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( eviroraufmg O TRABALHO DA CITACAO ANTOINE COMPAGNON © 1979, Editions du Seuil '-@ 1996, da traduco brasileira, Editora UFMG 2007 - 14 reimpressao “Titulo original: La seconde main ou le travail de la citation Este livro ou parte dele nao pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizacao escrita do Editor. Compagnon, Antoine C736t O trabalho da citacdo / Antoine Compagnon ; tradugao de Cleonice P. B. Mourao. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 1996. 176 p. ‘Traducao de: La seconde main ou le travail de la citation (Textos selecionados) 1. Literatura I. Mourdo, Cleonice P, B. II. Titulo CDD: 801 CDU: 82.01 Ficha catalogréfica elaborada pela Divisdo de Planejamento e Divulgacéo da Biblioteca Universitaria da UFMG ISBN: 85-85266-11-2 COLABORACAO NA TRADUCAO DA SEQUENCIA I: Luciana Lobato Burros Eliane Mourao PROJETO GRAFICO E CAPA Cassio Ribeiro EDITORACAO DE TEXTO Ana Maria de Moraes REVISAO E NORMALIZACAO Lilian de Oliveira FORMATACAO Robson Miranda PRODUCAO GRAFICA Warren M. Santos Editora UFMG Av. Anténio Carlos, 6627 ~ Ala direita da Biblioteca Central - Térreo ° Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG ‘Fel. (031) 3499-4650 Fax (031) 3499-4768 wwweditora.ufmg.br editora@ufmg.br a NOTA AO LEITOR Este volume é uma edicao reduzida de La seconde main ou le travail de la citation, de Antoine Compagnon, — publicada pelas Editions du Seuil, em 1979. Para a selecio dos 39 tépicos traduzidos das seis seqiéncias que compéem a obra, optou-se por fragmentos que tratam da escrita como exercicio da intertextualidade. Primeiro, ninguém pensa que as obras e os cantos poderiam ser criados do nada. Eles esto sempre ali, no presente imével da meméria. Quem se interessaria por uma palavra nova, nao transmitida? O que importa nao é dizer, mas redizer e, nesse rédito, dizer a cada vez, ainda, uma primeira vez. Maurice Blanchot CONVERSAGAO INFINITA O que ha de terrivel em nés e sobre a terra e no céu talvez seja 0 que ainda no foi dito. $6 estaremos tranqiiilos quando tudo estiver dito, uma vez por todas, entao, enfim, faremos siléncio e nao mais teremos medo de nos calar. E assim sera. Céline VIAGEM AO FIM DA NOITE Copiar como antigamente. Gustave Flaubert BOUVARD E PECUCHET hee a TESOURA E COLA ABLAGAO GRIFO ACOMODAGAO SOLICITAGAO A LEITURA EM ACAO © HOMEM DA TESOURA UMA CANONIZAGAO METONIMICA ENXERTO REESCRITA © TRABALHO DA CITACAO A FORGA DO TRABALHO © SUJEITO DA CITACAO CULPA DE GUILLAUME EMBREAGEM A FRICCAO MOBILIZAGAO SUMARIO 13 7 20 24 27 30 33 37 41 44 AT 49 52 56 58 UM FATO DE LINGUA UNIVERSAL? FORMA E FUNCAO © SIMULACRO MOSTRAR UMA “BOA” CITACAO? © CORPO MARAVILHOSO DO DISCURSO “VOX”: A POSSESSAO UMA REGULAGAO INTERNA DO DISCURSO A REGULAGAO CLASSICA DA ESCRITA OU O TEXTO COMO HOMEOSTASE A PERIGRAFIA O INTITULADO E O TITULAR A BI(BLI)OGRAFIA DIAGRAMA OU IMAGEM NA FACHADA © POSTO AVANGADO © FOSSO ASSEPTIZANTE © COMEGO DO LIVRO E O FIM DA ESCRITA AVOCAGAO DA ESCRITA POSSE, APROPRIAGAO, PROPRIEDADE A CITAGAO ACABADA UMA ECONOMIA DA ESCRITURA FESTIVIDADES ESPACOS DE ESCRITA NOTAS REFERENCIAS 61 65 69 75 79 81 84 90 96 104 106 112 115 118 120 124 128 135 139 150 153 156 160 167 173 TESOURA E COLA Crianga, tenho uma tesoura, pequena tesoura de pontas arredondadas, para evitar que me machuque; as criangas sao muito desastradas até que atinjanya idade da raz4o, quando aprendem 0 alfabeto. Com minha tesoura nas mios, recorto papel, tecido, nado importa o que, talvez minhas roupas. As vezes, se sou bem comportado, oferecem-me um jogo de imagens para recortar. Sao grandes folhas reunidas em um livreto, e sobre cada uma delas estao dispostos, em desordem, barcos, avides, carros, animais, homens, mulheres e criangas. Tudo o que é necessdrio para reproduzir o mundo. Nao sei ler as instrug6es, mas tenho-as no sangue, a paixdo do recorte, da selegao e da combinacao. Meu gesto desejaria ser minucioso; ponho-me a seguir o contorno das figuras, um trago negro em volta do corpo. Mas o recorte é de todos os jogos aquele que mais me deixa nervoso: serro os punhos, bato o pé, rolo pelo chao. Sapateio de raiva uando as coisas me opdem resi ‘ia, quando se recusam a submeter-se 4 minha vontade, rebeldes que sao a se deixarem representar em meu recorte, em meu modelo de universo. Ultrapasso sempre de alguns milimetros 0 limite, corto as pontas de papel que se dobram sobre os ombros ou que deslizam pelas fendas do corpo, a fim de que a roupa se mantenha sobre a silhueta de papelao nu. Fico louco. Mas como poderia conseguir, se somente minha mie dispée, para seus trabalhos de costura, de longas tesouras pontiagudas que me permitiriam esquadriar, sem mutilar as finas lingiietas? E preciso consertar os estragos, colar novamente as extremidades que faltam. Mas nao tenho sequer fita adesiva. Invejo esses dois grandes privilégios das pessoas adultas, a verdadeira tesoura, pontiaguda, e a verdadeira cola, que cola tudo, até o ferro. Sou fascinado como o ultimo indio Ishi pelos atributos que definiam, para ele, o homem branco: 0 fésforo e a cola.1 Quanto a mim, tenho somente um pequeno pote de onde me vem 0 odor de xarope de cevada, uma espatula leve para espalhar a pasta que tem a cor, a consisténcia, o cheiro e o gosto dessa sobremesa servida nos restaurantes chineses de Paris, sob a denominagao apécrifa de “delicia das ilhas”. Colar novamente nao recupera jamais a autenticidade: descubro 0 defeito que conhe¢o, nao consigo me impedir de vé-lo, sé a ele. Mas me acostumo pouco a pouco com o mais ou menos; subverto a regra, desfiguro 9 mundo: uma roupa feminina sobre um corpo masculino, e vice-versa. Compondo monstros, acabo por aceitar a fatalidade do fracasso € da imperfeicag, Nada se cria. Eu parodio o jogo recortando novos elementos em: papel comum que vou pintando sem levar em conta obom senso. Isso nao se parece mais com coisa alguma; nao me reconhego, a mim. Mas eu amo essa “coisa alguma”. 10 Recorte e colagem sao o modelo do jogo infantil, uma forma um pouco mais elaborada que a brincadeira com o carretel, em cuja alternancia de presenga e de auséncia Freud via a origem do signo; uma forma primitiva do jogo da porrinha — papel, tesoura, calhau — e mais poderosa se nada, no fundo, resiste 4 minha cola. truo lo a minha imagem, um mundo onde Me pertengo, e é um mundo de papel. Imagino que, quando bem velho — se eu ficar bem velho —, reencontrarei o puro prazer do recorte: voltarei a infancia, Todas as manhis, receberei 0 jornal, que recortarei linha por linha, em longas tiras de papel que colarei umas as outras e enrolarei como uma fita de maquina de escrever. Meu dia estara cheio: nao lerei mais, nao escreverei mais, nao saberei mais nem escrever nem ler, mas estarei ligado ainda ao papel, a tesoura e a cola. Recorte e colagem sao as experiéncias fundamentais com o papel, das quais a leitura e a escrita nao sio senio formas derivadas, transitérias, efémeras. Entre a infancia ea senilidade, que terei feito? Terei aprendido a ler e a escrever. Leio e escrevo. Nao paro de ler e escrever. E por qué? Nao seria pela unica razo inconfessavel de que, no momento, nao posso me dedicar inteiramente ao jogo de papel que satisfaria o meu desejo? A leitura e a escrita sio substitutos desse jogo. Sinto saudade dos livros antigos, do tempo em que era preciso abri-los previamente com 0 corta-papel: “A dobra virgem do livro, além disso, pronta para um sacrificio que fez sangrar o corte vermelho dos tomos antigos; a introducao de uma arma, ou corta-papel, para estabelecer a tomada de posse:? Gosto do segundo tempo da escrita, quando recorto, junto e recomponho. Antes ler, depois escrever: momentos de puro prazer 11 preservado. Sera que eu nao preferiria recortar as paginas e cola-las num outro lugar, em desordem, misturando de qualquer jeito? Seré que o sentido do que leio, do que escrevo tem uma real importancia para mim? Ou nao seria antes uma outra coisa que procuro e que me 6, as vezes, proporcionada por acaso, por estas atividades: a alegria da bricolagem, o prazer nostalgico do jogo de crianga? E por isso que se deve conservar a lembranca dessa pratica original do papel, anterior a linguagem, mas que 0 acesso a linguagem nao suprime de todo, para seguir seu trago sempre presente, na leitura, na escrita, no texto, cuja definigéo menos restritiva (a que eu adoto) seria: 0 texto é a prdtica do papel. Dois dentre os grandes escritores deste século comprovariam essa defini¢ao: Joyce e Proust. O primeiro apresentava a tesoura e a cola, scissors and paste, como objetos emblematicos da escrita;> 0 segundo, pregando aqui e ali seus pedacos de papel, comparava de bom grado seu trabalho ao do costureiro que constréi um vestido, mais do que ao do arquiteto ou do construtor de catedrais. E no texto, como pratica complexa do papel, a citagdo realiza, de maneira privilegiada, uma sobrevivéncia que satisfaz 4 minha paix4o pelo gesto arcaico do recortar- colar. 12 ABLAGAO Quando Sto. extraio-mutlo, d¢=Spaizo Ha um objeto primeiro, colocado diante de mim, fo que li, que leio; eocurso de minha leitura se interrompe numa frase. Volto atras: re-leio. A frase relida torna-se formula auténoma dentro do texto. A releitura a desliga do que lhe é anterior edo que lhe é posterior. O fragmento escolhido converte-se ele mesmo em texto, nao mais fragmento de texto, membro de frase ou de discurso, mas trecho escolhido, membro amputado; ainda nao o enxerto, mas ja érgao recortado e posto em reserva. Porque minha leitura nao é monétona nem unificadora; ela faz explodir o texto, desmonta-o, persa-o. E por isso que, mesmo quando nao sublinh alguma frase nem a transcrevo na minha caderneta, mi leitura j4 procede de um ato de citacdo que desagrega texto e o destaca do contexto. Nao seria isso simplesmente reconhecer que, em um livro, ha algumas frases que leio e outras que nao leio, variando a proporgao entre as duas, segundo os livios, segundo os dias? Mas as frases que leio, aquelas que me 13 prendem e que afixo no meu mostruario, com certeza eu as cito. Quintiliano valia-se disso para explicar as vantagens da leitura sobre a audicao: “A leitura é livre e nao é obrigada a acompanhar o orador. Pode-se voltar a cada instante sobre os préprios passos, seja para examinar uma passagem mais atentamente, seja para melhor memorizé-la.” Voltar sobre os préprios passos, memorizar (repetere, para Quintiliano), [Edecompor otexto, alterar sua organizacao]E Quintiliano, para aproximar esse gesto necessdrio da leitura a ser apreendida, recorre a uma outra metdfora, diferente da cirurgica, mas ainda uma metafora corporal ou organica, nao mais a do texto como corpo a retalhar, mas a do leitor como 0 agente da manduca¢4o que antecede toda digestao, toda assimilacao: Assim como se mastiga por muito tempo os alimentos para digeri-los mais facilmente, da mesma maneira 0 que Jemos, longe de entrar totalmente cru em nosso espirito, nao deve ser transmitido 4 memoria e a imitagao sendo depois de ter sido mastigado e triturado.® Aleitura repousa em uma operaco inicial de depredagao e de apropriagao de um objeto que o prepara para a ou seja, para a citacdo. (Répeticao, memoria, imitagdo: uma constelagdo semantica em que conviria delimitar o lugar da cita¢o.) Mas o teor dessa operaco preliminar nao pode ser avaliado senao através de metaforas. Quintiliano nao se recusava a isso: sua Institui¢ao Oratéria é cheia de imagens que traduzem ao vivo o gestual sutil do discurso. A aproximagao metaférica, de certo modo impressionista, marca (como 14 uma fotografia aérea) os campos de uma investigacao ulterior e menos superficial (a fotografia aérea servird para estabelecer um mapa geografico, para promover pesquisas geoldgicas ou geotérmicas). Jé um discurso imediatamente metalingiiistico desconheceria, sem esperanga de volta, os fatos de linguagem mais ténues que a retérica antiga —uma arte, isto é, uma ciéncia e uma técnica, mas também uma pratica — deveria explicar. Somente uma analise fenomenolégica do nosso préprio exercicio da linguagem descobre e retém esses fatos mais finos, apega-se a eles e deseja interpreta-los. Algumas séries metaféricas atravessarao, portanto, essas paginas, séries dispares e as vezes divergentes: uma cirurgica, outra financeira ou econdémica, porque a citacdo poe em circulagao um objeto, e esse objeto tem um valor. Uma outra metafora ainda, da costura, falar de corte, de montagem, de alinhavo e de chuleio. E ainda todas estas: topografica, estratégica, militar, teoldgica, anatémica, que nao tém outra ambi¢ao sendo a de fazer aflorar hipéteses, tracgar um itinerario para uma série de questées a se aprofundar ao longo qo trabalho. E os desvios légico, lingilistico, histo, pclae nao serao, também, menos metaféricos quelos outros. Ora, 0 que sao elas, essas metaforas heuristicas que, do mesmo modo, nao levarao a lugar nenhum (pelo menos a paisagem tera sido descrita)? Evidentemente: citagdes. Todas seriam justificaveis como tais por referéncias aos Essais (Ensaios), de Montaigne. Da mesma forma, toda citagdo é ainda — em si mesma ou por acréscimo? — uma metdfora. Toda definicéo da metdfora conviria também a citagdo; a de Fontanier, por exemplo: “Apresentar uma idéia sob o signo de uma outra idéia mais surpreendente ou mais conhecida, que, alias, nao se liga 4 primeira por nenhum outro Jaco a nao ser o de uma certa conformidade ou analogia.” 16 GRIFO \ Ler, com um lapis na mao, como recomendava Erasmo, em De Duplici Copia, assim como todo ensinamento da Renascenga, contornar algo do texto com um forte traco vermelho ou negro ¢ tracar 0 modelo do recorte. O grifo assinala uma etapa na leitura, é um gesto recorrente que marca, que sobrecarrega 0 texto com o meu proprio traco. Introduzo-me entre as linhas munido de uma cunha, de um pé de cabra ou de um estilete que produz rachaduras na pagina; dilacero as fibras do papel, mancho e degrado um objeto: faco-o meu. E por isso que na biblioteca toda essa gesticulacao intima me é proibida. Olivro que eu maltratei lembra esses objetos transicionais de que fala o psicanalista inglés Winnicott,’ uma ponta de cobertor, um urso de pelticia que a crianca chupa antes de adormecer. Nao me desprendo dele, eu 0 amo. Pois 0 livro lido nao é um objeto realmente distinto de mim mesmo, com o qual teria uma verdadeira relaco de objeto: ele é eu e€ndo-eu, uma not-me possession. Nao é assim que se pode compreender 0 estatuto do livro de cabeceira, 0 livro por 17 exceléncia — a menos que ele nao passe de um mito —, esse volume, sempre 0 mesmo, do qual leio uma pagina cada noite ao me deitar e junto ao qual eu durmo? Mas todos os livros de que me cerco,séo, em um grau menor, not-me possessions, um corredor entre mim e 0 mundo, uma zona protegida, um espaco reservado. Nao me separo deles de boa vontade, gostaria de té-los sempre comigo. Quando passeio, levo muitos deles em meus bolsos ou em minha bagagem. E é também como um pretexto para nao empresta-los (a discrigéo, o pudor) que os sublinho, que os rabisco ternamente. O grifo é o menos contestavel dos ex-libris. Esse gesto reproduz um sublinhar anterior, aquele grifo que a pena efetua sobre a pagina manuscrita, a fim de assinalar para o tipégrafo aquilo que ele deverd colocar em itdlico. O quirégrafo e o tipdgrafo so dois personagens distintos, duas razées sociais que acenam uma paraa outra através de um grifo interposto ou de qualquer outra convengao. O escritor cochicha ao outro, em aparte: “Aqui vocé usaré caracteres diferentes.” E o grifo assume a fungdo de um conector, de uma marca da enuncia¢ao no enunciado, através da qual o autor da a entender a algum leitor alguma coisa além da significagao e que Ihe é irredutivel, alguma coisa que remete a sua propria leitura de seu proprio texto, e mesmo a sua propria audicao no momento de uma leitura em voz alta. O grifo corresponde a uma entoacio, a um acento, a uma outra pontuacao que ultrapassa o codigo comum. Dai a exigéncia de um sinal especial que possa torné-la inteligivel. Quando se publicam as notas de leitura de um autor célebre — alids, por que publica-las sendo na hipdtese de que se trata de um primeiro estado de sua prépria escrita? 18 — épreciso recorrer a artificios tipograficos complicados para distinguir os patamares miltiplos e sucessivos da enunciacdo. A leitura de Hegel por Lenin torna-se um texto novo. Figuram sobre a pagina impressa: 0 texto primeiro, o de Hegel, com seus itdlicos, que sio antigos grifos; os sobrescritos de Lenin, seus grifos reconstituidos, apesar das convengées, pelos grifos tipograficos; e suas rubricas ou suas notas marginais impressas com 0 auxilio de um terceiro tipo de letra. Lendo, eu acrescento ainda. Pode- se imaginar que a cadeia nao se interrompera: como na Patrologia, de Migne.* O grifo na leitura é a prova preliminar da citagéo (e da escrita), uma localizacdo visual, material, que institui o direito do meu olhar sobre o texto. Tal como um reconhecimento militar, 0 grifo coloca marcas, localizadores sobrecarregados de sentido, ou de valor; ele superpée ao texto uma nova pontuagio, feita ao ritmo da minha leitura: sao os pontilhados sobre os quais mais tarde farei recortes. Toda citac4o é primeiro uma leitura — assim como toda leitura, enquanto grifo, é citagio —, mesmo quando a considero no sentido mais trivial: ja li outrora a citagdo que faco, antes (seria exato?) de ela ser citagao. ACOMODAGAO Existem pessoas que sao pagas para ler — e mal pagas, segundo se diz. Sao os “leitores” das editoras. Uma vez por semana, eles vao ao seu patrao esvaziar sua sacola e voltam com a sacola cheia de manuscritos recentemente datilografados. Essas pessoas sao profissionais da leitura: ela é, para as mesmas, uma atividade social, um trabalho temunerado. Essas pessoas tém prazos, produzem notas de leitura. Ora, para tal exercicio nao ha método, o ensino nao prepara para isso, pelo menos na Franca. Nos Estados Unidos da América cada aluno recebe, periodicamente, _ durante toda a sua vida escolar, um reading list no qual escolhe alguns volumes de cuja leitura prestara contas, nao como um erudito ou como um critico, mas como um leitor inocente (na Franga nao se acredita mais na inocéncia de nenhuma leitura). Admite-se até que o aluno produza uma senten¢a decisiva contra Shakespeare ou Dickens. - O que se pretende em uma nota de leitura? Sem duvida, provar alguma coisa, isto é, que o manuscrito merece ou nao ser lido por mais de um leitor que assim deseje e 20 que pague por isso, em vez de ser pago. Como fazer tal demonstra¢do? Pelo levantamento estatistico de algumas amostras do manuscrito: um capitulo, uma pagina, uma linha. E ainda a técnica do grifo, que, com certo treino, aprende-s@ a fazer rapidamente. Gide, descobrindo o manuscrito de Em Busca do Tempo Perdido, que chegara ao editor pelo correio, destacou dele uma frase e a utilizou contra Proust. “Ha algumas frases a destacar em seu manuscrito” A destacar, quer dizer, a citar, a recitar: elas suportam a prova da citagao. Essas frases sdo citagdes que o leitor faz no texto, sao as paradas, as reticéncias ou os obstaculos de sua leitura. Se esses tropegos forem demasiadamente raros ou desagradaveis, o manuscrito ser4 julgado inaceitavel. O texto contemporaneo — e este é o mais inegavel dos seus sucessos — torna impraticavel tal modo de leitura: é pegar ou largar. Pois a frase que se sublinha é quase sempre a que se desejaria modificar ou suprimir — modificd-la por pouco que seja para apropriar-se dela —, mas 0 texto contemporaneo é 0 que ele é: nenhuma mudanga é concebivel. E impossivel citd-lo. Ora, quais sao as frases a serem destacadas em um manuscrito? Seria divertido e muito plausivel que fossem justamente suas citagdes, confessadas ou encobertas, suas alusées, que orientam o leitor para um autor sob cujo signo se quer colocar o aprendiz. O leitor acomodar- se-ia em alguns lugares conhecidos e reconhecidos, em numero suficiente para incluir o manuscrito em uma grande tipologia intuitiva das competéncias de leitura: o requisit de leituras prévias, necessérias para abordar um livro-dado, seria o indice desse livro, seu lugar na tipologia. Pouco importa que o aprendiz nao se reconhega no lugar 21 em que foi acomodado: entregando-se a leitura, ele aceita todas as citagées que lhe queiram impor, sejam elas provenientes ou nao de sua propria leitura, de sua propria competéncia. Além do mais, uma competéncia pode muito bem depender da atmosfera da época. A unica liberdade que o texto concede ao leitor é a da acomodago: que ele acomode 0 texto e que nele se acomode, sendo as duas coisas muitas vezes contraditérias. O leitor dever4 encontrar o lugar de onde o texto lhe seja legivel, aceitavel. Nao se pode exigir dele que esse lugar lhe seja inteiramente desconhecido no momento em que abre o livro: um livro que nao me oferecesse nenhum ponto de acomodagao, que subvertesse todos os meus habitos de leitura, que nao exigisse nenhuma competéncia especial, mas as ultrapassasse todas, esse livro ser-me-ia completamente inacessivel e eu haveria de rejeitd-lo. A citacao é um elemento privilegiado da acomodagao, pois ela é um lugar de reconhecimento, uma marca de leitura. £ sem divida a razdo pela qual nenhum texto, por mais subversivo que seja, renuncia a uma forma de citagdo.. A subversdo desloca as competéncias, confunde - sua tipologia, mas nao as suprime em principio, o que significaria privar-se de toda leitura. Dentre as numerosas defini¢6es em torno da citac4o, proporemos esta: a citagéo ¢ um lugar de acomodacao previamente situado no texto. Ela o integra em um conjunto ou em uma rede de textos, em uma tipologia das competéncias requeridas para a leitura; ela é reconhecida e nao compreendida, ou reconhecida antes de ser compreendida. Nesse sentido, seu papel ¢ inicialmente fatico, de acordo com a definicao de Jakobson: “Estabelecer, prolongar ou interromper a comunica¢io, [...] verificar se o 22 circuito funciona.” Ela marca um encontro,"° convida para aleitura, solicita, provoca como uma piscadela: é sempre a perspectiva do olho que se acomoda, do olho que se supde na linha de fuga da perspectiva. Havera muito a dizer sobre a cita¢éo como olho, tal como a qualificam, entre outros, Quintiliano e Sao Jerénimo. 