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Vol.

1
Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira
Câmara dos
A CONSULTORIA LEGISLATIVA
Deputados Vinte anos passados da festeja-
é um órgão de assessoramento insti- da promulgação de uma nova or-
tucional da Câmara dos Deputados dem constitucional brasileira exi-
que analisa situações, formula mi- gem reflexão.
nutas de propostas, realiza estudos
aprofundados e sugere alternativas O momento é propício para uma
de ação para fundamentar a atua- avaliação, sob a ótica de especialis-
tas, dos impactos das disposições
Ensaios sobre impactos da
ção do parlamentar. Trata-se de um
serviço prestado aos parlamentares, da Constituição Federal de 1988
às comissões técnicas da Câmara e sobre a sociedade brasileira, para
a análise da aplicação ou da reo-
aos demais órgãos do Parlamen-
to brasileiro de forma apartidária
e institucional.
Constituição Federal de 1988 rientação das políticas públicas e
das questões relativas às alterações

na sociedade brasileira
legislativas decorrentes dos novos
Para prestar esse serviço, a Con- mandamentos e dos novos tempos
sultoria Legislativa conta com iniciados há duas décadas.
uma equipe multidisciplinar de Sobre a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados
duzentos especialistas nas mais
Consultoria Legislativa Essa é uma das intenções da pre-
diversas áreas do conhecimento. O sente obra. Incorporando dife-
quadro de consultores é preenchi- A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) rentes enfoques e categorias de
do exclusivamente por profissio- cita-a como exemplo de instituição “bem-sucedida em desenvolver ampla análise, busca lançar algumas
nais de nível superior, experientes conclusões (ou inquietações, ou
capacidade técnica no Parlamento nos anos noventa, em nível comparável interrogações) sobre alguns temas
e especializados, recrutados por
meio de concurso público. No seu
aos das democracias mais antigas, como Grã-Bretanha, França ou Estados selecionados pelos autores, a par-
grande número de pós-graduados, Unidos” (SANTISO, Javier; WHITEHEAD, Laurence. Ulysses, the sirens tir do texto constitucional e con-
siderando a experiência brasileira
mestres e doutores, a Consultoria and the art of navigation: political and technical rationality in Latin Ameri-
Legislativa conta com especialis- nesse período caracterizado pela
ca. Relatório da OCDE, nº 256, set. 2006). V. 1 e 2 virada do milênio.
tas da área jurídica, engenheiros,
administradores, auditores, jorna- O Banco Interamericano de Desenvolvimento a reconhece, assim como às Trata-se de mais uma contribui-

Coleções Especiais | Obras Comemorativas | 02


listas, arquitetos, cientistas sociais, ção da Consultoria Legislativa
demais consultorias do Congresso Nacional, “como um fator-chave para
educadores, entre profissionais de da Câmara dos Deputados ao
muitas outras categorias. assegurar que os acordos e transações políticas que resultam das negocia- debate e ao aprofundamento do
ções do Congresso não sejam alcançados às custas da qualidade técnica das conhecimento acerca da realidade
Os consultores legislativos aten-
dem anualmente a mais de vinte leis” (BID. A política das políticas públicas: progresso econômico e social na brasileira e de suas relações com
mil solicitações de trabalho, entre América Latina, relatório 2006. São Paulo: Campus, 2007). as leis e com nossa Carta Magna.
consultas, estudos e atividades de Envolvendo o esforço e dedicação
elaboração legislativa. Cabe res- ж de mais de sessenta consultores
legislativos, esta obra aponta um
saltar que a Consultoria Legis-

Coleções Especiais | Obras Comemorativas | 02


lativa fez-se presente no assesso- caminho que será, indubitavel-
ramento do Congresso Nacional mente, seguido: a ampliação dos
durante o período constituinte, estudos e a continuidade da in-
que culminou com a elaboração quietação intelectual criadora, tão
da Constituição Federal de 1988, presente em vários segmentos da
bem como durante o processo de academia e desse órgão do Legis-
revisão constitucional, em 1994, lativo Brasileiro.
além de participar dos processos
de elaboração legislativa que re-
dundam em reforma constitucio-
nal e em novas leis para o país.

ж brasília | 2008

ensaios v1 e 2.indd 1 23/08/2016 17:01:01


Ensaios sobre impactos da
Constituição Federal de 1988
na sociedade brasileira
Consultoria Legislativa
Mesa da Câmara dos Deputados
53ª Legislatura – 2ª Sessão Legislativa
2008

Presidente | Arlindo Chinaglia


Primeiro-Vice-Presidente | Narcio Rodrigues
Segundo-Vice-Presidente | Inocêncio Oliveira
Primeiro-Secretário | Osmar Serraglio
Segundo-Secretário | Ciro Nogueira
Terceiro-Secretário | Waldemir Moka
Quarto-Secretário | José Carlos Machado

Suplentes de Secretário
Primeiro-Suplente | Manato
Segundo-Suplente | Arnon Bezerra
Terceiro-Suplente | Alexandre Silveira
Quarto-Suplente | Deley

Diretor-Geral | Sérgio Sampaio Contreiras de Almeida


Secretário-Geral da Mesa | Mozart Vianna de Paiva
Câmara dos
Deputados

ENSAIOS SOBRE IMPACTOS DA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
NA SOCIEDADE BRASILEIRA
organizadores Vols. 1 e 2

José Cordeiro de Araújo


José de Sena Pereira Júnior
Lúcio Soares Pereira
Ricardo José Pereira Rodrigues

Centro de Documentação e Informação – Cedi BRASÍLIA


Edições Câmara – Coedi 2008
Câmara dos Deputados
DIRETORIA LEGISLATIVA
Diretor Afrísio Vieira Lima Filho
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO
Diretor Adolfo C. A. R. Furtado
COORDENAÇÃO EDIÇÕES CÂMARA
Diretora Maria Clara Bicudo Cesar
CONSULTORIA LEGISLATIVA
Diretor Ricardo José Pereira Rodrigues

COMISSÃO EDITORIAL
Aércio dos Santos Cunha, Antônio Octávio Cintra, João Santos
Coelho Neto, José Maria Gonçalves de Almeida Júnior,
Luiz Henrique Cascelli de Azevedo
APOIO TÉCNICO
Ivanete Araújo, Luiz Cláudio Pires dos Santos, Luiz Mário
Ribeiro Silva

Capa, projeto gráfico e diagramação: Renata Homem


Revisão: Seção de Revisão e Indexação

Câmara dos Deputados


Centro de Documentação e Informação – Cedi
Coordenação Edições Câmara – Coedi
Anexo II – Térreo – Praça dos Três Poderes
Brasília (DF) – CEP 70160-900
Telefone: (61) 3216-5802; fax: (61) 3216-5810
edicoes.cedi@camara.gov.br

SÉRIE
Coleções especiais. Obras comemorativas
n. 2

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)


Coordenação de Biblioteca. Seção de Catalogação.
Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade
Brasileira. – Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2008.
2v. (1005 p.) (Série coleções especiais. Obras comemorativas ; n. 2)

Obra realizada pela Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputa-


dos e que integra o elenco de atividades que visam comemorar os 20 anos
da promulgação da Carta Magna.
ISBN 978-85-736-5561-2 (obra completa) – ISBN 978-85-736-5574-2 (v. 1)
– ISBN 978-85-736-5575-9 (v. 2)

1. Brasil. [Constituição (1988)]. II.Série.


CDU 342.4(81)”1988”
ISBN 978-85-736-5561-2 (obra completa)
Sumário
Volume I

Apresentação ...........13

Prefácio ...........15

À GUISA DE INTRODUÇÃO
Constituinte de 1987 e a Constituição possível
José Theodoro Mascarenhas Menck ...........19
Dinâmica constitucional e aprimoramento da democracia
Ricardo José Pereira Rodrigues ...........31
A interpretação moral da Constituição e o princípio da
dignidade da pessoa humana: de volta ao realismo jusnaturalista?
Luiz Henrique Cascelli de Azevedo ...........41
Um preâmbulo ao preâmbulo
Alessandro Gagnor Galvão ...........51

AGRICULTURA E PESCA
Impactos da Constituição de 1988 sobre a política agrícola
Gustavo Roberto Corrêa da Costa Sobrinho, José Cordeiro de Araújo,
José Maciel dos Santos Filho ...........69
Pesca, aqüicultura e direito do mar: influências da
Constituição Federal de 1988
Luciano Gomes de Carvalho Pereira ...........89

COMUNICAÇÃO
A concentração da mídia e a liberdade de expressão
na Constituição de 1988
Elizabeth Machado Veloso .........103
A radiodifusão brasileira e a Constituição Federal de 1988
Vilson Vedana .........137
O tratamento da censura na Constituição de 1988:
da liberdade de expressão como direito à liberdade vigiada
Bernardo Estellita Lins .........145

CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS


Concessões de serviços públicos nas Constituições
brasileiras: a busca do equilíbrio entre ônus e bônus
Eduardo Fernandez Silva .........161

CULTURA
Brasil: nação monolíngüe?
Claudia Gomes Paiva .........187
A cultura no ordenamento constitucional brasileiro:
impactos e perspectivas
José Ricardo Oriá Fernandes .........203

DEFENSORIA PÚBLICA
Defensoria Pública, criação da Constituição de 1988
Suely Pletz Neder .........221

DESPORTO E LAZER
Desporto e lazer – legislação infraconstitucional:
a Constituição traída
Emile Paulus Johannes Boudens .........235

DIREITO DE FAMÍLIA
A Constituição de 1988 e o direito de família
Maria Regina Reis .........255

DIREITO DO CONSUMIDOR
O consumidor na experiência da “Constituição Cidadã”
Milso Nunes Veloso de Andrade .........275
DIREITO DO TRABALHO
Constitucionalização do trabalho e do direito do trabalho:
passado, presente ou futuro? A Constituição Federal
e suas duas décadas de existência
Nilton Rodrigues da Paixão Júnior .........295
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do
Trabalho: a resposta do Legislativo por uma cidadania mais consci-
ente e a responsabilidade do Judiciário pela efetivação da cidadania
Gisele Santoro Trigueiro Mendes .........315
A historicidade do direito do trabalho: a Constituição de 1988
no contexto da flexibilização das relações trabalhistas
Luiz Henrique Vogel .........343

DIREITO PENAL
Os princípios constitucionais penais na
Constituição Federal de 1988
Alexandre Sankievicz .........365

DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias
Kley Ozon Monfort Couri Raad .........387

EDUCAÇÃO
A educação de jovens e adultos e a Constituição de 1988
Ana Valeska Amaral Gomes .........419
A extensão dos deveres do Estado em matéria educacional:
repercussões positivas da Constituição de 1988
Ricardo Chaves de Rezende Martins .........433
O financiamento da educação e a Constituição de 1988:
a vinculação de recursos à manutenção
e ao desenvolvimento do ensino
Paulo de Sena Martins .........449
ENERGIA
A Constituição de 1988 e a energia nuclear
Wagner Marques Tavares .........463
O petróleo na Constituição de 1988, mudanças e perspectivas
Paulo César Ribeiro Lima .........475
A prestação do serviço público de energia elétrica
na Constituição Federal de 1988 – concepção
original, alterações e conseqüências
Fausto de Paula Menezes Bandeira .........487

Volume II

FUNÇÃO SOCIAL E DIREITO DE PROPRIEDADE


Uma análise econômica da função social da
propriedade na Constituição Brasileira
César C. A. Mattos .........517
Encontra o direito agrário resguardo no
texto constitucional?
Luiz Almeida Miranda, José Theodoro Mascarenhas Menck .........549
A função social como critério norteador
do direito de propriedade
Alessandra Valério Torres, Caio Hilton Teixeira, Luis Antônio Guerra .........565

MEDIDA PROVISÓRIA
A Medida Provisória e sua evolução constitucional
Ednilton Andrade Pires .........579

MEIO AMBIENTE
A questão ambiental e a Constituição de 1988:
reflexões sobre alguns aspectos importantes
Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo, Roseli Senna Ganem, Maurício Boratto
Viana, José de Sena Pereira Jr., Ilídia da Ascenção G. Martins Juras .........599
MUNICÍPIO E POLÍTICA URBANA
Autonomia municipal na Constituição Federal de 1988
Márcio Silva Fernandes .........621
A Constituição Federal de 1988 e a criação de
novos municípios e regiões metropolitanas
Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo, Maria Sílvia Barros Lorenzetti, .........639
A Constituição Federal de 1988 e a política urbana
Maria Sílvia Barros Lorenzetti .........659

NACIONALIDADE
A Constituição Federal de 1988 e a nacionalidade brasileira
Vicente Marcos Fontanive .........675
Distinções entre natos e naturalizados nas Constituições brasileiras
Elir Cananéa Silva .........693

ORÇAMENTO PÚBLICO
A herança orçamentária da Constituição
Roberto Bocaccio Piscitelli, Alexandre de Brito Nobre .........711

PARTIDOS POLÍTICOS
Autonomia de organização partidária: antes e depois
da Constituição Federal de 1988
Márcio Nuno Rabat .........727

PODER JUDICIÁRIO
A judicialização da política no contexto da
Constituição Federal de 1988
Amandino Teixeira Nunes Junior .........739
O Judiciário na Constituição de 1988. Um poder em evolução
Regina Maria Groba Bandeira .........761

PREVIDÊNCIA SOCIAL
A Constituição de 1988 e seus impactos na Previdência Social
Cláudia Augusta Ferreira Deud .........781
PROCESSO LEGISLATIVO
A competência conclusiva das comissões da
Câmara dos Deputados – da previsão constitucional à prática
Luciana Botelho Pacheco .........805

RELAÇÕES CIVIS-MILITARES
Poder político versus poder militar: algumas reflexões
Fernando Carlos Wanderley Rocha .........823

SALÁRIO MÍNIMO
Diretriz constitucional para políticas de salário mínimo
José Veríssimo Teixeira da Mata .........843

SAÚDE
Desafios para a Saúde 20 anos após a promulgação
da Constituição Federal
Luciana da Silva Teixeira .........857
Embates sobre a Saúde
na Constituinte e 20 anos depois
Fábio de Barros Correia Gomes .........877
Saúde nas Constituições brasileiras
Fábio de Barros Correia Gomes .........889

SERVIDOR PÚBLICO
Acumulação de proventos de inatividade
com vencimentos de cargo
Kley Ozon Monfort Couri Raad .........903

SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL


A reestruturação do sistema financeiro nacional diante da alte-
ração do art. 192 da Constituição pela Emenda Constitucional
nº 40, de 2003 .........917
José Machado de Oliveira Filho
TRIBUTAÇÃO
Constituição de 1988: a hipertrofia tributária
e suas conseqüências
Murilo Rodrigues da Cunha Soares .........937
“Desconstitucionalizar” a tributação
Cristiano Viveiros de Carvalho .........959
Tributação da fortuna, preceito
constitucional irrealizado
Paulo Euclides Rangel .........975

Perfil profissional dos autores, dos organizadores


da obra e dos membros da Comissão Editorial,
em ordem alfabética .........993
Apresentação
13

Apresentação
Arlindo Chinaglia

Ao conjunto das atividades projetadas para comemorar os 20 anos


da promulgação da Constituição Federal não poderia faltar o exame
acurado de seus efeitos sobre a organização e o cotidiano da Nação
brasileira e sobre a dinâmica política e social que demandou e de-
manda aperfeiçoamentos no texto constitucional. Isso nos oferece este
livro, ao reunir 53 artigos de consultores legislativos da Câmara dos
Deputados que, por obrigação funcional e vinculação profissional com
os temas, acompanham com especial atenção as políticas públicas e as
muitas mudanças vividas pelo país na vigência da nova Carta.
A amplitude dos temas, a variedade de enfoques, a qualidade dos tex-
tos – escorados no conhecimento, na experiência e na interação com
o mundo parlamentar e legislativo – distinguem esta publicação e a
fazem uma referência para o estudo da evolução da nossa sociedade a
partir dos rumos traçados em 1988. Certamente, nenhum assunto é
esgotado nesta obra – nem seria essa a proposta –, mas todos recebem
um tratamento capaz de despertar novos olhares, instigar outras opi-
niões, promover o debate – indispensável, aliás, ao ambiente democrá-
tico que a Constituição veio restabelecer e assegurar.
Trata-se, no caso, de mais uma contribuição da Câmara dos Deputados
ao debate dos temas mais importantes para a sociedade brasileira.
Prefácio
15

Prefácio
Comitê organizador

A Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados orgulha-se em


oferecer esta obra ao público brasileiro. Está composta por mais de
cinqüenta artigos, exclusivamente de consultores legislativos de seu
quadro, que analisam, em profundidade, os impactos decorrentes da
Constituição Federal de 1988 em diversos setores da sociedade brasi-
leira. O livro integra o elenco de atividades planejado conjuntamente
pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal para comemorar
os vinte anos da promulgação da Carta Magna.
Não se trata de um livro dedicado à história do processo constituinte
nem de uma análise específica do texto constitucional. A obra encon-
tra seu papel singular no exame de diversos efeitos que a nova ordem
constitucional impôs a variados setores da nação.
Por força de sua própria função institucional, os consultores legis-
lativos da Câmara dos Deputados encontram-se em uma condição
singular para realizar observações precisas e desapaixonadas sobre os
impactos da Constituição na sociedade. São eles testemunhas ocu-
lares da preocupação dos legisladores, da pressão da sociedade civil
organizada, dos problemas advindos da implementação das leis e das
necessidades da população tornadas evidentes pelo processo de fisca-
lização parlamentar. São espectadores privilegiados dos processos e
debates políticos que levam à elaboração da legislação e à reorientação
de políticas públicas.
Ao acompanharem o dia-a-dia do processo legislativo; ao assessora-
rem o parlamentar no exercício de seu mandato; ao vivenciarem os
trabalhos das comissões técnicas do Parlamento; e ao analisarem os
efeitos, sejam eles positivos ou negativos, das políticas públicas, os
consultores legislativos deparam-se com o universo normativo torna-
do realidade pela Constituição de 1988, na plenitude de suas virtudes
e de suas imperfeições. Foi a partir dessa experiência com o processo
legislativo, desse convívio com a tomada de decisões no Parlamento,
que os autores deste livro fundamentaram suas análises e suas conclu-
16

sões. Os artigos aqui publicados não constituem, portanto, exercícios


puramente acadêmicos. Antes, são pesquisas estreitamente vinculadas
à realidade vivida no âmbito do parlamento brasileiro por aqueles que,
em questões de direito e políticas públicas, assessoram diretamente os
legisladores brasileiros.
O projeto deste livro nasceu da idéia de se celebrar o segundo decênio de
vigência da Constituição Federal com análises dos fatos dela decorrentes
que pudessem contribuir para uma melhor compreensão da diversidade
dos problemas nacionais e para estimular o mais amplo debate.
Para sua consecução, os autores debruçaram-se sobre as questões
constitucionais mais relevantes de suas respectivas áreas de trabalho
para produzir análises originais sobre os impactos da Constituição de
1988 em setores distintos da sociedade nestes últimos vinte anos. In-
tegrantes de praticamente todas as áreas de atuação da Consultoria
Legislativa, em número superior a 60 consultores, engajaram-se no
projeto, produzindo, revisando e organizando os 53 textos que com-
põem a presente obra.
Num primeiro momento, criou-se um Comitê Organizador, forma-
do por quatro consultores, que se encarregou de estabelecer o crono-
grama de atividades; produzir um termo de referência a ser seguido
pelos autores; preparar a convocação geral para a participação dos
consultores no projeto, motivá-los, mobilizá-los e orientá-los; orga-
nizar a coleção de trabalhos, dando-lhe a unidade adequada a uma
obra deste porte; e, por fim, gerenciar todas as pendências referentes
à consecução do projeto.
Também foi criada uma Comissão Editorial, constituída por cinco
consultores legislativos. A essa Comissão coube a revisão dos traba-
lhos elaborados pelos consultores participantes do projeto e sua apro-
vação, além de produzir indicações e sugestões para a organização do
livro. A Comissão Editorial adotou o critério de revisão por pares,
comum no meio acadêmico, optando, inclusive, pelo anonimato na
tarefa de analisar os trabalhos.
É importante registrar que, dada a peculiar forma de condução do
projeto, bem como das características de grande variedade de forma-
ção e experiência profissional do quadro de pessoal da Consultoria
Legislativa, o conjunto dessa obra não reflete um pensamento único,
não possui um tipo único de categoria de análise ou mesmo de en-
foque de abordagem. Reflete, antes de mais nada, a independência
intelectual que caracteriza o corpo técnico desse órgão e explora uma
de suas maiores riquezas: a diversidade de opiniões e a multifacetada
Prefácio
17

capacidade de análise dos acontecimentos e das políticas. Assim, po-


demos identificar abordagens que caracterizam contraponto a outras
idéias aqui apresentadas, do que resultará, inegavelmente, um enrique-
cimento da capacidade analítica do leitor.
O resultado do chamamento à participação no projeto certamente
surpreendeu a todos aqueles envolvidos na organização. As estimati-
vas mais otimistas de participação mostraram-se diminutas em vista
do entusiasmo demonstrado pelos consultores que se predispuseram
a participar do livro com suas contribuições. Em vez dos vinte a trin-
ta artigos antecipados, o projeto atraiu, como dissemos, mais de cin-
qüenta trabalhos.
Optou-se por organizar o conjunto da obra de maneira diferente da-
quela existente no texto constitucional. Julgou-se mais adequado, por
motivos de ordem técnica, dispor os artigos organizados a partir de te-
mas selecionados, todos obedecendo à ordem alfabética. Cremos que,
embora menos compactada, a obra assim organizada facilita a leitura
e a pesquisa pelo leitor.
No que tange ao seu conteúdo, podemos afirmar categoricamente que
a obra caracteriza-se pela magnitude de sua abrangência. Os autores
analisam desde os impactos da Constituição na agricultura até os seus
efeitos na ordem tributária. Comunicação, cultura, educação, energia,
saúde e previdência social são, também, algumas das áreas contempla-
das com capítulos no livro. Analisam-se, ainda, impactos no Direito
de Família, do Consumidor, do Trabalho, bem como no Direito Penal.
O livro também se debruça sobre a política urbana, sobre a função
social da propriedade e sobre a judicialização da política, questões que
hoje ocupam lugar de destaque na agenda acadêmica. Não faltam,
tampouco, análises sobre os impactos da constituição no Poder Ju-
diciário, no processo legislativo, nos partidos políticos e no sistema
financeiro nacional, entre muitos outros aspectos.
Todavia, as análises aqui contidas estão muito longe de esgotar to-
dos os impactos da Constituição na sociedade brasileira nestes vinte
anos, desde a promulgação da Carta Magna. Ao contrário, este livro
apenas inicia um debate aberto sobre um tema que é tão complexo
quanto dinâmico, e tão dinâmico quanto deve ser a própria norma-
tização constitucional de uma sociedade. E a Consultoria Legislativa
da Câmara dos Deputados estará disposta a manter acesa esta chama
e aprofundar as análises que permitam embasar as mudanças decor-
rentes desse dinamismo.
À guisa de introdução
19

Constituinte de 1987
e a Constituição possível
José Theodoro Mascarenhas Menck

Aos 5 dias do mês de outubro do ano de 1988, culminavam os tra-


balhos da Assembléia Nacional Constituinte com a promulgação de
uma nova Constituição. A Constituinte, que então se dissolveu, havia
sido composta por 487 deputados e 69 senadores e foi a quinta1 da
história brasileira. Já a Carta Constitucional por ela elaborada foi a
oitava adotada pelo Brasil2, sétima durante a República.
Muito criticada por seu excessivo detalhismo, por conter artigos con-
flitantes e por gerar sobreposições entre os entes da Federação, a Carta
Constitucional de 1988 tem sido acusada de gerar problemas na exe-
cução de políticas econômicas, sociais e administrativas ou, pelo me-
nos, de dar margem ao recrudescimento de diversos conflitos nessas
áreas. Sinal de que as críticas não são de todo infundadas é o fato de a
“Constituição Cidadã”, como foi chamada pelo presidente da Consti-
tuinte, deputado Ulysses Guimarães na cerimônia de promulgação da
Carta, chegar ao seu vigésimo aniversário tendo incorporado ao seu
texto original modificações várias, oriundas de 56 emendas constitu-
cionais e de 6 emendas revisionais, totalizando 62 emendas.3
A Constituição de 1988, no ponto de vista do então presidente José
Sarney, conhecido crítico do texto, é excelente na parte dos direitos
humanos e sociais, porém peca por seu hibridismo, por ser ao mesmo
tempo parlamentarista e presidencialista, pelo seu forte potencial ge-

1
Sexta, se considerarmos o Congresso Nacional Constituinte de 1967.
2
Oitava, considerando-se a Emenda Constitucional de 1969 como uma Carta
Constitucional autônoma com relação à de 1967. Nona, caso levemos em consi-
deração o juramento da Carta de Cadiz, feito por D. João VI as vésperas de sua
partida para Portugal, cuja vigência restringiu-se a um único dia, pois foi abro-
gada no dia seguinte.
3
Isso até o fim do primeiro semestre do ano de 2008, quando o presente texto
foi escrito.
20 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

rador de ingovernabilidade. Entre suas virtudes, costuma-se apontar o


alto índice de participação da sociedade em sua elaboração.4
Em linhas gerais, podemos dizer que a Constituição de 1988 man-
teve os preceitos fundamentais que vigoravam nas Cartas anteriores.
A nova Constituição confirmou diversos princípios da tradição demo-
crática republicana do século XX, tais como o federalismo, o presiden-
cialismo, o multipartidarismo, o bicameralismo e a representação pro-
porcional. Procurou, também, realçar o Poder Legislativo reformando
elementos do equilíbrio institucional por meio de uma redivisão das
competências constitucionais entre os poderes, assim como procurou
redesenhar a Carta política nacional, ao alçar os municípios como en-
tes formadores da federação brasileira.
Diante desse quadro, duas questões se impõem: preliminarmente,
por que uma nova constituição? O quê, realmente, significava, o
quê simbolizava, na década de oitenta do século XX, uma nova
carta constitucional?
Já a segunda questão é saber: teria sido possível uma Constituição di-
ferente? Ou seja, no momento histórico específico em que a Carta foi
confeccionada, teria sido possível à Constituinte elaborar uma Carta
Constitucional sintética, enxuta, que evitasse as críticas que parte da
doutrina e alguns do mundo político lhe atribuem? Em suma, teria
sido possível, naquele específico ambiente político, a redação de uma
Constituição tecnicamente mais bem feita?
Cremos ser possível responder a essas duas questões recorrendo
aos Anais da Constituinte, ou seja, recorrendo às palavras dos pró-
prios constituintes.
No que diz respeito à primeira questão: o porquê de uma nova carta
constitucional, podemos encontrar a resposta no pronunciamento do
Constituinte Roberto Freire (PCB-PE), na sessão do dia 4 de feve-
reiro de 1987. Naquela ocasião, sua primeira intervenção na Consti-
tuinte, o deputado constituinte declarou, na condição de líder de seu
partido, verbis:
A tese de Assembléia Nacional Constituinte foi, pela primeira
vez, levantada neste país exatamente pelo Partido Comunista
Brasileiro, no seu 7o Congresso, realizado em dezembro de 1967,
na clandestinidade e sob a mais dura repressão policial. Claro,
tese de pouca repercussão social, tese de pouca influência po-
lítica naquele momento, mas tese fundamental para unificar as

4
Apud Adelmo Garcia Júnior, A Câmara dos Deputados nas relações internacionais do
Brasil (1998 a 2004), manuscrito, Brasília, 2006.
Constituinte de 1987 e a Constituição possível
21

forças democráticas que resistiam à ditadura. E isto é exemplo:


o MDB, em 1970, no Recife, numa reunião de militantes de
lideranças nacionais, passou a discutir a tese da Assembléia Na-
cional Constituinte. Muitos aqui se recordam, era uma tese mi-
noritária, uma tese que não encontrou guarida, no início, dentro
do MDB, uma tese que foi encumeada, inquinada pela reação
pelos setores conservadores, como uma tese comunista. E era
verdade. Era a tese levantada pelos comunistas para unificar as
forças democráticas e superar o autoritarismo e a ditadura. O
ano de 1970 foi a data fundamental para a virada do MDB como
núcleo de aglutinação de todas as forças democráticas deste país
que lutavam contra o mais duro totalitarismo, contra a ditadura
do então general Emílio Garrastazu Médici.

Ou seja, a tese de uma nova Constituição estava intimamente vincula-


da à idéia de superar o regime militar, de superar o regime autoritário
intimamente associado à Carta Constitucional então vigente. Resga-
tar as liberdades públicas significava, naqueles dias, reescrever o “con-
trato social” da sociedade brasileira. Tanto que diversos parlamentares,
dos mais diversos partidos, reclamarão, ao longo das primeiras sessões,
contra a usurpação dos poderes do Poder Legislativo e, de forma geral,
contra a legislação oriunda do período militar, que ficaria, posterior-
mente, conhecida como “entulho autoritário”. Citemos, como exem-
plo, o deputado constituinte Amaral Neto (PDS-RJ), líder do partido
que havia justamente apoiado os governos militares:
Sem a devolução das prerrogativas não há imunidade nesta Casa.
Estamos todos esquecendo disso. Nós estamos sob o império do
artigo 55 [da Constituição de 1969] que é infame, que é despu-
dorado, que é draconiano, que é garroteador e que nos tirou a li-
berdade até agora, todas elas. (...) Eu quero derrubar este artigo;
eu quero a devolução das prerrogativas pelas quais lutamos.

Ou, ainda, o deputado constituinte Haroldo Lima (PCdoB-BA), que,


também como líder de seu partido, naquela mesma quarta sessão, ini-
ciou sua manifestação, a primeira na Constituinte, declarando que, era
necessário que fosse tomada “uma decisão constitucional que assegure
que sejam revogados alguns artigos – são nove artigos principais, da
atual Constituição Federal –, para que essa Constituinte possa funcio-
nar de forma livre e soberana”.
Em suma, é claro, para todos que leiam os pronunciamentos políticos
daqueles anos, que a ordem constitucional passada não gozava das
simpatias, seja do mundo político, seja do mundo jurídico, razão pela
qual a aspiração por uma nova Constituição espelhava os anseios ge-
rais de mudança e de reconquista das liberdades democráticas.
22 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Quanto à segunda questão: teria sido possível à Constituinte escrever


uma constituição mais técnica, que versasse menos detalhadamente
sobre matérias cuja natureza fosse nitidamente infra constitucional?
Também nesse ponto cremos poder recorrer aos pronunciamentos
dos constituintes.
Desde seus albores, o clima político que envolvia a Assembléia
Nacional Constituinte se revela nos discursos dos parlamentares
constituintes. Clima este que insistia em reformar, integralmente, o
Estado e a sociedade brasileira, da forma mais ampla possível. E o
instrumento para esta reforma do Estado seria a novel constituição
que estavam a redigir.
Instalada no dia 1o de fevereiro de 1987, o primeiro pronunciamento
foi feito não por um constituinte, mas sim pelo ministro presidente do
Supremo Tribunal Federal, ministro José Carlos Moreira Alves que,
por força da emenda constitucional que convocou a Assembléia Na-
cional Constituinte5, dirigia a sessão de instalação e deveria presidir a
eleição do seu presidente na sessão seguinte.
Em seu pronunciamento, o ministro Moreira Alves procurou situar
a idéia “Constituição” dentro do pensamento jurídico ocidental. Seu
discurso iniciou-se invocando De Harlay, jurista gaulês do século XVI,
que dirigiu a Henrique III de França as seguintes palavras:
Temos, senhor, duas espécies de leis: umas são as ordenanças de
nossos reis, que podem alterar-se conforme a diversidade dos
tempos e dos negócios; outras são as ordenanças do reino, que
são invioláveis, e pelas quais vós subistes ao trono, e esta coroa foi
conservada por vossos predecessores.

Ou seja, Moreira Alves lembrou que, de há muito, se encontra no pen-


samento jurídico o postulado da supremacia de normas fundamentais.
Supremacia, essa, que tomará diversas formas ao longo dos séculos.
Em seu erudito discurso, Moreira Alves lembrou-se de também citar
Loewenstein, jurista alemão do início do século XX, segundo o qual:
A massa do povo é suficientemente lúcida para reclamar um mí-
nimo de justiça social e de segurança econômica. Porém, nem a

5
A Emenda Constitucional no 26 à Constituição de 1969 declarava em seus artigos
primeiro e segundo:

Art. 1o Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão


unicameralmente em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º
de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional.
Art. 2o O Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembléia Nacional
Constituinte e dirigirá a sessão de eleição do seu Presidente.”
Constituinte de 1987 e a Constituição possível
23

mais perfeita Constituição está em situação de satisfazer essas


aspirações, por mais pretencioso que possa ser o catálogo dos
direitos fundamentais econômicos e sociais. A Constituição não
pode solver o abismo entre a pobreza e a riqueza, não pode tra-
zer comida, nem casa, nem roupa, nem educação, nem descanso,
ou seja, as necessidades essenciais da vida.

Com essa citação, Moreira Alves admoestou o Constituinte a se afas-


tar da “idéia ingênua – que a esperança reacende todas as vezes em
que se redige nova Constituição – de que a Lei Fundamental, se con-
venientemente elaborada, será o remédio de todos os males, a solução
de todos os problemas.”
Era o jurista falando. Através de Moreira Alves peroravam todos
os clássicos posicionamentos do Direito que viam na Constituição
um instrumento:
Um instrumento pelo qual o Estado liberal disciplina os prin-
cípios da liberdade política e o da separação dos Poderes. Um
instrumento pelo qual o Estado social, de índole democrática,
regula o direito ao trabalho, à previdência, à educação, bem como
estabelece os moldes de sua intervenção no domínio econômi-
co. Um instrumento, enfim, pelo qual o Estado socialista reduz
drasticamente, ou elimina, a iniciativa privada no concernente
aos meios de produção, e disciplina as instituições sócio-eco-
nômicas e políticas desse regime e a posição dos cidadãos na
sociedade assim estruturada.

Ou seja, as Constituições, quaisquer que sejam suas orientações, nada


mais são do que instrumentos jurídicos de organização da socieda-
de. Eis a grande mensagem que o Presidente do Supremo Tribunal
Federal quis passar aos constituintes. Para que esse instrumento seja
eficaz é preciso que seja sensato. Nesse ponto, veio à baila texto do
jurista italiano Biscaretti di Ruffia sobre a extensão ideal do conteú-
do das Constituições:
Na realidade, a melhor solução parece estar no meio, uma vez
que, se, por um lado, o excessivo laconismo de uma constituição
pode permitir ao legislador ordinário mudar-lhe sensivelmente,
na prática, o conteúdo por intermédio de suas normas de apli-
cação, por outro, a prolixidade excessiva diminui seu prestígio,
porque requer demasiadas e freqüentes revisões.

O desafio seria encontrar esse meio termo desejável. Com essas pala-
vras, votos e advertências, Moreira Alves instalou a Assembléia Na-
cional Constituinte de 1987.
Já na sessão seguinte, o clima político começa a se revelar não tão pro-
penso a uma Carta Constitucional nos moldes desejados pelo jurista
24 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

presidente do Supremo Tribunal Federal. Após solucionar questão de


ordem levantada por diversos parlamentares, todas dizendo respeito
à participação na Assembléia Nacional Constituinte dos senadores
eleitos em 1982, anteriores, portanto, à convocação da Constituin-
te, teve início a votação para a presidência da Constituinte. Dois fo-
ram os candidatos que se apresentaram: deputado Ulysses Guimarães
(PMDB-SP) e deputado Lysâneas Maciel (PDT-RJ), cujo nome foi
apresentado ao plenário pelo deputado José Fernandes (PDT-AM).
Ao tomar a palavra, como candidato à Presidência da Constituinte, o
deputado Lysâneas Maciel declarou que:
Sr. Presidente, o desafio agora é o seguinte: não se trata de fazer
uma Constituição bem feita, não se trata de uma boa feitura
jurídica de uma Constituição, mas se trata de saber se os Parla-
mentares federais vão ter a sensibilidade de assimilar as perspec-
tivas e as prioridades populares.

E arrematou seu discurso dizendo:


O importante, agora que estamos fazendo as leis, não é bus-
car os doutores em lei, um eminente jurista, como por exemplo,
Afonso Arinos. O importante agora é que, se procurarmos as
doutrinas jurídicas bem feitas, o aspecto formal da formação da
Constituinte, vamos perder a nossa sensibilidade para assimilar
a perspectiva dos setores oprimidos, os grandes ausentes deste
processo constituinte.

Nota-se que o desapego ao preceito jurídico de que uma constituição


é um instrumento eminentemente jurídico de organização da socie-
dade tem vários seguidores entre os Constituintes, pois nos anais da
Constituinte as palavras de Lysâneas Maciel são seguidas de expres-
sões de apoio.
Já Ulysses Guimarães somente toma a palavra após sua eleição para
presidente da Assembléia, ocasião na qual agradece sua eleição. Ape-
nas no dia seguinte, dia 3 de fevereiro, é que faz seu pronunciamento
à Constituinte e à nação. Nesse pronunciamento Ulysses Guimarães
expõe suas expectativas com relação à nova Constituição e às respec-
tivas conseqüências para a Nação, in verbis:
Srs. Constituintes, esta Assembléia reúne-se sob um mandato
imperativo: o de promover a grande mudança exigida pelo nosso
povo. (Palmas.) Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A
Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar.

A ânsia por mudanças extravasava por todos os lados:


O Brasil não cabe mais nos limites históricos que os explora-
dores de sempre querem impor. Nosso povo cresceu, assumiu
Constituinte de 1987 e a Constituição possível
25

o seu destino, juntou-se em multidões, reclamou a restaura-


ção democrática, a justiça social e a dignidade do Estado.
Estamos aqui para dar a essa vontade indomável o sacramen-
to da lei. A Constituição deve ser – e será – o instrumento
jurídico para o exercício da liberdade e da plena realização do
homem brasileiro. (...)
Do homem, acossado pela miséria, que cumpre extinguir, e com
toda a sua potencialidade interior, que deve receber o estímulo
da sociedade.

E para dar margem a que todos possam realizar as suas potencialida-


des, Ulysses Guimarães propõe “vencer as injustiças sem violar a li-
berdade”, o que significava dizer manter a “livre iniciativa, necessária
ao desenvolvimento do país”, porém “sem o sacrifício dos trabalha-
dores”. “A riqueza não poderá acumular-se, ao mesmo tempo em que
aumentam a miséria e a fome.” Deveriam ser revistos os salários, pois
“não existe sociedade que seja tão cruel com os trabalhadores”, salvo
alguns países da África. Salários justos equivaleria a desenvolvimento
econômico com a estabilidade monetária. Dever-se-ia rever a distri-
buição fundiária: “Sempre que o direito de propriedade se opuser ao
interesse nacional, que prevaleça o interesse da Nação”. A “expoliação
externa” com a “insânia dos centros financeiros internacionais e os
impostos que devemos recolher ao império” tinha de ser combatida.
A estrutura social, arcaica, tinha de ser atualizada, já que “se amarra
praticamente nas Ordenações Filipinas”. “Não podemos pensar no
liberalismo clássico, que deixa às livres forças do mercado o papel
regulador de preços e salários em uma época de economia internacio-
nalizada e de cartéis poderosos.”
Na questão da organização do Estado, propriamente dita, dois seriam
os pilares a serem reforçados: Liberdade Política e Federação. Refor-
çar a Federação significava “em primeiro lugar, uma justa apropriação
tributária”. Já a Liberdade Política seria dada por um eterno in fieri,
posto que não é possível alcançá-la “com o mero gesto da vontade”.
Ela se constrói a cada dia. E como? Com a educação do povo, com a
Educação Pública, pois “a cidadania começa no alfabeto.”
As idéias que Ulysses Guimarães expôs, naquela ocasião, como pode
ser facilmente constatado, compreendem o estatuto programático de
um partido político, com vista a uma atuação de longo prazo, pois
implicava atacar um amplíssimo leque de necessidades nacionais, al-
mejando reformular integralmente a sociedade brasileira. De forma
alguma caberia nos estreitos limites de uma carta constitucional que
visasse apenas organizar os poderes do Estado e dar as linhas mestras
26 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

da organização social e econômica da sociedade, como prescrevia a


doutrina jurídica clássica.
Esses posicionamentos reformuladores extremados seriam, com algu-
mas nuanças, incorporados aos discursos que todos os demais líderes
pronunciariam nos primeiros dias da Constituinte, tornando virtual-
mente nula a possibilidade de uma constituição menos abrangente do
que a atual Carta de 1988.
Como exemplo podemos citar os discursos inaugurais de quatro lí-
deres, representando quatro partidos diversos: o do Partido Demo-
crata Cristão; o do Partido Comunista Brasileiro; o do Partido dos
Trabalhadores; e o Partido Municipalista Brasileiro. Todos os quatro
líderes se manifestaram na sessão de 4 de fevereiro de 1987 e, ainda
que oriundos de campos diversos do universo político, comungavam
entre si – e com o Presidente Ulysses Guimarães – a ânsia de reformar
integralmente o Brasil via uma nova constituição.
Pronunciou-se pelo Partido Democrata Cristão seu líder, o Deputado
Constituinte Mauro Borges (PDC-GO) in litteris:
No Congresso Nacional e na Constituinte, a grande preocupação
da Democracia Cristã será a de contribuir para a transformação
da sociedade brasileira em uma sociedade justa, livre, fraterna,
solidária e distributiva.
Para a Democracia Cristã, entre os aspectos fundamentais a se-
rem assegurados pela nova Constituição está, inarredavelmente,
a igualdade de oportunidade.
Na prática não há igualdade de direito sem uma efetiva igual-
dade de oportunidade: • acesso à justica;
• garantia de educação;
• habitação;
• saúde;
• trabalho, etc.

Ou seja, para o Partido Democrata Cristão, fazia-se mister abordar


na novel Constituição, pelo menos garantias efetivas de “acesso a jus-
tiça; garantia de educação; habitação; saúde; trabalho”, dentre outros.
Nenhuma palavra sobre a organização do Estado, sobre os Poderes da
União, sobre a competência jurisdicional dos tribunais, ou quaisquer
outras matérias eminentemente constitucionais.
Pelo Partido Comunista Brasileiro manifestou-se o constituinte Ro-
berto Freire (PCB-PE), seu líder, que, após reconhecer que a Consti-
tuinte não levaria o país ao seu ideal, à República Socialista, declarou
que progressos eram possíveis, razão pela qual passou a pregar a união
Constituinte de 1987 e a Constituição possível
27

das forças de esquerda, as “progressistas”, realçando que, unidas, elas


poderiam, in verbis:
Articular, a nível constitucional, princípios que possam nortear
uma Constituição democrática que viabilize direitos e garan-
tias para as amplas maiorias deste País, que são discriminadas,
marginalizadas por uma sociedade autoritária e por um Estado
profundamente reacionário como é o brasileiro, historicamente.
É necessário que discutamos as idéias, tentando formar maiorias
que assegurem, por exemplo, uma discussão moderna em relação
ao direito difuso de coletividades, de comunidades, garantindo-
lhes, inclusive, representação judicial e legislativa.
É necessário que se discuta, concretamente e a nível constitucio-
nal, o direito dos trabalhadores como cidadãos plenos também
nas suas atividades de trabalho, na fábrica; o direito dos traba-
lhadores nos seus mais elementares princípios: o direito de greve,
da liberdade e da autonomia sindical.
Precisamos discutir a questão econômica deste país, sabendo
definir até onde vai a intervenção estatal na defesa das nossas
riquezas e da nossa soberania, limitando, portanto, aquilo que se
determina hoje e se define como multinacionais ou, mais gene-
ricamente, como capital estrangeiro.
Temos de definir a questão social, que é tão fácil dizer-se, é tão
fácil conceituar-se, mas tão difícil implementar-se e aplicar-se.
É um direito de todos a educação e a saúde, e que neste país é
privilégio dos ricos. Esta Constituinte tem que dizer não apenas
como intenção, mas buscar normas e comandos que implemen-
tem, concretizem esse direito para todos os cidadãos deste país.

Historicamente, não seria possível esperar uma manifestação do Par-


tido Comunista muito diferente, que não buscasse uma mudança ins-
titucional profunda. Daí a abordagem de matérias realmente Consti-
tucionais no discurso do seu líder: “direito difuso de coletividades, de
comunidades” e a possibilidade de suas representações seja no Judici-
ário, seja no Legislativo. Roberto Freire não entra em detalhes sobre
o quê, efetivamente, são, ou significam esses direitos difusos, muito
menos sobre seus limites, mas não seria aquela a oportunidade pró-
pria. Na oportunidade o deputado constituinte estava fazendo uma
declaração de princípios. Em sessões outras detalharia o assunto.
Ao mesmo tempo, no entanto, não fugindo ao espírito dominante na-
queles dias, o líder dos comunistas justificava a constitucionalização
de princípios do Direito do Trabalho; de princípios de economia, com
um certo viés xenófobo; da necessidade da abordagem constitucional
de problemas administrativos tais como os referentes à Educação e à
28 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Saúde “não apenas como intenção”, mas com comandos que “imple-
mentem, concretizem” esses direitos “para todos”.
Por fim, naquela mesma tarde manifestou-se o líder de uma nova força
política que então se consolidava, o Partido dos Trabalhadores – PT,
pela sua voz mais conhecida: deputado constituinte Luiz Inácio Lula
da Silva (PT-SP). Foi um pronunciamento radical, aquela primeira
manifestação do PT:
Não quero dividir este Congresso entre direita e esquerda, não
quero dividir este Congresso entre pobres e ricos. Quero dividir
este Congresso, na verdade, entre um grupo de cidadãos que têm
bom senso e querem resolver os problemas definitivos da nossa
sociedade, e aqueles que estão aqui apenas para tentar repre-
sentar os interesses inescrupulosos de alguns grupos econômicos
que teimam em matar o nosso povo pagando um salário mínimo
de 1.500 cruzados. (...) O PT assume o trabalho constituinte
com espírito de construção e de diálogo e vê nesse trabalho uma
oportunidade de avanços importantes na luta do povo.
É possível avanços na distribuição justa da renda, condição in-
dispensável para eliminar a pobreza absoluta, para reduzir as
diferenças abismais de padrão de vida entre as classes sociais,
para, em suma, pôr um fim nessa violência institucionalizada que
torna um inferno a vida do posseiro, do bóia-fria, do subempre-
gado, do favelado e que pesa, como fardo insuportável sobre os
trabalhadores do campo e da cidade.
Pede-se avanços também na defesa das nossas matas, dos nos-
sos rios, da nossa fauna, da nossa flora, dos nossos monumen-
tos, da nossa cultura, ameaçados hoje pela ganância dos inte-
resses econômicos.
Pede-se avanços ainda – e muito – no campo das liberdades in-
dividuais, do respeito aos direitos humanos, da eliminação de
toda e qualquer forma de discriminação, de toda e qualquer for-
ma de discriminação contra a mulher, o negro e o índio; da co-
locação dos meios de comunicação de massa a serviço da cultura
do povo e não de monopólios que estão se locupletando com a
manipulação da informação e das mensagens propagandistas; da
democratização do poder, redefinindo os poderes da República
de modo a estabelecer um equilíbrio real entre eles, de garantias
à autonomia dos estados e municípios, de atribuir às Forças Ar-
madas exclusivamente a defesa de nossa soberania, revogando as
leis repressivas do período ditatorial.
(...)
Exige também (o PT) que a Constituinte não fuja às suas res-
ponsabilidades diante da grave crise econômica e política em
que se debate o país, refugiando-se no debate interno do texto
Constituinte de 1987 e a Constituição possível
29

constitucional, enquanto um governo de pouca legitimidade im-


põe, mediante decretos-leis, fatos consumados que estreitam o
campo do processo constitucional. A Constituinte (...) tem o de-
ver de assumir sua liberdade e soberania e interferir diretamente
na fixação de políticas para o governo provisório executor”.

Temos aqui representados, grosso modo, todos os amplíssimos cam-


pos pelos quais a Constituição de 1988 se estenderia. O constituin-
te Luiz Inácio Lula da Silva discorreu sobre os mais variados temas,
onde a reforma seria, a seu critério, necessária. Alguns efetivamente
constitucionais, outros nem tanto, mas, efetivamente, eram assuntos
aos quais a Constituição não se furtaria.
A distribuição da receita tributária, assunto intimamente conexo com
o federalismo e com a autonomia real dos entes da federação, foi abor-
dada como sendo o assunto prioritário pelo líder do Partido Munici-
palista Brasileiro, constituinte Antônio Farias (PMB-PE).
Iremos defender também, uma reforma tributária para atender e
distribuir melhor a receita nacional, para que estados e municí-
pios tenham uma participação maior na receita brasileira.

Mas nem mesmo os municipalistas esqueceram os artigos programáticos:


Votando uma Constituição progressista, uma Constituição que
atenda realmente ao povo pobre, ao povo humilde. Votarmos
uma reforma agrária que dê instrumentos eficazes para que o
governo a realize imediatamente; votarmos leis para que as de-
sigualdades brasileiras sejam aos poucos eliminadas, para que
todos nós tenhamos, no momento atual brasileiro, uma partici-
pação maior nas decisões do Governo.

Com essas intenções dos Constituintes era inelutável que a Constitui-


ção de 1988 fosse tão ampla quanto efetivamente o é.
Não podemos, também, olvidar a influência exercida sobre a Cons-
tituição pelas magnas manifestações populares que acompanharam
todo o processo constituinte durante os anos de 1987 e 1988. Se o
espírito dos constituintes era de reformar integralmente o Estado
brasileiro, era porque a população, de forma geral, estava imbuída
da crença que estas reformas seriam possíveis, e que aquele era o
momento mais adequado para efetivá-las. A imprensa cobria e va-
lorizava sobremaneira as manifestações nos corredores e vizinhan-
ças do Palácio do Congresso Nacional, em Brasília, o que implicava
alimentar, ainda mais, os grupos de pressão a se organizarem. Lo-
bies de todos os matizes se organizaram e marcharam sobre Brasília.
É indubitável que estes movimentos foram os responsáveis pela
30 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

incorporação de seus interesses, muitas vezes corporativos, no tex-


to constitucional.
Destarte, não era possível à Constituinte escrever a Constituição de
outra forma. No ambiente político que predominava logo após o
fim do ciclo de governos militares, não teria sido factível a redação
de uma Carta Constitucional que não fosse abrangente e detalhista.
Por conseqüência, a Constituição de 1988 não pode fugir à sina que
o ministro Moreira Alves anteviu ao pronunciar o primeiro discurso
da Assembléia Nacional Constituinte de 1987, citando di Ruffia: “a
prolixidade excessiva diminui seu prestígio, porque requer demasia-
das e freqüentes revisões”.
À guisa de introdução
31

Dinâmica constitucional e
aprimoramento da democracia
Ricardo José Pereira Rodrigues

Por mais que o desejemos, uma Constituição não pode ser concebida
como um documento imutável. O emendamento e as mudanças de
critérios para sua interpretação fazem, na realidade, parte de seu pro-
cesso evolutivo.
Porém, desde sua promulgação em 1988, a Constituição Brasileira
tem sido alvo de inúmeras críticas precisamente por apresentar esse
caráter dinâmico. Uma das mais recorrentes críticas feitas ao texto
constitucional brasileiro diz respeito à natureza efêmera de vários de
seus dispositivos que sofreram, no decorrer dos últimos vinte anos,
um número muito elevado de alterações. As críticas concentram-se,
sobretudo, no supostamente elevado número de emendas constitu-
cionais aprovadas e aparecem, com freqüência, nos principais veí-
culos de imprensa do país, e são amplamente difundidas nas cáte-
dras universitárias.
Para Bandeira de Mello, o emendamento excessivo do texto consti-
tucional faz a população assistir a um verdadeiro funeral. Segundo
ele, o que se testemunha com relação à Constituição é “um processo
de desfiguração por via de emendas que lhe subtraíram caraterísticas
básicas, amputando aspectos fundamentais do seu projeto” (2001, p.
35). A mesma opinião é expressa por Comparato, segundo o qual,
a Constituição já fez por merecer seu réquiem. Para Comparato, a
Constituição continuará a fazer parte, materialmente, do mundo dos
vivos, mas será um corpo sem alma. “Todos nós, profissionais do di-
reito, becados ou togados, continuaremos, por dever de ofício, a fazer
de conta que vivemos num Estado constitucional. Mas as nossas argu-
mentações tomarão, fantasticamente, o aspecto de sábias dissecações
anatômicas: serão análises de um cadáver” (2001, p. 77).
Para os críticos, nossa Constituição peca por não ter um texto imutá-
vel que resistisse a toda e qualquer pressão por mudança. Não raro, tais
críticos apontam a Constituição dos Estados Unidos como paradigma
de um texto constitucional perene e definitivo, cuja história de mais de
32 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

duzentos anos de vida e de poucas emendas constituiriam o modelo


a ser seguido.
Entretanto, a Constituição dos Estados Unidos está longe ser um
exemplo de imutabilidade. Mesmo que, formalmente, o texto cons-
titucional norte-americano somente tenha recebido 26 emendas de
1787 até os dias atuais, mudanças conceituais significativas foram in-
troduzidas via interpretação jurídica ou ação política.
É o caso, por exemplo, dos partidos políticos. Os constituintes norte-
americanos eram contrários à criação de partidos e fizeram questão de
deixar tal instituto fora do texto constitucional. James Madison, em O
Federalista n° 10, deixa claro esta posição ao ressaltar o perigo repre-
sentado pela formação de partidos que, unindo cidadãos em torno de
interesse particulares, poderia se contrapor aos direitos dos demais e
até mesmo aos “interesses permanentes e agregados de toda a comu-
nidade” (1996, p. 130).
De acordo com outro constituinte norte-americano, John Adams, par-
tidos representariam uma força potencialmente destruidora da nação.
Para ele, “as turbulentas manobras (dos partidos) poderiam amarrar
as mãos e destruir a influência de todo homem honesto desejoso de
servir ao bem-comum” (MCCULLOUGH, 2001, p. 422).
Contudo, nem bem o primeiro governo sob a nova ordem constitucio-
nal iniciou suas atividades e logo se formou o sistema partidário dos
Estados Unidos, colocando em lados opostos o partido federalista, do
presidente George Washington, e o partido republicano, sob a lide-
rança de Thomas Jefferson. Hoffstadter explica que os constituintes
não só condenavam retoricamente a formação de partidos como fe-
nômeno desagregador, mas procuraram desenhar uma Constituição
que tivesse entre outros objetivos o de controlar e contrapor-se a essas
instituições. “Gradualmente, porém, os próprios constituintes chega-
ram à conclusão que não se poderia governar sem o apoio de tais or-
ganizações” (HOFSTADTER, 1969, p. VIII).
Exemplo mais emblemático de alteração conceitual da constituição
norte-americana é encontrado nas mudanças de interpretação do tex-
to constitucional feitas pela Suprema Corte dos Estados Unidos, ao
longo dos anos, no que tange à questão racial.
Para não comprometer os avanços no processo de elaboração da Cons-
tituição, os constituintes norte-americanos optaram por não incluir
no texto original nenhum dispositivo que abordasse as questões de
escravidão e discriminação racial. Embora os constituintes de esta-
Dinâmica constitucional e aprimoramento da democracia
33

dos nortistas desejassem uma república sem a mácula da escravidão,


pragmaticamente, seguiram seus companheiros de estados sulistas e
escravocratas na omissão a qualquer referência ao assunto para não
inviabilizar o processo como um todo. O assunto somente passa a ser
tratado, do ponto de vista constitucional, após a Guerra Civil, de 1865,
com três emendas constitucionais. Foram elas a Emenda nº 13, ratifi-
cada em 1865, que aboliu a escravidão; a Emenda nº 14, ratificada em
1868 que garantiu igual proteção legal aos cidadão norte-americanos,
incluindo-se aqui os ex-escravos e os negros; e a Emenda nº 15, ratifi-
cada em 1870, que garantiu aos negros o direito ao voto.
Entretanto, a promulgação dessas emendas, por si só, não resolveu o
problema da discriminação racial no país. De fato, a discriminação
persistiu nos Estados Unidos a despeito das mudanças constitucio-
nais e, muito ao contrário, com o pleno aval das cortes de justiça. A
Suprema Corte considerou, no caso Plessy v. Ferguson, de 1896, que a
segregação racial não violava a igualdade de proteção legal. A decisão
corroborava a doutrina conhecida como “iguais porém separados”. Foi
com base nesta decisão que os americanos destinaram banheiros pú-
blicos distintos para brancos e para negros e acatavam a discriminação
racial em restaurantes e hotéis.
A Suprema Corte mudou sua interpretação somente em 1954. No
caso Brown v. Board of Education, os ministros daquela corte, de for-
ma unânime, derrubaram a interpretação anterior, declarando que, no
caso de escolas, “instalações separadas eram inerentemente desiguais”
(MONK, 2003, p. 221). Além de escolas, a Suprema Corte considerou
inconstitucional a segregação nos transportes coletivos, nas prisões e
nos parques públicos. Outrossim, também considerou inconstitucio-
nal lei estadual do estado da Virgínia que bania casamentos interra-
ciais (MONK, 2003, p. 222).
O tratamento legal que tiveram os partidos políticos e o problema
racial nos Estados Unidos demonstra a mutabilidade do texto cons-
titucional norte-americano. Por meio da ação política pragmática,
como no caso da formação do sistema partidário, ou da interpretação
judicial, como no caso da discriminação racial, a Constituição evoluiu,
acompanhando a dinâmica da sociedade americana sem necessaria-
mente ter que passar por um processo de emendamento. Observe-se
que, dadas às exigências de ratificação por cada um dos cinqüenta es-
tados, o processo de emendamento da Constituição norte-americana
tem se mostrado cada vez mais impraticável. O fracasso da ratificação
do Projeto da Emenda 27, que garantia a igualdade dos direitos a to-
dos os cidadãos, proposto em 1972, se impõe como um símbolo dessa
34 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

impraticalidade. Porém, isso não significa, como demonstramos, que a


Constituição norte-americana de hoje seja a mesma de 1787.
No caso brasileiro, o emendamento, mais célere, sem os entraves da
ratificação do modelo norte-americano, tem-se constituído o vetor,
por excelência, do aperfeiçoamento do texto constitucional. As emen-
das, assim, representam um processo evolutivo no qual se refletem as
mudanças e a própria evolução da sociedade brasileira.
Diversos artigos incluídos na presente coletânea corroboram este ar-
gumento ao destacarem, em suas respectivas análises dos efeitos da
Constituição de 1988, elementos imbuídos desse caráter evolutivo do
processo de emendamento constitucional no Brasil. São artigos que
abordam desde as alterações introduzidas ao instituto da medida pro-
visória até as mudanças feitas no capítulo sobre o Poder Judiciário.
Regina Bandeira, por exemplo, demonstra, em seu artigo sobre a Re-
forma do Poder Judiciário, como a Emenda Constitucional nº 45, de
2004, representou uma evolução importante no aperfeiçoamento do
Judiciário brasileiro (2008).
A Emenda nº 45 buscou soluções para se superar a dita crise do Poder
Judiciário, cujas manifestações mais salientes persistiram na sociedade
brasileira mesmo após as inovações produzidas no bojo da Consti-
tuição de 1988. O excesso de processos encaminhados ao órgão de
cúpula do Poder, a morosidade processual, a dificuldade de acesso à
prestação da justiça pela população mais carente destacavam-se como
os mais graves indícios da mencionada crise.
Bandeira realça, entre as principais inovações introduzidas na Cons-
tituição Federal pela Emenda Constitucional nº 45, a modificação de
princípios do Estatuto da Magistratura, a instituição da súmula vincu-
lante do Supremo Tribunal Federal e a criação do Conselho Nacional
de Justiça.
Dentre os novos princípios que passaram a ser observados pelo Esta-
tuto da Magistratura, Bandeira ressalta as modificações referentes ao
ingresso e promoção na carreira, às férias dos magistrados, ao núme-
ro de juízes e até à proibição do nepotismo. Quanto às súmulas vin-
culantes, segundo Tavares Filho um assunto polêmico entre juristas,
sua criação permite ao Supremo Tribunal Federal “editar súmula de
obediência obrigatória pelo Judiciário e pela Administração Pública
em todas as esferas da Federação” (Tavares Filho, 2005, p. 207). Para
Bandeira, o instituto apresenta o potencial de resolver o problema de
Dinâmica constitucional e aprimoramento da democracia
35

acúmulo de processos no STF, contribuindo para incrementar a cele-


ridade processual e aumentar a segurança jurídica.
Por sua vez, a criação do Conselho Nacional de Justiça representou
uma inovação sem precedentes no âmbito institucional. Tavares Fi-
lho explica que “o órgão tem como finalidades principais a supervisão
disciplinar dos magistrados e a coordenação e o controle da atuação
administrativa e financeira dos órgãos judiciais” (2005, p. 208). Ban-
deira sublinha que se trata de órgão competente para a elaboração de
políticas estratégicas para o judiciário e, apenas em caráter suplemen-
tar, cuidar de questões disciplinares. Não cabe dúvida, entretanto, de
que a criação do órgão representou um aperfeiçoamento do tratamen-
to constitucional do Poder Judiciário, o reforço dos mecanismos de
controle disciplinar da magistratura e o planejamento centralizado da
instituição, em prol da transparência e da “accountability”, essenciais
em qualquer Estado democrático.
Em seu artigo sobre matéria educacional, Ricardo Martins afirma que
a Constituição Federal de 1988 produziu efeitos eminentemente be-
néficos na educação no Brasil. Para ele, os dados sugerem que, “no
campo das políticas educacionais, o resultado da implementação da
legislação e das novas formas de interação entre os Poderes da Re-
pública tem sido positivo” (2008, p. 433). De acordo com Martins,
tais resultados positivos estão diretamente relacionados aos “processos
sociais que levaram à redação do texto constitucional de 1988 e suas
alterações subseqüentes, bem como nas posturas afirmativas dos agen-
tes sociais, públicos ou não, na demanda e na garantia do exercício dos
direitos aí consignados” (2008, p. 447).
No que concerne à matéria educacional, as alterações feitas no texto
original são avaliadas muito positivamente por Ricardo Martins, para
quem as mudanças representaram aprimoramentos significativos da
primeira redação. Tome-se como exemplo a Emenda Constitucional
nº 14, de 1996.
No inciso I do art. 208, que trata do ensino fundamental, o texto men-
cionava a garantia de ensino fundamental, obrigatório e gratuito, in-
clusive para os que a ele não haviam tido acesso na idade própria. Esta
redação, diz Martins, era dúbia, podendo dar margem a uma interpre-
tação de que qualquer pessoa que não houvesse completado o ensino
fundamental, ainda que fora da faixa etária própria, estaria obrigada a
cursá-lo. A Emenda Constitucional nº 14, contudo, alterou a redação
do dispositivo, mantendo a obrigatoriedade recíproca e a gratuidade
36 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

para as crianças na idade própria mas tornando obrigatória, ao poder


público, a oferta gratuita desse nível de ensino para os demais.
Embora alçado à condição de instrumento por excelência para o aper-
feiçoamento dos dispositivos constitucionais, o emendamento está
longe de ser um processo perfeito, podendo seus resultados ficarem
aquém das expectativas tanto do legislador quanto da sociedade como
um todo. O caso das alterações na Constituição referentes ao instituto
da medida provisória é exemplar, conforme nos demonstra Ednilton
Pires, em seu artigo neste livro (2008).
Segundo Pires, a medida provisória experimentou, nos vinte anos de
sua existência, dois ciclos de vida bem distintos, o da reedição e o do
sobrestamento. O instituto foi inserido no texto constitucional como
uma ferramenta legislativa à disposição do presidente da República
para ser usada nos casos de matéria relevante e urgente. Observou-se,
em menos de uma década de uso, que além de a medida provisória
passar a ser utilizada sem respeito aos pressupostos constitucionais, era
crescente o número de suas reedições. Esse emprego abusivo por parte
do presidente da República de um instrumento que fora concebido
como sendo de exceção acarretou um desequilíbrio no exercício das
competências institucionais com um aumento acentuado da participa-
ção do Poder Executivo no processo legislativo. A solução encontrada
pelo Congresso Nacional para remediar a situação tomou a forma da
Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, que proi-
biu a reedição de medidas provisórias numa mesma sessão legislativa
e estabeleceu mecanismo para o trancamento de pauta da Casa em
que a medida estivesse tramitando após o quadragésimo quinto dia a
partir de sua publicação.
Contudo, a Emenda não só não resolveu o problema como criou ou-
tro. Como explica Pires, “ao se proibir a reedição de medidas provisó-
rias na mesma sessão legislativa reduziu-se o número total de medidas
provisórias, mas a quantidade de medidas originais, ou seja aquelas
que não são reedições, mas sim uma inovação no ordenamento jurídi-
co, essas não tiveram sua quantidade reduzida. Na verdade, o número
ficou ainda maior (2008, p. 600-601)”. Por outro lado, em razão do
mecanismo de sobrestamento, as pautas da Câmara dos Deputados
e do Senado Federal passaram a padecer de sucessivos trancamentos
que impediam a votação de todas as demais matérias agendadas para
deliberação em seus respectivos plenários. Como Pires aponta, “em
2008, a pauta somente foi liberada no mês de maio, ou seja, o primeiro
semestre da atividade legislativa ficou, em grande parte, voltado ape-
nas para a apreciação de medidas provisórias” (2008, p. 598).
Dinâmica constitucional e aprimoramento da democracia
37

Atualmente, o Poder Legislativo já contempla uma nova alteração


constitucional para reformar o instituto da medida provisória e, em
especial, encontrar uma fórmula para solucionar o problema institu-
cional criado pelo sobrestamento. Na Câmara dos Deputados, uma
comissão especial foi instituída com esse específico propósito, cuja
propositura principal já foi, inclusive, aprovada no Senado Federal.
Um fenômeno que guarda estreita vinculação às inovações decorren-
tes da Constituição de 1988 é o da participação cada vez mais ativa
do Poder Judiciário em questões de política pública, por meio de suas
decisões e interpretações do texto constitucional. O fenômeno, que
tem recebido o nome de judicialização da política, é o tema do ensaio
de Amandino Nunes Junior (2008).
Tate explica que a judicialização da política pode ser definida como “o
processo pelo qual o Poder Judiciário progressivamente assume papel
afirmativo nas políticas públicas, anteriormente privativo de outras
instâncias, em especial o Poder Legislativo e Executivo; e o processo
pelo qual as outras instâncias de decisão e negociação não-judicial
passam a adotar normas e procedimentos quase-judiciais” (1995, p.
28). Para Nunes Junior, o fenômeno no Brasil tem decorrido da atri-
buição feita pela Constituição de 1988 ao Supremo Tribunal Federal,
em sede de critério de controle concentrado, no sentido de exercer a
função exclusiva de examinar a constitucionalidade das leis e dos atos
normativos. Nunes Junior afirma que “tanto os órgãos de primeiro
grau (juízes singulares) como os órgãos de segundo grau (tribunais
em geral), quando provocados, estão constitucionalmente legitimados
a intervir nos processos decisórios de outros poderes mediante exame
da constitucionalidade das leis e dos atos normativos, visto que a pos-
sibilidade de decisões judiciais, com base em preceitos constitucionais,
direciona ou pode até mesmo alterar os resultados dos processos deci-
sórios e das políticas públicas” (NUNES JUNIOR, 2008, p. 768).
Foi fundamentado nesta âncora constitucional que o Supremo Tri-
bunal Federal desempenhou poderes que, de fato, eram políticos, ao
protagonizar uma série de decisões judiciais que anularam delibera-
ções de comissões parlamentares de inquérito e do Conselho de Ética
e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados.
Nesse sentido, o que se infere a partir da análise de Nunes Junior é que
o ativismo judicial que o Brasil tem testemunhado desde a promulga-
ção da Carta de 1988, ao potencializar a capacidade de intervenção do
Supremo Tribunal Federal em questões de política pública, faz com
que a atuação deste Tribunal guarde semelhança, cada vez maior com
38 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

a atuação das cortes norte-americanas. Entre outras coisas, demonstra


que, além de emendamento formal, no Brasil alterações de natureza
conceitual da Constituição acontecem também, e em escala cada vez
mais freqüente, via interpretação jurídica.
Sartori define sinteticamente constituições como documentos que dão
estrutura e disciplina aos processos de tomada de decisão do Estado
(1994, p. 202). Porém, para ele, as constituições não devem transcender
tal função, enveredando na seara da formulação de políticas públicas,
sob o risco de impedir o bom funcionamento das próprias instituições
de governo que por elas estão sendo criadas. Por essa razão, Sartori é
crítico de constituições detalhistas e cita a Constituição brasileira de
1988 como exemplo de constituição “lotada não apenas de detalhes
triviais mas também de dispositivos quase-suicidas e promessas invi-
áveis” (1994, p. 199).
A despeito da clareza analítica da exposição de Sartori, ela peca por
deixar de incluir uma série de fatores que fazem parte do processo
constituinte contemporâneo. Os paradigmas que marcaram o proces-
so constituinte dos gregos, dos romanos, da Inglaterra do século 17 e
mesmo dos Estados Unidos do século 18 não devem servir de parâ-
metro para a análise das constituintes do final do século 20. Primeiro,
o mundo, altamente globalizado, é muito mais complexo. Segundo, a
sociedade civil, de forma organizada, não aceita sua exclusão do pro-
cesso constituinte, colocando, como no passado, a feitura de suas cons-
tituições nas mãos e mentes de notáveis, de juristas ou de figuras proe-
minentes da sociedade. Trata-se, pois, de um processo eminentemente
plural. Terceiro, o processo constituinte deve ser aberto, transparente e
participativo, até porque esses são requisitos do moderno exercício da
governança. Por último, o processo constituinte não pode ser divor-
ciado do contexto político que o deslancha, que pauta seu andamento
e que direciona seu desfecho.
Por esses motivos, José Theodoro Menck, em seu artigo neste livro, é
categórico em afirmar que a Constituição de 1988 foi a constituição
possível de ser escrita naquele momento histórico do Brasil. “Não era
possível à Constituinte escrever a Constituição de outra forma. No
ambiente político que predominava logo após o fim do ciclo de gover-
nos militares, não teria sido factível a redação de uma Carta Constitu-
cional que não fosse abrangente e detalhista” (2008, p. 30).
A leitura de diversos ensaios publicados neste livro leva-nos à con-
clusão de que nem o detalhismo presente nos dispositivos da Consti-
tuição nem as dezenas de alterações que foram introduzidas ao texto
Dinâmica constitucional e aprimoramento da democracia
39

original nos vinte anos de vigência se apresentaram como obstáculos


à produção de impactos verdadeiramente positivos sobre os diversos
setores da sociedade brasileira.
O grande desafio enfrentado pela Constituição de 1988 reside em
fazer jus às expectativas que a promulgação do documento gerou na
população brasileira de um modo geral. O artigo de José Theodoro
Menck mostra que os líderes partidários presentes na Assembléia Na-
cional Constituinte eram os primeiros a nutrir as mais altas expecta-
tivas para o documento que redigiriam. Segundo Menck, a única voz
a se levantar em favor da moderação no que concerne às expectativas
foi a do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Carlos
Moreira Alves, que, por força da emenda constitucional que convo-
cou a Constituinte, dirigiu a sessão de instalação da Assembléia. Na
ocasião, Moreira Alves alertou o constituinte a não considerar a “nova
Constituição (...) o remédio de todos os males, a solução de todos os
problemas” (MENCK, 2008, p. 23).
A Constituição viva, aquela que afeta o dia-a-dia do cidadão, deve
estabelecer um equilíbrio entre expectativas e realidade. E isso, uma
sociedade consegue realizar quando enxerga sua constituição não
como um documento acabado, perene e imutável. Ao contrário, o
equilíbrio realiza-se com o entendimento de que, mais do que um
documento, a Constituição é uma ferramenta de construção da de-
mocracia. Como o constituinte norte-americano James Madison
bem colocou, uma constituição não existe para suprir respostas, ela
existe para permitir que “as perguntas mais salientes continuem a ser
debatidas” (ELLIS, 2007, p. 123). Mesmo aqueles constituintes de
1787 viam “a constituição, assim como a própria história, como um
debate sem fim” (ELLIS, 2007, p. 91).

