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Black-out.

No escuro ouve-se apenas o som de um sapateado.

Um foco móvel vai se abrindo sobre um menino franzino, mais ou


menos 12 anos, calças curtas e suspensório.

A luz acompanha sua dança pelo palco inteiro, escuro e vazio.

Som em off - com eco suficiente para parecer distante - de uma voz de
mulher que chama várias e espaçadas vezes: Hans! Hans! Hans!

Num determinado momento o menino pára, olha fixamente para um


ponto e caminha em direção a ele, para a frente do palco.

Entra música: uma melodia estranha, triste. Começa a nevar.

O menino senta-se no chão e, chorando, cobre o rosto com as mãos.

Uma luz azul, soturna e diáfana ao mesmo tempo, vai se abrindo


lentamente até descortinar, vindos do fundo do palco, dois “soldadinhos
de chumbo” carregando um catre sobre rodinhas.

Trazem-no até a frente do palco, cobrindo totalmente o menino (que


fica embaixo do catre), eliminando-o assim da cena.

No leito jaz o corpo de um velho escritor: Hans Christian Andersen.


Em torno do corpo, guirlandas e flores do campo.

Em seu leito de morte o Autor traz no rosto o esboço de um ligeiro


sorriso, como quem “viaja” em seu derradeiro sonho.

No fundo do palco, vários personagens de suas histórias caminham


coreograficamente, feito sombras do passado, sob uma luz onírica que
sugira estranhamento e mistério.

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Música e movimentos têm uma evolução - com o objetivo de todos
sairem do palco até o último acorde.

Ficam em cena apenas uma mulher carregando o filhinho num berço, e


um velho andrajoso de longas barbas brancas embrulhado num casacão
de grandes abas.

A mulher, de feições abatidas, não desgruda os olhos do menino que,


febril, dorme no berço à beira da morte.

O velho se aproxima.

Mãe - (percebendo a aproximação do velho, sem tirar os olhos do


menino)
Três dias e três noites sem poder dormir...
Velho - ...
Mãe - Velando sem descanso uma agonia lenta e cruel...
Velho - ...
Mãe - Longas e intermináveis horas a fio sem fechar os olhos por um
instante sequer...
Velho - ...
Mãe - Medo de ao abrí-los novamente, amaldiçoar o instante
seguinte...
Velho - ...
Mãe - Ai! Medo dos minutos... Medo dos segundos... Medo de mãe!

Chora e depois dirige o olhar ao velho.

Mãe - Não acreditas que ficarei sem ele, não é...?

O Velho meneia a cabeça. Não diz sim nem não.

Mãe - Dize-me! Não o roubarão de mim, não é mesmo...? Dize-


me!

Silêncio. A Mãe volta a chorar. Depois, vencida pelo cansaço,


adormece.

Entra música. Mais propriamente um “som” criando tensão e


suspense.

O Velho aproxima-se do berço, apanha o menino e sai.


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Música termina. A Mãe acorda e percebe a tragédia. Corre


desesperada pelo palco gritando pelo filho, até deparar-se com uma
mulher - de longas vestes pretas cheia de luzes - sentada no meio da
neve.

(Cabe à Direção criar cenograficamente o espetáculo conforme sua


necessidade e concepção.)

Mulher - A Morte esteve em teu quarto. Eu bem a vi. Saiu sorrateira


carregando teu filhinho nos braços.
Mãe - Sabes pra onde foi...?
Mulher - Correu tão veloz quanto o pensamento...
Mãe - E que caminho tomou?
Mulher - “Ela” nunca traz de volta o que leva.
Mãe - Dize-me apenas o caminho. Saberei convencê-La!
Mulher - Conheço bem o lugar onde pretendes ir. Todos os atalhos,
todas as trilhas...
Mãe - Então dize-me! Tenho pressa!
Mulher - Conheço também a mágoa, o pranto e todas as dores que hás
de passar!
Mãe - (desesperada) Não importa, dize-me que rumo tomar?!
Mulher - Terás primeiro que cantar só pra mim a bela canção com que
embalavas o sono do teu pequeno filho.
Mãe - Quem és...? Que pedido estranho me fazes em tão difícil
momento?!
Mulher - Sou a Noite. Por muitas vezes vi tuas lágrimas correrem
enquanto cantavas solitária. Ah! que bela canção cantavas...
Mãe - Cantarei cem vezes, se desejares. Mas agora não! Não me
detenhas... preciso alcançar a Morte para reaver meu adorado filho!
Mulher - ...
Mãe - Dize-me o caminho, Senhora dona das estrelas! Por piedade!
Mulher - ...
Mãe - Cantarei mil vezes!

A Noite permanece em silêncio. Tempo.

A Mãe, compreendendo a irredutibilidade do pedido, cede. Limpa as


lágrimas do rosto e lentamente começa a cantar.

Mãe - (cantando) A noite brilha em céu lilás


enquanto dormes em santa paz
Em qual estrela estás?
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que sonhos sonharás?
Tenta dizer-me
para que saibas regressar.

A brisa embala o teu ninar


a lua amansa o teu sonhar
Por que caminhos vais?
aonde andarás?
Tenta dizer-me
para que eu possa te acordar.

A mãe termina a canção e, cabeça baixa, chora num canto.

Mulher - Toma a tua direita, doce mãe. Segue a direção do vento e verás
a escuridão de um perigoso espinheiral. Foi pra lá que a Morte
correu levando a tua cria.

A música, agora em off, entra orquestrada e grandiosa. Solo da mesma


cantiga cantada pela Mãe.

A Noite desaparece. A Mãe, novamente, corre desesperada pelo palco


até encontrar-se com um arbusto espinhoso.

Mãe - Acaso não viste a Morte passar por aqui, carregando uma
criança no colo?
Arb. - Sim. Eu bem a vi. Passou apressada feito um instante de
alegria!
Mãe - E que rumo tomou?
Arb. - Ah! sinto tanto frio...
Mãe - Responde-me com urgência, por caridade! Sou a mãe...
Arv. - Tenho o tronco gelado, os galhos secos e tão fria a alma...
Mãe - Só tu podes me ajudar!
Arb. - Dir-te-ei se em troca me aqueceres com o calor do teu
coração magoado.
(Conforme solução de Direção, a voz do arbusto poderá ser
microfonada ou com eco ou coisa semelhante.)

A Mãe aperta o Arbusto Espinhoso contra o peito com toda a força,


ferindo-se. Fica alguns segundos assim, abraçada a ele.

Depois afasta-se, sangrando em várias partes do corpo.

Entra música muito suave, apenas dois violões que podem ser
executados ao vivo, preferencialmente.