23 SOLICITAGAO Quando leio, o que faz com que me interrompa, com que pare diante de determinada frase e nao de outra? O que esse tropeco desperta em mim? Ele pée em movimento todo o processo da citac40. Mas 0 que antes despertou esse trope¢o? Bem anterior a citagdo, mais profunda e mais obscura, foi a solicitacao: um pequeno choque perfeitamente arbitrario, totalmente contingente e imaginério. Louis Massignon assim o descrevia: Quao singular o ascendente suibito da frase que nos choca numa volta de leitura; j4 nao é entio o peso de uma ex- periéncia coletiva que nos faz ceder (como € 0 caso dos provérbios), é, dentro da nossa mais intima preferéncia, a intervencao docemente persuasiva de uma outra per- sonalidade, despertando fraternizacao." A solicitagao é uma comogao total e indiferenciada do leitor, um encantamento que precede, compreende e oculta a atribuigao para si mesma de uma causa. A sonoridade 24 de uma gutural, o eco de uma vogal, um ritmo adaptado a minha respiracdo ou aos meus reflexos — nunca deixo de sublinhar os alexandrinos perdidos em uma obra de filosofia — ou, mais banalmente ainda e se possivel, o tempo morto para apagar um cigarro, uma buzinada sob minha janela, uma caibra no dedo do pé: todos acidentes que nao dependem do proprio texto, mas que me solicitam da mesma forma. A solicitacdo é essencialmente fortuita. A prova é que o mesmo livro pode cair-me das mios hoje e arrebatar-me amanha. O que me solicita nao é 0 livro, nem eu mesmo, mas um encontro casual, uma passante, assim como acontece com 0 ser que vejo todos os dias e do qual (imagem fugidia e inatingivel), de repente, venho a enamorar-me e pelo qual, gracas talvez a uma perspectiva, a uma simples circunstancia particular e imprevisivel, me apaixonarei loucamente. E quando, entao, a excitagéo intervém: ela vai em busca, no texto, do alicerce (0 ground, o solo, a base) da solicitacao. Mas a solicitag4o talvez tivesse uma outra causa. A excitagao faz o texto sair de si mesmo, diferencia-o, destaca-o, trabalha para expulsar dele um elemento que poderd, provavelmente, ser considerado como causa, acidental, da solicitagdo. Entretanto, a excitagao nunca remonta a origem, jamais reencontra o abalo original e intratavel. Eu posso me excitar com um texto, sublinhd-lo, riscd-lo, recorta-lo, rasg4-lo e cobri-lo de injurias, 0 abalo inicial me é inacessivel, porque est4, ao mesmo tempo, dentro do texto e fora dele, na configuragao imaginaria da leitura da qual, com todo o meu corpo, sou uma parte recebedora e 0 ultimo referente. A solicitagdo se ocupa de meu desejo, e 0 objeto assinalado que eu expulso do 25 texto a fim de conserva-lo como memoria de uma paixao (a da solicitagéo), esse objeto nado passa de um residuo, um dejeto, um logro, um fetiche e um simulacro que se somam ao.meu estoque de cores. Meu litterarum penus, como diziam os antigos, ou meu “Fundoliterario”, segundo a expressdo retomada por Mallarmé, nao é senao uma reuniao de lutos excitados, de nostalgias solicitantes. O que seria uma leitura da solicitacdo? Ela limitar-se-ia ao namoro, deixaria de excitar, de retalhar o texto. Seria, sem diivida, uma interpreta¢ao, assim como a tinica leitura concebivel da enunciagao. A solicitag4o é o correspondente, em leitura, da enunciacéo: um acomodamento, uma conciliagdo do enunciado. E as marcas da solicitacao no texto so as excitagdes, os grifos e os desmembramentos: sinais sempre aproximativos e insatisfatorios, mas presungées de uma verdade que foi, instantaneamente, a da minha leitura. £ por isso que eu resisto a emprestar meus livros, pois eles trazem os tracos indiscretos das minhas excursdées (e incursées) através deles, de minhas aventuras cheias de desejo e de amor, datadas e localizadas, como se o entregar-se a leitura nas suas glosas excitadas proviesse de exibicionismo acrescido de cegueira. A solicitagao, ainda da mesma forma que a enunciacao, sé tem valor (de reconhecimento) no tempo da leitura, mas esse tempo, essa duracao é, na maioria das vezes, mal conhecida. A leitura, como a escrita, paralisa o tempo, fecha-o sobre si mesmo: tal é o axioma ilusério que desconhece a solicitagao. 26 A LEITURA EM ACAO Sejam as quatro figuras distintas da leitura: ablacao, grifo, acomodacio e solicitagao. Como elas se organizam? Representam fases, sucedem-se? Nao necessariamente: sendo todas possiveis, uma pode realizar-se sem as outras. Todavia, hd entre elas uma grada¢4o.latente, uma ordem teérica, inversa daquela em que foram descritas e que, partindo da mutilacdo, penetrava até o intratavel da paixdo pela leitura, onde se perdia. Elas partem do objeto total que é para mim 0 texto que me encanta na solicita¢do, passam pela acomodacao num lugar reconhecido de satisfacao, pelo grifo que aprisiona esse lugar, e alcancam 0 objeto parcial que destaco do texto na ablagdo. Trata-se, através desses quatro momentos, de uma aproximago cada vez mais fina, de um quadriculado estratégico. Mas esse nao tem nada a ver com a significacdo. A significacao (se nao o sentido) éa quinta roda dessa carruagem, a roda sobressalente que irei procurar se minha leitura for trabalho perdido. Eu recorro ao sentido como a um ultimo recurso, agarro-me a ele por nao poder encontrar a paixdo, na ilusao desesperada 27 pects anal de que um esforgo sobre a significagao prender-me-ia ao texto que, pela solicitacdo, nao me prendeu. A solicitacéo faz parte do sentido, do valor que atribuo ao texto: ela é um componente auténtico dele, produzido pelo ato de leitura. E 0 livro ao qual me prendo somente pela significacao é um castigo, ele me cai das maos. A solicitagao é, pois, para a leitura, uma figura iniciatéria: sem ela, se ainda ha leitura, em todo caso nao ha prazer; sem ela, hd uma leitura da significacao e nao da paix4o; uma leitura em que as operacées posteriores realizar-se-4o algumas vezes, mas supletivamente, pois carecerao de fundo: serao acomodagées, grifos e ablagoes maquinais e gratuitos. Ao contrario, 0 trabalho de leitura pode parar no momento da solicitagao, sem ir além do ela inicial. O trabalho que se faz em seguida deve, com efeito, de uma certa maneira, anula-la e resignar-se a perdé-la. Permanecer na solicita¢ao é recusar 0 luto, desejar o éxtase esuspender seu fim. A pura leitura da solicitac4o seria uma leitura mistica, uma contemplac4o, uma gnose — lectio e meditatio so sinénimos nas regras mondsticas da idade média —, uma leitura da paixdo infinita, indefinida e insensata, visto que o sentido dependeria da excitacao que sobrevive ao encantamento. : Apés a solicitacao, os passos seguintes, acomodacio, grifo e ablacdo, reanem-se em um bloco mais compacto: a excitacdo, que ultrapassa a solicitagdo, que destaca o sentido. Para dar continuidade 4 metdfora do amor, é a cristalizagao que se ocupa do primeiro arrebatamento, © que nao quer dizer que seja menos imaginaria: ela decompée a imagem sedutora, mas para recompé-la 28 imediatamente, ajustd-la, adequa-la, condensa-la numa representag4o ou num simulacro; ela se acomoda em um detalhe da cena, limita esse detalhe e depois o apreende. Apreendido ao vivo o fragmento, o membro do discurso sutilizado, a excitac4o tem o poder de renovar ad libitum seu aparecimento, quando 0 desejar, e o fragmento retorna intacto, apesar das manipulacéés. Esse retorno, que pode se repetir perpetuamente, sem diminui¢ao de poder, como um talisma, é justamente o que se entende em geral como citagdo. Mas a citacao ja se processava na solicitagéo e na excitaco: ela esté no principio de toda leitura, pelo menos daquela que, impotente, prende-se exclusivamente a significacdo. A citagao tenta reproduzir na escrita uma paixdo da leitura, reencontrar a fulguraca4o instantanea da solicitaco, pois é a leitura, solicitadora e excitante, que produz a citacdo. A citacao repete, faz com que a leitura ressoe na escrita: é que, na verdade, leitura e escrita séo a mesma coisa, a pratica do texto que é pratica do papel. A citagao é a forma original de todas as praticas do papel, o recortar-colar, e é um jogo de crianga. 29 O HOMEM DA TESOURA Tenho uma biblioteca unicamente para meu uso e nao a apresento como exemplo. Movimento-me muito du- rante o dia, e 4 noite gosto de descansar perto dos meus livros. £ meu refiigio, uma toca diante da qual apaguei todas as pegadas — ali estou em casa. Ha livros de todos 0s tipos, mas se vocé fosse abri-los ficaria surpreso. SAo todos incompletos, alguns no contém mais que duas ou trés folhas. Acho que se deve fazer comodamente 0 que se faz todos os dias; entao leio com a tesoura nas maos, desculpem-me, e corto tudo o que me desagrada. Fao assim leituras que nado me ofendem jamais. De Loups (Lo- bos), conservei dez paginas, um pouco menos do que de Voyage au Bout de la Nuit (Viagem ao Fim da Noite). De Corneille, conservei todo o Polyeucte e uma parte do Cid. De meu Racine, nao suprimi quase nada. De Baudelaire, conservei duzentos versos e de Mugo um pouco menos. De La Bruyére, o capitulo “Coeur” (Coragao); de Saint- Evremond, a conversa do pai Canaye com o marechal de Hocquincourt. De Madame de Sévigné, as cartas sobre 30 © processo de Fouquet; de Proust, o jantar em casa da duquesa de Guermantes; “Le Matin de Paris” (Manha de Paris), na Prisonniére (A Prisioneira).'? Assim respondia um guarda-florestal 4 pesquisa de uma revista literdria junto a seus leitores. “Eu leio com a tesoura na mos, desculpem-me, e eu corto tudo o que me desagrada.” Confissao terrivel, intoleravel: declarar cruamente-e escrever preto no branco a retalhagdo a que cada um se entrega na intimidade de seu gabinete, omitir as formas a esse ponto. Que selvageria de homem da floresta! O anatema no se fez esperar, ele foi langado por um eminente critico parisiense: Admite-se muito bem que um intelectual tenha preferén- cias definidas e escolha certos escritores entre outros, ou mesmo que constitua uma antologia para seu uso. Mas nao podemos compreender esse homem que fabrica para si mesmo uma biblioteca com despojos.” E Céline retoma, com menos pretensio, sem dtivida: Eis-nos aqui todos nés, grandes mortos e minisculos viventes, despidos pelo terrivel guarda-florestal. Ele nao nos perdoa muito na nossa magnifica vestimenta (con- quistada com tantos sofrimentos!). Um pequeno nada! Ah! 0 veridico! [...] O homem da floresta nao brinca. [...] Nao se trata mais de brincadeiras, o homem da tesoura vai cortar tudo o que me resta.’* De que se tornara culpado o guarda-florestal para que sua carta fizesse tanto barulho na capital? Que diferenca 31 haveria entre sua biblioteca e uma antologia, um manual escolar? Ele se desembaracara do dejeto, criara a verdade da leitura como excitagao e dilaceracdo, apregoava essa verdade bruta e a praticava nos livros. “O veridico”, como diz Céline, Pois isso nao se diz, nao se faz. Ler com um lapis na mao, recopiar na caderneta de anotagGes, isso é muito bom. Mas recortar e sobretudo jogar fora os restos, langa-los ao lixo, que inconveniéncia! Ora, no fundo, substancialmente, é a mesma coisa. O essencial da leitura é © que eu recorto, o que eu ex-cito; sua verdade é 0 que me compraz, o que me solicita. Mas como fazé-los coincidir? A citagao é a iluséo de uma coincidéncia entre a solicitacio e a excita¢ado, ilusdo levada ao extremo pelo guarda-florestal, sintoma da leitura como citagdo. Era preciso fazé-lo calar, pois o homem da tesoura é 0 tinico-verdadeiro leitor. Valéry confessava: “Leio com uma rapidez superficial, pronto a agarrar minha presa.” E verdade que logo acrescentava: “Tento escrever de tal forma que, se eu me lesse, nao poderia ler como eu leio”"5 Sem duvida, ele também nao teria gostado que bancdssemos o homem da tesoura nos seus livros, 32 UMA CANONIZAGAO METONIMICA Bendita citacdo! Ela tem o privilégio, entre todas as palavras do léxico, de designar ao mesmo tempo duas operagdes — uma, de extirpacao, outra, de enxerto — e ainda o objeto dessas duas opera¢ées — 0 objeto extirpado eo objeto enxertado — como se ele permanecesse 0 mesmo em diferentes estados. Conheceriamos em outra parte, em qualquer outro campo da atividade humana, uma reconciliagao semelhante, em uma tinica e mesma palavra, dos incompativeis fundamentais que sao a disjung4o e a conjungao, a mutilagdo e o enxerto, o menos e o mais, 0 exportado e 0 importado, o recorte e a colagem? Ha uma dialética toda-poderosa da citagdo, uma das vigorosas mecanicas do deslocamento, ainda mais forte que a cirurgia. Mas € tipico dos atos de escrita, ou de linguagem, autorizar a confusao dos contrarios ou dos contraditérios, dissolver as fronteiras em uma transacéo metonimica. Assim, a oposicao maior que se dissipa no vocabulario da arte de escrever é aquela entre 0 vazio eo pleno, o conteido 33 e 0 continente, o potencial e o atual, Encontrariamos muitos exemplos de um tal deslocamento que aliena o sentido das prdticas linguageiras. : A palavra, que na antiga retdrica designava uma casa vazia, um lugar (comum), apropria-se, na idade média, de uma idéia de contetido que para os gregos ¢ os latinos s6 a preenchia de maneira virtual. A tépica transforma-se em tipica, em reservatério de tipos. Suas formas vazias, topoi koinoi, saturam-se de sentido, se fixam e se convertem em estereotipos: a mdxima sententia e suas metamorfoses, 0 que nés chamamos de lugar comum e que é exatamente o contrario do que os antigos entendiam por essa expressao. Ora, o que sao os esteredtipos e os clichés senao justamente citagdes? Da mesma forma, 0 paragrafo era inicialmente, como a etimologia o atesta, um sinal colocado ao lado, na margem, que servia para separar os blocos, os cheios da escrita (como a a linea). Entre os gregos, era o unico sinal de pontuacao; ele marcava o fim de uma passagem importante com um travessio na margem da linha em questio. A ~ primeira referéncia ao par4grafo encontra-se na Retérica, de Aristteles, a propdsito do ritmo.’ Ora, o paragrafo designa hoje o préprio bloco, contetido, intercalado entre dois paragrafos, no sentido antigo da palavra. O exergo, que é espaco fora da obra, o lugar para se colocar ou nao alguma coisa, uma epigrafe, por exemplo, designa hoje em dia, segundo um barbarismo irrevogavel, essa propria coisa, com a conseqiiéncia paradoxal de se dizer que um texto “tem ou nao um exergo”, ainda que nao se compreenda como deixaria de haver um fora da obra. Isso significaria pretender — 0 que corresponde ao ideal do livro cercado, fechado sobre si mesmo — que o texto nio 34 ' tem lado de fora. Um grau de liberdade da escrita perde-se na confusao entre o exergo e a epigrafe se seu territério exterior mais préximo ja esta sempre virtualmente preenchido: o exergo torna-se uma rubrica obrigatoria do discurso, como se a sua auséncia soasse oco. Ora, uma epigrafe é uma citagao — a citagao por exceléncia’? —, um tapa-buraco ou um encaixe, como a “entrada” de uma refeicéo sao legumes variados, os varia que nao cabem em nenhuma categoria taxonémica, motivo pelo qual sao apresentados imediatamente, para levantar a hipoteca. O egressio ou o ekphrasis da antiga retérica assumia sua mobilidade, sua estranheza, sua “atopia’. A escrita tem horror ao vazio: 0 vazio é o lugar do morto, da falta; e nao se poem mais epigrafes senao nos monumentos funerdrios. Mas a pratica da escrita oferece esta imensa vantagem sobre as outras, sobre todas as outras, inclusive a da cirurgia, a vantagem de bastar-lhe, para conjurar o horror e preencher 0 vazio, modificar seu léxico. O transporte metonimico, que afeta todo o vocabulario da arte de escrever e altera o sentido das palavras que designavam o vazio, apresenta-se como uma evolucao natural. Imaginemos em que resultaria tal evolucéo num outro dominio, se fossem suprimidas da lingua todas as palavras que remetem a falta. Nao haveria mais lugar para a falta? Nao haveria mais um lugar de angustia? E claro que nao; tais interdi¢6es nao mudariam nada; a vertigem da pagina branca, do paragrafo ou do exergo vazio subsiste apesar de todos os artificios de escrita que tentam enegrecer a pagina, preencher os espacos a priori. Entre esses artificios, a citag4o aparece em primeiro lugar. O amalgama, na citagdo, de duas manipulagées e do objeto manipulado tem por efeito tornar natural 35 um procedimento inteiramente cultural. Ele subsume as manipulagées sob o objeto, mascara-as atras de si. Em seu emprego habitual, a citagao-nao é nem o ato da extirpacao, nem o do enxerto, mas somente a coisa, como se as manipulagées nao existissem, como se a citac¢do nao supusesse uma passagem ao ato. Na medida em que se ignora 0 ato, éa pessoa do citador que é ignorada, 0 sujeito da citagéo como transportador, negociante, cirurgido ou carniceiro. A coisa circula sozinha, viaja de texto para texto sem sujar as mos: nela, o logos e o ergon se fundem, escondem a energeia, a producio e o ato. A citacao é sempre o verbo de um deus, ou uma dessas palavras aladas que, movidas por uma energia de que disp6em em si mesmas desde Homero, vao e vém sem se manter no universo do discurso, sem transporte nem transportador, sem recorte nem colagem. Aceitar a cita¢ao como natural é pretender que ela caminhe por si mesma, como um automédvel. Ela é um érgao mutilado, mas ja seria um corpo limpo, vivo e suficiente: o animalzinho unicelular a partir do qual se explica toda a criagdo; tem um coracéo e membros, um sujeito e um predicado. E é para alimentar essa representag4o que a citagdo é exemplarmente uma frase: a menor unidade de linguagem auténoma e fechada sobre simesma. A frase vive: podemos transplanta-la; o que nao significa mat4-la mas somente intimé-la. Alids, e melhor ainda, ela se movimenta sozinha, vagueia, € nado posso mais deté-la. ~ Desaparece assim o sentido primeiro da citag4o, o de uma movimenta¢4o provocada por contato: sentido. sempre atual, mas que, como ao guarda-florestal, vale a pena ignorar ou reduzir ao siléncio. A citagao é contato, fricg4o, corpo a corpo; ela é o ato que pée a mao na massa — na massa de papel. 36 ENXERTO A citagéo é um corpo estranho em meu texto, porque ela néo me pertence, porque me aproprio dela. Também a sua assimilagao, assim como o enxerto de um 6rgio, comporta um risco de rejeigao contra o qual preciso me prevenir e cuja superac4o é motivo de juibilo. O enxerto pega, a dperacao é um sucesso: conhego a alegria do artesio consciencioso ao se separar de um produto acabado que nao traz o traco de seu trabalho, de suas intervengdes empiricas. Embora com um compromisso diferente, é 0 mesmo prazer do cirurgido ao inscrever seu saber e sua técnica no corpo do paciente: seu talento é apreciado segundo a exatidao de seu trabalho, a beleza da cicatriz com que assina e autentica sua obra. A citacdo é uma cirurgia estética em que sou ao mesmo tempo o esteta, o cirurgiao e o paciente: pingo trechos escolhidos que serao ornamentos, no sentido forte que a antiga retérica e a arquitetura dao a essa palavra, enxerto-os no corpo de meu texto (como as papeletas de Proust), A armac4o deve desaparecer sob 37 © produto final, e a propria cicatriz (as aspas) sera um adorno a mais. Mas oenxerto de uma citagdo seria uma operacao muito diferente do resto da escrita? “Confrontar, agrupar, unir entre si elementos distintos, como por um obscuro apetite de justaposi¢éo ou de combinagao”:"* tal é, para Michel Leiris, “uma necessidade difundida” em sua existéncia, e 0 principio de sua escrita autobiografica como “puzzle de fatos”. Ele associa declaradamente esse método ao jogo do recorte e da colagem: Quando me sentia inapto a extrair de minha propria substancia 0 que quer que fosse que merecesse ser colocado sobre o papel, copiava voluntariamente textos. Colava artigos ou ilustragées recortadas de periddicos nas paginas virgens de cadernos ou de blocos.!? Ele insiste ainda “na mecAnica desses gestos em que é dificil nao encontrar prazer, mesmo quando nfo se espera deles nenhuma espécie de resultado pratico: cortar a tesouradas, aparar, pincelar, ajustar bem no esquadro uma superficie sobre outra.”” Quando me ponho a escrever, disponho de um certo mumero de unidades dispersas, materializadas (em fichas, por exemplo) ou nao, Talvez o estatuto dessas unidades nao tenha uma diferenca essencial, que elas sejam citacées ou nao, nem que alterem muita coisa na escrita. Alids, estaria eu em condigées de me recordar, de enunciar a origem das unidades que nio sao citacdes? Nao seria possivel que elas também o fossem? O trabalho da escrita é uma reescrita ja que se trata de converter elementos separados e descontinuos em um todo continuo e coerente, de 38 juntd-los, de compreendé-los (de tomé-los juntos), isto é, de lé-los: nao é sempre assim? Reescrever, reproduzir um texto a partir de suas iscas, é organizé-las ou associd-las, fazer as ligacdes ou as transicdes que se impGem entre os elementos postos em presenca um do outro: toda escrita é colagem e glosa, citagéo e comentario. Efetivamente, as ligagdes séo mais dificeis no caso das citacées, pois é necessdrio nao alterar nada e inseri-las assim como elas sao. Entretanto, seria essa uma diferenga? Antes, trata-se do ordindrio da escrita. Alids, nada permite dizer que eu modificaria de bom grado uma de minhas notas, mesmo nao sendo ela a citagao de uma outra. Ao contrario, eu faria tudo, até suprimiria uma cita¢do, para conservar como me agrada uma ficha pessoal: sou muito apegado a ela. El Hacedor, tal é o titulo de uma pequena narrativa introdutéria que dé nome a uma obra de Borges. A tradugao por LAuteur (O Autor) é imprecisa.”! Roger Caillois lembra, em uma observagao, as opcdes que teve de abandonar, embora elas fossem mais fiéis 4 etimologia: fazedor, fabricante, fabricador, artesdo, operdrio. El Hacedor, derivado de hacer, fazer, é sinénimo do poietés do grego. Le Bricoleur teria sido mais conveniente, teria traduzido melhor o espirito da escrita, segundo Borges: o autor é um bricoleur mais do que um engenheiro, de acordo com a oposi¢ao que traga Claude Lévi-Strauss em La Pensée Sauvage (O Pensamento Selvagem). E Mallarmé, por sua vez, dizia: “Comparado ao engenheiro, eu me torno, imediatamente, secundério.”” Bricoleur, o autor trabalha com © que encontra, monta com alfinetes, ajusta; é uma costureirinha. Como Robinson perdido em sua ilha, ele tenta tomar posse dela, reconstruindo-a com os despojos de um naufragio ou de uma cultura. 