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UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

ANGELA PRYSTHON
Edição de texto: Schneider Carpeggiani _ Edição de arte: Jaíne Cintra

www.cesarea.com.br

Imagem da capa: Chico Lacerda/Divulgação

Recife, 2014
ANGELA PRYSTHON

UTOPIAS DA FRIVOLIDADE
ENSAIOS SOBRE CULTURA POP E CINEMA

1a edição

ORGANIZAÇÃO: ANDRÉ ANTÔNIO

FOTOS: CHICO LACERDA

recife

2014
SUMÁRIO
NOTA DO ORGANIZADOR - 4

PREFÁCIO, por Denilson Lopes - 7

NOSTALGIA

A imaginação nostálgica como utopia - 14


Martírio juvenil, rock e cinema - 18
Derivas do olhar - 28

MÚSICA

Sensibilidades culturais urbanas - 35


Afeto de transposições pós-coloniais - 47

FRIVOLIDADE

Odes anoréxicas e a vingança dos travestis - 52


Entretenimento como utopia - 56
Uma política do frívolo - 68

SIMULACRO

Baudrillard e os modos e modas da teoria - 78


A experiência da mediação - 81
Transformações da crítica diante da cibercinefilia - 86

CINEMA

O mundo de Satyajit Ray - 99


Figuras do dissenso em Joseph Losey - 103
Nostalgia e vanguarda nos vídeos musicais de Derek Jarman - 111

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS -116

POSFÁCIO, por Fábio Ramalho - 125

SOBRE A AUTORA E OS COLABORADORES - 131


NOTA DO ORGANIZADOR
Enquanto editava e organizava estes ensaios de Angela Prysthon, fui pes-
quisar imagens que correspondessem a cada um deles para ilustrar a ver-
são final do livro. Percebi, no meio do processo – colocando, por exemplo,
uma foto de Ian Curtis depois do ensaio sobre rock e martírio juvenil ou um
frame de 35 Doses de Rum depois do texto sobre o uso da música nos filmes
de Claire Denis – que estava insatisfeito com essa forma um tanto óbvia de
relacionar texto e imagem, e que o projeto gráfico do livro não estava cor-
respondendo à forma sofisticada com que o pensamento de Angela aborda
a questão da imagem. Entrei no facebook para dar uma pausa e me deparei
com várias fotografias postadas por Chico Lacerda, amigo (e orientando de
Angela) que havia acabado de voltar do doutorado sanduíche no Canadá.
Num estalo, pensei em como o olhar camp com o qual Chico, em suas fotos,
captura objetos, paisagens e pessoas dialoga com o olhar de Angela. Experi-
mentei, então, selecionar fotos de Chico – analógicas ou digitais, do período
em que morou no exterior ou anteriores a isso – para distribuí-las ao longo
do livro. Uma depois de cada ensaio, criando conexões um tanto arbitrárias
mas divertidas entre o tema de cada texto e sua fotografia respectiva. Nes-
sas imagens de cores saturadas e texturas nostálgicas, Chico pesquisa um
olhar pessoal que também pode ser visto nos filmes do coletivo Surto & Des-
lumbramento (para a maioria dos quais Chico fez a direção de fotografia).
Para mim, o diálogo entre texto e imagem foi extremamente feliz e, além de
tudo, prazeroso como a própria escrita de Angela (cuja elegância não fugirá
à percepção do leitor). Ou prazeroso como uma noite de conversa e vinho
na companhia dos dois, Angela e Chico (também convidei Denilson Lopes e
Fábio Ramalho para sentarem à mesa, escrevendo respectivamente o prefá-
cio e o posfácio).
Destacar a elegância dos textos de Angela é essencial, mas também não
posso deixar de mencionar outra das características que mais saltam aos
olhos, para mim, nos ensaios que seguem: a coragem. Porque, se as discus-
sões sobre arte e, principalmente sobre cinema, no Brasil, são via de regra
marcadas por um tom muito “pesado” de seriedade, o pensamento de An-
gela tem a coragem de não repetir essa fórmula confortável e estabelecida.
Contra o pensamento que ainda se pauta pela temporalidade teleológica de
certo modernismo, Angela propõe uma revisão nova e instigante da ideia
de nostalgia. Contra aqueles que impõem à arte um dever moral, heroico
e político auto-importante demais, ou àqueles que querem defender uma
suposta pureza transcendente do cinema contra a cultura pop, Angela tem
a coragem de tecer conexões inusitadas, como aquela entre o conceito de
utopia e a noção de frivolidade, que achei adequada para o título do livro.
Este livro é uma homenagem a Angela, a pesquisadora e professora que,
durante minha graduação, me apresentou os cinemas de Jean Cocteau, Max
Ophüls, Powell e Pressburger, Douglas Sirk, Jacques Demy, Ken Russel, De-
rek Jarman e Todd Haynes. Que me orientou no mestrado e com quem con-
tinuo a nutrir uma preciosa amizade.
Os textos foram divididos em quatro seções cujos temas, porém, permeiam
todos os escritos do livro: nostalgia, música, frivolidade, simulacro e cine-
ma. Primeiras versões de cada um destes ensaios foram publicados ante-
riormente: “Nostalgia e vanguarda nos vídeos musicais de Derek Jarman”.
In: Derek Jarman: cinema é liberdade. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções,
2014 p. 88-93; “Artifício e utopia: uma política do frívolo”. La Furia Umana,
v. 15, p. 196-206, 2013; “El mundo de Satyajit Ray”. La Furia Umana, v. 16, p.
189-191, 2013; “Intrusos, deslocados, estranhos: figuras do dissenso em Jo-
seph Losey”. La Furia Umana, v. 3, p. 181-189, 2013; “Música, afecto y trans-
posiciones postcoloniales”. La Furia Umana, v. 14, p. 1-4, 2012; “Transfor-
mações da crítica diante da cibercinefilia”. Celeuma, Maria Antonia, USP, São
Paulo, p. 1 - 12, 08 maio 2013; “Persistência da memória, derivas do olhar”.
La Furia Umana, v. 13, p. 1-7, 2012; “Entretenimento como utopia”. Alceu
(PUCRJ), v. 10, p. 126-136, 2010; “Cidades e música: Sensibilidades cultu-
rais urbanas”. In: Angela Prysthon; Paulo Cunha Filho. (Org.). Ecos urbanos:
a cidade e suas articulações midiáticas. 1ed. Porto Alegre: Sulina, 2008, v.
1, p. 185-199; “Martírio juvenil, música e nostalgia no cinema contemporâ-
neo”. In: Silvia Borelli; João Freire Filho. (Orgs.). Culturas juvenis no século
XXI. 1ed. São Paulo: EDUC, 2008, v. 1, p. 79-92; “Baudrillard: modos e modas
da teoria”. Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco,
Recife, p. 4 - 5, 10 abr. 2007; “Anoréxicas e travestis”. Continente Multicultu-
ral, Recife, , v. 43, p. 70 - 72, 01 jul. 2004; “A experiência da mediação”. Suple-
mento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco, Recife, p. 3 - 4,
10 ago. 2002.

Recife, setembro de 2014.


André Antônio
PREFÁCIO
ANGELA PRYSTHON 9

Angela,
Ao receber esse seu Utopias da Frivolidade fiquei contente de ler textos
seus que não conhecia ou não lembrava e reler outros que conhecia. Ven-
do-os reunidos pela sensibilidade de André Antônio me fez pensar que há
tempos que deveria ter feito uma reunião de seus trabalhos. Mas enfim tudo
tem seu tempo...
Começo a ler e fico com vontade ouvir The Cure. Há muito não ouço e os
fios se desdobram para além dos textos. Fios que me levam ao congresso da
Brazilian Studies Society Association (BRAZA), em Recife, em 2000, do qual
não me lembro de muita coisa, mas me lembro de nosso encontro. Então,
nós dois, havíamos começado a dar aulas na universidade há pouco tem-
po, você, na Universidade Federal de Pernambuco, e eu, na Universidade de
Brasília. Encontro anunciado, menos pela formação comum em literatura e
por trabalhar em escolas de comunicação, como vários colegas então, mas
sobretudo pela aproximação com os estudos culturais que para você (como
para mim) foi menos uma cartilha do que um espaço de liberdade para po-
der pensar e transitar pelos desafios do contemporâneo.
Nos quase quinze anos (me surpreendo!) que se seguiram, mantivemos
uma amizade, com os intervalos comuns dos que não moram na mesma ci-
dade. Amizade nutrida não necessariamente pelos objetos que estudávamos
e mais por um certo olhar. As referências iniciais vindas de um formação em
literatura e em estudos culturais resultaram em seu livro Cosmopolitismos
Periféricos (2002) e te levaram a um trânsito fecundo entre linguagens, pro-
dutos culturais e obras artísticas em que a quebra de hierarquias entre cul-
tura erudita, cultura popular e cultura massiva, defendida por Canclini, se
traduziu concretamente como pode ser visto neste seu livro. Sem populis-
mo paternalista nem perder um olhar estético, a cultura midiática foi ponto
de partida para uma política do pequeno, do frívolo.
Não há uma tese, o que não quer dizer que não haja diálogos entre os
textos de natureza dispersa aqui reunidos, desde os mais acadêmicos até
notas, fragmentos, intervenções, sobretudo ensaios que se pretendem me-
nos avaliar e mais ressaltar e acompanhar o que te fascina. São cartografias
mais do que análises, são sugestões e convites à leitura mais do que críticas
detalhadas.
Ao contrário dos diagnósticos que viam no cenário, uma vez chamado pós-
-moderno, um uso conservador do afeto, como os de Jameson e Grossberg,
sua aposta foi de outra ordem, mais acolhedora mas não menos crítica para
as possibilidades pelas quais a cultura midiática se transformou em coti-
10 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

diano, memória e subjetividade. Você parte da nostalgia, prima pobre da


melancolia na história das mentalidades, e com delicadeza, vislumbra pro-
messas de beleza que são também anseios de outros mundos onde talvez
menos pudéssemos esperá-los.
A partir de uma nostalgia dos pós-modernos anos 80 do século passado,
você resgata nossos fascínios juvenis pelos santos pop que morreram cedo;
fala talvez de uma geração, se é disso que se trata, talvez uma sensibilidade
de após a contracultura e as guerrilhas, perdida e encontrada nos labirin-
tos simulacrais e cinéfilos da imagem e do som. A música atravessa a leitu-
ra da imagem talvez por termos sido formados pelo videoclipe, seja talvez
por bandas que encenavam a si mesmos no palco e fora dele, como emer-
gem dos santos mortos por que você nos leva em peregrinação. Talvez te-
nha faltado falar daqueles que, por não terem morrido, sobrevivem por aí,
sem nenhuma aura, Morrissey, Robert Smith, pessoas de meia-idade. Mas
não se trata de um gosto mórbido pela morte, herdeira de uma sensibilida-
de punk gótica (ainda que ela lá esteja no fundo do baú. Quem quiser ver
lerá). Ela volta sem tragicidade. Esta hagiografia não revela nada, apenas
nos fala de nossa fragilidade e precariedade. Recife, Seattle, Manchester e
Londres se misturam nestas flâneries por imagens, tempos e canções. Se
há uma cibercinefilia como aponta no fim, há também um cosmopolitismo
midiático, não para fugir do lugar mas para pensar o local no mundo e o
mundo como um local.
De filmes sobre músicos e cenas musicais em cidades você não tem receio
em colocar ao lado deles os filmes de Guerín, nem de ver neste não o lugar
da seriedade do real como testemunho e denúncia, mas a beleza, sempre
criticada como formalismo despolitizante. Jacques Demy aparece aqui res-
gatado por um outro olhar que não seja o de uma figura menor da Nouvelle
Vague e do Modernismo cinematográfico. Sua leitura não tem medo da be-
leza, repito, como se toda beleza fosse padronização, escapismo, alienação,
disfarce. A busca da aparência se traduz mesmo numa crítica que não busca
a interpretação, a exegese e que longe de uma postura distanciada, encanta-
-se com este mundo de imagens, cenários, ruínas. Aqui estamos diante de
uma estética do artifício no contemporâneo, que passa pelo pop e resgata o
próprio simulacro, ultima encarnação da teatralidade gestada com o Barro-
co. Derek Jarman aparece menos como herdeiro do cinema experimental e
mais por seus diálogos com o videoclipe. Claire Denis é menos a herdeira do
cinema moderno, da imagem-tempo, de estética do fluxo ou qualquer outro
conceito-fetiche que insiste em ver o contemporâneo apenas nas suas con-
tinuidades com a alta modernidade. Os filmes de Denis são ouvidos como
os filmes sobre Ian Curtis, Jim Morrison, entre outros.
Se Oscar Wilde nos provocava, de que “só mesmo as pessoas superficiais
não julgam pelas aparências”, revendo o trabalho de Richard Dyer, ainda
pouco, infelizmente, conhecido entre nós, você nos lembra, através dele,
que entretenimento e utopia não se opõem. Utopia, essa palavra forte, aqui
aparece em registro menor, em pequenas subversões, que sugerem outros
lugares de ver, e porque não, outros modos de viver, frágeis que sejam, mas
modos de vida possíveis.
Livro de encontros inusitados entre o cinema clássico e o cinema moderno,
sobre cineastas meio intrusos na grande história do cinema, não revolucio-
nários nem transgressores, mas capazes de sutis gestos de subversão. Sa-
tyajit Ray e Joseph Losey, Claire Denis e Derek Jarman, Jacques Demy e José
Guerín, tão distintos e vistos de formas inusitadas. De Losey, ficamos, por
exemplo, com os cabelos verdes de Peter Frye em seu primeiro longa ou os
figurinos de Liz Taylor em Boom ou vemos os filmes de Ray pelos olhos de
Paul Auster. Os exemplos poderiam se multiplicar.
Trata-se de uma crítica pop mesmo quando fala de autores que poderiam
ser lidos a partir da modernidade cinematográfica ou cinéfila. Ela aponta
para um outro vocabulário estético marcado pela frivolidade, pelo entre-
tenimento, pelo prazer, pela banalidade, pela nostalgia, pela beleza e pelo
artifício.
Vejo que me alongo nessa que era apenas para ser uma breve carta, um bi-
lhete. Mas do que queria mesmo mais falar? Nosso encontro. Mas através
dele, do que escreve, de como estes textos me tocam e certamente a tantos
outros que se aventurarem por este trajeto tão próximo por suas referên-
cias e escolhas. Em meio a livros que se pretendam monumentais e grandes
construções, é importante haver espaço para este seu jardim de flores. Foi
com esta sensação que terminei de ler, Angela. Ainda há tempo para outros
encontros e haverá mais flores pelo caminho. “Charlotte Sometimes” está
tocando.

Denilson
Rio de Janeiro, 25 de agosto de 2014.
NOSTALGIA
14 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

A IMAGINAÇÃO NOSTÁLGICA COMO UTOPIA

“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Signifi-
ca apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Walter Benjamin, Teses sobre a história.

“O passado é um país estrangeiro,


lá eles fazem as coisas de modo diferente”. L. P. Hartley, O mensageiro.

Relíquias, vestígios, souvenires, rastros, mementos, arquivos... A cultura


contemporânea está marcada indelevelmente por sua relação com o pas-
sado, com a memória e de muitos modos diferentes com a nostalgia. Linda
Hutcheon explica que o termo tem uma origem médica:

Com suas raízes gregas – nostos, significando “retorno ao lar” e algos, significando “dor” – essa
palavra nos soa tão familiar que podemos esquecer que ela é relativamente nova. Foi cunhada
em 1688 por um estudante suíço de 19 anos em sua dissertação médica como uma sofisticada
(ou talvez pedante) forma de falar sobre um tipo literalmente mortal de saudade grave (de mer-
cenários suíços distantes de suas habitações montanhosas) (HUTCHEON, 1998).

Mas, como a nostalgia passa de enfermidade, de maladia, de patologia que


precisa ser curada, aliviada e dissipada a uma espécie de dominante estéti-
co e artístico do contemporâneo?
O conceito de nostalgia empregado aqui se relaciona com as teorias pós-mo-
dernas e com os debates mais recentes sobre o papel da estética nos Estudos
Culturais (BERUBÉ, 2005). E é inevitável, em se tratando do assunto nesses
termos, aceder a Fredric Jameson, que, no texto “A nostalgia pelo presente”
(1991, p. 279-296), fala sobre o processo pós-modernista de reificação do
passado através da recuperação de artefatos culturais, através de uma re-
criação metonímica. Trata-se da nostalgia pelo estilo, pelo modo com que
certas épocas foram eternizadas, mais do que pelo “passado em si”. Jameson,
tanto no texto citado quanto em trabalhos posteriores nos quais tratou so-
bre a utopia, ataca o pós-modernismo justamente no que ele considera uma
“nostalgia regressiva”, talvez no sentido em que a nostalgia geralmente se
refere a um anseio por “dias melhores” que vai paralisando o presente.
Jameson vê a insistência na nostalgia como uma maneira de demonstrar
uma falha do presente – ou uma historicidade esquizofrênica. Ele define o
pastiche como um sintoma da incapacidade do nosso tempo pensar histo-
ANGELA PRYSTHON 15

ricamente. Assim, o retorno quiçá ingênuo ou historicamente deformado


do pós-moderno ao passado e a nostalgia como reflexo da ordem social do
capitalismo tardio são, para Jameson, sinais de regressão, de esvaziamento
histórico. Mas é preciso ressaltar que as operações da nostalgia na cultura
pop vão além dessas suas encarnações descritas e discutidas a partir dos
conceitos de paródia e pastiche pós-modernos.
Linda Hutcheon (1998) aponta certa contradição entre o protesto que Ja-
meson faz pela “nostalgia regressiva” presente no cinema e na cultura pós-
-modernista como um todo e seu gosto nostálgico e idealizador pelo mundo
“pré-capitalismo tardio” e pelo modernismo estético. O que, em todo caso, é
bastante revelador dos paradoxos que constituem a cultura e a teoria con-
temporâneas. Hutcheon vai tentar dar conta da tensão entre a tendência
nostálgica do pós-modernismo e a ironia, que ela considera o aspecto mais
seminal do contemporâneo, através de sua causticidade e auto-reflexivida-
de. Seu argumento demonstra que grande parte da cultura atual de fato está
marcada por uma íntima associação com a nostalgia, mas que as expressões
pós-modernas teriam plena consciência dos riscos, armadilhas e atração
da nostalgia, e que buscam expô-los precisamente através da ironia. O que
me parece fundamental não apenas para compreender a proeminência da
nostalgia na cultura contemporânea (especialmente nos campos das artes
visuais, da música, do cinema e da moda) mas também para vislumbrar as
formas a partir das quais ela opera.
Um dos aspectos mais curiosos nesta “supremacia nostálgica” da arte e da
cultura é a absoluta irrelevância da ideia de autenticidade histórica quando
determinada forma ou fato do passado são evocados. Logicamente é algo
que podemos ligar a Jameson e seu raciocínio sobre a (a)historicidade pós-
-moderna, mas também é uma tendência indissociável da cultura jovem con-
temporânea (tanto na esfera da produção, como, principalmente, da recep-
ção). Os artefatos desta cultura e a sociabilidade sugerida pelo seu consumo
revelam não necessariamente uma memória direta dos acontecimentos re-
feridos ou a familiaridade com o repertório citado, o que importa é sobre-
tudo o afeto – seja por algo que foi efetivamente vivido ou por algo que es-
ses jovens gostariam de ter vivido. A nostalgia então funcionaria não tanto
como comentário sobre o passado, mas como reação criativa ao presente,
como articulação às vezes intensamente subversiva do sentimento de ina-
dequação ou deslocamento em relação ao aqui e ao agora.
Nesse sentido, podemos pensar essa articulação insistente da nostalgia
como uma espécie de projeção do passado para frente, como um paradoxo
16 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

espaço-temporal que condensa passado e futuro, memória e desejo, nos-


talgia e utopia. Ou seja, a nostalgia se configura como uma temporalidade
ambígua, como uma dimensão paralela da memória, como uma instância
alternativa dos arquivos. Podemos pensar, então, a predominância da ima-
ginação nostálgica – essa complexa conexão com o passado e com a história
(que ora se apresenta como historicidade esvaziada, ora como persistência
da memória subjetiva, ora como discreta revolta contra o passado) – como
complementar a outra operação relevante do contemporâneo: as narrativas
utópicas.

Utopia é aquilo que não é, aquilo que não está em lugar nenhum, ou, melhor dizendo, aquilo
que pertence exclusivamente à ordem da narrativa; utopia é a narração da utopia, um gênero
que se debate em forma permanente contra e a favor de suas próprias impossibilidades
(CORDIVIOLA, 2001, p. 5).

Em alguma medida, é como se a utopia, engendrando suas narrativas re-


dentoras (ou o seu avesso, a distopia, ao criar seus apocalipses) apontasse
o espaço futuro da nostalgia. Revelasse o sentido prospectivo da memória.
A tradicional leitura jamesoniana da nostalgia como sintoma regressivo
pode, portanto, ser invertida. E talvez esteja nessa inversão uma chave im-
portante para a compreensão da arte contemporânea: a nostalgia (pelo pas-
sado, por uma memória por vezes inventada, pelo cotidiano que se perdeu
em meio ao turbilhão das imagens midiáticas, pela delicadeza das pequenas
lembranças) também pode ser diagnosticada como um anseio utópico. De
fato, as centelhas da imaginação nostálgica podem ser a marca de algo pro-
fundamente transgressor e penetrante: a capacidade de mobilizar o passado
crítica e afetivamente como espaço de resistência cultural. Através de ima-
gens que relampejam irreversível e velozmente, como mostrou Benjamin
nas suas teses sobre a história, certas articulações da nostalgia terminam
por desvelar promessas de beleza.
18 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

MARTÍRIO JUVENIL, ROCK E CINEMA

Não há dúvidas em relação à proeminência juvenil em todas as esferas da


indústria cultural. A cultura contemporânea parece ser feita sob medida
para a juventude, ser consumida primordialmente por jovens e fazer com
que o resto da humanidade busque quase que desesperadamente os estilos
de vida e estéticas associados a eles. A juventude progressiva e vertiginosa-
mente configurando-se como “um locus privilegiado para conjecturas, ide-
alizações, teorizações e debates públicos acerca de mudanças na economia,
na produção e no consumo cultural, nos costumes e nas relações sociais”
(FREIRE FILHO, 2007, p. 29). Possivelmente em nenhum outro lugar essa
centralidade juvenil é maior que no cinema e na música popular. Dos “dri-
ve-in flicks” dos anos 50 aos “últimos dias” do Kurt Cobain fílmico de Gus
Van Sant (2005), de A Hard Day’s Night (Richard Lester, 1964) a Almost Fa-
mous (Cameron Crowe, 2000), de Tommy (Ken Russell, 1975) a Moulin Rou-
ge (Baz Luhrmann, 2001), de Rock around the clock (Fred F. Sears, 1956)
a That Thing You Do! (Tom Hanks, 1996), entre a energia adolescente e a
nostalgia, entre o mercado e a história social, a associação entre juventude,
música pop, rock e cinema é imediata. Nesse sentido, parece-nos relevante
observar justamente a convergência entre esses dois territórios a partir de
uma figura arquetípica da juventude na cultura contemporânea: o mártir
pop. O objetivo é compreender como é constituída a hagiografia midiática,
como são engendradas novas formas e novos relatos de “santidade”, de be-
atitude, de carisma mítico, através das representações cinematográficas da
vida de músicos de rock que morreram no auge da juventude. Pretendemos
nos concentrar em como, a partir da presença da imaginação nostálgica na
cultura contemporânea – funcionando, como vimos, como uma espécie de
dominante em quase todas as esferas da cultura midiática – são articuladas
imagens de martírio e autodestruição juvenil, são construídas narrativas de
beatitude pop.
Antes de percorrer mais especificamente os caminhos rumo à santidade
pop, faz-se necessário enumerar rapidamente o que podemos chamar de
“categorias” da relação entre rock e cinema. O uso mais óbvio é sem dúvi-
da a inclusão de faixas musicais pré-existentes nas trilhas sonoras ou mes-
mo composições originais dos filmes. Há um interesse evidente do mercado
fonográfico especialmente através do aproveitamento comercial da trilha.
Também podemos considerar como uma recorrência na relação entre rock
ANGELA PRYSTHON 19

e cinema a presença de músicos em filmes, como atores – seja em papéis


centrais ou secundários (de Elvis Presley a Britney Spears, de Mick Jagger
a Eminem, de David Bowie a Madonna). Podemos apresentar como terceira
categoria nessa nossa breve classificação das formas através das quais se dá
a ligação entre música e filme o musical, gênero no qual canções interpreta-
das pelos personagens pontuam a narrativa. As canções podem se referir a
eventos do roteiro ou servir à caracterização de personagens. Poderíamos
também chamar de musicais o uso mais corrente do rock em filme, ou seja,
o documentário ou mesmo o simples registro de concertos, ou mesmo mes-
clas de coletâneas de videoclipes com performances ao vivo. É importante
ressaltar que, em todos os subgêneros enumerados acima, há uma evidente
prevalência de imagens de juventude – seja através dos personagens que
povoam as narrativas, as bandas e artistas que fazem as músicas dos filmes
e mesmo o público-alvo desses produtos midiáticos.
Entretanto, para entender melhor o mecanismo da criação dos “santos” da
cultura pop e o funcionamento da imaginação nostálgica, o nosso olhar terá
que recair sobre a biografia de músicos (que pode ser ficcional ou baseada
em pessoas reais), especialmente aqueles marcados pela tragédia ou pela
morte precoce. Quase todas as cinebiografias do rock têm em comum tan-
to a dimensão trágica das vidas de jovens músicos, como uma perspectiva
nostálgica em relação a eles, a época na qual viveram, e seus estilos de vida.
A nostalgia vai se revelando fundamental no estabelecimento de uma rela-
ção afetiva entre público e biografado – seja um personagem real ou fictício.
Nesses filmes, como também nas outras categorias mencionadas acima, a
imaginação nostálgica é precisamente a operação temporal que prolonga o
passado ou o molda de modo peculiar.

O filme é um “presente contínuo” (diferentemente do fragmento fotográfico que pára o tempo),


mas é também uma “máquina do tempo”, um transportador de mundos outrora vividos para o
presente, uma qualidade que nos conecta ao passado através do que Barthes
chama de “película da luz” (DIKA, 2003, p. 7).

Podemos traçar o início das biografias nos anos 70, com o filme sobre Buddy
Holly, The Buddy Holly Story (Steve Rash, 1978). Nele, não apenas os anos
50 são evocados com precisão, como também é sublinhada a noção de que
o rock’n’roll funcionava nos seus primórdios como uma ameaça à socieda-
de tradicional. E se nesse filme, ao contrário da maioria das cinebiografias
sobre mortes precoces de músicos, o protagonista parece de certa maneira
discreto e centrado, ainda assim são reforçadas as imagens de subversão,
20 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

insulto e anti-heroísmo juvenil que marcam o gênero. É provável, inclusive,


que essa relativa placidez de Buddy Holly acentue as conotações religiosas
da fatalidade.
É a partir da segunda metade dos anos 80, porém, que esse gênero foi se
consolidando, especialmente a partir de La Bamba (Luis Valdez, 1987), so-
bre Ritchie Valens, músico americano de origem hispânica, que morreu aos
dezessete anos no mesmo acidente aéreo que Buddy Holly. É possível in-
terpretar Valens como outro predestinado da hagiografia do rock e ser um
adolescente contribui de modo significativo para a narrativa de santidade
implicada no filme.
Sid and Nancy (Alex Cox, 1986), sobre o baixista do grupo punk Sex Pistols
Sid Vicious e sua namorada Nancy Spungen, talvez seja um dos títulos mais
relevantes para a constituição do panteão de mártires pop. Ao contrário de
Holly e Valens, o martírio de Vicious é auto-infligido e uma enorme carga de
violência, feiura e destruição pontuam o relato da vida do jovem de dezeno-
ve anos. A crítica não recebeu muito bem a tentativa de registro do punk,
como se menos de dez anos fosse um período insuficiente para dar conta do
fenômeno. Jon Savage, porém, reavaliou o filme na época do seu lançamen-
to em DVD pela Criterion:

Todo mundo torceu o nariz. Bem, eu o fiz, e deveria ter me dado conta antes. Certamente Sid
and Nancy melhorou com o tempo, ou talvez seja apenas agora que podemos tirar fora os pro-
blemas do gênero cinebiografia para destilar a essência do que está sendo oferecido aqui: um
encapsulamento do caos jubiloso que o Punk britânico revelou; uma investigação sobre como
humor negro se transforma em negra autodestruição; uma história de amor no mais velho dos
sentidos – tão arquetípica e desgraçada como Romeu e Julieta (SAVAGE).

