:!ra~v~I~a~:..!:.:::.:_ _ __ ~
através a . f' mias em outras par . . d de perturadora, que
que duas vecsões "do mesmo começo" são oferecidas, não é capaz, continuar . suas
da açao
segundo penso, de diminuir a sensação do leüor de que O está fada-
éparece
investir ca
autenticamen te 't" mortal".
das óbvias diferenças de escala e elegan-
Todavia, a despei o
64
65
nômico a ir mais longe que os de Sade:,.!les!!!_~
cia de execução, as concepções de Sade e Bataille guardam algumas e seu pensamento g ais .
na ornografia, menos pode ser m -=ões distintamente origi~ats .e
semelhanças. Como Bataille, Sade não era tanto um sensorialista, ~Bataille também ofereceu soluç ti·va pornográfica: a fmall-
mas alguém com um projeto mtelectual: explorar o âmbito c!_a erene da narra · od
transgresgo. E compartilha com Bataille a mesma identificação efetivas a um prob1ema P . omum tem sido conclmr de um m o
última de sexo e morte. Mas Sade jamais podia ter concordado com zação. O procedimento mais c sidade interna. Assim, Ad?rno pc-
-o frustre qualquer neces , tt'ca da pornografia o fat'J
Bataille em que "a verdade do erotismo é trágica". As pessoas mui- qu e na ca caractens - · t de
tas vezes morrem nos livros de Sade, porém tais mortes sempre pa- dia considerar como a mar meio nem fim: mas nao e u .
de esta não ter nem co~~ço, nem fetiv~mente um térmi~o: sempte
recem irreais. Elas não são mais convincentes do que as mutilações
infligidas durante as orgias noturnas, das quais as vítimas se recu- As narrativas pornograftcas ~~:nais do romance, imotiVado: Isso
peram por completo na manhã seguinte após usarem um bálsamo abrupto e, pel~s padrõe~ tr~ ~~~objeção. (A descoberta, a m~w .c:-
- , necessanamente dtgn . ' f' de um planeta altemg.-
milagroso. Da perspectiva de Bataille, um leitor não pode evitar ser nao e d f ão cientl tca, t
'nho em um romance e tcç tivada.) O caráter abrup l),
pego de surpresa pela inverossimilhança de Sade sobre a morte. mt od' e ser igualmente abrupta e desmo bem como dos encontn)s
(Por certo, vários livros pornográficos muito menos interessantes e na P ~ . dos encontros, ..
acabados que os de Sade partilham desse traço.) uma re all.dade endemtca ~ · não e, aI gu m defeito da narraç'\o
de maneira cromca, er para que as obras ;e
Na verdade, seria possível especular que a fatigante repetitivi- renovados · d seJ· ar remo v .
, fi'ca que se podena e sa-o constitutivos <la
dade dos livros de Sade é a conseqüência de sua incapacidade ima- pornogra . Esses traços · f
ginativa para confrontar a meta inevitável, ou o paraíso, de uma qualificassem como hter.a~ur~e mundo intrínseca à pomos;~ ta, e
aventura realmente sistemática da imaginação pornográfica. A própria imaginação ou vtsa~atamente o final que é necessan~: 1
suprem, em muitos caso~, e ti os de finais. Um traço n~ a"e
morte é o único fim para a odisséia da imaginação pornográfica
Mas isso não exclm outros . pd'd de A Imagem, constdera-
~ando ela se torna sistemática; vale dizer, quando ela se centra '/ menor me I a, · · teffiá
nos prazeres da transgressão, e não no mero prazer. Como não che- de Histoire de l'Oet e, em 'd t interesse em gêneros mats sts. -
das obras de arte, é seu ~vl. en ~e ainda continuam no âmbito •ia
g'a, ou não podia chegar a seu fim, Sade protela: multiplica e au-
menta sua narrativa; reduplica tediosamente as permutas e combi- tl·cos ou rigorosos de· f fmrus, q_ eduzidos pelas soluções de UTI:la
nações orgiásticas. E seus alter-egos ficcionais interrompem com imaginação pornogra 1ca - na abstrata os - tom~ da, .<!e
Sua soluçao,
. l. t ou menos . . d sde o tmCio
regularidade um turno de estupro ou sodomia para expor às vítimas ficção mats rea IS ~ . uma narrattva que, e A'