39 De modo ainda mais radical, Aragon pretende compor seus livros nao em torno de uma rede de fragmentos ou de citagdes, mas a partir de um unico vestigio, uma unica frase, o incipit. Segundo declara em Je Nai Jamais Appris @ Ecrire ou Les Incipit (Nunca Aprendi a Escrever ou Os Incipit), ele nunca escreveu seus romances, mas os leu; diante do desenvolvimento do texto, ele era tao ignorante quanto qualquer outro, e, nesse processo de desdobramento sem marcas premeditadas, a primeira frase, sobretudo, teve um papel decisivo e impulsionador. Foi 0 que ocorreu com La Mise a Mort (Condenado a Morte). “A frase inicial [...], eu me lembro de té-la lido, uma tnica vez, naquela hora em que nao'se dorme mais e nao se esta certo de estar acordado e acho mesmo que foi ela que me tirou da cama.” Ou ainda, com o capitulo intitulado “CEdipe’, desse mesmo romance, de que Aragon relata a génese: “Eu decalquei exatamente de uma frase de Jean de Bueil o que ia ser a primeira frase de ‘CEdipe: foi o menor tempo gasto para se conceber.” Se 0 texto nao é, como 0 de Leiris, justaposigao e combinagao de retalhos ou de fichas, se como o de Aragon, ele pretende ser uma aventura, nem por isso deixa de ser, como o incipit, um desencadeador de todo o livro, apresentando-se sob a forma de uma citagao, uma frase lida em um estado de sonoléncia ou em um outro livro. 40 REESCRITA Escrever, pois, é sempre reescrever, nao difere de citar. A citagao, gracas 4 confusdo metonimica a que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citacao. A citagdo representa a pratica primeira do texto, o fundamento da leitura e da escrita: citar é repetir o gesto arcaico do recortar-colar, a experiéncia original do papel, antes que ele seja a superficie de inscrigao da letra, o suporte do texto manuscrito ou impresso, uma forma da significacao e da comunicacao lingitistica. A substancia da leitura (solicitagao e excitagdo) é a citagdo; a substancia da escrita (reescrita) é ainda a citagao. Toda pratica do texto é sempre citac4o, e é¢ por isso que nao é possivel nenhuma defini¢ao da citacdo. Ela pertence a origem, é uma rememoragio da origem, age e reage em qualquer tipo de atividade com o papel. Mas se o modelo da citacdo esté na origem — arcaica (0 jogo de crianga) e atual (0 incipit) — da escrita, ele esté também, por isso mesmo, 41 em seu horizonte: o texto ideal, utépico, aquele com que sonhou Flaubert, seria uma citacdo. A utilizagao de uma citagao como epigrafe substitui esse ideal, deformando-o. Ena impossibilidade de realizar 0 ideal, 0 livro se contenta em ser a reescrita de uma citacdo inaugural que por si sé seria suficiente. Se o modelo da citagdo, do texto, todo ele reescrito, assusta, fascina ainda mais. Ele toca no limite em que a escritura se perde em si mesma, na cdpia. Reescrever, sim. “Mas copiar’, diz Aragon, “isso é mal visto, observem que todo mundo copia, mas ha aqueles que so espertos, que trocam os nomes, por exemplo, ou que dao um jeito de se apropriar de livros esgotados”.** E Francoise, cheia de bom senso, prevenia o narrador de Em Busca do Tempo Perdido, recriminava-o por dar as dicas de seus artigos antes de té-los escrito: “Todas essas pessoas ai sao copistas. Vocé precisa desconfiar mais.”* A obra de Borges representa, sem dtivida, a exploracao mais aguda do campo da reescrita, sua extenuagao. Pois se a escrita é sempre uma reescrita, mecanismos sutis de regulacao, varidveis segundo as épocas, trabalham para que ela nao seja simplesmente uma cépia, mas uma traducao, uma citagao. E com esses mecanismos que Borges organiza a violagdo. “Pierre Menard, Autor do Quijote’, um dos contos reunidos sob o titulo de Fictions (Ficgées), realiza 0 ideal do texto e pretende que ele se distinga da cépia. Pierre Menard nao queria compor um outro Quichotte — o que é facil — mas © Quijote. Inutil acrescentar que ele nunca imaginou uma transcrigéo mecAnica do original, nao se propunha copid-lo. Sua admiravel ambicdo era reproduzir algumas paginas que 42 coincidissem — palavra por palavra e linha por linha — com as de Miguel de Cervantes.” Esse é 0 ponto limite para o qual tenderia uma escrita que, enquanto reescrita, se concebesse até o fim como devir do ato de citagdo. Oportunamente, sera necessdrio retomar essa idéia. Mas, por ora, se impde uma questao: quais sdo os textos que, ao escrever, eu desejaria reescrever? Aqueles que Roland Barthes chamava de “escriptiveis” quando perguntava: “Que textos eu aceitaria escrever (reescrever), desejar, levar adiante como uma forga nesse mundo que é o meu? O que aavaliacao encontra ¢ este valor: 0 que pode ser hoje escrito (reescrito) — o escriptivel.”** Ha sempre um livro com o qual desejo que minha escrita mantenha uma relago privilegiada, “relagdo” em seu duplo sentido, o da narrativa (da recitacao) e o da ligacdo (da afinidade eletiva). Isso nao quer dizer que eu teria gostado de escrever esse livro, que o invejo, que o recopiaria de bom grado ouo retomaria por minha conta, como modelo, que o imitaria, que o atualizaria ou citaria por extenso se pudesse; isso ~ também nao demonstraria o meu amor por esse livro. Nao, © texto que é para mim “escriptivel” ¢ aquele cuja postura de enunciag4o me convém (0 que cita como eu). E por isso que esse texto nao é nunca o mesmo livro, é por isso que 0 Quijote, de Menard, é também um outro Quixote. 43 O TRABALHO DA CITACAO Se a citacao esta na base de toda pratica com o papel, se se atribui a ela seu sentido pleno (de operagées e de objetos), se se considera tudo o que ela pde em movimento na leitura e na escrita — para manter esta distin¢ao pratica, sendo pertinente, tendo a citacao mostrado justamente a sua impertinéncia —, nao é mais possivel falar da citagao por si mesma, mas somente de seu trabalho, do trabalho da citagdo. A nogo de trabalho é rica: é a poténcia em aco, o poder simbdlico ou magico da palavra, é 0 carmen ou a oragio (os religiosos das ordens contemplativas dizem que seu trabalho é a oraco); é 0 “labor”, segundo o termo favorito de Mallarmé para designar seus trabalhos lingitisticos, ou o labor intus, o trabalho que se faz por dentro, de acordo com a etimologia que propunha Evrard PAllemand para o labirinto.” E o labirinto é, no texto, uma rede de citagées em aco. Tudo isso parece um enigma: o que eu trabalho e me trabalha ao mesmo tempo? O texto, a citacdo. . 44 Trabalho a citago como uma matéria que existe dentro de mim; e, ocupando-me, ela me trabalha; nao que eu esteja cheio de citagées ou seja atormentado por elas, mas elas me perturbam e me provocam, deslocam uma forga, pelo menos a do meu punho, colocam em jogo uma energia — sao as definicdes do trabalho em fisica ou do trabalho fisico. Da citacao, mascataria e tecelagem, sou a mao-de- obra. £ de toda a ambivaléncia da citacdo, mascarada por uma canonizacio metonimica, que esta carregada essa nogao de trabalho: a ambivaléncia do genitivo, em que a citagao é matéria e sujeito, em que eu sou ativo e passivo, ocupado com e pela citacéo como uma mulher pronta para dar a luz. Os ingleses chamam alguns textos de working papers; a expressao, infelizmente, nao tem eqiiivalente em francés, pois ela evidencia a cumplicidade do transitivo e do intransitivo no trabalho — seria melhor dizer “na agao de trabalhar”. O working paper é o trabalho em processo, © texto se construindo (uma durac¢ao que 0 livro gostaria de ignorar). E 0 papel em trabalho; é preciso imagina-lo crescendo como uma massa. Céline acentuava, freqiientemente, o trabalho que seus livros exigiam dele, trabalho imenso, prodigioso, doloroso, que se fazia em horas, em dias e noites, em milhares de paginas, trabalho cujo destino era ser negado pelo livro feito, perder-se dentro dele. Freqiientemente as pessoas vem me ver e me dizem: “Parece que vocé escreve com muita facilidade.” Mas nao! Nao escrevo facilmente! S6 com muita dificuldade! Além disso escrever me cansa. £ preciso fazer muito finamente, muito delicadamente. Fazem-se umas 80 000 paginas para obterem-se 800 paginas de manuscrito, em que o trabalho é apagado. Nao o vemos. O leitor nao deve perceber esse trabalho.” 45 A reescrita é uma realiza¢do, nado somente no sentido musical de uma traducao. O trabalho da citacdo, apesar de sua ambivaléncia ou por causa dela, é uma producao de texto, working paper. A leitura e a escrita, porque dependem da citacao e a fazem trabalhar, produzem texto, no seu sentido mais material: volumes. A modalidade de existéncia da citagao é o trabalho. Ou ainda, se a citagao é contingente e acidental, o trabalho da citacdo é necessario, ele é o proprio texto. A citagao trabalha o texto, o texto trabalha a citacao. Aqui surge 0 sentido, de que ainda nao se tratou. Isso nao significa que o texto se distinga das outras praticas com © papel que nao teriam sentido: 0 jogo do recorte e da colagem faz sentido, e nao é indiferente para o sentido que eu coloque um vestido sobre uma silhueta masculina ou feminina. Mas era preciso comegar a falar da citagéo sem se deter no sentido: o sentido vem por acréscimo, ele é 0 suplemento do trabalho; era preciso distingui-lo do ato e da producao para nao ignorar estes ultimos, para nao confundir o sentido da citag4o (do enunciado) com 0 ato de citar (a enunciag4o). Porque a mola do trabalho nao é uma paixao pelo sentido, mas pelo fendmeno, pelo working ou o playing, pelo manejo da citacao. A leitura (solicitagao e excitacdo) e a escrita (reescrita) nao trabalham como - sentido: sio manobras e manipula¢Ges, recortes e colagens. E se, ao final da manobra, reconhece-se nela um sentido, tanto melhor, ou tanto pior, mas ja é outro problema. “O leitor nao deve perceber o trabalho”: a paixdo, o desejo e 0 prazer. - 46 A FORGA DO TRABALHO A citacdo nao tem sentido em si, porque ela sé se realiza em um trabalho, que a desloca e que a faz agir. A nogao essencial é a de seu trabalho, de seu working, o fenémeno. Buscar imediatamente o sentido da citacéo (ou de qualquer outra coisa) é seguir um movimento que Nietzsche qualificava de “reativo” porque desconhece a aco, julga-a segundo sua fung4o e nao como fenémeno. Ora, para Nietzsche nao ha sentido fora de uma correlagdo com o fendmeno. Isso se aplica maravilhosamente a citacao: ela nao tem sentido fora da forca que a move, que se apodera dela, a explora ea incorpora. O sentido da citacao depende do campo das forgas atuantes: ele é essencialmente variavel, como escreveu Gilles Deleuze sobre 0 sentido, segundo _ Nietzsche, “sempre uma pluralidade de sentidos, uma constelagao, um complexo de sucessées mas também de coexisténcias”.* Contra a lingitistica “reativa” — que toma por objeto a linguagem em sua relacéo com o sentido, com a fungao, e 47 assim ignora o fenémeno, a forga e o trabalho da citacao, o poder da linguagem — convém, segundo um programa “ativo’, avaliar a relacdo entre o fenémeno e o sentido; o fenédmeno como uma atividade real, e o sentido segundo oconcebe Deleuze: “Uma palavra quer dizer alguma coisa na medida em que aquele que a diz quer alguma coisa dizendo-a.”” A questéo “O que ele quer?” parece ser a unica que convém 4 citacao: ela supée, na verdade, que uma outra pessoa se apodere da palavra e a aplique a outra coisa, porque deseja dizer alguma coisa diferente.O mesmo objeto, a mesma palavra muda de sentido segundo a forca que se apropria dela: ela tem tanto sentido quantas sao as forgas suscetiveis de se apoderar dela. O sentido da citagao seria, pois, a relagao instantanea da coisa com a forca real que a impulsiona. Uma vez admitido o fendmeno que existe sob 0 sentido, é preciso, conseqiientemente, sem dissociar nem ignorar as forcas que ambos péem em jogo, pesquisar 0 sentido do fendémeno nas forcas que o produzem como um trabalho. Eis o objetivo de uma lingitistica que se desejaria “ativa”: ora, outra abordagem da citacao, que nao faca referéncia as forcas que a realizam, as forgas arcaicas do recortar- colar, por exemplo, seria simplesmente insensata. O texto, fenémeno ou trabalho da citacao, é o produto da for¢a pelo deslocamento. 48 gg O SUJEITO DA CITAGAO A forga que impulsiona a coisa, que a cita, remete sempre, de alguma maneira, a um sujeito. Mas isso é apenas afastar um pouco a dificuldade: qual é 0 sujeito da citacao, aquele que quer dizer alguma coisa e que quer alguma coisa citando? Seria ele identificdvel a uma instancia j4 conhecida, sujeito do enunciado, da enunciacio etc.? Eis o que escrevia Condillac no verbete “Redire” de seu Diciondrio de Sinénimos: REDIZER. V Repetir, rebater. Redizemos e repetimos aquilo que di- zemos varias vezes. Mas parece-me que redizemos as coisas porque é necessario redizé-las aos outros, e que as repetimos por esquecimento ou porque é necessario repeti-las para estarmos certos de conhecé-las. Freqiien- temente, sou obrigado a redizer-lhes as mesmas coisas, e é por isso que me repito nas obras que produzo para vocés. Os réditos de que vocés necessitam fazem-me cair em repeticées.” 49 O jogo é complicado e, entretanto, nao se trata ainda da citagao. Segundo Condillac, parece que forcas diferentes trabalham no rédito e na repeticao. Seria preciso, pois, distinguir, na enuncia¢do, um sujeito do rédito e um sujeito da repeticao. A enuncia¢do é ambigua; seu sentido éindeterminavel, pois ele nao cessa de girar no campo das, forcas que sao aptas a manobré-lo. Isso se deve a incerteza em que se encontra 0 leitor ou o ouvinte quanto a posi¢ao do sujeito da enunciacgao em relagao ao enunciado. Mas nao seria também por que a nogao de sujeito da enunciagao é vasta demais, vaga demais? Seria bom reduzi-la, descobrir a variedade das figuras e das personagens, ou melhor, a das posturas de que ela se compée. Seria necessario, pelo menos, distinguir 0 sujeito do prefacio (0 que rediz: “Eis 0 que eu quis dizer”), 0 sujeito da publicagdo (aquele que assina 0 texto e que se expoe na vitrine), e 0 sujeito da citacao, irredutivel, inqualificavel; ele se anuncia em voz alta: “Cito” e “Fim da citacao”. Citando, fazendo com que um extratexto interfira na escrita, introduzindo um parceiro simbélico, tento escapar, na medida do possivel, ao fantasma e ao imaginario. O sujeito da citagao é uma personagem equivoca que tem ao mesmo tempo algo de Narciso e de Pilatos. E um delator, um vendido — aponta o dedo publicamente para outros discursos e para outros sujeitos —, mas sua denuncia, sua convocacéo séo também um chamado e uma solicitacao: um pedido de reconhecimento. De fato, 0 sujeito da citagao é o je de Montaigne. Nem fenomenoldgico, nem autobiografico, nem metalingiiistico, ele designa o repetidor ou o relator, o porta-voz sem fé nem lei. De nada adianta replicar-Ihe: “Quem o diz o faz.” Isso j4 nao o impressiona ha muito tempo; a denegagao é sua forca, 50 como se ele nao cessasse de repetir a cada citagdo: “Os autores desenvolvem livremente uma opinido com que somente eles se comprometem.” De certa forma, nao ha sujeito da citag4o senao em um regime democratico da escrita. 51 CULPA DE GUILLAUME Existe um sinal tipografico da citac4o, um indicador que eqilivale a “Eu cito”: as aspas, que o impressor Guillaume teria inventado no século XVII para enquadrar, isolar um discurso apresentado em estilo direto ou uma citacao. Anteriormente, apenas a repeti¢io do nome préprio do autor citado, sob a forma de uma orac4o intercalada, “diz fulano’, preenchia essa fungdo. O que as aspas dizem é que a palavra ¢ dada a um outro, que o autor renuncia a enunciacao em beneficio de um outro: as aspas designam uma re-enuncia¢ao, ou uma rentincia a um direito de autor. Elas operam uma sutil divisao entre sujeitos e assinalam o lugar em que a silhueta do sujeito da citacio se mostra em retirada, como uma sombra chinesa. A expansao contemporanea do uso das aspas segue a mesma légica, quando elas conferem ao que delimitam uma acentuacaéo ou uma atenuac¢do, em todo caso uma valorizacgao da enunciacdo, que tem poder de distanciamento. As aspas, quando nao remetem mais a um 52 sujeito preciso, tornam-se uma espécie de piscar de olhos, de dissimulacao ou de fenda pela qual o autor se deixa ver como se nao fosse enganado pelo enunciado que ele mesmo reproduz, mas sem ter que dizer de onde o toma. As aspas ainda sugerem: “Nao sou eu quem o diz.” Mas também nao dizem quem o diz ou o disse, um outro, um “diz-se’, a opinido, o préprio autor, talvez um leitor: o que alguém teria podido dizer. Sao pequenos diques contra as tolices que instauram uma hesitacao, um grau de liberdade no texto, por onde o autor foge, e 0 leitor 0 segue, em busca de paternidade. O uso parece distinguir as aspas do itdlico (0 que é contrario 4 sua origem comum) quanto ao desvio que significam na enunciagéo. Com as aspas marca-se 0 que é comum, aquilo a que o autor renuncia porque lhe parece tolo demais. Com 0 itdlico, marca-se o paradoxal, 0 que estd 4 margem da opinido comum, uma insisténcia ou supervalorizagao do autor, uma reivindicacéo da enunciac¢ao..O italico eqitivaleria a “Eu sublinho” ou “Sou eu mesmo quem o diz” Ele deve ser traduzido; é nesse tipo grafico que se imprimem também os empréstimos de uma lingua estrangeira. Aqui, estrangeira a lingua materna é minha prépria lingua. Escrevo em italico meu léxico intimo, um dicionario poliglota ou idioletal, minha enciclopédia pessoal. Assim, estou mais presente no italico que em qualquer outro lugar: o itdlico é narcisista; desejaria, sem duvida, que o leitor recortasse meu texto seguindo seu tragado. Em compensaco, tento uma esquiva com as aspas, peco ao leitor que me conceda o beneficio da divida. Digo-lhe: “Apanhe isso como vocé quiser, mas com pingas, nado sou eu que devo ser apanhado” ou “Nao gostaria de o dizer, mas, de qualquer modo, nao posso agir 53 ide outra forma”. Na enunciacao, as diversas instancias do sujeito se produzem e se organizam de maneira complexa. O que as aspas ¢ itdlicos mudam nisso? Essas construgées, essas precau¢oes proteger-me-iam? Roland Barthes recomendava a criagdo de uma ciéncia dos graus de discurso, que ele chamava de bathmologie* e que teria por objeto os escalonamentos de linguagem, os desniveis de sentido segundo as trapacas da enunciagao: as aspas, as aspas de aspas, ad libitum. Ao prazer: aspas e italicos so prazeres do texto, guloseimas ou lembrangas. Se ha uma paixdo na escrita e na leitura (a solicitagdo), ela suprime os niveis da enunciacao, aceita a tolice sem Temorsos e sem segundas intengGes. Alids, aspas e itdlicos nao pertencem ao primeiro impulso da escrita. Relendo- me, e para nao me indignar comigo mesmo nem me rasgar (como me censurar, isto é, me anular?), adoto uma atitude intermedidria, superponho ao texto da solicitacgéo uma armacao de re(de)nuncia¢es parciais, tento circunscrever a enunciacao e seus niveis em territérios ou em paradas indicadoras: sao, como numa partitura musical, as indicagées de ritmo, os vetores de interpretagdo que o compositor propGe ao executante. Mas a enunciacao esté disseminada em todo o texto. Cada palavra inscreve-se em um nivel diferente, convoca a presenca de um sujeito inédito; cada palavra deveria ser enquadrada por um sinal préprio. A bathmologie seria inutil se se consagrasse aos poucos indicadores ; reconhecidos. Quando a enuncia¢4o escapa, quando os niveis se desorganizam, quando as forcas que envolvem as palavras lutam abertamente, entao se impée uma interpretac4o. Certos textos reduzem os niveis e assumem a integridade de sua enunciagao; eles se apresentam sem | , 54 destaques, sem aspas nem itdlicos. Seus sujeitos sio indiferenciados; seu polimorfismo nao é ordenado. Todaa gradacao da enunciacao deve ser descoberta na leitura, na solicitagao. Ora, nado é sempre assim? No texto trapaceiro cheio de aspas, comego por tird-las todas, a fim de coloca- las onde tenho vontade. Toda leitura recusa ou desloca aquela que se dissimula na escrita, e nao sao as aspas que impedem esse gesto. 55 EMBREAGEM A FRICCAO No prefacio da edicdo de bolso de Essai sur les Anciennes Littératures Germaniques (Ensaio sobre as Antigas Literaturas Germanicas), de Jorge Luis Borges (e de M. E. Vasquez, cujo sobrenome nao aparece na capa do volume, mas na folha de rosto do livro, precedido apenas das iniciais de seus prenomes), encontra-se a lista das obras do autor (no caso, Borges, estando exclufdo 0 seu parceiro) disponiveis em traducio francesa.* Uma gralha desastrada modificou o titulo na primeira linha da lista: Frictions (Fricgdes), Edi¢gées Gallimard. Como nao se alegrar com uma sorte dessas, que vem atribuir a Borges um escrito apécrifo, um a mais em sua histéria? Frictions seria o livro-dos livros, que falta na biblioteca de Babel, a teoria geral do livro como citacao. O que sao, de fato, essas fricgdes textuais sendo os atritos de duas pecas de uma maquina de escrever? Uma fita se desenrola, levando uma outra, a que ela transmite movimento através de um contato sem deslizamento. A 56 segunda fita mobiliza, por sua vez, uma outra, e assim por diante, até por em movimento todos os livros, que, por meio da friccdo, repetem o primeiro. Mas como foi langado o primeiro livro, a partir de que energia ele se comunica com todos os outros? Esse € 0 mistério nas letras, a que a escritura de Deus trouxe algumas vezes uma resposta. A fricgdo é uma espécie da citagao, e a maquina de escrever (nado somente a de Borges), uma embreagem a friccéo em eterno movimento. 