Pode-se ver, portanto, em Sid and Nancy, uma espécie de calvário inverti-
do, uma versão pós-moderna de santidade, tendo o niilismo como dogma, a
sarjeta como cenário e nenhum tipo de redenção.
O grande sucesso rock-biográfico viria acontecer em 1991 com o filme de
Oliver Stone sobre Jim Morrison e sua banda, The Doors. O filme foi relativa-
mente bem recebido pela crítica e teve boa bilheteria, sendo uma das con-
sequências mais importantes do seu sucesso o impulso nas vendas tanto da
trilha sonora, como do trabalho original do grupo The Doors. Portanto, um
dos motivos da relevância das biografias no mundo do rock talvez seja pre-
cisamente a capacidade de motivar revivals e reanimar as vendas de grupos
e músicos um tanto esquecidos. Mas o caso de The Doors também chama a
atenção para as proporções religiosas que o revival do mito Jim Morrison al-
ANGELA PRYSTHON 21

cançou, aumentando enormemente as visitas ao túmulo do músico no Père


Lachaise em Paris. Em 1994 foi feito Backbeat (Iain Softley) um filme sobre
Stuart Sutcliffe, baixista dos Beatles até sua morte por paralisia cerebral em
1962, que vai se aproveitar da aura do grupo de Liverpool para enfatizar o
tom santimonial do casal protagonista (Sutcliffe e sua namorada, a fotógra-
fa Astrid Kirchherr).
É evidente que a “santidade” associada ao rock vai ser uma transgressão,
uma subversão do conceito. Nela, o universo boêmio, o padecimento, o sa-
crifício e a fatalidade são os ingredientes fundamentais. Nesse espírito, po-
deríamos incluir a imensa maioria dos filmes biográficos. No Brasil filma-
ram a biografia de Cazuza, vocalista do Barão Vermelho até 1985 e morto
por Aids em 1990, em Cazuza – O tempo não pára (Walter Carvalho e San-
dra Werneck, 2004), na qual é possível identificar na fisionomia emaciada
do ator que interpreta Cazuza as marcas físicas da paixão religiosa. Além da
transformação física e dos acidentes trágicos, o transe, o êxtase, a revelação
são elementos comuns entre a hagiografia tradicional e a vida dos jovens
músicos predestinados. Stoned (Stephen Wooley), sobre Brian Jones, o gui-
tarrista dos Rolling Stones morto em 1969, como The Doors, é exatamente
o relato dos caminhos do transe pelos excessos das drogas, do álcool e do
sexo. Além das biografias propriamente ditas, filmes “inspirados” em mú-
sicos reais, como Velvet Goldmine (Todd Haynes, 1998) inspirado em David
Bowie, Marc Bolan, Iggy Pop e na cena do glam rock dos anos 70, ou Last
Days- Últimos dias (Gus Van Sant, 2005), registro ficcional do final da vida
de Kurt Cobain, do Nirvana, também lidam com esse universo semi-religio-
so de maneira contundente.
Contudo, para esclarecer ainda mais a noção de santidade rock’n’roll, de
beatitude pop, parece mais apropriado enfocar uma figura mais arquetípi-
ca, mais delineada nas suas características. Por isso, falar mais detidamente
sobre os filmes 24 Hour Party People (Michael Winterbottom, 2002) e Con-
trol (Anton Corbjin, 2007) pode nos ajudar não apenas a compreender me-
lhor os mecanismos da beatitude contemporânea e os jovens santos (pós)
modernos, como também associá-los à imaginação nostálgica, à obsessão
memorialista da cultura contemporânea e ver como esses elementos jun-
tos são dispostos no sistema da cultura midiática e do entretenimento. Não
apenas porque ambos têm mais ou menos o mesmo plot, a mesma locali-
zação geográfica e os mesmos personagens (embora o primeiro seja evi-
dentemente mais abrangente no seu escopo), mas sobretudo pela sorte de
questionamentos que a comparação entre eles torna patente.
22 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

Ambos os filmes concernem a cidade de Manchester, na Inglaterra, a partir


do final da década de 1970, quando surgiu uma cena musical vibrante na
esteira do punk. Vários grupos – em certa altura já classificados como pós-
-punk –, lugares e indivíduos podem ser mencionados como parte desse pe-
ríodo histórico tão especial para a mitologia pop: Buzzcocks, A certain ratio,
Durutti Column, Cabaret Voltaire, Joy Division, New Order, Happy Mondays,
Factory Records (gravadora), Haçienda (clube noturno), Tony Wilson (jor-
nalista e empresário), Rob Gretton (empresário de bandas), Peter Saville
(designer gráfico), e, evidentemente, Ian Curtis, vocalista do grupo Joy Divi-
sion, que se suicidou aos 23 anos em maio de 1980 às vésperas da primeira
turnê do grupo nos Estados Unidos. O filme de 2002 faz aparecer, mesmo
que de modo muito rápido ou tangencial, esse conjunto de referências (e
muitos outros) numa gama muito diversificada de sons e imagens, entre
reencenações, imagens documentais e alguns delírios. Já o mais recente
realmente se concentra em Curtis, e até mesmo os outros membros do Joy
Division estão num plano coadjuvante.
24 HPP pode ser incluído nas cinebiografias, embora peculiar, já que ele
perfaz a trajetória coletiva de jovens músicos e produtores ligados à Fac-
tory Records, da cena de Manchester, do final dos anos 70 aos anos 90 e se
concentra especialmente na figura de Tony Wilson, o empresário e jornalis-
ta que impulsionou a “movida mancuniana”. Em meados dos 70, Wilson era
um repórter de TV local com o que ele chamava “excesso de orgulho cívico”
e grandes planos para a cultura do noroeste da Inglaterra, mas que frequen-
temente tinha que se contentar com reportagens sobre voos de asa delta,
elefantes e anões. Winterbottom opta por entrecruzar cenas documentais
de shows de épocas distintas com as performances musicais dos atores du-
blando as bandas reais, reencenações das matérias jornalísticas de Wilson
com cenas mais intimistas. O Wilson “verdadeiro” inclusive aparece como
um diretor de TV que censura o Wilson “fílmico”.
Ele despertou para o punk após o lendário concerto do Sex Pistols em Man-
chester em 1976, evento, aliás, que funciona como uma espécie de mito fun-
dacional (BOTTÀ, 2006, p. 123) sobre a cena mancuniana:

… precisamos voltar ao Lesser Free Trade Hall no verão de 1976 e àperformance do Electric
Circus em 9 de dezembro, na qual Curtis conheceu Hook e Sumner. Curtis era obcecado com Bo-
wie, Lou Reed e Iggy Pop, mas sentia que os Sex Pistols representavam o comum se tornando
incomum, e que ele tinha todo o direito, dada a oportunidade, de figurar ao lado dos seus heróis
pessoais (INGLIS, 2006, p. 104).
ANGELA PRYSTHON 23

No show, que é encenado nos dois filmes, além da atração principal, estavam
presentes na plateia vários personagens da música britânica, dos Buzzcocks
a Mick Hucknall (Simply Red), de Morrissey (The Smiths) aos membros do
Joy Division. Em 24 HPP, o protagonista vai comentar diretamente sobre a
cena ressaltando o seu caráter histórico, operando como um coro (enfatica-
mente anárquico) que vaticina sobre os destinos dos demais personagens
em cena:

Wilson fica sério (mesmo que nós não) quando compara a minúscula audiência no concerto
dos Sex Pistols aos trezes à mesa na Última Ceia, e proclama que o compositor punk Ian Curtis é
o maior poeta desde Yeats, acrescentando que Yeats era o maior poeta desde Dante. O filme evi-
ta qualquer tipo de moralismo embora ele pareça acreditar na boa fé. Embora evite o sentimen-
talismo, ele pode ser sutilmente afetivo (FRENCH, 2002).

Ao misturar atores e os biografados reais em cena, ao inserir cenas docu-


mentais e ao adotar um tom irreverente, mesmo tratando de temas deli-
cados como adultério e suicídio, e iconoclasta, mesmo em relação a mitos
como Ian Curtis, 24 HPP faz-nos interrogar sobre o próprio estatuto da rea-
lidade, sobre as próprias noções de mito na cultura pop e, sobretudo, sobre
as demandas e os anseios cosmopolitas de jovens de uma cidade periférica
pós-industrial do norte da Europa. É exatamente este registro (estranho,
dissonante, disfuncional) que faz com que a nostalgia nesse filme seja abso-
lutamente inseparável da ironia. Nessa direção, a cena do enforcamento de
Ian Curtis é especialmente emblemática: Curtis assiste a Stroszek de Herzog
na TV, fuma um cigarro, corte para cenas do filme no filme, e finalmente para
as pernas de Curtis balançando. Há algo de brutal, de excessivamente cru,
de insensível até, nesta representação do que pode ter acontecido a Curtis
no momento do seu suicídio, mas a sua força reside menos no que ela pode
ter de sensacionalista do que na reveladora banalidade e casualidade atra-
vés da qual a cena se desenvolve.
Por outro lado, nas cenas subsequentes do funeral, vai ser reenfatizada a
função mística da figura de Ian Curtis, inclusive de maneira consciente no
diálogo entre Wilson e o personagem jornalista (supostamente Paul Mor-
ley) – quando Wilson sugere um paralelo entre Curtis e Che Guevara. Nesse
momento ficam evidentes tanto a imagem de Curtis como santo pop, como
os desdobramentos futuros que o culto ao Joy Division teriam.
O mais desconcertante é que o efeito da conjunção entre nostalgia e ironia
em nenhum momento deriva para o pastiche ou para uma arrogância dis-
tanciada. Como sublinha French, somos afetados sutilmente. Não se trata
24 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

de nostalgia regressiva no sentido jamesoniano. De fato, é como se a ironia,


ao contrário de anular ou neutralizar o olhar nostálgico para os persona-
gens, cenários e fatos, sublinhasse e afirmasse o que há de mais penetrante
e transgressor na nostalgia: a capacidade de mobilizar o passado crítica e
afetivamente (e, mormente, a música desse passado) como espaço de resis-
tência cultural. Mais além, essa profusão de referências (e auto-referências),
esse apelo ao repertório da cultura pop e muitas vezes às próprias teorias
da cultura pop nos revela um gênero híbrido entre fantasia, crítica e memó-
ria social. Tara Brabazon vê o filme como um ensaio avançado de Estudos
Culturais:

Não um Cultural Studies For Beginners, o roteiro costura semiótica com pós-modernismo, situa-
cionismo com neoliberalismo, para expor uma explosão (pós) industrial de ideias e insights (…)
De maneira mais significativa, o filme é baseado e fundado nos trabalhos
da memória popular (2005, p. 139).

Em contraste, Control pode ser definido como uma biografia convencio-


nal. Anton Corbijn, talvez mais conhecido como fotógrafo de bandas de rock,
filmou em preto e branco uma narrativa de simplicidade linear, baseada
principalmente no livro da viúva de Ian Curtis (algo, aliás, que determinou
um ponto de vista feminino para o filme). Como foi dito anteriormente, o
foco, embora o filme aborde perifericamente grande parte dos personagens
também presentes em 24 HPP, é em Curtis e na sua vida privada. Começa
mostrando o adolescente de classe operária nos feios conjuntos habitacio-
nais tipicamente britânicos em Macclesfield, cidadezinha nas proximidades
de Manchester, fascinado pela literatura de J.G. Ballard e William Burrou-
ghs, obcecado por Bowie e The Velvet Underground, entediado nas aulas
de química e entorpecido pela vida provinciana. Aos dezenove anos casa-se
com a namorada, começa a trabalhar como assistente social numa agência
de empregos e entra no Warsaw, primeira “encarnação” da banda que iria
pouco tempo depois tornar-se Joy Division. Dos primeiros shows às apari-
ções na televisão, da assinatura do contrato com a Factory com sangue do
próprio Tony Wilson (outro episódio mítico compartilhado com 24 HPP) ao
primeiro ataque epilético, do surgimento da jornalista belga Annik Honoré
ao suicídio, os episódios da vida de Curtis são apresentados em ordem cro-
nológica e de modo direto.
Pode-se dizer que Control é quase que totalmente calcado nas convenções
(tanto das cinebiografias musicais como da mitologia do Joy Division, como
ANGELA PRYSTHON 25

é possível depreender dos vários registros biográficos, teóricos e audiovi-


suais sobre a banda (OTT, 2003; INGLIS, 2006; BIBBY, 2007) e em alguns
momentos quase brega ao optar por clichês mais óbvios (“Love will tear us
apart” tocando após uma briga de Ian e Deborah Curtis; “Atmosphere” na
cena final do crematório, por exemplo). Há, porém, vários elementos que
impedem que o retorno ao passado se transforme em pastiche e que se ins-
tale uma nostalgia regressiva. Antes de tudo pela sutileza e humanidade da
caracterização do protagonista. O que Corbijn apresenta é o retrato de um
garoto depressivo, embora extremamente criativo, que foi tomado por um
casamento precoce e por uma doença horrível. Sem desconsiderar o ima-
ginário da subcultura gótica que foi sendo associado ao grupo e seus fãs,
Corbijn funda seu relato num pathos que pouco tem a ver com as quimeras,
excessos e ruína de rock stars arquetípicos; ele realça a pureza, a excep-
cionalidade santificada do seu jovem protagonista. O filme vai desenhando
uma profunda afinidade com o tema central da poética do Joy Division, que
é definida pela melancolia e composta de “ausências”: “É através de ausên-
cias que uma sensação de terror, niilismo e mistério fúnebre é transmitida,
uma sensibilidade que muitas bandas góticas tardias emularam” (BIBBY,
2007, p. 235) .
A singeleza, ou aparente banalidade, de Control decorre de um parado-
xal sentido de reverência no qual há um respeito quiçá excessivo em rela-
ção ao universo do Joy Division (até porque Corbijn foi um dos arquitetos
desse universo ao realizar algumas das fotografias mais icônicas da banda
e de Curtis) e simultaneamente uma certa relutância em mitificar Curtis
(mesmo ao frisar sua beatitude, sua santidade). Na primeira metade do fil-
me, uma sequência ilustra muito precisamente essa característica: ao som
de “No Love Lost”, Curtis anda na rua, a câmera o acompanha de trás para
mostrar a palavra “HATE” (ódio) pintada na sua jaqueta de couro. Ele se en-
caminha a uma espécie de agência de empregos pública, e ao contrário das
expectativas suscitadas, na cena seguinte o espectador descobre que Curtis
é um funcionário, uma espécie de assistente social que ajuda outros jovens
de classe baixa a encontrar emprego. De fato, há uma oscilação entre o re-
pertório institucionalizado do Joy Division e da hagiografia pop curtisiana
(cinzas sombrios, longos sobretudos, paisagens pós-industriais, decadência
urbana) e a candura do relato desse jovem (subúrbios ingleses, caixinhas de
recortes dos ídolos, cadernos de poesias, o namoro ingênuo, a perplexida-
de e o medo diante da epilepsia). O que vai definindo nuances inesperadas
para o conjunto final e contribui para a textura híbrida do filme – que mes-
26 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

cla a estética gótica dos vídeos da década de 80 (que pode ser exemplificada
no vídeo que Corbjin realizou em 1988 para “Atmosphere”) com o tom dos
kitchen sink drama e angry young men do cinema inglês dos anos 50 e 60.
Entre a nostalgia irônica de um e a nostalgia melancólica de outro, entre o
projeto crítico (coletivo e anárquico) de 24 HPP e a trajetória suicida (indivi-
dual e lírica) de Control há evidentemente muitas diferenças, porém ambos
compartilham o afeto e admiração por sons, sujeitos, espaços e imagens da
cultura popular britânica recente. Curtis (e os demais personagens que se
repetem nos dois filmes), Manchester, seus subúrbios e sua música são os
fios de dois tecidos históricos distintos. Em ambos, contudo, são dispostos e
articulados os sinais e os vestígios de um relevante episódio da hagiografia
pós-moderna não apenas como peças de um relicário esvaziado de senti-
do, mas como centelhas que dão uma dimensão de profundidade à própria
ideia de memória.
28 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

DERIVAS DO OLHAR

De que matéria é feita a memória? Uma parte importante da filmografia de


José Luis Guerín parece fazer e tentar responder a essa pergunta. Uma das
possíveis respostas que os filmes oferecem é que a memória é feita de ima-
gens e da incessante combinação entre elas. Temos corpos, objetos, luga-
res e sombras se revelando para o olhar melancólico e errante do cineasta,
construindo uma ideia de memória que pode estar vinculada ao tempo de
um personagem, de uma ruína, de um objeto, de um bairro, de toda uma ci-
dade, mas, muito mais fundamentalmente estará ligada à memória da arte,
da imagem, do cinema.
Nesse sentido, Tren de sombras (1997) talvez seja o mais emblemático e
experimental dos seus filmes. Uma espécie de ilusão fantasmagórica, Tren
de sombras percorre a memória do cinema através da invenção e da explo-
ração das imagens do advogado fictício Fleury, fotógrafo e cineasta amador
dos primórdios do cinema. Diferentemente do que se poderia supor tratan-
do-se de um tema como este, para Guerín, o passado não é um exotismo sen-
sacionalista, não se está diante de uma nostalgia inócua. Pois, se o filme se
nos apresenta quase como um ensaio sobre o tempo, um debruçar-se sobre
o passado, surpreende-nos a ênfase na materialidade das suas fantasma-
gorias. Ali, importa muito menos a veracidade desta ou daquela cena, não
faz diferença tratar-se de uma memória inventada: para Guerín o crucial é
a imagem em si, afinal é dela que brota a memória.
Alguns viram na obsessiva investigação dos arquivos pelo cineasta/narra-
dor, na incessante pesquisa sobre os filmes de família caseiros, nos fragmen-
tos da vida e das imagens de Fleury, uma proximidade com Thomas, de Blow
Up. Sim, essa proximidade está lá, no torce e retorce do falso found footage,
no desgaste, no esgarçamento que vai ser feito nessas imagens. Provavelmen-
te, porém, há mais semelhanças com o estranho e dedicado colecionador de
L’hypothèse du tableau volé, de Raoul Ruiz. Pois, menos blasé que o fotógrafo
de Antonioni e mais detetive obstinado como o personagem de Ruiz, o cine-
asta/narrador vai buscando a origem mesma das imagens, ele vai construin-
do e se encantando com sua delicada teia de combinações, vai desfazendo e
refazendo narrativas. E obviamente não lhe interessa apenas a origem dos
fragmentos de Fleury, ou de todos os fantasmas evocados naquelas cenas fa-
miliares em Thuit, nas histórias pessoais daqueles rolos de vida ordinária,
mas a gênese do cinema, a própria história do cinema silencioso.
ANGELA PRYSTHON 29

História do cinema e da arte que também está presente na quiçá mais


conhecida película de Guerín, En la ciudad de Sylvia (2007), com longas to-
madas de um ponto fixo, repetindo e reformulando os planos dos Lumière,
evocando travelogues; com a busca da mulher ideal (Madeleine hitchcocke-
ana, Beatriz dantesca), com ecos de Bresson e pinceladas de Manet... Assim
como seus outros filmes, este nos demanda uma dedicação contemplativa
para que se possa deixar levar pela leve hipocondria do coração, pela nos-
talgia melancólica e pelas várias derivas experimentadas pelo personagem
de Xavier Lafite. Deriva mnemônica, simultaneamente auxiliada e enevo-
ada por objetos inconsistentes (um mapa improvisado rabiscado em um
sous-verre, uma caixa de fósforos do bar Les aviateurs), rostos na multidão,
becos e ruelas indistintos. Ele lembra, esquece, volta a lembrar. Deriva dos
ouvidos, é bom ressaltar também, já que o filme amplifica, detalha, desenha
a cidade de Estrasburgo às vezes de modo mais sonoro que visual: cada ru-
ído, cada sussurro, cada rajada de vento, cada passo, cada canção compõe
cuidadosamente uma peça da tessitura urbana.
Porém En la ciudad de Sylvia trata, sobretudo, da deriva do olhar – um
olhar eminentemente masculino, diga-se de passagem (o olhar do perso-
nagem de Lafite, o olhar do espectador como que seguindo o olhar desse
protagonista hesitante, deixando-se perder pelas ruas, graffiti e pescoços
femininos, os olhares que se encontram e se desviam por trilhos, ângulos,
janelas e diagonais): “olhar especula para todos lados”, como dizia Mário de
Andrade (1980). Como percebeu agudamente Deleuze sobre o neorrealis-
mo, o personagem torna-se uma espécie de espectador.

Por mais que se mexa, corra, agite, a situação em que está extravasa, de todos os lados, suas ca-
pacidades motoras, e lhe faz ver e ouvir o que não é mais passível, em princípio, de uma respos-
ta ou ação. Ele registra, mais que reage. Está entregue a uma visão, perseguido por ela ou perse-
guindo-a, mais que engajado em uma ação (DELEUZE, 1990, p. 11).

Por isso, resulta ainda mais elucidativo ver En la ciudad de Sylvia acompa-
nhado de Algunas fotos em la ciudad de Sylvia, coleção de stills mudos que
podemos considerar como uma espécie de esboço para o filme, na qual fica
bastante evidente essa entrega à imagem do protagonista.
O filme nos impele, assim, a olhar para o mundo (e para as mulheres,
pois nesse universo o corpo masculino é quase irrelevante) languidamente,
como que empreendendo uma cruzada contra a rapidez nervosa do presen-
te, como que se opondo enfaticamente a grande parte do cinema mainstream
contemporâneo, esta parte que não nos deixa tempo para a contemplação
30 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

com sua montagem frenética, seu frenesi narrativo, sua urgência discursi-
va. Apenas essa languidez poderia dar conta do seu incurável e contagioso
romantismo, somente a delicadeza contemplativa desse olhar é capaz de
revelar os preciosos, raros, frágeis e breves instantes de beleza do banal, do
ordinário.
Sylvia e outros filmes de Guerín reafirmam a vocação viajante do cinema
e a ideia de trânsito sugerida pelo próprio ato de filmar, manifestam o dese-
jo benjaminiano de flanêrie (Cf. BENJAMIN, 1989). “Ele” faz botânica no as-
falto registrando, como os viajantes naturalistas do século XVII guardavam
cuidadosamente flores e folhas nos seus herbários, os rostos e gestos das
moças dos cafés e das paradas de bonde no seu caderno de desenhos. Os
flâneurs de Guerín perambulam pela cidade com os olhos atentos ao deta-
lhe, especialmente aos detalhes dos corpos humanos. A cidade (como uma
espécie de entidade universal, já que Guerín parece afirmar desde sempre
uma abolição de qualquer localismo), então, se abre como um baú, uma po-
tência itinerante de memorabilia, de souvenirs, de ruínas e vestígios para os
colecionadores de aparições, de arrebatamentos, de amores à última vista.
Não é somente na ficção – embora a distinção não nos pareça de grande
relevância na sua obra – que Guerín apresenta suas coleções de aparições e
arrebatamentos que se encontram no cinema, nas memórias e nas cidades.
Os documentários, naturalmente, estabelecem de modo mais sistemático os
elos com a materialidade urbana. En construcción (2001) (que junto com Los
motivos de Berta (1983) foram os únicos de seus longas realizados na Espa-
nha) mostra exatamente as transformações pelas quais passou a região do
Raval, bairro no centro de Barcelona, conhecido popularmente como Barri
Xino. Seu subtítulo, “Cosas vistas y oídas durante la construcción de un nue-
vo inmueble en ‘el Chino’, un barrio popular de Barcelona que “nace y mue-
re con el siglo”, já fornece indicações de possivelmente seja seu filme mais
“sociológico”, mas o seu modo de composição tem pouco de programático
ou convencionalmente político: embora seja também um comentário críti-
co sobre a gentrificação de Barcelona, sua principal preocupação continua
sendo o cinema, dizendo melhor, a materialidade imagética que o cinema
confere ao mundo, assim que seu modo de empreender essa crítica vai ser
permeado por suas referências cinematográficas de sempre: Lumière, Hi-
tchcock, Hawks (Land of the Pharaohs aparecendo como uma citação direta
na tela da TV de um dos moradores dos velhos sobrados do bairro), entre
vários outros são novamente convocados para ajudar a compor os quadros
que dão forma à história de resistência que conta En construcción, como são
ANGELA PRYSTHON 31

também os trechos de filmes antigos que abrem a película, particularmente


a bela sequencia do marinheiro cambaleante pelas ruas do Raval.
Inclusive pela proximidade cronológica, a comparação entre En construc-
ción e a trilogia de Fontainhas, especialmente No quarto da Vanda (2000),
do português Pedro Costa, parece incontornável, já que os filmes lidam com
experiências urbanas liminares, tratam da vida nua e da existência precá-
ria de pessoas claramente à margem. Porém, diferentemente do que afirma
Jacques Rancière sobre Costa (2009, 80), em Guerín sim há um formalismo
estetizante – não que este não seja político também nos termos definidos
por Rancière –, mas certamente a meticulosa e harmônica concepção da be-
leza nos seus enquadramentos e sua adesão a certos princípios do cinema
clássico afastam-se do estranhamento do real de Costa.
Há uma natureza fotográfica nos seus filmes, uma tendência a pensá-los
como conjuntos constituídos de instantâneos, quase como uma coleção de
pinturas ou fotografias (como se cada filme fosse precedido por “Algunas
fotos” antes de ser filmado, em lugar de um storyboard convencional). O
plano, o enquadre, continua sendo a unidade básica para mostrar as ruínas
(nos sentidos literal e figurado), a memória da cidade. Ainda que as pessoas
sejam o elemento crucial para se entender o que vai acontecendo no bairro
(e há personagens particularmente tocantes como o peão marroquino que
gosta de recitar poesia ou o velho ex-marinheiro colecionador de quinqui-
lharias aleatórias), em En construcción as imagens da cidade em si têm um
protagonismo eloquente: as escavações arqueológicas do velho cemitério
encontrado por acaso, os escombros dos sobrados derrubados, as placas
dos velhos hotéis, os bares do porto em contraste com os novos prédios, os
outdoors publicitários anunciando as pesetas necessárias para adentrar a
Barcelona gentrificada.
Seu penúltimo longa-metragem até o momento, Guest (2010), tem vários
pontos de convergência com En construcción. Em Guest, a unidade urbana
também é a base sobre a qual se dá a deriva do olhar do cineasta. No caso,
as várias cidades que Guerín percorreu para participar dos festivais dos
quais foi convidado (daí o título): Veneza, Nova York, Bogotá, Havana, Seul,
São Paulo, Cali, Paris, Lisboa, Macau, Jerusalém... Os festivais são a premis-
sa e o ponto de partida dessa lista heterogênea de lugares, mas o foco são
as conversas que Guerín entabula com os seus moradores, quase sempre
totalmente alheios até mesmo à ideia de cinema: habitantes de um cortiço
em Havana, pregadores evangélicos no centro de São Paulo, poetas no cen-
tro de Bogotá, a imigrante filipina em Hong Kong. Que, assim como En cons-
32 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

trucción, traz a tona inevitavelmente uma série de temas políticos urgentes


como imigração, religião, pobreza, etc, e de certo modo atrai as interpreta-
ções sociologizantes, sempre de pronto repudiadas por Guerín em entre-
vistas. Guest, embora atento aos espaços e aos detalhes (visuais e sonoros)
urbanos e enfatizando a noção de itinerância implicada nesse movimento
de viagens e deslocamentos, é um filme sobre pessoas nas cidades, retratos
dessas pessoas, e retratos sempre mediados pela memória do cinema. Não
por acaso, uma das citações cinematográficas (a mais direta delas) do filme
é de Portrait of Jennie (1948), de William Dieterle. Porque, como afirmou o
próprio Guerín, carregamos um acúmulo de imagens e imaginações das ci-
dades do cinema e já não se faz possível obliterar essa memória.
Ao contrário do que se poderia supor, entretanto, essa consciência das
imagens, esse peso da memória fílmica, traz aos autores mais interessan-
tes do cinema contemporâneo, um alargamento inusual da zona de atrito
entre arte e vida, entre experiência e representação. Desenhando mapas
labirínticos, o cinema de Guerín reconhece assim as memórias fotográficas
e fílmicas como os fragmentos de um processo de arquivo incorporados po-
rosamente no nosso trajeto lacunar pelo mundo, como parte fundante das
nossas cartografias afetivas.
MÚSICA
ANGELA PRYSTHON 35

SENSIBILIDADES CULTURAIS URBANAS

Este ensaio tem por objetivo discutir as complexas e profusas articulações


entre música popular e a cidade. Quando pensamos nessas articulações,
imediatamente são feitas associações mentais entre determinados gêneros
e determinadas cidades: Nova Orleans e o jazz tradicional; Nova York e o
hip hop; Chicago e o blues, Detroit e o som de Motown; Nashville e o coun-
try; Belém do Pará e o tecnobrega; o Rio de Janeiro e o samba; São Luís e
o reggae, entre outras... Aqui vamos apresentar de modo necessariamente
panorâmico a análise de três cenas distintas (no tempo e no espaço) ligadas
às culturas pop e rock. São três épocas, três estilos e três cidades diferen-
tes: Manchester, na Inglaterra, do final dos anos 70 aos anos 90; Seattle no
início dos anos 90 e Recife dos anos 90 aos 2000. A ideia é identificar certas
recorrências e diferenças entre as cenas para compreender como o engen-
dramento de “sensibilidades culturais” e a configuração de cenas musicais
modelam e redesenham não apenas as próprias cidades, mas o modo como
os sujeitos apreendem e circulam nesses espaços.
O conceito de “sensibilidade cultural” empregado aqui é tributário do
trabalho de Celeste Olalquiaga sobre o pós-modernismo, no qual ela de-
fine sensibilidade “como uma predisposição coletiva para certas práticas
culturais” (OLALQUIAGA, 1998, p. 16). E de fato há nos cenários observa-
dos aqui uma predisposição coletiva que construiu em torno da música
um novo imaginário para as três cidades em questão. Evidentemente, este
novo imaginário não foi constituído apenas pelos produtos da indústria
musical (discos, CDs, shows e presença midiática), mas por uma gama de
articulações entre estes – que poderíamos classificar como “catalisadores”
– e indivíduos, grupos e signos.
É necessário compreender, portanto, como se desenhou essa gama de ar-
ticulações nas três cenas a partir de uma noção diferente de cidade. Uma
noção que deixa evidente a urgência de um constante deslocamento concei-
tual, vinculado ao marco teórico do pós-moderno. Pois, se na modernidade
tínhamos, de certa maneira, algumas convicções em relação à natureza da
cidade, seus componentes, suas articulações, a partir da pós-modernidade
não apenas teremos que renegociar e retrabalhar todo esse elenco de no-
ções, como também inserir uma série de novos paradigmas e termos. Claro
que sem esquecer do flâneur, do cosmopolitismo, da modernidade – ele-
36 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

mentos constitutivos do urbano – entram em cena na cidade pós-moderna


de maneira muito mais enfática que antes, a descentralização, os meios de
comunicação de massa, as redes de informação, a diferença, os novos espa-
ços urbanos. Pois, além de um território conceitual necessariamente mais
fluido, tem-se em vista uma nova materialidade. As world cities, cidades
do mundo em constante processo de mutação, não são necessariamente as
maiores cidades, mas lugares onde a diversidade multiplica-se a cada ins-
tante, ora num movimento integrativo, ora na dissolução em partes isoladas.