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Arb. - Ainda hoje, nesta noite fria de inverno, cobrir-me-ei de
folhas verdes. Nascerão em meus ramos lindas flores
vermelhas como o sangue que derramaste. Tal foi o calor do
teu generoso abraço.
Mãe - (dolorida) Podes me dizer agora que caminho devo seguir?
Arb. - Toma a tua esquerda, jovem mãe. Caminha sete léguas e meia
e mais um pouco ainda e irás deparar-te com o tortuoso rio das
sombras. Foi pra lá que a Morte correu carregando teu amado
menino.

A Mãe caminha em círculos pelo palco novamente, até encontrar-se com


um estranho e sinistro barqueiro. O Arbusto Espinhoso desaparece.

(Luz e detalhes cenográficos devem caracterizar cada “encontro” da


Mãe, conforme o clima proposto pelas cenas.)

Mãe - Sabes dizer-me, barqueiro das trevas, se a Morte andou por


aqui com a minha criança nos braços...?
Barq. - Digo-te mais ainda: tão rápida como a felicidade!
Mãe - Ah! então sabes pra onde Ela foi...?
Barq. - Atravessou este mesmo rio, neste mesmo velho barco que
agora vês diante de teus brilhantes olhos.
Mãe - E poderias me levar até Ela? Fazer comigo a mesma viagem?
Barq. - Desejas o proibido!
Mãe - Não. Apenas o que me foi roubado!
Barq. - Queres, acaso, chegar até a outra margem do rio...?!
Mãe - Quero meu filho de volta!
Barq. - Pretendes conhecer a sagrada morada da Morte...?!
Mãe - É lá que Ela mora...?
Barq. - Numa grande estufa onde cuida de muitas árvores e muitas
flores. Plantas que são, na verdade, o destino de todas as vidas
humanas.
Mãe - Oh! apressa-te, então! Leva-me!
Barq. - Farás uma inútil travessia...
Mãe - Dar-te-ei o que me pedires!
Barq. - Pagarás preço muito caro por isso...
Mãe - Leva de mim o que quiseres!
Barq. - Quero o brilho dos teus olhos!
Mãe - Arranque-os! Tenho pressa!
Barq. - ...
Mãe - Que esperas? É tua a minha visão: toma-a!

Entra música. Gesto simbólico do Barqueiro arrancando os olhos da


Mãe.

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Barq. - Sobe, obstinada mãe. Carregar-te-ei!

A Mãe entra no barco e o Barqueiro parte, levando-a.

Barq. - (rindo de felicidade e gritando, durante o trajeto, para a


imensidão do rio)
Ah! só minha a luz brilhante de tão lindos olhos!!!

Música cresce enquanto o barco dá algumas voltas pelo palco


carregando o Barqueiro e a Mãe. Chegam até uma pequena casa, ou
apenas uma parede de tábuas, onde se encontra a Velha que cuida da
estufa da morte.

Essa personagem deve ser uma alegoria da velhice enquanto decadência


da vida: curva, maltrapilha, enrugada, feia, mal cheirosa e doente.

O Barqueiro larga a Mãe e sai. Ela, agora cega, caminha a esmo pelo
local sem saber ao certo onde se encontra.
Caminha alguns passos e pára ao pressentir a presença da Velha.

Velha - Que fazes, bela jovem-de-longos-cabelos, perdida nestas


paragens proibidas?
Mãe - Procuro pela Morte que me tirou o filho dos braços...
Velha - Tens névoa nos olhos. Como achaste o caminho?
Mãe - O amor de mãe me guiou.
Velha - Admirável esse amor que, mesmo sabendo-te uma pobre cega,
te trouxe até estes confins!
Mãe - Misericordioso como tu, boa senhora, que me ajudarás a
encontrar o que me foi à força tomado.
Velha - Por que pensas que o farei?
Mãe - Atravessei fronteiras intransponíveis para chegar até aqui.
Tenho o corpo ferido, os pés cansados, a alma aflita. Não irás agora me
indicar o caminho de volta.
Velha - (Tempo) O que me darás em troca...?
Mãe - Só tenho desespero para oferecer-te!
Velha - Tens lindos cabelos. Terias coragem de trocá-los por minha
velha cabeleira opaca e branca?
Mãe - ...
Velha - Tua capa de seda pelo meu esfarrapado manto?
Mãe - ...
Velha - O frescor da tua pele alva pela rude aspereza da minha?
Mãe - Dar-te-ei tudo o que me pedires.
Velha - Quero a tua juventude!
Mãe - (Tempo) Que seja feita a tua vontade!
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Música. As duas mulheres, numa espécie de ritual, fazem as trocas.

Velha - ( rodando pelo espaço, feliz) Ah! já me sinto jovem e bela...


Mãe - Podes me dizer agora como encontrar meu pequenino!?
Velha - Acompanha-me... Porém, sem muitas perguntas!

A Velha (agora jovem) sai andando na frente e a Mãe (agora velha)


atrás.

Música. Entram vários atores - que podem ser ainda os “soldadinhos


de chumbo” de Andersen - carregando uma infinidade de plantas em
vasos de diferentes formas e tamanhos; ramalhetes, pequenas árvores,
flores e plantas de todo tipo.

Do teto podem descer cipós e trepadeiras, assim como uma chuva de


pétalas ou folhas.

O cenário todo se transforma numa grande estufa.

Velha - Deves primeiro saber que aqui, na grande estufa da Morte,


cada planta, cada árvore, cada pequena flor que seja,
representa o destino de uma vida humana.
Mãe - O velho barqueiro já me disse...
Velha - A humanidade inteira aqui se encontra representada por estes
velhos arbustos, plantas aquáticas, frutos selvagens, orquídeas,
palmeiras, rosas, cactos...

Enquanto a Velha fala, vai como que mostrando-as com profundo


respeito e mística admiração. De repente ela pára e diz num tom grave,
quase profético:

Velha - Todos os destinos, aqui são decididos!


Mãe - E quem os decide...?
Velha - Não me perguntes coisas que não poderei responder. Agora,
vai! A Morte em breve estará por aqui...
Mãe - E como poderei encontrar meu menino?
Velha - Quantas perguntas! Se não enxergas, deixa-te guiar pelo
coração. Talvez reconheças o teu filho!

Dizendo isso a Velha sai. Dá alguns passos, pára e volta-se para a Mãe.

Velha - Se não conseguires teu intento... (num outro tom: mais de


cumplicidade) Ameaces destroçar algumas plantas. Aí, verás! Ela te
ouvirá com mais atenção... (e sai)
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A Mãe caminha por entre as plantas daquela pequena floresta, como se


ouvisse o bater dos corações humanos e, entre os milhões deles, pára
diante de um pálido açafrão azul que pende triste e murcho.