57 MOBILIZAGAO Quanto ao texto, o sentido e o fendmeno sao inseparaveis; e a citacdo constitui um polo estratégico, o lugar onde se cruzam, ou 0 seu ponto de tangéncia: exatamente o lugar em que é impossivel ignorar a estreita correlacao entre o sentido e o fendmeno, e em que, todavia, eles nao se confundem. Sao insepardveis, mas também irredutiveis. Fenémeno, o texto é um trabalho da citacao, uma sobrevivéncia ou, antes, uma manifestacdo do gesto arcaico do recortar-colar (a caneta retine as propriedades da tesoura e da cola); sentido, ele é uma rede de forcas que trabalham e deslocam. E por isso que 0 trabalho é a referéncia capital: ele compreende a forca e 0 deslocamento, o sentido e o fendmeno. A citacéo, uma manipulagio que éem si mesma uma forca e um deslocamento, é 0 espago privilegiado do trabalho do texto; ela langa, ela relanca a dinamica do sentido e do fenémeno. Isso pode ser facilmente entendido: a citagéo é um operador trivial de intertextualidade. Ela apela para a 58 competéncia do leitor, estimula a maquina da leitura, que deve produzir um trabalho, j4 que, numa cita¢ao, se fazem presentes dois textos cuja relacao nao é de equivaléncia nem de redundancia. Mas esse trabalho depende de um fenémeno imanente ao sentido conduzindo a leitura, porque ha um desvio, ativagdo de sentido: um furo, uma diferenga de potencial, um curto-circuito. O fendmeno é a diferenga, o sentido é a sua resolucdo. Mas todo esse jogo (a ativaga4o e a paralisacao, a fuga e o enxerto), esse ir e vir, tem pouco a ver com o sentido (proprio) da citacéo: uma citacéo desprovida de sentido ou, melhor, de significagao, teria quase o mesmo efeito de arrebatamento ou de mobilizacdo. Na ativacdo de sentido produzida no texto pela citagao, nao é 0 sentido da citaco que age e reage, mas a citacdo em si mesma, o fenémeno. Existe um poder da citago independente do sentido, pois se a citagao abre um potencial sem duvida semantico, ou linguageiro, ela abre, antes, um potencial: ela é manobra da linguagem pela linguagem, une o gesto a palavra e, como gesto, ultrapassa o sentido. Os gregos distinguiam dynamis, a forca em potencial, e ergon, a forca em aco. Sdcrates chamava de dynamis entusiasmo, a inspirag4o divina do rapsodo Ion:” o deus o incitava. Assim também é a citacéo: uma dynamis, cujo texto é 0 ergon, o trabalho ou a acao, a passagem ao ato. Alias, é por ser uma dynamis que, as vezes, a citaco confunde o logos com o ergon, o dizer com o fazer. Seu principio transcende os dois. Que a substancia da citagdo, para além dos acidentes do sentido e do fenédmeno, é uma dynamis, um poder, a etimologia o confirma. Citare, em latim, é pér em 59 x movimento, fazer passar do repouso a acao. O sentido do verbo ordena-se assim: inicialmente, fazer vir a si, chamar (dai a concep¢ao juridica de intimagao), depois, excitar, provocar, enfim, no vocabuldrio militar, liberar uma mengio. Em todo caso, uma forca esta em jogo, a que coloca em movimento. No vocabulario da corrida, diz-se que 0 forero “cita” o touro: provoca seu ataque a distancia, atica-o agitando um embuste diante de seus olhos. Esse é, certamente, o emprego que permanece mais fiel ao sentido primeiro e essencial da citacao. Toda citagéo no discurso procede ainda desse principio e conserva seu peso etimoldgico: é um embuste e uma for¢a motriz, seu sentido esta no acidente ou no choque. Analisando-a como um fato de linguagem, é preciso contar com sua forga e zelar para nao neutraliz4-la, pois essa forga fenomenal, esse poder mobilizador, é a citagao tal como é em si mesma, antes de ser para alguma coisa. 60 UM FATO DE LINGUA UNIVERSAL? Citar — pode-se imaginar uma pratica de linguagem mais arcaica que essa? Ela é 0 bé-4-ba do barbaro quando ele repete os gregos; é o “mamiae’” do infans quando ele clama por amor. Um ato de fala elementar e primitivo originaria todas as espécies culturais, ideolégicas e retéricas de repeticao; seria um ato anterior ao discurso, mas j4 encerrado no discurso, o da crianca que tenta reproduzir os sons proferidos diante dela por um outro que nao é ainda seu interlocutor; seria também o gesto essencial de toda aprendizagem, nao somente a da linguagem. “Imitar é natural aos homens’, dizia Aristételes, “e se manifesta desde a infancia (o homem difere dos outros animais por sua aptidao para imitar, e é através dela que adquire seus primeiros conhecimentos)”* Imitar asseguraria o dominio da lingua, e citar, o do discurso: Proust nao dizia que todo escritor comega pelo pastiche? A citacdo teria existido sempre, desde o nascimento da linguagem até a sociedade de lazer. Quem contestaria sua universalidade? 61 Ela é duvidosa, entretanto, se se acredita no testemunho de Botzarro utilizado como epigrafe.” Mas nao é preciso procurar na narrativa de uma viagem ao pais das maravilhas aquilo que poderia perturbar nossa feliz consciéncia da perenidade dos fatos de discurso. Nao ha, nem em grego, nem em latim, nenhuma palavra que possua o sentido exato da citacao (como pratica discursiva especifica) tal como o entendemos no francés e como o traduzimos, sem rodeios, para o inglés ou para o alemdo. Sem inferir da auséncia da palavra a auséncia da pratica, o que faltava na antigitidade era, em todo caso, uma categoria que permitisse pensar, enunciar tal pratica como unificada de maneira institucional. A citagao, entidade discursiva, nogdo a qual certas praticas do discurso se submetem, nao teve senao um aparecimento tardio na histéria da lingua, pelo menos na do Ocidente, marcada pelo pensamento grego. Essa constatagéo conduz a uma série de questées — por que, quando, como a citacdo tornou-se uma pratica institucional? — mas as coloca obliquamente. Com efeito, como abordar 0 estudo de um fato de linguagem que, sendo talvez universal, mantém prdticas sociais fragmentadas, variaveis e particulares ou é por elas mantido? Desde entio, falar da citacao através das eras (da vida, do mundo), inclui-la como objeto de estudo entre as praticas de linguagem consideradas de cardter, universal — carater que, embora possa ser o seu, nao é verificado — é estar em uma posicdo a que se contrapde qualquer pesquisa histérica que mal tenha comegado. A proposi¢ao: “Na antigitidade nao ha citagao’, cujo pretexto é a auséncia da palavra, nao tem nada de uma constata¢ao inocente e 62 indiscutivel; ela cede, mais uma vez, a opiniao segundo a qual cada época teria uma Citac’o ou sua negacao, podendo mesmo nao haver nem uma, nem outra. Denuncia-se esse raciocinio que projeta em um outro horizonte, geografico ou histérico, uma categoria atual, e que avalia uma outra (alhures e passada) & base do mesmo (aqui e agora). Mas nao é menos comum reproduzi-lo quando se trata particularmente das praticas de linguagem que, pelo fato de serem instituidas, sao todas datadas e localizadas. O aparelho formal que se constréi para apreendé-las dé a iluséo de que se escapa do particular para atingir o universal. Mas a unidade modelo que ele descobre é ficticia, pois repousa nas categorias precarias e contingentes que sao as nossas hoje; por conseguinte, ela nao chegaria a adquirir 0 valor de um modelo teérico. Talvez, por essas razdes, seja preciso convencer-se da impossibilidade de uma ciéncia do discurso, sendo da lingua: nao ha no discurso, enquanto oposto a lingua, nada de necessdrio nem de universal. A maior ambicio que se poderia ter em relacao 4 abordagem dos fatos do discurso seria elaborar nao uma teoria, mas uma arte, na antiga acepgao da palavra, a ars dos latinos, que traduz a techné dos gregos, uma ciéncia da praxe. Construir uma arte da enunciacao e nao uma teoria do enunciado era o projeto dos antigos retéricos que, no entanto, da idade média até a idade classica, foi sendo abandonado pouco a pouco.*’ A unidade da retéricas da inventio até a actioe a mem6ria, dispersou-se em uma nova divisdo do método: no século XVI, a retérica propriamente dita, com Omer Talon, por exemplo, nao conserva mais como objeto senao a elocutio (oratio), enquanto a inventio e a dispositio (ratio) ligam-se a dialética. Da retorica como arte, retomaram-se 63 os procedimentos particulares de uso da palavra, listados nos vademecum, catalogos de truques e espertezas, nos inumeraveis manuais do século XVII sobre “a elogiiéncia do piilpito e do foro”, sobre as conversas na corte ao alcance de todos e também das mogas. Hoje, desenvolveu-se um vasto terreno de preparacao para 0 exercicio do discurso; nas empresas, nas administragées, os seminarios de comunicac4o, a dinamica de grupo, a expressao oral e outros sucedaneos se integram facilmente 4 formacio permanente ou dela constituem 0 essencial, embora sejam considerados com desprezo pelos que pretendem estudar a ciéncia do discurso. A heranga da antiga retérica encontra- se dividida entre a andlise do discurso, segundo o modelo da lingiiistica estrutural, e as técnicas da comunicacao submetidas a uma performance social. A arte do discurso toma duas direcées predominantes que, longe de se completarem, se ignoram ou se desprezam: uma, militante, julga a outra, a especulativa, parasitaria; esta responde a primeira chamando-a serva do poder, julgando-a muito distante da verdade cientifica cujo monopélio reivindica para si mesma. Pode-se desejar deslocar essas direcdes do discurso, a fim de reconsider-lo relativamente a arte — praxis mais que poiésis, segundo a insisténcia aristotélica — numa abordagem ativa que tomasse 0 ato do discurso como um ato, que fizesse dele um ato. Masa questo continua: como tratar um ato discursivo caracterizado pela solidariedade entre uma estrutura mental e um fato de linguagem, talvez universais, e uma pratica institucional, seguramente condicional nas suas modalidades diversas? 64 FORMA E FUNGAO Os formalistas russos, em particular Tynianov,"! insistiram na necessidade de uma disting4o entre a forma ea fungdo de todo elemento discursivo, a fim de livrar os estudos literdrios de sua tendéncia a racionalizar o universal com base em categorias particulares, a deslocar os critérios proprios a um sistema para apreciar os fendmenos dependentes de um outro sistema. Em um dado sistema, uma certa forma cumpre uma certa func4o; mas, em outro sistema (outro lugar, outra data), a mesma forma pode corresponder a outras fungées, ou nao — o que nao significa que ela seja proibida —, e a mesma fung3o pode corresponder a outras formas, ou nao. Ha entao, quanto a evolucao dos elementos discursivos, uma autonomia relativa da forma e da funcao. E preciso aplicar a distingdo entre forma e fungdo a cita¢ao, que, na verdade — forma e fungao espontaneamente confundidas —, é uma categoria prépria do sistema cultural ocidental dos tempos modernos, uma nocio 65 histérica e ideolégica inserida em uma certa configura¢ao social. Nao se trata nem de desconhecer, nem de excluir a existéncia possivel de outras modalidades da repeticao em outros sistemas culturais: a ladainha ou a prece, por exemplo. Mas a precaucdo metodolégica é indispensavel: sem ela, as pequenas diferengas — a citacao nunca é senao uma pequena diferenga — desapareceriam sob 0 engano de um retorno eterno do idéntico, a citagao sobrevivendo a si mesma desde a origem do discurso. Evitei até aqui falar de funges da citagdo no discurso: as diversas tentativas de definicao da citacao e a pequena tipologia proposta para seus valores de repeti¢ao baseiam- se em critérios formais e nao funcionais. Tynianov chamava de “fungdo construtiva de um elemento da obra como sistema sua possibilidade de entrar em correlacao com os outros elementos do mesmo sistema e, portanto, com 0 sistema inteiro”. A fungao de uma citacao garante a relacao da citacéo, tem S2 com um outro elemento de S$, ou com S: em seu conjunto, ao passo que a forma de uma citacado apresenta-se como uma relagdo entre os dois sistemas onde t figura: Si e So. Podemos descrever todas as formas possiveis, catalogar todas elas, elaborar um modelo que as determine: esse é 0 objetivo de um estudo formal; mas as fungées, estas sao essencialmente variaveis segundo os sistemas, estabelecem-se em um regime de discurso que decide seu destino: sdo praticas efémeras e empiricas para as quais nao ha catdlogo exaustivo possivel. Veja-se 0 verbete “citacgdo” do Petit Robert: “Passagem citada de um autor, de um personagem célebre (geralmente para ilustrar ou apoiar o que se enuncia).” Logo em seguida a definicdo formal, ele sugere, certamente entre parénteses, como que para se eximir de responsabilidade, 66 uma avaliacéo funcional que, embora nao pretenda a completude — é tomada como geral, nao como universal —, privilegia duas fungées, certamente as que predominam hoje: 0 ornamento e a autoridade, em detrimento de todas as outras. Ora, esse desejo de precisao nao é necessario, sem duvida nem mesmo legitimo, em um diciondrio de lingua do qual nao esperamos senao uma definicao formal. Caberia a uma enciclopédia enumerar as fungées da citagao e estudar, na histéria, a relac4o evolutiva entre a funcao e o elemento formal, sua interacao. Oclemento formal da citag4o pode satisfazer a um vasto inventério de fungdes. Eis algumas que Stefan Morawski julga fundamentais:* fungao de erudi¢ao, invocacao de autoridade, funcao de amplificagdo, fungao ornamental. Mas 0 que fazer, na pratica, com um tal repertério que nao é nem exaustivo nem homogéneo? As duas primeiras fungées, de fato, sdo externas ou intertextuais, as duas outras, internas ou textuais; ou, nos termos da antiga retorica, as duas primeiras fungdes nascem da inventio, as duas ultimas, da elocutio. A importancia de um catdlogo de fungées é restrita: como passar do catélogo para uma classificagio? Em compensagio, se se descarta deliberadamente o estudo funcional, e se se adota uma definicdo formal da citago como ato de discurso (um enunciado repetido e uma enunciac4o repetente), como mecanismo simples e positivo que liga dois textos ou dois sistemas, tem-se a disposicao o indice de seus valores de repeti¢gao, que sao os interpretantes das relagdes elementares e bindrias entre os dois sistemas. Entao, uma fungao da citagao é um interpretante da relagéo multipolar S: (Ai, Ti) - Sz (A2, T2), um baricentro dos valores simples de repeticao, 67 cada uma tendo seu coeficiente prdprio; e as grandes fungdes histéricas da citacéo que sao tradicionalmente listadas coincidem com o dominio destes ou daqueles valores simples de repeti¢do sobre outros: uma fungao é uma hierarquia especifica dos valores de repeticao, todos simultaneamente existentes. A funcdo é um valor em que uma €poca investiu; uma intensidade ou uma combinacio particular, historicamente condensada de valores proprios; uma institui¢éo cuja conseqiiéncia € que toda citacio, em um certo. universo de discurso em que sua funcio é suspensa, vé seu suplemento, suas possibilidades de sentido limitadas, talvez abolidas, como se ela nao pudesse ter a0 mesmo tempo sendo uma e apenas uma unica fungdo. A funcio é 0 que estabiliza a dinamica da citacdo ea reconduz ao equilibrio. 68 O SIMULACRO Olugar do produto obtido pela mimésis é 0 do “terceiro descendente partindo-se do rei, quer dizer, da verdade?* diz Platao, no livro X @’A Republica, onde analisa nao mais o valor psicolégico da mimésis, mas seu valor ontoldgico, e reforca a condenacao moral através de uma apreciacao metafisica. Primeiramente, a da verdade ou da realidade: hd a forma tnica ou a idéia de cada coisa (a idéia de cama ou de mesa, a mesa ou a cama em si), cujo criador é Deus; em segundo lugar, ha 0 objeto de uso que 0 operario ou 0 artesio produz segundo o modelo unico, e que é cdpia da realidade; em terceiro lugar, enfim, a imagem obtida pelo pintor ou pelo poeta e que é cépia da cépia, pois é imitagao do objeto do artesdo e nao da idéia. “Trés tipos de cama. Uma que é a forma natural e da qual podemos dizer, creio, que Deus é 0 autor [...] depois uma segunda, a do marceneiro [...] e uma terceira, a do pintor’”* Na cadeia que vai da idéia (eidos) 4 cdpia (eidolon) e a copia da copia (phantasma), e 4 medida que se afasta 69 da verdade, a semelhanga ou a fidelidade ao modelo Se perverte: a cépia da cépia é uma cépia degradada. Em outras palavras, nao hd, entre a cépia e a cépia da copia, uma diferenca de natureza, mas apenas de grau, uma diferenga mensurdvel pelo grau de afastamento da verdade. Platao dara em O Sofista, uma descricdo diferente do funcionamento da mimésis. Ela é apresentada ai como a arte de produzir — em particular no discurso: 6 0 caso do sofista — “absolutamente todas as coisas’, logo, de produzir imagens (eidolon). “Do homem que, através de uma arte tinica, se cré capaz de produzir tudo, sabemos, em suma, que ele nao fabricara sendo imitagdes e homénimos das realidades”* E essa técnica se encontra na pintura e na linguagem. Mas Plato distingue logo dois tipos. de imagens e divide a mimética em duas: por um lado, a arte de produzir cépias (eikon), as “boas” imagens que respeitam as proporc¢ées, que so dotadas de semelhanga com a idéia; Por outro, a.arte de produzir simulacros (phantasma), as mas imagens que simulam a cépia, que fabricam ilusao, que sao desprovidas de semelhanca com a idéia porque sao produzidas sem passar pela idéia. Essa divisio da arte que fabrica imagens em duas classes, a arte da cépia e a arte do simulacro, nao aparece em A Reptiblica. Tal como acaba de ser enunciada, poder- se-ia pensar que ela estabelece uma nova maneira de distinguir entre a cama do marceneiro ea do Ppintor, sendo esta uma ma imagem, um simulacro-fantasma, e aquela uma boa imagem, uma c6pia-icone. Essa conclusao seria faisa. Retomando, no fim dO Sofista, a especificacao das artes de producao, Platao as divide, inicialmente, em dois tipos: a producao divina e a producéo humana; depois, 70 divide ainda cada um desses dois tipos em dois: a produgao das realidades e a producao de imagens. Do lado divino, as realidades produzidas correspondem 4 criagao, e as imagens sao as sombras, os reflexos, os sonhos. Do outro lado, o homem “através da arte do pedreiro [...] criaa casa real e, através da do pintor, uma outra casa, espécie de sonho apresentado pela mao do homem de olhos abertos’.” A produgdo humana se compée, pois, de realidades e de imagens, estas ultimas se dividindo, por sua vez, em cépias e simulacros. E preciso tirar dai duas conclusdes. Por um lado, que os objetos manufaturados nao sao mais apresentados como cépias, mas como realidades, o que esta de acordo com o fato, retomado por Aristoteles, de Platao, no final de sua vida, nao acreditar mais que houvesse idéias as quais os objetos manufaturados correspondessem. De outro lado, encontra-se o que é decorrente da constatagao precedente: os objetos pintados nao sao mais apresentados como cépias de cépias, mas como imagens opostas as realidades, Assim se explica a producao de imagens de um modo mais preciso e satisfatério do que em A Repiiblica. Realmente, por que o quadro seria copia da cépia; por que o pintor imitaria a cama do artesao e nao a idéia de cama? A resposta era a seguinte: o pintor imita 0 objeto do artesao e nao a forma unica, porque representa a aparéncia e nio a realidade, usando, por exemplo, da perspectiva. Nao ha sendo um ponto de vista quanto a forma ou a idéia; ora, o pintor representa segundo uma variedade de pontos de vista: nao é, pois, a idéia em si mesma que ele imita, mas apenas a sua copia. A cadeia de producio idéia-cépia-cépia da copia é substituida, em O Sofista, por uma arborescéncia: ha uma diferenca de natureza entre o objeto manufaturado (a realidade) e 0 objeto pintado (a imagem); hd uma outra 71 diferenga de natureza entre as imagens, entre as copias, e os simulacros. Como afirma Gilles Deleuze, nao é 0 afastamento da realidade que perverte a semelhanca do simulacro com a idéia e sua fidelidade a0 modelo, mas sua natureza, sua esséncia por assim dizer, dado que o simulacro nao é cépia de absolutamente nada, é copia do nao-ser. Se tomamos o simulacro como uma cépia, um icone infini- tamente degradado, uma semelhanca infinitamente relaxada, estamos passando ao largo do essencial: a diferenca de natureza entre o simulacro ea cépia, 0 aspecto segundo o qual eles com- poem as duas metades de uma divisao.* Parece que estamos assim em condic&o de ir ao fundo do julgamento que Platao fazia, no livro III d’A Repiiblica, sobre os discursos direto e indireto. Tratava-se para ele de, opondo-os, procedendo a divisio, definindo-os como duas espécies da narrativa ou da diégésis, escolher um ou outro. “A finalidade da divisio’, escreve ainda Deleuze, “nao é em absoluto dividir um género em espécies, porém, mais profundamente, selecionar linhagens: distinguir pretendentes, distinguir o puro do impuro, 0 auténtico do inauténtico’.® Platao, no caso, escolhia o discurso indireto, rejeitava o discurso direto. Ora, confrontando essa posicdo com 0 estudo ontoldgico da mimésis no livro X, era dificil compreender sua coeréncia. Com efeito, como integrar 0 discurso indireto ao objeto do artesao, ambos valorizados; e odiscurso direto ao objeto pintado, ambos desvalorizados? Para isso seria necessario que o discurso direto pudesse ser considerado cépia do discurso indireto, como 0 objeto pintado é copia do objeto manufaturado. Compreender- se-ia muito melhor o contrdrio. Haveria, entre eles, mais 72 que uma ligacdo descendente, uma diferenga de natureza, andloga a que Platao, em O Sofista, estabelece entre o simulacro e a cépia. No mesmo nivel de especificacio das artes de producaio, o discurso indireto seria a “boa” imagem, a c6pia-icone, e o discurso direto, a “ma” imagem, o simulacro-fantasma. Eles seriam duas subespécies da producdo de imagens ou da mimésis, em contradi¢ao com o que diz Plato no livro III d’A Reptiblica, onde sé se refere ao discurso direto, mas conforme a Poética, de Aristételes. Em outros termos, enquanto que em A Republica a mimésis parecia sempre ser banida, em O Sofista ela sé é condenavel na medida em que produz uma ma imagem. Todavia, quando Platao aceita uma boa imagem, ele se preserva de dar algum exemplo, de colocar seja o que for em um lugar positivo, assim como em A Repiiblica ele nao tinha nada para colocar no lugar reservado a narrativa pura e simples: em ambos os casos, so lhe interessa 0 termo negativo onde encurralar 0 poeta ou o sofista. “Quanto ao resto’, diz ele, “permitamo-nos essa preguiga, negligenciemo-lo, deixando a outros 0 cuidado de trazé-lo de volta 4 unidade e de lhe atribuir um nome conveniente”.