maneira genérica, e construi~ tornando-se menos esponta-
suas últimas reelaborações de extensas cantilenas sobre o significa- m controle mrus ngoroso,
do real do "Iluminismo"- sobre a desagradável veídade quanto a apres enta U ·· ·f
·gamente descntiVa. . da por uma meta ora
Deus, à natureza, à sociedade, à individualidade e à virtude. Batail- nea e pro d 1 f a é domma
Em A Imagem , ~ narra IV leitor não se veja capaz de cotn-

~
lx_procura evitar qualquer coisa que se assemelhe aos contra-idea- . . "a imagem" (amda que o t do fim do romance). r~o
lismos, que são as blasfêmias de Sade (e _que, assim, perpetuam o umca, ·r· d do título an es "I
preender todo o sigm tca o nítida aplicação singu~a~. ITta-
õanido idealismo por trás dessas fantasias); suas blasfêmias são
. ' cio a metáfora denota _ter ~~al " ou "superfície btdlmensJo-
autônomas. lnl ' . f" bJeto P ano ' ~ . , me
gem " parece sigm Icar o · ,, tu do 1·sso em referencia a ça
Os livros de Sade, dramas musicais wagnerianos da literatura
1" ou "reflexo passiV? - d r a usar livremente para seus
pornográfica, não são sutis ou compactos . Bataille atinge seus efei- nAna e' a qual Claire instruiU o nardra o m "uma perfeita escrava".
tos com meios muito mais econômicos: um conjunto de câmara de n ' · forman o-a e ( "Pa·t
personagens não-intercambiáveis, ao invés da multiplicação operís- propósitos sexuais,_ trans .d exatamente na metade n~ . • e
Mas a narrativa é mterrompi a tes) por uma cena emgmatca
tica de virtuoses sexuais e vítimas da profissão, oferecida por Sade. V" num livro pequeno, d~ dez P.~~ m" . Claire, sozinha c<,m
Bataille apresenta suas negativas radicais por meio da extrema con- ,. d z um outro sentidO de lmage
cisão. O ganho, aparente em cada página, habilita sua magra obra que mtro u
67
66
o narrador, mostra-lhe uma série de estranhas fotografias de Anne . - na verdade vinculados; na verd.ade,
vista não-relaciOnados, estao . O ovo no primeiro capitulo
em situações obscenas; e essas são descritas de forma a insinuar um - d e uma mesma
são todos versoes . . cmsa.
. do globo ocular rou bad o do
mistério naquilo que havia sido uma situação brutal e direta, embo- , simplesmente a versão mals antlga .
ra sem motivação aparente. A partir dessa censura, até o final do :spanhol no último. . , . , também uma fantasia geral
livro, o leitor terá de simultanemante carregar o conhecimento da Cada fantasia erótlca esp~c~fdlc~')e e gera uma atmosferà ex-
situação "obscena" ficcionalmente real sendo descrita e manter-se , ''prmb1 o qu
(de desempenha~ o que~ f . , el intensidade sexual. Em cert?s
atento às pistas de uma reflexão ou duplicação oblíqua daquela si- cedente de cru~lante e m atlga\emunha de uma impiedosa satlS-
tuação. Essa carga (as duas perspectivas) será aliviada apenas nas momentos, o leüor parece ser tes . penas estar na presença da
últimas páginas, quando, como propõe o título da parte final, fação orgiástica; em outros, part~ce aAs obras de Bataille, mel~o.~
Tudo·se Resolve". Q_narrador descobre que Anne não é o joguete! progressão sem remorsos do n~ga lV.o.dicàm as ossibilidades estetl-
rótico· de Claire doado gratuitamente a ele, mas a "imagem" ou
projeção" de Claire, enviada antecipadamente para ensinar-lhe
que quaisquer outras ue con eçt, ma de arte: Histoire de /'Oeil,
cas da pornogra~ como uma or~ada de todas as ficções por~~­
~ ~omo a mais artistica~:n~e bem-daca Edwarda, como a mais ongl-
A estrutura de Histoire de l'Oeil é igualmente rigorosa e de ue Ja h e Ma ame
alcance mais ambicioso. Ambos os romance estão na primeira pes- gráficas em prosa q ' vista intelectual.