Silêncio. A Mãe pega delicadamente o pequeno vaso e, comovida,


acarinha-o.
Nesse momento, vindo do fundo do palco, entra a Morte: o velho
andrajoso da primeira cena. Aproxima-se lentamente dela.

Velho - Não toques na flor!

A Mãe recolhe a mão, assustada. Coloca a flor no chão.

A Morte traz nas mãos um outro vaso, com um pequeno e igual açafrão
azul.

Velho - Como vieste até aqui...?


Mãe - Sou a Mãe!
Velho - Como pudeste chegar tão depressa?
Mãe - Não tenho outra resposta pra dar-te.
Velho - E o que esperas encontrar...?
Mãe - Minha inocente criança!
Velho - És a mais corajosa das criaturas...
Mãe - Não. Sou a Mãe!
Velho - Fizeste uma vã travessia. Uma viagem sem préstimo.
Mãe - Não me roubes também a esperança!
Velho - Nada podes fazer contra o destino.
Mãe - (implorando) Devolve-me meu filho!

Tempo. O Velho, piedoso, abaixa-se perto dela.

Velho - Primeiro te devolvo os olhos que perdeste no rio... ( sopra so-


bre o seu rosto, devolvendo-lhe a visão.) Vais precisar deles...

A primeira coisa que a Mãe percebe, de posse da visão novamente, é a


flor semelhante que a Morte traz nas mãos.

Velho - Sou apenas um velho jardineiro... (e coloca o vaso perto do


outro que está na frente da Mãe)

A Mãe olha para um, depois para o outro, fica confusa. Percebendo
isso, e enquanto fala, ele embaralha os vasos por várias vezes,
confundindo-a mais ainda.
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Velho - Cuido das flores e das árvores desta estufa... e quando chega o
momento determinado, transplanto-as para o grande Jardim do
Paraíso, na terra desconhecida. Não ouso, porém, dizer-te
como crescem ali e o que lá se passa...
Mãe - Quero meu filho de volta! Tenha misericórdia!

Chora por um tempo e depois, num repente, enlouquecida, levanta-se e


agarra algumas plantas atrás deles e ameaça jogá-las no chão.

Mãe - (gritando) Vou arrancar tuas flores! Destruir teu jardim


inteiro!
Velho - NÃO AS TOQUES !!!

A Mãe estanca o movimento. Tempo.

Velho - Dizes que és infeliz, desgraçada... e queres, com teu gesto


insano, tornar outras boas mães, tão infelizes e desgraçadas
como tu?!

Ela cai em si, larga as plantas e, sem saber o que fazer, chorando,
aproxima-se e abaixa-se perto dele novamente.

Velho - Acalma-te e olha em torno de ti. Vês quantas histórias...!? Por


vezes muito belas, por vezes muito tristes... (Tempo) Ora,
acreditas então que podes mudar, assim tão simplesmente, o
curso de uma vida? Torná-la mais breve ou mais longa
conforme o teu desejo?
Mãe - Sou uma pobre mãe cansada, perdoa-me! A dor dilacerante,
que me foi imposta, tornou-me cega, velha e amarga!
Velho - Ah! bondosa mãe... Mereces recompensa por tão heróico
trajeto. Vou presentear-te com uma dádiva, nunca antes a
alguém ofertada: terás o direito da escolha!

Ela olha-o atentamente procurando compreender.

Velho - Sabes me dizer, com certeza, qual destas duas flores representa
o destino do filho que vieste resgatar?
Mãe - (olhando-as) São iguais...
Velho - Aparentemente...

Ela olha novamente para os dois vasos e balança a cabeça


negativamente.

Velho - Vês este pequeno açafrão azul...?


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(pega um dos vasos a sua frente e entrega a ela)
Toma-o. Segura-o nas mãos e então poderás observar o futuro
desta criança...

Quando a Mãe pega o vaso, entra música, a luz altera-se e no fundo do


palco desenrola-se uma pequena e breve história sem palavras.

Um menino, 10 anos mais ou menos, entra correndo e, sempre rindo,


esconde-se entre os arbustos, fugindo de uma menina, como quem brinca
de esconde-esconde.

Num determinado momento encontram-se e tocam-se. Trocam então um


leve beijo.

Essa cena, cheia de muitos risos, deve transbordar sentimentos


intensos de vida e alegria.

Música termina. Luz volta ao normal.

Mãe - Era meu pequeno filhinho...?

O velho não diz sim nem não.

Mãe - Ah! me pareceu tê-lo visto tão feliz na plenitude da vida...


Velho - (Tomando o vaso de suas mãos e entregando o outro a ela)
Agora segure este outro açafrão azul...

Quando a Mãe segura o vaso, novamente a luz altera-se e entra música.


Desta vez, porém, uma música muito triste, enquanto no fundo do palco
desenrola-se outra pequena e breve história sem palavras.

Vários transeuntes caminham pelo palco. Logo após entra um menino -


que pode ser o mesmo da cena anterior - de muletas, roupas sujas e
rasgadas.

Ele pede esmolas em meio à multidão indiferente que passeia pelas


calçadas.

Após várias tentativas fracassadas, morto de fome e frio, senta-se num


canto e chora.

Opostamente, essa cena deve provocar uma profunda tristeza e


piedade.

Música termina. Luz volta ao normal.


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Mãe - Poderia ser essa vida miserável, a do meu amado filho...?


Velho - Uma e outra são possibilidades do destino... Responder-te-ei
apenas que uma delas é a vida do teu filho!

Dizendo isso a Morte recomeça a embaralhar os vasos diante do


espanto da pobre Mãe.

Mãe - Mostras-me a ventura e a desgraça e não me dizes qual delas


se reserva ao meu menino?!
Velho - Não será minha a resolução desse problema...
Mãe - Não compreendo o que dizes...!
Velho - Compreenderás!

Dizendo isso, ele se levanta com as duas flores nas mãos e, enquanto
fala calmamente, caminha em torno da Mãe.

Velho - Uma destas flores é a bem-aventurança, a felicidade... A outra,


a miséria e a dor... Qual destas duas sortes será a do teu
amado filho?

Termina na frente dela e estende os dois vasos na sua direção.

Velho - Escolha... Tu és a Mãe!

Entra música.

Mãe - Oh! não !!!

Num grito de horror a Mãe levanta-se, afasta-se e dá as costas a ele.

Velho - Não te entendo... Não querias teu filho de volta, a qualquer


custo? Sem ao menos te importares com o destino que o
esperava? Não o querias com todas as forças?