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40 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

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À guisa de introdução
41

A interpretação moral da
Constituição e o princípio da
dignidade da pessoa humana: de
volta ao realismo jusnaturalista1?
Luiz Henrique Cascelli de Azevedo

A comemoração dos vinte anos do advento de nossa Constituição Fe-


deral de 1988 nos propõe uma série de reflexões: a situação histórica e
as razões políticas que ensejaram a convocação da Assembléia Consti-
tuinte naquele período pós-ditatorial, a motivação dos diversos grupos,
as expectativas da população e o caráter inovador que foi empregado
na elaboração do texto, cuja redação não considerou um esboço pré-
vio, mas tão-somente sugestões colhidas na sociedade. A Assembléia
Constituinte, além disso, reuniu, como não visto anteriormente, a par-
ticipação efetiva dos mais diversos setores da sociedade numa tarefa
complexa de sistematização de tantos interesses divergentes. 1
Vale ainda ressaltar que a nossa Constituição Federal, justamente pe-
las circunstâncias temporais do seu advento, absorveu padrões teóricos
de um direito constitucional em transição e, ao mesmo tempo, abrigou
uma gama de diferentes aspirações sociais, brindando-nos com um
texto ao mesmo tempo rico e complexo, ao ponto de incomodar o
tecnicismo purista de muitos teóricos da área.
Contudo, a par de tantas questões relevantes, gostaríamos de tratar
neste artigo, rapidamente, da função que promove a constante adap-
tação da Constituição às novas demandas da atualidade, isto é, da
função interpretativa e, especialmente, da interpretação que julgamos
mais adequada à realidade brasileira, considerando, dentro dessa pers-
pectiva, que problemas novos são constantemente acrescentados aos
já antes reclamados pelo Estado Social e desafiam os parâmetros de

1
O título deste pequeno artigo tomou como inspiração a obra Neoconstitucionalismo
e positivismo jurídico: as faces da teoria do direito em tempos de interpretação moral
da Constituição, de Écio Oto Ramos Duarte e Susanna Pozzolo (2006).
42 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

interpretação recentemente desenvolvidos (“dirigismo constitucional”


e “a força normativa da Constituição”).
Na verdade, as demandas atuais, ao nosso ver, levam a uma ênfase do
aspecto substancial da Constituição, em detrimento e em precedência
ao seu aspecto formal. Talvez seja essa a principal tarefa e também a
principal dificuldade do chamado neoconstitucionalismo, situado na
fronteira entre a segurança proporcionada pelo positivismo estrito e
os influxos advindos da consideração de princípios que, mesmo pre-
vistos formalmente, são alimentados, não obstante, por valores que
se manifestam na sociedade, abrindo-se a perspectiva para uma “in-
terpretação moral da Constituição.” A propósito, não podemos nos
esquecer que a nossa Constituição, em diversas passagens, flexibiliza o
rigor formal, abrindo-se para a proteção de direitos e garantias mesmo
nela não expressos, aliás como configura, por exemplo, a redação do
§ 2º do art. 5º. Fala-se hoje, inclusive, em um neoconstitucionalismo
metodológico, na concepção de Comanducci (2003, apud DUARTE
& POZZOLO, 2006, p. 24), que se perfaz numa conjugação entre
direito e moral.
Dessarte, entendemos que a validade e a eficácia de uma Constitui-
ção, inclusive considerando-se o momento pretérito da Constituinte
que a elaborou, dependem de um influxo social que se dá sobretudo
mediante a valoração que deve guiar os seus intérpretes. Tal valoração
alimenta a interpretação dos princípios, orienta a aplicação das nor-
mas, legitima, enfim, a formalidade do texto a partir do assentimento
que os cidadãos concedem à sua boa interpretação, à interpretação
conforme uma razoabilidade comum de um determinado grupo social
e cultural.
Assim, a incerteza causada pela consideração de princípios e valores –
perspectiva que pode sugerir uma falta de critérios objetivos de pon-
deração –, deve encontrar, por outro lado, segurança nos padrões de
determinado grupo em seu contexto cultural, histórico e social. Essa
não é uma tarefa fácil. Basta lembrarmos a “ductibilidade”, na expres-
são de Gustavo Zagrebelsky (1999), que nos sugere uma realidade
evanescente com a qual precisamos lidar, ou talvez, melhor ainda, que
nos impõe a tarefa de mapear e reconhecer novas referências que sir-
vam de apoio para a interpretação do direito.
Nesse particular voltamos à consideração de valores como tais reco-
nhecidos em uma dada comunidade, e, nesse âmbito, é preciso enfati-
zar o escopo do direito ao invés de pensá-lo como um fim em si mes-
A interpretação moral da Constituição e o princípio da dignidade da pessoa humana:
de volta ao realismo jusnaturalista? 43

mo. Em outras palavras, é preciso pensar, sobretudo, na realização da


justiça como fim e no emprego do direito como um seu instrumento.
A esse propósito, em vários temas percebemos, de maneira mais evi-
dente, a ligação entre o direito substancial (vivo, real, natural) e o
direito formal, o principal dos quais seria o da dignidade da pessoa
humana – justamente o fundamento principal da Constituição de
1988. E por ser fundamento (suporte, base, pilar) é que não pode ser
apenas uma expressão dogmática, formal, mas, por outro lado, deve
ser reconhecido como um atributo concreto dos seres humanos, um
identificador pessoal e ao mesmo tempo universal. A grande tarefa,
na lição de Barzotto (2005, p. 12), está em superar-se as dificuldades
para identificar os devedores em relação a qualquer ser humano, pois
se todo ser humano tem direitos humanos (poderíamos falar também
em termos de dignidade, que necessita ser constantemente reconheci-
da), a responsabilidade deve ser ampliada, universalizada. Portanto, o
princípio da dignidade da pessoa humana deve ser interpretado sob o
ponto de vista ético e não sob um prisma dogmático.
De fato, se adotarmos um padrão dogmático para interpretar os prin-
cípios constitucionais, para ponderá-los em sua aplicação, teremos
maiores dificuldades de estabelecer soluções razoáveis para a socieda-
de, uma vez que, na base dessa orientação, os valores são minorados e
desintegrados pelo direito subjetivo individual – fundamento da pers-
pectiva dogmática –, que municia o cidadão com uma pletora de ações
e reclamos formais nem sempre razoáveis.
Bem sabemos que as origens desse direito subjetivo remontam a
um crescente influxo do nominalismo a partir do século XIV. Com
Ockham (1988, 1999a, 1999b, 2002) o direito deixa de reconhecer
aquilo que é devido ao outro para ressaltar o que é devido ao indi-
víduo como sujeito diante dos outros e da sociedade. Trata-se agora
do meu direito e não mais do direito do outro, o que, evidentemente,
repercute na concepção de justiça: o caráter relacional se perde, ou
melhor, se inverte, pois não vai mais de um indivíduo para o outro
e para a sociedade, mas do outro, da sociedade, do mundo para um
determinado indivíduo; não é mais uma qualidade da alma, mas uma
reivindicação exterior.
Ockham contribui, como bem observa Pinckaers (2000), para a pri-
meira explosão atômica da época moderna, cujo átomo desintegrado é
psíquico: o núcleo da alma com suas faculdades se rompe com a nova
concepção de liberdade que reivindica autonomia radical, separando-a
da razão, da sensibilidade, das inclinações naturais e de todo fato exterior.
44 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Aqui o nominalismo ganha sua forma mais explícita: só existe o in-


dividual, único em sua existência, enquanto que o universal é apenas
uma forma cômoda de expressão, sem realidade, apenas um valor no-
minal. Para Ockham, a liberdade é essencialmente o poder de eleger
coisas contrárias, independentemente de outra causa distinta que a
própria liberdade ou a própria vontade. É a liberdade de indiferença.
Nesse contexto, as virtudes perdem espaço em favor da obrigação. E
a obrigação está fixada e precisada pela lei. A lei vai apresentar-se à
liberdade humana como manifestação de obrigações indicadas pela
vontade e que, numa certa medida, representam o papel desta vontade.
A lei já não é mais um ato da razão do legislador, mas decorre dire-
tamente de sua vontade e autoridade. Desse modo, até a moral será,
antes de tudo, um assunto de leis, normas, de regras, entendidas num
sentido voluntarista.
O sentimento nominalista de obrigação, que sobrepuja ao de felici-
dade, e que vai ensejar, no campo do direito, o positivismo e o subje-
tivismo, são bem retratados por Dumont (1993) e por Elias (1994).
Esses autores, sob o ponto de vista antropológico e sociológico, tratam
da preponderância da liberdade de indiferença sobre as inclinações
naturais e sobre a persecução de um fim comunitário. A virtude deixa
de ser um comportamento moralmente reconhecido pela comunidade
para constituir-se em um ato de vontade. O indivíduo passa a ser visto
como uma entidade ontológica à parte em relação à comunidade. Há
um crescente distanciamento entre os indivíduos. A preponderância
da vontade e do direito subjetivo, bem como o reconhecimento social
do poder, passam a ser a preocupação do direito, em vez de e em de-
trimento de ser reconhecido como um instrumento para a consecução
de uma relação justa entre as pessoas, como bem nos indicam Villey
(1975 e 2003) e Bastit (2005).
De modo diferente, haveria uma outra possibilidade de compreensão
dos valores que podem servir de suporte para o reconhecimento da
dignidade da pessoa humana. Poderíamos falar em um padrão jus-
naturalista de interpretação. Nesse particular, considera-se, antes do
mais, a realização da justiça como virtude com o objetivo de se alcan-
çar a felicidade, tal como nos ensinou Aristóteles (2002), sobretudo
no Livro V da Ética a Nicômacos (1.129 b 17). Aristóteles introduziu
considerações sobre a virtude e, entre elas, sobre a mais perfeita, qual
seja a justiça, exatamente por esta, ao contrário das demais virtudes –
prudência, temperança e fortaleza –, ter um caráter relacional.
A interpretação moral da Constituição e o princípio da dignidade da pessoa humana:
de volta ao realismo jusnaturalista? 45

Aristóteles, ademais, refletindo sobre os problemas colocados por


Platão, e a propósito da vida social, observou, então, que o bem mais
perfeito – que se elege por si mesmo e nunca por outra coisa – seria
a felicidade, determinada pelas atividades de acordo com a virtude.
Nesse sentido, o homem seria – por natureza – uma realidade social: a
autarquia não se constituiria em uma vida solitária, mas o viver para o
outro. Justamente essa amizade cívica faria a mediação entre a ética e
a política. Nessa ordem de considerações, a virtude se ressaltaria como
um hábito, expresso no meio-termo entre extremos, consagrado na
justiça, na prudência (elo entre a razão teórica e a razão prática), na
temperança e na fortaleza.
A phrónesis (prudência), por sua vez, seria a virtude que nos permitiria
aplicar verdades previamente aceitas e estabelecidas pelo grupo social
mesmo de maneira não expressa nas ocasiões particulares, como bem
nos ensina MacIntyre (2003). A prudência, enfim, realizaria a adequa-
ção entre os padrões reconhecidos pela comunidade – introjetados em
cada um de nós –, fornecendo-nos elementos para a decisão no coti-
diano. Portanto, há um tipo de atividade que pode envolver a aplicação
de regras em instâncias diversas, mas que não é governada por regras
e é capaz de justificação racional.
Em outras palavras, poderíamos dizer, a esse propósito, que na vida
cotidiana praticamos, antes do mais, atos. Alguns desses se desta-
cam, chamam a atenção e a aprovação do grupo. Se a sua prática é
reiterada ou repetida, esses atos logram um degrau superior, tornan-
do-se hábitos. Da mesma maneira, se a certos hábitos o grupo dis-
pensa aprovação, reconhecimento, poderíamos aí indicar a formação
de virtudes.
Em suma, na ação justa cotidiana, na escolha de razões, há a realização,
no âmbito da razão prática, de um silogismo. Ocorre, contudo, que as
premissas de tal silogismo são formadas a partir dos valores comparti-
lhados pelo grupo social. Os membros desse grupo têm a mesma visão
de mundo, pois foram educados dentro dos mesmos parâmetros. Tais
parâmetros tornam o grupo coeso. Portanto, temos como claro que no
âmbito das virtudes é preciso considerar o que determinado grupo ou
sociedade valoriza, quais comportamentos, no plano moral, são reco-
nhecidos e admirados.
Dessa forma, num grupo coeso a justiça se afirma como virtude, é
um padrão ético, decorre da visão do grupo e se sobressai diante das
demais virtudes porque tem em consideração o outro. Isso é algo ob-
jetivo. A expressão “dar a cada um o que é seu ou que lhe pertence ou
46 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

o que lhe é devido”, que começou a ser cunhada na Grécia e depois foi
desenvolvida no direito romano, é algo concreto, palpável, que decorre
de um tipo de vida prática racional, compartilhada pelo grupo. A pos-
sibilidade de choque no que se considera como “o devido” é extrema-
mente minorada nessa perspectiva.
Entretanto, não vivemos mais o tempo em que há uma notória co-
esão social em torno de princípios, valores ou virtudes. Na verdade
hoje temos dificuldades de concordar objetivamente sobre o que é
devido ao outro e passamos, por conseqüência e por deficiência, a
valorizar o exercício do direito como instrumento formal, ao invés
de efetivarmos a justiça. Em outras palavras, nessa perspectiva o
mundo sempre está devendo ao indivíduo, que por isso pode valer-
se de um arsenal de ações e pretensões infindáveis. Esse indivíduo
não deve nunca nada a ninguém, uma vez que tem direitos subje-
tivos, ou melhor, uma vez que tem poderes subjetivos, cujos limites
só ele pode definir.
Então, diante do que foi aqui exposto, há duas concepções a serem
consideradas: a primeira, em que a consecução da justiça decorre do
reconhecimento objetivo do que é devido ao outro. Tal valor se en-
contra imbricado na visão de mundo de um grupo; é uma virtude;
municia as premissas maior e menor do silogismo prático e pauta, as-
sim, naturalmente, todas as ações cotidianas. De outro lado, a partir da
independência da vontade com a liberdade de indiferença, há o esva-
ziamento do conceito substancial de justiça em favor de um conceito
jurídico de justiça, que decorre não mais da busca de uma finalidade,
mas de atos isolados, que, não raro, podem se contrapor à própria co-
munidade. Enfim, caracteriza-se hoje fortemente uma noção subjetiva
do direito, fruto inegável de conquistas históricas, mas que, não pode-
mos ocultar, acirra o caráter belicoso das relações jurídicas. A primeira
concepção analisada tem em consideração o grupo; a segunda tem em
consideração o indivíduo.
Diante disso, a indagação que se coloca é a seguinte: essa última pers-
pectiva individualista propicia padrões adequados para a interpretação
da Constituição, especificamente da Constituição de 1988?
Ressaltamos que as peculiaridades da Constituição de 1988 a tornam
especial, sobretudo se considerarmos a maneira pela qual ela foi esta-
belecida: foi sendo construída paulatinamente, a partir das sugestões
colhidas na sociedade e dos trabalhos de inúmeras comissões e sub-
comissões temáticas, depois sistematizados por uma comissão para,
então, serem submetidos ao Plenário.
A interpretação moral da Constituição e o princípio da dignidade da pessoa humana:
de volta ao realismo jusnaturalista? 47

Em outras palavras, a complexidade do processo se deu justamente


pela variedade de grupos de interesses que se manifestaram, repre-
sentando uma vasta participação dos diferentes estratos sociais. É, em
suma, uma Constituição construída com muita densidade social. A
Constituição de 1988 é um retrato visceral da nossa sociedade, com
toda a sua sorte de contradições, erros e acertos.
Portanto, a interpretação do referido texto não pode desconsiderar o
nosso modo de ser. Não podemos simplesmente aplicar parâmetros
formais e dogmáticos nessa tarefa. Precisamos estar atentos para o que
prezamos e tomamos como admissível em nossa vida cotidiana.
Nesse sentido, o texto constitucional deve ser interpretado, pelas pe-
culiaridades antes apontadas na sua formação, mergulhando-se na
realidade social de nosso país, que tem dificuldades, sobretudo, em re-
conhecer a dignidade dos seus próprios cidadãos. Ao contrário do que
possa ocorrer em algum outro lugar, não podemos tratar da dignidade
apenas como um modelo dogmático, uma figura formal e abstrata do
que é devido ao outro. Nossa tarefa interpretativa está em alcançar, em
cada brasileiro, o reconhecimento de uma dignidade concreta.
Essa é uma tarefa que deve unir o direito e a moral. É uma tarefa, em
outros termos, que deve unir o direito – como instrumento da justiça –
e a moral, lastreada em comportamentos consagrados em virtudes, isto
é, modelos de ação amplamente aprovados pelo corpo social, propor-
cionando-lhe referências para a ação.
Enfim, o intérprete deve voltar os seus olhos para a sua comunidade
a fim de captar os seus valores, as virtudes consagradas pelo seu meio
social, os anelos dos cidadãos, as suas necessidades. O intérprete deve
fazer o encontro, a conciliação permanente da realidade de seu país
com o texto da Constituição. Trata-se de uma tarefa de adequação, de
harmonização e não de uma mera subsunção formal. Ele não pode ir
além do que é efetivamente a sua comunidade nem além do que é o
texto da sua Constituição. Ele não deve enxergar a realidade usando
a Constituição como se essa fosse um óculos de precisão, porque tal
seria uma solução dogmática com a pretensão de moldar a realidade
a um texto formal.
Melhor será, então, que o intérprete inicie o seu mister a partir da
sua realidade, lembrando que dessa realidade é que foi delineada a
Constituição. Em outras palavras, ele deve verificar de que manei-
ra, na Constituição, a realidade viva, dinâmica e multifacetada da
sociedade estará contemplada Não se trata de pensar que a Cons-
tituição preponderará sobre a sociedade, nem de que a sociedade
48 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

preponderará sobre a Constituição. Ele deve captar a relação reci-


procamente vital da Constituição com a sua sociedade. O intérprete
deve viabilizar a ligação entre as duas instâncias, suprindo tanto as
deficiências ou limitações do texto – o que é inerente a qualquer
texto legal – como também acolhendo as novas manifestações so-
ciais que ainda não pertenciam à realidade do constituinte, acomo-
dando-as, tanto quanto possível, no texto em vigor. Esse processo
deve ser efetivado repetidamente até que o texto se mostre esgotado
à absorção do dinamismo social, quando então reparos poderão ser
efetivados (emendas ou até uma nova constituinte).
Em suma, importa observar que tudo deve ser feito em busca de um
bem maior: o reconhecimento concreto da dignidade dos nossos cida-
dãos, passo importante para tornar o país mais feliz.

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À guisa de introdução
51

Um preâmbulo ao preâmbulo
Alessandro Gagnor Galvão

A comparação entre os preâmbulos das sucessivas constituições bra-


sileiras revela valores, objetivos e outros aspectos históricos (quem
promulgou a constituição, em nome de quem etc) que não estão explí-
citos nos artigos constitucionais numerados, os únicos juridicamente
válidos. A diferença entre os preâmbulos e os artigos constitucionais
corresponde aos dois modos complementares de apresentação das leis
defendido por Platão: o persuasivo e o impositivo. Exemplos do pri-
meiro método seriam os “prelúdios1” legais, de intenção argumentati-
va; do segundo, as leis em si, de intenção coercitiva.
As leis brasileiras só têm preâmbulos, pareceres e justificativas, ele-
mentos argumentativos, quando apresentadas como projetos, ainda
sujeitas à apreciação dos legisladores. Uma vez aprovadas, sua validade
não está aberta ao diálogo. O argumento para o cumprimento das leis,
se existe, é externo a elas: o ordenamento jurídico, a “vontade geral”
ou a Constituição Federal, espécie de preâmbulo explícito, embora
distinto, da legislação infraconstitucional.
Cada uma das Constituições que o Brasil já teve, por sua vez, também
contou com um preâmbulo. Que não lhes poderia ser externo, pois
não há texto externo à Constituição que possa regulá-la ou mesmo
afetá-la, explicitamente – embora o costume e as doutrinas jurídicas a
regulem em termos implícitos.
Além de especificarem quem promulgou a Constituição, e em nome
de quem, os preâmbulos especificam também valores e objetivos para
o Estado, que se configura pelo próprio texto constitucional. Esses
valores não numerados, e os artigos numerados, são o referencial da
Carta, isto é, o viés interpretativo e as regras que ela estabelece.2 Os
preâmbulos não têm valor jurídico, contudo, pois não impõem sanções

1
Tradução conforme encontrada em PLATÃO, As Leis. Bauru (SP): Edipro,1999.
p. 192-199.
2
Esta, a opinião de AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional.
Rio de Janeiro: Forense, 2006. No que concorda com PONTES DE MIRAN-
DA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. 2a ed. São Paulo:
RT, 1967.
52 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ao seu descumprimento3. Essa ausência de impositividade é coerente


com seu caráter dialógico.
O lingüista Roman Jakobson4 identificou seis elementos presentes em
todo ato comunicativo, cada elemento correspondendo a uma função
da linguagem: enunciador (função emotiva), receptor (função conati-
va, persuasiva), referente (função referencial), mensagem (função poé-
tica), código (função metalinguística) e canal (função fática).
A depender do tipo de ato comunicativo, uma dessas funções será
predominante. A poesia lírica, por exemplo, destaca os sentimentos do
enunciador, e além disso a estética da mensagem; nesse caso, ao lado
da função emotiva, temos a função poética. (Note-se: na classificação
jakobsoniana, a mensagem não é o que se diz, e sim o como se diz. O
que se diz é o referente). Na poesia épica a função poética tende a
se conjugar com relatos históricos, centrados, portanto, no referente.
Escritos científicos tendem a privilegiar a função referencial, embora a
rigor seja impossível eliminar completamente a função poética. Afinal,
mesmo equações matemáticas não estão imunes a aspectos estéticos,
podendo ser reescritas de diversas formas mais, ou menos, elegantes.
Todos os seis elementos imprescindíveis aos atos comunicativos, e as
seis respectivas funções da linguagem, podem ser encontradas nos tex-
tos legais. Na Constituição atual, o enunciador são os representantes
do povo; o receptor é o povo e as instituições; o referente é o Estado,
que se constrói a partir desse texto; a mensagem é o texto em si, cuja
função poética é minimizada em relação à função referencial, essa que
quer evitar a pluralidade de sentidos e fixar conteúdos legais. O código
é a língua portuguesa e a técnica jurídico-legislativa, e, na medida em
que a Constituição refira-se a elas, exerce função metalinguística. O
canal da mensagem constitucional é, normalmente, a leitura, seja ou
não em situações de mobilização do ordenamento jurídico brasileiro.
Vinculada ao canal, está a função fática, função da linguagem que
testa o canal de comunicação, como o “alô” ao telefone, ou o “estão
entendendo?” do professor.
Os preâmbulos exercem função fática (centrada no canal), ao abrirem
a comunicação entre quem promulga e quem acata a Constituição,
emissor e receptor. A função fática corresponde ao cumprimento e/ou

3
O STF, em decisão unânime, nega o caráter normativo e coagente, portanto jurí-
dico, do preâmbulo constitucional de 1988, que seria apenas um vetor interpretati-
vo. (AGRA, op. cit., p. 70-71.)
4
JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, s.d.
Um preâmbulo ao preâmbulo
53

apresentação de quem inicia uma conversa, o emissor, estabelecendo


contato com o receptor. Corresponde, portanto, à situação em que se
fala do tempo apenas por falta de assunto, ou para eliminar o mal-
estar, como o ˝bom dia˝ dito a desconhecidos no elevador. A pre-
dominância dessa função fática não elimina outras funções, como a
referencial, da mesma forma que a observação fática “lindo dia, hoje!”
pode ter, também, um sentido referencial (o dia está lindo), além de
significar um mero começo de conversa.
No caso do preâmbulo à Constituição de 1824, o receptor explicitado
no texto é “todos os nossos súditos”, os “povos deste Império”, quando
os brasileiros ainda não constituíam de fato uma nacionalidade, num
século em que os nacionalismos eram uma idéia nova e os portugueses
residentes no Brasil constituíam expressivo grupo social. A lealdade
era devida não à nação ou ao país, mas ao monarca, do qual não se exi-
gia nascer no país regido, e nem mesmo falar a língua local. À medida
em que a Idade Média vai ficando mais afastada no tempo é que se
torna estranha a idéia de um governante estrangeiro.
A extensão das explicações que antecedem a Carta de 1824, seu pre-
âmbulo, pode ser indício da dificuldade de se estabelecer o emissor,
o receptor e o canal de comunicação (o texto constitucional em si,
enquanto veículo da Lei Maior), num ordenamento jurídico absolu-
tista, pré-constitucionalista e protonacionalista, como o vigente antes
da Independência:
DOM PEDRO PRIMEIRO, POR GRAÇA DE DEUS, e
Unânime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional, e
Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os Nos-
sos Súditos, que tendo-Nos requerido os Povos deste Império,
juntos em Câmaras, que Nós quanto antes jurássemos e fizésse-
mos jurar o Projeto de Constituição, que havíamos oferecido às
suas observações para serem depois presentes à nova Assembléia
Constituinte; mostrando o grande desejo, que tinham, de que ele
se observasse já como Constituição do Império, por lhes merecer
a mais plena aprovação, e dele esperarem a sua individual, e geral
e felicidade Política: Nós Juramos o sobredito Projeto para o
observarmos e fazermos observar, como Constituição, que d’ora
em diante fica sendo deste Império; a qual é do teor seguinte:
Em nome da Santíssima Trindade (...).

Quem, nos preâmbulos, promulga as constituições brasileiras, é o


seu sujeito enunciador5, fonte referencial de legitimidade. Repare-se
no preâmbulo acima os marcadores discursivos que apontam para

5
KAPPEL, I. Os sujeitos enunciadores das Constituições brasileiras. Letras &
Letras Uberlândia, v 22(2), p. 143-158, jul-dez 2006.
54 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

a função emotiva: o uso da 1a pessoa verbal em plural majestático


(representando povo, país e divindade): “fazemos”, “nossos”, “tendo-
Nos” etc. Adjetivos, como “unânime”, “perpétuo”, “grande”, também
reforçam a função emotiva da linguagem. Um texto legal, mesmo
preambular, tende a evitar a emotividade excessiva, marcada discur-
sivamente também pelas interjeições, exclamações, interrogações e
reticências. Essas marcas discursivas são típicas, por exemplo, de di-
ários de adolescentes.
Ao se compararem os preâmbulos constitucionais, de 1824 a 1988,
notam-se fundamentos metafísicos (em 1824, o direito divino dos
reis), populares ou autoritários para impor a voz criadora do Estado,
que nos fala através dessa configuração de sentidos que é o texto cons-
titucional. A fonte referencial de legitimidade, em 1824, era simulta-
neamente apresentada como divina, personalista e popular. O único
preâmbulo que citou apenas o povo como seu fundamento foi o da
primeira Constituição republicana, a Constituição de 1891:
Nós os Representantes do Povo Brasileiro, reunidos em Con-
gresso Constituinte, para organizar um regime livre e demo-
crático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS
UNIDOS DO BRASIL.

A Constituição seguinte, de 1934, volta a citar, ao lado do povo, a enti-


dade mitológica; não como fundamento, porém, e sim como fiadora:
Nós, os representantes do Povo Brasileiro, pondo a nossa con-
fiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte
para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a
unidade, a liberdade, a justiça e o bem estar social e econômico,
decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL.

Em 1937, e na emenda de 1969 à Constituição de 1967, foi dispensa-


da a “proteção de Deus“ ou a “confiança em Deus”, uma ou outra pre-
sente nos preâmbulos de todas as constituições democráticas, menos
na de 1891. Mesmo quando expresso o apelo à divindade(1934, 1946,
1967, 1988), nunca mais a voz constitucional confundiu-se com ela,
como no Império (1824).
A constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, é farta em
marcadores discursivos para a função emotiva: adjetivos (notória, fu-
nesta etc), advérbios (profundamente, justificadamente etc) e seis for-
mas verbais referentes ao presidente (atendendo – três vezes – ceden-
do, resolve assegurar, decretando). Todos esses marcadores apontam
para a pessoa do emissor, de fato cultuada pela ideologia do Estado
Um preâmbulo ao preâmbulo
55

Novo, que, a exemplo dos fascismos e do comunismo da época, rejei-


tava a democracia, incompatível, segundo Francisco Campos, autor da
Constituição de 1937, e co-autor do AI-1 em 1964, com a sociedade
de massas. Conforme dissera Campos no último ano de sua faculdade
de Direito: “O futuro da democracia depende do futuro da autoridade.
Reprimir os excessos da democracia pelo desenvolvimento da autori-
dade será o papel político de numerosas gerações.”
Constituição de 1937:
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DOS ESTADOS
UNIDOS DO BRASIL,
ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à
paz política e social, profundamente perturbada por conheci-
dos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos
dissídios partidários, que uma notória propaganda demagógica
procura desnaturar em luta de classes, e da extremação de con-
flitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural,
resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a
funesta iminência da guerra civil;
ATENDENDO ao estado de apreensão criado no País pela in-
filtração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais
profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente;
ATENDENDO a que, sob as instituições anteriores, não dis-
punha o Estado de meios normais de preservação e de defesa da
paz, da segurança e do bem-estar do povo;
Sem o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações da opi-
nião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante
dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que
se vem processando a decomposição das nossas instituições civis
e políticas;
Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra
e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de
paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao
seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Cons-
tituição, que se cumprirá desde hoje em todo o Pais: ˝

Apesar de não sabermos até que ponto o preâmbulo da Carta de 1937


foi da lavra do jurista Francisco Campos, ministro da Justiça do re-
gime golpista instalado com a mesma Carta, o sujeito enunciador da
carta é unicamente o presidente da República. O povo e os militares
são apenas requerentes, dos quais até o apoio é dispensado, explicita-
mente, no caso das Forças Armadas. Fora desse preâmbulo, a Consti-
tuição de 1937 chega a dizer, no “Art. 1º - O Brasil é uma República.
O poder político emana do povo e é exercido em nome dele e no
56 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

interesse do seu bem-estar, da sua honra, da sua independência e da


sua prosperidade”.
Essa “emanação”, além de estar ausente do preâmbulo, remete-nos a
processos naturais (águas que emanam das fontes, gases que emanam
de um pântano), onde o verbo “emanar” não acentua o caráter racional
ou eletivo como vínculo entre povo e poder político. Importa que o
preâmbulo da constituição de 1937 apela somente à suposta autorida-
de original do Executivo, assim como os preâmbulos das constituições
autoritárias seguintes também não citariam o povo, apelando à autori-
dade original do Legislativo (1967) ou, via considerações burocráticas,
à autoridade dos ministros militares, na emenda de 1969.
O Estado laico instalado em 1899 com a República dos militares po-
sitivistas tem sua Constituição de 1891 livre da necessidade de invocar
Deus, fiando sua legitimidade unicamente no povo brasileiro, já ex-
presso na ocasião como um ente unitário (e não como povos, como no
caso de 1824). A constituição democrata de 1946 volta a citar o Deus
de 1824 e o objetivo democrático de 1891.
Constituição de 1946: “Nós, os representantes do povo brasileiro, reu-
nidos, sob a proteção de Deus, em Assembléia Constituinte para orga-
nizar um regime democrático, decretamos e promulgamos a seguinte
CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL”.
Em 1967, é o povo que não é citado:
Constituição de 1967: “O Congresso Nacional, invocando a pro-
teção de Deus, decreta e promulga a seguinte CONSTITUIÇÃO
DO BRASIL”.
Na emenda de 1969, nem povo nem Deus são invocados, mas prerro-
gativas dos ministros militares, apoiadas por regras burocráticas cita-
das, mas não explicitadas na íntegra. Além disso, não se mencionam
objetivos ou valores da nova Carta.
Constituição de 1969 – Emenda Constitucional nº 1, de 1969:
Os Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáu-
tica Militar, usando das atribuições que lhes confere o artigo 3º
do Ato Institucional n. 16, de 14.10.1969, combinado com o §
1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13.12.1968, e,
Considerando que, nos termos do Ato Complementar nº 38,
de 13.12.1968, foi decretado, a partir dessa data, o recesso do
Congresso Nacional;
Considerando que, decretado o recesso parlamentar, o Poder
Executivo Federal fica autorizado a legislar sobre todas as maté-
Um preâmbulo ao preâmbulo
57

rias, conforme o disposto no § 1º do artigo 2º do Ato Institucio-


nal nº 5, de 13/12/1968;
Considerando que a elaboração de emendas à Constituição,
compreendida no processo legislativo, está na atribuição do Po-
der Executivo Federal;
Considerando que a Constituição de 24/01/1967, na sua maior
parte, deve ser mantida, pelo que, salvo emendas de redação,
continuam inalterados os seguintes dispositivos: (...);
Considerando as emendas modificativas e supressivas que,
por esta forma, são ora adotadas quanto aos demais dispositi-
vos da Constituição, bem como as emendas aditivas que nela
são introduzidas;
Considerando que, feitas as modificações mencionadas, todas
em caráter de Emenda, a Constituição poderá ser editada de
acordo com o texto que adiante se publica;
Promulgam a seguinte Emenda à Constituição de 24/01/1967.

Nota-se em 1969, como em 1824 e 1937, a profusão de considerações


explicativas – uma exarcerbação da função fática, decorrente, talvez, da
função referencial espúria: em 1824 outorgar uma Constituição, em
1937 instaurar uma ditadura e em 1969 revogar o estado de Direito.
Uma hipótese: essa ilegitimidade da função referencial hipotetica-
mente aumentaria a dificuldade de as Constituições autoritárias se es-
tabelecerem como canais de comunicação institucional, daí a suposta
necessidade de reforço à função fática.
Como contra-argumento a essa hipótese, há o lacônico preâmbu-
lo de 1967, e o extenso de 1988. Em 1988, porém, a extensão do
preâmbulo não se alonga em considerações quanto à oportunidade
da Constituição (como em 1937), ou quanto à autoridade dos que
a promulgam (como em 1824 e 1969), e sim a enumerar valores e
objetivos do Estado. Tais valores e objetivos têm forte função re-
ferencial, embora, inevitavelmente, todo preâmbulo seja inerente-
mente fático. A função poética, embora presente em todo texto, é
menos importante do que a função referencial, quando se trata de lei
ou matemática. Ambas, afinal, não querem centrar-se na mensagem
em si, no veículo, e sim no referente, nas instruções veiculadas. Os
preâmbulos querem ser indutores da racionalidade (“vetores inter-
pretativos”), não poesia.
Em 1988, os Constituintes não põem expressamente sua confiança
em Deus, como em 34, não se reúnem sob sua proteção, como em 47,
mas promulgam a Carta sob a proteção da divindade abraâmica.
58 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Constituição de 1988:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individu-
ais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com
a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a prote-
ção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL.

O entendimento de que a esfera política pertence aos homens, e não


a Deus, foi uma conquista da Revolução Francesa, ausente, ainda, na
Constituição brasileira inaugural, em 1824. A responsabilidade exclu-
sivamente humana foi afirmada logo no início positivista da Repúbli-
ca, mas não sobreviveu nos preâmbulos das constituições democráticas
seguintes. De fato, é perceptível um esquecimento ou relaxamento do
caráter laico da República, cuja simbologia sofreu um retrocesso com
a obrigatoriedade, por exemplo, da presença do crucifixo e da Bíblia
nas casas do Parlamento (e sem, ao menos, a presença de símbolos de
outras religiões, ou símbolos ecumênicos). O crucifixo, símbolo mais
católico do que protestante, parece indicar que são as forças da reli-
giosidade tradicional, e não as do neopentecostalismo, as dominantes
na reação à República laica.
O homem como centro do universo político, anunciado pela Renas-
cença, entronizado pelo Iluminismo e inaugurado, no Brasil, pela
Constituição de 1891, só resiste sem apelo à metafísica, depois, nas
Constituições de caráter autoritário, positivista e/ou militarista, de
1937 e 1969. Essa resistência é análoga à que ocorre nos países muçul-
manos, onde, pelo menos desde a década de 1920 com Kemal Ataturk
(“pai dos turcos”), é o autoritarismo militar que se opõe, com o apoio
do Ocidente, às teocracias.
Antes de continuar a extrair significados dos preâmbulos constitu-
cionais, convém lembrar que o caráter dialógico, intertextual e his-
tórico é inerente aos produtos culturais humanos, todos construídos,
interpretados e postos em prática tendo por ambiente idéias, tex-
tos e/ou instituições preexistentes. A chamada acepção sociológica
da Constituição vê a Constituição formal como destituída de valor
efetivo. O valor proviria não do texto, mas do uso do texto pelos
fatores reais de poder. A Constituição efetiva, real, transcenderia,
portanto, o texto constitucional. Mesmo recusando-se a acepção so-
ciológica, ainda é inegável a dependência da Lei Maior frente outras
Um preâmbulo ao preâmbulo
59

instâncias. A acepção jurídica objetiva também admite que, apesar


de a Constituição ser o tronco principal da segurança jurídica, pura
norma, não poderia ser corretamente interpretada ou aplicada sem a
memória infraconstitucional. A Assembléia Nacional Constituinte
referenciou-se a textos e interpretações preexistentes; não fez tabu-
la rasa dos ordenamentos jurídico e social anteriores, apenas negou
ou reforçou aspectos que pertenciam àqueles ordenamentos ou às
suas críticas. Ao ser promulgada, a Constituição torna-se o vértice
de um novo ordenamento jurídico, em permanente construção, ten-
do por fontes integradoras não apenas seu preâmbulo, mas também
os textos referentes aos princípios gerais do Direito, a doutrina, a
jurisprudência e o entendimento histórico-cultural, escrito ou não,
referente à equidade, à analogia e aos costumes, que afetam mesmo
as cláusulas pétreas.
Pode levar a equívocos, portanto, imaginar os textos dos preâmbulos
como absolutamente inaugurais, unívocos e auto-suficientes. A his-
toricidade, a polifonia e a insuficiência interpretativa afetam até mes-
mo códigos de conduta divinizados, como o Novo Testamento, para o
qual existem mais de 4 mil possíveis fontes originais. Contornado esse
vício de origem, sua interpretação ainda assim dependerá do momen-
to histórico e do grupo interessado.
Por causa dos fundamentalismos, convém lembrar que o significado
dos textos reguladores fundamentais, religiosos ou legais, não emerge
deles próprios, ou de intérpretes privilegiados, mas da interpretação
contextualizada, da relação com outros textos e com o momento his-
tórico vivido. Esse “diálogo” entre textos e instituições, ou intertextua-
lidade, é tão indispensável à interpretação quanto o texto em si.
Sobre qualquer texto, princípio ou arcabouço legal, a cada ato de lei-
tura, interpretação ou obediência, atua a força da sinonímia e da pa-
ráfrase, que modifica, imperceptivelmente ou não, os sentidos esta-
belecidos. As constituições brasileiras e seus preâmbulos sucedem-se
como reinterpretações dos fundamentos e objetivos do Estado. Por
exemplo, pode-se com razoável margem de segurança dizer que, ape-
sar das constituições outorgadas em 1824, 1937 e 1967/69, solidifi-
cou-se, de 1891 a 1988, o entendimento de que a Constituição tem
por método a representatividade e por objetivo a democracia, mais ou
menos conforme a fórmula atual: “Nós, representantes do povo bra-
sileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir
um Estado Democrático, (...)”.
60 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

No entanto, quanto aos outros objetivos além da democracia, e quanto


aos valores fundamentais da Constituição (isto é, do Estado), ainda é
cedo para se supor estabilizada a intenção expressa em 1988, de que
o Estado democrático destine-se a “assegurar (...) a liberdade, a segu-
rança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem precon-
ceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna
e internacional, com a solução pacífica das controvérsias(...)”.
Em 1824, nenhum desses valores aparece; nos preâmbulos das duas
primeiras constituições republicanas liberais (1891 e 1934), o va-
lor da “liberdade” aparece não como fundamento, mas como objeti-
vo, sendo que 1934 aparecem também como objetivos a unidade, o
bem-estar social e econômico e a justiça. Não fosse pela ausência da
“segurança” e pela presença da “unidade” poder-se-ia dizer que os ob-
jetivos da Carta de 1934 tornaram-se os fundamentos da de 1988 –
o que pode indicar certa coerência, positiva, no processo evolutivo
do Estado brasileiro.
Em 1937, as “legítimas aspirações do povo brasileiro”, ou objetivos,
conforme expressos pelo ditador, são a paz política e social. Há tam-
bém objetivos não populares, mas “nacionais”: a unidade, o respeito à
honra e à independência nacional. Além desses objetivos nacionais,
ao povo brasileiro, sob esse regime de paz política e social, seriam as-
seguradas as condições necessárias “à sua segurança, ao seu bem-estar
e à sua prosperidade”. Repetem-se os temas da unidade, segurança e
bem-estar social e econômico da Constituição anterior, mas suprime-
se a menção à liberdade, à justiça e à democracia.
Em 1946, não se fala de fundamentos, apenas do objetivo democrático
e da proteção de Deus. Em 1967, de 1969, fundamentos e objetivos
não são expressos, e os sujeitos enunciadores (respectivamente, o Con-
gresso Nacional e os ministros militares) não mencionam sua vincula-
ção ao povo, apenas proclamam o texto.
Pode-se fazer, de forma preliminar, um quadro sinóptico dos temas
explícitos nos preâmbulos das diversas constituições, bem como de
suas funções em cada uma delas:
Um preâmbulo ao preâmbulo
61

Temas/Funções 1824 1891 1934 1937 1946 1964/69 1988

P. Executivo outorgante outorgante outorgante

Deus representado confiado protetor protetor protetor

Povo (s) requerentes representado representado aspirante representado representado

Liberdade objetivo objetivo valor

Democracia objetivo objetivo objetivo objetivo

Unidade objetivo objetivo

Justiça objetivo valor

Bem-estar social objetivo valor

Bem-estar econ. objetivo valor

Paz política valor

Paz social valor

Honra nacional objetivo

Indep. Nacional objetivo

Segurança objetivo valor

Bem estar objetivo

Prosperidade objetivo

Congresso outorgante

Min. Militares outorgante

Dir. sociais valor

Dir. individuais valor

Desenvolvimento valor

Igualdade valor

É notável a citação do povo em seis dos sete momentos constitucio-


nais, mesmo que como requerentes (1824) ou aspirantes (1937). Ou
a citação de Deus em cinco desses momentos, três vezes apenas como
protetor, uma como representado pelo Imperador, e outra como fiador
(1934). “Democracia” vem em seguida, com quatro citações; depois,
“liberdade”, com três citações. Os outros temas são citados duas vezes
ou menos. O tema da “unidade” foi uma preocupação, na década de
30, tanto para a constituição democrática quanto para a autoritária.
“Segurança” aparece em 1937 como objetivo, e em 1988 como valor.
Povo, Deus, Democracia e Liberdade, pela ordem, seriam, por sua fre-
qüência nos preâmbulos constitucionais, os temas mais merecedores
de atenção. Mais notável, contudo, no preâmbulo de 1988, é a primei-
ra aparição do tema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”: “Igualdade,
Liberdade” como objetivos, e “Fraternidade” como pressuposto6.

6
(...) para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar (...) como valo-
res supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...).
62 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Liberdade, Igualdade, Fraternidade: normalmente vinculados à Re-


volução Francesa, esses temas, especialmente os dois primeiros, não
esgotam naquele evento o seu significado. Hans Kelsen, pai do Direito
Objetivo, chega a dizer que liberdade e igualdade seriam a base da de-
mocracia (KELSEN, A Democracia, op. Cit, cap.I). Norberto Bobbio
vale-se da igualdade para definir o significado político de “esquerda”
e “direita”, definição essencial para conceituar os embates ideológicos
dos últimos dois séculos. Segundo Bobbio, o igualitarismo é o eixo
sobre o qual se define tanto a esquerda (mais igualitária) quanto a
direita (menos igualitária). A Liberdade deve ser imaginada como um
eixo perpendicular ao da Igualdade, servindo para definir o grau de
autoritarismo de governos de direita ou esquerda.7 Kelsen é referencial
para o Direito, Bobbio para a Ciência Política; Louis Dumont, refe-
rencial para as ciências sociais, diz que Liberdade e Igualdade, valores
individualistas, alicerçam a modernidade.8
Liberdade e Igualdade, como Deus e a Fraternidade, são valores con-
sensuais na mesma medida em que permaneçam indefinidos. Até
mesmo um referente aparentemente concreto, como “povo”, já excluiu
de sua significação os escravos, a classe média, os pobres, as mulheres
ou os analfabetos. Prenhes dessa indefinição, contudo, tais temas são
funcionais no debate político, e devemos ter o cuidado de não lhes
buscar uma precisão que restrinja sua abrangência.
Tais palavras, usadas de forma ora mais, ora menos definida, têm sido
úteis historicamente como indexadoras de visões de mundo e aspi-
rações, ou seja, como catalisadoras da ação histórica efetiva. Este é o
fato: por mais genéricas e mal definidas que sejam como conceitos, é
inegável a utilidade histórica macro e micropolítica de palavras como
Liberdade e Igualdade. Utilidade em processos históricos tão diversos
como a abolição da escravatura, as lutas anticoloniais, o comunismo,
o neoliberalismo, a liberação feminina e a luta pelo direito paterno de
guarda dos filhos.
Quanto à fraternidade, cumpre lembrar que o que se cultua, em nome
da ordem familial “natural”, divina ou constitucional, é uma ordem so-
cial. Historicamente, a “Natureza” grega, inteligível e viva, combinou-

7
Para um panorama dos vínculos de Igualdade e Liberdade com Esquerda e Direi-
ta, cf. BOBBIO, Norberto: Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção
política. Ed. Unesp, 2003 (2ª Edição), Trad. Marco Aurélio Nogueira.
8
DUMONT, Louis: O individualismo uma perspectiva antropológica da ideologia
moderna. Rocco, Rio de Janeiro, 1985, p. 91: “As implicações do Individualismo:
Igualdade, Propriedade”.
Um preâmbulo ao preâmbulo
63

se com a noção de “Deus” hebraica9. Natureza, Fraternidade, Deus


pertencem a um percurso temático elementar: os homens são irmãos,
ou uma fraternidade (ou foram, ou deveriam ser) pois são filhos da
mãe natureza, do pai celeste ou da Pátria. A Sociologia já alertava, no
século XIX, que sob o nome de “Deus” cultuavam-se os valores sociais.
Não é de se estranhar, portanto, a ressurgência e a permanência desse
conceito – Deus – nos preâmbulos constitucionais brasileiros, mesmo
os que se supõem laicos.
Liberdade e Igualdade foram exploradas na teoria e na prática, em
direções e intensidades diversas, pelos libertinos, libertários e neoli-
berais; e também pelos igualitaristas utópicos, socialistas democratas
e comunistas autoritários. A dupla “liberdade, igualdade” segue sendo
utilizada explicitamente através dos séculos para se entender e se tra-
balhar o conceito de “Cidade Ideal” (a utopia, “de optimo statu reipu-
blicae”, nas palavras de Thomas Morus) e seu par, o Estado real. Esse
Estado, para funcionar, precisa de um consenso, mesmo que polifôni-
co; dizer que a base de tal consenso é a Constituição é reducionismo
semelhante a ver o Brasil como sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, porque assim estabelece a Carta.
A fraternidade, marginal à ordem liberal-igualitária do individua-
lismo, aponta, como a persistência da invocação de Deus, para va-
lores transcendentes aos indivíduos, leis e constituições. O mesmo
não pode ser dito da liberdade e da igualdade, no centro do palco
da discussão política desde a Revolução Francesa aos dias de hoje, e
continuamente instrumentalizadas.
Ao contrário do par Liberdade e Igualdade, contudo, a Fraternidade e
Deus não deixaram na política uma linha clara de descendência dis-
cursiva. Desde o Iluminismo a “vontade geral” e a ciência passaram a
substituir a autoridade divina no campo da ordenação da sociedade
e do conhecimento. A reforma do currículo medieval, proposta por
Francis Bacon, já havia restringido o campo da revelação divina às
questões de conduta correta, e propusera o método indutivo como
base para a ética e a política. Essa reforma abriu o caminho para Ho-
bbes reinterpretar a natureza humana de acordo com os princípios
analíticos da mecânica de Galileu10. Antes, o sujeito normativo era
Deus (ou seja, os valores tradicionais, dos quais se deduzia a forma de

9
HOOYKAAS, R. A Religião e o desenvolvimento da ciência moderna. Brasília, Ed.
Universidade de Brasília, 1988.
10
INGRAM, David (1994): Habermas e a dialética da razão. Brasília: Editora Uni-
versidade de Brasília, 1994.
64 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

os homens individuais se comportarem); a partir de Hobbes, o sujeito


normativo é o indivíduo (do qual se deduz o homem coletivo, o Le-
viathan, o Estado).
A Renascença destronou Deus e entronizou o homem como “medida
para todas as coisas”, conforme a fórmula clássica. Divindade e so-
ciabilidade passariam, ideologicamente, a subordinarem-se respecti-
vamente à humanidade e à individualidade.
Fraternidade é um valor correspondente ao pólo “divindade e socia-
bilidade”; já igualdade e liberdade pertencem ao outro pólo, “huma-
nidade e individualidade”. O tom religioso da palavra Fraternidade,
ainda hoje presente, pode ser sentido desde o século XVIII, quando
Fraternidade é assim definida na Declaração de Direitos e Deveres
do Cidadão, no começo da Constitution de l’an III (Constituição do
ano III, de 1795): «Ne faites pas à autrui ce que vous ne voudriez pas
qu’on vous fit; faites constamment aux autres le bien que vous voudriez en
recevoir». Não fazer ao outro aquilo que não quereis que vos façam;
fazer constantemente aos outros o bem que quereis receber. Trata-se
de uma definição que remete imediatamente ao texto sagrado cristão.
O tom religioso não é marcante nas outras duas palavras do lema revo-
lucionário. Liberdade e Igualdade permanecem sendo primariamente
entendidas como direitos econômicos, legais ou culturais. Por outro
lado, é difícil invocar-se o “direito à fraternidade”, pois ela depende
de uma correspondência não-jurídica, não comercial, não-mecanicis-
ta; ela depende de uma correspondência “natural” pré-individualista,
independente da volição individual.
Liberdade e Igualdade, sempre do outro lado, pressupõem uma socie-
dade individualista. É difícil ver Igualdade e Liberdade como esteios
duradouros de uma sociedade corporativa, estamental ou hierárquica.
Ao contrário: Liberdade e Igualdade são apresentadas como antídotos
a esse tipo de sociedade.
A antítese presente no lema revolucionário perpetuou-se no preâm-
bulo constitucional de 1988 – liberdade e igualdade individualis-
tas e modernas, como valores supremos de uma sociedade fraterna.
Um preâmbulo ao preâmbulo
65

A noção de “holismo1” dumontiana, noção precisa, mas de tradição re-


cente na política, pode ser identificada com a noção de “fraternidade” –
mais imprecisa, porém tradicional. Fraternidade é, a princípio, a su-
bordinação do indivíduo à comunidade de “irmãos” (de sangue, de
fé). A fraternidade, além de antinômica ao individualismo, também
nos remete ao mesmo tipo de coesão que se confunde com a cor-
poração, com o estamento e a hierarquia. Confunde-se com as as-
sociações de tipo “primitivo”, conceito secular e preconceituoso da
Antropologia, mas até hoje não superado integralmente. Se o ter-
ceiro termo do lema revolucionário, a fraternidade, refere-se ao que
Dumont chama de holismo, poderemos combinar a reflexão sobre o
holismo, mais contemporânea, com palavras, conceitos e percursos
temáticos mais tradicionais no debate Ocidental.
Desse ponto de vista, um problema da identidade moderna, inclusive
da identidade de nossa Constituição, é conciliar fraternidade com o
individualismo, que supõe Liberdade e Igualdade. Dessa conciliação,
que tem por um lado a fraternidade (hierárquica e personalista) com
os outros membros da sociedade e, por outro lado, a liberdade e a
igualdade enquanto indivíduos, talvez esteja vindo a construção histó-
rica do indivíduo democrático e da sociedade democrática.

11
Individualismo e Holismo. Louis Dumont divide as sociedades em dois tipos:
holistas e individualistas. O holismo é definido como “ideologia que valoriza a tota-
lidade social e negligencia ou subordina o indivíduo humano”. O sistema de castas
tradicional da Índia seria um exemplo desse tipo de sociedade onde as pessoas não
se imaginam como indivíduos, mas sim como partes de uma classe, estamento, casta
ou cosmos que seriam, estes sim, os elementos políticos funcionais. Como realidade
subjacente, toda sociedade é holista, continua Dumont. No entanto, ao ser apre-
sentado como valor, o holismo entra em conflito com os valores individualistas
que nós, ocidentais modernos, temos como definidores de nossa identidade. Nas
palavras de Dumont: “(...) o totalitarismo é uma doença da sociedade moderna que
resulta da tentativa, numa sociedade onde o individualismo está profundamente
enraizado, e predominante, de o subordinar ao primado da sociedade como totali-
dade. (...) a violência do movimento mergulha suas raízes nessa contradição (...)”. As
“ditaduras do proletariado” são exemplos da emergência do recalque holista dentro
de um quadro ideológico individualista. O holismo como valor, em meio a indivi-
dualistas, é sentido como autoritarismo. Pouco importa o fato de que nossa socieda-
de individualista nos imponha uma interdependência maior do que a existente em
sociedades primitivas; o fato é que nos vemos como indivíduos, sujeitos jurídicos
responsáveis e não mais, por exemplo, como membros de uma família ou grupo
que se deve vingar de outra família, ou, como querem alguns, parte de uma classe
que está em luta com outra classe. Mesmo que ajamos segundo condicionamentos
familiares, sexuais, estamentais ou classistas, não é assim que tendemos a entender
nossas ações. São entendidas como fruto da vontade individual – supostamente livre
e de valor igual à vontade de qualquer outro. E tendemos a nos rebelar contra regras
que queiram vincular nosso comportamento a estereótipos grupais (classistas ou
sexuais, por exemplo).
66 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Sem os horizontes dados pelo campo semântico de fraternidade (ir-


mãos, conterrâneos, correligionários, corinthianos) mesmo os igualita-
ristas e liberais ficariam sem referência grupal. Igualdade e Liberdade,
construções e construtoras de uma concepção individualista, seriam,
no limite, incompatíveis com agrupamentos liberais ou igualitários.
Em outras palavras: ideologias liberais ou igualitárias não se bastam
a si mesmas, pois, ao se referirem aos indivíduos livres ou iguais, não
tratam do aspecto da coesão social. Valores individualistas não bastam,
quando se trata de construir uma sociedade. Por outro lado, a fraterni-
dade em torno de ideais ambientalistas, políticos ou quaisquer outros,
tenderia ao corporativismo ideológico ou partidário, fadado, portando,
ao fracasso, num macroambiente individualista que dilapida até mes-
mo as lealdades familiares – e muito mais as lealdades de corporações
menos sólidas.
A solidariedade, a fraternidade, a divindade, embora definam o hori-
zonte ético (referência ao grupo real) e hipotético (referência ao grupo
utópico, desejado) tendem a não ser racionalizadas como valores – a
não ser, aparentemente, em momentos de crise, quando a coesão gru-
pal vê-se ameaçada. Nesses momentos de emersão da fraternidade no
discurso lógico, é comum que ela se pareça a um chauvinismo, como
sói acontecer à fraternidade futebolística, étnica, nacional, sexual ou
classista. Assim, não é estranho que a fraternidade, como valor, tenda a
alimentar ideologias de tipo exclusivista, autoritário ou irracionalista,
como no caso do nazismo.
A identidade moderna, individualista, faz-se no entrecruzar das idéias
libertárias, libertinas e liberais, por um lado; por outro lado, no entre-
cruzar de idéias igualitárias, uniformizantes, racionalizantes. Liber-
dade e Igualdade são conceitos indutivos: a partir da liberdade e da
igualdade de seres individuais concretos, chega-se ao conceito geral
de igualdade ou liberdade.
O conceito de fraternidade, antagonicamente, é um conceito dedu-
tivo: parte de conceito geral de uma organicidade hierarquicamente
superior ao indivíduo, à liberdade e à igualdade, e impõe-se aos seres
individuais concretos. Mesmo quando defendida em nome do iguali-
tarismo (o comunismo), ou do racismo (o nazismo) a fraternidade, em
vez de ser uma comunidade de irmãos, instala-se na prática como o
império do Grande Irmão, o ditador em molde estalinista consagrado
por George Orwell em seu livro “1984”.
Estudar a emergência da identidade estatal brasileira a partir dessas
duas aproximações – a dedutiva (arcaizante com viés católico, ain-
Um preâmbulo ao preâmbulo
67

da não abandonado) e a indutiva (progressista com viés iluminista,


ainda não assimilado) parece ser um caminho promissor, dentre os
vários que poderiam ser sugeridos a partir da leitura dos preâmbu-
los constitucionais.

Referências

AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Fo-


rense, 2006.
BACON, Francis. De Dignitate et Augmentis Scientarum libri IX. apud INGRAM,
David . Habermas e a dialética da razão. Brasília : EdUnB, 1994.
BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção
política. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2003.
DUMONT, Louis. O individualismo: Uma perspectiva antropológica da ideolo-
gia moderna. Rio de Janeiro : Rocco, 1985.
HOOYKAAS, R. A religião e o desenvolvimento da ciência moderna. Brasília:
EdUnB; Pólis, 1988.
INGRAM, David. Habermas e a dialética da razão. Brasília : EdUnB, 1994.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. São Paulo : Cultrix, [19-?].
KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo : Martins Fontes, 1993.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de
1967. 2. ed. São Paulo: Rev. Tribunais, 1967.
PLATÃO. As leis. Bauru, SP : Edipro,1999. p. 192-199.
Agricultura e pesca
69

Impactos da Constituição de
1988 sobre a política agrícola
Gustavo Roberto Corrêa da Costa Sobrinho,
José Cordeiro de Araújo e José Maciel dos Santos Filho

Apresentação

Este trabalho pretende analisar os principais impactos da Constitui-


ção Federal de 1988 sobre a política agrícola.
Considerando que a leitura isolada dos dispositivos constitucionais
não fornece elementos suficientes para o entendimento da totalidade
de seus impactos sobre o setor agropecuário brasileiro, a presente aná-
lise estrutura-se da seguinte forma: na primeira seção, descrevem-se
sucintamente o cenário econômico e medidas de cunho institucio-
nal que antecederam a promulgação da Constituição; na segunda, são
apresentados os principais mandamentos da Carta Magna relaciona-
dos à política agrícola, bem como à legislação infraconstitucional de
interesse, derivada do texto constitucional; a terceira seção examina a
implementação dos seguintes instrumentos de política agrícola, após
a promulgação da Constituição: crédito rural, programas de garantia
e sustentação de preços, pesquisa, assistência técnica e extensão rural,
seguro agrícola e cooperativismo. Por último, apresentam-se conside-
rações finais.

Fatos antecedentes à Constituição1

Na década de 1970, os financiamentos rurais com recursos públicos


foram concedidos de forma abundante, orientada e com encargos fi-
nanceiros altamente subsidiados. Entre 1976 e 1980, verificaram-se
grandes diferenças entre o ritmo da inflação e as taxas médias nomi-
nais do crédito rural, resultando em juros reais negativos (MANOEL,
1986). No biênio 1979/1980, o volume de recursos do crédito rural
oficial alcançou o seu ápice (BRASIL, 2006).

1
Esta seção baseia-se, parcialmente, em trabalho do Departamento Econômico do
Banco Central do Brasil (BACEN, 2003).
70 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A partir do final da década de 1970, instalou-se no país grande preo-


cupação com alguns aspectos da economia nacional: descontrole or-
çamentário, aceleração do processo inflacionário, seguidas crises de li-
quidez, desequilíbrio cambial, entre outros. No período que se seguiu,
políticas monetárias restritivas, desvalorizações da moeda nacional,
pré-fixação de taxas de juros, alterações no critério de cálculo da cor-
reção monetária, bem como sua extinção e recriação, figuraram entre
as medidas adotadas.
Em 1986, a gravidade da crise ensejou o lançamento do Plano Cru-
zado. No mesmo ano, foram extintos a “conta-movimento”, mantida
pelo Banco do Brasil no Banco Central, fundos e programas de fo-
mento, administrados pelo Banco Central. Com isso, o crédito rural
perdeu sua maior fonte de financiamento, o “orçamento monetário”,
passando desde então a depender das disponibilidades da União.
Em 1987, foram criadas a Poupança Rural e a Secretaria do Tesouro
Nacional. A Poupança Rural transformou-se, em 1988, na maior fon-
te de recursos para o crédito rural. 2 A Secretaria do Tesouro Nacional
passou a centralizar a administração da dívida pública federal, antes
gerida pelo Banco Central, bem como o controle da execução orça-
mentária da União, aí incluída parte relevante do crédito rural, antes
livremente administrada pelo Banco do Brasil. Tais providências, so-
madas à extinção da “conta-movimento”, lançaram as bases para uma
administração fiscal mais equilibrada.
A Constituição de 1988 foi precedida por mais um plano econômico,
o Plano Bresser, que, à semelhança do Plano Cruzado, obteve sucesso
no combate à inflação apenas em sua fase inicial.
Esse conjunto de transformações contribuiu significativamente para
o novo arcabouço institucional desenhado pela Constituição Federal
de 1988, para a administração orçamentária e financeira do país. Foi,
portanto, em um contexto de crise econômica, turbulência inflacioná-
ria e de modernização institucional que a Assembléia Nacional Cons-
tituinte desenvolveu seus trabalhos.

2
À época, somente os bancos federais foram autorizados a operar com recursos da
Poupança Rural.
Impactos da Constituição de 1988 sobre a política agrícola
71

Dispositivos constitucionais e a política agrícola

Promulgada em um cenário de crise econômica, a Constituição de


1988 sinaliza o estabelecimento de algumas garantias para a busca do
equilíbrio fiscal.
Três dispositivos do capítulo que trata de finanças públicas conferiram
status constitucional e complementaram providências previstas em
normas infraconstitucionais, que vinham sendo adotadas desde 1986,
com a extinção do “orçamento monetário” e a criação da Secretaria do
Tesouro Nacional:
• O § 5º do art. 165 reuniu em uma única peça orçamentária os
orçamentos fiscal, de investimento e da seguridade social.
• O art. 164 atribuiu ao Banco Central do Brasil competência ex-
clusiva para emitir moeda em nome da União.
• O art. 167, por sua vez, vedou “a realização de despesas ou a
assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orça-
mentários ou adicionais”, bem assim “a vinculação de receita de
impostos a órgão, fundo ou despesa”.
Fecharam-se, portanto, as portas a tentativas de se garantirem fontes
exclusivas, constantes e seguras de recursos para fazer face a gastos.
Vários programas de suporte à agricultura foram prejudicados.
Importante exceção a essa regra encontra-se no art. 159, com a criação
dos Fundos Constitucionais de Financiamento do Norte, Nordeste
e Centro-Oeste, para os quais se destinaram 3% da arrecadação do
imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza e do imposto
sobre produtos industrializados. Esses fundos vieram a constituir, em
suas áreas de abrangência, significativa fonte de recursos para o finan-
ciamento da atividade agropecuária, entre outras.
Já o inciso VI do art. 84 delegou ao presidente da República, em cará-
ter exclusivo, competência para dispor, mediante decreto, sobre a or-
ganização e o funcionamento da administração federal. 3 Na Câmara
dos Deputados, consolidou-se o entendimento de que tal prerrogativa
presidencial estende-se à atribuição de funções ao Poder Executivo,
o que dificulta iniciativas legislativas em favor, por exemplo, do setor
agropecuário, a despeito de sua representação no Congresso Nacional

3
Se as medidas adotadas pelo presidente implicarem aumento de despesa, necessita-
se de autorização do Congresso Nacional, consubstanciada pela aprovação da Lei
Orçamentária Anual.
72 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

poder apresentar número suficiente de votos para aprovar projetos de


lei de seu interesse.
Excluídas as referências às políticas fundiárias e de reforma agrária, os
dispositivos constitucionais que tratam mais diretamente de políticas
voltadas para o setor agrícola encontram-se esculpidos no art. 187,
adiante transcrito, e nos artigos 42, 50 e 62 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT).
O art. 187 da Constituição assim estabelece:
Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma
da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envol-
vendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores
de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando
em conta, especialmente:
I – os instrumentos creditícios e fiscais;
II – os preços compatíveis com os custos de produção e a garan-
tia de comercialização;
III – o incentivo à pesquisa e à tecnologia;
IV – a assistência técnica e extensão rural;
V – o seguro agrícola;
VI – o cooperativismo;
VII – a eletrificação rural e irrigação;
VIII – a habitação para o trabalhador rural.
§ 1º Incluem-se no planejamento agrícola as atividades agroin-
dustriais, agropecuárias, pesqueiras e florestais.
§ 2º Serão compatibilizadas as ações de política agrícola e de
reforma agrária.

Como se observa, o art. 187 atribuiu à lei a fixação de princípios para


a elaboração e a execução da política agrícola; limitou-se a relacionar,
sem muita precisão pragmática, os principais aspectos a serem consi-
derados nessa tarefa.
Se interpretado de maneira mais ampla, o art. 187 pode ser entendido
como uma sinalização ao segmento rural, no sentido de um Estado
atuando com considerável grau de intervencionismo, o que, de fato,
não se verificou nos anos que se seguiram à Constituição.
A determinação de que as atividades agroindustriais, pesqueiras e flo-
restais devem integrar o planejamento agrícola não foi plenamente ob-
servada, uma vez que os setores pesqueiro e de florestas plantadas foram
transferidos para a órbita do Ministério do Meio Ambiente e, mais re-
centemente, no caso da pesca, para a Secretaria Especial de Aqüicultura
e Pesca, vinculada à Presidência da República. Com isso, as políticas
para tais setores não foram elaboradas e executadas com ênfase no fo-
mento, como se supõe seria característica da política agrícola.
Impactos da Constituição de 1988 sobre a política agrícola
73

O art. 42 do ADCT determina que, durante 25 anos, 20% dos re-


cursos destinados pela União à irrigação sejam aplicados na Região
Centro-Oeste e 50%, na Região Nordeste, preferencialmente no
semi-árido.4 A despeito dessa determinação, dados levantados pelo
Tribunal de Contas da União revelam o descumprimento desses
percentuais nos exercícios de 2002 a 2006 (TCU, 2007).
O art. 62 do ADCT é o dispositivo constitucional do qual resultou
maior alteração na política agrícola: modificou o panorama da ca-
pacitação de mão-de-obra rural no país, ao determinar a criação do
Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar). A essa entidade,
criada por lei ordinária, destinou-se montante substancial de recursos
financeiros, proveniente de fonte permanente e segura, o que permitiu
a implantação de uma organizada estrutura que, com o acúmulo de
conhecimento, tornou-se uma instituição de excelência nesse campo.
Como se procurará demonstrar nas seções e subseções a seguir, os
impactos da Constituição sobre a política agrícola não se resumem aos
efeitos de seus dispositivos; decorrem, em larga medida, da vinculação
destes a leis que lhes são posteriores. Merecem especial destaque a Lei
de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 2000) e a
Lei Agrícola (Lei nº 8.171, de 1991), prevista pelo art. 50 do ADCT.

Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)

A Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, regulamenta o


Capítulo II (Das Finanças Públicas) do Título VI (Da Tributação e
do Orçamento) da Constituição Federal. Entre outros aspectos, essa
norma geral define rígidas condições para o uso de recursos públicos.
As de maior interesse para o setor agropecuário são as constantes dos
artigos 16, 17 e 40.
Os artigos 16 e 17 da LRF condicionam a iniciativa legislativa à sa-
tisfação de condições específicas: exigem que projetos de lei que re-
sultem na criação ou na elevação de despesas obrigatórias de caráter
continuado apresentem a origem dos recursos para o seu custeio, seja
pela identificação de nova fonte ou pelo cancelamento de despesas em
valores equivalentes.
O art. 40 vinculou a concessão de garantia pela União à exigência
de contragarantia, em montante igual ou superior à garantia a ser

4
A determinação inicial era de quinze anos, a partir de 1988. Posteriormente, foi
prorrogada por mais dez anos, pela Emenda Constitucional nº 43, de 2004.
74 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

concedida. Esse dispositivo inviabilizou o modelo vigente até o iní-


cio do ano 2000, pelo qual a União assumia o risco em financiamen-
tos concedidos por instituições financeiras federais a beneficiários
da reforma agrária e do Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (Pronaf ) com dificuldade de acesso ao crédito.
O impasse foi resolvido pela Lei nº 10.186, de 12 de fevereiro de 2001.
Por meio desse diploma legal, a União foi autorizada a, por intermédio
de instituição financeira federal, contratar operação de crédito direta-
mente com os agricultores de que se trata, sem a exigência de outras
garantias que não a obrigação pessoal do devedor.
Ocorre que a solução encontrada alterou o rito de cobrança das parce-
las em atraso desses financiamentos. Por se tratar, agora, de haveres da
Fazenda Nacional, e não mais das instituições financeiras, os valores
não pagos passaram a sujeitar-se à inscrição na Dívida Ativa da União.
Uma vez inscrito em Dívida Ativa, o débito do agricultor é desca-
racterizado como de crédito rural e passa a submeter-se a rito mais
rigoroso, próprio da execução fiscal.

Lei Agrícola (Lei nº 8.171, de 1991)

A Lei Agrícola foi prevista pelo art. 50 do ADCT, que assim estabelece:
Art. 50. Lei agrícola a ser promulgada no prazo de um ano dis-
porá, nos termos da Constituição, sobre os objetivos e instru-
mentos de política agrícola, prioridades, planejamento de safras,
comercialização, abastecimento interno, mercado externo e ins-
tituição de crédito fundiário.

O projeto de lei que deu origem à Lei Agrícola (Lei nº 8.171, de 17


de janeiro de 1991) originou-se no Congresso Nacional. Aprovado no
Senado Federal, depois na Câmara dos Deputados, quando submeti-
do à sanção presidencial, teve vetados diversos dispositivos que con-
feriam poder deliberativo ao Conselho Nacional de Política Agrícola
(CNPA), a ser criado. Tais vetos se fundamentam no preceito cons-
titucional de que matérias relativas à organização e funcionamento
da administração federal são de iniciativa exclusiva do presidente da
República (art. 84, VI).
No texto legal sancionado, restou ao CNPA apenas o caráter consul-
tivo: orientar a elaboração do Plano de Safra; propor ajustes ou alte-
rações na política agrícola; e manter sistema de análise e informação
sobre a conjuntura econômica e social da atividade agrícola.
Impactos da Constituição de 1988 sobre a política agrícola
75

A Lei Agrícola conferiu ao CNPA estrutura funcional integrada por


Câmara Setoriais, especializadas em produtos, insumos, comercializa-
ção, armazenamento, transporte, crédito, seguro e demais componen-
tes da atividade rural. Instaladas por ato e a critério do Ministro da
Agricultura, essas Câmaras constituem fóruns em que são discutidas
demandas e medidas de interesse de cada segmento da agropecuária
e do Poder Público.
Também foi vetado o dispositivo que propunha preços mínimos fixa-
dos em bases nacionais, a partir dos custos de produção, sob a justifica-
tiva de que a medida não se coadunava com a proposta de liberalização
da economia brasileira e levaria à formação de grandes estoques, le-
gitimando, do ponto de vista econômico, a baixa produtividade/com-
petividade de algumas regiões. Essa alegação corrobora a hipótese de
que o desenho dado à política agrícola após a promulgação da Cons-
tituição de 1988 decorreu, também, da preocupação com a disciplina
fiscal, presente no texto constitucional.
No que se refere à defesa agropecuária, disciplinada nos artigos 27 a
29, a Lei Agrícola, malgrado suas boas intenções, não vem sendo in-
teiramente observada pelo Poder Público, pois a alocação de recursos
para a finalidade tem sido insuficiente. Em 2005, por exemplo, apenas
R$ 35 milhões foram destinados à finalidade (MENDONÇA DE
BARROS e MENDONÇA DE BARROS, 2005, citando dados do
Ministério da Agricultura), contra R$ 143 milhões, em 2000.
O art. 65 da Lei Agrícola garantiu, no âmbito do Programa de Ga-
rantia da Atividade Agropecuária (Proagro), a cobertura integral ou
parcial dos recursos aplicados pelo produtor no custeio de suas ativi-
dades, independentemente de estes estarem ou não vinculados a fi-
nanciamentos rurais.
Merece destaque a autorização dada pela Lei Agrícola ao Ministério
da Agricultura para a instituição do Sistema Nacional de Pesquisa
Agropecuária (SNPA), que otimiza os esforços nacionais voltados
para o desenvolvimento tecnológico do setor. Sob a coordenação da
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o SNPA
é composto por organizações estaduais, universidades e instituições
científicas, de âmbito federal ou estadual, bem como por outras or-
ganizações, públicas e privadas, direta ou indiretamente vinculadas às
ciências agrárias.
O artigo 8º da Lei Agrícola e seu § 3º expressam a clara intenção
de promover o planejamento agrícola em base plurianual, a exemplo
do que é feito em países como os Estados Unidos, em que os planos
76 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

agrícolas são qüinqüenais. A despeito disso, têm-se adotado planeja-


mentos para períodos bem mais curtos, de no máximo um ano, con-
substanciados na forma dos Planos de Safra.
Os demais dispositivos da Lei nº 8.171, de 1991, limitam-se a tra-
tar de princípios gerais a serem observados na elaboração da política
agrícola, conforme preceitua o art. 50 do ADCT. Entre esses prin-
cípios, destacam-se a fixação de objetivos, instrumentos, prioridades
e aspectos a serem considerados na formulação de políticas voltadas
para a garantia de preços mínimos, a formação de estoques públicos e
o planejamento de ações governamentais voltadas para o setor.

Análise de alguns instrumentos da política agrícola

Cristalizadas em diversos dispositivos constitucionais, as restrições


que se impunham aos gastos públicos mesmo antes da nova Consti-
tuição continuaram a ensejar mudanças na política agrícola do país. O
modelo que prevaleceu até meados da década de 1980, alicerçado na
forte presença do Estado como indutor do desenvolvimento, deu lu-
gar, progressivamente, a uma atuação estatal mais discreta, bem como
a maior participação dos agentes privados. Essa assertiva é corrobo-
rada pela revisão da legislação concernente ao setor agropecuário, a
partir do início da década de 1990.
Nesse período, foram editadas as novas leis de classificação de produ-
tos vegetais; de armazenagem; de proteção de cultivares; de sementes;
e de biossegurança. Todas seguem no sentido de atribuir ao setor pri-
vado maior papel na execução da política agrícola, restando ao Estado,
principalmente, funções regulatórias.
A abordagem que se segue ressalta algumas das mais relevantes trans-
formações institucionais relacionadas ao setor agropecuário, ocorridas
desde a promulgação da Carta Magna.

Crédito rural

Após a Constituição de 1988, foram criados instrumentos voltados


para o financiamento dos agricultores, em decorrência da redução dos
recursos públicos disponíveis para o financiamento agrícola.
Um desses instrumentos é o mecanismo de equalização de taxas de ju-
ros, modalidade de subvenção econômica criada pela Lei nº 8.427, de
27 de maio de 1992. Por esse mecanismo, ao invés de repassar recursos
Impactos da Constituição de 1988 sobre a política agrícola
77

às instituições financeiras para o financiamento da atividade agrícola,


a União passou a estimulá-las a conceder tais empréstimos com re-
cursos próprios, captados no mercado. Para tanto, vem garantindo a
essas instituições a cobertura do diferencial entre o custo de captação
dos recursos, acrescido das despesas administrativas e tributárias in-
cidentes sobre os empréstimos concedidos, e os encargos financeiros
cobrados dos mutuários, fixados pelo Conselho Monetário Nacional.
Em relação à sistemática anterior, de repasses de recursos para finan-
ciamentos, obteve-se um ganho, pois, com menor dispêndio, o Poder
Público passou a viabilizar um mesmo volume de financiamentos. Do
ponto de vista fiscal, a providência foi um avanço, pois os subsídios ao
crédito, que anteriormente não eram captados de forma apropriada
pelas contas públicas, passaram a ser explicitados na peça orçamentá-
ria. 5 A prática disseminou-se tanto que há algum tempo discute-se a
extensão da sistemática a instituições financeiras privadas. 6 Ainda as-
sim, a inovação foi insuficiente para atender à demanda por crédito.
Em razão disso, os agentes econômicos desenvolveram mecanismos
privados de financiamento da produção agrícola: adiantamento de
fornecedores, troca de produtos por insumos e contratos de venda an-
tecipada da produção são alguns exemplos.
Para oferecer amparo jurídico às novas relações entre agentes do setor
privado, o Governo Federal editou novos diplomas legais, com desta-
que para as Leis nº 8.929, de 22 de agosto de 1994, e nº 11.076, de 13
de julho de 2004.
A Lei nº 8.929, de 1994, instituiu a Cédula de Produto Rural (CPR),
título representativo da venda antecipada de produtos rurais mediante
promessa de sua entrega futura.
Apesar de interessante, a CPR tem-se revelado alternativa onerosa
para o financiamento da atividade agrícola, em razão das elevadas
taxas de desconto praticadas pelo mercado e das significativas des-
pesas com o aval bancário, exigido pelos interessados em adquirir
esse título. Somados, tais custos chegam a equivaler a uma taxa de
cerca de 22% ao ano, o que torna o uso da CPR altamente arriscado

5
Os subsídios não eram captados apropriadamente pelas contas públicas pelo fato
de ocorrerem de forma implícita ao crédito, ou seja, em razão das diferenças entre a
taxa de inflação e as taxas médias nominais do crédito rural, que, à época, apoiava-
se largamente no “orçamento monetário”.
6
Atualmente, somente bancos federais e bancos cooperativos estão autorizados a
operar com a sistemática de equalização de taxas.
78 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

para financiar atividade com baixas margens de lucro, característica


do setor agropecuário.
A Lei nº 11.076, de 2004, criou títulos de crédito com o objetivo de
atrair recursos para a agricultura. Destacam-se o Certificado de Depó-
sito Agropecuário (CDA) e o Warrant Agropecuário (WA), que, entre
outros aspectos, facilitam a seus detentores a captação de recursos no
mercado financeiro. Por serem relativamente recentes, são escassos os
dados sobre o uso desses instrumentos, o que dificulta sua análise.
Por fim, o persistente endividamento do setor junto a instituições
financeiras e fornecedores de insumos sinaliza a necessidade de se
buscarem mecanismos que dêem solução ao problema. Possivelmen-
te, quando as taxas de juros da economia brasileira reduzirem-se a
patamares mais adequados, será viabilizado o uso mais intenso desses
novos instrumentos, como a CPR, sem onerar tanto o produtor.

