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2017
O MUNDO DESDE O FIM: A POÉTICA NEGATIVA
DE ANTONIO CICERO
Rio de Janeiro
Agosto de 2017
PORTAL, Marcela de Castro Lauredo.
O mundo desde o fim: a poética negativa de Antonio Cicero/
Marcela de Castro Lauredo Portal. - Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2017.
x, 209f.
Orientador: Alberto Pucheu Neto
Tese (doutorado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-graduação em
Ciência da Literatura, 2017.
Referências Bibliográficas: f. 220-228.
1. Cicero, Antonio, 1945-. 2. Agamben, Giorgio, 1942-. 3. Kafka,
Franz, 1883-1924. 4. Literatura. 4. Filosofia I. Neto, Alberto Pucheu. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa
de Pós-graduação em Ciência da Literatura. III. Título.
Aos meus amores, Márcia e Marcelo.
AGRADECIMENTOS
À minha querida mãe, meu exemplo de força e luta na vida, pelo amor e apoio incondicionais;
Ao meu querido orientador e amigo Professor Alberto Pucheu, pela confiança, paciência,
disposição e incentivo, desde o mestrado, e pelas conversas sempre muito generosas, atentas e
precisas, que me permitiram concluir mais uma etapa de minha vida acadêmica;
Ao Professor João Camillo Penna, pelas valiosas sugestões, desde o anteprojeto de pesquisa
até o exame de qualificação, que contribuíram para a elaboração desta tese;
Aos Professores Maurício Chamarelli Gutierrez e Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa, pelo
afetuoso reencontro, ao terem aceitado participar de minha banca;
Aos Professores Antonio Carlos Secchin e Eduardo Guerreiro Brito Losso, pela gentileza de
terem aceitado fazer parte da banca como suplentes;
A Antonio Cicero, com toda a minha admiração, pelas inquietações prazerosas, que suas
obras poética e filosófica proporcionam;
Esta tese tem por objetivo pensar a poesia de Antonio Cicero, poeta, filósofo e letrista
de música popular, enquanto uma poética da negatividade, partindo de seu pensamento
filosófico, investigando todo o percurso de construção dos conceitos de apócrise e catácrase,
fundamentais à sua definição de modernidade e da concepção moderna do mundo enquanto a
concepção apocrítica e racional do mundo. A partir de sua obra poética, este trabalho procura,
também, pensar a poesia e a história, enquanto negatividades, na medida em que ambas
trazem em si a “marca d’água do movimento”, da contínua mudança, e estão sempre na
iminência de se realizarem. Este estudo propõe, ainda, uma leitura acerca do contemporâneo,
estabelecendo um diálogo entre as suas conceitualizações sobre o moderno, o contemporâneo
e o agoral, e as noções de contemporaneidade do filósofo italiano, Giorgio Agamben. E, por
fim, estudando o discurso poético em seus poemas-canções e letras de músicas compostas em
parceria, inicialmente, com sua irmã, a cantora Marina Lima e, depois, também, ao lado de
outros artistas, pretende-se discutir seus poemas que se tornaram canções, bem como algumas
de suas próprias letras, procurando pensá-las em consonância com o seu projeto poético.
Rio de Janeiro
Agosto de 2017
ABSTRACT
This thesis aims to think the poetry of Antonio Cicero, poet, philosopher and lyricist of
popular music, as a poetics of negativity, starting from his philosophical thought,
investigating the whole course of construction of the concepts of apócrise and catácrase,
fundamental to its definition of modernity and the modern conception of the world as the
“apocrítico” and rational conception of the world. From his poetic production, this work also
seeks to think of poetry and history as negativities, insofar as both bring within themselves the
"watermark of the movement", of continuous change, and are always on the verge to be
realized. This research also proposes a reading about the contemporary, establishing a
dialogue between his conceptualizations on the modern, the contemporary and the agoral, and
the contemporary notions of the italian philosopher, Giorgio Agamben. And finally, studying
the poetic discourse in his poems-songs and song lyrics composed in partnership, initially
with his sister, the singer Marina Lima and then, along with other artists, is intended to
discuss his poems which became songs, as well as some of his own lyrics, trying to think
them in line with his poetic design.
Rio de Janeiro
Agosto de 2017
“Poesia, momentânea reconciliação: ontem
hoje, amanhã; aqui e ali; tu, eu, ele, nós. Tudo
está presente: será presença”.
Octavio Paz
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
A presente tese tem por objetivo pensar a poesia de Antonio Cicero, poeta, filósofo e
letrista de música popular – compreendida pelas obras Guardar (1996), A cidade e os livros
(2002) e Porventura (2012) –, enquanto uma poética da negatividade, partindo de seu
pensamento filosófico – em seus livros O mundo desde o fim (1995), Finalidades sem fim
(2005) e Poesia e filosofia (2012) –, investigando todo o percurso de construção dos conceitos
de apócrise e catácrase, fundamentais à sua definição de modernidade e da concepção
moderna do mundo enquanto a concepção apocrítica e racional do mundo. E, por fim,
estudando o discurso poético em seus poemas-canções e letras de músicas compostas em
parceria, inicialmente, com sua irmã, a cantora Marina Lima e, depois, também, ao lado de
outros artistas.
O emprego das formas clássicas, fixas e consolidadas bem como as referências
constantes ao mundo antigo, em seus poemas, possibilitam o encontro entre o tempo pretérito
e o atual. As “figuras mitológicas” retornam ao presente do poeta, não como a expressão de
um sentimento nostálgico ou melancólico, em relação à tradição clássica, mas como a pura
potência da linguagem. A partir de sua obra poética, este trabalho procura, também, pensar a
poesia e a história, enquanto negatividades, na medida em que ambas trazem em si a “marca
d’água do movimento”1, da contínua mudança, e estão sempre na iminência de se realizarem.
Este estudo propõe, ainda, uma leitura acerca do contemporâneo, estabelecendo um
diálogo entre as suas conceitualizações sobre o moderno, o contemporâneo e o agoral, e as
noções de contemporaneidade do filósofo italiano, Giorgio Agamben. Busca-se pensar o
contemporâneo não enquanto uma simples atualização do passado, desde um olhar situado na
atualidade, mas como um intervalo, uma cisão, uma fratura, no próprio atual, em que todos os
múltiplos e heterogêneos tempos comparecem. Se o poema enquanto forma finita, limitada
traria à tona uma ilimitação, é nele que se dá a possibilidade do infinito. É na ausência do
atual que se realiza a experiência do próprio poema, pois a linguagem deste permite abrir a
dimensão da potência de todos os dizeres, de todos os sentidos, da pura abertura, do agoral,
do contemporâneo.
E, por último, pretende-se discutir seus poemas que, a princípio, tinham sido escritos
para serem lidos, mas que, depois, se tornaram canções, bem como algumas de suas próprias
1
CICERO, Antonio. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005,
p. 240.
12
letras. Procura-se pensá-las em consonância com o seu projeto poético. Tanto nos poemas
quanto em sua poesia cantada, é possível flagrar a experiência de se levar o presente a uma
dimensão fora de si, atemporal, extemporânea, em que não só comparece o atual, mas também
todos os tempos, lugares e sujeitos. Uma dimensão da qual tudo vem a ser e de onde emerge
um mundo indeterminado, aberto, abissal, sem fim, sem qualquer fundamento positivo que o
sustente, diferente do mundo das existências particularizadas, dirigidas pelo imediatismo, pelo
princípio da utilidade, delimitadas pelo tempo cronológico, pelas demarcações espaciais e
individuais. Um mundo, essencialmente, moderno, agoral, apocrítico, absoluto, negativo, e
que se mostra infinito, ilimitado, em suas múltiplas possibilidades de ideias, sentidos e
formas.
13
[...] ao produzir poemas que manifestam formas e empregam meios que rompem com as
noções, as formas e os meios tradicionais da poesia, eles [os poetas vanguardistas] mostram,
de uma vez por todas, o caráter acidental – e não essencial – desses meios, formas e noções
tradicionais. Sabemos hoje que um poema não precisa, por exemplo, contar nenhuma história,
nenhum mito, nem ter tema “elevado”, nem empregar vocabulário “nobre”, nem usar formas
tradicionais, nem obedecer a qualquer esquema métrico, nem ser composto de versos, nem ser
rimado, nem ser rítmico, nem ser discursivo. [...] Todas as possibilidades formais descobertas
continuam disponíveis e são empregadas em algum momento ou lugar. O verdadeiro sentido
da vanguarda não foi a renúncia, mas a desprovincianização e a cosmopolitização da poesia.
Ao mostrar novas possibilidades, o que a vanguarda fez foi relativizar as possibilidades
antigas; mas relativizar uma coisa não é destruí-la.
[...] os novos meios, formas e noções empregados pela vanguarda são apenas outros tantos
meios, formas e noções igualmente acidentais e não essenciais à poesia.
[...] O poeta moderno – e “moderno” aqui quer dizer: que vive depois que a experiência da
vanguarda se cumpriu – é capaz de empregar as formas que bem entender para fazer os seus
poemas, mas não pode ignorar que elas constituem apenas uma parcela das formas possíveis, e
o crítico deve reconhecer esse fato.2
Como “o fim da vanguarda não é o fim da modernidade, mas, ao contrário, a sua plena
realização”3, o poeta, filósofo e letrista de canções populares contemporâneo brasileiro
Antonio Cicero, “ao mesmo tempo, herdeiro das superfícies e das profundezas”, como
descreve o crítico literário e escritor Silviano Santiago, na orelha de Guardar, de um modo
inusitado, lida com a tradição erudita e os recursos clássicos e, ao mesmo tempo, opera com
2
Ibid. p. 22-24.
3
Ibid. p. 30.
14
elementos modernos. O passado mítico confunde-se com o tempo atual. Tanto a sua obra
poética quanto a filosófica são marcadas, de um lado, por uma consciência radical da
transitoriedade de todas as coisas do mundo e do subjetivismo das significações, do
fundamento negativo e subjetivo do mundo, e do outro, pelo desejo de plena afirmação da
vida, sem idealizações, sem “utopias positivas” 4.
Em sua primeira obra filosófica, O mundo desde o fim, publicada em 1995, Antonio
Cicero propõe uma reflexão rigorosa sobre o conceito de modernidade, permitindo uma
rediscussão acerca do relativismo do pensamento contemporâneo: “O relativismo é uma
manifestação da modernidade que, porém, esquece o fundamento sobre o qual ele é possível:
o reconhecimento do agora como absoluto” 5. O próprio título do livro abre o caminho para a
investigação de seu autor a respeito da modernidade. Um mundo se ergue desde o fim. Desde
o fim do mundo. Um mundo que se reconhece enquanto tal, positividade acidental, eclode a
partir de sua própria negação. Há um mundo positivo, efêmero e contingencial que,
irremediavelmente, chega ao fim, em favor de um mundo por vir: negativo, atemporal e
absoluto. Da finitude positiva do mundo à multiplicidade negativa e infinita dos mundos. É
essa a concepção moderna (ou agoral) de mundo que percorre toda a sua obra filosófica e
atravessa seus poemas. Em uma entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, em 23 de
julho de 1995, Antonio Cicero, ao revelar seu apreço pela ambiguidade presente no título do
livro O mundo desde o fim, faz uma referência ao livro Do Mundo Fechado ao Universo
Infinito do filósofo francês Alexandre Koyré, em que esse título poderia substituir O mundo
desde o fim. Do mundo fechado em suas particularidades positivas, relativas e finitas ao
universo indeterminado, infinito e absoluto:
Alexandre Koyré escreveu um livro esplêndido chamado "Do Mundo Fechado ao Universo
Infinito". Essa obra se refere à substituição da cosmologia, astronomia e física medievais,
aristotélico-ptolemaicas, pela cosmologia, astronomia e física modernas, copérnico-galileo-
newtonianas.
4
Matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, na Coluna “Ilustrada”, em 25 de julho de 1995, data de
lançamento do livro O mundo desde o fim, de Antonio Cicero, extraída de seu site:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/7/26/ilustrada/17.html.
5
Idem.
15
Mas este último título também me interessa porque tenho a convicção - e tenho a convicção de
haver provado - que a modernidade não pode ser ultrapassada, pois se trata de algo atemporal,
que é a essência do agora.6
O poeta-filósofo sustenta que a modernidade não pode ser ultrapassada, uma vez que
se trata de algo atemporal, que é a essência do agora, a agoralidade. Diante disso, não há
razões para se empregar o termo “pós-modernidade”, pois “assim como o agora somente pode
ser superado por outro agora, o moderno somente pode ser superado por outro moderno” 7, o
que ele chama de “supermoderno”, entendendo o prefixo “super-”, não como uma instância
superior ou uma etapa acima do moderno, mas enquanto a confirmação de uma intensificação
radical do próprio moderno.
Propondo os conceitos de apócrise e catácrase, fundamentais para a sua definição da
modernidade, Antonio Cicero emprega, em suas considerações filosóficas, algumas categorias
introduzidas por René Descartes, Immanuel Kant e Friedrich Hegel. Recorrendo aos
postulados de Descartes, em seu Discurso sobre o método (1637) e nas Meditações sobre
filosofia primeira (1641), os dois primeiros capítulos de O mundo desde o fim estabelecem
aproximações entre o processo de determinação do conceito de modernidade de Antonio
Cicero e o cogito ergo sum cartesiano. A expressão “Eu sou, eu existo”8 consiste na primeira
certeza de Descartes. Ele encontra na dúvida um caminho seguro para se encontrar a verdade.
Não há nada do qual se possa ter certeza. Portanto, a única certeza é a própria dúvida. Com
isso, Descartes começa duvidando de tudo o que seus sentidos lhe fornecem, do mundo
aparentemente real que poderia ser um mundo de sonho, e até mesmo das verdades
matemáticas. Submetendo suas crenças a uma série de argumentos céticos cada vez mais
rigorosos, ele questiona como se pode ter certeza da existência de qualquer coisa, e passa a
utilizar uma ferramenta filosófica que torna a dúvida “hiperbólica”, isto é, sistemática e
radical, que contempla todas as dúvidas a respeito da veracidade das coisas que são
apresentadas como verdadeiras. Tendo alcançado um momento em que não se podia ter
certeza sobre nada, Descartes, então, cria um artifício para ajudá-lo a livrar-se novamente de
supostas verdades preconcebidas: ele imaginou que haveria um gênio poderoso e maligno
capaz de enganá-lo sobre qualquer coisa:
6
Entrevista de Antonio Cicero publicada em seu site: http://www2.uol.com.br/antoniocicero/livrom.html, e em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/7/23/mais!/20.html.
7
CICERO, Antonio. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 180.
8
Em sua obra Discurso sobre o método, Descartes apresenta a frase “Penso, logo existo”, conhecida como a
sentença latina cogito ergo sum, mas, ao escrever Meditações sobre filosofia primeira, o autor a reformula para
“Eu sou, eu existo”.
16
Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua
indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana;
e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar
ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado
cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter constante que esta proposição, eu
sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a conceba
em meu espírito.9
No entanto, quando se diz “Eu sou, eu existo”, não se pode estar errado sobre isso.
Anteriormente, Santo Agostinho já havia utilizado um argumento semelhante em sua obra A
cidade de Deus10, ao dizer que “se eu estiver errado, existo”, entendendo que se ele não
existia, não podia estar errado. Se “Eu sou, eu existo”, portanto “eu sou” uma coisa pensante.
Descartes diz que ele mesmo não pode duvidar de sua própria existência, e se, mesmo assim,
o gênio astuto o forçasse a questioná-la, isso apenas seria um modo de confirmá-la. O homem
não pode duvidar que é uma coisa pensante, pois ao duvidar, ele realiza positivamente a
dúvida, isto é, o pensamento, mesmo que o gênio maligno tente enganá-lo sobre o fato de
estar duvidando. Nesse sentido, “pensar” é também algo do qual não se pode racionalmente
duvidar, uma vez que duvidar é um tipo de pensamento, como ressalta Antonio Cicero:
Se duvido do ser da dúvida, ainda assim o afirmo. Não posso portanto deixar de ter certeza
absoluta do ser da dúvida. O dubito ergo sum pode transformar-se no cogito ergo sum porque
a dúvida é uma espécie de pensamento.
[...] o cogito é originariamente um dubito. Com isso, não quero dizer simplesmente que o
dubito é cronológica e logicamente anterior ao cogito, mas outra coisa. Em primeiro lugar,
quero dizer que o cogito consiste na certeza do ser da dúvida, ou na certeza de que a dúvida é.
Mas em segundo lugar, a certeza do ser da dúvida é exatamente a certeza do ser daquilo que
não consiste em nenhum dos entes suscetíveis de serem submetidos à dúvida. [...] Enquanto
duvida, a dúvida não pode fazer parte daquilo que é duvidado: enquanto duvida, ela não pode
ser objeto de si própria. Ora, todos os objetos podem ser objetos da dúvida. Enquanto está
duvidando, portanto, a dúvida não pode ser objeto. O objeto é aquilo de que falo na terceira
pessoa. Aquilo que não pode ser objeto – e para o qual os objetos são objetos – fala de si sem
se objetificar, na primeira pessoa do singular. A rigor, a dúvida, enquanto está duvidando,
somente se manifesta com eu duvido.
[...] Assim, o cogito não pressupõe que exista um eu mas prova que eu sou. 11
9
DESCARTES, René. Discurso do Método; Meditações; Objeções e respostas; As paixões da alma; Cartas.
Coleção Os Pensadores. Tradução: J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Introdução: Gilles-Gaston Granger.
Prefácio e Notas: Gérard Lebrun. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 92.
10
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. Tradução, Prefácio, Nota biográfica e Transcrições: J. Dias Pereira.
vols. I e II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.
11
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 28-29; 32.
17
Dado que sou negação, chamarei o que foi por mim negado de mim de negação negada; mas
se a chamo de negação negada, chamo-me a mim, que a nego, de negação negante. A
negação negada é positividade. Através da apócrise, descubro-me como negação negante. Ora,
a apócrise não passa, ela mesma, de negação negante. Trata-se portanto da negação negante
que se descobre como tal. 17
É por meio da dúvida que Descartes chega ao cogito. Todas as coisas que se
apresentam a esse eu pensante são suscetíveis de serem por ele negadas. Contudo, mesmo que
sejam negadas do ser, integralmente, todas as coisas, ele não pode negar a si próprio, que as
nega, pois negar-se já o faz um ser negante, natura naturans18, pensamento pensante: “Sou
portanto condição necessária do ser. Mas além disso, basta que eu seja para que o ser seja.
12
Ibid. p. 37.
13
Ibid. p. 38.
14
Loc. cit.
15
Loc. cit.
16
Loc. cit.
17
Ibid. p. 38-39.
18
Ibid. p. 174.
18
Logo, sou também condição suficiente do ser. Isso significa que sou a essência do ser”19.
Negar o positivo é condição para ser. Através da apócrise, o ser se descobre como
negatividade. Segundo Antonio Cicero, o cogito cartesiano pretende ser um fundamento
positivo para o conhecimento, além de tentar estabelecer a existência do mundo externo por
meio da certeza da existência de Deus, ao contrário de Kant, que não atribui este sentido ao
cogito, conforme descreve o poeta-filósofo. Para este, a despeito de reconhecer a contribuição
da dúvida hiperbólica cartesiana em demonstrar o caráter contingencial de tudo o que é
positivo, Descartes não chega a conceituar a apócrise e comete um equívoco ao conceber o
cogito como uma substância positiva e particular. O cogito não tem nada de positivo. Em
“penso logo sou”, o eu não se refere a si mesmo enquanto parte positiva remanescente à
abstração do mundo. Tudo o que pertence ao mundo é positividade, isto é, negação negada,
porque foi, pelo eu - negação negante -, negado de si próprio. A proposição “penso logo sou”
revela-se absolutamente verdadeira exclusivamente porque sua verdade é necessária,
universal e independente de qualquer contingencialidade. A negação negante, essa essência
absoluta, necessária, universal e pura, constitui o fundamento negativo de todo conhecimento.
Contrapondo-se ao cogito cartesiano, Antonio Cicero apresenta o cogito ultracartesiano,
sendo este negativo e apodíctico:
Se no “penso logo sou” é a própria negação negante, somente ela, que se refere a si
através da primeira pessoa, e, portanto, o eu pensante (ou dubitante) é a essência do ser,
Antonio Cicero entende a busca cartesiana da certeza absoluta como análoga à busca da
19
Ibid. p. 47.
20
Ibid. p. 43.44.
19
essência do ser, “pois não apenas nós também buscamos uma essência e também procedemos
por apócrise, mas ambas as procuras desembocam no mesmo resultado, isto é, na minha
essência. Sendo assim, posso dizer que a essência do agora é idêntica à essência do ser [...]” 21.
Citando Martin Heidegger, que concebe todo cogito essencialmente como cogito me cogitare,
“penso que penso”, Antonio Cicero explicita: “todo cogito é essencialmente cogito me nunc
cogitare, penso que penso agora”22. Enquanto o sujeito do cogito pensa, ou cada vez que ele
pensa, é necessariamente agora. Contudo, o agora do cogito não representa uma determinação
temporal: “Trata-se do eterno agora, que se identifica com o ser. Essencialmente sou o ser
que é agora de modo absoluto. Tudo isso quer dizer que a modernidade ou a essência do agora
é a minha essência, isto é, o pensamento pensante, que é também a essência do ser [...]”23.
Ao se colocar em dúvida tudo o que é positivo, a própria dúvida, ou o pensamento, se
afirma como indubitável. Essa cisão apocrítica do mundo permite abstrair do pensamento tudo
aquilo que dele pode ser abstraído, restando apenas o “pensamento puro”24, expresso por “eu
penso”. Esse eu puro – o cogito puro, negativo, universal e necessário –, é o que permanece
quando se abstrai do sujeito do cogito tudo o que pode ser dele abstraído. O eu destituído de
toda e qualquer positividade que o determine, isto é, o eu concebido enquanto pensamento
pensante é também denominado de apercepção transcendental25, segundo Kant, ou mesmo de
egoidade (Ichheit), na definição de Johann Fichte. Como se trata da essência do eu, Antonio
Cicero destaca que o termo “egoidade” é mais elucidativo do que a expressão “eu puro”, no
que diz respeito à ideia da apercepção transcendental como um ato para além do individual,
desprovido de qualquer conteúdo particular. Com isso, o poeta-filósofo identifica a
apercepção transcendental ou egoidade com a essência do agora, que é a essência do ser, e
constata que a agoralidade constitui a própria egoidade:
Se o que o pensamento produz é a unidade, como pensa Kant, então, como diz Hegel, ele
produz a si mesmo, pois ele é uno. O próprio exercício da faculdade absoluta de abstração,
através do qual me diferencio, enquanto sujeito, dos objetos, consiste numa manifestação da
atividade que denominamos de apócrise.
Podemos portanto dizer da apercepção transcendental, ou egoidade, que ela consiste na minha
essência enquanto sou atividade necessária, negativa, universal, pura, subjetiva e
supraindividual de negação negante, que também se manifesta na apócrise: que é como
também a modernidade pode ser definida. Egoidade e modernidade são termos logicamente
21
Ibid. p. 47.
22
Loc. cit.
23
Ibid. p. 48.
24
Ibid. p. 58.
25
Ibid. p. 49.
20
equivalentes que não se referem a nenhum ente, mas a uma atividade de pensamento pensante
ou negação negante, destituída de qualquer determinidade. Trata-se do absoluto.
26
Ibid. p. 65.
27
Ibid. p. 67.
21
eu não pode estar fora do eu, logo o terceiro princípio trata da limitação recíproca e da
oposição, no eu, do eu limitado ao não-eu limitado (síntese). A produção do não-eu só pode
surgir enquanto limite, pois resulta da própria determinação do eu. O eu absoluto limita a si
mesmo e, nesta condição limitada, tem diante de si um não-eu. Este seria precisamente a
esfera de sua atividade, o obstáculo a ser superado para o eu realizar a sua eticidade; a antítese
que ele põe como tese, a fim de que seja possível a síntese ética. O conceito kantiano do
sujeito deriva de uma adesão prévia a uma concepção normativa de conhecimento como,
necessariamente, a priori. Por outro lado, Fichte argumenta que a concepção de sujeito
precede e determina a teoria do conhecimento, ao contrário de ser determinada por ela.
Fichte e Hegel partem do legado de Kant a respeito da apercepção transcendental. No
entanto, para Hegel, Fichte acaba enclausurando-se na relação sujeito-objeto-sujeito e, por
conseguinte, não alcança uma síntese autêntica e plena do conhecimento. Segundo o autor de
Fenomenologia do espírito, o eu puro ao ser entendido como legítimo absoluto descaracteriza
o sentido da própria totalidade, uma vez que o conhecimento dessa totalidade deve abranger a
recepção cognitiva da realidade pelo sujeito e o conteúdo objetivo, empírico do mundo dado,
da realidade concreta tal como ela é em si. Além disso, no que diz respeito às críticas a Kant,
apesar de considerar a filosofia deste como aquela que havia estabelecido as referências para
uma possível compreensão da realidade e, sobretudo, a centralidade do sujeito no processo de
conhecimento e de tratamento do real, Hegel concebe a noção kantiana de “coisa em si” como
uma “abstração vazia”28, sem significado. Para ele, o que existe é o que vem a ser manifestado
na consciência. Ao contrário de Kant, que supõe as categorias como logicamente distintas,
não podendo ser derivadas uma da outra, Hegel as define como “dialéticas”, isto é, se
constituem, necessariamente, por estarem relacionadas umas às outras pela contradição,
sendo, portanto, suscetíveis à contínua mudança. O sujeito, em virtude de ser efetivado pelo
objeto, não pode ser delimitado pelo mesmo. Hegel não refuta a exterioridade do objeto e suas
especificidades, porém defende que o sujeito pode ter em si o próprio objeto. O sujeito não se
põe por si só, mas através da relação com o seu outro, que é o objeto. Se a relação funda
sujeito e objeto, ambos são necessários um ao outro, pois não se sustentam quando apartados.
Por isso, sujeito e objeto são capazes de se reconhecerem um no outro.
A realidade, de acordo com a concepção hegeliana, sustenta-se no seu constante vir-a-
ser. E a consciência, portanto, é vista como parte de um processo dialético, em permanente
28
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. Texto completo, com os adendos
orais, traduzido por Paulo Meneses, com a colaboração de José Machado. Coleção O pensamento ocidental. São
Paulo: Loyola, 1995. p 184.
22
evolução. Toda proposição ou “tese” contém em si mesma sua própria negação, isto é, uma
contradição ou “antítese”, que só é solucionada pelo surgimento, a partir da noção original, de
uma proposição nova, “mais elevada”, transformada e enriquecida, uma “mediação”, chamada
“síntese”. A contradição torna-se o motor do pensamento e, ao mesmo tempo, a marcha
propulsora da história. O pensamento não é mais considerado estático, já que ele age por meio
de contradições superadas, da “tese” à “antítese”, chegando à “síntese”. Ao afirmar que as
estruturas de pensamento são dialéticas, Hegel quis evidenciar que elas não são distintas e
irredutíveis, conforme Kant sustenta, mas que surgem a partir das noções mais amplas, por
meio do movimento de autocontradição e resolução, como evidencia Antonio Cicero:
Isso quer dizer que o próprio Kant não entendeu claramente o que tinha descoberto, pois
hesitou nessa questão, de modo que, segundo Hegel, permitiu que a apercepção transcendental
meramente formal e estéril acabasse por usurpar o lugar do verdadeiro a priori, que é a
unidade sintética da apercepção. Desse modo, o autor da Crítica da Razão Pura não teria sido
capaz de se manter no nível da especulação ou de superar definitivamente a oposição entre
sujeito e objeto.
O emprego da expressão não-eu indica que a crítica de Hegel não visa apenas Kant mas
também Fichte. [...] Segundo ele, ao abstrair os polos da unidade a priori da apercepção, Kant
e Fichte teriam criado para si mesmos a impossibilidade de reunificá-los. Apesar das
aparências, Fichte é também considerado dualista, pois o eu que ele põe não se torna objetivo
para si mesmo.
[...]
Em outras palavras, Hegel pensa que em última análise Fichte, não menos do que Kant,
mantém-se preso ao nível da consciência, incapaz de superar as oposições entre sujeito e
objeto.29
Hegel ressalta que há uma ilusão de diferença e separação entre o sujeito (ou
pensamento) e o objeto. Pensamento e natureza, para o filósofo alemão, revelam-se como
aspectos de um único espírito. Tal ilusão é superada no espírito absoluto, quando se constata a
existência de apenas uma realidade: a do espírito que sabe e reflete em si, e encerra em si
mesmo tanto pensamento quanto aquilo que é pensado. A “totalidade do espírito” ou o
“espírito absoluto” representa o estágio final da dialética hegeliana. Ao eu absoluto, ao
pensamento pensante, se chega através da cisão apocrítica, da atividade de abstração absoluta,
pela qual o pensamento abstrai de si absolutamente toda determinação positiva, e o sujeito se
diferencia dos objetos. Esse absoluto, que se manifesta na apócrise, Hegel considera como
meramente abstrato, conforme destaca o poeta-filósofo:
29
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 69-71.
23
Um tal absoluto, segundo ele, não pode ser conceituado, isto é conhecido. O verdadeiro
absoluto – a verdade absoluta – inclui em si a negação, a medição, a diferença. As separações
efetuadas pelo entendimento não podem ser simplesmente abolidas. A razão deve, ao
contrário, levá-las às últimas consequências, onde elas acabam por suprimir-se a si próprias.
Assim concebido, o absoluto se manifesta de muitas maneiras, inclusive, originalmente, na
unidade sintética a priori, e culmina no espírito absoluto, que supera integrativamente o
espírito subjetivo e o espírito objetivo.30
30
Ibid. p. 73.
31
HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. Tradução: Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes,
1997, p. 36.
24
dois aspectos de um único conceito, mais elevado, pelo qual ambos encontram a resolução.
Nesse caso, o conceito que soluciona tal contradição é o “vir a ser” (síntese). Quando o não
ser é negado pelo ser e o ser afirmado pelo não ser, as diferenças entre um e outro são
superadas e as duas noções, inicialmente, contrárias, engendram, na mesma unidade, o vir a
ser, o devir. O vir a ser contém em si o ser e o nada. O puro nada encerra em si mesmo o ser
que, por sua vez, inclui o nada. O ser e o nada são entendidos, por Hegel, como “abstrações
pobres”32 e o vir a ser enquanto o primeiro pensamento concreto, o momento “especulativo ou
positivamente racional”33, a totalidade concreta, o primeiro conceito, o qual não pode
permanecer preso à subjetividade do entendimento, para não se manter fora da coisa que deve
ser pensada. Diante disso, o autor de A ciência da lógica aponta que Kant teria permanecido
preso ao abismo inaugurado na filosofia moderna por Descartes entre o cogito e a “coisa em
si”, entre o sujeito (ou pensamento) e o objeto. Entretanto, tal dualismo entre subjetividade e
objetividade, segundo Hegel, deve ser superado. Para ele, o conceito identifica-se não com a
eternidade, mas com o tempo histórico, “o tempo no qual transcorre a história humana, ou
melhor, o tempo que se realiza, não como movimento dos astros, por exemplo, mas como
história universal”34, conforme observa Alexandre Kojève. Não é algo fixo e estático, nem
exterior ao objeto, mas um processo dialético e objetivo, em que se revela a pura essência da
realidade. Alcançando o conceito, a “mais alta verdade”35, volta-se ao puro indeterminado,
isto é, ao ser. O conceito é o pensamento que volta para dentro de si como totalidade. Só há
tempo, quando há história, que é existência humana, então somente o homem se encontra no
tempo e este não existe fora do homem. O homem, nesse sentido, é o próprio tempo que, por
sua vez, é “o conceito “que está na existência-empírica” espacial da natureza”36. O homem e o
conceito, portanto, são o tempo. Se o idealismo transcendental kantiano permanece um
idealismo subjetivo, segundo Hegel, é preciso avançar em direção ao idealismo objetivo e, por
conseguinte, ao idealismo absoluto. Retornando à definição hegeliana do termo “absoluto”,
como uma palavra que “muitas vezes não tem significação mais ampla que a de abstrato”37,
como descreve Antonio Cicero, para o filósofo alemão, o absoluto abstrato, ao contrário do
absoluto absoluto, só pode ser compreendido quando relativizado ao absoluto concreto, isto é,
32
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. Texto completo, com os adendos
orais, traduzido por Paulo Meneses, com a colaboração de José Machado. Coleção O pensamento ocidental. São
Paulo: Loyola, 1995. p 181.
33
Ibid. p. 159.
34
KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2014, p. 346.
35
HEGEL, G. W. F. Op. cit. p. 228.
36
KOJÈVE, Alexandre. Op. cit. p. 347.
37
HEGEL, G. W. F. Op. cit. p. 228.
25
o abstrato é algo que, para existir, tanto no pensamento quanto na realidade, encontra-se
condicionado às determinações positivas de uma coisa concreta:
Pois bem, para Hegel, ao contrário do que é exigido pela definição do absoluto, algo abstrato
não é efetivamente, no pensamento ou na realidade, independente de tudo, uma vez que só
existe enquanto determinidade de alguma coisa concreta, isto é, uma vez que só existe
enquanto depende de alguma coisa concreta, da qual é relativa. Assim, “a consciência é
preenchida com certos sentimentos, representações, desejos etc.; ela não existe separada de
algum conteúdo particular”.38
[...] O agora essencial, que é também absoluto, é certamente o agora abstrato. Em que sentido
podemos dizer que ele precisa de algum conteúdo particular, para ser o que é? Enquanto os
conteúdos particulares determinados, A, B ou C, ou qualquer outro conteúdo particular
determinado, não podem ocorrer a menos que seja agora, para que ocorra o agora não é
necessário que A, B ou C ou qualquer outro conteúdo particular determinado seja. É
necessário, porém, diz Hegel, que haja algum conteúdo do particular x, isto é, um conteúdo
particular indeterminado e indeterminável, para que seja agora. Contudo, um conteúdo
particular indeterminável não é um conteúdo mas, como x, o Platzhalter, aquilo que guarda o
lugar de um conteúdo. Ora, o lugar de um conteúdo é algo tão abstrato quanto o próprio agora.
Stricto sensu não é portanto verdade que o agora absoluto seja relativo a algum conteúdo
particular.41
38
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 75.
39
Ibid. p. 76.
40
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução: Paulo Meneses, com a colaboração de Karl-Heinz
Efken. Apresentação: Henrique Vaz. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 31.
41
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 75-76.
26
O tornar-se não pode ser a identidade do ser absoluto e do nada absoluto justamente porque ele
é diferente tanto de um quanto de outro, que são idênticos. O ser absoluto é conceitualmente
idêntico ao nada absoluto, e isso basta.
[...]
Ora, como dissemos, se o ser é idêntico ao nada, não há tornar-se um o outro. Isso significa
que, dado que o devir é o elo entre o momento do ser-nada e o momento do estar aí (Dasein),
isto é, do ser determinado, pode declarar-se insatisfatória a passagem crucial do primeiro
capítulo da Lógica. Isso não significa que não haja uma diferença fundamental entre o ser ou o
nada absoluto e o ser determinado. Muito pelo contrário: trata-se da verdadeira diferença
ontológica.45
42
Ibid. p. 78.
43
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. Texto completo, com os adendos
orais, traduzido por Paulo Meneses, com a colaboração de José Machado. Coleção O pensamento ocidental. São
Paulo: Loyola, 1995, p. 85; 187-188; 295.
44
Ibid. p. 163.
45
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 79-80.
27
E ainda finaliza o quarto capítulo de O mundo desde o fim, ratificando a ideia de que
só há uma única certeza “metafísica, absoluta, apodíctica” 47: a do absoluto abstrato, isto é, a
da apócrise:
É portanto possível dizer-se que somos capazes de alcançar só uma certeza metafísica,
absoluta, apodíctica: a certeza do absoluto abstrato, que é a certeza absoluta do absoluto
abstrainte, que é a apócrise. Todas as demais “certezas” Pois bem, vimos que (I) Descartes
apontou na direção do absoluto abstrato mas não o atingiu; (2) Kant e Fichte o atingiram mas
imediatamente o ultrapassaram, isto é, neutralizaram de fato a consciência do seu caráter
absoluto; (3) Hegel praticamente o desprezou, tomando-o como mero produto do
entendimento reflexivo. Não é difícil entender a razão pela qual esses pensadores de maneira
geral acabaram menosprezando o núcleo em torno do qual efetivamente gravitaram. É que o
absoluto do conhecimento de nada vale, para ele, a menos que possa funcionar como o famoso
ponto arquimédico, isto é, como fundamento ou como axioma a partir do qual poderiam ser
deduzidos conhecimentos mais concretos. De nada lhes parecia valer uma certeza absoluta
porém estéril, isto é, que não fosse capaz de sair de si própria (§ 8). Assim, para Descartes, o
eu penso era o caminho para Deus e, deste, para as demais ciências puras. Para Kant, ele é o
caminho para a unidade sintética originária e, desta, para a dedução das categorias etc. 48
46
Ibid. p. 80.
47
Ibid. p. 83-84.
48
Loc. cit.
28
Para sistematizar a ideia de que a apócrise significa uma cisão fundamental do ser,
Antonio Cicero esquematiza uma tabela apocrítica51, “uma espécie de tabela pitagórica de
opostos”, em que de um lado (coluna I) se encontra o ser essencial, isto é, o “polo noético-
ontológico” – absoluto, negativo, necessário, puro e universal –, e do outro (coluna II), o ser
acidental ou “polo onto-noemático”, constituído por positividades relativas, contingentes,
particulares, empíricas. A linha A apresenta as “substantividades” pertencentes ao polo
noético-ontológico – “ser enquanto tal”, “egoidade”, “negação negante ou negatividade” –, e
ao polo onto-noemático: “entes”, “não eu”, “negações negadas ou positividades”. Já na linha
B, estão as “atributividades” do polo noético-ontológico – “absoluto (simpliciter)”,
“essencial”, “negativo”, “universal”, “necessário”, “abstrato”, “subjetivo”, “atemporal”,
“puro”, “infinito” –, e do polo onto-noemático – “relativo”, “acidental”, “positivo”,
“particular”, “contingente”, “concreto”, “objetivo”, “temporal”, “empírico”, “finito”.
Pensando, portanto, o movimento apocrítico da negação negante como uma espécie de razão
49
Ibid. p. 89.
50
Ibid. p. 116.
51
Ibid. p. 92.
29
O que é absoluto é também essencial (simpliciter), negativo, universal etc. O que é abstrato é
também negativo etc. Da mesma maneira, o positivo, particular, objetivo e empírico é também
relativo, acidental, contingente etc. Ao mesmo tempo, o absoluto não pode ser particular ou ter
qualquer outro atributo que pertença ao polo onto-noemático e, do mesmo modo, o positivo
não pode ser absoluto.53
52
Loc. cit.
53
Ibid. p. 94.
54
Ibid. p. 94.
55
Ibid. p. 106.
56
Ibid. p. 97.