A Mãe, ainda de costas, rosto coberto com as mãos, nada diz.

Velho - (depois de um tempo) Mudaste de idéia, então...?


Queres que eu o leve para aquele lugar que nem tu, nem
ninguém conhece...?
Mãe - (voltando-se lentamente pra ele) Esquece minhas lágri-
grimas, minhas súplicas, tudo quanto disse ou fiz! (Tempo)
Leva-o !!!

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Música cresce. A Morte pega os dois vasos nas mãos e vai se afastando
vagarosamente.

O cenário todo vai se transformando.


Entram em cena mais uma vez vários personagens de Andersen,
caminhando pelo palco todo. Princesas, jovens heróis, reis, rainhas,
sereias, imperadores, bailarinas, pobres e nobres.

A Mãe, que ficou inerte por alguns instantes, vai saindo misturando-se
entre os muitos personagens que passam.

Entre eles uma mulher humilde - trouxa de roupas nas mãos e lenço
amarrando os longos cabelos - procura pelo filho, sempre chamando:
Hans! Hans! Hans!

Um grupo de moças - que podem ser lavadeiras, pastoras, gente do


campo, enfim - se junta numa rodinha na frente do palco.

Elas brincam de fazer sombra com as mãos.

Do outro lado, um grupo de rapazes faz o mesmo.

Estabelece-se entre eles uma brincadeira. Explo: As moças fazem a


sombra de uma borboleta; os rapazes, a sombra de uma rede para
caçá-la. As moças, um pássaro; os rapazes, um estilingue.

Riem e se divertem muito.

Um casal, vindo dos fundos, aproxima-se deles.

Moça I - (chegando perto das mulheres, indignada)


O que fazeis...?!
Moça II - Brincamos, apenas. Vem, senta-te conosco!
Rapaz I - (se aproximando dos rapazes)
Atentais o demônio...!?
Rapaz II - Não! Por ora, atentamos as moças, somente...
(Todos riem)
Moça I - Brincais com as almas assim... inocentemente?!
Rapazes - Oh !!!!!
Rapaz I - Calai-vos! Bem se vê que não sabeis que forças poderosas
provocais...
Moça I - Não conheceis acaso a história que contam os velhos...?
Rapaz II - A bem da verdade... não! (olha para os amigos)
Rapazes - Não conhecemos... (olham para as moças)
Moças - Também não.
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Moça III - Quem sabe tu não nos possa contá-la...?
Moça IV - Ah! que venha lá, então, uma bela história de amor...
Todos - Hum...
Rapaz II - Não, não... uma aventura seria de melhor proveito!
Todos - Hum...
Moça II - Então...? Deixa-nos esperando...?!
Rapaz I - Contam os velhos que, certa vez, um jovem poeta saiu pelo
mundo afora.
Moça I - Foi conhecer as terras quentes.
Rapaz I - É... pois de onde vinha, as terras eram muito frias.

Sempre em clima de zombaria, coisa de grupo de jovens, os rapazes


tremem de frio e as moças se abanam de calor.

Rapaz I - Nas terras quentes, fazia de fato um calor insuportável. Tanto,


que durante o dia as ruas ficavam vazias de gente.
Moça I - O jovem poeta era um sábio.
Rapaz I - Um homem letrado... sensível e inteligente.
Moça I - Escrevia sobre a verdade, a beleza e a bondade.
Rapaz I - Um dia, ao entardecer...
Moça I - Quando andava pelas ruas desertas das terras quentes...
Rapaz I - O jovem estrangeiro percebeu que nunca estava só...
Moça I - Tinha a seu lado uma eterna companhia: sua sombra.

Entra música, provocando um clima de estranhamento. O poeta


aparece caminhando no fundo do palco seguido de um outro ator que
faz a sua sombra.

A sombra pode estar com o rosto maquiado de branco e vestir uma


larga capa preta. Repete, feito um espelho, todos os movimentos do
amo.

Rapaz I - (retomando) Mas as noites nas terras quentes... ah! as noites


eram uma grande festa: todos saiam de suas casas, as crianças
brincavam nas calçadas...
Moça I - Os homens bebiam e cantavam...
Rapaz I - As mulheres bebiam e dançavam...
Moça I - E o ar exalava um doce perfume de fruta e vinho.
Rapaz I - As casas todas se iluminavam no frescor da noite.
Moça I - A cidade inteira resplandecia...

Durante essas falas o poeta caminha até a frente do palco olhando


fixamente para um ponto.

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No fundo, alguns atores (talvez os soldadinhos de chumbo cumprindo o
papel de contra-regras) trazem para a cena um painel com uma sacada
sobre rodinhas. Uma espécie de alpendre: janelas abertas, floreira e
cortinas esvoaçantes.

Poeta - Só essa casa em frente à minha permanece na escuridão...


Rapaz I - Nenhuma réstia de luz.
Moça I - Mas havia gente morando nela, sim...
Poeta - Há flores na sacada e as cortinas esvoaçam através das janelas
abertas...
Rapaz I - E da casa soturna vinha o som de uma triste melodia...
Moça I - Uma indescritível canção...

Entra o som leve de um piano.

Poeta - Ah! que fascínio me inspira esse mistério!


Moça I - Quem há de nela morar..?
Rapaz I - Nesse momento, ao acender um lampião atrás de si, o jovem
poeta notou que sua sombra prontamente apareceu.
Moça I - E por causa da posição em que se encontrava, a sombra
projetava-se exatamente na varanda da casa vigiada...

O poeta mexe-se e a sombra também. Faz alguns gestos brincando


com a sombra, que está agora onde ele gostaria de estar, e ela repete os
gestos como se respondesse “sim, estou aqui!”

Poeta - Avante, sombra camarada! Vamos... torna-te útil uma


vez na vida.
Moça I - Pra que serve uma sombra...?
Poeta - Penetra nos aposentos do mistério...
Rapaz I - Ah! bem que podias me fazer esse favor...!
Poeta - Mas depois voltes para revelar-me seus segredos.
Moça I - Vamos... Avante, sombra camarada!
Todos - (brincando, alternadamente) Avante! Avante! Avante!

O som do piano termina, a sombra desaparece pela janela do painel ao


fundo e o jovem poeta senta-se numa cadeira e adormece.

Outra luz.

Rapaz I - Na manhã seguinte, nem bem o sol era nascido, o poeta


partiu...

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Um soldadindo de chumbo traz algumas malas, guarda-chuva e etc. e
entrega ao poeta. Outro recolhe a cadeira. Outro, ainda, retira o
painel de cena.