Garantia e sustentação de preços

No âmbito das políticas voltadas para a garantia e sustentação de pre-


ços, verificou-se movimento semelhante àquele descrito para o crédito
rural. Ao invés de consolidar-se a presença estatal, procurou-se esti-
mular maior participação do setor privado na formação de estoques de
produtos agrícolas, bem como na remoção destes de regiões superavi-
tárias para regiões deficitárias.
Em 1996, foi extinto o Empréstimo do Governo Federal – Com
Opção de Venda (EGF/COV ), modalidade de empréstimo mui-
to usada até meados da década de 1990 no apoio à comercializa-
ção de produtos agrícolas. Esse instrumento de crédito permitia
ao produtor liquidar o saldo devedor mediante entrega ao governo
da quantidade de produto previamente vinculada à operação, com
base nos preços mínimos. Tal possibilidade significava, na prática,
que o produtor poderia transferir para o governo o risco associado
à variação negativa nos preços de seus produtos.
Posteriormente, foram gradativamente reduzidas as aquisições de pro-
dutos agrícolas realizadas diretamente junto a produtores pelo pro-
grama Aquisições do Governo Federal (AGF). Entre 1988 e 2007, a
formação de estoques governamentais de produtos agrícolas reduziu-
se substancialmente.
A partir de 1996, criaram-se novos instrumentos que atribuem ao se-
tor privado maior participação na tarefa de garantir e sustentar preços
Impactos da Constituição de 1988 sobre a política agrícola
79

de produtos agrícolas. Esses instrumentos podem ser agrupados em


duas classes:
1. os que estimulam os produtores a se protegerem contra variações
nos preços de produtos agrícolas, mediante compra de contratos de
opção de venda, lançados pelo governo ou pelo setor privado; e
2. os que estimulam os agentes do mercado a remover a produção ou a
lançar contratos de opções de venda; em ambos os casos, mediante
recebimento, em leilão público, de subvenção econômica.
O uso combinado dessas inovações permitiu ao Poder Público in-
fluenciar preços, sem realizar grandes desembolsos. Reduzem-se, com
isso, os inconvenientes associados à formação de estoques públicos nos
moldes anteriores, tais como: despesas com juros, armazenamento e
eventuais problemas com desvios e fraudes.
Entretanto, a estratégia de transferir ao setor privado a responsabi-
lidade pela formação de estoques e a tendência deste de estocar o
mínimo possível ameaçam o abastecimento de produtos agrícolas em
momentos de baixa oferta.
Tais inovações aplicam-se, principalmente, a produtores de maior porte.
Pequenos produtores rurais e agricultores familiares contam com pro-
gramas específicos de aquisição de alimentos, no âmbito do Pronaf.
Mais uma vez, a falta de dados detalhados acerca da implementação
destes instrumentos não permite uma análise mais adequada de sua efe-
tividade, em especial acerca de quem se apropria de seus benefícios.

Pesquisa agropecuária

A pesquisa agropecuária é, mundialmente, uma atividade conduzida,


em grande medida, pelo setor público, mercê de suas externalidades,
indivisibilidades e dificuldades de apropriação de resultados econômi-
cos pelas empresas geradoras de tecnologia, razões pelas quais o setor
privado, salvo poucos casos, não se interessa nem a contempla nos seus
planos de investimento.
Enquadra-se, portanto, na categoria de bens públicos, ou seja, aquele
universo de bens e serviços cujo consumo é indivisível: o consumo por
parte de um indivíduo não prejudica o consumo dos demais. Além
disso, é praticamente impossível impedir que um indivíduo desfrute
de um bem público, princípio da não-exclusão: o uso de um espaça-
mento numa lavoura, por exemplo, não pode discriminar determinado
80 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

produtor, pois a simples observação da técnica usada pelo vizinho lhe


permite o acesso e a apropriação da tecnologia.
Entretanto, a importância relativa dos bens públicos vem caindo, em
virtude da geração de tecnologias mais complexas, como a biotecno-
logia, cujos frutos são mais facilmente apropriadas pelo setor privado.
Em razão disso, afigura-se importante que a pesquisa pública se faça
presente nessa área, de modo a inibir a prática do domínio de mercado
por tais empresas.
Dado o acúmulo de conhecimento em agricultura tropical e o au-
mento de competência nacional no desenvolvimento de tecnologias
agrícolas, pode-se entender como minimamente observado o man-
damento constitucional de incentivo à pesquisa e à tecnologia (in-
ciso III do art. 187), especialmente se considerados os significativos
avanços proporcionados pela pesquisa agropecuária brasileira, como
a conquista dos cerrados, a tropicalização da soja e o desenvolvi-
mento de novas variedades vegetais e raças animais, a despeito das
restrições orçamentárias.
Em meados da década de 1990, por exemplo, o dispêndio nacional
com pesquisa agropecuária equivalia a apenas 0,81% do PIB agrícola,
participação extremamente desconfortável no confronto internacio-
nal. Países como Canadá, Austrália, Reino Unido e Holanda aplica-
vam em pesquisa agropecuária entre 3,26% e 5,3% do PIB setorial
(Contini, et al, 1997, citando dados da Unesco). Se o país quiser man-
ter-se na vanguarda do agronegócio, não deve destinar menos de 2%
do PIB setorial para a pesquisa agrícola, o que significa duplicar o
atual nível de gastos.
Com base no art. 149 da Constituição, instituiu-se, em 2000, com alí-
quota de 10%, Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico
(Cide) incidente sobre a remessa de recursos ao exterior para paga-
mento de assistência técnica, royalties, serviços técnicos especializados
ou profissionais (Lei nº 10.168, de 2000).
Dos recursos arrecadados, reservaram-se 17,5% para o financiamento
do Programa de Ciência e Tecnologia para o Agronegócio (Lei nº
10.332, de 2001), mais conhecido por “Fundo Setorial do Agronegó-
cio”. Esse fundo tem por finalidade estimular a capacitação científica
e tecnológica nas áreas de agronomia, veterinária, biotecnologia, eco-
nomia e sociologia agrícola, bem como promover a atualização tecno-
lógica da indústria agropecuária.
Impactos da Constituição de 1988 sobre a política agrícola
81

Até 2007, menos de 50% dos recursos ingressados no Fundo Setorial


do Agronegócio foram efetivamente aplicados nas finalidades a que
se destinam, embora as aplicações tenham crescido significativamente
nos últimos anos (Brasil, 2008). Em 2007, por exemplo, aquele per-
centual foi de 61%.

Assistência técnica e extensão rural

A Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) é um dos instrumen-


tos listados no art. 187 da Constituição Federal, especificamente no
inciso IV. A referência constitucional aos instrumentos que devem “ser
levados em conta no planejamento e na execução da política agrícola”
pode ser interpretada como um “prestígio”, sinalizando importância a
eles conferida e orientando a legislação e os programas governamen-
tais para seu adequado disciplinamento e fortalecimento. Portanto, a
ATER é um dos instrumentos “prestigiados” pela Constituição.
A Lei Agrícola também elege a Extensão Rural como um instru-
mento relevante da política agrícola (Capítulo I – Dos Princípios
Fundamentais – Art. 4º) e estabelece sua integração com a pesquisa
agrícola (art. 12, I).
O Capítulo V dessa Lei é integralmente dedicado à ATER. Em três
artigos, disciplina o tema, dispondo sobre sua atuação e objetivos.
Vale destacar que o caput do art. 17 estabelece que “o Poder Público
manterá serviço oficial de assistência técnica e extensão rural, sem
paralelismo na área governamental ou privada, de caráter educati-
vo, garantindo atendimento gratuito aos pequenos produtores e suas
formas associativas [...] ””
A Lei Agrícola destaca, ainda, a necessidade de fortalecimento da Ex-
tensão Rural para desenvolver atividades de capacitação no campo da
mecanização agrícola (Capítulo XXII – Da Mecanização Agrícola –
art. 96, III).

A Ater após a promulgação da Constituição

Como visto, a Ater é prestigiada no texto constitucional e na Lei


Agrícola dela decorrente. Pode-se pressupor que, para alcançar tal sta-
tus normativo, os constituintes e os legisladores entendiam que ela é
um instrumento fundamental para a adequada execução da política
agrícola. A leitura atenta dos dispositivos da Lei Agrícola vincula-a
mais aos pequenos agricultores, denotando a esperança de que esse
serviço, historicamente ligado ao desenvolvimento das comunidades
rurais, pudesse, enfim, colaborar efetivamente para o resgate da dívida
82 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

social com esse segmento que, quase sempre, esteve à margem dos
benefícios das políticas voltadas para a agricultura.
Todavia, a prática legislativa e programática posterior à Constituição
Federal e à Lei Agrícola não condiz com a mensagem contida em
ambos os textos. A realidade, a partir de 1990, foi absolutamente di-
ferente do que se pode depreender dos textos constitucional e legal.
Torna-os uma carta de intenções, não observada. Ou seja, tais textos
não tiveram força suficiente para que as idéias neles contidas fossem
minimamente implementadas.
Há uma absoluta dissociação entre os mandamentos dos dois textos e
a realidade da execução da política de Ater. A começar pela extinção,
em 1990, da Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão
Rural (Embrater), então coordenadora nacional do Sistema Brasilei-
ro de Assistência Técnica e Extensão Rural (Sibrater), considerado o
maior e, talvez, o mais bem estruturado sistema de extensão rural no
mundo, referência internacional.
Não se pretende discutir, aqui, a lacuna organizacional e de liderança po-
lítica deixada pela Embrater. No entanto, sua pura extinção, sem que se
buscasse, minimamente, reorganizar o Sibrater – então formado por 27
empresas estaduais e 25 mil funcionários, dos quais 15 mil no campo –
condenou-o à desarticulação e a problemas de ordem orçamentária,
organizacional, institucional e política.
É fundamental entender-se o papel de uma agência coordenadora de
políticas, de âmbito nacional, neste caso representada pela Embrater
ou por sua antecessora, a Associação Brasileira de Crédito e Assistên-
cia Rural (ABCAR). Uma instituição com tal atribuição desempenha
importante função de coordenação das políticas, seja em articulação
com as Unidades da Federação, seja no âmbito da administração fede-
ral, entre os diversos organismos, na busca de melhor governança. So-
mente por uma adequada coordenação das políticas torna-se o Estado
mais eficiente e capaz de evitar paralelismos e desperdícios de esforços
e de recursos. A eficiência da gestão pública não pode prescindir da
coordenação das ações atribuídas às diferentes esferas de governo e às
diferentes agências que compõem cada uma das esferas. A capacidade
de coordenar políticas é uma das características do Estado moderno.
Sob essa ótica, a extinção da Embrater representou um retrocesso, na
medida em que suprimiu um órgão que cumpria tal papel.
A forma errante, de ordem institucional, sofrida pela coordenação
nacional da Extensão Rural brasileira, a partir daquele ano, foi de-
letéria para a manutenção do Sibrater como um sistema coeso, efi-
Impactos da Constituição de 1988 sobre a política agrícola
83

ciente e dedicado, como fora até então. A coordenação nacional foi


atribuída, inicialmente, à Embrapa (em realidade, muitos meses após
a extinção da Embrater), posteriormente, ao Ministério da Agricul-
tura e, hoje, encontra-se, apenas em parte, no Ministério do Desen-
volvimento Agrário.
O tratamento orçamentário dado ao setor é outro aspecto relevante,
que demonstra a dissociação entre os textos constitucional e da Lei
Agrícola, em relação às diretrizes governamentais de âmbito federal.
Desde sua criação, em 1956 – a partir da implantação da ACAR-MG,
em 1948, e de outras entidades de âmbito estadual –, o Sibrater foi
sustentado, majoritariamente, por recursos federais, sendo suas ativi-
dades inseridas no conjunto da política agrícola federal. Ao final da
década de 1980, mais de 60% dos recursos totais do Sibrater eram
oriundos do Governo Federal.
Ao longo dos últimos anos – principalmente na primeira metade da
década de 1990 –, a ATER sofreu intenso corte dos recursos finan-
ceiros federais. Contribuiu para isso a idéia então vigente de que a
Constituição, ao repartir, com os estados e municípios, os recursos de-
correntes da arrecadação tributária, levava a União a reduzir drastica-
mente suas transferências voluntárias, entre as quais se enquadravam
aquelas da Embrater para suas associadas estaduais.
Embora justificada pela necessidade de imporem-se restrições de or-
dem orçamentária e de buscar-se o equilíbrio fiscal, tal decisão ex-
primiu a baixa prioridade conferida pelo governo federal, de então, à
Ater. A decisão também evidenciou o pouco caso com os rumos que
tomaria a política de Ater, no contexto da política agrícola.
Houvesse sensibilidade dos dirigentes de então para a importância da
Ater, no que se refere ao apoio aos agricultores, em especial aos peque-
nos, tal medida fiscal não seria implementada. Ou, alternativamente, o
seria com salvaguardas, que assegurariam a manutenção da prestação
do serviço aos agricultores brasileiros e, principalmente, a manutenção
da capacidade coordenadora do governo federal de tão importante
instrumento de política.
A acentuada redução dos recursos financeiros, ao longo do período,
fez com que o Sibrater, desorganizado e sem coordenação de suas
políticas nacionais, passasse a diminuir drasticamente sua capacidade
operacional e, por conseqüência, sua qualidade técnica, reconhecida
pela excelência até 1990.
84 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Tabela 1: Sibrater – Orçamento Realizado


(Valores Constantes de 2007)
Ano Valor (mil R$)
1984* 257.073
1985* 216.613
1994** 29.910
1995** 63.587
1996** 794
1997** 14.149
1998** 17.798
1999** 1.276
2000** 22.089
2001** 4.198
2002** 5.671
2003*** 24.381
2004*** 59.652
2005*** 78.638
2006*** 114.778
2007*** (Prev.) 125.782

Fontes: *Embrater, 1986. **Embrater, 1986. ***Siafi/STN: Elaboração Consultoria de Orça-


mento/CD e Prodasen. ****Asbraer. Elaboração dos autores e atualização monetária obtida
em: http://www.tjdft.jus.br/consultas/custas/atualizacao_monetaria.htm

Não há dados precisos acerca dos recursos federais alocados à Extensão


Rural. Dependendo do estudo ou do banco de dados, os registros são
agregados de forma diferente. Por essa razão, optou-se por registrar, aqui,
os dados a partir de três fontes, em três períodos diferentes. Ainda que
imprecisos, os dados permitem deduzir que houve sensível redução dos
recursos financeiros federais para financiamento das atividades de Ater.
Além disso, há intensa oscilação, no tempo, nos montantes de recursos,
o que ocasiona insegurança operacional ao Sistema de Extensão Rural.
As dotações mais recentes, as maiores observadas desde 1990, represen-
tam cerca de metade das verificadas em meados da década de 1980.
Estudo conduzido por Villa Verde (1997) concluiu que os gastos go-
vernamentais federais com Extensão Rural e Informação Científica
e Tecnológica situaram-se entre 40 milhões e 80 milhões de dólares
anuais, durante toda a década de 1980 e que, nos anos 90, reduziram-
Impactos da Constituição de 1988 sobre a política agrícola
85

se para algo em torno de 25 milhões, com piso no período 1992/1994,


quando a média foi de 13 milhões de dólares.
Não se pode deixar de reconhecer que, com tal perda, é natural que o
Sibrater tenha entrado em um período de estagnação, queda no ritmo
de atividades e dificuldades operacionais de toda ordem, reduzindo,
significativamente, sua presença e força, em proporção ao crescimento
do setor agropecuário nacional.

Breve conclusão sobre a Ater no período após a promulgação


da Constituição

Dois fatos importantes, decorrentes de atos ou de omissões governa-


mentais, permitem concluir não ter havido, no que se refere à Ater,
correspondência entre os ditames constitucionais e a realidade legis-
lativa e programática. Os atos governamentais concernentes a esse
instrumento da política agrícola não atenderam ao que se pode depre-
ender do texto constitucional e da Lei Agrícola.
De uma parte, a forma pendular das decisões acerca da inserção da
coordenação nacional de Ater na administração pública federal indica
pouca valorização desse instrumento como parte fundamental da po-
lítica agrícola. Pois que a inexistência de uma coordenação única, per-
manente e contínua tem prejudicado sobremaneira o fortalecimento da
política de Ater. Isso não significa que a coordenação atual, mais a cargo
do Ministério do Desenvolvimento Agrário, não seja eficiente. O que se
aponta é que ela não ocorre de forma plena, pois não alcança o conjunto
das atividades desenvolvidas pelas empresas estaduais de extensão rural,
restringindo-se aos projetos da agricultura familiar.7
De outra parte, como acima demonstrado, a redução, num primeiro
momento, e a lenta recuperação, ao longo dos últimos anos, do volume
de recursos orçamentários federais destinados à Ater – recuperação,
aliás, que está aquém de seus novos desafios, com a nova dimensão do
Pronaf – expressam, mais uma vez, a pouca relevância dada pelas ad-
ministrações federais, a partir dos anos 90, à inserção adequada e forte
da Ater no âmbito da política agrícola. Em realidade, já se identifica-
vam sinais de alterações de rumos desde o final da década de 1980.
Dessa forma, pode-se concluir que, a despeito dos mandamentos cons-
titucional e legislativo explícitos, a Ater não foi fortalecida nesse pe-
ríodo. De pouco adiantaram, para esse instrumento, os dispositivos da

7
Sobre essa questão, ver análise mais circunstanciada em Araujo, 2007
86 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Constituição e da Lei Agrícola, dela decorrente, que orientam os pro-


gramas governamentais para o setor agropecuário. Ao fecharem os olhos
a tais mandamentos, as sucessivas administrações federais deixaram de
incorporar, de forma integral, os princípios expressos naqueles textos.
Resta a esperança de que a recuperação, lenta, que se observa na qua-
dra atual, seja capaz de resgatar aquela sinalização e permitir a plena
execução do que prevê a Constituição Federal.

Seguro agrícola

O seguro agrícola foi previsto pelo art. 187, V, da Carta Magna. Com
inspiração nesse dispositivo, a Lei nº 10.823, de 19 de dezembro de
2003, autorizou a concessão de subvenção econômica ao prêmio do
seguro rural.
Entretanto, o mercado privado de seguro agrícola ainda é pouco de-
senvolvido. Carece da participação de um maior número de empresas.
Na tentativa de resolver o problema, o governo federal promoveu a
quebra do monopólio do Instituto de Resseguros do Brasil (Lei Com-
plementar nº 126, de 15 de janeiro de 2007) e enviou ao Congresso
Nacional o Projeto de Lei Complementar nº 374, de 2008, que auto-
riza da União a conceder subvenção econômica a consórcio constitu-
ído por sociedades seguradoras e resseguradores, para o atendimento
à cobertura suplementar dos riscos de catástrofe do seguro rural nas
modalidades agrícola, pecuário, aqüícola e de florestas.

Cooperativismo

Em três dispositivos, a Constituição refere-se mais diretamente


ao cooperativismo.
O inciso III do art. 146 estabelece que lei complementar definirá
normas para o adequado tratamento tributário do ato cooperativo.
Todavia, nenhuma lei complementar tratou da matéria, ainda que
haja, em tramitação, projetos de lei nesse sentido. O que se verificou
foram isenções de tributos como PIS/Pasep e Cofins, instituídas por
leis ordinárias.
O § 2º do art. 174 determina que lei apoiará e incentivará o coope-
rativismo e outras formas de associativismo. Esse apoio tem-se con-
centrado no fortalecimento institucional do sistema cooperativo, por
Impactos da Constituição de 1988 sobre a política agrícola
87

meio de ações do Departamento de Cooperativismo e Associativismo


(Denacoop), órgão do Ministério da Agricultura.
O inciso VI do art. 187 trata o cooperativismo como um dos instrumen-
tos de política agrícola. As medidas mais relevantes em benefício desse
segmento, após a Constituição, foram adotadas por meio da Medida Pro-
visória nº 2.168-40, de 24 de agosto de 2001, que instituiu o Programa
de Revitalização de Cooperativas de Produção Agropecuária (Recoop) e
o Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop).
O Recoop teve por objetivo equacionar o elevado endividamento
que pesava sobre o setor e ao Sescoop atribuiu-se a tarefa de orga-
nizar, administrar e executar, em todo o país, o ensino de formação
profissional, desenvolvimento e promoção social do trabalhador em
cooperativa e dos cooperados. Apesar dos esforços, parte considerá-
vel do sistema cooperativo agropecuário ainda se encontra em difi-
culdades financeiras.

Considerações finais

Ao contrário dos dispositivos relativos à política fundiária e de reforma


agrária, que ensejaram, após 1988, significativas transformações no meio
rural, a Constituição Federal não apresenta disposições que tenham oca-
sionado forte mudança na execução da política agrícola, estrito senso.
Entretanto, ao se considerarem os efeitos indiretos de dispositivos
constitucionais concernentes à maior disciplina fiscal e ao aprimo-
ramento da administração pública, é possível identificar-se forte in-
fluência da Nova Carta sobre a política agrícola, em especial no que
se refere ao crédito rural e à Política de Garantia e Sustentação de
Preços. Esses aspectos influenciaram a modernização da legislação do
setor agropecuário, editada a partir de 1990, especialmente no que
respeita à redução do papel do Estado como executor de políticas.
Passados vinte anos do início da vigência da Constituição Federal, os
dispositivos atinentes à política agrícola permanecem inalterados. Por
ser lacônico, o texto vigente admite interpretações diversas. Talvez aí
se encontre a explicação para a falta de aderência entre o texto consti-
tucional e as políticas destinadas ao setor agrícola.
A lacuna de que se trata permite políticas de toda sorte, voltadas para
elevado grau de intervenção estatal ou que privilegiam a capacida-
de auto-reguladora do mercado, cabendo ao Estado apenas sinalizar
tendências. Entretanto, o texto em vigor permite avanços, como, por
88 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

exemplo, a ampliação da participação dos vários segmentos integran-


tes do setor agropecuário na formulação da política agrícola, conforme
estabelece o caput do art. 187.
Torna-se fundamental que seja aperfeiçoado o ordenamento legal e
programático relacionado ao setor agropecuário, para que se promova
o desenvolvimento no campo e se viabilize o pleno alcance dos precei-
tos de justiça social presentes na Constituição.

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necessidade de entidade de coordenação nacional. In: Capacitação tecnológica da
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Agricultura e pesca
89

Pesca, aqüicultura e
direito do mar: influências da
Constituição Federal de 1988
Luciano Gomes de Carvalho Pereira

Em 5 de outubro de 1988, concluídos os trabalhos da Assembléia


Nacional Constituinte, promulgou-se a nova Constituição Federal
brasileira. Consolidava-se, assim, o processo de redemocratização na-
cional. O novo texto constitucional acarretou significativas mudanças
em diversos segmentos da sociedade brasileira.
Neste ano em que se completam vinte anos de vigência da “Consti-
tuição Cidadã”, escrutinamos seus dispositivos, no intuito de identicar
aqueles que, de alguma forma, tenham influenciado as atividades de
pesca e aqüicultura, situadas numa região de interface entre a produ-
ção agropecuária e o uso – que se deseja sustentável – dos recursos
naturais. Ao longo deste capítulo, discutiremos esses aspectos e ex-
penderemos algumas considerações acerca do direito do mar, no que
concerne à atividade pesqueira. Antes de fazê-lo, no entanto, para me-
lhor situarmos essas atividades no contexto nacional e internacional,
procuraremos apresentar um breve panorama.

Breve panorama histórico da pesca e da aqüicultura

A pesca é uma atividade importantíssima, no cenário internacional.


Dados da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Ali-
mentação (FAO) revelam que a produção mundial de pescado cresceu
de forma extraordinária nos últimos cinqüenta anos, superando outras
formas de produção agropecuária em âmbito mundial.
Em 1950, época em que praticamente inexistia a aqüicultura em esca-
la comercial, a produção mundial de pescado por captura, no ambiente
marinho, era da ordem de 17 milhões de toneladas. Em 1961, aquela
produção mais que dobrou, tendo alcançado 34,9 milhões de tonela-
das. Em 1983, o número de 1950 viria a quadruplicar-se, com a marca
de 68,3 milhões de toneladas.
90 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A aqüicultura passou a destacar-se significativamente no cenário


mundial a partir de 1990, quando acrescentou 13,1 milhões de to-
neladas de pescado às 85,9 milhões de toneladas capturadas no am-
biente natural (águas marinhas e continentais). Desde então, embora
as capturas tenham alcançado a marca de 95 milhões de toneladas em
2004, a contribuição mais notável decorreu do cultivo de organismos
aquáticos, em águas doces e salgadas, resultando na produção de 45,5
milhões de toneladas, em 2004. A produção da aqüicultura mundial
cresceu 246%, nesses doze anos.
A China, maior produtor mundial, teria sido responsável por 16,9%
do pescado capturado em 2004, e por 30,6% da produção da aqüicul-
tura. Todavia, há incertezas quanto à exatidão dos dados estatísticos
chineses, razão pela qual estes são analisados de forma separada dos
dados dos demais países em publicação editada pela FAO (FOOD
AND AGRICULTURE ORGANIZATION, 2006).
Ainda segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura
e a Alimentação (op. cit.), no ano de 2004 o comércio mundial de
pescado alcançou um valor recorde de 71,6 bilhões de dólares nor-
te-americanos (valores de exportação). Esse número representa um
crescimento de 23%, em relação ao ano 2000.
Paralelamente ao crescimento da produção mundial de pescado, a pes-
ca e aqüicultura também se desenvolveram no Brasil.
Muito antes da chegada do colonizador europeu ao continente sul-
americano, os povos indígenas que aqui habitavam já se alimentavam
de peixes, crustáceos e moluscos encontrados no mar, rios e lagos. No
decorrer do período colonial, a maior parte das técnicas de pesca foram
fornecidas pelos indígenas, em virtude de seu ancestral conhecimento
dos ecossistemas locais. Ao longo da história do Brasil, os pescadores
contribuíram com seu trabalho para o abastecimento das populações
urbanas e, por via de conseqüência, para a economia nacional.
Segundo Silva (1988), os pescadores tiveram destacada participação
em importantes eventos da história brasileira, como nas guerras rela-
tivas à invasão (1630-1635) e expulsão dos holandeses (1645-1654);
nas lutas contra o monopólio do sal, imposto pela Coroa Portuguesa a
partir de 1665; na guerra de independência da Bahia (1822-1823); na
Cabanagem do Pará (1821-1836); entre outros episódios.
Silva (1988) também relata um curioso marco histórico relativo à tri-
butação da atividade pesqueira, no Brasil: o “Foral de Pernambuco”,
documento colonial datado de 1534, estabeleceu o recolhimento obri-
Pesca, aqüicultura e direito do mar: influências da Constituição Federal de 1988
91

gatório de uma dízima – dez por cento – de todo o pescado capturado


na Capitania de Pernambuco, em favor da Ordem Jesuítica, e de outra
meia dízima – cinco por cento – em favor do capitão Duarte Coelho,
primeiro donatário da referida capitania. O dízimo do pescado foi
cobrado no Brasil durante o período colonial e, mesmo em 1822, de-
clarada a Independência, manteve-se vigente o decreto de 1821 que
tratava da arrecadação desse tributo.
Na República Brasileira, os primeiros atos legais relacionados à pes-
ca datam de 1912. Desde então e até 1932, a atividade pesqueira
foi integrada ao elenco de providências governamentais, por meio
da Inspetoria de Pesca e de Ações da Marinha. Entre 1933 e 1961,
sob a supervisão do Ministério da Agricultura, o setor experimentou
certa tecnificação, mantendo-se, todavia, como atividade essencial-
mente artesanal.
Segundo Marrul Filho (2003), até meados da década de 1960, o setor
pesqueiro nacional caracterizou-se pelo baixo desenvolvimento das
forças produtivas e pela fragilidade ou quase ausência de um Estado
regulador do uso dos recursos pesqueiros, aspectos estes que teriam
sido fundamentais para que se mantivesse certo grau de equilíbrio
entre o esforço de pesca e o potencial capturável dos recursos, não se
verificando sobrepesca.
Em 1962, por meio da Lei Delegada nº 10, criou-se a Superinten-
dência do Desenvolvimento da Pesca (Sudepe), autarquia vinculada
ao Ministério da Agricultura, com evidente viés desenvolvimentista.
Entre 1962 e 1989, a Sudepe dedicou-se a promover a industrializa-
ção do setor, por meio de incentivos fiscais, entre outras estratégias
voltadas à intensa explotação dos estoques pesqueiros de ocorrência
natural, então superestimados.
A política de expansão do setor pesqueiro com base em incentivos
fiscais vigorou até 1988. A má distribuição dos recursos resultou na
concentração de indústrias em determinadas regiões e, segundo vários
analistas, citados por Dias-Neto (2003), a desastrosa forma de defini-
ção e implementação das políticas levou a um processo acentuado de
desmoralização institucional, contribuindo para a extinção da Sudepe,
que ocorreria em 1989. Ademais, a visão equivocada acerca dos recur-
sos pesqueiros – que pressupunha uma disponibilidade inesgotável –
acarretou a sobrepesca de algumas espécies, como a sardinha, o pargo,
a lagosta e o camarão.
A análise dos dados da estatística pesqueira revela que a produção
brasileira de pescado apresentou crescimento gradativo até o ano de
92 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

1975, quando se aproximou das 760 mil toneladas. Entre 1975 e 1976,
registrou-se uma queda, voltando a crescer entre 1977 e 1985, ano em
que se produziram 971 mil toneladas. A partir de então, iniciou-se um
declínio, acentuado a partir de 1988.
No ano em que se promulgou a Constituição Federal (1988) e naque-
les que se seguiram, o setor pesqueiro nacional passava por uma gran-
de crise, observando-se reduzida produtividade, obsolescência da frota
pesqueira e baixo nível tecnológico. Empregavam-se, ainda, métodos
predatórios, ocasionando sérios danos ambientais. O excessivo esforço
de pesca dirigido a determinadas espécies, de ocorrência próxima à
costa, acarretou a depleção de seus estoques naturais. As capturas de
sardinha, que haviam alcançado 228 mil toneladas em 1973, reduzi-
ram-se a 32 mil toneladas, em 1990 (DIAS-NETO, 2003), fazendo
com que o Brasil passasse de exportador a importador desse peixe.
Em 1989, foi criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis – Ibama, reunindo as atribuições de vá-
rios órgãos – inclusive a Sudepe – então extintos. Coube a essa autar-
quia gerir os assuntos da pesca entre 1989 e 1998, sendo sua atuação
marcada por uma visão preservacionista, importante para a recupera-
ção dos estoques ameaçados. Definiram-se diretrizes ambientais para
o setor pesqueiro (BRASIL, 1997) e implementaram-se medidas de
ordenamento pesqueiro, com destaque para a decretação de períodos
de defeso, protegendo o período reprodutivo das espécies; estabele-
cimento de tamanhos mínimos de captura; proibição do emprego de
métodos de captura que se revelaram predatórios; controle da frota
operante; etc.
Entre 1998 e 2002, as funções de desenvolvimento e fomento dos
recursos pesqueiros foram transferidas para o Ministério da Agri-
cultura, onde funcionou um Departamento de Pesca e Aqüicultura.
Entre 2003 e 2008 – com base na Lei nº 10.683, de 28 de maio de
2003, que “dispões sobre a organização da Presidência da República
e dá outras providências” – a gestão desses assuntos passou à Secreta-
ria Especial de Aqüicultura e Pesca – SEAP, vinculada à Presidência
da República.
A SEAP definiu seu projeto político-estrutural (BRASIL, 2003);
procedeu ao recadastramento nacional dos pescadores, atualizando o
Registro Geral da Pesca (BRASIL, 2006), e implementou políticas
de apoio à aqüicultura e à pesca. Normas relativas ao ordenamento
pesqueiro são baixadas pelo Ibama, que permanece com as funções
Pesca, aqüicultura e direito do mar: influências da Constituição Federal de 1988
93

relativas à proteção ambiental, fiscalização, licenciamento da pesca


amadora, entre outras.
A crise do setor pesqueiro, que, como vimos, se iniciara na década
de 1980, aprofundou-se nos anos seguintes, reduzindo-se a produção
pesqueira nacional a 652 mil toneladas, em 1995. A partir daí, a ten-
dência decrescente reverteu-se. Entre as políticas adotadas, que resul-
taram na recuperação do setor, merecem destaque o estímulo à aqüi-
cultura – transformando-se em realidade o imenso potencial brasileiro
de crescimento – e o direcionamento do esforço de pesca a recursos
pesqueiros até então pouco explotados, encontrados em águas profun-
das, controlando-se a pressão exercida sobre os estoques tradicionais.
Entre 1998 e 2004, ocorreu um incremento da ordem de 42,9% na
produção pesqueira nacional, que totalizou um milhão e quinze mil
toneladas, em 2004 (BRASIL, 2005). As 746 mil toneladas de pes-
cado capturadas no Brasil em 2004 correspondem a 0,79% do total
mundial e as quase 270 mil toneladas da produção aqüícola brasileira,
a 0,59% do total mundial. Nesses sete anos, a pesca extrativa marinha
expandiu-se 15,6% e a pesca extrativa continental, 41%. Foi extraordi-
nário o crescimento da aqüicultura continental brasileira – de 104% –
e ainda maior o da maricultura: 479%, em sete anos.
Considerando o contexto em que se encontra o setor pesqueiro, no
Brasil e no mundo, vejamos o que estabelece a Constituição Federal
brasileira, acerca da pesca e da aqüicultura.

O seguro-desemprego para pescadores profissionais

Encontra-se no Título II – dos Direitos e Garantias Fundamentais –


da Carta Magna um relevante dispositivo, que influenciou diretamen-
te o trabalho dos pescadores, embora não mencione diretamente essa
categoria profissional:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de
outros que visem à melhoria de sua condição social:
...................................................................................................
II – seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário.
Para efeito da legislação trabalhista e previdenciária, o pescador arte-
sanal equipara-se ao trabalhador rural. Vale notar o que estabelece, a
respeito, outro dispositivo da Constituição:
Art. 195. ....................................................................................
...................................................................................................
§ 8º O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais
e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que
94 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem


empregados permanentes, contribuirão para a seguridade so-
cial mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado
da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos
termos da lei.

Quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, a Lei nº


7.356, de 30 de agosto de 1985, já facultara aos pescadores profissio-
nais sem vínculo empregatício a filiação ao regime da Lei Orgânica
da Previdência Social – Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960 – na
qualidade de trabalhadores autônomos.
Entretanto, foi com base no texto constitucional de 1988 que o Con-
gresso Nacional aprovou as seguintes leis, que estenderam ao pescador
artesanal o direito ao seguro-desemprego:
• Lei nº 8.287, de 20 de dezembro de 1991 (revogada), que “dispõe
sobre a concessão do benefício do seguro-desemprego a pesca-
dores artesanais durante os períodos de defeso”;
• Lei nº 10.779, de 25 de novembro de 2003, que “dispõe sobre a
concessão do benefício de seguro-desemprego, durante o perío-
do de defeso, ao pescador profissional que exerce a atividade pes-
queira de forma artesanal”. Substituiu a Lei nº 8.287, de 1991,
que explicitamente revoga.
Essas normas legais viabilizaram a implementação de uma das mais
importantes medidas de ordenamento pesqueiro, visando à sustenta-
bilidade – os períodos de defeso – ao mesmo tempo em que atendem
a antiga reivindicação dos pescadores artesanais.

A legislação ambiental e a pesca

No Título III (da Organização do Estado) da Constituição Federal,


identifica-se outro preceito constitucional relevante, que estabelece a
competência concorrente da União, estados e Distrito Federal para
legislar sobre vários assuntos – entre eles, a pesca – qual seja:
Art. 24. Compete à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar con-
correntemente sobre:
.......................................................................................................
VI – florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do
solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e con-
trole da poluição;
Logo em seguida à promulgação da Constituição Federal, em 5 de
outubro de 1988, foi sancionada a Lei nº 7.679, de 23 de novembro de
Pesca, aqüicultura e direito do mar: influências da Constituição Federal de 1988
95

1988, que “dispõe sobre a proibição da pesca de espécies em períodos


de reprodução e dá outras providências”. Trata-se de uma norma legal
que consagra um dos mais efetivos instrumentos de proteção ambien-
tal e sustentabilidade da atividade pesqueira: a decretação, pelo órgão
ambiental competente, de períodos em que é defeso pescar, coinciden-
tes com as épocas reprodutivas das espécies da ictiofauna.
No décimo ano de vigência da Constituição Federal, entrou em vigor a
Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que “dispõe sobre as sanções
penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao
meio ambiente e dá outras providências”. Essa lei contém dispositivos
específicos, que visam à proteção do ambiente natural contra a de-
gradação provocada por atividades pesqueiras, que substituíram, com
maior rigor, as penalidades previstas na legislação anterior.
Além das leis federais, há abundantes leis estaduais, decretos, portarias
e instruções normativas, regulamentando a pesca, proibindo métodos
predatórios e estabelecendo penalidades aplicáveis aos infratores.

A política agrícola e as políticas para o setor pesqueiro

Disposições contidas no Título VII – da Ordem Econômica e Finan-


ceira – da Constituição Federal de 1988 influenciaram, ainda que de
forma indireta, as políticas que vêm sendo adotadas em favor do setor
pesqueiro. Sobressai, nesta análise, o disposto no § 1º do art. 187, que
correlaciona a atividade pesqueira com a política agrícola:
Art. 187. .....................................................................................
...................................................................................................
§ 1º Incluem-se no planejamento agrícola as atividades agroin-
dustriais, agropecuárias, pesqueiras e florestais.

Cumpre observar que o Decreto-Lei nº 221, de 28 de fevereiro de


1967, é o mais antigo e também o principal diploma legal em vigor,
a regular a pesca. Ali se definem os aspectos gerais; as modalidades
profissional, amadora e científica; embarcações e empresas pesqueiras;
organização do trabalho a bordo; permissões, proibições e concessões;
incentivos fiscais; criação ou cultivo de animais e vegetais aquáticos;
fiscalização, infrações e penas. Diversos dispositivos desse Decreto-
Lei – que foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 – foram
modificados por leis, achando-se em tramitação nas duas Casas do
Congresso Nacional vários projetos de lei que propõem outras altera-
ções ou a sua completa substituição.
96 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991, que “dispõe sobre a política


agrícola”, foi elaborada em cumprimento a determinações explícitas,
presentes no art. 187 da Constituição Federal, bem assim no art. 50 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Vários dispositivos
dessa Lei referem-se à pesca e à aqüicultura, a saber:
• art. 1º (caput) – insere a atividade pesqueira no objeto e âmbito
de aplicação da Lei, juntamente com as atividades agropecuárias,
agroindustriais e florestal;
• art. 1º, parágrafo único – define atividade agrícola como “a pro-
dução, o processamento e a comercialização dos produtos, sub-
produtos e derivados, serviços e insumos agrícolas, pecuários,
pesqueiros e florestais”;
• art. 48, inciso VI – entre os objetivos do crédito rural, encontra-
se: “desenvolver atividades pesqueiras”;
• art. 49, incisos III e IV – indica os beneficiários do crédito rural,
e menciona: “atividades de pesca artesanal e aqüicultura para fins
comerciais” e “atividades florestais e pesqueiras”;
• art. 56, parágrafo único – as atividades pesqueiras encontram-se
entre aquelas amparadas pelo seguro agrícola;
• art. 106 – autoriza o (então denominado) Ministério da Agri-
cultura e Reforma Agrária a firmar convênios ou ajustes com
estados, o Distrito Federal, municípios, entidades públicas ou
privadas, cooperativas, sindicatos, universidades, fundações e as-
sociações, visando ao desenvolvimento das atividades agropecu-
árias, agroindustriais, pesqueiras e florestais, segundo as ações,
instrumentos, objetivos e atividades previstas naquela lei.
Diversas outras leis, aprovadas pelo Congresso Nacional e sanciona-
das pelo presidente da República em data posterior à promulgação
da Constituição Federal, dispõem, entre outros aspectos, sobre pesca,
aqüicultura, medidas de incentivo ou formas de financiamento dessas
atividades. Mencionaremos algumas, a seguir.
A Lei nº 9.445, de 14 de março de 1997, que “concede subvenção
econômica ao preço do óleo diesel consumido por embarcações pes-
queiras nacionais”, tem grande importância, no sentido de propor-
cionar viabilidade econômica à atividade pesqueira e fazer frente à
concorrência do pescado brasileiro no mercado globalizado, tendo em
vista os pesados subsídios concedidos por outras nações aos respecti-
vos setores pesqueiros.
Pesca, aqüicultura e direito do mar: influências da Constituição Federal de 1988
97

A Lei nº 10.849, de 23 de abril de 2004, que “institui o Programa


Nacional de Financiamento da Ampliação e Modernização da Frota
Pesqueira Nacional - Profrota Pesqueira”, viabilizou a construção e a
modernização de embarcações, ampliando a capacidade de pesca na
Zona Econômica Exclusiva e em águas internacionais e elevando a
eficiência econômica dessa atividade.
A Lei nº 11.380, de 1º de dezembro de 2006, que “institui o Registro
Temporário Brasileiro para embarcações de pesca estrangeiras arren-
dadas ou afretadas, a casco nu, por empresas, armadores de pesca ou
cooperativas de pesca brasileiras e dá outras providências”, preencheu
uma lacuna legal relativa à operação, em águas brasileiras, de embarca-
ções de pesca estrangeiras, arrendadas ou afretadas por brasileiros.
Embora tenhamos restringido o presente estudo às leis federais, pare-
ce-nos relevante mencionar dois decretos, de grande relevância para as
atividades de aqüicultura e pesca:
• Decreto nº 1.946, de 28 de junho de 1996 – institui o Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf );
entre os beneficiários dos créditos de investimento e custeio ao
amparo desse Programa encontram-se pescadores artesanais,
aqüicultores, maricultores e piscicultores;
• Decreto nº 4.895, de 25 de novembro de 2003 – estabelece con-
dições necessárias ao desenvolvimento da aqüicultura, autori-
zando o uso de espaços físicos de corpos d’água de domínio da
União para essa finalidade.

O direito do mar

Abordado na Constituição Federal de 1988, o direito do mar é um


tema que diz respeito à soberania nacional e a diversas outras questões,
entre as quais, a pesca praticada no ambiente marinho.
Poggio [S.l., 200-] relata que o Brasil, entre 1822 (Independência) e
1940, adotava informalmente o regime de três milhas náuticas como
extensão do seu mar territorial. Nesse período, ocorreram episódios de
desrespeito à soberania nacional. Em 1914, com a Primeira Grande
Guerra, uma circular do Ministério das Relações Exteriores reafir-
mou esse limite e, em 1940, com a Segunda Guerra Mundial, o De-
creto nº 5.798 formalizou o limite de três milhas do mar territorial.
Data da mesma época a definição de uma zona contígua, de 12 milhas
marítimas, de exploração econômica exclusiva do Brasil. Em 1950, o
98 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Decreto nº 28.840 declarou a integração da plataforma submarina ao


território nacional.
Em razão da ausência de um consenso internacional relativo ao direi-
to do mar, entre 1961 e 1963 ocorreu um contencioso entre Brasil e
França, conhecido como a “guerra da lagosta”. Embarcações francesas
encontravam-se atuando na pesca do crustáceo em águas brasileiras
(plataforma continental do Nordeste). A Marinha do Brasil, alertada
por pescadores pernambucanos, expulsou as embarcações estrangeiras.
Os pescadores franceses protestaram em defesa de seus supostos direi-
tos de pesca e a imprensa francesa divulgou amplamente a questão. A
crise extrapolou as relações diplomáticas entre os dois países e ambos
chegaram a mobilizar seus recursos bélicos. A França deslocou para
uma área vizinha à região em conflito um contingente naval, mantido
em prontidão. O Brasil, que percebeu a situação como agressão estran-
geira à soberania nacional, deslocou grande contingente naval para a
Região Nordeste, com apoio da Força Aérea e, em terra, mobilizou o
4º Exército, com sede em Recife. Por fim, a questão foi resolvida pela
via diplomática, de forma favorável ao Brasil.
Poggio (op. cit.) informa que os governos militares cuidaram de am-
pliar sucessivamente a extensão do mar territorial brasileiro. O De-
creto-Lei nº 44, de 1966, fixou esse limite em seis milhas marítimas;
o DL nº 553, de 1969, ampliou-o para doze. Finalmente, em 25 de
março de 1970, por meio do Decreto-Lei nº 1.098, o governo brasi-
leiro decretou de forma unilateral soberania sobre uma faixa de 200
milhas marítimas. Semelhante atitude também foi adotada, na época,
por outras nações latino-americanas.
A questão do direito sobre o mar permaneceu controversa até que, em
1982, em Montego Bay, Jamaica, concluiu-se a Convenção das Na-
ções Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM). Estabeleceram-se: a
soberania dos países costeiros sobre o mar territorial – uma faixa com
largura de até 12 milhas marítimas – direitos de fiscalização sobre a
zona contígua (faixa de 12 a 24 milhas); direitos de explotação sus-
tentável, conservação e gestão de recursos naturais e outras formas de
aproveitamento econômico sobre a zona econômica exclusiva (faixa
de 12 a 200 milhas marítimas); e direitos sobre a plataforma conti-
nental, relativos aos recursos naturais ali encontrados (ORGANIZA-
ÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1982).
O Congresso Nacional aprovou a CNUDM, por meio do Decre-
to Legislativo nº 5, de 1987, autorizando assim sua ratificação, pelo
Brasil, que veio a ocorrer em 22 de dezembro de 1988. Antes disso,
Pesca, aqüicultura e direito do mar: influências da Constituição Federal de 1988
99

porém, era promulgada, a 5 de outubro de 1988, a nova Constituição


Federal, que já incorporava conceitos definidos na referida Conven-
ção, a saber:
Art. 20. São bens da União:
.....................................................................................
V – os recursos naturais da plataforma continental e da zona
econômica exclusiva;
VI – o mar territorial;
...................................................................................................

A internalização das disposições da CNUDM ocorreu, finalmente,


por meio da Lei nº 8.617, de 4 de janeiro de 1993, que “dispõe sobre
o Mar Territorial, a Zona Contígua, a Zona Econômica Exclusiva e a
Plataforma Continental Brasileiros, e dá outras providencias”, tendo
revogado o Decreto-Lei nº 1.098, de 25 de março de 1970.
Em conformidade com os compromissos assumidos junto à CNU-
DM, o Brasil implementou o Programa de Avaliação do Potencial
Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva (RE-
VIZEE), tendo por objetivo avaliar as biomassas e os potenciais de
captura sustentáveis dos recursos vivos na ZEE brasileira, incluindo as
variações das condições ambientais que provocam oscilações espaciais
e sazonais na sua distribuição. Buscam-se conhecer as espécies que ali
ocorrem, sua distribuição espacial e temporal e sua vulnerabilidade às
artes de pesca, bem assim o habitat biótico e abiótico de sua ocorrên-
cia. Por meio do programa REVIZEE, obtêm-se, sistematizam-se e
divulgam-se informações necessárias ao reordenamento das pescarias
nacionais e ao cumprimento das metas assumidas pelo Brasil ante a
comunidade internacional.
O VI Plano Setorial para os Recursos do Mar, aprovado pelo Decreto
nº 5.382, de 2005, estabelece – ante a então iminente conclusão do
Programa REVIZEE –, ser imprescindível uma ação permanente de
monitoramento dos principais estoques pesqueiros, a fim de permi-
tir a geração contínua de informações essenciais para a definição de
política de pesca que possa garantir a sustentabilidade da atividade,
incluindo medidas de ordenamento.

Considerações finais

Havendo examinado a Constituição Federal de 1988, no sentido de nela


identificar dispositivos com influência, direta ou indireta, sobre a pesca
e a aqüicultura, verificamos que essa influência ocorreu de forma direta
100 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

em questões relativas aos direitos dos pescadores (seguro-desemprego


e previdência social), ao direito do mar (internalização da CNUDM)
e à proteção ambiental (competência concorrente da União, estados e
Distrito Federal). A influência foi menos direta quando consideramos
as políticas que deveriam ser adotadas, dadas as disposições constantes
do Título VII – da Ordem Econômica e Financeira.
A disposição constitucional que determina a inclusão, no âmbito
da política agrícola, das atividades pesqueiras (art. 187, § 1º) pare-
ce ter sido transformada em um conjunto de intenções, expressas na
Lei Agrícola (Lei nº 8.171, de 1991). Na prática, observou-se um
distanciamento entre os órgãos encarregados da gestão dos assun-
tos pesqueiros, no âmbito do Poder Executivo Federal, daqueles en-
carregados da política agropecuária. Como vimos, com a extinção da
Sudepe, os assuntos da pesca passaram ao Ibama, um órgão da área
ambiental, entre 1989 e 1998; daí até 2002, houve um breve retorno à
Pasta da Agricultura, até que, de 2003 a julho de 2008, ficasse a cargo
de uma Secretaria Especial, diretamente vinculada à Presidência da
República. À vista desses fatos, poder-se-ia questionar se essa norma
constitucional constitui uma prescrição a ser observada ou mera figu-
ra decorativa.
Políticas específicas para o setor pesqueiro foram efetivamente im-
plementadas, porém de forma desvinculada da política agropecuá-
ria. Aspecto que sobressai à análise concerne à ausência de qualquer
referência à aqüicultura no texto constitucional, quiçá em razão da
importância ainda reduzida dessa atividade em nosso país na década
de 1980. Hoje, no entanto, não restam dúvidas de que, ante as limi-
tações dos estoques naturais, encontra-se no cultivo racional a opção
mais viável para o crescimento da produção de pescado. A experiên-
cia brasileira e internacional confirma esta afirmação, sendo imenso o
potencial ainda inexplorado, no Brasil, para a expansão da aqüicultura
continental e da maricultura.

Referências

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de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais
de n. 1, de 1992, a 56, de 2007, e pelas Emendas Constitucionais de Revisão, de
n. 1 a 6, de 1994. Brasília : Câmara dos Deputados, 2007.
BRASIL. IBAMA. Estatística da pesca 2004: Brasil, grandes regiões e inidades da
Federação. Brasília : 2005.
Pesca, aqüicultura e direito do mar: influências da Constituição Federal de 1988
101

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia


Legal. Diretrizes ambientais para o setor pesqueiro: diagnóstico e diretrizes para a
pesca marítima. Brasília : 1997.
BRASIL. Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da Repúbli-
ca. Projeto político-estrutural. Brasília : 2003.
________. Registro geral da pesca: resultados do recadastramento nacional dos
pescadores do Brasil. Brasília : 2006.
DIAS NETO, José. Gestão do uso dos recursos pesqueiros marinhos no Brasil. Brasília
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FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION. The state of world fisheries
and aquaculture 2006. Roma : FAO, 2006.
MARRUL FILHO, Simão. Crise e sustentabilidade no uso dos recursos pesqueiros.
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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção das Nações Unidas
sobre o direito do mar. Versão oficial em língua portuguesa. [Montego Bay] :
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POGGIO, Guilherme. Conhecimentos navais: espaços marítimos. [S.l. : 200-?].
Disponível em: <http://www.naval.com.br/conhecimentos/conhe-menu.htm>.
Acesso em: 20 maio 2008.
SILVA, Luiz Geraldo. Os pescadores na história do Brasil. Recife : Comissão Pas-
toral dos Pescadores, 1988.
Comunicação
103

A concentração da mídia
e a liberdade de expressão
na Constituição de 1988
Elizabeth Machado Veloso

Introdução

A Constituição brasileira estabelece, no §2º do art 220, que “os meios


de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser ob-
jeto de monopólio ou oligopólio”. Parece paradoxo imaginar que o
mercado da comunicação, concentrado nas mãos de poucos grupos
empresariais, seja regido por um dispositivo constitucional com tama-
nha assertividade. A proibição não é relativa e não depende de regu-
lamentação de lei. No entanto, o modelo de comunicação sempre foi
concentrado e teve como características básicas a presença de grupos
comerciais com atuação multimídia e de alcance nacional.
Nessa configuração, o mercado apresenta as seguintes característi-
cas essenciais:
• concentração horizontal: o mesmo grupo detém várias empresas
na mesma área;
• concentração vertical: a empresa domina toda a cadeia produtiva,
como a produção, a programação, a distribuição e a veiculação;
• concentração econômica: um único grupo detém a maior parte
da verba publicitária destinada a determinado veículo, que é a
principal fonte de financiamento do setor;
• concentração de meios ou propriedade cruzada: o mesmo grupo
controla vários tipos de mídia, como jornais, rádios e televisões.

Modelo comercial e concentrado

Duas décadas de vigência seria tempo suficiente para corrigir as dis-


torções no mercado de comunicação e adequá-lo à restrição consti-
tucional que busca impor a pluralidade de veículos e a diversidade
104 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

de conteúdo. A concentração é maior no mercado de radiodifusão de


sons e imagens (televisão), que permanece praticamente inalterado há
mais de trinta anos, à exceção da substituição de um grupo por outro.
Um único grupo, a Rede Globo, detém a liderança da audiência em
todos os aspectos: por estado, região, faixa horária, gênero e ainda, no
retorno financeiro que oferece ao mercado publicitário, segundo as
métricas do mercado. Líder de audiência desde 1972, a Rede Globo
nem de longe vê sua hegemonia ameaçada pelas demais emissoras.
Dados apresentados por seus executivos ao lançarem a programação
da Globo para 2008, em março deste ano, indicam que a audiência
média da emissora na faixa das 18h às 24h foi de 38 pontos1, contra 9
pontos da segunda colocada, posição que está sendo disputada entre
SBT e Record.
Em perfeita sinergia entre os setores de programação, jornalismo e
marketing, a radiodifusão brasileira nem de longe parece demons-
trar os efeitos da pulverização informativa da chamada Sociedade da
Informação, em que a era das grandes audiências está sendo substi-
tuída pela segmentação do mercado em diversas fatias, que buscam,
constroem e interagem com a informação por meio das novas mídias,
como a Internet. O retrato do poderio da comunicação de massa no
Brasil foi o resultado de 76 milhões de votos computados na final do
BBB8 na noite do dia 25 de março de 2008.
Graças a esse tipo de desempenho, a emissora da família Mari-
nho detém mais de 70% do total da verba publicitária2, índice que
supera até mesmo os seus níveis de audiência (que pode chegar a
50% nos horários mais nobres), sempre apostando na fórmula jor-
nalismo e telenovelas3.
Fatores técnicos, econômicos e políticos estão entre as razões para que
o setor de radiodifusão seja um negócio exclusivo. Em primeiro lugar,
a concessão é pública e o espectro de radiofreqüência é um recurso
limitado. No caso da televisão, cujas receitas são maiores, os investi-
mentos para se montar uma estação são elevados, tanto que muitas

1
Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/Subsecreta-
ria/noticias/clipping/noticias/assunto6/tvr27mar1g/ (acessado em 14. jun. 2008)
2
Dados do Projeto Fatos Marcantes, do Meio e Mensagem. “Globo assume lide-
rança e vira referência nacional”. Disponível em: http://www.meioemensagem.com.
br/fatosmarcantes30anos/fato_interno.jsp?ID=243 (acessado em 14. jun. 08).
3
O jornal Financial Times noticiou, em 06 de julho de 2008, na reportagem “Rede
Globo e seu clone Record”, que a TV Record conseguiu, em determinados momen-
tos, no horário nobre, superar os índices de audiência da concorrente, repetindo a
mesma fórmula de sucesso da Globo: novelas e jornalismo.
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
105

das antenas de retransmissão foram instaladas pelos municípios, que


fazem contratos diretamente com as emissoras, para que a população
local possa ter acesso aos sinais da televisão aberta, de livre recepção.
Foi somente com a Constituição Federal de 1988 que as outorgas
passaram a ter algum tipo de controle da sociedade, por meio do Con-
gresso Nacional, porque antes o Poder Executivo era autônomo. Po-
rém, passou-se a observar os princípios da legalidade, da moralidade,
da impessoalidade, da publicidade e da eficiência, previstos no art.37
da CF, com o Decreto no 2.108, de 24 de novembro de 1996, que,
em seu art. 10, prevê que “a outorga para execução dos serviços de
radiodifusão será precedida de procedimento licitatório, observadas as
disposições legais e regulamentares”.
Entretanto, manteve-se uma janela para a interferência política, por
meio do art. 13, § 1º, do Decreto no 2.108, de 1996, cuja redação é: “é
dispensável a licitação para outorga para execução de serviço de radio-
difusão com fins exclusivamente educativos”.
Do ponto de vista mercadológico, uma outorga de radiodifusão co-
mercial representa sempre uma fonte de renda considerável, por meio
da publicidade, especialmente se a emissora está ligada a uma cabeça
de rede, recebendo assim uma programação padronizada, sem ter que
arcar com os elevados custos de produção.
Em 2007, a receita líquida da TV Globo foi de R$ 5,7 bilhões, dez
por cento a mais do que no ano anterior4. Segundo dados da própria
emissora, este montante sobe para R$ 6,9 bilhões, com a soma de re-
ceita das emissoras afiliadas que, no entanto, envolvem também outras
empresas fora da Globo Comunicação e Participações, controladora
da emissora. Já a Record fechou o ano de 2006 com uma receita bruta
de R$ 950 milhões – R$ 150 milhões a mais do que o SBT.5
Por razões mercadológicas e de poder cultural e político, obter uma
concessão de radiodifusão sempre foi alvo de cobiça por parte de seto-
res empresariais e de representantes da elite nacional. Notoriamente,
especialmente nos anos 80, houve uso político das outorgas, que eram
moeda de troca nas votações no Parlamento. Esse foi um dos motivos
que levou à formação de poucas e grandes redes de emissoras com al-
cance nacional, tanto no veículo televisão, como no rádio. Neto (1999:
23) informa que, só no governo José Sarney, o então ministro Antônio

4
Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/Subsecreta-
ria/noticias/clipping/noticias/assunto6/tvr27mar1g/ (acessado em 14. jun. 2008).
5
(Rede Record fecha ano de 2006 com uma receita bruta de 950 milhões, Daniel
Castro, Folha de S. Paulo, 4/6/2006).
106 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Carlos Magalhães liberou 1.028 concessões, sendo que 52% destas


emissoras foram outorgadas nos últimos nove meses da Constituinte,
de janeiro a outubro de 19886.
Outro atrativo das outorgas de radiodifusão é a perenidade, uma vez que
a Carta fixa em quinze anos o prazo de vigência para televisão e, em
dez anos, para a rádio, podendo ser renovadas sucessivamente, por igual
período. Além disso, a Carta prevê obstáculos ao retorno da licença ao
Estado, como quórum diferenciado para não renovação e decisão judicial
para o cancelamento, nos termos do art. 223.7 No que diz respeito aos veí-
culos impressos, estabelece o §6º do art. 220 da CF que “a publicação de
veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade”.
Esses são alguns dos fatores que fizeram com que a radiodifusão no
Brasil fosse dominada pelo sistema comercial. Apesar de o art. 21, inciso
XII, alínea “a”, estabelecer como competência da União explorar, dire-
ta ou indiretamente, mediante autorização, permissão ou concessão, os
serviços de radiodifusão sonora (rádio) e de sons e imagens (televisão), a
exploração direta sempre foi uma exceção, ao contrário do modelo que
se consolidou na Europa, onde a radiodifusão pública é predominante e
funciona como fiel da balança para as emissoras comerciais.
No Brasil, o grupo mais forte no segmento da comunicação de na-
tureza pública é a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), anti-
ga Radiobrás, formada pela TV Brasil, TV NBR, Rádio Nacional da
Amazônia, Rádio Nacional FM Brasília, Rádio Nacional AM Brasília
e Rádio Nacional AM Rio, além da Agência Brasil e da Rádio Agên-
cia Nacional. Entretanto, pela sua dependência financeira e vinculação

6
Citado também por Guilherme Canela de Souza Godoi, Pesquisador do Núcleo
de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP), em apresentação “A questão da concen-
tração da Propriedade dos Meios de Comunicação de Massa”.
7
Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e
autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o
princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
§ 1º O Congresso Nacional apreciará o ato no prazo do art. 64, § 2º e § 4º, a contar
do recebimento da mensagem.
§ 2º A não renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no
mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal.
§ 3º O ato de outorga ou renovação somente produzirá efeitos legais após deliberação
do Congresso Nacional, na forma dos parágrafos anteriores.
§ 4º O cancelamento da concessão ou permissão, antes de vencido o prazo, depende
de decisão judicial.
§ 5º O prazo da concessão ou permissão será de dez anos para as emissoras de rádio
e de quinze para as de televisão.
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
107

administrativa, considera-se que seja uma comunicação estatal, e não


genuinamente pública.

Desrespeito aos limites legais à concentração

O Decreto-Lei no 236, de 28 de fevereiro de 1997, no art. 12, estipula que


cada entidade só poderá ter concessão ou permissão para executar serviço
de radiodifusão, em todo o País, de 10 emissoras de TV, sendo no máximo
cinco em VHF e duas por estado. Para as emissoras de rádio, o limite varia
conforme o alcance: em nível local, quatro OM e seis FM; regional, três
OM e três OT, sendo no máximo duas por estado, e nacional, duas OM
e duas OC. Não há regra legal contra a propriedade cruzada – o mesmo
grupo pode ser detentor de mais de um tipo de veículo de mídia.
Posteriormente, em 1985, o Decreto nº 91.837, de 19858, alterou o
artigo 15 do Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto no
52.795, de 1963). Tal decreto introduziu o duopoly rule (ALMEIDA:
2001), ou “regra do duopólio”, em português, com a seguinte redação:
“Art. 15. A mesma entidade ou as pessoas que integram o seu
quadro societário não poderão ser contempladas com mais de
uma outorga do mesmo tipo de serviço de radiodifusão, na mes-
ma localidade.”

Lima (2003) revela que, além da não aplicação da norma legal, outras
razões para a concentração da mídia é que o período de carência legal
para venda das concessões de radiodifusão, isto é, para a troca legal de
proprietários, é de apenas cinco anos e que não há controle sobre as
vendas antecipadas, que são os “contratos de gaveta”. O terceiro fator é
que não há normas ou restrições legais para a afiliação de emissoras de
radiodifusão, isto é, para a formação de redes nacionais ou regionais.
Pieranti (2006: 118) afirma que “para burlar o limite de concessões
permitidas pelo Decreto-Lei 236/97 para uma mesma pessoa, políti-
cos e empresários recebem concessões em nome de familiares, amigos
ou sócios, mantendo a concentração no setor”.
Assim, não é apenas a Constituição que é desrespeitada no discipli-
namento da propriedade dos meios de comunicação, mas também a
legislação e a norma pertinente.

8
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D91837.htm
108 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O mercado de comunicação no brasil

Historicamente, a mídia no Brasil está concentrada em poucos grupos


empresariais. Entre os de maior destaque, estão:
• As organizações Globo, da família Roberto Marinho, que detêm
emissoras de TV, os jornais O Globo e Extra, no Rio de Janei-
ro, além de mais de vinte emissoras de rádio AM e FM; a edi-
tora Globo, com onze títulos de revistas; um portal eletrônico
com mais de quinhentos sítios e a gravadora Som Livre. Atua
também no mercado de cabodifusão, por meio da Globopar e
da Globosat, que produz conteúdo para canais como SporTV,
GNT, Multishow e GloboNews, além de controlar a maior ope-
radora de TV por cabo no país, a NET, que detém 39% da base
de assinantes9 e presta também serviços de banda larga e telefo-
nia, além de serviços de difusão por satélite.
• O Grupo Abril, da família Civita, que detém editoras de revistas
(Abril, Azul, Abril Cultural), emissoras de televisão em UHF e par-
ticipação nos sistemas de tevê por assinatura MMDS ou satélite.
• O Grupo Jaime Câmara, da família Câmara, que detém cerca de
vinte concessões de rádio e televisão e jornais em Goiás, Tocan-
tins e no Distrito Federal
• A Rede Bandeirantes, da família Saad, com a Rede Bandeirantes
de televisão e cerca de vinte concessões de rádio.
• O SBT, da família Abravanel, com mais de cem emissoras de
televisão próprias ou afiliadas.
• O Grupo RBS, da família Sirotsky, que atua no Rio Grande do
Sul e em Santa Catarina, com 6 jornais, 24 emissoras de rádio
AM e FM, 21 canais de TV, um portal de Internet, uma empresa
de marketing e um projeto na área rural, além de ser sócio da
operadora de TV a cabo NET10. Detém os dois principais jornais
(Zero Hora e Diário Gaúcho), o principal canal de TV aberta, afi-
liado da Rede Globo, o canal 12, RBS TV, entre outros.
• Os Diários Associados, que detém concessões de rádio e televi-
são e jornais em Minas Gerais (Estado de Minas) e no Distrito
Federal (Correio Braziliense).

9
Mídia Fatos 2007. Disponível em www.abta.com.br
10
Citado por LIMA, Venício A. “Existe concentração na mídia brasileira? Sim”, ar-
tigo publicado no sítio do Observatório da Imprensa em 1 de julho de 2003 [http://
observatorio.ultimosegundo.ig,com.br].
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
109

Seis empresas de mídia controlam o mercado de TV, com seus 138


grupos afiliados, um total de 668 veículos e 92% da audiência televisi-
va no Brasil11. A tabela abaixo ilustra os principais grupos:

Redes comerciais de tv aberta12

Emissoras
Cobertura
(Próprias, As- Cobertura Mu-
Redes Domicílios c/TV
sociadas e Afi- nicípios (2)%
(2)%
liadas) (1) %

Globo 113 98.91 99.86


SBT 113 89.10 97.18
Band 75 60.65 87.13
Record 79 42.13 76.67
Rede TV 40 62.52 79.71
CNT – 4.36 36.67
Gazeta – 4.87 21.92
Outras – – –

Participação Audiência % Participação %


Redes Audiência Na- 18 às 24 h (*) Verbas Publicitá-
cional (2)% (2) % rias (3) %

Globo 49 51 79
SBT 24 25 –
Band 5 5 –
Record 9 6 –
Rede TV 3 3 –
CNT – – –
Gazeta – – –
Outras 11 9 –

Observações: (*) 10 principais mercados. FONTES: (1) Castro, D., FSP 17/12/2002. (2) Grupo
de Mídia; Mídia Dados 2002. (3) Castro, D.; FSP/Inter-Meios M&M 06/03/2002.

11
Relatório Os donos da mídia, disponível no sítio <www.fndc.org.br>
12
Reproduzido do artigo: “Existe concentração na mídia brasileira? Sim”, publicado
no sítio do Observatório da Imprensa em 01 de julho de 2003 [http://observatorio.
ultimosegundo.ig,com.br], de autoria de Venício Lima.
110 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Um dos estudos de maior repercussão sobre a concentração da mí-


dia no Brasil é o relatório “Os Donos da Mídia”, lançado em 2002.
O estudo foi desenvolvido pelo Instituto de Estudos e Pesquisas em
Comunicação (Epcom), coordenado pelo jornalista Daniel Herz. Os
principais resultados, apresentados na forma de mapa infográfico13,
demonstram que quatro dos seis grandes grupos “cabeça-de-rede” –
Globo, SBT, Bandeirantes e Record – possuem um número de emis-
soras acima do estabelecido na norma legal.
Além dos dados obtidos, um dos efeitos do estudo foi dar transparên-
cia ao setor, na avaliação de Herz (2002)14:
“Acreditamos que informações como estas – sobre como os con-
cessionários operam a TV no Brasil – deveriam ser colhidas, sis-
tematizadas e disponibilizadas publicamente pelo governo federal,
mas isto não ocorre. Ao contrário: por intermédio do Ministério das
Comunicações (Minicom) e da Agência Nacional de Telecomunica-
ções (Anatel), o governo omite-se de representar o interesse público
e deixa o setor a descoberto, tanto de informações como de políticas
públicas. Informações como a composição das empresas concessio-
nárias – quem são seus acionistas ou cotistas? – por exemplo, são tra-
tadas como segredo de Estado. Deveriam ser informações públicas,
mas não estão disponíveis nem para as entidades da sociedade civil e
nem para os cidadãos, individualmente.”
No estudo, a estrutura do mercado de televisão foi dividida da seguin-
te forma: emissoras vinculadas a seis redes privadas nacionais (Globo,
SBT, Record, Bandeirantes, Rede TV! e CNT); emissoras integradas
a uma rede pública nacional de TV; emissoras que compõem seis redes
de TV segmentada (MTV, Boas Novas, Vida, Mulher, Família e Shop
Tour); e emissoras atuando ligadas aos cinco grupos independentes
que dispõem de emissoras de TV aberta (Canção Nova, Guaíba, Ga-
zeta, Gospel e Líder) e não operam em rede.
Entre os seis grupos “cabeça-de-rede”, apenas a Globo atua nos seg-
mentos de jornais e revistas (além de dominar o mercado de TV por
assinatura). Os demais grupos “cabeça-de-rede” restringem-se à mí-
dia eletrônica: Bandeirantes, com emissoras de TV e de rádio, e SBT,
Rede TV! e CNT apenas com emissoras de TV.

13
Disponível em: http://www.fndc.org.br/arquivos/donosdamidia.pdf (acessado em
14. jun. 2008).
14
Entrevista intitulada “Quem são os donos da mídia no Brasil”, publicado no sítio Ob-
servatório de Imprensa, concedida a Luiz Egypto. Disponível em: http://www.observa-
toriodaimprensa.com.br/cadernos/cid240420021.htm (acessado em 14. jun. 2008).
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
111

O levantamento categorizou os grupos conforme a influência de cada


um. No primeiro grupo, estariam os “cabeça-de-rede” (geradores de
programação nacional) das maiores redes de TV – Globo, Record,
SBT e Bandeirantes. No segmento editorial e de mídia impressa, fa-
riam parte deste primeiro grupo a Editora Abril e os jornais O Estado
de S.Paulo e Folha de S.Paulo. Em segundo, viriam grupos nacionais e
regionais com presença econômica ou política expressiva (como o Jor-
nal do Brasil e a Gazeta Mercantil, por exemplo, e os grupos regionais
RBS e Jaime Câmara, entre outros). Em seguida, os grupos regionais
afiliados às redes de TV, em quarto, grupos regionais ou de veículos
independentes não ligados aos radiodifusores.
Herz (2002) enumera as mídias independentes: 436 jornais diários,
1.487 publicações com outras periodicidades, 1.460 emissoras de rá-
dio AM e 1.225 de rádio FM, além de 59 emissoras de rádio em Onda
Curta (OC) e 70 em Onda Tropical (OT)15.
Em apresentação feita na Câmara dos Deputados, por ocasião do se-
minário TV Digital: Futuro e Cidadania, realizado em 16 de maio
de 2006, o diretor de assuntos institucionais da TV Globo e assessor
da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert),
Evandro Guimarães, apresentou a seguinte tabela, que ilustra a estru-
tura de mercado, baseada na formação de grandes redes nacionais (pa-
lestra reproduzida na publicação “TV Digital, Futuro e Cidadania” 16:

15
Entrevista intitulada “Quem são os donos da mídia no Brasil”, publicada no
sítio Observatório de Imprensa, concedida a Luiz Egypto. Disponível em: http://
www.observatoriodaimprensa.com.br/cadernos/cid240420021.htm (acessado em
14. jun. 2008).
16
Disponível em <http://www2.camara.gov.br/conheca/altosestudos/tv-digital-pu-
blicacao.html> (acessado em 15. jun. 08).
112 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Televisão aberta e gratuita exibidoras de tv aberta no brasil

RTVs RTVs
Programação Geradoras
Primárias Amaz. Legal
Globo 92 1369 21
SBT 46 669 57
Bandeirantes 30 481 44
Record 36 409 41
Rede Tv! 11 167 53
CNT 6 65 25
Gazeta 5 43 5
Rede 21 1 20 4
Rede Mulher 1 41 5
Shoptour 1 8 0
CBI 1 71 1
Rede Vida 1 427 0
Século XXI 1 14 0
(Carismáticos)
RIT
(R. R. Soares) 1 50 0
Canção Nova 2 208 3
Rede Família 2 10 1
Goospel 1 2
(Igreja Renascer)
LBV 1 0 0
Educativas 141 650 0
Outras Programações 5 37 0
Total 386 4780 278
Editais 62
Total Brasil 448

A ampla penetração da televisão nos lares contribui para reafirmar a


sua influência política, social e cultural na sociedade brasileira. Dados
da PNAD, do IBGE (2005), indicam que 91,4% dos domicílios têm
televisão, e a Rede Globo, por exemplo, está presente em 99,5% dos
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
113

municípios.17 Em média, o brasileiro passa mais e três horas diárias em


frente à televisão, segundo o levantamento “Os Donos da Mídia”.
A universalização da televisão teve forte impulso estatal. Segundo da-
dos oficiais, dos 5.561 municípios brasileiros, 1.676 têm retransmisso-
ras outorgadas às prefeituras (SANTOS, 2005). O dado está contido
na pesquisa feita por James Göergen, do Instituto de Estudos e Pes-
quisas em Comunicação (Epcom), divulgada em novembro de 2007
e revela que 3.270 retransmissoras (RTVs) foram outorgadas para
prefeituras que, em 95% dos casos, emitem sinais de TVs privadas.
Essas 3.270 retransmissoras estão localizadas em 1.604 municípios e
correspondem a um terço das autorizações para a prestação de serviço
de retransmissão de sinal de TV registradas na Anatel.18
No segmento jornais, há quatro títulos com alcance nacional: dois do
Rio de Janeiro, Jornal do Brasil e O Globo, e dois de São Paulo, Folha de
S. Paulo e O Estado de S. Paulo. O mercado de revistas também é con-
centrado, dominado por duas editoras, Abril e Globo, que juntas de-
têm 60% dos títulos em circulação no país (MARTINS e MAGRO,
2008). O grupo Abril é o principal veículo editor de revistas, com mais
de 50% da tiragem e responsável por cerca de 50% do faturamento do
setor (POSSEMBOM, 2007).
A concentração também está presente na TV por assinatura. O grupo
NET-Sky controla cerca de 74% do mercado, dentro dos quais estão
95% da tevê por satélite. No que diz respeito à concentração econômi-
ca, 60% do volume total de verbas de publicidade vão para a televisão
aberta, segundo o projeto Intermeios de 200519. Do total gasto em
2001, 78% foram para a Globo e suas afiliadas (CASTRO, Folha de S.
Paulo, 6/3/2002).20
A tabela abaixo ilustra o quadro atual da propriedade cruzada no Brasil:

17
Disponível em: www.ibge.com.br
18
Disponível em: http://www.direitoacomunicacao.org.br (acessado em 15. jun. 08).
19
Disponível em http://www.projetointermeios.com.br/ (acessado em 11. jun. 2008).
20
Citado por LIMA, Venício A. “Existe concentração na mídia brasileira? Sim”, ar-
tigo publicado no sítio do Observatório da Imprensa em 1 de julho de 2003 [http://
observatorio.ultimosegundo.ig,com.br].
114 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Principais grupos de mídia no brasil

TV por
Grupo Rádio TV Jornal
assinatura

Abril  
Band  
CNT 
Diários
Associados   
Estado  
Folha 
Globo    
Edson Queiroz  
Jangadeiro    
Jornal do Brasil  
Liberal    
Organização Jaime
Câmara   
RBS    
Record   
Rede Bahia    
Rede TV! 
SBT 
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
115

Grupo Revista Agência Provedor Editora

Abril 
Band

CNT

Diários
Associados

Estado 
Folha  
Globo    
Edson Queiroz 
Jangadeiro

Jornal do Brasil  
Liberal 
Organização
Jaime Câmara

RBS

Record

Rede Bahia

Rede TV!

SBT

Fonte: Tabela original, elaborada a partir de dados do estudo “Concentração da Mídia – debates
no Conselho de Comunicação Social”, de 19.05.2004 e outras fontes.21

21
Disponível em http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Conselho/CCS/docs.asp
2000.08.200811.06.2008).
116 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Lima (2003) menciona pesquisa realizada no início da década de


1990, revelando que o “monopólio em cruz”, ou propriedade cruzada
se manifestava em pelo menos 18 dos 26 estados brasileiros – Rio de
Janeiro, Paraná, Acre, Maranhão, Paraíba, Alagoas, Amazonas, Pará,
Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Tocantins, Goiás, Sergipe,
Espírito Santo, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul –,
além do Distrito Federal (AMARAL, R. e GUIMARÃES, C., 1994,
p. 30 e 32).
As igrejas também têm forte presença no setor de radiodifusão. Le-
vantamento do jornal Folha de São Paulo demonstrou que a Igreja
Universal do Reino de Deus (Iurd) detém 23 emissoras de TV, além
de 40 emissoras de rádio registradas em nome de um grupo de pas-
tores. A igreja ainda arrenda 36 rádios, que integram a Rede Aleluia
(LOBATO, 2007)22.