nal e poderosa do ponto de , . s da ornografia como forma
soa; nos dois, o ·narrador é masculino e constitui um dos lados de Falar das possibilidades estet1ca d Pparecer insensato ou afe-
um triângulo _cujas inter-relações sexuais configuram a história do nsamento po e . . · 1
de arte e uma forma d. e pe vidas marcadamente rnlseravel~ e-
livro. No entanto as duas narrativas são organizadas sobre princí- tado quando se considera qube - sexual especializada fu/l-tzme.
pios muito diferentes. "Jean de Berg" descreve como chega a ser ma o sessao · ue
vam as pessoas com u . ornografia oferece algo mals q
conhecida uma coisa que até então o narrador não conhecia; todas
Contudo, eu argumentar~a iu~; pl Por convulsiva e repetiti.v~ que
as partes da ação são indícios, fragmentos de evidência, e o final é a~ verdades de pesa~elo_m lVl ua . era sem dúvida uma ;'l.sao de
essa forma de imagl~~ça? pos~ai~~:~:Sse (especulativo, estet~co) de
uma surpresa. Bataille está descrevendo uma ação que é na realida-
de intrapsíquica: fres pessoas gue compartilham (sem conflitos)
mundo capaz de relVllldlcar d d tal interesse reside naqmlo que
uma única fantasia, a representação de uma vontade perversa cole-
gente não-erotômana. N~ ~er ~o e~omo os limites do pensamento
t.iva. Em A Imagem, a ênfase recai no comportamento, que é opa- é habitualmente desconsl era
co, ininteligível. Em História de I'Oeil, a ênfase está antes de tudo
pornográfico.
na fantasia e, em seguida, em sua correlação com algum ato espon-
. taneamente ''inventado''. O desenvolvimento da narrativa segue as
fases da representação. Bataille traça os estágios da gratificação de
uma obsessão erótica que assalta inúmeros objetos comuns. Seu
princípio de organização é, portanto, espacial: uma série de coisas,
arranjadas numa seqüência definida, é capturada e explorada, em 5 .
. d todos os produtos d a 1rna.-
algum ato erótico convulsivo. A manipulação obscena ou a profa- , · proemmentes e .
As caractenst1cas . seu absolut1smo.
nação de tais objetos, e das pessoas em suas proximidades, consti- 0
ginação pornográfica s.ão da sua e;;~:~:f~cos em geral são aq~el:s
tui a ação da novela. Quando o último objeto (o olho) é utilizado . Os livros denomma os po . t. a~nl·ca é com a descnçao
em uma transgressão mais ousada que todas as precedentes, a nar- · · · exclusiVa e H d ·
rativa termina. Não pode haver nenhuma revelação ou surpresa na cuja preocupação pn~~~l~ " sexuais. Talvez também se pu ;sse
de "intensões" e "atlVl a. es I vra não parecesse redun ao-
história, nenhum "conhecimento" novo, apenas intensificações
dizer "sentimentos" sexuals, se a pa a esentados pela imaginação
complementares do que já é conhecido. Esses elementos, à primeira te. Os sentimentos das personagens apr

68 69
assunto em questão . As metáforas religiosas aparecem em grande
número numa parcela importante da literatura erótica moderna
ticos a seu "comportament~" qualquer momento dado, ou idên-
pornográfica apresentam-se em
(notadamente em Genet) e em algumas obras da literatura porno-
tenção"' prestes a passar ao ,; ou uma fase preparatória, a da " in-
f · comportamento" gráfica. História de O faz amplo uso de metáforas religiosas para
ISicamente frustrada A . , a menos que seja descrever a provação que O atravessa. O "queria crer". Sua drásti-
. . · pornografia usa um t .