30
o conceito de sujeito. O autor de Ser e Tempo pretende impedir que a egoidade seja
concebida, ontologicamente, como sujeito, por considerar que essa redução supõe este último
como algo já dado, enquanto positividade. Mas, o poeta-filósofo argumenta que há alguns
equívocos na formulação heideggeriana, uma vez que o sujeito pode ser entendido como a
própria negação de toda e qualquer positividade. Antonio Cicero, inclusive, retoma o fato de
Kant defender, reiteradamente, que o sujeito transcendental jamais poderia ser tomado como
uma positividade. Além disso, outro equívoco de Heidegger teria sido conceber o eu enquanto
um modo do ser do Dasein, já que “uma substância não é necessariamente mais positiva do
que um modo”57. Toda subjetividade negativa, transcendental, pura, absoluta, não pode ser
considerada uma substância positiva, isto é, não pode estar no mundo entre outras substâncias
também positivas, relativas, empíricas. A subjetividade negativa, por ser negação negante,
tem a capacidade de negar o próprio mundo e todas as positividades existentes. Diante disso,
se ela for definida como uma substantividade, de acordo com o poeta-filósofo, terá de ser
considerada, portanto, obrigatoriamente, uma substantividade negativa. De qualquer forma,
tomando o eu como o “modo pelo qual o homem em sua essência está presente ao ser” 58, para
Antonio Cicero, ainda consiste na positivização do eu (ou da egoidade), isto é, na catácrase
catabásica, a redução da subjetividade negativa e absoluta à substantividade positiva e
relativa:
57
Ibid. p. 99.
58
Loc. cit.
59
Ibid. p. 99-100.
60
Ibid. p. 101.
31
conceito fosse suficiente para minar suas pretensões à universalidade” 61. A negação negante,
para ser definida enquanto absoluta, não precisa ser entendida como substantividade ou
subjetividade: “O absoluto negativo é a negação negante – quer a consideremos como
substantividade, quer como subjetividade, quer como modo – que afirma o seu ser no próprio
momento em que se opõe de modo absoluto a toda positividade concebível” 62. A razão é
negativa e absoluta, porque, justamente, nega a possibilidade da existência de qualquer
positividade absoluta. Caso houvesse uma positividade absoluta, esta ocuparia o lugar das
outras positividades. Reconhecer o caráter negativo do absoluto significa salvaguardar a
possibilidade de manifestação de todas as positividades. Diante disso, o poeta-filósofo
estabelece uma relação da apócrise com a prosa, uma vez que esta garante a abertura para
infinitas possibilidades positivas e, sobretudo, ela não tem a pretensão de tomar o lugar da
poesia: “Trata-se do mínimo de prosa necessário para garantir como seu avesso, por assim
dizer, o máximo de realidades e possibilidades criativas, isto é, poéticas” 63.
Citando o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, Antonio Cicero aponta um último
exemplo de catácrase catabásica: a necessidade iluminista de superação de todos os
preconceitos, através da crítica a um preconceito contra o preconceito em geral. É desde o
Iluminismo (Aufklärung) que a noção de preconceito ou tradição adquire um sentido
pejorativo, referindo-se sempre a juízos falsos e prévios, não submetidos à análise e
comprovação pelo crivo da razão. O Houaiss afirma que o preconceito consiste em “um
julgamento ou opinião concebida previamente, formada sem fundamento justo ou
conhecimento suficiente”64. Mas não significa, necessariamente, que ela seja falsa, conforme
ressalta Gadamer: “Preconceito não significa, portanto, o juízo falso, mas nele reside a
possibilidade de ser avaliado positiva e negativamente” 65. Na hermenêutica do autor de
Verdade e método, a compreensão do mundo sempre se dá a partir da perspectiva de um ponto
particular na história, isto é, ela ocorre dentro da própria época histórica e esta, por
conseguinte, oferece ao sujeito finito e histórico preconceitos e motivações que, por sua vez,
não devem ser pensados como algo ruim, ao contrário. Não há como compreender as coisas
do mundo fora deles, afinal, as noções preconcebidas e crenças constituem o ponto de partida
para as interpretações. Mesmo que a dúvida hiperbólica de Descartes fosse capaz de eliminar
todos os preconceitos não seria possível ampliar e aprofundar a compreensão sobre o mundo.
61
Loc. cit.
62
Loc. cit.
63
Ibid. p. 104.
64
HOUAISS, Antônio. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 589.
65
GADAMER, Hans-Georg, 1972 apud STEIN, Ernildo. “Dialética e Hermenêutica: uma controvérsia sobre
método em filosofia”. In: HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM, 1987, P. 112.
32
A leitura cuidadosa de um livro, por exemplo, permite ao leitor descobrir que ele não somente
está aprofundando sua compreensão a respeito da obra, como também que seus próprios
preconceitos e convicções tornam-se mais evidentes e, colocados à prova, talvez, de alguma
forma, possam vir a se modificar. O leitor não apenas lê a obra, mas, ao mesmo tempo, é lido
por ela. Esse diálogo reflexivo possibilita uma compreensão do mundo mais ampla,
aprofundada e enriquecida. Por isso, para Gadamer, “os preconceitos de um indivíduo são,
muito mais que seus juízos, a realidade histórica do ser” 66. Portanto, apesar de serem
julgamentos construídos sem fundamento justo ou conhecimento suficiente, os preconceitos
podem ser verdadeiros. Caso o sejam, no entanto, Antonio Cicero enfatiza que eles terão de
ser tratados como verdades positivas, contingenciais, relativas, pertencentes ao polo onto-
noemático, contrapondo-se ao polo noético-ontológico, onde se encontram as verdades
absolutas, puras e necessárias. Na tentativa de eliminar todos os preconceitos, a dúvida
hiperbólica cartesiana coloca tudo em dúvida, inclusive, ela própria. Contudo, não é possível
duvidar do próprio eu que duvida, do mesmo modo como não é possível negar o próprio eu
que nega. Ao duvidar de si, a dúvida se constitui enquanto tal. Ao negar a si, a negação se
constitui enquanto tal. E o mesmo ocorre com a apócrise: ao tentar se separar de si, ela é a
própria separação. A dúvida, a negação e a apócrise – entendidas pelo poeta-filósofo como
uma coisa só –, pertencem ao polo noético-ontológico, logo não podem ser tomadas como
preconceitos. Segundo Antonio Cicero, elas são pós-conceitos, pois avaliam a si próprias e
resistem a essa mesma avaliação. A catácrase catabásica ocorre, justamente, quando se
pretende reduzi-las ao polo onto-noemático, isto é, transformá-las em preconceitos,
julgamentos não avaliados, pensamentos irracionais, “positividade não examinada”67. Essa
reabilitação dos preconceitos ou, em outras palavras, a positivação da apócrise, consiste numa
espécie de estratagema, para a reafirmação da autoridade da tradição, conforme argumenta
Antonio Cicero, uma vez que, para Gadamer, tradição e autoridade são condições
fundamentais à experiência de mundo, pontos de partida orientadores de qualquer
conhecimento e prática, e não precisam ser consideradas inimigas da razão, mas instrumentos
que possibilitam o encontro com a verdade.
Retomando a ideia de que a apócrise resulta da negação negante, o que a faz ser
negativa e absoluta, e não positiva e contingente, o seu caráter negativo é o que admite a
existência de todas as possibilidades onto-noemáticas, isto é, positivas. Diante disso, o poeta-
66
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
Tradução: Flávio Paulo Meurer. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 368.
67
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 105.
33
filósofo afirma que a concepção moderna ou apocrítica do mundo é a única a ser considerada
científica, racional, pois qualquer outra concepção discordante representaria uma catácrase, de
acordo com a tabela apocrítica; uma confusão da coluna noética com a noemática. Para ele,
portanto, é a concepção moderna (ou apocrítica) do mundo que permite haver possibilidades
diversas de concepções modernas (atuais) do mundo. A apócrise, enquanto negação negante,
provoca uma cisão que a separa de toda e qualquer positividade ou negação negada. Com isso,
não há como existir um absoluto que seja positivo, nem uma positividade absoluta. Se a
negação negante é absoluta, obrigatoriamente, toda negação negada (ou positividade) é
relativa. A concepção moderna do mundo, por ser uma concepção absoluta, é a negação
negante deste, logo não pertence ao mesmo. Desse modo, tudo aquilo que pertence ao mundo
é positivo, portanto, relativo. Se algo é absoluto, possui o caráter negativo e se algo é relativo,
necessariamente, é positivo. No entanto, a afirmação do caráter relativo de toda negação
negada não significa que “tudo é relativo”, no sentido do relativismo vulgar. A apócrise revela
que nem tudo é relativo, pois somente o que é positivo, isto é, correspondente às
atributividades do polo onto-noemático, pode ser relativo. Para Antonio Cicero, considerar
que “tudo é relativo” determina uma atributividade onto-noemática – a relatividade – a todas
as substantividades que integram o polo noético-ontológico, o que caracteriza uma forma de
catácrase catabásica.
É desde a apócrise que se torna possível pensar a concepção moderna ou apocrítica do
mundo enquanto concepção agoral do mundo, na qual este possui o agora como fundamento.
Se tudo o que é positivo, particular e relativo cabe ao mundo, este coincide com o agora
acidental, em oposição à essência do agora, isto é, à apócrise. Em seu tratado acerca do
tempo, nos capítulos 10 e 11, do livro IV, da obra Física, Aristóteles defende que há “dois
agoras” distintos relacionados aos limites de dois intervalos de tempo também distintos: o
momento anterior e o posterior. O tempo é “justamente isto: número do movimento segundo o
antes e o depois”68, e o agora divide o tempo, o delimita, porém sem fazer parte dele. Apesar
de todos os “agoras” se realizarem no instante atual, no presente, cada agora é sempre um
agora diverso, um antes e outro depois, acompanhando o movimento e a mudança. Ainda que
seja distinto, o agora, sendo o que é, o antes e o depois no movimento, ele é sempre o mesmo,
no ponto de vista da atualidade real do presente. É sempre o mesmo agora intermediando o
tempo pretérito e o futuro. Por isso, o agora possui dois aspectos: “é em um sentido o mesmo,
68
ARISTÓTELES. Física. Tradução (para o espanhol), prólogo e notas: Guilhermo R. de Echandía. Madrid:
Gredos, 1995, p. 153 (219b). Coleção Biblioteca Clásica Gredos.
34
69
Ibid. p. 154.
70
CICERO, Antonio. Op. cit. 111.
71
BAUDELAIRE, Charles. A invenção da modernidade (sobre Arte, Literatura e Música). Tradução e Notas:
Pedro Tamen. Antologia, Introdução e Notas: Jorge Fazenda Lourenço. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006,
p. 290.
72
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 111.
35
contingente, acidental. Sendo assim, um determinado Deus, tal qual a negação negante, não
pode existir. A apócrise também pode ser aplicada no âmbito do direito. Para que existam
liberdades individuais, civis, direitos humanos legitimados, instituições democráticas, isto é, o
relativo ou o direito positivo, é imprescindível que haja o negativo absoluto ou o direito
natural. O direito entendido como liberdade consiste no direito absoluto e negativo:
Aplicada ao direito, a apócrise significa que não há qualquer lei positiva que seja absoluta.
Isso mesmo, porém, representa uma lei negativa absoluta. Não sou obrigado a limitar a minha
liberdade por imposição de lei positiva alguma. Digo isso, porém, enquanto egoidade, isto é,
sem levar em conta o ego onto-noemático que sou contingentemente. Isso significa que o digo
não apenas em nome deste ou daquele ego empírico, mas em nome de qualquer ego
concebível. Seja quem eu for, minha liberdade de agir não é limitável racionalmente – logo
com minha aquiescência – senão em virtude da necessária concessão de liberdade igual aos
demais egos empíricos, isto é, aos demais seres humanos, livres como eu. Segundo Kant,
filósofo que melhor representa a filosofia apocrítica do direito, este consiste no “conjunto das
condições pelas quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de um outro
segundo uma lei universal da liberdade” 73.
Visando atingir o absolutismo, cuja ontologia dominante sustentava que Deus havia
concedido o poder soberano ao rei, Kant defende que o direito natural significa o justo, a
razão, a lei genuinamente contida em todos os indivíduos. Para ele, a razão não deriva do
Estado, mas do próprio indivíduo. Hegel, porém, o critica afirmando que o Estado moderno
europeu, estabelecido no final do século XVIII com a Revolução Francesa, consolida, em-si e
para-si, a razão histórica humana. Como teórico do direito positivo, o autor de A ciência da
lógica funda a ideia de justiça no Estado burguês. Entretanto, Antonio Cicero menciona a
crítica de Karl Marx e Friedrich Engels ao direito natural negativo que, “segundo eles,
constitui uma liberdade abstrata, logo irreal”74. Para Marx, “a burguesia, através da doutrina
do direito natural, projeta ideologicamente a comunidade ilusória em que sua dominação de
classe aparece como uma necessidade racional”75. De acordo com Hegel, a constituição é
entendida como um conjunto de determinações absolutas da vontade racional e não uma
compilação particular de leis positivas. Somente ao Estado, enquanto agente conciliador, cabe
a mediação de contradições particulares movidas por disputas antagônicas entre os interesses
materiais que regem a sociedade civil e, por conseguinte, a superação das mesmas em favor
do interesse geral, universal. Com isso, as instituições familiares e a sociedade civil são
engendradas pela ideia de Estado. No entanto, em sua crítica à filosofia hegeliana do direito,
73
Ibid. p. 124-125.
74
Ibid. p. 146.
75
Ibid. p. 149.
36
76
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução: Rubens Enderle e Leonardo de Deus.
Supervisão e Notas: Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 54.
77
Ibid. p. 48.
78
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus
representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846).
Supervisão Editorial: Leandro Konder. Tradução: Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano.
Texto final: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 94.
79
KOJÈVE, Alexandre. Op. cit. p. 37.
80
Loc. cit.
81
Ibid. p. 49.
37
proletariado. A síntese seria a superação da sociedade de classes por uma sem classes, o
comunismo, em que todos os meios de produção econômica passariam a ser propriedade
comum e todo membro da sociedade poderia trabalhar de acordo com sua capacidade e
consumir conforme a sua necessidade. Opondo-se a Hegel, Marx afirma que o processo
histórico não é uma trajetória de desenvolvimento espiritual, mas de mudança histórica real. A
despeito de concordar com a tese de que toda época é governada pelo Zeitgeist, o autor de A
ideologia alemã argumenta que esse espírito epocal se encontra definido pelas relações
sociais e econômicas de uma determinada era. Assim, é a realidade concreta, material, que
precede a consciência, as ideias puras, e não o contrário: “Do mesmo modo que a religião não
cria o homem, mas o homem cria a religião, assim também não é a constituição que cria o
povo, mas o povo a constituição. [...] O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em
razão do homem, é a existência humana [...]”82. As forças produtivas condicionam o
desenvolvimento da vida social, política e intelectual dos indivíduos:
As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças
produtivas, os homens transformam o seu modo de produção e, ao transformá-lo, alterando a
maneira de ganhar a sua vida, eles transformam todas as suas relações sociais. O moinho
movido pelo braço humano nos dá sociedade com o suserano; o moinho a vapor dá-nos a
sociedade com o capitalista industrial.83
Família e sociedade civil são os pressupostos do Estado; elas são os elementos propriamente
ativos; mas, na especulação, isso se inverte. No entanto, se a Ideia é subjetivada, os sujeitos
reais, família e sociedade civil, “circunstâncias, arbítrio”, etc. convertem-se em momentos
objetivos da Ideia, irreais e com um outro significado.84
[...]
82
MARX, Karl. Op. cit. p. 50.
83
Idem. Miséria da filosofia: resposta à Filosofia da miséria, do Sr. Proudhon. Tradução: José Paulo Netto. São
Paulo: Expressão Popular, 2009, 125.
84
Idem. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução: Rubens Enderle e Leonardo de Deus. Supervisão e
Notas: Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 30.
38
(“os indivíduos, a multidão” são aqui matéria do Estado, “deles provém o Estado”, essa sua
procedência se expressa como um ato da Ideia, como uma “distribuição” que a Ideia leva a
cabo com sua própria matéria. O fato é que o Estado se produz a partir da multidão, tal como
ela existe na forma dos membros da família e dos membros da sociedade civil. A especulação
enuncia esse fato como um ato da Ideia, não como a ideia da multidão, senão como o ato de
uma ideia subjetiva e do próprio fato diferenciada).85
Segundo Antonio Cicero, a razão, para Hegel, não se dá na cisão apocrítica entre os
polos noético-ontológico e onto-noemático, mas na reintegração destes, em uma “unidade
interpenetrante da universalidade e da individualidade” 86; na íntima união substancial do
interesse particular com o interesse geral, universal. Em seu livro Razão e revolução: Hegel e
o advento da teoria social, Herbert Marcuse ressalta que a filosofia hegeliana converge para a
universalidade da razão: “[...] ela é um sistema racional com todas as suas partes (as esferas
subjetiva e objetiva) integradas em um todo compreensivo” 87. A princípio, na terminologia de
Hegel, a conceitualização do que vem a ser o homem bem como a noção da própria
negatividade estabelecem, de certo modo, uma possível interlocução com o entendimento
sobre a apócrise do poeta-filósofo. O ser, enquanto um dado existencial, uma positividade, por
sua vez, encerra em si mesmo a faculdade de negar o mundo material, exterior, e a sua própria
natureza positiva, particular, empírica, acidental, contingente e relativa, e, ainda,
potencialmente, superá-la, para ser um outro, diverso de si, como analisa Kojève:
Ser homem é não ser retido por nenhuma existência determinada. O homem tem a
possibilidade de negar a natureza e sua própria natureza, seja ela qual for. Ele pode negar sua
natureza animal empírica, pode querer a morte, arriscar a vida. Tal é seu Ser negativo
(negador: Negativität): realizar a possibilidade de negar e transcender, ao negá-la, sua
realidade dada; ser mais e ser outro em relação ao ser que apenas vive. 88
Entretanto, Hegel define o homem não como uma negatividade pura (morte, nada
absoluto, o homem fora do mundo exterior), nem uma identidade pura (ser natural, biológico,
existência animal), mas uma totalidade (Totalität89, o homem social, a vida em sociedade, a
historicidade do homem, o Espírito) que contém em si os dois aspectos – a negatividade e a
identidade –, como constitutivos. O que caracteriza a individualidade do homem, segundo o
85
Ibid. p. 31.
86
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 133.
87
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. 5. ed. Tradução: Marília
Barroso. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 248.
88
KOJÈVE, Alexandre. Op. cit. p. 50.
89
Ibid. p. 51.
39
filósofo alemão, é a junção do particular com o universal: “[...] o reconhecimento social é que
distingue o homem, como entidade espiritual, do animal e de tudo o que é apenas natureza.
Ora, é no reconhecimento universal da particularidade humana que se realiza e manifesta a
individualidade”90. A universalidade consiste na negação (ou antítese) da particularidade do
ser, logo “a individualidade é uma totalidade, e o ser que é individual é, por isso mesmo,
dialético”91. A particularidade do ser, sua natureza dada ou inata, quando, dialeticamente,
negada, suprimida, passa a ser uma particularidade negada, ou uma universalidade. Esta
implica a particularidade e constitui a manifestação da individualidade humana, pois “o
homem é e existe na medida em que ele se suprime dialeticamente, isto é, ao se conservar e ao
se sublimar”92. Diante disso, “o homem não é apenas o que ele é, mas o que pode ser, ao
negar o que é”93. Hegel, assim, reconhece a liberdade como negatividade, no sentido de que a
primeira consiste na realização e manifestação da segunda. A negatividade é a liberdade de
ação do homem em ter a autonomia, a possibilidade de negar, sobrepujar tudo o que há no
mundo e a sua própria natureza biológica, libertando-se de si mesmo, de suas particularidades
impostas pela existência, e conservando “a negação sob a forma de uma obra criada por essa
negação ativa. Essa liberdade, que é negatividade, é a realidade-essencial do homem”94. A
negatividade, para o autor de Fenomenologia do Espírito, não existe fora da totalidade, da
realidade concreta e objetiva, apartada da identidade, caso contrário, ela seria o puro nada, a
morte. A questão é que, para Antonio Cicero, com a síntese do particular com o universal, isto
é, a reintegração dos polos onto-noemático e noético-ontológico, Hegel pretende ir além da
apócrise, o que seria inconcebível, no entendimento do poeta-filósofo, porque configuraria
uma catácrase. Como o homem, segundo o filósofo alemão, apenas se afirma enquanto
humano, na vida em sociedade, desde a interação com os membros desta, a sua
individualidade, portanto, só se realiza, integralmente, ao viver e agir conforme um cidadão
(avesso aos seus interesses privados) reconhecido em sua particularidade por um Estado
universal e homogêneo, uma vez que “ao realizar plenamente a individualidade, o Estado
universal e homogêneo conclui a história, pois o homem satisfeito em e por esse Estado não
será tentado a negá-lo e a criar algo de novo para substituí-lo”95. Sendo o “espírito objetivo”96,
isto é, o “racional em si e para si”, o Estado “possui um direito soberano perante os
90
Ibid. p. 474.
91
Ibid. p. 477.
92
Ibid. p. 479.
93
Ibid. p. 61.
94
Ibid. p. 518.
95
Ibid. p. 476.
96
HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. Tradução: Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes,
1997, p. 217.
40
indivíduos”, cujo maior dever é ser membro dele. Hegel transforma a vontade comum dos
indivíduos na vontade absoluta. Com isso, eleva uma positividade, o absoluto concreto, ao
absoluto abstrato da negação negante, o que indica uma catácrase anabásica, rejeitando, por
conseguinte, o direito natural negativo. Apesar de inverterem a dialética idealista hegeliana,
Marx e Engels, de acordo com o poeta-filósofo brasileiro, também admitem, assim como
Hegel, a positivação (ou relativização) do direito negativo. Marx concebe todo direito como
ideológico, uma construção imaginária, ilusória, resultante de uma falsa e equivocada
consciência sobre a realidade. Desse modo, o direito, enquanto uma espécie de “ilusionismo
ideológico”, acaba mascarando as reais condições de existência e dominação de classe, uma
vez que ele não passaria de uma “ideologia carola e hipócrita dos burgueses” 97, expressando
seus interesses particulares como sendo interesses universais. Para Antonio Cicero, essa
desconfiança de Marx em relação ao direito natural (e a todo tipo de direito) é, de certa
maneira, justificável, pois o materialismo ao se contrapor à catácrase anabásica hegeliana
surge, espontaneamente, como a própria expressão da desconfiança, da dúvida, que é onde
reside sua “extraordinária força de persuasão”98. No entanto, o poeta-filósofo ressalva que o
direito natural, se for entendido como direito racional e, portanto, negativo, recai, justamente,
sobre a apócrise, isto é, a dúvida mais radical que há: “Na verdade, a afirmação do direito
negativo é logicamente equivalente à negação de todo direito positivo, isto é, de todo direito
que tenha qualquer conteúdo particular, inclusive, evidentemente, qualquer conteúdo de
classe”99. Antonio Cicero acredita que até 1843, Marx assume um caráter anti-individualista,
que reitera a catácrase anabásica herdada de Hegel:
[...] é quase certo que ele [Marx] pense, como declarou em outra obra, que “a filosofia
dialética [que é como denomina o seu modo de pensar] dissolve todas as concepções que
afirmam uma verdade final absoluta e um estado final absoluto da humanidade em
correspondência com ela”.
Mas se ele pensa assim, está errado, pois ou bem supõe não haver nenhuma razão absoluta – e
nesse caso incorre na catácrase catabásica historicista, isto é, relativista – ou bem supõe,
hegelianamente, haver uma outra razão, digamos, “dialética”, que inclui e subordina, logo,
relativiza, a razão formal, isto é, a apócrise: mas, nesse caso, incorre em catácrase anabásica
semelhante à de Hegel. 100
97
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus
representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846).
Supervisão Editorial: Leandro Konder. Tradução: Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano.
Texto final: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 180.
98
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 149.
99
Ibid. p. 150.
100
Ibid. p. 136.
41
Pois bem, nem o Marx hegeliano nem o Marx materialista aceitariam a apócrise. No entanto
devemos reconhecer que enquanto seria concebível, sem prejuízo da racionalidade apocrítica,
tomar determinadas teses do materialismo histórico como uma conjectura referente ao polo
onto-noemático, é absolutamente impossível fazer o mesmo em relação ao Marx hegeliano,
cujas concepções são incompatíveis com o direito negativo. 101
101
Ibid. p. 142.
102
Ibid. p. 150.
103
Loc. cit.
104
Ibid. p. 150-151.
105
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Op. cit. p. 534.
42
Nem poderia ser de outra maneira. A própria crítica às relações mercantis atinge e desvaloriza
o indivíduo real, que é também agente econômico. Este, necessariamente engajado em
determinadas relações objetivas de produção, pertence a tal ou qual classe social, o que
inevitavelmente determina de modo unilateral as suas concepções do mundo. Vítima do
fetichismo da mercadoria, as relações entre seres humanos lhe aparecem como relações entre
coisas, e as relações entre coisas como relações entre seres humanos. Assim, os indivíduos
reais, que se encontram no mundo atual – mundo das relações abstratas, objetificadas – se
comportam socialmente de acordo com suas posições de classe abstratas e objetificadas: se
comportam socialmente como indivíduos abstratos. 106
Se o que caracteriza o sujeito real não é a sua consciência, mas a forma como ele
produz as suas próprias condições materiais de existência, conforme analisa Marx, estas, por
sua vez, não são livremente escolhidas pelo indivíduo, mas condicionadas a priori pelos
meios de produção disponíveis em determinado tempo e lugar, pois “a “libertação” é um ato
histórico e não um ato de pensamento, e é ocasionada por condições históricas, pelas
con[dições] da indústria, do co[mércio], [da agricul]tura, do inter[câmbio] [...].” 107.
Considerando a afirmação há muito conhecida de Marx e Engels, no Manifesto Comunista, de
que a “história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classes” 108, os
direitos à liberdade individual e à igualdade política e jurídica, tão defendidos por liberais e
neoliberais, não passam de ideias abstratas e não resistem às evidências das profundas
contradições e desigualdades promovidas pelas relações de produção. Diante disso, os sujeitos
reais, isolados e alienados pela divisão social do trabalho, não conseguem possuir os meios
para desenvolver suas capacidades individuais e, por conseguinte, se tornarem, realmente,
livres. É desde a coletividade que os indivíduos se apropriam de todas as forças produtivas,
acabam com a propriedade privada dos bens de produção e assumem o controle de suas
condições de existência e as de todos os membros da sociedade:
É somente na comunidade [com outros que cada] indivíduo tem os meios de desenvolver suas
faculdades em todos os sentidos; somente na comunidade, portanto, a liberdade pessoal torna-
se possível. Nos sucedâneos da comunidade existentes até aqui, no Estado etc., a liberdade
pessoal existia apenas para os indivíduos desenvolvidos nas condições da classe dominante e
somente na medida em que eram indivíduos dessa classe. A comunidade aparente, em que se
associaram até agora os indivíduos, sempre se autonomizou em relação a eles e, ao mesmo
tempo, porque era uma associação de uma classe contra outra classe, era, para a classe
dominada, não apenas uma comunidade totalmente ilusória, como também um novo entrave.
106
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 143.
107
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Op. cit. p. 29.
108
Idem. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich/ COUTINHO, Carlos Nelson [et. al.]. O Manifesto Comunista 150
anos depois. Organizador: Daniel Aarão Reis Filho. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 1998, p. 08.
43
Na comunidade real, os indivíduos obtêm simultaneamente sua liberdade na e por meio de sua
associação.109
Com essa passagem do individual para o coletivo, como uma espécie de dissolução do
pessoal, do particular, no universal, na comunidade, possibilitada, justamente, pela união
geral, necessária e revolucionária dos trabalhadores, dos sujeitos reais, segundo Antonio
Cicero, Marx defende uma posição anti-individualista semelhante à de Hegel – com sua
“vontade geral”110 e “unidade interpenetrante da universalidade e da individualidade” 111 –, ao
postular que cada indivíduo só se torna verdadeiramente livre, quando há uma conciliação
entre o seu interesse e o do coletivo:
Realmente, toda nova classe que toma o lugar de outra que dominava anteriormente é
obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse comum de todos os
membros da sociedade, quer dizer, expresso de forma ideal: é obrigada a dar às suas ideias a
forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais, universalmente válidas. A
classe revolucionária por já se defrontar desde o início com uma classe, surge não como
classe, mas sim como representante de toda a sociedade; ela aparece como a massa inteira da
sociedade diante da única classe dominante. Ela pode fazer isso porque no início seu interesse
realmente ainda coincide com o interesse coletivo de todas as demais classes não dominantes e
porque, sob a pressão das condições até então existentes, seu interesse ainda não pôde se
desenvolver como interesse particular de uma classe particular. 112
No mundo do trabalho, no mundo dos que geram as riquezas de que o capital se apropria, se
gestam as principais forças objetiva e subjetivamente interessadas na construção de uma nova
ordem social – a sociedade comunista –, que Marx e Engels concebem não como um retorno
romântico ao passado ou como uma utopia abstrata, mas como o desfecho de um movimento
capaz de recolher os momentos emancipatórios trazidos pela modernidade capitalista e, ao
mesmo tempo, de superar suas contradições e impasses. 116
Lançando uma pergunta retórica, Antonio Cicero critica a tomada de poder pelo
proletariado para a instauração de sua ditadura, no sentido de que com a revolução comunista
haveria a substituição da ditadura da burguesia por outra ditadura, isto é, o Estado continuaria
a representar os interesses particulares de uma classe, agora, a dos proletários: “Será preciso
dizer mais?”117, ironiza o poeta-filósofo. No entanto, Carlos Nelson Coutinho ressalta que
Marx e Engels apontam o comunismo como o “herdeiro e verdadeiro realizador da
democracia”118, e não um opositor desta, “– como se compraz em afirmar até hoje o
liberalismo, o qual, de resto, ao longo de suas muitas metamorfoses, quase sempre se opôs à
efetiva democracia –, mas sim a sua completa realização”. As lutas emancipatórias dos
proletários devem ser travadas no campo da política e, para tanto, é necessário que os
trabalhadores se organizem em partidos políticos, que são os principais instrumentos efetivos
capazes de fornecer as condições necessárias à revolução, impulsionando e direcionando as
lutas do proletariado, a fim de garantir a verdadeira universalidade e “promover a passagem
da “classe em si” à classe para si”, ou seja, do proletariado como fenômeno objetivo ao
proletariado como sujeito coletivo autoconsciente [...]”119.
115
Ibid. p. 56.
116
Ibid. p. 54.
117
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 146.
118
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich/ COUTINHO, Carlos Nelson [et. al.]. Op. cit. p. 56.
119
Loc. cit.
45
120
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 147.
46
121
Loc. cit.
122
Loc. cit.
123
LUKÁCS, György. Socialismo e democratização: escritos políticos 1956-1971. Organização, Introdução e
Tradução: Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ , 2008, p. 87.
47
É interessante observar que os defensores da ordem burguesa usam o fato da desigualdade dos
indivíduos para criticarem, como utópico, o socialismo que pretenderia realizar, segundo os
mesmos críticos, uma igualdade impossível. “Não é praticável” – afirmam – “tratar igualmente
indivíduos naturalmente desiguais”. Ora, é precisamente isso que ocorre no regime burguês,
que se funda numa figurada igualdade jurídica que não corresponde aos fatos reais. E é
socialismo que retifica essa posição. O socialismo, ao contrário do que se acha como opinião a
respeito dele muito difundido, não é e está longe de ser igualitarista. O socialismo (o
verdadeiro socialismo, bem entendido, porque sob o rótulo socialista não faltam hoje as mais
disparadas fantasias) reconhece a desigualdade, e não pretende eliminar ou desconhecer as
desigualdades que são da natureza humana. A desigualdade que se procura corrigir é aquela
criada pelo regime social, e sobreposta e acrescentada à desigualdade natural e biológica.125
124
LENIN, Vladimir Ilytch. “A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky”. In: Obras Escolhidas em Três
Tomos. Tradução: Edições Avante! Lisboa: Edições Progresso, 1977.
125
PRADO Jr., Caio. O que é liberdade: capitalismo versus socialismo. Coordenação: Vanya Sant’Anna.
Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 15.
126
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. Tradução:
Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 214.
48
Não é nem sequer desejável que não haja contradição entre o interesse de diferentes indivíduos
entre si ou entre o seu interesse pessoal por um lado e o seu interesse comunal putativo por
outro. Desejar o contrário já é eleger a uniformidade e não a diversidade, quer dizer, já é
escolher um valor positivo no lugar de outros. Fazer porém do objeto de semelhante
predileção pessoal (perfeitamente legítima, enquanto tal) um desideratum social, a ser
realizado pelo Estado ou pela “comunidade dos indivíduos reais” – que, no final das contas,
consiste no Estado, no Partido e/ou em organizações sindicais – configuraria violência contra
os que preferem o valor oposto.127
127
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 147.
128
Ibid. p. 156.
49
homens, como vaidade, preguiça, gula, luxúria, inveja, ganância, orgulho. Estes, e não as
virtudes, ao contrário do que em geral se espera, constituem os verdadeiros pilares do
desenvolvimento econômico e social da colmeia ou, no caso, da própria sociedade. O bem
comum, portanto, não seria um resultado da bondade e das virtudes dos indivíduos, mas de
seus vícios privados, como dizem alguns versos:
[...]
Assim, o vício imperava em cada parte,
Embora o todo fosse um paraíso;
Incensados na paz, temidos na guerra,
Tinham o respeito dos estrangeiros,
E, na abundância de riqueza e vidas,
Eram a força preponderante entre todas as colmeias.
Tais eram as bênçãos daquele estado
Que seus crimes conspiravam para torná-lo grandioso;
E a virtude, que com a política
Aprendera milhares de artifícios sutis,
Tornara-se, pela feliz influência,
Amiga do vício, e desde então
O pior elemento em toda a multidão
Fazia algo para o bem comum.
Era essa a estatística que regia
O todo, do qual cada parte reclamava;
Isso, como na harmonia musical,
Conciliava as dissonâncias no geral.
Grupos diretamente opostos
Ajudavam-se mutuamente, como por perversidade,
E a temperança e a sobriedade
Serviam à embriaguez e à gula.
Na economia capitalista liberal, a ordem natural que regula o livre mercado exige a
maior liberdade individual possível nas relações econômicas, pois o interesse privado consiste
na motivação essencial à divisão social do trabalho e à acumulação de capital, ambas,
supostamente, fundamentais ao desenvolvimento econômico e progresso do bem comum. Se a
boa e próspera sociedade é constituída a partir da comunhão das buscas individualistas, Adam
Smith afirma que todas as ações privadas humanas se originam das paixões, especificamente,
da autoestima, a qual sustentaria todas as demais:
O homem, entretanto, tem necessidade quase constante da ajuda dos semelhantes, e é inútil
esperar esta ajuda simplesmente da benevolência alheia. Ele terá maior probabilidade de obter
o que quer, se conseguir interessar a seu favor a autoestima dos outros, mostrando-lhes que é
vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa
que propõe um negócio a outra. Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você
129
MANDEVILLE, Bernard. The Fable of the Bees, or Private Vices, Publick Benefits. Comentário crítico,
histórico e explicativo de F.B. Kaye Liberty Press, Indianapolis, 1988.
130
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. Com Introdução de
Edwin Cannan. Tradução: Luiz João Baraúna. Apresentação: Winston Fritsch. Volume I. São Paulo: Nova
Cultural, 1996, p. 436.
51
quer — esse é o significado de qualquer oferta desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns
dos outros a grande maioria dos serviços de que necessitamos. 131
Do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que de si mesmo faz, tampouco se
pode julgar uma tal época de transformações pela consciência que ela tem de si mesma. E
preciso, ao contrário, explicar essa consciência pelas contradições da vida material, pelo
conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.136
131
Ibid. p. 74.
132
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução e Introdução: Florestan Fernandes. São
Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 47.
133
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 156.
134
Ibid. p. 147-148.
135
MARX, Karl. Op. cit. p. 47.
136
Ibid. p. 48.
52
137
Idem. Miséria da filosofia: resposta à Filosofia da miséria, do Sr. Proudhon. Tradução: José Paulo Netto.
São Paulo: Expressão Popular, 2009, 126.
138
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 156.
139
MARCUSE, Herbert, Op. cit. p. 266.
140
Ibid. p. 248.
53
Estado, nesse caso, existe não para controlar a economia, mas para garantir e proteger a
propriedade privada, bem como a liberdade e igualdade jurídica e política dos indivíduos. Se
o comunismo pode significar a troca de uma ditadura por outra – a do proletariado em
substituição à da burguesia –, como acredita o poeta-filósofo, a democracia liberal, porém,
revela-se enquanto uma ditadura do capital. É o poder deste formando a consciência, isto é, a
superestrutura. Em seu livro A criminologia radical, Juarez Cirino dos Santos, doutor em
Direito Penal e pioneiro da criminologia crítica no Brasil, analisa o papel do Direito, na
sociedade capitalista moderna, concebendo-o como “lei do modo de produção”141 da vida
concreta e objetiva dos indivíduos, que garante a instituição e reprodução ideológica das
relações sociais de classes (relações coletivas de produção) sob a dominação política da
democracia liberal, necessária à própria reprodução dessas relações. Para o autor, as relações
de circulação (mercado) são condicionadas às relações de produção, com a mediação do
Direito abstrato, aparentemente livre e igual:
141
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006, p. 99.
142
Ibid. p. 129.
143
Idem. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008, p. 17.
144
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. Com Introdução de
Edwin Cannan. Tradução: Luiz João Baraúna. Volume II. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 188.
145
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006, p. 12.
54
[...] a avareza e a ambição dos ricos e, por outro lado, a aversão ao trabalho e o amor à
tranquilidade atual e ao prazer, da parte dos pobres, são as paixões que levam a invadir a
propriedade – paixões muito mais constantes em sua atuação e muito mais gerais em sua
influência. Onde quer que haja grande propriedade, há grande desigualdade. Para cada pessoa
muito rica deve haver no mínimo quinhentos pobres, e a riqueza de poucos supõe a indigência
de muitos. A fartura dos ricos excita a indignação dos pobres, que muitas vezes são movidos
pela necessidade e induzidos pela inveja a invadir as posses daqueles. Somente sob a proteção
do magistrado civil, o proprietário dessa propriedade valiosa – adquirida com o trabalho de
muitos anos, talvez de muitas gerações sucessivas – pode dormir à noite com segurança. A
todo momento ele está cercado de inimigos desconhecidos, os quais, embora nunca o tenham
provocado, jamais consegue apaziguar, e de cuja injustiça somente o braço poderoso do
magistrado civil o pode proteger, braço este continuamente levantado para castigar a injustiça.
É, pois, a aquisição de propriedade valiosa e extensa que necessariamente exige o
estabelecimento de um governo civil. Onde não há propriedade, ou, ao menos, propriedade
cujo valor ultrapasse o de dois ou três dias de trabalho, o governo civil não é tão necessário. 146
[...]
A própria Justiça, célebre pela equanimidade
Embora cega não perdera o tato;
Sua mão esquerda, que deveria sustentar a balança,
Deixara-a muitas vezes pender, subornada com ouro;
E, conquanto parecesse imparcial,
Quando se tratava de punição corporal,
Alardeava seguir curso regular
Em assassinatos e todos os crimes violentos,
Porém alguns, primeiro mandados ao pelourinho por desonestidade,
Eram enforcados na própria corda com que haviam sido açoitados.
