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Nota: Este livro foi digitalizado e corrigido por Angela Moraes, em Março

de 2011

GIBRAN KHALIL GIBRAN


ASAS PARTIDAS
O Primeiro Amor de Gibran
TRADUÇÃO DE MANSOUR CHALLITA

Associação Cultural Internacional Gibran


Título do original árabe AL-AJNIHA AL-MUTAKASSIRA
Montagem da capa
ANDA - ASSESSORIA DE NEGóCIOS E PROPAGANDA Composição
LíDIO FERREIRA JUNIOR - ARTES GRáFICAS E EDITORA Impressão
ARTES GRáFICAS GRAFO-SET Rua Mogi-Mirim, 8 Rio de Janeiro, RJ
Distribuição
CATAVENTO DISTRIBUIDORA DE LIVROS Rua Conselheiro Ramalho, 928 Tel. 289-0811 Sao
Paulo, SP
Direitos reservados a ( c) MANSOUR CHALLITA Caixa Postal 5050 - ZC-37 Rio de
Janeiro, RJ
BRASIL
1977

INDICE

Pontos Altos de Uma História de Amor, 9

Apresentação, por Mansour Challita, 11

Prólogo, 29
A Tristeza Muda, 32
A Mão do Destino, 36
O Templo, 42
A Chama Branca, 47
A Tempestade, 50
O Trono da Morte, 78

Astarté e Cristo, 92

O Sacrifício, 100
O Salvador, 112
Ilustrações, 8, 12, 28, 40, 41, 76, 77, 98, 99, 110, 111
***
Pontos Altos de Uma História de Amor, 9
Como se os deuses tivessem feito de cada um de nós a metade do outro, sentíamo-
nos realizados quando nos reuníamos e perdidos quando nos separávamos.
Que jovem não se lembra da primeira mulher que transformou o torpor de sua
mocidade num despertar, ao mesmo tempo terrível e cheio de doçura?
Para todo jovem, há uma Selma que surge na primavera de sua vida quando menos a
espera e dá a seu isolamento um sentido poético e povoa sua solidão e enche suas
noites de melodia.
Os que o amor não dotou com asas não podem voar para além das nuvens e ver
aquele mundo mágico que minha alma e a alma de Selma percorreram naquela hora.
O homem, embora nasça livre, permanecerá escravo das leis desumanas legadas por
seus antepassados, pois o destino, que imaginamos um segredo superior, nada mais
é do que a aberração de submetermos nosso dia de hoje aos decretos de nosso
ontem, e o dia de amanhã aos decretos de hoje.
O amor é a única liberdade neste mundo, porque eleva a alma a alturas além das
leis e tradições dos homens e das necessidades e imposições da natureza.
9
O homem compra a glória e a grandeza e a fama; mas é a mulher quem paga o preço.
O amor limitado procura a posse do amado. Mas o amor ilimitado nada procura
senão a sua própria realização.
O coração da mulher não muda com o tempo e não se transforma com as estações.
Agoniza longamente, mas não morre.
O prisioneiro inocente que pode derrubar as paredes de seu cárcere e não o faz,
é um covarde.
O amor é a única flor que brota e cresce sem a ajuda das estações.
Um só olhar de mulher pode tornar alguém o mais feliz ou o mais infeliz dos
homens.
A borboleta que esvoaça em volta da chama até se queimar é mais nobre que a
toupeira que vive, segura e descansada, na sua toca escura.
Tinha a impressão de ser um novo Adão saindo do Paraíso Terrestre. Mas a Eva do
meu coração não estava ao meu lado para transformar este mundo em um novo Eden.
10
***
Apresentação, por Mansour Challita,
11

E quando Gibran se havia tornado um grande pintor, pintou um retrato imaginário


de Hala como devia ser então. Não sabemos se o retrato era parecido. Mas sugere
uma
elevação moral capaz de "sacrificar algo grande em benefício de algo ainda
maior", como o faz a heroína do romance.

***
Alegrias e sofrimentos de um primeiro amor
Este romance, o único escrito porGibran, é baseado numa aventura real.
Durante os quatro anos que Gibran passou no Líbano a aperfeiçoar seu árabe
entre a idade de 16 e 20 anos (1898-1902), apaixonou-se por uma bela jovem de
sua
cidade natal, Hala Daher, e pediu-a em casamento. Mas o tio da moça era um
bispo, e Gibran já era conhecido por seu
13
anticlericalismo. O bispo proibiu à sua sobrinha desposar um anticlerical.
Gibran propôs à namorada fugir com ele para os Estados Unidos. Mas a moça,
embora amasse Gibran, preferiu sacrificar seus sentimentos a desafiar proibições
e
tabus que, na época, pareciam constituir o próprio fundamento da sociedade e da
religião.
Aqui termina o paralelo entre a vida real e o romance. Hala Daher não se
casou, como o fez a heroína deste livro, e não morreu antes
de Gibran. Permaneceu, ao
contrário, fiel ao seu amor durante toda a sua longa existência, embora Gibran
tivesse deixado o Líbano definitivamente desde 1904.
Quando, em 1931, Gibran morreu nos Estados Unidos e seu corpo foi devolvido
ao Líbano para ser enterrado em Becharre, uma mulher, vestida de preto, abriu
caminho
no meio da multidão, depositou um beijo nos lábios frios e se retirou. Era Hala
Daher. Morreria anos depois, solteira, cega e velha.
Por seu lado, embora tivesse conhecido vários amores - desde a sua
tempestuosa paixão por Micheline até seu amor cerebral por Mary Haskell, sem
contar seu idílio
platônico com May Ziade - Gibran nunca esqueceu a distante imagem de Hala Daher.
Em 1914, deu a seu livro árabe de crônicas e meditações um título sugerido
pelo rosto e as palavras de Hala na hora da
despedida
14
definitiva. Ela chorava e sorria ao mesmo tempo, e disse: "Assim quero que te
lembres de mim: uma lágrima e um sorriso." Foi justamente o título do livro.
E quando Gibran se havia tornado um grande pintor, pintou um retrato
imaginário de Hala como devia ser então. Não sabemos se o retrato era parecido.
Mas sugere
uma elevação moral capaz de "sacrificar algo grande em benefício de algo ainda
maior", como o faz a heroína do romance.
Este breve histórico da obra explica a sua natureza: ela é ao mesmo tempo um
romance sentimental e um romance de tese. E cada um deles tem seus altos e
baixos.
O romance de tese é, compreensivelmente, uma explosão de anticlericalismo.
Na época em que Gibran viveu seu drama e escreveu seu romance (a primeira
década do século XX), o clero ainda dominava no Oriente como havia dominado na
Europa
medieval: com ganância e tirania. E quanto mais alto o cargo, mais acentuados
eram os abusos.
Gibran se revolta contra essas aberrações. E o faz, como sempre, não em nome
do ateísmo, mas em nome de Jesus, opondo o comportamento do clero aos
ensinamentos
do Evangelho. A heroína é vítima dos malefícios de um bispo. E para quem apela
ela contra o bispo? Para Jesus. (A
15
prece e os queixumes que Lhe dirige estão entre as mais belas páginas de toda a
obra de Gibran.)
O anticlericalismo é assim pregado não como uma ideologia anticristã, mas
como um caminho para o retorno ao verdadeiro Cristianismo, embora seja, neste
livro,
o que o próprio Gibran era na época: violento, extremista, imaturo e tornado
ainda mais incendiário pela sua tragédia pessoal.
Hoje, os abusos denunciados por Gibran são uma mera lembrança. Assim mesmo, a
denúncia conserva todo o seu valor. Pois os abusos, na realidade, nunca
desaparecem.
Apenas tomam novos aspectos, conforme a época e o meio. E o espírito deve estar
sempre vigilante contra eles. As palavras de Gibran expressam com eloqüência
sentimentos
e pensamentos de que a humanidade continua a precisar.
O anticlericalismo de Gibran é acompanhado por uma comovente defesa da mulher
que, na época do romance, estava ainda submetida no Oriente a muitas opressões,
embora fosse mais resignada do que revoltada.
A atmosfera de Asas Partidas lembra a atmosfera do romance de Pierre Loti, As
Desencantadas, onde mulheres igualmente orientais viam-se sacrificadas, nas suas
aspirações mais legítimas, à incompreensão e à prepotência do homem, opondo,
todavia, aos seus
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opressores, não a revolta e a rebelião, mas uma resignação digna e melancólica
que as tornavam ainda mais sedutoras e ainda mais merecedoras de apoio.
Sem se revoltar, sem quebrar lei alguma, sem se furtar a nenhum sacrifício,
Selma Karame despertará a solidariedade de toda mulher e transformará todo homem
em
defensor dos direitos femininos, simplesmente por merecer tanto e receber tão
pouco, sem nunca se desviar da mais nobre dignidade.
O romance sentimental acompanha, admiravelmente, o romance de tese. É a
história de um primeiro amor, ardente, romântico, cheio de sonhos, como
imaginamos todo
primeiro amor. E embora partilhado e ilimitado, este amor termina numa imerecida
tragédia, independentemente da vontade e do comportamento dos heróis; e, por
isso
mesmo, domina o leitor com um poder lancinante, como em Paulo e Virgínia,
Graziela, Atalã, Romeu e Julieta, Love Story.
Este lado do livro também tem suas fraquezas, características do jovem
escritor romântico que Gibran era na época: prolixidade, abuso dos discursos e
das metáforas,
falta de lógica e de rigor no desenvolvimento da trama, e excesso de lágrimas,
suspiros, lamentações, sufocações.
Assim mesmo, o estilo já anuncia
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o grande Gibran pelo esplendor das imagens, as misteriosas correspondências
postas em evidência entre a natureza e a alma, o poder de transmitir as emoções,
a habilidade com que a lua, o firmamento, as flores, o vento, as colinas são
transformados em instrumentos que formam, com os sentimentos humanos, uma
sinfonia de
irresistível encantamento.
Asas Partidas continuará a ser lido e amado enquanto houver amor e beleza
neste mundo, enquanto o homem for sensível à primavera e ao luar, e enquanto o
mal e
a ganância prevalecerem às vezes contra jovens enamorados, sacrificando-lhes
cruelmente os sonhos de felicidade.
18

Vida e Obra de Gibran


Seu nome completo é Gibran Khalil Gibran. Assim assinava em árabe. Em inglês,
preferiu a forma reduzida e ligeiramente modificada de Kahlil Gibran. É mais
comumente
conhecido sob o simples nome de Gibran.
1883 Nasceu em 6 de dezembro, de pais pobres, em Bicharre, na
19
montanha do Líbano, a uma pequena distância dos Cedros milenares. Tinha oito
anos quando, um dia, um vendaval passa por sua cidade. Gibran olha, fascinado,
para
a natureza em fúria e, estando sua mãe ocupada, abre a porta e sai a correr com
os ventos. Quando a mãe, apavorada, o alcança e repreende, êle lhe responde com
todo
o ardor de suas paixões nascentes: "Mas, mamãe, eu gosto das tempestades. Gosto
delas. Gosto!" (Seu melhor livro em árabe será intitulado Temporais).
1894 Emigra para os Estados Unidos, com a mãe, o irmão Pedro e as duas irmãs
Mariana e Sultane- Instalam-se em Boston. O pai permanece em Bicharre.
1898-1902 Volta ao Líbano para completar seus estudos árabes. Matricula-se no
Colégio da Sabedoria, em Beirute. Ao diretor, que procurava acalmar sua ambição
impaciente,
dizendo-lhe que uma escada deve ser galgada degrau por degrau, Gibran retruca:
"Mas as águias não usam escadas!"
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1902-1908 De nôvo em Boston. Sua mãe e seu irmão morrem em 1903. Gibran escreve
poemas e meditações para Al-Muhajer (O Emigrante), jornal árabe publicado em
Boston.
Seu estilo nôvo, feito de música, imagens e símbolos, atrai-lhe a atenção do
Mundo Árabe- Desenha e pinta numa arte mística abstrata, que lhe é própria. Uma
exposição
de seus primeiros quadros desperta o interêsse de uma diretora de escola
americana, Mary Haskel, que lhe oferece custear seus estudos artísticos em
Paris.
1908-1910 Em Paris. Estuda na Académie Julien. Trabalha frenèticamente.
Freqüenta museus, exposições, bibliotecas. Conhece Auguste Rodin, que lhe prediz
um grande
futuro. Uma de suas telas é escolhida para a Exposição das Belas-Artes de 1910.
Neste ínterim, morrem seu pai e sua irmã Sultane.
1910 Volta a Boston e, no mesmo ano, muda-se para Nova Iorque, onde permanecerá
até o fim da vida. Mora só, num apartamento modesto ao qual êle e seus amigos
chamam
As-Saumaa
21
( O Eremitério). Mariana, sua irmã, continua em Boston. Em Nova Iorque, Gibran
reúne em volta de si uma plêiade de escritores libaneses e sírios que, embora
estabelecidos
nos Estados Unidos, escrevem em árabe com idênticos anseios de renovação. O
grupo forma uma academia literária que se intitula Ar-Rabi- ta Al-Kalamia (A
Liga
Literária),
e que muito contribuiu para o renascimento das letras árabes. Seus porta-vozes
foram, sucessivamente, duas revistas árabes editadas em Nova Iorque: Al-Funun
(As
Artes) e As-Saieh (O Errante).
1905-1920 Gibran escreve quase que exclusivamente em árabe e publica sete livros
nessa língua: 1905, A Música; 1906, As Ninfas do Vale: 1908, As Almas Rebeldes;
1912, As Asas Partidas; 1914, Uma Lágrima e um Sorriso; 1919, As Procissões;
1920, Temporais. (Após sua morte, será publicado um oitavo livro, sob o título
de Curiosidades
e Belezas, composto de artigos e histórias já aparecidos em outros livros e de
algumas páginas inéditas).
22
1918-1931 Gibran deixa, pouco a pouco, de escrever em árabe e se dedica ao
inglês, no qual produz também oito livros: 1918, O Demente; 1920, O Precursor;
1923, O
Profeta; 1927, Areia e Espuma; 1928, Jesus, o Filho do Homem; 1931, Os Deuses da
Terra. (Após sua morte foram publicados mais dois: 1932, O Errante; 1933, O
Jardim
do Profeta). Todos os livros ingleses de Gibran foram lançados por Alfred A.
Knopf, dinâmico editor americano com inclinação para descobrir e lançar novos
talentos.
Ao mesmo tempo que escreve, Gibran se dedica a desenhar e pintar. Sua arte,
inspirada pelo mesmo idealismo que lhe inspirou os livros, distingue-se pela
beleza
e a pureza das formas. Todos os seus livros inglêses foram por êle ilustrados
com desenhos evocativos e místicos, de interpretação às vêzes difícil, mas de
profunda
e comovedora inspiração. Seus quadros foram expostos várias vêzes com êxito em
Boston e Nova Iorque. Seus desenhos de personalidades históricas são também
célebres.
23
1931 Gibran morre em 10 de abril, no Hospital São Vicente, em Nova Iorque. Êle,
que escrevera tantas páginas profundas sobre a vida e a morte, agoniza entre
gemidos
confusos, no decorrer de uma crise pulmonar que o deixara inconsciente. O adeus
que lhe proporcionaram os Estados Unidos foi grandioso e comovente, e em 21 de
agosto
de 1931, os restos mortais do maior e mais célebre escritor e pintor do Mundo
Árabe contemporâneo, chegaram a Beirute, e foram recebidos e acompanhados até
Bi-charre
com manifestações oficiais e populares de proporções inusitadas.
Foi enterrado na vertente de uma colina de silêncio e de beleza, num velho
convento cavado na rocha, onde Gibran sonhava ir viver como anacoreta seus
últimos anos.
Seu túmulo transformou-se num lugar de peregrinação. Ao lado, o Comitê Nacional
de Gibran edificou um museu onde são expostos algumas das suas belas telas e os
seus
livros em tôdas as línguas. Em cima do túmulo, esta simples inscrição:
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"Aqui, entre nós, dorme Gibran".
Mas lá, na verdade, dorme somente seu corpo. Sua alma, difundida nos seus
livros, serve de guia a milhões de leitores na mais fascinante de tôdas as
viagens: a que
leva o homem das trevas do egoísmo e da cegueira ao esplendor do dom de si e da
compreensão.
25
***
Dedicatória

Àquela que fita o sol com pálpebras firmes, e agarra o fogo com dedos que não
tremem, e ouve a melodia da Alma Suprema acima do tumulto e dos clamores dos
cegos,
A M.E.H., dedico este livro. *
Gibran
* Todos os que têm algum conhecimento de Gibran sabem que M.E.H. são as iniciais
de Mary E. Haskell, a norte-americana que foi a mentora e a amiga de Gibran
desde
1904 até a morte do poeta. Muitos dos escritos e desenhos de Gibran são-lhe
dedicados.