A concentração e a liberdade de expressão

O veto à censura e o direito à informação, previstos no art. 220, estão


entre os princípios democráticos mais conhecidos no Brasil. Ambos
têm uma relação direta com a concentração da mídia. A propriedade
dos meios de comunicação de massa restrita a poucos grupos empre-
sariais limita a possibilidade de ter conteúdos variados e diversificados.
Parte-se da premissa que, por maior que seja a neutralidade ou a influ-
ência da sociedade sobre as mídias, o veículo sempre reflete a ideologia
de quem está no comando da organização (mesmo que, para ganhar
audiência, as emissoras apostem nas mesmas fórmulas de sucesso).
O próprio ato de seleção da notícia jornalística, supostamente consi-
derada imparcial e verídica, pressupõe julgamentos de valor, baseados
em inúmeros requisitos, entre eles, interesses econômicos, corporati-
vos, políticos, ideológicos ou religiosos e ainda o perfil do telespecta-
dor. Tornou-se clássico nos estudos sobre o mito da imparcialidade
da mídia a edição favorável ao candidato que resultou vencedor no
segundo debate promovido pela Globo entre os candidatos Collor e
Lula, em 1989.
Dentro da ampla autonomia da programação, não é hábito da mídia
eletrônica refletir sobre a qualidade do seu conteúdo. O programa Ver

22
Artigo publicado por Elvira Lobato, em 17/12/2007, sob o título “Universal
chega aos 30 anos com império empresarial”, disponível em http://www.espiri-
tualidades.com.br/Noticias/2007_12_17_igreja_universal30anos.htm (acessado
em 12. jun. 2008).
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
117

TV, da TV Câmara, é um dos únicos espaços eletrônicos de debate e


reflexão do papel e da qualidade da televisão brasileira.
Sodré (1977, p. 133) trata da homogeneização do conteúdo televisivo,
informando que a cidade e sua cultura são impostos ideologicamente
pelo sistema da televisão como um universo a ser atingido ou a ser
imitado por todos.
A dialética do consumo cultural é elementar: um valor (um modo
de vida, uma idéia, um produto) é bom ou ruim, ou se compra
ou não se compra – pode haver ambigüidade, mas nenhuma am-
bivalência. Não pode haver ambivalência neste sistema porque a
informação está voltada para a instituição unilateral e unívoca de
um certo ideal do ego, isto é, de um conjunto pragmático de fins
e normas que o cidadão deve cumprir (comprando) para triunfar
na sociedade industrial.

Assim, os veículos oscilam entre a soberania editorial e a ditadura do


Ibope, na definição de suas programações, inclusive jornalísticas. Faz
parte da TV, diz Sodré (1977, p. 77), a cultura do sincretismo, nos
quais são eliminados os conteúdos capazes de dividir o público, levan-
do a televisão a não poder exprimir claramente os valores de nenhuma
classe em particular:
Assim, ela é impelida a homogeneização dos diversos conte-
údos culturais, isto é, a redução dos mesmos a modelos facil-
mente aceitáveis pelo público. (...) Isto implica em dizer que
os modelos são criados pelo medium a partir de estereótipos
culturais e devolvidos ao público na forma de uma relação im-
positiva, que é a relação televisiva. Para disfarçar a imposição,
o sistema cria ficções do tipo <homem médio>, <opinião pú-
blica>, <gosto popular>, <características universais da Huma-
nidade> e assim por diante.

Neste contexto, a concentração de propriedade na mídia, por conse-


guinte, torna-se um mal em si mesmo, porque restringe o universo
de vozes e idéias que alcançam as grandes audiências. Os grupos e
segmentos que não detêm os canais de comunicação são alijados dos
processos de construção dos espaços públicos de diálogo e de tomada
de decisão.
Diversidade e pluralidade são conceitos previstos na Constituição, que
se contrapõem a uma mídia concentrada. Entre os princípios estabe-
lecidos no art. 221 da CF a serem seguidos pela produção e progra-
mação das emissoras de rádio e televisão, estão o estímulo à produ-
ção independente e a regionalização da produção cultural, artística e
jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei. No entanto, a
regionalização nunca foi regulamentada, como prevê a Constituição,
118 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

em que pese o tema seja objeto de vários projetos de lei em tramitação


no Congresso. O mais conhecido deles é o PL nº 256, de 1991, de
autoria da então Deputada Jandira Feghali, que aguarda o exame das
comissões do Senado.
Ao contrário, a regulamentação em vigor limita a diversidade. O De-
creto no 5.371, de 17 de fevereiro de 2005, que aprova o Regulamento
do Serviço de Retransmissão de Televisão e do Serviço de Repetição
de Televisão, ancilares ao Serviço de Radiodifusão de Sons e Imagens,
diz que “não será permitida a retransmissão de programação disponível
na localidade, com exceção da cobertura das áreas de sombra”. Assim
sendo, as RTV só podem transmitir a programação da geradora em
bloco, como um pacote fechado, sem inserção de programas locais.
“Relatório do Desenvolvimento Humano 2002”, divulgado pelo Pro-
grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), aponta o
controle da mídia por monopólios familiares, empresariais ou mesmo
estatal como um obstáculo à liberdade de expressão.23 A Rede Globo é
citada no estudo como um dos maiores monopólios do mundo.

A internacionalização da mídia

A Constituição brasileira traz antídotos para evitar a internaciona-


lização da mídia. O art. 222 da CF estabelece que “a propriedade de
empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é
privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou
de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham
sede no País.”
A redação foi dada pela Emenda Constitucional nº 36, de 2002, que
limita em 30% a participação de capital estrangeiro nas empresas
jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens. A preo-
cupação do legislador foi limitar o controle do conteúdo pela mídia
estrangeira, para evitar os impactos negativos da internacionalização
dos meios na formação da cultura e da identidade e unidade do País,
levando-se em consideração o papel de teia social desenvolvido pe-
los meios de comunicação.
Assim, o § 2º do art. 222 estabelece que “a responsabilidade editorial
e as atividades de seleção e direção da programação veiculada são pri-

23
“PNDU aponta monopólio privado e estatal da mídia”, matéria publicada em
01/08/2002, no sítio www.acessocom.com.br.
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
119

vativas de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, em


qualquer meio de comunicação social”.24

O movimento pela democratização da comunicação

A existência de grandes grupos de mídia no Brasil reforçou o discurso


de grupos de esquerda e grupos sociais pela democratização da comu-
nicação no Brasil. O relatório da Pesquisa “Direito à Comunicação no
Brasil”25 (2005: 38) cobra legislação e medidas para impedir a concen-
tração da propriedade na mídia.
A legislação e a realidade brasileiras se apresentam como dois
elementos quase diametralmente opostos. Apesar da proibição
do monopólio e da formação de redes, elas existem e apresentam
crescimento sempre centrado nas cabeças, que produzem o con-
teúdo e formulam as bases de gestão. Ao mesmo tempo em que
há o princípio constitucional, não existe e nunca houve uma po-
lítica de controle da concentração de propriedade nos meios de
comunicação. As cabeças produzem quase a totalidade do conte-
údo transmitido pelas retransmissoras, formando redes com base
em uma brecha da lei, mas mesmo assim constituindo formação
de monopólio indireto, o que contraria a Constituição.

Uma das atuações mais reconhecidas em prol de mudanças na Co-


municação surgiu na década de 90, com o Fórum Nacional pela
Democratização da Comunicação (FNDC)26. No Congresso Cons-
tituinte, entre 1987 e 1988, a Federação Nacional dos Jornalistas
(Fenaj) já atuara nesse sentido. Atualmente, o FNDC articula-se
para que seja realizada a Conferência Nacional de Comunicação, em

24
Regulamentado pela Lei nº 10.610, de 20 de dezembro de 2002.
25
No relatório da Pesquisa “Direito à Comunicação no Brasil, Base constitucional
e legal, implementação, o papel dos diferentes atores e tendências atuais e futuras”,
terceira versão, junho de 2005, foi produzido como resultado do Projeto de Go-
vernança Global da Campanha CRIS (Communication Rights in the Information
Society. A Campanha Cris (Communication Rights in the Information Society) surgiu
internacionalmente a partir de um conjunto de ONGs e movimentos que já lutavam
pela democratização da Comunicação. Redes globais e regionais como a APC, a
ALAI, a GlobalCN, entidades como a WACC, a AMARC, a ALER e a Nexus
juntaram-se no movimento.
26
Algumas das entidades que aderem ao movimento por mudanças no setor de co-
municação são: o Movimento de Rádios Livres (www.radiolivre.org); o Movimento
Nacional de Direitos Humanos (MNDH) (www.mndh.org.br); a Campanha Quem
Financia a Baixaria É contra Cidadania (www.eticanatv.org.br); o Observatório da
Imprensa (www.observatoriodaimprensa.com.br); a Rede em Defesa da Liberdade
de Imprensa (www.liberdadedeimprensa.org.br); o Centro de Mídia Independente
(www.midiaindependente.org) e a Associação Brasileira de Radiodifusão Comuni-
tária – Abraço (www.abraconet.org.br), entre outros.
120 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

que sejam discutidos, em nível nacional, estadual e municipal, a cons-


trução de novo marco regulatório para o setor. O movimento reúne
diversas entidades representativas e tem por princípio que o direito
à comunicação é similar aos direitos civis e sociais, como o direito à
moradia, ao trabalho, à saúde e ao meio ambiente saudável.
O Conselho de Comunicação Social27, órgão auxiliar do Congresso
Nacional destinado a elaborar estudos e pareceres sobre o setor de
Comunicação Social28, criou, em 07 de abril de 2004, comissão para
análise da concentração e controle cumulativo nas empresas de comu-
nicação social em pequenas e médias cidades brasileiras. A comissão
elaborou o estudo “Concentração da Mídia - Debates no Conselho de
Comunicação Social”. Na apresentação, José Paulo Cavalcanti Filho,
manifestando-se como representante da Sociedade Civil e, à época,
presidente do Conselho, fez um alerta:
E é aqui, nas pequenas e médias cidades brasileiras, em alguns
casos nos próprios Estados, que a concentração dos meios de
comunicação revela sua face mais preocupante em relação à de-
mocracia. Porque, com freqüência, atinge a própria legitimidade
de representação política.

Os debates, mesmo sem a pretensão de traçar um caráter exaustivo do


setor, demonstraram as divergências sobre o tema. Roberto Wagner
Monteiro, manifestando-se como representante das emissoras de televi-
são, reconheceu que muitas dela controlam várias mídias, como a Rede
Globo, mas asseverou que existe concorrência na mídia no Brasil.
A Rede Globo tem rádios, jornais e revistas, contudo o jornal
O Globo não é o mais lido em São Paulo, em Brasília, no Rio
Grande e do Sul e em Minas Gerais. A Folha de S. Paulo, tal-
vez o jornal mais influente do Brasil, não é tão forte no Rio
de Janeiro ou em Belo Horizonte. Da mesma forma, a revista
Veja, teoricamente a mais forte, não tem o condão de manipu-
lar informações, por que existem outras revistas também fortes,
como a Época e a IstoÉ. Então, esse não é um problema para o
Brasil. Absolutamente, não é problema do Brasil a concentração
da propriedade de meios de comunicação. Nenhuma empresa no
Brasil domina o mercado a ponto de seu status quo sinalizar pre-
juízos à democracia em nosso País. Estamos tentando importar
problemas que absolutamente não são nossos.

As divergências sobre o tema são grandes, não apenas no sentido de


reforçar ou negar a concentração da mídia, mas de valorizar ou mi-

27
Instituído pela Lei n° 8.389, de 30 de dezembro de 1991.
28
Disponível no link: http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Conselho/consAtri-
buicao.asp?s=CCS (acesso em 11.06.2008).
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
121

nimizar os seus possíveis efeitos. Existe uma aura de intangibilidade


que cerca a mídia, a pretexto das salvaguardas à democracia. A mídia
é colocada como o guardião dos direitos de cidadania e da liberdade.
Acerca do tema, vários estudiosos relativizam essa retórica construída
ao longo dos anos pelos detentores de concessões de mídia, como uma
muralha para conter avanços no sistema vigente.
Mesmo nos movimentos sociais, há vozes dissonantes. Primeiro coor-
denador do FNDC, Daniel Herz (1996, p. 181) relativizou os aspec-
tos negativos da concentração, em artigo publicado na Revista Comu-
nicação & Política:
Defendemos que o óbice para o desenvolvimento do País não
são os monopólios e oligopólios. É a exclusão das dezenas de
milhões de brasileiros, do mercado e da cidadania. Em áreas
estratégicas, especialmente as que nos colocam em concorrên-
cia direta com os gigantescos grupos transnacionais, o Brasil
precisa da concentração do capital, sob pena de não ter condi-
ção de competição.

Outra questão delicada e à guisa de definição refere-se à propriedade


de meios de comunicação por políticos. Matéria intitulada “Políticos
controlam 24% das TVs do País”, noticiada pela jornalista Elvira Loba-
to no Jornal Folha de São Paulo, informa que levantamento feito pelo
jornal mostra que “pelo menos 59 emissoras de televisão – 24% das 250
concessões de TV comercial existentes – pertencem a políticos.” O le-
vantamento refere-se apenas às geradoras de programação. Muitos dos
grupos de mídia regionais hoje são controlados por políticos.

Complementaridade dos sistemas privado, público e estatal

O art. 223 da Constituição Federal também trata, indiretamente, de


assegurar a pluralidade nos meios de comunicação. Preconiza que o
Poder Público deverá observar o princípio da complementaridade dos
sistemas privado, público e estatal. A criação das emissoras comunitá-
rias avançou neste sentido.
As rádios comunitárias foram uma tentativa de dar antena a essas mi-
norias, criando alternativas de consumo de informação no Brasil. O
modelo evolui consideravelmente em oito anos, desde a aprovação da
Lei nº 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, tendo hoje mais de três mil
emissoras outorgadas, porém apresenta problemas conceituais que o
impedem de cumprir o seu papel.
122 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A burocracia para se ganhar uma concorrência faz com que apenas


os grupos mais articulados localmente, e com condições de contratar
consultoria, consigam vencer todas as etapas do processo de autori-
zação de execução do serviço junto ao Ministério das Comunicações
e a Casa Civil da Presidência da República. Além disso, a potência
das emissoras é única e limitada a 25 watts e altura do sistema irra-
diante não superior a trinta metros, independente das características
geográficas e demográficas do local, o que inviabiliza o serviço em
áreas isoladas, como a Amazônia. Por fim, a publicidade comercial é
vetada. Como não há outras fontes de receita possíveis e a fiscalização
por parte do Poder Público é precária, as emissoras, com freqüência,
burlam as regras.
Por esses e outros fatores, a Lei das Rádios Comunitárias é apontada
como empecilho ao crescimento de um sistema de comunicação lo-
cal, porque concorre com o modelo comercial. As tevês comunitárias
também são uma experiência incipiente no Brasil, uma vez que não
há uma lei específica que as regule e que os custos para a implantação
são elevados, razão pela qual há poucas emissoras dessa natureza em
funcionamento.

A legislação em outros países

Inúmeros países aprovaram regras para regular o mercado de mídia,


especialmente no que diz respeito à propriedade. As limitações envol-
vem desde cotas para conteúdo (nacional, independente ou regional),
até barreiras com relação aos índices de audiência; participação no
mercado de publicidade; percentual de participação no capital da em-
presas e regras com relação ao tamanho do mercado (local, regional
ou nacional).
Em linha gerais, as regras básicas podem assim ser definidas:
• Duopoly rule (regra do duopólio): proibição de que um opera-
dor de serviço de radiodifusão seja proprietário de mais de uma
emissora do mesmo tipo no mesmo mercado;
• One-to-a-market rule (regra do um por mercado): estabelece que
uma pessoa física ou jurídica não pode ser proprietária, no mes-
mo mercado, de mais de uma emissora de TV em VHF ou de
uma combinação de emissoras de rádio AM e FM;
• Multiple ownership rule (regra da múltipla propriedade): limita a
formação de conglomerados de mídia, tanto horizontal quanto
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
123

verticalmente, estabelecendo regras que limitam a proprieda-


de, em nível nacional, de emissoras de radiodifusão, bem como
estabelece abertura na grade de programação para progra-
mas independentes.
• Cross-ownership rule (regra da propriedade cruzada): proíbe fu-
turas aquisições de emissoras de radiodifusão por pessoa física
ou jurídica que fosse proprietária de jornal diário cuja base de
atuação seja na mesma área geográfica.
Apesar da regulação, a tendência hoje é de concentração no mercado
da comunicação. Albarran e Moellinger (2002, p. 103) afirmam que
houve, nos anos 1980 e 1990, uma quantidade sem paralelo de fusões
e aquisições, que levou ao surgimento de oligopólios formados por
conglomerados globais de mídia. Segundo os autores, estas empresas,
também chamadas de mega mídias ou corporações transnacionais de
comunicação social, operam numerosos meios, como jornais, estúdios
de cinema, empresas de radiodifusão e gravadoras.
O caso norte-americano é emblemático. Seis firmas controlam a gran-
de mídia americana. General Electric, Viacom, Walt Disney Com-
pany, Bertelsmann, AOL Time Warner e Murdoch’s News Corp.
Bagdikian (2000: 20) lembra que, quando publicou a primeira edição
de seu livro “The Media Monopoly”, em 1983, nos Estados Unidos, 50
corporações dominavam as mídias de massa, sendo que maior delas
tinha receita de $340 milhões. Em 1987, o número de operadores
havia caído para 29 e para 10, em 1997. Em 2000, a receita da AOL
Timer Warner havia subido dos $340 milhões para $350 bilhões, mil
vezes mais.
Nos Estados Unidos, a Federal Communications Commission (FCC),
criada pelo Communications Act de 1934, é responsável pela regula-
ção da questão da propriedade de radiodifusão. O Telecommunica-
tions Act de 1996 estabelece novas regras, muitas delas inspiradas em
decisões judiciais:
• uma pessoa não pode ter estação de TV que atinja mais de 39%
dos domicílios de sua área de concessão;
• uma pessoa não pode ter mais de uma das quatro grandes redes
de TV: ABC, CBS, Fox e NBC;
• para TV local, a regra é que uma pessoa não pode ter mais de
uma estação de televisão na mesma região que seja classificada
entre as quatro de maior audiência, e o mercado em que atua
deve ter, pelo menos, oito estações;
124 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

• há limites para a propriedade de rádio local, de acordo com o


número de estações no mercado;
• quanto à propriedade cruzada de rádio e televisão, uma pessoa
pode ter até seis estações de rádio comercial e duas de televisão
comercial, ou sete estações de rádio comercial e uma de TV co-
mercial, desde que o mercado tenha outras 20 emissoras inde-
pendentes, sistemas de televisão por cabo ou jornais;
• uma pessoa pode não possuir uma emissora (quer de rádio ou de
TV) e um jornal diário na mesma área;
• as empresas de telecomunicações podem atuar no mercado de ca-
bodifusão, assim como os radiodifusores, o que antes era proibido.
A concentração no mercado de mídias é matéria de diretiva da União
Européia (UE). McEwen (2007, p. 13) relata que a UE conside-
ra o pluralismo como uma pedra angular da democracia, mas que,
ao mesmo tempo, está consciente da necessidade de haver decisões
pragmáticas de mercado. Historicamente, na Europa, há uma ten-
dência em focar em fatores como a concorrência, deixando o conte-
údo específico e a questão da diversidade dos meios de comunicação
para os Estados-Membros.
Em discurso proferido em 2004, o então Diretor-Geral da Concor-
rência da Comissão Européia, observou:
A acentuada tendência para a concentração no setor europeu das
comunicações e dos meios de comunicação nos últimos anos, a
nosso ver, comporta dois perigos. O primeiro perigo é a criação de
poder de mercado significativo de empresas, ou até mesmo mo-
nopólio, que impede significativamente a concorrência, em última
instância, em detrimento do bem-estar dos consumidores… O
segundo risco é a possibilidade de um número limitado de empre-
sas de comunicação social deterem o pluralismo, a diversidade e a
liberdade de informação. (MCEWEN, 2007, p. 13)

Promulgada em 1989, a Diretiva “Televisão Sem Fronteiras” (Direc-


tiva TVSF) constitui a pedra angular da política audiovisual da União
Européia. Os princípios básicos são a livre circulação de programas
televisivos europeus no mercado interno e a exigência de que os canais
de televisão reservem, sempre que possível, mais de metade do seu
tempo de antena a obras européias (quotas de difusão).
A diretiva TVSF salvaguarda também alguns importantes objetivos
de interesse público, tais como a diversidade cultural, a proteção dos
menores e o direito de resposta. De acordo com a diretiva, as em-
presas de radiodifusão também têm de reservar pelo menos 10% da
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
125

sua transmissão ou 10% do seu orçamento de programação a obras


européias de produtores independentes. O Serviço Público de Radio-
difusão tem apoio de muitos países membros da UE.
Na Inglaterra29, as principais regras são:
• não há restrições para acumulação de licenças de televisão; aná-
lise de interesse público aplicado no caso de fusão; proibição de
certos órgãos, por exemplo, políticos e autoridades locais de te-
rem licença de exploração; restrição de certos organismos, por
exemplo, organizações religiosas, de exploração de certas licen-
ças; restrições à exploração por jornais nacionais de licenças do
Canal 3.
• é feita avaliação do interesse público no caso de fusões e aquisi-
ções e restrições sobre determinados organismos políticos e reli-
giosos para concessão de licença.
Na França, existem três limites impostos à propriedade: participação
no capital, número de licenças e e quota de audiência. Uma pessoa
individual não pode deter mais de 49% de um canal nacional ou 33%
de um canal local, se a audiência média anual é superior a 2,5% do to-
tal da audiência. Pelo rádio, uma entidade não pode controlar uma ou
mais estações ou rede se a audiência global for superior a 150 milhões.
As empresas não podem adquirir um novo jornal se essa aquisição
incrementar sua circulação diária em mais de 30%.
Na Alemanha, onde as emissoras públicas dominam mais de 44% da
audiência, um organismo de radiodifusão será considerado com poder
de mercado dominante quando atinge um público de mais de 30% de
audiência no curso de um ano. Para televisão, a quota de audiência
anual máxima a ser atingida é de 25%. Ao atingir o limite, a empresa,
além de não poder mais obter novas concessões, deve adotar um pro-
grama de redução das suas licenças. Existe um percentual para progra-
mação regional e independente. Não há restrições para a propriedade
de mídia por estrangeiros.
Na Itália, existe uma estrutura de oligopólio em que RAI, RTI e Pu-
blitalia estão numa posição dominante. A RAI tem 39,5% da audi-
ência e a RTI, 34,5%, conforme dados de 200330. Entre as medidas
adotadas em prol da pluralidade, está a determinação de que a RAI e a
RTI terão de acelerar o processo de digitalização de suas redes terres-

29
Review of Media Ownership Rules. Office of Communications (Ofcom). 14/11/2006.
30
AGCOM, Giuliano de vita, October 2005, Media concentration, cross ownershi
and pluralism.
126 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

tres de radiodifusão televisiva e de manter a obrigação de reservar 40%


da sua capacidade digital para conteúdo independente. É permitida
a propriedade cruzada de estações de rádio e TV, mas uma mesma
pessoa não pode ser titular de concessões em âmbito local e nacional
ao mesmo tempo.
Na Nova Zelândia, com apenas quatro milhões de habitantes, o
mercado é concentrado e internacionalizado. Resultado da desregu-
lamentação no setor, iniciada em 1980, 81% dos jornais diários são
de propriedade de estrangeiros e a maior parte dos leitores é atendi-
da por apenas um jornal diário. O mercado compreende seis redes de
televisão, duas das quais são controladas pela TVNZ, o radiodifusor
público, que desfruta de 40% da audiência total. Na TV por assi-
natura, a Sky Television Network, de Rupert Murdoch, detém 23%
do mercado.
Na Noruega, a propriedade da mídia é controlada pela Autoridade
da Propriedade de Mídia (Media Ownership Authority), que é autô-
noma. Uma sociedade não pode controlar mais de 20% da circulação
nacional de jornais. Em nível local não há percentagem definida, mas
não são permitidas operações de concentração. Com relação à radio-
difusão de sons e imagens, ninguém pode cobrir mais de um terço do
mercado nacional. Em âmbito local, se uma pessoa possuir mais de
50% das ações de uma companhia considera-se que ela atingiu todo o
mercado de radiodifusão da área licenciada. (Querino: 2001)
Em Portugal, a lei do Rádio (Lei nº 32/2003) impõe, no art. 7, que
“cada pessoa singular ou coletiva só pode deter participações, no má-
ximo, em cinco operadores de radiodifusores”. A Lei da Televisão
estabelece, no art. 4º, que “as operações de concentração horizontal
de operadores televisivos estão sujeitas à intervenção do Conselho da
concorrência. E a Lei de Imprensa (Lei nº 2/99, de 13 de Janeiro) não
impõe restrição quantitativa da propriedade, embora assegure o direi-
to do cidadão a informação, nomeadamente, através de medidas que
impeçam níveis de concentração lesivos ao pluralismo.”
Na Austrália, o Broadcasting Service Act de 1993 foi revisto em abril de
2007, por causa da introdução das novas tecnologias exigiu novas regras.
(McEwen: 2007). No rádio, nenhum operador pode controlar mais de
duas licenças comerciais na mesma área. Na TV, ninguém pode contro-
lar uma emissora que atinja mais de 75% da população australiana.
Na Albânia, o setor de radiodifusão é regulado por uma lei de 1998.
O radiodifusor pode obter dois tipos de licenças em função da sua
cobertura: local/regional e nacional. É proibida a concessão de mais de
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
127

uma licença local para o mesmo território, seja rádio ou televisão. Uma
pessoa não pode ser o único proprietário de uma estação que cobre
uma área de mais de 200.000 habitantes. Não há nenhuma limitação
sobre propriedade estrangeira. (LONDO, p. 2004).31
Na Dinamarca, não há restrições para a imprensa escrita e uma pes-
soa pode ser dona ou responsável pela programação em mais de uma
estação local de TV. Em Luxemburgo, nenhuma empresa ou pessoa
física pode ter mais de 25% do capital votante em estações de rádio
de baixa potência. As de alta potência devem atender a princípios de
pluralidade e neutralidade.

A dificuldade de regular a mídia no Brasil

Foram várias as tentativas, tanto no âmbito do Poder Executivo, quanto


do Poder Legislativo, de regular a mídia no País. Há inúmeros projetos
de lei em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal
que objetivam impor limites à concentração ou assegurar a liberdade de
expressão e a diversidade de imprensa de inúmeras formas.
Uma dessas iniciativas pioneiras é o Projeto de Lei nº 2.735/92, o
Projeto da Lei de Informação Democrática, cujo anteprojeto foi ela-
borado pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação
e apresentado pelo então Deputado Zaire Rezende.
O projeto, que ainda tramita apensado a outras proposições, criava o
“direito de comunicar”, e propõe a liberdade de transmissão munici-
pal, por meio de pequenas emissoras de rádio e de televisão, e o di-
reito de antena (em todos os tipos de emissoras), para os movimentos
sociais e populares em todo o País. As universidades e os municípios
teriam direito de emissão, via rádio e TV, de temas dedicados às artes
e à cultura, à educação e ao jornalismo, e haveria o direito de tela, na
televisão, para o cinema nacional e a produção independente, como
nos Estados Unidos.
Na época da apresentação da proposta legislativa, o então coordenador
e membro da Secretaria Executiva do Fórum Nacional pela Democra-
tização da Comunicação e professor de Ética e Legislação do Jornalis-
mo na Universidade de São Paulo, José Carlos Rocha escreveu:
“Deve haver uma lei que impeça o Estado de dobrar a mídia a seus
interesses políticos, a fim de que ela possa se tornar o vigilante do

31
LONDO, Ilda. Legislation on Media Ownership. Media Online 2004. August 3, 2004.
128 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Estado. A mídia também não pode ser controlada pelo interesse pri-
vado, porque o próprio da mídia é atender ao interesse público”.32
A regulamentação da questão da concentração dos meios de comuni-
cação e o combate à propriedade cruzada têm sido um dos motes para
a defesa da Lei de Comunicação Eletrônica de Massa. A trajetória de
idas e vindas na discussão da referida proposta de lei, no âmbito do
governo federal, demonstra a eficácia das pressões dos radiodifusores e
o seu poder de impedir mudanças no marco regulatório do setor.
No estudo “Reflexões sobre a regulação da Radiodifusão no Brasil –
em busca da Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa”, Lopes
(2005) narra as tentativas fracassadas de diversos governos de aprovar
a nova legislação. A primeira delas ocorreu durante a votação da sepa-
ração entre comunicação e telecomunicações, promovida pela Emen-
da Constitucional nº 8, quando a idéia original era criar uma Lei Ge-
ral de Comunicação. No segundo mandato do presidente Fernando
Henrrique Cardoso, houve nova tentativa de ciar uma Lei, que passou
a ser chamada de “Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa”,
colocada em consulta pública pelo então ministro das Comunicações,
Pimenta da Veiga.
Previa o art. 76 a vedação para operar mais de uma emissora de TV
na mesma localidade. Já os artigos 77 e 78 da minuta de projeto de
lei estabeleciam que, nas emissoras de radiodifusão sonora e de sons
e imagens, nenhuma pessoa natural ou jurídica poderia, direta ou in-
diretamente, possuir, controlar ou operar, em determinada localidade,
mais de vinte por cento do número de emissoras de onda média e
freqüência modulada, nem operar ambos.
Em 2004, o governo Lula colocou em consulta pública anteprojeto de
criação da Ancinav, agência ligada ao Ministério da Cultura, em subs-
tituição à atual Agência Nacional de Cinema (Ancine), com poderes
de regulação sobre o mercado de televisão aberta. Mas a iniciativa foi
descartada depois de calorosos debates no Congresso, sob o argumen-
to de que implicaria censura.
Em 2005, ocorreu mais uma tentativa. Por meio de decreto presi-
dencial, foi montado grupo de trabalho envolvendo vários ministérios
com o objetivo de integrar as várias legislações, como o Código Bra-
sileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962),
que atualmente regula o setor de radiodifusão, a Lei da TV a Cabo

32
Artigo “Os caminhos da democracia na informação”, publicado em Revista Polí-
ticas Governamentais, Volume IX – nº 91, maio-junho 1993. p. 29.
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
129

(Lei nº 8.977, de 6 de janeiro de 1995) e até mesmo a Lei Geral de


Telecomunicações (Lei 9.472, de 16 de julho de 1997). O grupo ainda
não concluiu os seus trabalhos.
No Brasil, o controle da concentração de poder no mercado das co-
municações tem sido feito por meio da Lei nº 8.884, de 11 de junho
de 1994, que trata do Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(Cade), especialmente o artigo 2033. O limite para uma empresa ou
grupo de empresas atuar é de, no máximo, 20% de mercado relevante,
podendo ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia.
A abertura do mercado de comunicação exige esforços que incluem
soluções mistas entre a regulação do setor e a adoção de políticas pú-
blicas estratégicas que podem ser implementadas pela via infralegal.
Em entrevista divulgada em 23 de novembro de 2006, intitulada “É
preciso debater publicamente a mídia e seu papel”34, o coordenador
do FNDC e Secretário Geral da Fenaj, Celso Schröder, defendeu a
distribuição eqüitativa das verbas publicitárias públicas como uma das
formas de construir a democratização da mídia.
O Decreto nº 4.901, de 26 de novembro de 2003, que institui o Sis-
tema Brasileiro de Televisão Digital – SBTVD, estabelece, entre os
seus objetivos, “promover a inclusão social, a diversidade cultural do
País e a língua pátria por meio do acesso à tecnologia digital, visando
à democratização da informação”. O estímulo à multiprogramação;
a viabilização da interatividade por meio da oferta de conversores de

33
Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa,
os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir
os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre
iniciativa;
II – dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III – aumentar arbitrariamente os lucros;
IV – exercer de forma abusiva posição dominante.
§ 1º A conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior efici-
ência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito
previsto no inciso II.
§ 2º Ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo de empresas controla
parcela substancial de mercado relevante, como fornecedor, intermediário, adquirente
ou financiador de um produto, serviço ou tecnologia a ele relativa.
§ 3º A posição dominante a que se refere o parágrafo anterior é presumida quando
a empresa ou grupo de empresas controla 20% (vinte por cento) de mercado rele-
vante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da
economia.(Redação dada pela Lei nº 9.069, de 29.6.95)
34
Disponível em http://www.fenaj.org.br/materia.php?id=1417 (acessado em 11/06/2008)
130 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

TV economicamente acessíveis e a implementação dos canais públi-


cos, previstos no Decreto no 5.820, de 29 de junho de 2007, que dispõe
sobre a implantação do SBTVD-T35, são outros mecanismos sobre os
quais se espera diversificar o mercado da comunicação.
A criação da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) foi mais um
passo para implementar o previsto no art. 223 da CF, que é a comple-
mentaridade dos sistemas público, estatal e privado. A EBC foi insti-
tuída pelo Decreto 6.246, de 24 de outubro de 2007, a partir da fusão
da TVE, da Rádio MEC e da Radiobrás. O advento das novas mídias,
como a Internet, também deve romper as barreiras do mercado.
Segundo Dantas (1996, p. 36):
“Os meios de comunicação passam atualmente por um novo
período de intensas transformações tecnológico-sociais. Trata-
se de mais uma oportunidade que a história oferece às forças
democráticas. Quem formulou e implementou um projeto claro
para organizar econômica e institucionalmente as comunicações
foi o grande capital, através de seus porta-vozes liberais, con-
servadores e até de direita. Fosse qual fosse o modelo político e
econômico adotados por diferentes países – democrático, nazis-
ta, até socialista –, os meios sócio-técnicos da comunicação tor-
naram-se instrumentos de poder e de conformação ideológica
dos povos.”

A tendência, no entanto, é de globalização das grandes corporações,


por meio de processos de fusão e aquisição, como destaca Fishman
(2008, p. 104):
“Tal como em outros campos, como observei no começo, por
razões de custos e poder, os meios de comunicação pequenos
tendem a desaparecer. Os custos de estar no ar não são sustentá-
veis quando se compete com os que podem multiplicar sua pre-
sença com várias estações, utilizando os mesmos equipamentos,
o mesmo pessoal, e muitas vezes, também, os mesmo produtos
pré-pagos, o que maximiza sua rentabilidade e reduz considera-
velmente seus custos.”

Uma das dificuldades para as mudanças, segundo Fishman, é a relação


entre os operadores e os agentes políticos:
“Finalmente, a captura de mercados, audiências e poder econômico tem
como conseqüência a captura do poder político, o que gera negociações
e cumplicidades com a autoridade que chegou à captura das instituições
e, inclusive, a determinação de políticas e leis que favorecem a conso-

35
Trata-se do sistema nipo-brasileiro de TV digital.
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
131

lidação dos grupos dominantes, o que prova o conflito e, conseqüência


mais grave, afeta a qualidade da democracia de um país”.
Bagdikian (2000) destaca que “poder da mídia é poder político. Os polí-
ticos hesitam em contrariar os operadores de mídia, porque eles contro-
lam como esses políticos serão apresentados, ou não serão apresentados,
aos eleitores”. O desafio dos legisladores é assegurar que, no novo cená-
rio tecnológico, sejam assegurados os direitos fundamentais da Consti-
tuição, como a liberdade de expressão e o direito à informação.

O impacto da convergência tecnológica

A convergência tecnológica das mídias tem sido considerada como


oportunidade de romper a reserva de mercado no campo da comu-
nicação. O fato de a tecnologia permitir que o conteúdo e os serviços
cheguem ao consumidor por meio de várias fontes e mídias diferentes
acaba por introduzir novos players no mercado. É o caso das empresas
de telecomunicações que começam a oferecer o serviço de telefonia
via celular.
A Internet, que ingressa de forma rápida no mundo do vídeo, tam-
bém é concorrente do mercado televisivo. Não apenas porque oferece
acesso a informação digitalizada de forma cooperativa via Internet,
como permite a troca de vídeos e o próprio acesso a canais televisivos
e conteúdo autônomo e diversificado, na IPTV (TV via protocolo IP).
Nagler (2006, p. 21) afirma que a Internet permite que todo homem,
mulher ou criança possa ser um publicador doméstico comunicar-se
com todo o planeta. “Enquanto em 1973, as famílias poderiam ler o
jornal local juntas, as famílias atuais podem ver milhares de jornais
comunitários através do planeta.”
Bagdikian (2000, p. 13) alerta, no entanto, que, se a Internet foi ce-
lebrada como a libertação do indivíduo perante os sistemas de mídia
de massa, atualmente, as corporações estão cada vez mais presentes na
Internet, inclusive com publicidade. Destaca que o poder da Internet,
no futuro, ainda será extraordinário. Segundo Bagdikian, as grandes
redes de televisão (CBS, NBC, Fox, ABC) já estão empenhadas em
investir no espectro digital para a transmissão de programas de televi-
são de alta definição e interativos – o filão de ouro das comunicações
de amanhã.
A Internet é, na sua gênese, centralizada. Albarran (2002, p. 105) in-
forma que os dez maiores provedores do mundo detêm mais de 76 por
cento do total de assinantes em todo mundo. “O que temos essencial-
132 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

mente é uma estrutura de mercado hierárquica, com as 10 principais


empresas controlando mais de 76 por cento de todos os assinantes,
e as restantes empresas lutam por menos de um quarto do mercado
disponível. A maior companhia é a AOL e, em segundo lugar, MSN,
seguida da Earthlink, todas elas empresas norte-americanas. A pro-
messa de liberdade dos novos meios guarda simetria com a desigual-
dade do desenvolvimento mundial”, diz Amaral (2000, p. 147)
Em parecer datado de março de 2004, a Comissão para a Cultura, a
Juventude, a Educação, os Meios de Comunicação Social e os Despor-
tos do Parlamento Europeu constata que a crescente convergência de
mídias é um ameaça ao pluralismo, à democracia e à diversidade cultu-
ral, em razão dos movimentos de concentração verticais e horizontais.
E alerta que, em alguns estados membros da Comunidade Européia,
operadoras controlam o acesso a serviços a título exclusivo, através de
regimes de propriedade (criação dos “bottlenecks”), excluindo outros
operadores e/ou utilizadores (denominada “gate keeper position”).

Conclusões

O mundo das comunicações sempre foi visto como o ambiente para


concretização da utopia democrática. Dantas (1996, p. 34) diz que
“seria um espaço, sustentado numa infra-estrutura técnica, onde os
indivíduos-cidadãos poderiam intervir, com suas próprias razões, en-
quanto produtores diretos e autônomos de cultura. Brecht vislumbrou
aí a possibilidade de instauração de uma esfera pública cidadã, no con-
ceito de Habermas (1986).”
No entanto, apesar da diversidade política, geográfica e cultural do País,
o conteúdo da mídia tem sido homogêneo e voltado para atender o
gosto das grandes massas, com o objetivo de alavancar a audiência. A
regulação da propriedade dos meios de comunicação pode encerrar um
falso dilema: de que é preciso optar entre a liberdade de imprensa e a
liberdade de expressão. Os dois conceitos são plenamente compatíveis.
O modelo de comunicação no Brasil é baseado no sistema america-
no conhecido como trusteeship, em que o concessionário é fiduciário
do Estado e deve atender prioritariamente ao interesse público. Por
isso, a Comunicação Social é passível de regulação. E assim o Estado
brasileiro tem feito. Há mais de 50 anos, as Constituições brasileiras,
segundo Lima (1998), apresentam restrições a propriedade de em-
presas jornalísticas e de radiodifusão por parte de pessoas jurídicas,
sociedades anônimas por ações e estrangeiros. “Em diferentes graus,
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
133

essa restrição aparece nas Constituições de 1946 (art. 160), de 1967


(art. 166), de 1969 (art. 174) e de 1988 (art. 222).”
Por outro lado, a diversidade de conteúdo não dependeria unicamente
da pluralidade de mídias, caso houvesse políticas públicas para pro-
mover a diversidade de conteúdo. Uma das soluções mais usuais, ado-
tada especialmente por países onde vigoram leis mais atualizadas – o
Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei n 4.117, de 27 de agosto
de 1962), tem 46 anos - , é o sistema de cotas mínimas para veiculação
de conteúdo nacional, regional e de produção independente.
Entretanto, qualquer tentativa de interferir na programação das emis-
soras esbarra em resistências. Um exemplo é a polêmica em torno do
Projeto de Lei nº 29, de 2007, de autoria do Deputado Paulo Bor-
nhausen, cujo substitutivo do relator, Deputado Jorge Bittar, prevê a
instituição de cotas de conteúdo nacional na TV por assinatura.
Muitas das resistências às cotas na programação são de natureza mer-
cadológica. Embora as emissoras sejam detentoras de concessão pú-
blica, hoje a programação delas é exclusivamente determinada pelo
que “dá certo” junto ao telespectador. Como o telespectador, na tevê
aberta, não precisa pagar assinatura mensal para ter acesso ao serviço,
quem financia o sistema é a publicidade, em troca de audiência para
seus anúncios. Ou seja, o telespectador ou ouvinte é, antes de tudo, um
consumidor em potencial.
Isso resulta em produzir uma homogeneização da programação, fa-
zendo com que todas as emissoras copiem entre si as “fórmulas de su-
cesso” e que tenham a melhor relação custo-benefício, como os reality
show e os programas de auditório.
Apesar de todo o viés ideológico, a discussão sobre a regulação da
mídia diante da tendência de concentração de veículos tem uma di-
mensão prática relevante. Mastrini e Aguerre (2007, p. 56) dizem que
as fusões e incorporações impõem questões que os reguladores não
conseguem resolver. “A primeira alternativa, limitar os níveis de con-
centração permitidos, apresenta o problema de que esses limites foram
sistematicamente superados. Além disso, a concentração da proprie-
dade alcançou um grau tão alto que torna inútil a legislação.”
O estímulo à diversidade de operadores é uma das soluções para esse
impasse. Lima (2003) afirma que, “numa sociedade com pluralidade de
proprietários e diversidade de conteúdo na mídia, estariam asseguradas
as condições indispensáveis para que se constitua uma opinião pública
livre e autônoma, através do debate de idéias. Fica claro, portanto, que a
134 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

concentração na propriedade de comunicações coloca em risco os pró-


prios fundamentos da democracia representativa liberal”.
Não é o caso, aqui, de mudar a Constituição vigente, mas de cum-
prí-la. Além das formas tradicionais de controle da centralização de
mídias, como as limitações à propriedade cruzada ou à participação no
mercado, as políticas de must carry, de operador de rede, de desagre-
gação de redes e de cotas ao conteúdo nacional e à produção indepen-
dente são interessantes mecanismos para ampliar o acesso a conteúdos
diversificados, provenientes de diferentes players no mercado. A Lei
do Cabo, por exemplo, obriga a transmissão dos chamados canais de
uso público, como o universitário, os comunitários e a TV Câmara e
a TV Senado.
Comparato (2002, p. 30) sugere a reorganização da estrutura jurídica
dos meios de comunicação social, como a instituição de um conselho
de administração, incumbido de estabelecer as diretrizes editoriais e
de programação, com representantes dos empregados. Outra sugestão
é o direito de antena, instituído pelas Constituições portuguesa (art.
40) e espanhola (art. 20), destinado a partidos políticos, organizações
sindicais, profissionais e representativas das atividades econômicas,
bem como outras, além da reforma do Conselho de Comunicação
Social, dando-lhe atribuições deliberativas.
A regulação da imprensa deve preencher as falhas naturais do mer-
cado livre no ramo da comunicação social. Binenbojm (2005) afirma
que “é fundamental que as empresas jornalísticas sejam entidades da
sociedade civil, independentes de qualquer controle ou benesse do
Estado. O pesquisador sugere que a atividade regulatória e fiscaliza-
dora não seja exercida diretamente pelo governo, mas por um ente
regulador independente que se apresente como entidade intermédia
e guarde a devida isenção das empresas de comunicação, grupos de
pressão e do próprio governo, com composição pluralista e represen-
tativa dos setores envolvidos. No Brasil, as políticas de Comunicação,
assim como as outorgas de radiodifusão, são atribuições do Ministério
das Comunicações.
Para assegurar a liberdade de expressão, importa menos qual é a natu-
reza do sistema – se pública ou privada – ou se há maiores ou menores
índices de concentração no setor da comunicação, do que a garantia,
real e perene, de que a mídia deve ser e sempre será um reflexo da
sociedade em que está contextualizada. Liberdade de imprensa im-
plica o acesso de todos, cidadãos, instituições, entidades, empresas e
A concentração da mídia e a liberdade de expressão na Constituição de 1988
135

organizações, aos meios de se comunicar no Século XXI, sejam eles


impressos, eletrônicos ou digitais.

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Comunicação
137

A radiodifusão brasileira e a
Constituição Federal de 1988
Vilson Vedana

1. Introdução

O capítulo da radiodifusão na Constituição Federal de 1988 foi o re-


sultado do intenso embate entre o setor tradicional da radiodifusão –
os detentores privados das outorgas – e os que lutaram por uma maior
democratização do setor, incluindo coisas tais como uma TV pública,
a regionalização da programação, a obrigatoriedade de veiculação de
produção independente, o respeito aos valores éticos e sociais da pes-
soa e da família, etc.
O político Leonel Brizola, em razão de seus desentendimentos com a
Globo, havia declarado pouco antes que, se eleito Presidente da Repú-
blica, cassaria a concessão da TV Globo. Tal ação estava, à época, entre
as prerrogativas presidenciais, inclusive com precedente, pois já havia
sido utilizada há alguns anos na cassação da TV Tupi.

2. Uma superproteção aos radiodifusores

O resultado, com algumas concessões dos radiodifusores, foi um ca-


pítulo constitucional da radiodifusão com uma superproteção aos de-
tentores de outorgas de radiodifusão, sem paralelo com os detentores
de qualquer outro tipo de outorga de serviços públicos, conforme ve-
remos adiante. Por este motivo, o capítulo bem pode ser chamado de
“Dispositivo Brizola-Roberto Marinho”.
A superproteção de que falamos está consubstanciada, primeiro, no fato
de se submeter à apreciação do Congresso Nacional os atos de outor-
ga e renovação da radiodifusão, conforme estabelece o § 1º do artigo
223. Veja-se que nenhuma outra outorga de serviços públicos precisa
da apreciação do Congresso Nacional. E há outorgas de atividades de
negócios muito maiores, em termos financeiros, do que a radiodifusão,
como nas telecomunicaçõs e no transporte aéreo, por exemplo.
138 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O segundo dispositivo constitucional a configurar uma superprote-


ção aos radiodifusores está em, quando o Poder Executivo decidir
pela não renovação de uma outorga de radiodifusão, ser necessária
a aprovação desse ato pelo Congresso Nacional com quorum quali-
ficado (dois quintos) e, mais ainda, em votação nominal, conforme
estabelece o § 2º do art. 223. Uma lei pode ser aprovada em vota-
ção simbólica, por acordo de lideranças, e muitas o são, mas a não
renovação de um simples ato de outorga de um serviço público, por
motivos justificados – já que somente por motivo justificado pode o
poder público não renovar uma outorga – depende de quorum quali-
ficado e votação nominal. Tanto faz que se trate de uma importante
emissora de TV em uma capital ou de uma simples rádio comunitá-
ria de uma pequena localidade.
O terceiro dispositivo constitucional que confere uma superproteção
aos radiodifusores está no § 4º do mesmo artigo 223, ao prever que o
cancelamento da outorga, antes de vencido o prazo, depende de de-
cisão judicial. Veja-se que, em todas as outorgas de outros serviços
públicos, se o outorgado pratica reiteradamente faltas consideradas
graves, ele pode ter sua outorga cassada pelo Poder Executivo. Se o
outorgado se sentir prejudicado, se achar que a pena de cassação foi
excessivamente grave, pode recorrer ao judiciário, que pode reverter
a decisão. No caso da radiodifusão, o Poder Executivo não tem esta
prerrogativa. Mesmo ante a faltas as mais graves não pode decidir, tem
que acionar o Poder Judiciário para que este determine a cassação.
Pode-se argumentar que esta superproteção é necessária pois se tra-
ta de manter a independência de opinião na radiodifusão brasileira. É
um argumento respeitável, mas a proteção é claramente excessiva, além
de adotar procedimentos diferentes com relação às outras outorgas de
serviços públicos. O que se quis foi envolver o Congresso Nacional e o
Poder Judiciário antes da vigência da decisão do Poder Executivo, com
o claro objetivo de limitar a ação deste, envolver outros atores nas deci-
sões e retardar a entrada em vigor dos atos que possam, eventualmente,
atentar contra os interesses dos radiodifusores.
A explicação maior de tudo isso está no fato de que a decisão foi
tomada num momento histórico em que era plausível a chegada à
Presidência da República, via eleições diretas, de um político (Leo-
nal Brizola) que se opunha fortemente ao principal grupo de radio-
difusão brasileiro.
À primeira vista, a submissão ao Congresso Nacional dos atos do Po-
der Executivo de outorga e renovação da radiodifusão, torna o pro-
A radiodifusão brasileira e a Constituição Federal de 1988
139

cesso mais democrático: é o povo, por seus representantes, quem vai


decidir. No entanto, o que se procurou buscar, principalmente quando
da renovação de outorgas, não foi a democratização do processo, mas
mais uma instância decisória para o caso de haver a necessidade de
reverter alguma decisão do Poder Executivo pela não renovação. Além
disso, no caso de outorga, o Congresso não faz a escolha do outorga-
do, apenas aprova ou não o ato, da mesma forma que o ato pode ser
apenas aprovado ou não nos casos de renovação. Ainda aí haveria uma
certa margem de atuação do Congresso, mas o que se tem visto quan-
do determinado ato surte controvérsias é que os diferentes grupos de
pressão se anulam e o resultado é, sempre, a aprovação do ato. Afinal,
há emissoras sendo outorgadas e renovadas para todos os setores e
tendências da sociedade nacional e, embora possa se questionar quan-
to ao equilíbrio dessa distribuição, o fato é que todo o ato questionado
por algum setor sempre encontra seus defensores.
Uma grande novidade, não prevista para a radiodifusão na CF 88, mas
por ela não vedada, foi o pagamento pela outorga da radiodifusão co-
mercial, introduzida pelo Decreto nº 2.108, de 10 de outubro de 1996.
Explique-se que até então as outorgas eram gratuitas, sujeitas a um
mero ato discricionário do Ministro das Comunicações ou do Presi-
dente da República. Ser a competência de um ou de outro dependia
do tipo e do porte da emissora. O mencionado decreto introduziu um
pouco de seriedade com o trato da coisa pública. A outorga deixou de
ser dada aos amigos da ocasião para ser dada a quem melhor satisfi-
zesse as condições do edital, previstas para serem um misto de técni-
ca (tempo destinado a programas jornalísticos, educativos e culturais,
programação local, etc.) e preço.
Para mostrar como é difícil se conseguir uma maior democratização
da radiodifusão brasileira, depois da previsão do pagamento, a maioria
das outorgas comerciais está sendo obtida por quem se dispuser a pa-
gar altos preços, nem sempre com motivações puramente comerciais.
O pagamento pelas outorgas, na sistemática adotada, acabou privile-
giando os detentores do capital.
Destaque-se que a outorga das emissoras educativas e comunitárias
continua sendo feita sem o pagamento de preço algum. As Comuni-
tárias, com regras um pouco mais estritas, estabelecidas pela respectiva
lei (Lei nº 9.612, de 19 de fevereiro de 1998) e as educativas apenas
com o disposto nos artigos 13 a 15 do Decreto-lei nº 236, de 28 de
fevereiro de 1967.
140 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

3. As conquistas ainda por concretizar

Mesmo quando a CF 88 avançou e conseguiu definir coisas impor-


tantes, a vitória foi relativa. É que a maioria dos dispositivos precisam
de lei para se tornar efetivos e essas leis ou não foram ainda aprovadas
ou, quando o foram, fizeram uma regulação do assunto de tal forma
que apenas em parte alcançou o objetivo previsto.
Assim, o artigo 220, § 3º, inciso II, estabelece que “compete à lei fe-
deral estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a
possibilidade de se defenderem de programas e programações de rádio
e televisão que contrariem o disposto no artigo 221...”
Já o inciso IV do artigo 221 estabelece que a produção e a progra-
mação das emissoras de rádio e televisão atenderão ao princípio de
“respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
Da conjugação desses dois dispositivos se depreende que há coisas
que as emissoras de radiodifusão simplesmente não podem veicular,
por desrespeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família. No
entanto, vencedora tem sido a corrente que advoga a interpretação de
que o inciso IX, art. 5º (é livre a expressão da atividade intelectual, ar-
tística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou
licença) combinado com o caput do art. 220 (a manifestação do pensa-
mento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, pro-
cesso ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto
nesta Constituição) é absoluto, ou seja, as emissoras de radiodifusão
podem veicular o que desejarem, não se admitindo qualquer cerce-
amento e que, quanto aos “meios legais” de defesa de programações
que faltem ao mencionado respeito, trata-se, apenas, da classificação
indicativa prevista no inciso I, § 3º, art. 220. Verifica-se, assim, que o
inciso IV do art. 221 é, praticamente, letra morta quando, na verdade,
deveria ser entendido como uma limitação das liberdades previstas no
inciso IX do art. 5º e no caput do art. 220.
Outro dispositivo de aplicação limitada foi a restrição à propaganda
de tabaco e bebidas alcoólicas prevista no § 4º, art. 220. A restrição à
propaganda de tabaco e produtos fumígeros só se tornou efetiva após
a edição da Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1996. Quanto à propa-
ganda de bebidas alcoólicas, ela ainda goza de liberdade quase total,
pois, nos termos do parágrafo único do art. 1º desta lei, as restrições
só atingem bebidas com graduação alcoólica superior a 13 graus Gay
Lussac. Assim, atingem quase só bebidas destiladas, ficando excluídas
as cervejas (um dos maiores anunciantes da TV brasileira), os vinhos,
A radiodifusão brasileira e a Constituição Federal de 1988
141

as bebidas alcoólicas compostas com sucos, etc. No momento há um


grande debate e diversos projetos de lei no Congresso Nacional vi-
sando impor maiores limites à propaganda de bebidas alcoólicas. No
entanto, é difícil prever que realmente ocorra em breve uma mudança
no quadro legal.
Já o § 5º, art. 220 estabelece que “os meios de comunicação social
não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou
oligopólio”. Para dar cumprimento a este dispositivo, seria necessá-
rio que a lei limitasse a audiência que uma emissora de televisão ou
uma rede tivesse em nível local, estadual e nacional e, ainda, que se
estabelecessem limites à chamada propriedade cruzada de meios de
comunicação, ou seja, o mesmo grupo ser proprietário de emissoras
de rádio e televisão, canais de TV a cabo, jornais e revistas no mesmo
mercado. No Brasil nunca foram estabelecidos limites nesse sentido.
Só há limites quanto à quantidade de emissoras de rádio e televisão
que podem ser detidas por uma mesma entidade (art. 12 do Decre-
to-lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967), dispositivo que é ampla-
mente burlado à medida que se estabelecem redes nacionais de TV,
claramente vinculadas a organizações centrais, as quais subordinam
fortemente sobre as demais emissoras.
Outra vitória relativa foi a questão do “princípio da complementarida-
de dos sistemas privado, público e estatal” do serviço de radiodifusão
sonora e de sons e imagens (art. 223). O grande nó aqui é a questão
do sistema público de rádio e TV. O grande exemplo de sistema de
radiodifusão pública no mundo é o europeu, o qual foi puramente pú-
blico em suas origens, tendo apenas nas últimas duas ou três décadas
passado a admitir a exploração privada. Em praticamente todos os
países da Europa ocidental os cidadãos pagam taxas bastante elevadas
(entre E$100,00 e E$300,00 por ano) para sustentar uma televisão
pública de qualidade. As taxas pagas vão diretamente para o caixa das
emissoras, que, assim, têm seu orçamento garantido, independente do
orçamento governamental. Outro aspecto importante é que os gover-
nos não têm ingerência na administração das emissoras, não indicam
seus administradores, nem seus conselheiros.
Tivemos que esperar quase 20 anos pela Medida Provisória nº 398,
de 10 de outubro de 2007, convertida na Lei nº 11.652, de 7 de abril
de 2008, que criou a “TV Pública” possível dentro do ordenamento
jurídico brasileiro. Apesar de o Congresso ter introduzido aperfeiçoa-
mentos na MP, prevendo, por exemplo, uma fonte de renda para a TV
pública, o recurso efetivo a ser gasto pela TV depende da sua inclu-
são, todo ano, no orçamento da União votado no Congresso Nacional.
142 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Como quem propõe o orçamento anualmente é o Poder Executivo,


verifica-se que a independência é relativa, agravada ainda por ser o
Governo quem indica os administradores e os Conselheiros da TV
Pública brasileira.
Dissemos que a nossa TV pública é a possível dentro do nosso orde-
namento jurídico porque, para que tivéssemos uma TV pública se-
melhante à européia, precisaríamos de outro ordenamento, a começar
por previsões constitucionais outras que não as que temos. A nossa é
uma TV estatal com algumas concessões que, para se concretizar, de-
pendem da boa vontade do governo. Basta que ele corte o orçamento
ou indique dirigentes que lhe sejam próximos para a independência
deixar de existir.
Outro dispositivo que apenas em tese estabelece uma vantagem para
a sociedade é o do inciso I, art. 221, que estabelece para a produção e
a programação das emissoras de rádio e televisão o princípio da “pre-
ferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”.
Basta assistir a um mínimo da programação das nossas emissoras de
televisão para ver o quanto estamos longe deste princípio.
Há, ainda, o princípio da “promoção da cultura... regional” (art. 221,
inciso II). O fenômeno das redes nacionais de televisão têm desres-
peitado este princípio. A programação veiculada é a da emissora ca-
beça da rede, com pouco espaço para a produção regional. O mesmo
ocorre com o “estímulo à produção independente”, previsto no mes-
mo inciso. Não há lei que regule o assunto. O Projeto de Lei nº 256,
de 1991, da deputada Jandira Feghali, que regula o assunto, foi, após
intensos debates e negociações, aprovado na Câmara dos Deputados
em 2003, mas, desde então se encontra pendente de apreciação no
Senado Federal.
Por fim, há a questão da alínea “a”, inciso II, art. 54 (Os deputados e
senadores não poderão: desde a posse: ser proprietários , controladores
ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com
pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada).
Há quem entenda que esta vedação impediria a propriedade de emis-
soras de radiodifusão por parte dos deputados e senadores no exercício
do mandato. O fato, porém, é que, até agora ao menos, o Supremo
Tribunal Federal não se pronunciou impedindo esta propriedade. Ve-
dar esta propriedade aos deputados e senadores é uma proposta do
Relatório Final de 2007, da Subcomissão de Radiodifusão da Comis-
são de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara
dos Deputados
A radiodifusão brasileira e a Constituição Federal de 1988
143

Finalmente, outro ponto a considerar é que, originalmente, a CF de


1988 (art. 222) estabelecia que a propriedade de empresa jornalística
e de radiodifusão sonora e de sons e imagens era propriedade de bra-
sileiros natos ou naturalizados há mais de 10 anos. Ou seja, só pessoas
físicas, e brasileiras, podiam ser sócias de empresas de comunicação.
Tal situação mudou com a Emenda Constitucional nº 36, de 2002,
que admitiu que pessoas jurídicas sejam sócias e, adicionalmente, per-
mitiu a participação de capital estrangeiro em até 30% do seu total.
A mudança por certo teve seus motivos, mas certamente não foi para
possibilitar uma maior democratização da radiodifusão brasileira.

4. Conclusão

A situação aqui descrita se aplica mais propriamente à televisão. As mi-


lhares de emissoras de rádio brasileiras formam, mesmo em cidades de
tamanho pequeno para médio, um variado leque, quer no que diz res-
peito a sua programação, quer quanto a sua propriedade. Não deixa de
ser preocupante, porém, o recente fenômeno da formação de cadeias de
emissoras de rádio com programação nacional, que para o público são
percebidas como uma só emissora. Embora com aspectos positivos, es-
tas cadeias podem causar uma concentração da audiência e desrespeitar
os princípios constitucionais aqui apontados.
De todo o exposto conclui-se que estamos realmente distantes de uma
efetiva democratização da radiodifusão brasileira. Reconheça-se que
ela tem mostrado, em muitos momentos, muito boa qualidade e tem
apresentado uma produção de conteúdo nacional de bom nível, o que
lhe tem garantido bom espaço no mercado nacional e até mesmo no
exterior. Poucos países no mundo conseguem ter uma TV que pro-
duza conteúdo nacional de bom nível, e isso precisa ser reconhecido
e preservado no país. Este fato, no entanto, não é nem pode ser con-
siderado impeditivo da obediência aos preceitos constitucionais que
disciplinam a radiodifusão brasileira.
Comunicação
145

O tratamento da censura
na Constituição de 1988: da
liberdade de expressão como
direito à liberdade vigiada
Bernardo Estellita Lins

1. A tradição jurídica brasileira: a censura tolerada

A proibição da censura na Constituição de 1988 é enfática. Adotando


uma redação que se aproxima da Primeira Emenda à Constituição dos
EUA, de 1791, representa uma revisão da tradição jurídica brasileira.
Esta sempre reconhecera, por vários instrumentos, o poder de super-
visão do Estado sobre o conteúdo do que se divulga em eventos pú-
blicos e nos meios de comunicação. As nossas constituições anteriores
preservaram espaços para uma atuação coercitiva, dando abrigo a ins-
trumentos de análise prévia, de cortes, de retificações e da proibição
de divulgar material artístico ou jornalístico. Ou até de condenação de
proprietários dessas obras ou de seus infelizes autores.
Costa (2006, p. 27-35) procura na nossa condição de nação colonizada
uma explicação para a convivência tolerante da população e das elites
intelectuais brasileiras com esses controles do Estado. No período co-
lonial a coroa portuguesa se utilizara da Inquisição como instrumento
coercitivo, restringira a circulação de impressos, proibira o funciona-
mento de oficinas gráficas na colônia e combatera a posse de livros
censurados. O rigor dos processos inquisitórios chegaria ao seu auge
no ciclo do ouro, no século 18, período em que já se encontravam em
decadência na Europa, criando um ambiente de delação e de uso abu-
sivo de informações pelas autoridades. Nas palavras da autora:
A censura... esteve presente por todo o período colonial, tendo
se estabelecido através da Igreja e do Estado... convertendo-se
numa prática cotidiana e ritualizada que aderiu à concepção
de exercício do poder. Burocratizou-se, ajudando a perpetuar o
desprezo das elites dirigentes para com a opinião pública, o me-
nosprezo pelo desenvolvimento do pensamento crítico e a dis-
146 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

criminação da população e de seus valores culturais, suas formas


de sociabilidade e seus discursos.1

Martins (2002, p. 160-161) reforça esse quadro desolador lembrando


que a censura da metrópole incidia também sobre usos e costumes da
população, promovendo um clima de obscurantismo e de dubiedade
de comportamento que se infiltraria em nossa mentalidade. Não de-
veria causar surpresa, em suma, essa forte tradição intervencionista,
diante da qual vivemos, desde 1988, uma espécie de primavera da li-
berdade de expressão.
Com a Independência, o ideário liberal que passou a predominar na
elite arejou os controles do Estado e da igreja católica sobre o indiví-
duo. A Constituição Política do Império, de 1824, fazia constar entre
os direitos individuais a liberdade de expressão, asseverando em seu
art. 179, inciso IV, que todos poderiam comunicar seus pensamentos,
por palavras escritos ou publicações, sem dependência de censura, res-
pondendo pelos abusos cometidos no exercício desse direito, nos casos
e pela forma que a lei determinasse. 2
Tais disposições não impediram que uma censura relativamente dura
fosse posta em prática. Embora houvesse pouca pressão sobre a dis-
tribuição de livros e sobre a imprensa, a ação fiscalizadora da polícia
do Império fazia-se sentir nas manifestações públicas e incluía, por
exemplo, o prévio exame de peças encenadas em teatros. Em determi-
nados períodos a censura foi particularmente inflexível. Entre 1834 e
1843, os espetáculos teatrais foram suspensos no Rio de Janeiro sob
justificativa de impedir as agitações federativas, republicanas e aboli-
cionistas (COSTA, 2006, p. 48-51).
Em 1843 é criado o Conservatório Dramático Brasileiro, que tinha
não apenas a função de estimular as artes, mas também de contro-
lar a sua divulgação, exercendo uma censura moral, política e estética.
Paralelamente, as práticas de censura e de fiscalização da polícia não
se extinguiram, criando assim uma ambigüidade de atuação, o que
levaria à dissolução do Conservatório de 1864 a 1871. Figurar entre
os censores era sinal de prestígio e nomes importantes da nossa lite-

1
Costa (2006, p. 34).
2
A fórmula seria reproduzida pela Constituição republicana de 1891 em seu art. 72,
§ 12. A Constituição de 1934, de curta vida, assegurava em seu art. 113, alínea 9,
a livre manifestação do pensamento, sem dependência de censura, “salvo quanto a
espetáculos e diversões publicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer,
nos casos e pela forma que a lei determinar”, fórmula que seria também adotada na
Constituição de 1946.
O tratamento da censura na Constituição de 1988:
da liberdade de expressão como direito à liberdade vigiada 147

ratura, como João Caetano, Machado de Assis e Quintino Bocaiúva


dedicaram-se a essa função (COSTA, 2006, p. 55).
A censura de polícia estendeu-se ao período republicano, com su-
cessivos episódios de proibição a peças de teatro, revistas e exibições
cinematográficas. A partir de 1921, várias disposições foram estabele-
cendo critérios seguidamente mais rigorosos para a ação restritiva do
Estado. O Decreto nº 4.269, de 17 de janeiro de 1921, tipificava, entre
outros, os crimes de incitar diretamente ou por escrito a prática de
dano ou depredação e de fazer a apologia de outros crimes ou o elogio
de seus autores. A Lei de Imprensa de 1923 (Decreto nº 4.743, de 31
de outubro de 1923) agravava os crimes contra a honra cometidos por
meio da imprensa3 (art. 1º), tipificava crimes de publicação de segredo
de Estado e de ofensa a nação estrangeira (arts. 2º e 4º), estabelecia o
direito de resposta (arts. 16 e 17), determinava a matrícula de oficinas
gráficas (art. 20), e regulamentava o processo penal relativo a crime de
imprensa (arts. 24 a 30).
A censura ganharia maior rigor a partir da Revolução de 30, associada
a outras restrições que passariam a fazer parte da doutrina jurídica e
da praxis política brasileira. O Decreto nº 24.776, de 14 de julho de
1934, inovava ao limitar a propriedade de jornais e emissoras de rádio
a brasileiros natos (art. 5º, § 2º), mas seguia em linhas gerais o texto
de 1923. O endurecimento do regime do Estado Novo resultaria, po-
rém, na sujeição da imprensa e da radiodifusão ao Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP), estabelecida pelo Decreto nº 1.949,
de 30 de dezembro de 1939. (MATOS, 2007, p. 53-55, MIRANDA,
1994, p. 45-47)
Pela Carta de 1937, decretada por Getúlio Vargas, a lei poderia pres-
crever “com o fim de garantir a paz, a ordem e a segurança pública”, a
censura prévia da imprensa, do teatro, do cinematógrafo e da radiodi-
fusão, facultando à autoridade competente proibir a circulação, a difu-
são ou a representação, bem como determinar medidas para impedir
as manifestações contrárias à moralidade pública e aos bons costumes
(art. 122, 15). E o DIP não deixou por menos.
As práticas do DIP não se limitavam a registrar os órgãos de im-
prensa, exercer uma rígida censura prévia e punir os responsáveis por
publicações prejudiciais ao regime. Incluía também a distribuição de
verbas a profissionais e veículos de imprensa, com o intuito de “domi-
nar a opinião pública no âmbito geral das idéias”. Donos de jornais

3
Calúnia e injúria, previstos nos arts. 315 e 317 do Código Penal de 1890 (Decreto
nº 847, de 11/10/1890).
148 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

e jornalistas que colaborassem com o DIP enriqueciam facilmente.


Aqueles que resistissem a servir à ditadura eram perseguidos. Suas
empresas sofriam intervenção ou eram simplesmente desapropriadas
ou fechadas. (MATOS, 2007, p. 56).
Com a queda de Vargas, o DIP perdeu legitimidade e foi extinto,
sendo substituído em janeiro de 1946 por um serviço de censura de
diversões públicas, ligado à polícia federal. A Constituição de 1946,
promulgada em setembro daquele ano, assegurava, no art. 141, § 5º,
a liberdade de expressão, independente de censura, “salvo quanto a
espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, nos casos e na
forma que a lei preceituar, pelos abusos que cometer”.
O período do pós-guerra foi de relativa liberdade de expressão. O cli-
ma de confronto entre o alinhamento norte-americano e o ideário co-
munista deu, no entanto, a tônica de algumas atitudes radicais, como
a invasão e quebradeira de jornais e o recolhimento de exemplares.
Mesmo durante o governo de Juscelino Kubitscheck, que passou à
história como um dos mais liberais do período, houve decisões casu-
ísticas, como a conhecida “portaria rolha”, que proibia Carlos Lacerda
de dar entrevistas no rádio e na televisão. E na transição entre a re-
núncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart, exerceu-se forte
censura por algumas semanas, com a ocupação de jornais e a prisão de
jornalistas (MATOS, 2007, p. 58-59).
É com o golpe militar de 1964, porém, que a censura política volta à
ordem do dia. A Constituição de 1967 previa, em seu art. 8º, inciso
VII, a censura de diversões públicas como uma atividade da polícia
federal. A Lei de Imprensa do regime, Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro
de 1967, estabelecia a apreensão de impressos que contivessem pro-
paganda de guerra, ofensas à moral e aos bons costumes, expressas-
sem preconceitos raciais ou incitassem à subversão da ordem política
e social (art. 61). Publicações estrangeiras estavam igualmente sujeitas
a apreensão e poderiam ser proibidas de circular no país (art. 60). O
Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967 criminalizava a divulga-
ção de “notícias falsas, tendenciosas ou deturpadas, de modo a por em
perigo o bom nome, a autoridade o crédito ou o prestígio do Brasil”
(art. 14), a ofensa, por palavras ou escrito, a chefe de governo de nação
estrangeira (art. 19) e a ofensa física ou moral a autoridade (art. 29).
A Lei nº 5.536, de 21 de novembro de 1968, dispunha, enfim, sobre
a censura de obras teatrais e cinematográficas e criava o Conselho
Superior de Censura.
O tratamento da censura na Constituição de 1988:
da liberdade de expressão como direito à liberdade vigiada 149

A cereja do bolo seria dada pelo Ato Institucional nº 5, de 13 de de-


zembro de 1968, que em seu art. 10 suspendia a garantia de habeas
corpus no caso de crimes políticos, contra a segurança nacional, a or-
dem econômica e social e a economia popular. Estava completo, as-
sim, o arcabouço institucional mais bem estruturado que poderíamos
produzir em nosso País para coibir a liberdade de expressão. A Lei
de Segurança Nacional (Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de
1969), que endurecia as penas previstas no decreto-lei anterior e tipi-
ficava a “propaganda subversiva” pelos meios de comunicação social,
livros, teatro ou por simples manifestação de solidariedade a tais atos,
e o Decreto-Lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970, que generalizava
a aplicação da censura prévia, eram apenas expressões mais claras do
clima de intolerância que se instalara.
Seguiram-se anos negros para a imprensa brasileira. Jornais e revistas
censurados de ponta a ponta, jornalistas presos e torturados, obras de
arte retalhadas ou proibidas, artistas exilados ou desaparecidos, inte-
lectuais acuados até o silêncio. A inexpugnável parede protetora do
regime tornava inútil qualquer movimento de resistência, aquilo que
Antonio Callado descreve com amarga ironia:
Pode-se até desfrutar da discutível satisfação de ser preso, de ir
para a cadeia e ser julgado por um tribunal militar sob a Lei de
Segurança Nacional. Eu passei por tudo isso. Temporariamente,
você se sente um pouco melhor, como se tivesse pago um impos-
to de renda moral a algum futuro governo de sua escolha, que
finalmente tornará o país respeitador das leis, decente e livre.
Mas a satisfação dura pouco, acima de tudo porque você sabe
que combatentes jovens, estudantes ou trabalhadores, impacien-
tes demais para esperar por um momento melhor para mudar
as coisas, estão sendo o tempo todo presos e torturados, presos
e assassinados.4

Mesmo após o fim da censura política à imprensa escrita, ocorrida


no início dos anos oitenta como resultado do processo de abertura
iniciado por Ernesto Geisel, a postura dos censores com os produtores
culturais e de programas de rádio e televisão manteve um perfil au-
tocrático. Episódios ilustrativos dessa distensão lenta e não isenta de
confrontos foram a tentativa de censura do filme Pra frente Brasil em
1982, que resultou no afastamento da diretora da Censura Federal,
que ocultara pareceres favoráveis à liberação, o corte de dois episódios
do filme Contos eróticos em 1984 e a interdição do filme francês Je vous

4
Callado (2006: 73)..
150 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

salue Marie, em 1985, por pressões da igreja católica, já no governo de


José Sarney (SIMÕES, 2002).

2. A Constituição de 1988: a censura rejeitada

A Constituição de 1988 inovou o tratamento dado à imprensa e às


obras artísticas ao adotar um comando que, de modo inédito na tradi-
ção jurídica brasileira, proibiu enfaticamente a censura:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e
a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofre-
rão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir em-
baraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer
veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º,
IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ide-
ológica e artística.
...................................................................................................
...................................................................................................
§ 6º A publicação de veículo impresso de comunicação indepen-
de de licença de autoridade.

Por outro lado, abriu a possibilidade de estabelecer controles de natu-


reza informacional sobre espetáculos e programas de rádio e televisão,
seja divulgando ex-ante a natureza destes, seja restringindo ex-post sua
circulação, ao prever, no próprio art. 220:
Art. 220. ....................................................................................
...................................................................................................
§ 3º Compete à lei federal:
I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao poder
público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que
não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação
se mostre inadequada;
II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família
a possibilidade de se defenderem de programas ou programações
de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem
como da propaganda de produtos, práticas e serviços que pos-
sam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
...................................................................................................