Contudo, pensava-se, a espada que ela empunhava
Reprimia apenas os pobres e desesperados
Que, impelidos por mera necessidade,
Eram amarrados à árvore dos desgraçados
Por crimes que não mereciam tal destino,
Senão para proteger os ricos e poderosos.147
148
CICERO, Antonio. Op. cit. 158.
149
Loc. cit.
56
[...] a liberdade burguesa não passa de ilusão, pois outorga ao indivíduo uma faculdade que as
contingências da vida coletiva lhe subtraem logo em seguida. Ou subtraem, na maior parte dos
casos, da maioria dos indivíduos. O indivíduo é livre de escolher e determinar sua ação. Mas
quando procura realizar e tornar efetiva essa sua escolha, verifica que as contingências da vida
social determinadas pela livre escolha de outros indivíduos mais bem situados que ele, lhe vão
afunilando a ilimitada liberdade inicial, e tolhendo sua ação até reduzi-la a uma esfera mínima
a que ele se verá inapelavelmente restringindo e condenado.152
150
FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. Organização: Igor César Franco. Versão E-book , p. 197.
151
SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit. p. 108.
152
PRADO Jr., Caio. Op. cit. p. 59.
57
à quantidade de riqueza que dispõe. Contudo, nem mesmo aqueles que pertencem aos setores
mais privilegiados da sociedade civil podem ser considerados indivíduos plenamente livres,
pois se encontram reduzidos a servos da busca desenfreada pelo dinheiro, ainda que seus
grilhões estejam menos apertados, em relação aos dos mais pobres. Essa nova ordem mundial
se define como democrática, mas nada tem a ver com o conceito da palavra “democracia”,
originário da Grécia. Longe de ser um “governo do povo”, a democracia liberal consiste numa
democracia de mercado, em que o Estado moderno se torna forte para atender às
reinvindicações dos sistemas financeiros e aos grandes interesses internacionais, em
detrimento das políticas públicas dirigidas à assistência às demandas reais da população, cujos
direitos vem sendo, progressivamente, cerceados. Em seu livro Por uma outra globalização:
do pensamento único à consciência universal, Milton Santos acrescenta:
Afirma-se, também, que a “morte do Estado” melhoraria a vida dos homens e a saúde das
empresas, na medida em que permitiria a ampliação da liberdade de produzir, de consumir e
de viver. Tal neoliberalismo seria o fundamento da democracia. Observando o funcionamento
concreto da sociedade econômica e da sociedade civil, não é difícil constatar que são cada vez
em menor número as empresas que se beneficiaram desse desmaio do Estado, enquanto a
desigualdade entre os indivíduos aumenta. 153
153
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de
Janeiro: Record, 2008, p. 42.
58
resultados localmente obtidos são menores, seja porque os respectivos agentes são
permanentemente ameaçados pela concorrência das atividades mais poderosas. 154
[...] a proteção de relações sociais desiguais, mediante garantia da relação capital/ trabalho
assalariado, significa proteção dos processos sociais de produção e de circulação de bens
materiais, que determinam a concentração da riqueza e do poder no polo do capital, e a
generalização da miséria e da dependência no polo do trabalho assalariado.159
154
Ibid. p. 35.
155
Loc. cit.
156
Ibid. p. 18.
157
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008, p. 16.
158
Ibid. p. 13.
159
Ibid. p. 17.
59
Hoje, mais do que nunca, muitos escritores, pensadores, jornalistas, pessoas que representam a
liberdade de palavra, estão ameaçados de morte, ostracizados, expulsos do seu país ou, às
vezes, obrigados a se esconder no interior do mesmo, a se autocensurar. Por que tanto exílio
160
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich/ COUTINHO, Carlos Nelson [et. al.]. O Manifesto Comunista 150 anos
depois. Organizador: Daniel Aarão Reis Filho. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 1998, p. 10.
161
ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Tradução: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 113.
60
no exterior e no interior? Por que os escritores, os que inventam formas e trabalham com a
linguagem estão assim tão visados?
A mídia, seja ela estatal ou livre, é controlada por monopólios de interesse comercial, ela é
dirigida pelo mercado.
A mídia é a mediação entre o escritor e o leitor, é um poder que avalia, classifica, sustenta ou
marginaliza e, consequentemente, limita a autonomia de criação. Os escritores começam a só
escrever o que o mercado vai absorver.
A onipotência do mercado exerce um efeito de autocensura, sem falar das censuras ainda mais
graves como as que pesam sobre Salman Rushdie, sobre os escritores que na Índia ou em
outros lugares estão ameaçados de morte.162
162
Entrevista de Jacques Derrida, publicada no jornal Folha de São Paulo, em 26 de junho de 1994, intitulada
Derrida caça os fantasmas de Marx, extraída do site: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/6/26/mais!/24.html.
163
SANTOS, Milton. Op. cit. p. 45.
164
Loc. cit.
165
Ibid. p. 44.
166
Entrevista de Giorgio Agamben, publicada no site http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgio-
agamben, em 30 de agosto de 2012, com tradução de Selvino J. Assmann, e, originalmente, publicada pelo jornal
online italiano Ragusa News, no site http://www.ragusanews.com/articolo/28021/giorgio-agamben-intervista-a-
peppe-sava-amo-scicli-e-guccione, em 16 de agosto de 2012.
61
se no lugar das religiões, no sentido de que ele assume o papel anteriormente exercido por
estas, ao se propor a responder aos mesmos interesses e inquietações, com os quais costumam
lidar as próprias religiões. Em O capitalismo como religião, uma compilação de escritos de
Benjamin, organizada por Michael Löwy, o filósofo de Berlim cita uma passagem de Adam
Heinrich Müller (1779-1829), que evidencia o caráter escravagista da economia de mercado,
relacionado, justamente, à ideia de uma liberdade abstrata, ilusória, que, na realidade,
aprisiona os indivíduos submetidos à religião do capital:
Escravidão financeira, [...] o tipo de escravidão reinante no momento, é o pior tipo porque está
associada a sentimentos mentirosos de suposta liberdade. Dá no mesmo se me submeto de
uma vez por todas ou se dia após dia se estreitam todas as minhas condições de vida até que eu
mesmo me submeto; dá no mesmo se me vendo de uma vez por todas ou diariamente; em vez
de se apropriarem do meu corpo e, em consequência, do cuidado por ele, tomam agora apenas
o essencial, a sua força, e, gargalhando, deixam o resto do esqueleto inútil à minha
disposição.167
Se, para Antonio Cicero, o jovem Marx (até 1843) teria herdado a posição anti-
individualista de Hegel, e que o individualismo, de fato, constitui um grande adversário do
comunismo, Marcuse, por outro lado, afirma que “são, pois, os indivíduos livres, e não um
novo sistema de produção, que testemunham que se fundiram os interesses comuns e
particulares. O indivíduo é a meta. Esta tendência “individualística” é uma característica
fundamental da filosofia marxista”168. Com a conciliação do interesse de cada indivíduo com
o de todos, a partir da abolição da propriedade privada dos meios de produção, tem-se uma
“nova forma de individualismo”169:
[...] tão logo sejam abolidas as classes e efetivado o interesse do todo na existência de cada
indivíduo, porque, então, “Não é mais necessário representar um interesse particular como
geral, ou o “interesse geral” como dominante”. O indivíduo se torna o sujeito efetivo da
história, de tal maneira que ele mesmo é o universal e manifesta a “essência universal” do
homem.
O comunismo, com sua “abolição positiva da propriedade privada” é, pois, por sua própria
natureza uma nova forma de individualismo, e não somente um novo e diferente sistema
econômico, mas um sistema diferente de vida. O comunismo é a “apropriação real
(Aneignung) da essência do homem, pelo e para o homem, sendo portanto o retorno consciente
do homem... a si mesmo como um ser social, isto é, como um a ser humano”.
167
BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Organização: Michael Löwy. Tradução: Nélio Schneider
e Renato Ribeiro Pompeu. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 73.
168
MARCUSE, Herbert. Op, cit. p. 245.
169
Ibid. p. 247.
62
Acredito que, para entendermos o que estamos habituados a chamar de “situação política”,
devemos levar em conta o fato de que a sociedade em que vivemos talvez já não seja uma
sociedade política. Um fato como esse nos obriga a mudar completamente nossa semântica.
Assim, tentei mostrar que, na Atenas do século V a.C., a democracia começa com uma
politização do status de cidadão. O fato de alguém ser cidadão em Atenas é um modo ativo de
vida. Hoje, em muitos países da Europa, assim como nos Estados Unidos, onde as pessoas não
vão votar, o fato de ser cidadão é algo indiferente. Talvez na Grécia isso valha em menor
medida, pois, pelo que sei, aqui ainda existe algo que se assemelha a uma vida política.
Atualmente, o poder tende a uma despolitização do status de cidadão. O que é interessante
numa situação tão despolitizada é a possibilidade de uma nova abordagem da política. Não
podemos ficar presos às velhas categorias do pensamento político. Urge arriscar, propor
categorias novas. Sendo assim, se no final se verificar uma mudança política, talvez ela será
mais radical do que antes.
Mas essa despolitização, por outro lado, pode abrir espaço para um novo
questionamento acerca da política, cuja relevância, como destaca Milton Santos, está no fato
de ser a “arte de pensar as mudanças e de criar as condições para torná-las efetivas”171. Diante
disso, Agamben afirma que “se quisermos propugnar a democracia, devemos pensar algo que
não tenha relação alguma com aquilo que hoje se chama democracia. Atualmente, a
democracia é uma técnica do poder – uma entre outras”. Portanto, longe de ser efetivamente
libertária, ela não passa de “mera técnica de administração que se baseia em pesquisas de
opinião, nas eleições, na manipulação da opinião pública, na gestão dos meios de
comunicação de massa, etc.”. Sob a tirania do dinheiro e da informação – do poder da mídia –
, a economia capitalista liberal é regida pelo despotismo do consumo e por uma espécie de
“ética da competitividade”172 que, segundo Milton Santos, além de conduzirem ao
170
Entrevista de Giorgio Agamben, intitulada “A democracia é um conceito ambíguo”, realizada em Atenas, em
17 de novembro de 2013, e publicada em italiano na revista eletrônica no Doppiozero, em março de 2014.
A tradução é de Selvino J. Assmann, para o blog da editora Boitempo. Disponível para acesso no site
https://blogdaboitempo.com.br/2014/07/04/agamben-a-democracia-e-um-conceito-ambiguo/, desde 04 de julho
de 2014.
171
SANTOS, Milton. Op. cit. p. 14.
172
Ibid. p. 46-47.
63
As classes chamadas superiores, incluindo as classes médias, jamais quiseram ser cidadãs; os
pobres jamais puderam ser cidadãos. As classes médias foram condicionadas a apenas querer
privilégios e não direitos. E isso é um dado essencial do entendimento do Brasil: de como os
partidos se organizam e funcionam; de como a política se dá, de como a sociedade se move. E
aí também as camadas intelectuais têm responsabilidade, porque trasladaram, sem maior
imaginação e originalidade, à condição da classe média europeia, lutando pela ampliação dos
direitos políticos, econômicos e sociais, para o caso brasileiro e atribuindo, assim, por
equívoco, à classe média brasileira um papel de modernização e de progresso que, pela sua
própria constituição, ela não poderia ter.175
Há uma passagem de A ideologia alemã, citada por Antonio Cicero, em que Marx
conceitualiza a divisão do trabalho na sociedade comunista, como aquela capaz de
proporcionar a ampliação e o desenvolvimento das forças produtivas de tal modo que a
produção “multiplicada, que nasce da cooperação dos diversos indivíduos”176, sem os
obstáculos da acumulação do capital, da propriedade privada e da competitividade, já
173
Ibid. p. 47.
174
Ibid. p. 49.
175
Ibid. p. 49-50.
176
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus
representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846).
Supervisão Editorial: Leandro Konder. Tradução: Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano.
Texto final: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 38.
64
superados da economia burguesa liberal, se torne abundante e, por conseguinte, possa facultar
ao indivíduo a redução de sua jornada de trabalho e o aumento de seu tempo livre, para se
dedicar a atividades de sua livre escolha, sem coação externa, permitindo, assim, o
desenvolvimento e a manifestação de todas as suas capacidades, potencialidades criativas e
aptidões, sem a necessidade de se especializar em qualquer uma dessas atividades. Eis o
referido trecho:
[...] na sociedade comunista, onde cada um não tem um campo de atividade exclusivo, mas
pode aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe agradam, a sociedade regula a produção geral e
me confere, assim, a possibilidade de hoje fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã,
pescar à tarde, à noite dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de
acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne caçador, pescador, pastor ou
crítico.177
Com esse trabalho associado, “que nasce da cooperação dos diversos indivíduos
condicionada pela divisão do trabalho”, trabalhar deixa de ser uma imposição externa ao
homem, e passa a ser a realização de algo inerente a ele, até porque, como revela o autor, “a
própria cooperação não é voluntária mas natural”178. No entanto, embora o trabalho, na
sociedade comunista, seja efetivamente livre e emancipado, ele ainda se mantém como uma
atividade absolutamente essencial à existência dos homens, “independente de todas as formas
sociais, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e,
portanto, da vida humana”179. O trabalho associado consiste, então, na forma de trabalho mais
livre, justa e humana possível, “com o menor dispêndio de energias e nas condições mais
adequadas e condignas com a natureza humana”180, mas ele não representa a mais livre
atividade humana viável. Segundo Antonio Cicero, a descrição de uma sociedade, onde, além
do trabalho comum, o indivíduo pode, à sua livre escolha, por exemplo, “caçar pela manhã,
pescar à tarde”, cuidar do gado à noite, fazer crítica depois do jantar, compõe “um quadro
extremamente atraente”181. Todavia, o poeta-filósofo argumenta que para realizar todas essas
atividades, “não é necessário nem possível controlar inteiramente, de modo consciente, as
condições de produção que, em última instância permitem isso” 182. Para ele, o indivíduo real
177
Loc. cit.
178
Ibid. p. 38.
179
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. Tradução:
Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 167.
180
Idem. O capital: crítica da economia política. Livro III: O processo de produção do capital. Tradução:
Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vol. VI, 1971b, p. 942.
181
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 148.
182
Loc. cit.
65
que vive como deseja, livre de qualquer imposição, é exatamente o homem que se vê livre da
própria necessidade do trabalho, libertando-se do que Marx denomina de “reino da
necessidade”183. Esse indivíduo, genuinamente livre, é “o ser humano que se livrou da
obrigação de se preocupar com a sua própria sobrevivência. Sua liberdade consiste no fundo
justamente na liberdade negativa de não ser constrangido a labutar para sobreviver e de não
ser obrigado por outras pessoas a fazer o que não quer”184. É desde o “reino da necessidade”
que se atinge o “reino da liberdade”. Este tem início quando “o trabalho deixa de ser
determinado por necessidade e por utilidade exteriormente imposta; por natureza, situa-se
além da esfera da produção material propriamente dita”185. No entendimento de Marx, é por
intermédio do trabalho que o homem se torna humano, pois consegue agir sobre o meio em
que vive, transformando as forças da natureza de acordo com as suas possibilidades, e
produzindo seus próprios meios de subsistência e o seu modo de viver em sociedade. O
homem se constitui enquanto tal, a partir da forma como produz as condições materiais de sua
existência. E essa produção não se realiza de maneira individualizada, mas coletiva, através
das relações sociais, da interação das atividades exercidas pelos indivíduos. A liberdade
humana, nesse sentido, para os marxistas, consiste na afirmação do trabalho, que é uma
atividade essencialmente humana, como observa Lukács:
Precisamente essa ligação do reino da liberdade com sua base sóciomaterial, com o reino
econômico da necessidade, mostra como a liberdade do gênero humano é o resultado de sua
própria atividade. A liberdade, bem como sua possibilidade, não é algo dado por natureza, não
é um dom concedido a partir do alto e nem sequer uma parte integrante – de origem misteriosa
– do ser humano. É o produto da própria atividade humana, a qual, embora sempre engendre
concretamente algo diferente daquilo que se propusera, termina por ter consequências que
ampliam, de modo objetivo e contínuo, o espaço no qual a liberdade se torna possível [...].186
Se, para Antonio Cicero, o homem livre, que consegue viver “como lhe apraz”, sem
“ser obrigado por outras pessoas a fazer o que não quer”, é, propriamente, aquele que se
libertou do “reino da necessidade”, isto é, da obrigação de trabalhar para a sua própria
sobrevivência, o poeta-filósofo parece dialogar com a fala de Agamben, numa entrevista
deste, intitulada “O pensamento é a coragem do desespero”, concedida à revista cultural
francesa Télérama, ao declarar que “a insistência no trabalho e na produção é uma maldição”.
183
MARX, Karl. Op. cit. p. 942.
184
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 149.
185
MARX, Karl. Op. cit. p. 942.
186
LUKÁCS, György. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Tradução: Carlos Nelson Coutinho e José
Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007, p.241.
66
A vida humana é inoperosa e sem objetivo, mas é justamente essa argia e essa ausência de
objetivo que tornam possível a operosidade incomparável da espécie humana. O homem se
devotou à produção e ao trabalho, porque em sua essência é privado de obra, porque é por
excelência um animal sabático.187
O que define o homem como ser humano não é a atividade operacional, o trabalho,
como acreditava Marx, mas a sua inoperância: “O ser humano é o animal que não tem
trabalho”. O homem tem a potencialidade de fazer tudo e, ao mesmo tempo, a possibilidade
de não fazê-lo. O poder não fazer e não agir garante infinitas possibilidades do fazer e do agir.
A potência permite ao homem, também, a sua própria impotência. Mas, tornar impotentes,
inoperantes as funções especificamente humanas acaba por abri-las a outras possibilidades de
usos. A inoperosidade afirma-se como a potência do fazer e do agir. Segue o trecho da
entrevista mencionada:
187
AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo: homo sacer,
II. Tradução: Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 268.
67
mesmo se a humanidade tem uma tarefa. O trabalho do flautista é tocar a flauta, e o trabalho
do sapateiro é fazer sapatos, mas há um trabalho do homem como tal? Ele então desenvolveu a
sua hipótese segundo a qual o homem, talvez, nasce sem qualquer tarefa, mas ele logo
abandona este estado. No entanto, esta hipótese nos leva ao cerne do que é ser humano. O ser
humano é o animal que não tem trabalho: ele não tem tarefa biológica, não tem uma função
claramente prescrita. Só um ser poderoso tem a capacidade de não ser poderoso. O homem
pode fazer tudo, mas não tem que fazer nada. 188
188
Entrevista de Giorgio Agamben publicada, originalmente em francês, no site da revista cultural francesa
Télérama, http://www.telerama.fr/idees/le-philosophe-giorgio-agamben-la-pensee-c-est-le-courage-du-
desespoir,78653.php, em 10 de março de 2012, e atualizado em 16 de março de 2012; em inglês, no blog da
editora Verso Books, http://www.versobooks.com/blogs/1612-thought-is-the-courage-of-hopelessness-an-
interview-with-philosopher-giorgio-agamben, em 17 de julho de 2014; e em português, com tradução de Pedro
Lucas Dulci, para o jornal eletrônico Outras Palavras, em 09 de julho de 2014, intitulada “Giorgio Agamben: o
pensamento como coragem de transformação”, no site http://outraspalavras.net/posts/giorgio-agamben-
pensamento-como-coragem-de-transformacao/; e para o blog da Editora Boitempo, em 28 de agosto de 2014,
intitulada “Agamben: o pensamento é a coragem do desespero”, no site
https://blogdaboitempo.com.br/2014/08/28/agamben-o-pensamento-e-a-coragem-do-desespero/
189
AGAMBEN, Giorgio. Op. cit. p. 268.
190
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução: Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.D.
Ross. Poética. Tradução, comentários e índices analítico e onomástico: Eudoro de Souza. Seleção de textos: José
Américo Motta Pessanha. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 15.
191
Ibid. p. 16.
192
AGAMBEN, Giorgio. Op. cit. p. 268.
68
Pois, se supomos que o homem concebe sua impotência porque compreende alguma coisa
mais potente que ele, delimitando, por esse conhecimento, sua própria potência de agir, então
não estamos senão concebendo que o homem compreende a si próprio distintamente, ou seja
[...], que sua potência de agir é estimulada.
193
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 156.
194
AGAMBEN, Giorgio. Op. cit. p. 11.
195
Ibid. p. 273.
196
Loc. cit.
197
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 191.
69
198
AGAMBEN, Giorgio. Op. cit. p. 273.
199
Ibid. p. 274.
200
Loc. cit.
70
e por ele, puramente dizível”. Assim como a poesia, nesse sentido, opera em nome da
potência do dizer, para o filósofo italiano, a política e a filosofia devem atuar em nome da
potência do agir, pois “tornando inoperosas as operações econômicas e biológicas, elas
mostram o que pode o corpo humano, abrindo-o para um novo, possível uso”.
Considerando a declaração de Spinoza, em sua Ética, de que “[...] a verdadeira
potência de agir do homem, ou seja, a sua virtude, é a própria razão, [...], a qual o homem
considera clara e distintamente”201, talvez Antonio Cicero pudesse dizer que a verdadeira
potência de agir do homem é a apócrise, que é, justamente, a essência da razão. Partindo do
princípio de que a concepção moderna ou apocrítica do mundo é a única absolutamente
verdadeira, científica e racional, o princípio da modernidade se encontra na apócrise que é um
“modo de ser da modernidade: o modo através do qual a modernidade se revela para si
mesma”202. Se a apócrise é a concepção moderna do mundo, conforme sustenta o poeta-
filósofo, a modernidade só se revela depois que se dá a apócrise, uma vez que esta consiste na
cisão do ser, isto é, na “autocesura” da negação negante, que é a essência do ser. Por meio
dessa disjunção, o ser se fragmenta, necessariamente, em dois polos inconciliáveis, sendo um
a negação do outro: o noético-ontológico e o onto-noemático. Através dessa autocesura, a
negação negante (ou polo noético-ontológico) se separa da negação negada (ou polo onto-
noemático). Apesar de a modernidade constituir o polo noético-ontológico, que não é
histórico, mas a-histórico, ela apenas se manifesta historicamente, pois depende da realização
da apócrise que, por sua vez, somente se revela ou não, mediante condições históricas ou
onto-noemáticas capazes de possibilitar ou inviabilizar a sua ocorrência. Segundo Antonio
Cicero, há duas modernidades, uma essencial e outra acidental. A primeira é concebida
enquanto essência do “agora constante, nunc stans”, negação negante, o agora que se revela
sempre o mesmo e, de acordo com a tabela apocrítica, possui as atributividades pertencentes
ao polo noético-ontológico. Já a segunda é pensada como o agora acidental, fluente, “nunc
fluens”, o agora que é sempre outro, negação negada, e encerra as atributividades relativas ao
polo onto-noemático. A modernidade acidental é o tempo presente, portanto, “não passa da
contemporaneidade, que consiste na propriedade de ser do mesmo tempo” 203. O
contemporâneo é definido pelo poeta-filósofo como tudo aquilo “que é – acidental,
contingente, passageiramente – apresentável ou presentificável à essência do agora” 204. Ele é,
justamente, tudo o que compõe o polo onto-noemático. Por outro lado, a modernidade
201
SPINOZA, Benedictus de. Op. cit. p. 190.
202
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 162.
203
Loc. cit.
204
Ibid. p. 163.
71
essencial nada tem a ver com o presente ou o contemporâneo. Ela é o não presente, o não
contemporâneo, logo “a concepção moderna do mundo é portanto absolutamente
incompatível com a idolatria do contemporâneo”205. Em virtude de ser a essência do agora,
isto é, ao se tratar de algo atemporal, a modernidade enquanto agoralidade, segundo Antonio
Cicero, não pode ser superada por uma “pós-modernidade”, porque isso significaria torná-la
um ente datável, reduzindo-a a uma instância positiva, ao polo onto-noemático, o que
determinaria uma catácrase catabásica: “A modernidade acidental não pode ser “superada”
senão por outra modernidade acidental, como o agora acidental somente é “superado” por
outro agora acidental. A modernidade essencial é sempre a mesma, como o agora essencial é
sempre o mesmo”206. Desse modo, a concepção moderna do mundo, igualmente, não pode ser
ultrapassada, pois seria como ir além da negação negante ou da apócrise, que é a essência da
razão. Para o poeta-filósofo, o que se encontra além da apócrise é somente a catácrase.
Ao final do quinto capítulo de O mundo desde o fim, Antonio Cicero estabelece uma
relação entre o moderno e o que se entende por novidade. O moderno é definido por ele não
como “simplesmente o novo, mas o que toma seja o agora fluente seja o agora constante, logo
a apócrise, como ponto de referência”207. Isso quer dizer que todas as formas e valores
tradicionais – religiosos, morais ou políticos –, enquanto positividades, são apreendidos como
contingentes, acidentais e passageiros. É por intermédio da apócrise que a criação de novidade
pode ser reconhecida em sua importância, ao contrário do que acontece “em culturas não
modernas, em que o absoluto é a tradição, os costumes, o monarca, a religião ou o Deus
positivo”208. Ao se tomar a apócrise como ponto de referência, no mundo moderno, a tradição
é relativizada, dessacralizada, e a novidade é produzida não mais para simplesmente aniquilar
as formas tradicionais, pois “com a relativização – a desfetichização e desauratização – dessas
formas, a produção de novidades se revela como produção de formas culturais adicionais ou
alternativas, num processo em princípio equivalente ao que originalmente produziria aquelas
formas tradicionais”209. Por esse motivo, o moderno não é meramente o novo, mas o que
considera tanto o tempo presente, o contemporâneo, o agora que é sempre outro, acidental,
relativo e contingente, quanto o agora que é sempre o mesmo, constante, necessário, essencial
e eterno. A modernidade apocrítica de Antonio Cicero retoma o conceito da modernidade
baudelairiana, na medida em que o moderno (ou agoral) constitui esse espaço ambíguo que
205
Ibid. p. 163.
206
Ibid. p. 164.
207
Loc. cit.
208
Ibid. p. 165.
209
Ibid. p. 165-166.
72
Friedrich Nietzsche
210
NIETZSCHE, Friedrich. “Prefácio”. Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e do inconveniente da
história para a vida. Tradução: Antônio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2008, p. 17.
211
De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss, ‘contemporâneo’ é definido como: “1. (o) que
viveu ou existiu na mesma época; 2. (o) que é do tempo atual”.
212
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 15.
213
Ibid. p. 171-175.
214
Ibid. p. 171.
74
[...] O contemporâneo ou presente, enquanto positivo e particular, não passa de uma entre
inúmeras possibilidades. [...] A negação do contemporâneo e presente, por outro lado, é
necessária, essencial, absoluta. [...] Agora não é em primeiro lugar um mundo determinado
mas a indeterminação tenebrosa que gera e traga os mais esplêndidos mundos. Do possível e
da mudança, quer dizer, da negação, surgem agora mesmo outras realidades, diferentes das
que me são contemporâneas. Estas mesmas, que agora se me dão, são produtos da negação
passada. Toda positividade pode ser tomada como negação negada, produto da negação
negante que, ao negar-se a si própria, transforma-se no seu oposto. Mas não posso deixar de
observar que eu mesmo faço parte do agora. Por um lado, sou corpo, quer dizer, positividade
contingente, acidental e relativa, isto é, produto, negação negada, mas, por outro lado, sou
também possibilidade e mudança, imaginação e liberdade, isto é, negatividade. E
enquanto negação negante ou natura naturans e não enquanto positividade ou natura
naturata que sou parte essencial do agora, centro e fonte do mundo.217
215
Ibid. p. 173.
216
Loc. cit.
217
Ibid. p. 173-174.
218
Ibid. p. 175.
75
219
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó: Argos, 2009, p. 55.
220
Ibid. p. 58.
221
Loc. cit.
222
Loc. cit.
223
DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le temps. Paris: Lês Éditions de Minuit, 2000.
224
AGAMBEN, Giorgio. Op. cit. p. 58.
76
Essa não coincidência, essa discronia, não significa, naturalmente, que contemporâneo seja
aquele que vive num outro tempo, um nostálgico que se sente em casa mais na Atenas de
Péricles, ou na Paris de Robespierre e do marquês de Sade do que na cidade e no tempo em
que lhe foi dado a viver. Um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe, em todo
caso, que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que não pode fugir ao seu tempo.
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este
e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo
que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito
plenamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não
podem manter fixo o olhar sobre ela225.
Acho que a poesia – principalmente a poesia escrita – jamais teve grande capacidade de influir
no mundo contemporâneo a ela. A meu ver, seu sentido não é intervir no mundo, mas facultar
àquele que frui o acesso a outras dimensões do ser, que não a dimensão pragmática, utilitária,
instrumental, em que necessariamente passamos a maior parte das nossas vidas.
225
Ibid. p. 59.
226
Entrevista de Antonio Cicero intitulada “Antonio Cicero, um homem entre a razão e a poesia”, concedida ao
jornal Tribuna do Norte, publicada em 15 de novembro de 2012, disponível para acesso no site:
http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/antonio-cicero-um-homem-entre-a-razao-e-a-poesia/236652
77
227
Ibid. p. 61.
228
Ibid. p. 62.
229
Ibid. p. 63.
230
Ibid. p. 63-64.
78
convocá-lo, afetando-o mais efetivamente do que as próprias luzes. Com isso, o autor afirma:
“contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu
tempo”.231
Retomando a ideia de que a experiência da contemporaneidade implica uma adesão ao
atual e, ao mesmo tempo, um afastamento dele, pode-se considerar que o presente não se
torna apenas distante, mas inalcançável a todos. Através do movimento de anacronismo, o
tempo presente ainda não se constitui como tal e está sempre a ponto de vir a ser. O sujeito
fixa o olhar em sua época, a fim de avistar o escuro desta, ou melhor, as luzes emitidas pelo
tempo em sua direção que, no entanto, não conseguem ser percebidas, porque simplesmente
não chegam. Propondo uma terceira definição a respeito da contemporaneidade, Agamben
evidencia que ser contemporâneo exige do poeta/artista a atitude heroica de perceber na treva
de seu tempo, uma luz que, embora jamais possa alcançá-lo, continuará partindo eternamente
em sua direção. É aquele capaz de construir sentidos, a partir dos destroços de um mundo
contingencial e fragmentado. Consegue avistar, nas ruínas do passado, a vitalidade infinita do
presente e, nas sombras de seu tempo, reconhece a luz que provém deste. Percebe que a
tentativa de apreender toda essa virtualidade infinita, em uma forma informe permanente,
remete à sua própria impossibilidade. Torna-se consciente de que seu trabalho será
infinitamente recomeçado e mesmo assim, continua.
Se, para ser contemporâneo, o poeta/artista deve aderir às circunstâncias efêmeras do
presente e afastar-se, ao mesmo tempo, destas, através de uma defasagem, de um
anacronismo, pode-se afirmar que a atualidade encerra algo de inatual, de intempestivo. A
partir desta relação entre o contemporâneo e o tempo passado, Agamben sugere a quarta e
última definição de contemporaneidade: “[...] ser contemporâneo significa, nesse sentido,
voltar a um presente em que jamais estivemos”.232 Como a contemporaneidade implica essa
defasagem, uma certa quebra233, há no interior da própria atualidade uma parte que
corresponde ao fora dela, o arcaico. Dentro do presente, coexistem o que já não é mais e o
tempo de algo que ainda está por vir a ser. O autor estabelece uma comparação entre a
contemporaneidade e a moda, ressaltando que esta, assim como aquela, comporta dentro de si
múltiplos tempos, sendo capaz de revitalizar, trazer à tona, o que, algum dia, tornara
ultrapassado ou definitivamente acabado.
231
Ibid. p. 64.
232
Ibid. p. 70.
233
Ibid. p. 71.
79
234
Ibid. p. 69.
235
Ibid. p. 71.
236
Ibid. p. 72.
80
[...] Pois o que é o enjambement senão a oposição entre um limite métrico e um limite
sintático, uma pausa prosódica e uma pausa semântica? Portanto, será chamado poético o
discurso no qual essa oposição for, pelo menos virtualmente, possível, e prosaico aquele no
qual não puder haver lugar para ela.
[...] Todos os institutos da poesia participam dessa não coincidência, desse cisma entre som e
sentido: e a rima não menos do que a cesura. Pois o que é a rima senão o descolamento entre
um evento semiótico (a repetição de um som) e um evento semântico, que induz a mente a
requerer uma analogia de sentido lá onde nada pode encontrar além de uma homofonia?
O verso é o ser que reside nesse cisma [...]. E o poema é um organismo que se funda sobre a
percepção de limites e terminações, que definem – sem jamais coincidir completamente e
quase em oposta divergência – unidades sonoras (gráficas) e unidades semânticas. 239
237
AGAMBEN, Giorgio. “O fim do poema”. Tradução e Notas: Sérgio Alcides. In: Revista Cacto: poesia e
crítica. n. 1. São Bernardo do Campo : Alpharrabio, 2002, p. 142.
238
Loc. cit.
239
Ibid. p. 142-143.
81
240
Ibid. p. 143. O termo versura (do latim versus) tem sua origem nas práticas agrícolas e consiste no lugar exato
onde o arado faz o retorno, ao fim do sulco, entre uma plantação e outra.
241
CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 21.
82
O olhar percebe as flores que transbordam do vaso sobre a mesa. O colorido delas é
tão intenso que quase as liberta da tela, fazendo-as saltar para o mundo de fora da paleta da
pintura. Como uma “hesitante abelha”, o olhar segue “pousando” em cada detalhe da cena: no
jarro d’água, no lenço jogado sobre a toalha bordada da mesa e, do lado oposto da tela, em
uma mulher, cujos olhos parecem ignorar o observador, “atraídos talvez por algo/ que se acha
fora não somente do quadro/ em que ela se encontra, mas também daquele/ em que nos
perceberia, se quisesse”.
De repente, a interrupção sonora ao fim do décimo sétimo verso conduz o leitor a lê-
lo, inicialmente, com um dos sentidos que o próprio poema estabelece ao interrompê-lo: “Sem
saber por que, o olhar não mais a quer”. Em um primeiro momento, o olhar parece querer
abandonar a mulher ou, talvez, a própria tela, uma vez que a remissão anafórica realizada por
meio do pronome oblíquo átono “a” não deixa isso claro. O poeta não conclui o verso, e
instaura uma intensa pausa métrica que suspende o sentido e aponta para uma não
coincidência entre unidades sonoras e semânticas. Ao buscar seu complemento na linha
seguinte, o verso retorna ao início do outro, revelando algo de inusitado: “Sem saber por que,
o olhar não mais a quer/ largar”. O que antes introduziria a ideia de um não querer, agora se
revela como um intenso desejo permanente de contemplação. O olhar observador não quer
mais se desviar, e na mesma linha, o próximo verso parece indicar a resposta à dúvida
colocada pelo pronome: “Diga-se a verdade: essa mulher”. No entanto, sem pontuação final
demarcando o limite do verso, este é novamente interrompido, sendo necessário o seu
transbordamento sobre o outro seguinte, a fim de encontrar neste o prolongamento sintático, a
sua completude semântica: “Diga-se a verdade: essa mulher/ deixa a desejar”. Então, o olhar
não mais quer largar algo na tela que o desperta, o atrai, mais do que a mulher, pois esta, na
verdade, “deixa a desejar”. Ela não se compara à beleza e à exuberância dos crisântemos “que
lhe deram a fama/ a que mal faz jus, já que se encontra à margem/ do quadro, e nem sequer
inteira, só em parte”, como diz o poeta. E o olhar observador, atento à pintura, mal mergulha
na “vertiginosa superfície” da mulher, uma vez que “Dela está mais presente ali a ausência
que a presença”.
A tensão do enjambement também pode ser assinalada em “O poeta cego”242. Neste,
desprovido de sua própria individualidade e de tudo que definiria sua existência pessoal, o
poeta cego, abandonado por seu ego e por seu ser, mesmo “sem ser nem ver”, verseja:
242
Ibid. p. 13.
83
Se não é o poeta quem se vê em seus versos, o que, então, neles se vê? [...], não é mais o poeta
quem “talvez se veja” nos versos escritos, mas sim o que, “diverso de tudo o que seja”, diverso
de tudo que existe no mundo antes de o poema vir a ser, distinto de tudo que preexiste ao
poema, só pode almejar ser no próprio poema, seu lugar de nascimento e vida. Na noite da
84
criação poética, o poema, almejando ser, que nascer arrastando consigo tudo que ele,
nascendo, quer fazer nascer, porque, como ele, almeja ser. O sujeito dessa segunda estrofe não
é, como numa primeira leitura pode parecer, o poeta, mas justamente tudo, “tudo que almeja
ser”: bem antes do amanhecer, na noite da criação poética, em que as individualidades não
aparecem em suas especificidades, nos versos do poeta que verseja por nada ser tudo que
almeja ser, vendo-se enquanto linguagem poética, talvez ali se veja diverso de tudo que seja. 243
243
PUCHEU, Alberto. Antonio Cicero por Alberto Pucheu. Coleção Ciranda da Poesia. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2010, p. 39.
244
CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 77.
245
Idem. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 232.
85
o não dito, ou melhor, para todas as possibilidades do dizer, o lugar da pura potência. No
espaço da não identidade entre o semiótico e o semântico, oferta-se um sentido possível e, ao
mesmo tempo, um outro que está sempre na iminência de se compor.
Se o verso é aquele que se manifesta, justamente, nessa cisão, no intervalo entre o ser
e o quase ser, no lugar de um “já” e, simultaneamente, de um “ainda não”246, os institutos
poéticos determinam a tensão entre o dito e o não dito do poema. O enjambement é entendido
por Agamben como uma fissura em que, desde o sentido ofertado pelo poema, o leitor/crítico
é convocado a deslocá-lo, radicalmente, para o campo de um não sentido, onde tudo o que há
é um silêncio misturado a ruídos com a pura abertura de sentido, o desdobramento infinito do
dizer. A versura do enjambement, ao lado da cesura, representa os momentos fraturados no
poema, em que o silêncio pode aparecer. Cabe, portanto, ao poeta/crítico/leitor o trabalho
corajoso de dar voz a esse silêncio, ao não dito, ou, de acordo com Agamben, à linguagem.
Se o inaudito vem à tona desde o dito, pode-se afirmar que o contemporâneo não adere
às contingências históricas de sua época, mas é a partir de uma não adequação, de uma
divergência com o seu próprio tempo, que ele se torna capaz de fazer emergir o não histórico,
o não vivido, o anacrônico. Essa defasagem do presente com a atualidade – da história
consigo mesma –, produz a história e faz dela não um único mundo como possibilidade.
Através de uma força de uma a-historicidade radical em tudo o que há, a história é concebida
enquanto passagem, mudança, e não como uma sucessão de tempos cronológicos. Atualizar o
passado sob um olhar situado no presente, não significa o retorno do vivido, mas a
experimentação do não vivido.
Em seu livro Infância e história, à luz das referências teóricas de Émile Benveniste,
acerca das noções de subjetividade na linguagem e apropriação, desde a enunciação, e das
teses sobre a experiência e o conceito de história, de Walter Benjamin, Agamben parte da
constatação de que o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência, isto é, de sua
capacidade de fazer e ter experiência, em meio ao projeto que estrutura a ciência moderna. O
autor propõe uma aproximação entre a experiência e a linguagem, uma vez que o homem não
nasce um ser falante e nem se constitui apenas como um ser que fala, um “locutor”247, mas se
afirma, enquanto sujeito, na linguagem e por intermédio dela. Por essa razão, o homem tem
uma “in-fância”248, um lugar anterior à palavra, uma experiência originária que antecede o
246
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó: Argos, 2009, p. 66.