***
Prólogo

TiNHA 18 anos quando o amor abriu meus olhos com seus raios mágicos e tocou
minha alma
com seus dedos de fogo. E Selma Karame foi a primeira mulher a despertar
meu espírito com seus encantos e a conduzir-me ao Éden dos sentimentos sublimes
onde os dias passam como sonhos e as noites como festas de bodas.
Selma Karame me ensinou, com sua beleza, a adorar a beleza, e revelou-me os
segredos do coração graças à sua ternura. E foi ela quem recitou para mim o
primeiro
poema dos mistérios da vida.
Que jovem não se lembra da primeira mulher que transformou o torpor de sua
mocidade num despertar, ao mesmo tempo terrível e cheio de doçura? Quem de nós
não
se lembra com saudade daquele estranho momento em que se deu conta de repente
que sua personalidade mudara, que algo nela se estendera e se alargara, brotando
emoções
deliciosas, embora envoltas na amarga necessidade de se esconderem, e bem-vindas
apesar das lágrimas, da insónia e da fome que as acompanham?
Para todo jovem, há uma Selma que surge na primavera de sua vida, quando
menos a espera, e dá a seu
29
isolamento um sentido poético, e povoa sua solidão e enche suas noites de
melodia.
Andava eu sem rumo, indeciso entre o apelo da natureza e o apelo dos livros,
quando ouvi o amor sussurrar aos ouvidos de minha alma através dos lábios de
Selma.
Minha vida era vazia, desértica, fria, tal o sono de Adão no Paraíso, quando vi
Selma na minha frente como uma coluna de luz. Foi ela a Eva deste coração
repleto
de enigmas e singularidades; foi ela quem lhe revelou o sentido da vida e o
colocou, como um espelho, perante as suas sombras.
A primeira Eva provocou a saída de Adão do Paraíso, por sua própria vontade e
pela submissão de Adão, enquanto Selma me conduziu ao paraíso do amor e da
pureza
por sua meiguice e meu pleno acordo. Ainda assim, o que aconteceu com o primeiro
homem também aconteceu comigo. A espada de fogo que o expulsou do Paraíso não
era
diferente da que me aterrorizou e me obrigou a afastar-me do paraíso do amor,
sem que houvesse infringido mandamento algum ou sequer provado os frutos do bem
e do
mal.
Anos sombrios já apagaram os vestígios daqueles dias. E nada me resta do belo
sonho, senão recordações dolorosas que esvoaçam como asas invisíveis em torno de
mim, provocando angústia no meu coração e lágrimas de amargura nos meus olhos...
E Selma, a bela e meiga Selma, já se foi para além do horizonte azul; e só
evocam
a sua memória soluços no meu peito e uma tumba de mármore à sombra dos
ciprestes.
Contudo, o silêncio que vela sobre os túmulos não revela o segredo que os
deuses escondem nas trevas do ataúde, e o sussurro dos ramos que se nutrem do
corpo
não divulga os enigmas do jazigo. Mas os suspiros deste coração falarão.
Misturar-se-ão à tinta para narrarem
30
nestas páginas os mistérios daquela tragédia, que teve por heróis o amor, a
beleza e a morte.
Oh, amigos da minha juventude que ainda viveis em Beirute, se passardes por
aquele cemitério próximo à Floresta dos Pinheiros, entrai em silêncio e caminhai
de
leve para não perturbardes os corpos que dormem sob a terra, e parai com
respeito diante do túmulo de Selma e saudai por mim o pó que encobre seus
despojos. Depois,
lembrai-vos de mim com um lamento, e dizei em vossos corações: Aqui foram
enterradas as esperanças daquele jovem que as vicissitudes do Destino exilaram
para além-
mar; aqui morreram suas aspirações; aqui findou sua alegria; aqui se evaporaram
seus sorrisos e abundaram suas lágrimas. Entre essas sepulturas mudas, sua mágoa
cresce com os ciprestes e os salgueiros. Por cima desta tumba, sua alma vem
esvoaçar todas as noites, para chorar com os ramos uma jovem que ontem era uma
melodia
melancólica entre os lábios da vida e hoje é um mistério silencioso no coração
da terra.
Companheiros da minha juventude, eu vos rogo pelas mulheres que vossos
corações amaram, depositai uma coroa de flores sobre a tumba da mulher que meu
coração
amou. Uma flor depositada sobre um túmulo esquecido é como a gota de orvalho que
as pálpebras da aurora vertem sobre uma rosa sedenta.
31

***
A tristeza muda

todos vos lembrais da aurora da juventude com a alegria de evocar suas imagens,
e com o pesar de que ela não esteja mais. Quanto a mim, lembro-me dela como
o escravo liberto se lembra das paredes de sua prisão e do peso de suas cadeias.
Vós chamais aqueles anos interpostos entre a infância e a juventude uma idade
de ouro em que se ri dos problemas da vida e das suas preocupações, e se voa por
cima deles como a abelha sobrevoa os pântanos no seu caminho para os jardins em
flor.
Quanto a mim, não posso chamar o tempo da minha juventude senão de um tempo
de sofrimento velado e mudo. Meu coração era como uma cela escura em que as
tempestades
se multiplicavam. Não havia nele saída alguma para a luz até que o amor chegou e
abriu-lhe as portas e iluminou-lhe os cantos. O amor desligou minha língua:
então
falei. E abriu meus olhos: então chorei. E libertou minha garganta: então exalei
suspiros e lamentações.
32
Todos vós vos lembrais dos campos e jardins e praças e ruas que testemunharam
vossos primeiros jogos e ouviram os sussurros de vossa inocência; eu também me
lembro
daquela bela região do Norte do Líbano onde passei a minha infância, e cada vez
que fecho os olhos vejo aqueles vales majestosos, cheios de mistério, e aquelas
montanhas
que se elevam gloriosamente para as alturas. E cada vez que tapo meus ouvidos ao
barulho do mundo, ouço o murmúrio dos riachos e o sussurro das árvores
acariciadas
pelo vento. Mas todas essas belezas que evoco com a nostalgia de um menino por
sua mãe nada mais eram do que uma moldura para os sofrimentos da minha alma
encarcerada.
Sofria como sofre o falcão entre as grades de sua gaiola quando vê bandos de
falcões voarem livres no vasto espaço. E a amargura entrelaçava sua teia em
volta do
meu coração. Assim, todas as vezes que ia aos campos, voltava melancólico sem
conhecer as causas da minha melancolia. E todas as vezes que contemplava as
nuvens
coloridas pelo poente, sentia-me oprimido sem saber por que. E todas as vezes
que ouvia o gorjeio do melro ou o canto das fontes, a tristeza me invadia de
novo sem
motivo definido.
Dizem que a ignorância é o berço da cegueira; e a cegueira, o berço da
felicidade. Talvez seja assim para os que nascem mortos e passam por este mundo
como seres
inertes e insensíveis. Mas, na vizinhança dos sentimentos vivos, a ignorância se
torna cruel e dolorosa. O jovem que sente muito e sabe pouco é a mais infeliz
das
criaturas, pois sua alma é exposta a duas forças terríveis e contraditórias:
uma, invisível, que o eleva às alturas e lhe mostra a beleza das criaturas por
trás
da neblina dos sonhos; a outra, visível, que o encadeia à terra e lhe
33
ofusca a vista com poeira e o deixa perdido e medroso em meio a intensas trevas.
A melancolia tem mãos macias, mas nervos duros. Agarra os corações e os
atormenta pela solidão, sua aliada e companheira. A alma do adolescente frente à
solidão
e à melancolia assemelha-se a um lírio branco que desabrocha: treme ao vento, e
abre seu coração aos raios da aurora, mas fecha suas folhas quando chegam as
sombras
do entardecer. Se o jovem não tiver entretenimentos para distraí-lo e
companheiros para partilhar seus gostos, sua vida se transforma numa cela
estreita em cujos
cantos se vêem teias de aranha e se ouve o rastejar dos insetos.
Entretanto, a melancolia que acompanhou meus primeiros anos não resultava da
falta de divertimentos (tinha-os muitos) nem da falta de companheiros
(encontrava-os
onde quer que estivesse); era um mal nato em minh'alma que me fazia amar a
solidão e o isolamento, e neutralizava a minha inclinação para os prazeres e as
diversões
e cortava as asas da minha juventude. Convertia-me numa espécie de lago entre as
colinas, cujas águas tranqüilas refletem o contorno dos cumes e as cores das
nuvens
e as formas das ramas, mas que não encontra uma passagem para correr, cantando,
rumo ao mar.
Tal era a minha vida até meu décimo oitavo ano. Este ano é, no meu passado,
como o cimo numa montanha, pois fez-me compreender os segredos do mundo e os
caminhos
dos homens, suas leis e suas tradições.
Naquele ano, nasci de novo.
O homem que não é concebido e posto no mundo uma segunda vez, pela
melancolia, e não é embalado no berço
34
dos sonhos, permanece como uma página branca e vazia no livro da vida.
Naquele ano, vi os anjos do céu olharem para mim através dos olhos de uma
mulher, e vi os demônios do inferno conspirarem contra mim no peito de um
desalmado.
E quem não vê os anjos e os demônios no bem e no mal que lhe traz a vida, priva
sua mente de conhecimentos e sua alma de sentimentos.
35
***

A mão do destino

ESTAVA eu em Beirute na primavera daquele ano rico em estranhos acontecimentos.


Abril havia recoberto a terra de ervas e de flores que, nos jardins da cidade,
se
assemelhavam a segredos que a terra revela às alturas. Com seus xales brancos e
perfumados, as amendoeiras e as macieiras, entre as casas, pareciam huris
esplendidamente
vestidas, que a Natureza enviara como noivas aos filhos da poesia e da fantasia.
A primavera é bela em toda parte. Mas é mais do que bela no Líbano... A
primavera é a alma de um deus desconhecido que percorre o mundo apressadamente,
mas que,
quando chega ao Líbano, detém o passo, olhando para trás, conversando com as
almas dos reis e dos profetas que vagueiam no espaço, repetindo com os arroios
os Cânticos
imortais de Salomão, e rememorando com os Cedros as glórias dos séculos.
Na primavera, Beirute é mais bela do que nas outras estações, pois está então
livre das chuvas do inverno e da poeira do verão e, a meia distância entre o
frio
e o calor, parece uma linda mulher que, sentada à beira da
36
fonte onde acaba de banhar-se, deixa os raios do sol enxugar o seu corpo.
Num daqueles dias perfumados pelos aromas de abril e iluminados pelos seus
sorrisos, fui visitar um amigo que habitava uma casa afastada dos ruídos da
cidade.
Enquanto conversávamos de nossas esperanças e aspirações, chegou um homem de uns
65 anos, simplesmente vestido, mas de aspecto venerável e digno. "Xeque Fares
Efêndi(*)
Karame", disse meu amigo apresentando o recém-chegado, e apresentando-me depois
a ele com palavras elogiosas. O xeque observou-me um momento, passou os dedos
sobre
a testa que cabelos brancos emolduravam, como se estivesse procurando uma imagem
antiga, quase perdida entre as lembranças do passado. Em seguida, sorriu com
afeição
e aproximou-se de mim, dizendo: "És o filho de um velho amigo muito querido que
foi meu companheiro na primavera da vida. Estou feliz de encontrar-te e
encontrar
o teu pai em ti!"
Comoveram-me suas palavras e senti uma atração misteriosa aproximar-me dele,
como o instinto leva o pássaro ao seu ninho quando se aproxima a tempestade.
Contou-me
da sua amizade com meu pai, e de como haviam passado juntos os anos da
juventude. Os velhos voltam pelo pensamento aos dias da sua mocidade como o
emigrante saudoso
volta à-sua terra natal, e gostam de contar as histórias do passado como o poeta
gosta de recitar seus mais belos poemas. Pois eles vivem, pelo espírito, no
passado,
já que o presente não lhes manifesta muita deferência e o futuro lhes aparece
velado pela bruma da partida e as trevas do túmulo.
Uma hora depois, Fares Karame levantou-se para sair, e, tomando minha mão na
sua mão e repousando sua
37
outra mão no meu ombro, disse: "Não vejo teu pai desde há vinte anos. Espero
consolar-me da sua longa ausência com as tuas freqüentes visitas."
Inclinei-me, e prometi cumprir o que o filho deve a um amigo do seu pai.
Quando havia saído, pedi a meu amigo maiores informações sobre ele. Respondeu
num tom prudente: "Não conheço outro homem em Beirute que a riqueza haja tornado
virtuoso e a virtude, ainda mais rico. É uma dessas raras criaturas que passam
por este mundo sem jamais prejudicar alguém; mas que se tornam vítimas de
infelicidades
e prejuízos, por ignorarem as astúcias que protegem da maldade humana... Fares
Karame tem uma filha única. Moram numa casa luxuosa nos arredores da cidade. A
filha
tem o caráter do pai, e não há mulher mais formosa. No entanto, ela também será
infeliz, porque a imensa fortuna do pai a coloca agora à beira de um abismo
terrível."
Ao pronunciar essas últimas palavras, a tristeza lhe velou a face. Depois,
acrescentou: "Fares Karame é um homem nobre, mas fraco. Deixa-se levar pelas
perfídias
dos outros como um cego. E é incapaz de opor-se à ganância dos mais audaciosos.
E sua filha obedece-lhe, apesar das forças da sua própria alma. Eis o segredo
que
se esconde atrás da vida do pai e da filha. E o segredo foi adivinhado por um
homem que reúne em si a ambição e a velhacaria, a hipocrisia e a autoridade. É
um bispo,
cujos vícios andam à sombra do Evangelho e aparecem ao mundo como virtudes.
Chefe religioso na terra das religiões, as almas e os corpos se inclinam diante
dele
como as ovelhas se entregam ao açougueiro.
"Tem ele um sobrinho em cuja alma negra os vícios se aninham tais serpentes e
escorpiões num antro. Não está longe o dia em que o bispo, vestido de suas
roupas
episcopais, colocará com sua mão criminosa a grinalda
38
do matrimônio sobre as cabeças de seu sobrinho e da filha de Fares Karame,
ligando pelos grilhões de uma lei inepta e de falsos exorcismos um corpo puro a
uma carcaça
pútrida, uma alma celestial a um ente de lama, um coração alado a um corpo
rastejante. Eis tudo o que te posso contar agora sobre Fares Karame e sua filha.
Não me
faças perguntas. Receio que, falando da catástrofe, possa contribuir para torná-
la inevitável, como o medo da morte aproxima a morte."
Virou depois a face e fitou através da janela o espaço infinito, como se
estivesse procurando no éter o segredo dos dias e das noites.
Despedi-me, então, dizendo-lhe: "Amanhã visitarei Fares Karame, em homenagem
às lembranças que guarda da sua amizade com meu pai."
Meu amigo olhou-me por um minuto em silêncio, e seus traços se alteraram como
se minhas poucas e simples palavras tivessem evocado nele um pensamento novo e
terrível.
E havia no seu estranho olhar uma mistura de afeição e de medo, e a penetração
de um profeta que vê nas almas o que elas mesmas ignoram. Seus lábios tremeram
levemente,
mas não falaram. Deixei-o, perturbado; e quando me virei, notei que seus olhos
continuavam a acompanhar-me com aquela expressão singular que somente vim a
compreender
mais tarde, após libertar minha alma do mundo dos pesos e das medidas e elevá-la
aos campos da existência superior onde os corações se entendem pelo olhar e as
almas
crescem pela compreensão.
39
Que jovem não se lembra da primeira mulher que transformou o torpor de sua
mocidade num despertar, ao mesmo tempo terrível e cheio de doçura?
41
***
templo

Dias depois, cansado da solidão e da sisuda face dos livros, aluguei um


coche e dirigi-me à residência de Fares Karame. Na Floresta dos Pinheiros, o
cocheiro
desviou seus cavalos da estrada principal e enveredou por uma alameda que
serpenteava entre vinhedos transformados em tapetes multicores pela grama e as
flores de
abril.
Momentos depois, o coche parou à porta de uma casa isolada, rodeada por um
vasto parque cheio de pinheiros, rosas, dálias e jasmins.
Tinha dado apenas alguns passos quando Fares Karame, atraído pelo rumor da
carruagem, saiu da sua mansão e veio, eufórico, ao meu encontro. Deu-me as boas
vindas,
fez-me sentar ao seu lado e começou a fazer-me perguntas, tais como um pai faz a
seu filho, sobre minhas atividades passadas e presentes, sobre minhas aspirações
para o futuro. Respondia-lhe com o entusiasmo dos jovens embalados pelos sonhos
e as esperanças, e que a maré das quimeras ainda não jogou sobre a praia das
realidades
amargas.
Os jovens são munidos de asas feitas de fantasia e de ilusão, que os levam
para além das nuvens, de onde vêem
42
a existência colorida como um arco-íris e onde ouvem canções de glória e de
grandeza. Mas aquelas asas não tardam a ser partidas pela tempestade da
experiência.
Caem, então, os jovens sobre a terra dura, e passam a ver-se num espelho
estranho onde o homem é deformado e diminuído.
Enquanto conversávamos, apareceu por detrás das cortinas aveludadas da porta
uma moça vestida de fina seda branca, e aproximou-se lentamente de nós.
Levantei-me.
"Esta é minha filha Selma", disse-me Fares Karame. E dirigindo-se a ela,
acrescentou: "Aquele meu velho amigo que os dias separaram de mim, volta agora
na pessoa
do seu filho."
A moça olhou intensamente nos meus olhos como se quisesse descobrir neles o
motivo da minha visita. Depois, estendeu-me a mão, branca e macia como os lírios
do
vale. Senti, ao apertá-la, um sentimento novo e estranho, similar ao pensamento
poético quando começa a formar-se na imaginação.
Sentamo-nos os três em silêncio como se Selma tivesse introduzido uma alma
superior que inspirasse a quietude e o respeito. Percebendo talvez isto, ela
virou-se
para mim e disse com um sorriso: "Muitas vezes meu pai tem-me falado do seu pai,
e contado-me histórias dos dias que passaram juntos na juventude. Se seu pai lhe
tiver contado as mesmas histórias, não seria este o nosso primeiro encontro."
Fares se regozijou com as palavras da filha, e seus traços se dilataram. E
disse: "Selma é muito espiritual nas suas inclinações e concepções. Vê todas as
coisas
flutuando no mundo da alma." E voltou a conversar comigo com interesse e
ternura, como se tivesse encontrado em mim um meio mágico que o reconduzisse,
pelas asas
da lembrança, à primavera de seus dias.
43
Contemplava-me, rememorando o passado. Eu o escutava, sonhando com o futuro.
Olhava para mim como os ramos de uma árvore gigante, cheia de anos, se estendem
por
sobre um arbusto novo em que a seiva e a vitalidade, embora abundantes, ainda
precisam ser acordadas - uma árvore idosa, bem enraizada, que já conheceu as
primaveras
e os invernos da vida e sabe como receber as tempestades; e um arbusto fraco e
tenro que só conheceu a primavera e só foi embalado pelo zéfiro da aurora.
Quanto a Selma, mantinha-se silenciosa, olhando ora para mim, ora para seu
pai. Parecia ler em nossas duas faces o primeiro e o último ato do drama da
vida.
Morreu o dia, exalando seu suspiro nos jardins e parques; e o sol se pôs,
cobrindo de amarelo os cumes das montanhas do Líbano. Fares Karame continuava a
relatar
suas histórias; e eu, a cantar as canções da juventude. Sentada à janela, Selma
olhava-nos em silêncio e com melancolia. Não falava, porque sabia que a beleza
se
exprime numa língua celestial mais próxima do silêncio do que das vozes
produzidas pelos lábios - uma língua que congrega todas as melodias humanas e as
transforma
num sentimento mudo, como o mar atrai para suas silenciosas profundezas todos os
rios do mundo.
A beleza é um segredo que nossas almas entendem, e com o qual se regozijam e
se nutrem. Mas nossas mentes olham-na sem a entender e procuram em vão definí-la
em palavras. É um fluido invisível que se move entre as emoções do ser que
admira e do ser admirado. É um raio que emana da alma e ilumina o corpo, como a
vida emana
da semente e dota a flor de cores e perfume. É uma harmonia espontânea entre um
homem e uma mulher que produz aquela inclinação superior a todas as inclinações
-
aquela ternura indefinível que chamamos amor. Teria minha alma sido atraída
assim à alma de
44
Selma naquele entardecer, e, amando-a, passado a vê-la como a mulher mais bela
do mundo? Era eu vítima daquela embriaguez da juventude que produz as vãs e
efêmeras
ilusões? Eram meus sentimentos que me faziam ver a luz nos olhos de Selma e a
doçura nos seus lábios e a beleza no seu corpo - ou eram a sua luz e doçura e
beleza
que abriam meu coração às alegrias e tristezas do amor?
Não sei. Mas sei que naquele entardecer fui invadido por sentimentos que
jamais conhecera antes. Moviam-se em volta do meu coração como as almas devem
ter esvoaçado
por cima dos abismos antes da aurora dos tempos. Daquele sentimento, nasceram
tanto minha felicidade como minha desgraça.
Assim se passou aquela hora que me aproximava de Selma pela primeira vez. E
assim o céu me libertou de repente das cadeias da indecisão e da mocidade e me
levou
a caminhar, um homem livre, na senda do amor. O amor é a única liberdade neste
mundo, porque eleva a alma a alturas além das leis e tradições dos homens e das
necessidades
e imposições da natureza.
Quando me levantei para partir, Fares aproximou-se de mim e disse com
evidente sinceridade: "Agora que conheces o caminho desta casa, deves voltar com
a mesma
confiança com que vais à casa paterna e deves considerar-nos, a Selma e a mim,
como um pai e uma irmã. Não é assim, Selma?"
Selma abanou a cabeça num sinal afirmativo, depois olhou para mim como um
estrangeiro perdido olha para um amigo que acaba de encontrar.
Aquelas palavras de Fares Karame foram a primeira melodia que me atraiu,
juntamente com sua filha, ao templo do amor. Foram os primeiros acordes de uma
canção
divina que acabaria no pranto e no luto. Foram
45
a força que incentivou nossas duas almas a se aproximarem da luz e do fogo.
Foram a taça em que bebemos a doçura e a amargura.
Saí. O pai me acompanhou até os limites do parque. Meu coração batia dentro
de mim como os lábios do sedento tremem ao tocar do copo.
46
***
A chama branca