Admitiu-se, em suma, a criação de um sistema de classificação in-


dicativa cujo intuito seria o de informar previamente a respeito do
conteúdo de cada espetáculo ou programa.
O tratamento da censura na Constituição de 1988:
da liberdade de expressão como direito à liberdade vigiada 151

Tal procedimento tem sido adotado como alternativa à censura nas


democracias modernas. Em linhas gerais tem sido apontado como um
mecanismo pelo qual se oferecem informações preliminares ao espec-
tador a respeito das características gerais do programa a ser veiculado,
tais como a faixa etária a que se destina ou a existência de cenas com
conteúdo agressivo, de modo a que este possa estabelecer uma adequa-
ção entre suas preferências e a decisão de assistir ao programa ou de
permitir que outros o assistam. Nas palavras de Méon (2005):
Esse controle não caracteriza nem uma permanência histórica
(o ‘mais do mesmo’) nem um desaparecimento inelutável [da
censura], mas caracteriza-se por uma transformação das suas
modalidades. No cerne, a descrição do conteúdo toma o lugar
da sua proscrição. O mecanismo básico desse controle é a in-
formação ao espectador, fornecida pelos difusores, em lugar da
punição do produtor. Quando é associado à autoclassificação, ele
internaliza as restrições e tende a tornar menos visível o exercício
da autoridade. Essas modalidades mais ‘suaves’ não significam,
porém, que haja um desaparecimento do controle: aconselhar e
descrever são também formas de prescrever e a difusão de certos
conteúdos é efetivamente bloqueada por esse dispositivo. Já que
a democracia desqualifica a censura, a intervenção pública em
matéria de conteúdo é viabilizada por uma feliz estratégia de
diferenciação em relação a esta.5

O rationale da classificação indicativa baseia-se no fato de que a audi-


ência aceita ou rejeita os programas durante o processo de assisti-los.
Ela não sabe a priori se um certo programa irá satisfazê-la, mas realiza
essa descoberta ao ser exposta a este. Por tal razão, as decisões da au-
diência são afetadas por sinais e informações indiretos, tais como o or-
çamento do programa, a posição da grade em que é inserido, o uso de
artistas e técnicos de renome ou o perfil do produtor. A classificação
indicativa, ao complementar esse conjunto de sinais, tem o potencial
de afetar a decisão do espectador.
Há dois procedimentos de classificação indicativa usualmente reco-
nhecidos. Um destes é a classificação indicativa “pura”, limitada apenas
à informação sobre a natureza do conteúdo veiculado e a faixa etária
a que se destina. O outro é um procedimento “misto” ou híbrido, que
associa faixas de horário para a veiculação de programas ou restrições
de acesso a espetáculos à sua classificação. Em geral a classificação
indicativa pura tem uma eficácia limitada, o que estimula o Estado a
migrar para um sistema misto.

5
MÉON (2005, p. 151). Tradução livre.
152 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Essa migração efetivamente ocorreu no Brasil. O comando constitu-


cional consagrou de início um modelo puro. No entanto, menos de
dois anos depois, a lei de proteção à criança e ao adolescente, Lei
nº 8.069, de 13 de julho de 1990, lançou a semente do que viria a
tornar-se um sistema híbrido. Os artigos 74 e 76 da lei associaram a
classificação indicativa a restrições de acesso a locais de espetáculos e
ao horário de exibição de programas de televisão, abrindo espaço para
que o Ministério da Justiça estabelecesse, mediante a Portaria nº 773,
de 19 de outubro do mesmo ano, critérios de classificação e restrições
de horários de exibição de programas, de acordo com a faixa etária a
que se destinassem6.
Nos anos seguintes, confrontado com dificuldades de pessoal, o Minis-
tério não logrou implantar um sistema eficaz de controle da programa-
ção e algumas regras de convivência entre as emissoras de radiodifusão
e o governo se consolidaram. Foi admitida uma prática de auto-classi-
ficação, seguida por uma verificação, realizada por amostragem (RO-
MÃO, 2006, p. 19-23; SILVA e PAULINO, 2006, p. 231-232).
A partir de 2004, porém, o Ministério realizou um esforço para re-
equipar-se, para efetivamente acompanhar e classificar a programa-
ção e para estabelecer regras objetivas de análise de conteúdo. Esse
processo culminou com a proposta da Portaria nº 264, de 12 de feve-
reiro de 2007, que provocou, desde sua edição, conflitos entre emis-
soras e o governo, em especial por associar os horários de exibição à
hora local de cada município, em lugar da hora de Brasília, como era
adotado até então7.

3. O “efeito sobre terceiros”: a censura desejada

A ação pública, voltada a limitar a divulgação de conteúdos indese-


jáveis ou inadequados, encontra eco na sociedade. Embora as dis-
posições abranjam as diversas formas de diversão e de comunicação
de massa, as preocupações do governo, do público e de especialistas

6
O dispositivo seria modificado pela primeira vez após dez anos, mediante a Porta-
ria nº 796, de 8 de setembro de 2000.
7
Isto resulta em um deslocamento de até duas horas entre a programação veiculada
pela cabeça de rede e a reproduzida em cidades afastadas, o que enseja a possi-
bilidade de arbitragem entre a emissão local e o sinal de satélite, prejudicando a
negociação de inserções publicitárias na emissora afiliada. O Ministério da Justi-
ça contornou o impasse mediante a postergação do dispositivo por seis meses e a
adoção da auto-classificação pela Portaria nº 1.220, de 11 de julho de 2007, mas a
disposição persiste.
O tratamento da censura na Constituição de 1988:
da liberdade de expressão como direito à liberdade vigiada 153

têm-se voltado sobretudo para a televisão, por ser um veículo de ex-


tensa penetração no Brasil. De fato, cerca de 97% dos lares estão sob a
cobertura de alguma rede de televisão8. E, na maior parte dos países, é
o veículo mais consumido, seja por livre recepção ou por assinatura.
Na televisão aberta, os programas estão livremente disponíveis ao pú-
blico e, ressalvados os países em que algum tipo de controle esteja
implantado nos aparelhos (o chamado v-chip), não há como bloquear
o conteúdo da programação.
Já os serviços por assinatura codificam o sinal e oferecem mecanismos
de seleção. A própria oferta de pacotes de programação premium ser-
ve para ajustar o conteúdo às necessidades de cada consumidor. E os
controles de seleção permitem em geral que uma proteção por senha
seja aplicada pelos pais ou responsáveis.
Esses recursos são desejados por muitos pais, preocupados com conte-
údo que não se coadune com suas crenças pessoais ou religiosas acer-
ca do tipo de informação que deve chegar às crianças. Também há
uma preocupação mais geral com os efeitos do consumo de violência
e pornografia entre os jovens. Não há evidências conclusivas acerca da
relevância e do alcance desses efeitos, mas alguns trabalhos sugerem
que esse tipo de relação pode de fato vir a ocorrer. Remetemos o leitor
interessado em uma revisão dessa literatura a Morrison et al, (2006),
Somers e Tynan (2006) e Taylor (2005).
Vários autores, entre estes Gunther and Hwa (1996), Hoffner et al.
(1999), e Chia et al. (2004), sugerem que o apoio à censura estaria
associado ao efeito da programação sobre terceiros (third-person effect).
Este é um fenômeno documentado, pelo qual os indivíduos têm uma
percepção de que o efeito negativo de conteúdo inadequado é muito
maior sobre os outros do que sobre si mesmos, e agem de acordo com
essa percepção. Achamos que essas informações, que pessoalmente
não nos afetam, irão produzir resultados devastadores nos outros.
Existe, em suma, uma sensação externada por setores da sociedade
de que nem toda manifestação cultural produzida deve ser vista por
todos. Faz mal a alguns (aos “outros”). Essa opinião parece ser com-
partilhada por um número surpreendentemente elevado de pessoas, o
que resulta em uma pressão pela volta de algum tipo de controle mais
efetivo, ainda que exercido dentro dos limites constitucionais.

8
Dados do Ibope, em: Anuário de Mídia 2007. Volume “Pesquisas”. São Paulo
(SP): Meio e Mensagem. p. 66.
154 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Anedoticamente, diversos países adotam políticas de controle ou de


limites à programação da televisão. Os instrumentos variam conforme
os valores culturais, morais e religiosos, o marco jurídico e as prefe-
rências do público. Autores como Jongen (1994) e Hoffman-Riem
(1996) desenvolveram classificações desses instrumentos, que variam
da censura propriamente dita a vários graus de classificação da progra-
mação e de restrições à veiculação.
Essa demanda de setores da sociedade enfrenta, no entanto, forte re-
sistência da indústria cultural. No caso da televisão, por exemplo, o en-
durecimento do controle sobre a programação pode ser uma fonte de
riscos para a emissora e para o anunciante. Merece ser lembrado, nesse
sentido, que os radiodifusores dependem das receitas de publicidade
para sobreviver e estas são proporcionais à audiência que a programa-
ção seja capaz de capturar. As emissoras operam, em suma, em um
mercado bilateral (Armstrong, 2002), pois oferecem um produto ao
público, o programa, para formar outro produto, a audiência, e reven-
dê-lo ao anunciante. O verdadeiro negócio da mídia, portanto, não é
vender conteúdo, mas vender audiência (Owen e Wildman, 1992: 3).
Mais ainda, o custeio da produção do conteúdo é realizado a partir da
venda prévia de quotas dos programas às agências, aos próprios anun-
ciantes ou, em alguns países, aos chamados birôs de mídia. É, portan-
to, um investimento em confiança feito pelo anunciante, diretamente
ou por intermediação, junto à emissora.
A oferta de conteúdo agressivo (violência, erotismo, pornografia) é
uma estratégia eficaz de captura e retenção de audiência. E examinar
o problema de quanto conteúdo agressivo pode ser socialmente efi-
ciente não é facilmente justificável. Em geral, aborda-se o tema com
cautela, em vista dos preconceitos e das legítimas preocupações que
envolvem essa discussão. Mas, há que se admitir, um certo número
de pessoas é reconhecidamente atraído pela exposição de violência,
tensão, erotismo ou até pornografia. Sua oferta provê satisfação a esses
consumidores e um correspondente bem-estar agregado a esse grupo,
elevando os índices de audiência e, conseqüentemente, as margens de
lucro da emissora.
O reposicionamento do programa na grade ou a censura de parte do
conteúdo impedem que o anunciante alcance a meta de atração de
audiência (target) desejada e reduzem a eficiência da inserção publici-
tária e do merchandising. Implica, portanto, em uma perda que será de
algum modo compartilhada pelo anunciante e o veículo. Explica-se,
assim, o permanente estado de alerta de empresas de mídia e agências
O tratamento da censura na Constituição de 1988:
da liberdade de expressão como direito à liberdade vigiada 155

de publicidade diante de qualquer tentativa de tornar mais rigorosos


os instrumentos de regulação de conteúdo audiovisual.
A crescente atuação do governo brasileiro na imposição da classifica-
ção indicativa e na busca de maior rigor em relação à publicidade co-
mercial tem provocado reações enfáticas dos representantes das emis-
soras de televisão. O reforço de práticas de classificação indicativa e
sua combinação com outras restrições são combatidas pela mídia, seja
por medidas administrativas e judiciais, seja na forma de campanhas
voltadas a mobilizar os profissionais do setor, a pressionar o público
e a enfraquecer o poder de pressão de entidades e movimentos que
apoiam as limitações à programação.
No entanto, as reações mais contundentes voltam-se a dispositivos
pontuais, que resultam em perdas mais claramente percebidas. No
caso dos procedimentos do Ministério da Justiça discutidos na seção
anterior, a adoção do horário de Brasília como referência para a defi-
nição do horário de liberação dos programas era um aspecto crucial da
negociação empreendida entre o órgão público e as emissoras. De fato,
a recepção do sinal aberto por satélite é uma prática relativamente di-
fundida em cidades de médio porte, o que faz com que os espectadores
assistam o programa emitido diretamente pela estação que encabeça a
rede. E essa programação está coordenada com o horário de Brasília.
Assim, em regiões sujeitas a outros fusos horários, um deslocamento
dos programas para atender às restrições da classificação indicativa se-
guindo o horário local iria retardar em uma ou duas horas toda a pro-
gramação. Além do custo operacional para a rede, esse deslocamen-
to induziria os espectadores que dispusessem de antena parabólica a
assistir ao sinal emitido a partir da cabeça da rede, sem as inserções
publicitárias locais, o que prejudicaria a receita da emissora local afi-
liada. A engenharia de contratos que mantém coesa a rede de televisão
ficaria prejudicada.
Outro ponto que vem gerando reações enfáticas é o endurecimento
das regras para veiculação de propaganda comercial de produtos po-
tencialmente danosos à saúde. Tal disposição origina-se também do
art. 220 da Constituição de 1988:
Art. 220. .....................................................................................
...................................................................................................
§ 4º A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotó-
xicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos
termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que
necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
...................................................................................................
156 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A partir da aprovação da regulamentação do dispositivo, pela Lei nº


9.294, de 15 de julho de 1996 (Lei Murad), os veículos de mídia per-
deram gradualmente espaço para a publicidade desses produtos, o que
representou a supressão de importantes receitas. A redação original
era relativamente benevolente com a mídia, admitindo uma restri-
ção moderada a essas peças publicitárias, regulamentando os horários
para sua veiculação e exigindo a inserção de mensagem relativa aos
danos à saúde decorrentes do consumo de tais produtos. No entanto,
importantes adendos à lei, patrocinados a partir de 2000 pelo Poder
Executivo, proibiram quase por completo a propaganda de tabaco na
mídia e limitaram sua divulgação por outros meios9.
Uma das poucas e importantes flexibilidades ainda existente é a ad-
missão da propaganda de bebidas alcoólicas leves, tais como cerveja e
estimulantes. Embora os anunciantes busquem ajustar a linguagem das
peças publicitárias, enfatizando o consumo responsável e amenizando a
associação com os 3S (saúde, sexo e socialização), persiste no momento
o interesse do governo em vedar por completo essa publicidade.

4. Conclusão: a censura bloqueada

O retrato que se obtém da dinâmica do processo que está em curso


é o de um lento e persistente retorno a modalidades de censura mais
claras. Nossos vinte anos de completa liberdade de expressão parecem
desembocar em um suave outono, em que mecanismos de discreta
vigilância se consolidam, seja pela crescente eficácia do aparato estatal
de classificação indicativa, seja pela própria auto-censura de artistas e
programadores, contaminados pelo ideário do politicamente correto.
E a censura volta sob disfarces, dos quais a classificação indicativa é
o mais evidente. São disposições que, com o tempo, vão sendo asso-
ciadas a um rol de imposições burocráticas que cerceiam a circulação
dos programas e das obras culturais. Em vez de, por exemplo, apenas
informar a idade a que um filme se destina, a classificação ficará as-
sociada a restrições de acesso ao espetáculo, ao horário de veiculação,
à determinação das mídias que poderão exibir a obra, e por aí vai. A
cada nova lei, a cada portaria ministerial, a cada decisão judicial, aper-
ta-se o torniquete.
O risco desse processo é a migração de uma censura de costumes para
uma censura política. Mecanismos são criados no amparo da lei e a

9
Lei nº 10.167, de 2000, MP nº 2.190-34, de 2000 e Lei nº 10.702, de 2003.
O tratamento da censura na Constituição de 1988:
da liberdade de expressão como direito à liberdade vigiada 157

burocracia os refina, viabilizando a sua utilização de novos modos, não


previstos pelo legislador. O que nasce em primeiro momento como
uma demanda coletiva, com o tempo é institucionalizado, tornando-
se, no discurso, um cacoete do debate político, desideologizado, es-
grimido por todas as partes. E passa a ser usado, na prática, como
uma ferramenta de coerção, de preservação do poder. Apropriado por
quem está “lá em cima”, independente de partido ou de convicção.
A rigidez do comando constitucional do caput e do § 1º do art. 220
da Constituição de 1988 é, nesse sentido, uma proteção contra al-
guns riscos que o futuro nos reserva. Não impede que se opere sobre
a opinião pública, que se silenciem os indesejáveis, que se manipule
a informação, que se encubram fatos indigestos ou se inventem teses
fantasiosas. Mas dificulta, quiçá até impossibilita, um retorno ao pas-
sado que esteja recoberto com o manto da legalidade.
Nada mais oportuno para uma Constituição que foi apelidada de “Ci-
dadã” por Ulysses Guimarães. A censura é uma pústula que corrói a
democracia, que constrange a liberdade de informação, que reprime a
circulação das idéias. Mesmo sob disfarce, mesmo com limites, é um
pecado original da sociedade, lastreado na crença de que “os outros”,
indistintamente, são mais frágeis do que “nós” e precisam ser tutelados
sem reservas. Não é verdade. Somos todos iguais perante a lei e pe-
rante a coletividade. Se não pudermos responder por nós mesmos, não
merecemos a liberdade.

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Concessão de serviços públicos
161

Concessões de serviços
públicos nas Constituições
brasileiras: a busca do
equilíbrio entre ônus e bônus1
Eduardo Fernandez Silva

1. Introdução1

A Constituição Federal é clara, a doutrina e a jurisprudência são unâ-


nimes, e Cartas Magnas anteriores já previam: empresas concessioná-
rias, permissionárias ou autorizadas a prestar serviços públicos têm di-
reito à manutenção do equilíbrio econômico e financeiro do contrato
(EEFC) e à sua restauração quando ocorrerem desequilíbrios decor-
rentes de certas situações. São estas, basicamente, o “fato do príncipe”,
isto é, alterações legais que modifiquem as condições de prestação do
serviço, a ocorrência de fatos imprevisíveis ou, quando previsíveis, de
conseqüências incalculáveis com antecedência e, ainda, fatos de força
maior, como calamidades, guerras e outras. A definição mais freqüente
do EEFC, conforme diversos doutrinadores e também como se de-
preende da jurisprudência, é a manutenção da “equação financeira do
contrato” ou da exata relação entre benefícios e obrigações dele decor-
rentes, relação esta definida na proposta vencedora da licitação para a
concessão da exploração do serviço (ver Bandeira de Mello (2004) e
Meirelles (2005)).
Dada a clareza com que a Constituição Federal e a jurisprudência
asseguram o direito ao reequilíbrio do contrato, não se pode questio-
ná-lo juridicamente. Em termos econômicos, porém, pode-se mostrar
que a prevalência do conceito introduz diversas ineficiências na gestão
dos serviços públicos, indutoras de redução do bem-estar da comu-
nidade. Explicitar tais problemas e sugerir caminhos a trilhar para
reduzi-los é o objetivo principal deste texto.

1
Agradeço à colega Stephania Maria de Souza o valioso apoio na pesquisa biblio-
gráfica, das decisões do TCU e das leis.
162 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Desde logo, é fundamental deixar claro que, apesar das deficiências da


noção de EEFC, é fundamental que se dê ao empresário garantias de
que o Poder concedente não agirá de forma oportunista, em seu desfa-
vor, nem o obrigará a continuar a prestar o serviço por todo o prazo do
contrato, usualmente longo, caso as condições operacionais se tornem
onerosas. Sem tais garantias os riscos se tornariam muito elevados e
poucos se arriscariam a apresentar propostas para a obtenção de uma
concessão para a exploração de serviço público. Afinal, ao celebrar o
contrato de concessão o empresário privado se compromete por prazo
longo e perde o direito, garantido a todos os demais empreendedores,
de interromper a prestação do serviço caso não consiga torná-la lucra-
tiva por meio das medidas gerenciais ao seu alcance.
As questões aqui levantadas dizem respeito à impossibilidade práti-
ca, desde o ponto de vista econômico, da manutenção da exata re-
lação entre benefícios e encargos durante a vigência dos contratos.
Tratam, também, da inconveniência, sempre desde a perspectiva da
Economia, de se procurar manter tais condições. Apontam, ademais,
que a evolução dos debates sobre a regulação econômica tem mos-
trado, exatamente, a necessidade de, ao mesmo tempo, oferecer aos
potenciais concessionários garantias firmes e críveis contra eventual
expropriação ou onerosidade, por um lado, e por outro lado introdu-
zir, nos contratos, regras que gerem incentivos ao constante aumento
da eficiência econômica e à repartição dos ganhos de eficiência com
os consumidores. Esse último mecanismo, por sinal, tende a ocorrer,
ainda que por outros meios e com intensidade variável, nos mercados
não monopolizados.
Parte do problema decorre da combinação resultante da certeza ju-
rídica, com relação ao direito ao reequilíbrio, com a incerteza econô-
mica, resultante da indefinição com relação a qual o ponto em que se
dá tal reequilíbrio2. Dessa combinação surgem oportunidades, as mais
diversas, de se utilizar o instrumento da concessão – e suas alternativas
menos formais, quais sejam a permissão e a autorização3 – com finali-
dades diversas do “interesse público”, qualquer que seja a definição de
tal expressão. Na realidade, surgem oportunidades de se direcionar re-
cursos públicos para fins privados. Já era assim ao tempo em que ainda
não havia “concessões”, mas sim “delegações”, “privilégios”, “outorgas”
e outras denominações.

2
Empresário algum sabe, mesmo em meados do ano, qual o nível de preços que lhe
trará, ao final do exercício, um lucro de exatos X%.
3
No presente trabalho, os termos concessão, permissão e autorização são usados
como sinônimos.
Concessões de serviços públicos nas Constituições brasileiras: a busca do equilíbrio entre ônus e bônus
163

Assim, explora-se, neste texto, a necessidade de que as indispensáveis


garantias sejam associadas a mecanismos de incentivo ao ganho de
eficiência – que, na prática, são incompatíveis com a regra do EEFC –
e que sejam associados, também, a práticas de governança corporativa
e transparência de informações hoje ainda não cobradas no Brasil.
Na parte 2, após esta introdução, este texto ilustra, com alguns exem-
plos históricos, as conclusões da moderna teoria e o recorrente proces-
so de revisão de ônus e bônus associado à prestação de serviços públi-
cos, e a mutante natureza daquilo que é considerado “serviço público”.
Na terceira parte, identifica os princípios regentes do instituto da
concessão, nas diversas Constituições Federais, desde 1824. Na quarta
seção, analisa-se a evolução das propostas apresentadas na Assembléia
Nacional Constituinte de 1987/88, relativas ao regime de contratação
de obras e serviços pelo Poder Público. Na quinta seção, as dificul-
dades apontadas na teoria são evidenciadas, com base em análise dos
acórdãos e decisões do Tribunal de Contas da União, sobre o tema do
EEFC, exarados após o ano 2000. Na seção seguinte, são apresentadas
algumas idéias com relação aos caminhos a trilhar, envolvendo inclu-
sive mudanças legais, em termos de governança corporativa, no sen-
tido de se minorar as dificuldades apontadas na supervisão da gestão
dos serviços públicos no Brasil. Ao final, as conclusões.

2. Algumas lições da história e da teoria

As capitanias hereditárias foram as primeiras “concessões” a particula-


res para a execução de serviços públicos no Brasil. No caso, tratava-se
de prestar o “serviço” ou arcar com os ônus de garantir a posse da terra,
desenvolvê-la, fundar vilas e, ainda, evangelizar os pagãos. Era ainda
o início da expansão do império cristão salvacionista, de que nos fala
Darcy Ribeiro. Em contrapartida, o donatário recebia os bônus da
hereditariedade, o direito de interpretar a lei, de recolher as rendas
possíveis, e o direito à redízima (1/10) das rendas da Metrópole e à
vintena (5%) da comercialização do pau-brasil e do pescado. À época,
é bom que se lembre, prestar “serviços públicos” significava, antes de
tudo, prestar serviços ao rei.
Como se sabe, apesar de todos os supostos bônus recebidos pelos do-
natários, estes não conseguiram superar os ônus, muitos deles impre-
vistos, e quase todos os empreendimentos fracassaram. Também não
se exigiu, dos donatários, prova de “capacidade técnica” para realizar o
empreendimento: bastaram as prévias ligações com a Corte.
164 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

As muitas sesmarias concedidas ao longo da nossa história também


podem se enquadrar na categoria de “concessões”. Receber a concessão
de uma sesmaria não significava, em termos legais, apenas de “ganhar
terras”. Junto a esse bônus, o sesmeiro recebia também obrigações,
dentre elas a de cultivar, povoar, evangelizar, etc. Se não o fizesse, fi-
cava sujeito ao comisso, ou seja, à perda da própria sesmaria. A história
mostra que muitas das obrigações se tornaram letra morta com o pas-
sar dos anos. Este fato apenas ilustra a realidade de que havia, como
continua a existir, diversas maneiras de o concessionário contornar
as obrigações inerentes aos “contratos administrativos de concessão”
de forma a alterar sua equação financeira, visando a ampliar bônus e
reduzir ônus.
A teoria chama esta prática de “oportunista”, e a História mostra
que tanto o órgão concedente quanto o concessionário tendem a agir
como tal, se as circunstâncias lhes parecerem favoráveis. O “oportunis-
mo”, no caso, tem o sentido de se aproveitar de determinada situação
para extrair rendas adicionais da outra parte, ainda que em desacordo
com o “contrato”. O poder concedente, por vezes, busca se aproveitar
de seu poder de Estado e altera as condições da operação, por exem-
plo, postergando reajustes de preços além dos momentos previstos no
contrato, como forma de beneficiar eleitores, em véspera de eleição. O
oportunismo do órgão concedente, de tão freqüente e conhecido, ge-
rou a necessidade do oferecimento de garantias firmes e críveis contra
tal prática, conhecida na literatura como “risco regulatório”. Gerou,
também, as chamadas “cláusulas exorbitantes”, pelas quais, ainda que
não escritas nos contratos, os poderes públicos podem alterar condi-
ções, mediante a alegação de que assim o exige o “interesse público”.
O particular, por sua vez, ciente das dificuldades e do desgaste político
do poder concedente caso a prestação do serviço seja interrompida, ou
na hipótese de ser necessária nova licitação, com freqüência deixa de
cumprir parte de suas obrigações, assim reduzindo seu custo e elevan-
do a rentabilidade do contrato.
Antecipando a discussão da 2ª seção, registre-se desde já que a Cons-
tituição do Império, de 1824, nada fala sobre a questão das conces-
sões. Também se cala a Constituição Republicana de 1891. Os tempos
eram outros, as preocupações também. Existia, porém, como sempre
existiu, a necessidade de se executar diversos serviços coletivos, hoje
chamados de “serviços públicos”. Então, o imperador mandava fazer,
com recursos do Tesouro, ou concedia sua execução a particulares, da
mesma maneira como seu pai e antecessores haviam feito.
Concessões de serviços públicos nas Constituições brasileiras: a busca do equilíbrio entre ônus e bônus
165

Dentre os “serviços públicos” realizados por particulares, à época, des-


taca-se a arrecadação de impostos, prática hoje não mais aceita. A
segurança pública era responsabilidade governamental, embora fos-
sem permitidas milícias privadas, até já bem avançado o século XX. O
abastecimento de água, nas poucas e pequenas áreas urbanas, era res-
ponsabilidade compartilhada: o governo construía alguns chafarizes e
os dutos ou aquedutos que os abasteciam, e os escravos a eles se diri-
giam para pegar água e levá-la às residências de seus senhores, às re-
partições públicas, ao comércio, aos bancos, portos e demais atividades
então existentes. Ainda era possível, também, dirigir-se a um rio pró-
ximo, ou cavar uma cisterna, para obter água; ambas, pois, atividades
privadas. O esgotamento sanitário era basicamente responsabilidade
privada, cada qual agia como lhe aprouvesse: pode-se mesmo dizer
que a atividade não existia, enquanto “serviço público”. Não existia o
transporte coletivo urbano e nem se sentia necessidade dele. Também
não havia “saúde pública”, se bem que o Estado, ainda que indireta-
mente, mediante transferências à Igreja, ajudasse no custeio de alguns
hospitais. Predominava o mundo rural, disperso, com baixa densidade
demográfica. Nas cidades, porém, sedes do poder político, houve di-
ferentes formas de participação do poder público no suprimento dos
vários “serviços públicos”, que sequer eram entendidos como tal. Isso,
apesar de a Constituição nada determinar sobre como se deveria dar
a “concessão”.
Apesar dessa ausência, existia a atribuição a particulares, mediante de-
terminada combinação de ônus e bônus, da execução de certas tarefas
de Estado, ou de certos serviços públicos, dentre eles a implantação ou
expansão da infra-estrutura. Falava-se, então, da “concessão de privilé-
gios”. Exemplo disto é o Decreto nº 24, de 17 de setembro de 1835, me-
diante o qual, em nome do imperador, o regente ficava autorizado a:
Conceder privilégio exclusivo por tempo de 40 anos à Compa-
nhia denominada de Rio Doce, ou a outra Companhia na falta
desta, para navegar por meio de barcos a vapor, ou de outros
superiores, não só aquele rio e seus confluentes, como também
diretamente entre o mesmo rio e as Capitais do Império e da
Bahia, mediante condições.4

Dentre os privilégios recebidos, a Companhia obteve o direito de co-


brar taxas de outros que navegassem o dito “rio e seus confluentes” –
“não extensivas às canoas de pescaria e às de menos de 100 arrobas” –,
26 sesmarias “de légua em quadro cada uma”, além de outras terras,

4
Coleção de Leis, Câmara dos Deputados. A grafia das palavras foi atualizada.
166 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

isenção de impostos de importação de barcos e máquinas, e outros


mais. Suas duas obrigações principais seriam (arts. 10 e 11):
Dar princípio à navegação por vapor no prazo de 18 meses, a
contar da celebração do contrato com o Governo, sob pena do
perdimento dos privilégios concedidos, além da multa que lhe
for imposta pelo mesmo contrato (...)” e “ os terrenos concedidos
à Companhia serão por ela perdidos, se dentro do prazo de sete
anos os não fizer habitar por colonos europeus, em número su-
perior de 60 casais por légua quadrada em sua totalidade.5

A Companhia tinha, ainda, plena liberdade para definir o valor que


cobraria pelo frete. Sem entrar em maiores detalhes sobre os resulta-
dos obtidos, pode-se citar:
Foram invertidas as premissas econômicas, ao pretenderem que
a navegação criasse a oferta e a demanda, que eram inexistentes
ou insuficientes. (...) A Companhia do Rio Doce não efetivou
nenhuma ação ou obra para tornar real a navegação. A com-
panhia conseguia da Coroa sempre mais privilégios, feito que
acreditamos estar ligado ao objetivo de fortalecer seus papéis
na bolsa londrina. Sem concretizar as promessas, a companhia
inglesa frustrou as expectativas do governo, levando-o a aban-
donar completamente o projeto de navegação do rio Doce, em
1843. (ESPÍNDOLA, 2000)

Ilustra-se, assim, a questão da evolução da distribuição de ônus e


bônus, assim como a do uso de recursos públicos para fins privados.
Da mesma maneira, fica clara a dificuldade de se saber qual a relação
“adequada” entre ônus e bônus. Naturalmente, o exemplo da Com-
panhia do Rio Doce – que não foi antecessora da moderna empresa
de nome similar – não ilustra todos os casos, muito menos todos os
resultados possíveis.
A malha ferroviária nacional foi quase toda ela construída mediante
concessões à iniciativa privada. Das várias concessões, algumas pros-
peraram, outras não. A primeira experiência, visando à construção da
Estrada de Ferro D. Pedro II, exigiu a concessão de “privilégios” go-
vernamentais cada vez maiores, chegando à subscrição, pelo Governo,
de parcela do capital6. Em vão: a via apenas operou após encampada
pelo Governo (STADUTO et all, 2003). As dificuldades de se definir
a necessária relação entre ônus e bônus ficam, mais uma vez, exempli-
ficadas. O fato citado pode, ainda, ser exemplo também do oportunis-
mo do concessionário.

5
Ibid.
6
Certamente há semelhanças entre a situação, aliás reproduzida noutras experiên-
cias, e formas mais modernas, chamadas de “parcerias público privadas”.
Concessões de serviços públicos nas Constituições brasileiras: a busca do equilíbrio entre ônus e bônus
167

Outra evolução do instituto da concessão se percebe com relação às


formas de prestação do “serviço público” de arrecadação de impostos.
Por contraditório que possa parecer, visto desde os tempos modernos,
a arrecadação de impostos é, sim, um serviço público, aliás essencial.
Embora houvesse contratadores com diferentes funções, o papel dos
contratadores tributários era claro. Diz Madeira (1998):
(Os letrados) redigiam e aprovavam os contratos, pelos quais os
contratadores de tributos, no Brasil colonial, praticavam o arren-
damento privado de impostos. Nos contratos – assientos, na ad-
ministração espanhola – um particular substitui o Estado, para
desempenhar um serviço público, cobrando receitas e efetuando
despesas, mediante percepção de certa renda e sob determinadas
condições. O fenômeno histórico do arrendamento contratual
abrangia a arrematação da cobrança de impostos por um capita-
lista, que se comprometia a recolher à Real Fazenda uma quantia
fixa geralmente determinada em leilão. (p. 103)

Naturalmente, as semelhanças entre os contratadores e os atuais con-


cessionários não são meras coincidências. Reforça a semelhança uma
ordem do rei D. João V, de 1711, que mandava leiloar as rendas da
alfândega de Pernambuco e justificava a ordem por “(...) ter mostrado
a experiência que, arrendando-se por contrato estes direitos, há de
produzir muito mais, que administrando-se pela Fazenda Real” (MA-
DEIRA, 1998, p. 103).
As autoridades, já no século XXI, parecem ter concluído que não é
bem assim, pois a administração das receitas do Estado é hoje ex-
clusiva de entes públicos, e não se admite mais tal “concessão”. Sem
embargo, o mesmo argumento, acerca da eficiência relativa de governo
e iniciativa privada, é utilizado com relação à provisão de diversos ou-
tros serviços públicos.
Por muitos anos, a arrecadação foi realizada por particulares. Progres-
sivamente, porém, o Estado assumiu a tarefa diretamente, num longo
processo que passou pela criação da Junta da Real Fazenda em 1765
(MAXWELL, 1977), sua implantação nos anos seguintes, e pela co-
existência da arrecadação privada com a pública, por décadas. Já no
século XX, em 1934, o Decreto nº 24.502, de 27 de junho, aprovava
o regulamento das “coletorias federais”, sob cuja responsabilidade fi-
cava a arrecadação e a guarda dos dezenove tributos federais lista-
dos no próprio Decreto7. Mais recentemente, após a década de 1950,

7
Curioso registrar o Art. 21 do mencionado Decreto: “A nomeação do escrivão não
pode recair em ascendentes ou descendentes do coletor ou seus colaterais e parentes
por afinidade inclusive cunhados, enquanto durar o cunhadio.”
168 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

as “coletorias”, órgãos públicos onde se recolhiam os tributos, foram


substituídas pelo sistema bancário. Os bancos hoje, porém, trabalham
com base em relações, tanto com o Estado como com os contribuintes,
muito distintas daquelas mantidas com ambos “contratadores”.
O ponto a destacar, porém, é outro. A manutenção do EEFC equivale
à concessão do direito a uma determinada rentabilidade, por duas ou
mais décadas. Tal prática choca-se com a dinâmica de transformação
da sociedade. Além disso, é princípio que não introduz, nos contratos
em questão, incentivos ao aumento da eficiência econômica. Assim,
a evolução das próprias condições de prestação dos serviços públi-
cos fica comprometida e, tendencialmente, abaixo do seu potencial
de eficiência ou redução de custos8. Nessa medida, tende a se tornar
um bloqueio ao desenvolvimento, ao introduzir uma rigidez que não
espelha o dinamismo da evolução social.
Trata-se, a questão da manutenção do EEFC, de situação análoga à
dos mecanismos, ditos de baixo e alto incentivo, discutidos na literatu-
ra sobre administração de preços em regime de regulação9. Menciona-
se, ali, dois sistemas básicos: a chamada “regulação por taxa de retorno”
e a “regulação por teto de preço”. Na primeira, o poder concedente
busca fixar tarifas de forma a criar condições para que o concessionário
aufira a taxa de retorno pactuada e apresentada na proposta vencedora
da licitação. É conhecida no Brasil como critério de reajuste de preços
ou tarifas com base em planilha de custos e preços. Na segunda, o “teto
de preços”, inicialmente utilizada na Inglaterra, a partir dos processos
de privatização da Era Thatcher, na década de 1970, estabelecem-se
dois parâmetros. O primeiro, um índice de preços que será referência
para os reajustes futuros, podendo tal índice ser mais, ou menos, re-
presentativo dos preços dos insumos necessários ao serviço específico.
A justificativa para a substituição da análise da planilha de custos por
um índice de preços amplamente conhecido é evitar as armadilhas
decorrentes da assimetria de informações entre as partes, que tornam
praticamente impossível, ao órgão público, conhecer, no detalhe e com
a rapidez necessárias, os custos reais da operação do concessionário.
O segundo parâmetro é o chamado “fator X”, que é uma estimativa
do aumento de produtividade nos anos futuros, cujo valor é acordado
antes da assinatura e incluído no contrato. A fórmula de reajuste tor-
na-se, assim, “índice de preços – X”.

8
Para maiores detalhes sobre as implicações econômicas da busca do reequilíbrio
econômico e financeiro ver Fernandez (2007).
9
Para uma discussão dos diversos modelos de regulação de preços Ver Mattos (2007).
Concessões de serviços públicos nas Constituições brasileiras: a busca do equilíbrio entre ônus e bônus
169

A presença deste “fator X” é que cria o incentivo ao aumento da efi-


ciência, pois sempre que a empresa elevar a produtividade acima de X
ela se apropriará da diferença, ampliando sua lucratividade. No caso
de reajustes de preços com base na taxa de retorno, o incentivo se
esvai: afinal, qualquer que seja a produtividade, a remuneração final
será a mesma e igual à taxa de retorno “pactuada”. Assim, a manuten-
ção da regra de restauração do equilíbrio econômico e financeiro dos
contratos, como seguida no Brasil, além de não incentivar a busca por
ganhos de produtividade, tende, mesmo, a dificultar tal busca.
Mais grave ainda, com a certeza jurídica do direito ao EEFC, o que de
fato se incentiva é que eventuais ganhos de produtividade sejam es-
camoteados, pois a possibilidade de o concessionário ampliar sua taxa
de rentabilidade se restringe a duas alternativas. Primeira, quando o
órgão regulador não consegue identificar o “desequilíbrio” do contrato,
no caso, a favor do concessionário; segunda, quando passa a existir a
“captura” do órgão regulador pelo concessionário. A literatura sobre o
tema da regulação contém inúmeras publicações sobre a mencionada
“captura”10 e suas implicações.
Surge, assim, interessante questão, a merecer consideração dos juristas.
Hoje, há diversos contratos de concessão de serviços públicos no Bra-
sil que se baseiam no critério de “teto de preço”: dentre eles, contratos
de telefonia, energia e outros. Tais contratos, porém, parecem contra-
dizer a regra da manutenção do EEFC. Esta, como se viu, determi-
na a estabilidade da rentabilidade ao longo da vigência da avença; os
contratos por “teto de preço”, tais como construídos, apenas mantêm a
“equação financeira” inicial na improvável hipótese de que o aumento
da produtividade efetivamente observado seja exatamente compensado
pelo “fator X”, que é uma constante de valor estimado, usualmente
por períodos de cinco anos. Se o aumento da produtividade superar o
valor estimado de X, haverá desequilíbrio em favor do concessionário;
quando a elevação da produtividade for menor que o valor estimado
de X, o desequilíbrio se instalará, em seu desfavor.
Instaura-se, assim, uma situação delicada: mantido o princípio do
EEFC, tais contratos poderão ser judicialmente contestados. Não
obstante, a literatura econômica os aponta como “superiores”, no sen-
tido de mais coerentes com o interesse público e mais indutores de
crescimento da produtividade, relativamente aos contratos de “taxa
de retorno”. A questão, pois, apresenta duas possibilidades: ou se de-

10
A literatura contém inúmeras referências à captura. Dentre os textos “clássicos”
encontra-se Stigler (2004).
170 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

monstra que é falsa a tese acima, da inconsistência do critério de “teto


de preço” com a “regra” da manutenção do EEFC, ou o debate deve
deslocar-se do âmbito do Judiciário para o Congresso Nacional, para
que se faça a necessária “modernização” do quadro legal. Caso contrá-
rio, a manutenção da legalidade obrigará a que os contratos de conces-
são sejam regidos por norma ineficaz, do ponto de vista do aumento
da produtividade e, pois, da ampliação da cobertura da prestação de
serviços públicos.
Como se disse acima, o mecanismo do EEFC se transforma em in-
centivo, não ao aumento da produtividade, mas à busca de mecanis-
mos de ampliação da assimetria de informações entre regulador e re-
gulado. Com tal propósito, os expedientes mais freqüentes são: o uso,
em relatórios, de preços de tabela dos fornecedores, e não dos preços
efetivamente praticados; a inserção, na contabilidade, como “custos”,
de despesas que são, de fato, remuneração dos acionistas ou prêmios
concedidos pela administração da concessionária a terceiros; a inclu-
são de informações que subestimam os índices de desempenho efeti-
vamente observados, etc.
Outros meios são também utilizados, no mesmo sentido. Veja-se, por
exemplo, a manifestação do próprio Tribunal de Contas da União:
Note-se que as informações sobre a despesa agregada, existentes
no sistema, dependem da quantidade de serviço ofertada, e não
permitem uma análise sobre os custos unitários para a prestação
do serviço. É exatamente o custo unitário o parâmetro essencial
para a determinação de ganho de eficiência nas empresas. (Acór-
dão 1196/2005)

É freqüente, ainda, e amplamente discutido na literatura, a tendência


ao “superinvestimento” nas concessões regidas por contratos de “taxa
de retorno”. Entende-se “superinvestimento” como investimentos
desnecessários, do ponto de vista da operação e da produtividade do
negócio, porém interessantes do ponto de vista do controlador da em-
presa, já que a taxa de retorno que lhe é “garantida” pelo poder público
pode ser maior que as aplicações alternativas disponíveis no mercado.
Novamente, trata-se de prática que conflita com o “interesse público”,
qualquer que seja a definição deste.
De tais fatos e procedimentos pode-se extrair a conclusão de que in-
troduzir, nos mencionados contratos administrativos, princípios de
“governança corporativa” que contribuam para minorar as práticas
mencionadas é coerente com a melhoria dos serviços públicos e, pois,
com o interesse público.
Concessões de serviços públicos nas Constituições brasileiras: a busca do equilíbrio entre ônus e bônus
171

3. As concessões de serviços públicos nas Cartas Magnas

Como se viu, as Constituições de 1824 e de 1891 não se referem às


concessões para exploração de serviços públicos, embora a prática fos-
se corrente. A construção e a operação das ferrovias eram privadas. O
porto de Santos foi administrado por particulares, mediante conces-
são, por longos anos. Os então modernos serviços de energia elétrica,
“bondes” e telefonia também eram serviços com exploração privada,
implantados pouco após as respectivas invenções. A estatização desses
serviços ocorreu em diferentes momentos – tanto no Império quanto
na República –, sempre em busca de se solucionar problemas que se
acumulavam. Dentre estes, a má qualidade dos serviços e a insuficiên-
cia de investimentos na “melhoria e ampliação dos serviços”, fato que
tendia a se agravar com a aproximação do fim dos contratos.
A Constituição Federal de 1934 é a primeira a se referir à questão
das concessões. Menciona também as “delegações”, instituto este não
mais utilizado, atualmente. A Carta remete à lei futura que regulará a
revisão das tarifas “para que, no interesse coletivo, os lucros dos con-
cessionários, ou delegados, não excedam a justa retribuição do capital,
que lhes permita atender normalmente às necessidades públicas de
expansão e melhoramento desses serviços.” Não há qualquer referen-
cial que se possa utilizar para conhecer o que é a “justa remuneração
do capital”, assim como sobre quais seriam as “necessidades públicas
de expansão e melhoramento desses serviços”. Falta, também, referên-
cia à qualidade do serviço prestado. Interessante notar que a “proteção”
constitucional à remuneração do capital vem antes, em termos crono-
lógicos, de qualquer consideração sobre a qualidade dos serviços.
Deve-se registrar, entre a Constituição de 1891 e a de 1934, o Decreto
nº 19.398, de 11 de novembro de 1930, editado logo após a vitória da
Revolução de 1930. Embora não seja uma Constituição formal, seu
art. 1º aparentemente lhe dá tal dimensão, ao dizer que “O Governo
Provisório exercerá, discricionariamente, em toda a sua plenitude, as
funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como também do
Poder Legislativo, até que, eleita a Assembléia Constituinte, estabele-
ça esta a reorganização constitucional do país”. Com tais poderes, me-
rece o referido Decreto ser incluído nessa avaliação. Seu art. 7º reza:
“Continuam em inteiro vigor, na forma das leis aplicáveis, as obriga-
ções e os direitos resultantes de contratos, de concessões ou outras
outorgas, com a União, os estados, os municípios, o Distrito Federal
e o território do Acre, salvo os que, submetidos a revisão, contravenham
ao interesse público e à moralidade administrativa” (ênfase adicionada).
172 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O nível de arbítrio assim instituído é evidente; trata-se, quase, de uma


restauração do poder absoluto do governante, que fora de certa forma
restringido com a Constituição de 1824. Vale lembrar, também, dois
pontos: primeiro, que a norma revela e formaliza o poder arbitrário e,
eventualmente, oportunista, do Estado, como anteriormente discutido;
segundo, que nada garante, dada a complexidade dos processos gover-
namentais, que tal nível de arbítrio seja utilizado em busca de vantagens,
de fato, coerentes com as definições usuais de “interesse público”.
Em 1937, a nova Constituição praticamente repete o texto de 1934,
mas acrescenta (art. 147): “A lei se aplicará às concessões feitas no
regime anterior de tarifas contratualmente estipuladas para todo o
tempo de duração do contrato.” Ou seja, previa que os contratos an-
teriormente celebrados, que estipulassem tarifas fixas, poderiam tê-las
revistas ocasionalmente.
A Constituinte de 1946 alterou a redação sem, contudo, mudar o sen-
tido da norma da Carta anterior. A inovação é que diz que a lei regula-
rá o “regime das empresas concessionárias” nos três níveis de governo.
A aplicabilidade do princípio aos três níveis de governo, porém, já
existia anteriormente, embora não no corpo do artigo relevante sobre
as concessões.
A Constituição de 1967 trouxe inovação. Pela primeira vez, menciona
a “obrigação de manter serviço adequado”, possivelmente refletindo
manifestações populares havidas, antes de abril de 1964, contra a má
qualidade e insuficiência dos serviços públicos de telefonia, transporte
urbano, abastecimento de água e outros, alguns prestados diretamente
pelo poder público, outros por particulares, variando inclusive confor-
me a região do país. Outra novidade da Carta de 1967 foi a referência
a que a revisão das tarifas deveria levar em conta, além da justa remu-
neração do capital e a necessidade de melhoramento e expansão dos
serviços, a necessidade de “manter o equilíbrio econômico e financeiro
do contrato”. A expressão adquiria, assim, sede constitucional.
A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, manteve (art. 167) exata-
mente o mesmo texto da Carta anterior.
A Constituição Federal de 1988, art. 175, no geral reproduz o en-
tendimento anterior. Mantém, por exemplo, a noção de “serviço ade-
quado”. Inova, porém, ao introduzir duas disposições: primeiro, a de
que as concessões ou permissões serão sempre efetuadas “mediante
licitação”; segunda, a prescrição de que a lei disporá sobre “os direitos
dos usuários”. A nova redação elimina a referência ao equilíbrio eco-
Concessões de serviços públicos nas Constituições brasileiras: a busca do equilíbrio entre ônus e bônus
173

nômico e financeiro dos contratos, substituída que foi pela expressão


“a lei disporá sobre a política tarifária”.
Assim, os direitos dos usuários aparecem, em nível constitucional, 54
anos após a introdução, na Constituição de 1934, do direito à justa
remuneração do capital. Mesmo a obrigação da prestação de “serviço
adequado” somente veio a aparecer em 1967. O direito à “manutenção
do equilíbrio”, retirado do texto do artigo sobre concessões, não obs-
tante reapareceu, no corpo do art. 37, XXI, que trata, basicamente, das
obras e serviços contratados pela administração pública. Aliás, a jul-
gar pelos debates na Assembléia Nacional Constituinte, como se verá
adiante, a questão a que se referia este inciso do art. 37 dizia respeito,
essencialmente, ao direito à correção monetária das tarifas, e não à
questão mais ampla da manutenção do EEFC.

4. A evolução dos debates na Assembléia Nacional Constituinte

Tema de grande relevância, a questão das concessões para execução


de serviços públicos mobilizou muitos constituintes e foi objeto de
intensa discussão. Foi tratada, inicialmente, na Subcomissão de Prin-
cípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da Propriedade do
Subsolo e da Atividade Econômica. Esta Subcomissão de princípios
gerais iniciou seus trabalhos com base no texto da Comissão de Es-
tudos Constitucionais, presidida pelo senador Afonso Arinos, o qual
não apresentou mudanças, relativamente às normas então vigentes.
Recebeu dos constituintes, porém, 79 sugestões.
O relator da matéria na subcomissão apresentou texto que pouco dife-
re da redação que prevaleceria ao final. Assim, consta deste relatório a
expressão “incumbe ao Estado”, e o texto final traz “incumbe ao poder
público”. Algumas diferenças entre os dois textos, no entanto, podem
ser vistas como significativas: no caput, o relator explicita a idéia de
que as concessões ou permissões serão sempre por prazo determina-
do, noção que não foi incorporada ao texto constitucional mas, sim, à
prática jurídica. O entendimento dominante, hoje, é que no Brasil não
pode haver contrato de concessão sem prazo determinado. O texto do
174 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

relator não aborda a questão da prorrogação desses contratos, possibi-


lidade incluída no texto final da Constituição Federal.11
Como tentativas de alterar a redação proposta pelo relator, há mui-
tas emendas semelhantes, entre si, apresentadas pelos constituintes.
Em sua maioria, foram rejeitadas com base no argumento, do relator,
de que já estavam contempladas em seu relatório. Outras emendas,
porém, propunham a inclusão de novos princípios. Não cabe, aqui,
analisá-las individualmente, mas explicitar alguns dos aspectos que
mereceram maior destaque. Nesse sentido, a Emenda 002 visava a
incluir na Carta os dizeres “justa remuneração do capital e garantia
do equilíbrio econômico e financeiro do contrato, em regime de com-
provada eficiência empresarial e eficácia no atendimento do interesse
público”. A noção de “comprovada eficiência empresarial”, no entanto,
não foi incorporada à Constituição.
A Emenda 00020 tinha outro objetivo. Pretendia adicionar à Consti-
tuição um inciso que determinaria que nas empresas concessionárias
haveria “participação dos usuários na supervisão e controle dos planos,
programas, projetos e orçamentos.” Foi rejeitada. Também foram re-
jeitadas emendas que previam a instituição de “conselho de usuários”
e a prestação de informações detalhadas, sempre que solicitadas por
órgãos públicos, sindicatos ou associações de usuários, sobre planos,
projetos, investimentos, custos, desempenho e demais aspectos perti-
nentes à sua execução.
Encerrados os trabalhos da Subcomissão, deu-se início à tramitação
das propostas na Comissão da Ordem Econômica. Também aqui é
interessante verificar a transformação das propostas em regra cons-
titucional. Assim o caput do artigo relevante registrava “incumbe
ao Estado”, ao invés de ao “poder público”, como consta do texto
constitucional e já mencionado acima; mantinha a idéia de prazo
determinado para as concessões e permissões, e dizia que todas elas
deveriam ser feitas mediante “concorrência pública”. O texto final
ampliou a modalidade de cessão, prevendo que poderiam ser feitas
“mediante licitação”. O parágrafo único mantinha, ainda, a noção
do equilíbrio econômico e financeiro e, no tocante à qualidade do
serviço, dizia “(d)a obrigatoriedade de manter o serviço contínuo,

11
Vale registrar que há sugestões, na moderna literatura econômica, em face das
freqüentes “renegociações” de contratos de concessão, que contratos com receita
prevista fixa e prazo variável, em função do próprio alcance da receita fixada em
contrato, pode ser alternativa mais coerente com o “interesse público”. Não cabe,
aqui, detalhar as razões e os debates. Para detalhes ver Engel, Fisher & Galetovic
(2003) e Ortiz (2005)
Concessões de serviços públicos nas Constituições brasileiras: a busca do equilíbrio entre ônus e bônus
175

adequado e acessível”, introduzindo, pois, as noções de continuidade


e acessibilidade, ausentes até então nos projetos, e ausente, também,
no texto final da Carta Magna.
A Comissão de Sistematização iniciou seus trabalhos a partir do texto
aprovado na Comissão da Ordem Econômica. Ficou mantida, até en-
tão, a noção de “reversão” do contrato, princípio este que não aparece
no texto final da Constituição de 1988.
Houve muitas emendas visando à inclusão do princípio de que as ta-
rifas deveriam cobrir o custo, a remuneração do capital e a expansão
e o melhoramento dos serviços. Este princípio, constante dos vários
anteprojetos ao longo do processo constituinte, e constante também
de constituições anteriores, não mereceu acolhida, no texto final da
Carta de 1988. Foi derrubado em 29 de abril de 1988, com a votação
de um destaque que alterou o inciso III, do então art. 204, numeração
posteriormente alterada. Na ocasião, a redação até então vigente no
Projeto de Constituição, qual seja, “a lei disporá sobre tarifas que per-
mitam cobrir os custos, a remuneração do capital, a depreciação dos
equipamentos e o melhoramento dos serviços”, foi substituída pela
redação que prevaleceu: “a lei disporá sobre a política tarifária”.
São reveladores os debates ocorridos previamente à votação final, que
aprovou a alteração. Sem identificar os parlamentares que se manifes-
taram, vale registrar as principais preocupações. O argumento a favor
da alteração foi que, com a redação anterior, o poder público, em espe-
cial prefeituras e estados, ficaria impossibilitado de praticar tarifas que
não cobrissem o custo dos serviços. Lembrou o constituinte que enca-
minhou a votação favoravelmente à adoção da emenda em debate:
Muitos serviços que o Estado presta têm claramente um caráter
social, um caráter de distribuição de renda. (...) em muitos ser-
viços existe o imponderável, como o aumento rápido de preços
importados, que obrigam a um desajuste momentâneo. Se pu-
sermos rigidamente na constituição este parâmetro por baixo,
vamos dificultar a vida dos administradores municipais e esta-
duais. (...) Deixo clara minha posição: não sou favorável a que
se use a tarifa para fazer demagogia, para fazer benesses. Não é
disso que se trata. Sou favorável a que haja uma legislação ordi-
nária, porque esta pode ajustar-se mais às mudanças da realidade
e da conjuntura. Se aprovarmos a emenda [em tela], estaremos
deixando esta flexibilidade. Qual o argumento contrário? Ah!,
o concessionário é um investidor. Ele aplica dinheiro, ele tem
que ter um retorno depois. Claro! Mas ele vai negociar com a
administração, ele vai fazer seu investimento, como todo bom
investidor, na base do cálculo de benefício/custo. Se a prefeitura
lhe apresentar um contrato em que ele perca dinheiro, ele não
176 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

assina e a Prefeitura presta diretamente o serviço. Se o contrato


lhe interessa, ele resolve. De modo que o problema de custo para
o particular é resolvido via contratual e não via constitucional.
Qual o inconveniente que está na Constituição? É que qualquer
alteração conjuntural permitirá imediatamente uma ação cons-
titucional que vai bloquear a ação dos prefeitos. Sei que neste
plenário há uma porção de candidatos a prefeito e a governa-
dor. Então, quero dizer a V. Exas: cuidado com essa emenda. A
emenda [em tela] dá a todos os que estão aqui muito mais flexi-
bilidade para cuidar, com critério e bom senso, da coisa pública.
(Diário da Assembléia Nacional Constituinte, 29/4/88, p. 10043)

Interessante notar que o argumento final, em que pese a necessidade


de oratória, manifesta preocupação não com os usuários finais dos ser-
viços públicos, mas com relação à liberdade de uso das tarifas por parte
dos “futuros” prefeitos e governadores, presentes em Plenário.
O representante do grupo que se opunha à emenda então em debate
contra-argumentou da seguinte maneira:
(...) (a autora da emenda em tela) deseja que na determinação
das tarifas sejam preservados os interesses daqueles que vão uti-
lizar, que não haja abuso de cobrança, portanto, possamos com
isso, evitar qualquer tipo de complicação ainda maior para o
usuário de todos os serviços urbanos. Acontece que [a autora]
talvez não tenha se dado conta de que o acordo colocou exata-
mente um limite para a tarifa, não proíbe que seja feito aquilo
que ela pretende, uma política tarifária, que continuará aberta,
mas que em nenhuma hipótese poderá colocar na tarifa nada
mais do que aqui está posto na emenda do acordo. E a emenda
do acordo simplesmente diz que a tarifa só permitirá cobrir cus-
tos, remuneração do capital e depreciação do equipamento. Por
isso, lamento encaminhar (o voto) contrário à emenda da minha
companheira (...).(Diário da Assembléia Nacional Constituinte,
29/04/88, p. 10.044).

Procedeu-se, então, à votação, em que a substituição do texto mais ex-


tenso pela versão final, qual seja, a lei disporá “sobre a política tarifária”
foi vencedora, com 280 favoráveis, 155 contrários e 24 abstenções.
Há, porém, outro dispositivo na Constituição Federal que também
rege o tema. Trata-se, no Capítulo VII, “Da Administração Pública”,
do art. 37, inciso XXI, onde está previsto:
Art. 37. A administração pública direta, indireta e fundacional,
de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Fe-
deral e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
Concessões de serviços públicos nas Constituições brasileiras: a busca do equilíbrio entre ônus e bônus
177

impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também,


ao seguinte:12
...................................................................................................
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras,
serviços,compras e alienações serão contratados mediante pro-
cesso de licitação pública que assegure igualdade de condições
a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obriga-
ções de pagamento, mantidas as condições efetivas da propos-
ta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de
qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do
cumprimento das obrigações.

A redação final foi fruto de acordo, embora diversos constituintes


reclamassem não conhecer o texto. O constituinte que encaminhou
favoravelmente ao texto acordado esclareceu que havia dois pontos
em debate que o acordo pretendia alterar. O primeiro tratava das con-
dições de pré-qualificação em licitações. O segundo dizia respeito ao
tema aqui debatido, qual seja, a “manutenção das condições efetivas da
proposta”. Segundo o constituinte,
Retirou-se a palavra “correção”, à qual muitos faziam restrição,
a despeito da grande justiça que estabeleceria, e deu-se uma re-
dação que diz apenas que “o Governo tem de manter as con-
dições da proposta.” Vale dizer que não pode o Governo, unila-
teralmente, modificar aquilo que recebeu como proposta para
fazer. Essa redação enseja uma correção futura, sem colocar a
expressão “correção monetária”, à qual, também, muitos faziam
restrição. (DANC, 28/4/1988, p. 9931)

Rigorosamente, o texto anterior, alterado na deliberação daquela data,


estava assim redigido:
A lei disporá que obras, compras e alienações da administração
pública direta e indireta, nos três níveis de governo, somente
serão contratados mediante processo de licitação que demo-
cratize o acesso e permita igualdade de condições a todos os
participantes, assegurado o pagamento dos débitos em valores
corrigidos. (ibid)

Chegou-se, assim, ao texto final, que foi aprovado por 415 votos fa-
voráveis, zero contra e seis abstenções. Aparentemente, porém, a idéia
original de prever a “correção monetária” dos pagamentos ampliou-se,
transformando-se na “mantidas as condições efetivas da proposta”.

12
Posteriormente, com a Emenda Constitucional nº 19, de 1998, a palavra “funda-
cional” foi eliminada do texto do caput.
178 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

5. Evidências nos acórdãos e decisões do TCU

Foram analisados todos os treze processos que estavam disponíveis


na base de dados do Tribunal de Contas da União, tendo como tema
o EEFC dos contratos, ou sua restauração, e para os quais acórdãos
ou decisões foram exaradas após o ano 2000. As indicações são rele-
vantes e revelam exemplos das dificuldades apontadas na teoria em
decorrência da assimetria de informações, da mutante realidade a ser
“aprisionada” em um contrato que prevê resultados constantes, etc., e
sugerem a necessidade de se avançar nas práticas de controle e super-
visão, assim como de flexibilizar a regra da manutenção do EEFC.
Destaca-se a dificuldade que tem o próprio Tribunal – evidenciada
pela necessidade de formulação, por parte de seu corpo técnico, de
hipóteses sobre custos e produtividade, para sanar os problemas de as-
simetria de informações na investigação sobre a ocorrência, ou não, de
desequilíbrio. Da mesma forma, a freqüência, em suas decisões, de re-
comendações aos órgãos concedentes no sentido de “desenvolver fór-
mula que permita ...”, “adotar procedimentos de forma a identificar ...”,
“efetuar levantamento que possibilite conhecer ...”, e expressões simi-
lares, são evidências claras de que o próprio Tribunal sente a carência
de informações em que basear suas decisões.
Outro ponto é a necessidade, reiterada em diversos dos acórdãos e
decisões analisados, de procedimentos de simplificação das audito-
rias realizadas. Como se disse acima, há a necessidade de formula-
ção de hipóteses com relação a custos, à produtividade e, mesmo, à
receita efetivamente auferida pelo concessionário. Como exemplo,
pode-se mencionar que a análise dos custos reais dos investimen-
tos realizados pelo concessionário não é executada em diversos dos
autos. Executá-la certamente exigiria muito mais recursos do que
dispõe o TCU e, pode-se afirmar, também os tribunais de contas es-
taduais. Com freqüência, a opção é solicitar ao órgão concedente que
proceda a tal análise, e a equipe técnica do TCU não tem alternativas
senão trabalhar, ainda que com ressalvas e mediante a formulação de
hipóteses, com os dados brutos de custos informados.
Não se trata, claramente, de desmerecer o trabalho realizado pelo
egrégio Tribunal. Pelo contrário, destaca-se o elevado padrão das aná-
lises, o criterioso levantamento de dados e as judiciosas deliberações.
A questão transcende o Tribunal e independe do seu, repita-se, ele-
vado nível de competência: trata-se, antes, da dificuldade de se iden-
tificar a efetiva rentabilidade de um empreendimento complexo e a
impossibilidade de se tentar manter, ou buscar restaurar, após anos de
Concessões de serviços públicos nas Constituições brasileiras: a busca do equilíbrio entre ônus e bônus
179

operação e de transformações econômicas que se superpõem, a “equa-


ção financeira” inicial. Aliás, tais transformações são da própria dinâ-
mica da economia, dos mercados e das sociedades. “Congelar” a taxa
de remuneração de um empreendimento ao longo de trinta, quarenta
anos, é estabelecer um nível de rigidez de difícil compatibilização com
as rápidas transformações da vida econômica, da tecnologia, etc. Mais
uma vez, torna-se clara a rigidez instaurada pela norma do EEFC e a
necessidade de alterações legais que permitam a adoção de procedi-
mentos mais condizentes com a dinâmica da economia.
No período analisado, é clara a adoção do critério de taxa interna de
retorno (TIR) como referência de qual seria o ponto de equilíbrio do
contrato. Assim, o entendimento é que a TIR apresentada na proposta
vencedora deverá ser mantida ao longo do período da concessão, e
que as adequações e revisões tarifárias deverão se dar no sentido de
restabelecer aquela TIR da proposta vencedora. Há, inclusive, deter-
minação do Egrégio Tribunal no sentido de que órgãos públicos pas-
sem a exigir, nas licitações, a apresentação do fluxo de caixa previsto
para o empreendimento a ser concedido, instrumento essencial para
o cálculo da TIR (Acórdão 2092/2005). O fato, porém, é que há im-
possibilidade física de se conhecer, com detalhes, os custos efetivos das
operações concedidas. Tal exigência, efetuada em 2005, sugere que a
informação, sem a qual não se pode efetuar o cálculo, ainda não cons-
tava de muitos processos.
Uma das conseqüências do entendimento de que o EEFC deve ser
mantido é que os órgãos públicos acabam por dedicar-se a exami-
nar o passado, e o fazem de maneira bastante limitada, em função da
já mencionada assimetria de informações. A questão mais freqüente
enfrentada nas análises parece ser: “nos últimos anos, houve ou não a
manutenção do EEFC?”, ao invés de análises prospectivas, mais am-
plas e que permitam respostas mais rápidas sobre a eficiência e a ade-
quação dos serviços prestados.
Reforça tal entendimento a seguinte análise:
Ao subordinar a função de controle ao trabalho de correição, ve-
rifica-se que o Brasil se distanciou da experiência internacional.
Ao proceder dessa forma, a contribuição do órgão de controle
interno para o aprimoramento da administração pública pode
estar sendo debilitada em decorrência da subordinação da ativi-
dade consultiva, essencial para o aprimoramento das práticas ge-
renciais, às atividades puramente investigativas e coercitivas. O
problema dessa opção é que a investigação de atos corruptos exi-
ge um mínimo de segurança jurídica, para que não se façam, por
exemplo, acusações sem provas. Essa atividade demanda tempo
180 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

e acaba por concentrar-se em fatos passados, cujos problemas e


distorções não podem mais ser corrigidos. Perde-se tempestivi-
dade e a possibilidade de se propor a correção de erros percebi-
dos durante a execução de uma atividade ou programa público,
que permitiria a economia de recursos e o ganho de eficácia da
gestão. (ROCHA, 2006).

O próprio Rocha (2006) informa que, em 1995, “tramitavam (no


TCU) 51.941 processos, alguns, inclusive, com início na década
de 1950”!

6. A questão da governança corporativa

A avaliação da eficiência e transparência da gestão empresarial tem


merecido grandes debates nos últimos anos, inclusive em empresas
privadas atuantes em mercados não regulamentados. Em parte, tais
debates decorrem do processo de expansão e criação de conglomera-
dos empresariais, em que há grande separação entre a propriedade e
a gestão. Tal distinção implica “problemas de agência” de dificuldade
variável. Estes “problemas de agência” refletem, em essência, a difi-
culdade que tem, o proprietário, de saber em nome de quem atua o
“gerente”: se em seu próprio interesse ou se no interesse do proprietá-
rio. Evidentemente, quanto maior a distância entre o proprietário e o
gerente, mais grave é o problema. Da mesma forma, quanto mais for-
mal o relacionamento entre o agente (gerente) e o principal (proprie-
tário), maior a dificuldade de se estabelecer “contratos” que assegurem
a convergência entre o interesse do principal e a atuação do agente.
Os graves escândalos ocorridos nos EUA, dos quais a empresa Enron
se tornou emblemática, ilustram a dificuldade de se obter a desejada
convergência. Os mesmos escândalos, no entanto, fizeram avançar a
questão da governança corporativa.
Os problemas de agência tendem a ser ainda mais graves quando se
analisa a questão das empresas concessionárias prestadoras de serviço
público. Ressalta, pois, a importância de se incorporar processos efi-
cientes de “governança corporativa”.
Não cabe aqui, porém, detalhar as práticas mais avançadas de “go-
vernança”. Basta mencionar que elas envolvem, dentre muitos outros,
a divulgação detalhada de informações sobre recursos humanos, seu
treinamento e sua remuneração, investimentos realizados e a realizar,
dados do mercado, demonstração do fluxo de caixa, uso de critérios
contábeis internacionalmente aceitos, gerenciamento de riscos, custo
de capital de terceiros, mudanças na propriedade de ações, gestão e
Concessões de serviços públicos nas Constituições brasileiras: a busca do equilíbrio entre ônus e bônus
181

limitação dos impactos sobre o meio ambiente, etc.. Em resumo, os


critérios de governança envolvem não apenas a ampla transparência
mas também a demonstração da adoção de práticas gerenciais de efi-
cácia comprovada.
No Brasil, um dos mais destacados conjuntos de normas relativas à
“governança corporativa” é aquele definido pelo chamado “Novo Mer-
cado”, da Bovespa, ao qual a adesão de empresas é voluntária. Para
participar deste “Novo Mercado” – cuja maior transparência visa a
indicar, ao acionista minoritário, que as firmas dele participantes são
bem geridas, confiáveis, atentas aos riscos, etc. – a empresa deve adotar
práticas de “governança” que a tornem mais transparentes que as de-
mais empresas, participantes do mercado acionário “normal”.
Deve-se registrar, para os propósitos do presente trabalho, que são
raras as concessionárias de serviços públicos, no Brasil, que adotam
práticas de governança sequer semelhantes às regras exigidas para a
simples abertura de capital. Incluir, nos editais de licitação, exigências
de práticas análogas àquelas exigidas no “Novo Mercado” seria uma
avanço importante.

7. Conclusões

Como se viu, a questão da prestação de serviços públicos por parti-


culares mediante concessão antecede a chegada dos europeus a nosso
país. São igualmente antigas as dificuldades de se estabelecer congru-
ência entre os objetivos do poder concedente e os do concesionário.
Esta a questão central: como estabelecer mecanismos de “governan-
ça” que tornem mínimas as dissonâncias entre os objetivos das duas
partes do contrato de concessão. A permanência do problema da
falta de congruência ao longo da história mostra que não há solução
simples e ilustra a necessidade de um processo de constante aprimo-
ramento dos métodos de supervisão da atuação do concessionário,
de avaliação de seu desempenho e de restrição do nível de arbítrio
do órgão concedente.
Quando da chegada de D. João VI ao Brasil, o mesmo problema, isto
é, a provisão de serviços comuns, já era objeto de debates e de políticas
públicas. Na sociedade absolutista e escravocrata de então, certamente
que os termos do debate diferiam das colocações de hoje, duzentos
anos mais tarde. Um dos pontos mostrados neste texto, porém, é a
permanência de muitos dos seus aspectos, assim como a lenta evolu-
ção da capacidade do Estado de aprimorar suas políticas.
182 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Como se viu, nas décadas seguintes à chegada da corte, diversas con-


cessões foram dadas à iniciativa privada. Algumas obtiveram sucesso,
outras não, assim como ocorre nos dias de hoje. Nos oitenta e um
anos de permanência da corte no Brasil, somando os períodos de D.
João VI aos de seu filho e de seu neto, o instrumento da concessão,
tal como utilizado, não foi capaz de prover uma solução estável às
necessidades de “expansão e melhoria dos serviços públicos”, como
viria, mais tarde, a ser expresso na Constituição de 1934. Ainda hoje
há carências expressivas.
Não se justifica, entretanto, a visão de que nada muda. O que, sim, se
percebe é que há momentos de maior, e períodos de menor capacidade
de “expansão e melhoria dos serviços”, e de maior ou menor qualida-
de dos serviços prestados. Tal oscilação revela a necessidade de maior
dinamismo nos processos de acompanhamento, gestão e revisão dos
ônus e bônus associados às concessões. As propostas nesse sentido in-
cluem maior transparência dos dados operacionais e contábeis, assim
como a mudança da regra da manutenção do equilíbrio econômico e
financeiro dos contratos. A incorporação de métodos de governança
corporativa semelhantes aos utilizados, no meio empresarial, na tenta-
tiva de controle do comportamento dos gerentes, quando há separação
ente propriedade e controle, é caminho possível. Deverá, é certo, ser
suplementado por outros critérios, de forma a refletir a natureza “pú-
blica” dos serviços.
Mostrou-se, neste trabalho, que a regra da manutenção do equilíbrio,
embora constitucional, é prejudicial à boa gestão da coisa pública. A
garantia a ser dada ao concessionário, essencial e indispensável, não
deve centrar-se apenas na garantia de rentabilidade. São essenciais
critérios mais abrangentes que, além de introduzir incentivos reais à
transparência e à busca da eficiência, por parte do empresário, incluam
também mecanismos de redução do arbítrio por parte do poder con-
cedente. Argumentou-se, ainda, que a regra do “equilíbrio” talvez seja,
mesmo, incompatível com os métodos mais modernos de gestão de
preços públicos e de contratos de concessão. Nesse sentido, defende-se
a revisão do conceito e da legislação que lhe dá guarida, como um pas-
so na direção da melhoria da gestão dos serviços públicos no Brasil.
Viu-se ainda que, no processo evolutivo representado pelas sucessivas
constituições brasileiras, a preocupação primeiramente manifestada
em sede constitucional foi com a remuneração do capital, na Carta
de 1934. Apenas a Constituição de 1967 é que instituiu, em tão ele-
vado nível, o princípio de que o serviço deve ser “adequado”, noção
que apenas mereceu definição na Lei 8.987, de 1995. Assim, é nítida
Concessões de serviços públicos nas Constituições brasileiras: a busca do equilíbrio entre ônus e bônus
183

a necessidade de maior equilíbrio entre direitos e deveres tanto de


prestadores de serviço quanto de usuários. Nesse sentido, há avanços
necessários que a Constituição de 1988 não incorporou.

Anexo

A concessão de serviços públicos nas Constituições Federais

CF Texto

1824 (25/03) Não apresenta dispositivo.


1891 (24/02) Não apresenta dispositivo.

Art 137. A lei federal regulará a fiscalização e a revisão


das tarifas dos serviços explorados por concessão, ou
delegação, para que, no interesse coletivo, os lucros dos
1934 (16/07) concessionários, ou delegados, não excedam a justa retri-
buição do capital, que lhes permita atender normalmente
às necessidades públicas de expansão e melhoramento
desses serviços.

Art 147. A lei federal regulará a fiscalização e revisão das


tarifas dos serviços públicos explorados por concessão
para que, no interesse coletivo, delas retire o capital uma
retribuição justa ou adequada e sejam atendidas conve-
1937 (10/11) nientemente as exigências de expansão e melhoramento
dos serviços.
A lei se aplicará às concessões feitas no regime anterior de
tarifas contratualmente estipuladas para todo o tempo de
duração do contrato.

Art 151. A lei disporá sobre o regime das empresas con-


cessionárias de serviços públicos federais, estaduais
e municipais.
Parágrafo único. Será determinada a fiscalização e a revisão
das tarifas dos serviços explorados por concessão, a fim de
1946 (18/09)
que os lucros dos concessionários, não excedendo a justa
remuneração do capital, lhes permitam atender as necessida-
des de melhoramentos e expansão desses serviços. Aplicar-
se-á a lei às concessões feitas no regime anterior, de tarifas
estipuladas para todo o tempo de duração do contrato.
184 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Art 160. A lei disporá sobre o regime das empresas


concessionárias de serviços públicos federais, estaduais e
municipais, estabelecendo:
I – obrigação de manter serviço adequado;
1967 (24/01) II – tarifas que permitam a justa remuneração do capital, o
melhoramento e a expansão dos serviços e assegurem o
equilíbrio econômico e financeiro do contrato;
III – fiscalização permanente e revisão periódica das tarifas,
ainda que estipuladas em contrato

Art. 167. A lei disporá sôbre o regime das emprêsas


concessionárias de serviços públicos federais, estaduais e
municipais, estabelecendo:
1969 (17/10)
I – obrigação de manter serviço adequado;
(Emenda
II – tarifas que permitam a justa remuneração do capital, o
Constitucional
melhoramento e a expansão dos serviços e assegurem o
nº 1)
equilíbrio econômico e financeiro do contrato; e
III – fiscalização permanente e revisão periódica das tarifas,
ainda que estipuladas em contrato anterior.

Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, dire-


tamente ou sob regime de concessão ou permissão, sem-
pre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I – o regime das empresas concessionárias e permissioná-
1988 (05/10) rias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato
e de sua prorrogação, bem como as condições de caducida-
de, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II – os direitos dos usuários;
III – política tarifária;
IV – a obrigação de manter serviço adequado.

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Cultura
187

Brasil: nação monolíngüe?


Claudia Gomes Paiva

“Na lingüística, o real é sempre individual e sempre em situa-


ção, determinado por coordenadas temporais, espaciais e sociais.
Dentro deste espírito, poderia se dizer que a língua não existe,
mas que só existem indivíduos que falam!”
( Jean-Claude Corbeil)
“Só há uma escolha possível para o Estado que deseje atenuar as
tensões ligadas à realidade lingüística de nossa época: reduzir as
desigualdades sociais na esperança de, com isso, conseguir dimi-
nuir as discriminações ocasionadas pelo uso legítimo da língua.”
(Philippe Barbaud)

Preliminarmente...