As cidades mundiais são sítios nos quais encontramos a justaposição de ricos e pobres, a nova
classe média de profissionais liberais e os sem-teto, e uma variedade de outras identificações ét-
nicas, de classe e tradicionais, como também pessoas do centro e da periferia que são colocadas
dentro de uma mesma localização especial. (FEATHERSTONE, 1995, 118).

Desse modo, a própria configuração urbana contemporânea vai sendo per-


meada pelo imaginário cultural e conceitual do pós-moderno. Featherstone
também fala de um entrelaçamento entre as esferas cultural, social e econô-
mica dessa cidade pós-moderna:

A cidade pós-moderna é portanto muito mais autoconsciente imagética e culturalmente; é um


centro de consumo tanto cultural como geral, e assim como este último não pode ser desvincu-
lado dos signos e imaginários culturais, os estilos de vida urbanos, o cotidiano e as atividades de
lazer estão todos em maior menor graus influenciados
pelas tendências pós-moderna simulativas. (FEATHERSTONE, 1991, p. 99).

As transformações do cenário urbano mundial são quiçá lentas, graduais,


mas certamente são bastante concretas. A nossa principal hipótese aqui é
que a música (e os processos sociais ligados a ela) vai ser essencial para o
engendramento dessas transformações.

MANCHESTER, SO MUCH TO ANSWER FOR

Giacomo Bottà (2006), falando sobre a influência efetiva da música popu-


lar sobre a cidade, enumera algumas maneiras concretas através das quais
é exercida essa influência:
Este é o resultado de uma superposição em camadas: a música popular media lugares como
paisagens textuais, sonoras e visuais. As letras de músicas que se referem a lugares se confi-
guram como as paisagens textuais. O uso da tradição musical local, vernacular ou ruídos tipi-
ANGELA PRYSTHON 37

camente urbanos constituem as paisagens sonoras de uma banda. Finalmente as paisagens


propriamente ditas consistem de todos os elementos visuais (por exemplo, as capas) que se re-
ferem à mesma localidade. Voltando para o nível da regeneração, parece importante notar que a
música em si é etérea, mas sua produção, circulação e fruição dependem de fatores materiais lo-
calizados nas cidades.

Manchester é uma cidade do noroeste da Inglaterra, mais conhecida como


o berço da Revolução Industrial e como uma das maiores cidades da Grã-
-Bretanha (a zona metropolitana de Manchester é a segunda maior aglo-
meração urbana do Reino Unido depois de Londres). Além das marcas da
revolução industrial e da sua subsequente decadência, o imaginário da ci-
dade foi profundamente marcado pela Segunda Guerra, na qual Manchester
teve grande parte do seu centro histórico destruído pelas bombas. A cidade
também sofreu de modo particularmente intenso as reformas econômicas
da era Thatcher: indústrias fechadas, altos índices de desemprego e o fecha-
mento do porto em 1982. O que afetou, obviamente, as formas de produzir
e consumir cultura na cidade.
A partir do final da década de 1970 surge uma cena musical vibrante – que
já discutimos brevemente no ensaio sobre martírio juvenil e cinema – na
esteira da subcultura punk em ascensão em toda a Inglaterra (subcultura,
aliás, deflagrada a partir de um cenário de decadência pós-industrial ex-
tremamente semelhante ao contexto particular mancuniano). Podemos ver
na trajetória dessa cena (que começa com o agrupamento de bandas em
artistas a partir do impulso dos primeiros shows dos Sex Pistols na cidade
em 1976 e de certo modo tem um fechamento simbólico a partir do final
da era “Madchester” com o encerramento das atividades do clube Haçien-
da em 1997) um conjunto exemplar de modos de articulação entre música
e cidade.
Os fragmentos urbanos indubitavelmente permeiam a história musical da
cidade. Por exemplo, nas letras de Morrissey, vocalista da banda extinta em
1986 The Smiths, as paisagens de Manchester são sempre presentes. Des-
de a alusão a trens, pontes, fontes, cemitérios e escolas, até crimes, filmes
e livros que tematizam a cidade. Como na canção “Suffer Little Children”
(1983) que alude aos assassinatos em série de crianças, perpetrados por
Myra Hindley e Ian Brady nos anos 60 e na qual Morrissey vai mencionando
os nomes das vítimas:

Lesley-Anne, with your pretty white beads


Oh John, you’ll never be a man
38 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

And you’ll never see your home again


Oh Manchester, so much to answer for 1

Outro exemplo direto da presença de Manchester no cancioneiro dos Smi-


ths é “The Headmaster Ritual” (1984), na qual é descrita a rotina numa es-
cola da cidade:

Belligerent ghouls
Run Manchester schools
Spineless swines
Cemented minds 2

Já “Reel around the fountain” evoca uma representação mediatizada de


Manchester ao citar diretamente frases do filme A Taste of Honey (Tony Ri-
chardson, 1962), ambientado em Manchester e uma constante referência
para o grupo, em capas, vídeos e letras:
Reel around the fountain
Slap me on the patio
I’ll take it now
Oh ...
Fifteen minutes with you
Well, I wouldn’t say no
People said that you were virtually dead
And they were so wrong 3

Entretanto, de todas as figuras individuais da cidade, a que talvez sinteti-


ze melhor esse período da história da música pop de Manchester seja Tony
Wilson, o empresário e jornalista que impulsionou a “movida mancuniana”,
desde os primeiros shows punk até a cristalização de Madchester (como
Manchester começou a ser chamada a partir do final dos anos 80 e da confi-
guração da cena acid e Techno na cidade). Ocupando lugar central nos pla-
nos de Wilson para a cultura do noroeste da Inglaterra estava a Factory Re-
cords, a gravadora que de certo modo estabeleceu novos parâmetros para o
lançamento e a circulação do rock e da música pop no mundo. Nem todos
os artistas e grupos importantes da cena mancuniana faziam parte da Fac-
tory, mas a relação da gravadora com a cidade foi tão intensa que deixou
marcas muito fortes mesmo após a falência em 1992. O selo, lançado em
1978, empregava um sistema de catalogação inusitado no qual não ape-
ANGELA PRYSTHON 39

nas os lançamentos musicais, mas também os trabalhos gráficos, edifícios


e outros objetos recebiam um número. Até o caixão no qual foi enterrado
Wilson em agosto de 2007 recebeu um número de catálogo (FAC 501). O
caso da Factory é importante para o argumento aqui especialmente porque
sintetiza todas as possibilidades de relação entre música e cidade. Aliás, a
Factory surge das entranhas de Manchester, é um projeto completamente
não-desvinculável da cidade, em todos os seus aspectos (visuais, sonoros,
líricos).
Um dos exemplos mais notáveis dessa simbiose, especialmente relativa
aos “soundscapes” urbanos são as gravações do grupo Joy Division, especial-
mente aquelas produzidas por Martin Hamnett, nas quais aparecem ruídos
de trens, alarmes, maquinaria pesada, a acústica dos grandes armazéns, en-
tre outros efeitos (OTT, 2003). Nas letras das canções de vários dos grupos
da Factory, inclusive do Joy Division, também é possível vislumbrar algumas
referências mais indiretas, especialmente a uma atmosfera lúgubre e som-
bria que remete a certa decadência pós-industrial. Assim como nas letras
dos Happy Mondyas, evocativas da psicodelia e do ecstasy massivamente
consumidos em Madchester. Mas talvez seja nos landscapes propriamente
ditos que a conexão entre cidade e música feita pela Factory seja mais explí-
cita ou bem sucedida: não somente o clube Haçienda se tornou uma espécie
de símbolo cultural mor da cidade durante a sua existência, como no tra-
balho gráfico que marcou a gravadora (especialmente aquele empreendido
pelo designer Peter Saville).

NOTAS

1 - “Lesley-Anne, com seu bonito colar de bolinhas brancas/ Oh, John, você
nunca será um homem/ E você nunca verá sua casa novamente/ Oh, Man-
chester, tanto para dar conta”.

2- “Zumbis beligerantes/ Dirigem as escolas de Manchester/ Suínos inverte-


brados/ Mentes cimentadas”.

3 - “Carretel em volta da fonte/Estapeia-me no pátio/ Tomarei agora/ Oh.../


Quinze minutos com você/ Eu não recusaria/ As pessoas disseram que você
estava virtualmente morto/Mas eles estavam tão errados.
40 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

SMELLS LIKE TEEN SPIRIT

O caso de Seattle difere do de Manchester pela ausência de referências tão


explícitas. Não é possível fazer a mesma taxonomia de letras, capas e sons
do grunge que tenham rastros tão plásticos da cidade. Entretanto, é prová-
vel que o impacto da cena grunge em Seattle tenha sido ainda maior (até se
pensarmos nos termos da influência internacional que teve o movimento). O
grunge é um estilo de rock alternativo surgido na segunda metade dos anos
80 no estado de Washington nos Estados Unidos, especialmente na área de
Seattle. As influências do punk, do heavy metal e do hardcore aliadas a uma
estética visual despojada, letras que versavam principalmente sobre a apa-
tia e a angústia da chamada “geração X” (pessoas que estavam na casa dos
vinte anos na década de 90) e uma rejeição do glamour e da performance
estilizada que caracterizou o rock e o pop dos anos 80.
Assim como em Manchester um selo em particular vai ter preponderância
na cena: a gravadora Sub Pop, que concentrou grande parte das bandas de
Seattle e catapultou os dois grandes nomes do grunge para o sucesso mun-
dial através daqueles que que talvez sejam os dois álbuns mais “clássicos”
da cena: Nirvana com Nevermind e Pearl Jam com Tem, ambos lançados no
segundo semestre de 1991. Além do Nirvana e do Pearl Jam outras bandas
chegaram ao estrelato (nem todas vinculadas ao Sub Pop) do mesmo modo
ambíguo e indeciso – um misto de atração e repulsa em relação à indústria
fonográfica e ao showbiz: Alice in Chains, Soundgarden, Mudhoney, Green
River, Melvins, entre outras de menor expressão.
Outro aspecto que chama a atenção é como, de um modo até mais intenso
que Manchester – que tinha algo de misoginia –, a cena de Seattle é emble-
mática da predominância masculina nos seus grupos musicais e na própria
configuração das redes sociais associadas a ela. Algo que pode ser vagamente
relacionado ao boom da tecnologia na década de 90 com a chegada massiva
de homens solteiros na região para trabalhar em empresas como Microsoft,
por exemplo. A cena se configurou quase como uma catarse tanto para os
jovens que faziam a música, como para aqueles que a consumiam.
O mais relevante, contudo, da cena grunge em conexão com a cidade de
Seattle é simultaneamente o modo como ela foi transformada pelos símbo-
los (ou poderíamos dizer anti-símbolos) associados à música (sobretudo a
moda – as camisas de flanela, os cabelos sujos e desgrenhados, os coturnos
– e o comportamento antiestablishment dos músicos) e associada ao grunge
aos olhos do mundo. Para além de sua fama como um concentrado de em-
ANGELA PRYSTHON 41

presas tecnológicas (especialmente aquelas ligadas à informática), como o


berço da Starbucks e dos cafés de designer, mas de certo modo associado a
tudo isso, Seattle foi se tornando sinônimo do grunge.
Começou-se a prestar atenção naquela isolada e fria cidade do noroeste
americano a partir de uma cena que pouco tinha de hedonista e afirmativa.
Mas a interessante contradição é que tudo o que o movimento tinha de ne-
gação (rejeição do mainstream, do padrão, antiesteticismo, antiindústria)
foi sendo capitalizado para a caracterização de Seattle como um dos polos
criativos mundiais de maior impacto e relevância na década de 1990.
Curiosamente, o vigor do grunge só foi possível por causa do relativo iso-
lamento cultural vivido pela cidade até então:

De acordo com aqueles que estiveram lá, Seattle era um lugar bem isolado culturalmente. As
grandes bandas sequer incluíam Seattle nas turnês americanas da Costa Oeste, e a cena local
estava repleta bandas derivativas que faziam o máximo para soar como outras. Não era um am-
biente que anunciasse uma explosão de vitalidade musical original. Ainda assim, o ambiente pa-
rece ser um conceito-chave para explicar a década de 1985-1995 (HOWITT).

Ou seja, a cena surge exatamente de uma carência, aparece como resposta


a um contexto francamente fechado e provinciano. A cidade se torna plata-
forma para a elaboração de estratégias de superação deste contexto, ela é a
malha através das quais as predisposições coletivas são articuladas.

A CIDADE NÃO PARA

Em vários trabalhos sobre a cena Mangue foi apontada a ligação do movi-


mento com a cidade, a cultura urbana e com a emergência de novas identi-
dades sociais na periferia. Emergindo da “periferia da periferia”, da lama, o
mangue bit (como foi chamado no início pelos grupos que o constituíam) ou
mangue beat (como ficou conhecido através da mídia nacional) vai trans-
formar a cidade do Recife. Assim como Manchester e Seattle, a perspectiva
de transformação urbana através da música, da cultura, é o motor das sen-
sibilidades culturais.
Nos trabalhos das bandas manguebit (mesmo aquelas que rejeitam o ró-
tulo, eventualmente) estão presentes tanto a rearticulação da tradição (atra-
vés de ritmos populares de Pernambuco e alusões ao folclore da região),
como a preocupação com as últimas tendências da cultura pop mundial. Re-
cuperando o elo perdido (e certa independência vital e muitas vezes franca
42 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

oposição) em relação ao tropicalismo, Chico Science & Nação Zumbi, por


exemplo, em Da lama ao caos mistura ritmos brasileiros como o maracatu,
a ciranda ou o côco com o samba, com música eletrônica, hip hop e rock. As
letras do Nação Zumbi frequentemente tentam essa equação entre o local
(as especificidades de viver numa cidade particularmente subdesenvolvida
de um país subdesenvolvido, as gírias e os mitos recifenses) e o universal
(as relações com a tecnologia, as imagens metropolitanas). As canções mais
conhecidas do grupo tematizam justamente o “inchaço” do Recife, a sujeira
e, simultaneamente, a música de suas ruas.
O diálogo entre as dualidades tradição/modernidade, centro/periferia,
nacionalismo/cosmopolitismo vai ser explorado nos trabalhos seguintes,
por exemplo, no segundo disco, inclusive quando vai ser indiretamente as-
sumida certa herança do Tropicalismo com a participação especial de Gil-
berto Gil na faixa “Macô” e a regravação de “Maracatu Atômico” de Jorge
Mautner. Em “Enquanto o mundo explode”, Science afirma:

um curupira já tem seu tênis importado


não conseguimos acompanhar o motor da história
mas somos batizados pelo batuque e apreciamos agricultura celeste (1996).

O outro grupo mais proeminente do mangue beat, o mundo livre s/a, embo-
ra ritmicamente mais convencional que o Nação Zumbi, reunindo algumas
características do samba e do rock, procura explicitar a posição da periferia
em relação ao mundo globalizado. Recife continua sendo referência impor-
tante como perspectiva periférica:

O mangue reanima, abastece


Injeta, recarrega as baterias
Da Veneza esclerosada
Mangue, manguedown
Cidade complexo, caos portuário
Mangue, Manguetown (1994).

Outro dado importante na conjuntura do manguebit é, indubitavelmen-


te, como o discurso da identidade e da tradição ultrapassou as barreiras da
cultura das classes médias e letradas para influenciar a produção musical
mais popular. Vemos, assim, a emergência de artistas realmente periféricos
(periféricos dentro da própria periferia) fazendo uso do discurso da identi-
ANGELA PRYSTHON 43

dade nacional e de suas relações com formas globais de expressão. Mesmo


podendo ser considerado mais culto que outros fenômenos mais populares
(o hip-hop de São Paulo, o funk carioca, o pagode, por exemplo) por suas ca-
racterísticas ideológicas, discursivas e metalinguísticas, lança alguns dados
importantes para o redimensionamento do papel do popular no contexto
contemporâneo: se no início eram bandas urbanas lideradas por filhos da
classe média (mesmo que em alguns grupos houvesse a presença de mem-
bros das classes mais baixas) a ganharem expressão nacional, nos últimos
anos da década de 90 foram mercantilizados sob esse rótulo (às vezes até
inadequadamente) artistas de origem indiscutivelmente “popular” e pro-
letária, como Selma do Côco (uma senhora de idade “revelada” ao público
num festival de rock em Recife em 1996), a cirandeira Lia de Itamaracá ou
as bandas hardcore do subúrbio Alto José do Pinho, também de Recife, to-
dos conquistando espaço na mídia, desde programas de auditório de gran-
de audiência a documentários na MTV ou na TV Cultura.
Contudo, é provável que a grande contribuição do Mangue seja realmen-
te a interferência na cultura da cidade. Um dos aspectos mais relevantes da
história do movimento é precisamente essa relação com o Recife, ou, me-
lhor ainda, a maneira como seus produtos, manifestações, modos e modas
foram construindo ao longo da década de 90 uma nova relação com a cida-
de, uma nova cultura urbana. Em várias “genealogias” do Mangue se aponta
a influência do Recife (e quase sempre a influência da pobreza do Recife, da
miséria do Recife, das mazelas do Recife) nas letras, nas músicas, no visual e
na atitude dos músicos, onde talvez o ponto mais interessante seja a forma
como todos esses elementos acabaram por transformar o imaginário urba-
no recifense, a maneira como o Mangue construiu uma política de diferença
cultural para a cidade, o modo como, através dos mais variados fenômenos
culturais, o Recife se viu repentinamente inserido num contexto pós-mo-
derno. O Recife foi, pois, reinventado a partir do movimento Mangue, ou
melhor, da “cena Mangue”, como preferem seus “fundadores”.

CONVERGÊNCIAS PERIFÉRICAS

As três cenas são evidentemente distintas, são espacialmente muito distan-


tes umas das outras, mesmo que temporalmente haja coincidências. Contu-
do, chama a atenção como recorrência o modo a partir do qual as sensibi-
lidades culturais aparecem como constitutivas do tecido urbano, como tais
articulações (tanto a música propriamente dita, como todo o seu entorno,
44 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

seus acessórios – moda, audiovisual, códigos de comportamento, etc.) se


tornam as bases para a inserção (ou reinserção) dessas cidades num con-
texto globalizado. Manchester, Seattle, Recife, em espaços-tempos distintos
e cada uma de sua maneira particular, demonstram o funcionamento do
que poderíamos chamar de cosmopolitismo pós-moderno ou cosmopolitis-
mo periférico (PRYSTHON, 2002), processo sublinhado e condicionado por
uma série de remapeamentos culturais implicados na globalização e numa
reconfiguração pós-moderna do conceito de cidade.
As sensibilidades culturais das três cenas apontam justamente para o mo-
mento de ruptura representado pelo pós-modernismo para a cultura das ci-
dades. Elas são exemplos bastante concretos de como o pós-modernismo e
a pós-modernidade têm relações, ou antes, podem ser consequências da po-
lítica mundial contemporânea e de uma completamente nova configuração
global de poder, “na qual os velhos mapas imperiais se perderam” – como diz
Robert Young (1990, p. 117). Ou seja, poderíamos pensar no momento de
ruptura do pós-moderno como o momento de autoconsciência cultural da
periferia (e entendendo essas cidades “fora do eixo” – seja Manchester, Seat-
tle ou Recife – como encarnações urbanas do conceito de periferia). O cosmo-
politismo vai-se reconfigurando através do percurso de autodescoberta feito
pelas margens. Uma autodescoberta que pode levar ao estabelecimento das
primeiras políticas da diferença e para a afirmação de um novo conceito de
urbano. O cosmopolita periférico tenta se colocar, produzir e se autodefinir
a partir de uma instância ambígua (ser e estar na periferia, desejar estar na
metrópole, no centro) e aponta justamente os elementos que fazem da peri-
feria um modelo de modernidade alternativa (problemática, incompleta, con-
traditória). Ele trabalha nos interstícios de uma realidade e tradições locais
e de uma cultura urbana internacional, aspiracional e moderna. Assim temos
outro cosmopolitismo que indubitavelmente transforma a própria noção de
cidade, de experiência urbana na contemporaneidade.
As teorias pós-modernas e do pós-moderno, inevitavelmente, pois, lançam
outras dimensões ao conceito de cosmopolitismo: a sua constante remissão
ao crescente descentramento da vida urbana e da cultura pós-moderna, a
evidente globalização em diversas esferas da sociedade – entre elas econo-
mia e cultura –, a insistência pelo relativismo cultural e o estabelecimento
de um ciberespaço agora como realidade e não mais alucinação futurista são
algumas das razões mais importantes para essa redefinição do cosmopolitis-
mo. Basicamente, entretanto, a emergência dessa sociedade pós-industrial,
ou “sociedade de informação” – com todas as suas nuances, entre elas a va-
ANGELA PRYSTHON 45

lorização do periférico, do exótico, do excêntrico (refletidos no multicultu-


ralismo) – desestabiliza a força centralizadora das metrópoles modernas. O
cosmopolitismo pós-moderno e periférico vai ser diferente sobretudo por-
que ele não supõe necessariamente um ponto norteador (algo essencial no
cosmopolitismo moderno, como fica claro com a Paris-mito dos modernos
e os subsequentes prolongamentos dessa Paris na periferia – São Paulo,
Buenos Aires, etc.).
Portanto, se o cosmopolitismo moderno é essencialmente centrípeto, a for-
ça centrífuga da pós-modernidade começa a relativizar a importância das
grandes metrópoles mundiais em termos de disseminação das informações.
O que antes era quase um sistema de oposições – campo/cidade; provin-
ciano/cosmopolita; bárbarie/civilização; caos/ordem –, torna-se uma rede
de múltiplas interdependências, confluências e novos parâmetros. E é jus-
tamente a cidade que se torna o território intersticial onde se encadeiam,
intercalam-se e se confrontam tais oposições. Ao invés de ser apenas mais
um elemento do binarismo oposicional, a cidade passa a ser ela própria um
processo dialético dos embates pós-modernos.
O que não significa, obviamente, que deixem de existir os grandes centros
de onde emanam as tendências culturais. Mas como Manchester, Seattle e
Recife mostraram nas três últimas décadas, há uma clara propensão para
que essas tendências apareçam de muitos outros lugares, difundam-se e
dissolvam-se de forma muito mais rápida. A gradual superação desses es-
quemas oposicionais e a crescente descentralização cultural da contempo-
raneidade vão, assim, modificando profundamente a própria estrutura tan-
to da teorização sobre a cidade, como as nossas próprias experiências.
ANGELA PRYSTHON 47

AFETO E TRANSPOSIÇÕES PÓS-COLONIAIS

Uma mulher limpa o que parece ser o balcão de um bar. Dois marinheiros ca-
minham na rua em frente. Um terceiro marinheiro acaba de selecionar uma
canção no jukebox. “I may not always love you”... A sequência, que aparece
mais ou menos na metade de Nénette et Boni (1996), mostra os personagens
da mulher do padeiro (Valeria Bruni-Tedeschi) e seu marido (Vincent Gallo)
num flashback ou numa fantasia (o filme não deixa claro) de Boni (Grégoire
Colin), um dos protagonistas. A cena não tem propriamente uma função nar-
rativa (até porque esta é quase sempre elusiva, não só neste filme, mas em
todos os outros da diretora), mas se trata de um momento emblemático na
constituição do estilo de Claire Denis, sua obstinada e sedutora tapeçaria de
sons e imagens. Em Nénette et Boni, a canção dos Beach Boys (God only kno-
ws), as alusões a Pagnol e Jacques Demy (Lola, sobretudo), as maneiras em
como tais detalhes são postos em cena e as sobreposições de tais elementos
demonstram exemplarmente esse entrelaçamento entre som e imagem.
Nénette et Boni também marca o início da colaboração entre Denis e a
banda inglesa Tindersticks (que iria se repetir em Trouble Every Day (2001),
Vendredi Soir (2002), L’intrus (2004), 35 Rhums (2008) e White Material
(2010). Denis sempre realçou a criação de paisagens sonoras muito fortes
que, mais que complementar as imagens, servem como base de um traço
quase paradoxal da sua obra: o uso de artifícios sonoros, especialmente mú-
sica, não para metamorfosear ou fugir do real, mas, ao contrário, para acen-
tuá-lo, para torná-lo mais pleno de afeto. Como numa outra cena do filme,
na qual vemos a transição entre as fantasias e o encontro real de Boni com
a mulher do padeiro. A canção dos Tindersticks pontua um dos momentos
chave onde percebemos claramente como Boni se dá conta da melancolia
do seu desejo, instante em que irrompe a sensação de irrealização, da in-
completude, da vulnerabilidade frente ao cotidiano, diante do real.
As relações entre música, imagens e afetos vão ser igualmente centrais
em Vendredi Soir, desde as canções incidentais no rádio do carro de Laure
(Valérie Lemercier) ou com os Tindersticks novamente fornecendo climas e
ambiências sonoras que sublinham o trabalho de câmera de Agnes Godard,
outra colaboradora importante de Denis, que pontuam as sensações urba-
nas do trânsito engarrafado de Paris em greve de transportes públicos e ao
mesmo tempo imprimindo uma furtiva sensação de leveza, de movimento,
48 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

uma delicada instabilidade de desejos trazidas à tona pela combinação en-


tre o usual realismo de “superfície” de Denis e, neste filme em particular, as
incursões por quase imperceptíveis ilusões de ótica (pequenas animações,
objetos que se deslocam repentinamente). A noção de que há algo de estra-
nhamente fantástico no corriqueiro, no comum, de que algo mágico paira e
flutua por sobre o mais corriqueiro dos acontecimentos é deliberadamente
tecida, como indicou Dickon Hinchliffe, ao comentar a faixa “Le Rallye”:
Uma das primeiras coisas que Claire me disse foi que ela queria que a música soasse como se
estivesse flutuando no ar, à deriva nas ruas à noite através dos carros e janelas e por cafés e res-
taurantes para criar este mundo misterioso estranho e algo mágico. Era dizer que uma noite
como essa só acontece uma vez a cada geração. Eu respondi a isso usando muitas cordas agudas,
celesta e piano (HINCHLIFFE em BELL, 2011, p. 19).

A meticulosa combinação entre a trilha original e as canções incidentais


faz da música um lugar essencial da mise-en-scène de Denis, quase como se
os filmes fossem elaborados a partir de coreografias que potencializam e
delineiam os corpos dos atores e os espaços da ação. Um momento exem-
plar desse conjunto coreográfico está em 35 Rhums. O filme, uma espécie de
refilmagem/homenagem a Pai e Filha (Yasujiro Ozu, 1949), se concentra no
cotidiano de alguns moradores de um banlieue parisiense – em sua maio-
ria de origem africana – através um pai, Lionel (Alex Descas), sua filha, Jo-
séphine (Mati Diop), e os seus respectivos pretendentes, a taxista Gabrielle
(Nicole Dogue) e o taciturno Noé (Grégoire Colin). A cena em questão ocor-
re a um pouco mais da metade do filme num bar onde os quatro se refugiam
após o táxi de Gabrielle enguiçar a caminho de um espetáculo. Alguns pou-
cos clientes do bar começam a dançar ao som da clássica canção do cubano
Ernesto Lecuona, Siboney, entre eles Lionel e Gabrielle. Quase ao final da
canção, Lionel convida a filha. Começa Nightshift, dos Commodores, Noé se
aproxima e toma Jo dos braços do pai. Os movimentos, passos, olhares, res-
piros e gestos dessa inusitada “família” são impecavelmente apresentados
sem que uma palavra seja dita: o desejo de Noé, o gentil recato de Joséphine,
o desconforto sutil de Lionel, a frustração contida de Gabrielle depois que
Lionel começa a dançar com a bela dona do bar.
Desta vez com a trilha sonora original composta por Eran Tzur, Beau Tra-
vail é quiçá o filme no qual Denis exercita mais efusivamente o jogo das
referências musicais e mais elaboradamente o padrão coreográfico da dis-
posição dos corpos. Trata-se de uma adaptação livre de Billy Budd, nove-
la de Herman Melville. Para fazê-la, Denis percorre não somente o original
ANGELA PRYSTHON 49

(conservando o plot básico de inveja, mesquinhez e traição), mas também


a versão operística de Benjamin Britten (cujas árias aparecem em poucas
sequências, mas estas são instantes bem cruciais – como a introdução do
deserto africano no início do filme ou o duelo explicito entre Gilles Sentain
(Colin) e Galoup (Denis Lavant), encena momentos importantes a partir
de uma boa lista de canções que começa pelo sucesso pop turco Şimarik do
cantor Tarkan – que introduz boa parte dos soldados na trama, passando
por Safeway Cart de Neil Young e Crazy Horse – soldados rumo ao deserto,
para culminar com o hino disco eurotrash da banda eletrônica Corona The
Rhythm of the Night – Galoup na sua dança da morte.
Mas é evidente, inclusive pelos exemplos comentados acima, que não só
de canções, não apenas de música é formada a tessitura de referências de
Denis. Seus filmes são sempre permeados por muitas outras obras de arte,
outros filmes, livros. Ao comentar sua obra a partir de Beau Travail, Jona-
than Rosenbaum (2010) fala dessas citações como talismãs, feitiços e afrodi-
síacos estéticos. Como a mulher do padeiro e os marinheiros em Nénette et
Boni (e as piscadelas para Marcel Pagnol e Jacques Demy); Basquiat, Frantz
Fanon, os motivos japoneses e ozunianos – panelas de arroz, ideogramas e
trens – de 35 Rhums; a obra filosófica de Jean Luc-Nancy em L’Intrus; a im-
prensa marrom em J’ai pas sommeil (1994) e até mesmo a presença do ator
Michel Subor, não apenas como ator em três dos seus filmes, mas também
no retorno de Bruno Forestier, o seu personagem de Le Petit Soldat (1960)
de Jean-Luc Godard que reaparece em Beau Travail, entre outras citações
e influências, a profusão desses pequenos detalhes, desses amuletos, fun-
ciona também como uma espécie de sintoma estético de uma época que se
destaca tanto por pela variedade – geográfica e histórica – de referências,
como pela consciência contemporânea forçosamente pós-colonial delas.
Ou seja, em Denis mais do que uma ênfase na adaptação (porque, de fato,
vários dos seus filmes mais conhecidos são transposições literárias ou ci-
nematográficas, alguns adaptações diretas) ou o afã das citações (já que há
nos filmes uma presença constante da música – rock, pop ou erudita, já que
é óbvia a evocação cinéfila de autores, atores e sequências clássicas), im-
porta mesmo a interseção dos seus encantamentos, que desnuda um mun-
do bem mais complexo e nuançado que aquele que o cinema narrativo con-
vencional mostra e aponta, inclusive, para um universo infinitamente mais
multiétnico, multidimensional e multissensorial do que a maior parte dos
seus comentadores revela.
FRIVOLIDADE
52 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

ODES ANORÉXICAS E A VINGANÇA DOS TRAVESTIS

I´m a Barbie girl, in a Barbie world


Life in plastic, it´s fantastic.
You can brush my hair, undress me everywhere.
Imagination, that is your creation.