No mês de abril, estabeleceu-se meu hábito de visitar a residência de Fares


Karame, de encontrar-me com Selma e de me sentar com ela naquele parque.
Contemplava
sua beleza, admirava seus dons, escutava o silêncio de sua melancolia, e sentia
mãos invisíveis me impelirem para ela. Cada visita revelava-me um novo aspecto
de
sua beleza e um novo segredo de sua alma, até que ela se tornou para mim um
livro aberto onde lia cada linha e analisava cada versículo. Deixava-me encantar
com
essa melodia - sem nunca lhe atingir o fim.
A mulher que os deuses cumulam com a dupla beleza do corpo e da alma é uma
verdade ao mesmo tempo evidente e misteriosa. Compreendêmo-la pelo amor e tocâ-
mo-la
com os dedos da pureza. Mas quando procuramos descrevê-la com palavras,
desvanece-se atrás do nevoeiro da hesitação e do equívoco.
Selma Karame era bela de corpo e de alma. Como descrevê-la para quem não a
conheceu? Pode quem está sob as asas da morte evocar o canto do canário, ou o
suspiro
da rosa, ou o lamento do arroio? Pode o prisioneiro
47
encadeado correr atrás dos sopros da aurora? E, contudo, não é o silêncio mais
penoso que o falar? E poderá o respeito impedir-me de tentar esboçar em
palavras,
mesmo
fracas, uma sombra de Selma, já que não posso desenhar sua verdade com fios de
ouro? O faminto perdido no deserto não se recusa a comer o pão seco se o céu não
lhe
manda o maná e o mel.
Ela era delicada de corpo e parecia, nos seus vestidos brancos, um raio de
luar que entra pela janela. Seus movimentos eram lentos e harmoniosos como as
notas
da música de Isfahan; e sua voz, baixa e melodiosa, era cortada pelos suspiros e
se destilava dos seus lábios cor de rosa, como as gotas do orvalho caem das
corolas
das flores quando passa o vento. E sua face - quem poderia descrever a face de
Selma Karame? Com que palavras descrever uma face triste e sossegada, velada e
não
velada por um véu de palidez transparente? E em que língua falar dos traços que
proclamam a cada minuto um dos segredos da alma e lembram aos que os contemplam
um
mundo espiritual muito distante deste mundo?
Na face de Selma Karame, a beleza não obedecia às normas que os homens
determinaram para a beleza. Mas era estranha como um sonho ou como uma aparição,
ou como
um pensamento celestial, impossível de medir ou definir ou apreender ou
reproduzir.
A beleza de Selma não estava no seu cabelo dourado, mas no halo de pureza que
o rodeava. Não estava nos olhos, mas na luz que emanava dos olhos. E não estava
nos lábios, mas na doçura que deles fluía; nem no seu pescoço de mármore, mas na
sua leve inclinação para a frente. A beleza de Selma não estava na perfeição do
seu corpo, mas na nobreza de sua alma, uma chama branca que se elevava da terra
para o infinito. A beleza de Selma vinha da mesma fonte que produz o gênio
poético,
cujos reflexos encontramos nos poemas semíticos
48
e nas pinturas e músicas imortais. E os gênios são sempre infelizes. Não importa
a que alturas suas almas possam elevar-se, elas estão sempre envoltas em
lágrimas.
Selma falava pouco e meditava muito. Mas seu silêncio era melodioso e levava
seus ouvintes para o mundo dos sonhos, onde o homem escuta as batidas de seu
próprio
coração e vê as sombras de seus pensamentos e sentimentos eretas na sua frente.
E sobre ela pairava sempre a melancolia, como um véu invisível que lhe
aumentava a beleza estranha e a tornava mais digna de veneração. As luzes de sua
alma filtravam-se
através deste véu invisível como os contornos de uma árvore em flor são
adivinhados através da neblina da manhã.
A melancolia uniu nossas duas almas com um laço comum. Cada um de nós via no
rosto do outro o que sentia no seu próprio coração, e ouvia na voz do outro os
ecos
dos seus próprios segredos. Como se os deuses tivessem feito de cada um de nós a
metade do outro, sentíamo-nos realizados quando nos reuníamos e perdidos quando
nos separávamos.
A alma triste e sofredora sente conforto quando encontra uma alma irmã, como
o exilado sente conforto ao encontrar outro exilado.
Os corações que as tristezas unem permanecem unidos para sempre. O laço da
tristeza é mais forte que o laço da alegria. E o amor que as lágrimas lavam
torna-se
eternamente puro e belo.
49
***