ca u ano de sentimento . osco e reduZido vo- . ca situação de total servidão pessoal àqueles que a utilizam sexual-
ação: sentimento que se sg, ~:tm~redrela~IOnado às perspectivas de
b I
ana e por em açã (I , . mente é, repetidas vezes, descrita como um modo de salvação.
mento que não se gostaria de ~ - o uxuna), senti- Com angús.t ia e ansiedade, ela renuncia a si própria - e "dora-
são) N- · por em açao (vergonh d
· · ao existem sentimentos t . a, me o, aver- vante não houve mais hiatos , nem tempo útil, ou remissão". Em-.
devaneios, especulativos ou . gr~ ~Itos ou não-funcionais, não há bora tenha perdido inteiramente sua liberdade, O conquistou o di-
assunto em questa-o A . Im~gJst~cos , que sejam irrelevantes ao
. ss1m a 1mag - • reito de participar daquilo que descreveu como um rito sacramental
universo que é por mais ' . . maçao pornográfica habita um
. ' repetitivos os incid t
seu mterior,
~ . incomparavelm
. ~ . en
en t e econom1co es que ocorrem
Apl" . , . em
virtual.
re1evancia mais estrito poss ' I· t d 0 . Jca-se o cnteno de
erótica. Ive · u deve apontar para a situação A palavra "aberta" e a expressão "abrir suas pernas", nos lábios de
seu amante , vinham carregadas com tal força e desassossego, que ela
O universo proposto ela . . _
verso total. Tem o pod dp . m~agmaçao pornográfica é um uni-
jamais podia ouvi-las sem experimentar uma espécie de prostração
d er e mgenr metamorf interna, uma submissão sagrada, como se um deus, e não ele, lhe ti-
as as preocupações com é . '. orsear e traduzir to-
única moeda negociável do que al~mentado, convertendo tudo à vesse falado.
b'd Imperativo erótico T d
I a como uma série de intercâ b . . o a ação é conce- Temia o açoite e outros castigos cruéis antes de lhe ser infligidos;
pela qual a pornografi'a se m ws sexuais. De tal modo, a razão "todavia, quando tudo terminava, ela estava feliz de ter passado
sexos, ou a permitir que qual
recusa a fa
~ zer d Istmções
' ·
fixas entre os por isso, ainda mais feliz se tudo fora especialmente cruel e prolon-

~
ão sexual permaneça pod quer gen~ro de preferência ou proibi- gado". O açoite, a mutilação e o ferro em brasa são descritos (do
bissexualidade o desr' . e ser explicada "estruturalmente " A
. . • espe1to pelo tabu do · · · ponto de vista de sua consciência) como ordálias rituais que testam
Imilares comuns às narrat" mcesto e outros traços a fé de alguém que se inicia em uma disciplina espiritual ascética. A
iplicar as possibilidad divas pornográficas funcionam para mul-
es e troca No 1 'd "perfeita submissão" que seu amante original e depois Sir Stephen
toda pessoa manter relação .I Pano I eal, seria possívcl__a exigem dela f z lembrar a extinção do eu, explicitamente re uerida
or certo a i . s_exua com ual uer outra.
de um noviço · esuíta ou e um a ren 1z zen. O é "essa pessoa
como a única forma de consc · ~ .
' magmaçao porno , f -
gra Ica nao pode ser vista absorta que renunciou a sua vontade a fim de ser totalmente refei-

~
, Iencia que propõe .
ma outra e o tipo de im · _ um umverso total.