Acqua, Barbie Girl 4

Cheeks sunken and despaired

So gorgeous sunk to six stone


Lose my only remaining home
See my third rib appear
A week later all my flesh disappear
Stretching taut, cling-film on bone
I’m getting better

Manic Street Preachers, 4 st 7lb5

Uma das muitas promessas do discurso feminista diz respeito à possibi-


lidade de se livrar de opressivos padrões de beleza. Em vários momentos
quase achamos que tal promessa havia sido cumprida: ao longo do século
XX, o feminismo (como movimento e como prática discursiva) nos deu em
muitas ocasiões, de certo modo, a ilusão de que os padrões de beleza infligi-
dos à mulher ocidental estavam superados. Essa ilusão, contudo, era quase
sempre contrabalançada pela sua constante negação. Ou seja, ao mesmo
tempo em que se consolidaram os ideais da liberação sexual, e exatamente
na mesma medida em que cresceu a importância do feminismo, cresceram
também as imposições da moda, explodiram as imagens cada vez mais ex-
plícitas da pornografia e da sedução feminina, inflacionaram-se os valores
do espetáculo, o sexo se infiltrou de maneira assombrosa na esfera pública.
Poderíamos dizer que esse paradoxo, aliás, é um dos principais alicerces da
sociedade contemporânea.
Na verdade, esse paradoxo dá origem a alguns outros paradoxos e com-
põe um cenário de intensos contrastes. Poderíamos muito bem elaborar
uma lista, começando pela alta exposição de corpos colocando moralistas
conservadores e feministas nas mesmas trincheiras – mesmo que por mo-
tivos essencialmente distintos; passando pela proliferação do pornográfico
ANGELA PRYSTHON 53

banalizando e esvaziando o erotismo; indo até o deslocamento de papéis


sexuais que reformulam as “leis” da sexualidade sem, contudo, deixar de
manter bem claras as demarcações entre os gêneros. Mas talvez seja mais
interessante, a partir desse cenário – que é precisamente o imaginário con-
temporâneo da sedução, ou como coloca Gilles Lipovetsky em A era do vazio,
da “sexdução” – pinçar duas imagens extremas (e quiçá por isso bastante
úteis para compreender os caminhos do desejo na atualidade): a da anoré-
xica e a do travesti.
Parece-me que o padrão dominante de beleza (com as suas várias nuan-
ces, nos seus mais diversos matizes) hoje remete inevitavelmente a uma
ou outra das extremidades, muitas vezes até instituindo a esdrúxula com-
binação simultânea das duas imagens – que pode dar certo, especialmente
se pensamos nas magérrimas top models com redondos seios siliconados,
ou muito errado, como fica patente pelas últimas aparições de Michael Ja-
ckson, por exemplo. Ou seja, temos de um lado do espectro, o excesso – de
maquiagem, silicone, cabelos, chapinhas, curvas, tatuagens e botox – e de
outro a privação absoluta, a ascese. O mais instigante de tudo isso é que,
apesar de simbolizar concepções diametralmente opostas do corpo (a ima-
gem do travesti é de um corpo modificado a partir de adições e de orna-
mentações, enquanto a imagem da anoréxica opera sucessivas subtrações
até deixar restar apenas uma unidade mínima), é que, além de não serem
excludentes, ambas fazem parte do mesmo ímpeto de sedução, do mesmo
afã de concretizar um ideal de beleza (particularmente da beleza feminina),
das mesmas estratégias do desejo.
Tal ideal, de certa maneira, revela-se discrepante em relação aos supos-
tos objetivos de toda a sedução. Pois ambas as concepções de corporalidade
correspondem a subversões ou modificações do sexo. Na primeira, há uma
exacerbação artificial da sexualidade, o feminino é definido a partir de suas
partes: nádegas e seios opulentos, lábios carnudos, peles esticadas, roupas
mínimas. A perfeição é buscada através da soma dessas partes. Partes per-
feitas modificando o velho corpo, compondo o corpo perfeito, um look exem-
plar, um simulacro sem referente, sem idade. Na segunda, o corpo perfeito só
pode ser alcançado através da purificação, através de um regime (em todos
os sentidos da palavra) severo de autopunição e privação (não só de comi-
da, mas também de sexo). Num certo sentido a afirmação do corpo efetuada
pela anorexia se dá pela sua quase completa negação – para os anoréxicos,
o corpo desejável é aquele próximo da aniquilação; enfim, é uma meta inal-
cançável.
54 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

Oscilando entre esses dois modos e suas mais diversas nuances, vemos
as musas contemporâneas desfilarem pelas passarelas, pelo cinema, pela
televisão, pelas revistas semanais ilustradas com seus corpos modificados.
Em algumas prevalece a imagem anoréxica, outras optam pela opulência
travesti. Várias combinam a magreza semi-esquelética com lábios carnu-
dos, amplos decotes, escovas japonesas e mínimas saias. Todas efetuando
escolhas muito deliberadas na procura da beleza e da juventude.
Enquanto isso, as feministas seguem empenhadas em denunciar os espar-
tilhos imaginários da indústria cultural. Os moralistas continuam a sua cru-
zada contra a nudez midiática. Os nacionalistas reclamam da importação de
padrões exógenos de beleza, da ditadura da Barbie; acusam a mídia e as di-
vas midiáticas de terem esquecido da morenice brasileira, das fartas ancas
mestiças em prol de bustos “turbinados” por silicone, dos negros e crespos
cabelos em troca de lisas madeixas em cadeia nacional. Poucos se dando con-
ta que ao manejar os novos (e também os velhos) instrumentos da sedução,
as reais e fictícias Gisele Bündchen, Luma de Oliveira, Juliana Paes, Danielle
Winits, as jovens atrizes de Malhação, as VJs da MTV, personagens de nove-
la interpretados por Deborah Secco ou Taís Araújo ou a mulata Globeleza
entre muitas outras, não estão propriamente negando os ideais libertários
dos anos 60 (de formas muito diversas das tradicionais elas até os reafir-
mam), ou recuando léguas no que diz respeito às conquistas mais básicas
das mulheres nos últimos séculos. Mesmo mantendo alguns preconceitos e
mitos a respeito do sexo feminino, as mulheres midiáticas do século XXI são
a prova viva de que é cada vez mais fácil manipular, moldar seus corpos –
de acordo, sim, com os padrões ditados pela moda, mas também de acordo
com suas próprias vontades.

NOTAS
4 - “Sou uma garota Barbie, num mundo Barbie/ Vida em plástico, é fantásti-
ca/Você pode escovar meu cabelo, me despir em qualquer lugar/ Imaginação,
é a sua criação”.

5 - A canção do grupo galês Manic Street Preachers, 4 st 7lb (o equivalente a


aproximadamente 29 quilos), faz referência à anorexia:
“Bochechas encolheram e desapareceram/ deslumbrante baixei para 38 quilos/
perdi o resto do meu lar/ vejo minha terceira costela aparecer/ uma semana
depois toda a minha carne desaparece/ papel filme esticado, estirado por so-
bre o osso/ estou ficando melhor”
56 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

ENTRETENIMENTO COMO UTOPIA


Mesmo depois de cinco décadas de Estudos Culturais e de “desculpabiliza-
ção”, até bem pouco tempo, o cânone do rigor acadêmico esteve implicita-
mente associado a um excesso de assepsia ou uma ilusão de seriedade no
que se refere à escolha de objetos, e, principalmente, ao tratamento dado a
eles. Muito tempo se passou desde a chamada “diluição do Grande Divisor”
(Huyssen), mas ainda há um nível de constrangimento em alguns círculos
quando se fala em Cultura do Entretenimento. Com todas as bandeiras le-
vantadas pelos Estudos Culturais e midiáticos sobre a deshierarquização
cultural, o entretenimento e tudo que o circunda ainda deixam certos teóri-
cos e pesquisadores em situação que poderíamos chamar vexatória. É qua-
se com culpa que nos debruçamos sobre os universos da cultura pop, sobre
os objetos mais “desprezíveis” e banais da indústria cultural. Pelo menos no
que se refere ao território acadêmico, o entretenimento é ainda demoniza-
do como o avesso da educação, como o extremo oposto do conhecimento,
como o outro da alta cultura. Quase que imediatamente é feita a equalização
entre entretenimento e frivolidade, entre cultura pop e superfície, e, funda-
mentalmente, entre os elementos que compõem esta camada de objetos e a
cultura de consumo. Reaparece – por mais enfadonho, ultrapassado e sem
sentido que pareça – a tensão básica entre o alto e o baixo, entre o distan-
ciamento acadêmico e a energia do fã, entre a rigidez teórica dos conceitos
e a fluidez e a efemeridade do pop para explicar e analisar os mais diver-
sos fenômenos do contemporâneo. E esta tensão vai definindo o que talvez
seja um dos aspectos mais interessantes dessa posição do entretenimento
na teoria da cultura contemporânea: o paradoxal perfil dos pesquisadores
da área, composto por partes quase equivalentes de ousadia, culpa e auto-
-indulgência.
Ou seja, o entretenimento tem uma indiscutível centralidade na cultura con-
temporânea e, em alguns aspectos é levado bem “a sério” nos meios acadêmi-
cos, mas o meu argumento aqui é que talvez ele seja levado excessivamente
“a sério”, chegando quase ao maçante. Pensemos, por exemplo, numa defini-
ção bem básica, num pequeno parágrafo que tenta circunscrever, como num
verbete de dicionário, o que constituiria o “regime do entretenimento”:

Um regime de produção universalmente inteligível de lazer e conteúdo. Entretenimento pare-


ce um termo do senso comum, mas como é utilizado na mídia contemporânea, ele abrange uma
condensação complexa de gratificações individuais, formas textuais e organização industrial. Os
ANGELA PRYSTHON 57

custos de produção do entretenimento são altos, e assim como as outras indústrias criativas e
culturais, ele almeja a maximização da audiência e a redução dos custos unitários. A “ideologia”
de tal regime é que esses imperativos meramente suprem as demandas do consumidor: a forma
de entretenimento reflete o que se quer. Enquanto ardorosos esforços são indubitavelmente fei-
tos para manter os produtos do entretenimento simultaneamente novos e atraentes, é também
o caso de reconhecer que tais produtos são organizados em torno a um modo industrial de pro-
dução, tipicamente comunicação de “massa” de um conteúdo padronizado para um consumi-
dor que tem pouca influência nela. Consequentemente, o entretenimento não é tanto uma eva-
são das preocupações cotidianas do capitalismo, mas uma expressão altamente avançada delas
(HARTLEY, 2002, p. 83).

Essa definição, vinculada a uma visão um tanto convencional da comunica-


ção e da cultura midiática, evidentemente se concentra nos aspectos indus-
triais do entretenimento, na sua vinculação à economia de mercado hege-
mônica e numa visão unidimensional. O que me parece transparente é que
é imperativo ampliar o escopo, esgarçar os limites das noções estabelecidas
e, fundamentalmente, sair um pouco do “sério”.
Nesse sentido, os trabalhos de Richard Dyer, professor de Film Studies do
King’s College London na Inglaterra, destacam-se como uma contribuição
relevante rumo à superação da tensão entre o alto e o baixo, e especialmente,
ao reconhecimento da centralidade dos fenômenos do entretenimento para
além de seu papel econômico na indústria cultural e à constituição da ideia
de sensibilidade como o pilar dos Estudos Culturais. Embora seja possível
subdividir a obra de Dyer em quatro “categorias” razoavelmente distintas
– a saber, estudos sobre estrelas de cinema (em Stars, 1979 e Heavenly Bo-
dies, 1986, principalmente), pesquisas sobre raça (mais diretamente White,
1997), preocupação pontual sobre cultura gay (Now You See it: Studies in
Lesbian and Gay Film, 1990; Culture of Queers, 2001), e as investigações so-
bre representação e entretenimento (Only Entertainment, 1992 e The Mat-
ter of Images, 1993) –, é importante ressaltar que o vigor de suas análises
se deve exatamente ao modo pelo qual essas quatro esferas estão quase que
permanentemente dialogando entre si e de diversas maneiras.
Na página de Dyer no sítio do King’s College, estão indicados como princi-
pais interesses de pesquisa precisamente “problemas de entretenimento e
representação, e as relações entre eles, sobretudo na música e no cinema” .6

O autor vem, desde o final da década de 1970, procurando investigar a na-


tureza desses problemas a partir de objetos anterior, frequente e estranha-
mente obliterados nos Estudos Culturais mais tradicionais, como o carisma
das estrelas de cinema, raça e cultura pop, pin-up masculinos, balé clássico,
58 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

Lana Turner e A noviça rebelde. Oriundo do Programa de Estudos Cultu-


rais da Universidade de Birmingham, seus primeiros trabalhos delineavam
sua militância tanto no movimento gay, como no elogio ao entretenimento
mundial – como é particularmente evidente num de seus artigos mais co-
nhecidos, “In Defence of Disco”, publicado originalmente em 1979 (2002,
151-159) – uma espécie de manifesto apaixonado em favor da cultura pop
(específico na sua abordagem da música disco, contudo aplicável a qualquer
outra manifestação “desqualificada”). Além de ser um dos textos pioneiros
dos Estudos Culturais em explicitar as implicações do conceito de sensibili-
dade para a compreensão da cultura contemporânea:

Falarei principalmente da música disco, mas há dois pontos preliminares que gostaria de lan-
çar. O primeiro é que disco é mais do que uma forma musical, embora certamente a música es-
teja no seu cerne. Disco também se refere a tipos de dança, clubes, moda, filmes – numa palavra,
uma certa sensibilidade, manifesta na música, nos clubes, e assim por diante, histórica e cultu-
ralmente específica, econômica, tecnológica, ideológica e esteticamente determinada – e que
precisa ser pensada (2002, p. 151).

Mas o que exatamente Richard Dyer quer dizer com o termo “entreteni-
mento”? O que pode definir uma área tão difusa, tão ampla e tão transitória?
Será que é sua proposta delinear o entretenimento como “área de conheci-
mento” ou pelo menos como o cerne da cultura midiática contemporânea?
A minha hipótese é que Dyer, ao longo das últimas três décadas, tenta exa-
tamente aprofundar essas questões de modo exploratório, sem tantas pre-
tensões conclusivas ou metodológicas num sentido estrito, mas buscando
apresentar simultaneamente um mapeamento panorâmico e especifico do
campo do entretenimento. Panorâmico porque seu escopo é historicamente
extenso (compreende desde os primórdios do entretenimento no início do
século XX até o interesse na investigação sobre o pastiche do início do sécu-
lo XXI), seus objetos são extremamente variados – como já frisamos acima,
seus interesses compreendem estrelas do mainstream cinematográfico e
pornografia gay, a evolução de determinados gêneros e subgêneros do cine-
ma popular, e a confluência entre formas culturais e sociedade, e seus apor-
tes também se alimentam de tradições distintas (teoria literária, semiologia
e marxismo, entre outros). E específico porque realçando e aprofundando-
-se explícita e principalmente nas questões relativas ao cinema de alcance
popular. No presente ensaio, todavia, vou me concentrar em quatro livros
– todos reeditados e atualizados primorosamente pela Routledge, além de
fartamente ilustrados, o que é bem importante para as pesquisas de audio-
ANGELA PRYSTHON 59

visual – (Only Entertainment, Stars, Heavenly Bodies e Pastiche) que desen-


volvem de modo particularmente eficaz essa conjunção entre particular e
específico, e que apontam para uma compreensão mais abrangente e polis-
sêmica do cinema e dos fenômenos ligados a ele.
Em Only Entertainment, apesar de ser uma coletânea de ensaios previa-
mente publicados em periódicos tão diversos como Screen, Gay Culture, Si-
ght and Sound, New Statesman and Society e Marxism Today, há indiscutivel-
mente um maior foco na conceituação e categorização do entretenimento.
Por mais que Dyer apresente a antologia como “ensaios discrepantes em
tom e tópico” (DYER, 2002, p. 1), fica patente – e talvez essa seja uma ca-
racterística de toda a sua obra – a organicidade do trabalho. Os elementos
ligados ao entretenimento são colocados num marco de referências que,
ao invés de simplesmente inverter ou descartar termos e hierarquias, vai
questioná-los na sua essência e na sua malha de interrelações. Para Dyer, o
entretenimento é uma ideia que envolve especificidades históricas e cultu-
rais, não podendo ser tomado como algo que pode ser encontrado universal
e atemporalmente. Assim, está implícita uma atenção ao domínio da cultura
da modernidade e do papel da indústria cultural nela, inclusive no que diz
respeito à discussão sobre ideologia.
Outro ângulo de relevo no mapeamento que Dyer faz da cultura do entre-
tenimento faz referência a Molière como figura chave na emergência do en-
tretenimento moderno. Ao confrontar a Igreja, a elite e os críticos para es-
tabelecer padrões populares para suas peças, Molière cortou os laços da
arte com o entretenimento, de certa maneira inaugurando ou ao menos de-
marcando enfaticamente o grande divisor que ainda hoje nos frequenta: “O
entretenimento ficou identificado como aquilo que não é arte, não é sério,
não é refinado. Essa distinção permanece conosco – arte é aquilo que é edi-
ficante, elitista, refinado, difícil, enquanto entretenimento é hedonista, vul-
gar, fácil” (2002, p. 6). O entretenimento vai assim se agregando à noção de
lazer e incorporando em alguma medida a carga negativa que ela implica
(ser o avesso do trabalho, o lugar da irresponsabilidade, o tempo ocioso, o
contrário da obrigação).
Sempre enfatizando nos seus textos que diferentes modos de representa-
ção correspondem a diferentes modos de percepção, Dyer tem buscado de-
monstrar não apenas a expansão ou o desdobramento do entretenimento
dentro de uma ordem natural prevista (ou seja, descrição e enumeração de
expressões avançadas do capitalismo, as mais variadas encarnações do en-
tretenimento), mas um tipo de sistema altamente contraditório, cheio de
60 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

brechas e estranhos nós. De certo modo, é como se o próprio entretenimen-


to (como indústria e como expressão avançada do capitalismo) estivesse
contaminado pela sua própria dissolução e subversão. Das sendas abertas
pela multifacetada interpretação do entretenimento por Richard Dyer, talvez
uma das mais interessantes e produtivas como objeto de investigação seja
precisamente a constituição de novos modos de consumo, recepção e res-
significação do entretenimento, servindo não mais apenas como elemento
de perpetuação da indústria, do mercado, mas formando (e destruindo em
algumas ocasiões também) redes inéditas de trocas simbólicas, hierarquias
inusitadas, tendências fugazes nas modas culturais.
Mas Only Entertainment não é apenas interessante nesse plano conceitu-
al mais amplo. Os ensaios sobre as atrizes Lana Turner e Elizabeth Taylor
ou as análises de O filho do Sheik e A noviça rebelde, por exemplo, oferecem
uma mescla de reverência e argúcia analítica – Dyer é um fã, sem dúvida,
mas também um atento (e às vezes irônico) crítico de cinema e, acima de
qualquer outra coisa, da cultura. Suas apreciações tanto de estrelas, como
de filmes, canções ou gêneros cinematográficos e musicais estão sempre
permeadas pela preocupação com o significado emocional (dos produtores,
dos receptores e dele mesmo) das formas do entretenimento, sem perder
de vista a complexidade dos seus conteúdos socioculturais. Tomemos, pois,
um texto como “Entertainment and Utopia”, que procura definir o musical
(em especial o musical hollywoodiano) tanto como gênero (estando impli-
cadas as convenções que vão caracterizá-lo como tal), como também nas
repercussões e impactos que esse gênero como visão de mundo tem na so-
ciedade. O ponto de partida é aproximação do conceito de entretenimento
ao de utopia:

Duas das descrições já naturalizadas de entretenimento, a saber, ‘fuga’ e ‘realização de desejos’,


apontam para o seu ímpeto central, utopismo. O entretenimento oferece a imagem de um ‘lu-
gar melhor’ para ir, ou algo que queremos profundamente e que nosso cotidiano não nos pode
prover. Alternativas, esperanças, desejos – esse é o domínio da utopia, a noção de que as coisas
podem ser melhores, que algo distinto do que está aí pode ser imaginado e talvez até realizado
(2002, p. 20).

Esse curioso e instigante paralelo vai ser discutido e demonstrado a partir


do esboço das categorias de uma sensibilidade utópica do entretenimento,
categorias que surgem do exame cuidadoso da lógica que informa alguns
produtos da indústria do entretenimento: noticiários, westerns, mas sobre-
tudo da análise de três musicais hollywoodianos (Caçadoras de ouro/Goldi-
ANGELA PRYSTHON 61

ggers of 1933, Cinderela em Paris/Funny Face e Um dia em Nova York/On the


Town). Neste ensaio, que me parece o mais relevante e influente de toda a
coletânea – e talvez de toda a sua obra –, ele apresenta não apenas uma rica
esquematização teórica do musical hollywoodiano, como reverte e subver-
te as usuais acusações de “escapismo” e unidimensionalidade da indústria
cultural, abordando-as afirmativamente.
Para os Estudos Culturais, contudo, o alcance de seus dois livros sobre
as estrelas de cinema, Stars e Heavenly Bodies, vai ser possivelmente maior
pelo interesse crescente na compreensão mais sistemática e teoricamente
informada da indústria das celebridades e seus mecanismos. Stars foi escri-
to no final da década de 1970 e estabeleceu procedimentos pioneiros para
teorizar sobre atores de cinema, lançando mão da argumentação decisiva
que as imagens das estrelas são criadas a partir de um cruzamento de textos
fílmicos e extra-fílmicos. Stars tem uma natureza mais ordenada, mais me-
tódica, que seus outros trabalhos, num certo sentido a proposta é mapear e
desenvolver uma subárea do campo dos Film Studies, identificando um apa-
rente apagamento do assunto na investigação teórica mais séria. Não que
as estrelas de cinema não houvessem sido abordadas anteriormente (basta
lembrar Morin ou Barthes), mas a conjugação simultânea das ênfases so-
ciológicas, antropológicas e semióticas como preocupação de pesquisa cer-
tamente se configura como um adendo de valor. Dyer entende que é preciso
superar a separação tradicional entre essas esferas, sob o risco de obliterar
justamente o que essa subárea dos Film Studies traria de mais relevante ao
campo, que é exatamente o entendimento e a categorização do conjunto de
discursos disponíveis e públicos sobre as estrelas de cinema.
Nos film studies, razões para estudar as estrelas se originam normalmente de duas preocupa-
ções bem diferentes que podem ser genericamente caracterizadas como sociológicas e semióti-
cas. A primeira focaliza as estrelas como um fenômeno social notável, e provavelmente influente
ou sintomático, como também um aspecto da “natureza industrial” do cinema. A abordagem se-
miótica reverte isso. Nela, as estrelas só têm algum significado porque estão nos filmes e, por-
tanto, porque são uma parte do que os filmes significam. (…) Contudo, uma das minhas suposi-
ções ao escrever este livro é que essa distinção, apesar de útil ao ajudar a manusear um tópico
que seria de outra forma por demais vasto, é essencialmente uma separação de conveniência, e
que tais perspectivas são mutuamente interdependentes. (2007, p. 1).

O livro, então, vai sendo estruturado de modo a acomodar e sistematizar
essas duas grandes tradições teóricas (sociológica e semiótica). São nove
capítulos distribuídos em três partes. Ainda que haja a predominância do
62 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

enfoque sociológico na primeira parte e que a segunda e terceira sejam cla-


ramente associáveis a uma herança semiológica, o entrelaçamento cons-
tante entre signos e sociedade expressa a empresa dialética que define não
apenas o trabalho de Richard Dyer, mas os próprios princípios dos Estudos
Culturais. Pois Dyer, na medida em que expõe, mas ao mesmo tempo conci-
lia a divisão entre o social e o discursivo (textos, imagens, signos), dispõe-se
a examinar as estrelas de cinema em função das práticas sociais, culturais e
textuais associadas a elas, entendendo-as na sua complexidade e não como
entidades independentes (seja por seu apelo e influência na sociedade, seja
na sua função de performers, seja como pura imagem). Ademais, esse tra-
balho parece estar comprometido com uma espécie de reavaliação compen-
satória dos ídolos fílmicos, um tipo de defesa radical (e teoricamente am-
parada) do glamour e da trivialidade, através das quais podemos enxergar
um paradoxal “antiintelectualismo intelectual” – quiçá inerente às pesqui-
sas sobre cultura pop. Para tanto, vale-se, como Only Entertainment, de uma
diversidade vibrante e fecunda de estudos de caso, mesmo que sob alguns
ângulos possam ser considerados datados 7.
Heavenly Bodies dá continuidade ao projeto iniciado em Stars, mas o livro,
publicado em 1986, precipita-se de modo mais ousado nos seus objetos. A
começar pelas escolhas: diferentemente do trabalho anterior, que era bem
mais panorâmico no seu aporte das estrelas de cinema – apesar da seção
mais focalizada em Jane Fonda –, neste a estrutura vai ser definida por um
trio central de estrelas, cada uma delas funcionando mais como foco de uma
série de tensões, que propriamente como performers ou arquétipos isolados.
O primeiro vértice do triângulo, provavelmente o mais óbvio deles, a atriz
Marilyn Monroe, vai ser lido através do conjunto de preconceitos, mitos, cer-
tezas e incertezas – em resumo, o discurso – sobre a sexualidade nos anos
1950. Ou seja, embora Dyer traga à baila informações e comentários sobre
os filmes e atuações de Monroe, ainda que seja estimado o seu papel como
a epítome da pinup americana ou mesmo que o livro apresente descrições
de cenas e de imagens, o núcleo duro do capítulo se refere à circulação de
discursos sobre a atriz na imprensa, na literatura e em textos acadêmicos
(psicologia, sociologia) da época, iluminando facetas mais desconhecidas,
talvez não tanto de Monroe especificamente, mas sem dúvida da sexualida-
de naquele período. O que, aliás, apesar de não estar realizado neste traba-
lho, sugere uma possibilidade de comparação desconcertante com o con-
temporâneo:
ANGELA PRYSTHON 63

Que significados Monroe tem e pode carregar hoje em dia teriam que ser abordados através
dos discursos que tem sido construídos nesses vinte anos transcorridos desde sua morte. Por
que ela é capaz de articulá-los é por sua vez uma questão interessante. Talvez seja porque ela
pode representar um talismã para aquilo que rejeitamos, para o preço que as pessoas tiveram
que pagar por viver no regime dos discursos sexuais doa anos 50. Ela exalta a nossa impressão
de sermos tão avançados. Mas talvez também não estejamos assim tão longe dos anos 50 como
gostaríamos de pensar – noções de sexualidade natural, de repressão, da inefabilidade da sexu-
alidade feminina, da sexualidade como chave da verdade e da felicidade humanas, essas não são
noções que abandonamos. Enquanto a sexualidade continue sendo privilegiado do modo que
tem sido, Monroe será uma afirmação daquele princípio ao mesmo tempo que testemunha do
preço que temos que pagar por isto (2004, p. 62-63).

A segunda estrela do livro é possivelmente a menos conhecida das três,


ainda mais ao considerarmos o contexto brasileiro: neste segundo capítulo,
que é notavelmente o mais extenso de Heavenly Bodies, Dyer se concentra
em Paul Robeson, ator, cantor, atleta e ativista negro norte-americano, que
fez um grande sucesso mundial, particularmente entre 1924 e 1945. Este
também é o tópico mais político e mais complexo da pesquisa. O ponto de
partida para a discussão sobre Robeson é o conceito de cross-over8 , termo
derivado do jargão da música pop para referir àqueles artistas que fazem
parte de mais de uma subcultura musical. Dyer, porém, aplica o termo a Ro-
beson em um sentido bem mais amplo. O argumento é estendido não somen-
te à capacidade de Robeson transitar entre vários gêneros musicais (músi-
ca negra americana de raiz, gospel, operetas, etc.) ou fílmicos e dramáticos
(musicais, melodramas, tragédias), mas ao apelo e popularidade que ele vai
ter para públicos diversos, e, sobretudo, o modo como Robeson utilizou sua
notoriedade em prol de causas anti-racistas e socialistas. Interessa a Dyer
articular questões concernentes às políticas de identidade racial, as ideias
sobre a beleza negra que começam a circular na primeira metade do século
XX e a análise do próprio corpo de Robeson como um discurso – este último
ponto, a propósito, parecendo formar o alicerce da pesquisa sobre estrelas
e celebridades. O fato de prefigurar as investigações posteriores de Dyer
sobre raça, show business, cultura do entretenimento e cinema só garante
relevância adicional ao ensaio que combina brilhantemente as leituras sutis
das imagens e performances de Robeson com o explosivo contexto social e
político no qual elas se inserem:

Pela escravidão e imperialismo, os negros são o grupo social mais claramente identificado e ex-
plorado pelo seu trabalho corporal. Os negros desse modo se tornaram as reminiscências mais
marcantes de que o corpo humano é trabalho numa sociedade ocupadíssima em negá-lo. As re-
64 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

presentações dos negros então funcionam como o lugar de lembrar e negar a inescapabilidade
do corpo na economia. (2004, p. 135).