247
Idem. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Tradução: Henrique Burigo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 56.
248
Ibid. p. 58.
86
249
Ibid. p. 59.
250
Ibid. p. 56.
251
Ibid. p. 62.
252
Ibid. p. 67.
253
Ibid. p. 64.
254
Ibid. p. 65.
87
tempo linear, mas é, na sua essência, intervalo, descontinuidade, epoché. Aquilo que tem na
infância a sua pátria originária, rumo à infância e através da infância, deve manter-se em
viagem”. O homem só se torna capaz de falar, na medida em que transforma a língua pura em
discurso, o semiótico em semântico, a natureza em história. Ele precisa, necessariamente,
expropriar-se da infância, para constituir-se enquanto sujeito da linguagem. Contrapondo-se à
máquina metafórica de Lévi-Strauss que, no entendimento de Agamben, transforma a
linguagem humana, o discurso, em pura língua, em “língua pré-babélica”255, a história em
natureza, “a máquina da infância”, de acordo com o autor de Homo sacer, opera de modo
contrário, ao transformar a língua pura pré-babélica em linguagem humana, discurso, a
natureza em história.
Retornando à atuação da versura do enjambement no poema, em que o sentido
inicialmente ofertado pela cisão ao fim do metro, precisa ser suspenso, negado, esquecido por
um momento, para o verso lançar-se ao abismo, à origem de todo e qualquer sentido,
Agamben busca assegurar a lembrança do que jamais fora vivido, do nunca pensado, do
indizível. Esquecer, para o filósofo italiano, consiste em retornar à origem das significações,
do pensamento, da linguagem, fazendo erguer diante do leitor uma simultaneidade de tempos
heterogêneos, sempre, no entanto, por meio de uma diferença. O
poeta/artista/crítico/filósofo/leitor/espectador deve salvaguardar não um dito qualquer do
passado, mas o não dito, assegurando na memória o próprio esquecimento. Por isso, ao lidar
com tudo o que se pode criar desde o já criado, a leitura é obrigatoriamente geradora de
sentidos. Ler é resguardar o não dito da obra, a pura potência do dizer, portanto, uma tarefa
infinitamente recomeçada e, sobretudo, criadora. Enquanto o contemporâneo estiver sendo
dito, portando ainda algum sentido que lhe possa ser atribuído, ele não se manifesta.
Contemporâneo é, justamente, o indizível da linguagem. É estar no tempo e assegurar o fora
dele, pois aquele que se identifica por inteiro com sua época não pode ser definido como
contemporâneo. Além disso, é garantir a inacessibilidade do objeto estético, a fim de que este
possa experimentar uma possibilidade de abertura para uma infinitude de dizeres, ou em
outras palavras, uma reinvenção permanente da linguagem.
255
Loc. cit.
88
256
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Prefácio: Affonso Romano de Sant’Anna. 40.ed. Rio de
Janeiro: Record, 2008, p. 48-49. Versos extraídos do poema “Passagem da noite”.
257
CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 35.
89
Os mitos são entendidos por Antonio Cicero não como uma simples referência aos
gregos, à cultura clássica antiga, mas representam um modo de dizer a linguagem,
desancorada de qualquer fundamento do próprio real. Remetem-se ao vazio do sentido, ou
melhor, à origem do pensamento. Aquilo que se guarda de Helena é tão simplesmente o
nome, esvaziado de sentido e sem referências que o fundamentem fora dele mesmo, e não
mais a possibilidade de um retorno da imagem da mulher mítica. O mito sustenta-se não por
uma tradição mitológica de um passado glorioso, mas na linguagem, na ausência de
fundamento, no pré-dito, no nada, conforme o dizer do poeta: “[...] sê por um bom tempo o
que te tente/ e para sempre nada: não pregues/ coisa alguma no lugar do nada”.
Convém ressaltar também o poema “Deus ex machina”, em que, a partir da defasagem
da atualidade consigo mesma, da fratura do agora, as “figuras mitológicas” retornam ao
presente enquanto linguagem e não se sustentam mais na realidade, nas contingências
acidentais e positivas da própria história. Situam-se, justamente, nessa fenda do tempo, no
campo do potencial, onde tudo se encontra na pura iminência de se constituir como tal:
258
Ibid. p. 23.
259
Ibid. p. 35.
90
O poema, enquanto forma contingencial, transitória e finita, descobre nele mesmo uma
saída para trazer à tona uma ilimitação, o informe, a possibilidade do infinito. A materialidade
da linguagem encontra-se a serviço de uma imaterialidade, isto é, da poesia “em estado
260
Ibid. p. 17. Expressão extraída de um verso, presente no poema “Alguns versos”, de Antonio Cicero.
91
essencial e selvagem”261. O poeta contemporâneo é aquele que estando inserido em sua época,
descobre uma quebra no próprio tempo, na qual um fora do presente comparece. Em meio às
contingências acidentais e positivas, a todas as presentificações do cotidiano, instaura-se uma
abertura, em que todos os tempos coexistem e o poema surge como o lugar desse “fora do
tempo”:
Sair das atualizações do presente é necessário ao poeta para que, desde um fora do
cronológico, possa interferir na própria atualidade de seu tempo. No primeiro movimento do
poema “Alguns versos”, de Antonio Cicero, o poeta, inicialmente, lida com suas
presentificações, com tudo aquilo que se mostra em seu presente atual. Ele se encontra diante
de uma tela, cujo fundo azul lembra a cor, também azul, do sistema operacional mais popular
e comercializado no mundo, o “Windows”. É da tela do computador que “letras brancas”, à
espreita, parecem sondar o poeta, durante a escrita de seu poema. A expressão “em pé” não se
sabe a quem pode estar se referindo: ao poeta, ao ser espreitado pelas letras, ou mesmo às
próprias letras, escritas por meio do programa de edição de textos do Windows, como se
estivessem, de fato, “em pé” na tela do computador, diante dos olhos do poeta. Por detrás
dessa tela, a luz natural de uma tarde penetra no ambiente pela janela, através da qual, o poeta,
sem quase levantar o olhar, vê o sol a iluminar as folhas da acácia. O amarelo do sol chega a
amarelar as folhas da árvore, as quais, “em alvoroço” pelo vento, aparecem agitadas,
inquietas, anunciando a chegada da pessoa amada, Marcelo. Ao amarelo do sol e das folhas
amareladas por ele, é possível associar também o amarelo típico dos cachos das flores da
261
Idem. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 20.
262
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 17.
92
acácia, que não se fazem presentes no poema, mas intensificam a correspondência dos tons
amarelos, no cenário dessa tarde que envolve o poeta.
No entanto, algo de inesperado acontece no meio do poema, na passagem do sétimo
para o oitavo verso, e instaura uma interrupção no tempo atualizado do poeta: “[...] E de
repente/ de fora do presente [...]”. A partir da experiência da alteridade, do enfrentamento com
o outro, este como sendo as próprias delimitações cronológicas, o poeta sai de si, abre-se ao
encontro do tempo presente, transforma-se, para ser capaz de apreendê-lo e intervir em seu
próprio atual. Todas as presentificações, em que o poeta se encontrava imerso num primeiro
momento do poema, agora, são lembradas apenas enquanto um vivido sem qualquer
possibilidade de retorno. Perdem suas determinações temporais, locais e particulares, tornam-
se líquidas e escorrem “rumo ao mar sem margens”. O que diz respeito ao tempo presente é
apropriado por um sentimento de exultação nostálgica, resultante da eclosão intempestiva de
um fora do tempo, que faz retornar à memória do sujeito historicizado, não o vivido e suas
atualizações, mas o não vivido, o fora da história, o fora de toda e qualquer determinação
temporal, o agoral.
O poeta sai do presente não para escapar da realidade, ao contrário, é desde um fora do
cronológico que ele consegue adentrar, efetivamente, no próprio real, entendido como uma
pura abertura de possibilidades infinitas. O poeta adere a tudo o que é presentificável no
poema e, ao mesmo tempo, por uma não adesão ao atual, descobre uma fenda neste, por onde
se faz eclodir o fora do presente, em que não só as reminiscências de um vivido dentro das
delimitações temporais de uma tarde comparecem, mas, sobretudo, o não vivido desta tarde
específica e de todo e qualquer tempo indeterminado. O poeta é envolvido, “banhado” pelas
atualizações do presente que, no entanto, por seu caráter contingencial, passageiro, diluem-se
e escoam em direção a um mar incomum, distinto de todos os outros mares: um “mar sem
margens”, ilimitado, infinito, indeterminado. Diante do poeta, é justamente o fundo desse mar
infinito que se ergue enquanto mundo, um mundo potencializado. O que existe, portanto,
como mundo fundamentado na própria história cai por terra, para que, desde sua ruína, de seu
esquecimento, toda e qualquer potencialização se realize. O mundo que eclode no poema vem
do escuro do fundo do mar e não da superfície iluminada de suas águas, como no verso de
“Prólogo”263: “escuridão de onde provém a luz”. Nos termos de Agamben, o que interessa ao
poeta não são as luzes de seu tempo que o interpelam incessantemente, mas a sua treva.
263
Ibid. p. 11.
93
Percebe, na luz de todo vivido, o escuro do não vivido que, descoberto, se ilumina, de modo
intempestivo, contemporâneo, agoral, “feito um fósforo” aceso, em meio à escuridão.
Há mais três poemas em que, de modo explícito, comparece o amor do poeta, Marcelo,
a quem Antonio Cicero dedica seus três livros de poesia, o seu segundo de filosofia,
Finalidades sem fim, e o de ensaios, mais recente, publicado neste ano (2017), intitulado A
poesia e a crítica. No primeiro poema, “Declaração”264, o poeta diz que já declarou o seu
amor à pessoa amada não só por meio de palavras, incontáveis vezes, como o seu próprio
corpo também o declara, com todos os gestos que se inclinam, necessariamente, na direção de
Marcelo: sua língua brinca com o som da pronúncia do nome do amado; e seus olhos, assim
como as folhas alvoraçadas da acácia, em “Alguns versos”, ficam felizes à sua chegada, como
quem está sendo presenteado. A ambiência de luz também aparece, como no poema já citado,
podendo ser observada, inclusive, uma correspondência entre o título “Declaração”, a forma
verbal “elucidar” e o adjetivo “iluminada”, que, juntos, parecem compor o mesmo campo
semântico. Ao declarar o seu amor, o poeta o traz à luz, clarificando-o. O amado, por sua vez,
ao chegar à casa, elucida tudo o que há, ilumina, esclarece, revela tudo o que se encontra
obscuro, privado de luz:
264
Ibid. p. 73.
265
Idem. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 173.
94
(“[...] E de repente/ de fora do presente [...]”). Aqui, também há uma eclosão inesperada de
um fora do tempo cronológico, que nega a condição inicial o próprio presente, no qual o poeta
está inserido. Embora, totalmente, iluminada, a “casa inteira” continuava, no presente, opaca,
até a chegada de Marcelo. O amado traz consigo uma luz tão intensa capaz de iluminar toda a
casa que, antes, parecia iluminada, mas estava, mesmo assim, opaca. Como acontece no
poema anterior, em “Declaração”, o poeta se surpreende fora de sua atualidade, não para
escapar do real, mas, a partir de uma irrupção, uma abertura no tempo presente, conseguir
adentrar, de fato, no próprio real já transformado, potencializado, elucidado. É desde a própria
atualidade do poeta que esse acontecimento repentino eclode, negando e dissolvendo o tempo
presente e suas atualizações, para que, através dessa fenda aberta no atual, esse tempo fora de
toda e qualquer determinação cronológica, a experiência do real, do extemporâneo, do agoral,
possa comparecer no poema e na vida do poeta. Ao final do poema, mesmo “tendo apagado
todas as lâmpadas”, os amantes, juntos “no terraço” da casa, ambos não coincidem com a
cronologia positiva dos calendários, pois se entregam aos deslocamentos em contínua
mudança “dos círculos do relógio do céu noturno”, ou à inconstância infinita dos “rios de
nuvens”, sempre passantes. E, no escuro, o poeta, novamente, se declara à pessoa amada,
trazendo o amor à superfície iluminada do poema. Assim como acontece com as
reminiscências de uma tarde que banha o poeta “e escorre rumo ao mar sem margens”, em
“Alguns versos”, as determinações positivas e contingenciais do presente fluem em direção
aos “rios de nuvens”, a uma indeterminação, da qual provém o mundo, em sua infinita
potencialidade, e para onde será tragado de volta, “feito um repuxo”, o mesmo realizado pela
poesia, no poema “Prólógo”266. Tudo o que se apresenta como temporal, nos dois poemas
citados, converge para essa indeterminação, essa atemporalidade, representada pelas figuras
do “mar sem margens”, dos “rios de nuvens”. O mesmo ocorre no segundo poema, “Elo”267,
em que Marcelo, sendo “Esse horizonte azul assim sem reta”, nele, convergem os elementos
mencionados pelo poeta, no último verso: “[...] ar, mar, céu, nome, ser, não ser [...]”:
266
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 11.
267
Idem. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 79.
95
268
Ibid. p. 83.
269
Idem. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 09.
270
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 13.
96
Carroll, não é possível entrar no país das maravilhas, pois ele não fica “do lado de dentro”,
mas “do lado de fora”:
É desde um fora do tempo da história, é desde uma saída das determinações positivas,
particulares, contingenciais e relativas do mundo já dado, do já conhecido, que se pode ter
acesso à vitalidade infinita das múltiplas possibilidades e dos “esplêndidos mundos”271
oferecidos pelo país das maravilhas. Portanto, não há entradas que permitam acessá-lo, e o
poeta diz ainda: “Se há saídas/ que dão nele, estão certamente à orla/ iridescente do meu
pensamento,/ jamais no centro vago do meu eu”. Até mesmo as saídas, caso existam, são,
também, externas, se encontram à margem do pensamento, fora do “eu”, cujo centro é “vago”,
vazio, ou impreciso, obscuro, talvez, errante. E essa extremidade é “iridescente”. Mais uma
vez, tem-se um poema, em que a luz comparece, porém, agora, em uma intensidade variável.
Ela é matizada, furta-cor, multicolorida. E poeta continua: “E se me entrego às imagens do
espelho/ ou da água, tendo no fundo o céu,/ não pensem que me apaixonei por mim”. De
novo, a correspondência entre o fundo das águas e o céu, tendo este refletido, não na
superficialidade do espelho das águas, mas na profundeza destas. O poeta se revela como uma
espécie de “Narciso às avessas”. Conta a tradição sobre o mito grego de Narciso, que este, um
jovem de extrema beleza, ao se debruçar em uma fonte para saciar a sede e refrescar-se, viu
sua própria imagem refletida nas águas, mas pensou que fosse um espírito que vivia ali.
Admirou-se tanto que acabou se apaixonando por si mesmo. No entanto, o poeta “anti-
Narciso”, ao contrário do que já se conhece a respeito dessa figura mitológica, entrega-se às
271
Idem. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 173.
97
272
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 15.
98
[...]
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
273
Ibid. p. 19.
274
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Prefácio: Affonso Romano de Sant’Anna. 40.ed. Rio de
Janeiro: Record, 2008, p. 27-28.
99
275
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 11.
100
Sendo assim, a flor que nasceu na rua é metáfora, não para um acontecimento social, mas para
a poesia. Foi um poema – foi sem dúvida esse mesmo poema – que nasceu na rua. 277
276
Idem. A poesia e a crítica: Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 143.
277
Ibid. p. 142.
278
Ibid. p. 19.
101
279
Ibid. p. 59.
280
BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. Tradução: Gilson Maurity; Prefácio: Ivo Barroso. Rio
de Janeiro: Record, 2006, p. 67.
102
281
Idem. A invenção da modernidade (sobre Arte, Literatura e Música). Tradução e Notas: Pedro Tamen.
Antologia, Introdução e Notas: Jorge Fazenda Lourenço. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006, p. 285.
282
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 33.
103
a do narrador do conto de Edgar Allan Poe, traduzido por Baudelaire, intitulado “O homem da
multidão”283, ao percorrer Londres, à noite, aventurando-se no “burburinho da cidade”.
Baudelaire, inclusive, chega a compará-lo ao flâneur, mas Benjamin, ao contrário, sustenta
que, para Poe, a multidão possui “algo de bárbaro”284, pois despertava sentimentos de medo,
aversão e pavor nos indivíduos que a olhavam à primeira vista:
[...] Baudelaire fala do homem que mergulha na multidão como em um tanque de energia
elétrica. E, logo depois, descrevendo a experiência do choque, ele chama esse homem de “um
caleidoscópio dotado de consciência”.
O texto de Poe torna inteligível a verdadeira relação entre selvageria e disciplina. Seus
transeuntes se comportam como se, adaptados à automatização, só conseguissem se expressar
de forma automática. Seu comportamento é uma reação a choques. “Se eram empurrados,
cumprimentavam graves aqueles que os tinham empurrado e pareciam muito embaraçados”.
283
POE, Allan Edgar. Histórias extraordinárias. Tradução, Seleção e Apresentação: José Paulo Paes. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, p. 258.
284
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. In: Obras Escolhidas III.
Tradução: José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989, 3v, p. 124.
285
Ibid. p. 124-127.
104
Em sua tese de doutorado, analisando como esses espaços urbanos aparecem na obra A cidade
e os livros, Noemi Jaffe destaca:
No poema “Ônibus”287, o poeta é alguém que observa uma típica cena urbana noturna.
Em meio às ruas mal iluminadas, um ônibus passa pelo observador, com suas luzes acesas,
rompendo a escuridão. No entanto, apesar de iluminado, as janelas se revelam como um
“obscuro espelho”, e somente “à contraluz” é possível avistar os trabalhadores, “sombrios
passageiros”, retornando “mortos”, totalmente exaustos, consumidos, após mais um dia de
expediente de trabalho de sua árdua “longa meândrica jornada”. A cidade, que era
“inesgotável”, no poema anterior, agora, provoca o esgotamento de seus habitantes:
286
JAFFE, Noemi. Do princípio às criaturas: análise de “A cidade e os livros” de Antonio Cicero. 2007. 214 f.
Tese (Doutorado em Letras – Literatura Brasileira). Universidade de São Paulo (USP), São Paulo. Disponível
em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8149/tde-30012008-114424/pt-br.php.
287
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 61.
105
288
Ibid. p. 27.
106
Don’Ana fazia parte da infância do poeta, que a rememora não por ela ter algo de
extraordinário e incomum, mas em virtude de ser um arquétipo “esplêndido da solidez de sua
existência tão bem-acabada”: com o seu “sotaque aberto”, que tornava mais próximo o seu
passado tão distante; suas “mãos e braços, olhos, carnes, sangue” “balofos, bambos ou
moles”; o “bafo quente” de suas “brenhas”; seus “refrulhos, ruflos, bulhas, farfalhos e
murmúrios entre estrídulos cricris e cagalumes e chirrios”. Ela era arredondada como um
“corpo sideral”, “[...] constelada, cálida,/ a própria noite, a noite em si, a noite/ da caatinga,
em cujas trevas trava/ o medo”. O que Don’Ana tinha de surpreendente não era uma
especificidade qualquer que a individualizasse, diferenciando-a de um todo, mas o que a
tornava “coisa entre coisas”, “anônima entre anônimas”. Ela era perfeita por ser quem era,
com todas as suas imperfeições, que a tornavam comum, “quase nada”, indiscernível. Por
isso, o poeta diz: “Não se acha cerne em nós, tudo é roupagem”. Ou, como no poema “O país
das maravilhas”, em que o poeta diz ser vago, indeterminado, vazio, o centro do seu eu. Não
há nada que fundamente as coisas, pois tudo é passageiro, está fadado a perecer, “tudo é
roupagem”. Em “Dilema”289, o poeta confuso e “Disperso num tal dilema”, reconhece que no
fundo de si mesmo, ele é sem fundo, isto é, sem nada que fundamente o seu eu:
289
Idem. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 37.
107
Em “Francisca”290, o poeta conta a história de uma mulher que saiu de sua terra natal,
no Piauí, “ainda quase uma criança”, para o Rio de Janeiro, “e já chegou sonhando em
retornar”, pois lá havia ficado o mundo que ela considerava como real, verdadeiro: “o sol a
chuva a noite a festa a morte”:
Segundo o poeta, Francisca leva consigo “um certo Norte” a todo lugar : “em frente à
praia de Copacabana,/ onde ela faz cuscuz, beiju ou peta”. E leva, também, no seu próprio
sotaque, o qual não se sabe se é mais intenso quando ela se zanga com o feirante ardiloso, ou
ao conversar com sua mãe ausente, ou mesmo com “o sabiá pousado em sua mão”. E na
fratura do tempo presente, na fenda “Entre o Nordeste que deixou na infância/ e o Sul que
nunca pareceu real”, a mulher sente saudade de alguns lugares, que só passam a existir
quando os retrata em uma pintura: os mares azul-turquesa e espumantes diante de uns
“casarões abandonados”. Não se sabe a razão pela qual esses lugares da memória de Francisca
desamparam a ela e ao poeta.
Ainda sobre “A cidade e os livros”, em um primeiro movimento do poema, tanto a
cidade quanto os livros possibilitavam ao adolescente sair de suas determinações temporais,
290
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 29.
108
locais e particulares e experimentar o mundo moderno enquanto uma pura abertura, onde
todos os tempos e lugares se tornam presentes. Ao final do poema, já na atualidade, ambos
parecem não coincidir mais: a cidade não faculta ao poeta a infinitude de possibilidades
abertas que antes propiciava. Mas os livros, sim, estes se revelam como a única saída para
uma experiência fora do presente, em que o mundo se apresenta aberto, ilimitado,
potencializado, moderno e agoral. Em uma entrevista291 ao jornal Cândido, publicada também
em seu blog, Antonio Cicero fala sobre o poema “A cidade e os livros” e ressalta que:
O Rio tem não apenas os livros de suas bibliotecas, de suas livrarias, de suas coleções
particulares, mas os livros que falam do Rio, como os de Machado de Assis, e os livros que
podem ser escritos sobre ele, ou tendo o Rio como cenário. Mas falo do Rio porque é a cidade
onde vivo, porém creio que o que se passa nesse poema poderia passar-se, mutatis mutandis,
em qualquer cidade grande.
Ainda há espaço
para um poema
Ainda é o poema
um espaço
Onde se pode
Respirar.
291
Entrevista de Antonio Cicero intitulada “Ler um poema estimula nosso pensamento em todos os sentidos”,
publicada no jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, em fevereiro de 2013, na edição nº 19, disponível
para acesso no site http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=317 e no blog
do poeta http://antoniocicero.blogspot.com.br/search?q=a+cidade+e+os+livros.
109
Ia ao centro da cidade
e me achava em livrarias,
livros, páginas, Bagdad,
Londres, Rio, Alexandria:
Aqui, o poeta também sai pelo centro da cidade, desejando se entregar a todas as
potencialidades que ela oferece. E ele se achava, na medida em que ia se perdendo “em
livrarias, livros, páginas, Bagdad, Londres, Rio Alexandria”. Os livros, mais uma vez,
comparecem como a única forma de o poeta experimentar não só a sua própria cidade, mas
todas as cidades que existem. Se a urbe pertence a quem se entrega a ela e se perde nela, antes
mesmo de ele se perder, o poeta acaba perdendo-a. Ele não mais a identifica como sendo uma
parte dele, porque ao invés de possibilitar o desenraizamento, a entrega, a perda, a abertura
“em esquinas infinitas”, o desdobramento em múltiplos tempos e lugares, a cidade se
apequena, se torna limitada, claustrofóbica e, talvez, monótona e tediosa, se não possuísse,
justamente, os livros. Os três poemas mencionados – “A cidade e os livros”, “Ônibus” e “As
livrarias” –, parecem estabelecer um diálogo entre si. A euforia experimentada pelo poeta, ao
perder-se em pleno centro da cidade grande, pelos becos, travessas, avenidas, galerias,
cinemas, livrarias, “esquinas infinitas”, livros, páginas, Bagdad, Londres, Rio, Alexandria, dá
lugar a um descontentamento em relação à própria cidade, que encolhera, tornou-se fechada
em si mesma, já conhecida, já dada, e ainda sufocante, e a um sentimento melancólico,
principalmente, quando ele, “às oito horas da noite, véspera/ da véspera de outro Natal”,
observa um ônibus, conduzindo seus taciturnos passageiros, voltando “mortos para casa”,
esgotados, depois de mais uma exaustiva jornada de trabalho. Despojado de todo o encanto e
euforia, o poeta, agora, se mostra perplexo diante do fato de a cidade do seu passado não
coincidir com a do presente: “O Rio parecia inesgotável/ àquele adolescente que era eu”;
“Hoje é diferente”; “Já não há lâmpadas feéricas/ vindas da China a iluminar/ as ruas. O
racionamento/ as eliminou”; “Que cidade foi aquela/ em que me sonhei perder/ e antes disso
292
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 75.
110
acontecer/ aconteceu-me perdê-la”? Há um poema, cujo título explicita bem esse estado de
perda, em que se encontra o poeta: “Perplexidade”293. Ei-lo:
Constatando-se perdido, o poeta diz não saber, precisamente, onde isso aconteceu, ou
ainda, considera a hipótese de que, talvez, nem tenha ocorrido tal perda. Mas, o que lhe causa
estranhamento é cogitar a possibilidade de estar destinado a perder-se desde sempre. Daí a sua
perplexidade. O fato de não saber o lugar em que se perdeu e a própria incerteza da perda já
configuram, de certo modo, evidências de que o poeta está desorientado, perdido, na ou da
cidade. O “isto aqui”, a que o poeta se refere, é, justamente, o seu estado atual, o tempo
presente, no qual ele se vê confuso e atônito, ao contrário da euforia sentida no passado, na
adolescência.
Sendo o moderno agoral, “a modernidade é a agoralidade, o agora em si, o agora
enquanto agora, a essência do agora, a essência deste instante [...]”294 Se o “agora é, por um
lado, o contemporâneo ou praes-ente mas, por outro lado, a negação do contemporâneo e
presente [...]”295, e o moderno, portanto, “o que toma por referência o agora”, este instante,
(hac hora ou ‘neste instante’), a modernidade, para Antonio Cicero, apresenta um caráter
ambíguo: de um lado, é positiva, particular, contingente, acidental e relativa; do outro,
negativa, universal, necessária, essencial e absoluta. Diante de toda positividade constituinte
de tudo o que há no mundo, instaura-se, obrigatoriamente, a sua contradição, a mudança, isto
é, a negação da contingencialidade do presente. O poeta brasileiro concebe a modernidade
como um campo ambíguo de tensões infinitas que une, ao mesmo tempo, as contingências
transitórias, positivas, do agora, e o infinito de possibilidades, a pura potência, a negação de
toda e qualquer positividade. Enquanto essência do instante, a modernidade representa um
esboço, como os croquis296 de Baudelaire, algo inacabado que ainda não se constitui como tal
e sempre está na iminência de se tornar a ser. Paradoxal, funde o ser e o não ser, a presença e
a ausência, o mesmo e o outro, o particular e o universal, a unidade e a cisão. A partir de uma
293
Ibid. p. 67.
294
Ibid. p. 16.
295
Ibid. p. 173.
296
BAUDELAIRE, Charles. Op. cit. p. 282.
111
297
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. In:
Obras Escolhidas. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio: Jeanne Marie Gagnebin. 7 ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994, 1 v. p. 229.
298
CAMPOS, Haroldo de. O arco-íris branco: ensaios de literatura e cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p.
269.
299
Ibid. p. 268.
300
PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. São
Paulo: Cosac Naify, 2013, p.165.
301
Ibid. p. 160-161.
302
BENJAMIN, Walter. Op. cit. p. 232.
303
CAMPOS, Haroldo de. Op. cit. p. 269.
304
Ibid. p. 268.
305
Ibid. p. 269.
306
PAZ, Octavio. Op. cit. 202.
112
um processo global e aberto de concreção sígnica, atualizado de modo sempre diferente nas
várias épocas da história literária e nas várias ocasiões materializáveis da linguagem (das
307
linguagens)” . Por isso, desconsiderando as predeterminações dos “ismos”, Haroldo de
Campos define “Safo e Bashô, Dante e Camões, Sá de Miranda e Fernando Pessoa, Hölderlin
e Celan, Góngora e Mallarmé”308 como poetas concretos. Concebendo o processo de tradução
como uma atividade essencialmente criadora, o autor de Galáxias afirma que a poesia pós-
utópica, enquanto poesia da agoridade, porta uma espécie de “dispositivo crítico indispensável
na operação tradutória”. Citando Friedrich Novalis, em que este diz ser o tradutor o “poeta do
poeta”, isto é, “o poeta da poesia”, o poeta-tradutor argumenta que a tradução, entendida
como uma “prática de leitura reflexiva da tradição”, enseja “recombinar a pluralidade dos
passados possíveis e presentificá-la, como diferença, na unicidade hic et nunc do poema pós-
utópico”. Em uma entrevista309 concedida ao escritor Cláudio Daniel, intitulada “A viagem da
palavra por tempos e espaços”, publicada na Revista Et Cetera, no ano de 2003, Haroldo de
Campos reitera essa concepção de que a poesia pós-utópica – a poesia da presentidade, da
agoridade – permite a interação dialética dos múltiplos pretéritos e com a invenção, as
potencialidades criativas do agora, presentificando a tradição, de maneira reflexiva, por meio
de uma diferença:
[...] o processo da modernidade ainda não se concluiu: o que ocorre é a incidência epocal do
momento pós-utópico, passando-se a encarar uma agoridade em poesia, onde os
contributos do passado e as reconfigurações inventivas do presente de criação são urgidos a
operar e co-operar num circuito recíproco.
A ideia de invenção continua sempre vigente, mas em dialética permanente com a tradição.
O poema pós-utópico nasce pontualmente nessa conjuntura dialetizada, onde são muitas as
possibilidades combinatórias do passado de cultura com a agoridade, a presentidade, a
imaginação criativa, a invenção.
307
CAMPOS, Haroldo de. Op. cit. p. 269.
308
Loc. cit.
309
Entrevista de Haroldo de Campos ao escritor Cláudio Daniel, publicada, inicialmente, na Revista Et Cetera,
nº 1, editada em Curitiba, pela Travessa dos Editores, no ano de 2003, e atualmente, podendo ser acessada no
site: http://zunai.com.br/post/96282930838/entrevista.
113
Partindo de uma reflexão sobre o conceito de história, o poema inicia-se com uma
indagação filosófica: “A história, que vem a ser?”. No entanto, o que parecia ser uma
pergunta retórica, encontra possíveis respostas nos versos seguintes: “mera lembrança
esgarçada,/ algo entre ser e não ser:/ noite névoa nuvem nada”. Do passado restam apenas
ruínas, imagens imprecisas e fragmentadas, reminiscências vagas. A história não passa de
uma simples “lembrança esgarçada”, como um tecido que cede, tornando-se mais “laxo”,
“solto”, ao desfiar-se com o tempo. Ela é “algo entre ser e não ser”; tudo aquilo que é e,
concomitantemente, não é; o “já” e o “ainda não”, nas palavras de Agamben. E pelo fato de
ser e estar sempre na iminência de vir a tornar-se, ela é “noite névoa nuvem nada”. Sem
vírgulas entre as palavras, as metáforas aparecem também “soltas”, livres de pausas e de uma
possível gradação. O poeta realiza no próprio verso o esgarçamento característico da história.
Há uma espécie de “folga” não somente entre os fios que entrelaçam a história, como também
na própria tessitura do poema, o que se permite estabelecer uma relação entre o conceito de
história e o fazer poético.
Se a história é “algo entre ser e não ser”, o que é o “ser” na história? E o “não ser”?
Em princípio, de acordo com o entendimento dos homens, o que permanece na história
constituindo-a enquanto tal e é transmitido por gerações, está escrito, documentado, “gravado
pelas palavras”. Mas o que se escreve ou se grava, habitualmente, não são os “desacertos dos
homens”, e sim, o passado glorioso, de vitórias e acertos. No entanto, para o poeta, a história é
310
CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 59.
114
algo “entre as palavras que a gravam/ e os desacertos dos homens”; entre o desejo permanente
de gravar, fixar, deter sua passagem, e a consciência radical desta impossibilidade. Na
tentativa de gravar a história e apreendê-la, tanto as palavras quanto os homens fracassam em
sua busca, pois “tudo o que há no mundo” é contingente, acidental e relativo, portanto,
“some”, fragmenta-se e está, irremediavelmente, condenado à destruição e ao esquecimento.
Nem mesmo as cidades imperiosas como “Babilônia”, “Tebas” e “Acra”, exemplificadas pelo
poeta, conseguem manter-se conservadas diante da ação do tempo. Aparecem uma ao lado da
outra, sem vírgulas separando-as, como se estivessem em suspensão no verso: “Babilônia
Tebas Acra”. Assim como a Helena de “Proteu”311, essas referências ao mundo clássico e ao
universo mítico comparecem no poema tão simplesmente enquanto nomes, pura linguagem,
desinteressadas em resguardar, gravar a história, o que já fora dito, escrito ou lido. Retornam
ao presente, ao agora do poeta, por meio de uma diferença. Sustentam-se não na tradição de
um passado nobre e glorioso, mas na própria linguagem, na ausência de qualquer fundamento
apriorístico. O poeta, como um historiador, recolhe os vestígios do tempo passado, não para
dizer o que já se conhece, mas a fim de que se estabeleça toda e qualquer possibilidade do
dizer, a pura potência do não dito, do não escrito, do não lido, do não vivido, portanto, do vir
a ser. Talvez, seja possível dizer que o poeta-filósofo realize na sua poesia o que Haroldo de
Campos evidencia como uma atividade também singular ao processo de tradução. Nos
poemas mitológicos de Antonio Cicero, há uma “leitura reflexiva da tradição”312, em que o
passado mítico comparece, no tempo do agora, presentificado como diferença. Se, para o
autor de O Arco-íris Branco, as vanguardas perdem a sua função utópica e, por conseguinte,
“a poesia viável do presente”313 se torna “uma poesia de pós-vanguarda”, logo, pós-utópica –
definida como uma poesia do agora, da agoridade –, Antonio Cicero considera que as
vanguardas cumpriram o seu papel, libertando o poeta para as múltiplas e infinitas
possibilidades de usos das formas poéticas ou, nas palavras de Haroldo de Campos, para “uma
pluralização das poéticas possíveis”. Diante disso, a poesia agoral de Antonio Cicero parece
dialogar com a ideia de uma agoridade em poesia, podendo, nesse sentido, ser concebida
como uma “poesia de pós-vanguarda, não porque seja pós-moderna ou antimoderna”, uma
vez que ela é moderna, ao ter o agora como sua referência, mas por ser pós-utópica, uma
311
Ibid. p. 23.
312
CAMPOS, Haroldo de. Op. cit. 269.
313
Ibid. p. 268.
115
poesia do tempo do agora, o qual “não é em primeiro lugar um mundo determinado mas a
indeterminação tenebrosa que gera e traga os mais esplêndidos mundos” 314.
Em meio às contingências acidentais e relativas da história, a todas as
determinações temporais, instaura-se uma quebra no tempo para fazer eclodir dele mesmo,
intempestivamente, um fora do tempo, um fora do continuum315 da história, em que todos os
tempos heterogêneos comparecem, passado e presente coexistem. A consciência da
transitoriedade de todas as coisas faculta ao poeta realizar a cisão no tempo, na própria
estrutura do verso: “noite névoa nuvem nada”; “Babilônia Tebas Acra”. A ausência de
pontuação rompe com a segmentação sintática do metro e instaura uma “folga” entre as
palavras, um espaço vazio de significações, que aponta para um fora das delimitações
temporais e sintáticas, onde toda e qualquer possibilidade de sentido se faz presente. Agora,
“soltas”, suspensas, em desconexão com o seu tempo, livres da tradição que as fundamenta
como tais, “noite”, “névoa”, “nuvem”, “nada”, “Babilônia”, “Tebas” e “Acra” pairam sobre o
poema, não somente enquanto produtos da história, mas como linguagem poética, força
criativa, potência infinita de desdobramento, negatividade, essência do instante. As palavras
“noite”, “névoa”, “nuvem” e “nada” surgem como figuras que remetem à ideia de negação de
tudo o que se afirma no mundo como fundamento, certeza, definição e positividade:
escuridão, obscuridade, imprecisão, turvamento, inconstância, imaterialidade, ausência,
passagem.
Se “tudo o que há no mundo some”, logo, até mesmo o poema se encontra,
inevitavelmente, destinado à sua própria ruína: “Que o mais impecável verso/ breve afunda
feito o resto/ (embora mais lentamente/ que o bronze, porque mais leve)”. Mesmo aquele
verso ideal, trabalhado com todo cuidado e esmero, primoroso, apurado, sublime, com
métricas clássicas, enfim, “impecável”, também está condenado à destruição, prestes a
naufragar, juntamente com “os desacertos dos homens”, “Babilônia”, “Tebas”, “Acra” e todo
“o resto”. Além disso, o nono verso do poema, ao buscar seu complemento na linha seguinte,
instaura, durante sua passagem, uma intensa pausa métrica, a versura do enjambement, que ao
interromper a continuidade do verso, suspende o sentido e revela algo de surpreendente ao
leitor, assim como nos poemas “Mulher com Crisântemos (sobre um quadro de Degas)”, “O
poeta cego” e “Sair”. “O mais impecável verso”, segundo o poeta, é “breve”, no sentido de ser
preciso, sucinto e essencial. Mas, o vocábulo “breve” também pode indicar um verso efêmero,
transitório e acidental. E, por último, é possível ainda que o adjetivo “breve” tenha sido
314
CICERO, Antonio. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 173.
315
BENJAMIN, Walter. Op. cit. p. 230.
116
316
AGAMBEN, Giorgio.“O fim do poema”. Tradução e Notas: Sérgio Alcides. In: Revista Cacto: poesia e
crítica. n. 1. São Bernardo do Campo: Alpharrabio, 2002. p. 142.
317
Ibid. p. 143.
117
vinculados à relação do sujeito histórico com o seu próprio tempo – relação essa caracterizada
por uma aderência à atualidade que requer, simultaneamente, uma não coincidência, uma
fratura, consigo mesma –, é a partir de uma “desconexão” com o tempo presente e positivo,
que o verso irrompe para trazer à tona um “passado carregado de ‘agoras’” 318, um fora do
tempo: agoral, a-histórico e negativo. E esse fora do cronológico permite ao poeta ir contra o
seu próprio tempo, contra as contingências transitórias, acidentais e positivas, contra todo e
qualquer fundamento, e experimentar a essência do agora, a linguagem enquanto potência, no
dizer de Agamben, ou mesmo a “essência selvagem da poesia”319, como define Antonio
Cicero.
Consciente da fugacidade de todas as coisas, o poeta, entretanto, deseja a imanência
de seu verso “ao querê-lo eterno agora”. O poema, forma contingencial e finita, produto
histórico, ou, de acordo com Antonio Cicero, “negação negada”, natura naturata, descobre
nele mesmo uma saída para fazer eclodir o informe, o absoluto, a possibilidade do infinito.