A tempestade

Diasdepois, Fares Karame convidou-me para jantar na sua casa. Aceitei, a alma
esfomeada por aquele pão sublime que o céu depositou nas mãos de Selma, o pão
místico
com que alimentamos nossos corações sem que possamos jamais satisfazê-los. Pão
mágico de que comeram Qaís, o árabe, e Dante, o italiano, e Safo, a grega, e que
se
transformou em fogo nos seus corações. Um pão amassado pelos deuses com a doçura
dos beijos e a amargura das lágrimas, e que alegra as almas mais sensíveis com
seu
sabor, e as atormenta com a sua força.
Quando cheguei, encontrei Selma sentada num banco de madeira num canto do
parque, a cabeça apoiada num tronco de árvore. Estava vestida de branco e
parecia uma
fada que velasse sobre o lugar. Aproximei-me dela em silêncio e sentei-me ao seu
lado na atitude de um mago respeitoso diante do fogo sagrado.
Quando tentei falar, senti minha língua atada e meus lábios imóveis. Mas
achei consolo no silêncio, pois os sentimentos mais profundos perdem algo da sua
essência
imaterial quando expressos por nossas palavras limitadas.
50
E senti que Selma ouvia, no silêncio, o apelo do meu coração e via nos meus
olhos os contornos da minha alma trêmula.
Momentos depois, Fares Karame veio até nós, dando-me como sempre boas vindas
efusivas e estendendo a mão como para abençoar o laço inarticulado que ligava
minha
alma à alma da sua filha. Depois, disse com um sorriso: "Vamos, meus dois
filhos. O jantar nos espera." Levantamo-nos e seguímo-lo. Selma olhava-me com
meiguice
como se a expressão do seu pai - "meus dois filhos" - despertasse nela um novo
sentimento de doçura que envolvia seu amor por mim, como a mãe envolve o recém-
nascido.
Sentamo-nos à mesa. Comemos, bebemos e conversamos; mas nossas almas
vagueavam inconscientemente num mundo distante, pressentindo os acontecimentos
futuros e
preparando-se para enfrentar seus terrores. Três pessoas, cujos pensamentos
divergem - tanto quanto seus objetivos - mas cujos corações são unidos pela
afeição e
o amor. Três inocentes fracos que muito sentem e pouco sabem, vivendo um drama
que diz respeito a cada um deles. Um homem idoso e respeitável que ama sua filha
e
não quer senão a sua felicidade; uma moça de 20 anos que vê o futuro ao mesmo
tempo próximo e distante e procura adivinhar se ele lhe trará a felicidade ou a
infelicidade;
um jovem, sonhador e imaginativo, que ainda não provou nem o vinho nem o vinagre
da vida e que tenta, apesar de sua fraqueza, abrir as asas para voar no mundo do
amor e do saber. Três, sentados em volta de uma mesa elegante numa casa isolada
na quietude da noite. Dirigem seus olhares ao céu, comem e bebem sem saber que,
no
fundo dos seus pratos e copos, o destino escondeu o fel e o veneno.
51
Mal havíamos terminado de jantar quando uma das empregadas veio avisar a
Fares Karame que, à porta, um homem desejava falar-lhe.
Perguntou Fares Karame: "Quem é ele?" Respondeu a empregada: "Creio, senhor,
que é o emissário do bispo."
Fares Karame imobilizou-se de repente, os olhos fitos na filha, como um
profeta que sonda o futuro à procura dos seus segredos. Depois, mandou a
empregada introduzir
o visitante.
Um homem vestido com um uniforme bordado a ouro, e ostentando um denso bigode
de pontas recurvadas para cima, entrou, inclinou-se, saudou a todos e,
dirigindo-se
a Fares Karame, disse: "Meu senhor o bispo, enviou-me aqui com sua carruagem
particular para pedir-lhe a gentileza de acompanhar-me, pois deseja falar-lhe de
assuntos
importantes."
O rosto de Fares Karame pertubou-se e tornou-se pensativo. Aproximou-se de
mim e disse numa voz cheia de doçura: "Espero encontrar-te aqui quando voltar.
Selma
terá em ti um companheiro que afastará com sua conversa o isolamento e a solidão
da noite."
E, dirigindo-se à filha, perguntou com um sorriso: "Não é mesmo, Selma?"
Selma inclinou a cabeça, e sua face corou levemente, e disse com uma voz
melodiosa como a flauta: "Farei o possível para que nosso hóspede seja feliz."
O velho saiu, acompanhado pelo emissário. Selma permaneceu à janela a
contemplar a estrada, até que a carruagem desapareceu atrás da cortina da noite,
e se desvaneceram
na distância o tremor das rodas e o tropel dos cascos dos cavalos. Sentou-se,
então, defronte de mim, sobre uma poltrona recoberta de seda verde. Parecia um
lis
que os ventos curvaram sobre um tapete de grama.
Assim quis o céu que me encontrasse a sós com Selma, numa casa isolada,
cercada por árvores e envolta no
52
silêncio, e guardada pelas sombras do amor, da inocência e da beleza.
Os minutos se passaram. Nós permanecíamos silenciosos e indecisos, cada um
esperando que o outro falasse primeiro. Mas serão as palavras que produzem o
entendimento
entre almas que se amam? Serão os sons emitidos pelos lábios que aproximam os
corações e as mentes? Não haverá algo mais sublime e mais puro do que as
vibrações
das cordas vocais? Não é o próprio silêncio que leva as emanações de uma alma a
outra alma, e transmite os segredos de um coração a outro coração? Não é graças
à
quietude do silêncio que podemos separar-nos de nós mesmos e pairar nos espaços
ilimitados, até o éter superior, sentindo que nossos corpos nada mais são do que
cárceres estreitos e este mundo, um exílio?
Olhou-me Selma com olhos que traíam os sentimentos de sua alma e disse com
uma calma cheia de magia: "Vamos para o parque sentar-nos entre as árvores e
contemplar
a lua saindo de trás da montanha."
Objetei: "Não é melhor ficarmos aqui, Selma, até que a lua se levante e
ilumine o parque? Agora, a noite esconde as árvores e as flores, e nada
poderemos
enxergar."
Respondeu: "Se a escuridão esconde ao nosso olhar as árvores e as flores, ela
não esconde o amor ao olhar de nossas almas."
Falou num tom estranho, e desviou o olhar para a janela. Permaneci silencioso
a meditar sobre suas palavras, a emprestar um sentido a cada sílaba, e a
procurar
uma verdade em cada sentido. Depois, olhou-me novamente como se lamentasse sua
confissão e procurasse retirar suas palavras do meu ouvido com a magia de seus
olhos.
Mas a magia daqueles olhos não retirou essas palavras do meu ouvido senão para
recolocá-las no fundo do meu coração, onde ficarão gravadas até o fim da vida.
53
Tudo o que é grande e belo neste mundo nasce de um pensamento ou de uma
emoção no interior do homem. Todas as obras dos séculos eram, antes da sua
materialização,
um pensamento invisível na mente de um homem ou um sentimento delicado no
coração de uma mulher... As revoluções sanguinárias que transformaram o mundo e
levaram
os homens a adorar a liberdade como haviam adorado os deuses não eram, na
origem, mais do que um pensamento etéreo que caminhava entre as circunlocuções
do cérebro
de um homem só, vivendo entre milhares de outros. E as guerras dolorosas que
desmantelaram os tronos e destruíram os impérios começaram por ser uma idéia que
vibrava
na mente de um só homem. E os ensinamentos sublimes que mudaram a marcha da
história também eram, na origem, uma mera inclinação poética na alma de um único
homem,
isolado do seu meio pelo seu gênio. Uma só idéia edificou as pirâmides. Um só
sentimento destruiu Tróia. Uma só inspiração criou a glória do Islã. Uma só
palavra
incendiou a biblioteca de Alexandria.
Um só pensamento que nos visita na quietude da noite pode guiar-nos para a
glória ou para a demência. Um só olhar de mulher pode tornar alguém o mais feliz
ou
o mais infeliz dos homens. Uma só palavra pode transformar um pobre em rico ou
um rico em pobre... Uma única palavra pronunciada por Selma Karame naquela noite
serena
me colocou entre meu passado e meu presente, tal um navio entre as profundezas
do mar e do espaço. Uma única palavra despertou-me do sono vazio da mocidade e
me
guiou para os campos do amor onde lutam a vida e a morte.
Fomos ao parque e caminhamos entre as árvores. Sentíamos os dedos da brisa
acariciar nossas faces, e as flores e as plantas dançar em volta de nossos pés.
Perto
do jasmineiro, sentamo-nos sobre um banco de madeira a
54
escutar em silêncio a respiração da natureza adormecida. Nossos suspiros felizes
revelaram o segredo de nossos corações. E os olhos do céu nos acompanhavam
através
do azul do firmamento.
Levantou-se então a lua de detrás da montanha de Sanin e estendeu sua
claridade sobre as colinas e as encostas. As aldeias apareceram nos flancos das
montanhas
como se tivessem surgido do nada. E o Líbano todo era, ao luar prateado, como um
jovem deitado sob um véu transparente que cobre seus músculos sem os esconder.
O Líbano é, para os poetas do Ocidente, um lugar imaginário cuja realidade se
evaporou com o desaparecimento de Davi, Salomão e os Profetas, assim como o
Paraíso
terrestre se evaporara com a queda de Adão e Eva. É uma palavra poética - não o
nome de uma nação. Simboliza um sentimento. Evoca florestas de cedros envoltas
em
perfumes e incenso. Lembra torres de bronze e de mármore marcadas pela glória, e
bandos de gazelas que correm através dos prados. Naquela noite, também eu vi o
Líbano
como um pensamento poético e irreal, como um sonho entre um despertar e outro.
Pois, a nossa maneira de ver as coisas muda com a mudança de nossos sentimentos.
Muitas
vezes as vemos envoltas em sedução e beleza, quando a sedução e a beleza estão
apenas em nós.
A luz da lua iluminava a face de Selma, seu pescoço e seus braços, e ela
parecia uma estátua de marfim esculpida pelos dedos de um devoto de Astarté, a
deusa
da beleza e do amor. Disse-me: "Por que não me contas algo sobre tua vida
passada?"
Olhei para seus olhos brilhantes e, como um mudo que recobra de repente a
palavra, respondi-lhe: "Ainda não me ouviste falar desde que estamos juntos? Não
ouviste
tudo o que já disse desde que chegamos a este parque? Tua alma, que ouve o
sussurro das flores e as canções do
55
silêncio, poderá deixar de ouvir os gritos da minha alma e o apelo do meu
coração?"
Escondeu a face nas mãos e disse numa voz entrecortada: "Ouvi-te... Sim, ouvi
um grito saindo das entranhas da noite e um ruído estrondoso emanando do coração
do dia."
Respondi rapidamente, sem mais pensar nem em meu passado nem em mim mesmo, e
pensando somente em Selma e sentindo somente a sua presença: "Também eu te ouvi,
Selma. Ouvi uma música poderosa, vivificante, que fere e faz vibrar os átomos do
espaço e sacode os alicerces da Terra."
Fechou os olhos, e seus lábios rosados esboçaram um sorriso triste; depois,
murmurou: "Sei agora que existe algo mais elevado que o céu, mais profundo que o
mar,
mais forte que a vida e a morte. Sei agora o que ontem ignorava, mesmo em
sonho."
Desde aquele momento, Selma Karame tornou-se para mim preciosa como uma
amiga, próxima como uma irmã, querida como uma amada. Tornou-se um pensamento
sublime
na minha mente, uma emoção delicada no meu coração, um belo sonho na minha alma.
Como são ignorantes os que imaginam que o amor só nasce de uma longa e
constante convivência. O amor verdadeiro é filho da harmonia espiritual. E esta
harmonia
ou nasce num relâmpago, ou nunca nascerá.
Ergueu Selma a cabeça e olhou para o horizonte distante onde os cumes de
Sanin se encontram com as margens do firmamento, e disse: "Ontem, eras para mim
um irmão
de quem me aproximava tranqüila. Ao teu lado, sentia-me como ao lado de meu pai.
Mas agora, algo mais forte e mais suave do que a relação fraternal se move em
mim:
uma comoção estranha, alheia a toda outra relação, uma comoção forte, terrível,
deliciosa, que me enche o coração de tristeza e alegria misturadas."
56
Respondi: "Este sentimento que tememos não é parte da lei universal que faz
girar a lua ao redor da Terra e a Terra ao redor do sol e o sol e as estrelas ao
redor
de Deus?"
Colocou a mão sobre minha cabeça e deslisou seus dedos no meu cabelo, e seu
rosto estava radiante. E as lágrimas brilharam nos seus olhos, como as gotas do
orvalho
brilham sobre as folhas do narciso, e disse: "Quem acreditaria em nossa
história? Quem acreditaria que, na hora que separa o pôr do sol do nascer da
lua, superamos
todos os obstáculos e atravessamos os espaços que se estendem entre a dúvida e a
certeza? Quem acreditaria que o mesmo abril, que testemunhou nosso primeiro
encontro,
nos viu chegar ao santuário mais sublime da vida?"
Disse essas palavras sem retirar sua mão de sobre minha cabeça inclinada. Se
me tivessem dado a escolher, naquele momento, entre a mão de seda que brincava
com
meu cabelo e os diademas dos reis e os louros da glória, teria certamente
preferido aquela mão.
Depois, respondi e disse: "Os homens não acreditam em nossa história porque
não sabem que o amor é a única flor que brota e cresce sem a ajuda das estações.
Mas
foi mesmo o mês de abril que nos uniu pela primeira vez? E chegamos somente
neste momento ao santuário da vida? Não nos terá unido a mão de Deus antes que o
nascimento
nos submetesse às leis dos dias e das noites? A vida humana, Selma, não começa
no berço e não termina no túmulo. Este vasto espaço, cheio dos raios da lua e
das
estrelas, é povoado de almas unidas no amor e na harmonia."
Selma retirou sua mão delicadamente da minha cabeça, deixando em meu cabelo
ondas elétricas que a brisa da noite tornava mais vibrantes. Tomei aquela mão
nas
minhas mãos como o crente toca o altar, e coloquei-a
57
sobre meus lábios sequiosos, e depositei nela um longo beijo profundo e mudo. E
havia naquele beijo bastante calor para derreter todas as emoções do coração, e
bastante
doçura para despertar toda a pureza de uma alma divina.
Cada minuto que se passou então equivale a um ano de amor e paixão. A
quietude da noite nos contemplava. A claridade da lua nos envolvia. As árvores e
os jasmins
nos cercavam. Quando atingimos aquele êxtase que faz esquecer ao homem tudo o
que não é amor, ouvimos o tropel de cascos e o barulho de uma carruagem que se
aproximava
rapidamente. Despertamos daquela letargia voluptuosa, e descemos do mundo dos
sonhos a este mundo que evolui entre a irresolução e a infelicidade. O pai de
Selma
estava voltando de sua visita ao bispo. Caminhamos entre as árvores ao seu
encontro.
Quando a carruagem entrou no parque, ele desceu e dirigiu-se a nós, a cabeça
inclinada, o passo lento, como um homem esmagado por uma carga pesada. Colocou
as
mãos sobre os ombros de Selma e olhou longamente no seu rosto como se receasse
que seu olhar enfraquecido perdesse a sua imagem. E as lágrimas começaram a
correr
sobre suas faces enrugadas. Seus lábios trêmulos desenharam um sorriso amargo.
Falou numa voz estrangulada, e disse: "Breve, Selma, sairás dos braços de teu
pai
para os braços de outro homem. Breve, a lei de Deus te levará desta casa isolada
para o vasto campo do mundo. E este parque ficará com a saudade dos teus passos.
Teu pai será um estrangeiro para ti. O Destino já se manifestou: que o céu te
abençoe e proteja!"
Ao ouvir essas palavras, Selma mudou de expressão. Seu olhar se tornou fixo
como se tivesse visto o espectro da morte na sua frente. Depois, com um soluço
de
dor, tal um pássaro que o caçador atingiu e que cai ao solo
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tremendo na sua agonia, gritou: "Que estás dizendo? Que queres dizer? Aonde me
queres enviar?"
E fitou-o como para lhe arrancar com os olhos os segredos de seu coração, mas
o pai não respondeu. Após um minuto, entorpecida pelas implicações daquele
silêncio
semelhante ao grito dos túmulos, acrescentou ela, chorando: "Eu compreendo.
Compreendo tudo... O bispo já completou a gaiola que destina a este pássaro de
asas partidas.
É esta a tua vontade, meu pai?"
O pai só respondeu com suspiros, e conduziu-a para dentro de casa. Seus
traços conturbados vertiam sobre ela uma grande ternura. Permaneci de pé sob as
árvores.
A indecisão sacudia meus sentimentos como os ventos sacodem as folhas do outono.
Segui-os ao salão, mas logo após, constrangido, estendi a mão ao pai para me
despedir,
enquanto olhava para Selma como um náufrago exausto olha para uma estrela que
brilha no alto do firmamento. Saí sem que o percebessem. Mal tinha atravessado o
parque,
porém, ouvi o pai me chamando, e vi-o andando na minha direção. Tomou-me pela
mão e disse com voz trêmula: "Perdoa-me, meu filho. Misturei o fim da tua
noitada com
lágrimas. Mas espero que não deixarás de me visitar quando este lugar for
entregue à triste velhice. A mocidade vibrante não se alegra com a velhice
senil, como
a aurora não se encontra com o entardecer. Apesar de tudo, voltarás, não é? Para
me lembrar dos dias da juventude que passei na companhia de teu pai e para me
manter
em contato com a vida, que não mais me considera um dos seus. Deixarás de me
visitar quando Selma não estiver mais aqui, e eu me tornar um solitário nesta
casa afastada?"
Pronunciou as últimas palavras em voz baixa e insegura. Quando peguei a sua
mão e a apertei em silêncio, senti lágrimas quentes cair sobre minha mão.
Estremeceu
minha alma dentro de mim e senti para com esse
59
pai infeliz um sentimento filial ao mesmo tempo suave e triste, que ondulava no
meu coração e escapava em suspiros dos meus lábios e voltava como uma opressão
às
minhas profundezas. Ao notar que suas lágrimas provocavam minhas lágrimas,
inclinou-se e pousou os lábios trêmulos sobre minha fronte e disse, virando o
rosto para
a porta da casa: "Boa noite... Boa noite, meu filho."
Uma só lágrima que brilha no rosto enrugado de um velho é mais comovente do
que todas as lágrimas da juventude.
As lágrimas abundantes dos jovens são o transbordamento dos seus corações
cheios. As lágrimas de um velho são um restante da idade que se escoa pelos
olhos.
São o último sobressalto da vida em corpos enfraquecidos. As lágrimas sobre as
faces dos jovens são como gotas de orvalho sobre as pétalas das rosas. As
lágrimas
sobre as faces dos velhos são como as folhas amareladas do outono que os ventos
arrancam e espalham.
Fares Karame desapareceu atrás da porta. Saí do parque, a voz de Selma
ondulando no meu ouvido, e sua beleza refletida nos meus olhos, enquanto secavam
as lágrimas
de seu pai sobre minhas mãos. Tinha a impressão de ser um novo Adão saindo do
Paraíso Terrestre. Mas a Eva do meu coração não estava ao meu lado para
transformar
este mundo em um novo Éden. Saí com a estranha sensação de que, naquela noite,
tinha nascido de novo e vislumbrado ao mesmo tempo a face da morte.
Assim, o sol traz aos campos com seu calor ora a vida, ora a morte.
Tudo o que o homem faz no segredo da noite acaba sendo exposto à luz do dia.
As palavras murmuradas na solidão tornam-se, por algum mistério insondável,
assunto
de conversação geral. Os atos que procuramos esconder nos recantos da nossa casa
se erguerão amanhã nas esquinas das ruas.
60
Assim, as sombras da noite proclamaram as pretensões que o bispo Bulos Galeb
comunicou a Fares Karame. As ondas do espaço levaram as suas declarações a todos
os bairros da cidade. Atingiram meu ouvido.
Não pediu o bispo Bulos Galeb a visita de Fares Karame naquela noite de luar
para tratar com ele dos problemas dos pobres e dos necessitados, ou dos
sofrimentos
das viúvas e dos órfãos; mas mandou-o vir na sua luxuosa carruagem particular
para pedir-lhe Selma por esposa de seu sobrinho Mansur Bei Galeb.
Fares Karame era um homem rico, e não tinha outro herdeiro além de Selma. O
bispo a escolheu para noiva do seu sobrinho não pela beleza do seu rosto e a
nobreza
da sua alma, mas porque era rica e podia assegurar com seus milhões e suas
vastas propriedades o futuro de Mansur Bei, e ajudá-lo a conquistar um lugar de
destaque
junto à aristocracia.
Aos chefes religiosos no Oriente não basta o que eles mesmos recebem em
privilégios e supremacia. Tratam também de colocar seus parentes em postos
elevados para
oprimir e explorar o povo. A glória do Emir transmite-se após a sua morte por
herança a seu filho maior Mas a glória do chefe religioso transmite-se por
contágio
durante a sua vida a seus irmãos e sobrinhos. Assim, o bispo cristão e o imame
muçulmano e o sacerdote brahmanita tornam-se polvos que atacam a sua presa com
muitos
tentáculos e sugam seu sangue com muitas bocas.
Quando o bispo Bulos Galeb pediu a mão de Selma a seu pai, este só respondeu
pelo silêncio e as lágrimas. E que pai não se sente infeliz quando se separa de
sua
filha, estivesse ela indo para a casa dos vizinhos ou para o palácio de um rei?
Que homem não estremece quando a lei da natureza o separa da filha que ele
embalou
quando pequena e educou quando menina e
61
acompanhou quando mulher? A tristeza dos pais pelo casamento da filha é igual à
sua alegria pelo casamento do filho, pois este traz à família mais um membro,
enquanto
aquele a priva de um membro.
O Xeque atendeu ao pedido do bispo, forçado, e se curvou perante a sua
vontade, apesar da sua oposição íntima. Pois ele conhecia Mansur Bei; conhecia
sua aspereza,
sua ganância e sua vileza. Mas que cristão pode opor-se a um bispo no Oriente e
continuar a ser incluído entre os crentes? Que oriental pode desobedecer ao seu
chefe
religioso e continuar a gozar de respeito entre os homens? Opor-se-á o olho a
uma lança sem ser vasado, ou opor-se-á a mão a uma espada sem ser cortada?
Supondo
que aquele velho venerável pudesse desobedecer ao bispo e opor-se à sua
ganância, ficaria a reputação da sua filha ao abrigo das dúvidas e dos rumores?
E permaneceria
seu nome puro ao abrigo da lama? Não são verdes todas as uvas fora do alcance,
ao dizer das raposas?
Assim, o destino se apoderou de Selma Karame e a acrescentou, escrava
humilhada, ao cortejo das infelizes mulheres do Oriente. Assim, caiu aquela alma
nobre na
armadilha, enquanto voava pela primeira vez com as asas do amor puro num espaço
iluminado pelo luar e perfumado pelas flores.
Na maioria dos casos, as riquezas do pai são a causa da infelicidade dos
filhos. Aqueles cofres espaçosos que a atividade do pai e a poupança da mãe
enchem de
ouro viram prisões estreitas e escuras que encerram as almas dos herdeiros. E
esse deus poderoso que os homens adoram sob o nome de cifrão torna-se um demônio
terrível
que atormenta as almas e mata os corações. E Selma Karame foi, como tantas
outras, vítima da riqueza do pai e da ambição do marido. Se Fares
62
Karame não fosse um homem rico, Selma estaria ainda viva, gozando, como nós, da
luz do sol.
Uma semana se passou. Meu amor por Selma deitava-se comigo à noite, cantando
as canções da felicidade, e acordava-me na aurora para me falar do sentido da
vida
e dos segredos do coração. Era um amor sublime, rico demais para conhecer o
ciúme, e espiritual demais para atormentar o corpo. E era uma inclinação
irresistível