* Somos nds, conseqiientemente, que preenchemos o enquadramento da boa imagem, da cépia, com o discurso indireto. Em resumo, a repeti¢ao (0 discurso direto ou a citagao) seria condenavel menos por realgar a mimésis que por ser um simulacro, imagem mia: ela é animada pela malicia, é geradora de nao-ser e indutora de falsidade; assemelha-se aos procedimentos sofistas que usam e abusam do poder magico do logos para produzir a ilusdo e a trapaga, 0 discurso sem denotagao. Mas isso supde que haja alguém sobre quem se possa exercer esse poder. Alguém a quem dar a ilusdo de que 73 aquilo que ele vé ou ouve é (verdade): nao ha simulacro em sisem 0 outro, o interlocutor, pois que ele existe em fungao deste, como observou Xavier Audouard.* O Sécrates de Platéo é um simulacro para seu parceiro, assim como 0 didlogo e a citacao para o leitor. E preciso insistir: ¢ 0 outro, o usuario e o enganado, que faz o simulacro, que é responsavel por ele. $6 ha simulacro consentido, o que nao restringe o seu poder, mas determina os caminhos de sua aplicagao. 74 MOSTRAR A concepgio platénica da mimésis é comandada por uma analogia: a da pintura e a da poesia. Com a mimésis, o discurso é pensado em termos visuais: cépia (eidolon) e cOpia da copia (phantasma) em A Republica, copia (eikon) e simulacro (phantasma) em O Sofista. Platéo deve essa analogia, para ele essencial, ao poeta Simonide de Céos que, segundo as palavras de Marcel Detiénne, “marcaria © momento em que o homem grego descobre a imagem. Ele seria o primeiro testemunho da teoria da imagem [...] o primeiro testemunho da doutrina da mimésis”*? Foi Simonide, segundo Plutarco, que inicialmente formulou o célebre ut pintura poesis: “Simonide chamou a pintura de poesia silenciosa e a poesia de pintura que fala, pois a pintura pinta as agGes enquanto elas acontecem, as palavras as descrevem uma vez terminadas”® Antes de Horacio, Platao e Aristételes aceitaram essa idéia. “O poeta’, escreve Aristételes na Poética, “é imitador tanto como o pintor e qualquer outro artista que cria imagens” 75 Através de uma reflexdo sobre a pintura e a escultura, Simonide teria assim chegado 4 compreensio de sua propria atividade, ao mesmo tempo como um oficio e como uma arte de ilusaéo. Fazendo-se pagar pelos seus poemas, concebendo a poesia como um engano e um artificio, Simonide foi o precursor dos retéricos e dos sofistas. Ora, essas duas inovagoes capitais inferem-se de uma afirmagao sua: “A fala é a imagem [eikon] das acdes?’ Eikon: esse é 0 termo que Platao retomard para enunciar sua concepcao da mimésis e sua teoria das idéias. Tal é a extrema importancia da ruptura consumada por Simonide, importancia ha muito tempo avaliada, como o atesta a lenda que envolve o personagem: Simonide ndo teria sido somente 0 primeiro a praticar a poesia por dinheiro, mas teria ainda inventado a arte da memoria, a mnemotécnica, assim como aperfeicoado a escrita.> Simonide marca uma ruptura cultural decisiva e atua no pensamento de Platao. Para simplificar grosso modo: antes de Simonide, o paradigma do discurso era oral, actistico; com Simonide, torna-se grafico, visual. O olho substitui a orelha, a visio substitui a audicdo como érgio e como sentido privilegiado da percepcao do discurso. A escrita é isolada da fala. Daf, sem divida, atribuir-se a Simonide um melhoramento da escrita: ele teria inventado letras, permitindo uma melhor notagao escrita, ou seja, teria desenhado um alfabeto fonético melhor. Ora, uma tal representacdo da linguagem separa a voz da escrita, privilegia a visdo em relagdo 4 audicao. Dai, também, o mito de Theuth, no Fedro, que considera como ilusées a escrita eamem6ria artificial, os dois dominios em que Simonide teria igualmente aplicado sua concepgao de linguagem como imagem da realidade. Enfim, a compreensdo que 76 tem Simonide do trabalho poético rompe com a tradicao da inspiracao, essencialmente oral, cujo eco se encontra no Ion de Platao. Ora, em um universo arcaico, onde o modelo do discurso é oral, inspirado, a repeticéo como tal nao é concebivel sem um fim eficaz ou magico. Assim se explicaria a prudéncia do indigena obtida por Botzarro: “Nao se pode servir de cada palavra sendo uma s6 vez” Cada palavra é viva, ativa, poderosa; é uma forga natural presente em sua unidade efémera. Ela nao sobrevive a sua enuncia¢éo extemporanea e unica, nao repetivel. A roda de preces*” multiplica o encanto sem reproduzi-lo, sem repetir 0 processo de sua produgao.* Inversamente, quando o modelo do discurso torna-se visual, grafico, secular e técnico, na poética de Simonide e na retérica dos sofistas, inaugura-se a possibilidade da repeticio do ja dito. Seu poder se modifica: nao é mais a influéncia magica ou a eficacia imediata da fala inspirada, é 0 poder leigo da mimésis, da citagao que repete, produz e reproduz o discurso do outro. Sécrates e Plato lutam contra a escrita, contra a memoria, contra a mimésis e a retorica; tentam revalorizar a fala em relacao a escrita, desvalorizar a visio. Mas eles combatem na retaguarda. A provaé que o proprio Platio nao tem outro recurso sendo exprimir-se em categorias visuais. Em O Sofista, a arte sofista é qualificada de enganadora, produtora de simulacros, a exemplo da esquiagrafia, a decoragao do teatro em perspectiva que, de longe, da a ilusao da realidade.® Platao diz sobre 0 sofista: “Seguro de sua técnica de pintor, ele poderd, exibindo de longe seus desenhos aos mais inocentes dentre os rapazes, dar-lhes a ilusao de poder criar a realidade verdadeira de tudo o 77 que quiser”® Assim, é 0 olho que a fala sofista engana, ou, se ela engana 0 ouvido e a alma, é porque estes sao olhos: o simulacro no discurso é visio enganadora, e por isso é freqiientemente comparado a um olho. A repeticao do ja dito dé a ver, ela é uma imagem indecomponivel e isso é 0 que faz dela um simulacro. 78 UMA “BOA’ CITAGAO2 Se a repeticéo das palavras do outro é uma arte de produzir o simulacro, cuja denotagao é incerta, seria preciso concluir, com Platao, que a citagao é necessariamente uma ma imagem (do pensamento)? Ou é ainda concebivel que haja, as vezes, uma boa cita¢4o, uma cépia fiel, uma citagdo que possa ter valor de argumento em um discurso e cujo poder nao se baseie na ilusao, na intimidagao, numa espécie de complacéncia do ouvinte, simétrica 4 enunciacao, o que para Platdo nao é afinal outra coisa sendo uma complacéncia do locutor com o enunciado? Na verdade, a sensacdo intervém na enuncia¢ao e, juntando-se a opiniao, produz nesta um desvio: do julgamento da verdade (conformidade com 0 real, com o que €) a imaginagao. A opiniao é um julgamento sobre 0 pensamento, uma afirmago ou uma negacdo que pée fim ao pensamento como dialogo interior da alma consigo mesma; uma avaliacao, pois, do enunciado; enquanto a imaginagao, misturando a opiniao e a sensacao, é uma apreciacao tanto da enunciagao quanto do enunciado. 79 Uma boa citacao seria uma citagéo em que o discurso, emissao oral, nao interviria e alojar-se-ia no Ppensamento. Seria uma citagdo de pensamento. Ora, haveria uma boa citacao, repeticdo de pensamento endo de discurso? Ela manteria com a idéia, como sentido, uma relagao de analogia, seria uma cépia, e sua pretensdo a verdade seria legitima. Parece que a hipotese de uma tal citacdo nao é aceitavel: toda citagdo é simulacro, todo simulacro é engano. A citacao é sempre questao de discurso, de enuncia¢gao; nao ha citago que engaje apenas o enunciado, que se libere dos sujeitos da enunciacdo e que nao tenha intengao de persuadir. Isto se verifica pela maneira como Platao, em Gorgias, refuta o valor dialético da citacdo na sua forma tipica, o testemunho juridico: Ali, um orador acredita refutar seu adversdrio quando pode apresentar em favor de sua tese testemunhas numerosas e considerdveis, enquanto o outro tem apenas uma ou nenhuma. Mas esse género de demonstragio é sem valor para descobrir a verdade, pois pode acontecer que um inocente sucumba sob testemunhos numerosos e autorizados.” Sécrates opde a quantidade de testemunhos, a tnica opiniao de seu interlocutor, sua concordancia através do didlogo, com a tese que ele sustenta. “Eis entao dois tipos de provas, a primeira na qual tu acreditas tanto quanto noutras, e a segunda que é a minha.” Nenhuma citacio tem valor de prova, mas somente o julgamento de um Unico ao final de um didlogo, um julgamento interior sobre.a verdade de uma Proposi¢ao. Mas sabe-se 4 custa de que esforcos obtém-se essa cumplicidade, e Platio nao hesita em citar Homero e os demais, de uma maneira muito semelhante a nossa. 80 O CORPO MARAVILHOSO DO DISCURSO Para dar idéia de um modelo de eloqiiéncia, Quintiliano utiliza, de maneira repetitiva e quase sistematica, a metdfora da beleza corporal. As coisas, os argumentos s4o os “nervos” do discurso, e as palavras, os ornamentos séo a roupagem. Ora, em um corpo sao, fortificado pelo exercicio, o vigor ea beleza andam juntos, pois a verdadeira beleza é a expressao viril da forga. E preciso que seja também assim no discurso: 0 cuidado com a frase, como a toalete do corpo, leva a preferir os ornamentos viris as afetag6es femininas, a clareza e a concisao a afetagao verbal; é preciso que as palavras, como uma pele, colem-se as coisas. Sobre esse corpo do discurso sustentado pela elocutio (a palavra em ac4o), que espécie de elegancia representa a sententia? Quintiliano responde: Ego vero haec lumina orationis, velut oculos quosdam esse eloquentiae credo. As sententiae, tracos luminosos do discurso, sdo os préprios olhos da eloqiiéncia. O que dizer, senao que ¢ uma imagem 81 banal da cita¢ao, pedra preciosa incrustada no discurso e brilhando com todos 0s seus reflexos? Ou, como uma luz, ela também pode ser um olho? Lumen, o traco luminoso é, na lingua da retérica, s6 ornamento, sé figura. Mas nem toda figura é um olho: somente a sententia, pois ela nao apenas ilumina, como pontua 0 discurso, desvenda o orador. Lumen e oculus, Porque simulacrum e acies: somente um olho pode enganar outro olho, somente um clarao, uma ponta, uma pupila, um olhar penetrante. O todo da citagéo se faz no olhar. E um rasgio, uma fresta Por onde investigar, onde encontrar, sustentar o olhar daquele que fala e, talvez, fazer-lhe baixar os olhos. Lumen, o brilho do olho, a luz do olhar é, a0 mesmo tempo, a forca e a fragilidade do discurso, seu componente histérico, aquele cujo reflexo depende do ponto de vista. Basta se deslocar, um nada, um pequenino angulo, para que a seducao se torne letra morta, para que a luminosidade se embace. Basta olhar, escutar contra a luz. Dai um novo problema e muito importante: as sententiae, de brilho tao fugaz, resistem a leitura? Seria preciso elimind-las da fala que nao é viva voz, quer dizer, da escrita? Quintiliano levanta a objecdo: “Para mim”, diz ele, “considero que falar bem e escrever bem sao uma unica € mesma coisa, e que a oracdo escrita é o monumento da ora¢ao falada’® Isso resulta em desativar os foguetes e os fogos de artificio que se esgotam em sua fulguracao. Multiplicar as sententiae, cobrir seu discurso de olhos, de perspectivas diversas e divergentes é se defender contra o olhar do outro, mas é também expor-se: fazer de seu discurso um monstro, Argos, que vigia todas as saidas. 82 Sed neque oculus esse toto corpore velim, ne caetera membra officium suum perdant.” Nao é preciso que o discurso seja coberto de olhos; isso levaria ao risco de ter os outros membros de seu corpo mutilados: o corpo maravilhoso do discurso deve seguir os canones da anatomia humana, fiel as proporg6es do corpo do orador. 83 “VOX": A POSSESSAO Parodiando uma divisdo tradicional da retérica, e presente em Quintiliano, entre figuras de palavras e figuras de pensamentos — figurae verborum et figurae sententiarum: estas consistindo em uma concepcao do espirito (in cogitatione concipienda) e aquelas em uma enunciagao (in enuntianda)®* — haveria duas espécies da citagdo: a repetic¢ao de pensamentos, repetitio sententiarum, ea repeticao de palavras, repetitio verborum. Talvez se deva aessa distin¢ao, fundamental para a retdrica, ea dinamica entre a palavra e a coisa, o fato de nao haver, entre os antigos, uma entidade discursiva espectfica, que seria a citagao, e que compreenderia as duas formas da repetico, de coisas e de palavras. Um tal dispositivo tem como conseqiiéncia sutil, em certos casos (aqueles em que, precisamente, opera a dinamica da palavra e da coisa), quando as préprias palavras sao efetivamente repetidas, e quando se trata de uma citacao no sentido contemporaneo, fazer valer ainda esta ultima como uma forma da repeticao de pensamento. A partir de Cicero, 0 objeto da retérica esta mais do lado das palavras que das coisas, de verba que de res, mas esse 84 privilégio da elocutio em detrimento da inventio, quando, por exemplo, ela recupera a gnémé com o nome de sententia, acompanha-se, sobretudo em Quintiliano, de uma incessante desvalorizacao de verba, em particular na oposigéo que desqualifica as figurae verborum em relagao as figurae rerum. E dificil avaliar o alcance da astuciosa distingao entre citagéo de pensamento e citag4o de discurso, que teria funcionado para os antigos — isomorfo, por exemplo, da oposicio entre anamnésis e mimésis em Platao — porque ela escapa as nossas categorias. Entretanto, parece que a mesma distin¢do encontra-se no que os gregos chamavam © tépico: o que é de fato seu lugar comum? O termo é ambiguo para nés, hoje, repleto de histéria.” Ele nao o era para Aristoteles. O lugar comum nao era um esteredtipo, um trecho preparado, uma logografia, uma citagao, como se tornou na idade média nas coletaneas de exempla destinadas 4 homilia, mas uma categoria que reunia os meios da argumenta¢ao comuns a todos os géneros. Na Retérica, de Aristételes, esses lugares séo trés, nem mais nem menos. Eles tratam “do possivel e do impossivel, da questo de saber se uma coisa foi ou nao foi, sera ou nao sera, e também da grandeza e da pequenez dos fatos””” Assim, préximos da citac4o que seriam mais tarde, os " lugares no sao citacdes de discurso, mas citagdes de pensamentos, de compartimentos légicos diante dos quais fazer desfilar a causa, a fim de resgatar o que lhe é proprio. Mas ha uma oposicao antiga que legitima, de maneira mais apropriada ainda, a hipdtese de uma distingao entre uma repetitio verborum e uma repetitio sententiarum, tanto ela Ihe parece homdloga. E o que faz a Rhetorica ad 85 Herennium quando divide a meméria em uma memoria verborum e uma memoria rerum,’ Trata-se da meméria artificial e de seu exercicio, segundo 0 principio, mais uma vez, de um t6pico. A fim de memorizar um discurso, convém que o orador represente uma arquitetura estruturada em lugares (loci) onde ele dispde imagens (formae, notae ou, notadamente, simulacra). Cicero, segundo uma analogia que evoca o Fedro, de Platao, comenta da seguinte forma o método no capitulo sobre a meméria, De Oratore: Para exercer esta faculdade do cérebro [a memoria], deve-se, segundo o conselho de Simonide, escolher em pensamento lugares distintos, formar as imagens das coisas que se quer reter, depois organizar essas imagens nos diversos lugares. Entao, a ordem dos lugares conserva a ordem das coisas; as imagens lembram as préprias coisas. Os lugares sao os tabletes de cera sobre os quais se escreve; as imagens sio as letras que neles se tragam.”* As imagens da meméria que dependem ainda, como tudo o que se relaciona 4 mimésis ¢ a repeticao, de uma analogia pictural, sio simulacros, porque seu efeito repousa numa perspectiva bem-sucedida: “Represente’, diz Cicero, “uma idéia inteira através da imagem de uma Unica palavra, faca tudo isto como um pintor habil marca as relacdes de distancia pela diferenca de proporgées dos objetos”” Pronunciando o discurso, o orador percorre os lugares e recupera suas imagens. Ora, estas sio de duas espécies, para as coisas e para as palavras. Cicero continua: “A memédria das coisas é a memoria prépria do orador [...], a memoria das palavras, que nos é menos necesséria, distingue-se por uma maior variedade de imagens.”” 86 Ou seja, é menos econémico reter as palavras do que as idéias de um discurso, pois isto demanda muito mais lugares e imagens. Assim se explica a reserva de Cicero quanto 4 memoria verborum: Quintiliano nao verd nisso mais que um exercicio pedagégico destinado a reforgar a outra memoria, a das coisas. Memoria verborum e figurae verborum sao jogos de criangas, Seu valor é menor que 0 da memoria rerum e das figurae rerum ou sententiarum. Quanto 4 repetitio, sua qualidade atém-se aos mesmos argumentos. A citagdo de pensamento, a repetitio sententiarum, é, evidentemente, a boa sententia: fica préxima das coisas, toca o sentido e os sentidos, sobrevive 4 sua enunciasio, pois é antes de tudo conceitual. Em face dela, ha uma figura desagradavel, a da repeti¢do cansativa, a das palavras: ela se chama vox e é a tinica que coincide com © nosso emprego atual da citagdo: segundo este, nao cabe reproduzir o pensamento, mas redizer as palavras que uma vez ja expressaram a coisa. A sententia, em suma, fornece o significado, enquanto a vox faz ressoar o significante. Nao é indiferente que a repetitio verborum se chame vox: é 0 som (musical), a fala, a lingua, a dicco. Em nenhum de seus empregos, a palavra interfere no nivel do pensamento. Cicero designa, por vezes, sob esse termo, certos aspectos da actio. A actio é a quarta parte da retérica, hypocrisis em grego, a ultima antes da memoria, e comporta, ela mesma, segundo Cicero, dois registros, vox e motus, a diccao e 0 gesto do orador quando, tal como um ator, ele encena o discurso. Pela dicgao, o orador representa, desempenha 0 papel do discurso e do pensamento, das palavras e das coisas. Como escreve Roland Barthes, a vox é uma teatralizacao, “ela remete a uma dramaturgia da fala (quer dizer, a uma histeria e a um ritual)””* 87 Se se considera que a retérica, da inventio a actio, é um trajeto que vai das coisas as palavras, do pensamento ao enunciado e a enunciacao, do sentido aos sentidos, a sententia percorreu todo 0 circuito; a inventio e a elocutio autenticaram-na antes que a actio lhe desse a marca do produto final. Ela passou sucessivamente por todos os estagios da produgao do discurso como técnica realizada; € por isso que ela tem uma consisténcia, nao é um artificio. A vox, ao contrario, é como se ela se unisse ao discurso no ultimo momento, e, sem ter conhecido 0 lento trabalho, o longo amadurecimento que o fez nascer do nada, pouco a pouco tomasse corpo em proporcées harmoniosas. E preciso pensar a vox como uma improvisa¢4o, como uma passagem ao ato, um arrebatamento pelo flumen verborum: ela é um ornamento, um simulacro, a mascara da comédia com a qual se fantasia o orador, quando, como condenava Platio, “ele torna sua elocugao o mais semelhante possivel a da personagem cujo discurso ele anuncia’.” Coma vox, o orador da a voz, ele se doa, empresta seu corpo, seu 6rgao auma ressonancia. Fazendo assim, ele possui seu publico. Masa vox também o possui: quando ele fala, ela fala através de sua boca, como um vampiro, como um deménio, como um deus. O orador que vocaliza perde o controle de si mesmo e do discurso, ele é inspirado por um poder que o transcende (0 do ja-dito); é possuido como o profeta, o adivinho ou o poeta da Grécia arcaica. Platao dizia dos poetas liricos: “Um apega-se a uma musa, outro a uma outra, e nds chamamos isso ser possuido, porque é alguma coisa como uma Possessao, visto que o poeta pertence 4 musa.””* O rapsodo, por sua vez, aquele que amplifica e interpreta os versos do poeta, é um possuido do poeta. A fala magico-religiosa nao 88 éade um homem, pois ela lhe é ditada sem que ele possa escolher entre falar em seu nome ou em nome de um outro. Essa alternativa supde uma mediacao da relaco entre o sujeito falante e sua fala (mediante as nogées de autor ou de assinatura, por exemplo) ausente do pensamento mitico em que‘o locutor permanece anénimo. Também a vox, essa repetic¢ao denegrida, a irma bastarda da sententia, aparece como uma sobrevivéncia, na retorica, da fala inspirada: a causa instrumental é a mesma (0 corpo mistico do orador); a causa principal deslocou-se do sagrado para o profano. A citagao é uma musa leiga, uma possess4o profana. 89 UMA REGULAGAO INTERNA DO DISCURSO Entre Aristételes e Quintiliano as diferencas séo sensiveis quanto as fungées, aos valores que eles conferem as formas da repeticao interdiscursiva. Elas podem assim se resumir: para Aristételes a gndmé é antes de tudo um elemento da inventio; para Quintiliano, a sententia é antes de tudo um elemento da elocutio. Quintiliano, alids, nao dissimula 0 desacordo, justifica-o de maneira empirica fazendo notar, varias vezes, o contraste entre a fraca presenga da sententia entre os antigos, e seu grande sucesso entre os contempordneos. Entretanto, apesar desse deslocamento que transporta as espécies da citagdo da inventio a elocutio (e até mesmo a actio para vox), o parentesco permanece essencial entre essas concep¢oes em Aristoteles e Quintiliano. Certamente, a citagéo ndo aparece mais, na Institution Oratoire, na hipéstase original, arquet{pica e légica, do simbolo puro; ela'nao se define mais, funcionalmente, como premissa do entimema. Mas, de toda forma, depois de ter postulado 90 a existéncia tedrica desse valor, Aristételes explicava todos os outros, indiciais ou icdnicos que, na pritica, acompanham-na necessariamente: o simbolo, como nao dispensa uma enunciagao, tem efeitos inevitaveis de pathos e de éthos. Por isso mesmo ele nao é somente um modelo abstrato, sem existéncia na pratica do discurso. Ao contrario, 0 simbolo puro, idealidade da citagio — a idealidade nao tem nada de abstracio —, funda e autoriza seus outros valores. Se a citacdo oferece essa legitimidade simbdlica, esta garantido que ela nao é inteiramente simulacro, lugar de um reconhecimento imaginério: tudo € permitido se a gnémé ou a sententia é, antes de tudo, também ou ainda simbolo. Na Institution Oratoire, Quintiliano tenta reconduzir um dispositivo andlogo para 0 controle da repeti¢ao no discurso. A validade da sententia nao depende mais de sua referéncia, de sua articulacao com a gndmé como simbolo puro, mas 0 critério de separagao entre boa (isto é, admissivel) e ma sententia torna-se mais ou menos o mesmo. As sententia sao boas se elas se dirigem as coisas, rem contineant,” e nao as palavras. Que ela seja quctoritas ou ornatus, a boa sententia nao é uma formula fixa que se repetiria palavra por palavra, de discurso em discurso. E por isso que na categoria da sententia como na da gnémé encontram-se poucas citagdes explicitas ou referentes a um autor, mas muitos provérbios, chistes (0 que seria, sem duvida, a melhor tradugio de sententia), quer dizer, pensamentos que nao se estancam num enunciado contingente e todavia controlador. Na auséncia de fetichismo do discurso e das palavras como objetos de uma circulagao econémica, 0 valor da citagao que prevalece em Quintiliano é ainda essencialmente simbélico. 