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Acabadora (edição brasileira)

Michela Murgia
Título original: Accabadora
Tradução: Federico Carotti e Denise Bottmann
Rio de Janeiro: Objetiva, 2012
Gênero: romance italiano
Numeração: cabeçalho, 154 pp
Digitalizado e revisto por Virgínia Vendramini
Março de 2017

Contracapa

Romance vencedor dos prêmios Campiello e SuperMondello de Literatura

Mais de 350 mil cópias vendidas na Itália

Sardenha, anos 1950. A pequena Maria Listru é o que se chama de "filha d'alma".
Nascida em uma família sem condições de sustentá-la, aos seis anos de idade é
adotada por Bonaria Urrai, uma mulher mais velha, solitária e de poucas palavras,
mas muito respeitada no vilarejo em que vive.

Desde cedo, a jovem aprende o ofício de costureira com tia Bonaria, que, no
entanto, esconde uma outra vocação, proibida e controversa. Ela é uma acabadora,
aquela que faz o sofrimento cessar. Para os habitantes de Soreni, é ela quem
visita as pessoas que estão no fim da vida e ajuda o destino a se cumprir.

Acabadora é um livro fascinante. Carregado de emoções, ele nos mergulha em um


mundo agreste, regulado por tradições seculares e semeado pela culpa. Um mundo em
que Maria terá de decifrar tanto o amor quanto a morte.

Orelhas

Michela Murgia nasceu em Cabras, na Sardenha, em 1972. É autora dos livros Il


mondo deve sapere, Viaggio in Sardegna e Ave Mary. Acabadora é seu primeiro
romance publicado no Brasil. Fenômeno de vendas na Itália, vencedor de prêmios
renomados, Acabadora narra a história de Maria, uma menina que, num vilarejo
sardo na Itália dos anos 1950, precisa aprender a crescer em meio a segredos e à
constante presença da morte.

Ela é a quarta filha de Anna Teresa Listru, viúva sem meios para sustentar a
família. Aos seis anos de idade, portanto, a menina é dada a Bonaria Urrai, uma
mulher de longos silêncios, com uma aura misteriosa que a faz ser respeitada e
temida no vilarejo.

Maria e Bonaria vivem como mãe e filha, apesar de o povoado estranhar que a
reservada senhora tenha decidido adotar a caçula dos Listru. Bonaria não só
ensina à menina seu ofício de costureira; ela também a prepara para as batalhas
que a aguardam, transmitindo a humildade de acolher tanto a vida como a morte.

Ao crescer, Maria será marcada por dois fatos. Primeiro, pelo amor, ao conhecer o
jovem Andría Bastiu. Em seguida, pela descoberta de que tia Bonaria exerce uma
segunda atividade. Ela é uma acabadora, aquela que acolhe pela última vez as
pessoas e as ajuda a abandonar a vida.

Michela Murgia

Acabadora
Tradução Federico Carotti e Denise Bottmann

2009 Giulio Einaudi editore s.p.a, Torino

Todos os direitos desta edição reservados à Editora Objetiva Ltda.


Rua Cosme Velho, 103
Rio de Janeiro - RJ - Cep: 22241-090
Tel.: (21) 2199-7824 - Fax: (21) 2199-7825 www.objetiva.com.br

A minha mãe, as duas.

Capa
Marianne Lépine

Imagem de capa
Kamil Vojnar/Trevillion Images

Revisão
Fatima Fadel
Raquel Correa
Tamara Sender

Editoração eletrônica
Abreu's System Ltda.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M951a

12-0382

Murgia, Michela Acabadora / Michela Murgia; tradução Federico Carotti e Denise


Bottmann.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

Tradução de: Accabadora 154p. ISBN 978-85-7962-128-4

1. Romance italiano. I. Bottmann, Denise. II. Carotti, Frederico. III. Título.

CDD: 853 CDU: 821.131.3-3

***

Primeiro capítulo

Filhos d'alma.

É assim que se chamam as crianças geradas duas vezes, pela pobreza de uma mulher e
pela esterilidade de outra. Maria Listru era filha deste segundo parto, fruto
tardio da alma de Bonaria Urrai.

Quando a velha se detivera sob o limoeiro para falar com Anna Teresa Listru, Maria
estava com seis anos e era o erro depois de três acertos. Suas irmãs já eram
crescidas e ela brincava sozinha no chão, fazendo uma torta de barro recheada de
formigas vivas, com todo o cuidado de uma pequena dona de casa. Mexiam as patas
vermelhas na mistura, morrendo devagar sob os enfeites de flores do campo e açúcar
de areia. Ao violento sol de julho, o doce crescia entre suas mãos, bonito como
às vezes são as coisas ruins. Quando a menina ergueu a cabeça do barro, viu a tia
Bonaria Urrai à contraluz, a seu lado, sorrindo com as mãos postas no ventre
magro, satisfeita com algo que acabara de receber de Anna Teresa Listru. O que
era, Maria só veio a entender mais tarde.

Foi embora com a tia Bonaria naquele mesmo dia, numa das mãos a torta de barro, na
outra uma sacola cheia de ovos frescos e salsinha, pobre oferenda de
agradecimento.

Sorrindo, Maria pressentia que em algum lugar devia haver motivo para chorar, mas
não conseguiu pensar em nada. Perdeu também a lembrança do rosto da mãe que se
afastava, como se já a tivesse esquecido fazia tempo, desde aquele momento
misterioso em que as filhas decidem sozinhas o que é melhor misturar no barro das
tortas. Mas durante anos recordou o céu quente e os pés da tia Bonaria de
sandálias, um saindo, o outro se escondendo debaixo da barra da saia preta, numa
dança silenciosa cujo ritmo as pernas tinham dificuldade em acompanhar.

A tia Bonaria lhe deu uma cama só para ela e um quarto cheio de santos, todos
malvados. Ali Maria entendeu que o paraíso não era um lugar para crianças. Passou
duas noites acordada, quieta, com os olhos atentos no escuro para captar alguma
lágrima de sangue ou alguma cintilação das auréolas. Na terceira noite foi vencida
pelo medo do sagrado coração com o dedo apontado, que se fazia visivelmente
ameaçador com o peso dos três rosários no peito gotejante. Não resistiu mais, e
gritou.

Em menos de um minuto, a tia Bonaria abriu a porta e encontrou Maria de pé junto à


parede, apertando o travesseiro de lã áspera, escolhido como cãozinho defensor.
Depois olhou a imagem que vertia sangue, que nunca lhe parecera tão próxima da
cama. Pôs a estátua debaixo do braço e a levou embora sem dizer uma palavra; no
dia seguinte, também desapareceram da prateleira a pia de água benta desenhada com
a figura de Santa Rita e o cordeiro místico de gesso, de pelagem crespa como um
vira-lata, feroz como um leão. Só depois de algum tempo Maria voltou a rezar a
Ave-Maria, mas bem baixinho, para que Nossa Senhora não ouvisse e não a levasse a
sério na hora da nossa morte amém.

Não era fácil saber quantos anos teria a tia Bonaria naquela época, mas eram anos
que estavam parados fazia anos, como se ela tivesse envelhecido de um salto, por
decisão própria, e agora esperasse pacientemente que o tempo em atraso viesse
alcançá-la. Maria, por sua vez, chegara tarde demais mesmo ao ventre da mãe, e
desde o início tinha se acostumado a ocupar o último lugar nos pensamentos de uma
família que já tinha demasiado com o que se ocupar. Mas, na casa daquela mulher,
ela experimentava a inédita sensação de ter se tornado importante. Quando saía de
casa de manhã, indo para a escola com a cartilha no braço, tinha certeza de que
podia se virar e a veria à porta, olhando-a, apoiada no batente como se estivesse
sustentando o umbral.

Maria não sabia, mas era principalmente de noite que a velha ficava ali, naquelas
noites comuns em que não se podia atribuir a nenhum pecado a culpa de se estar
acordado. Ela entrava no quarto silenciosamente, sentava-se na frente da cama
onde Maria dormia e ficava a olhá-la no escuro. Naquelas noites, a menina, que
julgava ocupar o primeiro lugar entre os pensamentos de Bonaria Urrai, dormia
ainda sem conhecer o peso de ocupar todos eles.

Por que Anna Teresa Listru tinha dado a filha caçula para a velha, isso todos em
Soreni entendiam muito bem, até demais. Ignorando os conselhos da família, ela
tinha errado no casamento, e passou os quinze anos seguintes reclamando daquele
homem que se demonstrara capaz de fazer bem uma única coisa. Anna Teresa Listru
gostava de se queixar com as vizinhas, dizendo que o marido não fora útil nem na
morte, pois bem que poderia ter tido a sorte de morrer na guerra e lhe deixar uma
pensão. Dispensado do exército por falta de recursos, Sisinnio Listru teve uma
morte tão estúpida quanto fora a sua vida, esmagado como um grão no moinho sob o
trator de Boreddu Arresi, para quem às vezes trabalhava como meeiro. Enviuvando
com quatro filhas, Anna Teresa Listru, se já era pobre, ficou miserável,
aprendendo a fazer sopa - como dizia ela - até com a sombra do campanário. Quando
a tia Bonaria lhe pediu para adotar Maria, nem acreditou que poderia colocar todo
dia na sopa até duas batatas dos terrenos dos Urrai. Se o preço era a menina, não
faria falta: tinha mais três.

Agora, por que a tia Bonaria Urrai naquela idade tinha pegado a filha de outra,
isso realmente ninguém entendia. Os silêncios se prolongavam como sombras quando a
velha e a menina passavam juntas pelas ruas, despertando comentários a meia-voz
nos bancos da vizinhança. Bainzu, da tabacaria, ficou encantado em descobrir que
mesmo os ricos, ao envelhecer, precisavam de quem lhes limpasse o traseiro. Mas
Luciana Lodine, a filha mais velha do encanador, não via necessidade de arranjar
um herdeiro para suprir aquilo que qualquer empregada bem-paga podia fazer. Ausonia
Frau, que de traseiros sabia mais do que qualquer enfermeira, gostava de arrematar

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a conversa sentenciando que nem as raposas querem morrer sozinhas, e nessa altura
ninguém dizia mais nada.

Evidente, se não tivesse nascido rica, Bonaria Urrai acabaria como qualquer
solteirona, em vez de pegar uma filha d'alma. Viúva de um marido que jamais a
desposou, em outras circunstâncias talvez tivesse sido rameira, freira de convento
ou de casa, com as persianas sempre fechadas, de luto enquanto vivesse. O que lhe
roubou o vestido de noiva foi a guerra, embora alguns na cidade dissessem que, na
verdade, Raffaele Zincu não morrera no Piave: mais provável, esperto como era,
que tivesse encontrado uma mulher por lá e economizasse a viagem para vir dar
explicações. Talvez fosse por isso que Bonaria Urrai era velha desde moça, e
nenhuma noite parecia a Maria tão negra quanto a sua saia. Mas viúvas de maridos
vivos não faltavam na cidade, como bem sabiam as mexeriqueiras e bem sabia a
própria Bonaria Urrai. Por isso, todas as manhãs, quando saía para ir buscar o pão
recém-saído do forno, caminhava com a cabeça erguida e nunca parava para
conversar, voltando direto para casa como a última rima de uma oitava.

Naquela decisão de pegar uma filha d'alma, a coisa mais difícil para Bonaria
certamente não foi a curiosidade das pessoas, mas a reação inicial da menina que
levou para casa. Depois de seis anos passando as noites a dividir o mesmo quarto
com as trés irmãs, o que Maria considerava como espaço pessoal não ia além de um
braço. Essa sua geografia interior foi perturbada quando chegou à casa de Bonaria
Urrai; entre aquelas paredes só suas, os espaços eram tão amplos que a menina
levou algumas semanas até entender que não iria surgir ninguém às portas dos
inúmeros quartos, dizendo: "Não mexa, isso é meu." Bonaria Urrai jamais cometeu o
erro de lhe dizer que se sentisse em casa, nem acrescentou nenhuma das banalidades
que se usam para lembrar aos hóspedes que não estão absolutamente em casa.
Limitou-se a esperar que os espaços, vazios durante anos, aos poucos tomassem a
forma da menina, e então, depois de um mês, quando as portas dos quartos tinham
sido todas abertas e assim continuaram, teve a

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sensação de que não se enganara ao deixar que a própria casa cuidasse daquilo.
Quando se sentiu segura da confiança que adquirira nas paredes, Maria começou a se
mostrar cada vez mais curiosa sobre a mulher que a levara para morar ali.

- A senhora é filha de quem, tia? - perguntou um dia, com a boca cheia de sopa.
- Meu pai se chamava Taniei Urrai, era aquele senhor ali...

Bonaria indicou a velha foto polida, pendurada em cima da lareira, onde Daniele
Urrai, empertigado em seu cole- te de veludo, aparentava talvez uns trinta anos e
podia parecer qualquer coisa à menina, menos o pai da velha diante de si. Bonaria
leu a incredulidade no rosto rosado.

- Ali ele era moço, eu ainda não tinha nascido - explicou ela.

- E mãe, a senhora não tinha? - insistiu Maria, a qual, evidentemente, não possuía
uma grande intimidade com a ideia de que os filhos pudessem ter pai.

- Claro que tinha, chamava-se Anna. Mas ela também morreu muitos anos atrás.

- Como meu pai - acrescentou Maria, séria. - Às vezes eles fazem isso.

Bonaria ficou surpresa com aquele comentário. - Fazem o quê? - Isso. Morrem antes
que a gente nasça - Maria respondeu paciente. Depois acrescentou de má vontade: -
Foi a Rita que me disse, a filha de Angela Muntoni. O pai dela também morreu
antes.

Durante a explicação, a colher se agitava no ar como o arco de um instrumentista.

- Sim, alguns fazem isso. Mas nem todos - disse Bonaria, observando-a com um
sorriso vago.

- É, nem todos - concordou Maria. - Pelo menos um tem que ficar. Para as crianças.
É por isso que sempre é um casal de pais.

Bonaria concordou, colocando a colher na sopa, crente de que tinham terminado a


conversa.

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- Vocês eram em dois? Por fim Bonaria entendeu e, sem parar de comer, falou no tom
quase casual que tinha usado até aquele momento.

- Sim, éramos em dois. Meu marido morreu também. - Oh, morreu... - repetiu Maria
depois de um instante, indecisa entre o alívio e o desgosto.

- Sim - disse Bonaria, séria por sua vez. - Às vezes fazem isso.

Com o reconforto daquela estatística pessoal, a menina voltou a assoprar a sopa


devagarinho. De vez em quando, erguendo os olhos dos vapores da colher, cruzava os
da tia Bonaria e abria um sorriso.

A partir daí, quando Bonaria saía de manhã para comprar pão, Maria passou a
esperá-la sentada à mesa da cozinha, balançando os pés e marcando em silêncio o
número de vezes que o sapato de borracha batia nas pernas da cadeira, até onde
sabia contar. A tia Bonaria voltava quando ela estava perto de três vezes cem, e
então, antes de ir para a escola, as duas comiam pão quente e figos assados.

- Coma, Maria, assim seus peitos vão crescer! - dizia a tia, batendo com a mão no
pequeno resto de seio que lhe sobrara.

Rindo, Maria comia duas frutas por vez e então corria para o quarto a verificar,
ainda com as sementes entre os dentes, pois tudo o que dizia a tia Bonaria era lei
de Deus na terra. Mas, nos treze anos que morou com ela, nenhuma vez Maria a
chamou de mãe, porque mães são outra coisa.
***

Segundo capítulo

Por algum tempo, Maria pensou que tia Bonaria era costureira. Costurava muitas
horas a fio, e um dos quartos da casa estava sempre cheio de retalhos e tecidos.
Mulheres vinham para tirar medidas de saias e lenços, e às vezes também vinham
alguns homens, para calças e camisas sociais. Os homens, tia Bonaria não deixava
entrar no quarto dos panos: recebia-os na sala, onde ficavam parados de pé. De
joelhos, com a fita métrica de couro, ela se movia rápido como uma aranha, tecendo
ao redor daquelas presas imóveis uma misteriosa teia de medidas.

As mulheres, enquanto ela tirava suas medidas, conversavam à vontade, falando de si


ao falar dos outros. Os homens, pelo contrário, ficavam quietos, taciturnos, como
que nus diante daqueles olhos precisos. Maria observava, e perguntava.

- O homem tem vergonha de tirar as medidas porque a senhora é mulher, não é


verdade?

Bonaria Urrai lhe dirigiu um olhar malicioso, estranho de se ver na tela enrugada
do rosto severo.

- Nada disso, Mariedda! Os homens têm medo, não vergonha. Sabem qual é o capote
meu que devem temer. - E ria baixinho, sacudindo o tecido com força para esticá-
lo.

Com medo ou sem medo, vinham clientes até de fora, de Illamari e de Luvê, antes
dos casamentos ou dos dias santos, ou apenas para fazer uma roupa nova de domingo.
Em alguns dias, a casa parecia um mercado, com metros de tecido estendidos no
encosto das cadeiras, a sugerir à imaginação pregas e bordados. Maria ficava
sentada olhando, pronta para estender uma agulha ou o giz para marcar a altura de
uma bainha.

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Uma vez apareceu também Boriccu Silai, da empresa mineradora, para encomendar um
par de calças, junto com sua criada. A mocinha devia ter uns dezesseis anos,
chamava-se Annagrazia e tinha a pele bexiguenta, com dois olhos como lesmas fora
da concha. Ficava apoiada na parede em silêncio, segurando uma sacola que continha
pelo menos quatro metros de veludo liso, coisa de gente rica de verdade. Tia
Bonaria não se deixou impressionar e mediu Boriccu Silai com o cuidado de sempre,
observando suas formas abaixo da cintura com o olho experiente de quem entende
rápido as coisas.

- De que lado coloca? - perguntou afinal, segundo o costume dos alfaiates


minuciosos, olhando sua braguilha. Ele se virou para a mocinha encostada à parede,
fazendo um gesto com a cabeça.

- À esquerda - respondeu Annagrazia por ele, olhando a velha sem acrescentar mais
nada.

Bonaria sustentou o olhar da criada por um instante, e depois começou a enrolar


devagar a fita métrica no bastão de madeira de limoeiro. Boriccu esperava a
resposta, mas a tia Bonaria, ao falar, parecia não se dirigir a ele.

- É, acho que para Santo Inácio não vou conseguir. Tente Rosa Cadinu, que precisa
de trabalho.
Boriccu Silai e a tia Bonaria ficaram imóveis, olhando-se em silêncio. Depois o
homem e sua criada da cintura para baixo saíram sem dizer uma palavra, pois
palavras já tinham dito até demais. Fechando bem a porta às suas costas, a tia
Bonaria se virou para Maria com um suspiro cansado, guardando a fita métrica no
bolso do avental rasgado.

- Que se danem, um trabalho perdido... Mas de certas coisas é melhor não conhecer
a medida exata, Maria. Entendeu?

Entender, Maria não entendeu, mas concordou da mesma forma, pois nem tudo o que a
gente ouve a gente entende na mesma hora. Além do mais, naquela época ela ainda
pensava que a tia Bonaria era costureira de profissão.

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Na primeira vez em que percebeu que a tia Bonaria saía à noite, Maria tinha oito
anos, e foi em meados do inverno de 1955, um pouco depois do Dia de Reis. Recebeu
permissão de ficar acordada brincando até a hora de tocar a Ave-Maria, e depois a
tia Bonaria foi com ela até o quarto para dar início ao escuro antecipado,
fechando as persianas e enchendo o braseiro de tições e cinzas quentes.

- Durma, que amanhã você vai levantar cedo para a escola.

Quase nunca Maria caía de imediato naquela imitação de noite, às vezes ficava
acordada durante horas, a estudar as sombras formadas no teto pelas brasas que se
extinguiam.

De fato, não estava dormindo quando escutou alguém batendo à porta e a voz nervosa
e abafada de um homem, falando baixo demais para que pudesse reconhecê-lo. Imóvel
sob as cobertas entre as sombras avermelhadas, ouviu claramente quando a porta do
pátio se abriu e o passo familiar da tia Bonaria foi e voltou em poucos minutos.
Levantou-se da cama, sem se importar com o piso frio sob os pés descalços,
tenteando no escuro em direção à porta até bater no urinol. Mesmo antes de sair do
quarto, a tia percebeu que ela estava acordada.

- A menina! - advertiu o homem a meia-voz, na sombra da entrada.

Era alto, com os ombros largos e um aspecto vagamente familiar, mas Maria não teve
tempo de identificá-lo, pois a tia logo apareceu à sua frente, negra e severa no
longo xale de lã que usava apenas quando saía para as festas dos dias santos.
Fechava o xale como um casulo em volta do corpo magro, assim ocultando as formas e
as intenções, quaisquer que fossem.

- Volte para o seu quarto. Maria não via o seu rosto, e foi talvez por isso que
ousou responder.

- Aonde a senhora vai, tia? O que está acontecendo? - Volto logo. Mas você, vá
para o seu quarto. Não era um convite, e já era demais precisar repetir a ordem,
ainda por cima na frente de um estranho. Maria recuou

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em silêncio no vão da porta. A velha ficou imóvel até fechá-la, impondo ao


visitante a mesma atitude. Por trás da porta, Maria prendeu a respiração como um
segredo, até ouvir que os dois se moviam rapidamente, saíam e deixavam a casa num
silêncio que parecia errado. Entorpecida de frio, esperou parada de pé,
obedecendo ao instinto de bater devagar o dedo na madeira do batente, contando,
mas já estava nos três vezes cem e Bonaria ainda não tinha voltado. Resignada, a
menina voltou para a cama num silêncio distante do sono, até o sono vencer também
aquela distância e alcançar o torpor do quarto. Quando a velha voltou, Maria
dormia e não percebeu. Melhor assim.

De manhã, foram os sons familiares da casa que acordaram a menina. As perguntas da


noite se desvaneciam como o cheiro que subia das cinzas mornas. Vestiu-se e foi
procurá-la, encontrando-a de pé enquanto sacudia um pano no ar, para tirar a
poeira e desamarfanhar o tecido. Parecia um pássaro de uma asa só. Bonaria viu
Maria e parou. Depois falou.

- Que nunca mais se repita o que você fez ontem. A ordem chegou ríspida como uma
chicotada de pano, e qualquer pergunta se aniquilou sob aquela ameaça. Maria
entendeu naquele momento que poderia perder coisas mais preciosas do que o sono.
Depois o rosto da velha se distendeu, e enquanto dobrava o pano já abanado
convidou a menina.

- Agora vá comer, que hoje temos muito a fazer. A tia lhe pôs o vestidinho de
festa e também se endomingou, vestindo a saia de luto fechado, embora fosse uma
terça-feira normal. De pé, trançou os cabelos grisalhos, com o olhar fixo no vidro
da janela, enquanto a sombra bordava em seu rosto uma trama de dias delicados.
Entre aquelas pregas da saia e da face, Maria intuiu pela primeira vez a beleza
que não existia mais, e se sentiu ferida pela ausência de alguém que se lembrasse
dela.

- Aonde vamos, tia? A velha cobriu a cabeça com o mais negro de seus lenços,
aquele de seda com franjas longas que facilmente se emaranhavam em nós. Depois se
virou para ela, com uma estranha expressão no rosto enxuto.

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- Fazer uma visita de luto na casa de Rachela Littorra, que perdeu o marido. É
dever de vizinhança.

Andava rápido como sempre e, a seu lado, Maria tinha dificuldade em acompanhar o
passo, embora seu vestidinho branco não tivesse o peso da saia comprida da velha. A
casa do finado não ficava longe, mas cem metros antes já se ouvia o canto lúgubre
do attittu. Toda vez que se erguia aquela lamentação de rude melodia, era como se
os sorenenses ouvissem a cantiga das dores de cada casa, as dores presentes e as
dores passadas, porque o luto de uma família despertava novamente a lembrança
jamais extinta de cada pranto de outrora. Então as janelas da vizinhança se
fechavam, os olhos das casas se tornavam cegos ao sol, e cada um vinha prantear
seus mortos no morto presente, por interposição.

O morto daquele dia estava estirado na cama, no meio da sala da frente, com os pés
calçados virados para a entrada. Pronto para a terra, estava vestido como se fosse
a uma festa, com o terno escuro que usara no casamento, quando era magro, saudável
e dono de sua vida. As casas dos botões estavam retesadas na barriga, mesmo com o
corpo estendido, e o ar estava denso com a respiração entrecortada das mulheres,
enquanto os homens se apoiavam imóveis nas paredes, como guardiães. A attittadora
então deu início a um pranto que se semelhava a um canto, uma nota dolorida que
parecia brotar dos joelhos dobrados no chão. As mulheres lhe fizeram eco com
gemidos cadenciados, criando um coro lúgubre ao qual a tia Bonaria não fez a menor
menção de se juntar. Disse a Maria que esperasse e foi até a viúva Rachela
Littorra, que estava encolhida na cadeira mais próxima da cabeça do morto,
balançando-se silenciosa enquanto as outras choravam em seu lugar. Tão logo viu a
tia Bonaria, a mulher pareceu sacudir o torpor, levantando-se num gesto de
acolhida.

- Minha querida irmã! Deus lhe pague por tudo... Por um instante, a exclamação se
sobrepôs ao pranto pago da carpideira. O resto da frase se abafou na lã negra do
xale da tia Bonaria, onde a viúva afundou o rosto num arroubo

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incontido, atraindo os olhares dos presentes. Rachela Littorra só pareceu


recuperar um pouco de comedimento quando a tia lhe sussurrou algo, tocando em sua
cabeça com uma graça que Maria jamais vira nela.

Nesse meio-tempo, a attittadora mudara o tom, entoando um poema improvisado,


floreado de louvores ao falecido. Quem a ouvisse clamar as rimas pensaria que
jamais houve homem melhor do que Giacomo Littorra, o qual todos sabiam que tinha
sido um marido avarento, que pensava ser uma virtude mostrar-se impiedoso com
todos, tal como o destino fora com ele. Enquanto a carpideira chorava e simulava
arrancar com os dentes um pedaço da manga, Maria lia no rosto dos presentes aquele
pensamento impróprio, que passava por todos sem aflorar demais à tona.

Foi então que ela o viu, viu o homem. De pé, encostado na parede atrás da cadeira
da mãe, o filho do morto estava com o chapéu na mão e era o mais alto entre os
homens presentes. Santino Littorra mantinha os olhos fixos no corpo rígido do pai,
como que hipnotizado pelas notas de dor fingida da carpideira. Maria reconheceu os
ombros largos e o mesmo modo controlado de esperar que vira na noite anterior.
Oito anos de idade: pouco para compreender tudo, mas talvez suficiente para
perceber que havia algo a ser compreendido. Voltando para casa, menos de duas
horas depois, Maria andou devagar como se carregasse um peso, mas foi talvez a
última vez que ficou atrás da tia Bonaria durante o caminho.

***

Terceiro capítulo

Por cinco anos Bonaria Urrai não saiu mais à noite, ou Maria não percebeu,
empenhada como estava em se sentir finalmente filha legítima. De alguma maneira
deu certo, pois, quando a menina estava na quinta série, já fazia tempo que a
cidade de Soreni aceitara aquela estranha união; não era mais comentada nos
bares, e mesmo nas conversas de final da tarde às portas a velha e a menina
cederam espaço a notícias mais frescas ou picantes. Sem saber que ia fornecê-las,
a filha de dezesseis anos de Rosanna Sinnai se deixara gentilmente engravidar não
se sabia de quem, o que tinha alimentado bastante o curso normal das más-línguas.
Outra pessoa, ao cessar os murmúrios às suas costas, até se admiraria que
cessassem tão cedo, pois, num lugar onde raramente acontecia algo interessante, um
fato como aquele podia se manter atual até a geração seguinte. Mas Bonaria Urrai
não tinha por que se admirar, pois desde o primeiro momento trabalhara para
construir aquela frágil normalidade. A velha costureira se comportara desde o
início como se a menina fosse nascida de seu ventre, deixando que Maria
circulasse pela casa quando vinha alguma visita ou levando-a consigo aonde quer
que fosse, e assim o povo que engolisse e se engasgasse com sua curiosidade a
respeito daquela filiação voluntária. Maria, porém, habituada a se ver
principalmente como coisa insignificante, levou mais tempo para se dar conta de
que era assunto de conversas. Sua mãe Anna Teresa Listru, mulher fascinada pelas
enumerações sob qualquer forma que se apresentassem, acostumara a filha a se ver
apenas na sequência das irmãs, segundo uma fórmula ritual sempre idêntica:

- E quem é esta menina? - É a última. - Ou simplesmente: - É a quarta.

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Tão marcada era essa classificação própria de uma corrida campestre que Maria, nos
primeiros tempos, precisava morder a língua para não se apresentar como a última
ou a quarta. Bonaria não tinha como saber, mas devia ter pressentido de alguma
maneira, visto que, quando ia apresentá-la a estranhos, sempre se adiantava:

- Esta é a Maria. E ser simplesmente Maria devia bastar mesmo para quem
quisesse saber mais. O povo de Soreni levou algum tempo, mas por fim entendeu a
antífona daquela misteriosa liturgia, e de repente foi como se sempre tivesse sido
assim, alma e filha (Palma, um modo menos censurável de ser mãe e filha. Apenas
uma vez alguém tentou indagar de Bonaria outras coisas além do nome de Maria, e
sob muitos aspectos aquele único episódio foi um marco para tudo o que veio a
seguir.

Para as crianças da quinta série B, parecia incrível que a professora Luciana


tivesse realmente cinquenta anos, porque era bonita demais para ter aquela idade,
e era bonita daquele jeito perigoso que acompanha apenas as mulheres vindas de
fora. Ela tinha se casado muitos anos antes com Giuseppe Meli, um proprietário de
terras de Soreni que tinha plantações de arroz e ia assiduamente ao continente
para tratar da exportação do arroz arbóreo sardo. Foi assim que Giuseppe conheceu
aquela moça esbelta da pequena burguesia piemontesa: uma professorinha gentil com
dois olhos verdes como jade, incomuns mesmo entre as moças de seu mundo feito de
preciosidades. Luciana Tellani, surpreendendo parentes e amigos, aceitara segui-lo
sem olhar para trás, mas, apesar de dar aulas em Soreni fazia mais de vinte anos,
ainda falava italiano à maneira dos turinenses. Nesse período de tempo, muitos
tinham aprendido a ler e a escrever com ela, e em troca lhe haviam oferecido
silenciosamente o pleno reconhecimento como pessoa da terra, com a gratidão e o
respeito que a gente humilde muitas vezes nutre pelos verdadeiros mestres. A
forasteira que se casara no final dos anos quarenta com o agricultor Giuseppe Meli
era agora, para Soreni, apenas professora Luciana.

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A professora tinha os cabelos de um loiro juvenil que roçavam pelos ombros; nunca
usava lenço nem quando ia à igreja, onde sua cabeça clara ressaltava entre as
demais como uma papoula no trigo. Apesar disso, não havia nada que se pudesse
criticar nela, a não ser que, para uma italiana do continente, não era muito mais
alta do que a média do povoado; mas, em sendo loira, um defeito secundário como a
altura seria facilmente perdoado, até mesmo em Soreni. Maria gostava dos cabelos
da professora sobretudo por serem ondulados. Não lisos e grudados na cabeça como
pelagem de um rato caído no azeite, nem crespos como os de sua mãe, tão
emaranhados que os dedos nunca chegavam ao fundo deles. Os cabelos da professora
Luciana tinham uma ondulação macia que combinava bem com qualquer vento.

- Professora, a senhora passa o ferro neles para ficarem assim?

- Imagine só, Maria... Como eu ia ter tempo de frisá-los toda manhã, enquanto vocês
me esperam na classe?