Como a maioria dos países – 94% deles –, o Brasil é uma nação plu-
rilíngüe. Embora, através dos tempos, tenha prevalecido o senso co-
mum de que o país apresenta uma impressionante homogeneidade
idiomática – construída em torno da língua portuguesa –, contamos
hoje com cerca de 210 idiomas espalhados em nosso território (OLI-
VEIRA, 2003). De fato, as mais de 180 línguas indígenas (nheengatu,
guarani, tikuna, yanomami, kaingang, ...) e 30 línguas de imigração
(alemão, italiano, japonês, pomerano, talian e hunsrückisch, esses dois
últimos, respectivamente, variantes do italiano e do alemão) empres-
tam à identidade brasileira um colorido multicultural, apesar das his-
tóricas e repetidas investidas contra essas minorias sob a justificativa
de busca e manutenção de um Estado homogêneo e coeso.
Há que se mencionar ainda as línguas afro-brasileiras (faladas nas
comunidades quilombolas), os falares fronteiriços (língua crioula
falada no limite da Guiana francesa) e as línguas de sinais das co-
munidades surdas, além das variantes dialetais da língua portuguesa,
que não se configura homogênea como querem fazer parecer as gra-
máticas normativas.
188 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Posta a diversidade lingüística brasileira, infelizmente há uma im-


precisão quanto ao número de falantes de cada língua, uma vez que
apenas dois censos – o de 1940 e o de 1950 – “se interessaram por
perguntar qual língua os brasileiros usavam no lar, e se sabiam falar
português” (OLIVEIRA, 2003, p. 88). De todo modo, a ausência de
tais dados não justifica a continuidade de uma postura de indiferença
para com as línguas faladas no Brasil, como se não integrassem o pa-
trimônio cultural nacional.
Mas, afinal, qual é o papel da língua portuguesa nesse contexto? Pos-
tula-se aqui a ditadura das minorias, mediante o desprezo da língua
numericamente majoritária e a concessão de privilégios às línguas mi-
noritárias? É evidente que não!
Tenhamos em mente alguns conceitos fundadores. Calvet (2007, p.
80) distingue língua oficial, que é a língua do Estado, de língua nacio-
nal, que se aplica a todas as línguas de um país. Para ele, todo cidadão
tem direito à língua do Estado, sob as formas de alfabetização, de
educação formal. Contudo, também tem direito à sua língua materna,
o que, é claro, contempla todas as minorias.
Philippe Barbaud (2001), ao discutir minuciosamente o trocadilho
que dá nome a um de seus artigos – o binômio “língua do Estado” e
“estado da língua” –, vê, no primeiro, uma fórmula descritiva detentora
do poder de realizar a generalização da maioria dos usos governados
pela norma lingüística e, no segundo, os desempenhos de cada falante.
Assim, cabe: 1) ao Estado, como depositário principal da língua ofi-
cial, não usurpar o poder que tal papel lhe confere em sociedade; e 2)
ao falante, como depositário do estado da língua, o dever de se tornar
acionário da língua do Estado.
No presente momento histórico, em que se celebram os vinte anos da
Constituição Federal brasileira, é preciso rever, pelo menos em ques-
tões de língua, alguns postulados nela inscritos, de modo a alcançar,
de verdade, os propósitos de democracia e de respeito aos direitos do
cidadão brasileiro.
Essas primeiras reflexões apontam para a urgente necessidade da ado-
ção de políticas públicas que, efetivamente, contemplem os direitos
lingüísticos de cada cidadão, independentemente de qual seja sua lín-
gua materna, tendo em vista o mosaico de realidade vária que constitui
o panorama lingüístico brasileiro.
Brasil: nação monolíngüe?
189

I. Regulação lingüística

De acordo com Corbeil (2001), regulação lingüística é o fenômeno


pelo qual os comportamentos lingüísticos de cada membro de um
grupo ou de um subgrupo são moldados sob a influência de forças
sociais que emanam desse mesmo grupo ou de seus subgrupos (es-
pecialmente aqueles controladores das instituições). Trata-se, pois, de
uma forma particular do fenômeno global de padronização de com-
portamentos individuais, elemento essencial no processo de forma-
ção/continuidade cultural.
Nesse contexto, pelo menos três forças sociais concorrem para a re-
gulação lingüística: a) a aprendizagem da língua como modelo real
de comportamento lingüístico; b) a influência das comunicações ins-
titucionalizadas; e c) o aparato de descrição lingüística. Tais forças
correspondem, respectivamente, ao aprendizado da língua materna,
à força normatizadora dos textos oficiais e aos resultados dos estudos
relacionados à língua.
Segundo Calvet (2007, p. 11), embora os mecanismos desse proces-
so de regulação constituam práticas antigas, têm sido englobados por
nomenclatura recente. Assim, temos o conceito de política lingüística,
que trata da adoção de importantes decisões relativas à relação entre
a língua e a sociedade, e o de planejamento lingüístico, que se refere à
implementação dessas decisões. Em outras palavras, considerada não
satisfatória uma situação sociolingüística inicial (que o autor chama
de S1), propõe-se a situação que se deseja alcançar (S2). Desse modo,
a política lingüística residirá na definição das diferenças entre S1 e S2,
e o planejamento lingüístico responderá pelas estratégias por meio das
quais se deverá passar de S1 para S2.
Para a elaboração de um modelo de política lingüística, Calvet (2007,
p. 58) propõe o levantamento de alguns fatores:
1. Dados quantitativos: quantas línguas e quantos falantes para cada
uma delas.
2. Dados jurídicos: status das línguas em contato, reconhecidas ou não
pela Constituição, utilizadas ou não na mídia, no ensino etc.
3. Dados funcionais: línguas veiculares (e sua taxa de veicularidade),
línguas transnacionais (faladas em diferentes países fronteiriços);
línguas gregárias, línguas de uso religioso etc.
4. Dados diacrônicos: expansão das línguas, taxa de transmissão de
uma geração a outra etc.
190 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

5. Dados simbólicos: prestígio das línguas em contato, sentimentos


lingüísticos, estratégias de comunicação etc.
6. Dados conflituais: tipos de relações entre as línguas, complementa-
ridade funcional ou concorrência etc.
Como um dos principais mecanismos de planejamento lingüístico, o
ordenamento legal de um país vem emprestar legitimidade a ações
nessa área, descaracterizando tentativas que não se coadunem com o
projeto do Estado. Assim é que, ao adotar uma língua como oficial por
meio de lei, uma nação plurilíngüe está não apenas normatizando o
assunto, mas sobretudo explicitando uma escolha política que, ao ofe-
recer variados graus de reconhecimento das línguas, visa a contemplar
os interesses dos grupos detentores do poder.
Calvet assevera ainda que “na política lingüística há também política”
e que “as intervenções na língua ou nas línguas têm um caráter emi-
nentemente social e político. Mas isso nos lembra igualmente que, se
as ciências raramente estão ao abrigo de contaminações ideológicas,
a política e o planejamento lingüístico não escapam à regra” (2007, p.
36; destaques do autor).
De outro ângulo, com base no relato do quanto envolve ambigüidade
a conceituação de língua, dialeto e nação, especialmente ao se contem-
plar a retrospectiva histórica da terminologia, Haugen (2001) reitera a
impossibilidade, ou melhor, a dificuldade em fazê-lo, empreitada teó-
rica que leva a confusão e superposição. Tendo o grego como modelo,
este abarcava um conjunto de normas escritas distintas, mas aparenta-
das, conhecidas como dialetos. Língua, então, fixa-se como hiperôni-
mo de dialeto e, por serem ciclicamente aplicáveis, um e outro impli-
cam duas dimensões inerentes aos vários empregos intercambiantes:
estrutural, em termos de relação genética, e funcional, relativa ao uso.
O autor amplia o espectro de análise ao introduzir/correlacionar o
conceito de nação, que implica a busca inegociável de uma unidade
política, social e lingüística, reiterando, quanto à última, que, enquanto
a fala é de vital importância em qualquer sociedade, é pela escrita que
se consolidam tanto sua permanência quanto as relações de poder.
Assim, o contexto social, amplo palco das lutas de poder, é que deter-
minará a escolha de um de vários dialetos, sua imposição como língua,
sua utilização como norma-padrão, satisfeita a condição de adequação
às necessidades da sociedade como um todo. Especialmente impor-
tante é considerar que os critérios eleitos atenderão ao intuito de fi-
xação do status social, uma vez que língua-padrão e nação implicam,
intrínseca e irremediavelmente, poder e posição social.
Brasil: nação monolíngüe?
191

Como se vê, questões de língua não se dissociam de determinantes


sociopolíticas. Quando uma nação que abriga mais de um idioma em
seu território se movimenta pela adoção de apenas um em caráter
oficial, ela parece estabelecer as bases da sonhada unificação nacional,
situação defendida com fervor e que se justifica pela garantia de não
esfacelamento, de manutenção do status quo. Contudo, é preciso lem-
brar que tal postura deixa os falantes dos demais idiomas em situação
de desabrigo e, pior, de estigmatização.

II. Histórico do monolingüismo(?)1 brasileiro

Mediante rápido cotejo de fatos históricos e de legislação específica


relacionados às línguas faladas no Brasil desde seu descobrimento, se-
rão aqui pontuadas as ações referentes ao projeto de estabelecimento
de uma apenas almejada realidade monolíngüe.
Ao considerarmos a questão do idioma, precisamos lembrar que,
quando os portugueses aqui chegaram em 1500, encontraram os ha-
bitantes nativos que, certamente, não falavam a língua portuguesa. O
colonizador, com tudo o que essa postura traz a reboque, a fim de
provar seu poder, buscou imprimir sua identidade sobre a colônia não
apenas pelo mérito da força da conquista, mas também pelo subjugar
da(s) cultura(s) local(is) por meio da imposição de seu idioma como
marca do conquistador. (Talvez aí resida o nascedouro da falácia acer-
ca da homogeneidade lingüística brasileira, abrandada na idéia de que
o Brasil constitui “uma unidade na diversidade”).
Contudo, a língua portuguesa não se tornou, de pronto, a língua mais
falada no Brasil. Na verdade, primeiramente firmou-se a hegemonia
da “língua geral”, uma língua de contato que se estabeleceu entre os
falares indígenas e o português – utilizada não apenas pelos índios,
mas também pelos portugueses e escravos – e que prevaleceu até o
século XVIII, quando se tornaram obrigatórios o uso e o ensino da
língua do colonizador.
O português, firmado especialmente nos documentos oficiais, não
encontrava espaço ante a hegemonia da língua geral, falada por todas
as camadas sociais (TROUCHE, s/d). Por essa razão, em 3 de maio
de 1757, o Marquês de Pombal, por meio do Diretório dos Índios –
primeiramente direcionado ao Pará e ao Maranhão, e estendido ao resto
do Brasil em 17 de agosto de 1758 –, “instituiu o ensino público, tornou

1
A interrogação se justifica porque o Brasil nunca foi monolíngüe de fato.
192 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

violentamente obrigatório o ensino elementar da língua portuguesa,


destruindo línguas e culturas indígenas” (CUNHA, 1985, p. 80).
É importante registrar que o Diretório não cuidava apenas das ques-
tões do idioma e, de fato, comportava motivações de ordem política
e econômica. Por um lado, a rivalidade da Metrópole para com os je-
suítas, que catequizavam os índios na língua geral e sobre eles tinham
grande ascendência; por outro, o projeto de reorganizar as bases pro-
dutivas da Colônia e de estimular o comércio, para o qual era neces-
sária a cooperação dos índios (que se achavam sob o controle jesuítico
aprendendo o “grego da terra”, como registra Cunha, (1985, p. 75).
Tanto o quadro era esse que os jesuítas, integrantes da Companhia de
Jesus, foram expulsos do Brasil em 1759.
No entanto, não há que nos iludirmos com uma substituição pronta e
rápida da língua geral pela língua portuguesa. Na prática, a teoria era
outra, uma vez que a língua geral persistia mesmo com a prescrição
substitutiva, afinal, é preciso lembrar, as escolas eram praticamente
inexistentes (os jesuítas ensinavam os índios reunidos em suas mis-
sões) (LESSA, 2002).
No fim do século XIX e início do XX, com o romancista José de
Alencar, chega ao ápice a discussão em torno da adoção da “língua
brasileira”, tendo em vista o caráter distintivo resultante das várias et-
nias embasadoras da história da nação brasileira. Viviam-se os dias
do Romantismo, quando vigorosamente se explorou a relação entre
afirmação da nacionalidade e idioma próprio.
De modo semelhante, no século XX, agora sob os ares do Modernis-
mo, “reacende-se a polêmica em torno da ‘língua brasileira’”, na qual
se destaca a intenção do autor Mário de Andrade de produzir uma
“gramatiquinha da língua brasileira” (BAGNO, 2002, p. 187).
Mas foi na Era Vargas que a política relativa ao idioma alcançou pata-
mar inaceitável. A nacionalização do ensino patrocinada pelo Gover-
no Federal chegou a criar a figura do “crime idiomático”, a fim de pu-
nir as populações imigrantes que insistissem em utilizar seus idiomas
maternos em solo brasileiro. De acordo com Oliveira (2001, p. 88):
Durante o Estado Novo, mas sobretudo entre 1941 e 1945, o
governo ocupou as escolas comunitárias e as desapropriou, fe-
chou gráficas de jornais em alemão e italiano, perseguiu, prendeu
e torturou pessoas simplesmente por falarem suas línguas mater-
nas em público ou mesmo privadamente, dentro de suas casas,
instaurando uma atmosfera de terror e vergonha (...)
(...)
Brasil: nação monolíngüe?
193

O governo de Santa Catarina montou campos de trabalho força-


do, sobretudo para descendentes de alemães que insistissem em
falar sua língua; a Polícia Militar, não só neste estado, prendeu e
torturou, obrigou as pessoas a deixar suas casas em determinadas
“zonas de segurança nacional”. Mais grave que tudo isso: a escola
da “nacionalização” estimulou as crianças a denunciar os pais que
falassem alemão ou italiano em casa, criando seqüelas psicológi-
cas insuperáveis para esses cidadãos que, em sua grande maioria,
eram e se consideravam brasileiros, embora falando alemão.

Como tratar assim cidadãos cujas etnias desempenharam papel impor-


tantíssimo na própria constituição histórica do povo brasileiro? Como
tachar cidadãos brasileiros de criminosos com base, única e exclusiva-
mente, no idioma empregado até mesmo na intimidade do lar?
Não que o assunto da nacionalização dos imigrantes já não tivesse sido
considerado, mas nunca com tamanha truculência. Sabe-se que, desde
o início da chegada dos imigrantes, pensava-se em projetos para uma
educação em que a língua portuguesa tivesse lugar privilegiado, espe-
cialmente nas localidades com níveis mais intensos de imigração (RI-
BEIRO, 1889; BILAC, 1916 apud BOLOGNINI & PAYER, 2005).
Interessante também é o silenciamento que recobre o assunto, uma
vez que muito pouco, ou mesmo nada, se fala acerca daquela ação go-
vernamental tão bem inserida na política ditatorial getulista.
Em 1943, a Academia Brasileira de Letras (ABL) editou, com valor
de lei, o Formulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que trazia as
regras ortográficas vigentes, bem como instruções para a organização
do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP). Lembre-
mos que o Formulário teve como base o Vocabulário Ortográfico da
Academia de Ciências de Lisboa, de 1940, e foi alterado pela Lei nº
5.765, de 1971.
Em 1959, um decreto traz à luz a Norma Gramatical Brasileira
(NGB), que tinha como principal objetivo dar uma feição uniforme
à diversificada terminologia empregada nas muitas gramáticas edi-
tadas à época.
Quanto ao ordenamento legal brasileiro estrito, em 1973, o Código
de Processo Civil prescreve explicitamente que “em todos os atos e
termos do processo é obrigatório o uso do vernáculo” (art. 156 da Lei
nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973). E, em 1998, é editada a Lei Com-
plementar nº 95, que contém instruções acerca da elaboração, redação,
alteração e consolidação das leis.
194 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Por sua vez, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP)


foi editado em 1981, e, de acordo com a ABL, contém a “forma oficial
de escrever as palavras conforme o Formulário Ortográfico”. Conten-
do cerca de 350 mil verbetes, sua quarta edição saiu em 2004.
Em 1988, o Brasil assiste ao nascimento de sua oitava Carta Magna,
que, pela primeira vez, qualifica o idioma oficial do País, como consta
do seu art. 13, caput: “A língua portuguesa é o idioma oficial da Repú-
blica Federativa do Brasil”. Também pela primeira vez, é reconhecido
o direito, apenas para as comunidades indígenas, à ministração no en-
sino fundamental regular em suas línguas maternas, como segue:
Art. 210, §2º. O ensino fundamental regular será ministrado em
língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas tam-
bém a utilização de suas línguas maternas e processos próprios
de aprendizagem.
(...)
Art. 231, caput. São reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos ori-
ginários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, compe-
tindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os
seus bens.

É de suma importância registrar que, em 2002, o município amazo-


nense de São Gabriel da Cachoeira, por meio da Lei Municipal nº
145, co-oficializou as línguas nheengatu, tukano, baniwa e portu-
guês, tendo em vista a franca utilização pelos habitantes do lugar. A
título de ilustração, veja-se o exemplo de propaganda política de um
candidato local nas eleições de 1998 redigida em nheengatu (OLI-
VEIRA, 2001, p. 86).
Em 1998, o Ministério da Educação (MEC) adota os Parâmetros e
Referenciais Curriculares Nacionais (PCN), cuja premissa norteadora
de descrever conteúdos para os ensinos fundamental e médio foi além
da construção de referências nacionais em educação e buscou respeitar
as diversidades regionais, culturais e políticas existentes nas regiões
do Brasil. Embora não tenham caráter obrigatório, os PCN foram
estruturados com o objetivo de propiciar aos alunos os conhecimentos
tidos como indispensáveis ao exercício da cidadania.
Quanto à linguagem empregada nos documentos oficiais, em 2002,
vem à luz a segunda edição, revista e atualizada – a primeira havia
saído em 1981 –, do Manual de Redação da Presidência da República, do
qual destaco os trechos que seguem:
Brasil: nação monolíngüe?
195

A transparência do sentido dos atos normativos, bem como


sua inteligibilidade, são requisitos do próprio Estado de Di-
reito: é inaceitável que um texto legal não seja entendido pe-
los cidadãos.
(...) Elas [as comunicações oficiais] devem sempre permitir uma
única interpretação e ser estritamente impessoais e uniformes, o
que exige o uso de certo nível de linguagem.
(...) Fica claro também que as comunicações oficiais são neces-
sariamente uniformes, pois há sempre um único comunicador
(o Serviço Público) e o receptor dessas comunicações ou é o
próprio Serviço Público (no caso de expedientes dirigidos por
um órgão a outro) ou o conjunto dos cidadãos ou instituições
tratados de forma homogênea (o público). (p. 4)
(...) O mesmo [em referência ao uso de um padrão de lingua-
gem] ocorre com os textos oficiais: por seu caráter impessoal, por
sua finalidade de informar com o máximo de clareza e concisão,
eles requerem o uso do padrão culto da língua. Há consenso de
que o padrão culto é aquele em que a) se observam as regras da
gramática formal, e b) se emprega um vocabulário comum ao
conjunto dos usuários do idioma. É importante ressaltar que a
obrigatoriedade do uso do padrão culto na redação oficial de-
corre do fato de que ele está acima das diferenças lexicais, mor-
fológicas ou sintáticas regionais, dos modismos vocabulares, das
idiossincrasias lingüísticas, permitindo, por essa razão, que se
atinja a pretendida compreensão por todos os cidadãos. (p. 5,
destaque no original).
(...) [Em referência a neologismos e estrangeirismos] A redação
oficial não pode alhear-se dessas transformações, nem incorpo-
rá-las acriticamente. (...) De outro lado, não se concebe que, em
nome de suposto purismo, a linguagem das comunicações ofi-
ciais fique imune às criações vocabulares ou a empréstimos de
outras línguas. (p. 65)

Do Manual, cite-se também o Anexo I do Decreto nº 4.176, de 2002,


que relaciona as “Questões que devem ser analisadas na elaboração
de atos normativos no âmbito do Poder Executivo”, especialmente a
décima pergunta e uma de suas subdivisões:
10. O ato normativo corresponde às expectativas dos cidadãos e
é inteligível para todos?
(...)
10.5. Podem os destinatários da norma entender o vocabulário
utilizado, a organização e a extensão das frases e das disposições,
a sistemática, a lógica e a abstração? (p. 91)

Aparentemente desconexo com o cerne deste artigo, mas compreensí-


vel em relação ao verdadeiro alcance dessas prescrições e preocupações
196 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

legais, registro o seguinte questionamento: Será que a simples pre-


valência do discurso de unidade em torno da língua portuguesa faz
com que o conjunto de cidadãos brasileiros realmente tenha acesso
à Constituição Federal e à legislação infraconstitucional, e efetiva-
mente compreenda o que elas registram? O fato de o registro dar-se
de modo exclusivo em língua portuguesa automaticamente abre as
portas para a compreensão?

III. Reconhecimento do plurilingüismo brasileiro

Após a longa tradição do ideal de unidade lingüística – postura que


apenas camuflou a realidade (OLIVEIRA in CALVET, 2007) –, o
Brasil vem dando importantes passos no reconhecimento da sua ver-
dadeira condição lingüística, que é plurilíngüe.
Do ponto de vista acadêmico, importa registrar a elaboração da En-
ciclopédia das Línguas no Brasil (ELB), projeto em andamento (da-
dos parciais já podem ser acessados via internet – http://www.labeurb.
unicamp.br/elb/) e que é coordenado pelo Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade de Campinas (Unicamp).
Voltemo-nos para o ordenamento legal em nível federal.
A Constituição Federal, editada em 1988, foi a primeira Carta Magna
brasileira a reconhecer os direitos lingüísticos dos indígenas. Contudo,
na medida em que explicitamente nomeou tal parcela da população, de
modo inevitável excluiu os falantes das demais línguas existentes no
território nacional, como as línguas dos imigrantes, as línguas crioulas
e as línguas de sinais de comunidades surdas.
Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)
e, em 1999, os Referenciais Curriculares Indígenas (RCN/Indígenas)
inscreveram a garantia do ensino bilíngüe para as comunidades indí-
genas, a autogestão indígena nas escolas específicas e o desenvolvi-
mento de currículos e programas correspondentes às suas culturas.
No ano de 2006, a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos
Deputados, em parceria com o Instituto de Investigação e Desenvol-
vimento em Política Lingüística (IPOL) e o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan), realizou o Seminário Legisla-
tivo sobre a Criação do Livro de Registro de Línguas.
O evento discutiu a importância do registro dos idiomas falados no
Brasil como patrimônio cultural imaterial, bem como a premência de
políticas públicas direcionadas ao reconhecimento da diversidade lin-
Brasil: nação monolíngüe?
197

güística brasileira, que se traduz, segundo o IPOL, em mais de dois


milhões de pessoas que têm outra língua materna que não a portugue-
sa. Nas palavras de Pedro Garcez (2006), participante do Seminário:
“Vejo o registro das línguas minoritárias brasileiras como primeiro
passo na direção de tirar da clandestinidade simbólica esse patrimô-
nio imaterial brasileiro, as diversas línguas que são formas de vida em
muitas comunidades deste país”.
Ante a necessidade de estratégias para o alcance de tais objetivos, do
Seminário resultou a criação do Grupo de Trabalho (GT) da Diver-
sidade Lingüística.
Em dezembro de 2007, os resultados desse GT – que reúne várias ins-
tituições – foram apresentados na Audiência Pública sobre Diversida-
de Lingüística, realizada na Câmara Federal pelas mesmas entidades
promotoras do Seminário.
O relatório do GT culminou na sugestão de duas principais ações:
1) a realização de um Inventário Nacional da Diversidade Lingüís-
tica2, documento que permitirá o mapeamento das mais de duzentas
línguas faladas em território brasileiro, a fim de que se ofereça suporte
à criação de políticas públicas voltadas para a preservação de cada uma
delas e para o respeito aos direitos dos falantes; 2) a elaboração de
emenda à Constituição Federal que efetivamente reconheça o pluri-
lingüismo brasileiro, mediante a inclusão de todas as línguas faladas
no território nacional.
Para dar início ao Inventário – que deverá passar a existir oficialmente
por meio de decreto presidencial –, a estratégia é realizar projetos-
piloto em seis comunidades, sendo duas de línguas indígenas, uma
de imigrantes, uma de afro-brasileiros, uma de língua crioula e uma
de língua de sinais. Por outro lado, importante entidade que integra o
GT, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) decla-
rou que, no Censo de 2010, serão incluídas categorias que permitam
o recolhimento de dados acerca das línguas e variações lingüísticas
existentes no país.
Por fim, podemos encaixar o movimento brasileiro em torno de sua
diversidade lingüística em um espectro ampliado, como parte de um
projeto em nível internacional, se considerarmos algumas ações que
merecem destaque, uma vez que o Brasil é delas signatário. Trata-
se, primeiro, da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural,
da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

2
O próximo passo nesse processo será a criação do Livro de Registro das Línguas.
198 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Cultura (Unesco), de 2001, em que se reconhece a diversidade como


patrimônio comum da humanidade, garantidor da interação harmo-
niosa entre as pessoas e culturas, bem como do desenvolvimento em
sentido amplo.
A segunda ação refere-se à Convenção para a Salvaguarda do Patri-
mônio Cultural Imaterial, também da Unesco, de 2003, que explici-
tamente reconhece a tradição e a expressão oral, aí incluído o idioma,
como veículos desse patrimônio.
Por fim, ainda em tramitação na Organização das Nações Unidas
(ONU), mesmo tendo sido proclamada em 1996 – portanto, antes
das duas Declarações citadas –, faz-se mister registrar a existência da
Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos (OLIVEIRA, 2003),
que reconhece as perspectivas política, cultural e econômica para o
respeito e o desenvolvimento de todas as línguas, que, por sua vez, não
devem responder a julgamentos ou a classificações arbitrárias.

Concluindo...

Como bem apontou Celso Cunha, “cumpre-nos, pois, estudar a reali-


dade presente, não só por ela mesma, nem apenas para dela partirmos
em busca de uma reconstrução do passado, mas principalmente, para
com ela orientarmos, planejarmos o nosso futuro” (1985, p. 87).
A história de um país não é construída apenas por fatos. A lingua-
gem desempenha papel crucial em todo o processo, ainda que a ela
venham-se direcionando, primordialmente, posturas prescritivistas e
inculcadoras de preconceitos, que, por sua vez, não resistem a argu-
mentos científicos (BAGNO, 2001b).
O português não é língua materna para, estima-se pelo menos, dois
milhões de brasileiros. Isso não pode ser simplesmente desconsidera-
do, pois tal postura tem-se traduzido em resultados negativos no que
se refere às políticas públicas de educação.
De fato, a diversidade lingüística deve ser celebrada e não combati-
da como se representasse um mal. Nem mesmo deve-se apelar para
a indiferença, pois, no dizer de Orlandi (2007, p. 8), “que unidade
se constrói ignorando a diversidade que constitui um mesmo cam-
po lingüístico?”
“A padronização dos comportamentos lingüísticos”, conclui Corbeil
(2001), “é parte integrante da organização social, independentemente
da descrição ou da interpretação que podem fazer dela os observa-
Brasil: nação monolíngüe?
199

dores, antropólogos, sociólogos ou lingüistas”. Embora verdadeira a


afirmação, não podemos compactuar com a postura padronizadora se
ela é empregada, ainda que não explicitamente, como justificativa para
a exclusão, para a discriminação.
Na verdade, sob o pretexto do cumprimento da vontade de todos, o
discurso avaliativo-prescritivo das classes dominantes abriga propó-
sitos de unificação a qualquer custo, o que abre espaço para os puris-
tas, cuja postura não está isenta de críticas, tendo em vista que, como
modelo unitário e permanente, fortemente seletivo, ignora o conheci-
mento científico e recusa a realidade do uso, pois encontra-se ancora-
do no apagamento das implicações sociais dos julgamentos.
Por outro lado, rechaçar qualquer forma de normatização pode ser
interpretado como a adoção do “vale-tudo” por parte dos lingüistas,
o que não corresponde à verdade, pois os pesquisadores envolvidos
com a linguagem postulam o acompanhamento da construção da nor-
ma mediante análise científica e compreensão da atividade normativa
como uma prática social e não como uma atitude com um fim em
si mesma (REY, 2001, p. 135; BAGNO, 2003, p. 156). Além disso,
considerando que a política se traduz na “arte do possível”, ao nos
voltarmos para a política lingüística, tal afirmação apenas evidencia
o fundamental papel a ser desempenhado pelo lingüista (CALVET,
2007, p. 86).
Por isso, muito mais do que visar a meros objetivos de integração,
oferecer como que uma “autonomia lingüística” aos falantes brasilei-
ros de línguas não-oficiais terá resultados vigorosos na manutenção e
preservação da cultura de cada uma delas, aliás, como bem prescreveu
a LDB em relação aos indígenas:
Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das
agências federais de fomento à cultura e de assistência aos ín-
dios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisas,
para oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos
indígenas, com os seguintes objetivos:
I – proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recupe-
ração de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identi-
dades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;
II – garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às
informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade
nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.
Para Calvet (2007, p. 69), são dois os tipos de gestão das situações
lingüísticas. A que procede das práticas sociais (in vivo, dos falantes)
e a resultante da intervenção sobre essas práticas (in vitro, do poder).
Pensando no Brasil, o que se deve estabelecer é a valorização das
200 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

práticas sociais, que evidentemente englobam as práticas lingüísti-


cas, e não apenas tê-las como alvo de legislação segregadora.
No dizer de Barbaud (2001, p. 277), como caminhos para a reconcilia-
ção entre a língua do Estado e o estado da língua (definições tratadas
na parte introdutória deste artigo), apontam-se: a atenuação das ten-
sões experimentadas pelo falante-cidadão; a avaliação do real alcance
tanto do poder de alienação quanto do de libertação da língua do Es-
tado, considerado o estado da língua; e, por último, o enfrentamento
da realidade lingüística do mundo moderno.
Em suma, quando a sociedade brasileira pára com o objetivo de cele-
brar as duas décadas de vigência de sua Carta Magna, analisando-lhe
o impacto sobre o destino dos cidadãos, no que respeita ao tema deste
artigo, importa reconhecer o caráter plurilíngüe da nação e mudar o
texto da Constituição Federal, incluindo todas as comunidades que
não têm o português como língua materna.
É preciso provocar a adoção de políticas públicas, nas três esferas go-
vernamentais, que contemplem a realidade lingüística brasileira, sob
pena de, em caso contrário, continuar-se excluindo exatamente aque-
les a quem a “Constituição Cidadã” propôs-se amparar: “Dos filhos
deste solo, és mãe gentil, Pátria amada, Brasil!”

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Cultura
203

A cultura no ordenamento
constitucional brasileiro:
impactos e perspectivas
José Ricardo Oriá Fernandes

Pioneiramente, o legislador constituinte, sensível às mudanças epis-


temológicas no âmbito das Ciências Humanas e motivado pelas rei-
vindicações de movimentos sociais os mais diversos que emergiram
na cena política nacional dos anos 80, esculpiu, de forma lapidar, no
texto constitucional, o Princípio da Cidadania Cultural.
Pela primeira vez na história constitucional do país, passou-se a fa-
lar em direitos culturais. Isso já se constituiu um grande impacto
advindo com a Constituição de 1988, que permitiu à sociedade a
reivindicação do acesso aos bens culturais como expressão maior da
cidadania. Por sua vez, o poder público, em suas diversas instâncias,
sentiu a necessidade de contemplar, em sua agenda política, ações
que garantissem os direitos culturais a todos os brasileiros. Ocor-
reu, pioneiramente, uma constitucionalização da cultura. A seção II,
do Capítulo III, do Título VII, da nossa Constituição, é dedicada à
questão cultural, afora artigos outros, parágrafos e incisos que tra-
tam, direta ou indiretamente, da cultura.
Os Princípios Constitucionais da Cidadania e da Diversidade Cultu-
ral norteiam o capítulo da Cultura de nossa Carta Magna. Veremos,
pois, cada um de per si.

Cultura e cidadania: um diálogo necessário

De tempos em tempos, em torno de nossa História Política, surgem


expressões que caem na “boca do povo” e chegam até a se desgastar
de tanto serem usadas. Uma dessas palavras é “cidadania”. Fala-se
em “resgate da cidadania”, “exercício da cidadania”, “promoção da
cidadania”, entre tantas outras expressões. Todos – políticos de dife-
rentes correntes ideológicas, empresários, o próprio governo, parti-
dos políticos, sindicatos, movimentos sociais e, mais recentemente,
204 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

as organizações não governamentais (ONG’s) – seguram a bandeira


e reivindicam para si a defesa intransigente da cidadania.
A atual Constituição – objeto de análise desse livro – foi até suges-
tivamente chamada pelo então deputado Federal Ulysses Guimarães
de “Constituição Cidadã”, por garantir, após o regime militar (1964-
1985), uma gama considerável de direitos fundamentais.
Na verdade, os cientistas políticos e historiadores são acordes em con-
siderar que o fato mais importante da História Contemporânea do
Brasil, nos últimos anos, foi o surgimento de um sentimento genera-
lizado de cidadania.
Mas, o que é, de fato, cidadania? O que significa ser cidadão num
país de profundos e gritantes conflitos e contradições sociais, ge-
rados em grande parte pela acumulação injusta do capital, pela má
distribuição de renda e pelo aviltamento do trabalho humano? Em
meio às desigualdades sociais com que convivemos cotidianamente,
somos realmente cidadãos? 1 Como a Cultura se insere na questão
da cidadania?
Como sabemos, todo conceito tem uma historicidade. Falar de cidada-
nia implica, primeira e necessariamente, uma análise histórica de como
esse conceito surgiu e evoluiu até nossos dias. Vejamos, pois, numa breve
incursão histórica, a mutabilidade do conceito de cidadania.
A expressão cidadania e seus correlatos estão historicamente ligados
à civilização greco-romana, na Antiguidade Ocidental. A palavra ci-
dadão tem sua origem no vocábulo cidade. Para os gregos e romanos,
respectivamente, cidadão era o habitante da cidade-estado – a pólis
grega – ou da civitas de Roma.
Na Idade Média, face à ruralização da sociedade e à fragmentação do
poder político nos domínios dos senhores feudais, podemos dizer que
a cidadania, enquanto prática política dos antigos gregos e romanos,
deixou de existir.
A idéia de cidadania reaparece com a formação do Estado moderno,
longo processo que se inicia por volta do século XVI. No entan-
to, são com as Revoluções Burguesas do século XVIII, em especial
a Revolução Francesa (1789-1798), que derrubou o Ancien Régi-
me e instituiu a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789), e a Independência dos Estados Unidos da América (1776),

1
Sobre a conquista e o exercício dos direitos de cidadania no Brasil, consultar o
excelente trabalho de CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo
caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
A cultura no ordenamento constitucional brasileiro: impactos e perspectivas
205

com a adoção de uma nova forma de governo – a República, é que a


cidadania como conjunto de direitos e deveres ressurge com maior
intensidade e passa a influenciar o mundo contemporâneo, suas leis
e constituições.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), surge com
maior vigor a necessidade de uma legislação universal de garantia dos
direitos da pessoa humana face à arbitrariedade do Estado. É a De-
claração dos Direitos Humanos, proclamados pela Organização das
Nações Unidas (ONU), em 1948.
Esse documento internacional já fazia menção aos direitos culturais,
ao determinar que
“Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural
da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico
e de seus benefícios.”
A partir da década de 60 do século passado, assistimos ao apareci-
mento de vários “movimentos” encetados por novos sujeitos e atores
sociais – negros, índios, mulheres, trabalhadores, homossexuais, etc. –
que passaram a reivindicar a criação de novos direitos, a construção
de uma cidadania plena não circunscrita tão-somente ao campo da
legalidade jurídica.
Por sua vez, a redescoberta da sociedade civil organizada, que se deu a
partir dos “efervescentes” anos 60, cujo ápice é o ano de 1968, desper-
tou o interesse da Academia pela temática da cidadania.
T.H. Marshall, cientista político inglês, foi um dos pioneiros na análi-
se do conceito de cidadania, num de seus estudos clássicos intitulado
“Cidadania, status e classe social”. Para ele, a cidadania é constituída
de três partes ou elementos:
O elemento civil é composto dos direitos necessários à liber-
dade individual, liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa,
pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contra-
tos válidos e o direito à justiça. Este último difere dos outros
porque é o direito de defender e afirmar todos os direitos em
termos de igualdade com os outros e pelo devido encaminha-
mento processual. Isto nos mostra que as instituições mais
intimamente associadas com os direitos civis são os tribunais
de justiça. Por elemento político se deve entender o direito de
participar no exercício do poder político, como membro de um
organismo investido de autoridade política ou como eleitor dos
membros de tal organismo. As instituições correspondentes
são o parlamento e o conselho de governo local. O elemento
social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de
206 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

bem-estar e segurança ao direito de participar, por completo,


na herança social e levar a vida de um ser civilizado, de acordo
com os padrões que prevalecem na sociedade. As instituições
mais intimamente ligadas com ele são o sistema educacional e
os serviços sociais.2

Assim, a cidadania é formada pelo conjunto de direitos civis, direitos


políticos e direitos sociais, que corresponderia, na terminologia de
Marshall, à cidadania civil, à cidadania política e à cidadania so-
cial, respectivamente.
Com base neste referencial teórico, a expressão cidadania deve ser to-
mada a partir de uma perspectiva política e, portanto, mais ampla,
não circunscrita tão-somente ao universo jurídico, que compreende
cidadania como mera expressão daquelas pessoas que, por serem de-
tentoras de direitos políticos, podem votar e ser votadas.
Por sua vez, o termo “cidadão” deve ser compreendido em sua dimen-
são dialética, ou seja, o indivíduo que tem direitos e deveres perante a
sociedade da qual faz parte, mas também o sujeito histórico, responsá-
vel pelos destinos da nação e partícipe ativo das transformações sociais
de que tanto necessitamos.
Entretanto, a literatura jurídica brasileira, na sua grande maioria, im-
pregnada do viés positivista legalista-normativista, tem considerado
a cidadania como a mera relação legal que se estabelece entre o indi-
víduo e o país de sua nacionalidade. Neste sentido, a expressão cida-
dania, no contexto dessa concepção tradicional, identifica aquele que
está na plena posse de seus direitos políticos, cumprindo seus deveres
de cidadão.
Hoje, entendemos que a cidadania não pode se resumir na exclusiva
possibilidade de manifestar-se, periodicamente, por meio de eleições
para o Legislativo e o Executivo. A prática político-social vem exi-
gindo, cada vez mais, nos nossos dias, a própria reformulação do seu
conceito, radicalizando, até, uma tendência que já vem se delineando
de longa data, qual seja, a participação democrática do cidadão nas
mais diversas instâncias do social e na defesa e garantia de seus direi-
tos fundamentais.
A ampliação do conceito de cidadania se deve em grande parte à
emergência de novos atores coletivos na cena política, protagonizados
pelos mais diversos movimentos sociais populares que, no espaço pú-

2
MARSHALL, T. H. Cidadania, status e classe social. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1967, p. 63-64.
A cultura no ordenamento constitucional brasileiro: impactos e perspectivas
207

blico, reivindicam para si “o direito aos direitos”, ou seja, o exercício e


a conquista da plena cidadania.

Direitos culturais como direitos fundamentais 3

A partir da análise de Marshall, podemos concluir que os direitos cul-


turais configuram-se como direitos sociais, pertencentes à chamada
cidadania Social. Constituem-se, por assim dizer, em autênticos direi-
tos de cidadania.
Mas o que vem a ser direitos culturais? Podemos dizer que são aqueles
direitos que o indivíduo tem em relação à cultura da sociedade da qual
faz parte, que vão desde o direito à produção cultural, passando pelo
direito de acesso à cultura até o direito à memória histórica.
O direito de produção cultural parte do pressuposto de que todos os ho-
mens produzem cultura. Todos somos, direta ou indiretamente, pro-
dutores de cultura. É o direito que todo cidadão tem de exprimir sua
criatividade ao produzir cultura.
O direito de acesso à cultura pressupõe a garantia de que, além de pro-
duzir cultura, todo indivíduo deve ter acesso aos bens culturais produ-
zidos por essa mesma sociedade. Trata-se da democratização dos bens
culturais ao conjunto da população.
E, finalmente, o direito à memória histórica4 como parte dessa concep-
ção de Cidadania Cultural, segundo o qual todos os homens têm o
direito de ter acesso aos bens materiais e imateriais que representem o
seu passado, a sua tradição e a sua História.
Vale ressaltar que os três grupos de direitos que compõem os cha-
mados direitos culturais são partes interdependentes de uma mesma
concepção de cidadania cultural. Na verdade, os direitos culturais são
direitos de cidadania e direitos fundamentais, segundo a moderna

3
A expressão “direitos fundamentais” tem sido a terminologia preferida na doutrina
e nos textos constitucionais, nas últimas décadas, em substituição à expressão “di-
reitos humanos”. Dos direitos humanos de caráter individualista, legado do ideário
liberal-burguês das revoluções do século XVIII, passamos, com a nova Constitui-
ção, para uma dimensão mais coletivista, que contempla, também, outros direi-
tos, principalmente os de caráter social (direito à educação, à saúde, à cultura) e
os direitos difusos (direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado, direito à
memória, direito à identidade cultural, entre outros).
4
A discussão sobre o direito à memória como parte integrante do princípio da Ci-
dadania Cultural foi objeto de nossa dissertação de mestrado, intitulada O direito à
memória: a proteção jurídica ao patrimônio histórico-cultural brasileiro. Fortaleza:
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, 1995.
208 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

terminologia jurídica. Essa é uma tendência generalizada nos países


ocidentais, conforme afirmam Gomes Canotilho e Pereira da Silva 5,
constitucionalistas portugueses, ao se referirem ao conjunto de nor-
mas que fazem alusão às matérias e disposições consubstanciadoras
dos direitos sociais relativos à cultura. Houve, no Brasil, a partir da
Constituição de 1988, uma nova “Ordem Constitucional da Cultura”
ou uma “Constituição Cultural”, presente nos arts. 215 e 216.
Podemos também acrescentar aos direitos culturais, anteriormente ex-
plicitados, o direito à informação como condição básica ao exercício da
cidadania e o direito à participação nas decisões públicas sobre a cultura,
por meio de conselhos e fóruns deliberativos, onde o cidadão possa,
através de seus representantes, interferir nos rumos da política cultural
a ser adotada, distanciada dos padrões do clientelismo e da tutela as-
sistencialista que, geralmente, norteiam as políticas públicas no país.
Na atual Constituição brasileira, pela primeira vez, o legislador cons-
tituinte teve a sensibilidade política de enquadrar no rol dos direitos
fundamentais os chamados direitos culturais e de exigir que o Estado
garanta a todos os brasileiros o exercício desses direitos. Isto é eviden-
te a partir da leitura ao dispositivo constitucional: “O Estado garantirá
a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da
cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.” (art. 215, caput):
Além do dispositivo supra, a Constituição Federal, no seu art. 227, no
Capítulo VII – Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso,
ao tratar do dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar à
criança e ao adolescente direitos básicos ao seu desenvolvimento in-
tegral como pessoa, elenca entre esses direitos o direito à cultura. Este
mesmo dispositivo constitucional encontra-se consagrado no Estatuto
da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.060/90). Mais recentemente, o
Estatuto do Idoso prevê, em seus arts. 20 e 23, o exercício dos direitos
culturais a esse segmento da população (Lei nº 10.741, de 2003).
Como se vê, as leis que surgiram posteriores à Constituição de 1988
já incorporam aos seus dispositivos a necessidade de garantia dos di-
reitos culturais como dimensão importante do exercício da cidadania,
seja para crianças, adolescentes, jovens ou idosos.

5
Conforme SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos funda-
mentais e cultura. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2007.
A cultura no ordenamento constitucional brasileiro: impactos e perspectivas
209

A diversidade cultural brasileira

Muitos antropólogos, historiadores e cientistas sociais, a exemplo de


Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Fer-
nando de Azevedo, Darcy Ribeiro e, mais recentemente, Roberto da
Matta, Carlos Guilherme Mota e Renato Ortiz, já se preocuparam
em definir e compreender a Cultura Brasileira em suas múltiplas di-
mensões. Todos, no entanto, são unânimes em concordar que a ca-
6
racterística marcante de nossa cultura é a riqueza de sua diversidade ,
resultado de nossa formação histórico-social, que moldou um país
de proporções territoriais continentais. Construímos, no decorrer de
nossa História, uma sociedade pluriétnica, resultado da miscigenação
racial de três matrizes: a indígena, a européia e a africana.
Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do
invasor português com índios silvícolas e campineiros e com
negros africanos, uns e outros aliciados como escravos. (...) A
sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como variantes
da versão lusitana da tradição civilizatória européia ocidental,
diferenciadas por coloridos herdados dos índios americanos e
dos negros africanos. 7

Apesar da influência marcante da cultura de matriz européia, por for-


ça da colonização ibérica em nosso país, a cultura tida como domi-
nante não conseguiu, de todo, apagar as culturas indígenas e africanas.
Muito pelo contrário: no decorrer de nossa História, o colonizador
português deixou-se influenciar pela riqueza da pluralidade cultural
dos índios e dos negros.
No entanto, o modelo de organização político-institucional implan-
tado pelos portugueses também se fez presente no campo da cultura.
E, neste sentido, a presença do Estado se deu de forma marcante na
condução do processo artístico-cultural e consagrou a falsa dicotomia
entre “cultura erudita” e “cultura popular”.
Assim, somos herdeiros diretos da civilização cristã-ocidental, de ori-
gem ibérico-lusitana, com matizes variados das culturas indígena e

6
Embora em contextos históricos diferenciados, estes autores produziram obras
clássicas da Historiografia e do Pensamento Social brasileiro, entre as quais pode-
mos mencionar: Gilberto Freyre (Casa-grande e senzala), Fernando de Azevedo (A
cultura brasileira), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil), Caio Prado Júnior
(Formação do Brasil contemporâneo), Darcy Ribeiro (O povo brasileiro), Roberto da
Matta (Carnavais, malandros e heróis), Carlos Guilherme Mota (Ideologia da cultura
brasileira) e Renato Ortiz (Cultura brasileira e identidade nacional).
7
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Cia. das Letras, 1995, p. 19-20.
210 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

africana. A essas etnias, vieram participar, também, na formação da


cultura nacional, os imigrantes que aportaram em território brasileiro,
a partir da segunda metade do século XIX. Italianos, alemães, espa-
nhóis, japoneses, poloneses, judeus, ucranianos, sírio-libaneses, entre
outros, contribuem para a riqueza de nossa diversidade cultural.
Por outro lado, não podemos esquecer que o tema da diversidade cultu-
ral ganhou a agenda política internacional, conforme acentua Calabre:
Ocorre, hoje, em nível mundial um processo de valorização cada
vez maior da cultura nas sociedades em um mundo globalizado.
Os processos culturais vêm sendo considerados importantes, seja
como fontes e geração de renda e emprego, seja como elementos
fundamentais na configuração do campo da diversidade cultural
e da identidade nacional.8

O reconhecimento de que somos um país de marcante diversidade


cultural está também consagrado no texto constitucional. Vejamos,
pois, alguns artigos que tratam do pluralismo cultural 9 como princí-
pio constitucional:
1. A proteção do poder público
“O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, in-
dígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional.” (Art. 215 §1º)
2. A incorporação de datas no calendário cívico-nacional
“A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta sig-
nificação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.” (art.
215 § 2º)
3. O ensino de História do Brasil
“O ensino de História do Brasil levará em conta as contribuições
das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasilei-
ro.” (art. 242 § 1º)

8
CALABRE, Lia. Política Cultural no Brasil: um histórico In: CALABRE, Lia
(org.). Políticas culturais: diálogo indispensável. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui
Barbosa, 2005, p. 18-19.
9
Segundo Cunha Filho, “o princípio do pluralismo cultural consiste em que todas
as manifestações de nossa rica cultura gozam de igual status perante o Estado, não
podendo nenhuma ser considerada superior ou mesmo oficial. A Constituição não
admite hierarquia ou o privilegiamento de expressões culturais, sejam produzidas
por quem for, doutores ou analfabetos, campesinos ou urbanistas, ricos ou pobres.”
(CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Os princípios constitucionais culturais
In: LEITÃO, Cláudia (org.). Gestão cultural: significados e dilemas na contempora-
neidade. Fortaleza: Banco do Nordeste, 2003, p. 109).
A cultura no ordenamento constitucional brasileiro: impactos e perspectivas
211

4. O segmento afro-brasileiro
Em relação especificamente ao segmento afro-brasileiro, podemos
citar a decisão do Poder Público em tombar todos os documentos
e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos qui-
lombos, conforme estabelece o art. 216, § 5º. Com esse dispositi-
vo constitucional, o legislador abriu uma exceção e criou uma nova
modalidade de tombamento pela via legislativa, pois o tombamento,
pela legislação que lhe é específica (Decreto-Lei nº. 25/37), é ato
administrativo do Poder Executivo que declara o valor histórico-
cultural de um determinado bem material.
No art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o
legislador constituinte teve a sensibilidade histórica de reconhecer
a importância dos quilombos e quilombolas na formação de nossa
identidade cultural ao estabelecer que:
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, deven-
do o Estado emitir os títulos respectivos.”
5. As comunidades indígenas
Os índios também têm seu lugar na atual Constituição brasileira,
através de capítulo específico, e a demonstração por parte do legis-
lador da necessidade de se preservar essa cultura milenar. É o que
estabelecem os seguintes artigos:
“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes. línguas, crenças e tradições e os direitos originários so-
bre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles
habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambien-
tais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução
física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”

Às comunidades indígenas remanescentes são-lhes assegurada a


utilização de suas línguas maternas e processos próprios de apren-
dizagem, conforme estatui o art. 210 § 2º da Constituição.
Assim, a análise do texto constitucional permite-nos concluir que
há uma tentativa de construção de uma memória plural, que venha
subsidiar uma nova política cultural para o país. A atual Consti-
tuição tenta, pois, corrigir uma omissão, ao estabelecer em vários
dispositivos a importância de outros elementos formadores do pro-
cesso civilizatório nacional e que devem ter suas manifestações cul-
turais preservadas para as atuais e futuras gerações de brasileiros.
212 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

No tocante aos bens culturais, nunca antes um texto constitucional


brasileiro lhes dedicou tanto espaço e relevância. Pela primeira vez
surge a denominação “patrimônio cultural”, sua definição e carac-
terização. Outra novidade é a distinção entre patrimônio cultural e
natural, este último sob a denominação ambiental. Embora sendo
parte constitutiva do Patrimônio Cultural do País, o meio ambiente
passou a constar de capítulo específico no texto constitucional (Ca-
pítulo VI do Título VIII – Da Ordem Social).

Patrimônio cultural brasileiro: uma nova concepção

No âmbito do Capítulo III – Da Educação, da Cultura e do Desporto –


emerge, com bastante intensidade, a questão referente à preservação
do patrimônio cultural. Um só artigo específico trata da conceituação,
caracterização e formas de preservação do acervo histórico do país.
A atual Constituição, no seu art. 216, usa a expressão “Patrimônio
Cultural” em substituição a “patrimônio histórico e artístico”, que vi-
nha sendo usada desde a Carta de 1937. Assim, seguindo a moderna
orientação adotada pelas Ciências Sociais, o legislador constituinte
ampliou a interpretação do que seja patrimônio cultural que, pelo tex-
to vigente, engloba
“...os bens de natureza material e imaterial, tomados individual-
mente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II– os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.”

Como podemos constatar, o legislador constitucional aceitou integral-


mente a moderna conceituação de patrimônio cultural, deixando de
lado as expressões até então consagradas nos textos constitucionais
A cultura no ordenamento constitucional brasileiro: impactos e perspectivas
213

anteriores, tais como: “patrimônio histórico, artístico, arquitetônico,


arqueológico e paisagístico.” 10
Não se discute mais se o patrimônio cultural do país constitui-se ape-
nas dos bens de valor excepcional ou também daqueles de valor co-
tidiano; se inclui monumentos individualizados ou em conjunto; se
apenas a arte erudita merece proteção ou também as manifestações
populares; se contém apenas os bens produzidos pelo homem ou se
engloba também os bens naturais; se esses bens da natureza envolvem
somente os dotados de excepcional valor paisagístico ou inclusive o
simples ecossistema. Enfim, todos esses bens, sejam naturais ou cultu-
rais, materiais ou imateriais, tangíveis ou intangíveis, estão incluídos
no patrimônio cultural do país, desde que os mesmos sejam porta-
dores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes
elementos étnico-culturais formadores da nação brasileira.
Adota-se, portanto, uma noção mais abrangente de patrimônio cul-
tural e se rompe com a visão elitista de considerar apenas objeto de
preservação cultural as manifestações da classe historicamente domi-
nante ao incorporar os diferentes grupos étnicos na formação da so-
ciedade brasileira.
Vale ressaltar que o conceito de bens materiais e imateriais, como par-
te integrante dessa nova noção de patrimônio cultural, já havia sido
sugerido pela Comissão Afonso Arinos, encarregada de oferecer sub-
sídios para o Congresso Constituinte de 1987, que teria a função de
elaborar a nova Constituição do país, sendo depois encampado na re-
dação final do texto constitucional de 1988.
O novo conceito de patrimônio cultural vem ao encontro do anseio do
escritor paulista Mário de Andrade, um dos intelectuais mais atuantes
do Movimento Modernista de 22 e que, no seu anteprojeto, já deli-
neava essa concepção abrangente de patrimônio histórico. Posterior-
mente, Aloísio Magalhães, à frente da extinta Fundação Pró-Memó-
ria, tentou retomar essa concepção que agora já é praticada pelo atual
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

10
No decorrer do texto constitucional, embora seja adotada a expressão “patrimô-
nio cultural”, o legislador constituinte não teve o devido cuidado de uniformizar e
utilizar apenas essa expressão para designar o conjunto de bens culturais do país.
Ora ele usa patrimônio cultural, em outros dispositivos legais aparece a expressão
patrimônio histórico e cultural e, por vezes, bens de valor artístico, histórico, pai-
sagístico, estético e turístico. De qualquer forma, consideramos que todas essas ex-
pressões anteriormente mencionadas devam ser tomadas como sinônimas e podem
perfeitamente ser substituídas por “patrimônio cultural”, sem que resulte qualquer
prejuízo à compreensão do texto constitucional.
214 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Um dos impactos advindos dessa ampliação do conceito de patrimô-


nio cultural foi a necessidade de se criar um novo instrumento de pre-
servação aos bens culturais de ordem imaterial ou intangível. A Cons-
tituição de 1988 recepcionou, em sua integralidade o Decreto-Lei nº.
25/37, que criou a figura jurídica do tombamento para a preservação
dos bens culturais materiais. No entanto, havia, pois, a urgência de um
mecanismo viável que tutelasse os bens imateriais, muito mais suscep-
tíveis ao desaparecimento, frente à onda avassaladora da homogenei-
zação cultural decorrente do processo de globalização.
Assim, após doze anos, o governo federal, mediante análises e estu-
dos com técnicos e especialistas, editou o Decreto nº. 3.551, de 2000,
que “institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que
constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa do Patri-
mônio Imaterial e dá outras providências”.
Outra característica constitucional relativa à questão do Patrimônio
Histórico brasileiro é o reconhecimento por parte do Estado da ne-
cessidade de se preservar a documentação pública. É o que estabelece
o art. 216, § 2º: “Cabem à administração pública, na forma da lei, a
gestão da documentação governamental e as providências para fran-
quear sua consulta a quantos dela necessitem.”
Por esse artigo, constata-se que os documentos são também parte in-
tegrante do Patrimônio Cultural brasileiro, necessitando, portanto, de
proteção jurídica. No que concerne à gestão da documentação pro-
duzida pela Administração Pública, o legislador constituinte remeteu
à legislação complementar a regulamentação deste dispositivo cons-
titucional, o que já foi feito através da Lei nº. 8.159, de 8 de janeiro
de 1991, que “dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e
privados e dá outras providências”.
Assim, ao lado das bibliotecas e museus, os arquivos são importantes
suportes da memória, sem os quais fica quase impossível o acesso
às fontes de nosso passado, uma vez que sem documentos não há
história possível.
Anteriormente à promulgação de nossa atual Constituição, a prática
da preservação do Patrimônio Histórico em nosso país era algo res-
trito aos profissionais da área (arquitetos, historiadores, juristas, an-
tropólogos e demais cientistas sociais), que lidavam com a questão
da memória no seu métier e oficio ou, quando muito, dizia respeito à
tutela oficial dos órgãos de preservação.
A cultura no ordenamento constitucional brasileiro: impactos e perspectivas
215

Com a nova Constituição e a práxis política dos movimentos sociais,


novos atores e sujeitos históricos passaram a se interessar pela preser-
vação do Patrimônio Histórico e pelo acesso aos bens culturais.
A própria Constituição Federal reconheceu, em seu artigo 216, § 1º
a importância desse fato e da necessidade de novos atores na luta
pela preservação do Patrimônio Cultural: “O Poder Público, com
a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio
cultural brasileiro...”
Assim, o Estado não se exime da tarefa de preservação de nosso
acervo cultural, mas dá à comunidade o papel de colaboradora e co-
responsável nessa tarefa. Como dizia Aloísio Magalhães, a comu-
nidade é a melhor guardiã de seu patrimônio cultural! Assim, não
cessam de surgir novos atores, quer no âmbito do próprio Estado,
quer no âmbito da sociedade civil organizada e da iniciativa privada,
que dividem ações, metas e projetos de recuperação e revitalização
do Patrimônio Histórico.
No âmbito do Poder Público, além do atual Iphan, ligado ao Mi-
nistério da Cultura, nota-se uma crescente participação de outras
instâncias governamentais, seja na esfera do Judiciário, produzindo,
através de suas decisões, jurisprudência sobre o assunto, seja na alçada
do Legislativo, com a produção legiferante e a atuação em comissões
temáticas específicas (Comissão de Educação e Cultura e Comissão
de Direitos Humanos e Minorias) ou Comissões Parlamentares de
Inquérito (CPI). É de se ressaltar, também, a atuação do Ministério
Público na defesa do Meio Ambiente e do Patrimônio Cultural.
Além da ação governamental, constatamos uma desestatização da po-
lítica cultural brasileira. Tomemos como exemplo o Patrimônio Cul-
tural. São várias as organizações não-governamentais (ONG’s) que
atuam nessa área. Hoje, é inconcebível pensar a preservação de cidades
e centros históricos sem a ativa participação da comunidade e de suas
associações representativas. Esse é apenas um exemplo ilustrativo que
bem acentua o quanto os cidadãos e a sociedade como um todo se
organizam e reivindicam participação cada vez maior na definição e
implementação de uma política patrimonial. A preservação do Patri-
mônio Histórico, antes restrita à ação estatal, tende a ser cada vez mais
apropriada pelos cidadãos e a sociedade civil organizada.
Além dos aspectos e características constitucionais anteriormente
explicitados, a Constituição Federal trata de outra questão que vale
ser mencionada. Estamos nos referindo ao dispositivo legal que trata
do incentivo para a produção e o conhecimento de bens e valores
216 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

culturais que será estabelecido em legislação ordinária (art. 216, §


3º). Ressalte-se, no entanto, que já temos, no contexto do ordena-
mento jurídico brasileiro, duas leis federais de incentivo à cultura,
a saber: Lei nº 8.313, de 1991, que “restabelece princípios da Lei
n° 7.505, de 2 de julho de 1985 e institui o Programa Nacional de
Apoio à Cultura – Pronac e dá outras providências”, mais conhecida
como “Lei Rouanet” e a Lei nº 8.685, de 1993, que “cria mecanismos
de fomento à atividade audiovisual, e dá outras providências”, mais
conhecida como “Lei do Audiovisual”.

O plano nacional de cultura: novas perspectivas

Diferentemente do que aconteceu com a educação (art. 214 da CF),


o legislador constituinte deixou de prever a necessidade de se elaborar
um Plano Nacional de Cultura.
A elaboração de um Plano Nacional de Cultura se torna, nos dias
atuais, uma das mais importantes ações a serem implementadas pelo
Poder Público, em colaboração com a sociedade, uma vez que, no Bra-
sil, a cultura nunca foi prioridade no rol das políticas públicas.
Objetivando sanar essa lacuna em nosso texto constitucional, foi apre-
sentada pelos deputados federais Gilmar Machado e Marisa Serrano
uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº 306-A, de 2000),
que tornava obrigatória a elaboração de um Plano Nacional de Cul-
tura. Essa PEC tramitou em ambas Casas Legislativas, durante cinco
anos, quando foi finalmente promulgada pelo Congresso Nacional.
Trata-se da Emenda Constitucional nº 48, de 10.8.2005, que deter-
mina que a lei estabeleça o Plano Nacional de Cultura, de duração
plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do país e à integração
das ações do Poder Público que conduzam à:
• defesa e valorização do patrimônio cultural;
• produção, promoção e difusão de bens culturais;
• formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em
suas múltiplas dimensões;
• democratização do acesso aos bens de cultura;
• valorização da diversidade étnica e regional. (art. 215, § 3º)

Embora seja considerado um avanço legal o reconhecimento cons-


titucional aos direitos culturais que foram elevados à categoria de
diretos fundamentais, essenciais ao exercício da cidadania, conside-
ramos que ainda estamos muito aquém para uma efetiva realização
do texto da Constituição, incluindo, a recente Emenda Constitucio-
nal nº 48, de 2005.
A cultura no ordenamento constitucional brasileiro: impactos e perspectivas
217

Apesar dos esforços do atual governo11 de dar maior visibilidade à


questão da cultura no mundo contemporâneo, mostrando que ela é
um vetor estratégico do desenvolvimento econômico e social do país,
consideramos que, na prática, sobretudo no momento em que discute
o orçamento da União, parcos recursos financeiros são destinados ao
setor cultural.
No rol das políticas governamentais, tampouco nos discursos e ações
programáticas dos diferentes partidos políticos, a cultura não tem
sido prioridade, nem se constituído uma política pública de estado.
Tem-se, de modo geral, uma compreensão distorcida e equivocada da
problemática cultural do país. Acredita-se que a população brasileira
possui outras necessidades mais prementes que precisam ser urgente-
mente atendidas, em detrimento da cultura. Caso mais emblemático
dessa questão pode ser constatada com a análise das ações do Plano de
Aceleração do Crescimento (PAC).
Os gestores públicos, técnicos especialistas e os “burocratas de plan-
tão” se esquecem, no entanto, do papel transformador da cultura no
desenvolvimento econômico do país e de seu potencial de inclusão
dos setores menos favorecidos da sociedade. Não podemos esquecer
que a tão pretendida inclusão social como meta do atual governo se dá
também pela via da cultura e não tão-somente com benefícios assis-
tencialistas. Conforme nos lembra Franco,
...as políticas públicas de democratização da cultura podem e
devem ter caráter de inclusão cultural, garantir acesso à educa-
ção formal e à artística e contemplar sem preconceitos toda sorte de
produção cultural como ferramenta de inclusão social e resgate da
cidadania. (grifos do autor) 12

Para se contrapor ao discurso falacioso de que é preciso primeiramen-


te “matar a fome” dos brasileiros, encerramos nosso ensaio com a letra
de uma música que expressa o que pretendíamos mostrar ao longo
desse texto. Hoje, um novo conceito de cultura ganha significado para
o Brasil e o mundo globalizado em que vivemos. Ela deixa de ser
encarada como mera concessão do poder público, como adereço, algo

11
A gestão do ministro de Estado Gilberto Gil, à frente da pasta ministerial desde
2003, tem se pautada por uma concepção de cultura em três frentes ou eixos, a
saber: “a cultura como produção simbólica e expressão de identidade; cultura como
direito de cidadania e cultura como economia” (OLIVEIRA, Lúcia Lippi. “Política
nacional de cultura: dois momentos de análise- 1975 e 2005. In: GOMES, Ângela
de Castro (coord.). Direitos e cidadania: memória, política e cultura. Rio de Janeiro:
FGV, 2007, p. 149).
12
FRANCO, Silvia Cintra. Cultura: inclusão e diversidade. São Paulo: Moderna,
2006, p. 76.
218 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

supérfluo e diletante ou privilégio de poucos. A Cultura deve ser vista


sempre sob a ótica da cidadania.
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte
A gente não quer só comida
A gente quer bebida, diversão, balé.13

Referências

CALABRE, Lia (org.). Políticas culturais: diálogo indispensável. Rio de Janeiro:


Ed. Casa de Rui Barbosa, 2005.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
BRASIL. CONSTITUIÇÂO (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
BRASIL. CONSTITUIÇÂO (1988). Emenda Constitucional n. 48, de 2005, que
acrescenta § 3º ao art. 215 da Constituição Federal, instituindo o Plano Nacional
de Cultura.
BRASIL. Leis etc. Decreto n. 3.551, de 2000, que institui o Registro de Bens Cul-
turais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o
Programa do Patrimônio Imaterial e dá outras providências.
BRASIL. Leis etc. Decreto-lei n. 25, de 1937, que organiza a proteção do patri-
mônio histórico e artístico nacional.
BRASIL. Leis etc. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n. 8.060, de 1990.
BRASIL. Leis etc. Estatuto do Idoso: Lei n. 10.741, de 2003.
BRASIL. Leis etc. Lei n. 8.159, de 1991, que dispõe sobre a política nacional de
arquivos públicos e privados e dá outras providências.
BRASIL. Leis etc. Lei n. 8.313, de 1991, que restabelece princípios da Lei n. 7.505,
de 2 de julho de 1985 e institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e
dá outras providências.
BRASIL. Leis etc. Lei n. 8.685, de 1993, que cria mecanismos de fomento à ativi-
dade audiovisual, e dá outras providências.
CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Os princípios constitucionais culturais.
In: LEITÃO, Cláudia (org.). Gestão cultural: significados e dilemas na contempo-
raneidade. Fortaleza: Banco do Nordeste, 2003.
FERNANDES, J. Ricardo Oriá. O direito à memória: a proteção jurídica ao pa-
trimônio histórico-cultural brasileiro. Fortaleza: Fac. Dir. da UFC, 1995 – Dis-
sertação de Mestrado.

13
Trecho da música “Comida”, de Arnaldo Antunes, Marcelo Frommer e Sérgio Brito.
A cultura no ordenamento constitucional brasileiro: impactos e perspectivas
219

FRANCO, Silvia Cintra. Cultura: inclusão e diversidade. São Paulo: Moderna, 2006.
MARSHALL, T. H. Cidadania, status e classe social. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1967.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Política nacional de cultura: dois momentos de análise,
1975 e 2005. In: GOMES, Ângela de Castro (coord.). Direitos e cidadania: me-
mória, política e cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
RIBEIRO, Darci. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Cia. das Letras, 1995.
SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e
cultura. Coimbra: Ed. Almedina 2007.
Defensoria pública
221

Defensoria Pública, criação


da Constituição de 19881
Suely Pletz Neder

I. A defesa dos necessitados no período anterior


à Constituição de 1988

A defesa dos direitos dos juridicamente necessitados não era estru-


turada em todo o país antes da Constituição de 1988 e, onde havia
órgãos públicos incumbidos desse munus, a sua organização não ob-
servava um mesmo modelo.1
Muita vez, carentes de recursos humanos e materiais, esses organis-
mos somente conseguiam atender a uma inexpressiva parcela dos hi-
possuficientes que tinham o direito de acessar à Justiça.
Assim, no âmbito federal, eram os Advogados de Ofício, concursados,
mas numericamente insuficientes para atender a demanda de seus ser-
viços, que promoviam a defesa dos militares, na Justiça Militar. Nos
demais campos da Justiça Federal os advogados, profissionais liberais,
eram nomeados para suprir a ausência de órgão público específico
para a prestação do serviço que incumbia ao Poder Público.
Em alguns Estados existiam órgãos, denominados Assistência Judi-
ciária ou Assistência Jurídica, incumbidos da defesa dos direitos dos
juridicamente necessitados; em outros, a tarefa cabia aos membros da
Procuradoria Geral do Estado. Havia ainda, os entes federados que,
por convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil, delegavam o
encargo aos profissionais liberais, sob remuneração do Erário.
Enfim, não havia homogeneidade da prestação da assistência legal,
em âmbito nacional, seja na organização do serviço seja na seleção
dos profissionais que integravam os seus quadros, vez que apenas uma
minoria deles era concursada.

1
Artigo produzido, por revisão e atualização, do Estudo Técnico, da mesma autora,
publicado no site da CONLE, em 2002, intitulado “A Defensoria Pública, institui-
ção essencial ao exercício da função jurisdicional pelo Estado e à Justiça”.
222 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Essa situação só foi alterada, e para melhor, com a Constituição de 1988,


que criou a Defensoria Pública, atribuindo-lhe, em caráter de exclusivi-
dade, como Instituição pública, o Poder-Dever de assistir juridicamente
os hipossuficientes, nas esferas judicial e extrajudicial, em todas as ins-
tâncias. E, mais, organizou-a em carreira, com cargos providos, na classe
inicial, por concurso público de provas e títulos, assegurando aos seus
integrantes a garantia da inamovibilidade e vedando-lhes o exercício da
advocacia fora das obrigações institucionais.

II. A busca pela criação por via constitucional


da Defensoria Pública

Na Assembléia Nacional Constituinte de 1988, uma voz tímida de


início – mas a cada instante mais firme – se fez ouvir para que a Cons-
tituição não só prometesse como as Cartas Políticas anteriores o fi-
zeram, mas que tornasse efetivo o cumprimento pelo Estado do seu
dever de assegurar a todos o amplo, o irrestrito acesso à Justiça.
Uma constituição que no preâmbulo declara seu compromisso com
“um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos di-
reitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” não poderia
deixar a imensa maioria do povo brasileiro, carente que é de recursos
econômicos, desprovida de condições para tornar concreta a plêiade
de direitos que, em tese, a abrigava. Este, em resumo, o discurso repe-
tido pelos que pleiteavam a criação da Defensoria Pública nos termos
que ao fim prevaleceram.
A despeito, no entanto, de tal fato, a vitória desse “exército de Brancale-
one” se deu após muitas e difíceis batalhas. Ora surgiam dúvidas sobre
a função do Defensor Público, ora se o pleito da institucionalização da
Defensoria Pública seria corporativista, ora se haveria superposição de
funções entre ela, o Ministério Público e a Advocacia-Geral.
E ainda havia os que consideravam que o exercício da defesa dos hi-
possuficientes deveria ficar a cargo do advogado, profissional liberal, do
procurador do estado ou, no âmbito federal, do advogado da União.
Diante de tantas teses, de tantos óbices, recrudescia a movimentação
dos defensores da Defensoria Pública. Delegações dos advogados de
oficio da Justiça Militar Federal, de defensores públicos dos estados
Defensoria Pública, criação da Constituição de 1988
223

onde a instituição já fora implantada e do Distrito Federal, secunda-


dos por muitas pessoas que não integravam os quadros da instituição,
porém reconheciam a importância de sua criação em todo o país, não
se afastaram de Brasília por um só instante. Para que uns retornassem
às suas casas outros chegavam à sede do Poder Constituinte para as-
sumir o posto.

III. A criação da Defensoria Pública


pela Constituição de 1988

Em cada etapa do processo constituinte em que o tema foi analisado,


da subcomissão temática, passando pela Audiência Pública e chegan-
do à Comissão de Sistematização, assistiu-se a inflamados debates en-
tre os que defendiam a Defensoria Pública e os seus opositores.
Memoriais e textos diversos circulavam de mão em mão, à procura
daquele que alcançasse o apoio dos constituintes para dar sede consti-
tucional à essa Instituição.
Esse clima de debate foi de todo benéfico à superação das dúvidas e
das divergências e se deu no melhor espaço em que poderia ocorrer.
Discutia-se o próprio conceito do termo “acesso à Justiça” que além de
ser, até então, negado aos hipossuficientes na grande maioria do terri-
tório nacional, era compreendido apenas como o acesso aos tribunais.
“O tribunal está fechado para os pobres”2, já dizia Ovídio.
O Constituinte de 1988 avançou sobre essa visão restritiva, entenden-
do que o termo “Justiça” deve absorver, além da inafastabilidade do
controle jurisdicional, condição sine qua non ao Estado democrático,
também a busca pela superação de todo e qualquer entrave ao pleno
exercício dos direitos e garantias constitucionais da população.
Assim sendo, criou no Título IV – Da Organização dos Poderes, ao
lado do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, o Capítulo IV – Das
Funções Essenciais à Justiça, integrada pelo Ministério Público, pela
Defensoria Pública, pela Advocacia-Geral da União e as Procurado-
rias Gerais dos Estados e pela Advocacia.
A inserção dessas funções, lado a lado com os três poderes, no Título –
Da Organização dos Poderes, e não no antecedente, que trata da or-
ganização do Estado, diz, por si só, que elas são distintas de qualquer

2
“Cura pauperibus clausa est”, Ovídio, citado por José Afonso da Silva, in Curso de
direito constitucional positivo, Malheiros Editores, 16ªs Ed., p. 588, 1999.
224 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

carreira pública que não seja conceptual e explicitamente essencial à


Justiça, vista aqui em seu mais amplo sentido.
A Carta Magna, no art. 5º, LXXIV, no Título I – Dos Direitos e
Garantias Fundamentais trouxe, pois, não só a promessa do acesso
universal à Justiça, presente nas demais Constituições pátrias, quanto,
principalmente, a ordem para a efetiva institucionalização da Defen-
soria Pública em todo o território nacional.
Mais ainda, atenta à necessidade de conceder a assistência jurídica
integral, estendeu a atuação do Defensor Público ao âmbito extrajudi-
cial e, no judicial, a todos os graus e instâncias do Poder Judiciário.
Assim, ao configurar esse direito individual que permite a equalização
das condições dos desiguais perante a Justiça, diz o artigo 5º, LXXIV,
da C.F., in verbis: “O Estado prestará assistência jurídica integral e
gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
Atento, portanto, às mais prementes necessidades da cidadania o
Constituinte de 1988 instituiu a Defensoria Pública e fixou os con-
tornos que deveriam ser seguidos em sua estruturação pela União, Es-
tados e Distrito Federal, dando–lhe a feição de “instituição essencial à
função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica
e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º,
LXXIV” (art. 134).
Dispôs, ainda, no parágrafo único do mesmo artigo que:
Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do
Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para
sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na
classe inicial, por concurso público de provas e títulos, assegurada
a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exer-
cício da advocacia fora das atribuições institucionais.

Merece destaque que, dentre a tríade que garante a independência po-


lítica do Magistrado e do Promotor de Justiça, a saber, a vitaliciedade,
a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos, os defensores
públicos, instados a optar no processo constituinte por uma e apenas
uma, escolheram a inamovibilidade.
E por que o fizeram?
Para garantir a ampla defesa técnica aos seus assistidos, vez que dos
agentes públicos que integram as Funções Essenciais à Justiça apenas
o Defensor Público é legitimado para postular contra o próprio ente
público que o remunera. Pudesse ele ser removido de sua Comarca,
de seu órgão de atuação, ao livre alvedrio do Chefe do Poder Execu-
Defensoria Pública, criação da Constituição de 1988
225

tivo, inexistiria a sua independência funcional e, via de conseqüência,


condenado estaria o direito de seu assistido.
E, destaca-se, maior o risco disso vir a ocorrer se considerarmos que,
afinal, não é o Estado o maior produtor de demandas que estrangulam
a atividade jurisdicional, em muito contribuindo para o descrédito do
Poder Judiciário?
Da mesma forma, garantiu-se no texto constitucional o exclusivo pro-
vimento dos cargos da novel instituição por concurso público de pro-
vas e títulos e a vedação aos integrantes de sua carreira do exercício da
advocacia fora das atribuições institucionais da Defensoria Pública.
Queria-se um corpo funcional de elevada qualificação técnica e que
se dedicasse em caráter de exclusividade às suas atribuições institu-
cionais, pois já de há muito fora ultrapassado o modelo adotado no
nascedouro dos órgãos públicos prestadores da assistência judiciária,
qual seja, o desempenho dessas atividades pelos iniciantes na carreira
do Ministério Público.
Naquela fase embrionária da Instituição, por incrível que hoje possa
parecer, a defesa dos direitos dos hipossuficientes era atribuição dos
iniciantes e a sua acusação dos experientes membros do parquet.
Preservando os direitos dos que, no âmbito público, vinham exercendo
as funções de defensor público, o constituinte de 1988 inscreveu no
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o seguinte art. 22:
É assegurado aos defensores públicos investidos na função até
a data da instalação da Assembléia Nacional Constituinte o di-
reito de opção pela carreira, com a observância das garantias e
vedações previstas no art. 134, parágrafo único, da Constituição.