que cumula a alma, e uma fome profunda que satisfaz o coração com a sua própria
privação. Era um sentimento que cria o desejo, mas não o inflama; e uma sedução
que
faz ver só felicidade na terra e pinta a vida como um sonho lindo. Pela manhã,
eu percorria os campos e via no despertar da natureza o símbolo da imortalidade.
Sentava-me
à margem do mar e ouvia nas suas ondas as canções da eternidade. Andava nas ruas
da cidade e descobria nas faces dos transeuntes e nos gestos dos trabalhadores a
beleza da vida e o esplendor do progresso.
Assim os dias se foram como sombras e se desvaneceram como neblina. Deles
nada me resta senão a dolorosa lembrança. Hoje, esses olhos com que via a beleza
da
primavera e o despertar dos campos não mais enxergam senão a cólera das
tempestades e o desespero do inverno. E esse ouvido com que ouvia a canção das
ondas não
me transmite mais senão as lamentações das profundidades e o ulular do abismo. E
a alma que contemplava respeitosamente o trabalho dos homens e a glória do
progresso
não mais sente senão a desgraça da pobreza e a infelicidade dos decaídos. Como
são belos os dias de amor! Como seus sonhos são suaves! E como são amargas as
noites
de tristeza, e numerosos os seus receios!
No fim da semana, a alma embriagada pelos seus próprios sentimentos, dirigi-
me, de noite, à casa de
Selma
63
Karame, àquele templo que a beleza ergueu e o amor santificou. No parque
tranqüilo, senti uma força apoderar-se de mim e afastar-me deste mundo para um
mundo
misterioso, livre da luta e do esforço. E como um sufi que o céu atraiu aos
campos da visão, achei-me andando entre aquelas árvores e flores entrelaçadas.
De repente,
vi Selma sentada sobre aquele banco, à sombra do jasmim onde nos havíamos
sentado a semana anterior, naquela noite que os deuses escolheram como início da
minha
dupla felicidade e desgraça. Aproximei-me de Selma em silêncio. Não se mexeu nem
falou, como se tivesse previsto minha chegada. Quando me sentei ao seu lado,
olhou
nos meus olhos e gemeu. Depois, fixou o horizonte distante onde se misturam o
fim do dia e o começo da noite. Após um momento cheio daquela tranqüilidade
mágica
que une nossas almas ao cortejo das almas impalpáveis, virou-se para mim, tomou
minha mão na sua mão gelada, e com uma voz similar aos gemidos de um faminto que
mal pode falar, disse:
- Olha para meu rosto, meu amigo. Examina-o longamente e lê nele tudo o que
desejas saber dos meus sentimentos. Olha bem, meu amado.
Olhei. Seus olhos que, havia poucos dias, sorriam como lábios e se moviam
como as asas do rouxinol, estavam agora recuados nas suas órbitas e parados.
Manifestavam
sinais de dor física e moral. O rosto, que ontem era como as pétalas do lírio e
os beijos do sol, parecia agora pálido e murcho, e velado pelo desespero. Os
lábios,
que antes vertiam a doçura como a flor da margarida, se haviam ressequido e
pareciam duas rosas definhadas que o outono esquecera na ponta de um ramo. O
pescoço,
que costumava elevar-se como uma coluna de marfim, estava agora inclinado para a
frente
64
como se não pudesse mais sustentar tudo o que se passava na mente.
Vi todas essas modificações dolorosas nos traços de Selma. Mas não me
pareceram mais do que uma nuvem leve que recobre a lua e aumenta seu fascínio.
As alterações
provocadas pelos segredos do Eu interior dotam o rosto de maior beleza e
sedução, não importa quão dolorosos esses segredos. Os rostos que não falam, no
seu silêncio,
dos segredos da alma e de seus mistérios, não podem ser belos, mesmo quando
perfeitos de linhas e harmonia. As taças não atraem nossos lábios senão quando o
seu
cristal revela a cor do vinho. Selma Karame estava naquele entardecer como uma
taça transbordante de um vinho celestial, no qual se misturavam a amargura da
vida
e a doçura da alma. Simbolizava, sem o saber, a vida da mulher oriental que não
deixa o amado lar paterno senão para oferecer o pescoço ao jugo intolerante do
marido,
- e não deixa os braços afetuosos da mãe senão para viver sob a dura dominação
da sogra.
Continuei a contemplar o rosto de Selma e a escutar seus suspiros,
silencioso, pensativo, comovido, pesaroso. Sentia como se o tempo tivesse parado
e a existência
se tivesse escondido ou desaparecido. Não mais via senão dois olhos grandes
fitando minhas profundezas. E havia somente aquela mão fria e trêmula apertando
minha
mão.
Não despertei deste êxtase senão quando ouvi Selma dizer com calma: "Vamos
conversar agora, meu amigo. Tentemos imaginar o futuro antes que ele nos agrida
com
seus terrores. Meu pai foi à casa do homem que será meu companheiro até a morte.
O homem que o céu escolheu para ser o autor da minha vida foi encontrar-se com
o homem que a terra escolheu para ser o senhor dos meus dias futuros. No coração
desta cidade, o
65
homem idoso que acompanhou minha mocidade reúne-se com o jovem que acompanhará o
que me resta de anos. Nesta noite, o pai e o noivo escolherão a data do
casamento,
que será próximo demais, não importa quão distante. Como esta hora é estranha e
cheia de emoções! Numa noite como esta, há apenas uma semana, à sombra deste
mesmo
jasmim, o amor envolveu minha alma pela primeira vez, enquanto o destino
escrevia, na residência do bispo Bulos Galeb, a primeira linha da história do
meu futuro.
Nesta hora, enquanto meu pai e meu noivo se sentam para tecer a coroa do meu
casamento, vejo-te sentado ao meu lado e sinto tua alma esvoaçando em volta de
mim como
um pássaro sedento esvoaça sobre uma fonte guardada por uma serpente faminta.
Como esta noite é imensa, e quão profundos os seus segredos!"
Respondi-lhe, imaginando o desespero como uma sombra negra que agarra o
pescoço de nosso amor para matá-lo no nascedouro: "Este pássaro continuará a
sobrevoar
a fonte até que morra de sede ou que a serpente terrível se apodere dele e o
devore."
Respondeu, comovida, numa voz que tremia como as cordas da harpa: "Não, não,
meu amigo. Que esse pássaro continue a viver e a cantar até o fim da noite, até
o
fim da primavera, até o fim do tempo. Não o silencies porque sua voz me dá
alento; não quebres suas asas porque seu esvoaçar dissipa o nevoeiro do meu
coração."
Murmurei: "A sede o mata, Selma, e o medo lhe tira a vida."
Respondeu com palavras que saíam precipitadamente de seus lábios em agonia:
"A sede da alma é mais sublime que a satisfação da matéria, e o medo da alma é
preferível
à tranqüilidade do corpo... Mas escuta, meu amigo. Escuta bem. Estou agora no
limiar de uma
66
vida nova de que nada sei. Sou como uma cega que apalpa as paredes para não
cair, ou como uma escrava que o dinheiro do pai levou ao mercado, e lá um homem
qualquer
me comprou. Não amo esse homem porque não o conheço. Mas procurarei aprender a
amá-lo. Obedecer-lhe-ei e servi-lo-ei e o tornarei feliz. Oferecer-lhe-ei tudo
o que a mulher fraca pode oferecer ao homem forte. Mas tu estás ainda na
juventude da vida. A tua existência é uma estrada larga, ladeada de flores.
Sairás à conquista
do mundo, guiado por esse teu coração, que é uma tocha ardente. Pensarás
livremente, e falarás e agirás livremente. Marcarás a vida com teu nome porque
és homem.
Viverás feliz porque teu pai não possui riquezas que te escravizem, nem te
levarão ao mercado onde as filhas são vendidas e compradas. Casar-te-ás com a
moça de
tua escolha e abrir-lhe-ás o teu coração antes de lhe abrir a tua casa, e
partilharás com ela os teus pensamentos antes de partilhar com ela os teus dias
e noites."
Calou-se um momento, depois acrescentou com uma voz entrecortada: "Será assim
que os caminhos da vida nos separarão para levar-te às glórias destinadas ao
homem
e me levar aos sacrifícios destinados à mulher? Assim morrerá o belo sonho e se
evaporará a doce realidade? Assim o abismo engolirá o canto do rouxinol e os
ventos
desfolharão as pétalas da rosa e os pés pisotearão a taça de vinho? Terá sido,
pois, em vão que contemplamos juntos, naquela noite, a lua cheia? Em vão nos
terá
o espírito unido à sombra daquele jasmim? Será que nos apressamos demais em
subir para as estrelas, e nossas asas se terão cansado, e acabamos caindo no
abismo?
Será que surpreendemos o amor no seu sono, e ele despertou irado e vingou-se de
nós? Ou provocamos a brisa da noite, e ela se transformou em furacão que nos
dilacera
e empurra como poeira para o
67
fundo do vale? Não desobedecemos a lei alguma, nem tocamos nenhum fruto
proibido. Por que estamos sendo expulsos do Paraíso? Não conspiramos, e não nos
rebelamos.
Por que desceremos ao inferno? Não, não, e mil vezes não! Os minutos que nos
uniram são mais poderosos que os séculos. E a luz que iluminou nossas almas é
mais forte
que as trevas. Se a tempestade nos separa neste mar encolerizado, a maré alta
nos juntará naquela praia tranqüila; e se a vida nos matar, a morte nos
ressuscitará.
"O coração da mulher não muda com o tempo e não se transforma com as
estações. Agoniza longamente, mas não morre. O coração da mulher é semelhante
aos campos
onde os homens travam suas guerras e, perpetram suas matanças. Arrancam-lhes as
árvores, queimam-lhes a grama, mancham-lhes as pedras de sangue, plantam ossos e
crânios no seu solo. Mas eles permanecem tranqüilos e pacíficos e, neles, a
primavera continua a ser primavera... Agora, tudo está consumado. Que faremos?
Dize-me:
que faremos? Como nos separaremos? E quando nos reencontraremos? Consideraremos
o amor um hóspede estranho que veio com o entardecer e se foi com a aurora?
Consideraremos
este sentimento interior uma ilusão que o sono materializou e o despertar
dissipou? Consideraremos esta semana como uma hora de embriaguez que não
resistiu à volta
da lucidez? Levanta a cabeça para que veja teus olhos, meu amado. Abre os lábios
para que ouça tua voz. Fala. Canta. Conversa. Lembrar-te-ás da tempestade que
afundou
o barco dos nossos dias? Ouvirás o roçar de minhas asas na quietude da noite?
Sentirás meu hálito se mover sobre tua face e teu pescoço? Ouvirás meus gemidos
acompanhando
o movimento da minha respiração? E verás minha sombra chegando com as sombras da
noite, e evaporando-se com a neblina da aurora?
68
Dize-me, meu amado, o que serás para mim depois de ter sido uma luz nos meus
olhos e uma melodia no meu ouvido e asas para minha alma - o que serás?"
Respondi com uma dor que subia do coração aos olhos: "Serei o que quiseres
que eu seja."
Retrucou: "Quero que me ames. Quero que me ames até o último dos meus dias.
Quero que me ames como o poeta ama sua melancolia. Quero que te lembres de mim
como
o viajante se lembra de uma fonte cristalina onde viu sua face refletida antes
mesmo de beber. Quero que te lembres de mim como a mãe se lembra de um filho
morto
antes de nascer. Quero que te lembres de mim como o rei se lembra de um
prisioneiro que morreu antes que chegasse sua ordem de libertá-lo. Quero que
visites meu
pai na sua solidão e o consoles no seu isolamento, pois breve deixá-lo-ei e
serei uma estrangeira para ele."
Respondi: "Farei tudo isto, Selma. Farei de minha alma um invólucro para tua
alma, e do meu coração uma morada para tua beleza, e do meu peito um túmulo para
tuas tristezas. Amar-te-ei como os campos amam a primavera. Viverei por ti como
as flores vivem do calor do sol. Cantarei teu nome como os vales repetem o eco
dos
sinos. Estarei atento aos sussurros de tua alma como as praias estão atentas às
confidências das ondas... Lembrar-me-ei de ti como o estrangeiro abandonado
lembra
sua terra amada, e o mendigo faminto, as comidas saborosas, e o rei destronado,
os seus dias de glória, e o prisioneiro melancólico, a sua liberdade. Pensarei
em
ti como o agricultor pensa nos feixes de espigas espalhadas nas eiras, e o bom
pastor, nos prados verdes e nas fontes cristalinas."
Enquanto eu falava, Selma fitava as trevas da noite e suspirava, e as batidas
de seu coração andavam ora
depressa
69
e ora devagar, como as ondas do mar sobem e descem. Depois, disse: "Amanhã, a
realidade será uma sombra, e o despertar, um sonho. Poderá o apaixonado
satisfazer-se
com o enlaçar da sombra e o sedento, com as fontes da quimera?"
Respondi-lhe, dizendo: "Amanhã, o destino te conduzirá ao seio da família
onde encontrarás conforto e paz, e me conduzirá à arena da vida onde encontrarei
as
lutas e os problemas. Irás para a casa de um homem que receberá a felicidade de
tua beleza e virtude. Eu entrarei em dias cheios do desconhecido
que me atormentarão com suas tristezas e fantasmas. Tu iras para a vida; e eu,
para a luta. Tu, para a sociedade e os divertimentos; eu, para a solidão e o
isolamento.
Mas, no vale
das sombras da morte, erguerei uma estátua ao amor, e a adorarei. Adotarei o
amor por companheiro e o escutarei cantando, e o beberei como vinho, e o usarei
como
vestimenta. Na aurora, o amor me acordará e me conduzirá aos prados distantes.
Ao meio dia, conduzir-me-á à sombra das árvores onde me protegerei do sol como
os
pássaros. Ao entardecer, conduzir-me-á ao poente, onde ouvirei a melodia da
natureza despedindo-se da luz, e contemplarei as sombras da quietude adejando no
espaço.
A noite, o amor abraçar-me-á, e sonharei com os mundos superiores onde moram as
almas dos enamorados e dos poetas.
"Na primavera, andarei com o amor, lado a lado, e cantaremos juntos entre as
colinas; e seguiremos as pegadas da vida, que são as violetas e as margaridas; e
beberemos a água da chuva, acumulada nos poços, em taças feitas de narciso e
lírios. No verão, deitar-me-ei ao lado do amor sobre camas feitas com feixes de
espigas,
tendo o firmamento por cobertor e a lua e as estrelas por companheiras. No
outono, irei com o amor aos
vinhedos
70
e nos sentaremos no lagar, e contemplaremos as árvores se despindo das suas
vestimentas douradas e os bandos de aves migratórias voando para as costas do
mar.
No inverno, sentar-me-ei com o amor diante da lareira e conversaremos sobre os
acontecimentos dos séculos e os anais das nações e dos povos. O amor será meu
tutor
na juventude, meu apoio na maturidade, e meu consolo na velhice. O amor
permanecerá comigo até o fim da vida, até que a morte chegue, e a mão de Deus
nos reúna de
novo."
As palavras subiam rapidamente das profundezas da minha alma como se fossem
chamas que cresciam e cintilavam e se espalhavam e morriam nos cantos daquele
parque.
Selma ouvia. E suas lágrimas caiam como se seus olhos fossem lábios que me
respondiam com lágrimas em vez de palavras.
Os que o amor não dotou com asas não podem voar para além das nuvens e ver
aquele mundo mágico que minha alma e a alma de Selma percorreram naquela hora,
dolorosa
nas suas alegrias e alegre nas suas dores. Os que o amor não escolheu por
adeptos não ouvem quando o amor fala. Esta narração não foi escrita para eles.
Pois mesmo
que compreendam o sentido destas páginas, não podem enxergar as sombras que se
movem entre suas linhas e que não se revestem de tinta nem moram nas palavras.
Mas,
que humano não bebeu do vinho do amor, numa ou noutra das suas taças? Que alma
não se pôs de pé com respeito naquele templo luminoso, repleto de corações
apertados
como os grãos numa romã, e cujo teto é feito de segredos e sonhos e emoções? Em
que flor a aurora não verteu uma gota de orvalho? E que rio se desencaminha e
não
chega ao mar?
Selma ergueu a cabeça para o céu pontilhado de estrelas e estendeu os braços,
e seus olhos se alargaram e seus
71
lábios tremeram. E sobre seu rosto pálido, apareceram as queixas e o desespero
da mulher oprimida.
Depois, gritou: "Que fez a mulher, ó Deus, que lhe merecesse Vossa ira? Que
crimes cometeu para que Vossa cólera a persiga? Praticou algum delito infinito
no
seu horror para que Vossa vingança contra ela seja também infinita? Sois
poderoso, ó Deus, e ela é fraca; por que a destruís com sofrimentos? Sois
glorioso, e ela
rasteja em volta de Vosso trono; por que a esmagais sob Vossos pés? Sois uma
tempestade violenta, e ela é como a poeira diante de Vossa face; por que a
dispersais
sobre a neve? Sois todo-poderoso, e ela é humilde; por que a perseguis? Sois
omnisciente, e ela é perdida e cega; por que a destruís? Vós a criais pelo amor;
como
podeis aniquilá-la pelo amor? Vossa mão direita a eleva até Vós, e Vossa mão
esquerda a empurra ao abismo; e ela não sabe, na sua ignorância, porque a
elevais e
porque a rejeitais. Na sua boca, soprais o sopro da vida; e no seu coração,
lançais as sementes da morte. Vós a mandais percorrer a pé o caminho da
felicidade; depois,
mandais a infelicidade a cavalo para caçá-la. Na sua garganta, soprais uma
canção de alegria; depois, selais seus lábios com o sofrimento, e atais sua
língua com
a melancolia.
"Com Vossos dedos invisíveis, recobris seus prazeres com dores; e com Vossos
dedos visíveis, desenhais círculos de dores em volta de seus prazeres. No seu
leito,
estendeis o repouso e a segurança; e, perto dele, implantais os temores e as
provações. Por Vossa vontade, dais vida às suas inclinações; e dessas mesmas
inclinações,
permitis que nasçam seus defeitos e seus pecados. Por Vossa vontade, mostrais-
lhe as belezas de Vossas criaturas; e por Vossa vontade, seu amor ao belo torna-
se
uma fome destruidora. Por Vossa lei, ligais sua alma pelo matrimônio a um belo
corpo, e por Vossa vontade ligais seu corpo à fraqueza e à vergonha. Ofereceis-
lhe
a vida na taça da
72
morte, e a morte na taça da vida. Purificais-lhe a alma pelas lágrimas; e por
essas mesmas lágrimas, a diluís. Alimentais seu estômago com o pão do homem; e
depois,
encheis as mãos do homem com os grãos de seu coração.
"Vós, ó Deus, abristes meus olhos pelo amor; e pelo amor, tornastes-me cega.
Destes-me um beijo dos Vossos lábios; mas com a Vossa mão forte, me
esbofeteastes.
Plantastes em meu coração uma roseira branca; mas em volta dela, fizestes
crescer os espinheiros. Unistes minha alma a um jovem que amo e meu corpo a um
homem que
não conheço. Encadeastes meus dias. Ajudai-me, pois, a ser forte nesta luta
mortal e ajudai-me a permanecer fiel e pura até a morte... Que Vossa vontade
seja feita,
ó Deus. E que Vosso nome seja santificado para sempre."
Calou-se Selma, mas seus traços continuavam a falar. Inclinou, depois, a
cabeça e deixou cair os braços. E todo seu corpo se abateu como se a vida o
tivesse abandonado.
Parecia um ramo que a tempestade quebrara e jogara ao chão para secar e ser
destruído sob os pés do destino. Tomei sua mão gelada na minha mão em fogo e
beijei seus
dedos com meus olhos e meus lábios. Mas quando procurei consolá-la com palavras,
achei-me mais necessitado de consolo do que ela. Calei-me, indeciso e pensativo.
Sentia os minutos brincarem com meus sentimentos; ouvia os gemidos do meu
coração; e tinha medo de mim mesmo.
Nenhum de nós pronunciou uma palavra no resto daquela noite porque a aflição,
quando se torna forte, torna-se muda. Permanecemos imóveis como duas colunas de
mármore que um terremoto fincou na terra. Nenhum de nós queria que o outro
falasse, pois os fios de nossos corações tornaram-se muito fracos, e até um
gemido sem
palavras poderia rompê-los.
A meia-noite, a lua minguante saiu de detrás de Sanin e apareceu entre as
estrelas como a face amarela de
73
um defunto, afundada entre almofadas pretas e cercada de velas trêmulas. O
Líbano era como um velho curvado pelos anos e os lutos, cujos olhos o sono
abandonara,
e que espera a aurora como um rei destronado, en meio às cinzas do seu trono e
às ruínas de seu palácio. As montanhas e as árvores e os rios mudam de aspecto
conforme
as circunstâncias e as épocas. Similarmente, os traços do homem mudam com seus
pensamentos e sentimentos.
O álamo que, de dia, se ergue tal uma linda noiva cujos vestidos são
acariciados pela brisa, parece, à noite, uma coluna de fumaça que se eleva para
o nada. A
rocha senta-se ao meio-dia como um gigante poderoso que se ri dos elementos;
mas, à noite, é como um mendigo infeliz que dorme no chão e se cobre com o
espaço. O
arroio que vemos pela manhã serpenteando, brilhante como prata fundida, e que
ouvimos cantando as melodias da eternidade, nos aparece, à noite, como uma
torrente
de lágrimas entre as entranhas do vale; e ouvimo-lo chorar e lamentar-se como
uma mãe que acaba de perder o filho. O Líbano que nos aparecera, na semana
anterior,
quando a lua estava cheia e a alma feliz, todo revestido de glória e de
prestígio, parecia, nesta noite triste, exausto e solitário.
Levantâmo-nos para nos despedir. Entre nós, erguiam-se o amor e o desespero
como dois fantasmas terríveis: aquele estendendo suas asas sobre nossas cabeças,
e este agarrando nossos pescoços com suas unhas. Aquele chorava, terrificado;
este ria, sarcástico. Quando tomei a mão de Selma e a levei aos meus lábios como
uma
bênção, ela se aproximou de mim e tocou meu cabelo. Depois, recuou e se jogou
sobre o banco de madeira e murmurou lentamente, com os olhos fechados: "Apiedai-
Vos,
ó Deus, e dai força a todas as asas partidas."
74
Separei-me de Selma e saí andando daquele parque. Um véu espesso cobria meus
sentidos como a neblina cobre o lago. E as sombras das árvores, dos dois lados
da
estrada, se moviam também como se fossem fantasmas surgidos da terra para me
amedrontar. Os fracos raios da lua tremiam entre os
ramos como lanças finas, arremessadas pelos espíritos do espaço contra meu
peito. O silêncio profundo que me cobria parecia uma mortalha estendida pelas
trevas sobre
meu corpo.
Todas as coisas existentes e todo o sentido da vida e todos os segredos da
alma tornaram-se insuportáveis e
medonhos. A luz imaterial que me havia mostrado a beleza do mundo e o esplendor
das criaturas virou um fogo que queimava meu coração com suas chamas e
obscurecia
minha alma com sua fumaça. E a melodia que juntara as vozes das criaturas e as
transformara em canções celestiais tornou-se, naquela hora, um rumor mais
terrível
que o rugido dos leões e mais profundo que
o grito do abismo.
Chegando a meu quarto, atirei-me sobre minha cama como um pássaro atingido no
coração pelo caçador. Disputavam-me um sono perturbado e um despertar doloroso,
e minha alma repetia nos dois casos as palavras de Selma: "Apiedai-Vos, ó Peus,
e dai forças a todas as asas partidas."
75
Contemplava-me, rememorando o passado. Eu o escutava, sonhando com o futuro.
Olhava para mim como os ramos de uma árvore gigante, cheia de anos, se estendem
por
sobre um arbusto novo em que a seiva e a vitalidade, embora abundantes, ainda
precisam ser acordadas, - uma árvore idosa, bem enraizada, que já conheceu as
primaveras
e os invernos da vida e sabe como receber as tempestades; e um arbusto fraco e
tenro que só conheceu a primavera e só foi embalado pelo zéfiro da aurora.