O último capítulo de Heavenly Bodies também deriva de uma das áreas de


especialização de Dyer, que é a concernente aos queer studies. A estrela é
Judy Garland e o foco está na minuciosa recuperação histórico-social do seu
papel como ícone gay – seu ponto de partida é a busca do entendimento dos
porquês da centralidade de Garland nos códigos culturais dos homossexuais
masculinos. Mais uma vez, Dyer nos apresenta a ideia de modos de leitura
compartilhados que compõem tanto a construção das personas cinemato-
gráficas, como o legado que em muito ultrapassa as peculiaridades fílmicas
ou musicais dessas estrelas. O texto endereça significativamente pontos re-
ferentes à apropriação de Garland pelas políticas queer e as circunstâncias
a partir das quais o mainstream se deparou com essa apropriação, além de
esquadrinhar os traços concretos e as singularidades que fizeram da atriz o
depositório de afetos da parte do público gay a partir da articulação de três
características mais gerais – a aparente normalidade, o seu jeito “familiar”,
sobretudo no início da carreira; a sua androginia e a inflexão camp de sua fi-
gura, performances, filmes e canções. Afirmando categoricamente sua mag-
nitude no universo homossexual, Dyer eventualmente chega à conclusão de
que tal obsessão por Garland não tem nada de arbitrário:

Olhar para, escutar Garland pode nos remeter a como os gays masculinos viveram sua expe-
riência e situação, como eles as perceberam. Temos uma vaga noção a partir do intangível e do
inefável – o calor da voz, a estranheza do humor, o vigor mordaz da postura – mas eles signifi-
cam muito porque tornaram expressivo o que foi ser gay nessa metade de século. (2004, p. 191).

Um dos trabalhos mais recentes de Richard Dyer, Pastiche (2007), é uma


reavaliação mais sistemática do conceito de pastiche e suas adjacências. De-
rivado de um curso da Universidade de Nova York, o livro apresenta certa
proximidade com a estrutura de um manual, de um almanaque. O que po-
deria restringir o texto ao universo acadêmico dos Film Studies ou – já que
os objetos não são apenas do cinema – dos Estudos Culturais. Mas trata-se
muito claramente de um almanaque “tongue-in-cheek” 9 e literariamente
muito sofisticado, escrito com a costumeira fluidez e acessibilidade de Dyer,
que lança mão de um engenhoso (e didaticamente bem conveniente) recur-
so da glosa para este livro. Todos os cinco capítulos estão permeados por
essa intenção de esclarecer etimológica e historicamente o “pastiche e com-
panhia”, especialmente o primeiro (que não à toa se chama “pastiche e com-
ANGELA PRYSTHON 65

panhia”) que consta de enumerações, listas e acepções correntes, seguido


de quatro incursões mais específicas e exemplos mais detalhados e analisa-
dos mais detidamente – o pastiche como gênero literário e deliberadamente
chamado de pastiche; a noção do pastiche interior à obra; gêneros que são
definidos por uma adesão natural ao pastiche e um capítulo conclusivo que
considera a questão do valor estético e político do pastiche. Em todos eles,
há uma profusão de notas e verbetes explicativos que, embora sob alguns
ângulos possam parecer excessivos e confusos, constroem um mosaico pre-
cioso e fecundo sobre a cultura contemporânea e o que parece ser um dos
seus traços estilísticos dominantes, a imitação consciente – como Dyer de-
fine o pastiche desde as primeiras linhas.
Há não somente a intenção de reforçar o valor da prática do pastiche (nas
mais diversas esferas artísticas e culturais, embora com o foco preponde-
rante do cinema, da literatura e da música) e delinear seu papel no ambiente
cultural contemporâneo, mas decodificar seus procedimentos e distinguir
o pastiche da falsificação, sublinhando a natureza explícita do primeiro e o
viés dissimulado, clandestino e de alguma maneira condenável da segunda.
Como era de se esperar de qualquer discussão sobre pastiche, Dyer transi-
ta pelo território do pós-moderno, e não se esquiva de comentar e criticar
as abordagens já clássicas e consolidadas das estéticas contemporâneas,
como, por exemplo, Linda Hutcheon (sobretudo seu trabalho sobre a ironia
e sobre a paródia) ou Fredric Jameson (que define o pastiche como “paródia
vazia”). Seu objetivo, contudo, não é o de apenas apresentar esse inventário
de significados ou fazer uma revisão do pós-modernismo através do pasti-
che. Ele adere ao objeto pastiche a partir de uma abordagem multifacetada,
ao mesmo tempo complexa e fácil de apreender. Com seu genuíno envolvi-
mento (no sentido de conhecimento, de entusiasmo, de gosto e de pertinên-
cia) e a lúcida compreensão dos fenômenos descritos, analisados e relacio-
nados a partir de seus contextos históricos e sociais e de sua materialidade
intrínseca, Pastiche é uma contribuição inestimável para o que poderíamos
circunscrever como uma verdadeira estética dos Estudos Culturais.
Que, aliás, é uma forma de pensarmos a obra de Dyer como um todo: essa
estética estaria constituída por um projeto de engajamento afetivo e inte-
lectual com a cultura popular, por um conjunto de perguntas e respostas
simultaneamente pessoais e coletivas sobre o universo do entretenimento,
pela busca por uma linguagem crítica que dê conta das sensações frente aos
fenômenos da cultura de massas, por processos analíticos que manejam for-
mas culturais bem particulares e inúmeras vezes pequenas, frívolas, para ar-
66 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

quitetar um plano teórico mais abrangente, profundo e permanente. O fato


dessa obra ser realizada primordialmente no campo dos Film Studies, com
seu notório pendor para certo sectarismo e uma franca resistência aos Es-
tudos Culturais, só a torna mais relevante, libertária e, como os extravagan-
tes e fabulosos musicais analisados em Only Entertainment, utópica.

NOTAS

6- http://www.kcl.ac.uk/schools/humanities/depts/film/staff/dyer.html
7- Há algumas análises pontuais de Marlene Dietrich, Marilyn Monroe, Mar-
lon Brando, Barbra Streisand, Robert Redford, John Wayne, entre outros.
Contudo, o livro foi publicado pela primeira vez em 1980 e assim é Jane Fonda
que ocupa um lugar central no estudo, tendo capítulo completo devotado ao
seu significado histórico, ideológico e estético, desde o seu passado bombshell,
passando por comparações com os outros atores da família Fonda até chegar
ao seu ativismo político a partir do final dos anos 60.
8 - Cross-over pode significar também passagem, interseção, encruzilhada.
9 - Tongue-in-cheek é um expressão idiomática que significa “com ironia”, “de
brincadeira”.
68 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

UMA POLÍTICA DO FRÍVOLO


Dos diretores associados à Nouvelle Vague, Jacques Demy é um dos que cabe
mais desconfortavelmente nas definições mais correntes do movimento. O
mundo fantasioso e “encantado” (ou “en-chanté”, como o próprio Demy fri-
sava) dos seus filmes acabou por associá-lo também à audiência dos musi-
cais e dos melodramas convencionais e ao imaginário camp e nostálgico que
de diversas maneiras se distancia dos princípios vanguardistas do cinema
francês da época. Evidentemente, a própria crítica francesa – sobretudo os
Cahiers du Cinéma – tratou de resgatá-lo para o seio da austeridade do mo-
dernismo fílmico:
Todo o resto está escondido sob a ironia e o maneirismo, ou seja, o refinamento, como acontece
com Godard, que o faz sob o signo da provocação e através das citações. Frequentemente temos
que esquecer quão belo é o filme para descobrir seus méritos. A memória de Ophuls está aí para
nos lembrar: “Não há beleza que não tenha origem na ferida”
(Jean Genet). (VECCHIALI, 2004, p. 118).

Se já no seu primeiro longa-metragem, Lola (1960), Demy estabelece e


desenvolve muitos dos principais elementos do seu imaginário (como por
exemplo, a apresentação do universo portuário que está presente na maio-
ria de seus filmes, o início da colaboração com Michel Legrand ou a constru-
ção de personagens que iriam aparecer em outros filmes – Lola em Model
Shop (1969) e Roland Cassard em Os guarda-chuvas do amor), é só com Os
guarda-chuvas... que ele conseguirá reunir os recursos necessários para re-
alizar mais completamente seu projeto estético. Projeto que adere ao musi-
cal como gênero preponderante do seu cinema e inclui necessariamente a
noção de “en-chanté”: sua combinação de fabulação e música, magia e canto.
Também é possível enxergar nessa elaboração a matriz utópica que Richard
Dyer identificou no musical.
O que nos interessa mais diretamente para a compreensão dos filmes de
Jacques Demy a partir dessa teoria sobre o gênero é o esquadrinhamento
de três tendências principais dos musicais americanos: a saber, os musicais
que separam claramente a narrativa e os “números” musicais propriamente
ditos (em geral aqueles filmes que tematizam o próprio entretenimento ou
o mundo dos espetáculos, como Caçadoras de ouro); aqueles que separam
narrativa e números mais sutilmente constituindo uma sorte de híbrido (os
números representando uma espécie de linha de fuga da narrativa, a sua
dimensão utópica, no argumento de Dyer, sendo o exemplo utilizado por
ANGELA PRYSTHON 69

ele Cinderela em Paris, embora possamos ver em vários dos musicais mais
emblemáticos da história essa articulação: A roda da fortuna, Cantando na
Chuva, Sete noivas para sete irmãos, etc); e, finalmente, aqueles que dissol-
vem as fronteiras entre narrativa e números, “indicando, pois, que o mundo
da narrativa já é também utópico” (DYER, 2002, p. 28).

POLÍTICAS DE UM MELODRAMA BANAL

Os guarda-chuvas do amor foi o primeiro longa-metragem em cores de Demy


e o primeiro filme no qual foi possível o cineasta apresentar mais integra-
damente seu estilo, sua visão de mundo “en chanté” e no qual ele pôde expe-
rimentar mais plenamente (e subversivamente) as convenções do gênero
– algo que não havia sido possível com Lola, que apenas lançava piscadelas
para o musical. Um filme completamente cantado, emprestando elementos
da ópera, da opereta e, evidentemente, do musical hollywoodiano, sem ser
exatamente nenhum dos três, o filme trata, em três atos, da história de amor
entre dois jovens, Geneviève (Catherine Deneuve) e Guy (Nino Castelnuo-
vo). Com um plot que focaliza a vida comum dos habitantes de Cherburgo,
cidadezinha do litoral norte da França, e dá ao filme uma estrutura próxima
tanto à do melodrama convencional, como da tradição do realismo social.
Esse apego ao real revela também um apego ao lugar, uma vontade de mos-
trar uma Cherburgo colorida e estranhamente melancólica que, se de um
lado revela a mesma pulsão utópica dos musicais americanos descrita por
Dyer (nesse sentido aproximando-o do Stanley Donen de Um dia em Nova
York e também de Cinderela em Paris, basta lembrarmos do número “Bon-
jour, Paris” no qual Fred Astaire, Audrey Hepburn e Kay Thompson cantam
e dançam nas ruas e pontos turísticos mais importantes da cidade), de ou-
tro usa artifícios, cores e sons.
Nesse sentido, o peculiar e estudado colorido e a cenografia meticulosa
que Demy imprime à estrutura realista vão ser fundamentais, assim como a
orquestração sonora e musical de Michel Legrand complementa a intensifi-
cação emotiva que contrasta brilhantemente com a banalidade dos diálogos.
Temos claramente a impressão de que é nesse contraste que está o cerne do
estilo en-chanté, ou do que alguns críticos chamaram de “Demy-monde”:
A expressão “Demy-monde” carrega consigo conotações de crepúsculo e de sombra, de pecado
sedutor, da troca dura e real de sexo e dinheiro que não necessariamente se opõe ao romance
e ao amor. Mas a ideia de “metade” (demi) também implica em uma divisão que encontra uma
70 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

profunda ressonância na obra de Demy. Dualidades espalhadas na literatura tipicamente justa-


põem beleza (magia / lirismo / amor, acentuando sua metonímia) com a crueldade, ou o exótico
com o cotidiano (às vezes fazendo uma ligação implícita entre a beleza e o exótico, entre o cruel
e o cotidiano), Taboulay observa que “o mais intrigante é que o mundo Demy, o Demy-monde, é
tanto divorciado como colado com o nosso mundo”, devolvendo-nos ao conceito de Demy-mon-
de, ou seja, mesmo com suas contradições internas esse mundo se estabelece como algo à parte:
“Seus filmes eram - e ainda são -, antes de mais nada, algo mais”. (STILWELL, 2003, p. 123-124).

É essencial para a compreensão desse “Demy-monde” constatar que é cons-
truída muito rigorosamente uma mis-en-musique, paralela e indissociável
da mise-en-scène. Em quase todas as trilhas que Legrand fez para Demy,
a música consolida o elo com o musical americano pelo crossover entre a
chanson francesa, o jazz americano e a música erudita, sobretudo certa ins-
piração barroca (mais presente em Pele de Asno (1970), outra famosa cola-
boração com Demy, e O mensageiro (1971), de Joseph Losey). Para ilustrar
essa noção da mis-en-musique de Legrand/Demy, temos uma das primeiras
sequências de Os guarda-chuvas do amor, na qual Guy “conversa” com seus
companheiros no vestiário da oficina onde trabalham sobre o que vão fa-
zer após a jornada. O tom de conversa fiada e as citações à ópera Carmen
servem como a base para Legrand compor o ritmo jazzístico da música e da
cena em geral, funcionando também como um comentário sobre a própria
indústria cultural e o cinema. Nesse filme vamos nos deparar com talvez a
mais célebre das canções de Legrand e o principal motivo melódico da narra-
tiva: Je t’attendrais, que perpassa todo o filme como a lembrança da relação
entre Guy e Geneviève. A intensa carga afetiva da canção traz à tona não so-
mente o fracasso do romance entre os dois jovens, como também a sombra
da Guerra da Argélia, que intensifica as contradições internas da obra, seu
cunho realista e seu ímpeto político. Do mesmo modo que Je t’attendrais é o
motivo que imprime a extrema melancolia do filme, a guerra funciona como
um baixo contínuo quase inaudível e quase invisível, como a força motriz
para as transformações do cotidiano francês no período.
De certo modo, a dimensão utópica não se encontra propriamente no
filme, mas nas promessas perdidas, no que é apenas entrevisto, no que é
fugidio. O fato do filme ser todo cantado, então, não teria a ver com uma
equalização entre o lugar da utopia e os espaços do cotidiano (nesse caso, a
cidade provinciana do litoral norte francês), inversamente quase teríamos
uma afirmação da forma (e uma forma particularmente estilizada, cuidado-
sa e seriamente “afetada”, sem traços de ironia, sem camp) como agência do
real, como constitutiva de uma política do cotidiano.
ANGELA PRYSTHON 71

ARTIFÍCIOS DE UMA UTOPIA PROVINCIANA

O fim de Duas Garotas Românticas. Estúpido, devastado, emoção definitiva. Uma emoção tão
forte que tudo que eu sempre pensei – e escrevi – sobre Demy continua verdadeiro. Um cine-
asta difícil, não completamente sentimental, mórbido e alegre. Só uma “idéia”. Melancolia não
é nostalgia. O mundo de Demy (o meu também, suponho) é melancolia instantânea. Não há
mundo perdido, nenhum ideal que se foi, nenhum estado prévio pelo qual nos lamentamos.
Pela simples razão (perversion oblige) que não queremos saber nada desse mundo “do qual vie-
mos” (mais aliança do que parentesco, etc). Melancolia é instantânea como uma sombra. Coi-
sas se tornam melancólicas imediatamente, graças à música e à música do diálogo. (DANEY,
1989/2009).

Cerca de três anos depois de Os guarda-chuvas..., Demy dá continuidade


ao seu diálogo com o gênero musical em Duas Garotas Românticas. Há uma
série de pontos comuns entre um filme e outro: Catherine Deneuve volta à
cena, assim como Legrand e sua música, também retornam na tela a pro-
víncia litorânea francesa (dessa vez, Rochefort), povoada por marinheiros
e homens e mulheres com roupas de cores de sorvete e confeitos de açúcar.
Cidadezinha de sonho, mas um sonho modesto, provinciano, estranhamen-
te calcado no real, sem arroubos exatamente grandiosos ou especificamente
exóticos (como normalmente são as cidades de sonho do musical america-
no, metrópoles de luz ou bucólicos vilarejos verdejantes).
Persiste igualmente a melancolia da qual fala Serge Daney, mas poderíamos
dizer que a melancolia de Duas garotas... está permeada pela série de dife-
renças que separa um filme do outro. A melancolia de Os guarda-chuvas...
advinha da sensação de irrealização dos protagonistas, da sua incompletu-
de, da sua derrota frente ao cotidiano, diante do real. Não que Duas garo-
tas românticas recuse ou oblitere o real, o filme simplesmente prescinde do
cotidiano, ou o utiliza apenas para suprimi-lo, próximo da ideia de Jacques
Rancière sobre o teatro: “‘Bom’ teatro é aquele que usa sua realidade sepa-
rada, a fim de aboli-la” (2009, p. 7). Distintamente de Os guarda-chuvas...
(com o conflito na Argélia na malha das relações e com os costumes e a nor-
malidade da classe média e da burguesia de Cherburgo sendo fiel e esque-
maticamente apresentados), o filme não alude a quase nenhum contexto
fora dele mesmo, apresenta um ainda maior fechamento em si e no gênero,
onde as referências alheias vão ser fundamentalmente outros musicais e a
própria obra de Demy (há uma rápida menção a dois personagens secundá-
rios de Lola).
72 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

Produção de filmes: desde Lola, a trama é auto-referencial e é dada como algo que se re-produz.
Logo não será mais que um jogo (Os Guarda-chuvas do amor, Duas garotas românticas) instau-
rar um circuito fechado de referências no qual qualquer desvio está concebido como uma va-
riante onde o Mesmo não cessa de se apresentar. (DANEY, 2003, p. 135).

Mas voltemos à melancolia: esta, provavelmente, surja paradoxalmente do


excesso de artifícios utilizados para expressar sentimentos. Tudo no filme
parece existir para negar a melancolia: os grandes espaços abertos, a Pla-
ce Colbert, em Rochefort, com suas fachadas em tons pastéis, marinheiros,
bailarinas, crianças que dançam festivamente, a combinação de cores. Ine-
vitavelmente, porém, esta irrompe, afinal é ela que está na raiz de toda a
movimentação dos personagens, de todos os impulsos de pintar a cidade,
de todo o desejo pelo desconhecido (o ideal feminino de Maxence, o poeta
de Delphine, o estrangeiro de Solange) e pelo que foi perdido no passado
(Madame Garnier, Monsieur Dame). Daney rejeita a chave da nostalgia para
pensar o cinema de Demy, contudo ela, de alguma maneira furtiva e insidio-
sa, esteja aí nesse amontoado de artifícios, de subterfúgios meticulosamente
elaborados para evitar a melancolia: assim, não teríamos aí a nostalgia por
um lugar e um tempo realmente existentes, muito pelo contrário, esta seria
a invocação persistente de um protesto contra a contingência, seria, pois,
voltando a Dyer, a expressão mais pura da propensão utópica do musical.
A maneira oblíqua e ao mesmo tempo muito assertiva através da qual Duas
garotas... conforma as convenções do gênero musical pode nos fornecer
mais pistas sobre as relações contraditórias, complexas e sutis do cinema
de Demy com a tradição. Há um enorme respeito e uma fascinação quase
infantil com essa tradição, e simultaneamente uma alegre irreverência e o
desejo de experimentação com suas formas.
Como já dissemos anteriormente, Duas garotas românticas contou com
a mis-en-musique de Legrand, compondo melodias para letras que citam
Mozart, Stravinsky, Bach, Duke Ellington, Louis Armstrong, Count Basie e o
próprio Legrand, delineando uma trilha que mescla momentos de intensa
alegria (Chanson des jumelles, Nous voyageons de ville en ville, Chanson d’un
jour d’été, entre outras) e fervor melancólico (Chanson de Maxence, Chan-
son de Delphine, Chanson de Simon, entre outras), chegando a incluir duas
bizarras e relativamente alegres canções sobre uma mulher morta a ma-
chadadas. Se neste filme já não se utiliza o recurso dos diálogos inteiramen-
te musicados, vamos ver a instituição de outros dispositivos de relevo que
terminam por constituir uma estrutura rígida e uma forma singular (ainda
ANGELA PRYSTHON 73

que calcada na tradição e numa homenagem ao gênero), como a definição


de uma melodia específica para cada um dos três casais do filme (Delphine/
Maxence, Yvonne/Simon e Solange/Andy); a composição de todas as letras
em versos alexandrinos (contando com a cena do jantar na qual os versos
são recitados em lugar do canto); a insistente sobreposição de números de
dança e ações corriqueiras no mesmo quadro; a disposição espacial (tanto
urbana, como dos interiores) determinada pela combinação das cores e por
uma intricada geometria. Esse conjunto de artifícios meticulosamente ar-
mado para dar conta dos encontros e desencontros, para orquestrar o acaso
e domar o tempo a partir de uma vistosa e barulhenta utopia.

LUTA DE CLASSES, LIBRETO DE ÓPERA E PAPEL DE PAREDE


Une Chambre en ville é o antepenúltimo longa-metragem de Demy e um dos
poucos filmes do final de sua carreira a obter reconhecimento da crítica,
ainda que não tenha sido bem sucedido nas bilheterias. Como Os guarda-
-chuvas... é inteiramente cantado e investe, como aliás toda a obra de Demy,
nas minúcias de cenários, guarda-roupas e mise-en-scène na construção de
um mundo que é paralelamente fechado e realista, artificial e trivial, fabu-
loso e verdadeiro.
Sem a leveza jazzística de Legrand na composição musical, Une Chambre en
ville vai ser estruturado musicalmente como uma ópera popular. Mas popu-
lar apenas no sentido de que não estamos diante de uma peça estritamente
erudita. A trilha de Michel Colombier é bem mais austera, muito mais dura,
mais escura, mais sombria, buscando equilibrar um mundo de total incon-
gruência, dividido entre o amor sublime (seja o da ingênua Violette, seja o
dos intensamente apaixonados Edith e François) e a violência (física e espi-
ritual, venha ela dos preconceitos de Madame Langlois, da sexualidade per-
versa de Edith, das frustrações de Edmond ou das armas da polícia). Assim,
Une Chambre en ville teria que necessariamente deixar de lado o esquema
dos musicais (e seus redutos utópicos também) para abraçar integralmente
o libreto operístico e da tragédia clássica – mesmo sem ter que abandonar
Hollywood por completo, já que incorpora precisão e o controle na combi-
nação das cores (mais intensas e mais escuras que nos filmes precedentes)
e certa simplicidade maniqueísta dos melodramas dos anos 50 (período no
qual se desenrola o filme).

Mas esse material simples não é trabalhado de forma simplista: embora Demy ofereça figuras
melodramáticas do bem (a namorada inocente) e do mal (o marido de Sanda, o dono cruel de
74 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

uma loja de artigos eletrônicos, interpretado com fúria operística por Michel Piccoli), o centro
emocional do filme é uma figura aparentemente marginal, a dona da casa, magnificamente en-
carnada por Danielle Darrieux, que testemunha o conflito, dividida entre sua afeição por Berry e
seu amor por sua filha, entre a satisfação romântica que promete Berry e a segurança financeira
representada por Piccoli. Todas as tensões expressivas do cinema de Demy estão focadas nela:
a aceitação sóbria da realidade minada por um anseio pelo absoluto, um romantismo epifânico
em trágica colisão com os fatos incontroversos. (ROSENBAUM, 1992).

Essa espécie de foco na personagem de Darrieux também representa uma


acentuação, um aprofundamento do tema da luta de classes que já havia
sido explorado fartamente por Demy não apenas em Lola e Os guarda-chu-
vas, mas principalmente em The Pied Piper (o musical de 1972 que Demy
realizou na Inglaterra, com trilha sonora do cantor pop Donovan). Pois, se
Une Chambre... inscreve sua narrativa a partir da greve real testemunhada
por um jovem Demy em Nantes, na verdade seu cerne não é a militância de
François (embora seu enredo não possa prescindir dela), nem a crônica do-
cumental dos eventos de 1955. Demy usa o real como uma malha para tecer
as linhas do seu melodrama, que depende fundamentalmente da tensão en-
tre Madame Langlois (com toda a sua ambiguidade) e François, como, res-
pectivamente, metáforas da burguesia decadente e da classe operária.
O choque entre o realismo (a realidade da cidade de Nantes, da greve de
1955, da gravidez indesejada de Violette, da impotência de Edmond) e o
artifício excessivo (a música pesada de Colombier, a mise-en-scène operís-
tica de ambos os suicídios do filme, a nudez sob o casaco de vison de Edith,
o décor destacado, os papéis de parede quase protagonistas nas cenas dos
quartos – na verdade, são dois, um quarto na casa de Madame Langlois, ou-
tro no hotel barato onde os amantes consumam sua paixão) desarticula e
desestabiliza os efeitos de real pressupostos num plot como este. Tal emba-
te é o que põe a nu o dispositivo cinematográfico, sem, contudo, descartá-lo,
ou seja, sem descartar a ilusão, sem abandonar o artifício. O que talvez, aliás,
resuma de modo sintético o cinema de Demy: filmes imbuídos de artifício,
de ilusionismo, mas que estão permanentemente pondo à prova a própria
ideia de ilusionismo.
A revelação dos artifícios de Une Chambre... vem através de uma chave bem
distinta dos filmes anteriormente comentados. Em ambos exemplos, o ca-
ráter en-chanté instituía a utopia provinciana, deixava no ar uma doce me-
lancolia e certo charme juvenil. Neste último filme, quando não é o franca-
mente grotesco que estabelece o tom (sobretudo a partir da crueldade de
Edmond, da perversão de Edith ou da decadência de Madame Langlois), é a
inclinação profundamente trágica e ao mesmo tempo banal da farsa negra e
bizarra que se impõe. O encanto se quebrou, o musical como utopia – mes-
mo a sempre ambivalente utopia de Demy – já não é mais possível (talvez
Demy tente recuperar um pouco do en-chanté original no seu último filme,
Trois Places por le 26, com Yves Montand). Três dos protagonistas morrem,
dois deles se matam por amor.
SIMULACRO
78 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

BAUDRILLARD E OS MODOS E MODAS DA TEORIA

O universo teórico não é tão distinto assim do mundo da moda. Como no


último, há também na academia uma avidez por novidades, por obsessões
efêmeras, por rótulos interessantes e por palavras-chave de ordem. Pode-
ríamos dizer que a teoria (ou pelo menos sua institucionalização nas uni-
versidades, faculdades, revistas acadêmicas, publicações, editoras) também
está marcada pelas listinhas in/out que prevalecem nas revistas de moda,
que marcam os discursos prescritivos das “tendências”, dos estilos.
Já se vão mais de vinte anos da época em que a teoria social de Jean Bau-
drillard era “moda”. Mais do que isso: era “a” moda. Tanto no circuito acadê-
mico, como naquele dos cadernos de variedades e revistas especializadas
em cultura em ambos os hemisférios, vale relembrar. Se fôssemos elaborar a
listinha in dos conceitos-chave para a teoria dos anos oitenta, veríamos mui-
to claramente que as três primeiras palavrinhas no topo (simulacro, simula-
ção, hiperrealidade) teriam saído diretamente do léxico baudrillardiano. O
impacto do trabalho de Baudrillard foi enorme nas humanidades, especial-
mente para a consolidação e propagação daquilo que se convencionou cha-
mar de sociedade pós-moderna (por mais que ele rechaçasse a associação
tão direta com o termo). Mas como todas as modas, Baudrillard, seus concei-
tos e suas conexões com o pós-moderno foram se desgastando. Isto porque,
assistimos nas duas últimas décadas à ascensão e queda do pós-moderno,
à inflação do hiperreal, à morte do real, à simulação da simulação, ao simu-
lacro do simulacro. O que nos leva a acreditar que no discurso acadêmico
contemporâneo o uso excessivo e indiscriminado de certas expressões e de
conceitos foi levando à progressiva obsolescência dos mesmos.
Neste processo de desbotamento do pós-moderno e dos conceitos que o
circundavam, a recepção da obra de Baudrillard também acabou sendo afe-
tada. Não somente seus conceitos foram perdendo aquela centralidade e
aquela urgência que tinham nos debates da década de oitenta, mas suas
obras adquiriram um certo sabor de clichês requentados, um certo ar de ri-
dículo.
O sistema das modas, mesmo as acadêmicas, contudo, é também cíclico, e
eis que ao final da década de noventa, depois do ostracismo suscitado pelo
ocaso do pós-modernismo na academia e na mídia, Baudrillard volta à baila.
Desta vez via cultura pop: algumas de suas ideias são mastigadas, processa-
das e de certo modo deturpadas no filme Matrix (1999) e seus conceitos ga-
ANGELA PRYSTHON 79

nham novamente os cadernos de variedades dos diários e dos semanários


mundiais como tentativas de explicação para a proliferação e consolidação
dos “reality shows” como o gênero televisivo mais lucrativo do capitalismo
tardio. O próprio Baudrillard retornava com força ao olho do furacão midi-
ático ao comentar de modo sempre polêmico os acontecimentos (ou, segun-
do ele, não-acontecimentos) mais impactantes do final do século XX e início
do XXI (guerra do Golfo, morte da princesa Diana, 11/09, entre outros).
Poderíamos arriscar a dizer, portanto, que Baudrillard esteve quase sempre
condenado a uma relação intensa com as modas acadêmicas. Fosse como a
novidade niilista da década de oitenta, ou por ter sido, no novo milênio, as-
sim como o conceito de pós-moderno (que alguns teimaram em associar
com sua obra, embora ele poucas vezes tenha usado o termo), reapropriado
como um toque retro-futurista na teoria. Por isso, não deixa de ser melan-
cólico que no final da vida, Baudrillard continuasse sendo mais (mal) falado
que lido, que sua obra tenha sido ora descartada como obsoleta e passé, ora
revisitada de modo superficial, quase como um estilista que recupera uma
saia baloné ou uma manga-morcego. Todavia, resta a expectativa de que esta
talvez seja a ocasião oportuna para nos darmos contas de que Baudrillard e
sua obra são de fato cruciais para compreender o contemporâneo e neces-
sitam ser lidos e compreendidos de modo mais consistente e aprofundado.
ANGELA PRYSTHON 81

A EXPERIÊNCIA DA MEDIAÇÃO

Uma ideia nos persegue no contemporâneo: nosso contato com o real, com
a experiência do real é cada vez mais limitado, cada vez mais mediado. Os
media parecem ser a principal via de acesso a essa experiência. Adauto No-
vaes, na introdução de Rede Imaginária, uma coletânea de artigos sobre te-
levisão e democracia, afirma que: “a representação triunfa sobre o que é
representado; as imagens perdem a força e o sentido originais e são produ-
zidas apenas para o prazer dos olhos” (NOVAES, 1991, p. 9).
A ideia do empobrecimento da experiência a partir da proliferação das ins-
tâncias de mediação na cultura é o cerne da sociedade de informação. Como
se o real se visse lacerado pelos infinitos simulacros midiáticos. Gilles De-
leuze, em “Platão e o simulacro” (1969), já caracterizava a modernidade
como a substituição do platonismo pela exacerbação do simulacro.
O argumento pode ser estendido até a própria dissolução da realidade a
partir dessa interferência midiática: se o simulacro é aparentemente supe-
rior (ou pelo menos mais atraente, mais cintilante, mais luminoso) ao real,
ao original, a conseqüência lógica é a supressão desse real. Jean Baudrillard,
em seu livro A ilusão vital, fala de um assassinato do Real, onde o referente,
o sujeito e o objeto desaparecem num mundo virtual:

Em termos mais gerais, todas as funções tradicionais – a crítica, a política, a sexual, as funções
sociais – tornam-se inúteis num mundo virtual. Ou elas sobrevivem apenas numa simulação,
como na musculação ou numa cultura desencarnada, como funções falsas ou álibis (2001, p. 71).