91 Este tipo de homologacao da repeticao no discurso, através de seu alicerce racional ou simbélico, representa por assim dizer um controle interno: é um principio de coeréncia do discurso, de conformidade entre a coisa € a palavra, entre o pensamento e sua expressao. Ele se opée a dois outros tipos de controle da repeticao, entre os quais ele é recolhido na cronologia: controles de alguma forma externos, em que a regulacio se faz por meio de uma instancia externa, extra ou transtextual. Por um lado, a repressdo que Platéo, sem sucesso, pretendeu impor a mimésis, proibindo sua autoridade, numa tentativa de acertar contas, para sempre, com a repeti¢ao. Por outro, um sistema em que a repeticao é valorizada, nao mais porque satisfaz ao simbolo como a sua imanéncia ou a sua idealidade, mas porque ela se submete a. uma transcendéncia, porque reconhece sua divida existencial com rela¢ao a uma tradi¢do ou a um ideal do texto: ser4 o discurso da teologia. Entre o platonismo, que procurava se desembaragar da palavra arcaica e méagico-religiosa, € o cristianismo, marcado pelo retorno, colorido de neoplatonismo, da crenga numa palavra eficaz, quer dizer, entre duas concepgées metafisicas da linguagem como transcendente ao real, a antiga retorica foi o tempo de uma codificacéo do discurso na sua imanéncia, na sua coeréncia interna. A linguagem sendo incapaz de dizer ou de revelar a verdade, a antiga retérica teve uma ambicdo limitada. Ela foi uma simbologia da conformidade do texto consigo mesmo ou de sua receptibilidade prépria. E possivel citar varias causas histéricas paraanecessidade de um controle interno do discurso na antigiiidade, através de uma idealidade (oposto ao controle externo através de um ideal). Esta, inicialmente, trivial: quando um orador 92 toma a palavra, quando repete uma. gnémé ou uma sententia, ele nao dispde de textos e de referéncias que lhe permitiriam fazé-lo palavra por palavra, e seus ouvintes menos ainda. Mais tarde, Aulu-Gelle reclamard das poucas obras que ele possui ou que encontra em bibliotecas, e organizaré um fichdrio de suas leituras para remediar a falta de livros. A fraca difusao do texto e seu carater oral comandam a regra de sua autonomia suficiente em relagdo ao jé dito. A ética e a légica que ordenam, regularizam a repeticao das palavras do outro no discurso, percebem essa exigéncia: 0 texto novo T2 deve ser bastante destacado, independente do texto anterior que ele cita, T:, e de seu autor, Ai. O valor (0 principio) simbélico da repeti¢ao é exigido; a fim de que ela postule, contenha, in praesentia, a lei ou.a razdo segundo a qual ela se mantém. Uma segunda explicagéo, complementar a menos que seja conseqiiente, dessa ética do texto, caracterizada pela exigéncia de sua autonomia, empresta 4 concep¢o antiga da propriedade liter4ria uma concep¢ao menos rigida, sem nocdo do direito de autor, nem juridico nem mesmo moral. A imitacao, desde Aristételes, na Grécia e em Roma, é mais uma relagdo entre obras que uma imitacao da natureza.” Oratio publicata res libera est, diz 0 adagio que governa os comportamentos da escrita. A coisa dita, escrita, publicada, chega logo ao dominio puiblico: é uma coisa, res, e nao uma palavra, verbum, de autor. Todo mundo pode imita- la sem que seja preciso homenagear um sujeito, pagar-lhe tributo. Horacio, na Art Poétique, definiu assim o trabalho do poeta: Vocé transformard uma matéria de dominio publico em propriedade particular se vocé nao se demorar fazendo o 93 percurso banal e ao alcance de todos; se vocé nao teimar em reconstituir, tradutor fiel demais, palavra por palavra; se vocé no se langar, pela imitacao, num quadro estreito de onde a timidez ou a economia da obra lhe impedirao de sair.* : Esse programa é fiel, enquanto aplicagdo poética, as estratégias que a retérica aconselha para a repeticao, para a enunciacao da gnémé ou da sententia. Em um tal conjunto de condicgées e de praticas sociais do discurso (a fraca difusdo da obra, a predominancia do oral sobre 0 escrito, a auséncia de propriedade literdria etc.), a repeticdo situa-se, como parametro e como direcdo, num lugar nodal. Naquilo que dizem Aristételes e Quintiliano, de um ponto de vista légico ou ético, quando buscam organizar seu funcionamento, é preciso ver, com efeito, bem mais que a regulamentacao de um trago discursivo periférico, marginal para o sistema retorico. A repeti¢ao era para Platao o que havia de pior na linguagem (a mimésis, o simulacro), a fonte de todos os males, ilusao, farsa, erro. Desde ento, através de uma certa alterac4o do platonismo, a retérica nao a rejeita, mas utiliza-a para seus fins; ela se torna nao exatamente o que haveria de melhor no discurso, mas um dispositivo central, a propria condicio de sua possibilidade. A gnémé e a sententia atravessam toda a construgao retérica em sua espessura, da inventio a actio e& meméria. Nenhuma outra categoria, talvez, tenha lugar tao flutuante, ou intervenha de forma tao ampla. E por isso que destruir, controlar, moderar a repeticao representa um tal empenho: isso diz respeito ao discurso na'sua integridade. Se ela é “boa” (receptivel, admissivel), o discurso também o é. Um discurso, em suma, éjulgado pela 94 prova de controle das repeti¢des que ele opera. A validade de um discurso é a de suas repeti¢6es. Entao, preservar a repeticao como o fez Aristételes é, certamente, elaborar as técnicas positivas de seu emprego e os mecanismos de sua sobrevivéncia, mas é primeiro e sobretudo reconhecer que ela forma, com o dispositivo que a executa, um subsistema da retérica que funciona como sua instancia de regulacao, de regulacao interna, isto é, sem a intervengao de um principio transcendente ao discurso como critério de sua homologagao. 95 A REGULAGAO CLASSICA DA ESCRITA OU O TEXTO COMO HOMEOSTASE A passagem.da escrita medieval a escrita classica, do controle exercido pela tradi¢o ao controle exercido pelo sujeito (0 cogito legislando a cena da escrita), da citagao como indice a citagao como icone, pode ser descrita em duas etapas. Em um primeiro tempo, 0 corpus, que compreendia até entao apenas a Biblia e sua sucessao teoldgica — texto primeiro a partir do qual todo uso da palavra adotava a forma do comentario —, estendeu-se aos autores pagdos gregos e latinos, da antigiiidade, e a tudo o que ja fora dito e escrito, mas sem que se apagasse a nocao de texto primeiro. ‘Essa ruptura remonta a um tempo longinquo, a Abelardo e Santo Tomas, que ultrapassaram a patristica e seu.comentario ao redescobrirem Aristételes. Uma ruptura tao franca nado se deu nem mesmo entre a escolastica e 0 Renascimento. Encontra-se, alias, em Abelardo, a reivindicacao prematura de uma singularidade individual que contesta a 96 concep¢ao medieval do homem, do escritor como simples elemento de uma série ou de uma linhagem, € anuncia 0 sujeito da idade classica. ‘Abelardo se lamentava mais da censura exercida sobre seus escritos que da mutilacao, da diminutio de seu corpo; nao hesitava em aproximar os dois tormentos: Compatada ao ultraje presente [seus livros foram conde- nados e queimados], a trai¢ao de outrora parecia pouca coisa e eu deplorava menos a mutilacdo do meu corpo que adesonra a meu nome. [...] Os ataques dirigidos a minha reputacdo torturavam-me muito mais violentamente que a mutilacéo do meu corpo.” Nunca lhe foi perdoada tamanha pretensao, tamanha falta de humildade. Esse primeiro tempo de transi¢ao, a ampliacao do corpus, representa, sobretudo, uma transforma¢ao quantitativa, mesmo que as proporgées tenham sido consideraveis e que ela tenha provocado algumas modificagdes subsidiarias (pelo menos essas lhe foram contemporineas): substituigao do comentario propriamente dito, 0 discurso teologal do tipo patristico, pela quaestio € pela disputatio. Esse momento nao estabelecia contradicao insuperavel quanto & regulagao do discurso segundo, que, lectio ou quaestio, permanecia ligado ao primeiro e sob o controle da tradigao mantida pela Igreja e, recentemente, pela Universidade. O segundo momento afetou a propria escrita e nao apenas, de maneira quantitativa, sua matéria ou seu suporte; ele agiu sobre seu sistema de controle e sé interveio depois do inicio do século XVII, no processo instaurado contra os Essais e contra outras “parrésias” ou abusos 97 de discursos andlogos, contra a moda da citago. Entre Abelardo e Pascal, entre Tomds de Aquino e Port-Royal, entre os géneros comentario e critica no sentido estrito, houve muito espaco para outras formas transitérias de escrita, das quais os Essais seriam apenas uma, mas talvez a mais audaciosa e temivel. Se a contencio dessas formas nao se verificou mais cedo, a partir da ampliacio do corpus, é porque seus efeitos sé se tornaram insustentaveis e incontrolaveis quando de sua propagacao macica pela imprensa. Petrarca ja havia langado um movimento de retorno aos antigos e, fazendo-se autor e comentarista rigoroso, exigia a exatidao da citacdo. Mas foi somente a imprensa, porque contribuiu para dissipar a nocao de texto primeiro a copiar ea recopiar — Ramus e Montaigne questionavam-na mesmo antes de uma maior divulgacao do livro — e porque iniciou, segundo seu modelo, uma grande mobilizacao textual, foi ela que suscitou a necessidade de um novo principio da regulac4o do discurso, interno a seu processo de iniciagao. E verdade que Montaigne imaginou, por um momento, que a imprensa se substituiria a Igrejae a Universidade, para exercer um poder externo de controle: “Queira Deus, desejava [mas pode-se acreditar nele?], que esta sentenca fosse afixada a porta das butiques de nossos Editores, para proibir a entrada de tantos versificadores, verum/Nil securius est malo Poeta”.® Mas nao foi assim, a repressao nao veio dos editores. O que exige que a escrita se submeta a um controle, e que um novo sistema substitua aquele que se enfraqueceu ou se tornou obsoleto? Todo controle nao é uma forma de censura? Talvez nao, e a regulacdo inaugurada pela idade classica é mais sutil que a precedente porque exerce uma censura prévia. Ao texto primeiro e a tradi¢éo, enquanto 98 estatutos de instancia de controle externo do discurso — eles agiam pela dentncia, pela repressao, pela exclusao da heterodoxia —, ela substitui uma regulacao integrada semelhante a uma autocensura, ou melhor, e sem outras conotacées, a uma autogestio pelo sujeito preexistente. Cabe a ele se controlar, a fim de controlar seu discurso, de saber conter sua lingua, a fim de dominar um discurso. Pois a finalidade do controle é justamente a de definir e fazer respeitar um critério de receptibilidade do texto, segundo 0 qual aprecid-lo, julgar se convém ou nao acrescenta-lo ao conjunto j4 existente. Na idade média o critério era a sua conformidade com o texto primeiro mantido pela tradicao, era a sua incluséo no texto primeiro que o continha como uma causa ldégica. Quando esse critério se arruina, devido ao enfraquecimento das nogées de texto primeiro e de tradic4o, nao ha outro recurso sendo codificar mais severamente ainda (proibir ou subjugar) a escrita e a utilizagao do ja dito, o ponto cego sobre o qual recaiu e recai ainda a arbitragem, ou instituir um novo modelo de relacao entre o sujeito e o objeto, entre o autor e 0 livro, modelo que, integrando de algum modo as condigoes de receptibilidade do texto, fornecesse por si mesmo 0 principio de sua regulacao, como um homeostato. Malebranche nao acreditava muito na primeira solugao: “Hi crimes’, diz ele, “que os homens nao punem [...] Assim, nada leva a crer que os homens erijam, algum dia, um tribunal para examinar e para condenar todos os livros que nao fazem sendo corromper a raz4o”. Isso nao é, alias, desejavel. Enquanto o regime politico permanece ainda um poder monarquico centralizado e repressivo, seria preciso que as letras fossem uma republica livre, na qual cada um interioriza suas condic¢ées de funcionamento: 99 E mesmo muito desejavel, a fim de que se possa livrar-se do erro, que haja mais liberdade na republica das letras que em outras, onde a novidade é sempre muito perigosa, pois seria confirmar nossos erros, se quiséssemos tirar a liberdade das pessoas estudiosas e condenar sem discernimento todas as novidades.* Acensura que trabalha com critériosexternos da verdade, e que Descartes reprovava a escoldstica, Malebranche que, no entanto, nao é suspeito de progressismo, prefere um gerenciamento eficaz da escrita e nao lamenta muito 0 liberalismo de seu tempo (é bem verdade, mas isso € uma outra historia, que uma censura permanece, no nivel da concessao de privilégios aos editores: Diderot € os enciclopedistas tiveram essa experiéncia). Entre a censura e a técnica (gerenciamento) ha a mesma oposigao observada entre Platdo, que queria interditar a mimésis, e Aristdteles, que a subjugava, fazendo dela uma ferramenta ou um instrumento, de virtudes positivas, das artes retérica € poética, com a diferenga essencial de que a regulacéo aristotélica do discurso e da repeti¢ao (do discurso porque da repeticao) consistia em exigir um fundamento simbdlico formal, logico (imanente ao texto e sem referéncia ao sujeito) da repeticao no enunciado, ao passo que a regulacdo classica atuard na relacao de enunciacao. Nao é mais a repeticao, a gndmé, que deve estar em situacdo, em seu lugar numa tépica, mas 0 sujeito (da enunciacao, da " repeticdo) que deve se situar, tomar posicao frente a sua citaao, a seu texto ea todo 0 ja dito. Isso nao impede que Os sistemas retérico e classico de controle tenham algo em comum — que os separa dos sistemas platénico e teologal —, constituam-se por si mesmos maquinas de escrever ou de produzir discurso. O discurso teologal 100 se escrevia malgrado 0 texto primeiro e a tradic4o, que ameacavam sempre indispé-lo ou invalida-lo. O principio de regulacao interna, ao contrario, leva a identificar a propria maquina com seu dispositivo de controle nao porque ele faga sua especificidade histérica, mas porque detém uma eficdcia positiva, porque tem um rendimento proprio. O principio de controle é o motor nessa questo; é uma dindmica que conduz 0 texto. Enquanto a escrita medieval, que fosse lectio ou quaestio, remetia os desvios, as diferengas, as contradi¢ées ao texto primeiro — procurava reduzi-los interpretando-os — ese curvava a um modelo de repeticao e de identidade na sua relagdo com 0 texto, o autor da idade classica é.sensivel ao controle das diferengas. Na escrita, como o dizia Espinosa a respeito da religido, cada um é dono de si mesmo e nao depende de ninguém. “Pede-se’, escreve Michel Foucault, “que o autor responda pela unidade do texto que se poe sob seu nome”. O autor se substitui a auctoritas como garantia da escrita; ele é cimplice do texto, coincide com ele e responde por ele como por todas as suas acées, e nio somente perante Deus. Seu nome na capa testemunha o engajamento de sua pessoa, tinico fator comum e unico referente, em ultima instancia, da variedade das enunciagées pelas quais ele se reconhece responsavel. Responsabilidade a pegar ou largar. Pega-la é assumir a postura de sujeito, com os riscos que isso comporta, ¢ se autorizar por simesmo para a escrita, e nao por obediéncia a algum ideal do texto. Como diz ainda Foucault: “O individuo que se pée a escrever um texto em cujo horizonte ronda uma obra possivel assume por conta propria a funcao de autor.’ Larga-la é calar-se irremediavelmente. A escrita s6 é possivel quando um sujeito, livre, a sustenta, ela e suas 101 conseqiiéncias. Um livro sé traz conseqiiéncias porque se refere a um sujeito que o fabricou. Retomando num quadro os tragos distintivos dos trés modelos da escrita — medieval (0 comentario), transitdrio (os Essais), classico (a critica) —, a partir dos dois parametros interligados que os determinam — o lugar do sujeito e o valor da citagao — assim como do tipo de regulacgdo que esses parametros instituem, obtém-se o seguinte: fodelo daescrita | Comentario Os Essais Critica Valor Indice: Emblema: Icone: da citagdo Auctoritas €— alegacio Si-Th e/ou empréstimo —} “citagdo” Si-S2 Si-Ar Lugar do sujeito} Auséncia —_ Presenga/auséncia Presenga codificada jogo de codificada esconde-esconde Principio de Externo Nulo Interno regulagao ’ Parece ainda que Essais escapam a qualquer sistema e talvez seja por isso, como observava Pascal, que ele é tao citado. Nao ha outra coisa a fazer sendo repeti-los. Montaigne nao assume a postura de autor, aquele que fecha texto, que o acaba e o define; os Essais nao se subsumem sob seu nome nem sob a suposta unidade de sua pessoa; eles nao cessam de promover a prépria disparidade; sao 102 acontecimentos fortuitos e dispersos, sem construgdo nem elaboracio secundaria, fragilmente sustentados por alinhavos: primeiros esbocos ou suplementos que péem © sujeito fora de si e 0 texto fora dos eixos. Enquadré-lo, imobiliza-lo, isso logo se fez, e por muito tempo. 103 A PERIGRAFIA A propriedade maior do texto homeostatico ou de regulacao interna, e 0 cardter manifesto pelo qual ele se reconhece ao primeiro olhar, é sua compacidade, corolario da unidade e da coesdo exigidas dele, sob 0 dominio de um autor. O impulso, a grande mobilidade da escrita do século XVI, exemplares em Montaigne, sao doravante reprimidos. O texto torna-se corpo, recolhe-se, fecha-se sobre si mesmo, como uma cidade fortificada por Vauban, sem subiirbio nem arrabalde. E um volume fechado, circunscrito em limites estaveis que impedem os excessos; €um espago em equilibrio, encerrado em fronteiras rigidas e instancias de enunciacao bem destacadas. Sua periferia, o que nao esta nem dentro nem fora, compreende toda uma série de elementos que 0 envolvem, como a moldura fecha 0 quadro com um titulo, com uma assinatura, com uma dedicatoria. Sao outras tantas entradas no corpo do livro: elas desenham uma perigrafia, que o autor deve vigiar e onde ele deve se observar, 104 porque é primeiramente nos arredores do texto que se trama sua receptibilidade. Ele ¢ qualificado por sua compacidade, por seu fechamento sobre si mesmo, isto é, também por sua autonomia. Sua aparéncia é essencial. Tal como vitrinas de exposi¢ao, testemunhos ou amostras, seus transbordamentos valorizam-no: notas, indices, bibliografia, mas também prefacio, prologo, introdu¢io, conclusio, apéndices, anexos. Séo as rubricas de uma dispositio nova que permitem julgar o volume sem o ter lido, sem ter entrado nele. Se elas estdo presentes, se respeitam as convengées, nao é preciso prolongar o exame, 0 texto é seguramente receptivel. A perigrafia é uma zona intermediéria entre o fora do texto e o texto. B preciso passar por ela para se chegar ao texto. Ela escapa, ainda que pouco, a imanéncia do texto, nao que lhe seja transcendente (nao é uma perigrafia suplementar), mas segue-o, situa-o no intertexto, testemunha o controle que o autor exerce sobre ele. E uma cenografia que coloca o texto em perspectiva, cujo centro é 0 autor. Assim como imobilizou o emblema errante no icone, éainda a idade classica que codificou a perigrafia, a partir de elementos dispares, inventados.ou encontrados pela imprensa. O texto rodeado de sua perigrafia se opde ao texto movel da tipografia com o qual reveza, amortecendo o andamento. Ele alinha os desvios. Exibe em sua franja seus titulos para reconhecimento. Sua fungao capital, como a das citagées icénicas, é qualificar em relacao a biblioteca e ao ja dito. Aparelho instituido, a perigrafia anda junto com as citagdes, e seus componentes sao, ainda, icones. 