***
o trono da morte

O matrimônio em nossos dias é um comércio que faz rir e chorar, pois está nas
mãos dos rapazes e nas mãos dos pais das moças. Na maioria dos casos, os rapazes
ganham. Os pais das moças perdem sempre. Quanto às
moças, que passam de um lar para outro como móveis, sua vitalidade fenece e,
como os móveis velhos, acabam sendo postas nos cantos das casas, vítimas da
escuridão
e de uma lenta destruição.
A civilização atual, ainda dominada pela ganância do homem, desenvolveu um
pouco a percepção da mulher, mas aumentou muito suas dores. Ontem, a mulher era
uma
serva feliz; hoje, é uma senhora infeliz. Ontem, era uma cega que andava à luz
do dia; hoje, tem visão, mas anda nas trevas da noite. Ontem, era bela na sua
ignorância,
virtuosa na sua ingenuidade, forte na sua fraqueza; hoje, tornou-se feia na sua
sofisticação, superficial nos seus conhecimentos, distante do coração pelas suas
pretensões. Virá um dia em que a mulher reunirá a beleza e o conhecimento, a
arte e a virtude, a fraqueza do corpo e a força da alma?
78
Sou dos que dizem que a ascensão espiritual é uma das leis da humanidade, e a
aproximação da perfeição, uma tendência lenta, mas real. Se a mulher progrediu
em
certas coisas e regrediu em outras, é porque os obstáculos que nos impedem de
atingir o cume incluem os antros dos saltimbancos e as covas dos lobos. Nesta
nação
que vive uma época similar à letargia que precede o despertar, nesta nação
estranha pelas suas inclinações e aspirações, onde se amontoam o pó das gerações
passadas
e as sementes das gerações futuras, cada cidade possui uma mulher que simboliza
a filha do amanhã. Selma Karame era em Beirute o símbolo da mulher oriental do
amanhã.
Mas, como muitos que vivem antes do seu tempo, foi vítima do seu tempo; e como
uma flor que a correnteza do rio arrancou, foi levada apesar de si mesma pelo
cortejo
da vida para a infelicidade.
Mansur Bei Galeb desposou Selma; e instalaram-se juntos numa casa luxuosa à
beira do mar, em Ras Beirute, onde moram os homens mais ricos e mais influentes.
Fares
Karame permaneceu naquela casa isolada, no meio dos parques e dos jardins, tal
um pastor no meio de seu rebanho. E os dias de festa e as noites de alegria
passaram,
e a lua que os homens chamam de mel também se foi, seguida por luas de vinagre e
fel, como as glórias das guerras deixam as caveiras nos campos longínquos.
O esplendor dos casamentos orientais leva as almas dos jovens para além das
nuvens, como águias, e depois as lançam ao chão com a força da pedra de debulhar
caindo
no mar. Como pegadas impressas na areia da praia, as ondas logo as apagam.
A primavera se foi, e depois o verão. E chegou o outono. Meu amor por Selma
evoluia da paixão de um jovem no amanhecer da vida por uma bela mulher, para
aquela
adoração muda que o pequeno órfão sente pela alma
79
da sua mãe morando na eternidade. O afeto que dominava meu ser transformou-se
numa melancolia cega que não vê mais o mundo, mas se vê apenas a si mesma; e o
amor
que tirara lágrimas dos meus olhos tornou-se idolatria que tirava gotas de
sangue de meu coração; e o gemido de saudade que havia repercutido em mim
tornou-se uma
prece profunda que minha alma elevava no silêncio, pedindo felicidade para
Selma, e contentamento para seu marido e paz para seu pai. Mas em vão sofria eu
e solicitava
e orava, porque a infelicidade de Selma era um mal que fazia parte da sua alma.
Somente a morte podia curá-la.
Quanto a seu marido, era um desses homens que conseguem sem esforço tudo o
que torna a vida confortável, mas nunca se satisfazem e cobiçam sempre o que não
lhes
pertence, atormentados por sua ganância até o fim da vida.
Em vão também desejava eu a paz para Fares Karame, porque seu genro mal
recebeu a mão e o dote de Selma e já a havia esquecido e abandonado. Desejava,
antes,
a sua morte, a fim de se apoderar do restante da sua fortuna.
Era Mansur Bei igual ao seu tio, o bispo Bulos Galeb. Tinha o mesmo caráter,
e sua alma era a miniatura da alma do tio. Uma única diferença os separava: a
diferença
que existe entre a hipocrisia e a vileza. O bispo chegava às suas pretensões,
escondido sob suas roupas episcopais vermelhas, e satisfazia suas ambições,
protegido
pela cruz que lhe pendia sobre o peito. Seu sobrinho fazia, ao contrário, tudo
isto aberta e cinicamente. O bispo ia à igreja pela manhã e passava o resto do
dia
extorquindo dinheiro das viúvas, dos órfãos e dos simplórios; Mansur Bei passava
o dia todo satisfazendo suas paixões naquelas ruas escuras onde o ar é saturado
do hálito do vício.
80
O bispo levantava-se todos os domingos na igreja e pregava aos fiéis o que
ele próprio nunca praticava, e passava os dias da semana intrigando na vida
política
do país. Seu sobrinho passava todos os seus dias explorando a influência do tio
junto aos candidatos a empregos e caçadores de honrarias. O bispo era um ladrão
que
caminhava escondido sob o manto da noite; Mansur Bei era um vigarista que
caminhava audaciosamente à luz do dia.
Assim periclitam os povos entre os ladrões e os escroques, como os rebanhos
são devastados pelas garras dos lobos e os facões dos açougueiros. Assim as
nações
orientais se submetem a líderes de almas tortuosas e caráter pernicioso, e
acabam derrotadas. O destino passa, então, por cima delas e as esmaga sob seus
pés como
os martelos dos ferreiros esmagam vasos de argila.
Mas por que estou enchendo estas páginas com considerações sobre povos
desgraçados e desesperados em vez de consagrá-las, como queria, a narrar a
história de
uma mulher infeliz e a descrever os sonhos de um coração ferido que o amor, mal
o havendo tocado com suas alegrias, já o esbofeteava com suas dores... Por que
as
lágrimas enchem meus olhos à menção de povos decadentes e oprimidos, quando
queria reservar minhas lágrimas para chorar a sorte de uma mulher frágil que a
morte
arrancou à vida no primeiro dia da primavera? Contudo, não é a mulher fraca o
símbolo da nação oprimida? Não é a mulher, crucificada entre as aspirações de
sua alma
e as cadeias de seu corpo, similar à nação crucificada entre seus governantes e
seus sacerdotes? Não são os sentimentos secretos que levam uma linda jovem às
trevas
do túmulo iguais às tempestades violentas que cobrem a vida dos povos com o pó
da terra? A mulher é para a nação como a luz é para a lâmpada. Quando a luz da
lâmpada
está fraca, não é porque lhe falta o óleo?
81
Os dias de outono se foram e os ventos desnudaram as árvores, brincando com
suas folhas amarelas, como as ondas brincam com a espuma do mar. E chegou o
inverno
com seu pranto e suas lamentações...
Estava eu em Beirute sem outro companheiro além dos meus sonhos - que ora
elevavam minha alma até as estrelas, ora precipitavam meu coração até o ventre
da terra.
A alma melancólica encontra repouso na solidão e no isolamento. Afasta-se do
mundo como a gazela ferida se afasta de seu bando e se esconde na sua gruta até
que
se cure ou morra.
Um dia, vim a saber que Fares Karame estava doente. Abandonei minha solidão e
fui visitá-lo, passando num caminho solitário entre as oliveiras, cujas folhas
cor
de chumbo cintilavam com gotículas de chuva.
Encontrei o velho amigo estendido na sua cama, fraco de corpo, de rosto
deprimido e de cor pálida. Seus dois olhos afundados nas suas órbitas pareciam
duas cavidades
escuras, habitadas pelas sombras do desespero e da dor. Os traços que ontem
irradiavam a simpatia e a vida haviam recuado e se escurecido, e pareciam um
pergaminho
cinzento e enrugado sobre o qual a doença desenhava linhas estranhas e
incompreensíveis. As duas mãos, que eram mensageiras da amabilidade e da doçura,
debilitaram-se
ao ponto de os ossos dos dedos aparecerem sob a pele como vergônteas nuas
tremendo na tempestade.
Quando lhe perguntei como ia, virou a cabeça enfraquecida para mim, e vi nos
seus lábios trêmulos a sombra de um sorriso triste; e com uma voz fraca, velada,
como se estivesse vindo de detrás das paredes, disse: "Vai, yai, meu filho,
àquele quarto e enxuga as lágrimas de Selma e atenua sua inquietação e traze-a
para junto
de mim..."
82
Entrei no quarto contíguo, e encontrei Selma estendida sobre um assento, a
cabeça apertada entre seus braços, o rosto afogado entre almofadas, procurando
reter
a respiração para que seu pai não lhe ouvisse os soluços. Aproximei-me dela
devagar e pronunciei seu nome num tom mais próximo
do gemido do que do murmúrio. Mexeu-se, perturbada, como alguém que tem um
pesadelo no seu sono. Depois, endireitou-se no seu assento e olhou-me com dois
olhos
fixos e imóveis como se estivesse
vendo um fantasma num mundo irreal e não acreditasse na realidade da minha
presença naquele lugar.
Após um silêncio profundo, cujas vibrações misteriosas nos levaram de volta
àquelas horas em que nos embriagáramos do vinho dos deuses, Selma enxugou as
lágrimas
com os dedos e disse com pesar: "Viste como os dias mudaram? Viste como o
destino nos desencaminhou e nos levou a esses abismos pavorosos? Neste lugar, a
primavera
nos reuniu pela mão do amor; e neste lugar, o inverno nos reúne agora diante do
trono da morte. Como era radiante aquele dia, e como é escura esta noite!"
Suas palavras eram em parte embargadas pelos soluços. Escondeu novamente o
rosto nas mãos como se o passado tivesse tomado corpo na sua frente e ela não o
quisesse
ver. Passei a mão pelo seu cabelo, dizendo: "Coragem, Selma! Ergamo-nos como
torres em face à tempestade. Enfrentemos o inimigo como soldados que não temem
nem as
espadas nem as lanças. Se perdermos, morreremos como mártires. Se vencermos,
viveremos como heróis... A nossa resistência, mesmo dolorosa, às provocações, é
mais
digna que o nosso recuo para onde estão a segurança e a paz. A borboleta que
esvoaça em volta da chama até se queimar é mais nobre que a toupeira que vive,
segura
e descansada, na sua toca escura. A semente que não resiste ao frio do inverno e
à adversidade dos elementos não conseguirá abrir a terra e não
83
se regozijará com a beleza da primavera... Andemos com passos firmes neste
caminho escarpado, olhando para o sol, e não para os crânios dispersos entre as
rochas
e as serpentes que se infiltram entre os espinheiros. Se o medo nos detiver no
meio do caminho, as sombras da noite nos lançarão gritos de ironia e zombarão de
nós.
Mas se atingirmos o cume da montanha com coragem, as almas do espaço cantarão
para nós hinos de vitória e de dominação... Acalma-te, Selma, e enxuga tuas
lágrimas
e esconde a melancolia que recobre teu rosto; e vamos nos sentar perto de teu
pai, pois a sua vida depende de tua vida e a sua cura, de teu sorriso."
Olhou-me Selma com ternura e afeição ilimitadas, e disse: "Como me pedes
resignação e coragem, quando teus olhos refletem o desânimo e o desespero? Dará
o mendigo
faminto seu pão a outro mendigo faminto? Ou receitará o doente remédios a outro
doente?"
Depois, levantou-se e precedeu-me, de cabeça baixa, ao quarto de seu pai.
Sentamo-nos perto dele. Selma esfor-çava-se para aparentar tranqüilidade e
ostentar
um sorriso; e ele simulava o repouso e a força. Mas cada um estava consciente do
drama do outro, da sua fraqueza, da angústia de seu coração. Eram como duas
forças
em luta, a esgotarem-se ao contato uma da outra em silêncio. Um pai gravemente
enfermo que se desvanece de dor pela infelicidade da filha; e uma filha afetuosa
que
se consome no sofrimento pela doença do pai. Uma alma prestes a partir e uma
alma desesperada, que se abraçam diante do amor e da morte. E eu, entre os dois,
a suportar
meus próprios sofrimentos e a padecer também com eles. Três que a mão do destino
reuniu e depois os apertou até esmagá-los: um velho, símbolo de uma casa velha
que
as chuvas ameaçam fazer ruir; uma flor-de-lis que o fio da foice cortou; e um
jovem, arbusto fraco que
84
a neve vergou. E todos tremendo, joguetes entre as mãos do Tempo.
O velho se mexeu entre as cobertas e estendeu a Selma uma mão enfraquecida, e
com uma voz onde havia toda a ternura e a compaixão de um pai, e todo o cansaço
e a infelicidade de um doente, disse: "Põe tua mão na minha, querida Selma."
Estendeu Selma a mão e depositou-a entre os dedos do pai; e ele a apertou, e
acrescentou num tom cansado: "Já estou farto dos anos, minha filha. Vivi o
bastante
e gozei dos frutos de todas as estações e de todas as dádivas dos dias e das
noites. Corri atrás das borboletas na minha meninice e abracei o amor na minha
juventude
e acumulei riquezas na minha idade madura. E em tudo isto encontrei satisfação.
Perdi tua mãe, Selma, antes que tu tivesses três anos. Mas, ao partir, ela te
deixou
para mim, tesouro da minha vida; e cresceste tão rapidamente como a lua. Teu
rosto reflete os traços de tua mãe, como as estrelas se refletem num lago
tranqüilo.
E o seu caráter e as suas virtudes reaparecem em tuas ações e palavras, como
aparecem as jóias por sob um véu transparente. Encontrei consolo em ti, que és,
como
ela, bela e sábia... Agora, porém, já sou um velho sobrecarregado pelo fardo dos
anos. E o repouso dos velhos está entre as asas sedosas da morte. Consola-te,
minha
filha, porque vivi o bastante para te ver uma mulher realizada. E regozija-te
porque continuarei a viver em ti após a morte. Minha ida hoje é como minha ida
amanhã
ou depois. Pois nossos dias são como as folhas do outono que tombam e se
dispersam ante o sol. Se as horas aceleram minha partida é porque sabem que
minha alma sente
saudade de tua mãe..
Pronunciou as últimas palavras com a doçura da saudade e da esperança. E seu
rosto tenso iluminou-se com a luz que emana dos olhos das crianças. Depois,
meteu
85
a mão entre as almofadas em que repousava sua cabeça e retirou uma velha
fotografia numa moldura de ouro, que as carícias das mãos e dos lábios haviam
gasto. E disse,
sem retirar o olhar da fotografia: "Aproxima-te, Selma, aproxima-te, minha
filha, para que te mostre a sombra de tua mãe. Vem ver seu semblante retratado
no papel."
Aproximou-se Selma e enxugou as lágrimas para que não lhe escondessem o
retrato, quase apagado. E, após contemplá-lo demorada e intensamente como se
fosse um
espelho mágico onde se refletiam seus traços e o significado de seus traços,
aproximou-o dos lábios e depositou nele muitos beijos ardentes; depois, gritou:
"Mamãe,
mamãe, mamãe!" E colou novamente o retrato aos lábios como se quisesse insuflar
nele a vida graças ao seu sopro ardente...
A palavra mais suave que os lábios humanos podem pronunciar é a palavra mãe.
E a mais bela invocação é: "Mamãe!" Uma palavra ao mesmo tempo pequena e imensa,
cheia de esperança, de amor e de ternura. A mãe é tudo nesta vida: o consolo na
aflição, a luz na desesperança, a força na derrota. É a fonte da piedade, da
compaixão
e da ternura. Quem perde sua mãe perde um peito onde reclinar a cabeça e uma mão
que o abençoa e um olho que o protege...
Tudo na natureza simboliza e proclama a maternidade. O Sol é a mãe desta
Terra: nutre-a com seu calor e guia-a com sua luz e não a deixa à tarde, senão
após pô-la
para dormir pela música das ondas do mar e dos pássaros e dos arroios. E esta
Terra é a mãe das árvores e das flores: cria-as, nutre-as, e orienta-as. E as
árvores
e as flores são por sua vez mães afetuosas para os frutos saborosos e as
sementes vivas. E a mãe de todo o universo é a alma eterna, suprema e imortal,
cheia de
beleza e de amor.
86
Selma Karame não conhecia sua mãe, que morrera quando ela era ainda criança.
Comoveu-se quando viu seu retrato e chamou-a "Mamãe!" apesar de si mesma, porque
a palavra mãe se esconde em nossos corações como a semente se esconde no coração
da terra e explode entre nossos lábios nas horas de tristeza e de alegria, como
o perfume exala do coração da rosa no espaço, seja o tempo sereno ou chuvoso.
Selma olhava fixamente o retrato de sua mãe e o beijava com ardor e o
apertava contra o coração agitado; e lamentava-se, e em cada lamento perdia
parte das suas
forças, até que a vida se exauriu no seu corpo frágil, e ela caiu ao lado da
cama do pai. O pai colocou suas duas mãos sobre a cabeça da filha e disse-lhe:
"Mostrei-te
a sombra de tua mãe numa folha de papel; ouve, agora, as suas palavras."
Selma ergueu a cabeça como fazem os filhotes de passarinho em seu ninho
quando ouvem o bater das asas de sua mãe entre as ramas, e olhou para o pai com
atenção
e expectativa, como se seu Eu inteiro se tivesse transformado em olhos e
ouvidos.
Disse o pai: "Eras uma criança de colo quando tua mãe perdeu o pai. Ficou
imensamente triste e chorou-o amargamente - porém com compreensão e resignação.
Quando
voltou do seu enterro, sentou-se ao meu lado neste quarto e tomou minhas mãos
nas suas e disse:
"Meu pai morreu, ó Fares, mas tu permaneces ao meu lado, e nisto
está meu consolo. O coração, com seus sentimentos diversos, assemelha-se ao
cedro com seus muitos ramos. Se o cedro perde um dos seus ramos principais,
sofre, mas
não morre, e transfere suas forças vitais para o ramo vizinho, a fim de que esse
cresça e se fortifique e encha o lugar do ramo
perdido."
87
"Assim falou tua mãe quando lhe morreu o pai e assim deves falar quando a
morte levar meu corpo para o descanso do túmulo e minha alma para a sombra de
Deus."
Respondeu Selma, aflita: "Quando minha mãe perdeu seu pai, permaneceste ao
lado dela. Quem permanecerá ao meu lado se te perder, meu pai? Quando o pai dela
partiu,
continuou a viver à sombra de um marido afetuoso, digno e leal, e continuou a
possuir uma filha a quem prodigalizava seus carinhos. Quem ficará para mim, se
me faltares,
pai? Foste meu pai e minha mãe, e o companheiro da minha infância, e o educador
da minha juventude. Quem te substituirá se te fores?"
Disse isto e olhou para mim com olhos cheios de lágrimas, e segurou com sua
mão direita a extremidade de meu paletó e disse: "Não tenho senão a este amigo,
meu
pai. Só ele me restará se me deixares. Mas poderei encontrar consolo junto a
ele, já que sofre tanto quanto eu? Poderá o coração esmagado ser consolado por
outro
coração esmagado? A mulher de luto não encontra consolo no luto de sua vizinha,
assim como a pomba não pode voar com asas partidas. Ele é o companheiro da minha
alma. Mas tenho-o sobrecarregado com minhas tristezas, e velado seus olhos com
minhas lágrimas. Ele não vê mais senão trevas. É um irmão que gosta de mim como
gosto
dele. Mas como todos os irmãos, partilha da desgraça, mas não a abranda. Chora
conosco, tornando assim nossas lágrimas mais amargas e nosso coração mais
devastado."
Eu escutava Selma falar, e suas palavras aumentavam meu pranto. Meu peito me
doía. Sentia como se minhas costelas fossem explodir e transformar-se em bocas a
gemer. O velho olhava-a, enquanto seu corpo enfraquecido afundava lentamente
entre as almofadas e sua alma cansada tremia como a chama de uma vela no vento.
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Depois, estendeu-lhe os braços e disse com calma: "Deixa-me partir em paz, minha
filha. Meus olhos já vislumbraram o que há por além das nuvens. Não os volverei
mais para estas cavernas. Deixa-me voar. Minhas asas já quebraram as grades
desta gaiola... Tua mãe está me chamando, Selma; não me detenhas. O sopro do
vento dispersou
a neblina que cobria o mar. O navio já levantou ferro e se prepara para a
viagem. Não o retardes, nem lhe toques o leme. Deixa meu corpo repousar entre os
corpos
em repouso. Deixa minha alma despertar. A aurora está lançando seus raios. E o
sonho acabou... Deixa tua alma abraçar a minha... Dá-me um beijo de esperança e
não
vertas lágrimas de tristeza ou de amargura sobre meu corpo, para que as ervas e
as flores não se recusem a sugar seus elementos. E não vertas lágrimas de
desespero
sobre minhas mãos: talvez virem espinhos sobre meu túmulo. E não escrevas com
soluços palavras sobre minha fronte, porque a brisa da aurora as lerá e não mais
levará
o pó dos meus ossos para os prados verdes. Amei-te na vida, minha filha, e amar-
te-ei também na morte, e minha alma ficará ao teu lado para proteger-te e guiar-
te."
Depois, com um derradeiro esforço, o velho virou-se para mim. Suas pálpebras
estavam fechadas. Parecia-me que havia somente duas linhas cinzentas no lugar de
seus olhos. E disse-me, com palavras que se tornavam mais tenras pelo prenúncio
do aniquilamento: "Quanto a ti, meu filho, sê um irmão para Selma, como teu pai
o
foi para mim. Fica perto dela nas horas difíceis, e sê seu amigo até o fim. Não
a deixes chorar sobre mim, pois as lamentações sobre os mortos são um erro dos
tempos
idos. Conta-lhe, antes, histórias alegres e canta-lhe as canções da vida, até
que se console e esqueça... Dize a teu pai que se lembre de mim. Pede-lhe que te
conte
as minhas aventuras quando a juventude nos
89
elevava até às nuvens... Dize-lhe que o amei na pessoa do seu filho na última
hora de minha vida..."
Calou-se um minuto. As sombras das suas palavras se moviam. Depois, olhou
para mim e para Selma ao mesmo tempo e disse num sussurro: "Não quero que
chameis um
médico, para que ele não prolongue com suas drogas as horas do meu cativeiro.
Pois os dias da escravidão já se foram. Minha alma pede a liberdade do espaço. E
não
chameis um padre para junto da minha cama. Pois seus exorcismos não resgatarão
meus pecados se eu for um pecador, nem acelerarão minha entrada no paraíso se eu
for
um justo. A vontade dos homens não muda as determinações de Deus, assim como os
astrólogos não mudam a marcha dos astros. Após minha morte, que os médicos e
sacerdotes
façam o que quiserem. O abismo chama o abismo; mas o navio prossegue seu caminho
até atingir a costa..."
Quando aquela noite terrível atingiu a aurora, Fares Karame abriu pela última
vez seus olhos mergulhados nas trevas da agonia e, voltando-os para a filha
ajoelhada
ao seu lado, tentou falar, mas não pôde, pois a morte já havia consumido sua
voz. Apenas algumas palavras sairam num suspiro profundo de entre seus lábios:
"A noite
já se foi... Eis a aurora... Selma, Selma ..."
Depois, sua cabeça inclinou-se, e seu rosto tornou-se branco. Seus lábios se
abriram num sorriso. Fares Karame exalara a alma.
Selma tocou a mão do pai, e ela estava gelada; e olhou para seu rosto, e viu-
o recoberto com o véu da morte. A vida então parou nelá, e as lágrimas secaram
nos
seus olhos. Não se moveu. Não gritou. Não soluçou. Seus olhos se tornaram fixos
como os de uma estátua. Seus músculos se relaxaram e penderam como caem as
dobras
de
90
um vestido molhado. E, curvando-se até que sua fronte tocasse o solo, disse
passivamente: "Apiedai-Vos, ó Deus, e dai forças a todas as asas partidas."
Fares Karame morreu. Sua alma abraçou a eternidade. A terra reclamou seu
corpo, e Mansur Bei tomou conta das suas riquezas. E sua filha permaneceu
prisioneira
da infelicidade, vendo a vida como uma terrível tragédia encenada perante seus
olhos por seus temores.
Quanto a mim, estava perdido entre meus sonhos e meus pesadelos. Sentia os
dias e as noites me devorarem como as águias e os corvos devoram suas vítimas.
Quantas
vezes procurei o esquecimento nas páginas dos livros, ou o consolo na companhia
das sombras dos que não mais existem. Quantas vezes procurei sair do presente e
voltar,
nas asas da História, ao palco das gerações passadas. Mas nenhuma destas
tentativas me adiantou nada; era, antes, como tentar apagar o fogo com gasolina,
pois no
cortejo das gerações só via sombras escuras, e nas vozes das nações só ouvia
lamentações e choro. O Livro de Jó parecia-me mais bonito que os Salmos de Davi;
e as
Lamentações de Jeremias agradavam-me mais que os Cânticos de Salomão; e as
calamidades dos Baramides impressionavam-me mais que a grandeza dos Abássidas; e
preferia
o poema de Ibn Zuraik ao Rubayat de Omar Al-Khayam; e a tragédia de Hamlet me
tocava mais o coração do que todos os escritos do Ocidente.
Assim, quando o desespero enfraquece nossa visão, não mais vemos senão a
sombra dos nossos temores. Assim, quando o desânimo ensurdece nossos ouvidos,
não mais
ouvimos senão as pulsações de nossos corações agitados.
91
***
Astarté e Cristo