A professora gostava daquela menina de inteligência um pouco atrevida, e aceitara


bem sua estranha situação familiar, com o auxílio dos esclarecimentos do marido e
de alguns daqueles espíritos simples sempre ansiosos em explicar as complicações
dos outros. Só uma vez ocorrera um momento de tensão, pois Bonaria Urrai nunca ia
às reuniões para acompanhar o desempenho escolar de Maria. Quando a menina
apareceu em casa com a caderneta com o recado da professora Luciana, a tia Bonaria
olhara Maria com severidade.

- O que você aprontou? - Nada! - respondeu Maria desamarrando o laço verde do


uniforme.

- Então por que a professora quer me ver? - Não sei... - Alguma coisa você deve
ter feito, senão ela não me chamaria.
- Não fiz nada, vou até bem: ontem tirei ótimo em geometria!

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Bonaria a ajudou a tirar o aventalzinho preto e não perguntou mais nada, mas no
dia seguinte vestiu a roupa de sair normal e foi ver a professora Luciana. Bateu à
porta da classe na hora indicada, e alguns segundos depois as duas mulheres
estavam frente a frente, a professora com um tailleurzinho azul pied-de-poule, como
usam na cidade, e a costureira com sua saia comprida tradicional e o xale preto
nos ombros. A diferença de idade entre elas não passava de uns dez anos, mas
pareciam pertencer a duas gerações distintas. Confiando as crianças à bedel, a
professora Luciana e Bonaria ficaram no corredor.

A senhora me deixou preocupada. Maria aprontou alguma coisa?

- Não, de maneira alguma. Pedi que a senhora viesse só para conhecê-la, é costume
que o professor e os pais se encontrem de vez em quando para trocar impressões
sobre os progressos das crianças...

Se Bonaria tinha notado a levíssima hesitação na voz da piemontesa, não deixou


transparecer.

- Se é só por isso, aqui estou. O que a senhora me diz de Maria?

- Bom, ela é inteligente e muito aplicada. Gosta das aulas, principalmente de


matemática, e é pontual nas tarefas. A senhora acompanha os deveres de casa?

- De vez em quando, mas não sempre. As vezes não tenho tempo, outras vezes ela faz
coisas que eu nem sei. Fiz até o terceiro ano primário, não tenho muito estudo.

Qualquer outra pessoa coraria ao dizer essa frase, ou nem teria dito. Bonaria,
porém, sustentou o olhar da outra com serena tranquilidade, e curiosamente foi a
professora que se sentiu na obrigação de encontrar uma justificativa.

- Oh, às vezes o estudo não quer dizer nada, no terceiro ano de antigamente
aprendia-se o latim de um quinto ano de hoje...

Saíram para o jardim que circundava a escola e caminharam entre os canteiros


floridos sem reparar neles, atentas uma à outra. Bonaria observava a professora
com rápidos olhares

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diretos, Luciana se limitava a olhar de vez em quando o perfil marcado daquela


mulher, quando achava que não seria notada.

- É estranho, sabe, essa coisa de filho d'alma... - Por que estranho? - o tom de
Bonaria era inexpressivo.

- Maria não parece ter se ressentido muito. Ela vê a família de origem com
frequência?

- Sim, sempre que pede. Por que haveria de se ressentir?

Luciana Tellani respondeu num jato, como se tivesse remoído a frase muito tempo
antes, apenas esperando surgir a ocasião.

- Não sei, fico surpresa que, por exemplo, quando peço a Maria para desenhar os
pais, ela desenhe a senhora, e não a mãe verdadeira...
Bonaria não esboçou nenhuma reação àquele comentário, e manteve um silêncio que
prolongou o embaraço da outra.

- Bem, é que me parece uma coisa tão incomum que uma menina seja tirada... de
mútuo acordo, claro, mas em todo caso que saia da família assim, sem apresentar
traumas...

- Não é estranho, nessa região acontece de vez em quando; se for a Genari, há pelo
menos três filhas d'alma, uma delas tem mais ou menos a mesma idade da Maria. -
Bonaria parou para reforçar o conceito. - Não é estranho.

A piemontesa não pareceu convencida, mas de momento não acrescentou mais nada. A
conversa passou para os resultados escolares menos brilhantes da menina e, quando
estavam de volta à porta da classe, a professora começou a se despedir. Mas
Bonaria tinha uma última pergunta.

- Queria lhe perguntar sobre os desenhos que a Maria faz... o que a senhora quer
dizer exatamente quando afirma que ela deveria desenhar a mãe verdadeira?

A professora ficou embaraçada, mais pelo olhar do que pelas palavras da velha
costureira.

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- Não me entenda mal, eu me referia à mãe natural, não queria depreciar a relação
entre vocês...

- A mãe natural, para a Maria, é a que ela desenha quando pedem que desenhe sua
mãe.

Talvez tenha sido o tom da velha, tão leve e sereno. Ou talvez o olhar,
absolutamente vítreo, como se enxergasse através dela. Em todo caso, a professora
Luciana considerou mais prudente não responder, repuxando os lábios num sorriso
forçado. As duas se separaram num silêncio que se tornara pesado devido à tensão
ambivalente: uma lamentava não ter dito o suficiente, enquanto a outra achava que
tinha ouvido até demais.

Naquela noite, antes do jantar, Bonaria escutou um pouco de rádio, enquanto Maria,
sentada diante da lareira, brincava com um velho abecedário, ordenando com cuidado
os quadradinhos com as letras que se encaixavam nas casinhas certas. Faltavam
alguns, perdidos nos primeiros anos de escola, quando os objetos e seus nomes eram
mistérios ainda não dissociados pela violência sutil da análise lógica.

- O que a professora queria lhe dizer? - Nada de importante, você tinha razão. -
Mas ficaram tanto tempo juntas... - Visitamos o pátio. Tem gerânios coloridos que
eu nunca tinha visto.

Maria colocou os últimos bloquinhos em seus lugares, entendendo que, qualquer que
tivesse sido a conversa entre a tia e a professora, não seria assim que
conseguiria saber o que era.

- Mas ela disse que estou indo bem, não foi? - Não, ela disse que, com a sua
inteligência, você não se esforça o suficiente e que poderia fazer muito mais.

A menina arregalou os olhos, incrédula. Bonaria continuou absolutamente séria, o


ouvido encostado no alto-falante do rádio que transmitia música clássica, fechando
os olhos para ocultá-los ao rosto indagador de Maria.
- Não é possível. Ela me diz que estou indo bem. Muito bem!

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- A melhor é a filha de Giovanni Lai, todo mundo sabe disso. A professora diz que
você, por sua vez, passa o tempo todo desenhando, não gosta de gramática e fica
conversando sem parar com Andría Bastiu.

- Não é verdade que passo o tempo todo desenhando! Só um pouco.

Bonaria sorriu imperceptivelmente. - Mas é verdade que fica conversando e não


estuda direito a gramática.

- Pois se o italiano não serve para nada... - Como assim, não serve para nada? -
Fora da escola todos nós falamos em sardo. Vocês também falam em sardo, e as
minhas irmãs, e Andría. Todos!

A velha costureira, como todas as mães da cidade, já conhecia aquela aversão comum
das crianças de Soreni pela língua italiana. Algumas, por isso, até tinham deixado
de falar em sardo com os filhos, enfrentando a nova língua com resultados
geralmente mais cômicos do que eficazes.

- Mesmo que aqui todos te entendam em sardo, você precisa saber italiano, pois na
vida nunca se sabe. A Sardenha, afinal, fica na Itália.

- Não é verdade que fica na Itália, estamos separados. Eu vi no mapa. Tem o mar -
sentenciou Maria segura de si.

Bonaria não se deixou apanhar de contrapé por aquela exibição de ciência


geográfica.

- Maria, você é filha de quem? A mocinha não esperava por essa. Calou-se por um
momento tentando ver qual era a armadilha da pergunta, e optou pelo seguro.

- De Anna Teresa e Sisinnio Listru... - Certo. Mas onde você vive? Desta vez
Maria percebeu a armadilha e tentou ganhar tempo.

- Vivo em Soreni. - Maria - advertiu Bonaria arqueando


as sobrancelhas. A menina teve de ceder.

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- ... Vivo aqui com a senhora, tia. - Portanto, você vive separada de sua mãe, mas
continua a ser filha dela. Não é assim? Não vivem juntas, mas são mãe e filha.

Maria ficou quieta, um pouco humilhada, abaixando os olhos para os joelhos,


querendo se consolar com o abecedário onde cada coisa tinha um lugar, e um lugar
só. O sussurro saiu leve como um sopro.

- Somos mãe e filha, sim... mas não como uma família. Se fôssemos uma família, ela
não teria feito um acordo com a senhora... isto é, eu acredito que a senhora é
minha família. Porque nós duas somos mais próximas.

Dessa vez foi Bonaria que ficou quieta por alguns momentos. A música clássica que
continuava a vir do rádio não impedia que o silêncio se impusesse. Quando voltou a
falar, tinha mudado mais uma vez de tática.

- Fico contente que você diga isso, mas não vem ao caso... porque você sabe muito
bem que meu Arrafiei morreu na guerra, nas trincheiras do Piave. E aquela guerra
era na Itália, não na Sardenha. Quando a pessoa morre por uma terra, aquela terra
se torna necessariamente dela. Ninguém morre por uma terra que não seja sua, a
menos que seja um tolo.

Maria não tinha nenhuma arma para contrapor àquela lógica, nem consolo para uma
dor tão funda que se conservava fazia quarenta anos. Viu brilhar nos olhos de
Bonaria, como uma centelha, a única tumba onde o desaparecido Raffaele Zincu
jamais deixara de ser pranteado. Murmurou confusa:

- O que a senhora quer me dizer, tia... que só vou me tornar sua filha de verdade
quando eu morrer?

Bonaria desatou a rir, rompendo a tensão revelada às claras pela pergunta de


Maria. Num gesto instintivo, tomou a cabeça da menina e a apertou junto ao peito,
como para aquecê-la.

- Que bobinha que você é, Mariedda Listru! Você se tornou minha filha no momento
em que te vi, e você nem sabia quem eu era. Mas você deve estudar bem o italiano,
isso eu te peço como um favor.

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- Por que, tia... - Porque Arrafiei foi para a neve do Piave com um sapato fino
que não servia para o frio, enquanto você deve se preparar. Itália ou não Itália,
você precisa voltar da guerra, minha filha.

Nunca a tratara assim, e nunca mais voltou a tratá-la daquela maneira. Mas para
Maria aquele denso prazer, tão semelhante a uma dor na boca, ficou impresso por
muito tempo.

***

Quarto capítulo

Se é verdade que a terra fala do dono, as colinas em redor de Soreni formavam um


discurso complicado. Os lotes pequenos e irregulares falavam de famílias com
excesso de filhos e desentendimentos, fragmentados numa infinidade de divisas
marcadas por muretas nuas de basalto negro, cada uma com o rancor a sustentá-la.

O terreno dos Bastiu era ligeiramente maior do que o dos vizinhos, porque ao longo
dos anos, por vontade de Deus, fora maior o número de testamentos do que de
herdeiros.

No vinhedo da colina chamada Pran'e boe, eram dez horas de uma manhã morna de
outubro quando Andría Bastou pousou timidamente a mão no pulso fino de Maria,
interrompendo o movimento da tesoura de poda.

- Cuidado para não pôr a mão aí! - Por quê, o que tem? - A teia da aranha àrgia.
- Mas não tenho medo de aranha. - Isso porque você não conhece - disse ele, sério.
- Sabia que, se a àrgia te picar, vão te cobrir de esterco e farão sete mulheres,
primeiro viúvas, depois solteironas e depois casadas, dançar em volta de você até
descobrirem como era a aranha?

- Quem te disse essas asneiras, Andrí? - Rindo, Maria cortou um grande cacho de
uvas e colocou com cuidado no balde de plástico, abanando a cabeça envolta num
lenço de flores amarelas, desbotadas pelas vindimas passadas.

O vinhedo dos Bastiu tinha duas mil parreiras de uva escura com os bagos do
tamanho de um ovo de codorna. Prensados, soltavam um sumo negro que parecia sangue
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fervido de porco, e era igualmente doce. Os dois jovens tinham dividido as tarefas
de acordo com as forças, concorrendo em velocidade com os adultos da fileira
paralela.

- Pois é verdade, aconteceu com meu pai quando era pequeno. Ele me disse que teve
de tomar um suadouro de duas horas dentro do monte de esterco, senão estava
perdido.

- Seu pai não foi aquele que morreu duas vezes na guerra? Já você é aquele que, se
te mandarem comprar duzentos gramas de nada em pó, aposto que vai.

Maria continuou a cortar os cachos, zombando de Andría com uma dança dos olhos
vivazes. O rapaz enrubesceu ao sol, baixando o olhar para o balde quase cheio.
Mesmo que fossem da mesma idade, Maria, com aquele sorriso adulto entre os lábios
rubros de uva, sempre foi a melhor para encontrar as palavras que o faziam se
sentir pequeno.

- Vou esvaziá-lo na carroça... - E. vá sim, enquanto isso vou tomar água. E


cuidado com a àrgia, que sete loucas dançando em cocô de vaca pra te salvar,
duvido que eu te encontre!

A colheita devia começar e terminar no mesmo dia, e para isso precisavam de pelo
menos seis pessoas para cortar os cachos, percorrendo depressa as fileiras ao
longo da colina. Os Bastiu começavam antes de nascer o sol, e as filhas de Anna
Teresa Listru começavam com eles, porque depois dividiam o vinho. A viúva Listru
tinha de fazer o milagre de Canaã, costumava dizer quando ia vendê-lo aos
vizinhos. "Jesus Cristo transformou a água em vinho, eu transformo o vinho em pão."

Maria esperava durante todo o verão que a chamassem para ajudar, pois gostava de
competir com Andría. Nunca se sabia exatamente quando começaria a vindima, porque
era o velho cego Chicchinu Bastiu que dizia qual era o momento certo, isto é,
exatamente um dia antes que se sentisse no ar o cheiro da uva pronta para virar
mosto. Os netos o levavam diariamente ao campo e, solene, ele aspirava de olhos
fechados o vento leve que soprava do mar e roçava o vinhedo. O velho dizia ouvir,
na brisa que agitava as folhas e passava entre as dobras

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densas dos cachos, a voz do vinho que estava para nascer, feito uma parteira
experiente. Maria nunca se cansava de ouvir aquela lenda.

- Dizem que ele consegue adivinhar sempre o dia exato! - revelara à tia Bonaria,
na tentativa de surpreendê-la com aquele misterioso poder divinatório.

A velha a olhou esboçando um meio sorriso, não especialmente impressionada.

- É... Chicchinu Bastiu e o mosto são íntimos. Com o nariz sempre no copo, tal
seria se não reconhecesse o cheiro.

Os olhos da mocinha se dilataram enquanto a dúvida trincava a certeza do prodígio.

- Então é só embromação? - Sobra alguma uva no campo até o outro dia? - Não,
sempre colhemos tudo antes do anoitecer. - Então não é embromação. E a tia
Bonaria, sem se preocupar em esconder uma risada, voltou à sua costura. Sabendo
que a menina gostava, a colheita dos Bastiu era uma das raras ocasiões em que
deixava que Maria faltasse às aulas.
No tempo que Andría levou para esvaziar o balde, Maria fez uma tentativa de
entender os mistérios do ar de um vinhedo. Mergulhou um cacho graúdo na água da
tina ao final da fileira, tirando-o com o dobro do peso. Afundou o rosto entre os
bagos, aspirando intensamente em busca do esconderijo secreto. Um bago podre tinha
fermentado ao sol, mas, afora ele, não restava senão o cheiro comum de uva madura,
muito mais próximo de uma cor do que de um perfume. Decepcionada, consolou-se
mordendo uma uva morna, enquanto olhava distraída a cabeça dos outros elevando-se
alternadamente nas fileiras do vinhedo.

O ruído veio por trás, perto da mureta. No início era apenas um gemido, um lamento
abafado, depois um som mais definido. Maria se virou na direção de onde parecia
vir, atravessando o mato seco num passo rápido. A mureta chorava.

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Maria percorreu a linha irregular por alguns metros, sem encontrar nada que
desmentisse aquela expressão. O som débil vinha mesmo das pedras empilhadas.

- Maria, voltei! - veio da fileira a voz impaciente de Andría, mas a jovem não lhe
deu atenção. Em passos circunspectos, seguia atentamente a linha da divisa.

- Espere, estou olhando uma coisa. Maria parou no ponto exato de onde provinha o
som e fitou a mureta em silêncio. O sol já tinha se cansado do vinhedo e descia
rápido, projetando no terreno sombras gigantescas e disformes. A de Andría,
desajeitada, pôs-se a seu lado.

- O que Aocê está fazendo? Os outros já quase acabaram...

Com o dedo nos lábios, ela fez sinal para ficar quieto, apontando a mureta.

- Ouça. O lamento brotou de novo, imediatamente, leve e com dificuldade, mas com
nitidez suficiente para que o rosto ainda infantil do rapaz também se dilatasse de
espanto. Em poucos minutos, as irmãs Listru e todos os Bastiu estavam diante da
mureta ouvindo o choro, esquecendo que tinham de terminar a vindima antes do
crepúsculo. Bonacatta, prudente, guardara alguns passos de distância, recuando a
cada gemido que saía das pedras pretas, enquanto Regina e Giulia se limitavam a
contemplar em silêncio, dirigindo olhares ansiosos a Salvatore Bastiu e sua
mulher. Os dois discutiam, olhando perplexos para o muro.

- É alguma alma em penitência - aventou Giannina Bastiu persignando-se piedosamente


- requiemeternadonaeiusdomine...

Da mureta veio em resposta um soluço agudo. Salvatore abanou a cabeça pouco


convencido.

- Sei que não é um cristão, este aí. Est unu dimoniu! Precisa chamar dom Frantziscu
e mandar benzer o campo amanhã mesmo, senão este ano perderemos o vinho.

Nicola Bastiu não parecia muito interessado nas disputas teológicas dos pais.
Movendo-se pelo chão como um

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javali, examinava a base da mureta nua, explorando cuidadosamente as fendas entre


as pedras, com os dedos sujos e a testa franzida. Num certo ponto saltou por sobre
a mureta, transgredindo a divisa para examiná-la pelo lado do terreno de Manuele
Porresu. Passados alguns instantes, levantou-se do chão bruscamente, dando a
vistoria por terminada, e com uma expressão estranha procurou os olhos do pai.
- Mudaram a divisa. Enquanto Salvatore Bastiu fitava o filho pelo tempo
necessário para entender o que dizia, o muro gemeu outra vez e não foi preciso
dizer mais nada.

- Malditos filhos de uma égua, era isso o choro! Marido, mulher e Nicola, tomados
do mesmo receio, começaram a remover as pedras de cima da mureta, fazendo-as rolar
ao chão dos dois lados da divisa. Pareciam acometidos de uma ânsia furiosa que
contagiou os demais, e desfizeram a mureta em questão de minutos.

O pequeno saco de juta apareceu no recesso mais interior do muro, perfeitamente


encaixado entre duas pedras côncavas, grosseiramente entalhadas com a evidente
finalidade de dar lugar a ele. Nicola tirou o canivete do bolso sob os olhares
tensos do pai e da mãe. A lâmina cortou o pano sujo num som seco, revelando o que
se agitava debilmente dentro do saquinho.

Era um filhote de cachorro. Vendo como fora amarrado e sepultado, desta vez todos
fizeram o sinal da cruz. Até Nicola.

Salvatore Bastiu nunca foi da opinião de que a noite trouxesse bons conselhos. A
noite traz a noite, e só. Quem tem juízo sabe que conselho só se dá acordado, pois
todo amanhecer é uma cilada da qual a gente precisa se defender como for possível.
Ele, por via das dúvidas, nunca saía de casa sem afiar o canivete e tinha criado
todos os filhos a pão e olhos abertos. Mais que Andría, Nicola aprendeu tudo e bem
depressa, pois não era daqueles que vinham ao mundo para ficar parados. Por isso
o pai não esperou anoitecer para ir com ele até a casa de

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Bonaria Urrai levando o que tinham encontrado na mureta, inclusive o cão.

Sentados à mesa da cozinha de Urrai, pai e filho observavam em silêncio os dedos


magros da tia Bonaria examinando a coisa, enquanto Maria, sentada perto da lareira,
mantinha o filhote adormecido no colo.

- A intenção era ruim - começou a tia Bonaria, tocando com prudência os estranhos
elementos que tinham feito companhia ao animalzinho dentro do saco.

Salvatore Bastiu deu sinais de impaciência. - Claro que coisa boa não era. O que
isso causa na divisa?

Tia Bonaria ergueu o barbante cheio de nós, cujas pontas estavam trançadas como um
colar em volta de um pedaço de basalto avermelhado pelo sol, do tamanho de uma noz.

- Prende, segura. - Mas se deslocaram pelo menos um metro! E como diabos


fizeram... devia fazer no máximo três dias que eu não ia à propriedade.

- Três dias dão de sobra se a pessoa tiver ajuda. Em todo caso, a intenção era
que, depois de mudada a divisa, não se movesse mais. E que vocês nem percebessem.

- É, mas eu percebi... - disse Nicola com um meio sorriso.

A predileção que Bonaria tinha pelo filho mais velho dos Bastiu não impediu que
ela lhe dirigisse um olhar duro.

- Não se faça de mais esperto do que você é, Coleddu. Você só percebeu porque o
cachorro não morreu logo. Se tivesse morrido, tenha certeza de que a linha da
divisa morreria com ele.
Os olhos da velha passavam dos objetos aos visitantes, enquanto a mão continuava a
roçar a noz de basalto amarrada com firmeza. Parecia esperar alguma coisa.
Salvatore Bastiu de repente emitiu um juízo:

- Porresu vai pagar por isso. - Você não sabe com certeza se foi ele...

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- Mais prova do que isso! - explodiu o homem en- colerizado, apontando os objetos,
mas tomando cuidado para não encostar neles. - Aí está o mal que me desejam, me
puseram um feitiço para roubar um metro de terra!

Bonaria Urrai abanou a cabeça devagar e não disse mais nada, mas a mão magra não
parava de mexer na pedra.

Esquecida junto à lareira até aquele momento, Maria exclamou:

- Vou chamar o cachorrinho de Moisés. Nicola, seu pai e Bonaria se viraram para
ela, surpresos. - Ele não tem culpa, vou ficar com ele. Vendo a luz ardente no
rosto da jovem, a contragosto a velha deixou escapar um sorriso.

- Pode ficar, desde que seja você a cuidar dele. Maria concordou, aceitando a
autorização que na verdade nem pedira. Um cãozinho que nascera para morrer como
maldição não era algo que se agradecesse ou se pedisse desculpa. Continuou ao lado
da lareira fazendo carinho no filhote, enquanto os Bastiu eram conduzidos à porta
num silêncio pressago. Quando Bonaria voltou e as duas ficaram sozinhas, a velha
foi se sentar do outro lado, na frente do fogo. Sem dizer uma palavra, começou a
jogar entre as chamas a pedra redonda, o barbante e o saquinho do malefício
malogrado, mexendo os lábios devagar como se mastigasse. O que podia queimar,
queimou, e o resto se perdeu nas cinzas, desbotando de significado.

- Eu também queria queimar aquelas coisas, tia. O fogo purifica tudo.

Maria murmurou a frase lentamente, acariciando o cachorro e observando os gestos


da outra. A velha ergueu os olhos para fitá-la e então se ergueu num inequívoco
prelúdio de despedida.

- Vamos, é tarde: os cristãos dentro, os animais fora. Leve-o para fora e depois
vá dormir, que amanhã tem escola.

Sacudiu o avental, enquanto Moisés, de má vontade, via se abrir a porta para a


noite do pátio. Quando a mocinha já dormia, a figura encolhida da velha continuava
à frente da

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lareira, os olhos fixos nos restos do fogo que ia se apagando em brasas mirradas.
A pedra redonda estava ali como um coração imóvel entre as cinzas, a superfície
porosa enegrecida pelo fogo, tudo menos purificada.

***

Quinto capítulo

Bonacatta, a filha mais velha de Anna Teresa Listru, era parecida com Maria apenas
no negrume dos olhos e mais nada. Forte como um mineiro, trabalhara oito anos como
empregada na casa de Givanni Asteri para fazer seu enxoval de noivado, e agora,
mesmo exibindo a saia mais nova de seu guarda-roupa, estava sentada na sala com a
mesma graça de um monolito desfigurado.
Os parentes dos noivos falavam em voz alta, sentados na ponta das cadeiras,
bebendo com parcimônia a malvasia e rindo a todo o volume de coisas que
normalmente despertam apenas sorrisos. Estendia-se um farfalhar de saias
pregueadas ao longo da fronteira invisível entre as famílias: irmãs e primas da
futura esposa serviam os amaretti e o vinho passito com sorrisos de falsa timidez
e olhos baixos de moças bem-educadas. Maria, porém, mantinha a bandeja e os olhos
erguidos, avaliando com curiosidade a parentela do pretendente. Não eram ricos,
isso não, porque um homem rico de verdade não se casa com a filha de uma viúva sem
posses. Mas tampouco pobres, a julgar pelos presentes rituais trazidos à futura
esposa: uma corrente de ouro com uma medalha da Virgem, um anel antigo e um
broche grande e feio para o lenço de cabeça que Bonacatta, porém, jamais usara,
atraída como era pela moda nova vinda do continente. Nem que usasse todo aquele
ouro ao mesmo tempo, Bonacatta ficaria bonita, achava Maria, mas no fundo não era
para isso que ela servia. Os presentes eram como um ex-voto na estátua deitada da
Virgem da Assunção: não enfeites, mas escambos, coral em troca de uma graça, ouro
para dar a medida da devoção. Se refletisse, Bonacatta perceberia que havia alguma
devoção por trás daquela ostentação

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de vidrinhos, mas a reflexão nunca fora o forte da primogênita de Sisinnio Listru.

Antonio Luigi Cau, o noivo, estava sentado com visível constrangimento ao lado da
mãe, mantendo a imobilidade de certos animais empalhados. Era alto mesmo sentado e
ainda não tinha dito uma palavra, deixando que os pais falassem, em parte porque
era este o costume, em parte porque não tinha muito a dizer além do que já fora
dito.

- Esta aqui também é filha sua, Anna? Eu achava que eram três. - Os olhos da mãe
do noivo pareciam atraídos pela figura esbelta de Maria, enquanto pegava com os
dedos grossos dois amaretti na bandeja.

- É a nossa Mariedda, a última. Dei como filha d'alma sete anos atrás, mas quando
preciso ela vem dar uma mão de bom grado.

Anna Teresa Listru respondeu satisfeita, para enfeitar a realidade de acordo com
seu interesse, como costumava fazer. A mãe do noivo encontrou naquela loquacidade
inesperada uma ocasião para indagar diretamente de Maria.

- E de quem você é filha d'alma, minha linda? Por um instante, as conversas


entrecruzadas na sala se converteram num sussurro, enquanto Maria, ignorando o
lampejo alarmado nos olhos da mãe, respondia à pergunta.

- Foi a tia Bonaria Urrai, a costureira, que me pegou, porque não tinha filhos.

O silêncio a seguir durou o suficiente para mostrar desconforto, e depois a mãe do


futuro marido pegou outro amaretto da bandeja, com um breve sorriso.

- É uma ótima pessoa, conhecemos a Bonaria. Talvez tenha feito um terno para
Vincenzo, quando ele era presidente do comitê, lembra, Bissê? - Piscou para o
marido que ouvia com interesse. - Tem mãos de ouro, embora não precise
trabalhar... - comentou com um olhar de soslaio para Anna Teresa Listru.

- Ela me trata como filha, não me falta nada - foi a resposta feliz e automática
de Maria, réplica perfeita mil vezes repetida. - Mas pegue mais um, foi Bonacatta
que fez.

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Maria estendeu a bandeja como se desse uma esmola, esboçando uma reverência que,
por um breve instante, escondeu sua expressão aos presentes. Os outros pareciam
tomados por um sortilégio de emudecimento, até que a irmã mais velha considerou
conveniente quebrar o silêncio com alguma trivialidade.

- Maria tem sorte, é um grande privilégio ter duas famílias. Para mim, a partir de
hoje vai ser a mesma coisa, não é? Pois serão meu pai e minha mãe como se eu fosse
filha de vocês...

Sorrindo, a futura esposa conseguia o milagre de parecer ainda mais feia, revelando
uma ampla arcada de dentes graúdos. A frase, porém, teve o efeito de disfarçar o
constrangimento, despertando alguns sorrisos forçados.

- Nem queira, Bonacatta, pois não criei meus filhos com muito carinho, não!
Pergunte a Antonio Luigi se fui calmo com ele, pergunte! - Vincenzo Cau soltou uma
risada rouca e áspera em seu terno engomado, cor de creme, que talvez lhe tivesse
servido cinco anos antes.

Bastou aquela frase para atrair de volta a atenção sobre a finalidade daquele
encontro, mas, enquanto todos riam aliviados, sua mulher se limitou a um sorriso
ambíguo, olhando por uma última vez a mocinha que continuava imperturbável a dar
a volta com a bandeja. A mão calejada de Antonio Luigi se estendeu para os doces,
enquanto Maria levantava os olhos e sustentava o olhar do noivo de sua irmã.

- Voce sabe fazer doces? Era a primeira vez, em toda a tarde, que Maria ouvia o
rapaz falar, e a voz de barítono era baixa e pausada, cheia de notas graves. Dono
de suas terras, aos vinte e cinco anos Antonio Luigi Cau era homem fazia pelo menos
dez.

Surpreendida com a pergunta direta, a mocinha abaixou os olhos para a bandeja.

- Sei dar formato de fruta na massa de amêndoa. Peras, maçãs, morangos... até
animais!

- Muito bem, isso é importante, pois a gente não come as coisas só com a boca.

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Os dedos morenos do cunhado pegaram um amaretto no canto da bandeja, raspando


levemente a crosta na superfície. Maria recuou um passo como se tivesse sido ela a
ser tocada, puxando também a bandeja e erguendo os olhos de novo para fitá-lo.
Ignorando aquela reação, Antonio Luigi Cau já não prestava atenção nela e
mastigava o amaretto de boca fechada enquanto ouvia as outras conversas. Maria
continuou parada diante dele por alguns segundos, e então a tia seguinte se serviu
de outro biscoito de amêndoas na bandeja, obrigando-a a seguir adiante. Durante o
resto da visita de noivado, Maria se manteve quieta e prestimosa, levantando-se
apenas para tirar a louça e evitando olhar para quem quer que fosse.

Reviu a tia Bonaria antes de escurecer, ao voltar para casa com uma cesta de
amaretti que tinham sobrado, queimando com uma febre ardente e inconfessável.

- Como foi? - Parecem gente boa, pelo que vi. - Ele é sério? - Parece que sim...
- Depois acrescentou devagar, com um leve sorriso: - ... é alto.

Bonaria riu, dobrando com cuidado o último pano do dia, um tecido de lã que
cortara no molde de um pequeno manto.

- Ah, então está tudo em ordem. O que mais se pode querer de dote, além de um
rapaz que apanhe para você os figos da árvore sem escada?

Maria riu por sua vez, sentindo-se arder de embaraço. Se Bonaria percebeu, fez de
conta que não era nada.

- Marcaram a data para o dia 13 de maio, senão depois fica muito perto de
Pentecostes.

- Você precisa ir ajudar? - Sim, pediram que eu fosse para os doces e o pão. -
Para os doces está bem, para o pão só se for no sábado. Não quero que você falte
às aulas.

Maria nunca se mostrara muito ansiosa para ir trabalhar na casa em que nascera, mas
daquela vez empacou feito uma mula teimosa.

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- Quase nunca falto, a escola não vai se desmanchar se eu faltar um dia por causa
do casamento da minha irmã!