Se alguma dúvida pudesse ainda subsistir sobre a intenção dos que


lutavam pela institucionalização da Defensoria Pública, ela não so-
breviveria a essas escolhas. Em momento algum foram pleiteadas
vantagens outras à Instituição que não as que lhe dessem autonomia
administrativa e independência funcional para o exercício de seu re-
levante munus público, prestado com a mais apurada técnica jurídica,
tal qual à que tinham acesso os abonados pela fortuna.
Vê-se, assim, que o art. 134 remete ao art. 5º, LXXIV, todos da
Carta Magna, vinculando a instituição ao cumprimento do dever
do Estado de assegurar a assistência jurídica integral e, não apenas
na esfera judicial.
Com a edição da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, o art. 135,
da CF passou a dispor que os integrantes das carreiras da Defensoria
226 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Pública e da Advocacia da União e das Procuradorias-Gerais dos


estados e do Distrito Federal fossem remunerados sob a forma de
subsídios, a exemplo do aplicado ao membro do Poder, ao detentor
de mandato eletivo, aos ministros de Estado e aos secretários esta-
duais e municipais.
Posteriormente, para viabilizar a implantação e a implementação das
Defensorias Públicas nos estados o Poder Legislativo promulgou a
Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que renumerou o parágrafo
único do art. 134, da CF, para § 1º e criou o § 2º assegurando a essas
instituições a autonomia administrativa e financeira.
Mas, muito ainda há a se fazer para dar efetividade aos direitos da
cidadania e entre eles se destaca a implantação da Defensoria Pública
em todo o país em igualdade de condições com o Ministério Público,
de molde a que onde existir um juiz e um promotor de Justiça que
haja, para a defesa dos necessitados, um defensor público.
E que a esse, como aos que a seu lado constituem o tripé da justiça, se-
jam dadas todas as condições que jamais faltaram ao Estado-Acusador
e ao Estado-Juiz para o desempenho de seu relevante dever público.

IV. A Defensoria Pública e as demais funções


essenciais à justiça

O novo conceito atribuído à Justiça foi destacado por Diogo de Fi-


gueiredo Moreira Neto, em artigo publicado na Revista da Procura-
doria-Geral do Estado de São Paulo sob o título As funções essenciais à
Justiça e as procuraturas constitucionais.
Nele, o respeitado jurista analisou o controle formal, concentrado,
exercido pelos órgãos técnicos – as Procuraturas Constitucionais – em
relação ao difuso, informal, desenvolvido pela sociedade ou parte dela,
ocasião em que registrou:
Mas, em ambos os casos, sublinhe-se, busca-se a plena realização
da Justiça não apenas àquela estritamente referida à atuação do
Poder Judiciário, mas a que é estendida à atuação de todos os
Poderes do Estado e entendida como a suma de todos os valores
éticos que dignificam a convivência em sociedade: a licitude, a
legitimidade e a legalidade.

Esse radical comum entre as funções essenciais à Justiça não afasta,


por outro lado, as especificidades próprias a cada uma delas, inerentes
à natureza das suas atribuições constitucionais.
Defensoria Pública, criação da Constituição de 1988
227

Assim, no que respeita à Defensoria Pública em relação à Advocacia,


a distinção já ocorre quanto à natureza pública de uma, privada da
outra. Estende-se, ainda, ao vínculo entre as partes e seus patronos:
para a Defensoria Pública é público-institucional; para a Advocacia,
privado-contratual.
Portanto, se para o advogado o exercício da defesa dos direitos de seus
clientes decorre da sua livre escolha, ao defensor público só se admite
a recusa ao patrocínio do assistido nas hipóteses estabelecidas em lei.
Comparada, por sua vez, à Advocacia-Geral, a distinção decorre do
fato desta, embora desempenhando atividade pública como a Defen-
soria Pública, representar, judicial e extrajudicialmente, a União, en-
quanto as suas congêneres exercem a representação dos estados e do
Distrito Federal.
Como fica evidente, não poderia o representante do Estado assistir
juridicamente aos que postulam contra aquele ente público. Há, in
casu, inequívoco conflito de atribuições.
Lado outro, a diferença entre a Defensoria Pública e o Ministério Pú-
blico funda-se nas funções institucionais deste de defensor da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis. Em síntese, em suas atribuições de defensor dos direitos
da sociedade e de fiscal da lei.
No desempenho de suas proeminentes incumbências, o Ministério
Público atua como o Estado-Acusador do réu, sendo, pois, na hipó-
tese, incompatível que, no outro lado da tribuna, venha a promover a
defesa do processado.
Vê-se, portanto, que o dever do Estado de prestar assistência jurídica
aos necessitados é exercitado, como munus publicam, em caráter de
exclusividade pela Defensoria Pública.
Tal afirmação não afasta o exercício, em nível suplementar, da advoca-
cia dativa, praticada por profissional liberal, que, no entanto, ao con-
trário do que ocorre com o defensor público, não possui o dever legal
de exercê-la.
É inconteste, entretanto, que todas as Funções Essenciais à Justiça, a
despeito de suas especificidades, possuem um radical comum. Elas
são carreiras ou profissão – esta, no caso da Advocacia – de cunho
nitidamente postulatório, essenciais não só ao exercício da função ju-
risdicional do Estado, mas, como diz Sérgio D’Andréa Ferreira em
Comentários à Constituição:
228 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O que se busca com a atuação dessas instituições é a realização da


Justiça, tomado esse termo não apenas no sentido de Justiça de
estrita legalidade; de Justiça Jurisdicional, mas de Justiça abrangente
da eqüidade, da legitimidade, da moralidade. (grifos nossos)

V. As atribuições do Defensor Público.

Pela dicção da Constituição Federal, da lei infraconstitucional, da


investidura no cargo público e a partir do estabelecimento desse vín-
culo de natureza público-institucional o Defensor Público assume o
dever e não a faculdade de assistir aos incontáveis cidadãos economi-
camente necessitados que a ele recorrem e não só a eles mas também
aos que se encontram em estado de revelia, isto é, aos que não se
fizeram presentes ao processo no prazo processualmente determi-
nado, e aos que não constituíram advogados para a defesa dos seus
direitos indisponíveis.
E o faz como corolário da supremacia da soberania popular sobre o
poder do Estado, que dela deriva, instrumentalizando, assim, o pleno
exercício dos direitos fundamentais da cidadania à esmagadora maio-
ria da população e superando, pela via institucional, a desigualdade
social de oportunidades dadas a seus assistidos em relação aos possui-
dores de fortuna material.
Tem-se aqui demonstrado na prática o princípio da isonomia, qual seja,
tratar desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualação.
A alguns poderá causar estranheza o fato da Defensoria Pública pro-
mover a defesa dos direitos dos revéis e dos que não constituíram ad-
vogado, independentemente da sua situação econômica. Ocorre que a
Instituição o faz em respeito à garantia constitucional de que ninguém
será processado sem o devido processo legal e sem que lhe sejam as-
segurados os meios e recursos para o pleno exercício do contraditório
e da ampla defesa.
Essa ação, que somente pode contribuir para a credibilidade e o pres-
tígio da ordem jurídica e das instituições basilares da sociedade demo-
crática, repercute diretamente no volume de causas e de atendimentos
jurídicos extrajudiciais a cargo da Defensoria Pública.
Sobre tal hercúlea missão, bem ressaltou o eminente constitucio-
nalista, prof. José Afonso da Silva, in Curso de direito constitucional
positivo, 6ª Edição, pag. 195 e segs., saudando a criação, pela Carta
de 1988 da Instituição:
Defensoria Pública, criação da Constituição de 1988
229

Os pobres têm acesso muito precário à Justiça. Carecem de re-


cursos para contratar bons advogados. O patrocínio gratuito se
revelou de alarmante deficiência. A Constituição tomou, a esse
propósito, providência que pode concorrer à eficácia do dispo-
sitivo segundo o qual o Estado prestará assistência jurídica
integral e gratuita para os que comprovarem insuficiência de
recursos (art. 5º, LXXIV). Referimo-nos à institucionalização
das Defensorias Públicas, a quem incumbirá a orientação jurí-
dica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do
art. 5ª, LXXIV (art. 134).
Quem sabe se fica revogada, no Brasil, a persistente frase de
Ovídio: Cura pauperibus clausa est. Ou as Defensorias Públi-
cas federal e estaduais serão mais uma instituição falha? Cabe
aos Defensores Públicos abrir os tribunais aos pobres, é uma
missão tão extraordinariamente grande que, por si, será uma
revolução, mas, também se não cumprida convenientemente
será um aguilhão na honra dos que a receberam e, porventura,
não a sustentaram. (destaques nossos)

E diz, ainda, o mesmo autor, na obra referenciada:


A igualdade perante a Justiça, assim, exige a busca da igualiza-
ção de condições dos desiguais, o que implica conduzir o juiz a
dois imperativos, como observa Ingber: de um lado, cumpre-lhe
reconhecer a existência de categorias cada vez mais numerosas e
diversificadas, que substituem a idéia de homem, entidade abs-
trata, pela noção mais precisa de indivíduo caracterizada pelo
grupo em que se insere de fato; de outro, deve ele apreciar os
critérios de relevância que foram adotados pelo legislador. É
essa doutrina que orienta o princípio da igualdade da justiça na
imposição da pena para o mesmo delito. Seria injusto fosse apli-
cada a mesma pena sempre em atendimento a uma igualdade
abstrata. Aplicando-se matematicamente a mesma pena para o
mesmo crime, que, por regra, é praticado em circunstâncias dife-
rentes, por pessoas de condições distintas.
Para que tal abstração não ocorra é que, além das circunstâncias
agravantes, se impõe a regra da individualização da pena (art.
5º, XLVI). Mas ainda é certo que as profundas diferenças de
condições materiais não se igualizam por essas poucas regras
de justiça penal. É muito difundida a idéia de que cadeia é só
para os pobres. (destaques nossos)

A isonomia formal e a material se distinguem, como ensina o mesmo


constitucionalista, na obra mencionada:
A afirmação do art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão cunhou o princípio de que os homens nascem
e permanecem iguais em direito. Mas aí se firmara a igualda-
de jurídica e formal no plano político de caráter puramente
230 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

negativo, visando a abolir os privilégios, isenções pessoais e


regalias de classe. Esse tipo de igualdade gerou as desigual-
dades econômicas porque fundada “numa visão individualista
do homem, membro de uma sociedade liberal relativamente
homogênea. (cf. Ingber, “L’Égalité”, destacamos)
Nossas Constituições, desde o Império, inscreveram o princípio
da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciado que, na
sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sen-
tido de que a lei e sua aplicação trata a todos igualmente, sem le-
var em conta as distinções de grupos. A compreensão do dispo-
sitivo vigente, nos termos do art. 5º, caput, não deve ser assim
tão estreita. O intérprete há que aferi-lo com outras normas
constitucionais, conforme apontamos supra e, especialmente,
com as exigências da justiça social, objetivo da ordem econô-
mica e da ordem social.

Essa concepção, portanto, já não satisfaz, pois como ensina Canotilho


“... se, por um lado, a defesa dos direitos e o acesso de todos aos tribu-
nais tem sido reiteradamente considerado como o coroamento do Es-
tado de Direito, também, por outro lado, se acrescenta que a abertura
da via judiciária é um direito fundamental formal”.

VI. A lei complementar n. 80, de 1994, alterada pela lei


complementar no 89, de 1999, lei orgânica da defensoria
pública e as leis nos 1060/50 e 7871/89

Sob essas premissas, atento ao pretendido pelo Constituinte de 1988,


o Congresso Nacional, em respeito, ainda, ao comando do § único do
art. 134 da Constituição da República Federativa do Brasil, editou a
Lei Complementar n.º 80, de 12 de janeiro de 1994, que organizou a
Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e
estabeleceu normas gerais para sua organização nos Estados.
Esta Lei Complementar, observando, como não poderia deixar de ser,
todos os requisitos fixados pela Constituição da Republica, estabele-
ceu a orientação normativa da carreira da Defensoria Pública em car-
gos providos, na classe inicial, por concurso público de provas e títulos
e assegurou aos seus integrantes a independência política, garantida
pela estabilidade funcional, a inamovibilidade do órgão de atuação em
que foi regularmente lotado e a irredutibilidade de seus vencimentos.
Ao mesmo tempo vedou ao Defensor Público o exercício da advocacia
fora das suas atribuições institucionais.
A lei referida, em seu art.142, determinou aos estados a adaptação de
suas Defensorias Públicas à normatividade dela emanada no prazo de
Defensoria Pública, criação da Constituição de 1988
231

cento e oitenta dias de sua publicação, ocorrida em 14 de janeiro de


1994, vale dizer, até 11 de julho de 1994.
Entretanto, tal qual costumeiramente ocorre quando se trata de dar
eficácia aos direitos da cidadania e especialmente aos dos excluídos
socialmente, ainda hoje, decorridos duas dezenas de anos da promul-
gação da Carta Magna e desde há muito já vencido o prazo dado aos
estados, existem entes federativos que descumprem o dever legal de
assegurar, por meio da Defensoria Pública, assistência jurídica integral
e gratuita aos necessitados.
E mesmo há os que quando o fazem – esquecidos de que o direito de
acesso à Justiça compreende o de receber, no âmbito judicial e extraju-
dicial, a ampla defesa técnica, indispensável à dedução da pretensão re-
sistida –, estruturam apenas formalmente a Instituição, negando-lhe as
mais elementares condições materiais e de recursos humanos para o de-
sempenho de suas relevantes atribuições e condenando, assim, à inação
as garantias constitucionais asseguradas aos cidadãos hipossuficientes.
Note-se que a Defensoria Pública da União, um quinto de século após
a promulgação da Constituição da República, continua carecendo de
estruturação em todo o país, da criação de cargos em número que
atenda às necessidades nacionais e da realização de concurso público
para o seu provimento.
Registre-se, mais, que essa instituição e a Defensoria Pública do Dis-
trito Federal foram excluídas da regra constitucional que assegurou
a autonomia administrativa e financeira às Defensorias dos Estados,
isso, em uma Instituição de caráter nacional.
É evidente que a mera criação da Defensoria Pública não tem o con-
dão de solucionar os gravíssimos problemas estruturais do país com a
mais cruel distribuição de renda do planeta, do país que convive com
a violência urbana e rural em níveis superiores aos das guerras, do país
que assiste ao extermínio de etnias e a destruição de suas riquezas
naturais. E nem se pretendeu tanto com a sua criação, porém, com
certeza, é essa instituição instrumento fundamental para que sejam
exercidos os direitos da cidadania, para divulgá-los, para materializá-
los, para exigi-los.
Conhecendo essas limitações circunstanciais à atuação da Defensoria
Pública, visando a estimular a superação desses óbices ao exercício dos
direitos fundamentais da cidadania e pretendendo tratar desigualmente
os desiguais, dando-lhes as condições para superar essa desigualdade,
é que o legislador infraconstitucional atribuiu, com exclusividade, ao
232 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Defensor Publico ou a quem exercesse cargo equivalente nos Estados


em que a Assistência Judiciária fosse organizada e por eles mantida, as
prerrogativas da intimação pessoal e do prazo duplo.
Estatui a Lei nº 7.871, de 1989, que introduziu ao art. 5º da Lei nº
1.060, de 1950, que trata da assistência judiciária aos necessitados,
em seu § 5º, in verbis: “Nos estados em que a assistência judiciária
seja organizada e por eles mantida o defensor público ou quem exer-
ça cargo equivalente será intimado pessoalmente de todos os atos do
processo, contando-se-lhes em dobro todos os prazos.”
De perguntar-se, então, o que fazer quando o estado omisso transfere ao
profissional liberal o desempenho de suas atribuições constitucionais?
Independentemente das demais medidas judiciais cabíveis relativas à
constitucionalidade do ato omissivo, algumas soluções despontam na
jurisprudência dos tribunais.
É o que ocorre com as advindas do Superior Tribunal de Justi-
ça que, além de em inúmeros julgados confirmar a validade das
prerrogativas asseguradas ao defensor público pela Lei nº 7.871,
de 1989, acabou, também, estendendo o prazo em dobro aos Ad-
vogados do Diretório Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, por estarem suprindo, via
convênio com o Estado de São Paulo, a inexistência da Defensoria
Pública naquela unidade federativa.
Responderam, mais, àquela indagação sobre o que fazer face à omissão
do Estado, outros inúmeros tribunais, em mananciosa jurisprudência,
reafirmando que cabe ao Estado arcar com os honorários dos nomea-
dos para o exercício da advocacia dativa, na inexistência ou insuficiên-
cia do Defensor Público.
Assim, chega-se, induvidosamente, à conclusão de que o § 5º, do
art. 5º da Lei n.º 1.060, de 1950, introduzido pela Lei n.º 7.871,
de 1989 é absolutamente harmônico com a Carta Magna por tratar
desigualmente os desiguais.
E, mais, esse dispositivo tem endereço certo e exclusivo, qual seja, o
agente público que, por regular investidura no cargo público e pela
dicção da Constituição e da lei infraconstitucional, tem o dever de
prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados, si-
tuação em todo diversa da do advogado, que possui a faculdade de
exercer a advocacia dativa, consoante o reconhecido pela doutrina e
pela jurisprudência.
Defensoria Pública, criação da Constituição de 1988
233

Enfrentando, como se viu, tantas batalhas, a Defensoria Pública foi


pouco a pouco se estruturando no país, de forma a que hoje atualmente
ninguém ignora que essa é uma instituição que surgiu destinada a existir
enquanto permanecer o estado de desigualdade da sociedade brasileira
geradora dos que dela necessitam para dar efetividade a seus direitos.

VII. A situação da Defensoria Pública no país após


a Constituição de 1988

Os dados oficiais mais recentes sobre a Instituição constam do II


Diagnóstico da Defensoria Pública, realizado pela Secretaria de Re-
forma do Judiciário do Ministério da Justiça em 2007.
Nesse diagnóstico, a situação da Defensoria Pública no país, quanto
a sua existência nos Estados e no Distrito Federal, e ao processo de
escolha do Defensor Público Geral pode ser visualizada no mapa que
está reproduzido a seguir.
Nele pode-se vislumbrar que os únicos Estados que, em 2006, não
dispunham de Defensoria Pública eram os de Goiás, Santa Catarina
e Paraná. Lado outro, na grande maioria do país, a chefia da Institui-
ção era exercida por integrante da carreira, escolhido em lista tríplice
elaborada por seus pares.
É bem verdade que, segundo o mesmo levantamento, existem no país
em atividade o triplo dos membros do Ministério Público dos estados
do que o de defensores públicos. Que o orçamento destinado à De-
fensoria Pública é significativamente menor que o do parquet e o do
Poder Judiciário, sendo de apenas 3,3% dos gastos totais das institui-
ções autônomas do sistema de justiça. Que não há um padrão nacional
de remuneração dos defensores públicos, mas, segundo dados de 2004
da Defensoria Pública, comparados, pelo Ministério da Justiça, com
os de 2005 do Ministério Público, os integrantes destes últimos, re-
cebiam, em média, na classe final da carreira, 257% a mais que os da
nova Instituição.
Mas essa é uma situação que a médio, ou mesmo a curto prazo, só ten-
de a se resolver, reforçada a solução pelas inúmeras decisões judiciais
e até políticas adotadas a favor de um tratamento igualitário entre as
duas Instituições.
Desporto e lazer
235

Desporto e lazer –
legislação infraconstitucional:
a Constituição traída
Emile P. J. Boudens

1. Introdução

Desde 5 de outubro de 1988, o desporto e o lazer ocupam espaço pró-


prio na Constituição Federal: alçaram-se ao status de obrigações do
Estado, ou seja, passaram a ser considerados indispensáveis ao exer-
cício pleno da cidadania. Na época da Assembléia Nacional Cons-
tituinte, as normas gerais sobre desportos estavam inscritas na Lei
n° 6.251, de 8 de outubro de 1975, sucessora do Decreto-lei n° 3.119,
de 1941, que, pioneiramente, marcara o início do processo de institu-
cionalização do desporto em nosso país. Havia, ainda, a Lei n° 6.354,
de 2 de setembro de 1976, que regrava as relações de trabalho do atleta
profissional de futebol.
Com a promulgação da Constituição, a Lei nº 6.251, de 1975 perdeu
a razão de ser por absoluta incompatibilidade com os fundamentos
do Estado democrático. Depois, foi formalmente revogada pela Lei
n° 8.672, Lei Zico, que entrou em vigor em julho de 1993, ou seja,
depois de um vácuo legislativo de quase cinco anos. A Lei nº 6.354, de
1976 sobreviveu até 24 de março de 1998, quando foi rendida pela Lei
n° 9.615, Lei Pelé, sob o argumento de que o quadro legal existen-
te não permitia tornar efetivo o dever constitucional do fomento das
práticas desportivas (cf. Exposição de Motivos PL 3633, de 1997).
Segundo este documento, era notório o estado de desorganização da
prática desportiva no país.
A Lei Pelé envelheceu prematuramente, não só por ter sido substan-
cialmente alterada pela Lei nº 9.981, de 14 de julho de 2000, e pela
Lei nº 10.672 (“Lei de Moralização do Futebol”), de 15 de maio de
2003, como também por ter sido obrigada a dividir espaço vital com
intrusas do naipe da Lei nº 10.264, de 2001, que destina 2% da ar-
recadação bruta dos concursos de prognósticos e loterias federais ao
236 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

desporto olímpico e ao desporto paraolímpico; da Lei nº 10.406, de


10 de janeiro de 2002, que institui novo Código Civil e revoga a Par-
te Primeira do Código Comercial, enterrando de vez veleidades tipo
clube-empresa; da Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003, que dispõe
sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor; da Lei nº 10.891, de 2004,
que institui a Bolsa-Atleta; Lei nº 11.345, de 2006 (que cria a Time-
mania, destinada a quitar os débitos tributários dos clubes de futebol)
e da Lei nº 11.438/06 (que dispõe sobre incentivos fiscais para o
fomento do desporto).
Por cúmulo, na fila de votações na Câmara dos Deputados o PL 5.186,
de 2005, que é uma proposta de alterar, mais uma vez, os artigos 27,
29 e 28 da já moribunda Lei Pelé, bem como um projeto de novo
ordenamento jurídico-desportivo, o PL 4.874. Neste caso, trata-se
do chamado Projeto de Estatuto do Desporto, originário da CPI
CBF/Nike, que encerrou seus trabalhos em 13 de junho de 2001 –
há cerca de sete anos, portanto. Enquanto aguarda penosamente sua
inclusão na ordem do dia para ser apreciado no Plenário, o Projeto de
Estatuto do Desporto.
Que está acontecendo? O desporto e o lazer foram promovidos a
direitos humanos fundamentais, mas ainda não conseguiram deitar
raízes numa legislação infraconstitucional que os torne exeqüíveis e
efetivos. De fato, à parte a regulação, em novo Código, da Justiça Des-
portiva direcionada ao desporto profissional e a concessão de recursos
públicos para o desporto de competição, assegurada em legislação pre-
cedentemente identificada, ainda estamos muito longe do consenso
sobre a natureza do regime jurídico-desportivo que já deveria ter des-
cartado o simulacro de legislação desportiva hoje vigente conhecido
como Lei Zico – alterada pela Lei Pelé – alterada pela Lei Maguito
– alterada pela Lei de Moralização do Futebol. Na verdade, a longa
hibernação a que está sendo submetido o Projeto de Lei 4.874, de
2001 e a interminável agonia de uma legislação infraconstitucional
estiolada e em frangalhos, configuram, na prática, um novo vácuo
legislativo pós-constituinte.
E, no entanto, já em 1989, o professor Álvaro Melo Filho lembrava
que, segundo Rui Barbosa, devemos julgar a Constituição não pelo
modo como se apresenta, mas pela maneira como a pomos em prática,
“especialmente em face do velho vezo brasileiro de solucionar, na lei e
no papel, todos os problemas, como se a norma tivesse a virtude mi-
raculosa de, por si só resolver tudo (cf. Desporto na nova Constituição.
Porto Alegre : Antônio Sérgio Fabris Editor, 1989, p 75). O fato é
Desporto e lazer – legislação infraconstitucional: a Constituição traída
237

que, até hoje, não conseguimos redigir uma lei geral do esporte vaza-
do no art. 217 da Constituição Federal, a Constituição traída.
Nada mais justo, pois, que interpretar o pedido de produção de um
texto que memore a constitucionalização do desporto como uma be-
mvinda oportunidade de propor que seja reiniciado o debate sobre a
legislação infraconstitucional, tanto a vigente quanto a que está sendo
elaborada. E que seja aberta uma nova picada, que leve à efetivação
plena do art. 217 da Constituição Federal.
2. A institucionalização do desporto no brasil
O enquadramento do desporto no arcabouço jurídico brasileiro, tor-
nando-o uma questão oficial e não privada, destinatária em potencial
de políticas públicas específicas, teve início em 1941, em pleno Estado
Novo, com o Decreto-lei nº 3.199. De certa forma, coincidiu com o
reconhecimento da legitimidade da prática desportiva profissional de
fins econômicos, ao lado da prática desportiva não profissional (então
chamado amador), sem fins utilitários, exercida gratuitamente. Nas
palavras de Carlos Miguel Aidar,
Até o ano de 1941, não existia nenhuma legislação que regula-
mentasse o desporto, absolutamente nada, apenas um apanhado
de pessoas que praticavam o esporte, mas não havia lei nenhuma
que regulamentasse sequer a atividade esportiva, quanto mais a
atividade administrativa ou a atividade jurídica da modalidade
esportiva (Direito Desportivo. Campinas-SP : Editora Jurídica
Mizuno, 2000, p 18).

Eduardo Dias Manhãesa entende que as bases do Decreto-Lei


nº 3.199, de 1941 estão nas alíneas a) e b) do art. 3º, que estabelece
as competências do Conselho Nacional de Desportos, conforme o
texto a seguir, cujos destaques são da transcrição:
a) estudar e promover medidas que tenham por objetivo assegu-
rar uma conveniente e constante disciplina à organização e à ad-
ministração das associações e demais entidades desportivas do
país, bem como tornar os desportos, cada vez mais, um eficiente
processo de educação física e espiritual da juventude e uma alta
expressão da cultura e da energia nacionais;
b) incentivar, por todos os meios, o desenvolvimento do amadorismo,
como prática de desportos educativos por excelência, e ao mesmo
tempo exercer rigorosa vigilância sobre o profissionalismo, com o ob-
jetivo de mantê-lo dentro de princípios de estrita moralidade;

O Decreto-lei nº 3.199 colocou a organização e a prática do despor-


to existentes desde os fins da Monarquia sob a superintendência do
Conselho Nacional de Desportos, órgão disciplinador, normativo e
238 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

fiscalizador, além de última instância da Justiça Desportiva. A prin-


cipal característica do Decreto-lei e dos instrumentos normativos
dele derivados era a intervenção estatal na organização da prática
desportiva. Demais, consoante o disposto no art. 46, toda e qual-
quer matéria relativa à organização desportiva do país tinha de ser
regulada por lei federal. Já por força do art. 48, a entidade desportiva
exercia função de caráter patriótico, sendo proibida a organização e
o funcionamento de que resultasse lucro para quem nela empregasse
capitais sob qualquer forma.
A seguir, tivemos a Lei nº 6.251, de 1975, que foi regulamentada
pelo Decreto nº 80.288, de 1977. Quanto a esta “única tentativa de le-
gislação orgânica sobre desportos formulada depois de 1946”, o já ci-
tado Manhães sustenta tratar-se de medidas datadas do Estado Novo,
especialmente no que se refere à “hegemonia do desporto seletivo e a
base clubística dele”, merecendo apenas reparos formais ou periféricos
(op. cit., p 99). O autor também afirma que “depois de pouco mais de
trinta anos de tutela estatal, nada, absolutamente nada, foi mudado na
ordem desportiva, quase nada e formalmente nas estruturas, nada no
conceito, quase nada nas prioridades” (Política de esportes no Brasil. Rio
de Janeiro: Graal, 1986).
A Lei nº 6.251, de 1975 manteve o Conselho Nacional de Desportos,
que, em meio século de existência, chegou a expedir aproximada-
mente quatrocentos atos normativos, todos revogados pelo presidente
Fernando Collor. Eram sugestões, indicações, resoluções e pareceres
regulamentando uma enorme diversidade de assuntos, tais como pu-
blicidade em camisas, composição dos conselhos deliberativos nas so-
ciedades desportivas, critérios e condições do passe, organização de
calendários, prestações de contas das entidades desportivas.
O terceiro instrumento normativo importante do período anterior a
1988 foi a Lei nº 6.345, de 1976, mais conhecida como Lei do Passe,
extinta em 26 de março de 2001 por força da Lei nº 9.981, de 2000.
Essa lei, que, na realidade, dispunha sobre as relações de trabalho do
atleta profissional do futebol, definia o passe como “a importância
devida por um clube a outro clube, pela cessão do atleta durante a
vigência do contrato ou depois de seu término, observadas as normas
desportivas pertinentes” (art. 11). Importante destacar que “ou depois
de seu término” significava que, acabado o vínculo empregatício, per-
manecia o chamado vínculo desportivo, que mantinha o atleta preso
ao clube. A permanência do vínculo desportivo era justificada como
justa recompensa do investimento que o clube fazia na formação pro-
fissional e pessoal do atleta.
Desporto e lazer – legislação infraconstitucional: a Constituição traída
239

3. A constitucionalização do desporto no Brasil

A idéia de inserir matéria desportiva na Constituição Federal não


contou com o apoio unânime dos constituintes, nem da comunidade
desportivab. Basta lembrar que o desporto sequer constava do ante-
projeto de Constituição. Segundo Álvaro Melo Filhoc, o desporto
ainda era concebido como atividade “pouco séria”, desempenhada
por “desocupados”, sinônimo de futebol. Com certeza, foi esta uma
das razões por que o debate constitucional foi intenso, segundo ex-
pressão usada pelo professor Manoel José Gomes Tubino.
Havia resistências de outra origem, conforme lembra Eduardo
Dias Manhães:
Com o passar dos anos, a ordem corporativa deu lugar a uma
oligarquia desportiva que se confunde com as elites partidárias
e políticas conservadoras, constituindo-se no bloco social que
resiste às modernizações que apontem para o fim do estado pa-
trimonialista, fonte privilegiada de recursos ilegítimos e de ins-
trumentos de controle que reproduzem as relações de poder tra-
dicionais. Esse cenário é o contexto determinante da formação
de um mundo desportivo em que a ética e o discurso político são
instrumentos de ocultação de interesses menores e particulares
inconfessáveis. (Op. cit., p 109)

Pelo caput do art. 217, a Constituição de 1988 atribui ao poder pú-


blico a obrigação do fomento das práticas desportivas formais e não
formais, como direito do cidadão, observados os seguintes princípios,
enunciados na forma de incisos: autonomia em matéria de organiza-
ção interna das entidades desportivas e de administração do desporto;
destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do des-
porto educacional; tratamento diferenciado do desporto profissional
e do desporto não profissional; proteção e incentivo às manifestações
desportivas de criação nacional. Nos parágrafos, está determinado,
ainda, que a justiça comum só pode admitir ações relativas à disci-
plina e às competições depois de se esgotarem as instâncias da justiça
desportiva, que deve proferir decisão final no prazo de sessenta dias,
contados da instauração do processo.
O significado e o alcance do princípio da autonomia, cerne de todo o
art. 217 da Constituição Federal, têm sido minuciosamente analisados e
explicitados por diversos especialistas, destacadamente por Álvaro Melo
Filho em textos como Desporto na nova Constituição (Porto Alegre : Ser-
gio Antonio Fabris Editor, 1990, p 25). Segundo o pai do art. 217,
a autonomia a que se refere o inciso I do art. 217 não é um fim
em si mesmo, mas um meio de dotar as entidades desportivas de
240 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

instrumentos legais capazes de possibilitar uma plástica orga-


nização e um flexível mecanismo funcional que permitam o
eficiente alcance de seus objetivos, e isto envolve, necessaria-
mente, uma profunda revisão do excesso de leis e de amarras
burocráticas que cerceiam e tolhem o gerenciamento desportivo
das entidades desportivas. O que se pretende com este inciso
I é a autonomia para que as entidades desportivas dirigentes e
associações tenham sua própria forma de organização e funcio-
namento, sem nada de padronização ou de feitio estereotipado
nos assuntos interna corporis.

Pelo menos em tese, é óbvio que a Constituição Federal de 1988 cau-


sou uma reviravolta nas relações entre o Estado e o mundo do despor-
to. Afinal, a partir de então, o desporto deixou formalmente de estar
“sob a alta superintendência do Conselho Nacional dos Desportos”. A
mudança foi tão radical que não havia como considerar recepciona-
da a Lei nº 6.251/75, desde logo qualificada e tratada como entulho
autoritário. Mesmo assim, levou quase cinco anos até que tivéssemos
uma nova lei do desporto, que traduzisse em ordenamento jurídi-
co-desportivo ordinário os princípios estabelecidos no art. 217 da
Constituição. A propósito, a existência do vácuo legal foi registrada
e descrita por Manuel José Gomes Tubino da seguinte forma: “Com
a revogação fática da legislação desportiva, através da promulgação
da Constituição de 1988, ficou um vazio na ordem jurídica esportiva
nacional, o que, de certa forma, favoreceu o falecimento das estruturas
arcaicas e os interesses dos senhores feudais do esporte brasileiro” (Op.
cit. p 83)d.
Para Tubinoe, esses pseudo-esportistas passaram a referenciar-se uni-
camente na estrutura vertical das entidades internacionais:
Desse modo, com o CND completamente desaquecido e em
fase terminal, estes verdadeiros ‘coronéis’ do esporte nacional, na
maioria investidos como dirigentes de federações e confederações,
principalmente no futebol, passaram a fazer regras próprias, dei-
xando reduzidas oportunidades de contestação, justamente pelo
aval que recebiam das entidades internacionais (Idem).
Desporto e lazer – legislação infraconstitucional: a Constituição traída
241

4. Desporto e lazer na Constituição

A constitucionalização do desporto e do lazer ocorre no art. 217, a


seguir transcrito.
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas for-
mais e não-formais, como direito de cada um, observados:
I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associa-
ções, quanto a sua organização e funcionamento;
II – a destinação de recursos públicos para a promoção priori-
tária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do
desporto de alto rendimento;
III – o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o
não-profissional;
IV – a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de cria-
ção nacional.
§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina
e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da
justiça desportiva, regulada em lei.
§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias,
contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promo-
ção social.
Note-se que o lazer está contemplado também em outros dispositi-
vos: como direito social (art. 6º); como fator a ser levado em conta na
fixação do salário mínimo (art. 7°, IV); como direito a ser assegurado
à criança e ao adolescente com absoluta prioridade (art. 227). Já a
competência e a responsabilidade da União, dos estados, do Distrito
Federal e dos municípios em matéria de desporto, devem ser definidas
com base nos disposto nos artigos 23 (V), 24 (IX, §§ 1º, 2°, 3º 3 4º)
e 30 (I e II), valendo lembrar que, na Constituição Federal anterior, a
competência legislativa em matéria desportiva era privativa da União.
Cabe, por fim, mencionar o inciso XXVIII do art. 5º, que assegura aos
atletas o direito de arena, ou seja, “a proteção às participações indivi-
duais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas”.

5. Legislação infraconstitucional

A Lei nº 8.672, de 6 de julho de 1993, foi a primeira tentativa de


aplicar em legislação ordinária os princípios constitucionalmente pro-
clamados. Dentre seus méritos, destacam-se a extinção do Conselho
Nacional do Desporto, a instituição do Fundo Nacional de Desenvol-
vimento do Desporto (Fundesp) e o reconhecimento da importância
econômica do desporto. Ou seja, ao permitir que o desporto profis-
sional fosse organizado e praticado em “clubes-empresa”, o legislador
242 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

assumiu publicamente que a prática desportiva pode ter fins utilitá-


rios e, até mesmo, lucrativos. A regulamentação da chamada Lei Zico
consta do Decreto n° 981, de 11 de novembro de 1993 que, ao lado
de outros assuntos, trata da Política Nacional do Desporto, do Plano
Nacional do Desporto e do Desporto Educacional.
A Lei Zico foi revogada pela Lei Pelé, Lei nº 9.615, de 24 de março
de 1998, que o próprio autor, Edson Arantes do Nascimento, definiu
como “uma busca de implementação de medidas moralizadoras que,
sem ferir a autonomia das entidades desportivas, colocam o esporte
brasileiro na direção do futuro, profissionalizando as relações decor-
rentes de sua prática e inserindo a iniciativa privada em seu processo
de desenvolvimento” (Exposição de Motivos nº 22/GMEE).
À parte o capítulo sobre o bingo, que ocupa 23 de seus 96 artigos e que
não constava do texto original, a estrutura da Lei Pelé, no que se refere
aos 73 artigos restantes, é a do Projeto de Lei 3.633, de 1997 que, por
sua vez, reproduz parcialmente a Lei Zico, da qual incorpora, tais e
quais, trinta artigos e, com ligeiras alterações, outros treze. Quanto
ao clube-empresa, a Lei Pelé determinava que as entidades que par-
ticipassem de competições oficiais ou quisessem fazer jus a incentivos
fiscais fossem obrigatoriamente organizadas como sociedades comer-
ciais, vedada sua constituição como associações. Quanto ao passe, até
então previsto e disciplinado na Lei nº 6.345, de 1976, a Lei Pelé o
extingue, nos termos do art. 28, § 2º, do seguinte teor: “o vínculo des-
portivo do atleta com as entidades contratantes tem natureza acessória
ao respectivo vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efei-
tos legais, com o término da vigência do contrato de trabalho”.
A Lei Pelé ainda não completara três anos de existência quando foi
abatida pela Lei nº 9.981, de 14 de julho de 2000. De fato, retornando
à situação anterior, a da Lei Zico, passou a ser facultativa a transfor-
mação dos clubes em empresas (cf. a nova redação do art. 27) e foi
disciplinada restritivamente a celebração de acordos de parceria entre
clubes e patrocinadores, investidores, etc (ver o art. 27-A).
Quanto à questão do trabalho desportivo, as mudanças mais expres-
sivas aconteceram no Capítulo V, precisamente o que trata da práti-
ca desportiva profissional. De fato, dos vinte artigos que compõem o
capítulo, só escaparam ilesos três: os artigos 41, 42 e 44. Os demais
artigos (27, 27-A, 28, 29, 30, 39, 41(§ 1º), 43 e 45 da Lei nº 9.615, de
1998) tiveram sua aplicação restrita aos atletas e às entidades de fute-
bol profissional. Desta forma, a Lei nº 9.615, de 1998 transformou-se
numa verdadeira lei do futebol.
Desporto e lazer – legislação infraconstitucional: a Constituição traída
243

Como se não bastasse, a Lei n° 10.672, de 15 de maio de 2003, alterou


os arts. 2°, 4°, 6°, 7°, 11, 12-A, 20 (§ 6°), 23 (parágrafo único), 26, 27,
27-A, 28 (§§ 2°, 4°, e 7°), 29, 40 (§ 2°), 46-A e 50 da Lei Pelé. Além
disto, estabelece regras de administração financeira das entidades des-
portivas (como no tempo do Estado Novo!), de dissolução do contrato
de trabalho do atleta, de indenização devida ao clube formador de
atleta, de transferência de atleta para outro clube, de participação de
clubes em campeonatos.

6. Propostas de emenda à Constituição

Nos vinte anos de constitucionalização do desporto, foram sugeridas


as emendas a seguir relatadas. A primeira foi a Proposta de Emenda
à Constituição (PEC) 353, de 2004, de autoria do deputado Gilmar
Machado. Foi arquivada por força do art. 105 do Regimento Interno,
que dispõe sobre o arquivamento de proposições em tramitação, finda
a legislatura. Segundo a ementa, essa PEC vinculava recursos para o
desporto e o lazer (dois e meio por cento da receita resultante de im-
postos federais, estaduais, distrital e municipais, vedado o contingen-
ciamento de recursos destinados ao desporto educacional); definia as
competências da União, dos estados, do Distrito Federal e dos muni-
cípios em matéria de desenvolvimento do desporto; e instituía o pla-
no nacional de desporto e lazer, de duração plurianual, com o objetivo
de assegurar a construção de um sistema nacional que articulasse “de
forma coerente a ação das diversas esferas federativas”.
Já a PEC 8, de 2005, apresentada pelo senador Maguito Vilela, busca-
va alterar a redação do inciso I do art. 217 (a autonomia das entidades
e associações desportivas quanto a sua organização e funcionamento),
mediante o acréscimo de “vedada a recondução de dirigentes de enti-
dade de administração do desporto e de quem os houver sucedido ou
substituído no curso dos mandatos por mais de um período consecu-
tivo”. Essa PEC, que, como no caso precedente, foi arquivada ao final
da 52ª Legislatura (janeiro de 2007), mostra que, mesmo depois de
decorridos cinco anos, o conceito de autonomia das entidades despor-
tivas ainda era malcompreendido.
A PEC 10, de 2007, por sua vez, do deputado André de Paula, está
aguardando a criação de Comissão Especial, para o exame do mérito.
Trata-se de proposição que acrescenta um parágrafo (o 4º) ao art. 217,
estabelecendo que
244 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

a lei definirá a destinação e redistribuição para entidades de prá-


tica desportiva de recursos administrados pelas entidades de ad-
ministração do desporto, provenientes, direta ou indiretamente,
de incentivos ou contratos firmados com a administração pública
direta ou indireta e empresas concessionárias ou permissionárias
do serviço público.

O objetivo, pois, é assegurar maior eqüidade no repasse de recursos


públicos aos clubes por intermédio das federações e confederações.
Com a PEC 175, de 2007, o deputado Décio Lima reapresenta a ma-
téria contida na PEC 353, de 2004. Segundo o parlamentar,
O desporto tem que ser entendido como modo de realização da
cidadania, da superação da exclusão social, e como fato econô-
mico, capaz de atrair divisas para o país e, internamente, gerar
emprego e renda. É, pois, um espaço onde o Estado deve intervir,
não segundo a velha cartilha estatizante, mas como formulador
de políticas públicas e estimulador da produção desportiva”.

A esta PEC está apensada a PEC 191 de 2007, obviamente com


conteúdo parecido, de autoria da deputada Manuela D’avila.

7. Projetos de lei

a) Entre as proposições que aguardam inclusão na Ordem do Dia do


Plenário da Câmara dos Deputados destaca-se, tanto pela antigui-
dade quanto pela complexidade, o PL 4874, de 2001, que institui o
Estatuto do Desporto {cf. nosso estudo Do jeito que está, o projeto de
Estatuto já não consegue esconder os pneuzinhos, publicado em Cader-
nos Aslegis 28 (jan/abril 2006)}. Esse projeto de lei foi concebido e
elaborado no curso dos trabalhos da chamada CPI CBF/Nike, criada
para examinar a regularidade do contrato de patrocínio firmado em
1996 entre a Nike Europe B.V., a Confederação Brasileira de Fu-
tebol (CBF) e a Traffic Assessoria e Comunicações. Afinal, desde a
sua instalação, aquela Comissão Parlamentar de Inquérito assumira o
compromisso de rever a legislação desportiva então vigente.
A CPI CBF/Nike foi instalada em 17 de outubro de 2000 e o en-
cerramento deu-se em 13 de junho de 2001. O projeto de Estatuto
do Desporto apresentado pela subcomissão de legislação havia sido
incorporado no Relatório Final da CPI, com ligeiras alterações, que
contemplavam, principalmente, sugestões feitas informalmente ao
relator por diversos parlamentares. O relatório final da CPI CBF/
Nike não foi votado, por falta de acordo político, e, então, poucos
dias depois, o relator, deputado Sílvio Torres, apresentou o projeto
Desporto e lazer – legislação infraconstitucional: a Constituição traída
245

de Estatuto do Desporto, ligeiramente alterado, como projeto de lei


de sua iniciativa.
Encaminhado à mesa da Câmara dos Deputados em 19 de junho de
2001, o projeto de Estatuto do Desporto passou a tramitar como PL
4.874, de 2001. Para examiná-lo e sobre ele dar parecer, foi constituída
uma Comissão Especial, que, além das emendas de autoria dos depu-
tados, entre as quais, pela extensão, autênticos substitutivos, recebeu
mais de uma centena de sugestões, apresentadas por cidadãos, dirigen-
tes de entidades desportivas e representantes de diversos segmentos
da sociedade civil. Os trabalhos foram concluídos em 6 de novembro
de 2002, com a aprovação de um substitutivo (SUB1). Esse substitu-
tivo foi o alvo de 22 emendas de Plenário, razão por que a Mesa o de-
volveu à Comissão Especial, solicitando novo parecer. Desta feita, os
trabalhos se estenderam de 5 de novembro de 2003 a 22 de junho de
2005, quando foi aprovado um segundo substitutivo (SUB2). Assim,
o PL 4.874/01 é tecnicamente matéria “pronta para a pauta”, ou seja,
está em condições regimentais de ser discutido e votado pelo Plenário.
Se e quando for aprovado, seguirá à casa revisora, o Senado Federal.
Quando se compara a versão original do PL 4.874, de 2001 com o
substitutivo “pronto-para-a-pauta” (SUB2), chama a atenção a ex-
clusão de alguns dispositivos que, dentre outros, responderiam pela
especificidade da proposição e, por isso, não poderiam ser eliminados
sem uma análise mais cuidadosa. É o caso, por exemplo, dos artigos
12 e 13, que, respectivamente, determinam a realização da Conferên-
cia Nacional de Desenvolvimento do Desporto e do Fórum Nacional
de Desporto; dos artigos 49 a 52, que tratam das ligas esportivas; do
artigo 174, que dispõe sobre as responsabilidades de patrocinadores,
empresários e procuradores e cria as Corregedorias da Justiça Despor-
tiva; do art. 189, que define as atribuições do Conselho Nacional de
Justiça Desportiva; e do art. 235, que prevê a elaboração de um Códi-
go Brasileiro de Auto-regulamentação Esportiva. A adoção desse Có-
digo mostraria que as relações jurídico-desportivas não devem apenas
obedecer ao princípio da legalidade, mas também subordinar-se ao
império da ética. Legalidade e moralidade são os pilares do exercício
pleno da autonomia prevista no art. 217 da Constituição Federal, da
qual um código de auto-regulamentação seria o corolário natural.
Note-se, ainda, no substitutivo “pronta para a pauta”, a inserção dos
artigos 25 e 26, que incluem entre as entidades de administração do
desporto a Comissão Desportiva Militar do Brasil; dos artigos 81 a
85, que definem o esporte militar e tratam dos eventos esportivos
militares; dos artigos 128, III e §§ 1°, 2° e 3°, que já são lei (ver a Lei
246 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

n° 10.264, de 16/7/2001); dos artigos 134 a 148, que instituem o


incentivo ao esporte mediante renúncia fiscal dos artigos 154 a 157,
que simplesmente repetem o que está na Lei n° 10.891, de 9/7/2004;
dos artigos 158 a 193, 231 e 232, que incorporam, quase na íntegra,
o Estatuto do Torcedor; o art. 216, que trata das prestações de con-
tas das entidades esportivas; e os artigos 238 a 240, que regulam os
negócios esportivos no que se refere ao ingresso e egresso de divisas.
Como se trata de normas já vigentes, previstas em legislação própria,
sua inserção torna o projeto de Estatuto do Desporto desnecessaria-
mente obeso.
No que se refere à incorporação integral da Lei n° 10.671/2003 (Es-
tatuto de Defesa do Torcedor), materializada em trinta e cinco arti-
gos, note-se que, diluída na lei geral do desporto, correrá o risco de
ficar isolada do Sistema Geral de Defesa e Proteção do Consumidor
e, portanto, perder força. Na verdade, o Estatuto de Defesa do Tor-
cedor muito pouco tem a ver com a prática esportiva em si. Tem a
ver, isso sim, com o espetáculo esportivo como prestação de serviço e
consumo de bens. Primordialmente, sua finalidade tem sido assegurar
algumas condições básicas para que o Brasil pudesse sediar os Jogos
Pan-americanos, em 2007, e, futuramente, pleitear a realização de no-
vos eventos esportivos internacionais como a Copa do Mundo e os
Jogos Olímpicos.
De resto, repita-se, em respeito aos princípios da autonomia (CF art.
217, I) e da igualdade de todos perante a lei (CF art. 5°, caput), uma
lei geral do desporto não deveria referir-se a qualquer entidade es-
portiva em especial, nem essas entidades deveriam tolerar tal tipo de
relacionamento com o poder público. A observação vale para o Co-
mitê Olímpico Brasileiro (art. 20 e outros), o Comitê Paraolímpico
Brasileiro (art. 22 e outros), a Comissão Esportiva Militar do Bra-
sil (art 25 e outros), a Confederação Brasileira de Desporto Escolar
(art. 70, § 2°), a Confederação Brasileira de Clubes (art. 128, § 4°) e
quaisquer outras, ainda que não expressamente mencionadas, por mais
“benemerentes” que sejam. A este ensejo, importa lembrar o disposto
no art. 24, IX, da Constituição, que não só estabelece a competência
concorrente da União, dos estados e do Distrito Federal em matéria
de educação, cultura, ensino e desporto, como também limita a com-
petência da União ao estabelecimento de regras gerais.
b) O Projeto de Lei n° 5186, de 2005, altera a Lei n° 9.615, especial-
mente o artigo 27 (o do chamado clube-empresa) e os artigos 28 e 29
(que tratam do vínculo trabalhista do atleta profissional). Segundo a
Exposição de Motivos que acompanha o PL, no tocante ao art. 27 da
Desporto e lazer – legislação infraconstitucional: a Constituição traída
247

Lei n° 9.615, o Projeto de Lei 5.186, de 2005, tem como pano de fun-
do o propósito de facilitar o acesso dos clubes de futebol a “programas
(governamentais) de recuperação econômico-financeira que venham a
ser criados para revitalizá-los e tirá-los da situação de quase bancarro-
ta em que se encontram”. Para tanto:
a) em vez de impor a adoção de alguma forma societária, como o clu-
be-empresa, apenas fixa um padrão contábil de observância obrigató-
ria (vejam-se as alterações procedidas no art. 6°, V, e no art. 11);
b) condiciona a participação de clube de futebol em competição pro-
fissional à comprovação, perante a respectiva entidade de administra-
ção do desporto, de regularidade de obrigações junto à Fazenda Pú-
blica Federal, à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia do Tempo
de Serviço – FGTS (veja-se o novo art. 13).
Está muito claro na EM que o PL 5186/05 tem por objetivo garantir
“a necessária confiabilidade às aplicações de programas governamen-
tais de estímulo ao desporto”. Segundo o presidente da República, na
solenidade de lançamento da Medida Provisória da Timemania,
o futebol não sobrevive nem se desenvolve, em nenhum lugar do
mundo, sem clubes fortes, saudáveis financeiramente e adminis-
trados com profissionalismo. (...) A Medida Provisória que cria
a Timemania tem por objetivo principal possibilitar que os mais
importantes clubes brasileiros das séries A, B e C possam sanear
suas dívidas e modernizar suas gestões administrativas.

No tocante ao relacionamento entre as entidades esportivas e os atle-


tas, o projeto de lei: a) afasta a aplicação da cláusula penal e as inde-
nizações rescisórias, previstas na CLT, e, em compensação, inclui a
cláusula indenizatória desportiva e a multa rescisória (art. 28, §§ 1°
e 2°); b) traz regras que tipificam o contrato de trabalho desportivo
(§§ 3° a 9° do art. 28); c) impõe limites jurídicos à ação de agentes
de atletas ou empresários (art. 28, § 10). Já o novo art. 28-A introduz,
no direito esportivo, a figura do atleta profissional autônomo, sem
vínculo empregatício com entidade esportiva.
O artigo 29, em sua nova roupagem, e os adicionados artigos 29-A,
29-B e 29-C têm por objetivo estabelecer regras que “conferem aos
clubes formadores que investem nas categorias de base a motivação, a
vitalidade e as garantias de que necessitam”. Nos termos da exposição
de motivos, as alterações propostas foram limitadas às “questões de
maior relevância para o relacionamento atleta e entidade desportiva”.
É mantido o art. 46-A, inserido na Lei Pelé pela Lei n° 10.672, de
15/5/2003, que define as responsabilidades dos dirigentes de entidade
248 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

desportiva no que se refere ao atos administrativos. Contudo, de acor-


do com a Exposição de Motivos, tal providência tem a ver, principal-
mente, com a participação em programas de recuperação econômico-
financeira, já referidos.

8. Conclusão

Da legislação desportiva pré-Constituinte/88 tudo se pode dizer, me-


nos que foi efêmera: o Decreto-lei nº 3.199, de 1941, resistiu até 1975;
a Lei nº 6.251, de 1975, foi revogada em 1993; a Lei nº 6.354/76 al-
cançou a idade de 22 anos. Em compensação, no período pós-Consti-
tuinte, tivemos a Lei nº 8.672, que esteve em vigor de julho de 1993 a
março 1998, e a Lei nº 9.615, de março de 1998, que, com dez anos de
idade, sobrevive como lei do futebol, graças a cirurgias supostamente
reparadoras praticadas por meio da Lei nº 9.981, de julho de 2000, e
da Lei nº 10.672, de maio de 2003. De fato, hoje inexiste uma lei geral
do desporto brasileiro.
Como se sabe, especialmente o esporte de competição, seja profissio-
nal, seja não profissional, é tradicionalmente organizado em estrutu-
ras verticais, hierárquicas e autoritárias que atendem, antes de tudo,
aos projetos pessoais e políticos de dirigentes, governantes e outros
possíveis adversários da modernidade. Daí a necessidade de uma le-
gislação infraconstitucional que, por exemplo, prestigie e fomente a
gestão empresarial e o controle social dos investimentos, a distribuição
eqüitativa e transparente de recursos financeiros e o desenvolvimento
de políticas públicas integradas (cultura, lazer, esporte, meio ambiente
e saúde) – a democratização, enfim, da administração e da prática do
esporte e do lazer.
Para melhor avaliar o desconforto causado pelo legislador pouco in-
teressado tanto na reforma da legislação desportiva vigente quanto no
debate sobre a que está sendo submetida à apreciação do Congresso
Nacional, vale recordar o parágrafo em que, há alguns anos, Inácio Nu-
nes dava voz à frustração generalizada:
A vergonheira legislativa que se operou entre os anos 1998 e
2003 certamente terá contribuído para o descrédito do des-
porto no país, para a fuga de investidores estrangeiros e para
a situação de insolvência em que se encontra a maioria dos
clubes que desenvolvem algum esporte de modo profissional.
O futuro do desporto profissional no Brasil depende de legis-
lação séria e competente, sem casuísmos, não se podendo mais
admitir que, a cada interesse particular, seja de dirigente seja de
Desporto e lazer – legislação infraconstitucional: a Constituição traída
249

empresário seja de imprensa seja de político, venha uma Medi-


da Provisória desestruturando todo um arcabouço jurídico que
dê segurança ao desenvolvimento do desporto (Inácio Nunes.
Código brasileiro de justiça desportiva comentado. Rio de Janeiro :
Editora Lúmen Júris, 2004).

Nessa mesma época, aliás, Álvaro Melo Filho (Revista Brasileira


de Direito Desportivo – Nº 6 – segundo semestre de 2004, p 156-
157) advertia:
Não há mais habitat para a cosmética legislação desportiva
que discorre e não dispõe, que inflaciona mas não sintetiza,
que intelectualiza mas não esclarece, que opta pelos devaneios
lunares e não pelas realidades terrenas. Não se pode olvidar,
também, que a “futebolização” e a “empresarialização” da lex
esportiva são indicadores de um “autismo estrutural”, quando
a lege ferenda desportiva não pode nem deve sequer ficar per-
meável a sabores conjunturais.

A mensagem ao Congresso Nacional de 2003 dedicou um parágrafo


relativamente longo à legislação desportiva em elaboração no Con-
gresso Nacional. Segundo o presidente, “se o Estado busca moderni-
dade e paridade com os novos rumos apontados pela sociedade bra-
sileira, a legislação não pode estar desarticulada desses movimentos”,
cabendo ao governo federal participar do debate e fomentá-lo, “na
busca de soluções que dêem agilidade à ação governamental, estimu-
lem a competência administrativa, promovam a organização do setor e
a transparência necessária às ações públicas”. No ano seguinte, o pará-
grafo dedicado a esse assunto era bem mais despojado: “O Ministério
do Esporte deverá buscar, junto ao Congresso Nacional, a aprovação
do Estatuto do Desporto, que será o marco regulador do setor de es-
portes no Brasil”. De 2005 em diante, nenhuma referência à legislação
desportiva... Assim, até ao Poder Executivo faltam vontade e determi-
nação para concluir a constitucionalização do desporto.
A dificuldade que estamos tendo em elaborar uma legislação despor-
tiva infraconstitucional contrasta com os avanços obtidos nas áreas de
pesquisa, documentação, informação e organização, de que são prova,
por exemplo, a criação (2001) do Instituto Brasileiro de Direito Des-
portivo, que publica a Revista Brasileira de Direito Desportivo; a re-
gulamentação da profissão de educador físico e a criação do Conselho
Federal de Educação Física (1998); a criação da ONG Centro Espor-
tivo Virtual (CEV), que é uma lista com informações sobre eventos,
publicações e programas relacionados à legislação desportiva (junho
2002); o lançamento (2005) do Atlas do Esporte no Brasil, organi-
zado por Lamartine DaCosta; a elaboração e a aprovação do novo
250 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Código de Justiça Desportiva pela Resolução nº 1, de 23 de dezembro


de 2003, do Conselho Nacional do Esporte; a realização dos XV Jogos
Pan-Americanos (Rio 2007).
Difícil acreditar que, em matéria de aplicabilidade das normas estabe-
lecidas no art. 217, as entidades desportivas, a comunidade desportiva
acadêmica e os próprios desportistas não sejamos capazes de reanimar
o debate sobre a validade da legislação infraconstitucional vigente e
das propostas de mudança em análise no Congresso Nacional. O pro-
blema, aliás, não é só do desporto. No Correio Braziliense de 3 de maio
de 2008, p 15, Antônio Machado, em artigo dedicado à análise de
uma proposta de reabertura do debate sobre a modernização da legis-
lação trabalhista e a tramitação na Câmara da minirreforma tributária,
denuncia “a derrota recorrente dos interesses difusos e majoritários da
sociedade diante de grupos de pressão de setores minoritários (lobbies
de categorias organizadas), mas coesos, que há tempos puseram ca-
bresto no Congresso, travando qualquer movimento reformista”.
Como comemorar a constitucionalização do desporto, do lazer, da ati-
vidade física? Sem dúvida, a esta altura dos acontecimentos, a melhor
homenagem que se pode prestar ao vigésimo aniversário da consti-
tucionalização do desporto e do lazer é começar tudo do marco zero
e reavaliar, em profundidade, à luz dos próprios preceitos constitu-
cionais, todo o afã acadêmico e legislativo realizado para pô-los em
prática (ou para impedir que sejam postos em prática).

Referências

a) Leituras básicas

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TUBINO, Manoel José Gomes (org.). Repensando o esporte brasileiro. São Paulo
: Ibrasa, 1988.
Desporto e lazer – legislação infraconstitucional: a Constituição traída
251

b) Leituras de apoio
AIDAR, Carlos Miguel (coord.). Curso de direito desportivo. São Paulo : Ícone,
2003.
________. Aspectos normativos e retrospectiva histórica da legislação desportiva
infraconstitucional. In: APPROBATO, Rubens et al. (coord.). Curso de direito
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BOUDENS, Emile P. J. Modernizar e moralizar o futebol: vai pegar? Rio de Janei-
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________. Do jeito que está, o projeto de Estatuto do Desporto já não consegue
esconder os pneuzinhos. Cadernos ASLEGIS, v.. 8, n. 28, jan./abr. 2006.
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MELO FILHO, Álvaro. Reimaginando e propondo uma nova legislação des-
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MOREIRA, José Ângelo Ribeiro. O desporto na lex magna. Disponível em:
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NUNES, Inácio. Novo código brasileiro de justiça desportiva comentado. Rio de Ja-
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SOUZA, Pedro Trengrouse Laignier de. Princípios de direito desportivo. Revista
Brasileira de Direito Desportivo, v. IV, n. 7, jan.-jun. 2005.

Notas de fim

a) A compreensão e explicitação da articulação da ordem desportiva com o Esta-


do Corporativo são o objeto da tese de mestrado POLÍTICA DE ESPORTE
NO BRASIL (Graal, 1986; Paz e Terra, 2002), de Eduardo Dias Manhães, que
se auto-apresenta como quem teve “a honra de participar da assessoria parlamen-
tar do deputado Márcio Braga, ex-presidente do Flamengo e liderança compro-
metida com a mudança da ordem desportiva brasileira”. Márcio Braga (deputado
federal de 1983 a 1987) foi o primeiro presidente da Comissão de Esporte e
Turismo, cuja criação, na Câmara dos Deputados, em 1983, segundo Manoel
Tubino, “pode ser considerada como o passo mais importante que aconteceu,
chamando a sociedade para uma revisão do esporte brasileiro” (Op. cit., p 56).
252 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Segundo o mesmo autor, foi a partir desse momento histórico que surgiu o nome
de Márcio Braga a constituir-se como o principal personagem de resistência ao
status quo instalado e consolidado pela Lei nº 6.251/75 e seu decreto regulamen-
tador 80.228/77, papel que desempenharia depois, como deputado constituinte
(1988-1991).
b) ESPORTE, EDUCAÇÃO FÍSICA E CONSTITUIÇÃO, obra organizada
por Marcos Santos Parente Filho (São Paulo : IBRASA, 1989), tem por objetivo
principal registrar na história da educação física e dos desportos no Brasil um
de seus capítulos mais importantes: a introdução da atividade física na Carta
Constitucional em 1988. O primeiro capítulo compõe-se de justificativas para a
inclusão da educação física e do desporto na Constituição. Trata-se de estudos
realizados no âmbito da Comissão de Reformulação do Desporto Brasileiro, pa-
receres, sugestões, emendas e projetos apresentados à Subcomissão de Educação,
Cultura e Desporto durante a Assembléia Constituinte de 1988, e uma análise
crítica do texto aprovado.
c) Segundo o professor Manoel José Gomes Tubino, “a constitucionalização do
esporte brasileiro na Carta Magna de 1988 foi o resultado de uma proposta inspirada
e desenvolvida por Álvaro Melo Filho e que tive a honra de apresentar em nome do
Conselho Nacional de Desportos (CND) em audiência na Subcomissão de Educação,
Cultura e Esporte”(Cf. O ESPORTE NO BRASIL – DO PERÍODO COLO-
NIAL AOS NOSSOS DIAS, p 78). A propósito, em carta enviada ao blog ale-
mdojogo.worlspress.com, em 17.12.2007, Márcio Braga – aquele que, modéstia à
parte, disse que a história já o consagrou melhor presidente do Clube de Regatas
do Flamengo – reivindica para si a autoria da proposta de constitucionalização do
esporte, tal como configurada no art. 217 da nova Carta Magna.
d) Consoante sugere o subtítulo, O ESPORTE NO BRASIL permite que
o leitor realize a tarefa das mais complexas de “passar pela história das idéias
que surgiram no esporte brasileiro nas suas interações com o contexto nacional”,
complexidade essa que cresce “quando a análise efetuada identifica situações
de rompimento do status quo, as quais foram intensamente vividas pelo autor”.
A história da prática desportiva no Brasil é dividida em cinco capítulos: o Perí-
odo Brasil-Colônia até a Institucionalização do Esporte no Estado Novo (1500
– 1940), O Período a Partir do Processo de Institucionalização do Esporte (1941
– 1985), o Período de Revisão Ideológica do Esporte Brasileiro (1985 a 1989), o
Período Fernando Collor de Melo (1990 – 1992) e o Período da Legislação (Lei
Zico) inspirada na Constituição de 1988 (a partir de 1993).
Trata-se de uma obra que presta minuciosas informações sobre os antecedentes
da institucionalização do esporte no Brasil, sobre a tutela estatal e o paternalismo
instituídos no Estado Novo e na Ditadura Militar, os trabalhos da Comissão de
Reformulação do Esporte Brasileiro, o processo de constitucionalização e seus
desdobramentos, a constituição do Ministério da Educação e do Desporto, a
elaboração de um substitutivo ao projeto de lei de Zico, com ênfase no século
XX, “quando ocorreram os registros mais marcantes da História das Idéias do Esporte
no Brasil”. É, ainda, destacada a participação no processo de reformulação e re-
democratização do esporte brasileiro de Márcio Braga (Secretário de Desporto
no governo Itamar Franco), Ruthênio Aguiar, Octávio Teixeira, Juarez Masson,
Álvaro Melo Filho, João Lyra, Artur da Távola, José Cácio da Silva.
Desporto e lazer – legislação infraconstitucional: a Constituição traída
253

e) O professor Manoel José Gomes Tubino presidiu o Conselho Nacional de


Desportos no período compreendido entre maio de 1985 e janeiro de 1990, ou
seja, no governo do Presidente José Sarney. Como tal, dirigiu e relatou os tra-
balhos da Comissão de Reformulação do Esporte Brasileiro, criada pelo então
Ministro da Educação, Marco Maciel. Foi o responsável pela ação renovadora
do CND, que teve uma participação ativa nos debates e audiências na Assem-
bléia Constituinte, em 1987 a partir da chamada Nova República. Esses debates
“deixaram a impressão de que a percepção do esporte também como meio de promoção
social e educacional levariam este fenômeno ao texto constitucional de 1988 (TUBI-
NO/1996). São de sua autoria REPENSANDO O ESPORTE BRASILEIRO,
que é de 1988, e O ESPORTE NO BRASIL (DO PERÍODO COLONIAL
AOS NOSSOS DIAS), publicado em 1996.
Direito de família
255

A Constituição de 1988
e o direito de família
Maria Regina Reis

1. Considerações preliminares

De todas as áreas a sentirem o efeito da nova Constituição, o Direito


de Família é, talvez, a que mais tenha sido por ela influenciada.
Muitas das mudanças vividas pelas famílias nos últimos trinta anos
foram absorvidas pela legislação, inclusive pela Carta Magna. Foi in-
troduzido o divórcio em nosso ordenamento, as mulheres galgaram
independência jurídica e financeira e as famílias deixaram de seguir
o modelo tradicional, ganhando novos contornos que, inclusive, têm
a resistência dos setores conservadores e ainda carecem de reconheci-
mento legislativo. De toda sorte, com base nos novos preceitos consti-
tucionais, doutrina e jurisprudência têm albergado os direitos daque-
les que lutam pelo seu reconhecimento.
As novas disposições constitucionais obrigaram o operador do direito
a fazer uma releitura do ordenamento jurídico em vigor, a ponto de fa-
lar-se no que antes nunca se ouvira: direito civil constitucional. A ve-
lha dicotomia entre direito público e privado parece não caber mais no
contexto atual, na medida em que as Constituições foram albergando
preceitos que antes eram tidos por exclusivamente privatistas. Assim
ocorreu com a propriedade, a intervenção no domínio econômico e
enfim, para o que nos interessa, a organização da família.
Note-se que além da proliferação de leis extravagantes que modifica-
vam velhos dispositivos do CC/16, após o advento da Constituição de
1988, deu-se início à “era dos estatutos”, fruto dos anseios legislativos
por disciplinar de forma global e de acordo com a nova Carta os direi-
tos e deveres de determinados grupos merecedores de apoio que antes
ou eram relegados a segundo plano ou não possuíam a primazia hoje
adquirida, como, por exemplo, a criança e o adolescente, o consumidor
e o idoso.
Tais leis podem ser vistas como “microssistemas” paralelos a um sistema
antes global, o Código Civil, estando todos eles submetidos, de toda
256 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

forma, à Constituição. Para que haja unidade de interpretação entre to-


dos eles, cumpre extrair dos dispositivos constitucionais que tutelam a
realização da personalidade e a dignidade da pessoa humana as linhas
mestras para o direito positivado. É isto, em apertada síntese, o que a
doutrina vem chamando de constitucionalização do direito civil.

2. Divórcio

A Constituição modernizou o instituto do divórcio na medida em que


reduziu o tempo necessário à sua obtenção. A Lei nº 6.515, de 19771,
que o instituiu, exigia separação judicial prévia há mais de três anos
para que só então se procedesse à sua conversão e vedava a formula-
ção do pedido de divórcio por mais de uma vez.2 Com base no novo
texto constitucional, foi aprovada a Lei nº 7.841, de 1989, que deu
nova redação ao inciso I, do parágrafo único, do art. 36, da citada lei,
reduzindo o prazo de três para um ano de separação judicial e revogou
expressamente o art. 38. Dessa forma, tem-se a possibilidade, hoje, de
uma pessoa divorciar-se várias vezes.
É interessante lembrar que temos atualmente o impensável à época
da promulgação da Lei do Divórcio ou mesmo da própria Constitui-
ção: a possibilidade, dada pela Lei nº 11.441, de 2007, de realização
da separação e do divórcio consensuais por escritura pública, desde
que não haja filhos menores ou incapazes. Hoje tramita na Câmara
dos Deputados o Estatuto das Famílias – PL 2.285, de 2007 – que
prevê o divórcio por escritura pública ainda que com filhos menores
ou incapazes, desde que se comprove estarem solvidas judicialmente
as questões relativas a eles. A ausência de tantas cautelas antes exigidas
traduzem, nitidamente, a transformação vivida pela sociedade.

3. Novas famílias

No que tange às modificações sofridas pelo Direito de Família, a pri-


meira grande intervenção, origem de todas que a ela se seguiram, foi
anterior à atual Constituição: trata-se da Emenda Constitucional nº 9,
de 28/6/1977, que modificava o § 1º do art. 175 da Carta de 1969, dis-

1
“Art. 36 .......................................................................
Parágrafo único. A contestação só pode fundar-se em:
I – falta de decurso do prazo de 3 (três) anos de separação judicial;”.
2
“Art. 38. O pedido de divórcio, em qualquer dos seus casos, somente poderá ser
formulado uma vez.”
A Constituição de 1988 e o direito de família 257

positivo que garantia a indissolubilidade do matrimônio. Apesar desse


avanço, até a promulgação da Constituição de 1988, do ponto de vista
legal havia apenas um tipo de família: a tradicional, protegida pelo Có-
digo Civil de 1916, que por sua vez foi inspirado no Código Napoleôni-
co, vale dizer, uma lei elaborada em época de ascensão da burguesia, do
liberalismo econômico, promulgada para a proteção do varão individu-
alista, voluntarista, proprietário, contratante e chefe de família.
A instituição do divórcio não trouxe o esfacelamento da família, con-
soante fora amplamente ameaçado pelos setores que pugnavam por
sua rejeição, mas o surgimento de famílias constituídas para a satisfa-
ção de desejos e necessidades individuais e não mais para satisfazer o
modelo imposto pelo pater familias. Houve, portanto, uma reorgani-
zação das famílias, o que permitiu a realização de novos laços em lugar
dos antigos que se haviam rompido.
Nessa esteira, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)
nomeou uma comissão de sistematização para elaboração de um esta-
tuto que, em decorrência dos novos arranjos e composições familiares
que se materializaram sem que a lei tivesse tido tempo de prever e
proteger seus direitos, tivesse por objetivo a positivação de um Direito
de Família mais adequado às necessidades e à realidade da sociedade
contemporânea, a partir de novos valores jurídicos tais como o afeto, o
cuidado, a solidariedade e a pluralidade.
O novo estatuto extrai do Código Civil a parte referente à família e a
disciplina em concordância com a Constituição Federal, já que o novo
Código Civil segue ainda o paradigma da família patriarcal. Uma das
novidades trazidas por esse projeto, que ora tramita perante a Câma-
ra dos Deputados, são as regras acerca do reconhecimento da união
homoafetiva3 e da família parental4, aquela constituída entre pessoas
com relação de parentesco entre si, que tenham comunhão de vida
instituída com a finalidade de convivência familiar.

3
“Art. 68. É reconhecida como entidade familiar a união entre duas pessoas do
mesmo sexo, que mantenham convivência pública, contínua, duradoura, com obje-
tivo de constituição de família, aplicando-se, no que couber, as regras concernentes
à união estável.
Parágrafo único. Dentre os direitos assegurados, incluem-se:
I – g uarda e convivência com os filhos;
II – a adoção de filhos;
III – d
ireito previdenciário;
IV – d
ireito à herança.”
BRASIL. PL 2.285, de 2007. Disponível em :<http://www.camara.gov.br/proposições.
258 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

No dizer do deputado Sérgio Barradas Carneiro, que apresentou o


projeto perante a Câmara dos Deputados, “não é mais possível tratar
questões visceralmente pessoais da vida familiar, perpassadas por sen-
timentos, valendo-se das mesmas normas que regulam as questões pa-
trimoniais, como propriedades, contratos e demais obrigações”.5 Além
do mais, consoante entendimento jurisprudencial, a união pelo amor é
que caracteriza a entidade familiar e não a diversidade de gêneros6.
Ainda referente a esse assunto, necessário observar que a legitimação
de comportamentos diferentes, todavia relativamente comuns na so-
ciedade, demonstra não uma crise na família, mas a comprovação de
que um modelo único não é mais possível.