105 O INTITULADO E O TITULAR A porta de entrada de um livro é seu titulo, encimado com o nome do autor, como se fosse um troféu. Esse dispositivo parece natural, nado se imagina um livro de outra forma. Trata-se, entretanto, de inven¢ao recente. O titulo propriamente dito, especifico e nao-genérico, data do século XVI. Na Grécia antiga, nao era necessdrio que uma obra tivesse um titulo. Nao era atribuido a este sendo o valor flutuante de um acessorio destinado ao reconhecimento, para o qual o incipit servia muito bem, e mais rapidamente. A funcdo primeira do titulo é a de referéncia. Ele evoca todo um texto por um signo que o compreende, sem que este seja sobrecarregado de alguma outra propriedade. O enunciado do titulo, nao como titulador, mas simplesmente intitulante, corresponde exclusivamente a citagao do texto em sua extensao; é por isso que o incipit, seguido de reticéncias, é mais apropriado formalmente, visto que nao é de forma alguma destacado do conjunto, de forma alguma 106 periférico; visto que aponta o texto em desenvolvimento, em processo, Foi em Roma que um titulo ligou-se definitivamente a obra, sem que isso presumisse uma originalidade nem do titulo, nem da obra. O titulo romano particulariza a obra sem individualizar o autor, ele € um elemento de classificacéo. Dois problemas lhe sao inerentes: o de sua produgao, uma assinatura, e o de sua reproducio, uma citacdo. Historicamente, o segundo se coloca em primeiro lugar: é a esse problema que responde o titulo romano, cujo papel se limita 4 denotagao do texto. Uma maneira de formacao mais sistematica que o incipit se impés, segundo duas modalidades funcionais, dedicatéria ou analitica: Cato ou De senectute. Isso significa que o titulo nao é pensado na sua unicidade e que ele se multiplica em tantas perffrases denotativas quantas so as fungdes que deve cumprir. Os didlogos de Platao, tais como foram batizados pela tradicdo, possuem dois titulos, ou um titulo e um subtitulo: Gorgias ou Sur la Rhétorique, Réfutatif (Gorgias ou Sobre a Retorica, Refutatério). Todos os dois denotam o texto, mas com sentidos diferentes, o segundo significando seu objeto. Um titulo, quando é solitario, suporta estes dois aspectos, denotacao e sentido, Bedeutung und Sinn ele é um nome proprio puro, cuja denotacao é um objeto determinado, o texto ou 0 livro. Aambivaléncia do titulo — ele denota e tem um sentido — corresponde as duas ordens de questées que ele coloca: uma que concerne 4 técnica de sua reproducao, outra a légica de sua producio, as duas sendo ligadas, inconcebiveis uma sem a outra, como o sentido e a denotacao. Por nao 107 as ter resolvido, os canones medievais estao cheios de erros. Acontece freqiientemente de um mesmo texto ser listado varias vezes na bibliografia de um autor, sob titulos diferentes: Gorgias ou Sur la Rhétorique, Réfutatif. O ponto técnico é relativo a insergao do titulo no texto que o cita, mas revela logo uma opg¢ao légica. Em latim, 0 titulo se declinava, o que confirma o primado de seu valor funcional. Aulu-Gelle, diz-se, foi um dos primeiros a objetiva-lo, recorrendo a insergées que lhe permitiam justapé-lo a seu proprio discurso sem o decompor: Cicero in libro, quem ou eumque... conscripsit ou conscripsit, dicit... Cicero nao é mais 0 autor de Cato ou De senectute, mas do mesmo objeto denotado por esses dois signos, do texto assim intitulado. Trata-se de uma modificagao de porte, que antecipa a tipografia. Ela considera o titulo uma categoria ou uma entidade discursiva propria, que nao se identifica inteiramente com o texto, é uma inscri¢éo em acréscimo, um intitulado relativamente auténomo, que convém tratar como um objeto, uma espécie de fetiche, que nao tem mais nada a ver com o incipit. E o proprio titulo da obra de Aulu-Gelle, que nao tem a menor relagao com seu objeto, ilustra a mesma diferenga na concepgao. Essa transformagao relaciona-se, sem divida, com o desenvolvimento da cépia, cujas oficinas atingiram, nos primeiros séculos do cristianismo, dimensées industriais. A imprensa renovard, de maneira ainda mais aguda, a mesma interroga¢ao sobre a natureza do titulo e do livro. Ela coloca de uma sé vez em circulagéo uma multidao de exemplares idénticos (o que nunca foi o caso dos manuscritos) do mesmo texto. Além disso, ela torna obsoleto 0 modelo de um processo linear e continuo na producao dos manuscritos, um originando 0 outro e assim 108 por diante. As cépias unem-se em uma corrente, mas os volumes impressos se dispersarao imediatamente, como uma arvore cortada da raiz, da origem, do manuscrito, cujos tracos eles nado conservam mais. Qual é entéo o livro, o objeto nico que o titulo denotaria? Seria um exemplar, nao importa qual, 0 conjunto dos exemplares, ou outra coisa da qual eles todos participariam pela sua identidade, e apesar de sua disseminacio? O referente do titulo funcional, “intitulante”, era o texto original, no inicio da cadeia das cépias. Mas se a cadeia se quebra, qual sera o referente do titulo? Montaigne se questionava sobre isso, e a variedade de seus titulos testemunha suas hesitagées. Os titulos de seus capitulos sao dispares, exceto no livro III, seguindo a maneira antiga (“De..” ou “Sobre...”) ou com o auxilio de sentencas (“Que filosofar é aprender a morrer’, I, 20); eles sio-ou simbélicos (analiticos, neutros e impessoais), portanto inadequados a matéria, ou, sem duvida, emblematicos (artificiais, arbitrarios, mas fundamentados). O titulo do livro de Montaigne lhe é totalmente pessoal e nao depende de nenhum género, de nenhuma tradi¢ao, ele designa um método e nao um objeto. E que a tipografia rejeita o intitulado simbdlico (analitico) ou indicial (dedicatéria, epénimo). Quando 0 livro é por natureza multiplo, serial, sua identidade ou sua individualidade se desloca e se reduz: ela se cristaliza em sua perigrafia. O nome do autor e 0 titulo sao 0 denominador comum de todos os exemplares idénticos espalhados pelo mundo. O referente do titulo nao é mais 0 objeto que, como leitor, eu detenho, pois esse objeto na sua materialidade nao é mais pensavel como transformac4o de uma genealogia ou de uma linhagem que eu poderia 109 percorrer recuando até sua origem; o referente é aquilo onde se subsumem todos os objetos semelhantes; nao a idéia do texto nem um modelo ou uma origem mitica, mas sua enunciagdo, representada pela perigrafia, pelo autor. O autor é 0 denotatum da perigrafia, do titulo e da citagéo, na medida em que estes tém valor prioritario de signos icénicos. Muitos titulos, alids, sao citages. O titulo intitula menos o texto que titula 0 autor: Aristételes é autor titulado do Organon, como se é fornecedor da corte. Tal era a lebre que levantava Ramus, contestando que Aristételes tenha sido o autor de seus livros titulados, como Georges IV perguntava se Scott era o autor de Waverley, isto é, se um unico homem escreveu Waverley e se Scott era esse homem.*” Mas o importante aqui é menos saber se “Scott” e “o autor de Waverley” tém o mesmo denotatum com sentidos diferentes (ou Aristoteles e seus livros titulados), que admitir (logicamente) e aceitar (moralmente) — recrimina-se Montaigne por nao té-lo feito — que Waverley denote doravante Scott, e Essais, Montaigne. Nao é sendo, na medida em que é reconhecido, que o titulo denota o autor, que Ramus e Georges IV podem colocar seus enigmas, e Proust utilizar-se da perifrase denotativa de forma tao natural e trivial: O autor de Le Détour (O Desvio) e de Le Marche (O Mercado) — isto é, M. Henri Bernstein — acaba de fazer representar pelos atores do Gymnase um drama, ou melhor, uma mistura de tragédia e de vaudeville, que nao é talvez seu Athalie ou seu Andromaque, seu LAmour Veille (O Amor Vigilante) ou seu Les Sentiers de la Vertu (As Veredas da Virtude), mas ainda é alguma coisa como seu Nicomede.* 110 O titulo intitulante e o titulo titulador distinguem-se, pois, pelo seu referente: o texto para aquele, o autor para este, e desde a idade classica. E por isso que a congruéncia entre o titulo e a matéria, que atormentava Montaigne, nao tem mais uma tal importancia. O nome do autor e o titulo, na capa do livro, procuram antes situar este ultimo no espaco social da leitura, coloca-lo corretamente numa tipologia dos leitores, porque meu primeiro contato com um livro passa por esses dois signos. Eles sao também, por isso, o lugar privilegiado de um investimento fantasmatico: sonhar em escrever livros (ou com livros a escrever) é inicialmente sonhar com titulos. Eu me suportaria, me amaria, me veria bem como “o autor de..., nesse icone que circularia com meu rosto? Donde ainda, se se passa ao ato — mas isso nao é necessario —, a proliferacaéo das rubricas que satisfazem pequenos prazeres narcisicos. Valéry falava dos autores sem livros, os de todas as obras- primas desconhecidas: seriam os sonhadores de titulos, aqueles cujos livros nao vao mais longe. Mas se o titulo é o que titula, eles nao teriam outro autor que nao fosse o titulo. E precisa mais? A BI(BLI)OGRAFIA Quando me cai nas m4os um livro cujo titulo me agradou, mas sobre o qual ignoro tudo, nao é 0 indice nem 0 adendo que consulto primeiro. Nao me interesso pelo texto em si mesmo, nem pelo seu resumo, nem pela sua organizacio. E por isso que raramente abro uma pagina ao acaso. Gostaria de saber se o livro seria capaz de me agradar, se nao cairia logo de minhas mios, se simplesmente o leria. Observo o cliché de ma qualidade que se encontra, as vezes, na capa; leio a biografia do autor: “Nascido em..., a... Ap6s os estudos secundarios...” Mas é sé excepcionalmente que entre esses elementos encontro alguma coisa que me incite a leitura, isto é, alguma coisa na qual me reconhe¢a. Mais que a fotografia, mais que a biografia, é a bibliografia que me informa e que é capaz de despertar meu desejo. Percorro-a como um atlas geografico ou um prospecto de agéncia de viagem, atento ao eco que faz vibrar em mim o nome de um lugar por onde passei. Ser4 a ocasiao de uma reminiscéncia (lemos sempre com nossas lembrang¢as; cada livro desloca-as um pouco, acrescenta novas outras: elas séo necessdrias para af nos reconhecermos, constituem a nossa competéncia de leitor). A bibliografia que me faz sentir em territério conhecido éa promessa de um reencontro, e entro por completo no livro, como em minha casa, a fim de confirmar a intuigao de uma intimidade. Leitor ingénuo, avalio meu lugar no texto, 0 conforto e o prazer que ele me reserva, pela afinidade que experimento com sua paisagem anunciada. Se ela nao esboga a minha, sei que o livro me sera inacessivel ou que me exigiria esforgo demais, abandono-o, sem me aventurar em terra incdégnita. Mais que qualquer ex6rdio ou captatio benevolentiae, a bibliografia me prende quando encontro meu lugar junto ao autor: temos as mesmas leituras, pertencemos ao mesmo mundo. Ora, o que é uma bibliografia sendo o modelo de uma autobiografia, um scrap-book, uma coletanea de lembrangas, um bilhete de trem, tiquetes de museu, programas de espetaculo, cartes de convite, flores secas: inventdrio dos icones do autor. Nao quero mais nada: suas glosas sobre si mesmo e sobre o mundo me entediam. E como se confecciona uma bibliografia? Ela é 0 catalogo dos textos lidos pelo autor enquanto o projeto atual de escrita o conduz, logo, necessariamente limitada e incompleta. Até onde ir na recensio de suas leituras? Deve- se acrescentar os jornais, os romances policiais? Como distinguir aquilo que foi til, aquilo que surgiu ao acaso? E por que nao os filmes? Eas conversas? E as velhas |leituras, as da infancia, que me fazem ainda sonhar? Uma bibliografia veridica, sincera e exaustiva é tao impossivel quanto uma confissio verdadeira. Ha na bibliografia um problema patente que leva o autor a precaugdes quando a qualifica de “sumaria’, como se se desculpasse da falta de alguma 113 coisa. Seria necessdrio interrompé-la, como a confissio de seus pecados, pela invocacado de uma circunstancia atenuante para o esquecimento, e esquece-se aquilo que se quer. E por isso que o mais simples, para resolver 0 problema, e oferecer, mesmo assim, um repertorio ao leitor potencial, é seduzi-lo com uma “lista de obras citadas”; eé nisso que consiste, muitas vezes, a bibliografia, declarada ou nao como tal. Entao, tudo se torna simples: citacdes e bibliografia se remetem mutuamente: as primeiras atestam que a outra foi realmente percorrida; e a segunda mostra que, afinal, foi composta como um inventario da primeira. DIAGRAMA OU IMAGEM - A identificagao do cardter citacional da bibliografia permite precisar o que é 0 valor icénico de uma citagao e da perigrafia em geral. Peirce distinguia, com efeito, duas espécies de icone, a imagem e o diagrama, segundo 0 representamen imita propriedades elementares do objeto, ou reproduz relagdes entre elementos do objeto. Assim, uma fotografia é uma imagem; um plano, um desenho é um diagrama. Seria igualmente o valor dominante da bibliografia, levantamento topografico das excursées do autor. Uma citaca’o diagramatica expde no texto um indicativo para a homologagao do autor, para o reconhecimento do (pelo) leitor. Seu valor consiste em mostrar, em atender, em interpretar o autor, a partir da sua posicao central mas relegada a perigrafia, tinico lugar em que ela é admitida. Na relagao icénica $:-A2, a dominante diagramatica reside na relacdo T-A2, entre o texto citado eo autor citante, cada citacao diagramatica abrindo uma perspectiva parcial sobre o autor como um aglomerado de figuras. 115 Quanto 4 relacio A1-A:, entre o autor citado e o autor citante, ela guarda sobretudo um valor de imagem; nao exibe uma similitude de configuragdo entre Si e Aa, mas uma proporcionalidade de qualidade; ela se da imediatamente como global. A relacdo de oposi¢ao entre o diagrama e a imagem é do mesmo tipo, pois, da relacao que aquele que pede emprestado mantém seja com o objeto da troca, seja com quem lhe empresta um objeto. Tal distingao, por mais arbitraria que seja, imp6e-se, entretanto, a fim de dar conta dos efeitos de sentido claramente diferenciados da citacdo icénica, segundo a prevaléncia da relagéo A1-A2 ou Ti-A2. Entendidas como agregadas, as relagées Ti-A2 — a questo das fontes ou das referéncias de um autor é um de seus aspectos — compéem um panorama, uma rede, um tecido de referéncias e cruzamentos: é um diagrama, ou seja, amesma relacdo mantida entre Robinson Crusoé em sua ilha e as terras submetidas a uma regra que reproduz a ordem capitalista. Indice é a pegada dos pés de Robinson impressa no chao, mas icones e diagramas séo os campos de milho, a barca e todos os signos cujo objeto é o préprio Robinson, signos que reproduzem as relaces elementares que compéem e constituem Robinson. A conquista topogréfica da ilha, seu mapeamento é re-producao, re-inscrigdo, re-escrita, re-peticao de principio, como a bibliografia ¢ diagrama do autor, e 0 indice (0 quadro de Ramus), diagrama da obra. Quanto a imagem, valor de repeti¢ao da relagao Ai-A2, elaé inteira, sem que seja necessario reunir todas para se ter um retrato do autor. Quer dizer que ela é identificatéria e que traz infalivelmente a contrapartida do reconhecimento, que éa divida. Serd, por exemplo, uma piscadela cmplice ou um cumprimento a um colega, a um amigo, uma formula de polidez lembrando que ha convivéncia entre nds; ou, mais seriamente, a reivindicagdo de uma filiagdoe um pedido de reconhecimento: “Sou feito 4 sua imagem” Estes volumes que recolhem toda uma série de artigos, “Reunidos em homenagem a Ai’, produzem também imagens. Aqui, a relacéo A1-A2 pode ser distendida (nao é exigido que A: trate exclusivamente de A1, que nao é mais um exemplum ou uma auctoritas a ser elogiada); convém, entretanto, que a relacdo seja postulada como tal, ainda que na forma de um epitafio, que testemunha uma fidelidade. Imagem e diagrama se diferenciam segundo o modelo da relacdo que exibem entre 0 representamen e o objeto, partilha de uma propriedade ou similitude de uma relacdo. Parece que o par formado por eles é isomorfo ao da analogia e da homologia. Os relata da imagem sao andlogos ou proporcionais, imitativos; logo, a imagem da a iluséo de uma relagdo genérica ou genealdgica, natural, ela aspira a uma naturalidade secundaria do signo (uma segunda natureza), como o emblema. Os relata do diagrama sao, ao contrario, homédlogos, ou similares, homotéticos; a homologia nao funda uma filiagao ou uma legitimidade inata, mas o reconhecimento contratual de uma similaridade factual e adquirida. NA FACHADA Uma fotografia é um exemplo, o préprio exemplo da imagem: é um icone porque esté em relacdo de similaridade factual com seu objeto; e é uma imagem porque compartilha com esse objeto as qualidades que lhe sdo proprias. A fotografia que figura, as vezes, na sobrecapa do livro tem sua origem em retratos-miniatura do autor, estampas ou gravuras, que, desde o inicio da imprensa, apareceram no frontispicio do volume, antes da pagina do titulo ou face a ela, como na fachada de um edificio ou na vitrina de uma butique. O frontispicio (nome, titulo, retrato etc.) substituiu, no século XVI, 0 colofao (excipit e suscriptio, trazendo o nome do copista), como ficha de identidade do livro. Por que associar e colocar um diante do outro, uma imagem do autor e 0 texto, sendo para sublinhar sua relacao, nao mais de congruéncia ideal, como entre Montaigne e os Essais, mas de dependéncia e de sujeigao? O homem em carne e osso, ou melhor, em filigrana, sustenta 0 livro, suporta-o ea ele se submete: “Isto sou eu, isto é meu’, diz de algum modo 0 frontispicio. Toda citagao, de maneira anéloga, é também uma imagem: um instantaneo, um ponto de vista sobre o sujeito da enunciagao, uma cépia ao natural. E uma visio do autor eum detalhe de sua biografia. A constelagao das citacées compe um quadro que eqiiivale ao frontispicio. A imagem, seu nome o indica, é mais imagindria (mais complacente, mais narcisista, mais alienada) e o diagrama, mais simbélico (mais instituido, mais sedutor, mais interrogador). Se se quisesse organizar os quatro grandes valores de repeti¢ao da citagdo, do mais imaginario ao mais simbdlico, sua ordem seria esta: a imagem, o diagrama, 0 indice e, finalmente, o simbolo (colocando-se a parte o emblema, inteiramente imagindrio). Entao, a imagem, a fotografia mas também a epigrafe ou o titulo, todo o frontispicio seria, na leitura, insubstituivel. Ela é inteira, uma tnica pega a pegar ou largar — € preciso aceita-la como tal, ou rejeitd-la toda —, ao passo que o diagrama, a bibliografia ou o indice permitiriam mais liberdade, mais jogo e mais autonomia. Nao é necessdrio que o diagrama seja objeto de uma crenga ou de um amor louco, porque ele busca mais deleitar que se deleitar. 119 O POSTO AVANCADO A epigrafe ¢ a citacdo por exceléncia, a quintesséncia da citacao, a que esta gravada na pedra para a eternidade, no frontéo dos arcos do triunfo ou no pedestal das estatuas. (Imitando as epigrafes latinas é que os tipégrafos desenharam o carater romano.) Na borda do livro, a epigrafe é um sinal de valor complexo. E um simbolo (relagao do texto com um outro texto, relagao légica, homoldgica), - um indice (relagao do texto com um autor antigo, que desempenha o papel de protetor, é a figura do doador, no canto do quadro). Mas ela é, sobretudo, um icone, no sentido de uma entrada privilegiada na enuncia¢io. E um diagrama, dada a sua simetria com a bibliografia de que é precursora (um indice e uma imagem). Porém, mais ainda, ela é uma imagem, uma insignia ou uma decoragio ostensiva no peito do autor. E, sem duvida, em nenhum outro lugar esté tao a descoberto quanto nesse posto avancado do livro, onde nada em volta a protege. A epigrafe é ainda uma condensagao do prefacio cuja formula foi definitivamente dada por Descartes. O autor mostra as 120 cartas. Sozinha no meio da pagina, a epigrafe representa 0 livro — apresenta-se como seu senso ou seu contrasenso —, infere-o, resume-o. Mas, antes de tudo, ela é um grito, uma palavra inicial, um limpar de garganta antes de comegar realmente a falar, um preludio ou uma confissdo de fé: eis aqui a unica proposicao que manterei como premissa, ndo preciso de mais nada para me langar. Base sobre a qual repousa o livro, a epigrafe é uma extremidade, uma rampa, um trampolim, no extremo oposto do primeiro texto, plataforma sobre a qual o comentario ergue seus pilares. Tao decisiva, tao solene, tao exorbitante ¢ sua tarefa que a epigrafe torna-se, muitas vezes, objeto de uma deturpagéo que a parodia ou deixa ambiguo o caminho para sua compreensao, para se avaliar sua distancia em relagdo ao texto, ou melhor, 4 sua enunciagéo. No mesmo nivel da enunciagio (debrucada sobre o texto), no “primeiro degrau’, a epigrafe seria sempre ingénua, impudica, verdadeira demais, simplesmente tola, porque a tolice se instala sempre na identificagao entre os sujeitos da enunciacao e os do enunciado. Ter medo da tolice, de passar por tolo, é temer estar compromissado com uma palavra tinica; é preciso se defender, graduando as instancias da enunciacao: “Nao me faga dizer o que eu nao disse’, ou seja, “o que eu nao quis dizer”. A fim de evitar uma eventual identificac4o entre ele mesmo e a epigrafe, o autor renega-a, demitindo-a de seu posto: ela nao se cola mais a propria pele, flutua, parece deslocada, inconveniente. Mas todo esse jogo nao faz mais que confirmar sua fungio principal, a de tatuagem. Flaubert fez preceder o Dictionnaire des Idées Recues (Dicionario dos Lugares-Comuns) de duas citagées: Vox populi, vox Dei. Sabedoria das nagées. Pode-se apostar que toda idéia publica, toda convengao dada é uma tolice, porque foi conveniente ao maior mimero. . Chamfoit, Maximes (Maximas). Seus valores intrigam porque parecem contraditérios. A primeira citacdo toma como postulado fundamental a exegese biblica: a voz, a palavra divina, a verdade da origem foram transmitidas pelos profetas e esto contidas na escritura. Mas se a voz do povo é (aposto, copula) a voz de Deus, escutd-la é também ter acesso a verdade. Essa proposi¢ao é uma locugio proferida pela sabedoria das nagdes que, como as paginas rosas do Petit Larousse, falam latim. Ora, “Sabedoria das nag6es” poderia ser outra coisa além do sujeito légico da citag’o, vox populi? A sabedoria é privilégio dos deuses: o Logos divino era Sophia, ao passo que os homens, como dizia Sécrates, no Fedro, sé tiveram com a sabedoria uma relacdo de amizade. Se a voz do povo é a voz de Deus, ela é sabedoria. Assim, essa primeira citacdo é uma tautologia, pois palavra e autor ai se confundem: a voz do povo € voz de Deus, logo sabedoria; ou a voz do povo é sabedoria, logo voz de Deus. Tudo isso se eqitivale e nao revela nada mais que seu tinico referente: “Sabedoria das nagées”. Masa segunda citacao acrescenta um predicado diferente voz do povo: a tolice; segundo Chamfort, predicado nao menos desencarnado e impessoal — enquanto expressdo de méximas, ou seja, de epigrafes — que a sabedoria das nacées. O conjunto se arma assim na seguinte equacao: 122 Vox populi = Vox Dei = Sabedoria = Tolice Deus é um tolo, seria a unica conclusdo légica que suprimiria a contradi¢ao. E Flaubert? Ele escapole sutilmente, anulando ao mesmo tempo 0 povo, Deus, a sabedoria e a tolice. Ele é inatacavel. Fazendo 0 jogo da epigrafe, da sua alfinetada. O FOSSO ASSEPTIZANTE Assim como uma cidade (mais urbana que celeste: uma pessoa moral), o texto é cercado por todos os lados. Ao pé da muralha, um fosso reduplica e acentua a fronteira; ele é sinalizado com postes e marcos; barreiras policiais vigiam as entradas: sao as referéncias exibidas, as notas de rodapé — foot-notes, em inglés. A todo instante elas trazem a lembranca aquilo sobre o que o texto se apdia, muletas ou estacas, aduelas: 0 texto é uma ponte langada no vazio, do que tem horror; ele teme a queda. Entre seus pilares, que sio a epigrafe e a bibliografia, ele se apdia com todas as suas forcas (Montaigne falava da linguagem boute-dehors, isto é, sem sustentacao), gracas a uma série de relés continuos, a uma rede de nds ou de juntas que 0 tornam impermedavel; sem notas, ele seria inundado: sua substancia, sua propriedade escapariam. Ainda nao é tudo. Se as notas sao essencialmente pecas de defesa (referéncias eruditas, acertos de conta, demarcacées