Abre-se e se oferece como uma pura abertura, um devir, a fim de construir sentidos múltiplos,
transitórios, passantes. O poema surge como a origem de todo e qualquer fundamento. O
poeta reconhece a impossibilidade de se tentar apreender, gravar, em uma forma informe
permanente, as contingências históricas e “tudo o que há no mundo”, mas não desiste de sua
busca: deseja que o seu verso – e o poema também –, fugidio se eternize no próprio agora de
sua criação e leitura. É, portanto, na celebração do instante, da ruína e do esquecimento que o
poema se faz eterno agora. Diante disso, contemplá-lo significa, para Antonio Cicero, exercer
o que o poeta romano Horácio propunha em sua Ode I.XI320, traduzida pelo poeta-filósofo e
publicada em seu blog: “carpere diem”, isto é, “colher o dia”. No poema, a figura do poeta
dirige-se a uma personagem feminina chamada Leucônoe e diz a ela que não busque prever o
futuro, mas “colher”, aproveitar o dia presente:
318
BENJAMIN, Walter. Op. cit. p. 229-230.
319
CICERO, Antonio. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras,
2005, p. 20.
320
Tradução da Ode I.XI do poeta Horácio, por Antonio Cicero, publicada em 18 de maio de 2009, e disponível
para acesso no site: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2009/05/horacio-ode-i11.html.
118
Penso que a concepção da poesia que preside a Ode III.XXX é que, dado que os grandes
poemas valem por si, eles são inteiramente indiferentes às contingências do tempo. Em
princípio, portanto, não haverá tempo em que já não valham. O que interessa é que eles
sempre merecem existir agora: seja quando for agora. Apreciá-los é sempre colher o dia:
carpere diem. No fundo, portanto, parece-me não haver contradição entre essas duas odes.
Algo nesse sentido manifesta-se no meu poema “História”, do livro A cidade e os livros,
que se refere diretamente à ode XXX.
321
Tradução da Ode III.XXX do poeta Horário, por Pedro Braga Falcão, publicada em 15 de dezembro de 2009, e
disponível para acesso no site: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2009/12/horacio-ode-xxx-do-livro-iii-
traduzida.html.
322
Artigo de Antonio Cicero publicado na coluna “Ilustrada”, do jornal Folha de São de Paulo, em 06 de
fevereiro de 2010, e disponível para acesso no site: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0602201021.htm
e no blog do poeta: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2010/02/carpe-diem-o-seguinte-artigo-publicado.html.
119
Toda forma consiste num momento estancado e preservado do movimento do qual provém.
Também o poema é uma forma, mas uma forma que porta em si a marca-d’água do
movimento. Ela reflete no seu próprio ser o movimento originário. O poema é a forma que
incorpora em si o seu oposto, isto é o ápeiron, que é a poesia. Cada vez que o lemos, ele se
torna diferente não só do que era na leitura anterior, mas de si próprio no exato instante em
que o estamos a ler: Eidoteia a abraçar Proteu.323
Sendo o poema uma forma que traz em si o seu contrário, isto é, a “marca d’água do
movimento”, que o poeta-filósofo, utilizando-se do termo criado por Anaximandro de Mileto,
define como “ápeiron, que é a poesia”, então, poesia é o movimento que nega a positividade
da forma que a estrutura e fundamenta. O poema torna-se, essencialmente, moderno, agoral,
uma vez que incorpora, ao mesmo tempo, a forma – positiva, acidental, relativa –, e a poesia –
negativa, necessária, absoluta. É desde a positividade da forma do poema que se permite uma
abertura para que o movimento, isto é, a poesia, compareça. E é deste movimento, quer dizer,
da mudança, que surgem outras possibilidades, outras realidades, distintas das que são
contemporâneas ao poeta. A poesia, enquanto possibilidade, mudança, pura potência,
“imaginação e liberdade”, afirma-se como negatividade. O poema é forma contingencial e
finita, produto histórico, constituído da materialidade das palavras. Mas, também, como
afirma Octavio Paz, “é movimento que gera movimento, ação que transmuta o mundo
material”324. Ele nasce da palavra, mas luta para transcendê-la:
[...] um poema que não lutasse contra a natureza das palavras, obrigando-as a ir mais além
de si mesmas e de seus significados relativos, um poema que não tentasse fazê-las dizer o
indizível, permaneceria uma simples manipulação verbal. O que caracteriza o poema é sua
323
Ibid. p. 240.
324
PAZ, Octavio. Signos em rotação. Tradução: Sebastião Uchoa Leite. Organização e revisão: Celso Lafer e
Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 98.
120
necessária dependência da palavra tanto como sua luta para transcendê-la. Esta
circunstância permite uma indagação sobre a sua natureza como algo único e irredutível e,
simultaneamente, considerá-lo como uma expressão social inseparável de outras
manifestações históricas. O poema, ser de palavras, vai mais além das palavras e a história
não esgota o sentido do poema; mas o poema não teria sentido – e nem sequer existência –
sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual alimenta.325
É a partir das palavras, que “não são outra coisa que significados de isto e aquilo,
isto é, de objetos relativos e históricos” 326, que a experiência poética se realiza. A poesia
necessita encarnar na palavra, na linguagem, para, enfim, negá-la. Concebendo-o como “uma
unidade que só consegue constituir-se pela plena fusão dos contrários”327, o poema implica
uma adesão à positividade acidental das palavras, às contingências históricas, que requer,
paradoxalmente, uma “desconexão”, um descolamento. A poesia sustenta-se na negação da
palavra, pois é “algo que é histórico e que, ao sê-lo, nega e transcende a história”328.
Esquivando-se da palavra, isto é, da história, a poesia consegue ir mais além de sua própria
natureza; além de tudo que a fundamenta como tal. Para Octavio Paz, ao ser histórica, a
poesia já se constitui, obrigatoriamente, como um ser negante. Desvia-se de si mesma, a fim
de transcender a sua própria natureza positiva e histórica, para abrir-se ao infinito de
possibilidades. A poesia é palavra desviada, e a história, o lugar de sua encarnação:
A linguagem que alimenta o poema não é, no fim de contas, senão história, nome disto ou
daquilo, referência e significação que alude a um mundo histórico fechado e cujo sentido se
esgota com o de seu personagem central: um homem ou um grupo de homens. Ao mesmo
tempo, todo esse conjunto de palavras, objetos, circunstâncias e homens que constituem
uma história parte de um princípio, isto é, de uma palavra que o funda e que lhe outorga
sentido. Esse princípio não é histórico nem é algo que pertença ao passado e sim algo que
está sempre presente e disposto a encarnar-se. O que Homero nos conta não é um passado
datável e, a rigor, nem sequer é passado: é uma categoria temporal que flutua, por assim
dizer, sobre o tempo, sempre com avidez de presente. É algo que volta a acontecer logo que
uns lábios pronunciem os velhos hexâmetros, algo que está sempre começando e que não
cessão de manifestar-se. A história é o lugar da encarnação da palavra poética. 329
325
Ibid. p. 52.
326
Ibid. p. 51.
327
Ibid. p. 55.
328
Ibid. p. 59.
329
Ibid. p. 53.
121
330
Idem. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo:
Cosac Naify, 2013, p.164.
331
Ibid. p. 165.
332
Ibid. p. 164.
333
NIETZSCHE, Friedrich. “Prefácio”. Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e do inconveniente da
história para a vida. Tradução: Antônio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2008, p. 16-17.
122
mais além de sua época, luta contra a potência cega do real, contra a sua própria natureza
histórica:
De fato, qualquer que seja a virtude de que se queira falar, a justiça, a generosidade, a bravura,
a sabedoria e a compaixão – em toda parte o homem é virtuoso quando se revolta contra o
poder cego dos fatos, contra a tirania da realidade e quando se submete a leis que não são as
leis dessas flutuações da história. Nada sempre contra a onda histórica
, seja que combata suas paixões como a mais próxima realidade estúpida de sua existência,
seja que se empenhe na probidade, quando em torno dele a mentira fecha suas malhas
brilhantes. Se a história não fosse outra coisa senão um “sistema universal de paixões e de
erros”, o homem deveria ler da mesma maneira com que Goethe aconselhava ler seu livro
Werther334, ou seja, como se a história exclamasse: “Seja homem e não me siga!” Felizmente
ela conserva também a memória das grandes lutas contra a história, isto é, contra o poder cego
da realidade e se ata a si mesma no pelourinho, pondo precisamente em relevo as verdadeiras
naturezas históricas que se preocuparam em seguir o “assim é” muito mais do que, com alegre
orgulho, um “assim deve ser”. O que impele essas naturezas a ir sem cessar para frente não é
trazer à terra sua geração, mas fundar uma nova geração. E se esses homens nascem eles
próprios tardios em sua época, há uma forma de viver que fará esquecer seu caráter de homens
tardios; − as gerações futuras só os conhecerão dessa forma como primogênitos. 335
A despeito de serem produtos históricos, poema e sujeito não devem coincidir com
a sua atualidade, e sim, agirem de maneira não histórica com o seu próprio tempo, a fim de se
tornarem, na concepção de Nietzsche, inatuais; na definição de Agamben, contemporâneos;
ou, segundo Antonio Cicero, modernos ou agorais. Para o filósofo alemão, “necessitamos da
história para viver e para agir e não para nos desviarmos negligentemente da vida e da
ação”336, pois “[...] o ponto de vista histórico, bem como o ponto de vista não histórico, são
necessários para a saúde de um indivíduo, de um povo e de uma civilização”337. No entanto, o
excesso dos estudos históricos, conforme aponta o autor, esmorece a vida do homem, que “se
escora contra o peso sempre mais intenso do passado. Esse peso o acabrunha ou o inclina para
o lado, torna seu passo pesado, como um invisível e obscuro fardo” 338. Ao atualizar o
pretérito, trazendo-o para o presente, a fim de contemplar a memória dos grandes feitos
históricos, os monumentos antigos perpetuados, as crenças e os mitos criados, as guerras, as
vitórias e os “desacertos dos homens”, as civilizações gloriosas do passado, o sujeito volta-se
às ações pretéritas para, simplesmente, reproduzi-las, e buscar, na tradição, modelos de
referências, verdades e fundamentos para a vida presente. Essa noção da história como
334
Obra de Johann Wolfgang von Goethe intitulada Sofrimentos do jovem Werther, publicada em 1774.
335
NIETZSCHE, Friedrich. Op. cit. p. 99-100.
336
Ibid. p. 15.
337
Ibid. p. 23.
338
Ibid. p. 20.
123
exemplaridade representa, para Nietzsche, uma típica doença histórica do homem moderno. O
sujeito acometido pela febre historicista, causada pelo demasiado predomínio da história
sobre a vida, não cria, apenas reproduz. O homem, neste caso, estaria submetido à tradição,
tentando, inutilmente, salvaguardar algum fundamento positivo, no lugar da ausência de
qualquer fundamento, no vazio de significações. Não haveria uma releitura do passado, mas
uma atualização do mesmo, no tempo presente:
A faculdade de poder sentir, em certa medida, de uma maneira não histórica deveria,
portanto, ser considerada por nós como a faculdade mais importante, como uma faculdade
primordial, porquanto encerra o único fundamento sobre o qual se pode edificar algo de
sólido, de saudável e grande, algo de verdadeiramente humano. O que é não histórico se
assemelha a uma atmosfera ambiente, onde unicamente se pode gerar a vida, para
desaparecer de novo com a aniquilação dessa atmosfera. Na verdade, o homem só se torna
homem quando chega pensando, repensando, comparando, separando e reunindo a
restringir esse elemento não histórico. Na névoa que o envolve, surge então um raio de luz
intensa e adquire a força de utilizar o que é passado, em função da vida, para transformar
os acontecimentos em história. Mas quando as lembranças históricas se tornam
esmagadoras demais, o homem cessa novamente de ser e, se não tivesse possuído essa
339
ambientação não histórica, jamais teria começado a ser, jamais teria ousado começar .
339
Ibid. p. 23-24.
340
Ibid. p. 28.
341
Ibid. p. 49.
342
Ibid. p. 38.
124
Tudo o que há no mundo está fadado à errância e sujeito à destruição, desde a terra
aos habitantes do planeta. Nada, por mais divino, imperioso, nobre, “esplêndido”,
“magnífico”, “impecável”, que seja, permanece. Tudo “afunda feito o resto” no abismo do
nada. Com a queda de Apolo, instaura-se o vazio. Não há qualquer fundamento positivo e os
homens, assim como a própria história, ocupam esse espaço abissal, intervalar, em
desconexão com o tempo; “soltos”, como as palavras “noite”, “névoa”, “nuvem”, “nada”,
“Babilônia”, “Tebas” e “Acra”, que, suspensas, pairam sobre o poema “História”. Ou,
conforme os “institutos poéticos”, descritos por Agamben, como a versura do enjambement
que interrompe, subitamente, a continuidade do verso, instaurando uma quebra, um abismo,
na dicção do metro, colocando-a, também, em suspensão. A cessação métrica realizada na
poesia, por meio da versura do enjambement, inaugura um espaço vazio, onde todo e qualquer
sentido se torna possível, na medida em que aniquila toda e qualquer positividade do dito, do
dizível, por meio de sua própria negação. Essa fratura na continuidade do verso apresenta-se
como o lugar originário das infinitas significações, da pura potência do dizer, da linguagem;
da ausência de qualquer fundamento positivo e da presença do indeterminado, da mudança. É
nesse espaço que se revela a “marca d’água do movimento”, da negatividade. Se a história é
“algo entre ser e não ser”, ela está sempre na iminência de se realizar. É, também, um espaço
fraturado, vazio, abissal, em que todos os tempos heterogêneos comparecem, pois, como
define Benjamin, “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo
e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’” 344. Ou, como diz Agamben, em Infância e
343
CICERO, Antonio. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 35.
344
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. In:
Obras Escolhidas. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio: Jeanne Marie Gagnebin. 7 ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994, 1 v. p. 229.
125
Mesmo que nenhum caminho seja encontrado, mesmo que nenhuma finalidade se dê,
mesmo que nenhum fundamento positivo seja mais possível, é necessário “pisa[r] sobre
estas esplêndidas ruínas”, passar afirmativamente por cima delas e seguir em frente
acatando suas consequências.
O versos 12, 17 e 18 revelam que o que cabe ao homem nesse novo tempo não é apenas
aprender a “pisa[r] sobre estas esplêndidas ruínas”, mas, sem chão, no abismo, “voar”,
“delirar”, “rir”. Não tendo mais fundamento, as asas das palavras poéticas nos fazem voar
e, com o voo, delirar; perdendo o chão, elas nos fazem sair dos rumos e linhas podendo, no
vácuo, rir da falta de chão abaixo de nossos pés e da situação de plena suspensão em que
nos encontramos. Enfrentar a ausência de fundamento com um voo, com um riso,
delirantemente. A palavra que melhor delira é a palavra de lira, a palavra poética, a que,
saindo dos sulcos, não colando mais em nenhum fundamento positivo fora de si, se lança a
um descolamento que a leva a inaugurar novas asas para que possa planar alegremente no
precipício do nada347.
345
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Tradução:
Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 128.
346
NIETZSCHE, Frederich. Op. cit. p. 100.
347
PUCHEU, Alberto. Antonio Cicero por Alberto Pucheu. Coleção Ciranda da Poesia. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2010, p. 19-20.
126
***
No primeiro verso está escrito: “The well-built house has fallen to the ground” (“A
casa bem construída caiu no chão”.). O começo do soneto lembra as palavras, que deveriam
ser comunicadas ao rei, ditas pelo oráculo de Delfos: “Cai a casa magnífica”. Essa casa bem
forjada, aparentemente, sólida e indestrutível, desmorona-se, assim como o santuário de
Apolo. E a constatação da morte de Deus aparece logo em seguida: “There is no God among
348
CICERO, Antonio. Op. cit. 83.
127
us anymore” (“Não há mais Deus entre nós”). Se, no “Oráculo,” com a destruição do templo
do deus pagão não há mais o que se profetizar, nem valores absolutos inquestionáveis
ancorados na tradição, pois tudo o que há no mundo está destinado à errância, ao acaso,
igualmente, aqui, não há mais o Deus cristão para fundamentar as coisas do mundo. No outro
poema, o louro sagrado perece, a voz que profetiza se silencia e “As fontes murmurantes se
calam para sempre”. Em “Ignorant sky”, as folhas de louro murcham, não há mais o despertar
da primavera e os profetas, agora sem Deus, tornam-se tediosos, enfadonhos, aborrecidos,
“chatos”: “Our bay leaves wither, our prophets are a bore/ And not a single new spring has
been found” (“Nossas folhas de louro murcham, nossos profetas são um tédio/ E nenhuma
nova primavera foi encontrada”.). Diante da queda da “casa bem construída”, do lugar seguro,
proporcionado pela crença em Deus, forja-se a figura do quarto na tentativa de restituir esse
espaço que se ruiu. Em meio à condição de desamparo pela ausência de um fundamento
positivo para o mundo, do quarto faz-se um abrigo, um refúgio, onde se abrem “janelas
eletrônicas”, através das quais o universo é “digitalizado” e, com isso, uma face distante dele
é trazida para perto desde uma imagem sua aproximada, não fidedigna à original, portanto,
falsa. As “janelas eletrônicas” e o uso da palavra “scan” podem sugerir que o universo é
“transferido”, em uma imagem digital, do mundo real, concreto, objetivo, para as áreas
virtuais de uma tela de computador. O próprio termo “windows” (“janelas” em inglês),
curiosamente, parece fazer uma referência ao sistema operacional Windows. Além disso, ao
final do poema, o “azul artificial” do “céu ignorante” faz lembrar a cor, também azul,
pertencente ao tema padrão desse sistema operacional. No poema “Alguns versos”, há um
fundo azul de uma tela de computador, já mencionado, de onde “As letras brancas de alguns
versos” parecem espionar o poeta, durante a sua criação poética. Esse fundo azul também
sugere a mesma cor do programa de edição de textos do sistema Windows. Outro vocábulo
próprio da linguagem tecnológica, utilizado em “Ignorant sky”, é “zoom”, que constitui,
justamente, um recurso – disponibilizado em alguns equipamentos como computadores,
câmeras fotográficas e de filmagens, celulares –, por meio do qual as imagens podem ser
afastadas ou aproximadas. No “zoom digital” a imagem é processada a partir de um programa
instalado na própria máquina que está sendo operada; um software interno que simula a
aproximação da imagem. Já no “zoom óptico”, também presente em algumas câmeras
fotográficas e filmadoras digitais, a imagem é processada pelo sensor da câmera, que captura
a luz do ambiente para produzir a foto. Tecnicamente, há uma diferença interessante entre os
dois tipos de “zoom”. No primeiro, ocorre uma ampliação e não uma “verdadeira”
aproximação da imagem desejada, resultando em uma imagem com qualidade reduzida, baixa
128
definição e pouca nitidez. Como se diz, a imagem sai “tremida”. Por outro lado, as lentes com
capacidade de “zoom óptico” aproximam a imagem através de um conjunto de lentes internas,
diminuindo a probabilidade de haver distorção da mesma. E a aproximação, nesse caso, se dá de
maneira real. Então, com a “digitalização” do universo, essa “face distante” aproximada pelo recurso
do “zoom digital”, fornecido pelo próprio sistema operacional instalado no computador, comparece, no
poema, como uma imagem distorcida, por ser, de fato, uma “falsa aproximação”. Essa “face distante”
talvez seja o rosto de Deus, que se busca, inutilmente, trazer para perto, através da tentativa de uma
aproximação que não é real. E quando se constata que tudo o que há nesse universo é falso e se
apresenta como uma completa mentira, “E só o que é terrível parece verdadeiro”, o poema aponta uma
saída em direção a uma “estranha devoção”, de encontro a um “céu ignorante” que cintila um azul
artificial, ofertado “pelo mais profundo oceano”. No lugar de uma veneração a um céu que nada sabe e
nada mais fundamenta, o poema afirma, na gratuidade da contemplação de uma estrela suspensa no
firmamento, o encanto desse mundo abissal, ausente de todo e qualquer fundamento positivo que o
sustente.
Negar a positividade da tradição, da história, é garantir o lugar do não fundamento,
do negativo, da pura mudança, do tempo em devir. É resguardar o não histórico da história, o
próprio vazio, o nada. Por isso, a história, relembrando Octavio Paz, “não esgota o sentido do
poema”, pois “tudo que há no mundo some” e precisa sumir, para, incessantemente, ressurgir,
uma vez que “os sentidos morrem a cada instante para renascer constantemente em novas
possibilidades aladas”349. Sendo poesia a “revelação da condição humana e consagração de
uma experiência histórica concreta”350, contemporâneo, moderno ou agoral é aquele que
pensa a história e a poesia enquanto negatividades, e consciente da própria natureza histórica,
do seu pertencimento à tradição, já se reconhece distinto dela, e esse conhecimento lhe
permite ir contra a história, a fim de transformá-la.
As referências ao mundo clássico, na poesia de Antonio Cicero, sustentam-se no
nada, na ausência de todo e qualquer fundamento positivo, e revelam-se enquanto força
criativa, pura potência da linguagem. Além de remeterem a um tempo passado, quando
trazidas para o presente confundem-se com a atualidade do poeta, pois “entre o pretérito e o
atual, as “figuras mitológicas” de Antonio Cicero encontram uma abertura nessas duas
determinações do tempo e se repoetizam pelo mesmo e pela diferença” 351. No poema “Antigo
verão”352, o poeta recorda um dia típico de verão, na cidade do Rio de Janeiro:
349
PUCHEU, Alberto. Op. cit. 21.
350
PAZ, Octavio. Signos em rotação. Tradução: Sebastião Uchoa Leite. Organização e revisão: Celso Lafer e
Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 74.
351
PUCHEU, Alberto. Op. cit. p. 09.
352
CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 31.
129
Tudo começa com uma ida à praia, “depois uma estreia” de algum filme, talvez;
“depois o Baixo” (uma referência à região do Baixo Leblon, localizada entre a Avenida
Ataulfo de Paiva, a rua Dias Ferreira e a rua Aristides Espínola, no bairro do Leblon, no Rio),
muito frequentado, a partir dos anos 70, como um ponto de encontro de vários intelectuais,
artistas, poetas, boêmios e da juventude da época; “e finalmente a festa/ de madrugada, numa
cobertura”, de onde se vê a dispersão das nuvens que cobriam a lua e o Corcovado, prevendo
“uma manhã de praia”/ para um rapaz que àquela altura era/ o derradeiro barco pra Citera”. O
poema é dedicado ao artista plástico, designer e cenógrafo amazonense Óscar Ramos. As
reminiscências contingenciais de um “antigo verão”, no Rio, experienciado pelo próprio
poeta, marcadas pelas determinações de tempo e lugar, confundem-se com “o derradeiro
barco pra Citera”, o passado da tradição clássica, presentificado na atualidade do poeta e do
poema. A ilha grega Citera é conhecida como a ilha de Afrodite, ao abrigar um templo à
deusa do amor, nascida, justamente, da espuma dessas águas, segundo a tradição mitológica.
Os fenícios construíram um templo à deusa Astarte (deusa da lua, da fertilidade, da
sexualidade e da guerra), reconhecida como Afrodite, pelos gregos. Citera, assim, passou a ser
esse lugar idílico tendente aos amantes, encarnando os prazeres amorosos. Em seu blog353,
Antonio Cicero conta que o título “Antigo verão” remete ao poema “Antico inverno”, do
poeta italiano Salvatore Quasimodo. Ele revela, também, que ao escrever o poema, lembrava-
se de toda a ambiência retratada no quadro “L'embarquement pour Cythère” (“Embarque para
Citera”), do pintor francês Jean-Antoine Watteau. Há outros poemas de Antonio Cicero, em
que a tradição do passado mítico se mistura à atualidade do poeta. Em “O grito” 354, Prometeu
353
Texto publicado por Antonio Cicero, em seu blog, em 16 de julho de 2013, juntamente com a imagem do
quadro “L'embarquement pour Cythère” (“Embarque para Citera”), do pintor francês Jean-Antoine Watteau,
ambos disponíveis para acesso no site: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2013/07/antigo-verao-de-antonio-
cicero-e.html. O poema “Antico inverno”, de Salvatore Quasimodo, bem como a sua respectiva tradução podem
ser encontradas também no blog, no link: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2007/12/salvatore-quasimodo-
antico-inverno.html.
354
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 33.
130
355
Ibid. p. 23.
356
Idem. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 57.
357
Ibid. p. 97.
358
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 57.
359
Ibid. p. 37.
360
Idem. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 23.
361
Ibid. p. 29.
362
CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Clássicos Abril Coleções; v. 19. São Paulo: Abril, 2010, p. 402.
363
PAZ, Octavio. Op. cit. p. 74.
364
CICERO, Antonio. “Introdução”. In: Poesia e filosofia. Coleção Contemporânea: Filosofia, literatura e artes.
Organizador: Evando Nascimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 07.
131
o poeta se retira”365. Nesse livro e em muitas entrevistas publicadas em seu blog366, o poeta-
filósofo explicita que poesia e filosofia se opõem, necessariamente. Para ele, a poesia está na
concretude do poema, e a filosofia, na abstração das ideias:
De todo modo, a despeito de tanto o filósofo quanto o poeta terem as cabeças nas nuvens,
não são idênticas suas nuvens. Os assuntos do poeta não são tão genéricos e abstratos
quanto os do filósofo. Ao contrário: parecem ser bastante concretos. O poeta fala, por
exemplo, da manhã, da morte, do nascimento, do azul, dos sapatos, da rua, dos gestos, das
mãos, dos vestidos, das gravatas, do cansaço... Fora o fato de que o que diz essas coisas
não está ligado a questões utilitárias, como é possível supor que haja algum parentesco
entre eles e preocupações filosóficas tais como as que enumerei, isto é “ser enquanto ser”, a
relação entre a matéria e a ideia, ou a natureza da verdade? 367
No que diz respeito à relação entre poesia e filosofia, quaisquer ideias e formas desses
encontros e desencontros estão abertas à multiplicação irrestrita e não podem ocupar o lugar
da pura abertura, fazendo com que tanto a exclusão entre ambas quanto possíveis
indiscernibilidades entre elas sejam contingenciais, passíveis de efetuação, aspectos
fragmentários e passageiros que eclodem momentaneamente do indeterminado, manifestando-
365
Ibid. p. 08.
366
Idem. Acontecimentos. <http://antoniocicero.blogspot.com>.
367
Idem. “A filosofia no poema”. In: Poesia e filosofia. Coleção Contemporânea: Filosofia, literatura e artes.
Organizador: Evando Nascimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 25.
368
Idem. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 237.
369
Ibid. p. 230.
370
Loc. cit.
132
o enquanto tal, para retornar a ele, de acordo com as necessidades históricas, pessoais e da
criação do pensamento. (...) o “erro” seria colocar qualquer possibilidade (seja a da
obrigatoriedade do diferendo, seja a da necessidade exclusiva do desguarnecimento das
fronteiras) enquanto absoluta, vedando a abertura do negativo371.
371
PUCHEU, Alberto. Op. cit. p. 70.
372
CICERO, Antonio. Antonio Cicero. Coleção Encontros. Organização: Arthur Nogueira. 1 ed. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2013, p. 128.
373
Idem. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 238.
374
Loc. cit.
375
PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. São
Paulo: Cosac Naify, 2013, p.154.
133
376
Idem. Poesia e filosofia. Coleção Contemporânea: Filosofia, literatura e artes. Organizador: Evando
Nascimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 129.
377
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 23.
378
Idem. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 234.
379
Idem.O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 173.
380
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 17.
381
Idem. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 79.
382
Idem. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 173.
383
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 59.
134
384
Loc. cit.
385
Idem. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 75. Fragmentos extraídos do poema “Ícaro”, de Antonio
Cicero.
386
Ibid. p. 29.
387
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 35.
388
Ibid. p. 23. Referência ao poema “Proteu”.
389
Idem. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 35. Fragmentos extraídos do poema
“Oráculo”, de Antonio Cicero.
390
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 77. Referência ao poema “Sair”, de Antonio
Cicero.
391
Idem. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 85. Verso extraído do poema “Noite”, de
Antonio Cicero.
392
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 11. Referência ao poema “Prólogo”, de Antonio
Cicero.
393
Idem. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 75. Verso extraído do poema “Ícaro”.
394
Idem. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 33. Verso extraído do poema “Falar e
dizer”.
395
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 23. Versos extraídos do poema “Proteu”.
396
Idem. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 19. Verso extraído do poema “Colono
lacônico”, de Antonio Cicero.
397
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 71. Versos extraídos do poema “Buquê”, de
Antonio Cicero.
135
história, do tempo, para que se possa experimentar o mundo enquanto pura abertura. Deve-se
largar tudo o que aprisiona, aliena, limita, determina, ou está fechado, pronto, domesticado,
conformado, dado: o “cobertor”, a “cama”, o “medo”, “o terço”, o “quarto”, “toda simbologia
e religião”, o “espírito”, a “alma”. Tudo o que impede o homem de experimentar, em toda a
sua potencialidade, a vida, única em sua “inimaginável beleza e dor”. É preciso assegurar a
morte de Deus – que “não existe nem faz falta” –, e de todo e qualquer fundamento positivo, e
abrir-se ao infinito de possibilidades, ao abismo de significações, ao indeterminado. Por isso,
não se deve buscar entradas, mas saídas, como no país das maravilhas, onde não se entra, pois
“ele fica do lado de fora, não do lado de dentro”. E buscar saídas não convencionais, como em
“Huis clos”:
O título do poema lembra o nome da peça teatral escrita pelo filósofo francês Jean-
Paul Sartre, “Huis clos”, traduzida para o português como “Entre quatro paredes” ou “À porta
fechada”. Porém, a tradução para o inglês, “No exit” (“Sem saída”), aproxima-se mais do
sentido que Antonio Cicero sugere ao seu próprio poema. O poeta afirma que “Da vida não se
sai pela porta”, que seria a saída já esperada, mas “só pela janela”. Para ele, o homem não sai
bem da vida, do mesmo modo como não se sai bem das experiências humanas arrebatadoras,
vertiginosas, sofridas, dolorosas e viciantes – “paixões jogatinas drogas”. Não se sai da vida,
portanto, sem vivenciá-la em sua “inimaginável beleza e dor”. E é, justamente, a consciência
disso, e não o medo de “viver depois da morte” – em lugares infernais, semelhantes àqueles
retratados nas obras de Dante Alighieri, Francisco Goya e Hieronymus Bosch –, que faz o
homem não considerar dignas de si mesmo “as saídas disponíveis”, convencionais. Diante
disso, vivendo “[...] em meio a fezes e urina,/ sangue e dor [...]”, o homem nasce para superar
137
toda e qualquer positividade que o fundamenta como tal, toda a visceralidade que o determina
enquanto um corpo, e abrir-se ao indeterminado, às potencialidades infinitas que a vida
oferece: “lendas, mares, amores, mortes serenas”. Essas “[...] plagas de Dante Goya ou
Bosch”, segundo o poeta, “cá estão”, isto é, pertencem à própria vida terrena e não a uma vida
após a morte. Se o inferno está aqui, na terra, e não além da vida, ele se faz presente nas
relações humanas, na convivência em sociedade, nas interações que os homens experienciam.
Retomando a peça teatral sartreana, mencionada anteriormente, nela, o personagem Garcin
diz a frase tão conhecida: “O inferno são os outros”. A obra conta a história de um homem
(Joseph Garcin) e duas mulheres (Estelle e Inès) que morrem e vão para o inferno. Cada um
responde por um crime. Mas esse inferno é bem distinto daquele representado pela tradição
cristã. Os três personagens são confinados em um mesmo cômodo, iluminado e quente, e
condenados a viverem, ininterruptamente, juntos. O inferno criado por Sartre é o próprio
espaço de convivência entre essas três pessoas, marcado por um ciclo de contrariedades e
sofrimentos. Enclausurados em um local sem espelhos, são obrigados a se ver através da luz
da imagem de si mesmos, refletida no olhar do outro. Não há saída. Aquele que olha para os
olhos do outro olha a si mesmo. É desde o olhar do outro que o homem se define enquanto tal,
logo se conhece e se autoconstrói. Na afirmação de Arthur Rimbaud, “EU é um outro”401,
tem-se a experiência do outro como uma condição para a experiência do ser do eu. O eu se
funda na relação com um outro. O eu não é igual ao próprio eu. Qualquer eu é um outro eu
para si mesmo. O poeta português Fernando Pessoa, inclusive, parece partir dessa noção
rimbaudiana, quando cria seus heterônimos, a fim de dar forma aos múltiplos “eus” que
residem no seu próprio eu. No poema “Voz”402, de Antonio Cicero, flagra-se essa
multiplicação de identidades do poeta:
Dentro do seu eu, a voz de um outro ecoa, mas o poeta retifica: “Minto:/
perversamente sou-a”. A voz do outro que ecoa perdida no eu do poeta é a própria voz do
poeta. A confusão sonora entre “sou-a” e “soa” permite uma duplicidade de sentidos: a voz do
401
RIMBAUD, Arthur. “Carta a Georges Izambard.” In: Correspondência. Tradução, Notas e Comentários: Ivo
Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 2009, p. 38-39.
402
CICERO, Antonio. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 15.
138
outro soa no eu do poeta produzindo um eco, ou o eu do poeta é a voz do outro que repercute
pelo labirinto auditivo, ou mesmo, sonoro. Em “Dita”403, o poeta diz assinar “[...] os
heterônimos famosos:/ Catulo, Caetano, Safo ou Fernando”. Ele fala por todos. A voz do
poeta identifica-se com a voz dos seus poetas prediletos:
O bom poema nasce do amor a si mesmo. Se “EU é um outro”, o poeta ouve a voz das
palavras, beija “o espelho d’água da linguagem” e apropria-se da voz do outro. O poeta supera
suas delimitações temporais cronológicas, que o determinam e particularizam enquanto um
sujeito histórico atualizado no presente, e se abre ao outro, cuja voz potencializada, ao ecoar
nele, confunde-se com ele, a ponto de tornar-se ela mesma. Diante disso, os poetas são
fabulosos, inventivos, na medida em que desejam esse outro como potência, isto é, o próprio
eu enquanto “coisa entre coisas”, “anônimo entre anônimos”. Esse eu aberto que assume não
uma identidade qualquer determinada, una, uniforme, mas uma multiplicidade heterogênea
infinita de “eus”, tempos, lugares, linguagens. O desejo a si próprio é a desgraça inevitável
dos poetas, pedindo a eles, intensamente, “que seja dita”, pois “Qualquer poema bom
provém”, justamente, “do amor narcíseo”. A palavra “dita”, presente no título e no último
verso do poema, parece adquirir um duplo sentido. A desdita dos poetas, o trágico destino
narcísico de desejar a si mesmo, pede a eles para ser dita, enunciada, proferida, ou para ser
fortuna, subida felicidade. E, no título, “dita” pode ser entendida como a ventura do próprio
poeta ao falar por outros, de ser heterônimo desse eu vago, aberto, anônimo, indeterminado, e
403
Idem. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 29.
139
remete a uma palavra pretérita, que já foi dita, declarada, mas, potencialmente, reinventada
pelos poetas “fabulosos” e presentificada, no tempo agoral, por uma diferença. Sobre o poema
“Dita”, em entrevista404 concedida à revista Filosofia (da série “Ciência & Vida”), em maio
de 2008, Antonio Cicero confidencia:
[...] a verdade é que não me identifico apenas com os poemas que eu escreva, mas com todos
os poemas de que gosto. Digo mais: sinto como se eu mesmo tivesse escrito todos os poemas
de que gosto. Ora, eu jamais diria isso das obras de filosofia que admiro. No poema “Dita”
acho que consegui exprimir a sensação que tenho ao ler um bom poema.
404
Entrevista de Antonio Cicero a Mônica Serrano, da revista Filosofia, da série “Ciência & Vida”, realizada em
maio de 2008 e publicada em 1º de outubro de 2008, no seu blog, disponível para acesso no site:
http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/10/entrevista-revista-filosofia-da-srie.html.
405
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 25.
140
modo, ele a encontra em si. E, ao final de seu desejo “nos seios das suas mãos”, o amante se
entrega a um gozo que, porventura, se dê pelo fingimento. Como a imaginação, segundo
Octavio Paz, “é o agente que move o ato erótico e o poético”406, é pela via do fingimento, por
meio da força do imaginário que o amante – e o poeta –, ao sair de suas particularidades
positivas, consegue experimentar o fora de si, o fora de suas determinações temporais, locais e
individuais, o prazer máximo do ato erótico e do fazer poético, o mundo como possibilidade
aberta e, infinitamente, potencializado. Ao preparar a entrega da mulher, ele realiza o
exercício de sua própria entrega a ela. Lembrando o enunciado de Rimbaud, “EU é um outro”,
o amante é o seu outro, isto é, a sua amada. Ele concilia em si próprio o seu contrário: “são
lados reversos da mesma moeda”. Ainda que não seja a intenção primordial desse amante
confundir-se com sua amada, parece que ele não tem escolha ou saída. Desejando o outro que,
por sua vez, se encontra no seu próprio eu, o amante acaba por desejar a si mesmo. Essa é a
sua desdita, análoga a dos poetas, no poema anterior. E o gozo nascerá de onde provém todo
bom poema: do amor narcíseo. Em “Canção do Paulo”407, o poeta desejava fazer um poema
que correspondesse à fotografia do seu amor, com a mesma lucidez, precisão e “circunspecto
engenho e arte”, com que o amante prepara a entrega da amada. Mas, nos versos seguintes,
ocorre algo semelhante ao que se observa em “Esse amante”:
406
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1995, p. 12.
407
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 41.
141
amante”. Ambas as construções simétricas anunciam que está por vir uma mudança de planos
intempestiva, uma transformação do estado atual, marcada, especialmente, pelo “agora”, que
aciona o instante da foto, de modo similar ao que a expressão “de repente” realiza nos
poemas, já vistos, “Alguns versos” e “Declaração”. No momento da fotografia, isto é, do fazer
poético-erótico, de repente, “[...] a terra se iluminava/ toda do lado de fora,/ do lado de dentro
a lava,/ não cabendo mais no centro,/ provocava um terremoto/ gostoso, tendo o epicentro/ em
meu sexo, e aí tremia/ tudo na hora da foto,/ ou melhor, da poesia”. Nessa hora, a fotografia
metafórica sai tremida, assim como, também, a poesia. Nesse poema, o fazer poético
confunde-se com o ato erótico. O amante que, a princípio, não desejava se confundir com a
amada, entrega-se a ela e acaba encontrando-a em si mesmo, no seu próprio eu. Aqui, o poeta
quis fazer um poema que fosse o retrato do seu amor, mas, no instante em que a amada
“sorria, posava, dizia “agora””, isto é, no exato momento do disparo da foto, ele se perde ao
olhá-la e se entrega ao frêmito do gozo que o descontrola, o desestabiliza. O encontro com o
outro, em ambos os poemas, instaura no ser do eu desejante o desequilíbrio, a desordem, o
que Rimbaud chama de “desregramento de todos os sentidos”408. Para Georges Bataille, a
experiência erótica representa um dos exercícios que incita o homem a questionar a realidade
que o circunda e, sobretudo, a si mesmo, a partir da consciência de seu próprio desequilíbrio e
incompletude, da perda de sua identidade, conduzindo-o ao autoconhecimento e à
autocriação. No erotismo, assim como na produção poética e artística, a experiência do outro
também é uma condição para a experiência de si. É desde o exercício da alteridade que o ser
experimenta o desdobramento de um “eu” que se põe em dúvida, suspeita todo o tempo de si
mesmo, como um meio de conhecimento e constituição de sua própria identidade:
408
RIMBAUD, Arthur. “Carta a Paul Demeny”. Tradução: Marcelo Jacques de Moraes. In: Revista ALEA:
Estudos Neolatinos. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós-Graduação, 8 v, nº 01, janeiro/junho de 2006, p. 159.