O moço caminha com as bagagens, dando uma volta pelo palco todo.

Moça I - Arrumou as malas, despediu-se das terras quentes e voltou


para sua terra natal.
Rapaz I - Mas sua sombra não o acompanhava mais...
Moça I - Abandonara-o pra sempre naquela misteriosa noite.
Rapaz I - No segredo daquela casa misteriosa.
Moça I - E então passaram-se os anos.
Rapaz I - Muitos e muitos anos anos se passaram...
Moça I - Até que um dia...

Um homem, elegante e ricamente vestido, bate palmas.

Homem - Ô de casa...! (palmas novamente)


Poeta - (sem se voltar) Entra!

Entra música, criando um pequeno suspense. O estranho aproxima-se


lentamente.

Homem - Vejo que já não me reconhece mais...


Poeta - ...
Homem - Devia tê-lo previsto. Afinal, foi há tanto tempo...
Poeta - ...
Homem - Não imaginou sequer que um dia eu pudesse voltar...?
Poeta - ... (Compreendendo, aos poucos, com muito espanto)
Homem - Sim... sou eu mesma. Sua velha sombra, senhor! (faz
reverência)
Poeta - Como estás bonita... Pareces...
Homem - Um homem...? Pois é o que sou! Progredi muito nesses
anos todos; fiz fortuna e voltei para saldar minha dívida.
Quanto lhe devo?
Poeta - Então de fato és tu...?
Homem - Em carne-e-osso, jóias e roupas caras!
Poeta - Estou espantado...
Homem - (tirando um saco de moedas do bolso) Diga-me quanto tenho
que lhe pagar pela minha liberdade.
Poeta - Não me deves nada, estás livre! Tua felicidade só pode me
fazer feliz também. Agora senta-te, velho amigo, e conta-me tudo
o que se passou....
Homem - Primeiro prometa não dizer a quem quer que seja, nunca, em
lugar algum, que já fui sua sombra.
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Poeta - Palavra de homem! (estende a mão )
Homem - Palavra de sombra! (dão-se as mãos e riem)
Poeta - Diga-me: o que viste na casa misteriosa das terras quentes?
Homem - A mais linda de todas as criaturas.
Poeta - A Poesia...?!
Homem - (faz que sim com a cabeça)
Poeta - Ah! suponho que brilhava como brilha a aurora boreal!
Homem - Mais ainda.
Poeta - Oh! a poesia...
Homem - Enquanto lá estive, foi como se eu tivesse vivido, num
instante apenas, três mil anos. Como se tivesse lido todos os
livros já escritos, em prosa ou verso. Por isso lhe digo que
tudo vi e tudo sei!
Poeta - E depois...? Conte-me mais!
Homem - Conheci profundamente minha própria natureza.
Mas quando de lá saí, o senhor já não se encontrava mais
nas terras quentes. Fiquei então perambulando pelas
ruas feito sombra sem dono. Espiei através das janelas,
para dentro das casas, por sobre os telhados. E vi coisas
que ninguém podia ver. Coisas terríveis que ninguém
gostaria de ver.
Descobri a hipocrisia, a inveja, a ganância: todo o mal que
habita o homem. Ah! como é repugnante a humanidade!
Poeta - Por que te tornaste homem, então...?
Homem - Diga-me com toda a sinceridade: ser homem não é, como
dizem, realmente algo muito importante?
Poeta - É o que há de mais importante!
Homem - Pois, então...?!
Poeta - Chocam-me tuas palavras...
Homem - As palavras pertencem ao meu ofício. Tornei-me um
escritor.
Poeta - Fruto de nossa longa convivência, talvez...
Homem - Escrevi, porém, somente sobre as coisas feias, a mentira e a
maldade. E, por isso, tornei-me respeitado. Rico. E
temido!
Poeta - ...
Homem - Bem... agora me despeço. Aqui está o meu cartão.
(entrega o cartão, faz uma pequena reverência e vai saindo)
Ah! (voltando-se) Se porventura tornarmos a nos ver um
dia... lembre-se, sou hoje um homem de posses, famoso,
recebido com honras por toda a aristocracia... preferia
ser tratado por “senhor”.

A sombra faz um nova reverência e, mantendo sempre um sorriso


irônico, sai caminhando para o fundo do palco.
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Moça I - Passaram-se meses... e o poeta adoeceu.


Rapaz I - Passaram-se anos e a sombra voltou...
Homem - Olá! Como vai...?
Poeta - Nada bem. Já não sou o mesmo. Ninguém mais se interessa
pelas coisas que escrevo. Estou pobre e deprimido.
Homem - Pareces uma sombra...
Poeta - Sou mesmo sombra do que já fui um dia.
Homem - Pois tenho uma proposta a te fazer.
Poeta - (olhando-o desconfiado)
Trata-me por “tu” agora, o senhor...?!
Homem - Estás muito doente. Diria... um trapo! Nesse estado não
deverias te importar com detalhes tão pequenos. Precisas
mesmo é de uma boa viagem.
Por que não vens comigo a uma estação de águas? Pago
todas as despesas, já que estás também pobre como um
velho coitado.
Se aceitares... eu serei o senhor e tu, minha sombra!

Dizendo isso a sombra oferece ao poeta a velha capa larga que antes
usara e um pote de maquiagem branca.

Poeta - Não posso concordar com tamanha humilhação.


Homem - Ora, quanto orgulho! Não creio que tenhas alternativa
melhor. Assim é o mundo, poeta! Ainda não
percebeste...?!

Entra música. Tempo. O poeta pega a maquiagem e, humilhado, vai


pintando o rosto.

Moça I - E partiram então os dois para uma longa viagem...


Rapaz I - A sombra era o amo. E o amo era a sombra.
Moça I - Por terra, por mar, por todos os lugares que passaram,
assim se apresentavam:
Rapaz I - A sombra era o amo. E o amo era a sombra.

Os dois dão uma volta pelo palco. A sombra na frente e o poeta atrás,
refletindo todos os seus movimentos.

Moça I - Chegaram finalmente a uma estação de águas onde, entre


muitos hóspedes, encontrava-se uma princesa.
Rapaz I - E, feito um conto-de-fadas ou... coisas do destino, a moça,
no mesmo instante, apaixonou-se pela sombra.
Moça I - Julgou estar diante de um homem magnífico, capaz de lhe
inspirar confiança e governar com sabedoria seu reino.
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Rapaz I - Afinal, que outro homem, além de nobre e bem vestido,
pensou a princesa, teria o privilégio de carregar atrás de
si uma sombra tão encantadora que sabia falar, como
somente os poetas, sobre a lua, as estrelas e a solidão?
Moça I - E assim... ficou acertado o casamento!