Somente depois de muita insistência é que Bonaria cedeu, e ficou com a sensação de
que não estava a par de algum detalhe importante. O desinteresse que Maria sempre
mostrara pelas visitas à casa da mãe costumava tranquilizar intimamente Bonaria,
mesmo sem poder jurar que nunca tentara reforçar aquela resistência. Antes de
encontrar Maria e sua mãe na loja pela primeira vez, Bonaria acreditava ser a
portadora secreta da única dor perfeita, a única que não possuía lenitivo. Sabia
de que mundo estava tirando a menina, e para sua certeza não precisara ver todos
os seus recônditos; por isso, não se impressionou quando Maria não manifestou
nenhuma saudade visível, como se no fundo, na imanência própria das infâncias
solitárias, sempre soubesse que seu destino não era ali naquela família. Mas
agora, diante da insistência de Maria em ajudar nos preparativos do casamento de
Bonacatta, a certeza de Bonaria Urrai vacilou. Não tinha amigas nem irmãs a quem
pudesse confiar suas dúvidas, mas, mesmo que tivesse, guardaria as apreensões para
si.

Anna Teresa Listru falou a verdade à mãe do genro: chamavam Maria em casa sempre
que precisavam. O que ela não especificou foi que nem sempre Maria realmente vinha,
quando chamada. Bonaria Urrai escrutava com olhos de águia o motivo de cada
solicitação e, se o considerava inoportuno, sabia se reservar o direito de
recusar. Não que negasse abertamente. Bastava alegar uma bainha que precisava ser
terminada com urgência, ou uma consulta importante com o doutor Mastinu, e quem
quisesse entender que entendesse. Apenas em casos excepcionais a velha autorizava
que a mocinha fosse trabalhar no campo, geralmente apenas na vindima com os
Bastiu, ou na colheita das azeitonas. Para a viúva Listru, Maria, desde que fora
morar com a senhora Urrai, achava que tinha se transformado numa princesa: não
arrancara do solo uma única batata,

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não se abaixara para colher uma beterraba, jamais entrara num arrozal ganhando por
tarefa, como faziam as irmãs; e acima de tudo dera a entender claramente que não
deviam chamá-la para fazer pão às quatro horas da manhã. Anna Teresa Listru não
reclamava às abertas, mas não tinha renunciado inteiramente à ideia de que a
condição privilegiada de Maria deveria lhe trazer alguma vantagem adicional, além
de diminuir o número de bocas à mesa. O que mais a incomodava era que a velha
Urrai parecia obcecada com a assiduidade de Maria nas aulas; Anna Teresa Listru
acreditava naquela desculpa só até certo ponto. A mocinha, afinal, estava no
terceiro ano do ginásio, o que já era até demais para o que precisaria na vida.
Não havia razão para não começar a devolver um pouco do que havia recebido,
considerando-se qual a panela que lhe enchera a barriga até os seis anos de idade.
Assim, o casamento de Bonacatta parecia à viúva Listru uma ocasião mais do que
propícia para forçar um pouco a posição junto a Bonaria Urrai, visto que a
quantidade necessária de pães e doces para a festa justificaria que Maria faltasse
alguns dias à escola.

Contrariando suas piores suspeitas, a velha Urrai não pareceu apresentar nenhuma
resistência, tanto é que Maria se apresentou na tarde do dia marcado para fazer os
doces de amêndoas sem precisar pedir duas vezes a mesma coisa. Talvez no fundo
fosse possível levar aquilo adiante, aproveitando o clima frenético dos
acontecimentos únicos que reinava na grande mesa central da sala de estar.

Logo à vista alinhavam-se todos os ingredientes necessários para os amaretti, e


naquela fila perfumada todos os pares de mãos, incluídas as da futura esposa,
tinham o momento exato de intervenção. De um lado ficavam as amêndoas doces,
trituradas com a faca em meia-lua até ficar reduzidas quase a pó, dentro de uma
grande tigela de cerâmica esmaltada, prontas para ser misturadas à farinha e aos
ovos, formando biscoitos que iriam ao forno com uma amêndoa ou metade de uma
cereja em calda, posta bem no meio. Anna Teresa insistira em usar bastante farinha
para economizar nas amêndoas, prejudicando a maciez do resultado. A outra
extremidade da longa

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mesa era dominada por um montinho de amêndoas cortadas em lâminas finas, esperando
ser cristalizadas em açúcar junto com raspas de casca de limão: depois de esfriar
e ser-cortadas em losangos, iriam se converter num crocante rústico que apenas os
dentes mais saudáveis seriam capazes de enfrentar. Maria, entre as conversas das
irmãs e da mãe, ralava os limões. Anna Teresa Listru começou o discurso quase de
imediato.

- Está contente por não ter ido hoje à escola? - Bem... não desgosto de ir, mas
hoje era um dia especial.

Regina e Giulia trocaram um olhar enquanto Bonacatta trabalhava a massa com os ovos
para amaciá-la. Giulia exclamou:

- Não sei como você não fica com tédio de passar horas sentada, detestei todos os
dias de aula que tive.

- E a escola pagou o que você merecia: acabou repetindo a quarta série! - retrucou
Bonacatta com malícia, com a autoridade de seus vinte e cinco anos.

- Você foi quem mais estudou! - Regina jamais admitiria que tinha ficado triste ao
parar de estudar, e não deixou passar aquela ocasião de jogar mais lenha no rubor
da irmã.

A humilhação de Giulia encontrou um socorro inesperado na mãe, que não costumava


intervir naqueles bate-bocas, quando não degeneravam em incômodo para ela.

- A escola não presta - decretou. - Sabendo assinar o nome e contar o troco na


loja, já chega, ninguém precisa virar doutor. Fiz até a terceira série, e nem por
isso alguém me engana, nem os que estudaram!

Anna Teresa Listru gostava de repetir volta e meia essa frase, achando que era uma
boa ideia apresentar um modelo viável às filhas. Principalmente Giulia, que
dedicara todos os seus dezenove anos àquele esforço, com resultados que sua mãe
não deixava de apontar às vizinhas. "Parece comigo quando era moça, saudável, sem
minhocas na cabeça", proclamava dando tapinhas afetuosos nas costas da filha que
agora era a caçula.

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- Já a Maria gosta da escola... - continuou, decidida a não abandonar o tema - ...


o que você quer ser, Maria, doutora de amêndoas? Professora de bainhas e casas de
botões como a tia Bonaria Urrai?

As outras irmãs riram, mas a mocinha não se deu por achada; não era a primeira vez
que sua mãe batia naquela tecla para troçar dela, e desde o começo da conversa
Maria tinha percebido que as coisas tomariam esse rumo.

-A escola serve para tudo, e também para fazer doces. - Quem diria... Sem escola,
não sabemos fazer doces, até parece. Que invenção é essa?

Maria parou de ralar o limão e pegou uma das bolinhas de massa de amêndoa que
Regina tinha acabado de modelar. Depois estendeu para a mãe, com ar de desafio.

- Sabe por que os gueffus se chamam gueffus? Anna Teresa Listru olhou Maria como
se tivesse enlouquecido, enquanto as irmãs paravam de mexer na massa para assistir
à cena.

- Mas que pergunta! Se chamam assim porque sempre se chamaram assim.

- Sim, mas por quê? Por que não bombinhas ou... trique-traques?

Bonacatta soltou uma risadinha, recebendo imediatamente um olhar fulminante da mãe.

- Não sei. E você, sabe? Diga, professora Maria, vamos. Explique esta coisa tão
fundamental.

- Porque a palavra vem dos guelfos, os combatentes que na Idade Média defenderam o
papa contra o imperador.

- Interessante. Eles atiravam balas de amêndoas? Desta vez todas riram, mas
Maria continuou imperturbável.

- Elas se chamam assim porque, quando embrulhamos as balas, recortamos as beiradas


do papel em formato denteado, como as torres dos castelos guelfos.

Anna Teresa Listru tinha ouvido a explicação entre irritada e divertida, mas agora
só se divertia.

- Coisa difícil de acreditar...

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Exibindo-se de propósito, pegou um gueffu da mesa enfarinhada e pôs na boca,


mordendo-o pela metade. Enquanto mastigava, fechou os olhos e então arregalou-os de
repente, fingindo surpresa.

- Que revelação!... Agora que sei por que se chamam assim, até o gosto mudou! Puxa
vida, Maria, se você não me tivesse dito, eu não ia saber o que estava perdendo!

Giulia e Regina, que na dúvida tinham mordiscado furtivamente um gueffu só de


gosto, por pouco não estouraram de rir, enquanto Bonacatta, preocupada em não
estragar a preparação de seus doces, comentava sorridente a decepção de Maria:

- Por hoje você já terminou a aula. Agora faça outra coisa boa, termine os limões,
que preciso colocar a cobertura nos pirichittus. E já te aviso que, se você me
perguntar por que se chamam assim, eu sei.

- Mas vai te contar só quando você crescer. - Regina levou um tapa por aquela
impertinência, enquanto Maria voltava a ralar as cascas dos limões com fúria digna
de causa melhor.

Por três dias inteiros a casa da noiva foi um verdadeiro formigueiro, um vaivém de
parentes e vizinhas com as sacolas cheias de ingredientes frescos e travessas
emprestadas para colocar os doces prontos. As irmãs Listru trabalhavam quase
ininterruptamente, alternando-se nas tarefas para dar vida ao milagre de um
exército de capigliette enfeitados de açúcar como franjas, quilos de tiliccas
recheadas de saba, cestos cheios de aranzada com perfume de especiarias, latas
cheias de bonequinhas de açúcar crocantes, centenas de redondos gueffus de
amêndoas, embrulhados como balas, um a um, em papel de seda branco com as
extremidades denteadas como as torres guelfas. Na casa não havia aposento que
tivesse uma superfície de apoio livre, e na hora de deitar Giulia e Regina tinham
de afastar das camas as cestinhas cheias de doces já prontos, adormecendo na
fragrância leve da água de flores de laranjeira.

Em todas aquelas noites, Maria voltou para a casa de Bonaria Urrai, e antes de
dormir sonhava sem culpa com o noivo alto de sua irmã.

***

Sexto capítulo

No dia do casamento de Bonacatta aconteceram duas coisas terríveis, além das


núpcias. A primeira foi que Maria fez o que prometera que não faria: Enquanto
todos estavam distraídos penteando e vestindo a noiva, ela entrou no quarto da
mãe. O aposento estava com as persianas fechadas, mas mesmo na penumbra as telas
brancas estendidas na cama revelavam a forma das cestinhas em que descansavam os
pães desenfornados naquela manhã. O armário de fórmica bicolor dominava uma parede
de ponta a ponta, e o espelho oval na porta do meio vigiava todo o quarto como um
olho de ciclope. Maria sabia que não tinha muito tempo. Soergueu atentamente as
telas brancas, uma a uma, examinando o conteúdo das cestas até encontrar o pão
certo, colocado por prevenção num cesto separado, bem aos pés do espelho.

Perfeitamente circular, entalhado com pombinhas e flores, o pão nupcial de sua


irmã lhe pareceu mais bonito e delicado do que quando o vira na pá do forno: uma
filigrana de farinha e água, filha de uma arte ao alcance de poucas mulheres.
Enquanto sua mãe e Bonacatta preparavam o pão nupcial, ela fora proibida de
assistir, e mesmo o simples ato de olhá-lo em segredo era uma violação cujas
consequências lhe invadiram o sangue como uma labareda, aguçada pelo cheiro forte
e bom que preenchia o quarto como um ventre. Queria vê-lo, mas sem segundas
intenções, apenas com o desejo com que algumas pessoas vão ver as exposições de
quadros famosos e compram o ingresso para confirmar o direito de não os possuir.
Enquanto estava inclinada contemplando o pão, por acaso aconteceu que seus olhos
foram até o espelho, no qual, além do pão, viu também a si mesma.

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Do fundo da casa vinham as conversas abafadas das amigas que estavam vestindo a
noiva, mas o aroma intenso do pão dissolvia todos os sons, e Maria deixou de ouvi-
las. Cometendo o pecado de se imaginar com os olhos do homem de outra mulher, ela
se endireitou e se observou de maneira inconsciente. No espelho, quem se casava
naquele dia era ela, e não Bonacatta, pois, naquele mundo misterioso feito de
reflexos, o olhar do noivo tinha pousado em seu rosto como uma mão num amaretto
perfumado. Mas a mocinha do espelho ainda não era uma noiva: os seios juvenis se
comprimiam na blusa florida desbotada com uma frágil graça que nem mesmo o tecido
fino conseguia valorizar. Obedecendo a um impulso, os dedos de Maria abriram os
botões na busca raivosa de uma promessa de feminilidade melhor do que aquela, mas
a blusa aberta não revelou senão a textura macia e ainda infantil da pele, sobre
a qual a correntinha do batizado brilhava inconsistente como uma ferida de ouro.
Maria descobriu a linha tímida do seio, seguindo o contorno até a ponta do pequeno
bico, onde parou, sentindo que era miúdo demais. A desilusão consigo mesma impediu
que percebesse a graça do busto delicado: nos ossos visíveis sob a pele
translúcida, o que viu era apenas um pobre esboço de mulher.

Foi para compensar aquele desaforo de sua idade que ela se abaixou novamente no
cesto a seus pés, mais uma vez atraída pelo pão dos noivos; não ignorava que
aquele círculo de massa assada era importante até mais do que as alianças,
destinado à cerimônia e depois à eternidade de um vidro, posto na parede depois de
receber uma camada de verniz, que o protegeria das traças e da umidade. Por isso,
foi com imenso cuidado que o ergueu para colocá-lo devagar na cabeça, onde se
assentou como se tivesse sido feito sob medida para ela. Olhando-se no espelho,
finalmente viu-se bonita, uma rainha de pão reverenciada pelo aroma proibido
daquela silenciosa coroação. Sorriu, e então o som dos passos no corredor fez com
que se virasse alarmada. Ou talvez tenha se assustado com o peso daquele pão
vingador, ornamento de um dia que não pertencia a ela.

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O primeiro pensamento de Maria foi o seio descoberto, mas mais valeria se tivesse
sido o segundo. Na tentativa desajeitada de se encobrir diante do perigo que ouvia
se aproximar, ela oscilou para a frente ao buscar as abas da blusa desabotoada, e
nisso a coroa escorregou de sua cabeça. As -mãos se estenderam tarde demais para
evitar o desastre: o pão da sorte caiu no chão, estalando com um som de ossos
quebrados, perdido. Se só ele estivesse perdido, o dia do casamento de Bonacatta,
não teria sido tão grave.

Foi apenas isso que Anna Teresa Listru viu ao abrir a porta para pegar os cestos:
a última de suas filhas de pé, com o seio nu, diante do espelho de uma porta do
armário. Isso, e nada mais, foi o que viu a mãe do noivo, que viera ajudar: a
filha d'alma de Bonaria Urrai sozinha entre os cestos de pães cobertos, como um
menir de pé nas colinas de junho. Isso, e só, foi o que viu Bonacatta, vestida de
branco, atrás delas: os pedaços de seu pão nupcial espalhados nas lajotas cor de
vinho do quarto materno. Nenhuma delas, naquele desastre de reflexos, realmente se
apercebeu de Maria, e naquela cegueira coletiva estava o único consolo para ela, a
única forma de familiaridade possível entre as paredes daquela casa. Então, com
pouco respeito pelo ritual, o casamento se realizou da mesma maneira, e entre as
lágrimas desesperadas de Bonacatta o pão foi provisoriamente remendado com clara
de ovo e colocado por alguns minutos no forno tépido, para que colasse em tempo de
aparecer no ofertório da missa. Impuseram a Maria o pretexto de um mal-estar para
que não aparecesse na igreja e, afora o filho mais novo dos Bastiu, os únicos que
poderiam lamentar aquela ausência sabiam das coisas e ficaram calados. Quando
Maria voltou para casa já havia anoitecido uma hora antes, mas Bonaria Urrai não
estava.

A viagem no furgãozinho de dois lugares, um velho modelo do pós-guerra que


sobrevivera teimosamente às estradas esburacadas dos campos de Soreni, foi curta e
cheia de solavancos.

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A acabadora estava sentada no lugar do passageiro, e o homem que fora buscá-la em


casa não tentara sequer entabular um arremedo de conversa. Quando chegaram ao
casario em campo aberto, a velha desceu rápido. O ladrar furioso de dois cães já
anunciara a chegada de ambos, e uma mulher jovem com um casaco de pano escuro os
esperava à porta fazia alguns minutos. No lado da fachada mais exposto ao mistral,
o reboco descascado mostrava as linhas grosseiras dos tijolos de barro cru,
enquanto a lua no céu sereno permitia distinguir no curral uma pequena construção
de blocos cobertos com chapas de Eternit, provavelmente um galinheiro. As janelas
da morada estavam fechadas, dando a impressão de uma casa desabitada. Mas não era
o caso.

- Obrigada por ter vindo... - murmurou a mulher num início de saudação.

A acabadora se limitou a anuir e apertou o xale em torno dos ombros, pouco


disposta a se deter mais do que o necessário. Entraram na casa deixando os cães do
lado de fora, guardando o furgãozinho. No aposento esperavam-na seis pessoas, uma
família inteira ao redor da mesa vazia, e se levantaram como numa chamada. Além do
homem que a trouxera, marido da mulher que abrira a porta, havia mais dois homens
entre trinta e quarenta anos, que inclinaram a cabeça em sinal de respeito; perto
da lareira estavam duas meninas de pijama, com os olhos ensonados de quem,
normalmente, já estaria dormindo há um bom tempo. A menor segurava um cachorrinho
de pano que algum dia devia ter sido branco. A acabadora avaliou imediatamente
quem tomava as decisões lá dentro e se dirigiu a ela.

- Onde está? A mulher fez um sinal significativo com os olhos, indicando a porta
de madeira na lateral do aposento, semioculta por um guarda-louça antigo que
atravancava o espaço.

- Está no quarto ali, nós o movemos só por causa das chagas.

Depois mostrou o caminho, seguida em silêncio pelos outros como numa procissão.

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No quarto, havia apenas a luz do abajur no criado-mudo ao lado da cama, mas era
suficiente para desenhar sombras amorfas no crânio descarnado do velho que jazia
entre as cobertas, com a cabeça apoiada em dois travesseiros. O homem parecia
dormir.

- Há quanto tempo ele está assim? - perguntou a acabadora, acercando-se da cama.


Os outros se dispuseram espontaneamente em torno do leito.

- Faz oito meses na semana que vem. Mas dois anos ao todo, se contarmos desde a
época em que conseguíamos sentá-lo.

Apenas a mulher falava, e de vez em quando trocava um olhar com o marido e os


irmãos. Os olhos escuros da acabadora a fixaram.

- Foi ele que me chamou? A outra sacudiu a cabeça diversas vezes, desviando os
olhos como que para ocultar que estava à beira das lágrimas.

- Não, faz semanas que ele não fala mais - acrescentou depois. - Mas eu, eu entendo
meu pai.

Aparentemente satisfeita com aquela resposta, a acabadora estendeu a mão de sob o


xale negro e tocou com delicadeza na testa ossuda do velho. Aquele toque o homem
abriu os olhos, dirigindo-lhe as pupilas desbotadas sem emitir nenhum gemido.

- Tiraram todos os objetos santos que estavam com ele?

- Todos. Olhamos também nos travesseiros e no colchão. Até a medalhinha do batismo


tiramos. Não há mais nada a prendê-lo. - A voz da mulher, ao enumerar os objetos,
tinha algo de febril. - Chegamos a pôr a canga nele.

A mulher se aproximou da cama e pôs a mão debaixo do travesseiro, de onde tirou um


pedacinho de madeira macia, toscamente entalhado em formato de uma canga de bois.
A acabadora examinou o objeto, depois fitou novamente a figura idosa estendida na
cama. Quando retomou a palavra, foi para se dirigir aos outros parentes,
peremptória.

- Saiam todos.

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Nenhum dos homens hesitou em obedecer. Vendo que a dona da casa não dera mostras
de se mexer, a velha a encarou de frente. Relutante, a mulher também saiu do
quarto, fechando a porta sem qualquer ruído.

Ficando sozinha com o velho, examinou-o. Os olhos escancarados do tio Jusepi


Vargiu tinham a imobilidade irreversível das coisas quebradas. Bonaria lhe tomou a
mão magra, apalpando com atenção o pulso e o antebraço, e algo naquele contato
lhe arrancou um estremecimento. O velho emitiu um som rouco.

- Chamaram você, afinal... Com a mão esquelética puxou a acabadora junto a si,
obrigando a figura alta e escura a ceder e se inclinar. Apesar de sua fraqueza, o
sussurro do velho não se perdeu nas dobras do xale, e Bonaria Urrai o escutou
perfeitamente. Lá fora estava a família, rezando à espera, mas não havia decorrido
sequer o tempo de um Pater ave gloria e a acabadora saiu do quarto do velho,
tendo o cuidado de deixar a porta aberta às suas costas. Os parentes do homem se
levantaram novamente. Quando Bonaria Urrai se dirigiu à mulher e ao marido, estes
lamentaram não ter nascido surdos.

- Antonia Vargiu, por terem me chamado sem motivo, amaldiçoados sejam todos vocês
aqui presentes.

Em tantos anos nunca fora obrigada a dizer tais palavras, mas agora, sendo
necessárias, vieram à sua boca com a facilidade da respiração.

- Por terem mentido e me dito que ele não falava, amaldiçoados sejam os filhos de
vocês, os de agora e os que virão.

- Não! - bradou a mulher que a recebera, tentando interrompê-la, enquanto os


outros recuavam pronunciando esconjuros a meia-voz. - Ele estava morrendo... o
doutor também disse!

A acabadora não mudou de expressão nem de tom. - Você sabe muito bem que seu pai
não está morrendo, não está nem próximo disso. Dê-lhe de comer. Se ele morrer de
fome, nunca mais você conseguirá dormir.

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A menina com o cachorrinho de pano estourou em lágrimas, mas nenhum dos adultos
presentes se preocupou em consolá-la naquele momento. Sem se despedir, a acabadora
saiu da casa. Menos de uma hora depois, quando o furgãozinho parou na frente da
casa de Bonaria Urrai, Maria estava acordada na mais profunda angústia.

- Onde a senhora estava? Fiquei preocupada! - Saí. - Isso eu vi, tia... Quem era
aquele homem? - Você não conhece, Maria. E não deveria estar acordada a esta hora,
amanhã é segunda-feira.

A mocinha fez um gesto de enfado, sem se importar em ocultá-lo da velha.


- O que me importa a escola! Onde a senhora estava? Bonaria Urrai, tendo ainda no
corpo a poeira da estrada de terra, não escondeu a incredulidade diante daquele tom
de voz.

- Não tenho de te prestar contas de onde vou, Maria Listru. Ou agora é você a
adulta e eu a criança?

A frase ríspida não foi suficiente para recolocar a mocinha em seu lugar, a qual
teve um último frêmito de raiva.

- Mesmo que eu seja criança, não tenho o direito de saber as coisas de casa? Passa
da meia-noite, nem comi para esperar a senhora...

- O passarinho que não bica já bicou. Você deve estar com a barriga cheia demais,
do casamento de sua irmã, para preparar comida.

Maria não respondeu, limitou-se a olhar o rosto da velha costureira e seu xale
negro, que ainda a envolvia como se a protegesse do frio inexistente de um maio
quente até de noite. Bonaria Urrai captou naquele silêncio o relato de coisas não
ditas e lhe devolveu o olhar. Tirando o xale, murmurou:

- Conte o que aconteceu. Naquela noite ninguém dormiu, nem as Listru que
festejavam, nem os Vargiu cujo motivo de festejo tinha se dissipado, nem as duas
mulheres na casa de Taniei Urrai, abraçadas perto da lareira, conversando até o
amanhecer sobre um

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pão e um amor rompidos. Apenas chegando a manhã, ao ir para a cama, Maria se


lembrou daquela outra vez em que Bonaria tinha saído de noite, cinco anos antes,
quando Giacomo Littorra morreu. Pensou naquilo como se estivesse dentro d'água,
com as lembranças da infância que se confundiam num sonho, e depois exausta
adormeceu. O que havia de bom naquilo tudo era que agora não precisaria inventar
desculpas para não ir à casa da mãe, ajudar a fazer pão.

***

Sétimo capítulo

Haviam se passado quatro anos desde o episódio na divisa de Pran'e boes, Nicola
Bastiu não conseguia entender como seu pai engolira o assunto sem fazer nada a
respeito.

Com golpes raivosos do tesourão, ele podava a sebe do lado sul da propriedade,
onde ficavam as oliveiras, olhando de vez em quando para o lado contrário, para
além da mureta, onde fazia dias que Manuele Porresu, sob a pérgula de sua
propriedade, esperava o momento certo para colher os frutos do campo, que se
ampliara em quase duzentos metros, justamente por causa da mudança da divisa no
terreno dos Bastiu. Os outros vizinhos já tinham colhido, alguns antes, outros
depois, e o ar estava denso com a fumaça pesada que se erguia dos restolhos
queimados, o que aumentava a temperatura pelo menos em dois graus, o que não era
exatamente o ideal naquela estação. Nicola se dignara a lhes dar apenas um olhar
antes de começar a podar impiedosamente a sebe, e o irmão ao seu lado tentava
debalde acompanhar aquele ritmo furioso.

- Nice, você vai acabar me machucando se continuar a se agitar feito um gorila.

- Me deixe em paz, Andría, pois toda vez que venho aqui e vejo o que aquele
desgraçado está fazendo...

Andría conhecia de cor a lista das queixas do irmão. Na partilha, caberia a ele
aquele terreno encurtado, e a ideia de ter de sofrer uma injustiça sobre seu
futuro bem, sem ter ainda a autoridade para retaliar, redobrava a sua raiva com
juros.

- Papai parecia que ia cobrar dele, depois não fez mais nada, e o sujeito, neste
ano, vai colher pelo menos quarenta toneladas a mais debaixo de nossas barbas!

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Toda vez que trabalhava naquele lado disputado do terreno, Nicola voltava a medir
a olho a parte que julgava faltar, e calculava o prejuízo baseando-se no que
Porresu havia plantado naquele ano. Às vezes eram tomates, às vezes eram melões.
Naquele ano era trigo.

- Papai te explicou o porquê... - O que me importam os amigos de papai, as pessoas


que conhecem papai, e as ofensas que papai não quer cometer! O terreno é meu, e
Porresu já fez uma vez o que queria. O que impede que ele mude a divisa de novo
hoje à noite, se encontrou uns idiotas que só ficam olhando?

- Ele acredita que o feitiço com o cachorrinho está na mureta, e agora não mexe
mais nela, você sabe disso.

Embora o raciocínio fosse irretocável, Nicola não estava satisfeito: ainda que
desse alguma garantia para o futuro, aquela resposta não lhe devolvia o terreno
perdido. A podadeira assobiava no ar como uma vespa, enquanto as sarças caíam aos
seus pés numa desordem calculada.

- Só sei de uma coisa. Que aquilo que é meu, tenho eu de defender. Papai está
velho, não tem vontade de brigar com ninguém. Já eu me importo e não quero que me
enganem.

- E o que você vai fazer, Nicola? Vai suspender a mureta e botar em cima do trigo
dele? Assim é você que vai estar mudando as divisas dos outros.

Nicola parou de agitar a podadeira e o olhou. - Se a pessoa não pode recuperar o


que lhe tomaram, pode conseguir que o ladrão não aproveite.

- Não te entendo... - mentiu Andría, olhando a figura suarenta e empoeirada do


irmão.

- Eu me entendo, eu me entendo. Os filhos de Porresu que fiquem sonhando em virar


doutores com o meu dinheiro.

- Eu não faria nada de diferente do que fez papai, Nice. Senão, você vai acabar
perdendo mais do que ganhando.

- O terreno é seu, Andría? - Não, mas... - Então cuide da sua vida, que não vai
ser você a me ensinar a viver. - Depois acrescentou com maldade

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deliberada: - Aliás, já contou para Maria Urrai que se apaixonou, ou vou ter eu de
escrever na parede da casa dela?

Andría fez um silêncio que pesava mais do que uma imprecação, e foi com aquele
peso que acabaram de limpar a sebe e reuniram as sarças num grande monte ao lado,
para que secassem ao sol e pudessem queimá-las alguns dias depois.

Durante a tarde inteira, Andría ficou remoendo as palavras de Nicola, sem saber se
ele seria realmente capaz de cumprir o que ameaçara. Prudente demais para contar à
mãe, Andría, apesar da opinião do irmão a seu respeito, também era esperto o
suficiente para saber que não devia falar com o pai nem com os amigos no bar.
Maria era a única pessoa com quem podia conversar sem receio, e Andría se deu
conta disso mais uma vez, olhando-a sentada no assento de ráfia de uma cadeira
feita especialmente para ela, enquanto costurava o bolso de um vestido à escassa
luz de um céu nublado, com a destreza de uma costureira experiente.

- O que você acha que ele poderia fazer? - Andrí, seu irmão não é tão tolo assim.
Ele fala porque está com raiva, mas não tem nada que possa fazer.

- Você não o viu, ele nem dorme... Perto da lareira apagada enrodilhava-se a
figura fulva de Moisés; o feitiço malogrado dormia plácido ao som das vozes dos
dois jovens, aproveitando a ausência de Bonaria para gozar daquelas horas
furtivamente concedidas por Maria dentro de casa. O amor incondicional daquele
animal parecia a Maria ser a única coisa no mundo que não precisara merecer. Para
acalmar seu nervosismo, Andría se aproximou e se agachou para afundar no pelo
macio de Moisés o rosto onde começavam a aparecer as primeiras sombras de uma
barba.

- Não creio que ele confunda problema com solução - disse Maria. - Mas, se você
acha que sim, deveria comentar com seu pai.

Se Andría tivesse aquela certeza, iria imediatamente, mesmo sob pena de levar dois
chutes do irmão no traseiro, pois por uma coisa dessas ele seria muito capaz de
lhe dar uma boa surra, apesar de seus dezessete anos. Mas, como não

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tinha mesmo nenhuma certeza, decidiu que naquela fumaça não havia fogo e, sem
saber disso, foi a última vez na vida em que desprezou seu instinto.

Para um homem que aspira ao respeito dos outros, as coisas boas podem até ser
gratuitas, mas as ruins devem ser sempre necessárias. Se alguém lhe perguntasse
naquele momento, Nicola Bastiu não teria dúvidas em atribuir ao que estava para
fazer o caráter de necessidade que podia justificá-lo. No entanto, escolheu a
noite para agir, porque para certas coisas a escuridão já é, à sua maneira, uma
forma de perdão. Não tinha muito tempo para executar o seu projeto, visto que em
casa pensavam que ele estaria no bar com os amigos, enquanto no bar os amigos
achavam que ele ainda estava para sair de casa. O clima se mostrava um bom
cúmplice naquela noite: o ar estava seco e soprava um vento quente ao sul, que
erguia o capim com rajadas bruscas, acariciando o trigo maduro de Porresu com o
fingido afago de um pastor no matadouro. Havia luar suficiente para enxergar, mas
Nicola sabia que não era necessariamente uma vantagem para ele; assim, moveu-se
rápido tentando aproveitar a sombra mais escura da mureta e das árvores, enquanto
seus passos respeitavam instintivamente os silêncios noturnos do campo. Precisou
arrastar adiante da mureta um pouco das sarças secas que amontoara com Andría
alguns dias antes, para levá-las até o extremo sul da propriedade de Porresu; era a
única maneira de garantir que o incêndio, tão logo começasse, avançasse para o lado
que causaria maior dano, o mesmo lado do vento. Isso tomou pouco tempo e muita
atenção, pois Nicola não queria que a marca das sarças arrastadas no terreno macio
apontasse com tanta clareza o autor do gesto. Porresu deveria suspeitar que tinha
sido lesado, mas sem certeza suficiente para envolver a justiça, exatamente como
fizera com os Bastiu quatro anos antes. Com aquele vento, o incêndio podia muito
bem ter se originado de uma chama que tivesse escapado de algum campo vizinho,
talvez
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um daqueles onde as brasas dos restolhos queimados naqueles dias ainda ardiam
raivosas no terreno enegrecido. Talvez não tivessem se apagado totalmente. Talvez
soprasse vento. Talvez aquele que julgava tolo o tratasse como tolo, mas não era a
hipótese mais provável, e era exatamente com isso que Nicola contava, enquanto
acendia a mecha que atearia fogo às sarças amontoadas.