ENTRE aqueles jardins e colinas que ligam os subúrbios de Beirute às montanhas


do Líbano, existe um santuário, pequeno e antigo, cavado numa rocha branca que
se eleva entre oliveiras, amendoeiras e álamos. E embora esse santuário não
fique a mais de meia milha do caminho das carruagens, pouca gente o conhece,
mesmo entre
os arqueólogos e amadores das antigüidades. Como tantas coisas importantes no
Líbano, permanece escondido pelas cortinas da negligência.- Ou talvez a
negligência
o tivesse mantido propositadamente escondido, fazendo dele um lugar de
isolamento para as almas cansadas, e um ponto de peregrinação para os amorosos
solitários.
Quem penetra neste santuário singular, vê na sua parede oriental um desenho
fenício, esculpido na rocha e já apagado em parte pelo tempo, que representa
Astarté,
a deusa da beleza e do amor, sentada num trono majestoso e cercada por sete
virgens nuas em diversas poses. Uma segura uma tocha; outra, uma lira; outra, um
incensório;
a quarta, um jarro de vinho; a quinta, um ramo
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de roseira; a sexta, uma coroa de louro; a sétima, um arco e uma lança. Todas
olham para Astarté com evidente submissão.
Na segunda parede, há outro desenho mais recente e mais nítido que representa
Jesus o Nazareno sobre a cruz e, à sua volta, sua mãe, Maria Madalena e duas
outras
mulheres, todas em pranto. De estilo bizantino, este relevo data sem dúvida do
século V ou VI.
Na parede ocidental, abrem-se duas janelas redondas por onde entram os raios
do sol na hora do poente e incidem sobre as imagens, que parecem então como que
recobertas
de ouro.
No meio do santuário, eleva-se uma pedra de mármore quadrada, cujos
lados contêm inscrições e símbolos antigos escondidos em parte por pequenas
manchas de sangue
petrificado, o que indica que os antigos matavam os animais do sacrifício
naquela pedra e vertiam por cima dela as oferendas de vinho, perfume e óleo.
Nada há naquele pequeno santuário além de uma quietude profunda que envolve a
alma e uma majestade misteriosa cujas emanações falam dos segredos dos deuses
antigos.
Falam também das glórias das gerações passadas e da marcha dos povos de uma
civilização para outra e de uma religião para outra. E o poeta sente-se atraído
e levado
a um mundo bem distante; e o filósofo se convence de que o homem é uma criatura
religiosa, cuja alma percebe coisas que seus sentidos não percebem, e cuja
imaginação
vê o que o seu olhar não pode ver. E ele expressa suas emoções e visões em
símbolos que revelam os mistérios de sua alma e dão corpo aos devaneios de sua
imaginação.
Palavras, melodias, imagens, estátuas manifestam suas aspirações mais sagradas
na vida e seus desejos mais belos para após a morte.
Nesse santuário desconhecido, encontrava-me com Selma Karame uma vez por mês.
Passávamos longas horas
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a olhar as duas imagens estranhas e a meditar sobre o jovem herói dos séculos,
crucificado no Gólgota. Evocávamos também os feitios e as modas das moças e dos
moços
fenícios que viveram e amaram e adoraram a beleza na pessoa de Astarté, e
queimaram incenso diante de suas estátuas, e verteram perfumes sobre seus
altares; até
que morreram e a Terra os recebeu de volta e nada sobrou deles senão um nome que
o tempo repete perante a eternidade.
Como me é difícil registrar agora em palavras aquelas horas que me uniam a
Selma, aquelas horas celestiais envolvidas em prazer e dor, alegria e tristeza,
esperança
e desespero, e tudo o que faz do homem, e da vida, um mistério eterno. Mas
também não me seria possível evocar sua lembrança sem procurar esboçar em
palavras,
mesmo pálidas, sua sombra que se foi, para que seja pelo menos um exemplo aos
filhos do amor e da melancolia.
Isolávamo-nos naquele santuário antigo e nos sentávamos à porta, apoiando
nossas costas nas paredes, repetindo os ecos do nosso passado, procurando
compreender
os eventos do nosso presente, temendo o futuro. Depois, chegávamos a
exteriorizar o que havia nas profundezas de nossas almas, cada um revelando ao
outro a sua angústia
e mágoa, e os arrependimentos e temores que o assaltavam. E cada um procurava
consolar o outro com as ilusões e os sonhos da esperança. Acabávamos chegando à
tranqüilidade.
Nossas lágrimas secavam. Nossos semblantes se abriam. Sorríamos, esquecendo tudo
- menos o amor e suas alegrias; desatentos a tudo - menos às nossas almas e às
suas
aspirações. Abraçávamo-nos, então, e nos derretíamos de desejo e paixão. Selma
beijava a linha divisória do meu cabelo com ternura e pureza, e enchia meu
coração
de luz. Eu beijava as pontas dos seus dedos brancos, e ela fechava os olhos e
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inclinava seu pescoço de marfim, e suas faces coravam levemente como os
primeiros raios que a aurora lança sobre as colinas. Por fim, ficávamos em
silêncio e olhávamos
longamente o horizonte longínquo, onde passeavam as nuvens coloridas pelo
poente.
Nossos encontros não se limitavam, porém, à troca de sentimentos e queixumes.
Chegávamos, sem o perceber, às generalidades. Discutíamos este mundo estranho e
os livros que havíamos lido, o seu conteúdo poético ou social. Selma falava do
papel da mulher na sociedade e da influência dos séculos passados sobre seu
caráter
e suas tendências presentes. Falava das relações matrimoniais em nossa época e
dos males e vícios que as rodeiam. Lembro-me de uma de suas declarações: "Os
escritores
e poetas procuram a verdade da mulher, mas não a alcançam porque a olham ou
através da luxúria e só vêem as curvas de seu corpo, ou através dos microscópios
do egoísmo
e só enxergam nela fraqueza e submissão."
Uma vez, disse-me, acenando para os dois desenhos gravados nas paredes do
santuário: "No coração desta pedra, as gerações esculpiram dois símbolos que
revelam
as tendências básicas da mulher e esclarecem os segredos da sua alma - que se
move continuamente entre o amor e a tristeza, entre a ternura e o sacrifício,
entre
Astarté sentada no trono e Maria em pé diante da cruz. O homem compra a glória e
a grandeza e a fama; mas é a mulher quem paga o preço."
Ninguém sabia dos nossos encontros, a não ser Deus e os bandos de pássaros
que voavam naqueles jardins. Selma vinha na sua carruagem até o lugar chamado o
Jardim
do Pachá e andava devagar pelos caminhos isolados até o santuário, onde entrava
apoiada em seu guarda-sol, o rosto seguro e confiante. Eu já a estava esperando
com
saudade - e o que há na saudade de fome e sede.
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Nunca receamos o olho do censor nem sentimos remorso algum. Pois a alma
purificada no fogo e lavada nas lágrimas se eleva acima do que os homens chamam
proibição
e vergonha, e se libera da escravidão dos códigos que as tradições estabeleceram
para encarcerar os sentimentos do coração. E
ela se põe de cabeça erguida diante dos tronos dos deuses.
Durante setenta séculos, a humanidade tem-se entregue cegamente às leis
viciadas, tornando-se incapaz de
apreender o sentido das leis celestiais, fundamentais
e eternas. E o olho do homem habituou-se a olhar a luz das velas vacilantes e
não pode mais fixar a luz do sol. As gerações sucessivas herdaram, umas das
outras,
as doenças e deformações; e estas se generalizaram, tornando-se parte
inseparável da alma. Os homens não mais as consideram deformações e doenças, mas
qualidades
nobres que o próprio DeuS conferiu a Adão; e se alguém nasce liberado delas,
consideram-no imperfeito e vítima de maldição.
Os que culpariam Selma Karame, procurando sujar seu nome porque deixava o lar
de seu marido legítimo para se isolar com outro homem, fazem parte daquele bando
de degenerados e enfermos que consideram os sãos criminosos, e os
libertos rebeldes. São como os insetos que vivem sob a terra e Que temem, se
sairem à luz do dia,
ser esmagados sob pés dos transeuntes.
O prisioneiro inocente que pode derrubar as paredes de seu cárcere e não o
faz é um covarde. Selma Karame era uma prisioneira inocente, vítima de uma
terrível
injustiça. Não podia libertar-se. Poderia ser culpada por olhar através das
grades da sua prisão para os campos verdes e o vasto espaço? Podem os homens
considerá-la
infiel porque saía da casa de Mansur Galeb para se sentar junto a mim entre
Astarté, a deusa, e o Gigante crucificado? Que os homens digam o que quiserem de
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Celma: ela atravessou os pântanos onde suas almas gostam de viver e atingiu o
mundo onde não chegam o uivo dos lobos e o silvo das serpentes. E que os homens
digam
o que quiserem de mim: a alma que contemplou a face da morte não se deixa
amedrontar por ladrões; e o soldado que viu as espadas entrelaçadas acima da sua
cabeça
e rios de sangue correrem ao seu redor, não se incomoda com as pedras que lhe
lançam os garotos das ruas.
A mulher que os deuses cumulam com a dupla beleza do corpo e da alma é uma
verdade ao mesmo tempo evidente e misteriosa. Compreendemo-la pelo amor e
tocamo-la com
os dedos da pureza. Mas quando procuramos descrevê-la com palavras, desvanece-se
atrás do nevoeiro da hesitação e do equívoco.
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o sacrifício
Num dia do fim de junho, enquanto o calor pesava sobre as costas e a gente
procurava o alto das montanhas, dirigi-me, segundo meu hábito, àquele santuário,
esperando
encontrar lá Selma Karame. Tinha na mão um pequeno livro de poemas da Andaluzia
que, desde aquela época, encantam minha alma.
Cheguei ao santuário ao entardecer. Sentei-me e pus-me a observar o caminho
que serpenteia entre as laranjeiras e os salgueiros, a olhar de vez em quando
para
meu livro, murmurando ao ouvido do éter aqueles poemas que deliciam o coração
pela agilidade da expressão e a harmonia da rima, e devolvem à mente a memória
das
glórias dos reis e poetas e heróis que abandonaram Granada e Córdoba e Sevilha,
deixando nos seus palácios e santuários e parques as esperanças e aspirações de
suas
almas para desaparecer sob o manto do Tempo, com lágrimas nos olhos e saudade no
coração.
Uma hora depois, vi Selma aproximar-se, ondulando seu corpo delgado entre as
árvores densas e apoiando-se em seu guarda-sol como se carregasse todas as
preocupações
100
e fadigas do mundo. Quando atingiu a porta do santuário e se sentou ao meu lado,
olhei nos seus grandes olhos e vi neles pensamentos e mistérios novos e
estranhos
que inspiram o cuidado e nos fazem adivinhar que estamos diante de uma ameaça
que precisa ser conhecida.
Percebeu Selma o que se movia na minha mente e não quis prolongar minhas
preocupações. Pôs a mão sobre meu cabelo e disse: "Aproxima-te de mim, meu
amado, aproxima-te
de mim e deixa-me alimentar meus olhos em teu semblante. Pois está chegando a
hora que nos separará para sempre."
Gritei: "O que queres dizer, Selma? Que força nos poderá separar para
sempre?"
Respondeu: "A mesma força brutal que nos separou no passado. A força cega e
muda que usa as leis humanas como seu intérprete. Esta mesma força acaba de
edificar,
com as mãos dos escravos da vida, um obstáculo intransponível entre nós dois. A
força que criou os demônios e os nomeou tutores sobre as almas dos homens
ordenou-me
que não mais saísse daquela casa construída com esqueletos e caveiras."
Perguntei-lhe: "Teria teu marido sabido de nossos encontros, e receias sua
ira e sua vingança?"
Respondeu: "Meu marido não se preocupa comigo e nem sabe como gasto meus
dias. Esquece-me na sua procura daquelas pobres moças que a necessidade leva às
ruas,
como as escravas eram levadas ao mercado. Perfumam-se e pintam-se para vender
seus corpos por um pão amassado com sangue e lágrimas."
Disse: "O que te impede então de continuar a vir a este santuário para
sentar-te ao meu lado diante da majestade de Deus e das sombras das gerações?
Estarás cansada
de olhar os segredos da minha alma? E teu espírito anseia pela separação e a
despedida?"
101
Respondeu, com lágrimas a transbordar dos olhos: "Não, meu amado. Como
poderia minha alma ansiar por separar-se de ti, já que és parte dela? E como
poderiam meus
olhos cansar-se de olhar para ti, que és a sua própria luz? Mas se o destino me
condenou a caminhar pelas estradas da vida, esmagada pelo peso das cadeias, como
aceitarei que o teu quinhão seja igual ao meu?"
Retruquei: "Por favor, fala claramente, Selma. Conta-me tudo. Não me deixes
perdido no meio dessas considerações obscuras."
Respondeu: "Não te posso dizer tudo, porque a língua que as dores ataram não
fala, e os lábios que o desespero selou não se movem. Tudo o que te posso dizer
é
que receio que caias na armadilha na qual me pegaram."
Retruquei: "Que queres dizer, Selma? Quem são os que receias para mim?"
Ela escondeu o rosto nas mãos e gemeu. Depois disse com hesitação: "O bispo
Bulos Galeb já sabe que saio uma vez por mês do túmulo onde me enterrou."
Perguntei: "E sabe o bispo que tu te encontras comigo neste lugar?"
Respondeu: "Se soubesse, não me verias sentada agora ao teu lado. Mas
alimenta suspeitas na sua cabeça. Encarregou a quem me vigia e recomendou aos
servidores
que me espiem. Sinto como se a casa onde moro e os caminhos por onde passo
possuíssem olhos cravados sobre mim e dedos apontados na minha direção e ouvidos
que escutam
o murmurar dos meus pensamentos."
Calou-se um momento e acrescentou, com lágrimas caindo abundantemente sobre
suas faces: "Não temo o bispo por mim, pois o afogado não teme a chuva. Temo-o
por
ti, que és livre como a luz do sol. Temo que caias como eu nas suas armadilhas.
Ele te agarrará entre as
102
unhas e te despedaçará com suas garras. Não receio o destino para mim, pois ele
já esgotou suas flechas no meu peito, mas receio-o por ti, que ainda estás na
primavera
da vida. A serpente pode morder-te o pé e impedir-te de prosseguir teu caminho
rumo ao cume onde te espera o futuro com suas alegrias e sucessos."
Respondi: "Quem não é mordido pelas cobras do dia e os lobos da noite
permanece iludido sobre os dias e as noites. Mas escuta, Selma, escuta bem. Só
nos restaria
a separação para nos premunir contra as vilanias humanas? Estarão todos os
caminhos da vida e do amor e da liberdade impedidos, para que tenhamos que nos
render
à vontade dos escravos da morte?"
Respondeu, num tom marcado pelo sofrimento e o desespero: "Só nos resta a
despedida e a separação."
Tomei sua mão. Minha alma se revoltava dentro de mim. A fumaça libertava o
fogo da minha mocidade. E disse com agitação: "Já nos submetemos demais aos
caprichos
dos outros, Selma... Desde a hora em que nos encontramos, nós nos deixamos levar
pelos cegos e nos ajoelhamos diante de seus ídolos. Desde que te conheci, somos
dois joguetes entre as mãos do bispo Bulos Galeb: joga conosco como quer e nos
empurra para onde quer. Por que continuaremos a nos submeter a ele, olhando as
trevas
de sua alma, até que o túmulo nos mastigue e a terra nos engula? Ter-nos-á Deus
outorgado o dom da vida para colocá-lo sob os pés da morte, e nos terá outorgado
a liberdade para transformá-la em sombra da escravidão? Quem apaga com as
próprias mãos o fogo de sua alma abjura ao céu, que o acendeu. E quem aceita a
injustiça
sem se revoltar torna-se aliado do opressor e cúmplice do assassino.
"Selma, tu me amas e eu te amo. O amor é um tesouro precioso demais, que Deus
confia somente às almas
103
grandes e sensíveis. Jogaremos nosso tesouro aos porcos para que o espalhem com
seus focinhos e o pisem com suas patas? Diante de nós, estende-se o mundo todo
como
um vasto palco, cheio de belezas e atrações. Por que viveremos neste túnel
estreito que o bispo e seus cúmplices cavaram? Temos a vida pela frente e tudo o
que está
na vida de liberdade, alegria e ventura. Por que não rejeitamos o jugo que pesa
sobre nossos pescoços e não quebramos as cadeias que acorrentam nossos pés para
irmos
onde estão o repouso e a segurança? Levanta-te, Selma, e vamos deste pequeno
santuário ao templo maior de Deus. Emigremos deste país onde há tanta ignorância
e opressão
para um país distante onde nem as mãos dos ladrões nem o hálito dos demônios nos
poderão atingir. Corramos sob o véu da noite até o porto e lá tomemos um navio
que
nos leve para além-mar onde viveremos uma vida nova, na pureza e na compreensão,
fora do alcance do veneno das serpentes e da crueldade das feras.
"Selma, não hesites. Estes minutos são mais preciosos que os diademas dos
reis e mais sublimes que os segredos dos anjos. Vamos seguir a coluna da luz que
nos
levará deste deserto árido para os campos onde brotam as flores e os jasmins."
Abanou Selma a cabeça e fixou os olhos em algo invisível no espaço daquele
santuário. E seus lábios se dobraram num sorriso melancólico, reflexo da dor e
da opressão
de sua alma. Depois, disse calmamente: "Não, não, meu amor. O céu me pôs na mão
uma taça de fel e vinagre. Já a ingeri quase inteiramente. Só restam poucas
gotas
que tomarei com resignação para chegar aos segredos e mistérios escondidos no
seu fundo. Quanto àquela vida nova e risonha, repleta de amor e conforto e paz,
não
a mereço, nem poderei suportar suas alegrias
104
e prazeres, pois o pássaro de asas partidas rasteja entre os rochedos,- mas não
pode voar no espaço, e os habituados à escuridão podem fixar as coisas
tenuemente
iluminadas, mas não as luzes brilhantes. Não me fales da felicidade, pois sua
evocação me dói tanto quanto a infelicidade, nem me pintes a vida venturosa
porque
as suas alegrias me inspiram tanto temor quanto a desgraça. .. Olha, antes, para
mim e vê a chama sagrada que o céu acendeu nas cinzas do meu coração... Sabes
que
te amo tanto quanto a mãe ama a seu filho único, e este amor me ensinou a
defender-te até de mim mesma. É este amor, purificado pelo fogo, que me impede
agora de
te seguir até os confins da terra e me leva a matar meus sentimentos e minhas
inclinações para que vivas livre e honrado, e ao abrigo das censuras dos outros
e das
suas interpretações maldosas. O amor limitado procura a posse do amado. Mas o
amor ilimitado nada procura senão a sua própria realização. O amor que nasce na
inconseqüência
da juventude se satisfaz com a união e o gozo, e cresce com os beijos e as
carícias. Mas o amor que nasce no coração do infinito e se aprofunda com os
mistérios
da noite, não se satisfaz senão com o eterno e o incomensurável, e não respeita
senão a divindade... - "Quando soube ontem que o bispo Bulos Galeb pretende
impedir-me
de sair da casa de seu sobrinho e roubar-me o único prazer que tenho conhecido
desde que me casei, pus-me na janela do meu quarto e olhei para o mar, e deixei
minha
imaginação voar para além dele, até aqueles países abençoados onde a liberdade
moral e a independência pessoal contrastam com o que conhecemos aqui. E
imaginei-me
vivendo perto de ti, rodeada pelos sonhos de tua alma, envolta em teu carinho.
Mas mal haviam esses pensamentos que iluminam o coração das mulheres oprimidas,
e
as levam a revoltar-se contra as
105
vãs tradições e a procurar viver à sombra da justiça e da liberdade atravessado
minha mente e já me senti pequena e fraca, e considerei nosso amor débil e
limitado,
e incapaz de erguer-se diante do sol. Chorei, como chora um rei que perdeu seu
trono, ou um homem rico que perdeu sua fortuna. Mas logo vi teu rosto através
das
minhas lágrimas e reconheci teus olhos fitos em mim, e lembrei-me do que tu me
disseste certa vez:
"Vamos, Selma, enfrentar os inimigos, e oferecer- nossos peitos
às espadas. Se formos derrotados, morreremos como mártires e se vencermos,
viveremos como heróis, pois a aflição da alma que enfrenta as dificuldades e os
perigos
é mais nobre do que o seu recuo para onde estão a segurança e a paz."
"Essas palavras, tu mas disseste, meu amado, quando as asas da morte pairavam
sobre a cama de meu pai, e eu as rememorei ontem quando as asas do desespero
batiam
sobre minha cabeça. Elas me deram coragem; e senti, mesmo nas trevas da minha
prisão, uma espécie de libertação espiritual que neutralizou os efeitos das
tristezas
e das provações. E nosso amor me apareceu profundo como o mar, elevado como as
estrelas, vasto como o espaço.
"Hoje vim a ti, sentindo na minha alma exausta e dolorida uma força nova, que
é a força que nos faz sacrificar algo grande em benefício de algo ainda maior.
Aceitei
o sacrifício da minha felicidade junto de ti, a fim de que fiques honrado no
conceito do mundo, isento das suas ciladas e perseguições... Vinha até ontem a
este
lugar com cadeias pesadas nos meus pés frágeis. Hoje, vim com uma energia que se
ri das cadeias e acha o caminho curto. Vinha como uma sombra insegura e medrosa.
Hoje, vim como uma mulher cheia de vida, que sente a necessidade do sacrifício e
conhece o valor dos sofrimentos e quer proteger a quem ama da ignorância
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dos homens e da fome da sua própria alma. Sentava-me diante de ti como uma
sombra trêmula. Hoje, vim mostrar-te minha verdade diante de Astarté, a deusa, e
de Jesus
crucificado. Sou uma árvore que crescia na sombra; hoje, estendi minhas ramas
para que vibrem uma hora à luz do dia... Vim me despedir de ti, meu bem amado.
Que
nossa despedida seja grande como nosso amor. Que seja como o fogo que queima o
ouro para torná-lo mais fulgurante."
Selma não me deixou responder ou protestar. Olhou-me com olhos brilhantes,
cujos raios envolveram meu ser. Um véu de majestade cobriu seu rosto, e ela
apareceu
como uma rainha que impõe o silêncio e o respeito. Depois, atirou-se nos meus
braços com uma ternura que não havia conhecido nela, e cingiu meu pescoço com
seus
braços de veludo, e depositou nos meus lábios um beijo longo, profundo, ardente
que despertou a vida no meu corpo e os segredos desconhecidos da minha alma; e
fez
com que o ser que chamo Eu se revoltasse contra a humanidade inteira - para
voltar e submeter-se em silêncio à lei superior que o coração de Selma adotou
como seu
templo e seu altar.
Quando o sol se deitou e as últimas luzes se apagaram naqueles parques e
jardins, Selma levantou-se bruscamente e pôs-se de pé no meio do Santuário e
olhou longamente
para suas paredes e seus recantos como se quisesse verter a luz dos seus olhos
nos seus desenhos e símbolos. Adiantou-se, então, e ajoelhou-se cheia de
respeito
perante a imagem de Jesus Crucificado e beijou-lhe as feridas dos pés repetidas
vezes, murmurando:
"Escolhi Tua Cruz, ó Jesus Nazareno, e renunciei aos prazeres e alegrias de
Astarté. Pus na cabeça uma coroa de espinhos em vez de mirto. Lavei-me no meu
sangue
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e nas minhas lágrimas, em vez de essências perfumadas. Bebi o vinagre e o fel na
taça destinada ao vinho e ao néctar. Recebe-me entre Teus seguidores, fortes
pela
sua própria fraqueza, e guia-me rumo ao Gólgota na companhia dos Teus eleitos,
satisfeitos com suas dores, felizes nas tristezas do seu coração."
Levantou-se depois e, olhando para mim, acrescentou: "Voltarei agora feliz
para o antro escuro onde se agitam terríveis sombras. Não tenhas pena de mim, e
não
te aflijas por minha causa. Pois a alma que vê a Deus uma só vez não teme mais
as sombras dos demônios, e o olho a que é dado ver por um instante o éter
superior
não se deixa mais fechar pelas dores deste mundo."
Saiu Selma daquele santuário, envolta em suas vestimentas de seda, e deixou-
me perplexo e pensativo, contemplando pela imaginação o mundo das visões onde os
deuses
se sentam nos seus tronos e os anjos registram os feitos dos homens e as almas
representam o drama da vida, e onde as noivas da fantasia cantam as canções do
amor,
da tristeza e da eternidade.
Quando voltei a mim, a noite já havia coberto a terra com suas ondas negras.
Achei-me vagueando naqueles jardins, rememorando na minha alma o eco de toda
palavra
saída dos lábios de Selma, e seus gestos e modos e as expressões de seu rosto e
o tocar de suas mãos. E quando a verdade se tornou bastante clara para mim, e
compreendi
que solidão amarga e que saudade dolorosa me esperavam, meu pensamento se
paralisou, e os fios do meu coração se afrouxaram, e dei-me conta, no meio das
dores, de
que o homem, embora nasça livre, permanecerá escravo das leis desumanas legadas
por seus antepassados, e que o destino, que imaginamos um segredo superior, nada
mais é do que a aberração de submetermos nosso dia de hoje aos decretos do nosso
ontem, e o dia de amanhã aos decretos de hoje.
108
E quantas vezes pensei desde então nas leis espirituais que levaram Selma a
preferir a morte à vida. E quantas vezes comparei a grandeza do sacrifício dos
resignados
com a felicidade dos revoltados, a fim de descobrir qual é a mais bela e digna.
Mas até hoje só compreendi uma verdade: a sinceridade torna todas as ações belas
e dignas. E Selma Karame era a sinceridade personificada e a fé corporificada.
109
A primavera é bela em toda parte. Mas é mais do que bela no Líbano. . . Estava
eu em Beirute na primavera daquele ano rico em estranhos acontecimentos. Abril
havia
recoberto a terra de ervas e de flores que, nos jardins da cidade, se
assemelhavam a segredos que a terra revela às alturas. Com seus xales brancos e
perfumados,
as amendoeiras e as macieiras, entre as casas, pareciam huris esplendidamente
vestidas, que a Natureza enviara como noivas aos filhos da poesia e da fantasia.