ólica. No 'i:íí1iverso total agm.~ao que gerou a moderna lógica sim-
~ ta", a fim_d~ ~etfeita para servir uma vontade muito mais podero-
dãSãs afirmações podem prodposto pela imaginação dos lógicos to- Lsa e autontana
Como seriaque
de asesua.
esperar, o caráter direto das metáforas reli-
, ser errubadas ou a d . '
nar possJVel reapresentá-las f . rrasa as a fim de tor- giosas em História de O evocou algumas leituras correspondente-
da linguagem comum qu ~a orma da lmguagem lógica; as partes
. - e nao servem são · 1 mente diretas do livro. O romancista Mandiargues, cu· o prefácio
as . Alguns dos notórios t d simp esmente abandona- precede o de Paulhan na tradução americana, não hesita em descre-
-d es a os da · · __,
recorrer a outro exemplo Imagmação religiosa, para ~r História de O como "uma obrã"mística" e, portanto, "estrita-
engolindo todos os mater'I·a~pedr~m da mesma maneira canibalista
~
nomenos saturados de p I 'd d
IS Isponíveis pa d .
. . ra retra uzi-los em fe-
' mente falando, não um livro erótico". Aquilo que História de Ore-
etc.). o an a es religiOsas (sagrado e profano lata "é uma completa transformação espiritual, o que outros deno-
minariam uma ascesis" . Contudo a questão não é tão simples .
O último exemplo, por razões óbvias ' toca intimamente no
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70
Mandiargues parece certo ao descart , . .
estado mental de O que red . . ar uma anahse psiquiátrica do niões e todos os sentimentos tornam-se desvalorizados. (Hegel efe-
. uzma o tema do]' ·
soqwsmo". Como diz Paulh
inexplicável em termos do
O fato de que o roman
v:· " Jvro a, digamos, " ma-
b ~ ~r.dor ~a ~~ro.ína" é totalmente
ca u ano PSlQUJatnco convencional.
tuou talvez a mais grandiosa tentativa de criar um vocabulário pós-
religioso, a partir da filosofia, que dominaria os tesouros de paixão
e de credibilidade, e de adequação emotiva, que foram reunidos no
. ce emprega alguns d . ., .
convencwnais do teatro do d . os motivos e artJfJcJOs vocabulário religioso. Mas seus seguidores mais interessantes sola-
- , . sa omasoqUJsmo me .
· çao espec1fJca Mas Mandi . rece uma exphca- param resolutamente a linguagem meta-religiosa abstrata a que ele
. argues cam em um _ .
voe apenas um pouco meno erro quase tao redut1- legou seu pensamento, para se concentrarem, ao contrário, nas
1
tiva às reduções psiquiátrica sv~ g~. Seguramente, a única alterna- aplicações sociais e práticas específicas de sua forma revolucionária
fato de existirem apenas duass nlato e o .vocabulário religioso. Mas o de metodologia, o historicismo. O fracasso de Hegel repousa, cyo
h a, maJs . a ernatiVas em per t'
~ sp.ec Jva, testemu-

li E
uma vez, a arraigada difam -
e da experiência sex~, que ainda ~ça~ do ambJto e da serieda?·
ioda a sua tão propagada perm·
.
m mmha visão, "Pauline Réa "
'd ~mma nossa cultura, como
JSSJVJ a e receri__te
. .
~.
mo um casco de navio imenso e perturbador, na paisagem intelec-
tual. E ninguém desde então teve suficiente randeza, im onência
ou energia para empreender a tarefa outra vez.)
E assim permanecemos, adernando em meio às nossas varia-
A noção implícita em LTIS·tó . d O ge escreveu um hvro erótico. das opções de tipos de imaginação total, de espécies de completa se-
- ' H• na e de que E ·
nao representa a "verdade" ,' . ros e um sacramento riedade. Talvez o reflexo espiritual mais profundo da carreira da
livro (os ritos lascivos de P~r tr~s do sentido literal (erótico) do pornografia em sua fase "moderna" ocidental, que aqui considera-
mas, exatamente uma mest~rfavJzaçao ~degradação infligidos a O)
• e a ora para 1sso p . ' mos (a pornografia no Oriente ou no mundo muçulmano é algo \
forte, quando a afirmativa - . d . or que dJzer algo mais muito diferente), seja essa gigantesca frustração da paixão e da se-
quer coisa mais forte? Poré::ao :o e.na realidade expressar qual- riedade humanas, desde que a antiga imaginação religiosa, com seu
lidade, para a maiori.a das ' a espeJto da virtual incompreensibi- sesuro monopólio da imaginação total, começou a ruir, no final do
tantJva . pessoas educadas da ·~ .