Quando as chamas subiram aos céus como uma blasfêmia, o primogênito de Salvatore
Bastiu já estava no caminho de volta para o carro, deixando que o vento cumprisse
sua tarefa, pois a dele já cumprira. O tiro de espingarda que assobiou na noite
alcançou Nicola quase ao chegar à estrada, deixando-o estendido de bruços na terra
batida, sem nenhum grito ou explicação.

***

Oitavo capítulo

O chefe dos carabineiros, calabrês de origem siciliana, não acreditara nem por um
instante, mas tinha experiência suficiente para saber que, com oito testemunhas
confirmando o desenrolar do acidente de caça, não havia margem para se meter a
detalhista. Existem locais onde a verdade e a opinião da maioria são conceitos que
se sobrepõem, e naquela misteriosa geografia do consenso Soreni era uma pequena
capital moral. O relatório foi redigido, assinado e arquivado, e Nicola acabou em
casa com uma perna gravemente ferida, mais envergonhado por não ter atingido seu
objetivo de vingança do que por ter feito o pai pedir aos amigos que mentissem
para encobrir o fracasso.

Sabendo qual expediente fora usado para explicar à justiça o episódio na


propriedade de Pran'e boe, Manuele Porresu ia à igreja aos domingos de braços dados
com a esposa, planando acima do solo, orgulhoso por ter feito justiça da própria
injustiça e ciente de ter conquistado o silencioso respeito de quem antes o
considerava errado. Por outro lado, o que mais afligia Salvatore Bastiu era que o
filho tivesse passado, e por extensão o tivesse feito passar, por tolo. Em Soreni,
não havia o que mais se ridicularizasse e se desprezasse do que um tolo, pois se
a astúcia, a força e a inteligência podiam ser vencidas com as mesmas armas, a
tolice não tinha pior inimigo do que ela mesma, e sua fundamental
imprevisibilidade a tornava perigosa nos amigos e ainda mais nos inimigos. O
problema era que em nenhum dos dois casos a reputação de tolo viria acompanhada
de respeito, um bem prioritário num lugar onde não havia muitos outros bens.

Apesar de tudo, Giannina Bastiu mantinha a cabeça erguida quando ia fazer compras,
mas, ao brilho malicioso

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nos olhos de quem lhe perguntava melifluamente como estava Nicola, costumava
mentir, invocando uma recuperação cada vez mais próxima. Na verdade, a perna de
Nicola piorava dia a dia e, apesar dos cuidados do tratamento, desenvolvera-se uma
infecção que não deixava a febre baixar e obrigara o doutor Mastinu a reabrir duas
vezes a sutura para drenar o pus. Maria e Bonaria tiveram de esperar para fazer a
visita de cortesia, porque Nicola não aceitava receber ninguém, um pouco por
vergonha, um pouco porque não queria que os amigos vissem sua condição; mas,
depois de duas semanas de completa imobilidade na cama, o jovem parecia um leão na
jaula, que mal suportava a visita sequer do médico e dos parentes. Passavam-se os
dias e a perna não dava sinais de melhorar, até que o próprio doutor Mastinu
concluiu que não havia mais nenhuma melhora a esperar.
Quando se espalhou nos bares da cidade a notícia de uma provável amputação da
perna de Nicola, o chamado acidente de caça já não foi considerado tão divertido.

Era a primeira vez que Bonaria via Nicola desde o episódio de Pran'e boe. Mesmo
quando o jovem começara a receber visitas, a velha costureira esperara e nem
sequer mandara Maria ir pedir notícias. Era como se ela tivesse se distanciado do
fato e da pessoa que o realizara, como se o acontecimento em que Nicola por pouco
não perdera a vida realmente o tivesse matado, fazendo-o renascer numa terra
estranha, muito distante dali, uma terra que exigia uma longa viagem para chegar
até lá.

Nicola Bastiu estava na cama de casal que ficava no quarto de hóspedes, destinado
aos tios nas visitas dos feriados, e no resto do tempo usado como depósito de
coisas preciosas. Nicola se sentava no centro da cama, apoiado em vários
travesseiros, vestindo uma camisa clara simples, com a perna ferida por sobre as
cobertas para facilitar a medicação. A colcha de chenile colorida era chamativa,
enfeitada de anjinhos

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segurando cornucópias transbordantes, mas que, por um jogo irreverente de


sobreposições, pareciam também segurar o membro gangrenado, estendido entre seus
bracinhos gorduchos como um tesouro que verteriam ao redor. Naquele afresco
barroco Nicola era como uma mancha mal-lavada, de palavras e olhos turvos.

- Disseram que não vou sarar. O doutor Schintu de

Gavoi também veio e me disse que não há nada a fazer. Vão precisar cortar minha
perna.

Encarou Bonaria com olhar acusador, como se a culpa daquela sentença pairasse.no
ar do quarto e não visse a hora de encontrar alguém disposto a pegá-la. Para
enfatizar a extensão da calamidade, Nicola acrescentou:

- Vou morrer. Bonaria Urrai fitou o rapaz pálido na cama, e comprimiu as mãos
sobre o ventre. Até aquele momento evitara deliberadamente o olhar acusador do
filho dos Bastiu, porque um leito de doente não é jamais o lugar adequado para
apontar culpados. Quando falou, foi numa voz clara e leve, como se falasse de
coisas sem importância.

- Você não vai morrer, vão apenas tirar uma perna. - É a mesma coisa. Um cavalo,
quando se aleija, não é como se morresse? Dão aveia a ele manco?

- Você não é um cavalo, Nicola. - Isso mesmo, não sou um cavalo, mereço mais do
que carregar durante toda a vida o luto por mim mesmo.

- Não seria o primeiro nem o último. - Prefiro me matar. Bonaria tinha os olhos
duros enquanto o ouvia. Apesar de seu conhecido apreço por Nicola, naquele momento
suas mãos ossudas sem anéis, cruzadas como um novelo a ser trabalhado, pareciam
impermeáveis àquelas manifestações de autopiedade. A voz era fria como a
temperatura lá fora, como se a velha tivesse se convertido em ar encanado para
ventilar a atmosfera enfermiça do quarto.

- O Senhor dá, o Senhor tira. Não podemos pegar

só o que nos agrada.

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Nicola riu da frase feita, e era uma risada seca, carregada com toda a raiva de um
homem que se sente impotente pela primeira vez.

- Virou padre, tia Bonaria? Temos um padre mulher em Soreni e ninguém sabia! E
agora quem vai contar a dom Frantziscu que seu vice-pároco é a filha dos Urrai?

- Não é escarnecendo de mim que você vai alterar as coisas da vida. - Bonaria não
se abalou com o que, vindo de outrem, consideraria uma falta de respeito
inadmissível.

Nicola resolveu aproveitar, jogando logo todas as suas cartas.

- Posso alterar as da morte, porém. Ou a senhora pode...

Bonaria Urrai se fez cautelosa e lhe dirigiu um olhar penetrante.

- Não te entendo - disse em tom inexpressivo. - Claro que me entende. - Nicola


abaixou a voz num sussurro, implacável em seu desespero. - Santino Littorra me
contou o que a senhora fez com o falecido pai dele. Não lhe peço nada de
diferente.

Num súbito salto, Bonaria se levantou da cadeira como se queimasse; caminhou


alguns passos até a janela dando-lhe as costas, e quando se virou tinha nos olhos
uma expressão que Nicola jamais vira antes.

- Você está falando de coisas que não te cabem, e Santino errou ao fazer o mesmo.
Em todo caso, qualquer coisa que ele te tenha dito, são casos totalmente
diferentes. Giacomo Littorra estava morrendo.

- E eu já estou morto, mas não me podem enterrar. Bonaria fez um gesto irritado
com a mão, mais claro do que qualquer palavra.

- Você acha mesmo que minha tarefa é matar quem não tem coragem de enfrentar as
dificuldades?

- Não, acho que é ajudar quem quer parar de sofrer. - Esta é a tarefa de Nosso
Senhor, não a minha. Você nunca acreditou nas coisas certas, e agora quer me
ensinar as erradas?

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Nicola, pouco disposto a respeitar papéis divinos na comédia onde era o principal
personagem, teve um movimento de impaciência com aquela tirada de Bonaria. Com voz
alterada chamou a mãe, que chegou depressa ao quarto enxugando as mãos no avental.

- O que foi, Nice? - A tia Bonaria virou padre, mãe. Desfia as frases como quem
vive de oferendas. Escute só.

Giannina se voltou para Bonaria com um olhar confuso, mas a velha Urrai não se
mexeu, e fitava os olhos febris de Nicola sem nenhuma expressão no rosto vincado.

- Mas o que você está dizendo, Nicola? É assim que se fala com quem vem te
visitar?

- Seu filho não está bem e fala bobagens, Giannina. Não lhe dê ouvidos, nem eu
dou.

- Quem fala bobagens não sou eu, e sim vocês, que têm duas pernas e vêm me dizer
para carregar meu peso numa perna só. É o que dizem os padres e os tolos.
- Nicola, você sabe por que eu te digo essas coisas. Não adianta descarregar sua
raiva em cima de mim.

- Então por que a senhora fala como se não conhecesse a vida?

- Só tem uma pessoa aqui dentro que não conhece a vida. Se você tivesse bom-senso,
agradeceria ao seu santo pelo milagre de estar vivo, pois, pelo que te aconteceu,
já era para estar debaixo da terra, e nós chorando em redor.

- O resto da vida na cama, a senhora chama isso de milagre? Ir cagar carregado


numa cadeira, a senhora chama isso de milagre? Antes sim eu era um milagre, um
homem que, como eu, em Soreni havia só uns dois, ou nem isso. Agora sou um
aleijado, alguém que não vale o ar que respira. Cem vezes melhor se estivesse
morto!

Àquelas palavras Bonaria se calou, indo até a janela por onde a luz do dia ainda
pleno iluminava o quarto com um tom róseo cálido e irreal. Os anjinhos da colcha
cintilavam espalhafatosos àquela carícia luminosa, criando entre as pregas de
chenile a ilusão ótica de uma dança infantil e histérica.

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Donaria pegou o xale da cadeira num gesto breve, prenunciando uma despedida. Ao
sair, murmurou:

- É isso mesmo o que você pensa, Nicola? Creio que está enganado. Se basta uma
perna para fazer um homem, então qualquer banco é mais homem do que você.

Agastada, Giannina Bastiu repreendeu o filho emudecido, depois foi atrás de Bonaria
num passo rápido. As duas se fitaram em silêncio no corredor estreito, enquanto do
quarto vinham sons raivosos de pequenos movimentos bruscos na cama, até onde
permitia o estado de Nicola. Depois de alguns minutos daquela expectativa nervosa,
Giannina sussurrou:

- Ele não aceita. O que podemos fazer? - Tente chamar o vigário. - Dom
Frantziscu? E o que ele pode fazer com Nicola, se meu filho nem acredita em Deus?

Bonaria olhou a amiga com os lábios cerrados, refletindo.

- Não sei, Giannina, mas na hora da fraqueza alguns preferem a fé em vez da força.
Talvez em nome de Deus ele consiga convencê-lo a aceitar a situação.

Giannina Bastiu concordou não sem uma ponta de resignação. No fundo, a ideia de
ter um filho devoto não era menos estranha do que a de ter um filho perneta.

***

Nono capítulo

A bicicleta, totalmente virada, estava de pé apoiada no selim e no guidão. A mão


de Andría Bastiu girava lentamente a roda de trás, enquanto os olhos procuravam o
provável espinho que tinha furado a câmara de ar. Maria saiu pela porta dos fundos
com uma bacia com água até a metade, e pôs ao lado da bicicleta.

Deixe pra lá, se você foi até Turrixedda deve ser um daqueles pequenos. É melhor
colocar na água e ver por onde está vazando o ar.

Andría não era da mesma opinião. Sem dar sinal de tê-la ouvido, girava o pneu com
os dedos, esperando encontrar a excrescência reveladora, paciente e silencioso como
um mineiro.

- Andría, não posso ficar aqui a tarde toda por causa de um pneu furado.

A voz de Maria atravessou sua concentração, e o jovem ergueu os olhos da roda


suspensa, com ar indagador.

- Se você está ocupada, pode ir, eu quero terminar. Mas não pode ser em casa,
Nicola acabou de voltar do hospital. Não vou ficar arrumando a bicicleta no pátio
na frente da janela dele...

Maria concordou, indo se sentar no meio-fio da calçada da casa de Bonaria Urrai,


sem se incomodar minimamente com o fato de estar com seu jeans novo.

- Como ele está? - Péssimo. Rosna feito um animal, implica com todos e continua a
repetir que quer morrer.

- Um pouco eu o entendo, mas deve ser difícil para vocês...

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- Meu irmão nunca foi de gênio fácil, mas isso era o pior que podia lhe acontecer.
Minha mãe chora escondido, meu pai faz de conta que tudo vai bem, e ele então fica
ainda mais bravo. E tudo o que eu faço parece deixá-lo nervoso.

Enquanto falava, Andría tirou o pneu e extraiu a câmara de ar, começando a enchê-la
com sua pequena bomba branca.

- Gostaria de ir visitá-lo, mas não quero incomodar. - Não sei se é uma boa ideia,
mas talvez com você ele se controle...

Ele virou gradualmente o pneu na água da bacia, até que de um ponto invisível saiu
uma reveladora coluna de pequenas bolhas de ar.

- Pronto, desgraçada! Agora me dê o remendo, vamos tapar - exclamou Andría


satisfeito. - Quanto menos se enxerga, maior o dano, é sempre assim.

Desde que lhe cortaram a perna direita no hospital Mont'e Sali, Nicola dormia
quatro horas por noite, e só com sedativos. O doutor Mastinu havia dito que era
normal, que levaria algum tempo, mas Giannina Bastiu sentia suas dúvidas, porque
Nicola nunca tinha sido de reclamar de dor. Já quebrara uns sete ossos, quando
menino não tinha medo de altura nem de fundura, ninhos nas árvores e cobras nos
fossos eram desafios irresistíveis, e a imprudência era sua modalidade preferida
de brincadeira, para o constante desespero da mãe e uma certa satisfação
indisfarçada do pai. Uma vez, jogando bola, chegou a fraturar um osso da mão, um
ossinho muito miúdo do qual ninguém jamais ouvira falar, a ponto de os amigos
zombarem, dizendo que, só para poder quebrar mais um osso, ele tinha inventado um
que nem existia. Nicola Bastiu não era pessoa que reclamasse de dor. Para
Giannina, até seria preferível, pois, vendo-o quieto e hostil na cama com o toco de
perna costurado e envolto num pano, sentia dentro do peito uma espécie de bola de
sebo quente que não se dissolvia, e subia e

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descia enquanto arrumava sua cama, trazia-lhe a comida ou simplesmente ia até a


porta para ver se precisava de alguma coisa. Tinham levado a televisão para seu
quarto, para que ele se distraísse quando estivesse sozinho, mas Nicola a deixava
quase sempre desligada e ficava olhando pela janela, lançado a um mundo de raiva
silenciosa em que era o único cidadão com direito de residência. Foi assim que o
vigário o encontrou, depois que Giannina, vencidos os escrúpulos, reuniu coragem
para seguir o conselho de Bonaria Urrai e convidou o padre a visitar o filho.

Pároco de Soreni fazia vinte e um anos, dom Frantziscu Pisu tinha um ventre redondo
onde os botões da batina se repuxavam com força a cada sorvo fundo de ar. Aquele
volume embaraçoso contrariava o resto do corpo, seco e quase raquítico, e de
perfil parecia um lagarto que tivesse engolido um ovo, anulando totalmente a
elegância austera da batina que o velho padre raramente trocava. Em Soreni, entre
sorrisos de escárnio, todos o conheciam por aquela sua mania de passar as mãos
constantemente na barriga, alisando o tecido, na tentativa de minimizar aquilo que
considerava como sua única vergonha visível. Os mais bondosos tinham deturpado
seu sobrenome para Pisittu, gatinho, talvez porque naquele seu tique mímico
fizesse lembrar um bichano se lambendo metodicamente para alisar a pelagem. Porém
alguns mais maldosos o chamavam de Tzicu, apelido de Frantziscu e também gota,
troçando da origem etílica de seu ventre inchado. Ele sabia dos dois apelidos, mas
nunca se importou muito, com a paciente superioridade de quem celebrava fazia mais
de vinte anos os funerais de todos, mesmo dos irreverentes. Provavelmente foi com
essa mesma disposição de ânimo que bateu à porta dos Bastiu, família de homens que
certamente nunca tinham corrido o risco de quebrar um osso tropeçando nos degraus
da igreja. Apesar disso, apenas em parte se surpreendera com o pedido de Giannina
para visitar seu primogênito, pois não era a primeira vez que algum pretenso
anticlerical se revelava medroso na hora extrema. Estando na cruz, todos os ladrões
se tornavam bons.

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Salve, Nicola - murmurou entrando no quarto ao sinal furtivo de Giannina Bastiu,


que se colocara prudentemente fora do alcance das previsíveis farpas do filho.

Nicola afastou os olhos da janela para assestá-los na porta com a reação


instintiva do caçador. Bastou-lhe um segundo para identificar o visitante, mas não
se descompôs.

- Ora, vejam só, me mandam o padre... Então estou morrendo, e eu que, por não
saber ler nem escrever, me achava estropiado para sempre.

- Na verdade, você não está morrendo, e certamente os médicos devem lhe ter dito.
Estou aqui apenas de visita.

O jovem não fez sinal ao padre para sentar, e o velho não se aproveitou da idade
para fazê-lo sem ser convidado. Talvez nem fosse um encontro para se sentar,
afinal.

- Mas que surpresa! E desde quando o senhor me visita?

Dom Frantziscu não demonstrou o menor embaraço à pergunta. Num gesto lento tirou o
barrete de lã azul da cabeça encanecida, ignorando a careta de aborrecimento de
Nicola.

Você nunca precisou. - E por que o senhor acha que agora preciso? Se foi minha
mãe que lhe disse isso, incomodou-o à toa.

- Não é preciso que me digam, os sacerdotes agem assim por iniciativa própria, é
nosso dever.

- Vir escarafunchar a dor alheia, certamente. Uma bela iniciativa, vai ganhar o
paraíso. Mas não imagine, dom Frantzí, que só porque me falta uma perna eu agora
esteja procurando uma muleta.
O velho padre lembrava bem aquela insolência, aquela inteligência sem paz que a
equilibrasse. Buscou os olhos do jovem que estava à sua frente, deixando de lado a
lembrança vívida de um outro Nicola Bastiu, um rapazinho hostil de calças curtas e
os joelhos ralados no cimento atrás da igreja. Fácil reconhecer agora a raiz,
observando o fruto em que resultara. Suspirou devagar.

- Vim só falar, Nicola...

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- Falar comigo? E de quê, do sexo dos anjos? De como organizar a festa da


Madalena? Podemos falar de tudo, não é verdade? Pois agora tenho tempo de sobra.

- Vim falar do que aconteceu com você. A resposta de Nicola veio desdenhosa como
uma chicotada no ar:

- O senhor não sabe nada do que me aconteceu. - Engano seu. Em Soreni até os
cachorros sabem, como sabem que sua imprudência lhe custou uma perna.

- Ótimo, assim têm algum assunto para conversar no bar que não sejam os chifres
deles. Quanto ao senhor, se precisa me abençoar, me abençoe e depois vá embora.
Ter tempo de sobra não significa que vou perdê-lo com o senhor.

O padre não se mexeu, parado de pé ao lado da porta, com o barrete na mão como um
pedinte. Nicola o olhou, esperando.

- Não vim abençoá-lo. Bênção não se impõe a ninguém.

- Então o quê? Me amaldiçoar não precisa, isso o senhor mesmo pode ver.

- Não blasfeme, sua vida não é uma maldição, mesmo que te falte uma perna. É sobre
isso que eu gostaria de falar com você...

Os olhos de Nicola eram duas brasas, o rosto estava pálido e raivoso como nem
mesmo sua mãe jamais o vira.

- O senhor quer me falar da minha vida? E o que sabe o senhor, padre? O senhor por
acaso é perneta? - Sorriu de desdém, abaixando o olhar sobre o sacerdote. - Sem
dúvida, de certa maneira o senhor também é perneta, ou pelo menos prometeu ser.
Uma coisa é dizer "sou aleijado por vocação", mas aquilo que não se usa continua
lá, caso a pessoa mude de ideia... - Nicola se afastou ligeiramente do apoio dos
travesseiros, e por um instante o velho padre ficou contente que Nicola não pudesse
se levantar da cama. - No entanto, eu não posso mudar de ideia. E o senhor, lhe
garanto, não sabe do que estou falando.

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Dom Frantziscu não o interrompeu, nem deu mostras de pretender interrompê-lo. Já


aprendera de longa data que qualquer esmola cai bem para quem não espera nada, e
além disso Nicola não parecia esperar outra reação àquele claríssimo convite para
ir embora. Assim, ele se surpreendeu quando o velho, em vez de se despedir,
respondeu:

- Então, se entendi direito, você resolveu fazer com que todos os que ainda têm
duas pernas se sintam culpados, e que ainda tenham pena de você, enquanto o Senhor
te der fôlego para reclamar... - coçou a cabeça com um gesto distraído, como se
refletisse. - É normal, Nicola. Muitos fazem isso, e normalmente são os que não têm
ou não querem ter o conforto da fé.
- Dom Frantziscu, pare com isso. - A voz de Nicola agora estava calma, controlada.
- Não se aproveite de ser uma visita na casa de meu pai.

O sacerdote não se descompôs com aquela ameaça não muito velada, mantendo o olhar
fixo no jovem no centro da cama. Continuou a falar em tom paciente, destacando as
palavras como se falasse com uma criança.

- Está escrito que falemos no momento oportuno e também no não oportuno, e por
isso vou falar. Quando eu for embora, você vai ter todo o tempo para refletir
sobre sua dor e o significado dela. Uma dor que em alguma medida, não se esqueça,
você também mereceu causando-a a outros, mas que em todo caso não pode mudar, a
não ser aceitando-a como Cristo Salvador, que na cruz sofreu injus...

- Fora daqui! A exclamação foi colérica, prontamente seguida pelo arremesso de um


travesseiro, em trajetória torta demais para atingir o alvo. Nicola Bastiu estava
fora de si.

- Acalme-se, meu filho... - Não sou seu filho, ou pelo menos espero que não, sua
batina estufada! Não sou obrigado a escutar suas bobagens. Fora daqui! Já!

Giannina Bastiu chegou um instante depois, alertada pelos gritos do filho, em


tempo de ver o padre colocar calmamente o barrete na cabeça.

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- Acompanhe dom Tzicu até a porta, mãe. Está com pressa e não pode ficar mais.

A mãe fez de conta que não tinham sido os gritos a atraí-la e, embaraçada,
procurou se mostrar gentil.

- Dom Frantziscu, o senhor já está indo, e eu nem lhe ofereci nada...

- Não se preocupe, Giannina, tenho mesmo de rezar uma missa daqui a pouco.

Nicola se calou enquanto o velho padre e a mãe deixavam o quarto. Qualquer coisa
que estivessem conversando no corredor, não se deu ao trabalho de tentar ouvir,
fechando os olhos em busca de um arremedo de sono que extinguisse sua raiva, nem
que fosse apenas por uma hora.

***

Décimo capítulo

As mãos untadas de Giannina Bastiu deslizavam na pele flácida da coxa direita de


Nicola com regularidade hipnótica. No sol já morno le outubro, o pátio atrás da
casa mostrava a última florada das hortênsias, enquanto os crisântemos em botão,
ao longo do muro, ainda eram francas promessas por cumprir.

Assim que terminava de comer, na hora mais quente do dia, um Nicola indiferente
deixava que a mãe lhe fizesse aquela massagem terapêutica, indispensável para
evitar as chagas e facilitar a recuperação. Os meses de convalescência tinham
passado melhor do que o previsto, e a sutura na perna amputada se cicatrizara sem
complicações. Como uma passagem de estação, a atitude de Nicola, depois das
primeiras semanas de raiva cega, também parecia mudada. Não blasfemava mais, tinha
parado de insultar as visitas e eram cada vez mais raros os assomos de fúria,
quando atirava objetos ao acaso. Porém não falava. Não que tivesse emudecido,
apenas não pronunciava nenhuma palavra que não fosse indispensável, e deixara de
reagir aos estímulos em redor. Diariamente o pai e o irmão o erguiam da cama,
sentavam-no numa cadeira e o levavam ao pátio, sem que ele nem tentasse apoiar a
perna saudável no chão. Somente quando Bonaria Urrai vinha visitá-lo é que parecia
sair daquele torpor insano, pousando na velha costureira dois olhos negros como
estrelas apagadas. Durante aquelas visitas parecia menos inatingível, mas nem por
isso falava. Bonaria ia visitá-lo todos os dias, porém nunca tentara envolvê-lo em
alguma conversa, limitando-se a um dedo de prosa com Giannina e olhando-o de vez
em quando. Se tivesse certeza de encontrar Andría em casa, às vezes Maria a
acompanhava naquelas visitas, mas evitava ficar com Nicola,

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tomada de uma inconfessável repulsa por aquele sofrimento que já nem era uma dor.
Discutira algumas vezes com a velha para não precisar ir, pois não via nenhum
sentido naquelas visitas forçadas; por um lado, nada em Nicola permitia pensar
que fossem apreciadas e, por outro lado, Maria preferia passar as tardes em casa,
fazendo roupas pelos moldes que chegavam à loja todos os meses, ou ia à casa da
professora Luciana pedir emprestado algum livro para ler à noite. Era evidente que,
naquela tarde, não tinha levado a melhor: com efeito, estava sentada com
indisfarçada impaciência ao lado de Bonaria, evitando com uma determinação
científica pousar os olhos no trabalho delicado de Giannina com Nicola.

- Veja que lindo dia, meu filho... daqui a pouco vai estar mais fresco, faremos a
vindima e você vai experimentar o vinho novo.

Giannina Bastiu parecia inexplicavelmente renascida após a operação do filho.


Superada a vergonha inicial, tinha reorganizado os ritmos da casa em função da
nova exigência representada pela presença de um inválido para cuidar, e para cada
hora tinha uma tarefa programada, sem se importar com a falta de qualquer sinal de
gratidão do filho. Naquela tarde também, Nicola não esboçou qualquer reação ao
ouvir falar da vindima, mas Bonaria sorriu e prosseguiu a conversa com aparente
curiosidade, enquanto Giannina enxugava as mãos num pano e voltava a cobrir
cuidadosamente as pernas de Nicola.

- Já levaram Chicchinu para cheirar o ar do vinhedo? Ou este ano vocês também vão
esperar que os passarinhos comecem a comer as uvas, para saber que é hora da
colheita?

- Já levaram uma vez, mas parece que faltam ainda pelo menos umas duas semanas.
Isso se o tempo continuar firme... Maria, você virá nos ajudar este ano?

Obrigada a se distrair de sua contínua busca de distrações, Maria foi meio vaga,
porque a ideia de trabalhar junto com suas irmãs não lhe agradava especialmente.

- Não sei, tia Giannina, temos tantas coisas para acabar, já estamos com os
pedidos para as roupas de Natal...

77

Tenho medo de não conseguir, mesmo trabalhando todos os dias, imagine se


interromper. - Ficando de pé, virou-se para Nicola. - Aliás, estou voltando para
casa para ir trabalhar. Fiquei contente em vê-lo, Nicola.

Não houve qualquer mudança na expressão de Nicola, como se não tivesse ouvido a
despedida. A mãe, com um sorriso constrangido, tentou remediar aquela falta de
cortesia.

- Oh, ele também, certamente! Mas está cansado... às vezes a pessoa se cansa mais
não fazendo nada do que trabalhando o dia todo no campo, dizem. Vou acompanhá-la
até a porta, pois preciso ir fazer café. Antes de sair, porém, pegue mais
docinho. Sabe que se chamam gueffus como certos cavaleiros da Idade Média? Foi sua
mãe que me disse, ela leu não me lembro onde...

Não foi nem por dez minutos que Bonaria e Nicola ficaram sozinhos, mas ele
aproveitou até o último instante. Logo que ouviu o estalar da porta, pareceu
despertar do feitiço de impenetrabilidade com a rapidez de quem só esperava por
aquele momento.

- O que decidiu? - sussurrou ansioso, enquanto apertava seu braço como um


náufrago.

Ela se soltou do aperto com firmeza, mas a resposta foi serena.

- Não há nada a decidir. O que você me pediu não se faz.

- Não aguento mais ficar assim. Não tem piedade da minha condição? - Na voz de
Nicola vibrava uma nota de desespero, mas Bonaria não se deixou impressionar.

- Já falamos disso, Nicola. Não vou fazer. Nicola tinha se preparado para aquela
resistência com o mesmo cuidado com que, outrora, preparava as armadilhas para as
lebres e as estacas para as vinhas. Quando se tem tempo, até a raiva se organiza.
Por isso Bonaria tinha certeza de que desta vez não haveria cenas.

- No entanto, é o que a senhora faz quando lhe pedem. Eu não valho igual aos
outros? 78

- Você nunca entendeu nada de sua vida, Nicola, imagine o que pode entender da
minha. Basta saber que não vou ajudá-lo.

Nicola suspirou como que vencido, e então mudou de registro.

- O que diria se eu quisesse me casar com Maria? - perguntou de chofre,


desconcertando a velha por um instante.

- Que caberia a Maria responder. Jamais poderia eu decidir sobre uma coisa dessas.

Num gesto deliberado, Nicola deixou escorregar a coberta do colo ao chão. Firmando-
se com as mãos nos braços da cadeira, o jovem se ergueu com esforço e ficou o mais
reto que conseguiu. Naquela paródia de vertical, parecia desafiar Bonaria a fitá-
lo com o toco de perna pendente, ainda avermelhado pelo pós-operatório.

- Olhe para mim, tia, olhe minha perna: por que a senhora zomba da verdade? Maria
jamais se casaria comigo, ninguém jamais se casaria, porque sou um aleijado. Não
posso trabalhar, não posso sustentar uma família, não posso fazer nada do que uma
mulher espera de um homem. - A voz, antes calma, assumiu um tom cada vez mais
tenso. - É como se já estivesse morto.

O corpo de Nicola, durante aqueles meses, perdera peso e vigor, mas a estrutura
era saudável e não lhe parecia faltar vontade. Se tivesse perdido a disposição,
iria se submeter resignado. Mas sua determinação tinha algo de obsessivo, era a
mesma de sempre em tudo. Gostasse ou não, Nicola Bastiu era uma das coisas mais
vivas que Bonaria conhecia, mesmo que não o dissesse quando voltou a fitá-lo nos
olhos.

- Tua mãe te considera vivo, e te deseja o bem dos vivos.

- Minha mãe encontra motivo de satisfação apenas em cuidar de alguém. Nem acredita
que voltei a ser como uma criança, mas não é para isso que estou no mundo.
- Ela morreria com uma coisa dessas, e seu pai também. - Vão morrer de qualquer
forma, e depois quem vai cuidar de mim? Quem vai me lavar a bunda, a mulher do meu

79

irmão? E que mulher se casaria comigo, sabendo que no dote está incluído cuidar de
um estropiado?