Dentre os media, os mais “culpados” pelo “crime perfeito”, por esse desapa-
recimento – ou pelo menos, os mais eficazes –, são, indubitavelmente, a In-
ternet (por sua estrutura) e a televisão (pelo seu alcance). A televisão tem,
então, mais impacto pelo seu incrível alcance: em 1990, a média de consu-
mo do imaginário televisivo por habitante no Brasil era de cerca de quatro
horas diárias (NOVAES, 1991, p. 9-10). Além desse índice ter provavelmen-
te aumentado (considerando a explosão consumista da década de 90), as
operações mentais envolvidas nesse consumo são cada vez mais generali-
zadas e compartilhadas pelas massas. A televisão teria, portanto, um papel
preponderante nessa implosão da realidade.
Se a televisão é o palco por excelência do “assassinato do Real”, perpetrado
cotidianamente, o reality show é, então, o gênero, o formato mais adequa-
do para essa encenação. Justamente porque ele traz à tona as contradições
82 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

mais finas desse processo de des-realização. O próprio termo reality show já


vem carregado de algumas delas: a exibição da realidade, como se a media-
ção não tivesse qualquer efeito sobre essa realidade, como se o espetáculo
em si já não fosse incompatível com a idéia de um cotidiano. Mas o reality
show é mais interessante que a simples constatação dessa primeira impos-
sibilidade (o espetáculo da realidade, o show do cotidiano): o reality show
é o assassinato do real mostrado a cores e ao vivo, com todos os detalhes.
O formato já clássico do Big Brother (programa originário da Holanda e
vendido para muitos países. No Brasil, é produzido e veiculado pela Rede
Globo. No B.B., doze pessoas são confinadas durante meses em uma mansão
e são realizadas provas, gincanas e pesquisas junto ao público até sobrar um
único vencedor) ou da Casa dos Artistas (do SBT, com formato muito pare-
cido ao do Big Brother, embora os seus “jogadores” sejam pessoas do “meio
artístico” – starlets de TV, cantores românticos, roqueiros decadentes, “coe-
lhinhas” fora de forma ou “rinocerontes de sunga”...), por exemplo, confia na
seguinte idéia de realidade: você pode isolar a realidade, você pode expô-la
e dissecá-la através desse olhar do microscópio. O reality show nos coloca a
todos como entomologistas fascinados diante da nudez (em geral parcial),
da escatologia, de pequenas intrigas e mesquinharias, de cacoetes patéticos
das celebridades instantâneas (mesmo em Casa dos Artistas, as “celebrida-
des” participantes são pouco mais que ilustres desconhecidos). Os progra-
mas serviriam como uma espécie de consolo para os que não estão naquele
mundinho: aparentemente livres da vigilância, livres do panóptico, poderí-
amos ser diferentes daquele espetáculo? Ou na verdade seríamos voyeurs
de nós mesmos? Em entrevista para o site NO, Jurandir Costa Freire fala do
engodo do voyeurismo dos reality shows:

O que quero dizer é que o engodo desse “voyeurismo” está no fato de que os indivíduos aca-
bam descobrindo o que já sabem, ou seja, que os outros são exatamente iguais a eles no modo
de pensar, agir, sentir, desejar, querer, ter prazer etc. Em última instância, esse voyeurismo social
equivale, como disse Wittgenstein, a testar a fidedignidade da informação de um jornal, consul-
tando vários exemplares do mesmo jornal. Das duas uma: ou esse tipo de espetáculo vai apelar
cada vez mais para o escabroso – que é a saída da pornografia – ou vai perder todo o interes-
se e se tornar tão atraente e excitante quanto – com perdão da gíria – “um rodízio de chuchu”
(2002).

Por enquanto, os reality shows não parecem estar caminhando rumo à por-
nografia stricto sensu, mas sem dúvida os aspectos mais degradantes pare-
cem ser a chama ainda acesa do gênero e seus subgêneros (basta pensar na
ANGELA PRYSTHON 83

crescente exploração das cenas escatológicas ou de cunho sexual nos pro-


gramas mencionados ou no sucesso de quadros de programas de auditório
nos quais as pessoas aceitam comer o “incomível”, tocar o “intocável”, entre
outras coisas).
Em relação aos participantes do gênero e “aparentados” (incluo aí tam-
bém os personagens de programas como Oprah ou Ratinho, atores de “pega-
dinhas” ou “testes de fidelidade”), lembro-me do texto de Walter Benjamin
sobre a reprodutibilidade técnica, que, aliás, anteviu muitas das mudanças
precipitadas pela técnica na cultura, especialmente de um dos trechos nos
quais ele trata do ator de cinema (que poderíamos ver como um precursor
do habitante dos reality shows – uma versão extrema de ator nessa acepção
benjaminiana):

Para o cinema é menos importante o ator representar diante do público um outro personagem,
que ele representar a si mesmo diante do aparelho. (...) Desde muito, os observadores especia-
lizados reconheceram que “os maiores efeitos são alcançados quando os atores representam o
menos possível” (BENJAMIN, 1985, p. 179-181).

De fato, porém, estão em jogo vários outros paradoxos. No raciocínio de-


senvolvido desde o início deste texto, o real se contrapõe à mediação, a re-
presentação aparece como elemento de repressão da experiência. É, porém,
interessante notar como o reality show é uma forma de se fugir do cotidiano
através do cotidiano: as pessoas que se inscrevem para participar deste tipo
de programa o fazem também para sair do anonimato. Sair do anonimato
sendo as mesmas pessoas de sempre, continuando seus rituais de pesso-
as anônimas. A mediação, pois, não se contrapõe à experiência; indo mais
além, ela se constitui como a experiência que dá sentido a todo jogo. Ou seja,
não importa a representação em si (voltamos ao argumento de Adauto No-
vaes: não interessa o que está sendo representado – seja o objeto banal ou
bizarro, cotidiano ou extraordinário, insípido ou raro, ele já não é mais refe-
rência, ele perde sua função de referente), mas o próprio ato de representar,
esse momento da representação. É, portanto, a experiência midiática, essa
existência mediatizada que fascina, não apenas o jogador, o participante dos
programas, mas o telespectador.
Talvez a grande ironia de todas elas (creio firmemente que há várias por
aí) permaneça sendo essa atração do real exatamente quando o real está
sendo trucidado: será que poderíamos dizer que temos o fascínio pela “crô-
nica da morte anunciada” do real? Somos cúmplices do crime? Talvez não:
84 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

como se o crime pudesse ser anulado, o mote baudrillardiano do assassi-


nato do real pode ser posto do avesso: matou-se o real, mas tratou-se ime-
diatamente de substituí-lo pela mediação. Os media são uma espécie, pois,
de real ressuscitado.
86 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

TRANSFORMAÇÕES DA CRÍTICA
DIANTE DA CIBERCINEFILIA
“O cinema é sempre perfeito na medida do possível.” Gilles Deleuze

“I would argue that whereas classical cinephilia was no doubt a reason for being, contem-
porary cinephilia has become a mode of existence.” Nicole Brenez

As duas primeiras décadas do século XXI viram surgir alguns fenômenos


importantes no que concerne à cinefilia. Temos uma geração de cinéfilos
que vem sendo de certo modo formada pela internet a partir de várias di-
mensões, a saber: a interação em chats e grupos de discussão em diversos e
inúmeros portais; o compartilhamento (legal ou ilegal) de filmes; a leitura
sobre filmes na web (blogs ou portais de veículos de comunicação estabele-
cidos, clusters de críticas, etc); a produção ativa de textos sobre cinema (em
blogs pessoais, organização revistas e cineclubes on line), etc.
Evidentemente, essa emergência do que podemos chamar de cibercinefilia
não constitui uma drástica redefinição da noção de cinefilia tal qual ela sem-
pre foi entendida. Trata-se, antes, de uma reconfiguração de suportes para
textos críticos e de práticas cinéfilas. O objetivo deste ensaio é justamente
catalogar as várias dimensões da relação entre o cinema e a internet, des-
crevendo brevemente suportes e práticas desenvolvidas na rede, exemplifi-
cando-as e analisando o seu impacto na crítica de cinema contemporânea.

BASES DE DADOS
As primeiras aproximações entre o cinema e a internet se dão de modo as-
sistemático a partir de fanpages (de atores, atrizes ou filmes) hospedadas
em portais como Geocities e Yahoo. A conexão entre cinema e internet co-
meça a se organizar (ainda que embrionariamente) no campo do armaze-
namento e disponibilização de dados. Um dos marcos iniciais dessa organi-
zação é o surgimento do IMDb, ou Internet Movie Database (Base de dados
de filmes da Internet). O IMDb (http://www.imdb.com/) surgiu como um
hobby de Col Needham, um engenheiro da empresa de informática Hewlett-
-Packard, na Inglaterra, em 1990 (SIKLOS, 2006). Primeiro como uma base
de dados armazenada nos computadores da Universidade de Cardiff, no país
de Gales, o IMDb reunia informações coletadas e reunidas primeiro por Ne-
edham e seus amigos, depois com um sistema de colaborações por e-mail.
ANGELA PRYSTHON 87

A partir de 1996, o site se tornou uma companhia comercial que tinha sua
receita gerada a partir de publicidade. Em 1998, tornou-se uma subsidiária
da Amazon (uma das maiores multinacionais de comércio eletrônico) e em
2002 acrescentou um serviço de assinatura (o IMDbPro), destinado a pro-
fissionais do entretenimento. O IMDb reúne informações de produção deta-
lhadas sobre os filmes do mundo inteiro, além de curiosidades sobre o mun-
do das celebridades e links para outros sites de entretenimento. Para além
de suas características eminentemente comerciais e seu enorme potencial
publicitário, o IMDb representou o acesso permanente, atualizado e muito
abrangente (obviamente as referências às produções norte-americanas são
mais completas) a informações sobre o audiovisual no mundo.
Outro item importante da consolidação da internet como repositório de in-
formações sobre o audiovisual é o website Rotten Tomatoes (http://www.
rottentomatoes.com/), espécie de portal – ou como eles se autodenomina-
ram, review aggregator (agregador de resenhas) – que reúne links para crí-
ticas de jornais, revistas e periódicos especializados. Além de oferecer esses
links (organizados a partir dos filmes), o site calcula o percentual de rese-
nhas favoráveis e desfavoráveis, funcionando como um “termômetro” para
o público médio. Assim como o IMDb, o Rotten Tomatoes também foi criado
como um projeto pessoal de um fã, Sehn Duong, que tinha o hábito de co-
lecionar resenhas sobre filmes de Jackie Chan e em 1999 decidiu “criar um
website onde as pessoas pudessem acessar resenhas sobre filmes de uma
variedade grande de críticos americanos” (RYAN, 2008). Desde 2011, o Rot-
ten Tomatoes passou a fazer parte do grupo Time Warner. Com um forma-
to extremamente similar ao do Rotten Tomatoes, em 2001 foi fundado o
website Metacritic (www.metacritic.com). Os modos de pontuar os filmes
a partir das resenhas é um pouco distinto e a abrangência de periódicos é
um pouco maior que a do Rotten Tomatoes (que em contrapartida abrange
mais blogs pessoais e críticos amadores), mas o princípio é basicamente o
mesmo: agregar resenhas de críticos norte-americanos (ambos os sites por
vezes dão acessos a veículos britânicos e de outros países de língua inglesa.
No Rotten Tomatoes há alguns críticos de língua espanhola e portuguesa lis-
tados, mas é pouco usual). O Metacritic é parte de outra grande corporação
de mídia, a CBS. Um ponto importante tanto do Rotten Tomatoes, como do
Metacritic é o espaço crescente reservado às resenhas sobre games, tirando
a especificidade cinematográfica e sublinhando sua natureza vinculada ao
entretenimento (WINGFIELD, 2007). Ainda na esfera da base de dados, a
Wikipédia (http://www.wikipedia.org/), enciclopédia desenvolvida a par-
88 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

tir de uma plataforma colaborativa e aberta, em vários idiomas, on line des-


de 2001, também oferece uma extensa gama de informações concernentes
ao entretenimento e ao cinema, servindo muitas vezes como primeira porta
de acesso para críticos iniciantes que buscam dados sobre determinado fil-
me, por exemplo, em alguns casos mesmo antes de sua finalização.
Com relação a bases de dados mais específicas, podemos mencionar aquelas
referentes a cinematecas, museus nacionais de cinema e instituições afins
que mantêm páginas na internet com vários recursos e informações (alguns
gratuitos e abertos, outros com acesso mais restrito ou parcial). O site do
British Film Institute (http://www.bfi.org.uk), por exemplo oferece, além
de informações sobre as exposições, cursos, mostras e eventos em geral
promovidos no BFI ou acesso à loja do instituto (filmes, livros da editora
do BFI, etc), um arquivo aberto e gratuito sobre o cinema e a televisão bri-
tânicos, com catálogos, textos biográficos, sinopses de filmes, resenhas crí-
ticas. O site do BFI também dá acesso (somente aos membros assinantes e
a instituições educacionais sediadas na Grã-Bretanha) a trechos de filmes e
programas de TV. Além disso, abriga no seu portal a página da revista Sight
and Sound (sobre a qual falaremos abaixo). A Cinématèque Française tem
um site (http://www.cinematheque.fr/) menos abrangente que o do BFI,
mas os modos de organização da informação são parecidos (seções com in-
formações sobre mostras e eventos; links para bibliotecas, informações so-
bre educação, etc). Um diferença importante, contudo, é que embora o site
liste detalhadamente os recursos da biblioteca e do museu da Cinemateca,
quase nenhum conteúdo está disponível on line. O site abriga também o
blog de Serge Toubiana (http://blog.cinematheque.fr/), atual diretor da Ci-
nemateca. A estrutura do site do Museum of Moving Image (http://www.
movingimage.us/) dos Estados Unidos é semelhante aos dois exemplos pré-
vios. Não tão fechado quanto a Cinématèque, tampouco com tanto material
disponível on line quanto o BFI, o MMI traz, todavia, muito mais material
iconográfico, com reprodução de cartazes, film stills, fotos dos displays do
museu, entre outros itens. O site da Cinemateca Brasileira (http://www.ci-
nemateca.gov.br) tem uma interface um pouco mais simples que os anterio-
res, ainda que o menu seja parecido com os demais. Oferece a programação
de cursos, mostras e eventos da Cinemateca e tem uma base de dados bas-
tante compreensiva com respeito às fichas técnicas dos filmes nacionais.
Alguns bancos de dados bem específicos sobre cinema são mantidos por
amadores e entusiastas e eventualmente financiados por publicidade ele-
trônica, caso de um dos mais completos deles, o australiano They Shoot
ANGELA PRYSTHON 89

Pictures, Don’t they? (http://www.theyshootpictures.com/index.htm), que


lista e comenta mais de mil diretores de cinema, mantém compilações se-
manais de notícias sobre cinema em inglês, realiza enquetes e entrevistas.

JORNALISMO CULTURAL
Além dos sites “agregadores de resenhas” já mencionados acima, é impor-
tante frisar a importância das versões eletrônicas dos veículos de comuni-
cação mais gerais, especialmente os jornais diários (quase todos os jornais
diários do mundo têm no mínimo uma seção semanal dedicada ao cinema,
ainda que esse espaço tenha se reduzido consideravelmente nas últimas
décadas e que o próprio exercício da crítica nesses periódicos tenha sido ir-
remediavelmente contaminado por releases publicitários – novamente ve-
mos uma enorme influência da indústria do entretenimento). Uma curio-
sidade é o maior número de publicações de língua inglesa com arquivos
online (e não apenas as edições diárias abertas). Alguns desses jornais têm
um extenso arquivo referente à crítica de cinema, como é o caso de um dos
principais deles, o do New York Times (http://www.nytimes.com/ref/mo-
vies/reviews/index.html). Dentre uma lista enorme de arquivos de críticas
de jornal na web, o site do NY Times merece destaque porque disponibiliza
todas as críticas de filmes a partir 1960 e uma seleção bastante extensa de
críticas a partir de 1913. Outras versões eletrônicas de jornais com arqui-
vos abertos (e com críticos de cinema bem reconhecidos) incluem os ameri-
canos Chicago Reader (http://www.chicagoreader.com), Los Angeles Rea-
der (http://www.latimes.com) Chicago Sun- Times (http://www.suntimes.
com/), cujo principal crítico de cinema é Roger Ebert – seu textos, inclusive,
são destacados em uma seção separada do jornal (http://rogerebert.sun-
times.com/), um dos mais populares nos Estados Unidos, até por causa de
sua atuação na televisão, o britânico The Guardian (http://www.guardian.
co.uk/film), o argentino Página 12 (http://www.pagina12.com.ar/), o fran-
cês Le Monde (http://www.lemonde.fr/cinema/), os brasileiros Folha de
São Paulo (www.uol.com.br/fsp/), O Globo (http://oglobo.globo.com/cultu-
ra/), Correio Braziliense (http://www.correiobraziliense.com.br/diversao-
-e-arte/capa_diversao_arte/), Jornal do Commercio (http://jconline.ne10.
uol.com.br/canal/cultura/cinema), O Estado de São Paulo (http://topicos.
estadao.com.br/filme) – estes dois últimos dos poucos a organizarem uma
seção especial para abrigar as críticas e notícias sobre cinema, enquanto
a maioria inclui o cinema dentro de rubricas mais amplas como “cultura”,
90 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

“entretenimento” ou “diversão e arte”.


Além dos jornais diários, temos como um importante foco de informação
e crítica de cinema, as revistas de cultura (em geral com seções fixas sobre
cinema). Um dos mais tradicionais semanários culturais do mundo, o New
Yorker (http://www.newyorker.com/), tem sua versão online e o arquivo
completo da revista desde sua fundação em 1925 (o conteúdo completo é
acessível somente para assinantes). As revistas Les Inrockuptibles (http://
www.lesinrocks.com/cinema/), da França, e Rolling Stone (http://www.
rollingstone.com/), de matriz americana e com versões em vários idiomas,
têm um foco maior em música popular, mas ambas dão um espaço conside-
rável para crítica, comentário e notícias sobre o audiovisual. O site do sema-
nário L’Express abriga a revista francesa Ciné Live (http://www.lexpress.fr/
culture/cinema/). No Brasil, podemos mencionar as revistas Cult (http://
revistacult.uol.com.br/home/), Bravo (http://bravonline.abril.com.br/) e
Continente (http://www.revistacontinente.com.br/) como algumas das pu-
blicações de jornalismo cultural que destacam o cinema nas suas páginas.
Convém lembrar que alguns destes jornais e revistas estão abrigados em
portais maiores, que também acabam organizando seus conteúdos tanto de
acordo com os veículos midiáticos, como a partir de seções temáticas, como
é o caso do Yahoo (http://www.yahoo.com/), por exemplo, site com versões
em vários idiomas e países diferentes, que compreende vários jornais diá-
rios, blogs , revistas gerais e especializadas, etc. Ou, no Brasil, da UOL, tem-
-se uma seção maior de entretenimento subdividida em várias seções, entre
elas a de cinema (http://cinema.uol.com.br/).
Revistas culturais baseadas exclusivamente na internet também são rele-
vantes redutos da crítica cinematográfica. Na maior parte dos casos, as pu-
blicações mais gerais abordam outras esferas artísticas e do entretenimen-
to, como é o caso das americanas Slant (http://www.slantmagazine.com/)
e Salon (http://www.salon.com/), esta última também dedicando-se ao
comentário político. A revista Trópico (http://p.php.uol.com.br/tropico/
html/index.shl), do portal Uol, é mais focada em literatura, mas eventual-
mente divulga comentários e críticas sobre audiovisual. Assim como o Blog
do Instituto Moreira Salles (http://blogdoims.uol.com.br/), que tem José
Geraldo Couto como colunista fixo de cinema.

CRÍTICA DE CINEMA
As principais publicações impressas especializadas em cinema também têm
ANGELA PRYSTHON 91

suas versões eletrônicas e como as publicações mais gerais têm distintos


graus de acessibilidade e disponibilidade. A mais emblemática e influen-
te das publicações sobre cinema no mundo, os Cahiers du Cinéma (http://
www.cahiersducinema.com), tem seus números atuais e arquivos on line.
Mas todo o seu conteúdo é acessível somente a assinantes. Na Espanha, hou-
ve uma tentativa de estabelecer uma versão local dos Cahiers du Cinéma,
substituída em 2009 pela revista Caimán Cuadernos de Cine (http://www.
caimanediciones.es/), que mantém ainda os números antigos dos Cahiers
espanhóis nos seus arquivos (http://www.caimanediciones.es/sumario_
num10.html). A Sight & Sound (http://www.bfi.org.uk/sightandsound/)
publica seu conteúdo na internet apenas parcialmente, mas o que está publi-
cado na rede é acessível gratuitamente. A revista do Lincoln Center de Nova
York, Film Comment (http://www.filmlinc.com/film-comment/), uma das
principais publicações de cinema americanas, também oferece um acesso
parcial gratuito ao seu conteúdo na internet, que, contudo é bem mais abran-
gente que a Sight & Sound. A vertente mais acadêmica conta com Screen
(http://www.gla.ac.uk/services/screen/) no Reino Unido, Film Quarterly
(http://www.filmquarterly.org/) e October (http://www.mitpressjournals.
org/loi/octo), nos Estados Unidos, entre muitas outras. No Brasil, a Filme
Cultura (http://filmecultura.org.br), revista fundada em 1966 e interrom-
pida em 1988, foi reativada nas suas versões impressa e on line em 2009.
Financiada pelo Ministério da Cultura, a revista não tem sido atualizada de
modo sistemático. No campo das publicações mais comerciais, destacamos
os sites da Première (http://www.premiere.fr/), versão francesa da revista
americana extinta em 2007, e da Variety (http://www.variety.com/Home/),
publicação muito influente principalmente em questões de mercado de en-
tretenimento.
É no terreno dos periódicos estritamente eletrônicos e especializados e blogs
individuais, porém, que está o principal resultado da influência da internet
na disseminação e notável crescimento da crítica nas duas últimas décadas.
Relativamente livres das amarras do mercado editorial e das pressões da
indústria do entretenimento, os críticos utilizaram as ferramentas da rede
para estabelecer um diálogo mais direto com o público cinéfilo (um público
mais informado e cada vez mais numeroso devido às possibilidades maio-
res de acesso) e com os outros críticos. Se por um lado, proliferam revistas
mais comerciais e blogs amadores (jovens cinéfilos, revistas universitárias
e às vezes veículos ligados a lojas e videolocadoras), por outro aparece um
conjunto de sites (seja na forma de revistas, seja como blogs) no qual a crí-
92 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

tica de cinema exercida tende a ser muito mais sofisticada e densa que a da
mídia mainstream. Muitas vezes tais publicações privilegiam um olhar mais
acadêmico sobre os filmes, sendo vários de seus colaboradores professores
e pesquisadores de Universidades.
Uma das pioneiras nessa escrita mais elaborada e na constituição de um
banco de dados permanente sobre os grandes diretores é a australiana Sen-
ses of Cinema (http://sensesofcinema.com/). Fundada em 1999 pelo cine-
asta independente Bill Mousoulis, a Senses of Cinema conta com colabora-
dores célebres, desde cineastas conhecidos como Dusan Makavejev , críticos
estabelecidos como Jonathan Rosenbaum ou acadêmicos como Edgar Mo-
rin ou Thomas Elsaesser. A Austrália, aliás, conta com outros dois periódi-
cos eletrônicos de grande qualidade, Rouge (http://www.rouge.com.au/),
fundado em 2003, e Lola (http://lolajournal.com/) , co-editado por Adrian
Martin (que já havia sido editor de Rouge) e Girish Shambu, iniciado em
2011. Ambas as revistas têm um perfil parecido: um alto padrão de escrita,
uma afirmação do pensamento crítico e a publicação (mesmo de textos já
publicados anteriormente e traduzidos para o inglês) dos mais reconhecidos
críticos e cineastas de vanguarda do mundo – nomes como Nicole Brenez,
Pedro Costa, Serge Daney, Raymond Durgnat, Victor Erice, Chris Fujiwara,
José Luis Guerin, Hou Hsiao-Hsien, Kent Jones, Dave Kehr, Jonas Mekas, Luc
Moullet, Mark Rappaport, Jonathan Rosenbaum, e Apichatpong Weerase-
thakul. Na Itália, em 2011, foi fundada por Toni D’Angela a revista La Furia
Umana (http://www.lafuriaumana.it/), de perfil próximo às das australia-
nas, e com uma forte ênfase numa cinefilia radical, reúne textos exclusivos,
traduções de textos clássicos, republicações de resenhas de distintos meios
e em diversos idiomas. O conselho consultivo conta com cineastas e críticos
como Jacques Aumont, Raymond Bellour, Julio Bressane, Joe Dante, Chris
Fujiwara, Monte Hellman, Adrian Martin, F.J. Ossang e Paul Vecchiali , o que
define marcadamente sua linha editorial de vaguarda.
Com vínculos acadêmicos fortes, os periódicos americanos The Moving Arts
(http://www.themovingarts.com/) e Bright Lights Film Journal (http://
www.brightlightsfilm.com/) (sendo este último de 1974 a 1995 ma publi-
cação impressa) tem uma forte ênfase sociológica em grande parte de suas
análises. Alguns periódicos de formato acadêmico mais estrito, indexados
em base de dados mais oficiais, como o canadense CiNéMAS (http://revue-
-cinemas.info/index.php?page=index), disponibilizam seu conteúdo através
de pagamento por artigo consultado ou através de portais universitários e/
ou de bibliotecas.
ANGELA PRYSTHON 93

No Brasil, é importante mencionar as revistas Contracampo (http://www.


contracampo.com.br/), Filmes Polvo (http://www.filmespolvo.com.br/
site/) e Cinética (http://www.revistacinetica.com.br/) como as líderes de
uma crítica especializada mais elaborada e independente. Muitos dos co-
laboradores dos dois periódicos são originários de cursos superiores de
cinema, ambas as publicações têm financiamento esparso, geralmente ori-
ginário de editais públicos. Com menos recursos e também formada por
jovens críticos e alguns eventuais colaboradores mais conhecidos e expe-
rientes, temos a Foco (http://focorevistadecinema.com.br/) e a Filmologia
(http://www.filmologia.com.br/). Ressaltamos um certo caráter descen-
tralizado das revistas no sentido de sua localização geográfica, já que seus
colaboradores são residentes em diferentes cidades do pais (ainda que nas
duas primeiras haja um predomínio de cariocas). Outro blog de destaque,
por disponibilizar traduções da crítica francesa de cinema, é o Dicioná-
rios de Cinema (http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/), organiza-
do aleatoriamente, mas uma boa fonte para estudantes e críticos que não
dominam o francês.
Os blogs individuais de críticos de cinema são excessivamente numerosos
para serem listados e comentados com a devida atenção, porém talvez caiba
aqui mencionar alguns de maior influência e disseminação entre a comuni-
dade cinéfila e de críticos. Dos acadêmicos, o mais conhecido possivelmente
seja o de David Bordwell, Observations on Film Art (http://www.davidbor-
dwell.net/blog/), que enfatiza bem mais a análise fílmica que exatamente a
crítica. Além de Roger Ebert, já mencionado acima, vários críticos america-
nos profissionais mantêm seus blogs, como Jonathan Rosenbaum (http://
www.jonathanrosenbaum.com/?cat=5), que tem republicado todos os seus
textos críticos para o Chicago Reader, ou Glenn Kenny (http://somecame-
running.typepad.com/) e David Kehr (http://www.davekehr.com/). O po-
lêmico macmahoniano francês Michel Mourlet mantém o blog Carnet de
10

Route (http://mourlet.blog.mongenie.com/) desde 2006, nele não se detém


apenas no cinema, escrevendo sobre política, literatura, entre outros temas.
No Brasil, críticos de jornal normalmente publicam nos seus blogs textos li-
geiramente diferentes daqueles que saem diariamente, como Inácio Araújo
(http://inacio-a.blogosfera.uol.com.br), da Folha de São Paulo, Luiz Carlos
Merten (http://blogs.estadao.com.br/luiz-carlos-merten/) ou Luiz Zanin
(http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/), ambos do Estado de São Paulo.
Apesar de não estarem diretamente associados a empresas midiáticas (pelo
menos não como funcionários), o professor da USP e escritor Jean- Claude
94 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

Bernardet (http://jcbernardet.blog.uol.com.br/) e o crítico Sergio Alpendre


(http://chiphazard.zip.net/) têm seus blogs vinculados ao portal de cinema
da UOL. Alguns blogs independentes de cinema dignos de menção são o de
Fábio Andrade (http://fabitosway.wordpress.com/), editor da Cinética, o
de Luiz Soares Junior (http://cinemacomcana.blogspot.com.br/), o de Bru-
no Andrade (http://signododragao.blogspot.com.br/) e o de Matheus Car-
taxo (http://matheuscartaxo.blogspot.com.br/). Alguns desses blogs, além
de reunir textos críticos, trazem links, stills de filmes, citações, traduções e
comentários gerais não restritos ao cinema.