sutis, denegacdes acessérias, recuos 124 encobertos), elas tém também um papel estético: livram 0 texto de suas sobrecargas, Pequeno corpo compacto, em caixa baixa, langam 4 fossa comum os autores mortos e os vivos que elas executam ao citd-los. O texto se enraiza num ossuario, e o desinfeta com epitafios. A evocagao da nota e a nota de pé de pagina bastam para estabelecer varios niveis de linguagem, ou melhor, constatam a necessdria hierarquia entre os sujeitos da enunciagao, tornando-a manifesta, tangivel, material: o texto excede suas notas (o que significa que as domina); em relacdo a estas, o texto é uma metalinguagem, ou, etimologicamente, um epilogo. Se, de um lado, a citacéo e ‘sua referéncia séo logicamente eqiiivalentes, substituiveis, pois (elas tem a mesma denotagao, quando nao o mesmo sentido), por outro, o simples fato de imprimir as duas e ainda mais em lugares e dimensées diferentes, no corpo ou no pé de pagina, em carater grande ou pequeno, perverte a logica (a propria citacao seria denotada por suas referéncias) e engaja uma moral. Onde quer que apareca uma cita¢ao, substitui-la por suas referéncias nao alteraria em nada o valor de verdade do texto que a contém. Nao ha nenhum motivo légico para se inserir num texto a palavra de uma citacao, mais que suas referéncias, nem para relegar estas ultimas ao pé de pagina. A situag4o inversa nao seria nem mais nem menos insensata. Assim também, da equivaléncia entre a citacao e sua referéncia, deduz-se que um texto pode muito bem, de um ponto de vista estritamente légico, é claro, deixar de oferecer referéncias de suas citacées, referéncias que nao acrescentam nada, ao contrario, quanto 4 verdade do enunciado. Ora, a nota de pé de pagina, tautoldgica, logicamente redundante e supérflua, é uma tal exigéncia do discurso, 125 que subtrair-se a seu ritual significa uma transgressio inadmissivel, na maior parte das instituicdes da escrita, como se isso ameagasse seus principios. A auséncia de notas e de referéncias é insustentavel numa tese, num livro ou mesmo num jornal;® ela é inconciliavel com a pretensao de um reconhecimento social, pois 0 direito ao reconhecimento consiste em saber exatamente qual a sua parte na escrita, em reconhecer, ele mesmo, sua divida. A nota pleondstica se impée, pois, nao por razées ldégicas, mas éticas, ideolégicas. O julgamento de uma citagao, contrariamente ao julgamento de uma proposi¢ao inédita, nao recai sobre seu sentido nem sobre seu valor de verdade, mas sobre sua autenticidade. E authenticus aquilo cuja proveniéncia é incontestavel, mas também aquele que age por si mesmo, aquele que se dé a morte. O denotatum de uma citag4o nao é um valor de verdade (a qualidade de um enunciado, ser verdadeiro ou nao-verdadeiro), mas uma prova de fidelidade, de veracidade, de exatidao, de sinceridade (a qualidade de uma enunciacao, de uma repetigdo, ser auténtica ou controvertida, fidedigna ou apocrifa): valores que nao dizem respeito a légica, séo muito mais virtudes de um sujeito. A citac4o, prova de sua referéncia ao apoio, autentica um individuo pela sua enunciagao, consagra-o como autor. O autor so é tal, s6 é auténtico, se as citagdes que faz so, elas também, auténticas, e isso explica porque a nota é uma pega tio importante na instituicao da escrita. Montaigne omitia a nota, nao indicava as referéncias de suas citagdes, alegacées ou empréstimos. E é preciso se perguntar se nao havia ali muito mais rigor quanto ao sentido. Sem nota, o julgamento nao se desvia da verdade (do enunciado) para a autenticidade (da enunciagao). Ele 126 atua sobre o sentido e sobre a verdade, tanto do enunciado quanto da enunciagao. Donde o elogio que faz Montaigne da maquiagem. A nota pertence a perigrafia duplamente: o desfile das notas une a epigrafe a bibliografia, cada nota particular concerne ao autor na sua totalidade, na sua integridade. A propria perigrafia, cada citacdo acompanhada de sua referéncia, prova um controle da escrita: a nota, a perigrafia designam o autor na sua autenticidade, o que faz dele um autor, agente da regulacdo, regulador da escrita. O proprio autor é, em ultima instancia, o denotatum da citacao, da nota e da perigrafia. E — é necessario datar? — foi no século XVII que a palavra “nota” surgiu para substituir “escélio” ou “apostila’, uma adic&o ou uma observacao feita na margem. A nota nao supée, nao permite nenhum retorno, nenhum remorso, nenhuma repeticdo: com ela, tudo estd dito. Ela proibe o recurso: é 0 selo ou 0 carimbo que garante a autenticidade do texto, seu acabamento; é a assinatura do autor que controla o titulo — o seu, o do livro. 127 © COMEGO DO LIVRO E O FIM DA ESCRITA Hegel abria assim 0 prefacio da Fenomenologia do Espirito: No prefacio que precede sua obra, um autor explica habitual- mente o fim a que se propée, a ocasiao que 0 levou a escrever e as relac6es que, em sua opiniao, a obra mantém com os tratados precedentes ou contemporaneos sobre o mesmo assunto.” Em seguida condenava esse uso, que julgava inadequado a pesquisa filoséfica e sem valor como modo de exposigao da verdade: a declaracao de intencao é apenas uma verificagao empirica, uma confirmacao ilusdéria. Entretanto, ao reprovar assim o género introdutério, Hegel prefaciava seu livro. Como fugir disso? Segundo a retorica antiga, o discurso se abria canonicamente, dirigindo-se de maneira concisa ao leitor ou ao ouvinte, a captatio benevolentiae, afirmando, assim, seu propdsito, ou seja, colocar 0 outro em condigées favoraveis, torna-lo indulgente (Quintiliano acrescentava: 128 atento e décil). A captatio benevolentiae agia entre dois agentes (dois lugares estruturais em relacao ao discurso); ela distribuia os papéis antes que os sujeitos desaparecessem. As epistolas dedicatérias da idade média e do inicio da imprensa tinham fungao andloga: definiam uma situacio (afetiva, institucional) de escrita e de leitura. Nada de semelhante hoje em dia. Nao quer dizer que nao se deva mais esperar benevoléncia, mas 0 modo de incita-la mudou. Descartes fixa a forma e o valor (classicos, duraveis, do prefacio, a que Hegel contestava, depois de Voltaire que afirmava: “O seu livro deve falar por si mesmo, se ele chegar a ser lido pela multidao.”" Diferentemente da captatio benevolentiae ou da epistola dedicatéria, que asseguravam uma ligacdo imediata entre dois agentes, sem interferir no discurso posterior, o prefacio cartesiano supée a existéncia do texto. O texto intervém a priori nas relacdes que tém como cena o proprio texto, antecipando-as. Numa carta ao abade Picot, tradutor dos Principes de la Philosophie (Principios da Filosofia), em francés, Descartes julga — porque o titulo da obra lhe parece suscetivel de desencorajar os leitores — que “seria bom ajuntar-lhe um prefacio que declarasse aos leitores 0 assunto do livro, o projeto que teve o autor ao escrevé-lo e que utilidade se pode esperar dele” Cabe ao abade Picot, tradutor, intérprete, acrescentar esses esclarecimentos, “embora, escreve Descartes, fosse eu que devesse escrever esse prefacio, porque devo saber essas coisas mais que ninguém’* Mas ele pretende indicar, em sua carta, apenas alguns pontos que seriam pertinentes num prefacio. “Deixo a seu critério apresentar ao publico a parte que julgar conveniente.”™ Ora, é a prépria carta, e toda ela, que sera publicada a frente dos Principes de la Philosophie: “Carta 129 do autor ao tradutor do livro e que pode servir de prefacio” Por uma série de razGes, essa carta é 0 modelo do género introdutério e, ao mesmo tempo, certiddo de nascimento do prefacio moderno:* - Entre o titulo e o texto, 0 prefacio se define pela relacao que estabelece entre o titulo “desencorajador’” e 0 “assunto do livro’, mais atraente, espera-se. O prefacio nao é, sendo secundariamente, uma relac4o entre o autor e 0 texto (0 “projeto”) ou entre o leitor e 0 texto (a “utilidade”), jamais entre o leitor e o autor, separados pelo livro que ja estd ali. E como se o prefacio atenuasse esse divércio irremedidvel, confirmando, ao mesmo tempo, a exclusdo dos sujeitos prescrita pelo volume impresso. Que a primeira fungao do prefacio seja unir dois objetos (0 titulo eo texto), € nao mais dois sujeitos (duas posi¢gées diante de um objeto virtual), isso se deve evidentemente a objetivacdo do volume e do titulo, que evoluiu com a imprensa, e a representa¢ao dos sujeitos na perigrafia. Quando 0 titulo da obra é simplesmente Commentatio, Quaestio, Summa ou Dialectica, entre ele e o texto uma ponte se faz necessaria, eo leitor caminhara por ela. - Oprefacio nao se dirige a qualquer leitor (ao leitor “inocente”); ou melhor, se ele cai em suas mos, é para renegi-lo — nao 0 convida, nao o solicita—, através de uma deturpagao que divulga ao publico uma carta destinada a um tnico leitor, singular e avisado, que jé leu 0 livro (até mesmo 0 traduziu; ele ndo é nada inocente). Sua leitura foi uma produc4o ou uma realizacao, isto é, uma leitura modelo. Todo prefacio supée assim um leitor modelo ou um tradutor ficticio; esse é um trago caracteristico da cena imagindria do prefacio: escrevo-o para alguém que ja me leu atentamente (e compreendeu-me). 130 - Oprefacio propde um método de leitura (e nao uma atragdo para o leitor): “uma palavra de adverténcia quanto amaneira de ler este livro’,** percorré-lo uma vez, primeiro como um romance, sem se deter nas dificuldades, a fim de saber, de modo geral, de que assunto se trata, retoma-lo uma segunda, uma terceira vez, para reduzir as passagens dificeis, para compreender a seqiiéncia das razées. A finalidade da primeira leitura ¢ reconhecer, a das seguintes, a de compreender. - O prefacio é escrito no condicional: eis 0 que eu gostaria de dizer, anuncia Descartes, se chegasse a redigir um prefacio; mas “nado posso obter nada de mim mesmo a nao ser que deixarei aqui um resumo dos principais pontos que me parecem dever ser tratados”” E esse resumo, esse rascunho, esse esbogo ou esse simulacro de prefacio, esse prefacio que ndo é prefacio, que fara o papel de prefacio. Descartes nao explica as razes de seu fracasso: trata-se de uma lei do género. “A guisa de conclusao”: assim terminam tantos textos, segundo uma formula banal. Ou seja, apesar das aparéncias, isso nao é uma conclusio, nao é possivel p6r um termo, um ponto final, deve-se continuar. “A guisa de prefacio”: esta é a formula de Descartes “que pode servir aqui’, se for o caso, como provavelmente qualquer outra. Mas isso é evidente. O condicional é inerente ao género, pois o tinico verdadeiro prefacio, do qual derivam todos os outros, seria a reescrita do livro. O prefacio, segundo os termos de Descartes, é um género impossivel. Isso diz respeito a sua ultima caracteristica, capital. - O prefacio é retrospectivo. E por isso que, intercedendo pelo titulo, antecipa o livro; é por isso que se dirige a um leitor imagindrio que ja o leu; é por isso que propde um método de leitura e se escreve no ~ 131 condicional. O condicional de Descartes é ambiguo: eis © que gostaria de dizer, num verdadeiro prefacio, ou no livro; eis o que nao tenho certeza de ter dito ou de ter feito compreender; eis o que diria, se pudesse refazer 0 livro. Mas 0 livro est4 terminado, apesar das conclusées em suspenso, e € impossivel “ajuntar-lhe” alguma coisa, senao um prefacio. Curioso acréscimo que precede! O prefacio substitui a apostila e a glosa medievais, ou o “emblema supernumerario” de Montaigne: enquanto introducio, ele é exatamente o contrario de um acréscimo e 0 interdita. E paradoxal que o prefacio, que se lé primeiro quando se abre um livro, e que fala por antecedéncia, tenha sido escrito, sempre, talvez, por ultimo, como um da capo que vibraria primeiro, um eco mais vivo que o som. Estranho destino do livro: ele avanga, afinal de contas, pelo comego, inverte o sentido do caminho; assim os prefacios das edig6es sucessivas. Por que manter o paradoxo? Por que tentar 0 impossivel? £ que, apesar de tudo, é preciso terminar. Mais que a conclusao, o prefacio é um acabamento (nao uma finalidade) da escrita, é um buril. Ele é a ultima palavra e a seguinte, um traco recorrente. Desenlace de uma historia e liberacio de um fantasma, ambos da escrita, ele marca a entrada do livro em um universo diferente, o da alienacdo, da publicagao, da circulagao: ele é despossessao, luto, separagao. Enfim, o prefacio é a prova de realidade do livro, utha prova iluséria — no escrevo senao um simulacro de prefacio — mas suficiente. E porque ele é tudo isso que o prefacio representa um momento necessério e inevitavel da escrita (um acontecimento histérico: s6 0 prefacio do livro pode ser datado e localizado: a morte). A morte, “dita antecipadamente’, é 0 gesto grave pelo qual consinto em 132 morrer. Eu me dou a morte na primeira pagina, esta findo © sujeito que fui, enquanto escrevi isso que vocé vai ler. O beneficio é imenso. Executando-me, anulo o tempo da escrita; imobilizo-o ou reverto-o, fechando o livro sobre si mesmo, uma vez que ele comeca pelo fim, Nao pode deixar de haver prefacio, nem que seja sua critica (a de Hegel) ou sua parédia, nem que seja um prefacio de uso particular (o de Descartes), um prefacio para mim. E necessério haver um, porque é necessario dar um fim a escrita, um fim acidental ou conjuntural, e nao essencial ou estrutural. Esse fim sem transcendéncias é sempre simulado, esse encerramento € 0 prefacio. A ultima palavra colocada no inicio é também uma consolacao, uma revanche (o melhor que guardo para o fim): ela compensa a primeira que foi tao penosa. Faltou-me a primeira palavra, mas terei a ultima: ela pontifica em lugar soberano, porque decide o destino. E por isso que, apesar do luto que ela carrega, ha um jubilo do prefacio, como numa pirueta que me repGe os pés na terra: fago uma bela retirada, acenando com o chapéu. Trata-se ainda do andamento recorrente do texto: a primeira palavra sé é uma angustia (uma vertigem) ex ante. Ex post, desejaria colocar isso antes, e ainda isso, a nao acabar nunca, como se cada palavra tivesse um lugar melhor no inicio, como se, movido pelo desejo, todo o texto se cristalizasse, se precipitasse para tras. Donde a necessidade da data do prefacio para estancar, sobretudo, essa fuga para tras. Sendo, tem-se a Obra-prima desconhecida. Hegel condenava o prefécio como uma racionalizagao supérflua e enganadora da verdade expressa no texto. Mas nao é, ao contrario, o livro que ergue a racionalizagao de uma verdade desconhecida, e nao é 0 prefacio que, as 133 vezes, abate essa construgio e atinge a verdade da escrita, quando ele nao é apenas um estdgio suplementar, um frontao coroando um edificio? Mas tratar-se-ia da mesma verdade que, segundo Hegel, s6 encontra no conceito, fora do prefacio, o elemento de sua existéncia? A verdade que 0 prefacio, como interpretac4o, como destruicao do livro, pode produzir posteriormente é a origem: como escrevi alguns de meus livros, 0 que gostaria de dizer, insistia Descartes. Quanto ao livro, € preciso distinguir a origem e 0 comego. O comeco é o fim: conceito que duplica abusivamente um prefacio. Hegel se questiona sempre sobre 0 comego: no prefacio da Légica, qual deve ser 0 come¢o da ciéncia? Depois, na introducdo, qual deve ser 0 comego da légica? Descartes também hesita quanto ao come¢o: é preciso adotar um modo de expressao analitico ou sintético? Mas a origem é outra coisa: uma imagem, a outra face, a face oculta do livro, Descartes fechado num quarto aquecido, num dia de outono, em Ulm. Ora, essa origem é, também ela, um acidente (como a interrupcio, o prefacio): falsa origem, sem duvida (ele sé tem valor retrospectivo), mas mesmo assim origem; ponto de partida numa repeticao e que s6 0 prefacio pode suspender. “Seu prefacio’, escreve Voltaire, “é uma prece aos mortos, mas ele nao os ressuscitar!”* Nao deseja ressuscit4-los. Eele que condena a morte todos os sujeitos da escrita, petrificando-os na perigrafia. Os icones sao imagens mortuérias. O prefacio conjura a morte, quando confunde a origem e 0 comego. 134 A VOCAGAO DA ESCRITA Toda enunciagao produz simultaneamente um enunciado e um sujeito. Nao ha um sujeito anterior a enunciagao ou a escrita e, em seguida, uma enunciacao, como se fosse um atributo ou uma modalidade existencial desse sujeito; mas a enunciacao é constitutiva do sujeito, © sujeito advém na enunciacéo, Admitindo-se isso (a refutagdo de uma concepg¢ao metafisica do sujeito, cogito cartesiano ou Ego transcendantal husserliano), nada impede que, posteriormente a enunciagio, a relacao entre sujeito e enunciado caia, necessariamente, numa simbologia — a retérica antiga foi uma delas, a tradicdo igualmente — que a sobredetermina e lhe confere um caréater institucional. A forma evidente dessa relacao imposta é a identificacao do sujeito do enunciado com o sujeito da enunciagao, na pessoa do autor, intérprete ou gerenciador das suas diferengas; e os icones sao outras tantas provas de que essa conversao se realizou. E preciso medir as conseqiiéncias, na propria enunciacao e por um efeito retroativo, da exigéncia de uma identificagdo entre 0 autor e o sujeito da escrita. 135 Ainda que essa identificagao seja uma ilusao e um engano, que dependa de um reconhecimento imagindrio” é ela, entretanto, que funciona como principio da regulacao de toda escrita, integrando os critérios de sua receptibilidade. A forca e a especificidade da regulacao homeostatica da escrita consistem exatamente nisso: ela integra a fantasia. £ a fantasia suscitada pelo proprio princfpio de controle que fornece a energia da escrita. Toda escrita é assim uma realizacao da fantasia suscitada pela simbologia de sua circulacéo econémica. Semelhante intervencio do imagindrio nao espanta, pois que, afinal de contas, nao é senao nessa instancia que se erguem todos os projetos de reconhecimento, e o que se chama habitualmente de vocacao é o melhor exemplo disso: é uma fantasia, assim como todo projeto de escrita se trama em torno de uma fantasia que é, também ela, um projeto, a antecipacao do texto acabado (até mesmo impresso e circulando), dotado de um leitor, de um autor, que sio personagens contingentes e intercambidveis, como toda fantasia regida pelo verbo no passado: ter sido espancado, ter se tornado bombeiro, cosmonauta ou médico, ter escrito e ter sido, finalmente, lido. Freud, certa vez, mostrou muito claramente a funcdo da fantasia como principio de regulacdo da enunciacao, como certeza prévia de sua validade: Se, pois, eu me coloco novamente durante as conferéncias que se seguirao, no meio de um auditério, sé 0 faco por um jogo de imaginacio: talvez essa fantasia me ajude, ao aprofundar a minha questo, a nao me esquecer de levar em conta 0 leitor.!” 136 A fantasia da escrita poe em cena um leitor, pelo menos um que é minha criatura. Assim, mesmo que 0 processo da escrita — atualizagao do projeto, reescrita da fantasia — produza ao mesmo tempo 0 texto e o sujeito de sua enunciacao, resta a criatura imagindria (leitor, autor, ideal do eu) sancionar a criacao apondo sua assinatura como um nihil obstat que, posteriormente, libera a escrita de seu cativeiro imaginario. Esse é 0 papel do prefacio cartesiano. Eis, pois, algumas das razdes pelas quais nao se deve confundir o autor e 0 sujeito da enunciacao. Na fantasia, pretexto que projeta o livro como produto acabado, o autor (leitor imagindrio) é 0 sujeito, o eu ideal onde esse se satisfaz ou o ideal do eu onde ele deseja satisfazer; ao passo que, no final, ele redne a multiplicidade dos sujeitos da enunciagao e, variando talvez a cada frase, as vezes mais, assegura a unidades desses sujeitos fragmentados. Esse autor é ent&éo 0 personagem cujo nome esta na capa do livro. Quando a citagdo engaja o autor na relacao estabelecida por ela, é certamente deste ultimo que se trata: consolidacao recursiva de um imaginério da escrita; a citacao o ratifica, 0 autoriza, confere-lhe a qualidade de autoridade que sé 4 posteriori sera sua. A perigrafia do livro, uma vez que ela 0 envolve como um quadro vivo, é naturalmente o objeto privilegiado da fantasia. O livro imaginario tem uma silhueta, um contorno: um nome de autor, um titulo, uma epigrafe etc. Ele é apenas silhueta: seu corpo (a massa de seus caracteres) permanece vaporoso, cinza, indistinto. A escrita, partindo da fantasia, preenche a perigrafia, destaca 0 corpo do texto. 137 Eadmirdvel que a perigrafia seja ao mesmo tempo 0 nucleo da fantasia da escrita e 0 critério de uma qualificacao simbélica, gracas a um vinculo, préprio da homeostase, do sistema de produc&o com o dispositivo de controle. A perigrafia, instituicdo positiva, incita A fantasia e A escrita que sera tanto mais perceptivel quanto mais permanecer fiel 4 fantasia. Nao ha como se desembaracar desta para escrever, nao ha como subjugé-la. E ela, ao contrario, que dirige a escrita e captura o sujeito. A homeostase apresenta esta superioridade sobre todos os outros principios de controle do discurso: governa pelo imagindrio e pelos icones, obriga a falar e a escrever. Em resumo, se ha alguma coisa de universal no livro, seria justamente sua perigrafia, ao mesmo tempo sua fixagao imagindria e seu calibre simbélico. Kant via no julgamento estético o principio da comunicacdo intersubjetiva e de todas as relagdes sociais, sendo o gosto o modelo da universalidade humana. £ dificil compreender porque a arte, o gosto, mais que a linguagem ou o trabalho, por exemplo, é que exercem essa fun¢ao primeira na organizacio social. Mas a referéncia 4 homeostase talvez permita explicd-lo, se ela faz coincidir 0 imagindrio e 0 simbélico da escrita, se a fantasia da escrita ja é, ela mesma, universal, se, realizando a fantasia, a escrita nao faz outra coisa sendo reproduzir o proprio critério de sua receptibilidade. Nao haveria livros fracassados (ilegiveis ou inaceitaveis), sendo esse conceito contraditério em si, como também o de mau gosto para Kant (aliés, tanto quanto de bom gosto), mas somente livros inacabados, projetos abortados, cuja fantasia foi insuficiente, desarticulada, mal delimitada pela perigrafia: € 0 caso dos Essais, na opiniao de Malebranche. 138

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