Bonaria fechou os olhos. Se Giannina Bastiu entrasse naquele momento, pensaria que
a velha adormecera ao sol, entediada pelo mutismo de Nicola. Depois sacudiu a
cabeça e os reabriu, alerta.

- Nem se eu quisesse, poderia fazer o que você me pede sem a permissão da sua
família.

O rosto de Nicola se iluminou; teve a impressão de vislumbrar a sombra nebulosa de


uma possibilidade. Abandonou a cansativa posição ereta para se acomodar novamente
na cadeira, negligenciando a coberta que ficara no chão. Naquela ostentação
indecorosa do toco de perna, tão incongruente com sua constante recusa em aceitar
a mutilação, havia o requintado uso de uma arma psicológica. Nicola teria dado um
excelente soldado, ou um canalha como poucos.

- Nem tentaria conseguir, mas, se quiser, há uma maneira de não precisar pedir.

- Não existe essa maneira, e, se existisse, não a usaria. - A voz de Bonaria era
categórica, mas os olhos eram interrogativos, e Nicola se sentiu encorajado.

- Na noite de Todos os Santos. Quando deixam a porta aberta para o jantar das
almas, a senhora pode entrar e sair sem suspeitas! De manhã me encontrarão morto
na cama e pensarão numa desgraça.

Bonaria se levantou num salto e recolheu a manta do chão, inclinando-se para


ajeitá-la nas pernas do rapaz. A posição quase íntima permitiu que Nicola lhe
agarrasse o pulso outra vez, agora com insinuante delicadeza. Não falou nada, e
àquele silêncio Bonaria respondeu com um sussurro:

- Você me pede para me comprometer diante de Deus e dos homens. Está fora de si,
Nicola.

- Nunca fui mais sensato do que hoje. Talvez a senhora possa suportar a ideia de me
ver feito um verme pelo resto de sua vida, mas a mim cabe um peso três vezes
maior. Se me ajudar, passará por uma morte natural. Senão, eu mesmo darei um
jeito.

80

Apesar da esperança de Nicola, até então Bonaria Urrai não levara em consideração
nem por um instante a hipótese de concordar com seu pedido. Foram aquelas palavras
que a fizeram vacilar pela primeira vez, pois já ouvira algo parecido muitos anos
antes, quando atrás da colina chamada Mont'e Mari ainda havia um bosque e uma
juventude para investir em promessas.

A guerra que seria mais tarde chamada de Grande já tinha merecido o adjetivo,
levando de Soreni três levas de homens para as trincheiras do Piave, e ainda não
eram suficientes. Do fronte, junto com os dispensados por ferimentos graves, vinham
as notícias sobre o heroísmo da Brigada Sassari, e Bonaria, aos vinte anos, já
conhecia o suficiente do mundo para saber que a palavra "herói" era o masculino
singular da palavra "viúvas". Apesar disso, era exatamente uma esposa que ela
gostaria de ser, enquanto, deitada na relva sob os pinheiros, apertava junto ao
seio a cabeça encaracolada de Raffaele Zincu, inspirando fundo os perfumes da
terra resinosa.

Raffaele não era propriamente bonito, mas as moças casadouras de Soreni sonhavam
em tê-lo como marido. A bem da verdade, talvez as casadas também sonhassem com
ele, pois, se havia homens mais ricos ou mais altos do que Raffaele, não havia
nenhum de vinte anos com aqueles olhos verdes penetrantes e zombeteiros, que se
cravavam nos olhos dos outros como se ele não tivesse medo do preço a pagar.
Raffaele tinha o lábio inferior macio como o de uma mulher, e um caráter
caprichoso e sensual que esbraseava as faces só de se falar com ele; Bonaria não
se importava que a linha arrogante da mandíbula advertisse quanto às
potencialidades não totalmente inócuas do capricho. Desde rapazinho, ele trabalhava
nos campos de Taniei Urrai junto com dezenas de outros, colhendo melões no verão e
azeitonas no inverno com uma energia que lhe valera a estima do patrão e dos
companheiros. Quem derrubava as azeitonas junto com ele terminava o dia

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mais cedo e com maior rendimento, e ao jantar o velho Urrai costumava elogiar os
resultados, repetindo que Raffaele era valente na mão e na palavra; Bonaria, que
também conhecia outras valentias de Raffaele, concordava com estudada discrição.
Onde seu pai contava vinhas, ela contava pinheiros, e se ele sonhava com mares de
espigas douradas, ela tinha campos de cachos escuros por onde deslizava a mão em
certas tardes de sábado, quando não havia pai e não havia guerra capazes de lhe
extinguir o fogo de Raffaele no sangue. Falavam também, às vezes por horas,
especialmente sobre a possibilidade de ser convocado para o fronte; mas, nas
conversas de Raffaele, era sempre a viagem de volta.

- Você ainda vai me querer, se eu voltar como Vincenzo Bellu?

- Sem um braço? Claro, assim te farão cavaleiro de Vittorio Veneto, e eu vou ser
cavaleira! - Bonaria tinha rido baixinho, roçando suas orelhas com uma carícia
distraída.

- Não estou brincando. Você iria me querer, mesmo aleijado? Surdo por causa de uma
granada, ou sem pernas como Luigi Barranca?

- Vou te querer de volta de qualquer maneira, basta que esteja vivo.

A resposta decidida de Bonaria não o tranquilizara. A voz de Raffaele, naquela


posição, estava mais grave do que o normal.

- Talvez você possa suportar a ideia de me ver de volta feito um verme, mas eu
preferiria morrer dez vezes em vida do que viver nem que fossem apenas dez anos
como um morto. Se me acontecer uma coisa dessas, faço como o Barranca e me dou um
tiro.

- Nem pense em dizer uma coisa dessas, Arrafiei... Bonaria não ousou olhar o céu
enquanto lhe pousava a mão na boca para abafar suas palavras, erguendo-lhe a
cabeça para deslizar em seu regaço. Ao contemplá-lo àquela sombra pacífica,
pareceu-lhe mais perfeito do que nunca, vibrando com um espírito tão vital que
parecia transbordar daquele corpo saudável, totalmente intacto.

82

- Não vão te chamar, você vai ver... - murmurou como um exorcismo.

- Não sei, mas, se eu for, reze para eu voltar. E depois o resto eu vejo.
Mas foi chamado, e Bonaria teve de rezar durante trinta e cinco anos, pois ninguém
voltou a Soreni para dizer que o filho de Lizio Zincu tinha sido um herói na
trincheira.

Quando Giannina Bastiu voltou ao pátio com a bandeja do café fumegante na mão,
Nicola estava sozinho ao sol entre três cadeiras vazias, com um sorriso estranho
na face.

***

Décimo primeiro capítulo

As almas nos conhecem, são parentes nossas e, portanto, não nos farão mal, pois
também preparamos o jantar para elas. Andría Bastiu pensava nisso, enquanto se
preparava em seu quarto para a noite de 1º de novembro. Tirou os sapatos que
usava no campo, mas continuou vestido, porque não tinha a menor intenção de
dormir. No ano anterior, a mãe fizera com que se cansasse colhendo batatas o dia
inteiro, e à noite adormecera sem querer, traído pelo corpo. Mas desta vez não se
deixou enganar, estava acordado e poderia ver as almas quando viessem comer e pegar
o fumo picado que estava na mesa, onde na manhã seguinte encontrariam as marcas
impressas dos dedos. Assim saberia o que responder a Maria, quando ela dizia que
as almas não andam por aí atormentando ninguém, pois a misericórdia de Nosso
Senhor Jesus Cristo não o permitia. Se Nosso Senhor Jesus Cristo permitira que seu
irmão perdesse uma perna, imagine se não permitiria que os mortos comessem um ou
dois culurgiones.

Por isso, tinha se sentado em silêncio num banquinho de junco que usava quando
criança, sentindo os pregos sob as nádegas, diante da fresta da porta com a
determinação de uma sentinela de fronteira. Passados vinte minutos, o sono já o
invadia, mas Andría continuou agachado atrás da porta entreaberta, resolvido a
ficar de olho na linha do corredor que ia da porta externa à mesa posta, à espera
das almas dos finados. São muitas as almas nessa noite, dissera-lhe Nicola, que no
ano anterior tinha visto inclusive a de Antoni Juliu, o irmão mais velho de sua
mãe, andando na rua em direção à casa deles. Antoni Juliu emigrara para a Bélgica,
e toda vez que voltava nem parecia que estava em casa: olhava em torno de si como
alguém perseguido por credores, e o negro do carvão debaixo das unhas nunca saía.
Não ficava contente em partir, mas ainda menos em voltar. Enforcou-se na
propriedade dos Gongius no terceiro verão, assustando muito os meeiros que o
encontraram pendurado no galho como uma pera podre, com a língua de fora, emigrado
de si mesmo quem sabe para onde.

Talvez o próprio Antoni Juliu viesse naquela noite. Havia o prato preparado
especialmente para ele, com o copinho de aguardente ao lado, pois de aguardente
gostava e muito. Se ele não viesse beber, no dia seguinte, antes do almoço, seu
pai beberia, ou mesmo Nicola, pois sabe Deus o quanto ele precisava. Mas aquela
figura que percorria o corredor, negra como uma blasfêmia, desfilando na frente da
porta de Andría com um farfalhar de saia, não podia ser a alma de Antoni Juliu.
Não podia ser de seu tio aquela cabeça coberta por um lenço preto, aquele passo
seguro de quem jamais deixara sua terra por necessidade.

Quando Andría percebeu o vulto misterioso entrando na casa, piscou os olhos


incrédulo, transtornado pela diferença entre a fé e a verdade. Havia mortas na
família? Sentiu vontade de fechar imediatamente a porta do quarto, cerrando-a com
força para que o medo não entrasse, mas a alma estaria perto demais para não
perceber. Por sorte o vulto parou um pouco antes do seu quarto, na frente da porta
de Nicola. Andría o viu entrar, depois inspirou um pouco de ar, e num silêncio
que pretendia absoluto fez a primeira coisa imprudente da sua vida, saindo do
quarto para o corredor.
Na noite das almas os sinos não tocavam. Podia ser qualquer hora, e seria a mesma
coisa. Ao longo das ruas, apesar do frio, todas as portas das casas estavam
abertas, como se todas as famílias de Soreni tivessem fugido às pressas,
esquecendo de fechar a porta. Mais familiar àquela noite do que a qualquer outra
noite do ano, a mulher alta que andava pela rua beirando os muros seguia num passo
de quem sabe perfeitamente aonde está indo. Andava depressa, embrulhada no xale
escuro, até que as pregas da saia pararam de ondular, à soleira da casa

85

dos Bastiu. A mulher entrou sem qualquer ruído, deslizando pelo corredor rápido
demais para deixar algum vestígio de si na rua. Até na noite daquela casa movia-se
com segurança, como se fosse alguém da família, percorrendo as portas dos quartos
até a única que sabia estar apenas encostada, aquela onde Nicola Bastiu, aturdido
pela dor e pela espera, dormia um sono fugidio.

Sonhava com o mar, aquele de seus vinte anos, o único que tinha visto. Oito anos
antes, entrara na água até o peito, com as calças enroladas, deixando que as ondas
lhe batessem pesadas de sal. Os primos saltavam as ondas e brincavam de jogar a
melancia como se estivessem no feno atrás de casa. Ele, porém, contemplava os
confins do mar com os olhos muito abertos e, quanto mais olhava, mais vontade
tinha de recuar para a beira d'água, de costas, devagarinho, sem correr nem se
virar, como fazem certas serpentes. No sonho, sentia-se voltar àquela segunda-
feira depois da Páscoa, mas a areia no fundo do mar era muito mais viscosa, era um
monstro sem ossos que não lhe permitia andar. Se pudesse ter morrido assim,
afogando-se na água dos sonhos, teria sido melhor para todos. Mas abriu os olhos
de repente, debatendo-se manco entre os lençóis. Precisou de alguns minutos para
lembrar quem e o que era, pois ressurgir de si é tanto mais difícil quanto mais
fundo se está. Só então percebeu a respiração da figura magra que violava o ar do
quarto, imóvel, apoiada na parede diante da cama. Nicola nunca tinha sido homem de
muitas palavras, mas naquele momento nem o silêncio lhe parecia certo.

- A senhora veio... - sussurrou rouco e pálido. Ela se aproximou da cama, e só


respondeu quando estava tão próxima que Nicola teve a impressão de sentir nela o
cheiro acre dos velhos. Quando a mulher falou, soube que estava realmente
acordado.

- Assim como vim, posso ir embora. Diga que mudou de ideia e sairei sem pensar duas
vezes. Juro que nunca mais falaremos disso, como se nunca tivesse ocorrido.

Nicola respondeu rápido, como se não quisesse deixar qualquer espaço para dúvidas.

86

- Não mudei de ideia. Já estou morto, e a senhora sabe. Ela o fitou nos olhos,
movendo a cabeça para que ele não conseguisse fitá-la de volta. Viu o que não
procurava e sussurrou em voz cansada:

- Não, Nicola, não sei. Só você pode saber. Eu vim pronta, mas rogue ao Senhor que
lhe traga a coisa que você me pede, pois ela não é abençoada, nem necessária...

- Para mim é necessária - disse Nicola, aceitando a maldição com um leve aceno da
cabeça.

A velha, enquanto isso, abria o xale para revelar as mãos comprimidas em torno de
um frasquinho de barro de boca larga. Quando a acabadora abriu a tampa, evolou-se
do frasco um fio de fumaça. Nicola Bastiu acolheu o cheiro acre, não esperava que
fosse diferente, e o inspirou profundamente, murmurando baixinho palavras que a
velha não deu sinal de ouvir. O rapaz segurou nos pulmões aquela fumaça tóxica,
fechando os olhos atordoados pela última vez. Talvez já estivesse adormecido
quando o travesseiro lhe abafou o rosto, pois não se moveu nem resistiu. Ou talvez
não fosse resistir em caso algum, pois não era homem de morrer uma morte diferente
da vida que vivera, sem respirar.

Andría Bastiu, gelado de pavor, espreitou pela fresta da porta a alma feminina e
negra falando com seu irmão, antes que se abaixasse com o travesseiro nas mãos.
Não é aquilo que as almas vêm fazer. Ou talvez sim. E é por isso que sua mãe dizia
que se deve fechar a porta, mas fechar bem, e não deixar apenas encostada, causando
inveja nos mortos com a respiração, pois senão eles vêm e pronto, roubam sua
respiração debaixo de um travesseiro. E o jantar é uma desculpa para distraí-los,
não para chorá-los. Comem até nascer o dia, no escuro da casa confundem o molho de
tomate dos culurgiones com sangue, o pernil do porcetto com coxas e rostos ainda
rosados, e não percebem, se ninguém for lembrá-los disso, que atrás das outras
portas estão os vivos de corpo inteiro. Naquele instante Andría teve certeza de
que, se sobrevivesse, jamais voltaria a tocar num culurgione pelo resto da vida.

87

Quando o vulto da alma feminina se afastou da cama de Nicola para repor o


travesseiro sob sua cabeça, Andría recuou cegamente no corredor, imitando com os
lábios trechos avulsos do Pater ave gloria, que nunca soube de cor. Apenas por
acaso conseguiu não romper o silêncio que o protegera, até colocar entre si e a
aparição a irrisória espessura da porta de seu quarto. No gesto cauteloso de
fechá-la, viu a figura que andava depressa para a saída. Uma tia, uma avó, uma
irmã afogada de sua mãe, quem quer que fosse, agora ele não queria mais saber,
mas não teve tempo de ver atendida sua oração: bastou um raio de luar pela porta
aberta para que Andría Bastiu reconhecesse no rosto sulcado de lágrimas da mulher
que percorria rapidamente o corredor os traços inconfundíveis de Bonaria Urrai.
Depois a noite voltou, de verdade.

***

vvDécimo segundo capítulo

Como os olhos da coruja, existem pensamentos que não suportam a plena luz. Não
podem nascer senão de noite, onde sua função é a mesma da lua, necessária para
mover marés de sentido em algum invisível além da alma. Bonaria Urrai tinha
muitos desses pensamentos, e com o tempo aprendera a cuidar deles, escolhendo com
paciência as noites em que deixaria surgirem dentro de si. Não havia derramado
muitas lágrimas voltando da casa dos Bastiu, sob o peso da respiração de Nicola,
mas cada uma delas deixara um novo sulco no rosto da acabadora, já marcado pelo
tempo. Se o sol nascesse naquele momento, Bonaria Urrai pareceria muito mais velha
do que era, e cada ano de sua existência lhe pesava. Tinham-se passado décadas
desde que vira pela primeira vez acolherem um pedido de paz feito no leito de
morte, mas podia dizer com toda a certeza que nunca, nem naquele momento, nem
depois, houvera aquele peso que agora sentia como um manto molhado sobre si.

Lembrava bem, não tinha nem quinze anos quando ocorreu a primeira vez, num dia em
que tinha acudido, com as mulheres da família, a um parto na casa de uma prima de
seu pai; aquelas treze horas de trabalho custaram mais à mãe do que ao recém-
nascido, em todo caso nascido vivo. Nem caldo de frango nem rezas foram
suficientes para estancar a hemorragia, à qual se seguiram dias de uma agonia tão
sofrida que apagara totalmente as esperanças de uma recuperação. Então esvaziaram
o quarto de todos os objetos santos, de todos os presentes de boa sorte e de todos
os quadros de temas religiosos, para que o que antes protegera a parturiente não a
prendesse a um estado de sofrimento irremediável. Quando a própria mu-

90
lher pedira misericórdia, as outras tinham agido por ela num clima geral de
naturalidade, em que não fazer nada é que pareceria um ato ilícito. Ninguém jamais
lhe deu explicações, mas nem seriam necessárias para que Bonaria entendesse que
haviam dado fim ao sofrimento da mãe com a mesma lógica com que tinham cortado o
cordão umbilical do menino.

Naquela primeira e amarga aula de vida, a filha de Taniei Urrai aprendeu a lei não
escrita pela qual apenas a morte e o nascimento consumados na solidão são
amaldiçoados, e não tinha a menor importância que sua tarefa tivesse sido apenas a
de espectadora. Com quinze anos, Bonaria já era capaz de entender que, em certas
coisas, há a mesma culpa em fazer ou ver fazerem, e desde então nunca duvidou que
soubesse distinguir entre piedade e crime. Nunca, até aquela noite, quando leu
nos olhos de Nicola Bastiu a determinação de quem procura desesperadamente não a
paz, e sim um cúmplice.

Não vieram almas visitar a casa de Bonaria Urrai naquela noite, mas a porta ficou
aberta até o amanhecer, quando o toque de finados despertou Soreni do torpor do
sono. Maria encontrou a velha sentada com os olhos fixos na lareira apagada,
enrolada no xale negro como uma aranha presa na própria teia.

Quando foram avisá-lo de que havia um morto na casa dos Bastiu, dom Frantziscu
Pisu pensou que tinha sido o chefe da família. Corria pela cidade o rumor de que o
velho Salvatore se consumia fazia meses, por causa da desgraça sobrevinda ao filho
mais velho, e se com Nicola fingia que tudo ficaria bem, na intimidade alcoólica
com os amigos celebrava com amargor o luto do filho, morto para qualquer
possibilidade de tornar digna a vida de um homem. Por outro lado, entre os grupos
reunidos nos bares e nas soleiras das casas ao entardecer, durante semanas não se
falara de outra coisa. Afora o fatalismo, outros argumentos não tinham ajudado
Salvatore a imaginar um futuro aceitável para o filho, pois, se é verdade

91

que da madeira não nasce ferro, o velho Bastiu não conseguia imaginar uma maldição
pior do que viver no presente e ser lembrado no passado.

Ciente de como estavam as coisas, dom Tzicu, ao saber que o morto era Nicola,
persignou-se com um sinal meio da cruz meio de esconjuro e, dirigindo-se à casa
deles, sentiu-se tomado pelo escrúpulo tardio de não ter insistido o suficiente
para que o jovem Bastiu tomasse seu estado como um mistério da vontade divina. O
fato era que, mesmo convencido de que pelo menos metade das coisas da vida eram
mistérios da vontade divina, Frantziscu Pisu bem sabia que a outra metade eram
frutos claros da tolice dos homens, e o que sucedera com Nicola Bastiu seguramente
encontrava uma explicação melhor na segunda hipótese. Entre as incapacidades de
Frantziscu Pisu, a mais saliente era não saber mentir, o que, para um padre,
certamente não era um defeito insignificante. Se soubesse que Nicola ia morrer
assim, talvez tivesse se empenhado mais na piedosa mentira, mas quem haveria de
imaginar que o desgraçado descontentaria os céus a ponto de sofrer a desventura de
morrer durante o sono? Mesmo entre aqueles de memória tão curta a ponto de se
julgarem de consciência tranquila, não havia quem não desejasse a salvação final
do bom ladrão na cruz, e o velho padre, cuja memória em verdade era muito boa, ao
entrar na casa dos Bastiu entregou-se ao Pai-Nosso com um autêntico fervor de
esconjuro.

No corredor estavam apenas os parentes mais próximos, e o corpo ainda não fora
preparado para receber a procissão de pêsames que encheria a casa de gritos e
lamentos nas próximas horas; sentia-se uma atmosfera atônita de incompletude,
intensificada pela mesa dos finados, que permanecia arrumada e bem visível do
corredor, sugerindo a que ponto aquela morte apanhara a família de surpresa.
Giannina, tomada por uma dolorosa imobilidade, estava no quarto aberto de Nicola e
nem se vestira de preto; ao ver o padre entrar, não mostrou sinal da gentileza
costumeira e continuou sentada na cama em silêncio, segurando a mão do filho
morto, fria, mas ainda macia. Foi Salvatore Bastiu que o recebeu, indo ao en-

92

contro de dom Frantziscu confrangido e pálido; parecia um inocente que recebera


uma condenação, sem qualquer sombra de sua habitual arrogância.

- Obrigado por ter vindo, dom Frantziscu. Para Giannina, uma boa palavra
certamente não fará mal nesta desgraça...

O padre assentiu e, tirando o barrete, aproximou-se discretamente da mulher junto


à cama. Foi apenas então que percebeu que havia outra pessoa no quarto. De pé no
canto da porta, Andría Bastiu estava com os braços cruzados atrás das costas, os
ombros apoiados à parede e o olhar fixo na cama onde jazia imóvel o corpo do
irmão. O rapaz esboçou um movimento rígido com a cabeça, fitando o padre com os
olhos febris de um insone.

- Giannina... - Dom Frantziscu se dirigiu à mulher com delicadeza, e ela falou como
se respondesse a uma pergunta.

- Nicola não era ruim, era um bom filho... - Eu sei, Giannina, eu sei... - Então
o abençoe. Que o Senhor o receba como é, pois meu filho não era ruim...

Enquanto repetia essas palavras, Giannina Bastiu perdeu um pouco daquela calma que
até então mantivera, deixando que as lágrimas lhe corressem pelo rosto sem nenhum
gemido. Dom Frantziscu pôs a estola roxa e usou a prece como forma de respeitosa
distração. Enquanto o padre, em nome de Deus, submetia o corpo inerme àquilo que
Nicola em vida jamais teria aceitado, Andría saiu bruscamente do quarto, deixando
a mãe a se consolar com o latim cadenciado das orações. Junto com o pai, esperou do
lado de fora até o padre sair, assistindo em silêncio à conversa entre eles.

- Sabe-se o que aconteceu? - perguntou dom Frantziscu.

- O doutor Mastinu falou em enfarte. Me parece impossível; se havia alguma coisa


que continuava boa em meu filho, era o coração... - O velho Bastiu sacudiu a
cabeça incrédulo.

93

- O Senhor não colhe fruta verde, Salvatore. Todos

vão embora quando devem ir. Tenha força.

- Não é força que me falta, dom Frantziscu... é que a dor é uma coisa feia, só sabe
quem sente.

- Console-se pensando que agora ele está melhor... Como coroamento daquelas frases
feitas, o padre se dirigiu a Andría, que não aceitara nenhum daqueles seus
convites à resignação. Às costas de Salvatore como uma sombra, o rapaz parecia à
espera.

- Agora que ficou só você, precisa ser um conforto para seu pai e sua mãe...

- Quando eu me confortar, talvez - respondeu Andría secamente.

O pai fitou o filho surpreso com aquele tom, mas, diante do olhar que recebeu de
volta, desistiu de passar uma reprimenda num dia em que os lentos freios da língua
podiam encontrar uma desculpa fácil. O padre tentou insistir, mas Andría já
desviara a atenção por cima de seus ombros, para as pessoas que agora atravessavam
a soleira da porta. Virando-se para seguir a trajetória, dom Frantziscu Pisu
reconheceu nas recém-chegadas a figura alta e magra de Bonaria Urrai e a silhueta
delgada de Maria Listru, e de súbito considerou que não haveria ocasião melhor
para pôr fim à sua permanência ali. Maria o saudou cordialmente enquanto ele saía,
mas Bonaria Urrai lhe concedeu apenas um olhar, já se dirigindo ao morto e à mãe
para fazer aquilo que viera fazer.

Duas horas mais tarde, quando as visitas formais começaram a chegar, cada qual à
hora que podia, o corpo de Nicola estava pronto para recebê-las, bem estendido no
leito, com o terno bom que a própria Bonaria fizera para ele dois anos antes,
para a festa de São Tiago. Nas calças escuras, ajeitadas com arte, não se
distinguia entre a perna amputada e a outra, e o rosto barbeado com esmero estava
com uma expressão tão serena e relaxada que Maria teve a impressão surreal de que
finalmente Nicola apreciava as visitas. Nenhuma carpideira profissional fora
contratada para aquele velório, mas de qualquer forma vinham chegando muitas
mulheres de negro,

94

chorando de graça em gritos altos, enquanto os homens esperavam do lado de fora até
terminar o espetáculo de exibição da dor, antes de entrar para apresentar com mais
compostura suas condolências à família.

Em Luvè e em Illamari, ambas com pretensões citadinas, era cada vez mais raro usar
luto pelo morto e cada vez mais frequente que as famílias mais prósperas e cultas
dispensassem as visitas de pêsames, mas em Soreni ninguém pensava ter atingido um
grau de civilização que permitisse recusar a solidariedade dos conterrâneos no
momento da morte de um familiar, ou de se vestir de preto para honrá-lo. Para
Maria, então, nascida de pai já morto, o preto era a cor natural das coisas do
cotidiano. Quem nasce órfão logo aprende a conviver com as ausências, e, tal como
aquelas ausências, ela pensava que o luto também devia durar para sempre. Somente
quando cresceu é que começou a ver algumas mulheres e filhas de pai ou marido
falecido mudarem de roupa com a mudança da estação.

Alguns anos antes, numa tarde de sol não muito diferente daquela, quando a tia
Bonaria começava a ensiná-la a costurar miudezas de menina, Maria lhe pediu
explicações sobre aqueles terremotos nos guarda-roupas.

"Quando termina o luto, tia?" A velha nem levantou a cabeça do aventalzinho que
estava arrematando.

"Mas que pergunta... o luto termina quando termina a dor."

"Então o luto serve para mostrar que há dor...", comentara Maria, julgando ter
entendido, enquanto a conversa já se convertia no silêncio lento da agulha e da
linha.

"Não, Maria, não é para isso que serve o luto. A dor é nua, e o preto serve para
cobri-la, não para mostrá-la." Ela fitou a menina por um instante, e depois
sorrira. "Está torta essa flor que você fez, deixa eu ver..."

Para Maria, aquelas palavras tinham sido incompreensíveis, mas lembrou-se delas
muitas vezes nos anos seguintes, quando via certos olhares mudarem mais depressa
do que as

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roupas, e os passos rápidos do recato fingido se transformarem em dança com o
cadáver ainda quente em casa. Mas, diante de Giannina Bastiu encolhida ao lado do
filho, com um vistoso vestido florido que não tinha sequer uma manchinha preta,
Maria viu claramente que aquela era a mulher mais enlutada que já pranteara um
morto em Soreni, e por fim entendeu o que Bonaria Urrai tentara lhe dizer naquela
vez. Sentindo falta de ar fresco, fez um sinal à tia e saiu pela porta, deixando
para trás as vozes lamuriosas das mulheres rezando o terço como uma canção de
ninar.

Andría estava lá com os homens, e logo que a viu separou-se deles e veio ao seu
encontro.

- Andrí, que desgraça, nem sei o que dizer... - Então pelo menos você não diga
nada, pois bobagens já ouvi demais por hoje.

Maria olhou o amigo surpresa com aquela linguagem raivosa, porém não ousou
comentar. Em vez disso, procurou algum outro assunto, mas, não encontrando nada
mais apropriado do que o silêncio, ficou quieta.

- Você vai vir com a gente à vindima, na semana que vem?

- Não diga bobagens, Andría. Teu irmão morreu, e se os amigos não colherem, teu
pai vai deixar apodrecer os cachos nas videiras. - Maria estava desconcertada
demais para ser diplomática.

- Seria a última coisa que Nicola iria querer. - Enquanto falava, Andría chutou de
leve uma pedra, que bateu cansada na parede em frente.

- Tantas coisas Nicola iria querer... mas a vindima é uma festa, e desde quando se
faz festa com uma morte recente? - Maria tentou disfarçar a recusa com a
perspectiva do futuro. - Venho ajudar no ano que vem.

- No ano que vem... - murmurou Andría em voz baixa, com o olhar pregado
obstinadamente no pé.

Maria esperou em vão que erguesse os olhos, mas ele não ergueu. Imóvel num dos
lados da fachada, o rapaz fitava o chão como se tivesse perdido alguma coisa, e
tremia ligeiramente.

96

Maria entendeu o que estava para acontecer, pois ela e Andría tinham crescido
juntos, e, por mais que isso fosse um problema considerável entre eles, em certos
casos era útil conseguir perceber antes e melhor do que os outros alguns leves
sinais como aquele.

- Vamos sair daqui, vamos para o pátio, venha... Maria pôs o braço na curva do
braço dele, fazendo-o atravessar a casa depressa, evitando cuidadosamente se
aproximar do local do pranto coletivo por Nicola Bastiu. Chegaram ao pátio bem em
tempo. Andría apoiou uma mão na parede e, abaixando a cabeça, vomitou, sem nem ter
o cuidado de abrir as pernas para não sujar os pés. O corpo era sacudido por
espasmos que pareciam intermináveis a Maria, e Andría só reergueu a cabeça depois
que não restara nem o fel, fechando os olhos congestionados pelo esforço. Ninguém
os vira.

- Está melhor? Venha lavar o rosto no tanque, vamos...

Andría não se deu ao trabalho de mentir dizendo que estava melhor, mas foi até o
tanque de cimento sem discutir, abrindo obediente a torneira. Enquanto enxaguava o
rosto com água gelada, recuperou a lucidez. No fundo, naqueles anos todos, nunca
fizera nada diferente daquilo: obedecer a Maria, ouvir Maria, dar razão a Maria. E
tinha feito bem, porque Maria era inteligente, bondosa, jamais lhe dissera para
fazer algo que não fosse bom para ele. Se Nicola tivesse tido alguém como Maria por
perto, jamais teria ido atear fogo à propriedade de Manuele Porresu, e agora não
estaria deitado na horizontal em casa, frio como uma rã entre a cantoria de vinte
velhas de preto. Enquanto a água escorria pelo rosto, Andría levantou os olhos
para fitar Maria, ela também de preto para a ocasião, mas linda como se estivesse
da cor de gerânio, ou de branco como uma noiva. Aos olhos de Andría, não havia em
toda Soreni nenhuma moça capaz de se comparar em beleza a Maria, e seu irmão
sempre soube disso, sem que precisasse ter dito a ele. "Já contou para Maria Urrai
que se apaixonou, ou vou ter eu de escrever na parede da casa dela?" Nem com dois
litros de aguardente Andría jamais encontraria coragem para

97

dizer a Maria o que sentia, e Nicola sabia muito bem disso. Mas nunca contou para
ninguém, pois tinha lá suas coisas com que se preocupar, tinha de ir incendiar uma
propriedade, tinha urgência de perder uma perna, e depois também a vontade de
viver, e por fim a respiração debaixo de um travesseiro, porque o fogo faz isso e
muito mais, continua a queimar mesmo depois de apagado, não sabia, Maria? Você
realmente viu alguma vez o fogo queimar?