COMPARTILHAMENTO DE ARQUIVOS E REDES SOCIAIS


O impacto da disseminação cada vez mais generalizada da crítica na inter-
net foi enorme na comunidade dos cinéfilos e dos críticos, contudo, a maior
transformação se deu na esfera do compartilhamento de filmes. Ainda que
seja complicado reunir dados sobre o assunto, até por causa das implica-
ções legais (a maior parte do compartilhamento se dá de forma irregular
e clandestina), são notáveis as possibilidades que se abrem a partir da dis-
ponibilização de filmes antigos, novos, raros, “exóticos”, canônicos, etc. A
experiência de jovens cinéfilos no século XXI difere enfaticamente daquela
das suas versões do século XX. Talvez as mudanças sejam comparáveis à
introdução do VHS no final dos anos 70 e início dos 80, é inegável, contudo
o acesso ampliado a obras raras, às filmografias de países periféricos, aos
universos fílmicos mais obscuros e desconhecidos.
Há vários modos e softwares para o compartilhamento de arquivos gran-
des como os de filmes, mas o mais comum é o BitTorrent, um protocolo de
rede que permite ao usuário realizar downloads de arquivos, em geral in-
dexados em fóruns específicos ou sites de busca. Um dos mais abrangentes
e abertos (e que tem conseguido escapar de sucessivas perseguições pe-
las leis de vários países) é The Pirate Bay (www.thepiratebay.org), um site
sueco de rastreamento de torrents. Para cinéfilos e críticos, entretanto, os
fóruns específicos são bem mais valiosos. Há inúmeros deles, mas mencio-
naremos aqui dois dos mais “desejados” (só se entra nesses fóruns via con-
vites, que são difíceis de conseguir, e para manter-se neles há que se seguir
regras bastante estritas), pelo menos para os cinéfilos e críticos brasileiros:
o Karagarga (https://karagarga.net/), uma comunidade especializada em
filmes raros, de vanguarda e clássicos, arquivos de músicas e livros eletrô-
nicos (especialmente títulos sobre cinema, arte e filosofia), e o Making Off
ANGELA PRYSTHON 95

(http://www.makingoff.org), fórum brasileiro de compartilhamento seme-


lhante ao KG, com o adendo de exigir que todos os filmes postados ofere-
çam arquivos com as legendas em português.
Dentro de uma relativa legalidade, podemos mencionar os sites de com-
partilhamento de vídeos para se ver online (há programas que baixam esses
arquivos para armazenamento no computador), como o Youtube (http://
www.youtube.com/), fundado em 2005, ou o Vimeo (http://vimeo.com/),
de 2004. Serve principalmente para o compartilhamento de trechos cur-
tos, trailers e filmes de curta-metragem, devido às limitações de qualidade
do seu formato. O site Mubi (http://mubi.com/home), também operando
dentro dos limites da lei, funciona como uma espécie de cinemateca em
rede, na qual o usuário pode pagar para ver um filme que não esteja dispo-
nível em DVD ou Blu-Ray. Os filmes têm que ser vistos online e não é possí-
vel armazená-los. O site tem uma série de parcerias com distribuidoras de
filmes de arte, mais notavelmente The Criterion Collection (http://www.
criterion.com/) e Celluloid Dreams, companhia francesa, além de convênio
com a World Film Foundation (http://worldcinemafoundation.org), ins-
tituição dedicada à preservação e divulgação de filmes raros do cinema
mundial.
Outros agentes e plataformas dessas novas maneiras de compartilhar fil-
mes e exercer a nova cinefilia são as redes sociais nas quais é possível não
apenas fornecer links para torrents e outros tipos de arquivos e sistemas,
mas de estabelecer e disseminar o debate constante sobre cinema e audio-
visual em geral. O próprio Mubi é um híbrido de base de filmes com rede
social sobre cinema, na qual os usuários se agregam de acordo com interes-
ses e conhecimentos comuns e onde podem trocar suas impressões sobre
cinema, divulgar suas listas de favoritos e iniciar discussões. As redes so-
ciais mais populares como Facebook, Hi5, Orkut, Badoo, etc, todas elas têm
inúmeras comunidades, listas de discussão e fanpages ligadas de distintos
modos ao cinema.

UMA NOVA CINEFILIA, UMA NOVA CRÍTICA?

O quadro descrito nos itens acima não significa uma completa reformula-
ção no universo da crítica cinematográfica, antes aponta para distintos fo-
cos de transformação e, sobretudo, de intensificação da cinefilia. É ainda
cedo para conclusões enfáticas sobre as consequências dessa cibercinefilia,
tanto no terreno da crítica, como no da produção fílmica, mas parece haver
96 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

indícios suficientes de uma sensibilidade coletiva cada vez mais interessa-


da, engajada e ativa na constituição de cultura fílmica total, bem no sentido
de uma das epígrafes que abre este texto, a ideia de um modo de existência,
marcado pela diversidade (que é a mesma do cinema contemporâneo – téc-
nica, estética, temática, geográfica...) e pela intensidade (de busca de co-
nhecimento, de constituição de um olhar e, sobretudo, de amor aos filmes
e ao cinema). Parece-nos no mínimo irônico que esse momento tenha sido
precedido pelos apocalípticos (e ainda persistentes) anúncios da morte do
cinema. E se estamos permeados por uma espécie de banalização do olhar,
de mercantilização total da imagem, pelo excesso de arquivos, bytes e links,
por outro lado, o cinema e a cinefilia cada vez mais se revelam lugares de
resistência, espaços onde a diferença pode emergir, territórios propícios e
férteis para o florescimento de um verdadeiro ímpeto crítico.

NOTA

10 - “Macmahonianos” se refere a um grupo de críticos e teóricos franceses


que, no final dos anos 50 e início dos 60, começa a cultuar um número de res-
trito de “autores” de cinema (sobretudo os “quatro ases”: Fritz Lang, Otto Pre-
minger, Raoul Walsh e Joseph Losey). O nome vem dos vínculos do grupo
com o cinema MacMahon, localizado em Paris.
cinema
ANGELA PRYSTHON 99

O MUNDO DE SATYAJIT RAY


Eu já havia visto A canção da estrada (Pather Panchali, 1955), primeiro fil-
me da trilogia de Apu, de Satyajit Ray, filme que me parecia um dos gran-
des precursores do Terceiro Cinema, funcionando para mim como porta de
entrada exemplar para questões sobre pós-colonialismo e subalternidade,
como uma chave teórica perfeita para pensar a constituição de um cine-
ma periférico, como material didático para ver o cinema a partir dos Estu-
dos Culturais (campo no qual vinha atuando intensamente desde o início
da minha carreira como professora universitária), quando em janeiro de
2009, pouco após a morte do meu pai, comecei a ler O homem no escuro, do
americano Paul Auster. O narrador do romance é um velho jornalista e crí-
tico literário que vai para a casa da filha se recuperar depois de sofrer um
acidente. Um dos modos de passar o tempo para este homem é ficar vendo
filmes clássicos para depois discuti-los com a neta de 23 anos, estudante de
cinema da NYU que acaba de largar a universidade por causa da morte do
namorado na guerra do Iraque, se é que não me falha a memória.
O livro me tocou profundamente, não como usualmente os livros de Aus-
ter me movem ou mesmo por causa das enormes sintonias que senti com
seu narrador enlutado, acuado, no escuro e com suas filha e neta também
tomadas pela dor e pela solidão, mas como uma espécie de revelação sobre
o mundo do cinema, ou, dito de outra forma, sobre o cinema como o mun-
do. Katya, a neta, tem uma teoria do cinema:

Hoje à noite, porém, depois de termos visto três filmes estrangeiros seguidos –
A grande ilusão, Ladrões de bicicleta e O mundo de Apu –, Katya fez alguns comentários argutos
e incisivos, esboçando uma teoria da criação cinematográfica que
me impressionou pela originalidade e perspicácia.
Objetos inanimados, disse ela.
O que têm eles? Perguntei.
Objetos inanimados como formas de expressar emoções humanas.
Essa é a linguagem do cinema. Só bons diretores entendem como fazer isso, mas Renoir, De Sica
e Ray são três dos melhores diretores, não são? (AUSTER, 2008, p. 20).

A descrição que Auster faz das cenas me faria não apenas rever os filmes
citados que eu já conhecia (além dos de Renoir e De Sica, outro grande filme
que aparece é Conto de Tóquio de Ozu), mas a teoria dos objetos inanimados
de Katya me fez correr de volta para A canção da estrada que por sua vez
me fez querer ver o segundo filme da trilogia, O invencível (Aparajito, 1956)
100 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

e finalmente, O mundo de Apu (Apu Sansar, 1959), que desde então passou
a ocupar um lugar especial nas minhas listas perpetuamente em mutação
de filmes favoritos.
E cada filme da trilogia é uma obra-prima em si: Pather Panchali com seu
mergulho no cotidiano rural bengalês e a sutil combinação da estética in-
diana rasa com o neorrealismo cinematográfico, Aparajito e a descoberta
das contradições urbanas em Benares e Calcutá a partir de sofisticadas téc-
nicas de luz e sombras, Apu Sansar e sua imensa humanidade (e dizer mais
do que isso talvez diminuísse o impacto e a permanência que o filme tem no
meu repertório e, mais ainda, na minha vida). A trilogia de Apu foi por sua
vez me levando a outros filmes de Ray, que também foram subsequentemen-
te formando parte dos meus panteões movediços, circulares e infinitos, dos
meus baús de riquezas incalculáveis, das minhas coleções desordenadas de
imagens: o rigor trágico de A Sala de Música (Jalsaghar, 1958), a delicade-
za de Charulata, a esposa solitária (1964), toda a crueldade e frustração de
Kapurush (1965), a modernidade periférica da trilogia de Calcutá (Prati-
dwandi (1970), Seemabaddha (1971) e Jana Aranya (1975)), o exótico es-
tranhamento de Dias e noites na floresta (Aranyer Din Ratri, 1970) – que tem
uma das mais belas sequencias do cinema na cena do jogo de memória –, a
política de A casa e o mundo (Ghare Baire, 1984). A partir do meu precário
orientalismo, sem conhecer toda a sua filmografia, menos ainda sua contri-
buição como escritor, dramaturgo e compositor, ainda que grande parte das
referências culturais indianas me escape, posso apenas sublinhar o quanto
Satyajit Ray (como Ernst Lubitsch, Yasujiro Ozu, Powell e Pressburger, Stan-
ley Donen, Jacques Demy, Werner Herzog ou Claire Denis, só para citar uma
ínfima lista de cineastas que me movem) reafirmou em mim uma vontade
de cinema, simultaneamente na e além da imanência, retorcendo um pouco
do que fala Ismail Xavier (2007) sobre a cinefilia. Uma vontade de cinema
na qual a técnica (impecável, rigorosa, exata no caso de Satyajit Ray), a ma-
terialidade fílmica (suas imagens e seus sons, suas palavras, seus atores) e a
mise en scène estão subjugadas ao mundo, forçam-nos a entrar em contato,
a nos maravilhar, assustar e, sobretudo, a gostar mais de estar no mundo.
Naquele momento, que talvez tenha sido o mais sombrio, o mais extre-
mamente triste da minha vida, Auster e sua teoria de cinema (ou antes, a
de Katya) – que me pareceu sensível, bonita, ainda que limitada e um tanto
ingênua como teoria propriamente dita, talvez até porque não seja mesmo
uma teoria propriamente dita – me fizeram retomar certos clássicos, rever
filmes do cânone mundial, me levaram a olhar mais atentamente os objetos
ANGELA PRYSTHON 101

inanimados dos filmes, pequenos detalhes em cena e as suas vinculações


com a humanidade. Minha maior dívida, porém, com O homem no escuro se
dá porque me ajudou a conhecer melhor a obra de um dos grandes huma-
nistas – e não apenas do cinema – do século XX e colocá-la para sempre jun-
to comigo.
ANGELA PRYSTHON 103

FIGURAS DO DISSENSO EM JOSEPH LOSEY


Na abertura do seu livro de entrevistas com Joseph Losey, Tom Milne su-
11

gere que há vários Losey, um para cada tipo de espectador afeiçoado, um


para cada apreciador: dos nostálgicos pelos seus primeiros trabalhos em
Hollywood ou dos entusiastas pelos seus primeiros filmes britânicos àque-
les que acham que sua maturidade como diretor só chegou com The Servant
(1963). Milne, escrevendo em 1966, não poderia acrescentar a essa lista os
devotos do barroquismo vulgar e dos excessos camp de filmes como Boom
(1968), Secret Ceremony (1968) ou Modesty Blaise (1966), os adeptos das
oddities do final de carreira, dos seus filmes europeus mais tardios como
Don Giovanni (1979) ou La truite (1982), ou os neo-macmahonianos con-
temporâneos que privilegiam a mise en scène ousada em suas obras mais
obscuras e que de certa forma rejeitam os filmes mais canônicos do diretor
(sobretudo os da parceria com Harold Pinter). Essa diversidade tem obvia-
mente uma relação direta com os filmes em si, com as diferentes fases da
sua carreira, com as mudanças precipitadas pela sua expatriação em 1952
por conta de suas inclinações políticas e da lista negra macartista, com os
distintos colaboradores nos seus projetos e até mesmo com os lugares onde
viveu e dirigiu suas obras.
Evidentemente há vários traços estilísticos e elementos autorais que unem
todos os “Losey”. Dentre eles, um que particularmente me interessa é o modo
como, desde The Boy with Green Hair (1948), seu primeiro longa-metragem,
emerge a diferença como ponto deflagrador da narrativa, da encenação e
da linguagem fílmica. A diferença engendra o que há de mais instigante no
cinema de Losey: a capacidade de revelar estranhamento. E não apenas
nos sentidos mais explícitos (como por exemplo os cabelos verdes de Peter
Frye, os figurinos de Liz Taylor em Boom ou a bizarra perseguição nas es-
tranhas locações andaluzes em Figures in a Landscape (1970) ou técnicos: o
extracampo, a iluminação, os enquadramentos muito enfáticos. Tampouco
temos somente a adesão a um estilo ou a formas que escapam aos moldes
dos gêneros e das convenções do cinema clássico. Porque Losey não é exa-
tamente moderno (ainda que reúna muitas características modernistas),
mas é que seu classicismo é sempre oblíquo, é desviante.
Encontramos desvios nos planos, no décor, nos modos de filmar (ou de
não filmar: de ocultar) corpos e lugares: inclinações inusitadas, esguelhas,
declives e esconderijos. O gosto por certa vulgaridade, o apelo aos ângulos
104 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

expressionistas, as dissonâncias do jazz são alguns dos elementos frequen-


temente utilizados. Mas as tensões e deformações estão também nos artifí-
cios narrativos, na composição dos personagens. Em Losey são frequentes
os sujeitos deslocados, marginais, desconfortáveis, inadequados e fugiti-
vos. Situações que naturalmente se inscrevem nos seus respectivos plots,
de acordo com o gênero fílmico ao qual pertencem, especialmente ao con-
siderarmos seus primeiros trabalhos nos Estados Unidos. Contudo, há con-
sistentemente em Losey algo que se afasta das expectativas genéricas, há
quase sempre traços de uma estranha ambiguidade que perturba mesmo o
mais malvado bandido, há alguma perversidade no mais probo dos heróis
(se é que há heróis na sua obra...).
Os desvios se encontram desde sempre na obra de Losey, porém é pro-
vável que estes tenham se tornado mais visíveis ou pelo menos mais cate-
góricos após o exílio, como se ele tivesse propiciado uma perspectiva que
força a distorção, engendra constantes paralaxes. Um expatriado consegue
o distanciamento necessário para se tornar o perfeito observador. Em seu
primeiro filme no Reino Unido, The Sleeping Tiger (1954), aliás, aparece de
modo recorrente uma figura que tem conexões óbvias com a condição de es-
trangeiro: o intruso. Dirk Bogarde interpreta o jovem delinquente acolhido
por um psiquiatra e sua mulher após uma tentativa de assalto. E se o filme se
apresenta como um drama com pendores noir relativamente rotineiro, nele
já se encontram os rudimentos das marcas mais reconhecíveis do diretor: a
observação das tensões de classes sociais na Grã-Bretanha; o enfrentamen-
to psicológico entre os protagonistas; além do início da colaboração com
Bogarde, um dos principais parceiros no seu período inglês. Afinal, como o
próprio Losey assinala, suas carreiras não teriam sido as mesmas se Bogar-
de não tivesse aceitado o convite para trabalhar em The Sleeping Tiger:

A situação inteira foi transformada, e eu acho que é justo para mim dizer que depois, com The
Servant e Accident e até Modesty Blaise, que ele nega, e certamente King and Country, a carrei-
ra de Dirk estava transformada. Certamente a minha carreira, e até mesmo a existência de uma
carreira, foi possível porque Dirk aceitou, porque sem isso eu poderia estar simplesmente morte
– acabado (LOSEY apud CLIMENT, 1985, p. 136).

O turista americano interpretado por Macdonald Carey junto com a garota
inglesa personificada por Shirley Anne Field em The Damned (1963) tam-
bém se constituem como intrusos tanto no refúgio da excêntrica escultora
vivida por Viveca Lindfors, como na base militar que esconde as crianças
radioativas. Único filme de ficção científica dirigido por Losey, The Damned
ANGELA PRYSTHON 105

se inscreve como incursão popular e comercial através do vínculo com a


produtora Hammer e de um tom francamente sensacionalista, mas é simul-
taneamente uma afirmação precursora da cultura pop na esfera mais reco-
nhecível, familiar e legitimada do cinema mainstream. As cenas iniciais com
a gangue de teddy boys liderada pelo personagem de Oliver Reed nas ruas
de Weymouth ao som de “Black Leather, Black Leather, Rock, Rock, Rock...”
são preciosos momentos de consolidação e disseminação do imaginário do
rock no cinema britânico. Claro que a intrusão não é o único tema desses
filmes, nem mesmo a principal característica dos personagens citados, to-
davia ela tem um elo perceptível com a ideia de inadequação, de desloca-
mento que permeia a sua encenação. Temos, pois, uma aura de mal-estar e
embaraço que envolve a obra de Losey, sobretudo a partir de Time Without
Pity (1957) e Blind Date (1959).
Blind Date, aliás, marca a primeira aparição de Stanley Baker nos seus fil-
mes. Como Bogarde, Baker será um dos seus colaboradores mais recorren-
tes nos anos 60 e encarna perfeitamente os tipos desagradáveis e sórdidos
do universo loseyano. Assim como The Sleeping Tiger e talvez ainda mais
profundamente, Blind Date é notável pela maneira precisa e sutil como
reverbera as questões sociais britânicas no tecido cênico e narrativo. Como
Henry James, ele insere observadores estrangeiros (como é o caso do per-
sonagem de Hardy Kruger em Blind Date) que podem perceber as peculia-
ridades do sistema de classes e as contradições da vida inglesa. Tais outsi-
ders, observadores distanciados (em alguma medida ao menos), funcionam
quase como um alterego de Losey, que não via impedimentos ou restrições
na condição de estrangeiro fazendo filmes na Grã-Bretanha, afirmando ao
contrário as vantagens desse ponto de vista do exilado, não somente nos
seus filmes ingleses, como também naqueles que realizou em outros países
europeus.
Em Blind Date, Baker talvez ainda não esteja totalmente maduro como o
sujeito pernicioso, misógino e deletério de outros filmes como The Criminal
(1960) ou Eva (1962), mas já há indícios muito significativos da centralidade
que suas performances teriam em Losey. Ele se destacaria ainda mais como
o violento Johnny Bannion em The Criminal, filme no qual o seu semblan-
te raivoso e sua brutalidade física vão sublinhar o espaço claustrofóbico da
prisão, vão afirmar uma dramaticidade que transcende o filme de gênero, e
imprimem distorções notáveis (na imagem e na narrativa) dentro de uma
estrutura relativamente convencional. A cena final com Bannion agonizan-
do na neve constitui um momento exemplar da irrupção do moderno ope-
106 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

rando nos limites do cinema clássico, forçando e estendendo tais limites.


Em Eva, a malícia e a sordidez de Baker vão ser minadas pelas humilha-
ções constantes impostas ao escritor encarnado por ele pela personagem
título, interpretada por Jeanne Moreau (que voltaria a trabalhar com Losey
no seu penúltimo filme, La truite). Apesar das interferências dos produto-
res e das mutilações que o filme acabou sofrendo, Eva talvez seja o mais
moderno – além de ser o mais profundamente europeu – dos seus filmes,
captando brilhantemente o espírito da época, diga-se de passagem com
muito mais que um eco de Antonioni e Resnais.
A colaboração mais comentada, analisada e disseminada, contudo, foi
aquela que reuniu tanto Dirk Bogarde como Harold Pinter em 1963: The
Servant. Dez anos após receber de Losey como presente a novella de Ro-
bin Maugham, Bogarde sugeriu o então não muito conhecido dramaturgo
para adaptá-la em um roteiro. Para surpresa do diretor (que ficou muito
decepcionado com o destino de Eva e fez um filme mais barato, derivativo
de certos temas e ideias já contidos no filme anterior – cf. CLIMENT, 1985,
p. 229), The Servant tornou-se tanto seu filme mais célebre, como o mais
lucrativo. Entretanto, no que concerne o argumento aqui sobre o cinema
do estranhamento, do desvio, sobre a sucessão de personagens deslocados
e sobre as tensões entre as classes sociais na Grã-Bretanha, esse encontro
entre Losey e Pinter se revelaria de fato crucial. De certo modo, ambos são
observadores outsiders da tradição tanto cinematográfica quanto literária;
Losey porque estrangeiro, Pinter judeu de classe média. Pois, como Losey
observou, eles “tinham em comum uma consciência muito aguda das dinâ-
micas e contradições de classe. Ele evoca soberbamente o visual para mim,
mas eu não acho que ele tenha muito senso visual” (LOSEY apud CLIMENT,
1985, p. 242). Uma das visões críticas mais comuns sobre a parceria entre
Losey e Pinter é a acusação de uma excessiva teatralidade verbal; porém,
parece-nos que é precisamente tal teatralidade que permite a Losey de-
senvolver inteiramente sua mise en scène barroca e sua visão de mundo
quase gótica. Denotando, então, uma complementaridade entre os dois,
como se a escrita elíptica de um servisse perfeitamente aos excessos visu-
ais do outro.
Em The Servant, Losey vai exacerbar o sentido de degradação que ele já
mostrava nos filmes anteriores. Barrett (Bogarde), o criado do título é o
intruso que chega para deturpar, inverter e dominar as relações na casa do
seu patrão, Tony (James Fox). O roteiro de Pinter, mais do que o material
original de Maugham, com seus diálogos secos, econômicos, sugeria insi-
ANGELA PRYSTHON 107

diosamente a decadência e o ridículo da aristocracia e também demonstra-


va efetivamente a corrupção e a perversidade da classe baixa, representada
no filme não apenas por Barrett, mas também por sua cúmplice, Vera (Sa-
rah Miles). Losey traduz o aviltamento e a degeneração em jogos de espe-
lhos convexos, luzes e sombras, transmite a decomposição através de pla-
nos circulares, gradativamente mais claustrofóbicos e carregados a partir
da metade do filme. O modo como detalha os interiores da casa burguesa de
Tony, o frio inverno de Chelsea (novamente temos cenas impressionantes
explorando os contrastes entre a neve e os corpos e, no caso específico de
The Servant, da urbanidade vitoriana do bairro londrino), os restaurantes e
pubs da Swinging London, a aristocracia no campo demonstra por um lado
a habilidade de pensar cenários e locações não apenas como pano de fundo,
mas como parte constituinte da narrativa, e por outro, a intenção de eviden-
ciar um mundo prestes a ruir.
Accident (1967), o segundo filme resultante dessa parceria, adaptado do
romance homônimo de Nicholas Mosley, também alude a uma progressiva
degeneração, dessa vez não resultante propriamente de um intruso, mas
das tensões interiores de um grupo bem maior de personagens. Muito em-
bora Stephen (Bogarde), professor oxfordiano de meia-idade, ocupe o mais
central como uma espécie de narrador e observador mais distanciado, vai-
-se ter nas várias interações entre o conjunto de protagonistas, mas sobre-
tudo entre Stephen e seu colega Charley (Baker, provocador e desagradável
como sempre), uma instigante demonstração de confrontos e desacordos . 12

Accident é talvez mais ostensivamente literário que The Servant. Prevalece,


todavia, aquele equilíbrio entre o preciosismo cênico de Losey e o estilo ver-
bal e a estrutura narrativa baseada na impressão constante de uma ameaça
bem típicos do universo “pinteresco”, complementados pelo interesse nas
formações sociais britânicas e, no caso específico de Accident, nos esquemas
da vida universitária em Oxford.
Enquanto alguns de seus filmes anteriores talvez sejam mais audaciosos
no sentido imagético, com planos, iluminação e enquadramentos mais “inu-
suais”, certamente Accident é o mais experimental nos termos da sua tem-
poralidade. Pois a circularidade e multiplicidade de tempos e espaços deli-
neiam uma estrutura mais contemplativa que os outros filmes. Inclusive, é
possível ver, como em Eva, mas muito mais intensamente, uma proximidade
ao cinema de Alain Resnais (o que é acentuado pela presença de Delphine
Seyrig) e seus flashbacks, suas elipses, ainda que Accident seja bem mais
direto. Outro aspecto que enfatiza a ambiência de estranhamento, a intensa
108 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

perturbação entre as pessoas e as marcas temporais é o sofisticado dese-


nho de som; diálogos, música e sobretudo ruídos são utilizados para realçar
a interioridade de uma trama na qual pouca coisa realmente acontece.
A última colaboração entre Losey e Pinter (o dramaturgo ainda escreveu
para o diretor um roteiro a partir de Proust nunca filmado) seria The Go-
-Between (1971), o mais “acadêmico” dos três filmes. Adaptado do romance
homônimo de L.P. Hartley, é menos marcado pelo clima constante de amea-
ça característico dos outros dois roteiros e da obra em geral de Pinter, talvez
pelo caráter evocativo e memorialista do material original. Aliás, a frase que
abre o livro e o filme, “o passado é um país estrangeiro”, define um tom abai-
xo para aquele que talvez seja o filme mais discreto, mais low key do diretor.
Sem Bogarde, sem Baker, mas tampouco sem deixar de ser essencialmente
loseyano (seus movimentos de câmara, seus elaborados enquadramentos,
o modo de mostrar o inusual dentro dos territórios do familiar, do domés-
tico), The Go-Between privilegia, como antes o fez Accident, o conceito de
tempo. Mas se Accident se aventurava por experimentos com os tempos da
narrativa, o filme de 1971 lida fundamentalmente com a memória, com o
tecido entrelaçado de passado e presente, do qual a figura de Leo (interpre-
tado por Michael Redgrave e Dominic Guard nos dois tempos narrativos)
vai ser um agente crucial.
Leo é o mensageiro (do título brasileiro do filme), o leva-e-traz (que se-
ria uma tradução mais acurada para “go-between”) que se desloca entre os
amantes, a abastada Marian (Julie Christie) e o fazendeiro pobre Ted (Alan
Bates), e seu anfitrião, o visconde Trimingham, pai de Marian (Edward Fox).
Ele se desloca e está deslocado bem no sentido evocado no início deste tex-
to. Porque ainda o principal interesse de Losey neste filme parece ser exa-
tamente mostrar um personagem sendo introduzido numa sociedade que
lhe é estranha, assim como o passado é um país estrangeiro. Leo vai gradu-
almente se dando conta desse estranhamento e de seu lugar como classe
inferior aos nouveaux riches Trimingham. Ser o leva-e-traz da correspon-
dência entre Marian e Ted lhe confere um sentido, dá-lhe um status, ainda
que seja o de intermediário. Do uso do zoom neste filme (muito mais que
as distorções ou os estudados enquadramentos nos anteriores) inferimos
uma vontade de aproximação, uma maneira de encurtar as distâncias ou, ao
contrário, de sublinhar o deslocamento.
Com seus figurinos e seu décor impecáveis, a perfeita trilha sonora de Mi-
chel Legrand, The Go-Between é sem dúvida mais “clássico”, menos desfigu-
rado, menos barroco (ou nada barroco) que os outros filmes de Losey. Mas
ANGELA PRYSTHON 109

sob essa superfície apolínea, discreta, acadêmica (que se deve em grande


parte a seu “parentesco” com o cinema heritage tão caro aos britânicos), há
menos a acomodação ou conformação a um modelo de cinema ou mesmo a
uma visão mais burguesa de mundo e mais uma melancolia (bem loseyana,
aliás) diante dos conflitos embutidos no dilema de Leo (dividido entre seus
afetos pelos outros três personagens). Àquela altura, para além de expor
e denunciar (ironicamente, violentamente) o sistema de classes britânico
(coisa que Losey vinha fazendo desde The Sleeping Tiger), era imperativo
para o diretor compreendê-lo, nuançá-lo.
Ademais de seu envolvimento com Pinter, é evidente que a subsequen-
te carreira de Losey abriu ainda outros espaços para a construção dessas
imagens de dissenso, para a delimitação de zonas de desconforto. Sobre-
tudo se pensarmos em como ele abraçou o risco em projetos tão diferen-
tes entre si quanto o revisionismo histórico de The assassination of Trotsky
(1972), a adaptação de Ibsen em A Doll’s House (1973) ou a filmagem da
ópera Don Giovanni (1979). A figura do intruso seria explorada de uma ma-
neira similar ao universo de Pinter em The Romantic Englishwoman com a
participação de outro famoso dramaturgo inglês, Tom Stoppard. Com Mon-
sieur Klein (1976) vai explorar os paralelos entre a perseguição aos judeus
na Segunda Guerra, sua própria experiência com a lista negra americana
e os tons kafkianos da história. Sempre oscilando entre a concepção clás-
sica das formas e da encenação e o limiar de sua deturpação moderna, de
modo mais ou menos convincente ou encantador, fascinante ou ridículo,
Losey estabeleceu uma poética do estranhamento, uma sintaxe do dano e
uma arquitetura da degradação sem nenhum receio do vulgar, do feio e do
humano implicado nelas.