409
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução: João Bernard da Costa. 3. ed. Lisboa: Antígona, 1988, p. 27.
410
Ibid. p. 35.
142
411
Loc. cit.
412
Ibid. p. 22.
413
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 43.
143
o agente que move o ato erótico e o poético”, o poema confunde a relação amorosa com o
próprio fazer poético, no momento em que o poeta associa o ser amado à poesia: “se eras
minha fantasia/ elevada a poesia/ se nasceste em meu poente/ como não te perderia”. Na
realização desse amor, os dois envolvidos se desencontram, perdendo-se um do outro e,
também, de si mesmos, assim como acontece com o poeta, diante da poesia. E o poema-
canção, também, se realiza a partir de um encontro, de uma confusão entre o som e o sentido,
a letra e a melodia. Se o encontro entre o eu e o outro implica uma disjunção entre ambos,
talvez seja isso que defina esse amor como impossível: dois seres distintos, que se misturam
e, necessariamente, se perdem na indiscernibilidade dessa dimensão aberta, indeterminada,
atemporal, extemporânea, agoral, moderna, que é o ato erótico-poético.
Retornando ao poema “Huis clos”, conhecer-se significa reconhecer-se no outro e, a
partir disso, alterar-se. A experiência do outro se torna uma condição privilegiada, para o
conhecimento e a constituição do ser do eu. O inferno é o próprio convívio, que produz
estranhamento, conflitos, tensões, e onde cada um dos conviventes se torna o algoz do outro.
Se “o inferno são os outros” e “EU é um outro”, portanto o inferno “cá está”, na identidade de
cada eu que, por sua vez, sendo outro, já se coloca estranho a si mesmo. O outro, portanto,
não é o responsável por causar dor e sofrimento ao eu, mas este é quem gera o seu próprio
inferno. Para Sartre, não há um plano ou função determinada a priori que constitua os homens
do modo como eles são, isto é, os homens não são feitos para uma finalidade ou essência
específica qualquer. A existência humana precede a sua essência. Segundo o autor de O ser e
o nada, a natureza dos homens não é estática, imutável, pois não existe um Deus a estabelecer
essa natureza. Sem um poder divino e absoluto, para designar uma finalidade à vida dos
homens, estes se veem obrigados a se autodefinirem. Diferentemente dos animais, os homens
têm a capacidade de constituírem a si mesmos, de modo ativo, de acordo com suas próprias
escolhas, embora tenham de aceitar, por vezes, algumas limitações. Sartre sugere que os
homens se libertem do que lhes parece habitual, para se abrirem a um mundo, onde nada é
preestabelecido. Por isso, “nascemos para lendas, mares, amores, mortes serenas”, como diz o
poema de Antonio Cicero. Deve-se buscar saídas não convencionais, que libertem os homens
de sua própria natureza positiva, visceral, pois as fezes, a urina, o sangue e a dor são inerentes
à condição humana, ao ser biológico. É o que o poeta-filósofo pensa a respeito da própria
poesia visceral, “porca, preguiçosa, lerda”. Em uma entrevista414, publicada no jornal O
414
Entrevista de Antonio Cicero, intitulada “Antonio Cicero mistura cidades e palavras num mundo a se
descobrir”, concedida à jornalista, crítica de arte e curadora Daniela Name, publicada no jornal O Globo, em 24
144
Globo, em 24 de julho de 2002, ao falar de seu poema “Merde de poète”, Antonio Cicero
afirma que “a poesia que se quer “visceral” é, de certo modo, o oposto da poesia praticada
pela vanguarda mais forte, que era, ao contrário, construtivista”. E declara: “É da poesia
“visceral” que não gosto. Gosto de poesia construída”. Eis o referido poema:
E se “nascemos para lendas, mares, amores, mortes serenas”, o homem nasceu para ser
livre e, conforme o filósofo existencialista afirma, “Ser livre é estar condenado a ser livre”415.
Uma liberdade não restrita ao ser, meramente individual, particular, mas coletiva, implicando,
por conseguinte, a responsabilidade para com a liberdade do outro, e contribuindo à formação
do sujeito engajado politicamente, a uma democracia, de fato, libertária.
Se “tudo é gratuito”, a modernidade, portanto, instaura-se como o vazio, o “eterno
silêncio dos espaços infinitos que/ nada dizem, nada querem dizer e/ nada jamais precisarão
esclarecer”, porque no mundo moderno:
de julho de 2002, e no blog do poeta, em 07 de maio de 2008. Disponível para acesso no site:
http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/05/entrevista-daniela-name.html.
415
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução: Paulo Perdigão.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 183.
416
Idem. Antonio Cicero. Coleção Encontros. Organização: Arthur Nogueira. 1 ed. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2013, p. 131.
417
Idem. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 35.
145
“Nihil”, a ideia da fugacidade de todas as coisas é retomada pelo uso da figura de linguagem
anáfora, com a repetição da palavra “nada”, no início dos cinco primeiros versos e no sétimo,
além de sua reiteração no último, pois tudo também se revela efêmero e perecível, e o mundo,
abissal, aparece em suspensão, sem qualquer fundamento que o sustente:
418
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 12. Verso extraído do poema “Prólogo”.
146
são positividades contingenciais, acidentais e relativas, logo, “nada disso pode ser
absoluto”419. Esse nada “de onde tudo vem a ser”, como diz o poema “Prólogo”, é eterno
movimento, fluxo, possibilidade aberta e infinita, “mudança pura”:
419
Idem. Antonio Cicero. Coleção Encontros. Organização: Arthur Nogueira. 1 ed. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2013, p. 131.
147
que existe escoa sem cessar/ de volta àquelas águas de onde surge”, mas essas águas “[...]
nunca são as mesmas:/ outras e outras, sem identidade/ além do fluxo, nelas só lampeja/ a
própria mutação, sem mais mutante”. O poema “Nihil” parece também conter a resposta à
indagação presente no “Prólogo”: “Por onde começar?”. Pelo nada; pelo “que é e será e não é
mais; por esse fundamento negativo que traz fluidez a todas as coisas. “Nihil” e “Prólogo”
fazem com que o poema reencontre sua origem, sua própria natureza líquida, proteica. Tudo
vem a ser, a partir desse nada, que sustenta a terra e tudo o que existe, mas tudo também deixa
de ser, voltando ao nada: “é a partir do indeterminado que ele vem a existir, e é para o
indeterminado que ele passa ao deixar de existir”420. Em “Prólogo”, o poeta retorna à Grécia
Antiga, ao início da poesia ocidental com Homero, para convocar o tempo do começo
absoluto, por meio da leitura do mito do rio Oceano. Assim como o nada de “Nihil” sustenta
esta terra e todas as suas positividades, o rio Oceano, “pai das coisas divinas e mortais,/ seu
líquido princípio, fluxo e fim”, envolve a terra, e não só corre em torno de todas as coisas
deste mundo, mas também flui em seus “próprios núcleos e nos lados/ ocultos dessas coisas”.
O rio mitológico a que se refere o poeta não coincide com o rio da água elementar, e nem se
confunde com os outros três elementos essenciais da natureza: terra, fogo e ar. Essas águas
são sempre diferentes, indeterminadas, “outras e outras, sem identidade”. Nas águas do rio
Oceano, “além do fluxo, nelas só lampeja/ a própria mutação, sem mais mutante”.
Se, como afirma Antonio Cicero, “é no indeterminado que se encontra a
possibilidade do determinado”421 e se “é com a não-forma, isto é, com o movimento ou a
mudança”422 que o indeterminado se identifica, o rio Oceano, sendo a “mudança pura”,
identifica-se com o indeterminado, com a figura de Proteu e o conceito de ápeiron, “que é a
poesia”. Assim como as águas do rio absoluto são eternamente distintas de si mesmas, cada
vez que um poema é lido, “ele se torna diferente não só do que era na leitura anterior, mas de
si próprio no exato instante em que o estamos a ler: Eidoteia a abraçar Proteu”. A forma
mortal – Eidoteia –, a abraçar a não forma imortal, o informe – Proteu. O determinado a
abraçar o indeterminado, isto é, o fluxo, a eterna mutação. E como Antonio Cicero chama de
poesia “toda causa da passagem da não forma à forma”, sendo, portanto, “a causa da
passagem do fluxo, do movimento ou da mudança, à forma”, a leitura do mito do rio Oceano
em “Prólogo” pode ser entendida como a manifestação do princípio gerador de formas, o
princípio eidopeico de que fala o poeta-filósofo. Então, por onde começar essa travessia para
420
Idem. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 232.
421
Loc. cit.
422
Loc. cit.
148
as formas, as coisas transitórias que emergem desse rio e que, “após breves percursos”, para
ele regressarão algum dia? Pelo movimento, pelo fluxo das águas absolutas, eternas e “sem
identidade” do rio Oceano. Até que, de repente, “eis que a poesia nos conduz,/ feito um
repuxo e a seu bel-prazer”, de volta do informe à forma, do princípio absoluto ao mundo das
criaturas mortais.
A concepção moderna de niilismo – termo ligado etimologicamente a “nada”, do
latim “nihil”, daí “niilismo” –, começou a se desenvolver no final do século XIX e nas
primeiras décadas do século XX, alcançando o seu mais alto grau com Nietzsche, mantendo-
se viva também na poesia contemporânea brasileira, como se faz notável nos poemas de
Antonio Cicero: “Prólogo”, “Proteu”, “Deus ex machina”, “História”, “Oráculo”, “Ignorant
sky”, “O grito”, “Ícaro” e, sobretudo, “Sair” e “Nihil”. Para o filósofo alemão, o homem
contemporâneo vive em um período de constante decadência e de crise das crenças e
convicções – com seus respectivos valores morais, éticos, estéticos, políticos e metafísicos –,
que oferecem um sentido positivo e supostamente consistente à experiência imediata da vida:
[…] Aí está a tortura que sofri até hoje: todas as leis que presidem o desenvolvimento da
vida me apareceram em contradição com os valores que nos permitem suportar a
existência. Não parece que muitos homens tenham consciência de sofrer de similar estado;
quero, contudo, reunir os sintomas que me levam a crer que esse é exatamente o caráter
fundamental e o verdadeiro problema trágico de nosso mundo moderno e a secreta miséria
que causa ou explica todas as misérias. É em mim que esse problema se tornou
consciente423.
[...] contraste entre este mundo onde até aqui nossas venerações tinham encontrado um
refúgio – essas venerações por causa das quais suportaríamos talvez viver – e um mundo
que não é outro senão nós mesmos: uma suspeita implacável, fundamental e radical com
relação a nós mesmos […], que nos mantém sempre mais perigosamente em seu poder e
que poderia facilmente colocar as gerações futuras diante dessa terrível alternativa:
423
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Tradução: Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo:
Escala, 2010, p. 17.
424
Ibid. p. 62.
149
Para Antonio Cicero, em seu artigo publicado na Folha de São Paulo, intitulado
“Nietzsche e o niilismo”426, a suspeita e a desvalorização e dissolução dos valores supremos
tradicionais constituem a segunda etapa do niilismo, na Europa. A primeira tem sua origem
com a metafísica platônica e o cristianismo. Nesse momento, o niilismo consiste na negação
do mundo sensível, perene, em nome da afirmação do “mundo das ideias”, suprassensível,
eterno e imutável. No entanto, em Vontade de potência, Nietzsche considera que: “a
verdadeira, a grande angústia é esta: o mundo não tem mais sentido. Em que medida a moral
anterior desmoronou com o próprio “Deus”; apoiavam-se um no outro”427. Alimentada pela
“vontade de encontrar a verdade”428, a moral cristã reage aos próprios valores superiores
instaurados pela criação do Deus cristão:
[…] sabemos que o mundo em que vivemos é sem Deus, imoral, “desumano” – por muito
tempo lhe demos uma interpretação falsa e mentirosa, preparada pelos desejos e a vontade
de nossa veneração, isto é, conforme com uma necessidade.
De fato, o homem é um animal que venera! Mas é também um animal desconfiado e o
mundo não vale aquilo que imaginamos que valesse, essa é talvez a coisa mais certa de que
nossa desconfiança acabou por aprender 429.
Diante disso, todos os valores afirmados até então como absolutos são negados, e
“não temos mais o menor direito de supor um além ou um em-si das coisas, que seria
“divino”, que seria a moral encarnada”430. Deus está morto. Em A gaia ciência, a morte de
Deus é anunciada em plena manhã por um “louco” que, correndo pela praça pública, a grita
para uma humanidade que já vivia essa morte, mas sem consciência desse aterrador
acontecimento. Em muitos ouvintes, ali presentes, que já não mais acreditavam em Deus, seu
425
Idem. A gaia ciência. Tradução: Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2006, p. 212.
426
CICERO, Antonio. “Nietzsche e o niilismo”. Folha de São Paulo, Coluna “Ilustrada”, 12 jun. 2010. Artigo
publicado no blog do autor (http://antoniocicero.blogspot.com.br/search/label/Niilismo), em 13 de junho de
2010.
427
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Tradução: Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo:
Escala, 2010, p. 171.
428
Ibid. p. 19.
429
Idem. A gaia ciência. Tradução: Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2006, p. 211.
430
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Tradução: Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo:
Escala, 2010, p. 62.
150
grito provocou riso. Deus está e permanece morto e o “louco” continua a perambular pelas
igrejas anunciando isso:
[…] Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como havemos de
nos consolar, nós, assassinos entre assassinos! O que o mundo possuiu de mais sagrado e
de mais poderoso até hoje sangrou sob nosso punhal – quem nos lavará desse sangue?
Que água nos poderá purificar? Que expiações, que jogos sagrados seremos forçados a
inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não seremos forçados
a nos tornarmos nós próprios deuses – mesmo que fosse simplesmente para parecermos
dignos deles? Nunca houve ação mais grandiosa e aqueles que nascerem depois de nós
pertencerão, por causa dela, a uma história mais elevada do que o foi alguma vez toda
essa história. O insensato se calou depois de pronunciar essas palavras e voltou a olhar
para seus ouvintes: também eles se calaram e o fitaram com espanto.
[…] – Conta-se ainda que esse louco entrou nesse mesmo dia em diversas igrejas e entoou
seu Requiem aeternam Deo. Expulso e interrogado, teria respondido inalteravelmente a
mesma coisa: “Para que servem essas igrejas, se não são os túmulos de Deus?”431.
Viver, agora, não tem mais sentido e “tudo é vão”432, “tudo é falso”433: “Deus, a
moral, a resignação eram remédios para um terrível grau de miséria”434. É a vontade de nada:
“[…] as categorias “fim”, “unidade”, “ser”, graças às quais demos um valor ao mundo, nós as
retiramos dele – e o mundo parece ter perdido todo valor...”435 Negam-se Deus, a moral, a
verdade, e qualquer objetivo ou fim ao mundo, conforme Antonio Cicero aponta: “Se antes a
vida real era desvalorizada em nome dos valores supremos, agora os próprios valores
supremos são desvalorizados, sem que se tenha reabilitado a vida real” 436. Falta coragem para
enfrentar a vida. O niilista reconhece os valores antigos como falsos, mas não tem a força para
destruí-los, tampouco para instaurar novos valores. Contudo, o niilismo revela-se, por meio da
cultura, não somente desse modo passivo, isto é, como um “sinal de decadência e regressão da
força espiritual”437, mas também se manifesta de uma forma ativa, enquanto “sinal de uma
potência acrescida do espírito”438. No niilismo ativo, a vontade de potência assume o seu
poder de ação e destruição, e, a partir dela, o homem é capaz de criar seus valores e afirmar
sua existência:
431
Idem. A gaia ciência. Tradução: Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2006, p. 129-130.
432
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Tradução: Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo:
Escala, 2010, p. 21.
433
Ibid. p. 65.
434
Ibid. p. 23.
435
Ibid. p. 67.
436
CICERO, Antonio. Op. cit.
437
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Tradução: Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo:
Escala, 2010, p. 129.
438
Loc. cit.
151
[...] Nada tem valor na vida a não ser o grau da potência – se porventura se admitir que a
própria vida é vontade de potência. A moral preservou do niilismo os deserdados,
atribuindo a todo homem um valor infinito, um valor metafísico, e integrando-o numa
hierarquia que não coincide com a da potência secular; ensinou a renúncia, a humildade,
etc. Supondo que a crença nessa moral desaparecesse, os deserdados, privados de sua
consolação, desapareceriam.439
Quando não se encontra mais a grandeza em Deus, não será mais encontrada em nenhum
lugar; é necessário negá-la ou criá-la.
[...]
Se não fizermos da morte de Deus uma grande renúncia e uma perpétua vitória sobre nós
mesmos, teremos que pagar por essa perda.442
439
Ibid. p. 23.
440
Ibid. p. 24.
441
CICERO, Antonio. Op. cit.
442
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Tradução: Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo:
Escala, 2010, p. 184.
443
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II. Tradução: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007, p. 22.
152
ser através da ontologia, isto é, concebendo-o a partir da ideia do Dasein – o Ser-aí –, o único
ente capaz de se indagar pelo sentido do ser. O enunciado sobre a morte de Deus trata da
perda do poder do Deus cristão sobre o ente e o homem. Mas, no pensamento de Nietzsche, as
referências a “Deus” e ao “Deus cristão” apontam para o mundo suprassensível,
transcendente, eterno, designando o mundo das ideias, das normas e dos valores, em
contraposição ao mundo dos sentidos. Toda a crítica de Nietzsche representa, de certo modo,
a crítica da metafísica de sua época, pois, para ele, a metafísica consiste na filosofia ocidental
concebida como platonismo. O autor de A gaia ciência considera a sua filosofia, portanto,
opositora à metafísica que se desenvolveu desde Platão. Mas, por outro lado, Heidegger
considera Nietzsche como o último dos metafísicos, ao entender que a filosofia nietzschiana
assume a mesma natureza metafísica do pensamento ocidental, ainda que opere uma extrema
ruptura com a metafísica, isto é, com a tradição. Esse rompimento, porém, não a ultrapassa,
logo não há a superação do niilismo. Partindo do princípio de que, no niilismo ativo, a
vontade de potência afirma o seu poder de ação e aniquilamento e que, por intermédio dela, o
ser torna-se capaz de criar seus valores e reconhecer sua própria existência, a vontade de
potência adentra-se na história do esquecimento do ser que, segundo Heidegger, constitui a
essência da metafísica do Ocidente. A proposição filosófica nietzschiana “Deus está morto” é
entendida como a expressão do fim da metafísica ou, em outras palavras, a crise do
fundamento, a impotência do mundo suprassensível:
A verdade sobre o ente na totalidade chama-se há muito “metafísica”. Toda época, toda
humanidade é a cada vez suportada por uma metafísica e colocada por meio dela em uma
relação determinada com o ente na totalidade, e, com isso, também consigo mesma. O fim
da metafísica descortina-se como o colapso do domínio do suprassensível e dos “ideais”
dele emergentes. Todavia, o fim da metafísica não significa de maneira alguma uma
cessação da história. Ele é o início de um levar a sério este “acontecimento apropriativo”:
“Deus está morto”. Esse início já está em curso.444
444
Ibid. p. 23.
153
os seus valores e ideais, à sua própria vontade, conforme sustenta Nietzsche, isso significa,
para Heidegger, que pela primeira vez o ser é pensado como valor. Trata-se, nesse caso, da
metafísica como “pensamento valorativo”445. A “transvaloração de todos os valores”, segundo
o autor de Ser e Tempo, representa uma transformação nas formas tradicionais de valoração e
a “‘criação seletiva’ de uma nova necessidade valorativa”:
Mas o próprio objeto é força, expressão de uma força. E é por isso que há mais ou menos
afinidade entre o objeto e a força que dele se apodera. Não há objeto (fenômeno) que já não
445
Ibid. p. 24.
446
Ibid. p. 24-25.
447
Ibid. p. 137.
448
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução: Mário
Ferreira dos Santos. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 324.
449
HEIDEGGER, Martin. Op. cit. p. 144.
450
Ibid. p. 138.
154
seja possuído, visto que, nele mesmo, ele é, não uma aparência, mas o aparecimento de
uma força. Toda força está, portanto, numa relação essencial com uma outra força. O ser da
força é o plural; seria rigorosamente absurdo pensar a força no singular. Uma força é
dominação, mas é também o objeto sobre o qual uma dominação se exerce. Eis o princípio
da filosofia da natureza em Nietzsche: uma pluralidade de forças agindo e sofrendo à
distância, onde a distância é o elemento diferencial compreendido em cada força e pelo
qual cada uma se relaciona com as outras.451
451
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução: Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes Dias. Rio de
Janeiro: Editoria Rio, 1976, p. 06.
452
Ibid. p. 19.
453
Ibid. p. 06.
454
Ibid. p. 69.
455
Loc. cit.
155
mas a desvalorização própria destes. O homem assume o lugar de Deus. Todas as formas
transcendentais são negadas e “nada de vontade não é mais apenas um sintoma para uma
vontade de nada, mas sim, ao limite, uma negação de toda a vontade, um toedium vitae. Não
há mais vontade do homem nem da terra”456. O terceiro constitui “o fim extremo do niilismo
reativo”457. O homem niilista, “o último dos homens”458, passa de uma vontade de nada para
um nada de uma vontade, extinguindo-se passivamente. Tudo é em vão: “É o triunfo da
reação, o momento em que, cessando de ser acionada, ela se torna precisamente um
ressentimento”459. E o quarto é o niilismo em sua forma completa, acabada, uma vez que ele
nega a si mesmo e se autodestrói. Trata-se da superação do niilismo pela força da criação de
valores, da ação do homem sobre o mundo e de sua autoafirmação. É o homem niilista que
quer perecer460, ser ultrapassado, e, para tal, torna a vontade de potência uma negação das
próprias forças reativas. Estas, negadas, transmutam-se todas em ativas. Mas, a autodestruição
operada pelo niilismo nada tem a ver com o aniquilamento passivo. Os três primeiros
niilismos, definidos por Deleuze, são etapas sucessivas, pois o negativo é substituído pelo
reativo, o qual termina no passivo que, por sua vez, sofre uma destruição ativa: “Quando as
forças reativas rompem sua aliança com a vontade de nada, esta, por sua vez, rompe sua
aliança com as forças reativas. Inspira ao homem um novo gosto: destruir-se, mas destruir-se
ativamente”461. No niilismo ativo, a negação reaparece não mais para salvaguardar as forças
reativas, mas para sacrificar tudo o que é reativo: “O homem que quer perecer, o homem que
quer ser superado: nele a negação muda de sentido, tornou-se poder de afirmar, condição
preliminar para o desenvolvimento do afirmativo, sinal anunciador e servidor zeloso da
afirmação como tal”462.
A negação e a destruição são as condições fundamentais da afirmação. Esta se opõe
à negação enquanto duas qualidades constitutivas da vontade de potência. A negação é
inerente ao homem, ao contrário da afirmação, que apenas se revela numa instância acima do
homem, exterior a ele, nas trilhas do “Além-Homem”463 ou do “super-humano”, nos termos
de Nietzsche. A negação, portanto, é a afirmação da força. O corpo, conforme conceitualiza o
filósofo francês, é formado por uma pluralidade de forças irredutíveis em luta, na qual
456
Loc. cit.
457
Loc. cit.
458
Ibid. p. 80.
459
Ibid. p. 56.
460
Ibid. p. 80.
461
Loc. cit.
462
Ibid. p. 81.
463
NIETZSCHE, Friedrich. Op. cit. p. 324.
156
algumas forças se apresentam como dominantes (ou superiores)464, as forças ativas, e outras
dominadas (inferiores), as forças reativas. Não existem forças isoladas, porque é desde as
relações entre elas que as mesmas adquirem a qualidade (ou essência) de serem ativas ou
reativas. Segundo Deleuze, há duas espécies de devir: o ativo e o reativo. O niilismo é
concebido como o devir reativo, que é o devir do homem. O autor de Diferença e repetição
observa que, para o filósofo alemão, só há o mundo do devir, e que o ser é a própria afirmação
do devir.
A superação do niilismo, em Nietzsche, só se torna possível de ser pensada pela sua
própria radicalização, isto é, a partir da negação radical do mundo metafísico, da morte de
Deus, enquanto ente que faz essa ruptura extrema com o mundo. É desde essa negação que se
passa a afirmar o mundo e a vida, “a afirmação da vida, mesmo em seus problemas mais
estranhos e mais árduos; a vontade de viver, regozijando-se no sacrifício de seus tipos mais
elevados, por seu próprio caráter inesgotável”465, é o que Nietzsche chama de dionisíaco. É
preciso negar as cristalizações preestabelecidas, abandonar “todos os ideais antigos que
caluniam a vida”466, ou melhor, como diz o poema “Sair” de Antonio Cicero: “Largar o
cobertor, a cama, o/ medo, o terço, o quarto, largar/ toda simbologia e religião; largar o/
espírito, largar a alma, abrir a/ porta principal e sair”, pois “Esta é/ a única vida e contém
inimaginável/ beleza e dor”. Em “Valeu”467, o poeta enfatiza: “Vida, valeu. Não te repetirei
jamais”. Por isso, lembrando o poema “Oráculo”, é necessário dizer “adeus [a]deus”. Dizer
adeus ao deus Apolo, cujo templo sagrado sofrera a queda inevitável, e ao Deus cristão, que já
“não existe nem faz falta”. Agora, “Tudo é gratuito”; “Tudo erra, tanto/ A terra vagabunda
quanto/ Tu, planetário”. Como constata o poema “O fim da vida”468, é a sorte que passa a
orientar a lida humana, cujo único fim é a morte. Só há uma vida e é, justamente, esta
singularidade que a torna sagrada. Não há uma finalidade, um fundamento, um porquê para a
existência: “Todos os fins são destruídos: os juízos de valor se voltam uns contra os
outros”469. Desde que os deuses foram mortos, a gratuidade do existir é reivindicada como
uma tarefa humana que deve ser vivida sem razões e sem explicações. A vida é a própria
vontade de potência e se encerra exclusivamente com a morte, e além desta não existe mais
nada. Eis o poema:
464
DELEUZE, Gilles. Op. cit. p. 21.
465
NIETZSCHE, Friedrich . Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar a marteladas. Tradução: Carlos Antonio
Braga. São Paulo: Escala, 2005, p. 106.
466
Ibid. p. 25.
467
CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 73.
468
Ibid. p. 53.
469
NIETZSCHE, Friedrich. Op. cit. p. 71.
157
470
CICERO, Antonio. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 101.
158
Retomando o conceito de niilismo, este, segundo Nietzsche, “não é uma causa, mas
uma consequência lógica da decadência”472, portanto ele se inscreve no processo histórico da
humanidade de ascensão cultural, de superação de si mesma, enquanto cultura decadente e
humanidade pessimista. Mas é através dessa imersão necessária da cultura e da humanidade
no niilismo – e em suas consequências – que a vida e o mundo serão, genuinamente,
afirmados. É o reconhecimento da possibilidade de a própria humanidade, através de si
mesma, afirmar o mundo do qual faz parte, sem representações e fundamentos absolutos. O
niilismo ativo, definido por Nietzsche, comparece nos poemas citados de Antonio Cicero, na
medida em que eles revelam, notavelmente, esse desejo de plena afirmação da vida,
concebendo os valores absolutos da tradição como fragmentos, “mera[s] lembrança[s]
471
Idem. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 39.
472
Ibid. p. 50.
159
esgarçada[s]”, ruínas que não podem jamais condenar ou aprisionar o homem, nem adoecê-lo
submetendo-o à febre historicista, mas servirem de alimento ao seu espírito, como as
“esplêndidas ruínas” do que sobrou do templo sagrado de Apolo, no poema “Oráculo”. Essas
reminiscências devem servir de alimento ao processo de criação.
No mundo sem Deus, sem fim, sem moral, sem crenças e valores transcendentais, a
vida se encontra, irremediavelmente, destinada ao acaso. O filósofo alemão define
modernidade como “ausência de disciplina moral; os homens foram deixados sob ímpetos do
acaso”473. Para ele, as concepções morais são produtos da história humana, isto é, surgem com
os homens, a partir de suas próprias necessidades. Considerando, portanto, que tais valores
são construções humanas, o homem deve refletir sobre suas noções morais, e enfrentar o
desafio de viver por sua própria conta e risco, sem conformismo, resignação ou submissão.
No mundo moderno – abissal e sem fundamento – viver é destinar-se ao acaso, à ventura. No
último parágrafo da orelha de Porventura, Antonio Carlos Secchin, ao analisar o título do
livro de poemas de Antonio Cicero, ressalta que:
473
Ibid. p. 75.
160
[…] hoje em dia compreendeu-se que o devir não tende para nada, não atinge nada... A
decepção a respeito de um suposto fim do devir é, portanto, uma das causas do niilismo;
que se trate da ausência de um fim definido ou, de uma maneira mais geral, da insuficiência
474
Idem. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução, Notas e Posfácio: Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 68.
475
Idem. Vontade de potência. Tradução: Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2010, p.
247.
161
Dialogando com a leitura que Deleuze faz do niilismo do filósofo alemão, também é
possível flagrar a presença do niilismo em sua forma ativa, sobretudo nos poemas de Antonio
Cicero cuja temática se refere à mitologia clássica, uma vez que trazem a negação radical da
tradição e de todo e qualquer fundamento, a partir do “reconhecimento do caráter meramente
relativo, particular e contingente de todas as crenças e valores dados”, excluindo a crença em
um mundo verdadeiro e transcendental. Instauram uma abertura para a “transmutação de
todos os valores” e, por conseguinte, revelam sua própria força criadora, inventiva e
transgressora. As figuras mitológicas comparecem, por exemplo, nos poemas “Proteu”, “Deus
ex machina”, “Oráculo”, despojadas de seus valores sacralizados atribuídos pela tradição
mítica: da Helena de Troia guarda-se apenas o nome “Helena”, desprovido de todo o seu
sentido original; Ícaro retorna do passado mítico somente por “questão de rima”, como um
mero instrumento para a construção do próprio poema; e o deus Apolo avisa que o seu templo
sagrado já desmoronara e que não há mais verdades, nem respostas a serem proferidas, pois
tudo no mundo está fadado à errância. Nada mais se sustenta na tradição de um passado
valoroso, mas na ausência de qualquer sentido, fim ou fundamento positivo preestabelecido,
como lembra o poema “O parque”477: “e finalmente o que há/ é a via láctea a jorrar/ no alto do
firmamento/ e a seus pés sem fundamento”. Tudo é gratuito, “entre o mar e a cidade/ e o
precipício do céu” e “o abismo do eu”: “as águas da noite”; “as luzes de Niterói”; “a escuridão
e a Urca/ e sobre ela o Pão de Açúcar”; “pistas de automóveis”; “o Hotel Glória iluminado/
atrás de um bosque no breu;/ o monumento, um soldado,/ e adiante o museu/ e a marina;
depois/ vindo lá do aeroporto/ um longínquo odor de esgoto/ ofende as damas da noite”; os
“[...] vultos à beira-mar/ e amantes à meia-luz/ e à superfície do mar/ um azul que tremeluz”;
476
Ibid. 66-67.
477
CICERO, Antonio. “O parque”. In: Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 93.
162
o “[...] desejo encarnado/ na mão de certo moreno/ tão cálido e apaixonado/ que é louco pelo
sereno”. Em “História”, “tudo o que há no mundo some”, e a história é concebida como devir,
isto é, como “algo entre ser e não ser”, um contínuo “vir-a-ser”. No poema “Ícaro”, “ouro
algum permanece”. Em “Don’Ana”478, “Não se acha cerne em nós, tudo é roupagem”, porque
tudo é perfeito em sua imperfeição, isto é, em sua própria perecibilidade. Tudo está destinado,
inevitavelmente, à destruição, ao desaparecimento, ao abismo do nada, inclusive, os corpos.
Parece vital o perecível, o reconhecimento da fugacidade de todas as coisas, porque sem a
destruição, não há processo criador. Ela só triunfa a serviço da vida, como é dito no poema
“Oráculo”: as ruínas dos valores absolutos da tradição, representadas pelo cadáver do deus
Apolo, não devem aprisionar os vivos, mas servir de alimento à vida, à própria criação. E se
não houver caminhos, saídas, Apolo aconselha: “Voa./ Voa ri delira”, na viagem da vida e da
criação poética. Viagem sem retorno ou sem finalidade ou fim, uma vez que:
[…] não há verdade; […] não há natureza absoluta das coisas, da “coisa em si”. Esse é
realmente niilismo, e do mais radical. Ele coloca o valor das coisas precisamente no fato
de que não há nenhuma realidade que corresponda ou que alguma vez tenha correspondido
a esses valores, mas que estes são, pelo contrário, um sintoma de força no criador de
valores, uma simplificação útil à vida479.
si o seu oposto, isto é o ápeiron, que é a poesia”482, esta se apresenta como um campo de
possibilidades infinitas; “a indeterminação tenebrosa que gera e traga os mais esplêndidos
mundos”483, já mencionada. Sendo, portanto, o indeterminado (“infinito”, “ilimitado”,
“indefinido”), que se afirma enquanto o princípio negativo de tudo o que é peperasménon484,
isto é, determinado, “positivo”, “finito”, “limitado”, a poesia se aproxima da filosofia. Ambas
negam todo e qualquer fundamento. Instauram o vazio, a fratura, o abismo. Partem do
estranhamento, do espanto, da contemplação, e apontam para o fora do tempo, em que todos
os tempos comparecem. Longe de instituírem verdades, assim como a história, definida em
seu poema homônimo, a poesia e a filosofia são “algo entre ser e não ser”485, o “já” e o “ainda
486
não” , nas palavras de Agamben. Entendê-las como dois polos do pensamento que se
repelem significa tentar colocá-las, supostamente, cada qual em seu devido lugar: a poesia no
contingente, no finito, e a filosofia, no absoluto, no imaterial. Insistir nessa demarcação de
fronteiras entre elas revela uma tentativa de ocupar o vazio da indeterminação, da
negatividade, com o positivo, o determinado, conforme ressalta Alberto Pucheu:
482
Idem. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 240.
483
Idem. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 173.
484
Idem. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 229.
485
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 59.
486
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro
Honesko.Chapecó: Argos, 2009, p. 66.
487
PUCHEU, Alberto. Antonio Cicero por Alberto Pucheu. Coleção Ciranda da Poesia. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2010, p. 66-67.
164
Pode-se, portanto, chamar de poesia toda causa da passagem da não forma à forma: e como
a não forma é o fluxo, o movimento ou a mudança, pode-se dizer que a poesia é a causa da
passagem do fluxo, do movimento ou da mudança à forma. É o mesmo princípio eidopeico
que se manifesta no episódio de Proteu.490
488
CICERO, Antonio. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005,
p. 238.
489
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 230.
490
Ibid. p. 227.
491
HOMERO. Odisseia. Tradução, Introdução e Notas: Jaime Bruna. São Paulo: Abril, 2010, p. 65-69.
165
Nessa passagem, Menelau, esposo de Helena, cujo rapto pelo troiano Páris resultara
na guerra de Troia, encontra o filho de Ulisses, Telêmaco, que, estando em busca de notícias
sobre o paradeiro de seu pai, suplica a Menelau que lhe conte tudo, francamente, sem
“suavizar a verdade”493. Prometendo-lhe descrever tudo o que acontecera, Menelau, portanto,
relata que, na viagem de regresso de Troia à Esparta, fora retido pelos deuses em uma enseada
na ilha de Faros, próxima ao Egito, durante vinte dias. Quando caminhava sozinho pela praia,
longe de seus companheiros, deparou-se com Eidoteia, a deusa da forma, que, profundamente
comovida com o desespero de Menelau, o aconselhou agarrar o vigoroso Proteu, o informe,
para que o infalível Velho do Mar pudesse lhe ensinar a rota de saída da ilha, e, ajudá-lo,
enfim, a prosseguir viagem. Eidoteia, então, instruiu Menelau como preparar, com o auxílio
de três companheiros por ele escolhidos, uma emboscada. Disfarçados com peles de foca
“recém-esfoladas”494, trazidas do fundo do mar pela filha de Proteu, juntaram-se em meio ao
bando de focas deitadas “alinhadas junto à arrebentação” 495. Sem desconfiar do estratagema,
o Velho do Mar, em seguida, deitou-se também. Nesse momento, Menelau e seus homens
saltaram sobre Proteu e o seguraram com firmeza e paciência. Quando, afinal, cansado de
suas artimanhas em metamorfosear-se nas coisas do mundo: “primeiro, tornou-se um leão de
bela juba, depois uma serpente, um leopardo, um javali enorme; virou água fluente, uma
árvore de altas frondes”496, o Velho astucioso explicou a Menelau que este deveria reparar
uma falta para com os deuses, oferecendo-lhes “santas hecatombes”497, assim conseguiria
“transpor o piscoso mar”498 e regressar à sua pátria. Além disso, Proteu também relatou como
morreram Ajax e o próprio irmão de Menelau, Agamêmnon. Contou que viu Ulisses na ilha
da ninfa Calipso, desprovido de barcos e tripulação, o que o impedia de voltar à sua terra. E,
492
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 219-220.
493
HOMERO. Op. cit. p. 65.
494
Ibid. p. 68.
495
Loc. cit.
496
Ibid. p. 69.
497
Loc. cit.
498
Ibid. p. 67.
166
por último, revelou que, por ser esposo da filha de Zeus, Helena, Menelau não morrerá em
Argos, mas será conduzido pelos deuses aos Campos Elísios.
A partir desse episódio da Odisseia, Antonio Cicero afirma que “metonimicamente,
Proteu se identifica com o fluxo e o movimento, em oposição à Eidoteia, a forma”499. Ao
definir o poema como “uma forma que incorpora em si a marca-d’água do movimento”, “o
seu oposto, isto é, o ápeiron, que é a poesia”, o poeta-filósofo aproxima a sua interpretação do
Proteu de Homero ao conceito de ápeiron de Anaximandro, uma vez que o poema é a forma
que envolve a não forma, a potência de metamorfose, pois a cada leitura “ele se torna
diferente não só do que era na leitura anterior, mas de si próprio no exato instante em que o
estamos a ler: Eidoteia a abraçar Proteu”500. O poema é aquele que se abre a uma
multiplicidade infinita de ideias e formas. Lê-lo significa tentar agarrar o passageiro, a pura
mudança. É desejar apreender o inapreensível, e esse desejo constitutivo da vida humana, o
qual só a morte é capaz de cessá-lo, ao contrário da vontade, que pode ser, de alguma
maneira, saciada, não passa, porque, paradoxalmente, “só deseja o que passa”, como Antonio
Cicero diz em seu poema “Desejo”501:
A imagem do abraço entre Eidoteia e Proteu, utilizada pelo poeta-filósofo, pode ser
entendida como o acolhimento da não forma enquanto fluxo, movimento, metamorfose,
infinito, ápeiron, pela forma. Proteu figura como o princípio absoluto anterior a tudo que é
determinado; um princípio gerador de formas, a que Antonio Cicero chama de princípio
eidopeico:
499
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 220.