Durante essas falas, ao fundo, encena-se sem palavras o encontro da


sombra (sempre seguida de perto pelo poeta) com a jovem princesa.

Homem - (despedindo-se da moça, vindo para a frente)


Ficou acertado o casamento!
Poeta - Não posso concordar com tamanho disparate!
Homem - Sou livre, não preciso do teu consentimento.
Poeta - Trata-se de um gesto insano...
Homem - Pagar-te-ei valorosa quantia para estares sempre
ao meu lado.
Poeta - Não estou à venda!
Homem - E, nas ocasiões em que estivermos na sacada do
palácio acenando para o povo, bastará que te deites no
chão, aos meus pés, como faz uma humilde sombra!
Poeta - Podes iludir uma princesa, mas não tens o direito de
enganar o povo de um reino inteiro!
Homem - Teus valores estão ultrapassados...
Poeta - Direi a todos que és um impostor!
Homem - Não te acreditarão!
Poeta - Contarei que não passas de uma sombra vestida de
gente!
Homem - És mesmo um homem: tens inveja!
Poeta - Revelarei que tu és uma mentira!
Homem - Rirão de tudo que disseres...
Poeta - Provarei que não tens alma!
Homem - GUARDAS!!! GUARDAS!!!

Entram dois guardas do palácio.

Homem - Prendam-no!!!

Os guardas levam o poeta.

Logo em seguida, atraida pelo barulho, entra a jovem princesa.

Princesa - Que houve...?! Estás pálido.... assustado! Que houve,


dize-me!?
Homem - Aconteceu uma coisa horrivel, senhora.

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Princesa - Que coisa poderia ter havido, a poucas horas de nossas
bodas, para tê-lo perturbado tanto...?
Homem - Imagine que minha pobre sombra enlouqueceu. Cismou
que é gente e ameaçou tomar o meu lugar.
Princesa - Oh! pobre sombra infeliz...!
Homem - Queria impedir a todo custo nosso casamento.
Princesa - Devias mandar prendê-la!
Homem - Já o fiz!
Princesa - Pois, então... ?!
Homem - Temo que não seja o suficiente. Continuará gritando
palavras de ódio e inveja por detrás das grades.
Amaldiçoando-me. Está alucinada, compreendes...?
Princesa - Talvez seja mais generoso dar um fim a tão angustiada
existência...
Homem - Mas... de que forma, senhora?
Princesa - Durante as núpcias. Secretamente...
Homem - Que triste desenlace para quem sempre foi tão boa
companheira!
Princesa - Tens mesmo um nobre caráter, meu amado senhor!

A sombra sorri e faz uma reverência. Depois toma a mão da princesa e


a beija.

Congelam como numa fotografia.

Rapaz I - À noite a cidade inteira se enfeitou...


Moça I - Foi um casamento sem igual!
Rapaz I - Os canhões dispararam.
Moça I - Os soldados apresentaram armas.
Rapaz I - A cidade inteira se iluminou!
Rapaz II - E o poeta...?
Moça II - É..., e o poeta?
Todos - (alternadamente) E o poeta...? E o poeta...?
Moça - O poeta nada viu...
Rapaz I - Nada escutou.

Entra música: uma eletrizante valsa clássica. A filha do rei e a Sombra


dançam.

Aos poucos, os camponeses envolvidos pelo som da valsa, começam a


dançar também.

Um de cada vez vai tirando uma moça, até todos estarem rodopiando
pelo palco todo. Tudo vira um grande baile.

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Nesse momento a valsa vai fundindo-se com um som assustador e
dissonante, que vai crescendo até transformar-se numa sinistra
distorção sonora.

No fundo do palco, descortina-se aos olhos horrorizados de todos, um


patético espetáculo: o corpo do poeta balançando numa forca.

Nesse clima de horror entram em cena novamente vários personagens


de Andersen, misturando-se entre os já presentes.

Alguns recolhem o corpo do poeta e carregam-no para fora.

A mesma mulher humilde, descrita na transição de cena anterior ,


continua procurando aflita pelo filho: Hans! Hans! Hans!

O menino (Hans) também caminha entre eles. Carrega um par de


galochas nas mãos.

Num determinado momento os dois, em extremidades opostas, se vêem.

Correm e se encontram no meio palco - enquanto alguns dos


personagens (os que não sairam) ficam estáticos nos lugares onde se
encontram, isto é, espalhados pelo fundo do palco.

O menino e a mulher se abraçam.

Mãe de Hans - Por onde andavas, criança...? Procurei-te por toda parte.
Hans - Brincava nos campos, mãezinha...
Mãe de Hans - Sumiste por muitas horas, não faças mais isso!
Hans - Me entreti com as histórias das plantas. O enterro foi
longo, cheio de cerimônias e despedidas...
Mãe de Hans - Enterro?!
Hans - Morreram as margaridas que beiravam o rio... Inda ontem
estavam tão bonitas, precisavas ver! Mas hoje cedo acor-
daram pendentes e murchas...
Mãe de Hans - Ah! que susto me destes...
Han - Todas as flores da redondeza vieram ao velório. Fizeram
um cortejo sem fim! Chi! foram tantas as visitas...!
(noutro tom, como em segredo, sussurando)
Elas pediram para serem enterradas ao lado do canário
que perdeu as asas...
Mãe de Hans - (idem, entrando na fantasia dele) E ficaste muito triste?
Hans - Não... porque no Verão elas nascerão de novo e serão
ainda mais belas!
Mãe de Hans - Ah! é? E como sabes...?
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Hans - O estranho visitante falou. Disse que a morte é apenas
uma passagem. Depois a gente torna a nascer numa outra vida
ainda melhor...
Mãe de Hans - Quem disse isso, Hans...?
Hans - O homem das galochas... (pega as galochas ao seu lado e
ergue-as, mostrando-as à mãe)

A Mãe de Hans olha para as galochas estranhando o objeto “real” nas


mãos do menino.

Mãe de Hans - E onde está ele, agora...?


Hans -Não sei...
Mãe de Hans -E de onde veio, então?
Hans -Também não sei... Apareceu assim de repente, disse que
fazia questão de participar do funeral porque gostava
muito das margaridinhas do campo, e que vinha de um futuro muito
distante, em nome dos loucos, das crianças e dos poetas!
Mãe de Hans - (meio que investigando a veracidade das palavras do
menino e, ao mesmo tempo, instigando a sua “criação”)
E... como era ele?

Entra música muito suave.