- O que você está dizendo, Andrí? Nem percebera que estava falando em voz alta,
mas agora não via por que não prosseguir. Com uma noite insone atrás de si e a
dor que lhe apertava o ventre como um torno, acrescentou num murmúrio:

- Maria, quer ser minha mulher? Ela o olhou como se olha uma roupa estendida
demorando para secar. Num gesto prático estendeu-lhe a toalha.

- Se eu não tivesse acabado de ver o que você tinha no estômago, juraria que está
bêbado, Andría. Enxugue-se.

- Não estou bêbado, nunca estive mais sóbrio do que agora... - resmungou ele
pegando a toalha. Quando o rosto reapareceu enxuto, olhou-a de novo e criou
coragem. - Você se casaria comigo?

- Se você está falando sério, a resposta é não. Não me casaria com você pelo mesmo
motivo que não me casaria com minha irmã Regina. - Era evidente que não o levava a
sério, e para Andría isso também era familiar. Irritantemente familiar.

- Não acredita numa palavra do que digo. Você me trata como se não entendesse...

- Como você quer que eu te trate, se me pede em casamento na frente do teu vômito
e com o cadáver do teu irmão dentro de casa?

Em qualquer outra hora, Andría reconheceria que o raciocínio de Maria era


irrepreensível, mas, se tivesse conseguido acompanhar a lógica, ficaria
simplesmente quieto, coisa que não fez.

- E se eu perguntar de novo amanhã, com meu irmão debaixo da terra, vai me


responder ou não?

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Maria começou a pressentir que Andría não estava mesmo brincando. Empalideceu, mas
ganhou tempo.
- Não me parece adequado falar disso agora... Andría, que a conhecia tão bem
quanto ela a ele, reconheceu o truque para despistar que tinha visto tantas vezes
antes em Maria, e riu com amargura, pois já era uma resposta.

- Entendi. E sou realmente um bobo. Você me vê realmente como vê sua irmã, como
alguém que nem é homem...

- Você está desfiando uma bobagem depois da outra, Andría, nunca te ouvi delirar
assim...

- Não, pelo contrário, nunca entendi tão bem as coisas como agora. É você que não
entende, e nunca entendeu o que sinto por você.

Maria caíra num profundo embaraço. O sofrimento do amigo era evidente e, para
ajudar a superá-lo, teria feito qualquer outra coisa que ele pedisse, até mentir.
Mas não uma coisa como aquela.

- Nunca te dei a entender que te amava... Andría baixou os olhos para os sapatos
salpicados de vômito.

- É porque eu não estudei? Porque parei no primário? - Não, o que isso tem a
ver... - Na verdade acho que tem a ver, sim. A professora Luciana sempre te disse
que você é inteligente, que tem um longo caminho pela frente, que merece isso e
aquilo...

- Andría, sou uma costureira. Nunca vou ser a noiva do príncipe de Gales. Sou
igual a você.

- Então por que não me quer? - Porque não te amo. Sempre me considerei sua irmã.
- Eu já tinha um irmão! - gritou irado. Depois acrescentou com maldade: E Bonaria
Urrai o matou.

Maria o olhou espantada, mas Andría, com o rosto transtornado e os olhos


vermelhos, parecia ter perdido o juízo. Foi o respeito por ele que fez com que ela
desviasse os olhos, como se não quisesse se arriscar a imprimir na memória a
imagem dele naquelas condições.

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- Andrí, você não sabe o que está dizendo - murmurou pegando de volta a toalha e
começando a dobrá-la.

- Sei, sim. Ela o matou. Naquela insistência havia algo de incontornável, que
deixou Maria nervosa. Ela pôs de lado os escrúpulos e voltou a olhá-lo, também
deixando transparecer na voz a rispidez crescente.

- Agora chega. Passar mal não te autoriza a faltar com o respeito.

Deu-lhe as costas para voltar à casa, mas ele não tinha nenhuma intenção de deixar
que ela tivesse a última palavra com uma reprimenda. Ele a alcançou num impulso
repentino, segurando-a firme pelo braço.

- Me deixe ir. Você fede a vômito. - Não, enquanto você não me ouvir. Pergunte à
tia Bonaria onde ela esteve esta noite... - sugeriu com os olhos vítreos,
aproximando o rosto do dela.

- Dormindo, como todos nós - respondeu Maria, secamente.

- Oh, não, lindinha. Não todos nós. Eu estava acordado, e vi o que ela fez. Ela
veio aqui e matou meu irmão, sufocando-o com um travesseiro.

Maria lhe devolveu o olhar com uma frieza que Andría jamais vira nela, e que o fez
sentir mais ínfimo do que um verme. Naquele momento gostaria de poder voltar no
tempo e engolir todas as suas palavras.

- Ela veio aqui? - perguntou Maria lentamente. Andría soltou seu braço
imediatamente, recuando um passo, e depois outro.

- Não, não veio... Desculpe. Não sei o que estou falando... - balbuciou, desviando
o olhar.

Aquela negativa alarmou Maria, mais do que uma confirmação. Cobriu a distância
que ele estava criando, insistindo.

- Me conte o que viu. Era uma ordem, e Andría entendeu que tinha alcançado um
ponto de onde não era mais possível retornar para

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recolocar as coisas em ordem. Esmagado por sua leviandade, deixou-se escorregar


para o chão e contou entre lágrimas todas as coisas daquela noite recente;
enquanto Maria ouvia incrédula suas palavras, nenhum dos dois percebeu que se
realizava naquela casa, em espaços diferentes, o pranto fúnebre não de uma, mas
de três perdas: a respiração de Nicola, a inocência de Andría e a confiança de
Maria Listru em Bonaria Urrai.

Transtornada por aquelas revelações sem sentido, Maria abandonou a casa dos Bastiu
sem dar explicações, deixando no pátio um Andría soluçante, que os parentes
compreensivos julgavam arrasado pela morte do irmão.

***

Décimo terceiro capítulo

Apesar de estar mergulhada no ritual coletivo do luto, a pressa com que Maria
deixara a casa dos Bastiu não passara despercebida a Bonaria Urrai, que apenas em
parte pressentira o motivo daquela inconveniência. Mas a velha não podia se dar
ao luxo de agir por impulso num dia como aquele, e Nicola Bastiu merecia o seu
respeito até no fundo da terra onde o iriam depositá-lo. Para ela, não haveria
outro momento, a não ser aquele, para honrar as promessas secretas que lhe fizera,
ao passo que Maria estaria em casa quando ela voltasse. Foi o que pensou a
costureira de Soreni, enquanto permanecia ao lado de Giannina e Salvatore Bastiu
como uma parente, tal como sempre a haviam considerado, entoando o Requiescat
junto com os demais, como se para ela fosse um morto igual aos outros, diferente
apenas no nome.

Com efeito, o rosto de Nicola, estendido na serenidade artificial de quem não tem
mais nada a pedir, finalmente parecia calmo, mas aquela ilusão de ótica não era
suficiente para aplacar o torvelinho de incertezas no espírito de Bonaria Urrai.
A velha, porém, estava demasiado acostumada à reserva para manifestar qualquer
coisa diferente do que se esperava dela, e então permaneceu composta ao lado do
corpo, como sempre havia feito ao longo dos anos, ajudando os pais do falecido a
buscar na memória os inúmeros momentos de felicidade, para reconstituir um Nicola
Bastiu saudável e risonho, respeitável por inteiro no corpo e na alma. Por várias
horas sucederam-se as vozes das mulheres e dos homens ao redor do corpo, segundo
uma liturgia que alternava o pranto, a oração e a memória em sequência. Não se
podia saltar nenhuma passagem, porque aquele código era indispensável à comunidade
102

para recompor a fratura e as ausências. No ato de impedir a negação da dor


individual, mesmo o mais controverso dos falecimentos se reconciliava com a
tragicidade natural das coisas de cada vida. Por isso, quando o padre ia embora
depois de pregar sobre a comunhão dos santos, as mulheres e os homens de Soreni se
reuniam para celebrar juntos a comunhão dos pecadores, absolvendo os familiares
sobreviventes da culpa de uma dor única no mundo. As outras questões, o tempo
resolveria.

Há coisas que se fazem e coisas que não se fazem, e Maria sabia muito bem a
diferença. Não era uma questão de certo ou errado, pois essas categorias não
tinham lugar no mundo em que crescera. Em Soreni, a palavra "justiça" ocupava o
mesmo espaço semântico das piores maldições, e era pronunciada apenas quando se
evocavam cegas perseguições contra alguém. Para o povo de Soreni, a justiça
poderia talvez te perseguir; se te alcançasse, ela arrancaria teu couro como a um
porco ou te crucificaria como a um cristo; te arrebentaria só por diversão, como
fazem os homens quando se comportam como animais; te desentocaria de onde quer que
você tivesse se escondido, e certamente jamais esqueceria teu nome, nem do nome de
teus filhos, mas nada disso tinha qualquer relação com o fato de que há coisas
que se fazem e coisas que não se fazem.

Enquanto cortava a cebola em fatias finas, Maria raciocinava obsessivamente sobre


aquela diferença, preparando os ingredientes do jantar com a mesma hipnótica
lentidão com que tentava colocar os pensamentos em ordem. As palavras de Andría
eram insanas como a luz em seu olhar enquanto falava, e para Maria não faziam
nenhum sentido; mas, ao lado de algumas lembranças, algum sentido começavam a ter.
Enquanto picava os tomates, revia a figura da velha costureira encolhida perto da
lareira naquela mesma manhã, inteiramente vestida e penteada como se tivesse
acabado de chegar, ou como se já soubesse que teria um motivo para sair. Fazia
muito tempo que Maria tinha deixado de se perguntar sobre as misteriosas saídas
noturnas da idosa mãe adotiva, mas agora aquele

103

esquecimento lhe retornava como um elástico de estilingue, e bastava para lhe


insinuar a suspeita de que Bonaria Urrai lhe escondia algo muito grave. Era a
primeira vez que isso acontecia, e Maria não sabia o que fazer com aquela suspeita,
tão incompatível com a confiança que a unia àquela mulher que a tomara como
filha. Era inconcebível que pudesse lhe ter mentido, pois há coisas que se fazem e
coisas que não se fazem, pensava enquanto colocava no azeite quente o resto dos
legumes picados. A colher de pau no refogado revolvia os perfumes e as lembranças,
e, mexendo-a lentamente em círculos, Maria se deixou envolver por ambos,
recordando uma tarde de muitos anos antes, apenas alguns meses depois de se tornar
filha d'alma da tia Bonaria.

Ainda não perdera aquele vício, o de roubar miudezas de que não precisava, mas
desejava. Ele a acompanhava desde a casa de Anna Teresa Listru, e por algum tempo
continuou a lhe fazer companhia, esquivando-se aos pedidos de permissão sempre que
podia evitar. Às vezes era uma fruta ou um pedaço de pão, outras vezes um
brinquedo ou um retalho de pano colorido, posto de lado para um acabamento: se
achava que ninguém estava olhando, Maria pegava e escondia, incapaz de separar o
desejo e o subterfúgio. Bonaria Urrai logo percebera, mesmo porque as pequenas
faltas se repetiam com alguma frequência. Mas aquela tarde foi a última vez, e
Maria se lembrava muito bem.

Era um final de outubro com preparativos de doces, e na mesa da cozinha estavam os


ingredientes para os pabassinos dos mortos; havia cascas de laranja, sementes de
erva-doce, lâminas de amêndoas e uma tigela de saba de figos-da-índia, escura e
viscosa como caramelo, com um sabor doce repleto de perfumes florais, que iria dar
liga à massa como uma argamassa aromática. Cada ingrediente estava em seu
embrulho, exceto as uvas-passas, postas de molho numa vasilha com água de flor de
laranjeira. Bonaria percebera no último

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instante que faltava sêmola, indispensável para enformar os doces sem que
grudassem. Antes de sair, não lhe proibiu que mexesse nas coisas sobre a mesa, mas
Maria não duvidou por um único instante que estaria transgredindo uma ordem, ao
pegar dois punhados de amêndoas em lâminas e correr a seu quarto para escondê-las
numa gaveta. Quando Bonaria voltou com a sêmola, faltava metade do montinho das
amêndoas, e Maria brincava sentada no chão, tendo no rosto a expressão serena dos
inocentes. Bonaria se aproximou dela, e a primeira frase não era uma acusação.

- Faltam amêndoas. Maria levantou o rosto, olhando a tia com ar interrogativo. Já


podia ser uma resposta, mas Bonaria não pretendia se contentar com aquilo.

- Foi você que mexeu nelas? - Não. O tapa veio com precisão e violência,
atingindo Maria no lado esquerdo do rosto e deixando-lhe a marca branca do
impacto. Incrédula, as pupilas dilatadas pela surpresa, a menina olhou a velha com
a boca aberta, esquecendo de chorar.

- Levante-se - disse Bonaria com voz séria. Maria se levantou devagar, o rosto
mirando o chão para esconder a enorme vergonha que agora lhe aflorava na face,
junto com o vermelho da bofetada que tinha recebido. Bonaria agarrou a menina pelo
braço, arrastando-a sem muita gentileza até seu quarto. A porta se fechou atrás
dela com duas voltas na chave e, certificando-se de que estava bem-trancada, a
velha foi preparar os doces sem dizer mais nenhuma palavra. Maria ficou fechada no
quarto até a hora do jantar, e se entregou a várias coisas para esquecer o que
havia feito: antes chorou em silêncio, depois tentou se distrair com os brinquedos
para fingir que não estava acontecendo nada, por fim se estendeu na cama, exausta
de frustração, e até dormiu. Quando a porta se abriu, porém, estava acordada e se
sentou na cama, como que à espera. Bonaria se aproximou, pegou uma cadeira que
estava apoiada na parede e se sentou exatamente na frente dela.

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- Você entendeu por que eu te bati? Maria estava aguardando aquela pergunta e
assentiu, enquanto corava novamente de humilhação.

- Por quê? - Porque eu roubei as amêndoas. - Não. A negativa categórica de


Bonaria a surpreendeu, frustrando sua interpretação pessoal dos fatos da tarde. Não
falou mais, fitando a velha com olhos espantados.

- Bati porque você me disse uma mentira. Amêndoas a gente compra outras, mas para a
mentira não há remédio. Toda vez que você abrir a boca para falar, lembre-se que
foi com a palavra que Deus criou o mundo.

Aos seis anos não se entende muito de teologia, e, de fato, Maria não encontrou
uma boa resposta para o sentido daquela frase, grande demais para entender inteira.
Mas a parte que ela entendeu foi mais do que suficiente para julgar por si mesma
e, enquanto tentava anuir com os lábios apertados, Bonaria começou a abraçá-la sem
apertar, como um casulo com um bicho-da-seda no interior. No final daquela
reconciliação, que permaneceu única no gênero entre elas, Maria saiu do quarto
segurando na mão da velha, encontrando a casa invadida pelo perfume intenso dos
doces já assados, postos a secar nas gradinhas como azulejos escuros. Durante
anos, ela iria associar o perfume dos pabassinos recém-feitos àquela lembrança e,
sem se aperceber, deixou de sentir vontade de roubar coisas já claramente suas,
visto que, depois de percebida aquela evidência, não restava ninguém a quem
mentir.

Maria Listru riu de si mesma com aquela lembrança, e pôs mais água na panela onde
os tomates já tinham se desmanchado num molho denso e aromático. Qualquer coisa que
tivesse acontecido naquela noite, qualquer coisa que Andría pensasse ter visto, ao
final daquele molho Maria se convencera

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de que a mulher que a havia ensinado a lavar as mãos antes de comer não podia tê-
la enganado de maneira nenhuma, muito menos daquela. Há coisas que se fazem e
coisas que não se fazem, pensou, e as coisas que se fazem é assim que se fazem,
concluiu enquanto provava o molho para ver se precisava de mais sal.

Maria se enganava, mas não soube antes de cair a noite, quando Bonaria voltou para
casa no final de um dos dias mais difíceis da sua vida. Não a esperara para comer,
pois em nascimentos e mortes a gente sabe quando sai e nunca sabe quando volta,
mas a panela de água fria estava esperando no fogão e o molho ainda não perdera o
frescor do primeiro cozimento. Maria estava lendo, como costumava fazer depois do
jantar, e Bonaria se sentia cansada demais para perceber de imediato que havia
algo em sua atitude que não era natural.

- Por que você foi embora? Brigou com Andría? Quando achava que já sabia a
resposta, Bonaria às vezes partia para uma pergunta direta.

- Sim. Maria olhou para ela com ar plácido, avaliando a inclinação cansada das
costas, o rosto vincado e a saia preta amassada devido ao longo tempo sentada.
Pareceu-lhe velha no sentido comum que se dá à palavra, perto do fim, como as
promessas cumpridas.

- Você acha que era hora de brigar, com o irmão morto em casa? Em vez de consolá-
lo...

- Tentei. - Não me pareceu. Você foi embora. Se não tivesse mostrado tanta
insistência... Se não tivesse pressionado para arrancar uma explicação a todo
custo, talvez Maria não tivesse deixado de pensar que era um bom momento de ficar
quieta. O desrespeito de que a acusava Bonaria levou-a a responder no mesmo tom,
conduzindo a conversa para águas mais incertas.

- Se eu ficasse, seria pior. Ele estava dizendo coisas que não dava para ficar
escutando.

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- Os parentes dos mortos sempre dizem as mesmas coisas. O que ele queria, morrer
também? Sentia-se culpado pela morte de Nicola?

Maria fechou o livro sem o cuidado de marcar a página. Quando falou, foi em tom
deliberadamente inexpressivo.

- Não, não se sentia culpado. Culpava a senhora. Bonaria já estava imóvel, com a
expressão inalterada. - A mim? E por quê? - Ele disse que viu a senhora entrar à
noite no quarto do irmão e sufocá-lo com um travesseiro.

Dizer isso, se não fosse Nicola, até pareceria divertido, e Maria, ao transformar
a acusação numa frase sem imperativos, viu toda a sua incongruência lógica. A
reconstrução não parecia ter nenhum sentido. Mas Bonaria não riu.
- Ele te disse isso? - Sim, ele me disse assim mesmo, mas depois vomitou e disse
que tinha inventado.

Bonaria Urrai se sentou perto da lareira, ajeitando com cuidado as pregas da saia
em redor do corpo, como as pétalas de uma flor negra. A conversa tinha acabado, mas
Maria sentiu a necessidade de acrescentar:

- Estava totalmente fora de si, não raciocinava... A velha virou o rosto para a
lareira, escondendo a expressão dos olhos num movimento defensivo tão raro nela que
Maria sentiu dentro de si a longa sombra da suspeita, sem saber bem de quê. A
pergunta lhe saiu dos lábios a meia-voz.

- Onde a senhora esteve na noite passada? O silêncio tornou a si a resposta, e


Bonaria não considerou necessário rompê-lo. Manteve os olhos na lareira, fixos na
fuligem da lenha consumida por um inverno mais frio do que o habitual. Para Maria,
valeu como um discurso completo. Num movimento brusco levantou-se e apoiou o livro
na mesa posta para uma pessoa só, aproximando-se da velha, encolhida na mesma
posição em que a surpreendera de manhã.

- A senhora saiu, eu sei. Onde esteve? Bonaria ergueu o rosto do horizonte da


lareira, sustentando seu olhar sem responder. Naqueles olhos vazios Maria

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percebeu a sombra daquilo que nem sabia que tinha a temer, e titubeou.

- Não é possível. - Maria... - Foi a senhora... Estava mesmo com Nicola ontem à
noite... - a moça falava, e nem eram mais perguntas.

- Ele me pediu. A resposta pareceu nula diante da expressão abalada de Maria.

- Não é possível... Com um suspiro Bonaria se levantou. Sempre soube que aquele
momento chegaria, mas certamente não era assim que o tinha imaginado.

- O que não é possível? Que ele tenha me pedido ou que eu o tenha atendido? Você
tem olhos para ver e não nasceu boba, Maria. Você conhecia Nicola e me conhece
também.

Ouvindo aquelas palavras, Maria sacudiu violentamente a cabeça.

- Não, eu não a conheço. A pessoa que conheço não entra à noite na casa das
pessoas para sufocar aleijados com travesseiros...

A brutalidade da descrição destoava do sussurro da moça, débil como uma


chamazinha. Conforme a suspeita ia tomando forma, multiplicavam-se em seus lábios
as implicações obscenas da verdade.

- Giannina sabe disso? Salvatore Bastiu sabe? - Não importa. - Bonaria sabia que
estava mentindo, mas falou mesmo assim.

- Que a mãe e o pai não saibam que o filho morreu por suas mãos não importa?

- Foi ele que quis, e eu prometi. - E por que iria querer uma coisa dessas justo
da senhora?

A velha Urrai emudeceu, encarando Maria. As palavras para responder àquela pergunta
não existiam, e se existiam ela não as conhecia. Mas na mente de Maria a verdade se
fez clara de súbito, e no exato instante em que a entendeu,
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a filha de Anna Teresa e Sisinnio Listru soube quem era a mulher que estava à sua
frente. Abriu a boca para ritualizar o assombro numa imprecação, mas veio-lhe
apenas um arfar de parturiente, o soluço sem lágrimas de um animal estrangulado.
Levou a mão à boca, mas os olhos não se desviaram do rosto lívido da acabadora.

- Todas as vezes que a senhora voltava à noite... - murmurou.

- Eu ia contar no momento certo, Maria. - Bonaria não tentou sequer desfazer a


perturbação da filha.

- Quando? Quando ia me contar? Ia me levar junto? Ia me pedir para segurar o xale


enquanto agia? - a raiva crescia na boca de Maria como espuma amarga. - Quando
contaria?

- Certamente não agora... quando estivesse pronta... - Pronta! - a palavra ressoou


na sala como um objeto atirado ao chão. - Jamais estarei pronta para aceitar a
ideia de que a senhora mata as pessoas!

Quando ficou evidente que não haveria como deter aquela torrente, Bonaria
abandonou a esperança de encontrar uma via mais leve para chegar ao fundo.

- Não se ponha a dar nomes a coisas que não conhece, Maria Listru. Você vai fazer
muitas escolhas na vida que não a agradarão, e vai fazê-las, você também, porque
têm de ser feitas, como todos fazem.

- E esta, então, seria uma dessas - o tom de escárnio era feroz, e Maria não fez
nada para dissimulá-lo. - E como a senhora faz essa coisa necessária? Explique-me,
se afinal ia me contar mesmo, não é? - Começou a andar em volta da mesa num passo
sincopado em círculos. - Entra sempre escondida como no caso de Nicola? Não, me
deixe pensar... a família chama, como naquela noite com Santino Littorra! -
Quanto mais clara se fazia a lembrança, mais veemente parecia se tornar a raiva da
moça. - E depois como é que a senhora faz, tia, diga!

Bonaria Urrai conhecia o mundo o suficiente para saber que descer ao nível daquela
provocação não traria nada de bom.

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- Quer julgar o como sem saber o porquê? Você é sempre muito apressada em proferir
sentenças, Maria.

- Não sou eu que sou apressada, muito pelo contrário. Se as coisas têm de
acontecer, acontecem sozinhas, no momento certo.

A velha tirou o xale num repelão, deixando-o cair de qualquer jeito na cadeira. Os
olhos escuros se cravaram em Maria com uma impaciência severa. Qualquer coisa que
tivesse acontecido com Nicola, quanto ao mais Bonaria Urrai ainda sabia dar suas
razões.

- Acontecem sozinhas... - murmurou, sorrindo sem ânimo. - Por acaso você nasceu
sozinha, Maria? Saiu com suas próprias forças do ventre de sua mãe? Ou não terá
nascido com a ajuda de alguém, como todos os vivos?

- Eu sempre... - Maria começou a querer responder, mas Bonaria a deteve com um


gesto imperioso.

- Quieta, você não sabe do que está falando. Cortou sozinha o cordão umbilical?
Por acaso não a lavaram e amamentaram? Não nasceu e cresceu duas vezes por graça
alheia, ou você é tão especial que fez tudo isso sozinha?

Relembrada da sua dependência num golpe que lhe pareceu baixo e maldoso, Maria
desistiu de responder, enquanto a voz de Bonaria se abaixava até se converter numa
ladainha desprovida de qualquer ênfase.

- Outros decidiram por você no momento, e outros decidirão quando for preciso. Não
há nenhum ser vivo que chegue a seu dia final sem ter encontrado pais e mães a
cada esquina, Maria, e você deveria saber melhor do que qualquer outro.

A velha costureira falava com a sinceridade com que se fazem confidências a


desconhecidos num trem, sabendo que jamais será preciso suportar o peso de seus
olhares.

- Meu ventre nunca se abriu - continuou ela - e Deus sabe como eu queria, mas
aprendi sozinha que os filhos precisam de tapa e de carinho, do seio, do vinho da
festa e de tudo o que for preciso, quando for preciso. Eu também tinha meu papel
a cumprir, e cumpri.

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- E que papel era? - O último. Eu fui a última mãe que alguns viram. Maria
permaneceu em silêncio por alguns minutos, enquanto a raiva se extinguia no
sentido, para ela inaceitável, daquelas palavras. Quando falou, Bonaria viu que
não havia mais espaço para entender.

- Para mim, a senhora sempre foi a primeira, e, se me pedisse para morrer, eu não
seria capaz de matá-la só porque é o que a senhora quer.

Bonaria Urrai olhou para ela, e Maria viu que a velha estava cansada.

- Nunca diga desta água não beberei. Pode acabar na tina sem nem saber como entrou
nela.

Bonaria recolheu o xale que largara na cadeira e começou a dobrá-lo em gestos


lentos, consciente de que era a única coisa que podia pôr em ordem.

- Quando chegar o momento, Maria, você vai descobrir coisas que ainda não conhece.

- Não haverá esse momento... - Maria não se deu conta da decisão que tomara a não
ser no instante em que lhe fugiu dos lábios - ... eu quero ir embora daqui.

Se a velha se surpreendeu com aquelas palavras, não o demonstrou. Nem a olhou.

- Entendo. - Imediatamente. Amanhã mesmo. - Está bem, vou falar com sua mãe. -
Não... - a moça pareceu hesitar. - Não quero voltar para minha mãe. Vou encontrar
eu mesma uma solução.

- Como quiser. - Não era o que Bonaria queria dizer, mas coisas que não queria já
tinha feito várias naqueles dias.

- Naturalmente, pelo reconhecimento que lhe devo, farei minha obrigação... -


acrescentou Maria em voz baixa.

A velha a olhou, depois disse num sussurro: - Não preciso de nada que você seja
capaz de fazer, Maria Listru.

112
Foram para a cama sem dizer mais nada, pois não havia mais nada a dizer, e nenhuma
das duas dormiu. A água na panela sobre o fogão apagado não era a única coisa fria
naquela noite na velha casa de Taniei Urrai.

No dia seguinte, logo cedo, a professora Luciana abriu a porta para Maria, certa de
que vinha devolver o livro que lhe emprestara; no entanto, viu-a diante de si com
uma mala na mão e nenhuma boa explicação. Mas não se é professor por trinta anos
sem entender quando é o momento de não fazer perguntas, e ao cabo de uma semana
Maria tinha na mão uma passagem de navio para Gênova e uma casa em Turim na via
della Rocca, onde uma certa família Gentili esperava com impaciência a nova babá
sarda, recomendada diretamente por Luciana Tellani.

***

Décimo quarto capítulo

Uma outra vida. Foi o que lhe disse a professora Luciana. Você precisa de uma
outra vida, onde ninguém saiba quem você é, de quem ou do que é filha. Maria não
lhe contara nada do que havia acontecido, nem as palavras que ela e Bonaria tinham
trocado, mas bastou um olhar atento no fundo dos olhos verdes da turinesa para que
Maria entendesse que tinha sido a única pessoa na cidade que ignorava quem era
realmente Bonaria Urrai. Tentou inutilmente dominar o vazio da traição que
recebera, que lhe parecia tão semelhante à morte, mas sem o consolo de poder velar
os restos mortais de um ente querido, e nenhuma sepultura que contivesse o pranto
que a sufocava. Vivera por anos com Bonaria achando que tinha empatado seus dois
nascimentos, um errado, mas também um certo, e agora as contas lhe apareciam
cheias de erros e rabiscos apagados, deixando-a mais uma vez de fora, como um
resto que sobrou.

Uma outra vida, repetia-lhe Luciana Tellani com decisão, como se renascer fosse a
coisa mais simples do mundo. Porém as palavras se revelaram adequadas, as
professoras costumam ter algumas guardadas para ocasiões como aquelas: só a
perspectiva de decidir pelo menos um de seus muitos nascimentos, mais do que
qualquer outro impulso, podia convencer Maria a partir com tamanha rapidez.

Estar no mar entre Olbia e Gênova, agarrada ao parapeito pegajoso de maresia do


convés do Tirrenia, fez com que ela se sentisse forte, adulta, quase livre, sem
aquela sombra que frequentemente toldava o olhar daqueles obrigados a emigrar para
ter o que comer, sem ansiar por qualquer batismo onde pudessem escolher sozinhos
seus próprios nomes. Recomeçar em outro lugar, cortar o cordão umbilical num

114

momento preciso da existência escolhido por ela, sem parteiras nem dívidas
aparentes: a isso, Maria se sentiu como naquele dia de tantos anos atrás, no pátio
de Anna Teresa Listru, quando, sob o limoeiro, já decidia sozinha o que era melhor
misturar nas tortas de barro. Durante a viagem, Maria se esforçou em não dormir um
só instante. O tempo lhe serviu integralmente para ser a acabadora de suas
lembranças, e para tratar os acontecimentos que a haviam levado àquela decisão
como se fossem pessoas que subiam ou não no barco para o continente. Marcou cada
uma de suas lembranças, recordando-as para esquecê-las, e quando chegou ao porto de
Gênova desceu do navio sentindo-se mais leve, certa de ter deixado na outra terra
todo o lastro de suas feridas.

O apartamento de Attilio e Marta Gentili, no quinto andar de um prédio residencial


no centro histórico da cidade, tinha as paredes pintadas de um branco cremoso que
não tinha nada em comum com as cores chamativas das casas de Soreni. Maria só
vira paredes tão brancas na escola e no hospital, e foi também por isso que logo
teve uma sensação de submissão, um desconforto sutil reforçado pela desenvoltura
com que a trataram imediatamente por "tu". A sala de estar onde a senhora Gentili
a fez sentar antes de ir chamar os filhos era uma obra-prima de amplidão, dominada
por um grande lustre de vidro fume cujos lados arredondados, brilhantes e
chanfrados, pendiam do forro como um enorme cacho de balas chupadas. Nos poucos
minutos em que ficou sozinha, Maria parou de fingir que não estava impressionada
com o pé-direito alto e as portas-balcão em estilo art déco que cobriam uma parede
toda; mesmo às quatro da tarde, quando o sol já passara por elas algum tempo
antes, podia-se imaginar o clarão de luz que devia explodir ali dentro nas manhãs
de céu aberto. Tentando parecer desenvolta, Maria se sentou na beirada do sofá cor
de creme, mas continuou rígida diante da ostentação de tantos espaços
injustificados, que a pequena lareira de mármore perto da porta certamente não
conseguiria aquecer; mas ficou contente em poder se levantar quando os filhos dos
Gentili entraram, longe de perceber que

115

sua figura magra, ainda vestindo o casaco verde-garrafa, parecia às crianças como
um rasgo na tapeçaria. Com certa solenidade, Piergiorgio e Anna Gloria vinham na
frente da mãe, de mãos dadas, vestidos simetricamente, criando a ilusão de uma
semelhança gemelar. Maria ensaiou uma tentativa de sorriso, mas Piergiorgio - que
já sabia reconhecer a diferença sutil entre fazer e fingir - limitou-se a olhá-la
com o canhestro orgulho de seus quinze anos, sem esboçar nem por um instante a
intenção de soltar a mão da irmãzinha.