subjacente ao vocab I ' . 1' . ' . expenencJa subs- século XVIII. O ridículo e a ausência de talento da mawna dos tex-
. .
persistente devoção face à . u ano~
re JgJOso • hoJe d'
em 1a, há uma to~ pornográficos ficam evidentes para qualquer pessoa a eles ex-
tal vocabulário A imaginaç:po7·e~cia de emoções que cabem em posta. O que não se tem salientado sobre os produtos típicos da
te das pessoas ~ão apenas comre Igw~a s.obrevive p~ra a maior par- imaginação pornográfica é o seupathos. Quase toda a pornografia
mo b único exemplo d' d o .o .PnncJpal, mas VIrtualmente co- (e as obras aqui discutidas não podem ficar de fora) aponta para algo
Jgno e cred1to de um · ·
em uma forma total. a Imagmação operante mais amplo que o simples dano sexual. Trata-se da traumática inca-r /
.N ão é de se admirar assim -~acidade da soc~ed~de c~pitalista moderna de f~rnec.e~ sa~d~s ~utên- ti".
nte renovadas da imagi~ação / (~e as_ form~s novas Q!Uadical- hcas ao perene mstmto humano para as obsessoes VlSIOnanas mfla-
~do (em especial aquelas do artist~ ad, que s~urg1fam no século pas.::- madàs, assim como de satisfazer o apetite de modos de concentra-
no de esguerda e do louco) t -h- ' o erotomano, do revolucioná- ção e de seriedade exaltados e autotranscendentes. A necessidade
. · do vocabula'rJ·o - ~ .
pres tJgJO r •1' en
.
am ofuscado de m aneira cromca o êlõs seres humanos de transcender "o pessoal" não é menos pro-
· e Jgwso E as ex ·~ ·
existem muitos tipos , tend em com .freq .. ~ penencJas · totais, de que . funda que a de ser uma pessoa, um indivíduo. No entanto, nossa
mente como revivescências o t d - uenc~a a s.er apreendidas so- sociedade atende pobremente a tal necessidade. Ela provê sobretu-
busca de um novo modo d d~ ra uçoes d~ Jmagmação religiosa. A 'tfo vocabulários demoníacos onde situá-la e a partir dos quais ini-
.. . e Jscurso no mvel m · ..
en t USiastJco, evitando a enca sul :. . . ais seno, ardente e ciar a ação e construir ritos de comportamento . Oferece uma opção
primordiais do pensamento f ~ aç~o rehgwsa, é uma das taref~ entre vocabulários de pensamento e ação que não são meramente
as coisas, onde tudo desde au :;~ot .. . o estado em que se encontram autotranscendentes mas autodestrutivos.
. . - • ntsonadeOatéM .