NOTAS

11 - Milne, Tom. Losey on Losey. London: Secker & Warburg/BFI, 1967.

12 - Esse clima de desacordo e dissenso era extensivo à própria relação entre


Bogarde e Baker no set. Os dois atores mais emblemáticos da filmografia de
Losey nutriam uma notória antipatia mútua, como observou o próprio diretor
na sua entrevista com Climent (Ibidem, p. 272).
ANGELA PRYSTHON 111

NOSTALGIA E VANGUARDA NOS VÍDEOS


MUSICAIS DE DEREK JARMAN
“Et je tremble délicieusement au souvenir charmant
du premier jour d’amour!” (“Depuis le jour”, Louise, Gustave Charpentier)

Em 1987, no auge do videoclipe e da estética MTV, dez diretores de cinema


foram convidados pelo produtor Don Boyd a participar de um filme omnibus
com suas versões para árias célebres de óperas do repertório clássico canô-
nico (algumas bem mais canônicas e célebres que outras, é bem verdade).
Como costuma acontecer com essas antologias, os episódios de Aria eram
desiguais, irregulares. Oscilavam entre o delírio kitsch de Ken Russell e sua
interpretação de Nessun Dorma (Aida), a mise en scène absurda de Godard
para Armide, o esteticismo quase piegas da Liebestod (Tristan und Isolde)
de Franc Roddam, a simplicidade pop de Julien Temple para Rigoletto, a
abordagem Grand Guignol de Robert Altman para Les Boreades, a pretensão
de Charles Sturrigdge com sua versão de La Vergine degli angeli (La Forza
del destino) e resultados bem mais medíocres ou desinteressantes como os
de Nicholas Roeg, Bill Bryden e Bruce Beresford. O exercício de estilo mais
interessante, contudo, parece-me ser o de Derek Jarman com Depuis le jour,
o penúltimo episódio do filme, com cerca de sete minutos de duração, sobre
a ária da ópera Louise de Gustave Charpentier.
Jarman havia se tornado internacionalmente conhecido um ano antes com
o longa Caravaggio, mas de certo modo frustrado com o formato 35mm (pe-
los custos, pelas demoras, pelas dificuldades do processo), voltara-se mais
uma vez para suas experiências com o Super 8mm (formato que, aliás, nun-
ca havia abandonado de fato, desde o início da carreira) e com 16mm. Sua
participação em Aria reflete de modo exemplar esse período. É sua obra
imediatamente anterior a The Last of England (1987), filme no qual abraça
mais radicalmente a mistura de texturas fílmicas para lançar sua versão al-
ternativa e crítica da história recente do Reino Unido, com uma inclinação
especial para os planos filmados em Super 8 e pela subsequente visualida-
de nostálgica, obsoleta e arcaica resultante desse formato, a justaposição
de imagens, as figuras nas paisagens de decadência urbana e violência pós-
-punk. Depuis le jour é uma figuração talvez menos extrema dessa aborda-
gem, mas seguramente faz parte de um mesmo horizonte estilístico que tem
como principal método a pouco usual mistura entre certo lirismo nostálgico
e um ímpeto vanguardista.
112 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

Jarman, que mesmo desde seus primeiros trabalhos na Escola de Belas


Artes do King’s College ou como diretor de arte do filme The Devils (1971)
de Ken Russell, desde seus primeiros filmes e clipes, já articulava certas ope-
rações temporais que tensionavam o presente a partir de uma deformação
deliberadamente afetada do passado (e vice-versa). Basta pensar na en-
cenação da antiguidade clássica que ele vai elaborar em Sebastiane (1976)
(todo falado em latim e com os figurinos que denunciam a psicodelia em
purpurina dos anos 1970) ou nas entonações punk da viagem no tempo de
Elizabeth I em Jubilee (1977). Sem esquecer os anacronismos de Caravag-
gio ou Edward II (1991), e das ênfases irônicas de Wittgenstein (1993), dos
modos de traduzir visualmente os textos shakespearianos em The Tempest
(1979) ou The Angelic Conversation (1985). Tal visão “deformada” da histó-
ria ou da literatura talvez tenha raízes na perspectiva do pintor que valoriza
detalhes visuais em detrimento do fluxo narrativo. Ou ainda, como aponta
Peter Wollen, tenha uma relação com uma sorte de neo-romantismo que
aparece na cultura inglesa a partir dos anos 1970, definida por “uma imer-
são numa visão pessoal da paisagem inglesa, incansavelmente revisitando e
rejeitando as tentações do vitorianismo e do antiquarianismo, voltando-se
mais com muito mais sucesso para as memórias de infância, mediadas por
filmes caseiros e retratos de família” (WOLLEN, 2006, p. 38).
Justamente a partir dessa mediação que me parece relevante considerar
os filmes musicais realizados por Jarman, sobretudo os clipes que ele di-
rigiu para a banda The Smiths – que antes da colaboração com Jarman re-
sistia enormemente ao videoclipe – e o objeto mais específico deste texto,
o segmento de Aria. Jarman, que dirigiu vídeos para, entre outros, The Sex
Pistols, Marianne Faithful, Throbbing Gristle, Bob Geldof, Patti Smith, Annie
Lennox e Pet Shop Boys, estes últimos mais notadamente divulgados e co-
mentados, recorreu muitas vezes ao found footage e à montagem e sobrepo-
sição de imagens de Super 8mm ou 16mm, editadas com U-matic. Neles, o
passado aparece ora como a matéria que dá sentido à cultura de fragmentos
do presente, ora como espectro que deve ser combatido, contestado, afas-
tado. Como, por exemplo, no clipe Broken English (1979) para a canção de
Marianne Faithful, nas quais aparecem cenas das marchas fascistas na Itá-
lia ou Hitler discursando furiosamente. O passado aparece também como
pastiche, como paródia pomposa e quase ridícula, como afetação – talvez
confirmando a desconfiança jamesoniana com relação às formas pós-mo-
dernas, como os romanos orgiásticos de It’s a Sin (1987), dos Pet Shop Boys,
estátuas vivas da antiguidade clássica em Tenderness is a Weakness (1984)
ANGELA PRYSTHON 113

de Marc Almond ou os dervixes rodopiantes e inautênticos de Windswept


(1985) de Bryan Ferry.
As mais intrigantes aparições do passado nos vídeos de Jarman, contu-
do, são aquelas que revisitam a intimidade, que trazem à tona as memórias
pessoais e seus afetos e acabam por mesclá-los a uma brava insurgência
histórica, a uma insubordinação política enraivecida, a uma franca irritação
ou pelo menos ambivalência com os símbolos da identidade nacional bri-
tânica. Talvez o exemplo mais contundente dessa combinação seja o vídeo
The Queen is Dead (1986) para The Smiths. O clipe começa com planos do
Albert Memorial, monumento em homenagem ao marido da rainha Vitória
em Londres, seguidos da sequência de um adolescente pichando a frase títu-
lo (a rainha está morta) num muro de uma construção moderna em ruínas,
das fusões de imagens da Union Jack enrolada no corpo de uma jovem, sen-
do amassada e rasgada, cenários de decadência urbana, uma coroa real, flo-
res, anjos, figuras andróginas e atemporais, guitarras, notas de libras sendo
queimadas. A colagem resulta num movimento claramente anti-narrativo,
mas pleno de narratividade, como aponta Jameson no seu comentário sobre
as ligações de Jarman com a estética da MTV: “pois parece-me que se trata
aqui da fragmentação de narrativas mais antigas em fragmentos puros de
narratividade, agora visualmente autônomos e narrativamente significati-
vos em si mesmos” (JAMESON, 1994, p. 130-131).
As demais canções de The Smiths transpostas para o filme de Jarman se-
guem esse padrão de fragmentação e de reforço de um imaginário cultu-
ral punk, embora nem todas tenham um caráter tão explicitamente político
como The Queen is Dead. There is a Light that Never Goes Out, por exemplo,
traz uma dimensão mais lírica (até pelas características da própria música),
com mais ênfase nas texturas imagéticas decorrentes da sobreposição de
duas ou mais imagens. Todo o vídeo está composto por dois ou mais planos
em Super 8mm fundidos em um único bloco de imagens em movimento: o
corpo de um rapaz, o reflexo de um lago ou rio ao pôr do sol, cenas de um
carro em movimento, nuvens no céu, Piccadilly, automóveis em chamas, tudo
ao mesmo tempo. Os fragmentos estão como que em busca de unidade, mas
em ameaça constante de explosão.
Panic, o terceiro filme dessa coletânea, retoma mais diretamente a polí-
tica (também pela própria natureza da canção, que tem um claro valor de
protesto, uma nítida preocupação com os contrastes sociais), a história e os
atributos formais aplicados em The Queen is Dead. A canção alude a várias
cidades do Reino Unido, mas as imagens são de Londres: novamente apa-
114 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

rece o contraste entre o que há de monumental na capital do reino e as ruí-


nas dos subúrbios e dos desolados conjuntos habitacionais, de certo modo
símbolos do fracasso da arquitetura modernista no país. Ask, último clipe
de Jarman para The Smiths e que foi lançado isoladamente, tem um tom
menos agressivo ou diretamente contestatório, o que é obviamente precipi-
tado pela leveza da canção, uma espécie de hino de liberação dos tímidos. A
jocosidade é replicada no vídeo, que conta como protagonista com um ado-
lescente espinhento de óculos fundo de garrafa que tenta desajeitadamente
se aproximar de uma garota. Além dos dois personagens, há outros jovens
celebrando e dançando na rua (também marcada pela desolação urbana
thatcherista dos anos 80), entrecortadas por imagens dos membros da ban-
da, sobretudo Morrissey, performando a canção (é, aliás, o único dos vídeos
de Jarman para The Smiths onde eles aparecem).
As texturas obtidas pelo cruzamento desses fragmentos imagéticos, tanto
nos filmes como nos videoclipes musicais, apontam para a tensão expres-
sionista entre a nostalgia de um passado povoado por figuras míticas (anjos
andróginos, punks elisabetanos, reis e pintores gays) e o presente distópico
das ruínas urbanas, do brutalismo arquitetônico decadente e da juventude
em revolta (herdeiros diretos das figuras míticas do passado). Num certo
sentido, elas criam uma temporalidade distinta, singular, uma sorte de futu-
ro do pretérito povoado de anacronismos e palimpsestos visuais. John Orr
observa que: “Jarman é amplamente fascinado pelo quadro-dentro-do-qua-
dro temporal da narrativa fílmica, pelo salto de épocas que age como cho-
que disruptivo não apenas para as sensibilidades do espectador, mas para
seu sentido de história linear” (ORR, 2000, p. 332).
Mas a nostalgia também pode retornar de um modo mais direto, mais con-
vencional, mas não menos comovente ou perturbador. É o que acontece em
Depuis le jour. Comparado inclusive com outros segmentos de Aria, o filme
de Jarman apresenta uma narrativa quase linear: nas primeiras sequências
temos num palco uma velha senhora (interpretada por Aimée Delamain)
– em todos os releases de divulgação do filme ela é mencionada como uma
cantora de ópera no seu último espetáculo – com um rico vestido de época
segurando um buquê de flores, fazendo mesuras e agradecendo a uma pla-
teia (nunca vista, o que pode sugerir que ela seja imaginária) enquanto uma
chuva de folhas (aparentemente uma fusão de imagens bem ao estilo jarma-
niano) cai sobre ela; em seguida temos o que seriam as lembranças dessa
mulher através de imagens em Super 8 de um jovem casal (Tilda Swinton
e Spencer Leigh) em diversas situações. O filme incorpora a sua experiên-
ANGELA PRYSTHON 115

cia anterior com os vídeos de música popular e seus modos particulares de


traduzir determinadas ambiências musicais para a música erudita, algo que
evidentemente já estava presente nos seus filmes anteriores e suas trilhas
sonoras e que vai ser aprofundado no longa War Requiem (1989), baseado
na peça musical de Benjamin Britten.
No caso de Depuis le jour, o libreto alude diretamente aos tremores deli-
ciosos da memória. Os devaneios da velha cantora são encarnados por Swin-
ton e Leigh vagando pelas topiarias de um típico jardim inglês, passeando
por pequenas vilas da costa inglesa, tomando banho de mar. Em Super 8mm
as imagens do casal em cores se fundem ao preto e branco predominante e
se mesclam às cenas da cantora no palco em 35 mm. A memória dessa mu-
lher, as lembranças de um amor de juventude e uma relativa linearidade na
sua apresentação podem até sugerir uma inspiração nostálgica de ordem
regressiva, um retorno ao passado para fugir de um presente estagnado;
contudo, a maneira como são concatenadas as duas temporalidades do fil-
me perturbam as nossas expectativas. O presente (a velha, seu vestido, seu
buquê, o banco e as folhas que caem) parece estar inscrito num imaginário
arcaico, num tempo perdido, enquanto as memórias se livram do passado
através de um fluxo constante de imagens, de fragmentos efêmeros do visí-
vel, criando um futuro do pretérito vivo e subversivo.
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118 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

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posfácio
ANGELA PRYSTHON 125

O lugar da imaginação na cultura


Fábio Ramalho

É difícil caracterizar um projeto teórico e crítico que se constitui, de modo


muito consciente, pela aproximação a toda uma linhagem de pensamento
que explora os interstícios dos sistemas conceituais, das formas de escri-
ta, dos fenômenos estéticos e socioculturais contemporâneos. Ainda mais
porque, após vários anos de uma prolífica produção acadêmica, a rede de
interlocuções que podemos vislumbrar ao longo dos ensaios aqui reuni-
dos não apenas aponta para um arcabouço conceitual que foi apropriado e
reprocessado segundo as contingências e interesses peculiares da autora,
mas também porque sustenta hoje um lugar que lhe é próprio, para além
de qualquer filiação. Tais textos vêm contribuindo para inspirar todos que
neles encontram tanto uma reflexão apaixonada sobre a cultura midiática
como um convite a tomar parte nessa constelação de temas e interesses – às
vezes um pouco mais que apenas ligeiramente obsessivos – nos quais mui-
tos de nós nos reconhecemos.
Para falar um pouco do percurso que estes textos nos permitem vislumbrar,
poderíamos lançar mão de algumas noções como chaves de leitura possí-
veis, embora reconhecendo que tal exercício implica desde já um recorte e
mesmo uma torção. Em primeiro lugar, caberia destacar o lugar ocupado
pelo cinema como força propulsora das reflexões sobre a imagem no con-
temporâneo. Seja pelo panorama muito bem informado acerca das trans-
formações da cinefilia na era da reprodutibilidade digital1 , seja através da
colocação em primeiro plano de sua própria relação cinéfila com realizado-
res e obras, a quase onipresença do cinema nos escritos de Angela Prysthon
é coerente com uma trajetória que aposta no audiovisual como formação,
sendo esta entendida aqui em seu sentido forte: não apenas como caminho
profissional e intelectual possível, mas como veículo para acessar o mundo
e engendrar formas de experiência.
A esse respeito, seria talvez produtivo evocar uma noção como a “eloqu-
ência do vulgar”, conforme elaborada por Colin MacCabe2 . O autor parte de
um gesto – a defesa que Dante faz do uso de uma língua vernacular, o italia-
no, para a criação literária, em detrimento do latim – e a partir dele escreve
126 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

um ensaio que funciona como intervenção no contexto da abertura de um


programa de pós-graduação em cinema no Reino Unido. Interessado em ex-
plorar as consequências que podiam ser extraídas do mal estar causado em
círculos conservadores da academia pela inclusão do cinema – forma de ex-
pressão considerada banal quando comparada com as linguagens artísticas
mais tradicionais – nos currículos das universidades, MacCabe versa sobre
o cinema como esse “vulgar” da arte que, não obstante, constitui um objeto
de investigação valioso para atuar no presente.
Em todo caso, cabe ressaltar que essa tomada de posição que sublinha o vul-
gar não se confunde com populismo. Ela não equivale à pretensão de isentar-
-se das intrincadas discussões sobre o valor estético e a eleição de artefatos
culturais cuja relevância estaríamos dispostos a defender. Falar em eloqu-
ência não implica, enfim, lançar mão das injeções de pompa que por vezes
inflamam a retórica acadêmica, assim como atribuir atenção ao vulgar não
equivale de modo algum, aqui, a uma tendência a nivelar por baixo os signos
e as formas da cultura, tomando-os como partícipes de um mercado indis-
criminado de estímulos e discursos prontos para o uso. Falar numa eloqu-
ência do vulgar, se é que essa expressão serve para nos ajudar a dizer algo
sobre o corpo de questões que orientam o trabalho de Prysthon, remete-nos
à convicção de que o aparentemente simples pode conter muitas nuances,
diversos níveis de apreensão, e de que o comum pode ser sofisticado. Tais
proposições tornam inevitável recordar Oscar Wilde, com o seu apreço pe-
los prazeres simples como “o último refúgio do complexo”, e junto com ele o
camp, uma das chaves de leitura mais operativas para compreender e conec-
tar as diferentes posições assumidas pela autora ao longo do tempo.
MacCabe faz questão de ressaltar que está distorcendo deliberadamente
a proposição de Dante, e caberia igualmente reposicionar essa questão no
contexto que nos interessa. Se, para o britânico, o acúmulo crítico propicia-
do pela produção dos Cahiers du Cinéma constitui um caso exemplar dessa
potencialidade do cinema como arte e como forma de pensamento, é impor-
tante notar que os usos destinados aos filmes na presente coletânea ultra-
passam essa dimensão já legitimada do cinema. Seja porque atribui ênfase
às obras menos reverenciadas de realizadores canônicos (como no ensaio
sobre Joseph Losey), seja porque submete a um segundo desvio a aprecia-
ção da obra de um diretor “impuro” (é o caso quando opta por lançar luz
sobre os videoclipes dirigidos por Derek Jarman, produções que poderiam
facilmente ser tomadas como secundárias em relação aos longas-metragens
que integram a filmografia do diretor), a autora torna evidente que as dinâ-
ANGELA PRYSTHON 127

micas de legitimação e ocultação vão se reconfigurando ao longo do tempo,


e que os pontos de tensionamento em relação aos limites daquilo que é con-
siderado esteticamente relevante não deixam de se deslocar em direção a
outros eixos, demarcando assim outras séries de divisões e redistribuições.
A defesa de um ponto de vista que investe na convergência entre o cinema
e a cultura pop, anunciada já desde o subtítulo do livro, corresponde a um
dos nós em que o embate em torno dessas divisões é travado hoje.
Talvez um dos mais evidentes sintomas dessa perspectiva amplamente atra-
vessada pelo universo sensível do pop é o fato de que a nostalgia não apare-
ce aqui como a busca ou o desejo de uma experiência incontaminada, que,
como tal, conseguiria escapar ao deslizamento infindável por imagens, sons
e produtos midiáticos. A sensibilidade nostálgica, conforme abordada mais
diretamente numa das seções do livro, realiza-se integralmente dentro de
um regime de circulação e consumo que extrai um aguçado prazer da explo-
ração das conexões e correspondências entre distintas manifestações cul-
turais e artísticas. Juntas, tais manifestações compõem uma densa rede de
referências, isso que já foi muitas vezes chamado nas teorias, não raramente
seguindo um viés pejorativo, de segunda natureza. Trata-se, pelo contrário,
de contornar a idealização de uma experiência direta, não-mediada pelos
frenéticos aparatos da mídia, e interrogar em que medida essa mediação
produz realidades.
Nesse sentido, não me parece uma eventualidade que o interesse pela noção
de imaginação nostálgica, formulada nesses termos, ganhe força nos ensaios
de Prysthon sobre a nostalgia. Primeiramente porque, ao falar em imagina-
ção, a autora nos permite reinscrever o lugar ativo que os sujeitos exercem
na fruição estética dos fenômenos culturais mais estreitamente marcados
por uma sensibilidade nostálgica – um lugar que é sobretudo de invenção.
Em segundo lugar porque a expressão acima destacada faz ecoar outras que
de certo modo partilham, se não exatamente um mesmo corpo de obras, ao
menos uma operação crítica semelhante: a imaginação melodramática como
maneira de perceber o mundo e organizar a experiência mediante um jogo
de polaridades de cunho moral e um regime de visibilidade pautado pelo
excesso e pela reiteração; a imaginação utópica como operação que mobi-
liza um arco de anseios e valores os quais, ainda que irrealizáveis integral-
mente, delineiam um campo de possíveis, liberando com isso forças capazes
de reposicionar as condições de apreensão e de transformação da vida; e a
imaginação pública como universo difuso de circulação de formas, sensa-
ções e discursos que tomam parte num fenômeno multifacetado e massivo
128 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

de co-criação e de compartilhamento.
É a partir daí que podemos acessar toda a potência do artifício e da frivo-
lidade. Num ensaio que pode ser considerado central para o mapeamento
que vai sendo traçado ao longo desses diferentes escritos, os filmes de Jac-
ques Demy aparecem como manifestações exemplares de uma postura afir-
mativa diante da arte e da cultura. De fato, uma das belezas do tipo de abor-
dagem aqui privilegiada é que ela nos permite vislumbrar não apenas uma
relação entre aquela que escreve e os objetos de seu apreço, mas também
nos convida, com o mesmo gesto, a perguntar pela paixão que orienta o im-
pulso criador capaz de fazer nascer essas mesmas obras. Afinal, o que po-
deria ter levado um realizador como Demy a voltar-se com insistência para
os musicais, em meio ao horror da guerra e da violência e sem subtraí-las
ao olhar e à memória do público, mas, pelo contrário, colocando-as numa
relação conflitiva com esse universo tantas vezes tomado como o paroxis-
mo da visão escapista promovida pela indústria do entretenimento? O que
mais poderia movê-lo, senão uma sólida confiança nas forças afirmativas da
fabulação, da imaginação e do encanto?
Por tudo isso, o olhar e a sensibilidade que movem o trabalho de Prysthon
se situam numa posição diametralmente oposta à atitude policialesca que
orienta as inesgotáveis denúncias às ameaças da ilusão e do engano. Tais
ameaças, é evidente, não fazem outra coisa senão colocar em movimento
um circuito de retroalimentação que muitas vezes acerta no seu diagnósti-
co, mas apenas ao custo de obrigar a instância crítica a repor infinitamente
o seu estoque de suspeitas.
Eve K. Sedgwick3 nos chamou a atenção para a generalização da suspeita
como um modus operandi privilegiado da crítica, diante do qual qualquer
tentativa de evadir uma leitura paranoica dos fenômenos da política e da
cultura – ou, dito de outra forma, qualquer esforço para abordar a cultu-
ra de outra maneira que não pelo intuito de decifrar os seus mecanismos
falseadores e sentidos ocultos – seria vista como ingênua ou complacente.
Dentre os efeitos colaterais desencadeados pela assunção irrestrita dessa
perspectiva, podemos destacar o fato de que as leituras paranoicas tendem
a replicar na sua própria lógica de funcionamento a centralidade da opera-
ção que buscam denunciar, amplificando desse modo o seu peso. Além dis-
so, sobressai o fato de que essa operação é, via de regra, inesgotável: nunca
se é paranoico o bastante; nunca se chega a denunciar o engano o bastante.
É uma constatação semelhante que parece impulsionar algumas das con-
siderações de Jacques Rancière4 acerca das operações acionadas por certa
ANGELA PRYSTHON 129

tradição crítica. Para o filósofo francês, o pensamento crítico não raramen-


te cai nessa mesma lógica da circularidade na medida em que está sempre
denunciando a ignorância do público (mais que isso, o desejo de sustentar
tal ignorância) e a necessidade de evadir os malefícios da ilusão cúmplice.
Rancière, aliás, não deixa de ressaltar até que ponto a denúncia do “império
da mercadoria e das imagens” frequentemente desemboca numa atitude
melancólica frente ao que é então percebido como uma suposta inevitabili-
dade da lógica do espetáculo. Tudo isso sustentado, mais uma vez, por um
mecanismo de retroalimentação que garante sua permanência: “A predição
melancólica não gira em torno de fatos verificáveis. Ela simplesmente nos
diz: as coisas não são o que parecem ser. Esta é uma proposição que não
corre jamais o risco de ser refutada.”
A despeito de seus diferentes enfoques e acepções, ambas leituras têm em
comum o fato de que o crítico denuncista aparece como uma espécie de Sísi-
fo que se entrega ao fardo de levar a cabo a tarefa de deplorar a superficiali-
dade e a inconstância ostentadas pelos consumidores ávidos por imagens e
melodias. O problema, claro, é que todo o resto é quase sempre jogado fora,
e esse resto é tanto: o prazer de reconhecer um pouco de si, dos outros e do
mundo nos artefatos da cultura ou, inversamente, a aventura de perder-se
na estranheza de um detalhe sutil que flagramos numa obra de insuspeita
leveza. Ainda, a oportunidade de (re)constituir um universo sensível, de re-
correr à estética para, sem padecer de culpa nem pagar tributo ao excesso
de reverência, tingir a vida, mesmo que momentaneamente, com outras to-
nalidades. É mediante o exercício de uma persistente investida no valor das
estéticas com “e” minúsculo que Angela Prysthon encontra no caráter afir-
mativo do cinema, do pop, das iconografias da arte e da cultura midiática os
componentes de uma rica e profusa memorabilia. Os menos afeitos às suti-
lezas, no entanto, correm o risco de perder de vista esse valioso combate.
130 UTOPIAS DA FRIVOLIDADE

NOTAs
1 LINK, Daniel. “Orbis Tertius: La obra de arte en la época de su reproductibi-
lidad digital”. Buenos Aires: Ramona, 26, octubre de 2002.

2 MAcCABE, Colin. The eloquence of the vulgar: language, cinema and the
politics of culture. London: BFI Publishing, 1999.

3 SEDGWICK, Eve K. “Paranoid reading and reparative reading, or, you’re


so paranoid, you probably think this essay is about you”. In: Touching feeling:
affect, pedagogy, performativity. Durham and London: Duke University Press,
2003, p. 123-151.

4 RANCIÈRE, Jacques. “The misadventures of critical thought”. In: The


emancipated spectator. London: Verso, 2009, p. 25-49.
SOBRE A AUTORA E OS COLABORADORES

ANGELA PRYSTHON
É professora Associada do Bacharelado em Cinema e do Programa de Pós-
-graduação em Comunicação da UFPE. Fez estágio sênior pós-doutoral no
departamento de Film Studies da University of Southampton, Inglaterra.
Tem doutorado em Teoria Crítica pela University of Nottingham, Inglater-
ra, e mestrado em Teoria Literária pela UFPE. É autora de Cosmopolitismos
periféricos (Bagaço, 2002) e organizadora de Ecos urbanos: a cidade e suas
articulações midiáticas (Sulina, 2008), entre outros títulos. Seus escritos so-
bre cinema, mídia e literatura apareceram em inúmeros livros e periódicos,
incluindo Cinema, Globalização e Interculturalidade (Argos, 2010), Culture
of the Cities (University of Pittsburgh Press, 2010), Visualidades hoje (EDU-
FBA, 2013), Galaxia, La Furia Umana e Contracampo.

ANDRÉ ANTÔNIO
É doutorando em Comunicação e Cultura na UFRJ, onde pesquisa as inter-
faces entre a noção de frivolidade e o cinema contemporâneo. Escreveu,
pelo mestrado em Comunicação da UFPE, dissertação sobre as relações en-
tre melancolia e nostalgia no cinema. Faz filmes com o coletivo Surto & Des-
lumbramento (deslumbramento.com).

CHICO LACERDA
É doutorando em Comunicação na UFPE, onde discute questões em torno
do chamado cinema gay brasileiro. Fez filmes com o coletivo Sunab Filmes
(sunabfilmes.wordpress.com) e agora faz com o coletivo Surto & Deslum-
bramento (deslumbramento.com). Tira fotos o tempo todo (flickr.com/pho-
tos/chicolacerda).
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DENILSON LOPES
É professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesqui-
sador do CNPq. É autor de No Coração do Mundo: Paisagens Transculturais
(2012); A Delicadeza: Estética, Experiência e Paisagens (2007); O Homem
que Amava Rapazes e Outros Ensaios (2002); Nós os Mortos: Melancolia e
Neo-Barroco (1999); organizador de O Cinema dos Anos 90 (2005); co-orga-
nizador de Imagem e Diversidade Sexual (2004) e de Cinema, Globalização e
Interculturalidade (2010).

FABIO RAMALHO
É professor, pesquisador e ensaísta. Doutor em Comunicação pela Univer-
sidade Federal de Pernambuco, investigou em sua tese a apropriação e o
deslocamento de repertórios audiovisuais como um modo de engajamento
afetivo. Concluiu o mestrado na mesma instituição com uma pesquisa sobre
cinema latino-americano contemporâneo.
www.cesarea.com.br
Recife, 2014

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