- Crianças, esta é a Maria... O gesto amplo da mão com que a senhora a indicou
aos filhos fez com que Maria se sentisse um objeto adquirido como parte da
decoração, o que a irritou intimamente, mas, quando viu que a atitude de Marta
Gentili se estendia também aos filhos, compreendeu que exprimia apenas sua visão
pessoal do mundo.

- ... e estes são meus filhos, querida. Não se deixe enganar pelo ar angelical,
são verdadeiros terremotos. Especialmente Piergiorgio!

Maria sorriu complacente, embora não lhe parecesse mesmo que havia algo de
angelical naqueles dois. Bonitos, eram. Ambos exibiam aquela indecisa tonalidade
de loiro que tende a escurecer com a idade, mas enquanto Anna Gloria puxara da
mãe a pele clara como uma boneca de porcelana, Piergiorgio possuía uma insólita
tez bronzeada de grumete de navio, cuja sugestão de calor durava apenas até a
borda azul dos olhos frios. Ambos ostentavam a altivez dos nascidos em berço
rico, como se desde muito tempo não houvesse entre eles nenhum espaço para as
pequenas fragilidades da infância. A um olhar atento, porém, as pequenas
articulações esbranquiçadas sob a pressão das mãos dadas sugeririam que as coisas
não eram exatamente como pareciam. Maria, que não era desatenta, entendeu
intuitivamente, ao observar as crianças, que aquele trabalho não seria fácil como
lhe fora dito, mas poderia se revelar muito mais interessante.

116

Como previa o acordo pelo qual fora contratada, Maria passava com os jovenzinhos
todo o tempo fora do horário de escola, acompanhando-os nas brincadeiras e nas
tarefas, quer os pais estivessem em casa ou não. Designaram-lhe o quarto amarelo,
um pequeno ambiente situado entre os espaços mais amplos reservados à menina e ao
menino, e o fato de ter portas de comunicação com os dois quartos levou Maria a
imaginar que fora provavelmente concebido como uma espécie de closet, onde os
dois irmãos no futuro, quando não precisassem mais de babá, poderiam guardar suas
roupas.

A primeira coisa a que Maria teve de se adaptar foi que aqueles jovenzinhos nunca
saíam de casa para brincar com outras crianças. Era verdade que o prédio dos
Gentili não tinha pátio, mas a rua onde ficava o edifício era muito próxima do
grande parque Valentino e das avenidas arborizadas ao longo do Pó, um lugar
aventuroso onde havia uma tal quantidade de tentações potencialmente mortais que
deixaria qualquer criança louca de alegria. Marta Gentili, porém, foi taxativa a
esse respeito: os filhos saíam somente com ela e o pai. Não se podia nem pensar na
hipótese de saírem para brincar, e não demorou para que Maria percebesse que uma
parte de suas tarefas consistia justamente em garantir que isso nunca ocorresse. Na
verdade, não era uma ordem difícil de respeitar, porque Piergiorgio não
manifestava nenhuma vontade de sair, e Anna Gloria, embora mais irrequieta, por
enquanto parecia se satisfazer com os inúmeros belos brinquedos que tinham. Maria,
porém, nas poucas horas livres que lhe sobravam, saía para passear pelas ruas
sempre que podia, cautelosa, mas curiosa com a cidade grande. A senhora Gentili
tinha lhe contado a estranha história das ruas reticuladas de Turim, que parece
que tinham sido desenhadas antes dos lugares a que deviam levar; a ideia de que os
turinenses tivessem decidido antes o percurso, e só num segundo momento tivessem
se preocupado em construir as casas, as praças e os prédios, parecia-lhe tão
ilógica que, nas primeiras cartas às irmãs, Maria continuava a repetir como se
fosse uma novidade engraçada. Aquela ordem milimétrica se chocava com seu bom-
senso, pois Maria achava

117

que a única maneira certa de as ruas surgirem devia ser a de Soreni, cujas ruas
nasceram das próprias casas como refugos de alfaiataria, retalhos, sobras tortas,
conquistadas uma a uma aos espaços que por acaso tivessem sobrevivido ao
surgimento irregular das habitações, que se sustentavam apoiadas uma na outra como
velhos bêbados depois da festa do padroeiro. Marta Gentili tinha lhe explicado que
o esquema viário repetitivo de Turim nascia de exigências de segurança, porque uma
cidade régia não devia oferecer aos rebeldes e aos inimigos nenhuma reentrância
onde pudessem se esconder, mas isso apenas reforçou em Maria a ideia de que todas
as coisas muito lineares na aparência não eram senão uma admissão de fraqueza:
ninguém se daria ao trabalho de desenhar ruas tão retas se não sentisse muito
medo.

Em todo caso, gostava de andar a esmo ao longo dos pórticos elegantes, olhando as
vitrines com os doces recobertos de chocolate, ou as roupas industriais postas com
calculada solenidade nos manequins. Parava diante das lojas de confecções e
estudava as roupas com o olhar crítico de costureira, procurando a barra malfeita
ou a lapela pouco caprichada, e sorrindo com satisfação quando adivinhava o
defeito no outro lado da vitrine, como se fosse uma revanche pessoal. Naqueles
momentos ocorria-lhe a lembrança de Bonaria Urrai, mas no resto do tempo dedicava
todos os seus esforços à delicada operação de remoção iniciada no navio, e aqueles
passeios eram uma parte fundamental disso. A única coisa com a qual não conseguia
estabelecer nenhuma familiaridade era o frio medonho de Turim, que não era uma
simples temperatura baixa - essas já conhecia -, mas uma atmosfera tão gelada que,
para aguentar, era preciso controlar até a entrada de ar nos pulmões. O frio
arriscava seriamente comprometer o prazer de seus passeios, pois em poucos minutos
transpunha a espessura de seu casaco de pano, chegando a esfaqueá-la nos ossos,
apesar do ritmo acelerado da caminhada.

Nas primeiras vezes, Maria voltava para casa com os músculos rígidos e o estômago
contraído, e levava pelo menos uma hora para passar a dor de cabeça que lhe
comprimia a

118

testa como um laço. Embora incapaz de compreender como os turinenses sobreviviam


àquele rigor, a ideia de renunciar a sair era tão odiosa como render-se sem
combater. Na terceira vez que voltou para casa enregelada, tomou a decisão de se
equipar: depois de pedir permissão a Marta Gentili, começou a pegar no cesto de
jornais na sala de visitas os diários que o dono da casa já tinha lido, e então ia
escondido para o quarto, para enfiar as folhas de jornal na altura do peito, das
costas e do ventre, antes de vestir o casaco verde e sair para a rua. Era como se
o frio tivesse mais trabalho para se insinuar naquele farfalhar sufocado do papel
impresso, e aquele pequeno segredo a acompanhou durante todo o inverno com a feliz
cumplicidade da solidão: se tivesse uma amiga para partilhar aqueles passeios,
seria complicado, talvez sentadas na saleta de um bar, explicar por que preferia
tomar o chocolate fervente com o casaco sempre colado ao corpo. Mas Maria teve o
cuidado de evitar amigas. Attilio Gentili, em compensação, ficou convencido de que
a babá de seus filhos era uma fervorosa leitora das notícias diárias, o que não
deixava de lhe dar certa satisfação.

Cuidar de Anna Gloria não foi difícil como receara de início, talvez porque,
pressentindo seu temperamento desconfiado, tal como tinha sido o seu também, Maria
nunca cometeu o erro de tentar conquistá-la com agrados, aos quais a menina devia
estar mais do que acostumada; a relutância instintiva cedeu à curiosidade e à
paixão que a pequena, entediada com os brinquedos com que era cumulada, revelou
pelos trava-línguas e jogos de palavras em que Maria era especialista. Juntas,
preenchiam a saleta de risadas e pronúncias engraçadas, enquanto Maria erguia um
por um os dedos da menina, na mão fechada em punho, contando em rimas sua história
preferida:

- Custu est su procu, custu dd'at mottu, custu dd'at cottu, custu si dd'at pappau
et custu... - naquele ponto agitava doidamente o mindinho da menina, fazendo-a rir
feito louca - ... mischineddu! No ndi nd'est abarrau!

119

- Não entendo nada! - protestava Anna Gloria depois de se recuperar das risadas que
lhe despertava o som estrangeiro das palavras.

- Não entende porque nunca viu que fim leva um porquinho numa família de quatro
filhos.

- E que fim leva? - a menina estendia o punho, ansiosa em recomeçar o ritual.

Maria se aproximava de novo com ar cúmplice e pegava sua mão, abrindo os dedos em
ordem, começando pelo pequeno polegar.

- Este é o porco, este o matou, este o assou, este o comeu, e a este... - o


mindinho era sacudido como uma campainha - ... pobrezinho! Nada restou!

A moça lhe ensinou muitos outros, em italiano e em sardo, e muitas vezes a menina
os recitava de improviso, com tanta destreza que os pais ficavam impressionados,
achando milagroso aquele leve vislumbre de disciplina. Graças àquele expediente,
Maria e Anna Gloria, ao cabo de três semanas de trava-línguas, podiam se
considerar, se não realmente amigas, pelo menos cúmplices, o que permitiu a Maria
exercer pelo menos um pouco de controle sobre o gênio rebelde e mimado da menina.

Piergiorgio Gentili, porém, era um caso totalmente diferente. Desde o início, o


garoto não ofereceu nenhum tipo de ensejo para estabelecer intimidade, e, embora
sempre fosse no mínimo educado, cada ação ou palavra parecia destinada a reforçar
uma barreira de hostilidade. Era visível o incômodo com que ele observava os
espaços de familiaridade que a irmãzinha ia concedendo à moça sarda, e, quando as
duas se divertiam juntas, sentava-se num lado do quarto olhando-as com prevenção,
a uma distância conveniente do potencial contágio daquela nova ligação. Dotado de
uma elegância natural e muito alto para seus quinze anos, Piergiorgio não tinha
nada do cômico desengonço adolescente que Maria conhecera em Andría Bastiu;
apesar dos sinais evidentes emitidos por uma virilidade em formação, ferozmente
disputando espaço com a infância dentro de si, no olhar soturno daquele rapazinho

120

havia algo já formado que a desconcertava e lhe recomendava cautela.

No dia em que Maria entendeu o que se escondia atrás daquele comportamento, era
outono em Turim, Piergiorgio tinha completado dezesseis anos, sua irmã onze, e ela
trabalhava na casa dos Gentili fazia um ano e dez meses, durante os quais sempre
mentira para suas irmãs, escrevendo-lhes que estava feliz, que todos a tratavam
como filha e que não queria mais voltar. De vez em quando Regina incluía nas
cartas alguma notícia de Bonaria, que parecia sofrer dos achaques naturais da
idade, mas Maria pulava sistematicamente as passagens que se referiam à velha
costureira.

- Por que não vamos até o Valentino? Está um dia bonito.

Com aquela pergunta de fingida naturalidade, Anna Gloria interrompeu a


concentração necessária para a versão do latim que o irmão fazia, enquanto Maria
levantava surpresa a cabeça da passamanaria que estava aplicando na barra de uma
saia. Attilio e Marta Gentili tinham ido às Langhe visitar os Remotti, como faziam
com frequência, e só voltariam no dia seguinte.

- Não. - O tom de Piergiorgio não prometia nenhuma explicação.

- Por que não? Nunca saímos, ficamos sempre em casa ou na escola, e só andamos de
carro. Nunca damos um passo, e eu quase morro de tédio... - Anna Gloria se dirigiu
a Maria, na esperança de encontrar um apoio. - O que você acha?

Piergiorgio olhou para Maria por um instante, como que proibindo qualquer
resposta, e disse:

- Desde quando é Maria que manda? - E quem manda então, você? - desafiou a irmã,
teimosa.

- Quem manda é papai e mamãe, e você sabe muito bem que eles não querem.

- Não queriam quando éramos pequenos, mas agora já crescemos. E depois estamos com
Maria...

121

Anna Gloria não parecia disposta a se render, devia estar arquitetando aquele plano
desde alguns dias, e Piergiorgio deve ter percebido de alguma maneira, pois se
levantou e em três passadas venceu a distância que o separava da irmã.

- Você é ainda pequena, e eu não quero sair. Portanto, vamos ficar em casa. Está
claro?

A menina se calou, sustentando o peso daqueles olhos iguais aos seus sem se deixar
intimidar. A impotência a deixava furiosa, mas não abriu a boca.

- Muito bem - concluiu ele, satisfeito com o silêncio.

Depois daquilo que, evidentemente, devia ser tomado como fim da conversa,
Piergiorgio voltou a se sentar à sua escrivaninha, sem que nada em seus gestos ou
olhares chegasse a abranger Maria, nem por engano. Anna Gloria se ergueu de
repente, largando o livro de geografia e deixando-o cair no chão com violência
proposital. Depois de endereçar a Maria um olhar ressentido, com passos rápidos
abandonou o quarto, batendo a porta às costas numa pancada brusca que fez tremer
o relógio de madeira pintada, pendurado na tapeçaria da parede. Como surdo,
Piergiorgio nem deu sinal de erguer os olhos do caderno de latim; não se passaram
dez minutos, e ambos ouviram o ruído da água do chuveiro. Maria não se preocupou,
acostumada que estava com as explosões de raiva entre os dois, que começavam e
terminavam rápido, mas se faziam cada vez mais frequentes à medida que Anna Gloria
crescia e seu caráter rebelde tolerava cada vez menos a autoridade antes
indiscutida do irmão. Piergiorgio ostentava indiferença depois daquelas brigas,
mas Maria já sabia o suficiente para entender que, na verdade, ele ficava
desarmado com aquele distanciamento da irmã. Respeitava aquele saber secreto,
consciente de que o jogo recíproco de fingimentos era a coisa mais próxima a uma
cumplicidade que poderia surgir entre eles. Mas, passados vinte minutos, a água do
chuveiro continuava a correr, e Piergiorgio finalmente levantou a cabeça dos
livros, olhando Maria com ar indagador.

- Demorado esse banho.

122

A moça cortou a linha de costura, pôs a saia em cima da cama e se levantou para ir
ver. A porta do banheiro estava apenas encostada e, ao entrar depois de bater sem
resposta, Maria viu a água abundante caindo no chão do box vazio. Bastaram-lhe
poucos segundos para entender que Anna Gloria nem havia entrado debaixo do
chuveiro.

- Não está! - exclamou em voz alta. Quando voltou ao quarto num passo alarmado,
Piergiorgio Gentili já vestia convulsivamente o sobretudo. Pegara as chaves de
casa do armarinho e estava para sair sem se importar se ela o seguia.

***

Décimo quinto capítulo

Desceram as escadas a toda velocidade, ele ágil como um gato, ela rápida em
acompanhar, com o casaco esvoaçante ainda aberto, na pressa de não ficar para
trás. Anna Gloria não estava na rua, o que Piergiorgio constatou num instante,
antes de sair em carreira desabalada até o parque. Maria ia atrás com o coração
loucamente disparado, mais assustada com o nervosismo dele do que com a escapadela
furtiva de Anna Gloria. De fato, já tinha pressentido por muitos indícios que um
ato de rebelião da menina seria só uma questão de tempo, mas o que não previra foi
a reação tão descontrolada do irmão. Corria rápido ao seu lado, não tanto pela
ansiedade de encontrá-la, coisa da qual tinha certeza, mas de alcançá-la ao mesmo
tempo em que a alcançaria o irmão fora de si.

Entraram no parque e lá ficaram o tempo necessário para percorrê-lo em todas as


direções, mas não havia sinal de Anna Gloria. Correndo e parando, inspecionando
com os olhos atentos as trilhas secundárias e com os pés ligeiros o caminho
central, depois de duas horas Maria e Piergiorgio se encontraram lado a lado,
ofegantes, ele com um brilho de puro pavor no olhar, ela muito menos otimista do
que antes quanto ao êxito da busca. Rompendo o silêncio imposto pela falta de
fôlego e pela discrição, sem combinarem, começaram ambos a chamá-la.

- Anna Gloria! - gritava Maria em voz retumbante. -Anna! -fazia-lhe eco


Piergiorgio em voz estrangulada. Muitos se viravam para olhar aquela jovem e
aquele rapaz com alarmada curiosidade, mas ninguém respondeu aos chamados.

124
Já eram seis da tarde e o sol estava se pondo quando saíram do parque abalados e
esbaforidos.

- É culpa sua - sibilou Piergiorgio com ódio. Maria estremeceu. Mas não respondeu
à injustiça da acusação, pois sabia muito bem que era verdade: qualquer coisa que
acontecesse era sempre responsabilidade sua. Não abaixou o olhar, porém, sabedora
de que a prioridade naquele momento não era encontrar um culpado.

- Vamos ao rio - sugeriu, tentando controlar a angústia.

Seguiram juntos para casa, acompanhando atentos a linha da água, sempre gritando
pelo nome de Anna Gloria e mantendo os olhos no declive do barranco, antecipando o
pavor de notar o sinal de alguma queda, um objeto boiando ou um corpo inerte na
margem arborizada, de onde subia uma leve névoa que embaciava a visão. Não
encontraram nada, mas nem por isso se sentiram mais aliviados, e voltaram para a
via della Rocca tomados de ansiedade, na esperança secreta de que Anna Gloria os
tivesse precedido.

Sentada nos degraus do prédio, a menina os esperava com visível nervosismo, mas
sem a menor intenção de mostrar arrependimento pela bravata. Piergiorgio parou no
meio da rua, e Maria teve medo do lampejo que notou no fundo de seus olhos azuis.
Sua irmã, porém, nem deve ter notado, pois se pôs de pé e estourou:

- Até que enfim, estou aqui do lado de fora faz pelo menos uma hora! Mas o que deu
na cabeça de vocês para saírem assim?

Ambos a fitaram quietos e incrédulos. Maria estava quase para responder no mesmo
tom, mas Piergiorgio foi mais rápido, e a calma em suas palavras assustou Maria
mais do que se fosse um grito.

- Ficamos com vontade de passear. Desde quando tenho de lhe prestar contas do que
faço?

Sem esperar resposta, ostentando indiferença, o rapaz subiu a escada e tirou as


chaves do bolso, abrindo com agilidade a porta do amplo apartamento. Mantendo-a
aberta, virou-se

125

para esperar que ambas entrassem; passando ao seu lado, Maria não conseguiu
lembrar de ter visto algum dia aquela expressão em seu rosto, desta vez pálido
como o da irmã. Ele retribuiu o olhar como uma advertência e, devido àquele pacto
tácito, os dois se comportaram até à noite como se não tivesse acontecido nada.
Anna Gloria, por seu lado, evitou trazer o assunto à baila, enganada por um
silêncio que a convenceu de que conseguira - com seu ato de força - abrandar, pelo
menos em parte, a resistência àquela proibição que tanto lhe pesava.

Naturalmente não era o caso, de maneira nenhuma, mas alguma coisa devia ter se
rompido em Piergiorgio, pois durante a noite, de seu quarto, Maria ouviu o som
inconfundível de um pranto abafado com dificuldade. Se muitas vezes Anna Gloria já
se enfiara de pijama na cama de Maria, para afastar os fantasmas de um pesadelo ou
para aquelas confidências secretas que só se fazem no escuro, em quase dois anos
nunca acontecera abrir-se a porta entre seu quarto e o de Piergiorgio. Nenhum dos
dois jamais pensara naquela passagem como algo real: para eles, era apenas uma
porta desenhada no revestimento da parede. Mas, àquele choro, não houve ponderação
que impedisse Maria de romper a barreira invisível da distância entre eles: após a
tensão acumulada durante o dia, as regras pareciam opacas e ineficazes, retidas
pelos fatos num limbo de momentânea suspensão.
Quando Piergiorgio percebeu que a porta se abrira, os soluços cessaram
instantaneamente. Das trevas do quarto ouviu-se sua voz embargada, mas ríspida.

- O que você quer? - Eu te ouvi. - E daí? Saia. - Não. - Eu te disse para sair.
Aqui não é seu quarto. Maria avançou na escuridão sem medo de tropeçar: conhecia
a ordem obsessiva com que o rapaz mantinha suas coisas. A luz do abajur no criado-
mudo se acendeu de repente, iluminando Piergiorgio vestido na cama, sentado com as

130

ocultar aparecia de manhã durante o café, quando os dois mostravam as olheiras


profundas da insônia à vista distraída dos pais e ao olhar sombrio e inquisitivo
de Anna Gloria, que mastigava biscoitos no ritmo acelerado de uma raiva crescente.
Maria saía muito menos de casa e, quando o fazia, já não colocava os jornais sob o
casaco, tomada de uma febre ardente que, se não estivesse tão cega, logo teria
reconhecido, pois não era a primeira vez que sentia aquele fogo a correr pelas
veias; mas os momentos de consciência sempre lhe tinham vindo como uma ressaca
após a onda, e daquela vez não seria diferente.

Nos olhares de adoração de Piergiorgio via-se bela como não lembrava ter sido
vista em tempo algum, bela como naquele dia com a coroa de pão na cabeça, no
quarto perfumado de sua mãe, com o seio nu e a correntinha de ouro que a fazia
preciosa como uma dama num quadro, refletindo-se no espelho do armário. Seu
cunhado certamente nunca a vira daquela maneira, e mesmo Andría Bastiu amara nela
aquilo que o fazia se sentir em casa: jamais haviam trocado confidências tão
sórdidas que maculavam a noite para sempre, e Maria nunca tivera receio de roçar
sua mão e, assim, despertar o sangue que lhe espumava sob a pele, como ocorria sem
cessar diante do perfil puro de Piergiorgio. Fêmea, Maria sempre soube que era,
mas mulher ela se descobria naquele momento, pois nunca tinha lhe acontecido que
alguém o mostrasse com o ardor que Piergiorgio Gentili, com toda a paixão de seus
dezesseis anos, lhe ofertava no olhar a cada vez que a fitava.

Com o passar das semanas, captando instintivamente o perigo da hostilidade de Anna


Gloria, ela e Piergiorgio se fizeram mais cautelosos e furtivos para evitar
situações que pudessem gerar a dispensa da presença já quase supérflua de Maria
naquela casa. À noite viam-se pouco e por poucos minutos, vigilantes como ladrões
para não se encostarem nem por engano, e depois cada qual retornava à própria
cama, ainda ardendo de culpa por ter ansiado o tempo todo por tal engano. Maria
sabia que bastaria um gesto para que tudo avançasse além dos olhares, e era com
cuidado deliberado que evitava fazê-lo,

131

atenuando aquela distância com outras pequenas intimidades. Era como se ambos
percebessem que aquela mútua busca instintiva na hora do sono os transformava numa
entidade à parte no ecossistema da casa, um organismo demasiado frágil para
correrem o risco de que adoecesse por causa de uma imprudente troca de febres.

Aquele cuidado salvou Maria em outros aspectos, mas num primeiro momento ela não
percebeu. Estava concentrada demais em entender que aquelas visitas noturnas agiam
não só sobre as feridas do passado de Piergiorgio, mas também sobre as suas. Se
ele parecia conseguir desfazer certas lembranças, ela, sem querer, começava a
despertar outras, num jogo de memórias interligadas que se manifestava sem lógica
aparente. Muitas coisas, que julgava ter deixado na margem de onde partira o navio
para Gênova, voltavam uma após a outra, como pedaços de madeira na praia depois de
uma borrasca.

A primeira vez em que Maria entendeu que algo estava mudando foi justamente à
noite, quando voltava a seu quarto, descalça, andando devagarinho. A sensação do
carpete sob os pés lhe trouxe de volta à memória a pelagem fulva e eriçada de
Moisés, e a cor exata de seus olhos redondos. Foi assim que apareceram as
primeiras lembranças, por sensação ou distração, de repente, sempre à noite. Depois
a memória passou a despertar de dia, quando não podia atribuir a enganos do sono
se, em certos ângulos dos raios de sol na sala de estar, reconhecia a luz da casa
de Bonaria Urrai; lentamente, um a um, voltaram os rostos, as vozes, os locais da
infância, e Maria descobriu que vivia neles sem pedir licença. Quando estava
absorta a costurar, associava aos gestos lentos da mão o eco de outros bordados,
executados tempos antes, em outro lugar, em tecidos diferentes, mas não numa outra
vida, por mais que tivesse passado meses repetindo o contrário.

Não comentou nada sobre o que lhe estava acontecendo. Tinha certeza de que aqueles
fragmentos de lembranças, que outros tratariam logo de descartar com o nome de
saudade, não eram coisas que pudesse revelar a Piergiorgio. Mas, enquanto isso, o
presente e o passado voltavam a se olhar

132

como depois de um armistício, assim vindo a pesar em seu peito a surda gratidão
dos sobreviventes. Fazia anos que deixara de roubar miudezas que já eram suas, e
agora via-se novamente escondendo algo, pois entre ela e Piergiorgio o lugar da
consciência não era e não podia ser o mesmo lugar da reciprocidade. Havia uma
profecia amarga naquela negação, e Maria sabia que era a única capaz de percebê-
la. Pelo receio de ver se realizar a profecia, Maria girava em torno da alma do
rapaz como se pisasse em areia, tentando não deixar muitos rastros em sua
passagem. A cada vez que Piergiorgio, excitado, invocava entre eles a eternidade
ou outras visitas incômodas, melhor Maria compreendia que o que os separava não
era a idade ou a condição social, mas a persistência, nele, do engano infantil em
confundir o que se quer com o que se tem. Por isso, cada vez que saía do quarto
dele, fechando a porta após o último sussurro, Maria renovava para si mesma a
renúncia ao homem em que se transformaria Piergiorgio.

A evidência de ser presença temporária na casa dos Gentili não a impediu de se


sentir desfalecer quando recebeu uma carta de Regina pedindo-lhe para voltar com
urgência. Eram apenas poucas linhas: sua irmã era boa em muitas coisas, mas
certamente não em escrever. Havia apenas o estritamente necessário, e, depois de
ler, Maria deixou a carta no criado-mudo durante dois dias, fazendo de conta que
nem havia chegado.

Só na terceira noite reuniu coragem de ir ao quarto de Piergiorgio e lhe contar em


que pé estavam as coisas, e foi tão grande a ansiedade diante da perda iminente
que ela esqueceu a prudência. Não esperou ter certeza de que Anna Gloria
estivesse dormindo para abrir a porta, e bastou um leve rangido da fechadura para
dar à menina o sinal que aguardava fazia semanas. Enquanto Maria, no quarto
escuro, enfrentava o peso da raiva furiosa de Piergiorgio, posto diante da
necessidade daquela decisão, a luz do quarto se acendeu subitamente pelo lado de
fora, mostrando os dois abraçados na cama numa posição ambígua, mas mais do que
inconveniente aos olhos atônitos de Attilio e Marta Gentili. Nenhum dos dois
jovens

133

protestou inocência, pois claro que inocentes não eram, mas o nome exato da culpa
guardaram muito bem entre si, por um pacto que nunca tiveram necessidade de
combinar. No dia seguinte, Anna Gloria não verteu nenhuma lágrima enquanto Maria,
cheia de vergonha, descia as escadas com suas coisas na mala. Piergiorgio não teve
sequer permissão de sair do quarto para se despedir dela, e o saldo do salário lhe
foi entregue gelidamente pelo dono da casa, dentro de um envelope em branco, o
qual ela não abriu por muitos dias; naquela noite, no navio que a levava de Gênova
a Porto Torres, o único envelope que Maria continuava a abrir e a reler era o da
irmã Regina, que com aquela frase alarmante acrescentava à dor da separação o
peso da responsabilidade que se prefigurava à sua chegada: "Mariedda, volte o mais
rápido que puder: Bonaria Urrai teve um derrame, e talvez morra."

***

Décimo sexto capítulo

O abajur estava apagado, mas Bonaria Urrai não precisava de luz para saber que
Maria estava ali na sombra do quarto do hospital, sentada em algum lugar. Difícil
dizer desde quando tinha o hábito de se sentar e fitá-la no escuro em silêncio, se
vinha desde sempre ou se o adotara no continente, na casa onde tinha trabalhado e
sobre a qual não quis falar. Bonaria desconfiava que Maria pegara dela essa mania
de espreitar as pessoas durante o sono, e gostaria de ceder à tentação de lhe
revelar, talvez fazendo-se preceder por um ruído qualquer para mostrar logo que
estava acordada. No entanto, algo a refreou e ela se conteve, como tinha se
contido no início de tudo, antes que o tempo decidisse lhe escapar como uma raposa
na noite.

No início de tudo.

Fazia silêncio dentro da loja, e Bonaria ainda se lembrava de Anna Teresa Listru
com os cabelos presos numa trança enquanto enfiava as mãos grossas no saco dos
feijões de Tonara, como se fosse escolher um por um. Comentava alguma maledicência
com a dona da loja e a mulher do farmacêutico, que tinha vindo do continente e
usava um casaco de pele escuro como as senhoras da cidade, e examinava com atenção
os vários tipos de sopas por trás dos vidros do armário.

No meio das três mulheres Maria era uma nulidade, como uma data de vencimento que
precisamos anotar para não esquecer. Não tinha sequer se beneficiado com aqueles
comentários bondosos que fazem as mulheres quando se declaram encantadas com os
filhos dos outros. Bonaria, sentada

136

num saco de favas secas num canto da loja, esperava chegar o leite fresco do dia e
observava a menina esquecida, movimentando-se ligeira entre as coisas da sua
altura: as frutas, os cata-ventos de plástico colorido, o grande cesto do pão
fresco, os joelhos ásperos da mãe.

Os olhos da velha foram os únicos a ver que um punhado de frutinhas pretas


desapareceu do cesto das cerejas de Aritzo entre as pregas do vestidinho de Maria,
no recôndito secreto de um bolso branco. Tia Bonaria não viu surgir naquele rosto
infantil nem a vergonha nem a consciência, como se a falta de juízo fosse o
contrapeso adequado de sua patente invisibilidade. As culpas, como as pessoas,
começam a existir apenas quando alguém as percebe. De fato, Maria seguiu inocente
ao longo do balcão, onde as outras mulheres comentavam como tinha subido o preço
dos legumes, aninhando-se como um inseto no pequeno espaço entre o traseiro da mãe
e o da mulher do farmacêutico, atraída pela pelagem escura e brilhante do casaco
desta última. Olhava-o boquiaberta, encantada com os reflexos que apareciam na pele
a cada pequeno movimento. Bonaria Urrai pressentiu o que a menina estava para
fazer, antes mesmo que a mão de Maria se estendesse para cometer aquele pecado
macio. Os dedos da menina penetraram na pelagem espessa, jamais vista antes a
cobrir um cristão, impressionada que a morte pudesse ser tão macia. A mulher do
farmacêutico não deu mostras de ter percebido, e Maria se sentiu autorizada a
ousar mais. Aproximando-se daquele traseiro engordado pelas doenças dos outros,
afundou o rosto no pelo negro e inspirou o cheiro sofregamente. Só então a mulher
do farmacêutico se deu conta de todo aquele apalpar e soltou uma exclamação
irritada, atraindo a atenção de todos sobre a menina.