na mcorngível sobre~vên.cia d . . . aoLe reabsorvido
.., o Impu so rehg~so, todas as opi-
1

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por saber que pode ser uma muleta para o psicologicamente defor-
6 mado e uma brutalidade para o moralmente inocente. Eu também
sinto uma aversão pela pornografia por razões semelhantes e as
apenas como uma forma de ab:O~~~i~~~flc~ n~o deve ser entendida
· Entretanto a imaginação . . conseqüências de sua oferta crescente me preocupam. Entretanto
tal cuidado não está de certa forma deslocado? Q que efetivamente
de seus produtos poderiam ser en d psiqmco - em que alguns
em vez de consumidor) com . ca_ra os_(no papel de connoisseur, está em jogo? Uma 2.feocupaçãocom os usos dopróprio conheci-
mms simpatia · 'd mento. Há um sentido em que todo conhecimento é perigoso: nem
ou sofisticação estética. ' cunosi ade intelectual
~ pessoas estào na mesma condição como conhecedoras, ou
~ . .Em diversos pontos deste ensaio alud . , . .. como conhecedoras em potencial. Talvez a maioria das pessoas não
Imagmação pornográfi I a possibilidade de que a
quanto em uma forma c~egexpdredsse algo digno de ser ouvido, con- . necessite de "uma escala mais ampla de experiência". É possível
ra a a e com freqü~ . . que, sem uma preparação psíquica sutil e extensa, qualquer amplia-
ve . Defendi que essa for ' encia, Irreconhecí-
1 ma espetacularmente co f' d . ção de experiência e de conhecimento seja destrutiva para a maior
nação humana tem , não obstant e, seu acesso peculi n' ma a1 da Imagi- parte das pessoas. Então, seria preciso . er untar o ue ·ustificaria
a imprudente confiança ilimitáda que depositamos na a~al dispo-
. d a de (sobre o sexo a sen 'bTd d . ar a a guma ver·
desespero os limit;s) q SI Idi a e, a personalidade individual o
. ' • ue po e ser partilhada d · ' · n~~os . gêneros de conhecimt;nto, ou a_nossa
propria em arte (Toda quan o proJeta a si
mundo da imagi~ação po~~~~o~f. ao menos nos sonhos, habitou o
aquiescência otimista na t;:m;formacão e extensão das-capacidades
mesmo por períodos ainda r_a lica por algumas horas, ou dias, ou hillfl"anas pela máqu.ina. A pornografia é apenas um item qentre as
. mms ongos de sua vida· . mci'tas mercadorias perigosas que circulam nesta sociedade e, por
os h a b Itantes permanentes fab . . , porem somente mais sem atrativos que seja, uma das menos letais, a menos custosa
Esse discurso que se pode . rhicam os fetiches, os troféus, a arte.)
• na c amar "a · d · para a comunidade em termos de sofrimento humano. Com exce-
também conheci' mento A 1
· que e que t
uma norma. Ele vai a algum 1
- poesia, a transgressão" é
·a - '
~ansgn e não apenas quebra
~ algo que eles não sabem. ugar on e os outros não vão; e conhe,
7 ção, talvez, de um pequeno círculo de intelectuais na França, a por-
nografia é um departamento inglório e, em geral, desprezado, da
imaginação. Seu status medíocre é a própria antítese do considerá-
A pornografia, considerada com vel prestígio espiritual gozado por vários itens que são muito mais
criadora de arte na imagina - h o _uma forma artística ou
'll' çao umana e uma exp - d .
,. que WI Iam Janies chamou " l'd , ressao aquilo nocivos.
Em última análise, o lugar que atribuímos à pornografia de-
menta I ade mórbida" M 1
~
d. 'd
sem uvi a, estava correto guand . as ames, pende dos propósitos que estabelecemos para nossa própria cons-
nição de mentalidade mórb:d o propos, como parte de sua defi-
ampla" de experiência queIa a~~~; ~~dsadabrangi~ "uma escala mais .
ciência, para nossa própria experiência. Mas o objetivo que A ado-
o a I a e saudavel ta para sua consciência pode não ser aquele que ele aprecie ver B
que se pode dizer contudo às . , .
suscetíveis que acham de~ri
advogar, desde que julga que B não é suficientemente qualificado,
t ' f mumeras pessoas sensíveis e
material de leitura pornogr~f:n e o ato de toda uma biblioteca de
experiente, ou sutil. E B pode ficar consternado ou mesmo enraive-
c f . a Ica ter se tornado n · . 1 . · cido pelo fato de A adotar propósitos ·que ele próprio professa;
Ape~
ao acllmente disponível a . . ' os u tlmos anos quando A os sustenta, eles se tornam presunçosos ou banais. É pro-
nas uma coisa talvez· queos JOvens, em forma de brochura?