500
Ibid. p. 240.
501
Idem. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 19.
167
Proteu assuma o aspecto de todas as coisas representa também o fato de que todas as coisas
sejam aspectos de Proteu.502
Entre o Proteu de Homero, de acordo com a interpretação por mim sugerida, e o ápeiron de
Anaximandro, existem óbvias analogias, pois Proteu é indeterminado, transforma-se em
todas as coisas, e todas as coisas são transformações dele, de modo que o Sócrates do
Teeteto não deixa de ter razão ao perceber uma afinidade entre os primeiros poetas e os
primeiros filósofos. Por outro lado, porém, o ápeiron é um conceito abstrato, que faz parte
de uma proposição, e Proteu, um personagem que faz parte de um poema, o que representa
um mundo de diferença.503
502
CICERO, Antonio. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005,
p. 222.
503
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 238.
168
Franz Kafka
504
KAFKA, Franz. “Desejo de se tornar índio”. In: Contemplação e Foguista. Tradução: Modesto Carone. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 49.
505
Estrofe extraída do poema “Prometeu” ("Prometheus"), de J.W. Goethe. Tradução: Paulo Quintela. O poema
foi publicado na página eletrônica (blog) de Antonio Cicero, Acontecimentos
(<http://antoniocicero.blogspot.com>), em 06 de abril de 2012.
506
CICERO, Antonio. Acontecimentos. <http://antoniocicero.blogspot.com>.
507
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e Tradução: Jaa Torrano. 3. ed. São Paulo: Iluminuras,
1995.
169
508
Idem. Os trabalhos e os dias. Tradução, Introdução e Comentários: Mary de Camargo Neves Lafer. 3. ed. São
Paulo: Iluminuras, 1996.
509
ÉSQUILO. “Prometeu acorrentado”. In: Ésquilo, “Prometeu acorrentado”; Sófocles, “Édipo Rei”; Eurípedes,
“Medeia”. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
170
herói Héracles (o Hércules romano), que liberta Prometeu de sua condenação, e nem a do
centauro Quíron, aquele que assumiu o sofrimento do titã, morrendo em seu lugar. Outro
detalhe é que na versão kafkiana, águias (no plural) devoravam o fígado imortal de Prometeu,
e não somente uma águia, conforme narra a tradição clássica.
No segundo parágrafo, surge a segunda versão, em que um outro destino é atribuído
a Prometeu. A dor ocasionada pelos “bicos dilacerantes” das aves é tão intensa a ponto de o
titã comprimir-se cada vez mais na rocha até fundir-se completamente a ela; ambos se tornam
indiscerníveis, constituindo “uma coisa só”.
Já na terceira versão, logo no parágrafo seguinte, nada mais é dito a respeito do
destino de Prometeu, uma vez que, com o passar do tempo, sua traição fora esquecida pelos
deuses, pelo seu algoz (a águia, agora, no singular) e até mesmo pelo próprio titã.
Na quarta versão, no penúltimo parágrafo, diante do acontecimento sem
importância, a lenda torna-se cansativa. Os deuses e as águias (retornando no plural como no
primeiro parágrafo) se cansam, e a ferida, também cansada, se fecha.
Ao final do texto, nada mais se sustenta na história, tudo se liquefaz com o tempo,
“no curso dos milênios”: o roubo da chama divina, a traição, o castigo, os deuses, as águias e
o próprio condenado. Cansativo, o mito de Prometeu cai no esquecimento. O que permanece é
“a rocha inexplicável”, isto é, o inexplicável. Como a “lenda tenta explicar o inexplicável”,
ela precisa ser esquecida, para, necessariamente, “terminar no inexplicável”. Não há uma
verdade única e absoluta, nem respostas seguras e interpretações fechadas. No texto de Kafka,
a verdade está relacionada ao inexplicável e não ao esclarecimento. O mito sustenta-se no
vazio de significações, na ausência de todo e qualquer fundamento apriorístico, e não mais na
própria tradição mitológica dos tempos clássicos. Em cada uma das quatro lendas contadas
sobre Prometeu, o mito comparece reconfigurado. As postulações absolutas e objetivas que
fundamentam a lenda de Prometeu são reconhecidas por Kafka como positividades relativas,
contingentes, acidentais, portanto, passíveis de serem questionadas, modificadas, reinventadas
ou até mesmo esquecidas. O único absoluto possível é a ausência de todo e qualquer
fundamento positivo. Nada mais resta além da rocha inexplicável, impenetrável, inacessível,
inapropriável. Não há mais nada que a fundamente como tal. A rocha resiste a qualquer
tentativa de ser explicada, esclarecida, desvelada, interpretada. A lenda, que se propõe a
desvendar o enigma, a “explicar o inexplicável”, acaba por reconstruir o sentido oculto da
própria linguagem, terminando, novamente, no que não tem explicação. Em O papel do
indivíduo na história, Guiorgui Plekhanov ressalta que “[...] a tradição somente pode
conservar o que já existe. A tradição não pode nem explicar a origem de determinado rito, ou
171
a forma desse rito e nem a sua conservação. A força da tradição é a força da inércia” 510. No
Ideia da prosa, em seu pequeno ensaio “Defesa de Kafka contra os seus intérpretes” 511, que
começa semelhante ao início da parábola kafkiana sobre o mito de Prometeu – “Sobre o
inexplicável correm as mais diversas lendas” –, Agamben evidencia que todas as
interpretações e explicações que atribuem à obra do autor de O processo são, justamente, o
que a mantém inapreensível, sendo verdadeiras garantias de sua própria inexplicabilidade. E o
mesmo acontece com as lendas que, assim como a “rocha inexplicável”, nada mais explicam:
O primeiro é uma referência a uma fonte tradicional, a função dessa referência é de citar
um fragmento de um mundo cultural anterior, esse fragmento servindo de ponto de partida,
ou ainda de pré-texto à fábula propriamente dita. Esta, que representa, na estrutura do texto,
o segundo elemento, desempenha em relação à citação o papel de uma glosa; comentário,
exegese ou reinterpretação do material tradicional. Essas interpretações são sempre
marcadas por uma grande liberdade, um tom de irreverência em relação ao mito ao qual se
referem514.
510
PLEKHANOV, Guiorgui. O papel do indivíduo na história. São Paulo: Expressão Popular, 2005, p. 95.
511
AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução: João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 135.
512
Ibid. p. 136.
513
CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 85.
514
MOSÈS, Stéphane. “Kafka, leitor de Homero”. Revista Cult. Dossiê Franz Kafka: A literatura como
experimentação política e filosófica. São Paulo, n. 194, ano 17, p. 39-40, set. 2014.
172
Nenhuma de suas criaturas tem um lugar fixo, um contorno fixo e próprio, não há nenhuma
que não esteja ou subindo ou descendo, nenhuma que não seja intercambiável com um
vizinho ou um inimigo, nenhuma que não tenha consumido o tempo à sua disposição,
permanecendo imatura, nenhuma que não esteja profundamente esgotada, e ao mesmo
tempo no início de uma longa jornada. Impossível falar aqui de ordens e hierarquias. O
mundo mítico, à primeira vista próximo do universo kafkiano, é incomparavelmente mais
jovem que o mundo de Kafka, com relação ao qual o mito já representa uma promessa de
libertação. Uma coisa é certa: Kafka não cedeu à sedução do mito516.
515
Ibid. p. 40.
516
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. In:
Obras Escolhidas. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio: Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994, 1 v., p. 143.
173
[...] mata deliberadamente toda metáfora, todo simbolismo, toda significação, não menos
que toda designação. A metamorfose é o contrário da metáfora. Não há mais sentido
próprio nem sentido figurado, mas distribuição de estados no leque da palavra. A coisa e as
outras coisas não passam de intensidades percorridas pelos sons ou as palavras
desterritorializadas seguindo sua linha de fuga517.
517
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Tradução: Cíntia Vieira da Silva.
Revisão da tradução: Luiz B. L. Orlandi. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 45.
518
MOSÈS, Stéphane. Op. cit. p. 38.
519
BENJAMIN, Walter. Op. cit. p. 149.
174
E sobre a relação que Kafka estabelece com suas próprias narrativas e o modo como
o leitor deve conduzir sua leitura diante desse enigma kafkiano, Benjamin continua:
Kafka dispunha de uma capacidade invulgar de criar parábolas. Mas ele não se esgota
nunca nos textos interpretáveis e toma todas as precauções possíveis para dificultar essa
interpretação. É com prudência, com circunspecção, com desconfiança que devemos
penetrar, tateando, no interior dessas parábolas. Devemos ter presente sua maneira peculiar
de lê-las, como ela transparece na sua interpretação da parábola citada. Precisamos pensar
também em seu testamento. Suas instruções para que sua obra póstuma fosse destruída são
tão difíceis de compreender e devem se examinadas tão cuidadosamente como as respostas
do guardião da porta, diante da lei. Cada dia de sua vida confrontará Kafka com atitudes
indecifráveis e com explicações ininteligíveis, e é possível que pelo menos ao morrer
Kafka tivesse decidido pagar seus contemporâneos na mesma moeda 520.
A escrita, para Kafka, entendida como pura potência, deve garantir o não sentido, a
impossibilidade da transmissão da tradição que já fora perdida, o inexplicável, o
incomunicável, o esquecimento, o não fundamento, o negativo. Tudo se encontra a serviço da
escrita. Sendo experimentações, seus textos impelem ao leitor a criar algo a partir deles, mas
não atribuir um determinado sentido a eles. É o movimento da escrita que tem de permanecer
e não, propriamente, a escrita. O que importa, para o autor de A metamorfose, é o não sentido,
o negativo, porque ele recusa toda e qualquer formalização que se coloque enquanto
positividade: “ainda nos impõem fazer o que é negativo; o positivo já nos foi dado”521. Na
edição portuguesa bilíngue de Aforismos (escritos na localidade histórica de Zürau), Álvaro
Gonçalves traduz esse mesmo aforismo como: “É-nos imposto fazer o negativo, o positivo
está já em nós”522. De acordo com a versão do tradutor português, a sentença de Kafka retoma
a definição de Antonio Cicero, em que o positivo é o que “já nos foi dado” e aquilo que
constitui o homem enquanto um “[...] corpo, quer dizer, positividade contingente, acidental e
relativa, isto é, produto, negação negada”523. De certo modo, tal aforismo do escritor tcheco
estabelece um possível diálogo com as conceitualizações sobre o absoluto negativo, presentes
nos textos filosóficos de Antonio Cicero, e, sobretudo, com os seus poemas que encerram
figuras míticas da tradição clássica. A imposição de se fazer o que é negativo, de que fala
Kafka, é necessária, porque o positivo é o determinado, já se conhece, “já nos foi dado”. O
520
Ibid. p. 140-150.
521
KAFKA, Franz. “Aforismo 27”. In: Essencial Franz Kafka. Tradução, Seleção e Comentários: Modesto
Carone. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
522
Idem. Aforismos (escritos na localidade histórica de Zürau). Edição bilíngue. Organizador: Jost Schillement.
Tradutor: Álvaro Gonçalves. Lisboa: Assírio e Alvim, 2008.
523
CICERO, Antonio. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 174.
175
524
MOSÈS, Stéphane. Op. cit. p. 38.
525
CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 23.
526
Ibid. p. 33.
176
A voz que fala no poema é do próprio Prometeu. É ele quem relata a condição em
que, inicialmente, se encontra: “Estou acorrentado a este penhasco”. Não só descreve a sua
situação de aprisionamento, como também, no segundo verso, inconformado com o castigo
que lhe foi imposto, parece questionar, justamente, o fato de estar acorrentado, logo ele, o
destemido titã, o grande defensor dos homens, conhecido por sua astúcia e inteligência: “Logo
eu que roubei o fogo dos céus”. Talvez esteja se perguntando como aquele que ousou desafiar
a ira e o poder de Zeus, sendo o responsável por roubar o fogo sagrado do Olimpo, para
entregá-lo aos mortais, poderia ter um destino tão injusto, trágico e, até mesmo, um tanto
incoerente, diante de tamanha coragem, força e sabedoria? Entretanto, nos três versos
seguintes, o suposto tom de ressentimento e indignação, em seu discurso, parece dar lugar à
manifestação consciente de uma conformidade. Prometeu sabe que não existe mais penhasco,
nem deus algum a puni-lo, mas, apesar disso, segue acorrentado. Para o titã, parece ser esse o
caminho mais fácil e cômodo. Se ele próprio reconhece que tudo o que o fundamentava
enquanto mito – o castigo de Zeus, o penhasco, o deus punitivo –, não existe mais, por que
ainda permanece com suas correntes? Distante de ser o Prometeu corajoso, ousado, majestoso,
sábio, astuto do mito clássico, o Prometeu do poema de Antonio Cicero perde a sua “aura
mitológica”, assim como o da parábola de Kafka, e, despojado de sua sacralidade, não pode
ou não quer se desvencilhar de seus grilhões e acaba seguindo preso às reminiscências de um
passado mítico, ao sentido que o mito traz, originalmente, em si, pertencente a uma tradição,
contudo já perdida. Ele prossegue acorrentado como se quisesse manter-se ainda enquanto
mito, recusando-se a admitir para si mesmo que o próprio mito não mais se sustenta na
tradição e já perdera todo o sentido original e, sobretudo, o seu valor de verdade indubitável.
Ao mesmo tempo, há um mundo de possibilidades e venturas à espera do herói mítico:
177
opta por seguir acorrentado que é a sua própria condição de mito. O Prometeu de Antonio
Cicero é um ser pensante, racional, crítico, cartesianamente, conhecedor de sua própria
condição existencial. Um Prometeu consciente que critica a si mesmo e se autodestrói para ser
recriado, logo um Prometeu apocrítico, moderno, agoral. Por um lado, quer manter-se mito,
por outro, pode, de modo intempestivo, estraçalhar os grilhões que o aprisiona ao penhasco e,
ao mesmo tempo, o tornam propriamente um mito. O poema, de certa forma, assegura o teor
trágico do mito de Prometeu, ainda que, ao seu final, haja uma possibilidade de abertura para
a destruição desse mito, com a eventual libertação do titã. Essa possibilidade, no entanto, se
afirma em termos de uma promessa futura, uma “antevisão”, como diz o próprio significado
do nome “Prometeu”, em grego. Ela não se realiza ao término do poema, portanto, o mito
segue adiante. O título do poema “O grito” parece remeter, justamente, a uma ideia de
desestabilização, de ruptura em relação a uma suposta harmonia inicial. Houaiss conceitua o
vocábulo “grito” como sendo a “emissão forte de voz” 527. A voz em primeira pessoa no
poema é de um Prometeu enfraquecido, cansado, habituado à sua própria condição de
agrilhoado. O grito comparece como uma voz dissonante, que desestabiliza e aponta para uma
mudança radical. Prometeu prevê uma “autocesura”, uma cisão apocrítica, por meio da qual
ele pode negar as determinações positivas do passado mítico, que o fundamentam como mito,
e ser capaz de permitir a si mesmo libertar-se de suas correntes e da conformidade e indecisão
que o dilaceram. E, com a destruição do mito – a negação da positividade do dado –, a
negatividade passaria a ocupar o lugar do absoluto da tradição mitológica. O título “O grito”
lembra o famoso quadro homônimo do artista norueguês Edvard Munch. A pintura apresenta
ao centro a imagem distorcida de uma pessoa com uma expressividade forte em seu rosto de
um grito de horror, sugerindo um sentimento de profunda angústia e desespero existencial, em
face das dores e dificuldades da vida. Mas esse grito aterrorizante é como uma catarse, pois
também traz o alívio e a libertação. Por isso, o Prometeu do poema de Antonio Cicero, em
algum dia, pela sua própria vontade, poderá emitir uma voz tão forte capaz de libertá-lo dos
sentimentos que o reprimem e das ideias que o aprisionam e o impedem de tomar decisões. A
imagem do “grito” é pensada, também, pelo compositor de óperas e teórico alemão Richard
Wagner, em seu ensaio Beethoven, como uma manifestação expressa, objetiva dos
sentimentos mais íntimos dos homens e sem qualquer domínio da racionalidade: o “grito,
lamento ou exclamação é a exteriorização mais imediata da emoção de nossa vontade.
Compreendemos, por isto mesmo, que o apelo que chega ao nosso ouvido é a exteriorização
527
HOUAISS, Antônio. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 378.
179
528
WAGNER, Richard. Beethoven. Tradução: Theodemiro Tostes. Porto Alegre: L&PM Editores, 1987, p. 24.
529
CICERO, Antonio. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 85.
530
Idem. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 65.
531
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia (A Idade da Fábula): Histórias de Deuses e Heróis.
Tradução: David Jardim Júnior. 19 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 142-143; 153.
180
não por um sentimento elevado, nobre, como a coragem ou o amor à sua mãe, mas,
simplesmente, por inveja:
seu caráter mítico e heroico. A figura mitológica assume que desejava mesmo, para si, era o
próprio olhar de Medusa, “[...] o olhar/ sem olhos que vê e se recusa/ a ser visto e desse modo
faz/ das demais pessoas pedras: pedras/ sim, preciosas, da mais pura água,/ onde o olhar
mergulha até a medula,/ diáfanas, translúcidas, cegas”. E o personagem mítico da Medusa,
também, é desconstruído. Com o seu olhar, que não admite ser comtemplado, ela transforma
as pessoas que a olham em pedras “preciosas”, “diáfanas, translúcidas, cegas”, originárias “da
mais pura água”, indeterminada, infinita, absoluta, atemporal, atópica, na qual “o olhar
mergulha”, bem fundo, “até a medula”. Não é possível flagrar, no poema, a mesma dinâmica
do olhar, que acontece, por exemplo, em “Esse amante”, porque o olhar de Medusa aniquila o
outro. Aqui, não há uma intersubjetividade do eu com o outro. Trata-se de um olhar que não
tem olhos, mas vê e se recusa a ser visto pelo outro e, justamente, por isso, mata quem o olha.
Esse olhar petrificador, letal, estando sempre na impossibilidade de ser visto, se mantém,
portanto, infinitamente, inacessível, enigmático, inapreensível. É o que faz Perseu invejar os
olhos de Medusa: o desejo de ter a capacidade de ver sem ser visto; de ver o outro, sem se
deixar afetar por ele. Considerando a afirmação de Rimbaud, já citada, “EU é um outro”,
quem vê os olhos da górgona, olha a si próprio, refletido neles. E se Medusa traz a morte em
seu olhar, aquele que o vê, olha a sua própria morte, dentro de si. Medusa é o outro a quem o
eu, inevitavelmente, se entrega e que, ao mesmo tempo, se encontra no próprio eu, afinal,
“discernir-se dela, ao olhá-la, e achá-la em si são lados reversos da mesma moeda”. No
entanto, encontrá-la em si significa a morte do eu e faz com que a dinâmica do olhar seja
interrompida. E Perseu continua seu relato confessional: “Refleti muito, antes./ Na verdade/
estes meus olhos provêm de carne/ de mulher, não do nada imortal/ da divindade. Como
encarar/ com eles a Górgona? Mas mal/ pensamento assim, lembrei ser mortal/ ela também: e
seu pai é um deus/ do mar mas eu sou filho de Zeus”. Assim como o Prometeu pensante, que
sabe de sua condição existencial, critica a si mesmo e questiona sua própria condição de mito,
Perseu se mostra reflexivo e reconhece suas reais intenções que o moveram a realizar o seu
feito: “Cortei a cabeça da Medusa por inveja”. E refletiu, ainda, quanto aos seus olhos,
provenientes de uma mulher mortal, criatura positiva, contingente, finita, relativa, contrária ao
“nada imortal da divindade”, absoluto, infinito, negativo. Entretanto, Perseu se lembra de que
Medusa, apesar de ser filha de um deus marinho, ela também possuía uma metade mortal, e
que ele mesmo, embora tivesse os olhos de uma mortal, era filho do grande Zeus. A despeito
disso, cauteloso, “não quis enfrentá-la olhos nos olhos”. Quando diz “Refleti muito, antes”,
Perseu parece até anunciar a estratégia que seria utilizada, por ele, para matar a górgona: o
próprio reflexo. Pegou o espelho, que sua irmã Atena o havia emprestado, entrou no quarto de
182
Medusa, sorrateiramente e de modo oblíquo, “[...] vendo/ tudo por reflexos: o seu corpo/ em
terceiro plano, atrás de heróis/ de pedras e dos meus olhos esconsos/ em primeiríssimo. Eis o
corte/ da lâmina especular: do lado/ de cá eu, sem corpo, a olhar; do outro/ lado eu, olho
olhado, olho enviesado/ e rosto e corpo entre muitos corpos,/ um dos quais o dela. A mesma
lâmina/ decapitou-a também: do lado/ de cá guardo seu olhar e faina;/ e lá jaz seu vulto
desalmado. A “lâmina especular” não só corta, no sentido de decapitar Medusa, como
também aparta, significando a disjunção entre o olhar que se encontra “do lado de cá” e o
outro do lado de lá. A lâmina é o espelho, no qual Perseu se vê refletido e vê o seu “olho
olhado”. Ele vê a si mesmo e, ao mesmo tempo, se vê como um outro: “[...] do lado/ de cá eu,
sem corpo, a olhar; do outro/ lado eu, olho olhado, olho enviesado/ e rosto e corpo entre
muitos corpos,/ um dos quais o dela”. E essa mesma lâmina, que permite a dinâmica do olhar,
a intersubjetividade do eu com o outro, é, também, o instrumento causador da morte de
Medusa: “[...] A mesma lâmina/ decapitou-a também”: do lado/ de cá guardo seu olhar e
faina;/ e lá jaz seu vulto desalmado”. Ainda que tenha vencido a górgona, Perseu adverte:
“Mas nada é tão simples”. Mesmo depois de morta, “[...] Do pescoço/ cortado nasceu um
cavalo de asas/ (é que o deus do mar a engravidara)/ e mergulhou no horizonte em fogo/
crepuscular. Contam que, no monte/ Hélicon, seu coice abriu uma fonte”. E os dois últimos
versos do poema revelam algo de inusitado: “A ser não sendo, de madrugada/ levanto com
sede dessa água”. Perseu admite acordar, tarde da noite, sedento pela água da fonte de
Hipocreue, aberta através de um coice de Pégasus. Fonte esta que nascera do próprio pescoço
decepado de Medusa. Embora a tenha vencido, Perseu parece ter sofrido uma espécie de
punição por tê-la matado e, ainda mais, por inveja. Talvez seja possível pensar que o próprio
personagem Perseu se confunda com a figura do poeta, que levanta de madrugada com sede
da água dessa fonte atemporal, fora de si, diluidora de todos os tempos, lugares e sujeitos, na
qual jorra não a “água elementar”, a que se refere o poema “Prólogo”, mas as águas absolutas,
“que nunca são as mesmas” e sim, mananciais de “outras e outras, sem identidade”. As águas
da pura mudança.
E essa sede que faz Perseu (ou o poeta), despertar no fim da noite, por outro lado,
mantém o poeta acordado, precisamente, às “3h47”532, durante o seu trabalho com a
linguagem, o próprio fazer poético. O título do pequeno poema de Antonio Cicero, em
Porventura, marcando o horário da madrugada, já sugere toda a aflição, a inquietação, o
esforço, a dificuldade que se tem ao escrever poesia, como ressalta “O poeta marginal”533:
532
CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 79.
533
Ibid. p. 15.
183
“Que não se engane ninguém:/ ser um poeta é uma África”. Essa é a realidade do poeta: noites
de insônia, noites mal dormidas. E isso faz parte da rotina da escrita poética. E o poeta brinca,
citando Horácio, que dizia preferir aproveitar uma boa noite de sono (lembrando o “carpe
diem” e o gozo em desfrutar o puro prazer das coisas) a lutar com as palavras e não conseguir
dormir:
Bem que Horácio dizia
preferir dormir bem
a escrever poesia.
Em “Deus ex machina”, o mito de Ícaro também retorna do tempo pretérito por uma
diferença. A figura de Ícaro é invocada pelo poeta como mero recurso estilístico para a
confecção de um decassílabo e de um soneto, “só por questão de rima”. O mito é desprovido
de sua “aura mitológica”, a fim de ser instrumentalizado a serviço da escrita, do fazer poético.
Nesse mundo abissal que, suspenso, paira sobre o vazio, o nada, seu destino coincide com o
fim do poema, que termina com a própria queda de Ícaro. E a queda em si não é entendida
enquanto condenação, mas como “dádiva”. É necessário que o mito caia, morra, seja
esquecido, pois o seu único destino possível é o nada, o não sentido, o inexplicável, “o eterno
silêncio dos espaços infinitos”.
No poema “Oráculo”, o templo magnífico dedicado ao deus helênico Apolo já se
encontra em ruína: “fenece o louro sagrado;/ A voz da vidente emudece;/ As fontes
murmurantes se calam para sempre”. Não há mais profecias, nem verdades e respostas
consagradas e absolutas. Tudo o que há no mundo se perde, está destinado à errância. O que
resta ao homem é pisar sobre as “esplêndidas ruínas” de uma tradição já perdida; de um
mundo sem qualquer fundamento positivo que o sustente. E “Se não há caminhos”, o próprio
deus Apolo recomenda: “Voa ri delira”. A morte do mito não deve sepultar o homem, mas
servir de alimento ao espírito dos vivos.
O poema “História” diz que “tudo o que há no mundo some” e não seria diferente com
o passado mítico. Grandes cidades como Babilônia, Tebas e Acra, assim como os
monumentos, perecem com o tempo. Até mesmo “o mais impecável verso/ breve afunda feito
o resto”. No entanto, o poeta, embora consciente de que tudo está destinado a desaparecer,
quer eternizar o verso no agora do poema. A história, definida como “mera lembrança
esgarçada/ algo entre ser e não ser”, afirma-se enquanto negatividade. Nada mais se sustenta
na tradição de um passado nobre e imperioso, mas na ausência de qualquer fundamento
apriorístico. Como, também, em “Ícaro”, “ouro algum permanece”. Além do próprio
184
personagem mitológico de Ícaro, que desejando “as profundezas do céu”, acaba por cumprir o
seu destino rumo ao fundo do abismo do mar, o poeta diz adeus às referências ao mundo
clássico e a tudo o que existe na terra:
A queda de Ícaro, tanto nesse poema, quanto em “Deus ex machina”, confunde-se com
a própria queda da tradição, do fundamento e de todo e qualquer sentido que os mitos,
tradicionalmente, atribuem ao mundo antigo. A partir dessa “dessacralização de personagens
legendários”, conforme observa Mosès, a respeito das curtas narrativas mitológicas de Kafka,
nos poemas de Antonio Cicero, de mesma temática, os mitos retornam à eternidade agoral do
poema desmitificados, historicizados, isto é, enquanto pura abertura, possibilidade,
movimento, mudança, negatividade. A história, retomando o poema homônimo, não pode ser
definida como aquilo que “é”, mas algo que está sempre “vindo a ser”, por isso a indagação
inicial: “A história, que vem a ser?”, ao invés de “A história, o que é?”. Ela é intervalar –
“entre ser e não ser” –, indefinida, imprecisa, fugaz, “mera lembrança esgarçada” passível de
ser esquecida, “noite névoa nuvem nada”. Ela é o nada, o inexplicável. O poeta, consciente da
efemeridade de tudo o que há no mundo, concebe a história como a ausência de todo e
qualquer fundamento e, ao mesmo tempo, a abertura para múltiplas e infinitas ideias e formas.
A história é o movimento, a mudança, o negativo. Os mitos, quando retornam à
contingencialidade do tempo atual historicizados, já trazem em si uma diferença, a
“reviravolta do sentido” de que fala Mosès. Tanto os poemas de Antonio Cicero,
anteriormente mencionados, como “Prometeu” e os outros pequenos textos de Kafka, que
185
534
CICERO, Antonio. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras,
2005, p. 240.
535
Idem. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 35.
186
Inseridos cada um em sua própria modernidade, Antonio Cicero e Kafka são capazes
de expressar, em suas obras, as ideias de fragmentação e ambiguidade, singulares ao mundo
moderno. Relacionam-se com a história, não para decretar o seu fim, mas para afirmarem a
existência de uma historicidade em tudo o que há. Entendida enquanto movimento, fluxo,
mudança, a história é algo que está sempre vindo a ser, e se mantém como uma abertura, um
vazio, que jamais poderá ser preenchido por positividades. Ela é o próprio negativo. Os
sistemas tradicionais de valoração tornaram-se inconsistentes e já não podem mais atuar como
autoridades instituidoras de sentidos e fundamentos positivos para o conhecimento e a práxis.
A tradição dos mitos retorna ao tempo presente dessacralizada; despojada de sua “aura
mitológica” e seu poder divino e revelador. Talvez seja possível dizer, também, sobre os
poemas mitológicos de Antonio Cicero, o que Benjamin escreveu a respeito dessa
desmitificação dos mitos nas parábolas kafkianas de mesma temática:
Se a mudança é intrínseca ao poema, pode-se dizer que todo sentido por ele ofertado
é provisório e cada nova leitura oferece sempre um novo começo, uma nova significação. Ao
reconhecer o seu verso enquanto positividade o poeta já o torna diferente desta, distinto de
toda tradição que o fundamenta. O sentido é construído desde o não sentido. Para manter-se
vivo, mesmo que por um instante, o poema alimenta-se da ruína, do não fundamento, do
presente e de sua própria negação, da errância dos homens, da liquefação de todas as coisas
do mundo, da morte. É o lugar da origem e do fim; do “que é e será e não é mais”537, e do
“Ainda-e-sempre”; do eu e do outro; do pretérito e do atual; da história e do fora do
cronológico, do lugar, de si. Do encontro inapreensível entre a transitoriedade do agora e a
infinitude do eterno; entre o homem e a poesia.
536
BENJAMIN, Walter. Op. cit. p. 143.
537
CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 11.
187
Além de filósofo e poeta, Antonio Cicero também escreve letras de canções. Do livro
Guardar, alguns de seus poemas tornaram-se grandes sucessos da música popular brasileira,
quando sua irmã, a cantora e compositora Marina Lima passou a musicá-los: “Virgem”, “Solo
da paixão”, “Eu vi o rei passar” e “Cara”, na voz de Marina que, inclusive, musicou também
“Canção da alma caiada”, com o nome de “Alma caiada”; “Inverno”, “Maresia” (musicada
por Paulo Machado) e “Água Perrier”, com Adriana Calcanhoto; “À francesa”, com Cláudio
Zoli; “Ignorant sky”, com melodia de Philip Glass; “Dita”, “Logrador”, “Onze e meia” (com o
nome de “O circo”), “Noite”, musicados por Orlando Morais; “Onda”, por Arthur Nogueira;
“Os ilhéus”, por José Miguel Wisnik; “Quase”, por Caetano Veloso e a canção gravada pela
cantora Daúde. Além de letras escritas em parceria com a própria Marina (“Fullgás”, “Três”,
“Pra sempre e mais um dia”, “Mesmo se o vento levou”, “Charme do mundo”, “Pra começar”,
538
Entrevista de Antonio Cicero a Mônica Serrano, da revista Filosofia, da série “Ciência & Vida”, realizada em
maio de 2008 e publicada em 1º de outubro de 2008, no seu blog, disponível para acesso no site:
http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/10/entrevista-revista-filosofia-da-srie.html.
539
Poema de William Butler Yeats , intitulado “A coat” (“Um casaco”), traduzido por Wagner Miranda,
disponível para acesso no site: https://brincandodedeus.wordpress.com/tag/william-butler-yeats/.
188
“Deixe estar”, “Transas de amor”), e outros compositores como “Saída de emergência” (com
João Bosco e Waly Salomão), “O último romântico” (com Lulu Santos e Sérgio Souza),
“Nosso estilo” (com Marina e Lobão); “Para um amor no Recife” (com Marina e Paulinho da
Viola); etc. Em uma entrevista540 para o jornal Algo a Dizer, publicada em 2008, ao explicitar
como a poesia, as letras de música e a filosofia se relacionam em seu trabalho de criação,
Antonio Cicero afirma que a letra não possui uma finalidade em si mesma, mas na totalidade
da canção – que une letra e melodia –, sendo definida como “heterotélica”. O poema, ao
contrário, é “autotélico”, ao trazer em si mesmo o seu próprio fim a cada leitura sua:
Entre a letra de música e o poema, penso que a diferença é que a letra de música é feita para
compor uma totalidade que é a canção; e não apenas a canção, mas a canção cantada, enquanto
que o poema é feito para ser lido. Hoje em dia, costumo fazer letras para melodias que me são
dadas pelos compositores. Por isso, quando as escrevo, levo em conta a melodia. Esta, por um
lado, me inspira, mas, por outro lado, me obriga a seguir determinada métrica, determinado
ritmo, determinado mood. Levo em conta também o compositor da melodia. Não faço a
mesma coisa para João Bosco que para Adriana Calcanhotto. Além disso, levo em conta a
pessoa que pretende cantá-la. Uma boa letra é uma letra que consegue contribuir para que a
canção de que ela faz parte seja boa. Se ela fizer isso, então, mesmo que não seja boa para a
leitura, ela é uma boa letra. Se ela não fizer isso, então, ainda que seja boa para a leitura, não é
uma boa letra. Seu fim não está em si própria, mas na canção. Ela é, portanto, heterotélica. Já
o poema é autotélico: seu fim está em si próprio. Se ele for bom ao ser lido, ele é bom. Por
outro lado, entre a filosofia e a poesia e/ou a letra, a diferença é radical. A filosofia se serve
das palavras para dizer coisas. Já a poesia se serve das palavras e das coisas que as palavras
dizem para construir uma obra de arte, um objeto que vale por si, e cujo sentido não é dizer
coisa alguma em particular.
No entanto, nada impede que haja letras escritas autotélicas, que possam ser
apreciadas sem a necessidade da presença da melodia, como as letras publicadas em Guardar,
consideradas poemas, pelo poeta-letrista. Diante disso, na entrevista541 ao jornal Cândido, ele
evidencia que “[...] uma letra pode perfeitamente dar um bom poema escrito. E nada impede
que um bom poema escrito dê uma boa letra de música. No entanto, um poema não precisa
dar uma boa letra, para ser bom. E, vice-versa, uma letra não precisa dar um bom poema
escrito, para ser boa”. Sabe-se que a associação entre poesia e música, no âmbito da canção,
remonta à própria origem da poesia ocidental na Antiguidade clássica, quando os poetas
trovadores produziam seus poemas líricos, para serem cantados cada um apropriado à sua
540
Entrevista de Antonio Cicero ao jornal Algo a Dizer, Edição nº 09, publicada em 2008 e disponível para
acesso no site: http://www.algoadizer.com.br/edicoes/materia.php?MateriaID=105.
541
Entrevista de Antonio Cicero intitulada “Ler um poema estimula nosso pensamento em todos os sentidos”,
publicada no jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, em fevereiro de 2013, na edição nº 19, disponível
para acesso no site http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=317 e no blog
do poeta http://antoniocicero.blogspot.com.br/search?q=a+cidade+e+os+livros.
189
melodia específica. Com o tempo, a música se perdeu, mas as letras dessas canções foram
preservadas até hoje e consistem nos poemas gregos de Anacreonte, Teócrito, Safo,
Semônides, Píndaro, Catulo, Alceu, etc. O próprio Antonio Cicero revela, na entrevista ao
jornal Tribuna do Norte542, que suas letras são escritas, de um modo geral, direcionadas a
melodias já prontas, a ele disponibilizadas por seus parceiros de composição. Além disso,
para a produção escrita de uma determinada letra, o poeta-letrista considera não somente a
melodia, mas, também, quem está na parceria e a voz que cantará a canção, depois de
concluída. No entanto, ao escrever um poema, ele diz não pensar em nada, apenas no que vai
ocorrendo em sua cabeça, durante o processo da escrita. Ele se coloca a serviço das exigências
do próprio poema. Ao ser perguntado como a sua musicalidade influencia na criação de seus
poemas (os que não se tornaram canções), Antonio Cicero não se reconhece “tão musical
assim”, mas declara que, atento à sonoridade própria da linguagem, pode dispor de qualquer
métrica que achar conveniente:
Na verdade, não sei se sou tão musical assim. Quem é musical é a Marina. Eu faço apenas as
letras. Não toco nenhum instrumento e sou inteiramente desafinado. O que acontece é que
presto muita atenção ao aspecto sonoro – por exemplo, ao ritmo – da própria linguagem e,
naturalmente, ao fazer um poema, sou capaz de usar qualquer um dos recursos de versificação
que me ocorrerem.
542
Entrevista de Antonio Cicero a Pedro Vale, do jornal Tribuna do Norte, publicada em 08 de novembro de
2013, no blog do poeta, disponível para acesso no site: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/antonio-
cicero-um-homem-entre-a-razao-e-a-poesia/236652.
543
Matéria publicada na revista Carioquice, edição nº 30, de julho/agosto/setembro de 2011, intitulada “Um grão
de poesia nas dunas da mpb”, escrita por Mônica Sinelli, a partir de uma entrevista do poeta concedida à
jornalista, disponível para acesso no site: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2011/10/materia-da-revista-
carioquice-um-grao.html.
544
CICERO, Antonio. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 21.
190
paixão”545: “O solo da paixão não dura mais/ que um dia antes de afundar, não mais/ que esta
noite ou esta noite e um dia/ e o clarão da noite antes de amargar./ Um dia solar eu vou lhe
entregar:/ Que ela sequestre o mundo por um dia” (grifo meu); e “Noite”546: “Uma dessas
noites/ Tudo vai embora:/ Leve-nos,/ Ladrão” (grifo meu).
No referido poema-canção “Solo da paixão”, musicado por Marina Lima, o sentimento
voluptuoso da paixão lembra o movimento das águas absolutas do rio Oceano, de “Prólogo”,
inundando todas as coisas do mundo e, feito um repuxo, tragando tudo o que existe – “terra
céu e mar” –, para o fundo de uma “indeterminação tenebrosa”, de onde tudo vem a ser:
outro, instaura no ser do eu desejante aquilo que Rimbaud conceitua como o “desregramento
de todos os sentidos”. Mas, esse estado de euforia, desordem, desequilíbrio, que a paixão
engendra no amante e na pessoa amada, é passageiro, contingente, se liquefaz e escorre rumo
ao mar da indiscernibilidade, da total indeterminação, e “não dura mais que um dia antes de
afundar”. Mesmo assim o poeta deseja que a paixão furte, “sequestre o mundo por um dia” e
ele pergunta a si mesmo “(um dia só será que já vicia?)”. E, depois de arrastar o mundo para o
fundo dessas águas metafóricas, onde “só lampeja a própria mutação”, porque “nunca são as
mesmas: outras e outras, sem identidade”, a paixão traga tudo de volta: “terra, céu e mar”. O
termo “solo” remete, também, à ideia de uma superfície sólida, estrutural, um substrato, no
sentido de ser o próprio fundamento desse sentimento arrebatador. Como todo e qualquer
fundamento é contingente, relativo, particular, ao afundar nessa dimensão atemporal,
extemporânea e agoral, tudo o que fundamenta a paixão, perde suas determinações positivas,
torna-se abissal e se dissipa nesse “espaço diáfano”, translúcido do mundo. No quinto verso
do poema-canção, a palavra “solar”, de um lado, sugere a imagem de um dia ensolarado,
resplandecente, no qual o poeta pretende entregar tudo ao ser amado (“terra, céu e mar”), e do
outro, o termo faz referência à arte de executar o próprio solo musical, que, por vezes, em
uma apresentação, o artista pode desempenhá-lo utilizando o improviso. O “solo da paixão”,
portanto, representaria, justamente, esse momento repentino, arrebatador, o instante que
interrompe a linearidade do fluxo temporal, instaurando uma quebra, uma fratura, no presente
do poeta, permitindo a ele sair de suas próprias determinações cronológicas, locais e
individuais, para experimentar o desejo da entrega do eu ao outro, a violência desse erotismo
ardente, quiçá viciante, capaz de sequestrar, na brevidade de um só dia, tudo o que há no
mundo, inclusive, a pessoa amada. Quando se tornou a letra de canção “O solo da paixão”548,
o poema recebeu novos versos, com uma nova metrificação:
548
Disponível para acesso no site: http://marinalima.com.br/novosite/musicas/registro-a-meia-voz/.