Hans - Vestia umas roupas estranhas como eu nunca vi. Usava


uma bengala com uma ponta dourada e calçava estas galochas.
Contava histórias muito interessantes e me olhava de um jeito profundo
como se fosse meu... (pensa) avô!

Durante essa fala de Hans, pela lateral do fundo do palco entra a


personagem por ele descrita.

É o mesmo Hans Christian Andersen, com a mesma idade e roupa, que


apareceu no início do texto em seu leito de morte.

Caminha pelo palco como que admirando suas personagens (os atores
que permaneceram no fundo em “fotografia”).

Uma passagem breve que dura somente o tempo da fala do menino. E


assim como ele entra, sai.

Música termina.

Mãe de Hans - Hans...! (como que tirando-o do devaneio) Tens


descuidado demais dos teus estudos...

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Dizendo isso abre a trouxa que traz consigo, tira algumas peças de
roupa e começa a lavá-las.

Mãe de Hans - Histórias não enchem a barriga de ninguém!


Hans - Mas alimentam o pensamento da gente...

A mãe pára um instante, olha incrédula e admirada pro filho, dá um


gole de bebida que traz num pequeno cantil, e depois cai em si.

Mãe de Hans - Bobagens...! (retoma a tarefa)


Hans - Ele contou a história da vendedora de fósforos...
Mãe de Hans - Não quero saber!
Hans - É linda... ouça, minha mãe!
Mãe de Hans - Não tenho tempo a perder...
Hans - (sem ouví-la) Era uma menina muito pequena... de longos
cabelos louros, roupas rasgadas e pés no chão.

Entra música muito suave. Pode ser a mesma da cena anterior.

Hans - Tão pobrezinha era ela que fazia dó... Numa noite gelada
de Inverno, a neve caia e ela não tinha onde se abrigar;
nem casa tinha pra voltar...! Encostou-se no canto de
uma rica parede toda envidraçada e, tremendo de fome e
de frio, começou a riscar os fósforos para se aquecer. Um
por um, foi acendendo, acendendo... até amanhecer.
E era como se cada luzinha daquelas pudesse iluminar,
por um breve momento, seus doces sonhos de menina.

Durante a história que o menino conta, a personagem “vendedora de


fósforos” sai da pose e do lugar onde se encontrava e caminha por entre
os outros personagens, acendendo um fósforo atrás do outro.

No final da música e da história ela pára e fica onde estiver.

Mãe de Hans - Terminou...?


Hans - Não. Na manhã seguinte encontraram-na morta na
calçada, com um pedacinho de fósforo queimado na mão.
Mãe de Hans - Que história mais triste.... Hans!
Hans - Melhor a morte do que uma vida tão infeliz...
Mãe de Hans - Tens cada idéia na cabeça...!
Hans - Ele contou a dos sapatinhos vermelhos, também...
Mãe de Hans - (já um pouco irritada) Ele, quem, Hans?!
Hans - O homem das galochas, já te disse...
Mãe de Hans - Sei... E onde ele está agora...?
Hans - Não sei... Também já te disse!
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Mãe de Hans - Talvez seja melhor explicares direitinho esse caso...
Hans - Não tenho explicações... Ele contou várias histórias,
depois disse que estava cansado, queria voltar pra casa. Sentou-se numa
pedra, arrancou as galochas dos pés e...
sumiu!
Mãe - Já basta, filho! Estás me enlouquecendo com tuas
histórias... (Dá outro gole de bebida) Deverías cuidar mais dos
estudos! (e volta à tarefa)
Hans - (Depois de um tempo) Mãezinha.... Não quero mais ir à
escola!
Mãe de Hans - Tens que estudar, precisas! Ou pensas que viverás de
histórias?
Hans - Quero dançar... viver num teatro! Ser bailarino ou cantor!
Mãe de Hans - Sonhos...! Pelo jeito percebo que terminarás mesmo
um pobre sapateiro. Tão pobre como teu pobre pai...
Hans - Não. Serei muito importante! Viajarei pelo mundo todo.
Almoçarei com o rei da Dinamarca um dia, com a rainha
da Inglaterra no outro, e serei sempre amado como uma
criança... (pára de falar ao perceber o riso da mãe)
Ris...? Ora, do que te ris, senhora?
Mãe de Hans - (divertindo-se muito) Sujo como estás, dizendo isso
assim... pareces um patinho feio sonhando sonhos de
cisne...
Hans - Ah! é? Pois verás!

Nesse momento soam vários sinos a distância. Um som muito especial:


melodioso e mágico.

Todos, a Mãe de Hans, o menino e os personagens do fundo


movimentam-se ouvindo aquele som “encantado” como que
hipnotizados, embevecidos, inebriados...

Reagem como quem procura saber de onde vem som tão misterioso e
fascinante.

Os sinos tocam por alguns instantes e depois param.

Hans - Os sinos, mãe! Os sinos, novamente...


Mãe de Hans - (arrumando e recolhendo suas roupas) Me mete medo
esse mistério...
Hans - A mim, não. Me provoca uma sensação fascinante...
Mãe de Hans - Me causam arrepios esses malditos sinos! (Tapa os
ouvidos)
Hans - Uma bênção, mãe!
Mãe de Hans - Um enigma...!
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Hans - Estimulam minha imaginação...
Mãe - Ah! de quem onde virão...? Deus, de onde virão?!
Hans - (gritando para o universo)
DE ONDE VIRÃO...?!

Todos no fundo, sempre procurando pelo ar, repetem a pergunta do


menino, várias vezes, como uma espécie de eco: De onde virão? De
onde virão?...

Em resposta, os sinos atacam novamente.

Todos vão se movimentando e, sempre procurando “de onde virão?”,


vão se misturando e saindo de cena. Inclusive a Mãe de Hans.

Em cena sobra apenas o menino. Vem para a frente do palco e, sempre


olhando fixamente para um ponto, como quem procura uma resposta no
futuro, senta-se no chão.

Os sinos terminam.

Começa a nevar.

Hans - (falando consigo mesmo) O homem das galochas saberia


a resposta! Ah! se eu pudesse encontrá-lo outra vez...

(dizendo isso veste as galochas e levanta-se,


experimentando-as)

Entra música grandiosa.

Pelo fundo entram dois “soldadinhos de chumbo” trazendo o catre com


Hans Christian Andersen no leito. Agora, porém, semi-deitado, antes
de morrer.

O menino, extasiado, vê com espanto o velho amigo chegar.

Música termina.