• . sua apreens- . . . .
exagerada. Não me refiro aos la . . ~? e JUStificada, mas quiçá
vável que essa crônica desconfiança mútua das capacidades de nos-
que acham que como o sexo _murdia ores costumeiros, aqueles sos próximos (que sugere, com efeito, uma hierarquia de competên-
o , acima e tudo é " o , o cia com relação à consciência humana) jamais se resolva de forma
sã o os lIvros que se di'vertem com e1e ("su · ,' d SUJO , tambem o
~o ' ~uma forma que,
para todos satisfatória. Na medida em que a qualidade da consciên-
aparentemente, um enocídio ex'b'd
esta ainda uma minoria co .; I. o ~odas as nmtes na TV não é
cia humana varia tão amplamente, como. haveria de ser diferente?
nsi erave de pess · Num ensaio que escreveu sobre o tema alguns anos atrás,
t em aversão à pornografia nao - porque ache que oas
elaque se opõemas
é "suja", ou
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74
.Paul Goodman afirmou· "A tã
· ques o não ' b
nografia, mas a qualidade d . e sa er se se trata de por-
, a pornografia •• r ,
posstvel estender bastante . . sso e correto e seria
ber se se trata de consciênc7:.ais odpensame?to. A questão não é sa-
da consciência e do conhecim~~to e ~o~hecm~ento, mas a ·qualidade
dade ou agudeza do problem d h. Isso exige considerar a quali-
, · a o ornem d
mahco de todos. Não par . . - 0 mo e1o mais proble-
. ·· ece mcorreto dizer q
maiOna das pessoas que n- , 1
, . ao e ouca ativa é
. ue, nesta sociedade a·
lh ' HPENSAR CONTRA SI PRÓPRIO,,:
ses, 1unatiCa corrigida ou pot 'al ' ' na me or das hipóte-
, .
a1guem aJa de acordo com
• enct .
h .
Contudo ' ,
e posstvel supor que REFLEXÕES SOBRE CIORAN
esse con eciment .
mente com ele? Se há tant . o, ou conviva genuina-
.
d esumamzação, da deformidad d dos que oscilam à b · d
elfa o assassinato, da
semos agir de acordo com ess e e o esespero sexuais, e se devês-
. . . e pensamento ent-
Jamais Imaginaram os inimi . d' ;Z ao uma censura que ''Qual o proveito de se passar de uma posição in-
ria adequada~e é e~ o_casgos mã Ignados da pornografia parece- sustentável para outra, de buscar justificação
d ..- · · ·· o, n o somente a ·
as as lOrmas de arte e c'on· h. .
vras, t das as formas de verdade
ecimento autênt'
-
pornografia mas to-
Icas - em outras pala-
j sempre no mesmo plano?"
- sao sus eitas e erigosas. SAMUEL BECKETT

"Em todo momento épossívelse ter absoluta-


(1967) mente nada; a possibilidade do nada."
JOHN CAGE

O ·nosso é um tempo em que todo acontecimento intelectual,


ou artístico, ou moral, é absorvido por um abraço predatório da
consciência: a historicização. Todo ato ou afirmação pode ser con-
sideradó como um "desenvolvimento" necessariamente transitório
ou, num nível menor, pode ser menosprezado como mero "modis-
mo". A mente humana possui agora, quase como uma segunda na-
tureza, uma perspectiva de suas próprias realizações que fatalmente
mina seu valor e sua reivindicação à verdade. Por mais de um sécu-
lo, essa perspectiva historicizante tem estado no centro de nossa ca-
paciaade para entender. Talvez o que no início fosse um tique de
consciência é agora um gesto gigantesco e incontrolável, o gesto
por meio do qual o homem infatigavelmente patrocina a si próprio.
Compreendemos algo localizando-o em um continuum tem-
poral multideterminado. A existência nada mais é que a precária
obtenção de relevância em um fluxo intensamente móvel de passa-

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