193
Vêm lá do canal
Reverberações
Do ladrar de um cão.
Abre-se o sinal
Sem ninguém passar.
É melhor ser vão
Tudo o que pontua
Nossa escuridão.
Em uma noite qualquer, que “banha” o poeta, assim como as reminiscências de uma
tarde, em “Alguns versos”, o som do latido de um cão, vindo “lá do canal”, reverbera pelas
ruas escuras e, aparentemente, desertas, já que, ao abrir o sinal, ninguém passa, nem
pedestres, nem veículos. É a descrição de uma típica cena urbana noturna, na qual, ao fundo,
194
se ouve o eco do “ladrar” de um cão. Mas, se “tudo o que há no mundo some”, como diz o
poema “História”, de repente, o poeta parece deslocar-se de si e do tempo, experienciando
uma fratura, uma quebra do seu presente, do cotidiano positivo e contingencial, e afirma:
“Uma dessas noites/ Tudo vai embora:/ Leve-nos,/ Ladrão”. A noite, o canal, o ressoar do
latido, o cão, o passado, atual, o futuro, o próprio poeta e todas as demarcações temporais,
locais e individuais “vão embora”, se dissolvem, são “furtadas”, “sequestradas”, tragadas para
uma dimensão atemporal, impessoal, ilimitada, de onde se originam e resplandecem todas as
presentificações, para gerarem o mundo aberto, em que o poeta pode experimentar as
potencialidades de todos os tempos e lugares. Mesmo com o sinal aberto, não há ninguém
para atravessar a rua. O nada se oferece ali, gratuitamente, porque “É melhor ser vão/ Tudo o
que pontua/ Nossa escuridão”, o breu de onde provém a luz, o mundo; “um nada de onde tudo
vem a ser” e para onde tudo converge. Para o poeta, o melhor é ser “vão”, pois “não se acha
cerne em nós, tudo é roupagem”. O “bom é ver-se no espaço diáfano do mundo, coisa entre
coisas [...], fora de si”, de seu tempo e lugar, “peixe entre peixes, pássaro entre pássaros”,
“anônimo entre anônimos”. É, no fundo de si, ser sem fundo, sem conteúdo. Ter o centro de si
mesmo vago, aberto, vazio, desprovido de todo e qualquer fundamento que o pontue. E é
desde o “vão” entre o atual e o extemporâneo, o vivido pelo poeta numa noite e o seu não
vivido, que emerge o fora do presente, raptando todas as contingências e particularidades,
para diluí-las na experiência poética de uma indeterminação absoluta, onde tudo se
potencializa e se transforma. Em “Onze e meia”549, poema musicado por Orlando Morais,
com o nome de “O circo”, a imagem da noite aparece, novamente, como essa dimensão
poética extemporânea, agoral, fora das determinações de tempo e espaço, na qual tudo se abre
e se ilumina:
Quando a noite vem
um verão assim
abrem-se cortinas varandas
janelas prazeres jardins
549
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 47.
195
[...] o juízo de gosto é meramente contemplativo, isto é, um juízo que, indiferente em relação à
existência de um objeto, só considera sua natureza em comparação com o sentimento de prazer
e desprazer. Mas esta própria contemplação é tampouco dirigida a conceitos; pois o juízo de
gosto não é nenhum juízo de conhecimento (nem teórico nem prático), e por isso tampouco é
fundado sobre conceitos e nem os tem por fim.551
[...] o juízo de gosto é um juízo estético, isto é, que se baseia sobre fundamentos subjetivos e
cujo fundamento de determinação não pode ser nenhum conceito, por conseguinte tão pouco o
de um fim determinado.552
550
KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução: Valério Rohden e António Marques. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 72.
551
Ibid. p. 54-55.
552
Ibid. p. 73.
553
Ibid. p. 72.
196
que um retrato pode ser perfeito ainda quando assim não seja o retratado”. E, na
“exemplaridade esplêndida da sua solidez”, o caráter de sua excepcionalidade se deve,
justamente, ao fato de ela ser o que realmente é e não a como é que ela deveria ser.
Na última estrofe do poema-canção, o poeta admite não revelar de uma só vez ao seu
amado todos os sinais de volúpia, “todos os bichos” que fazem parte do jogo erótico da
sedução, do fascínio, do encantamento. Assim, ele “arma o circo”, prepara a entrega de si e a
do outro, “[...] com não mais do que uns cinco ou seis/ leão camelo garoto acrobata”. O poeta
confunde, no mesmo verso, onde se espera uma sequência de nomes de animais, dois
elementos destoantes: “garoto” e “acrobata”, ou apenas um, “garoto acrobata”, em virtude da
ausência de pontuação entre as palavras. O poeta guarda em si o seu próprio fora, o fora de
suas particularidades que determinam, objetivamente, sua existência pessoal. Em si mesmo, o
poeta encerra o fora de si, o “vão”, o “centro vago”, o sem fundamento, o ilimitado, oculto do
seu ser. Tanto no fazer poético quanto no ato erótico, é desde esse fora de si que o poema é
escrito e o poeta, assim como os deuses que “gostam de se disfarçar”, pode lidar não apenas
com a sua atualidade já conhecida, já dada, mas com uma multiplicidade de ideias e formas,
“todos os bichos”, isto é, todas as potências de seu tempo presente e, por conseguinte, de
todos os tempos.
As imagens da noite, da escuridão, da opacidade, do assombro, das trevas, do fundo
das águas, do breu são recorrentes nos poemas e nas letras de canções. É dessa dimensão
escura que provém a luz e tudo o que existe, e para onde tudo retorna, como no poema “O
emigrante”, em que o personagem, desejando o ocidente por um olhar, desde sempre,
“límpido e grávido”, chegou, enfim, à terra, “ao fim de todo mar”, sem absolutamente nada:
“Sem planos certos foi e até sem roupa,/ Sem cada dia o pão e sem família,/ Sem nem saber o
que era o ocidente,/ Chegou chorando assim como quem nasce”. Mas, desse nada,
intempestivamente, tudo se abre, se ilumina e vem a ser, “E o mundo alumbra um segundo e
assombra”. Em “Cara”554, outro poema-canção também musicado por Marina Lima, “Jamais
foi mais escuro/ no país do futuro/ e da televisão e as demarcações cronológicas e pessoais se
perdem, e só o desejo pelo outro, pela figura do amado, se torna válido, relevante, e o amor
adquire a lucidez na própria escuridão do seu ser: “Entre bilhões de humanos/ e siderais
enganos/ eu quero é te abraçar./ Mil novecentos e não sei quanto/ É fim de século e no
entanto/ é meu:/ meu cada gesto cada segundo/ em que te amar é um claro assunto/ no breu”.
Eis a letra na íntegra:
554
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 49.
197
Dentro do labirinto
o que eu sinto eu sinto
e chamam de paixão.
Há sonhos e insônias
Ozônios e Amazônias
e um novo amor no ar.
555
Ibid. p. 51.
198
Lá mesmo esqueci
que o destino
sempre me quis só
no deserto sem saudades, sem remorsos, só
sem amarras, barco embriagado ao mar
Conheci-o no Arpoador,
garoto versátil, gostoso,
ladrão, desencaminhador
de sonhos, ninfas e rapsodos.
556
Ibid. p. 57.
199
e prometemo-nos a vida:
Comprei-lhe um picolé de manga
557
Ibid. p. 71.
200
Em “Maresia”558, poema cuja primeira versão, musicada por Paulo Machado, foi
gravada por Marina Lima, em 1981, para o seu disco Certos Acordes e, relançada na voz de
Adriana Calcanhoto, em 2000, no álbum ao vivo Público, o ser amado vai embora, e parte
levando consigo a identidade do eu do poeta, deixando-o desorientado, perdido de si e de sua
realidade temporal e espacial:
Ou se partisse colava
Com cola de maresia
Eu amava e desamava
Sem peso e com poesia
558
Ibid. p. 73.
201
imaginação do poeta parece configurar uma espécie de vingança, em resposta ao estado inicial
descrito na primeira estrofe do poema: “Ah, seu eu fosse marinheiro”. E se, porventura, o
coração do poeta se partisse, ele usaria “cola de maresia”, para restituí-lo. Mas, como a
maresia age de uma forma corrosiva, a imagem criada no poema, justifica os dois versos
seguintes: “Eu amava e desamava/ Sem peso e com poesia”. O enlace e o desenlace sem o
peso da culpa e do remorso, mas com lirismo. Lembrando a afirmação de Octavio Paz de que
a imaginação “é o agente que move o ato erótico e o ato poético”, é pela força do imaginário,
que o poeta consegue escapar de suas demarcações temporais, geográficas e pessoais, para
experimentar o fora de si, de sua identidade, de tempo e lugar, onde todos os tempos e lugares
comparecem: “Seria doce meu lar/ Não só o Rio de Janeiro/ A imensidão e o mar/ Leste oeste
norte sul/ Onde um homem se situa/ Quando o sol sobre o azul/ Ou quando no mar a lua”. É a
palavra poética que possibilita o desenraizamento do poeta, transformando-o no “homem do
mundo”, conforme a expressão de Baudelaire, em um cosmopolita, aberto às infinitas viagens
ficcionais, por esse “mar sem margens”, ilimitado, extemporâneo, potencializado. Mantendo-
se em movimento, como as águas do mar, sem nunca chegar de modo definitivo, sendo
sempre passante, é o poeta quem vai, infinitamente, partir e não mais lamentar a partida do
outro. Livre, sem se fixar em lugares, amores, sem se apegar, emocionalmente, a nada e a
ninguém, ele “Não buscaria conforto/ Nem juntaria dinheiro”, não faria planos futuros, nem
teria projetos e, como diz o outro poema-canção “Inverno”, “sem saudades, sem remorsos, só/
sem amarras, barco embriagado ao mar”, aberto ao acaso, ao inesperado, ao intempestivo.
Ao longo de todo o poema-canção “À francesa”559, musicado por Cláudio Zoli, o
poeta vai descrevendo o que aconteceria com ele, hipoteticamente, caso a pessoa amada fosse
embora: ficaria perdido de si mesmo, desorientado, flanando pelo “[...] mundo afora/ Na
cidade que não tem mais fim”, dispensando possíveis pretendentes ou aceitando investidas
amorosas, agindo de um modo leviano e inconsequente. Mas, ele ironiza o estado de si
mesmo: “pobre de mim”. Além disso, certamente haveria tristeza, e se o amado partisse sem
se fazer notar, “à francesa”, o poeta “viajaria” muito mais em sua imaginação, criando ainda
mais situações hipotéticas, “viagens ficcionais”:
559
Ibid. p. 77.
202
A primeira letra de canção escrita por Antonio Cicero e musicada por sua irmã foi
“Alma caiada”, variante do poema “Canção da alma caiada”561. A música chegou a ser
gravada por Maria Bethânia, mas a ditadura militar acabou censurando a faixa em seu disco,
no ano de 1976. Mais tarde, Zizi Possi a gravou, três anos de depois:
Na primeira estrofe, o poeta declara que, desde sua infância, fora educado a nada
questionar e a se manter calado, quieto, domesticado, e “jamais ousar”. No entanto, o verso
“E dançar conforme a dança”, ao invés de “dançar conforme a música”, parece já introduzir o
estado de inquietação permanente, em que ele se encontra. O dito popular, amplamente
conhecido, já solidificado, cristalizado sofre uma pequena mudança, mas suficiente para fazer
do já dado, do já esperado algo de inusitado, fora da repetição do senso comum, provocando o
560
Disponível para acesso no site: http://marinalima.com.br/novosite/musicas/proxima-parada/.
561
Ibid. p. 61.
204
Só proponho
alimentar seu tédio.
Para tanto, exponho
a minha admiração.
Você em troca cede o
seu olhar sem sonhos
à minha contemplação:
562
Ibid. p. 63.
205
O que o poeta deseja mesmo, acima de tudo, é celebrar o livre prazer da admiração e
da contemplação, sem fundamento, sem um fim determinado. É esse o movimento que a
poesia de Antonio Cicero realiza e é, justamente, essa a força da “essência selvagem da
poesia” moderna e contemporânea: a abertura que possibilita a coexistência de tudo o que já
se conhece, do já visto, do trivial, dos “clichês”, daquilo que já se configura um déjà vu, com
o não vivido, as potências dos tempos, lugares e sujeitos heterogêneos, infinitos, assegurando
o lugar do estranhamento, do espanto, do intempestivo, do extemporâneo, do agoral, da
mudança.
Em muitos de seus poemas e letras de canções, é possível flagrar a presença de
elementos vinculados à própria biografia do autor: a figura de Marcelo, a pessoa amada do
poeta; personagens rememorados de sua infância, como Don’Ana, e até mesmo de toda a sua
vida, como Francisca; a praia do Arpoador; o Pão de Açúcar; o Corcovado; a Urca; o Hotel
Glória; o Museu de Arte Moderna do Rio (MAM), no parque (ou aterro) do Flamengo; a
marina da Glória; o Monumento aos Pracinhas (ou Monumento aos Mortos da Segunda
Guerra Mundial); o aeroporto Santos Dumont; a zona sul carioca; o cinema Roxy, em
Copacabana; a Avenida Atlântica; os bairros do Leblon e Ipanema; o centro da cidade do Rio
de Janeiro, com seus “[...] becos, travessas, avenidas, galerias,/ cinemas, livrarias: Leonardo/
da Vinci Larga Rex Central Colombo/ Marrecas Íris Meio-Dia Cosmos/ Alfândega Cruzeiro
Carioca/ Marrocos Passos Civilização/ Cavé Saara São José Rosário/ Passeio Público Ouvidor
Padrão/ Vitória Lavradio Cinelândia”. O poema “Ônibus”, segundo Antonio Cicero, na
entrevista ao jornal Cândido, foi desencadeado por um acontecimento, que ele mesmo
presenciou. Em Porventura, “La Capricciosa”563 faz menção à perda de seu irmão, Roberto
Correia Lima. Escrita para a melodia de Marina Lima, “Eu vi o rei passar” 564 consiste em uma
homenagem ao seu pai, Edwaldo Correia Lima, após o seu falecimento:
Um rei assim
não ouve muito bem
e adora luz;
sem ver ninguém
prefere olhar
o horizonte, o céu:
longe daqui
é tudo seu.
563
Idem. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 55.
564
Ibid. p. 89.
206
Um rei assim
cultiva a solidão
sombria flor
no coração
e claro é
que o pêndulo do amor
às vezes vai
até a dor
Devo dizer
que não sofri demais.
Devo dizer
que acordei.
Mesmo sem ser
tudo que imaginei
devo dizer
que o amei.
O eu que fala na letra diz testemunhar a passagem de um rei pela vida até a sua morte.
Um rei que “não ouve muito bem/ e adora luz;/ sem ver ninguém/ prefere olhar o horizonte, o
céu:/ longe daqui/ é tudo seu/ Seu sangue azul/ ninguém diz de onde vem/ de que sertão/ que
mar, que além;/ e para nós/ ele jamais se abriu/ senão uma vez/ quando partiu”. Um rei que
“cultiva a solidão/ sombria flor no coração/ e claro é/ que o pêndulo do amor/ às vezes vai/ até
a dor”. Mas, ainda que tenha sido “um rei assim”, sem ser tudo aquilo que o poeta imaginava,
este reconhece: “devo dizer/ que o amei”. A letra refere-se tanto à vida quanto à morte do pai
de Antonio Cicero. Sua irmã, porém, de acordo com o poeta-letrista, em uma entrevista
concedida à revista Cult, em março de 2013, “talvez porque não quisesse se referir à morte,
preferiu cantar: “Eu vi o rei chegar””565. No entanto, em Guardar, o título original foi
mantido.
565
Entrevista de Antonio Cicero intitulada “A lira de Antonio Cicero”, concedida a Marcus Preto, para a revista
Cult, em março de 2013, disponível nos sites: http://revistacult.uol.com.br/home/2013/03/a-lira-de-antonio-
cicero/ e http://poebrasoficial.blogspot.com.br/2013/03/a-lira-de-antonio-cicero.html (publicada neste em 12 de
março de 2013).
207
566
CICERO, Antonio. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 75.
567
LIMA, Marina. Maneira de ser. Organizadores: Marina Lima e Márcio Debellian. Rio de Janeiro: Língua
Geral, 2012, p. 191.
208
Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.
568
ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. Prefácio: Silviano Santiago. 23. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2007, p. 43.
569
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 55.
209
pelo poeta como sendo esse acaso, que faz a pessoa amada e todos os seres constituírem o que
propriamente são. Tudo o que é positivo, contingente, particular é uma “Criatura de um só
dia”. De um lado, “És festa”, do outro “Serás luto”. Ao ser amado, o poeta diz: “És festa
sonho carne frêmito./ Não mereces este prazer/ Nem eu mereço teu amor:/ Tudo entre nós é
gratuito/ E muito/ E parte./ Cardumes de sol ao mar/ Quase sem arte/ Quero-te feliz”. A
beleza de todas as coisas está na própria gratuidade delas. No poema-canção “Virgem”, assim
como em “Água Perrier”, também comparece a celebração do livre prazer da admiração e da
contemplação desinteressadas, sem um fim determinado. Trata-se de um olhar consciente da
efemeridade de todas as coisas do mundo e da existência da gratuidade em tudo o que há.
Diante dessa constatação, a qual retoma o primeiro verso do poema-canção, “As coisas não
precisam de você”, o que resta ao homem é contemplar, sorver todas as belezas disponíveis no
mundo e saber aproveitá-las; entregar-se ao desejo pleno de afirmação da vida presente,
assumindo seus riscos, suas escolhas, suas dores, porque “o farol da ilha só gira agora”, no
agora em si, na essência do instante, e gira agora só à procura de “outros olhos e armadilhas”.
Em meio à imensidão profunda e ilimitada do breu da noite, o farol do atemporal, do
extemporâneo, ilumina todas as coisas do mundo, trazendo-as às superfícies gratuitas e
silenciosas do tempo presente “[...] que nada dizem, nada querer dizer e/ nada jamais
precisaram ou precisarão esclarecer”, como revela o poema “Sair”. O farol da ilha aparece em
simetria com o farol dos olhos do poeta. O olhar da ilha e o olhar do eu do poeta se
confundem. Se nada fundamenta a existência do homem e de tudo o que há, o sujeito se
reconhece como um ser solitário no mundo, entregue ao acaso, ilhado, dependente apenas de
suas próprias potencialidades. Mas, assim como uma ilha, ele se encontra banhado por um
mar infinito, aberto em suas múltiplas possibilidades. Por isso, o farol gira sempre por outros
olhos que, semelhantes às águas do rio Oceano, nunca são os mesmos, pois neles “só lampeja
a própria mutação”. O farol procura “sobre todas as coisas” um olhar vago, vazio,
imprevisível, livre de toda e qualquer razão ou fundamento. O olhar da pura mudança, do não
vivido, do não conhecido, do não dado, do inacessível, do inapreensível, do intocado, do puro
aberto. Um olhar, portanto, “virgem”, que jamais deixa de se surpreender, de se espantar
diante das coisas, como se as olhasse sempre pela primeira vez. Para se tornar letra de canção,
a ordem de alguns versos do poema foi alterada, além de algumas de suas palavras:
Por
Outros olhos e armadilhas
Outros olhos e armadilhas
Eu disse
Outros olhos e armadilhas
Outros olhos
E armadilhas
Composta por Antonio Cicero, em 1984, em parceria com Marina Lima, a canção
“Fullgás”571 foi lançada no álbum homônimo dela, o quinto da carreira da cantora. O título é
um neologismo criado, a partir da combinação do termo inglês “full” – cheio, pleno, completo
– com a palavra “gás”. Juntamente com o encarte do disco, vinha o “Manifesto fullgás”,
assinado pelos dois irmãos:
570
Disponível pra acesso no site: http://marinalima.com.br/novosite/musicas/virgem/#musica-6.
571
Disponível para acesso no site: http://marinalima.com.br/novosite/musicas/fullgas/.
211
Somos brasileiros e estrangeiros. Somos estrangeiros porque a nossa verdadeira casa e a casa
da nossa música não têm paredes, nem teto, nem cerca, nem fronteiras. Não vegetamos nem
precisamos de raízes.
Mas nascemos aqui, aqui trabalhamos e escolhemos ser brasileiros. Por quê? Porque este país
é a nossa casa. A força dele, como a nossa, não pode vir de nenhuma fonte pura. Fontes puras
não existem. O Brasil vem da fusão de todas as águas, de todas as correntes culturais, da
miscigenação. Por isso ele realmente mete medo em todos que sofrem de agorafobia.
Como a música é a expressão mais viva da cultura no Brasil, é justamente a ela que os caretas
querem impor sua “ordem”. E a ordem dos caretas é, e sempre foi, a da fidelidade às tais
“raízes” ou “purezas” ou sabemos lá o quê.
Já para nós, bom é ser contemporâneo ao mundo. Tomamos partido pelo presente e nele pelo
mais full gás e mais fugaz. Se nossa música é política? Nossa música É a nossa política.
Queremos descobrir novas possibilidades: não de fazer “arte”, mas de viver.
Chega de ideais repressivos, cagando regras, fingindo estar acima do tempo e dizendo, por
exemplo, que devemos ser heterossexuais ou bissexuais ou que devemos ou que não devemos
ter ciúmes, ou que temos que gostar da bossa nova ou fazer samba ou ser new wave.
Melhor para nós são a descoberta e a liberação dos desejos e gostos autênticos de cada um.
Nossa música é simples, deliberadamente simples e direta. Por isso mesmo ela é mais difícil
para aqueles que se viciaram às velhas fórmulas. Sabemos que somos profundos demais e
superficiais demais para essa gente.
Não há CAMINHO REAL para fazer algo que enriqueça o mundo. Por mais que certos setores
da “vanguarda” sugiram uma evolução linear da Música, a verdade é que às vezes é do mais
“vulgar” que vem o toque mais sutil. E é claro que o novo vem de onde menos se
espera. Assim somos nós. Assim é o que fazemos. Simples como fogo. Fullgás (Marina Lima
e Antonio Cicero).572
572
Disponível para acesso no site: https://musicaemprosa.wordpress.com/2016/08/01/marina-lima-fullgas-
quando-os-discos-tinham-encarte/.
212
de Antonio Cicero. O eu que fala na letra da música se dirige, repetidas vezes, a um “você”, o
qual parece ser a pessoa amada:
Noites de frio
Dia não há
E um mundo estranho
Pra me segurar
Então onde quer que você vá
É lá, que eu vou estar
Amor esperto
Tão bom te amar
A esse outro, o sujeito atribui a constituição de seu próprio mundo. Tudo nele é
“fullgás”, repleto de energia, de vitalidade e, ao mesmo tempo, é “fugaz”, rápido, passageiro,
efêmero, transitório. A palavra “lançar” pode adquirir múltiplos sentidos, pois é ele quem
lança tudo (“Música, letra e dança”), traz o novo, mas, também, é aquele que promove,
impele, dissipa, impulsiona, gera, direciona, publica, dispara, joga, faz acontecer. Com ele,
nenhum mal os atinge, e “Nada machuca, nem cansa”. Viver sem ele é amparar-se em um
mundo que se revela estranho. Nele, não há dia, somente “Noites de frio”. Ele traz consigo
tudo de lindo que o sujeito faz. E com ele vem também a felicidade. Diante disso, a letra
poderia ser pensada, meramente, como uma declaração de amor de um eu que não consegue
se ver sem esse “amor esperto”, sagaz, vivo, hábil, intenso, vigoroso. Mas, a partir dos dois
213
últimos versos, a letra parece adquirir uma certa dimensão política: “Você me abre seus
braços/ E a gente faz um país”. E ambos, em seguida, se repetem, como se quisessem
enfatizar o êxtase dessa relação amorosa, que de tão intensa e potente é capaz de construir um
país. O ano de lançamento dessa canção, 1984, coincidiu com o contexto político em que se
encontrava o Brasil, nos anos 80: o país passava por um período de transição democrática,
pelo processo de redemocratização, abertura política pós-ditadura militar, com destaque à
campanha pela volta das eleições diretas (“Diretas Já”), entre 1983 e 1984, e, mais tarde, a
aprovação da nova Constituição brasileira, em 1988. Frente a esse quadro político instável e
conturbado, havia um desejo de transformação dessa realidade por parte dos sujeitos. Na
década de 80, Antonio Cicero e Marina Lima já haviam conquistado, juntos, um importante
espaço no mercado musical e, como se observa no próprio Manifesto fullgás, ambos se
preocupavam em refletir sobre o fazer artístico, em meio ao cenário sócio-político da época.
A música nacional, nesse momento, ainda resistia às influências culturais estrangeiras. No
entanto, dizer que a letra alcança um sentido político não significa que ela tematize a política
ou questões de cunho social. Em “Fullgás”, não se trata de discutir ações políticas, ideologias,
estruturas de poder, até porque ela não se propõe a ser uma canção engajada, como o
manifesto diz: “Não há caminho real para fazer algo que enriqueça o mundo”. O que se
procura, aqui, é relacionar o fazer artístico com o modo como os sujeitos se expressam, as
escolhas de suas produções artísticas: “Melhor para nós são a descoberta e a liberação dos
desejos e gostos autênticos de cada um”. A despeito disso, a letra não materializa o desejo
pelo novo, já que este “vem de onde menos se espera”. Na entrevista de 2013, à revista Cult,
Antonio Cicero argumenta que a música, a arte em geral, nada tem a ver com a busca do
novo:
Penso que não. A ideia de “buscar o novo” é uma abstração. “Buscar o novo” será buscar o
que ainda não existe ou buscar o que acaba de surgir? Se for buscar o que ainda não existe, é
uma busca absurda, pois o que não existe não pode ser buscado. Já a ideia de que “buscar o
novo” seja buscar o recém-surgido supõe que o artista seja uma espécie de “antena”, uma
“antena da raça”, como dizia Ezra Pound. Isso me parece um equívoco, pois a verdade é que
captar e retransmitir o novo não são as funções legítimas dos poetas e artistas, mas sim dos
jornalistas. A arte não parte de abstrações desse tipo, mas de desejos, vontades, ímpetos,
intuições, experiências, experimentações concretas. É com a mão na massa, e não com a ideia
de “buscar o novo”, que vai surgindo a obra de arte. E, a partir do momento em que vai
surgindo, ela vai tendo suas próprias exigências.
É claro que uma obra que se produz desse modo, a partir do embate individual e concreto do
artista com a sua matéria, jamais é a mera reiteração do que já exista. Não é o grau de
“novidade” de tal obra que dá o seu valor: do contrário, ela perderia o valor à medida que o
tempo passa. O mais importante, dizia Isócrates, na Grécia Antiga, não é ser o primeiro, mas o
melhor. Mas a verdade é que o próprio Pound, que eu critiquei acima, sabe disso, pois, em
214
outra obra, ele afirma que a literatura é “news that stays news”: “novas que permanecem
novas”; novidades que permanecem novidades. Ora, o novo que permanece novo não é
simplesmente “o novo”, mas aquilo que não envelhece. “Um clássico é um clássico”, afirma,
novamente com razão, o velho Pound, “porque possui um certo eterno e irreprimível frescor”.
A busca é por “novas possibilidades: não de fazer “arte”, mas de viver”, sem “ideais
repressivos, cagando regras”, moralismos e padrões de comportamento, sem a delimitação das
formas estéticas tradicionais, sem os vícios das “velhas fórmulas”, sem a “fidelidade às tais
“raízes” ou “purezas” da arte e cultura brasileiras, pois “Fontes puras não existem”. As
vanguardas abriram caminhos, romperam com os modelos preestabelecidos, mas já
cumpriram, com êxito, o seu papel libertador. Letra e manifesto se confundem. Ela não canta
a política, ela é o próprio gesto político: “Se nossa música é política? Nossa música é a nossa
política”. E a canção “Fullgás” assume essa dimensão política, porque ela toma partido “pelo
presente e nele pelo mais fullgás e mais fugaz”. Talvez, seja possível dizer que o “você”, a
quem se refere o sujeito, é o próprio presente, o tempo em que tudo o que há de pleno, lindo,
feliz acontece. A felicidade e a completude realizam-se no instante, no agora, não no futuro.
Ao final da letra, no momento em que o outro abre os braços para acolher o eu que fala,
ambos, juntos, fazem o país, isto é, constroem algo maior do que eles, universal, que extrapola
as demarcações de suas individualidades. O fazimento do país está condicionado à abertura
dos braços do outro, para o acolhimento do sujeito. A abertura ao outro significa, justamente,
abrir-se a tudo aquilo que é estranho a si mesmo, a tudo o que é estrangeiro. É desde a
mistura, a confusão entre o eu e o outro que nasce o país, o mundo em potência. Pode-se
estabelecer um diálogo entre a letra e o poema “Confusão”573, que remete à passagem bíblica
sobre a torre de Babel, presente no Antigo Testamento, no “Livro do Gênesis”. O próprio
título do poema é a tradução da palavra “Babel”, em hebraico. O poeta confunde o sentido da
versão original da história e o seu caráter moralizante, na medida em que os habitantes da
terra constroem a civilização, a partir da própria multiplicação das línguas e das vozes. Na
Bíblia, o Deus hebraico é quem confunde a linguagem dos homens e os dispersam por toda a
face da terra, como punição pela edificação da cidade e da torre, pelos descendentes de Noé,
após o dilúvio. Segundo o mito, Deus decidiu confundir-lhes as línguas, para impedir que
prosseguissem com os seus empreendimentos, pois não entenderiam a linguagem um do
outro. Já no poema, são os homens que multiplicam suas línguas e vozes, propositadamente,
573
CICERO, Antonio. Op. cit. p. 31.
215
como uma estratégia, para que Deus não os compreendessem. Eles mesmos se dispersaram
pela terra, a fim de construírem “inúmeras cidades e torres”:
Se o presente consegue descobrir nele mesmo uma saída do atual, para uma dimensão
fora do tempo, extemporânea, onde comparecem não só a atualidade do sujeito como,
também, todos os tempos, é no mergulho no mais profundo atual, que se torna possível “a
fusão de todas as águas, de todas as correntes culturais”. E essa é a força desse “amor
esperto”, contido na letra, e da música de Antonio Cicero e Marina Lima: é fazer do presente
uma abertura para um fora de si, um fora das determinações temporais, geográficas e
particulares, em que o real se revela potencializado, “Simples como fogo” – efêmero, gratuito
e, ao mesmo tempo, intenso –, “fullgás”, aberto, sem “[...] paredes, nem teto, nem cerca, nem
fronteiras”, e capaz de fazer um país e gerar infinitas possibilidades de mundos.
Nesse mesmo contexto de instabilidade política, no qual vivia o Brasil, em 1986,
composta, novamente, em parceria com Marina Lima, foi lançada, no sétimo álbum da
216
574
cantora, intitulado Todas ao vivo, a canção “Pra começar” , que chegou, inclusive, a ser
tema de abertura da telenovela “Roda de Fogo”, exibida, na época, pela TV Globo:
Pra começar
Quem vai colar
Os tais caquinhos
Do velho mundo...
Se tudo caiu
Que tudo caia
Pois tudo raia
E o mundo pode ser seu
Pra terminar.
Quem vai colar
Os tais caquinhos
Do velho mundo...
Partindo das ruínas de um tempo pretérito, a letra inicia colocando uma instigante
questão: “Pra começar/ quem vai colar/ Os tais caquinhos/ Do velho mundo”? Diante desse
cenário de fragmentação de uma tradição sacralizada, quem vai tentar restituir os pedaços de
um “velho mundo” que se estilhaçou? E esses “caquinhos” aparecem na estrofe seguinte:
“Pátrias, Famílias, Religiões/ E preconceitos”. Tudo o que pertencia ao “velho mundo” ruiu,
“Quebrou não tem mais jeito”. A quebra é uma constatação irrefutável, logo se deve partir
dela para ir adiante, e não lamentar o acontecido, nem tentar recompor o que se fragmentou. A
indagação inicial, portanto, se mostra retórica. Hoje, sobre a letra, Antonio Cicero declara:
O que eu dizia ali é uma verdade. Mas muitos se desesperam, ao perceber que essas coisas
perderam a sacralidade, e tentam colar seus caquinhos de qualquer modo, à força. Querem
voltar a um passado idealizado. Não suportam a ideia de viver num mundo aberto, em que
tudo está sujeito a ser criticado. Tentam fechá-lo artificialmente e, para tanto, têm que usar
imensa violência. Esse é o germe do fascismo. Precisamos estar alertas a esse risco.575
574
Disponível para acesso no site: http://marinalima.com.br/novosite/musicas/todas-ao-vivo/.
575
Trecho extraído da matéria publicada na revista Carioquice, edição nº 30, de julho/agosto/setembro de 2011,
intitulada “Um grão de poesia nas dunas da mpb”, escrita por Mônica Sinelli, a partir de uma entrevista do poeta
217
O caos se faz necessário para que se descubra, verdadeiramente, o que se ama, o que
se deseja, o que se procura. Daí, “[...] tudo pode ser seu”. Agora, depois que tudo caiu, deve-
se descobrir o que, de fato, se ama, ao contrário do que se pensava amar no “velho mundo”,
conforme determinavam “pátrias, famílias, religiões e preconceitos”. Tudo o que antes
possuía um status de verdade absoluta e indubitável foi fraturado. Todos os valores
tradicionais, os conceitos fechados, as formas institucionalizadas, os dogmas, as crenças, as
imposições comportamentais, morais, os costumes, as convenções e normas sociais, os
preconceitos, as ideologias. Tudo foi dessacralizado. E “Se tudo caiu”, a letra defende: “Que
tudo caia”, se destrua, se dissipe, e mergulhe de volta às profundezas do real, “até a próxima
aurora”, porque “tudo raia”, se ilumina, se elucida, se esclarece, se revela, e vem às
superfícies “diáfanas, translúcidas”, gratuitas, silenciosas, “para ser mundo”, um mundo
ilimitado, sem qualquer fundamento positivo que o sustente. Um mundo diferente, aberto,
apocrítico, moderno, agoral, que começa desde o seu próprio fim.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo da ideia de que o poema enquanto uma limitação traria à tona uma
ilimitação, é nele que se dá a possibilidade do infinito. As atualizações do presente não mais
retornam na lembrança do poeta, para que o fora de todos os tempos possa comparecer. É na
ausência do atual que se realiza a experiência do próprio poema, pois a linguagem deste
permite abrir a dimensão de um “mar sem margens”, do agoral, da infinitude. O poema
representa a manifestação do fora do presente no atual, do informe na forma, da luz no escuro,
da superfície no fundo, da cesura na continuidade, do não dito no dito, do silêncio no
burburinho, do intempestivo no previsível, do anacrônico no cronológico, do não vivido no
vivido, da negação no positivo, do eterno no transitório, do nada em tudo o que existe, da vida
na morte, da origem no fim.
Na poesia filosófica de Antonio Cicero, as figuras mitológicas retornam à
contingencialidade do agora não como a expressão de um sentimento nostálgico, em relação
aos tempos clássicos, mas enquanto um modo de dizer a linguagem. Os mitos sustentam-se na
ausência de fundamento e não mais na tradição: “sê por um bom tempo o que te tente/ e para
sempre nada: não pregues/ coisa alguma no lugar do nada”. O emprego de métricas clássicas,
assim como as constantes referências à Antiguidade, em sua obra poética, permite o encontro
entre os tempos absolutos, universais, e o agora, fragmentado, particular. Desancoradas da
tradição que as fundamenta, a Helena, de “Proteu”, o Ícaro, de “Deus ex machina”, as
gloriosas cidades – “Babilônia”, “Tebas” e “Acra” –, de “História”, não passam de nomes,
pura linguagem.
A despeito da consciência do poeta da transitoriedade de todas as coisas do mundo, os
tempos antigos comparecem em seus poemas, não como a manifestação melancólica de um
desejo de resguardar algum dito da linguagem, de restituir uma possível unidade. Ao
contrário, o poeta afirma que “tudo o que há no mundo some”, “ouro algum permanece”576. E
a tradição, com todos os seus valores e verdades que a constituem como tal, por sua vez, se
liquefaz no “eterno agora”. A morte da tradição torna-se necessária, para que novas leituras
sejam possíveis. O poeta deve alimentar-se, sobretudo, das ruínas da tradição: “Alimenta teu
espírito também com meu cadáver,/ Pisa sobre estas esplêndidas ruínas e,/ Se não há
576
CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 75. Verso extraído do poema “Ícaro”.
219
caminho,/ Voa”577. É desde a destruição do fundamento que se ergue o poema com toda a sua
vitalidade contemporânea e agoral. Nos termos de Agamben, a poética de Antonio Cicero
realiza na fratura, na cisão, no vazio de significações, a pura abertura para uma infinidade de
sentidos. O poema, forma finita, “positividade contingente, acidental e relativa” 578, enquanto
obra de arte, é polissêmico, guarda, também, “possibilidade e mudança, imaginação e
liberdade”, isto é, o informe, o infinito. Para o poeta-filósofo-letrista, ele proporciona o
exercício de vitalidade, na medida em que o prazer estético da leitura mobiliza todas as
faculdades humanas como a razão, a emoção, a imaginação, a intuição, a sensibilidade, a
sensualidade, a cultura, ofertando ao leitor o acesso a outras dimensões do ser. O poema
guarda a tradição, a história, não para “escondê-la ou trancá-la”579, em leituras estanques,
delimitadoras de seus sentidos, mas a fim de “olhá-la, fitá-la, mirá-la por/ admirá-la, isto é,
iluminá-la ou ser por ela iluminado”; “[...] vigiá-la, isto é, fazer vigília por/ ela, isto é, velar
por ela, isto é, estar acordado por ela,/ isto é, estar por ela ou ser por ela”, assegurando, na
memória do seu tempo, o próprio esquecimento.
577
Idem. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 35. Versos extraídos do poema
“Oráculo”.
578
Idem. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 174.
579
Idem. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 11. Trechos extraídos do poema
“Guardar”.
220
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ANEXOS
230
ANEXO
“Mulher com Crisântemos”: Pintura do artista francês Edgar Degas contemplada por um olhar
observador no poema de Antonio Cicero, intitulado “Mulher com Crisântemos (sobre um
quadro de Degas)”.