Hans - (quando o catre se aproxima dele)


Vieste buscar as galochas que esqueceste, não é...?
Andersen - Não. Vim atender o teu desejo...
Hans - Sabes então por que os sinos tocam?
Andersen - Em comemoração...
Hans - E o que comemoram..?
Andersen - A felicidade.
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Hans - E quando eles tocam?
Andersen - Em raros e breves momentos, somente.
Hans - Mas, onde?! A cidade inteira procura por toda parte,
ninguém consegue descobrir “onde é que eles tocam...?!”
Andersen - Tens razão... Todos os Homens de todas as cidades do
mundo procuram pela felicidade. Porém, poucos chegam
a conhecê-la, de fato.
Hans - Não me respondeste!
Andersen - Nem todas as perguntas têm respostas...
Hans - Então também não sabes onde os sinos tocam...
Andersen - Todo mundo sabe e ninguém sabe, ao mesmo tempo!
Hans - Que queres dizer...?
Andersen - Já viste um pôr-do-sol do alto de uma montanha, onde o
mar e o céu se fundem e toda a Natureza se harmoniza
numa encantadora poesia tecida de brilho e cores...?
Hans - Não...
Andersen - Já leste um poeta que, com o poder das palavras, te
tocasse bem fundo o coração?
Hans - Não...
Andersen - Já conheceste o Amor...?
Hans - (envergonhado, balança a cabeça negativamente)
Andersen - Não te preocupes, criança... Um dia compreenderás o que
digo. (sorri um sorriso de paz)
Hans - Vou devolver-te as galochas... (abaixa-se e faz gesto de
tirá-las)
Andersen - Não. Não as tire... Um de nós poderá desaparecer!
Hans - Por que...?
Andersen - São encantadas essas galochas. Realizam o nosso desejo
no momento em que as calçamos...
Hans - Foi por isso então que vieste...?
Andersen - Deves tê-lo pedido quando as botaste nos pés...
Hans - E de onde vens...?
Andersen - Do futuro, já te disse.

Nesse momento entra um som muito leve e, novamente, vários


personagens entram em cena. Desta vez trazem flores, guirlandas e
archotes nas mãos. Dirigem-se para o catre e param um pouco antes de
chegar até ele.

Andersen olha-os e compreende que deve partir.

Andersen - Acho que chegou a minha hora...


Hans - Estás doente? Vais morrer...?
Andersen - (balança a cabeça afirmativamente)

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Hans - Então vou te devolver as galochas para que faças um
último pedido...
Andersen - Não é uma má idéia.
Hans - Podes pedir para que não morras..!
Andersen - Sabes muito bem o que penso a respeito da morte, não
sabes, Hans...? Ou já te esqueceste...?
Hans - Não... não me esqueci.
Andersen - Mas tenho um último desejo a fazer, sim...! Podes
vestí-las em mim, rapidamente...?

O menino, afoitamente, se livra das botinas. Quando vai calçá-las no


velho, ele o detém com um gesto.

Andersen - Espera! (concentra-se e faz o pedido)


“Gostaria que tu continuasses ao meu lado, até meu
derradeiro suspiro!”
Agora vista-as em mim. Rápido...rápido...

O menino, estabanadamente, o faz.

Andersen - Pronto! Agora poderemos conversar ainda umas últimas


palavras...
Hans - Por que pediste isso...?
Andersen - Gosto dos encontros impossíveis.
Hans - Poderias pedir tanta coisa...!
Andersen - Lembras das histórias que te contei...?
Hans - Hum-hum... “A história de uma mãe”, “A sombra”, “A
menina dos fósforos”, “Os sapatinhos vermelhos” ...
Andersen - (cortando-o) E sabes por que te contei...?
Hans - Porque são bonitas...
Andersen - Sim, são bonitas... Mas não foi por isso que as contei.
Hans - Por que, então...?
Andersen - Para que tu continues contando-as por mim...

Entra música. O menino emociona-se por sentir-se incumbido de uma


importante missão.

Andersen - Farás isso por mim...?


Hans - (quase chorando, balança a cabeça afirmativamente)
Andersen - Então já posso partir...
Hans - Podes me responder ainda uma pergunta...?
Andersen - (faz um gesto afirmativo com a cabeça)
Hans - Quem és...? Como te chamas?
Andersen - Hans Christian Andersen.

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A música cresce um pouco e o velho poeta morre. Todos se aproximam
cobrindo-o de flores.

O menino vai se afastando, profundamente impressionado, olhos


arregalados.

Todos voltam aos seus lugares, espalhando-se pelo fundo do palco.

Hans - Mas... “eu” sou Hans Christian Andersen !!! “Eu” sou
Hans Christian Andersen !!! (abrindo os braços, gritando,
como que compreendendo o incompreensível encontro)
EU SOU HANS CHRISTIAN ANDERSEN !!!

Os sinos voltam a soar com toda intensidade, força e encantamento.

A música cresce ao máximo, junto com o som dos sinos, e a luz vai
caindo lentamente até o black-out final.

vladi
18.Fev.1996
Domingo de Carnaval
13 hs e 45 min.

segunda versão
Quarta-feira/23.Abr.1997
11 hs e 05 min.

O espetáculo “O homem das galochas” estreou dia 22 de


novembro de 1997 no Teatro Sesc-Anchieta. Cumpriu ainda uma
pequena temporada no Teatro João Caetano.
Elenco: Caio Blat/ Fabiano Augusto, Turíbio Ruiz, Debora Duboc/
Letícia Teixeira, Selma Luchesi, Daniel Costa, Gustavo Haddad,
Paula Sardá, Ricardo Garcia Marques, Fausto Maule, Adriana
Levorato, Tiago Moraes/ Daniel Alvin, Mariana Melgaço, Fábio
Penna, Patrícia Ermel/Larissa Medeiros, Marcelo Santana, Renata
Quintela, Carol Bezerra, Robson Moura, Mafá Nogueira, Alício
Amaral e Marília Felicíssimo.
Cenário e figurinos de J.C. Serroni, Músicas de Dyonísio Moreno,
Iluminação de Davi de Brito, Preparação Corporal de Júlia
Pascale, Assistência de Direção de Paulo Ribeiro, produção
executiva de Bia Alves. Produção da PT - Princípio do Talento.
Recebeu os seguintes prêmios:

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APCA: Grande prêmio da crítica para Vladimir Capella por texto
e direção do espetáculo, melhor cenário, melhor música, melhor
iluminação, melhor atriz: Debora Duboc.
COCA-COLA: Melhor produção, melhor iluminação.
MAMBEMBE: Melhor autor, melhor figurino, melhor iluminação,
melhor ator coadjuvante: Turíbio Ruiz.
FUNARTE: Um dos cinco melhores espetáculos do ano.
APETESP: Melhor atriz: Debora Duboc, melhor ator coadjuvante:
Gustavo Haddad.

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