o Salvador

CINCO anos após seu casamento, Selma não tinha ainda um só filho que
constituísse um elo entre ela e seu marido e unisse pelo seu sorriso suas duas
almas opostas,
como a aurora une o fim da noite ao começo do dia.
A mulher estéril é odiada em toda parte porque a maioria dos homens imaginam,
no seu
egoísmo, que eles se perpetuam nos seus filhos. Para eles, a descendência
é a garantia de sua imortalidade.
O homem materialista vê na esposa estéril o seu próprio e lento
aniquilamento. E detesta-a e despreza-a e deseja-lhe a morte como se ela fosse
um inimigo pernicioso
que o procura destruir. E Mansur Bei Galeb era tão materialista quanto a terra,
tão duro quanto o aço, tão ganancioso quanto o túmulo. Sua ânsia por um filho,
que
perpetuaria seu nome e sua posição, o fazia odiar a pobre Selma e ver nas suas
próprias qualidades defeitos insuportáveis.
A árvore que cresce numa gruta não produz frutos, e Selma, vivendo à sombra da
vida, não produziu filhos.
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O rouxinol não constrói um ninho na gaiola para não legar a escravidão a seus
filhos, e Selma Karame vivia aprisionada pela desgraça, e o céu não quis
desdobrar
sua vida em duas escravidões. As flores dos vales são filhas do amor do sol e da
natureza; e os filhos dos homens são flores que nascem do amor e da ternura.
Selma
Karame não sentiu nunca a vibração da ternura e as carícias do amor naquela
residência luxuosa construída à beira-mar, na zona sul de Beirute. Mas orava na
quietude
da noite, pedindo ao céu que lhe mandasse um filho capaz de secar as suas
lágrimas com seus dedos cor-de-rosa e de expulsar, com a luz dos seus olhinhos,
a sombra
da morte do seu coração.
Selma tanto orou no seu sofrimento e com tanta insistência pediu que o céu
ouviu suas súplicas e insuflou no seu ventre uma canção amadurecida na doçura e
na
suavidade, e a preparou, após cinco anos de casamento, para ser mãe e apagar a
vergonha da sua esterilidade.
A árvore que cresceu na gruta floresceu para dar frutos.
O rouxinol engaiolado fez um ninho com as penas de suas asas.
A lira caída foi levantada e posta no caminho da brisa do Oriente para que a
brisa fizesse vibrar suas cordas remanescentes.
A pobre Selma Karame estendeu seus dois braços acorrentados para receber o
dom do céu.
Não existe alegria igual à da mulher estéril a quem as forças eternas
concedem um filho... Toda a beleza da primavera, todo o esplendor da aurora se
reúnem no
coração da mulher a quem Deus privou dessa dádiva preciosa para depois conceder-
lha.
Não existe luz mais brilhante do que a luz que o feto envia das trevas do
útero.
Abril já chegara dançando entre as colinas e os vales, quando veio o dia de
Selma pôr no mundo seu primeiro
113
filho, e a Natureza parecia acompanhá-la, dando à luz as flores e pondo nos
cueiros do calor os filhotes das ervas e das plantas.
Os meses de espera se esgotaram, e ficou Selma esperando o momento do parto
como o viajante espera a aparição da estrela da manhã. Olhava para o futuro
através
das suas lágrimas e o via cheio de promessas. E quantas coisas tenebrosas
pareceram brilhantes por entre as lágrimas!
Numa noite em que as sombras estavam rondando entre as casas em Ras-Beirute,
Selma começou a gemer na cama do parto e dos sofrimentos, e a morte e a vida
entraram
em luta em volta da sua cama. Quando o médico e a parteira apresentaram ao mundo
um novo visitante, o barulho dos transeuntes parou e a música das ondas do mar
diminuiu.
Não se ouvia mais naquele quarteirão senão os gritos agudos que saíam das
janelas da residência de Mansur Bei Galeb... Os gritos da vida que se separa da
vida...
Os gritos que revelam o instinto de permanecer onde se está, mesmo nos espaços
do vazio e do nada... E ouviam-se também os gemidos da frágil Selma, pisoteada
por
dois gigantes: a morte e a vida
O filho de Selma chegou com a aurora, e ela, ao ouvir-lhe o choro, levantou
as pálpebras que a dor havia abaixado e olhou em volta de si e viu os rostos
iluminados...
E viu a vida e a morte prosseguirem na sua luta em volta da sua cama. Fechando
novamente os olhos, gritou pela primeira vez: "Meu filho!"
A parteira envolveu o recém-nascido em cueiros de seda e o deitou junto da
sua mãe. O médico continuou a contemplar Selma com tristeza e a abanar a cabeça
de
vez em quando.
O barulho da alegria despertou os vizinhos que acorreram, nos seus vestidos
de noite, para felicitar os pais.
114
Mas o médico continuou a olhar com tristeza para a mãe e seu bebê.
Os empregados apressaram-se a anunciar as boas novas a Mansur Bei Galeb e a
encher as mãos com seus presentes. Mas o médico continuou a olhar com melancolia
para
Selma e o recém-nascido.
Quando se levantou o sol, Selma aproximou seu filho de seus seios; e ele
abriu os olhos pela primeira vez, pô-los nela e tremeu, e fechou-os pela última
vez.
Aproximando-se, o médico levou-o dos braços de sua mãe, enquanto duas grandes
lágrimas lhe corriam pelas faces, e murmurou consigo mesmo: "Eis um visitante
que se
vai no momento em que chega!"
Morreu a criança quando os vizinhos celebravam ainda seu nascimento com o pai
no grande salão, e brindavam-lhe longa vida. E a pobre Selma suplicava ao
médico:
"Dê-me meu filho para que o abrace." E olhava, e via outra vez a morte e a vida
em luta junto da sua cama.
Morreu a criança no meio dos brindes de regozijo pelo seu nascimento...
Nasceu com a aurora, e morreu ao levantar do sol. Quem pode medir o tempo e
dizer se a hora que separa a chegada da aurora e o levantar do sol é mais curta
ou
mais longa que os séculos que separam o aparecimento e o desaparecimento das
nações?
Nasceu como um pensamento, e morreu como um gemido, e desapareceu como uma
sombra. Revelou a Selma o sabor da maternidade, mas não permaneceu para fazer
sua felicidade
e afastar a mão da morte do seu coração.
Uma vida efêmera que começou com o fim da noite e findou com o chegar do dia.
Uma gota de orvalho que os olhos da noite verteram e o tocar do sol secou.
115
Um verbo que as leis eternas pronunciaram, e depois, por motivos que só elas
conhecem, recolheram.
Uma pérola que a preamar lançou sobre a praia e que a baixa-mar devolveu às
profundezas...
Um lírio que mal saiu das pétalas da vida e já foi esmagado sob os pés da
morte...
Um visitante querido que Selma tanto esperou, mas que mal chegara, foi-se
embora, e mal abrira a porta, voltou a fechá-la e sumiu.
Um feto que nasceu e tornou-se pó logo em seguida, imagem da vida dos homens
e dos povos, e também dos sois e das luas e das estrelas... Olhou Selma
novamente
para o médico e soluçou de desejo ferido, e repetiu: "Dê-me meu filho para que o
abrace... dê-me meu filho para que o amamente."
O médico baixou a cabeça e disse, entre suspiros que lhe cortavam a palavra:
"Seu filho morreu, minha senhora. Resigne-se. Seja forte para que lhe possa
sobreviver."
Selma emitiu um grito terrível; depois, aquietou-se um momento; depois,
sorriu com alegria e fervor, e seu rosto iluminou-se como se tivesse descoberto
algo que
lhe escapara, e disse calmamente: "Dê-me o corpo de meu filho... Aproxime-o de
mim, mesmo morto."
O médico levou-lhe o filho morto e depositou-o entre seus braços. E ela o
apertou contra o peito e virou o rosto para a parede e, dirigindo-se à criança
morta,
disse-lhe: "Tu vieste para me levar, meu filho... Vieste me indicar o caminho da
luz. Eis-me, meu filho. Caminha na minha frente para que saiamos juntos desta
caverna
escura."
Minutos depois, os raios do sol penetraram através das cortinas e bateram
sobre dois corpos inanimados, estendidos sobre uma cama velada pela majestade da
maternidade
e as asas da morte.
116
Saiu o médico, chorando, daquele quarto. Quando atingiu o grande salão, os
regozijos dos festej antes se transformaram em gritos e lamentações.
Somente Mansur Galeb não gritou, nem gemeu, nem verteu uma lágrima, nem
pronunciou uma palavra. Permaneceu imóvel como uma estátua, segurando seu copo
na mão.
No dia seguinte, Selma foi envoltá no seu vestido de noiva como mortalha e
estendida num caixão adornado com veludo. Seu filho foi enterrado com seus
próprios
cueiros; seu caixão foram os braços de sua mãe, e seu túmulo, o seio materno.
Levaram o esquife que continha os dois corpos e caminharam a passos lentos,
semelhantes à batidas enfraquecidas do coração no peito dos agonizantes.
Acompanhei
o cortejo funerário sem que ninguém me reconhecesse ou soubesse o que sentia.
Quando atingimos o cemitério, o bispo Bulos Galeb levantou-se, e salmodiou e
orou. Os padres o cercaram e o acompanharam com rostos lúgubres onde se liam a
indiferença
e o desinteresse.
Quando o esquife tinha sido colocado na sua sepultura, cochichou um dos
presentes, dizendo:
- É a primeira vez que vejo dois corpos enterrados no mesmo caixão.
Disse outro:
- Como se seu filho tivesse vindo para levá-la e salvá-la das
injustiças e dureza de seu marido.
Disse outro:
- Vejam Mansur Galeb. Fixa o espaço com olhos de vidro, como se não
tivesse perdido no mesmo dia a mulher e o filho.
E outro disse:
117
- Amanhã seu tio, o bispo, o casará de novo com outra mulher, mais rica e
mais resistente.
Continuaram os padres suas invocações e salmodias, até que os coveiros
tivessem terminado de cobrir o túmulo. Então, os presentes aproximaram-se um
após o outro
do bispo e do seu sobrinho, procurando consolá-los e animá-los com palavras de
reconforto.
Eu permaneci isolado e afastado sem que ninguém pensasse em consolar-me, como
se Selma e seu filho não fossem as pessoas mais caras que eu tinha no mundo-
Depois que todos se foram, aproximei-me de um dos coveiros que tinha ainda a
pá na mão e perguntei-lhe: "Lembra-se onde está o túmulo de Fares Karame?"
Olhou-me longamente, depois acenou para o túmulo de Selma e disse: "Neste
túmulo, estendi, por cima do seu corpo, o da sua filha, e por cima do corpo da
filha,
o corpo de seu próprio filho; e por cima deles todos, estendi a terra com esta
mesma pá."
Retruquei: "E neste mesmo túmulo, enterrou meu coração. Como seus braços são
fortes, homem!"
Quando o coveiro desapareceu atrás dos ciprestes, meu autodomínio me traiu:
joguei-me por cima do túmulo de Selma, e chorei e lamentei-me sobre ela.
118

Tradução e Apresentação - MANSOUR CHALLITA -


Toda a habilidade política da mente oriental em conceitos provocantes e
histórias tão pitorescas quanto As Mil e Uma Noites.
"Se alguém pisar numa serpente sem ser mordido, irá pisar sobre ela uma segunda
vez?" "O homem maduro não sente vergonha em carregar seu inimigo nas costas
quando
está seguro de obter benefícios se assim proceder." "Quem pode destruir seu
inimigo e livrar-se dele quando é débil e impotente, e não o faz, mais tarde se
arrependerá
quando esse inimigo se tornar mais forte e se converter numa ameaça mortal."
Nas boas livrarias ou
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