Agora estendida na cama, Bonaria Urrai esboçou um débil sorriso no escuro à


lembrança de Maria subitamente real, Maria consistente e verdadeira nos pecados
sem cúmplices das crianças solitárias. Não a viu chorar naquela manhã na loja,
enquanto a mãe se mortificava em encontrar palavras que explicassem aquele seu
comportamento selvagem, aquela ânsia

137

dos sentidos que se convertia em furto com uma frequência muito maior do que a
fome pudesse justificar.

- Melhor seria se nunca tivesse nascido, sabem os céus que três já me bastam na
minha condição...

E tampouco aquele aborto retroativo despertou .alguma reação visível no rosto de


Maria. Ela ficou imóvel com a inconsciência indolor de quem nunca nasceu de
verdade, enquanto no tecido branco do vestido começava a florir a cor das cerejas
roubadas, correspondendo ao bolso direito. Um vermelho revelador que se espraiava
como uma chaga, e em alguns pontos era quase negro. Aquela mancha parecia a única
coisa a se mover nela, uma obscena menstruação de fruta. A dona da loja foi a
primeira a notar.

- Você pegou cerejas do cesto? Anna Teresa Listru se deu conta do furto na roupa
da filha enquanto a bofetada já chegava ao seu destino. A menina fechou os olhos
apenas durante o instante do golpe, depois reabriu e o olhar ficou parado, uma mão
ferozmente enterrada no bolso exasperando a mancha externa. As lágrimas estavam
ali, mas não desceram.

- Giulia, me desculpe, não sei o que dizer, ponha na minha conta...

- Imagine, acontece, são crianças - minimizou a comerciante atrás do balcão. - Mas


certamente aquela mão malandrinha... - acrescentou malévola num meio sorriso.

Mais que tudo, foi principalmente aquele vermelho no bolsinho bordado que fez
Bonaria Urrai pensar que talvez o tempo da esterilidade tivesse chegado ao fim, e
não se passou uma semana para ir conversar com Anna Teresa Listru sobre a
possibilidade de adotar Maria como filha d'alma. Procedeu de maneira a apresentar
à viúva de Sisinnio Listru uma tal proposta que nem lhe ocorresse a tentação de
negar. Ademais, Bonaria se dedicava desde cedo à costura porque, se havia uma
coisa que sabia fazer bem, era tomar as medidas das pessoas. Naquele caso também
tinha acertado: Anna Teresa Listru aceitou a proposta sem discussões, e dez dias
depois Maria já ocupava seu quarto na residência dos Urrai, sem nem ter sido

138

avisada que se anunciava para ela uma mudança definitiva no estado de família.

Depois de todos aqueles anos, Maria ainda não tinha certeza se compreendera até
que ponto o curso de sua vida tinha se alterado com aquela escolha. A única coisa
que entrara em consideração desde o início era aquela cama, em cuja cabeceira,
agora, sua presença tinha o peso de uma conclusão. Cansada de fingir que Bonaria
estaria dormindo, aproximou-se do travesseiro murmurando:

- Eu sei que a senhora está acordada. Quer que eu traga alguma coisa?

Bonaria alargou as pupilas embaçadas pelo véu da catarata e distinguiu apenas uma
silhueta incerta. Não havia luz suficiente no quarto, e estava assim fazia dias,
desde que o médico lhe dissera que a luz forte poderia lhe provocar dor de
cabeça, como se o problema de Bonaria fossem dores de cabeça. Se pudesse, riria,
mas o derrame havia paralisado o rosto a ponto de lhe impedir mesmo um movimento
tão simples. Para sorrir, disse-lhe o doutor Sedda, eram necessários nem lembrava
direito quantas dezenas de músculos diferentes, e ela havia perdido o movimento de
quase todos.

- Água... - julgou dizer. Maria entendeu pelo murmúrio das vogais, e lhe aproximou
da boca o copo com o canudinho; a enfermeira ainda não tinha chegado para pôr o
soro no braço, para a hidratação. Com esforço Bonaria sorveu a água do copo, mas a
incapacidade de controlar o movimento dos lábios fez com que uma parte subisse
para o nariz e outra parte vazasse pela boca. Tossiu com força, enquanto Maria
tentava soerguê-la para ajudar a engolir o pouco de água que conseguira levar até
a garganta.

Bonaria estava naquelas condições fazia quase dois meses, e a idade muito avançada
impedia que os médicos fossem otimistas em relação a uma eventual melhora.

139

A volta de Maria para a Sardenha não havia surpreendido ninguém. "É a dívida dos
filhos d'alma", diziam em Soreni como se fosse um destino inescapável. Na verdade,
poucos achavam que ela iria realmente voltar para saldá-la. Pela pressa com que
deixara a cidade, tinham chegado a comentar que fora embora por estar grávida de
Andría Bastiu, já que aqueles dois andavam sempre juntos, e o fato de não existir
a menor prova já era para alguns prova certa. Em todo caso, todos acharam que
teria acontecido entre as duas mulheres alguma coisa que rompera o pacto sagrado da
adoção, devolvendo-as ao estado de órfã e de viúva sem filhos.

No entanto, a filha de Anna Teresa Listru voltara, e parecia ter feito isso
exatamente para saldar a dívida no momento de maior necessidade; isso lhe restituía
perante a comunidade aquele direito à herança que, do contrário, não lhe seria
lícito exigir, e não havia nenhum mal em supor que tivesse agido assim
expressamente por causa disso. Do ponto de vista hereditário, sem dúvida Maria
podia dizer que tinha sorte, mas sua sorte era avaliada não tanto pelo volume de
bens que lhe caberiam, e sim pelo tempo necessário para cuidar da velha Urrai
antes que o Senhor estabelecesse que já comera pão suficiente. Houve filhas que
perderam os melhores anos de juventude atendendo a velhas tirânicas que não se
decidiam a morrer, e a ironia do destino tinha feito com que herdassem grandes
fortunas numa idade em que não teriam mais nenhum capricho a realizar. Mas não era
o caso de Maria, pois era evidente que Bonaria Urrai estava mais para lá do que
para cá. Não comia nada que precisasse mastigar, e a paralisia do lado direito do
corpo impedia que se levantasse e cuidasse da higiene pessoal. Maria fazia tudo
com dedicação filial, e nas portas das casas à noite as velhas elogiavam seu
espírito de sacrifício, que a santificaria cada vez mais quanto mais se
transformasse num martírio.

Na verdade, embora se esforçasse em fazer tudo aparentando a maior serenidade,


Maria estava apavorada com a ideia de que Bonaria ia morrer, e a velha a conhecia
o suficiente para percebê-lo. Não falavam, nunca tinham falado

140

desde o retorno de Maria - ademais, a velha ainda não conseguia -, mas trocavam
olhares frequentes na penumbra do quarto, e tinham descoberto que era uma maneira
de se comunicar que poupava muitos equívocos. As palavras que haviam dito naquela
noite em que a família Bastiu chorava Nicola ainda permaneciam ali entre elas, mas
estava claro que Maria esperava, embora não houvesse nenhuma esperança, que
Bonaria voltasse a falar de maneira inteligível.

Passados quatro meses, quando já era evidente que não iria melhorar, a velha
recebeu alta e os médicos permitiram que Maria a levasse para casa, depois de lhe
explicar como devia atendê-la em condições que foram consideradas estáveis. Isso
significava apenas que Bonaria estava estacionada à beira da morte, mas num
primeiro momento Maria se recusou a aceitar e a tratou como uma convalescente, com
tanta dedicação que, depois de algumas semanas, a capacidade de mover os lábios
havia melhorado a ponto de lhe permitir articular palavras simples e pedir o que
precisasse. Bonaria Urrai, de sua parte, sentia que havia coisas entre elas que
seria necessário dizer, mas que com toda probabilidade nunca mais poderia falar.

Prolongando-se lentamente seu estado de imobilidade, ficou claro que Bonaria


pertencia àquela raça de velhos destinados a se extinguir devagar, e se dom
Frantziscu Pisu considerava uma bênção ter tempo para refletir e pedir perdão por
seus pecados, para a velha acabadora seguramente não era. O velho padre veio
visitá-la umas duas vezes e tartamudeou sobre seu corpo paralisado uma sequência
de litanias em latim que sabia pronunciar apenas pela metade; Bonaria apreciou
sua boa vontade, deixou que desempenhasse sua função, mas, quando ele foi embora,
conseguiu dar a entender a Maria que não gostaria de ter outras visitas do
sacerdote.

Com o tempo, também se escassearam as visitas dos curiosos, e ficou apenas Maria a
cuidar de Bonaria, contando de vez em quando com o auxílio das mãos experientes de
Giannina Bastiu. A velha emagrecia e, apesar disso, o mais complicado era levantá-
la da cama, visto que os ossos estavam

141

tão frágeis que havia o risco de uma fratura, mesmo a uma pequena pressão acima do
que o habitual.

Passou-se quase um ano naquela debilitação até Bonaria Urrai entrar em agonia, sem
que dissesse a Maria nenhuma das palavras que queria pronunciar. Ela se manteve
lúcida, mas somente os olhos conseguiam se exprimir. Depois de todo aquele tempo,
Maria não necessitava de qualquer gesto para entender do que precisava a velha.
Dormia no quarto com ela e se levantava várias vezes durante a noite para
verificar se ainda estava viva, e logo que recebia algum sinal de confirmação, por
mínimo que fosse, voltava mais tranquila para sua cama.

Foi numa daquelas noites que Bonaria Urrai se pôs a gritar. Não eram exatamente
gritos, mas os gemidos agudos que lhe saíam da garganta possuíam uma nota de
desespero violento. Maria se ergueu da cama e entendeu imediatamente que o que
Bonaria queria não era água. Nas últimas semanas as dores tinham aumentado, e o
corpo estava tão debilitado que mesmo a mais leve massagem lhe trituraria os ossos
agora fragilíssimos. Sofria muito e, se até aquele momento pouco se lamentara,
agora parecia não aguentar mais, e suas pupilas dilatadas procuravam o rosto de
Maria num desespero esfaimado. Maria descobriu que era muito menos forte do que
sempre julgara ser. Os sons que a velha emitia a atormentavam tanto que, na
primeira noite, foi obrigada a sair do quarto para não ouvir os estertores. Na
segunda noite, porém, controlou-se e ficou tentando acalmá-la como podia. Foi
inútil, e na terceira noite Maria chorou sozinha em sua cama; Bonaria a ouviu
nitidamente e gemeu tão alto que Maria pensou que morreria de exaustão, e quase o
desejou, mas de manhã a velha ainda estava dolorosamente viva. Depois de duas
semanas daquela tortura, a moça começou a compreender o que pretendia dizer
Bonaria Urrai três anos antes, ao adverti-la: "Nunca diga desta água não beberei."

***
Décimo sétimo capítulo

Proteção ou culpa. Em Soreni, estes eram os únicos motivos que dificultavam a


morte, e Maria não sabia qual dos dois realmente impedia a partida de Bonaria
Urrai. Na dúvida, enfrentou antes de mais nada o que estava a seu alcance. Como
tinha feito Bonaria anos antes dela, liberou as prateleiras das estátuas do
Sagrado Coração e do cordeiro místico, e levou embora a pia de água benta com o
autorrelevo de Santa Rita. Retirou todos os quadrinhos de temas religiosos que
havia nas paredes do quarto, resgatou as imagenzinhas das páginas dos livros e do
fundo das gavetas, removeu das maçanetas das portas todas as fitinhas verdes,
expulsou dos cantos todos os pedaços de chifre que tivessem sido postos como
defesa contra os espíritos, mas principalmente as palmas abençoadas da Semana
Santa de trás da porta, completamente secas, mas nem por isso inócuas. A velha não
usava mais escapulários ou outros objetos que pudessem retê-la, a não ser a
correntinha de batizado, que Maria teve o cuidado de lhe tirar do pescoço com
toda a delicadeza, enquanto a outra olhava sem protestar. Depois daquele
saneamento, esperaram. Nas duas semanas seguintes, Bonaria, tão magra que se
reduzia a uma simples espinha dorsal, continuou a viver suspensa à beira da morte,
mas não caiu.

Conforme passavam os dias na mais total impotência, Maria se convenceu de que,


entre os dois motivos da agonia, o que prendia Bonaria Urrai em vida não era a
proteção. Na noite em que entendeu isso, foi se sentar na cadeira junto à cama da
velha costureira, fitando-a em silêncio. Depois de alguns minutos, Bonaria abriu
os olhos toldados e olhou para ela.

- O que tenho de fazer? - a pergunta era um sussurro.

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A velha tentou articular alguma coisa, mas da boca saiu apenas um arfar sofrido.
Maria se ajoelhou ao lado da cama, apoiando os cotovelos na coberta, de onde
sentiu subir o cheiro acre da velha, mais forte do que nunca. Quando falou, foi
com lentidão deliberada.

- A senhora está se penitenciando de algo que fez, tia. Àquelas palavras os olhos
de Bonaria se fecharam, numa simulação de sono na qual Maria não acreditou nem por
um instante. Segurou uma das mãos.

- A quem? As pálpebras continuaram fechadas, a mão que Maria segurava não fez
qualquer movimento. Ocorreu-lhe que a morte não poderia acrescentar nada mais
àquela ausência.

- A senhora não pode partir porque tem alguma dívida, mas só a senhora sabe qual é.
Eu posso ir de casa em casa, pedindo desculpas em seu lugar, e quando isso se
acabar, vou saber que entrei na casa certa.

A velha reagiu àquelas palavras como se fossem uma ameaça, abrindo os olhos
enevoados para apontá-los novamente ao rosto da filha adotiva. A mão se contraiu
num espasmo surpreendentemente vigoroso e Maria, que não esperava aquela
resistência, captou uma confirmação. Assim, acrescentou:

- Começarei pelos Bastiu. Bonaria Urrai emitiu um gemido que soou como um grito.
Decidida a entender, Maria não se levantou da cabeceira onde ainda estava
ajoelhada.

- A senhora não quer? A idosa moveu levemente a cabeça, mas a negativa era mais
do que evidente.
- Não entende que é isso que a impede de partir em paz?

Bonaria olhou para Maria sem outro sinal a não ser a determinação do olhar, no
qual não havia sombra visível de nenhum remorso. Perante aquela vontade palpável,
por um instante os papéis se inverteram, e Maria se sentiu como se fosse ela a
paralisada. Soltou-lhe a mão com delicadeza, libertando-se do aperto espasmódico da
velha.

145

Durante alguns dias, Maria se conduziu como se não tivesse ocorrido aquela
conversa, agindo com o zelo de sempre. Limpava e alimentava a mulher, penteava os
ralos cabelos finos que sobravam no crânio frágil, falando do tempo e das poucas
novidades da cidade, como se Bonaria algum dia tivesse se interessado. A velha
sofria de câimbras e outras dores, sobretudo à noite, mas nenhum sofrimento
parecia destinado a exaurir suas forças definitivamente. Bonaria Urrai continuava
a viver, e não havia o que fazer.

Chegado o momento, Maria retomou a conversa, depois de lhe ter dado na boca a
última colherinha de purê de pera. Inapetente, Bonaria recusara metade, e Maria
sabia que, no máximo em uma hora, iria vomitar a outra metade no babador, que lhe
colocava justamente por causa disso.

- A senhora pensou no que lhe falei? - indagou, deixando o prato no criado-mudo.

Desta vez, ela não se fez de desentendida, e de fato sua imobilidade constituía
uma nítida concordância.

- Tia... - murmurou Maria, acercando-se mais da cama. - Não aguento mais ver a
senhora assim. Se eu pudesse fazer alguma coisa...

Com dificuldade Bonaria pegou sua mão, e apertou-a ao máximo que suas forças
permitiam. Não era um aperto forte, mas tinha um vigor que lhe parecia comprimir
mais do que um torniquete. A velha tentou articular alguma palavra, e ela se
aproximou mais para entender o sentido. Chegou-lhe ao rosto um leve sopro, como
uma carícia trêmula, mas nenhuma palavra distinta. Tentou ler em seus olhos o
sentido daquele sopro, mas, no mesmo instante em que encontrou o olhar da velha,
arrependeu-se de ter sentido vontade de entender. Bonaria Urrai a fitava com
tamanha intensidade que a obrigou a afastar o olhar.

- Peça-me o que posso fazer - murmurou assustada. Quando viu que não teria
resposta, afastou-se da cama com o prato na mão, completando o percurso com o
coração que lhe batia como um martelo no ferro quente.

Naquela mesma noite, foi à casa dos Bastiu procurar Andría. Tinham-se visto
algumas vezes desde sua volta, mas

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sempre com a circunspecção dos fraudados, incapazes de ressuscitar a confiança que


os tornara cúmplices dos crimes inconfessáveis com que as crianças sabem se
macular, antes que possam entender que são inocentes. Apesar de Giannina ter
vindo algumas vezes ajudá-la com Bonaria, Maria não punha os pés na casa dos
Bastiu desde o dia da morte de Nicola.

Andría não parecia surpreso com aquela visita, e a recebeu com certa frieza
indisfarçada. Estava muito mais alto do que se lembrava Maria, com uma leve barba
no rosto que lhe dava um ar de bandoleiro totalmente incongruente com os olhos
bondosos, que continuavam iguais aos que lembrava Maria. Foi aquele pensamento que
lhe deu forças para dizer o que viera pedir, e quando terminou Andría levantou-se
bruscamente, pondo as mãos nos jeans.

- Foi ela que pediu? - Mas se ela nem fala... - Isso não é resposta. Ela deu a
entender que queria isso?

Maria hesitou em responder, mas não tinha intenção de mentir.

- Não, pelo contrário. - E acrescentou imediatamente: - Mas tenho certeza que é por
isso que ela continua a sofrer.

Andría sacudiu vigorosamente a cabeça, e depois olhou sério para ela, sem nenhuma
disposição de acatar o pedido.

- Não faz sentido, e você se comporta como uma velha supersticiosa. Se ela não
morreu, é porque ainda não chegou a hora.

Àquelas palavras cruas, Maria fez um gesto irreprimível de impaciência, e se pôs de


pé por sua vez. Ali no aposento, pareciam dois cães enjaulados procurando pretexto
para se atacarem. Mas a fraca era ela, e sabia disso.

- Talvez se o visse, se você falasse com ela... Venha visitá-la!

Na voz da moça havia uma nota de desespero autêntico que o surpreendeu, mas não
demonstrou piedade. Quando respondeu, havia em suas palavras uma agressividade que

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fez Maria entender como era mentirosa a máxima que dizia que o tempo cura tudo.

- O continente te fez mal, Mariedda. Você ficou arrogante com os pecados dos
outros. Nunca te ocorreu que talvez não haja nada a perdoar?

Maria lhe devolveu o olhar surpresa e ferida, abrindo a boca para dizer algo.
Depois cerrou os lábios, sem uma palavra, e Andría repisou.

- Pois sabe, te vejo assim tão segura do teu... talvez você esteja enganada, e o
céu não julgue as coisas como você julga.

- Eu achava que você entenderia... era teu irmão! - Claro que era meu irmão. E
queria morrer. Eles se olharam, o rosto de Maria se mostrava incrédulo, o de
Andría tenso e duro.

- Você também mudou. Naquele dia não foi isso que você disse.

- Todos crescemos, Mari. Ou o que você achava, que seria sempre você a esperta?

O cúmplice de suas brincadeiras de infância desaparecera, diante dela estava um


estranho com alguns pratos de vingança para comer depois de frios. Maria se sentiu
abatida, mas principalmente tola.

- Errei em vir aqui. Agora nem sei por que vim, me desculpe...

Foi embora sem dizer mais nada, e ele não a acompanhou nem até a porta,
permanecendo sentado no sofá duro da sala de estar onde a recebera, escolhendo
justamente a sala para os estranhos, para as visitas incômodas e para os velórios,
quando havia.

Quando Bonaria ouviu a porta de casa se abrir, o pensamento de que Maria talvez não
estivesse sozinha fez correr em suas veias a pouca adrenalina que seu corpo ainda
era capaz de produzir. Mas a porta se fechou e entrou apenas a moça, com um olhar
derrotado. Naquela noite, Maria preparou o jantar para si e comeu sozinha na frente
da lareira; depois entrou no quarto de Bonaria para verificar o soro; quando

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trocou o soro na penumbra da luz do abajur, a velha nem deu sinal de ter
percebido. Depois foi para o seu quarto e chorou toda a raiva e a dor que tinha no
corpo. Chorou tanto que não lembrava mais se chorava pelas coisas em agonia ou
pelas já desaparecidas.

Uma semana depois Bonaria Urrai entrou em coma. O doutor Mastinu disse que agora
não faltava muito, e Maria não teve disposição de lhe observar que já tinha dito a
mesma coisa seis meses antes. Dom Frantziscu perguntou se deveria vir para a
extrema-unção, e como Maria respondeu que avisaria no momento oportuno, o padre
concluiu que jamais chegaria o momento oportuno, mas teve o pudor de disfarçar seu
alívio.

A convivência de Maria com o corpo vivo de Bonaria Urrai era um lamento


monocórdico, e ninguém a não ser ela parecia capaz de ouvir o som. Continuou a
fazer o que havia feito até aquele momento, interpretando a espera com a atitude
metódica e visionária de quem constrói as casas antes que existam as ruas que
levarão a elas. Apesar das palavras do doutor Mastinu, três meses depois Bonaria
Urrai continuava ainda prisioneira de si, como que suspensa por um fio de aço,
fino a ponto de ser invisível e forte a ponto de ser inquebrável. E a filha
adotiva estava suspensa junto com ela.

Foi no final de um dia que passara a bordar lençóis para o casamento de alguém e a
celebrar raivas solícitas ao redor do corpo inerte da velha que Maria sentiu algo
vacilar dentro de si. O impensável a assaltou enquanto trocava a capa usada das
almofadas do sofá por outra recém-lavada. Foi a própria maciez da almofada que a
aliciou, nada de especial, mas para aquele fio de respiração talvez fosse mais do
que suficiente. A imagem foi fugaz, mas tão intensa que Maria teve de se sentar,
ofegando à própria ousadia. Deixou a almofada cair no chão e a encarou como uma
cobra venenosa. A partir daí, passou a se mover circunspecta ao redor da cama,
observando cuidadosamente cada gesto seu, temerosa de si mesma. A ideia retornava,
sempre inopinada, às vezes enquanto estava dormindo, mas outras vezes de dia,
enquanto fazia coisas rotineiras,

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gestos inocentes nos quais se escondiam possibilidades ferozes que jamais


imaginara na vida. Começou a ter medo de ficar sozinha à noite no quarto de
Bonaria. Nas semanas seguintes, a ideia de agir para pôr fim à prisão de ambas se
fez cada vez mais hostil, e cada vez que o pensamento ressurgia parecia perder um
pouco os contornos do sacrilégio para assumir os mais esfumados da possibilidade.

Na casa dos Gentili, nas noites que passara conversando com Piergiorgio, Maria
compreendera que muitas coisas que acontecem não são imitação das coisas pensadas,
e por isso, desde que Bonaria Urrai entrara em coma, sabia muito bem que a matara
uma dezena de vezes sem que ninguém percebesse, nem o doutor, que no entanto vinha
regularmente verificar o estado daquela decomposição sem morte. Foi acreditando
que abria a porta para ele que Maria, numa manhã de junho, encontrou-se diante da
figura alta e robusta de Andría Bastiu.

- Olá - disse ele parado na porta. - Olá... - olhou-o, surpresa demais para se
lembrar de mostrar hostilidade.
- Posso entrar? - a pergunta lhe fez retomar as boas maneiras.

- Mas claro, desculpe. Entre, é que... Maria o fez entrar na cozinha, e Andría se
dirigiu ao lugar que ocupara durante anos, perto da lareira onde Moisés, agora
sem proibições, dormia placidamente. Parou ao lado do cão, mas não se sentou.

- Sente-se, vou fazer um café - e indicou a cadeira. - Deixe o café, não vim para
isso. - Então para quê? - fitou-o. O filho único dos Bastiu mal se moveu na
cadeira e então fez um gesto em direção ao corredor.

- Posso vê-la? Aquelas palavras Maria teve vontade de sorrir, uma espécie de
esgar amargo que lhe enrugou o rosto por um instante.

- Agora você quer vê-la...

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- Por favor, deixe. A raiva de Andría parecia ter se desvanecido, como se tivesse
despejado toda ela em Maria naquela noite antes do Natal, quando fora lhe pedir
para vir junto com ela. Com um suspiro cansado Maria concordou, e ele a acompanhou
devagar ao longo do corredor, medindo os passos atrás dela. O quarto estava na
penumbra, mesmo que agora Bonaria não se incomodasse mais com o claro ou com o
escuro. O corpo reduzido às suas funções elementares estava tão mirrado que a cama
parecia prestes a engoli-lo entre as cobertas. Andría se deteve um instante na
soleira, olhou Maria em busca de um sinal e depois se aproximou da cabeceira de
Bonaria. A moça não fez nada para impedi-lo, nem quando o viu dobrar-se sobre o
cadáver vivo. Andría não se sentou junto da cama, mas ajoelhou-se no tapete para
ficar mais perto, como que para vê-la melhor. Maria sentiu um impulso de sair para
deixá-los a sós, mas ele percebeu.

- Fique - disse, e nenhum dos dois achou estranho que fosse ele a dar a permissão.

Maria não respondeu e ficou de pé ao lado da porta, enquanto Andría contemplava em


silêncio o rosto emaciado da acabadora de Soreni. Viu-o abaixar os ombros até
colocar a cabeça na coberta, mas sem soltar o peso, como se temesse apertar o
corpo frágil que estava sob os lençóis, num gesto de ternura que revelou a Maria a
parte que julgara perdida nele. Permaneceram assim por tempo necessário e
indeterminado, ela de pé olhando, ele de joelhos respirando. Depois Andría se
levantou e roçou levemente a mão inerte da velha em coma. Maria abriu a porta, e
ambos saíram sem trocar uma palavra até a soleira de casa.

- Obrigado - disse Andría. - De nada... - surpreendeu-se Maria dizendo, desarmada


pelo tom manso que ele havia usado. - Se quiser vir, alguma outra vez...

Ele abanou a cabeça. - Não, não precisa, bastava-me vê-la assim. Mas, se você
precisar sair, espairecer... - interrompeu-se, com um

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embaraço que lhe cabia feito uma luva - ... enfim, você sabe onde me encontrar.

Ela sorriu para ele, e quando voltou para casa sentia o coração muito menos
pesado. Por uma misteriosa associação de sentido com a visita de Andría, o
pensamento que a devorava como um verme durante semanas rompera o limiar de sua
potencialidade e se transformara numa decisão clara. Entrando no quarto, encontrou
o travesseiro à espera numa poltrona ao lado da cama e o pegou; depois avançou,
sabendo que desta vez nenhum sentimento de culpa a deteria. Talvez tenha sido o
gesto de ternura que vira em Andría que a levou a abaixar a cabeça para o rosto de
Bonaria antes de agir, roçando sua face com os lábios com uma leveza que nunca
sentira desde seu retorno.

Há coisas que se sabem e basta, e as provas são apenas uma confirmação; foi com a
sombra nítida de uma intuição que Maria Listru soube que sua mãe Bonaria Urrai
estava morta.

Nos dias seguintes, toda a cidade veio ao velório da acabadora de Soreni, e nem os
inválidos de guerra faltaram ao enterro. Anna Teresa Listru se pavoneava o tempo
todo de uma dor que absolutamente não sentia, confiando na riqueza que caíra nas
mãos de Maria, aquela filha que agora julgava ter se transformado de seu pior erro
em seu melhor investimento. Já os Bastiu, sem exceção, prantearam o corpo com
autêntica dor, e o padre Pisu procurou penosamente nos mais profundos recessos de
sua pobre retórica as palavras para evitar dizer que aquela mulher, em sua
opinião, nem deveria ser sepultada em solo consagrado.

Como lhe ensinara Bonaria, Maria Listru Urrai vestiu um luto discreto. Passada a
missa do sétimo dia e depois que tudo fora providenciado conforme era necessário,
ela pegou Moisés e foi conversar com Andría. Em silêncio, caminharam juntos até o
vinhedo de Pran'e boe, até a mureta onde haviam encontrado o sortilégio que
deveria deter para sempre a divisa, depois de mudada. As pedras, de fato, não
tinham sofrido

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mais nenhuma mudança, porém não sobrara nada que ainda pudesse se considerar em
seu lugar. Andría se sentou em cima da mureta. Maria se acomodou no chão com o cão
ao lado, apoiou as costas na divisa que olhava para as vinhas e fechou os olhos
ao sol.

Conforme soprava o vento, o cheiro dos restolhos cortados lhes chegava intenso, e
no alto do céu ouviam-se os gritos dos pássaros enxergando o mar adiante das
colinas. Maria sentia nas costas as quinas desalinhadas das pedras, Andría sentia
sob as nádegas, mas nenhum dos dois parecia ter pressa para encontrar outra
posição mais confortável. Depois, num movimento ágil Maria se levantou e, dando
alguns passos, ofereceu o rosto à brisa que soprava do mar, acariciando os
vinhedos mais abaixo. O vento agitava sua saia escura numa dança incerta e ela o
inspirou, retendo o ar no peito. Andría a contemplava em silêncio, e então
perguntou a meia-voz:

- O que você vai fazer agora? - Aquilo que sei fazer: costurar. - Então fica
aqui, quer dizer... - E algum dia fui embora, Andrí? - disse ela, virando-se para
olhá-lo.

Em seu perfil delicado ele reconheceu algo pleno que lhe era familiar, e sorriu.
Juntos tal como tinham vindo, voltaram para casa lado a lado, sem se importar
minimamente em dar às línguas de Soreni a enésima ocasião para falar de nada.

***

Agradecimentos

A Giacomo Papi, Paola Gallo e Dalia Oggero, por terem acreditado desde o começo.

A todos os que me ajudaram a reler o livro através de seus olhos: Alberto Masala,
Fabrizio Elo Gagliarducci, Teo Nakkio Miavaldi, Arianna Giorgia Bonazzi, Riccardo
Nin Turrisi, Giulia Blasi, Roberta Scotto Galletta, Marco Volpe Schirra,
Alessandra Raggio, Tonina Lasiu, Valerio JDM Giardinelli, Marzia D'Amico, dom
Francesco Murana e Maso Notarianni.
A Alessandro Giammei, meu precioso catalisador. A dom Giuseppe Pani e dom Antioco
Ledda, pela consultoria litúrgica e antropológica.

A Marcello Fois, por ter me curado do medo de usar meu sardo.

A Giulio Angioni, por ter me obrigado a rever algumas certezas excessivas sobre a
acabadora.

A tia Peppina Fròri, por ter me explicado como se faz um affumentu.

A Luis Pellini, por ter me inspirado a figura de Nicola Bastiu.

A Benito Urgu, por ter me dado seu talismã, e à professora Lucia, por ter previsto
tudo antes de todos. A Patrizio Zurru e Daniele Pinna, da agência literária Kalama,
pelo modo admirável como desenvolveram o trabalho de mindguard enquanto eu
desenvolvia a história.

Quero também agradecer a todos os que me abriram suas casas para que eu pudesse
escrever em viagem, o que ocorreu com grande frequência: Silvia Fontana e Giorgio
Vannucci em Lari, Gennaro e Enrica Ferrara em Roma, Giordana Melú

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Bassani em Treviso, o restaurante Le Dune em San Giovanni di Sinis, Furriola


Demuru e a livraria Piazza Repubblica em Cagliari.

Um agradecimento especial a meu marido Manuel, pois nenhum outro resistiria a este
livro.

Este livro foi impresso pela Lis Gráfica para a Editora Objetiva em abril de
2012.

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