4
“Art. 69. As famílias parentais se constituem entre pessoas com relação de paren-
tesco entre si e decorrem da comunhão de vida instituída com a finalidade de convi-
vência familiar.
§1º Família monoparental é a entidade formada por um ascendente e seus descen-
dentes, qualquer que seja a natureza da filiação ou do parentesco.
§2º Família pluriparental é a constituída pela convivência entre irmãos, bem como as
comunhões afetivas estáveis existentes entre paren-tes colaterais.”
Idem.
5
Justificativa do PL – ibidem.
6
“APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO.
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE.
É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre dois homens
de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A homossexualidade é
um fato social que se perpetuou através dos séculos, não podendo o Judiciário se
olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem
feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não
apenas a diversidade de gêneros. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriori-
zação do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre
pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como
viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
AUSÊNCIA DE REGRAMENTO ESPECÍFICO. UTILIZAÇÃO DE ANA-
LOGIA E DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO.
A ausência de lei específica sobre o tema não implica ausência de direito, pois exis-
tem mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os pre-
ceitos constitucionais (art. 4º da LICC).
Negado provimento ao apelo, vencido o des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves.”
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ap. Cível nº 70009550070/2004,
7ª Câm. Cível, Rel. Des. Maria Berenice Dias, julg. em 17/11/2004. Disponível
em:<http://www.tj.rs.gov.br (grifo nosso).
A Constituição de 1988 e o direito de família 259

3. 1. União estável

A redução do prazo exigido para a concessão do divórcio está longe,


contudo, de ser a grande conquista do novo texto. A Constituição
reconheceu a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, determinando que a lei facilitasse sua conversão em casa-
mento. Este sim, foi um dispositivo que gerou profundas mudanças
na doutrina, na jurisprudência e no próprio ordenamento jurídico, já
que a Constituição anterior7 declarava que a família era constituída
apenas pelo casamento.
A princípio alguns operadores do Direito entendiam que a aplicação
desse dispositivo era tão somente para que se editasse lei facilitando
a conversão da união estável em casamento. O legislador ordinário,
contudo, para espancar qualquer dúvida sobre os novos tempos e afir-
mar sua efetiva equiparação ao casamento, promulgou a Lei nº 8.971,
de 29 de dezembro de 1994, que regula o direito dos companheiros a
alimentos e à sucessão e, em seguida, a Lei nº 9.278, de 10 de maio de
1996, que especificando os casos de convivência duradoura, pública e
contínua, estabeleceu direitos e deveres aos companheiros e determi-
nou a meação do patrimônio adquirido na constância da relação.
A jurisprudência, até então, guiava-se pela Súmula 380 do STF8 e o
direito à meação do patrimônio adquirido não tinha por fundamento
o direito de família, mas o direito das obrigações: “os efeitos patrimo-
niais do concubinato resultam da demonstração ou de uma sociedade
de fato, ou da prestação de serviços ao concubinato”.9
Doutrina e jurisprudência que já entendiam, desde a promulgação
da Constituição, não ser mais possível o uso do termo “concubinato”,
termo impregnado de preconceitos e antigas resistências, utilizavam
ainda a velha súmula para a partilha do patrimônio amealhado, desde
que houvesse prova da participação de ambos em sua aquisição.
Hoje, o STJ já não leva em conta a efetiva participação na aquisição
do patrimônio, mas tão somente a vida em comum: “Na verdade,
para a evolução jurisprudencial e legal, já agora com o art. 1.725 do

7
“A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos.”
BRASIL. Constituição Federal, 1967/1969, art. 175, caput.
8
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula380. Comprovada a existência da
sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a par-
tilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum. Disponível em :<http://www.
stf.gov.br.
9
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 93.644-RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Mo-
reira Alves, DJ 18/9/1981.
260 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Código Civil de 2002, o que vale é a vida em comum, não sendo


significativo avaliar a contribuição financeira, mas, sim, a participa-
ção direta e indireta representada pela solidariedade que deve unir
o casal, medida pela comunhão da vida, na presença em todos os
momentos da convivência, base da família, fonte do êxito pessoal e
profissional de seus membros”10.
Essa tendência é tão forte, que o acórdão acima refere-se a um caso
de dissolução de união estável com partilha de patrimônio em que
um dos companheiros é sexagenário. O recurso especial alegava que
deveria ser aplicado o regime de separação obrigatória de bens, pois no
início da união estável o companheiro já contava com mais de sessenta
anos de idade e o Código Civil (tanto o antigo – art. 258, parágrafo
único, inciso II; quanto o atual – art. 1.641) determina que para o ca-
samento, nessa idade, é obrigatório o regime da separação de bens.
A ministra Nancy Andrighi, com o brilhantismo que lhe é peculiar,
porém, ainda assim, vencida, deu provimento ao recurso para reformar
o acórdão, sustentando que “quando o casamento ou a união estável en-
volvem sexagenário, é imprescindível a prova, por quem pleiteia a parti-
cipação no patrimônio adquirido durante a relação, que concorreu para
a sua aquisição ou aumento, com seus recursos ou com seu trabalho”.
Segundo a ilustre julgadora, ao não se entender dessa forma, estar-se-ia
concedendo mais benefícios à união estável do que ao casamento civil,
além do fato de que a realização de tal prova “tolhe o enriquecimento
sem causa do cônjuge ou convivente (ou dos seus herdeiros) que para
tanto não contribuiu”. Todavia, no entendimento dos demais membros
da Turma, para as uniões desfeitas após a vigência da Lei nº 9.278, de
1996, a partilha independe da prova de esforço comum.

3.2. Família parental

A Constituição, além de reconhecer a união estável entre homem e


mulher como entidade familiar, foi mais além e, no § 4º do art. 226,
reconheceu também como entidade familiar a comunidade formada
por qualquer dos pais e seus descendentes.
A idéia que norteia a família parental é a comunhão de vida instituída
com a finalidade de convivência familiar. O Estatuto das Famílias11,
em seu art. 69, subdivide-a em dois tipos: a família monoparental,

BRASIL.Superior Tribunal de Justiça. RESP 736.627-PR, 3ª Turma, Rel. Min.


10

Carlos Alberto Direito, DJ 1/8/2006.


11
V. nota 3.
A Constituição de 1988 e o direito de família 261

formada por ascendente e seus descendentes, qualquer que seja a na-


tureza da filiação ou do parentesco, e a família pluriparental, constitu-
ída pela convivência entre irmãos, bem como as comunhões afetivas
estáveis existentes entre parentes colaterais.
A positivação desses conceitos é de grande importância prática pois
leva a pessoas que de fato convivem como família, especialmente a
família pluriparental, direitos que a elas muitas vezes não são reco-
nhecidos, como por exemplo, o bem de família (tanto o instituído
pelo Código Civil – arts. 1.711 a 1.722 – quanto o disposto na Lei nº
8.009, de 1990) e questões relativas à seguridade social.

3.3. União homoafetiva

A exigência de ser homem e mulher a formarem uma união está-


vel pode originar-se de duas interpretações diversas: ou ela existe em
razão da composição entre as forças presentes no parlamento, com
o objetivo de afastar o reconhecimento das uniões homossexuais, ou
existe porque o constituinte teria deixado o tema aberto à evolução
dos costumes e do Direito12. De toda sorte, de acordo com os doutos,
trata-se de norma inclusiva, de inspiração não discriminatória, que
não deve ser interpretada como norma excludente.
A doutrina entende que a concepção jurídica da família não é mais a
mesma, seja do ponto de vista de seus objetivos, que não se constitui
apenas com vistas à procriação, seja do ponto de vista da proteção que
lhe é atribuída.13

12
“62. É certo, por outro lado, que a referência a homem e mulher não traduz uma
vedação da extensão do mesmo regime às relações homoafetivas. Nem o teor de
preceito nem o sistema constitucional como um todo contêm indicação nessa dire-
ção. Extrair desse preceito tal conseqüência seria desvirtuar a sua natureza: a de
uma norma de inclusão. De fato, ela foi introduzida na Constituição para superar a
discriminação que, historicamente, incidira sobre as relações entre homem e mulher
que não decorressem do casamento. Não se deve interpretar uma regra constitu-
cional contrariando os princípios constitucionais e os fins que a justificaram.”
(BARROSO, Luís Roberto - grifo nosso)
13
“Para tanto, dá-se como certo o fato de que a concepção sociojurídica de família
mudou. E mudou seja do ponto de vista de seus objetivos, não mais exclusivamente
de procriação, como outrora, seja do ponto de vista da proteção que lhe é atribuída.
Atualmente, como se procurou demonstrar, a tutela jurídica não é mais concedida à
instituição em si mesma, como portadora de um interesse superior ou supra-indivi-
dual, mas à família como um grupo social, como o ambiente no qual seus membros
possam, individualmente, melhor se desenvolver (CF, art. 226, § 8o)” (MORAES,
Maria Celina Bodin de, 2000, p. 109).
262 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A despeito daqueles que não aceitam a união estável entre pessoas


do mesmo sexo como entidade familiar, seja por razões morais ou re-
ligiosas, seja por ver nesse caso impossibilidade jurídica, já que não
é possível o casamento entre pessoas do mesmo sexo, não se pode
afirmar, apesar disso, que o reconhecimento de uniões homossexuais
pelo legislador ordinário seria inconstitucional, pois a Constituição, ao
elevar a dignidade da pessoa humana como fundamento da Repúbli-
ca14, ao estatuir como objetivo fundamental da República a promoção
do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação,15 e ainda ao declarar que
todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza16,
deu amparo às decisões e interpretações de que as entidades familiares
descritas no art. 226 são apenas exemplificativas e não, como susten-
tam alguns, exaustivas.
Marco importante para o trato da questão é o acórdão que o Tribunal
Superior Eleitoral17, proferiu, à unanimidade, no ano de 2004, que diz
que apesar de o nosso ordenamento jurídico não ter ainda admitido
a comunhão de vidas entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar, é “um dado da vida real a existência de relações homossexuais
em que, assim como na união estável, no casamento ou no concubina-
to, presume-se a existência de fortes laços afetivos”. Sendo o fim úl-
timo do instituto da inelegibilidade a não perpetuação de um mesmo
grupo no poder, é de se entender que os sujeitos de uma relação afetiva
estável homossexual submetam-se à regra da inelegibilidade prevista
na Constituição.

14
BRASIL. Constituição Federal, 1988, art. 1º, III.
15
BRASIL. Constituição Federal, 1988, art. 3º, IV.
16
BRASIL. Constituição Federal, 1988, art. 5º, caput.
17
“REGISTRO DE CANDIDATO. CANDIDATA AO CARGO DE PRE-
FEITO. RELAÇÃO ESTÁVEL HOMOSSEXUAL COM A PREFEITA RE-
ELEITA DO MUNICÍPIO. INELEGIBILIDADE. ART. 14, § 7º, DA CONS-
TITUIÇÃO FEDERAL.
Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os
de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegi-
bilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal.
Recurso a que se dá provimento.”
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral, Recurso Especial Eleitoral nº 24.564-PA,
Rel. Min. Gilmar Mendes. Disponível em :<http://www.tse.gov.br.
A Constituição de 1988 e o direito de família 263

4. Igualdade entre os cônjuges

Outra conquista importante que veio com a Carta de 1988 foi o exer-
cício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal em con-
dições de igualdade pelo homem e pela mulher. Para se ter o exato
alcance desse dispositivo, basta relembrar que o art. 233 do CC/16, em
redação que lhe havia sido dada pelo Estatuto da Mulher Casada,18
dizia ser o marido chefe da sociedade conjugal, função exercida com
a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos.
A ele competia a representação legal da família, a administração dos
bens comuns e dos particulares da mulher (que ao marido incumbisse
administrar em virtude do regime matrimonial adotado ou do pacto
antenupcial), o direito de fixar o domicílio da família e, finalmente, a
obrigação de prover a manutenção da família. Embora a sociedade já
tivesse passado por profundas mudanças e a mulher já tivesse conquis-
tado seu próprio espaço, o fato é que se as coisas não saíssem como
desejasse o varão, ele sempre poderia recorrer ao Judiciário para fazer
valer seus direitos.
Todas essas disposições além de outras tantas do vetusto Código fica-
ram em desacordo com a nova Constituição. Sem dúvida, a igualdade
conferida pelo novo texto permitiu à jurisprudência o acompanha-
mento dos novos tempos, sempre com o amparo da doutrina.

5. Famílias simultâneas

E nesses novos tempos, apesar de a lei não reconhecer a união está-


vel em concomitância com o casamento,19 jurisprudência e doutrina
aceitam a divisão de patrimônio com a concubina, bem como a inde-
nização por serviços domésticos prestados, mesmo na constância do

18
BRASIL. Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962.
19
“A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente,
divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole,
poderá valer-se do disposto na Lei n. 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto não
constituir nova união e desde que prove a necessidade”.
Parágrafo único. Igual direito e nas mesmas condições é reconhecido ao companheiro
de mulher solteira, separada judicialmente, divorciada ou viúva”. (grifo nosso)
BRASIL. Lei nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994, art. 1º:
“A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521;
não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar sepa-
rada de fato ou judicialmente.” (grifo nosso)
BRASIL. Código Civil/ 2002, Art. 1.723, §1o.
264 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

casamento. No STJ, o ministro Aldir Passarinho Júnior20, no que é


acompanhado por seus pares21 e 22, entende que “durante o período da
vida em comum, faz jus a concubina a uma indenização por serviços
domésticos prestados ao companheiro, o que não importa, evidente-

20
“CIVIL E PROCESSUAL. CONCUBINATO. RELAÇÃO EXTRACON-
JUGAL MANTIDA POR LONGOS ANOS. VIDA EM COMUM CONFI-
GURADA AINDA QUE NÃO EXCLUSIVAMENTE. INDENIZAÇÃO.
SERVIÇOS DOMÉSTICOS. PERÍODO. OCUPAÇÃO DE IMÓVEL PELA
CONCUBINA APÓS O ÓBITO DA ESPOSA. DESCABIMENTO. PEDI-
DO RESTRITO. MATÉRIA DE FATO. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE.
SÚMULA N. 7-STJ.
I. Pacífica é a orientação das Turmas da 2ª Seção do STJ no sentido de indenizar os
serviços domésticos prestados pela concubina ao companheiro durante o perío-
do da relação, direito que não é esvaziado pela circunstância de ser o concubino
casado, se possível, como no caso, identificar a existência de dupla vida em comum,
com a esposa e a companheira, por período superior a trinta anos.
II. Pensão devida durante o período do concubinato, até o óbito do concubino.
III. Inviabilidade de ocupação pela concubina, após a morte da esposa, do imóvel
pertencente ao casal, seja por não expressamente postulada, seja por importar em
indevida ampliação do direito ao pensionamento, criando espécie de usufruto sobre
patrimônio dos herdeiros, ainda que não necessários, seja porque já contemplada
a companheira com imóveis durante a relação, na conclusão do Tribunal estadual,
soberano na interpretação da matéria fática.
IV. “A pretenção de simples reexame de prova não enseja recurso especial” – Súmula
n. 7-STJ.
V. Recurso Especial conhecido em parte e, nessa parte, parcialmente provido.”
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, RESP 303.604 – SP, 4ª Turma, Rel. Min.
Aldir Passarinho Júnior, DJ 23/6/2003 (grifo nosso)
21
“DIREITO CIVIL. SOCIEDADE DE FATO. COMPANHEIRO CASA-
DO. SEPARAÇÃO DE FATO. DIREITO À PENSÃO ALIMENTÍCIA. RE-
CONHECIMENTO. ART. 1º DA LEI 8.971/94.
- Reconhecida a sociedade de fato, a circunstância de o companheiro ser casado ao
tempo da união não constitui óbice à concessão da pensão alimentícia. Marido
que, ademais, encontrava-se separado, de fato, da esposa.
Agravo regimental improvido”
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, AgRg no Agravo de Instrumento n º
618.449-SP, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ 12/12/2005 (grifo nosso).
22
“AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. SOCIEDADE
DE FATO. CONCUBINATO IMPURO. REEXAME DO CONJUNTO FÁTI-
CO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. IMPOSSIBILIADE. SÚMULA 7/STJ.
1. A revisão do acórdão recorrido que, ao dirimir controvérsia, reconhece a caracte-
rização de longa união estável e o conseqüente direito à partilha dos bens angariados
com o esforço comum, demanda imprescindível revolvimento do acervo fático-proba-
tório constante dos autos, providência vedada em sede especial, ut súmula 07/STJ.
2. Não destoa o v. acórdão recorrido da orientação emanada desta Corte acerca da
possibilidade de dissolução de sociedade de fato, ainda que um dos concubinos seja
casado, visto que o denominado concubinato impuro não constitui circunstância
impeditiva da aplicabilidade da súmula 380 do Supremo Tribunal Federal.
3. Agravo regimental desprovido.”
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, AgRg no Agravo de instrumento nº
746.042-SP, 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ. 17/9/2007.
A Constituição de 1988 e o direito de família 265

mente, em dizer que se está a remunerar como se “serviçal” ou “empre-


gada” “(...)mas, sim, na sua contribuição para o funcionamento do lar,
permitindo ao outro o exercício de atividade lucrativa, em benefício
de ambos.”
Maria Berenice Dias (2005, p.170), justificando a retomada da ve-
lha Súmula 380 do STF para indenizar concubinato paralelo ao ca-
samento ou à união estável, sustenta que “Negar-lhe a existência, sob
o fundamento de ausência do objetivo de constituir família em face
do impedimento, é uma atitude meramente punitiva a quem man-
tém relacionamentos afastados do referendo estatal. Rejeitar qualquer
efeito a esses vínculos e condená-los à invisibilidade é gerar irrespon-
sabilidade, é ensejar o enriquecimento ilícito. O resultado é mais do
que desastroso, é perverso. Nega-se a divisão de patrimônio, nega-se a
obrigação alimentar, nega-se direito sucessório. Com isso, nada mais
se estará fazendo do que incentivando o surgimento desse tipo de
relacionamento. Estar à margem do direito traz benefícios, pois não
gera obrigação nenhuma.”
Resta refletir sobre se o reconhecimento de direitos advindos de uni-
ões paralelas às tuteladas pela lei não seria o primeiro passo para a
aceitação da bigamia. Data venia dos que entendem ao contrário, uma
relação amorosa finda não necessariamente deve terminar em indeni-
zação. Um relacionamento concomitante a outro que juridicamente
tenha efeitos patrimoniais, mesmo gerando filhos (e estes são cons-
titucionalmente amparados) só deveria terminar em divisão patrimo-
nial no caso de haver, de fato, comprovação de esforço comum. Afinal,
nesses casos, afeto e carinho foram trocados e, durante esse tempo,
houve contraprestação material e espiritual do que foi dado e do que
foi recebido. Se, por qualquer motivo o relacionamento cessa, é de se
lembrar que ele ocorreu entre pessoas maiores e capazes que correram
o risco do relacionamento quando optaram por sua perpetuação con-
comitantemente a outro.
Nunca é demais lembrar que a Súmula 38023 do STF foi aprovada
em uma época em que não havia divórcio no país. As pessoas separa-
vam-se de fato e passavam a manter com outra pessoa (à época cha-
mada de concubina) uma união estável. Tal situação não tem nenhu-
ma semelhança com a manutenção de relacionamentos simultâneos.
O excesso de “direitos garantidos” também é gerador de condutas
de pessoas inescrupulosas, que se colocam em determinada posição
apenas para, posteriormente, virem a recebê-los. Estimula, além dis-

23
V. nota nº 8.
266 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

so, a violação de um dos deveres fundamentais do casamento e da


união estável, a saber, fidelidade e lealdade, respectivamente, pois
havendo a possibilidade de divórcio ou do desfazimento da união
estável, a manutenção de duas ou mais famílias simultâneas exige, de
ambas as partes, vontade específica e direcionada a esse fim.
Talvez se o paternalismo não fosse a tônica do Estado brasileiro, o
comportamento fosse outro. É preciso ter em mente que a mulher e a
sociedade de hoje não são iguais às da época da Súmula 380 do STF.
Finalmente, mesmo aceitando indenização e divisão patrimonial de-
corrente de relação extraconjugal que perdurou por anos, o STJ24 não
chancelou decisão do TJRS que reconheceu a existência de união es-
tável paralela ao casamento.

6. Danos morais em família

Quanto aos demais membros da família, a Constituição anterior25 li-


mitava-se a dizer que lei especial disporia sobre a assistência à mater-
nidade, à infância e à adolescência e sobre a educação de excepcionais.
A de 1988 destinou um capítulo especialmente para tratar da família,
da criança, do adolescente e do idoso, que até então, não era lembrado
como categoria especial merecedora de proteção.
A consagração dos direitos estatuídos no caput do art. 227 à criança
e ao adolescente, estipulando ser dever da família, da sociedade e do
Estado assegurar-lhes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à edu-
cação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,
à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-
los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,

24
“Direito Civil. Família. Recurso especial. Ação de reconhecimento de união está-
vel. Casamento e concubinato simultâneos. Improcedência do pedido.
- A união estável pressupõe a ausência de impedimentos para o casamento, ou, pelo
menos, que esteja o companheiro (a) separado de fato, enquanto que a figura do
concubinato repousa sobre pessoas impedidas de casar.
- Se os elementos probatórios atestam a simultaneidade das relações conjugal e de
concubinato, impõe-se a prevalência dos interesses da mulher casada, cujo matri-
mônio não foi dissolvido, aos alegados direitos subjetivos pretendidos pela concu-
bina, pois não há, sob o prisma do Direito de Família, prerrogativa desta à partilha
dos bens deixados pelo concubino.
- Não há, portanto, como ser conferido status de união estável a relação concubiná-
ria concomitante a casamento válido.
Recurso especial provido.”
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, RESP nº 931.155-RS, 3ª Turma, rel. min.
Nancy Andrighi, DJ 20/8/2007.
25
BRASIL. Constituição Federal, 1967/1969, art. 175, § 4º.
A Constituição de 1988 e o direito de família 267

violência, crueldade, opressão, e de conferir à filiação a centralidade


institucional da família26, abriu as portas para o Estatuto da Criança
e do Adolescente, consubstanciado através da Lei nº 8.069, de 13 de
julho de 1990.
Alvo de muitas críticas no tocante à não penalização de condutas de-
lituosas praticadas pelos próprios adolescentes, o ECA foi o primeiro
diploma legal a retirar do Código Civil matéria até então a ele afeita e
discipliná-la, como já dito anteriormente, de modo global, dispondo,
inclusive, sobre convivência familiar e substituta, guarda, tutela e ado-
ção de criança e adolescente.
Até então a lei tratava apenas dos direitos que o pai tinha sobre os
filhos. A partir da Constituição de 1988, além de possuir a mãe iguais
direitos, ambos os genitores passaram a ter também inúmeras obri-
gações para com a criança, essa sim, alvo de direitos vitais que lhe
asseguram o crescimento sadio física e mentalmente.
Por isso mesmo, quando os pais deixam de prestar assistência moral
ou material aos filhos, são passíveis de serem condenados a indeni-
zação por danos morais. Na doutrina27 há quem defenda que tanto
a Constituição quando a lei ordinária determinam ser dever dos pais
cuidar dos filhos. O não cumprimento desse dever pode vir a trazer
prejuízos a serem reparados através da indenização pecuniária. Na ju-
risprudência há vozes que sustentam estar “mais do que comprovado,
que a carência do convívio com um dos genitores traz seqüelas signi-
ficativas para o desenvolvimento normal de uma criança” 28. O autor
de uma ação desse tipo “não está buscando o afeto do pai, não lhe está
cobrando a falta de atenção. Está buscando reparação pelo abandono
em face da carência afetiva, o que lhe gera danos, conseqüências para
o seu pleno desenvolvimento”.

26
“ A filiação assumiu a centralidade institucional na família em lugar da conjuga-
lidade, agora instável” (MORAES, Revista Forense, p.185)
27
“Em virtude da imprescindibilidade (rectius, exigibilidade) de tutela por parte dos
pais e dependência e vulnerabilidade dos filhos, a solidariedade familiar alcança aqui
o seu grau de intensidade máxima. Em caso de abandono moral ou material, são lesa-
dos os direitos implícitos na condição jurídica de filho e de menor, cujo respeito, por
parte dos genitores, é pressuposto para o sadio e equilibrado crescimento da crian-
ça, além de condição para sua adequada inserção na sociedade. Ou seja, os prejuízos
causados são de grande monta.” (MORAES, idem, p. 198 – grifo nosso)
28
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Voto em separado da Des.
Maria Berenice Dias na Apelação Cível nº 70019263409, 7ª Câmara Cível do TJRS,
Rel. Des. Luís Felipe Brasil Santos, julg. em 8/8/2007. Disponível em:<http://www.
tj.rs.gov.br (grifo nosso).
268 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O STJ, todavia, examinando pleito de indenização por danos morais


decorrentes do abandono afetivo perpetrado pelo genitor, em acór-
dão da lavra do eminente ministro Fernando Gonçalves29, decidiu que
“como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a
manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria
alcançada com a indenização pleiteada”.
De toda sorte, o desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul, bem sintetizou a questão quando,
em exame de caso semelhante, advertiu para o fato de que a concessão
indiscriminada de tais postulações viesse a acarretar a “total patrimo-
nialização das relações afetivas”.30
Questão instigante é a possibilidade de indenização por danos morais
entre cônjuges. Para o Tribunal de Justiça de São Paulo, na sociedade
contemporânea o adultério não implica ofensa moral que ultrapasse
o sentimento de desilusão e ocasione o dever de indenizar. Para que
haja tal obrigação, o importante é saber se da traição “resultou para o
outro uma situação vexatória ou excepcionalmente grande o suficiente
para ultrapassar os limites do desgosto pessoal pela conduta do outro
cônjuge ou companheiro”.31

“RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO.


29

DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE.


1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo
ensejo à aplicabilidade da norma no art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono
efetivo, incapaz de reparação pecuniária.
2. Recurso especial conhecido e provido.”
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, RESP 757.411-MG, 4ª Turma, Rel. Min.
Fernando Gonçalves, DJ 27/3/2006. (grifo nosso)
30
“APELAÇÃO CÍVEL. DANOS MORAIS. FALTA DE RECONHECI-
MENTO ESPONTÂNEO DA PATERNIDADE. Embora, em tese, viável, em
condições muito específicas, a contemplação do dano extrapatrimonial no âmbito
das relações familiares, deve a jurisprudência agir com extrema parcimônia na
análise dos casos em que se dá semelhante postulação, sob pena de que a exces-
siva abertura que possa ser concedida venha a gerar enxurradas de pretensões
ressarcitórias, com a total patrimonialização das relações afetivas. Caso em
que se configura a hipótese que justifique a concessão do pleito reparatório. NE-
GARAM PROVIMENTO.”
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 70011681467,
7ª Câmara Cível, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, julg. em 10/8/2005. Disponí-
vel em:<http://www.tj.rs.gov.br.
31
“Dano moral. Adultério. Circunstância que, em si mesma, salvo excepcionalidade
inocorrente na hipótese, não acarreta dano moral indenizável. O relacionamento
extraconjugal é apenas a conseqüência de uma união cujos sentimentos iniciais não
perduraram no tempo, dando ensejo a que outros se sobrepusessem e levassem al-
gum dos cônjuges ou companheiros à relação afetiva com outras pessoas. Conside-
A Constituição de 1988 e o direito de família 269

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, por sua vez, acatou, em sede


de Juizado Especial Cível, pedido de indenização de danos morais em
caso de adultério no qual o marido surpreendeu a mulher nua, no leito
conjugal com outro homem.32
O STJ já decidiu ser devida indenização no caso em que se pediam da-
nos morais à ex-mulher por haver ela ocultado, por mais de vinte anos,
que os filhos havidos na constância do matrimônio não eram do marido,
mas do amante. Nesse caso, entendeu a Corte que a ocultação de tal fato
“atinge sem dúvida, a dignidade da pessoa, toca e fere a auto-estima e
gera sentimentos de menosprezo e traição, violando, em última análise,
a honra subjetiva: que é o apreço que a pessoa tem sobre si mesma, con-
duzindo à depressão e à tristeza vivenciadas pelo recorrido.”33

rações e jurisprudência deste TJSP. Improcedência da ação que se impõe. Recurso


dos réus provido e prejudicado o da autora.”
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 361.324.4/7, 4ª Câmara
de Direito Privado, Rel.desig. Maia da Cunha, ac. 0171936.
32
“AÇÃO VISANDO INDENIZAÇÃO DE DANOS MORAIS. COMPETÊN-
CIA. INDENIZAÇÃO. JUÍZO CÍVEL. DANOS MORAIS. ADULTÉRIO.
POSSIBILIDADE.
1. O ATO ILÍCITO ALEGADO, MUITO EMBORA DECORRENTE DE
RELAÇÃO FAMILIAR, EMBASA PEDIDO INDENIZATÓRIO, MATÉ-
RIA AFETA À ESFERA CÍVEL, CUJA COMPETÊNCIA PARA JULGA-
MENTO NÃO SE INCLUI NAQUELAS ATRIBUÍDAS ÀS VARAS DE
FAMÍLIA. ENTENDIMENTO APOIADO NA LEI DE ORGANIZAÇÃO
JUDICIÁRIA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS.
2. A INOBSERVÂNCIA DOS DEVERES CONJUGAIS, DEPENDENDO
DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO, PODE JUSTIFICAR
A CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DA-
NOS MORAIS.
3. É PRESUMIDA A LESÃO A BEM EXTRAPATRIMONIAL DAQUELE
QUE SURPREENDE SUA CÔNJUGE NUA, NO LEITO CONJUGAL, NA
COMPANHIA DE OUTRO HOMEM.
4. NOSSOS TRIBUNAIS TÊM ENTENDIDO QUE O DANO MORAL
DEVE SER FIXADO EM MONTANTE SUFICIENTE À REPARAÇÃO
DO PREJUÍZO, LEVANDO-SE EM CONTA A MODERAÇÃO E A PRU-
DÊNCIA DO JUIZ, SEGUNDO O CRITÉRIO DA RAZOABILIDADE
PARA EVITAR O ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA E A RUÍNA DO
RÉU, EM OBSERVÂNCIA, AINDA, ÀS SITUAÇÕES DAS PARTES.
CONSTATADO QUE A ATIVIDADE LABORATIVA DA RÉ NÃO SE
MOSTRA COMPATÍVEL COM A INDENIZAÇÃO FIXADA NA SEN-
TENÇA, DEVE O VALOR SER REDUZIDO.
5. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. SENTEN-
ÇA REFORMADA.”
BRASIL. Tribunal de Justiça de Brasília, 1ª T. Recursal dos Juizados Especiais
Cíveis e Criminais do DF, proc. nº 20060510086638ACJ DF, Rel. Juiz Sandoval
Oliveira, DJ 3/6/2008. (grifo nosso)
33
“Direito Civil e processual civil. Recursos especiais interpostos por ambas as par-
tes. Reparação por danos materiais e morais. Descumprimento dos deveres conju-
270 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

7. Filiação

Outra das alterações trazidas pela CF/88, no âmbito do Direito de


Família, está intimamente relacionada ao reconhecimento da união
estável: é a declaração de que os filhos, havidos ou não da relação do
casamento, mesmo por adoção, têm os mesmos direitos e qualificações,
proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Até a promulgação da nova Carta Constitucional, havia a distinção
entre filhos legítimos e ilegítimos, podendo os últimos ser naturais
ou adulterinos e, em qualquer caso, passíveis de legitimação através
do casamento posterior dos pais.34 Os filhos incestuosos, entretanto,
apenas poderiam ser legitimados através de casamento putativo. O
preconceito era tão grande que havia ainda o adjetivo espúrio para
designar a filiação adulterina ou incestuosa.
Com o novo Texto todas essas qualificações, felizmente, deixaram de
existir. Todos passaram a ter direitos iguais, inclusive os hereditários.
Ao equiparar os direitos também aos filhos adotivos, a Constituição
pôs termo a um tipo de adoção até então existente na época, que pos-
suía efeitos bastante perversos: a adoção simples, que constituía relação

gais de lealdade e sinceridade recíprocos. Omissão sobre a verdadeira paternidade


biológica. Solidariedade. Valor indenizatório.
• Exige-se, para a configuração da responsabilidade civil extracontratual, a inob-
servância de um dever jurídico que, na hipótese, consubstancia-se na violação
dos deveres conjugais de lealdade e sinceridade recíprocos, implícitos no art.
231 do CC/16 (correspondência: art. 1.566 do CC/02).
• Transgride o dever de sinceridade o cônjuge que, deliberadamente, omite a verda-
deira paternidade biológica dos filhos gerados na constância do casamento, man-
tendo o consorte na ignorância.
• O desconhecimento do fato de não ser o pai biológico dos filhos gerados duran-
te o casamento atinge a honra subjetiva do cônjuge, justificando a reparação
pelos danos morais suportados.
• A procedência do pedido de indenização por danos materiais exige a demons-
tração efetiva de prejuízos suportados, o que não ficou evidenciado no acórdão
recorrido, sendo certo que os fatos e provas apresentados no processo escapam da
apreciação nesta via especial.
• Para a materialização da solidariedade prevista no art. 1.518 do CC/16 (corres-
pondência: art. 942 do CC/02), exige-se que a conduta do “cúmplice” seja ilícita,
o que não se caracteriza no processo examinado.
• A modificação do valor compulsório a título de danos morais mostra-se necessária
tão-somente quando o valor revela-se irrisório ou exagerado, o que não ocorre na
hipótese examinada.
• Recursos especiais não conhecidos.”
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, RESP 742.137-RJ, 3ª Turma Cível, Rel.
Min. Nancy Andrighi, DJ 29/10/2007. (grifo nosso).
“A legitimação confere de pleno direito ao filho ilegítimo o estado de filho legíti-
34

mo.” (GOMES, 1981, p. 348).


A Constituição de 1988 e o direito de família 271

de parentesco apenas entre o pai e o filho adotivo, gerava obrigação


alimentar de ambos os lados porém, na ordem sucessória, se o filho
adotivo concorresse com filho legítimo, legitimado ou reconhecido do
adotante, nada receberia. Herdaria na qualidade de herdeiro necessá-
rio apenas no caso de não haver outro tipo de filiação.35
Concomitante a esse tipo de adoção, havia também a legitimação ado-
tiva, também chamada pela doutrina de adoção plena36, por conferir
todos os efeitos legais da filiação ao adotado. Foi esse o tipo de adoção
que remanesceu, porém com denominação simplificada.
Com todos os filhos gozando do mesmo status jurídico e com a
igualdade jurídica entre homem e mulher estabelecida pela Cons-
tituição nada mais natural que se acirrassem as disputas pela guarda
dos filhos frutos das uniões desfeitas. Outro fator que agravou a si-
tuação foi a própria evolução dos costumes, que fez com que os pais
deixassem de ser apenas provedores materiais e passassem a cuidar
também dos filhos.
Ainda hoje há a crença de que a mãe, seguindo-se o princípio do melhor
interesse da criança, seja a melhor opção para exercer a guarda.37 Muitos
pais têm lutado para mudar essa visão e assim foram-se buscando for-
mas que pudessem substituir a guarda a um só dos ex-cônjuges.

35
“Art. 377. Quando o adotante tiver filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos,
a relação de adoção não envolve a de sucessão hereditária.”
BRASIL.Código Civil, 1916.
36
“É imprópria a denominação do instituto, porque a legitimação consiste em tornar
legítimo o filho ilegítimo. Não se destina a essa finalidade a adoção especial assim
designada. Seria mais apropriado nomeá-la adoção plena, para distingui-la do seu
modelo clássico, que passaria a se chamar adoção restrita” (GOMES, 1981, p. 391).
37
“Mas não é essa, em regra, a postura do Judiciário que, invariavelmente, outorga
o exercício da guarda à mãe, de forma exclusiva e unilateral (posição privilegiada),
rompendo o elemento convivência, essencial para a formação pessoal dos filhos me-
nores. Por isso é vivamente criticado.
Na realidade presente começa-se a questionar o denominado instinto maternal,
quando a mulher, notadamente a partir da segunda metade do século XX, reconhe-
ce para si outras inquietações e possibilidades, ao mesmo tempo em que o homem
descobre seu instinto paternal, sem perder sua masculinidade, tornando-se mais
responsável e mais envolvido no exercício do cotidiano da parentalidade. Atualmen-
te, procura-se estabelecer a co-responsabilidade parental, uma parceria que reapro-
xima, na ruptura, a situação precedente, para proteger o menor dos sentimentos de
desamparo e incerteza, que lhe submete a desunião. Deve ele saber que não é a causa
disso, mas sobre ele caem os efeitos.
Essas mudanças comportamentais provocaram o surgimento de novas fórmulas de
guarda capazes de assegurar a pais desunidos o exercício da parentalidade em igual-
dade de condições.” (GRISARD FILHO, 2006, p. 119 – grifo nosso).
272 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Surgiram outras alternativas à guarda exclusiva, como por exemplo a


guarda alternada, caracterizada pela possibilidade de cada um dos pais
detê-la, alternadamente, por períodos a serem fixados, assim como a
guarda compartilhada, já aplicada por alguns de nossos tribunais e agora
consubstanciada através da Lei nº 11.698, de 13 de junho de 2008.
Mais do que resolver os litígios decorrentes da guarda dos filhos, a
promulgação da lei em questão tem como mérito a reafirmação de
ter também o pai o direito de dividir o cotidiano com seu filho, pois
em caso de inexistência de bom senso entre os ex-cônjuges, de nada
adianta a lei em vigor, dada a impossibilidade fática de sua execução38.
Aliás, a citada lei diz, no § 2º da nova redação que dá ao art. 1.584 do
CC/02, que “quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à
guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda comparti-
lhada.” Ora, se não há acordo, difícil saber como podem levar adiante a
situação de compartilhar o dia-a-dia de uma criança. Contudo, partin-
do-se do princípio de que a lei não contém dispositivos inúteis e, em
se tratando de menores, o que deve prevalecer é o melhor interesse da
criança39 (art. 1.584 do CC/02), ao juiz caberá dirimir tais conflitos.

38
“PROCESSO CIVIL – FAMÍLIA – GUARDA COMPARTILHADA – IN-
TERESSE DO MENOR – SITUAÇÃO FINANCEIRA DO PAI – RECUR-
SO IMPROVIDO.
1) NÃO HÁ QUE SE MANTER A GUARDA COMPARTILHADA QUAN-
DO OS PAIS NÃO TÊM UMA CONVIVÊNCIA HARMÔNICA, CHE-
GANDO, INCLUSIVE, A AGRESSÕES FÍSICAS. TAL INSTITUTO EXIS-
TE EM BENEFÍCIO DO MENOR, RESGUARDANDO-O DOS TRAUMAS
ADVINDOS DE UMA SEPARAÇÃO BRUSCA DO CASAL. CONTUDO,
VERIFICANDO QUE OS GENITORES NÃO CONSEGUEM MANTER
UM NÍVEL DE CIVILIDADE SUFICIENTE, NÃO É POSSÍVEL QUE A
CRIANÇA SEJA PREJUDICADA EMOCIONALMENTE PELA RELAÇÃO
TORMENTOSA DE SEUS GENITORES.
2) O INSTITUTO DA GUARDA DEVE ATENTAR PARA O INTERESSE
DO MENOR, NÃO SENDO POSSÍVEL CONFERIR ESTE DIREITO A
UM DOS PAIS, QUANDO ESTA PRETENSÃO SE BASEIA EM FINS ME-
RAMENTE FINANCEIROS.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal, APC 20030310172570 DF, 3ª
Turma Cível, Rel. Des. José de Aquino Perpétuo, DJ 4/7/2006. (grifo nosso)
39
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. GUARDA COMPARTILHADA. ESTI-
PULAÇÃO LIMINAR. DESCABIMENTO. ALIMENTOS FIXADOS SEM
PEDIDO. POSSIBILIDADE.
Descabe estipular liminarmente a guarda compartilhada, sem dados mais con-
cretos acerca da condição e da situação dos pais, das relações entre eles, e por conse-
qüência, sem saber se esta é a solução que melhor atende aos interesses da criança.
Viável a fixação de pensionamento em prol de menor de idade mesmo sem pedido,
em atenção a alta carga de provisionalidade que guarda a obrigação alimentícia.
NEGADO SEGUIMENTO.”
A Constituição de 1988 e o direito de família 273

Finalmente, os dispositivos constitucionais acerca da paternidade tam-


bém deram seus frutos em relação à Lei nº 8.560, de 29 dezembro de
1992, que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora
do casamento. É um procedimento diverso do anterior, com o Estado
tomando a si a iniciativa da investigação, já que à mãe cabe, quando da
realização do registro de nascimento, declarar o nome do suposto pai,
comportamento antes impensável.40

8. Conclusão

Assim como nenhuma mudança ocorre de modo abrupto, também a


lei não tem o condão de modificar costumes. Ela pode ser promulgada
para modificar um comportamento considerado nocivo à sociedade,
mas essa modificação será incorporada de forma lenta e gradual, até
sua completa absorção.
Por outro lado, a lei também pode ser o fruto de aspiração popular,
instrumento vindo para dar suporte a um comportamento já há muito
praticado por essa mesma sociedade.
Assim ocorreu com as disposições constitucionais referentes à famí-
lia: ampararam as profundas mudanças vividas pela sociedade em seu
círculo mais íntimo, além de possibilitar nova leitura do ordenamento

BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Oitava Câmara Cível, Agravo
de Instrumento nº 70024556425, Rel. Des. Rui Portanova, julg. em 2/6/2008. Dis-
ponível em:<http://www.tj.rs.gov.br. (grifo nosso)
40
“Art. 2º. Em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabe-
lecida, o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome e prenome,
profissão, identidade e residência do suposto pai, a fim de ser averiguada oficiosa-
mente a procedência da alegação.
§ 1º O juiz, sempre que possível, ouvirá a mãe sobre a paternidade alegada e manda-
rá, em qualquer caso, notificar o suposto pai, independente de seu estado civil, para
que se manifeste sobre a paternidade que lhe é atribuída.
§ 2º O juiz, quando entender necessário, determinará que a diligência seja realizada
em segredo de justiça.
§ 3º No caso do suposto pai confirmar expressamente a paternidade, será lavrado termo
de reconhecimento e remetida certidão ao oficial do registro, para a devida averbação.
§ 4º Se o suposto pai não atender no prazo de trinta dias a notificação judicial, ou ne-
gar a alegada paternidade, o juiz remeterá os autos ao representante do Ministério
Público para que intente, havendo elementos suficientes, a ação de investigação de
paternidade.
§ 5º A iniciativa conferida ao Ministério Público não impede a quem tenha legíti-
mo interesse de intentar investigação, visando a obter o pretendido reconhecimento
de paternidade.”
BRASIL. Lei nº 8.560, de 29 de dezembro, de 1992. (grifo nosso).
274 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

jurídico vigente e a conseqüente resolução dos conflitos impostos pela


contínua evolução dos costumes.
Referências
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homoafetivas no Brasil. Rio de Janeiro, nov. 2006. Disponível em: <http://www.
lrbarroso.com.br>.
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à constituição brasileira de 1988. Rio de
Janeiro : Forense Univ., 1993.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Porto Alegre : Liv. do Ad-
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FERREIRA, Pinto. Comentários à constituição brasileira. São Paulo : Saraiva,
1995. v. 7.
GOMES, Orlando. Direito de família. São Paulo : Forense, 1981.
GRISARD FILHO, Waldyr. Guarda compartilhada: um novo modelo de respon-
sabilidade parental. São Paulo : RT, 2006.
MORAES, M. C. B. de. Danos morais em família? Conjugalidade, parentalida-
de e responsabilidade civil. Revista Forense, Rio de Janeiro, vol. 386, p. 183-201,
jul./ago. 2006.
________. A união entre pessoas do mesmo sexo: uma análise sob a perspectiva civil-
constitucional. RTCD: Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 1, n.
1, 2000, p. 89-112, jan./mar. 2000.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil, Rio de Janeiro : Renovar, 2004.
Direito do consumidor
275

O consumidor na experiência
da “Constituição Cidadã”
Milso Nunes Veloso de Andrade

“Todos os nossos problemas procedem da injustiça. O privilégio


foi o estigma deixado pelas circunstâncias do povoamento e da
colonização, e de sua perversidade não nos livraremos sem a mo-
bilização da consciência nacional. (...) Se o governo deve intervir
no processo econômico, que a sua ação busque a paz social. Ali,
de onde se ausenta a consciência ética, deve impor-se o poder
arbitral do Estado.”
(Ulisses Guimarães. Os profetas do amanhã. Discurso na instalação
da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988.)

Introdução

Um dos aspectos mais marcantes da idéia de “Constituição Cidadã”,


que intitula a Lei Maior brasileira, é o instituto da defesa do consu-
midor. Ele está inserido de forma indelével em diferentes capítulos da
Carta, sob duas perspectivas que, embora terminologicamente diferen-
ciadas, têm por resultado a curatela daquele que, numa relação jurídica
de consumo, se apresenta vulnerável: o consumidor em perspectiva ge-
nérica e o usuário de serviços públicos, especialmente considerado.1
No primeiro sentido, parece-nos que a expressão “defesa do consu-
midor” leva a uma postura de defesa a priori, numa ótica paternala:
o Estado contra os fornecedores; no segundo – “usuário de serviços

1
José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 14 ed. São Paulo:
Malheiros, 1997, p. 254-255) consigna que “a Constituição foi tímida no dispor
sobre a proteção dos consumidores. Estabeleceu que o Estado proverá, na forma da
lei, a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII)”, realçando a importância de sua in-
serção dentre os direitos fundamentais, ou seja, conferindo àqueles a titularidade de
tais direitos, bem como adverte-nos para a regra do artigo 170, V, da CF, de 1988,
que toma a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica, o que, nos
dizeres de Gomes Canotilho e Vital Moreira, vem a “legitimar todas as medidas de
intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista”. (Cf. GUGLINKI,
Vitor Vilela. Direito do consumidor: STJ diverge sobre defesa de interesses indivi-
duais pelo MP. Consultor Jurídico, 26/2/2007. Disponível em : http://conjur.esta-
dao.com.br/static/text/53177,1. Extraído em: 1/6/2008.)
276 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

públicos”, a ênfase se apresenta mais madura e, o indivíduo, como “ci-


dadão com direitos”. Talvez, por isto mesmo, esta segunda vertente
ainda não tenha se desenvolvido a ponto de mudar substancialmente
a prestação de serviços públicos em nosso País.
Com esse pano de fundo, a apresentação da vontade expressa do Le-
gislador Constituinte e Reformador em relação ao consumidor, a in-
trodução de normas infraconstitucionais disciplinadoras da garantia e
demais disposições constitucionais pertinentes, a evolução interpre-
tativa dos dispositivos constitucionais e legais por parte do Supremo
Tribunal Federal (STF), os avanços obtidos a partir dos postulados
fundamentais e de suas alterações, assim como a crítica das tarefas a
cumprir no plano infraconstitucional, são o objeto deste ensaio.

A defesa do consumidor como garantia fundamental e


obrigação do Estado

O primeiro destaque é a inserção da norma programática de promo-


ção, pelo Estado, da defesa do consumidor, cuja exegese quanto a sua
abrangência e limites restou subordinada à lei ordinária, porém, inse-
rida no elenco dos direitos e garantias fundamentais.2
É possível afirmar que o complemento ao construto de 1988 já tenha
demonstrado a dificuldade esperada, pela oposição das forças econô-
micas conservadoras3, cujos interesses haveriam de ser contrariados
com a aprovação e implementação de uma legislação avançada e sin-
tonizada com as normas de proteção e defesa do consumidor de ou-
tros países.4

2
“Art. 5º (...) XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor; (...).”
3
Durante seminário realizado na Câmara dos Deputados, 29/11/2000, o ex-depu-
tado Joaci Góes, relator do projeto de lei do CDC afirmou, no entanto, que “Duas
coisas permitiram que esse Código fosse aprovado. Em primeiro lugar, o fato de que
seu Relator era um empresário. Se o relator (...) fosse um deputado de um partido de
esquerda, não teria saído. Teria sido colocado sob suspeição. Isso é absolutamente
inegável. (...) Em segundo lugar (...) o relator tem a responsabilidade, mas a qualida-
de e a autoridade de seu trabalho vai depender da abertura com que espelhe o senti-
mento da sociedade.” (In BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão
de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias. Centro de Documentação e
Informação. Sistema Nacional de Defesa do Consumidor : avaliação e perspectivas.
Série ação parlamentar, n. 159. Brasília : Câmara dos Deputados, 2001, p. 26.)
4
“(...) importante inovação legislativa, que, após a Resolução nº 39/248, de 9 de abril
de 1985, da Assembléia Geral da ONU e depois das leis editadas na Espanha, em
Portugal, no México, em Quebec, na Alemanha, nos Estados Unidos, se tornara evi-
dente que entre nós não poderia tardar.” (Cf. Paulo Brossard, in GRINOVER, Ada
Pellegrini et allii. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor : comentado pelos
autores do anteprojeto. 7 ed. rev. amp. Rio de Janeiro : Forense, 2001, Prefácio.)
O consumidor na experiência da ““Constituição Cidadã””
277

Assim, a força cogente dessa garantia resta entendida como não retro-
ativa a período anterior à edição da Lei nº 8.078, de 11 de setembro
de 19905 – o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC),
em casos específicos como o da subordinação, ao Estatuto Substantivo
Consumerista, dos serviços de natureza financeira em geral e bancária,
em particular, sucumbindo ao postulado do ato jurídico perfeito.b
Isso não obstante, a novidade relativamente recente nesta discussão
é a confirmação, por nossa Corte Maior, da disposição especial in-
clusiva constante do § 2º do art. 3º combinada com a definição do
art. 2º da referida lei: “Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou
jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário
final. (...) § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado
de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza ban-
cária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das
relações de caráter trabalhista.”c

Competência legislativa concorrente e argüições


de inconstitucionalidade

A competência legislativa da matéria (“consumo”) é concorrente, nos


termos do art. 24, V, da Constituição, o que foi assentado conclusiva-
mente pelo STF, no correr do presente ano de 2008.d Mas a compe-
tência da União, nesse âmbito, limita-se ao estabelecimento de normas
gerais, nos termos do § 1º da referida norma constitucional e, como
ocorre com outras matérias desse âmbito, aquela corte termina por avo-
car a si, na falta de explicitação diferenciadora em sede de lei ordiná-
ria, quais conteúdos são, ou não, normas gerais ou específicas (estas de
competência dos estados e do Distrito Federal). Isso leva, também, a
insegurança jurídica e enseja discricionariedade, na busca de uma linha
divisória entre o que podem ou não regular as unidades da federação,
por suas Assembléias Legislativas ou Câmara Distrital, e os municípios,
por suas Câmaras Municipais, especialmente quando se propõem a tra-
tar problemas específicos não parametrizados pelo CDC.
Merece, portanto, reflexão a necessidade de se adotar lei fixando ex-
pressamente as tais “normas gerais”, no âmbito ou adicionalmente
às disposições do CDC, para que se evitem as Ações Diretas de

5
A par da imensa tarefa de regulamentação do texto em seus diversos aspectos, o
prazo de cento e vinte dias estabelecido no art. 48 do Ato das Disposições Constitu-
cionais Transitórias para elaboração, pelo Congresso Nacional, do “código de defesa
do consumidor” restou frustrado, somente vindo a se concretizar, o diploma legal,
dois anos após a promulgação da Carta.
278 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Inconstitucionalidade, de resto bastante comuns, movidas contra as


decisões parlamentares estaduais/distritais, pois estas terminam por
avançar sobre questões de competência federal, no afã de exercerem
a competência legislativa plena prevista no § 3º do mesmo art. 24
da Constituição.e Essas normas precisariam também distinguir ou,
pelo menos, atribuir diretrizes para o que, em relação ao direito do
consumidor e relações de consumo, se poderia compreender como
atribuição legislativa municipal.6
Outra que pode suscitar indefinições e argüições de inconstitucionali-
dade de lei em tese ou ato normativo estadual, distrital ou municipal é
a competência, igualmente concorrente, prevista no inciso VIII do art.
24 da Constituição, em relação à legislação infraconstitucional tratan-
do da “responsabilidade por dano (...) ao consumidor”. Neste caso, à
semelhança de decisões já anotadas, o STF se demonstra cauteloso,
reafirmando a competência concorrente, diante do disposto no art.
55 do CDC, relativamente ao estabelecimento e aplicação de sanções
administrativasf: “A União, os estados e o Distrito Federal, em caráter
concorrente e nas suas respectivas áreas de atuação administrativa7,
baixarão normas relativas à produção, industrialização, distribuição e
consumo de produtos e serviços” (caput); “As sanções previstas neste
artigo serão aplicadas pela autoridade administrativa, no âmbito de
sua atribuição, podendo ser aplicadas cumulativamente, inclusive por
medida cautelar, antecedente ou incidente de procedimento adminis-
trativo.” (parágrafo único).
A fiscalização e inspeção de alimentos, “compreendido o controle de
seu teor nutricional” e de bebidas e águas para consumo humano é
objeto de disciplina específica no art. 200, VI, da Carta Magna, que
conferiu, portanto, status constitucional a essa competência do Siste-
ma Único de Saúde, com eficácia plena.

6
“Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; (...)”
7
A definição operacional da atuação concorrente prevista no citado artigo 55, em
obediência ao disposto no art. 2º da Lei nº 8.656, de 21 de maio de 1993, se fez,
inicialmente, pelo Decreto nº 861, de 9 de julho de 1993, sucedido pelo Decreto nº
2.181, de 20 de março de 1997, que “Dispõe sobre a organização do Sistema Na-
cional de Defesa do Consumidor (SNDC), estabelece as normas gerais de aplicação
das sanções administrativas previstas na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990,
revoga o Decreto nº 861, de 9 julho de 1993, e dá outras providências”.
O consumidor na experiência da ““Constituição Cidadã””
279

Tributação, ordem econômica e o direito à informação

No capítulo tributário da Lei Maior, além das regras sobre as pessoas


alcançadas pela incidência ou isenção tributária, que necessariamente
afetam o consumidor, chamam a atenção a ressalva genérica e as veda-
ções contidas no caput do art. 150 (“Sem prejuízo de outras garantias
asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos estados, ao Distrito
Federal e aos municípios: ...”) como limitações ao poder de tributar e
de legislar sobre a matéria.
Também, em relação ao direito de informação, a diretriz contida em
seu § 5º: “A lei determinará medidas para que os consumidores se-
jam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias
e serviços”.8
Essa diretriz, assim como, em mais amplo espectro, o inciso XXXII do
art. 5º, já comentado, foi instrumentalizada pelas disposições contidas:
a) no inciso IV do art. 4º do CDC - princípio da “educação e infor-
mação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos
e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo”;

8
“(...) o direito à informação, como direito básico e ao mesmo tempo instrumento
de proteção e defesa do consumidor, possui suas raízes em diplomas normativos de
natureza internacional. 4.1. A Resolução ONU 39/248 (...) que trata da proteção do
consumidor. Tal direito está reconhecido no Capítulo II, Princípios Gerais, número 3,
letra c, em que se prevê o ‘acesso dos consumidores à informação adequada que lhes
capacite a fazer escolhas conscientes de acordo com seus desejos e necessidades indivi-
duais ...’ (...) 4.2. Pacto de São José da Costa Rica (...) a Convenção Americana de Direi-
tos Humanos de 1969 (...) O artigo 26, Capítulo III, determina que os Estados-partes
adotem providências no sentido de efetivar os direitos que decorrem das normas eco-
nômicas (...) constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos. Esta, em
seu artigo 39, “b”, “i”, tratando do desenvolvimento econômico e social, determina aos
Estados membros que envidem esforços no sentido de realizar, entre outras ações, ‘...
medidas destinadas a promover a expansão de mercados e a obter receitas seguras para
os produtores, fornecimentos adequados e seguros para os consumidores, e preços
estáveis que sejam ao mesmo tempo recompensadores para os produtores e eqüitativos
para os consumidores”. (...) 4.4. A Lei 8.137 de 27 de dezembro de 1990 (...) que “define
crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá
outras providências”. O inciso VII do artigo 7º trata da informação falsa ou enganosa
sobre a natureza ou qualidade de bem ou serviço que induz o consumidor a erro.” (Cf.
FREITAS FILHO, Roberto. Os alimentos geneticamente modificados e o direito do
consumidor à informação : Uma questão de cidadania. In Revista de Informação Legis-
lativa, Brasília : Senado Federal / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas.
Ano 40, n. 158, abr./jun. 2003, p. 146-147.)
280 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

b) nos incisos II a IV do art. 6º, direito a:


1. “educação e divulgação sobre o consumo adequado dos
produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e
a igualdade nas contratações”;
2. “informação adequada e clara sobre os diferentes produ-
tos e serviços, com especificação correta de quantidade,
características, composição, qualidade e preço, bem como
sobre os riscos que apresentem”;
3. “proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, méto-
dos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra
práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento
de produtos e serviços”.
A defesa do consumidor aparece ainda, no Texto Fundamental de
nossa República, como princípio de observação compulsória no or-
denamento econômico geral, considerado como um dos “ditames da
justiça social” (art. 170, caput e inciso V ).9
O direito à informação se coaduna perfeitamente com os princípios
da ordem econômica, não havendo falar em inconstitucionalidade
material de sua coexistência, conclusão para a qual o Supremo Tribu-
nal Federal já construiu, também, precedentes.g
Não menos importante, também se preocupou o Legislador Consti-
tuinte com a inserção, nos marcos regulatórios da prestação de servi-
ços públicos, da especificação dos direitos dos usuários, nos termos do
inciso II do art. 175. Tais normas devem ser coordenadas e interpreta-
das à luz de outros comandos constitucionais, como os promotores da
redução das desigualdades sociais e da garantia de acesso igualitário
aos bens e serviços públicos.h

O usuário de serviços públicos, o administrado em geral e


o exercício da cidadania

No capítulo da Administração Pública, a nova redação do § 3º do art.


37, quando do advento da Reforma Administrativa (Emenda nº 19, de

9
“É, portanto, possível afirmar, com base nos termos constitucionais, que a defe-
sa do consumidor respalda-se no ideal de justiça social e constitui meio hábil de
atingir a existência digna e legítima, a valorização do trabalho humano e da livre
iniciativa.“ (Cf. PEDERIVA, João Henrique. O direito do consumidor, o sistema
financeiro e os cartões de crédito. In Revista de Informação Legislativa, Brasília :
Senado Federal/Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. Ano 39, n.
153, jan./mar. 2002, p. 203.)
O consumidor na experiência da ““Constituição Cidadã””
281

4 de junho de 1998) introduziu importantíssimo comando, para que


o consumidor seja protegido também em relação ao Estado (grifamos):
Art. 37. ......................................................................................
..................................................................................................
§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na
administração pública direta e indiretai, regulando especialmente:
I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos
em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento
ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade
dos serviços;
II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a in-
formações sobre atos de governo, observado o disposto no art.
5º, X e XXXIII;
III – a disciplina da representação contra o exercício negli-
gente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administra-
ção pública.

Essas disposições, ainda que dependentes de lei disciplinadora, se ali-


nham à perfeição e especializam as garantias do art. 5º, XXXIII e
XXXIV, “a” e “b”, da Constituição, que tratam do direito a informações
de interesse individual, coletivo ou difuso, do direito de petição e de
representação, podendo abranger, por óbvio, reclamações pela falta ou
deficiência do serviço público (grifamos):
Art. 5º ........................................................................................
...................................................................................................
XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos in-
formações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo
ou geralj, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de res-
ponsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível
à segurança da sociedade e do Estado;
XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pa-
gamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direi-
tos ou contra ilegalidade ou abuso de poderk;
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa
de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal10;

Vale ressaltar que, para os casos de não atendimento do disposto nos


incisos XXXIII e XXXIV, “a” e “b”, além dos recursos administrativos
cabíveis, o administrado tem ao seu dispor o mandado de segurança,

10
“Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 178 da Lei Complementar n. 19, de
29 de dezembro de 1997, do Estado do Amazonas. Extração de certidões, em reparti-
ções públicas, condicionada ao recolhimento da ‘taxa de segurança pública’. violação à
alínea b do inciso XXXIV do 5º da Constituição Federal. Ação julgada procedente.”
(ADI 2.969, rel. min. Carlos Britto, julgamento em 29/3/07, DJ de 22/6/07)
282 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

para suprir a omissão ou coibir lesão ou ameaça de lesão a direito lí-


quido e certo, na forma do inciso LXIX do art. 5º da Constituição.

A evolução textual do Código de Proteção e Defesa


do Consumidor

A Lei nº 8.078, de 1990, cujo anteprojeto foi elaborado por uma reno-
mada equipe de juristas11, representou uma significativa mudança nas
relações entre consumidores e fornecedores, destacando-se os seguin-
tes pontos relevantes, em sua estrutura normativa:
a) conceituação de consumidor, produto, serviço e fornecedor, to-
madas em acepções bastantes abrangentes (arts. 1º a 3º);
b) princípios e instrumentos da Política Nacional de Relações de
Consumo, com respeito à dignidade, saúde, segurança, proteção
de interesses econômicos, melhoria da qualidade de vida dos
consumidores e à transparência12 e harmonia das relações de
consumo (arts. 4º e 5º);
c) direitos básicos do consumidor, sem prejuízo de outros decor-
rentes de tratados ou convenções internacionais, de outras leis,
de regulamentos administrativos ou dos princípios gerais do
direito, da analogia, dos costumes e da eqüidade (arts. 6º e 7º);
d) qualidade de produtos e serviços e prevenção e reparação de da-
nos, incluindo regras de decadência e prescrição e a possibilida-
de de desconsideração da personalidade jurídica do fornecedor
(arts. 8º a 28);
e) práticas comerciais: oferta, publicidade, práticas abusivas, co-
brança de dívidas, bancos de dados e cadastros de consumidores
(arts. 29 a 45);
f ) proteção contratual, elenco de cláusulas consideradas abusivas a
priori e contratos de adesão (arts. 46 a 54);

11
Ada Pellegrini Grinover, Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Daniel
Roberto Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Watanabe, Nelson Nery Júnior
e Zelmo Denari são os autores do anteprojeto de lei, publicado no Diário Oficial da
União de 4 de janeiro de 1989, segundo anotou Paulo Brossard, então Ministro da
Justiça, em Prefácio (In GRINOVER, Ada Pellegrini et allii. Código Brasileiro de
Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7 ed. rev. amp. Rio
de Janeiro : Forense, 2001.)
12
A Lei nº 9.008, de 21 de março de 1995, corrigiu o texto original do CDC que,
em lugar de “transparência”, teve grafado o termo “transferência”.
O consumidor na experiência da ““Constituição Cidadã””
283

g) sanções administrativas (arts. 55 a 60);


h) infrações e sanções penais (arts. 61 a 80);
i) defesa de interesses ou direitos individuais ou coletivos (difusos,
coletivos e individuais homogêneos) do consumidor em juízo –
legitimidade para propor ação, tipos de ação, questões processu-
ais e efeitos da coisa julgada (arts. 81 a 104);
j) organização e coordenação do Sistema Nacional de Defesa do
Consumidor (arts. 105 e 106);
k) convenção coletiva de consumo (arts. 107 e 108);
l) disposições finais, incluindo diversas alterações à Lei da Ação
Civil Pública (Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985), especial-
mente para acrescentar o interesse do Ministério Público em
proteger os interesses difusos ou coletivos e introduzir a figura
do compromisso de ajustamento de conduta, com eficácia de
título executivo extrajudicial (arts. 109 a 119).
Naturalmente, ao longo de seus dezoito anos de existência, modifica-
ções foram introduzidas em seu texto, ainda que não o tenham sido,
nem de longe, na proporção das proposições apresentadas pelo Parla-
mentares.13 São as seguintes as alterações adotadas:
a) pela Lei nº 8.656, de 21 de maio 1993:
adequação redacional da parte final do caput do art. 57, em rela-
ção ao produto das penas de multas administrativas: substituin-
do a expressão “sendo a infração ou dano de âmbito nacional”
pela expressão “os valores cabíveis à União” e incluindo os fun-
dos municipais de proteção ao consumidor, além dos estaduais,
como destinatários da multa;14
b) pela Lei nº 8.703, de 6 de setembro de 1993:
atualização de unidade e valor monetários do parágrafo único
do art. 57, alterando de três milhões de BTN (Bônus do Te-
souro Nacional) para três milhões de UFiR (Unidade Fiscal
de Referência);

13
Uma consulta à página de pesquisa de proposições em tramitação da Câmara dos
Deputados, em 2 de junho de 2008, retornou, para o termo “8.078”, número da Lei
do CDC, nada menos que quinhentos itens.
14 A mesma lei alteradora fixou o prazo de quarenta e cinco dias, contados da vigên-
cia da lei, para que o Poder Executivo regulamentasse o procedimento de aplicação
das sanções administrativas, o que foi realizado, como anteriormente referido.
284 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

c) pela Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994 (Lei de Proteção


à Concorrência):
I. no caput do art. 39, “É vedado ao fornecedor de produtos
ou serviços” o acréscimo da expressão “dentre outras práti-
cas abusivas”;
II. substituição, na redação do inciso IX do art. 39 (práticas
abusivas vedadas), da expressão “deixar de estipular prazo
para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação
de seu termo inicial a seu exclusivo critério” pela expressão
“recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, direta-
mente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto
pagamento, ressalvados os casos de intermediação regula-
dos em leis especiais”;
III. inclusão, no inciso X do mesmo artigo, em lugar do termo
“VETADO”, pela expressão “elevar sem justa causa o preço
de produtos ou serviços;
d) pela Lei nº 9.008, de 21 de março de 1995:
I. reinclusão, como inciso XII, do antigo inciso IX, “deixar de
estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou dei-
xar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério”;
II. correção de erro de remissão, no caput do art. 82, da expres-
são “Para os fins do art. 100, parágrafo único, são legiti-
mados concorrentemente”, pela expressão “Para os fins do
art. 81, parágrafo único (defesa coletiva), são legitimados
concorrentemente”;
III. idem, no art. 91, corrigindo-se a remissão aos “legitimados
de que trata o art. 81” pela expressão “legitimados de que
trata o art. 82”;
IV. idem, no art. 98, idem;
e) pela Lei nº 9.298, de 1º de agosto de 1996:
alteração, de dez para dois por cento, do percentual máximo da
multa de mora decorrente do inadimplemento de obrigação no
seu termo, no § 1º do art. 52;
O consumidor na experiência da ““Constituição Cidadã””
285

f ) pela MPV  nº 1.890-67, de 22 de outubro 1999, convertida na


Lei nº 9.870, de 23 de novembro de 1999:
inclusão, como inciso XI (renumerado para inciso XIII, pela
lei de conversão), da expressão “aplicar fórmula ou índice de
reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido”.
Como se conclui, não apenas foram poucas as mudanças no CDC,
em quase duas décadas de vigência, como as alterações foram desti-
nadas a adequação redacional ou correção de erro de remissão; subs-
tancialmente, constata-se a inclusão de duas hipóteses de práticas
consideradas abusivas e a redução da multa sancionatória por mora,
para dois por cento.
Isso atesta a alta qualidade do trabalho realizado pelos juristas na fase
do anteprojeto e na votação da matéria, no Congresso Nacional.15

A ação civil pública na defesa do consumidor

Uma grande aliada do CDC, atuando para assegurar sua efetividade, é


a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, portanto, anterior à atual Cons-
tituição e por esta recepcionada. Esse diploma “Disciplina a ação civil
pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente,
ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,
turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências”.
Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular e
das ações de titularidade individual não homogênea16, as ações de res-
ponsabilidade por danos morais e patrimoniais causados, entre outros,
ao consumidor.
Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar o Mi-
nistério Público17, a Defensoria Pública, União, os Estados, o Distrito

15
Isso não obstante, o projeto de lei foi objeto de trinta e oito vetos, pelo Presidente
da República, os quais foram mantidos pelo legislativo federal. Observe-se, tam-
bém, que, durante o seminário sobre o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor
: avaliação e perspectivas, em comemoração aos dez anos do CDC, já referido, em-
bora diversas sugestões tenham sido apresentadas, nenhuma delas foi aplicada no
texto da Lei nº 8.078, de 1990. Aliás, nenhuma alteração nesse diploma legal foi
procedida após o ano de 1999.
16
Digna de nota é a criação dos juizados especiais cíveis, pela Lei nº 9.099, de 26 de
setembro de 1995, e, no plano da justiça federal, pela Lei nº 10.259, de 12 de julho
de 2001, que permitiram o acesso à justiça para as causas de pequeno valor, incen-
tivando enorme quantidade de consumidores a levarem suas reclamações ao Poder
Judiciário, na busca de seus direitos e no exercício da cidadania.
17
“Pesquisando os arestos do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, verifica-se que
286 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

a jurisprudência daquele tribunal superior ainda é divergente no que se refere à


legitimidade do Ministério Público para a defesa de interesses individuais homogê-
neos. Os acórdãos contrários à integração do MP ao pólo ativo das lides envolvendo
tais interesses afirmam que os mesmos devem ser objeto de pleito pelos respectivos
titulares, uma vez que são de natureza divisível e perfeitamente identificáveis. Por
sua vez, outras Turmas norteiam-se segundo as disposições do Código de Proteção
de Defesa do Consumidor, o que, a nosso ver, é o mais correto, dentro das diretrizes
e objetivos traçados pelo modelo de Estado Democrático de Direito, considerando
que tais interesses são relevantes por si só, nos dizeres da eminente ministra Nancy
Andrighi. (...) o cerne da questão que trazemos à colação diz respeito justamente à
Constituição Federal, no entender de juristas tradicionais, não ter vindo a conferir
legitimidade ao Ministério Público para a defesa dos direitos de que tratamos no
presente artigo, pois os mesmos não foram expressamente elencados pelo legislador
constituinte no art. 129, III (...).
Já em 1985 o Brasil ganhava, através da edição da Lei da Ação Civil Pública (LACP)
7.347/85, um importante instrumento de defesa dos interesses sociais. Mas aquela
lei também não havia incluído expressamente os direitos individuais homogêneos
no rol do seu artigo 1º, IV, o qual também só cuidou de interesses difusos e cole-
tivos, embora seja de inegável importância para o MP no exercício de seu mister,
estando o órgão ministerial incluído dentre os legitimados a propor ações dessa
natureza, quer seja como parte, quer seja como fiscal da lei (art. 5º, § 1º).
Pensamos ser de bom alvitre, antes de prosseguir em nossa análise, fornecer um bre-
ve conceito do que são os interesses individuais homogêneos, o qual nos é indicado
pelo artigo 81, III, última parte, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor,
cuja dicção é a seguinte: “Art. 81 – A defesa dos interesses e direitos dos consu-
midores e das vitimas poderá ser exercida em juízo individualmente ou a título
coletivo.Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: (...)
III – interesses individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem
comum.” A origem comum desses interesses é determinada pela situação fática que
liga determinados indivíduos entre si, como, por exemplo, um contrato. Essa é a
principal característica a ser observada.
Extrai-se do dispositivo acima transcrito que o CDC, como “sobre-estrutura ju-
rídica multidisciplinar, aplicável em toda área do direito onde ocorrer uma relação
de consumo”, nos dizeres de Sérgio Cavalieri Filho (cit,. por REGO, Werson.
O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, a nova concepção contratual e
os negócios jurídicos imobiliários: aspectos doutrinários e jurisprudenciais. Rio de
Janeiro : Forense, 2002, p. 9.), acabou por incorporar normas de caráter processual
em sua estrutura. Prosseguindo em nosso exame, recorde-se que a competência para
legislar sobre matéria processual é privativa da União, nos termos do artigo 22, I
do respectivo diploma. Com isso, queremos dizer que, embora a CF/88 não tenha
tratado de forma expressa acerca da competência do MP para a defesa de direitos
individuais homogêneos, ao determinar que o Congresso Nacional elaborasse um
Código de Defesa do Consumidor, acabou por conferir poderes ao legislador con-
sumerista para disciplinar a matéria. (...)
Sobre o tema, Nelson Nery Júnior baliza: “(...) as normas do CDC são, ex lege, de
ordem pública e interesse social (art. 1º, CDC). Ao definir o perfil institucional do
Ministério Público, o art. 127 da CF diz ser o parquet instituição que tem por fina-
lidade a defesa da ordem jurídica, do regime democrático de direito e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis. Assim, o ajuizamento, pelo Ministério Público,
de ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos tratados coletiva-
mente está em perfeita consonância com suas finalidades institucionais, sendo legí-
tima a atribuição, ao Ministério Público, dessa legitimidade para agir, pelos arts. 81
e 82 do CDC, de conformidade com os arts. 127 e 129, IX, da CF”. (...)
O consumidor na experiência da ““Constituição Cidadã””
287

Federal e os municípios, a autarquia, empresa pública, fundação ou


sociedade de economia mista, associações constituídas há pelo menos
um ano e que incluam, entre suas finalidades, a proteção ao consumi-
dor, à ordem econômica ou à livre concorrência (entre outras).

Conclusão

A Constituição consagrou a defesa do consumidor como dever do


Estado e garantia fundamental, subordinando sua operacionalização à
lei ordinária, in casu, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
As indefinições naturais entre competências legislativas, em sede de
atuação legislativa concorrente, caracteriza extensas discussões sobre a
constitucionalidade de leis estaduais e municipais, em face da regra de
que as normas gerais são de elaboração pelo Congresso Nacional.
A tarefa de distingüir o nível de generalidade da norma e seu acata-
mento ou expurgo do ordenamento jurídico pátrio é tarefa que vem
sendo objeto de demanda significativa sobre os trabalhos do Supremo
Tribunal Federal.
Aquele tribunal tem sido chamado também a decidir sobre o alcance
e a abrangência das normas de proteção do consumidor e dos usuários
de serviços públicos em geral, demonstrando seus acórdãos uma ótica
de inclusão e de promoção da cidadania e da justiça social, além da
preservação da perspectiva protetiva em relação ao âmbito de aplica-
ção das disposições constitucionais e legais.
O exame e a compreensão sistemática da Constituição demonstra que
os princípios da política nacional de defesa do consumidor, os direitos
básicos a este assegurados e os instrumentos para promoção judicial e
extrajudicial da sua proteção e defesa, regulados pela Lei nº 8.078, de
1990, estão em consonância com os direitos e garantias individuais e
coletivos e com os mecanismos de promoção da cidadania insculpidos
em nossa Carta Magna.

No âmbito das normas programáticas do CDC, destaque-se que o artigo 5º, II aga-
salhou a instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, na esfera
do MP, como instrumento à consecução da Política Nacional das Relações de Con-
sumo, objetivando garantir efetividade na defesa dos direitos do consumidor. (In
Cf. GUGLINKI, Vitor Vilela. Direito do consumidor : STJ diverge sobre defesa
de interesses individuais pelo MP. Consultor Jurídico, 26/2/2007. Disponível em:
http://conjur.estadao.com.br/static/text/53177,1. Extraído em : 1/6/2008.)
288 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O pequeno número de alterações promovidas no texto da referida lei


demonstram que, além dos casos de adequação textual ou correção de
remissões, a evolução se deu, ainda que tímida, em sentido pró-con-
sumidor, e não como restrição aos avanços alcançados pela redação
original do Código.
O sistema de instrumentos para ação judicial, em defesa do consumi-
dor, envolve, a par do Ministério Público, diversas partes legitimadas,
sendo também várias as possibilidades de ação coletiva e a atuação de
litisconsortes, além das iniciativas individuais não homogêneas, deve-
ras facilitada com a criação dos juizados especiais cíveis.
Não obstante possam ser propostas alterações no texto do CDC, in-
clusive para sua revisão atualizadora, em face das mudanças na socie-
dade e na economia nas últimas duas décadas, pode-se concluir que
esse Código tem desempenhado a contento sua função instrumental
de proteção e defesa do consumidor, sob o pálio da “Constituição Ci-
dadã”. No mesmo sentido, as garantias em relação aos administrados,
os quais têm ainda ao seu dispor, cabe acrescentar, o instrumento do
mandado de segurança, em caso de denegação de informações e cer-
tidões e, mesmo, quando, exercido o direito de petição, o objeto do
pedido não é reconhecido pela Administração.
Não se pode dizer o mesmo em relação ao usuário de serviços públi-
cos, cujas experiências negativas quanto à atuação pelas prestadoras, a
partir de contratos de concessão, são amplamente conhecidas, princi-
palmente na área de telecomunicações, cujas lides se avolumam nos
escaninhos da justiça de pequenas causas.

Referências

BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão de Defesa do Consumidor, Meio


Ambiente e Minorias. Centro de Documentação e Informação. Sistema Nacional
de Defesa do Consumidor: avaliação e perspectivas. Brasília : Câmara dos Deputa-
dos, 2001. 185 p. Ação Parlamentar, n. 159.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. A Constituição e o Supremo Tribunal Federal.
Disponível em: <http://www.stf.gov.br>.
FREITAS FILHO, Roberto. Os alimentos geneticamente modificados e o direi-
to do consumidor à informação: uma questão de cidadania. Rev. Inf. Legislativa,
Brasília, v. 40, n. 158, p. 143-161, abr./jun. 2003.
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor :
comentado pelos autores do anteprojeto. 7 ed. rev. amp. Rio de Janeiro : Forense,
2001. 1062 p.
O consumidor na experiência da ““Constituição Cidadã””
289

GUGLINKI, Vitor Vilela. Direito do consumidor : STJ diverge sobre defesa de


interesses individuais pelo MP. Consultor Jurídico, 26 fev. 2007. Disponível em:
<http://conjur.estadao.com.br/static/text/53177,1>. Acesso em: 1 jun. 2008.
PEDERIVA, João Henrique. O direito do consumidor, o sistema financeiro e os
cartões de crédito. Rev. Inf. Legislativa, Brasília, v. 39, n. 153, p. 201-221, jan./
mar. 2002.

Notas de fim

Notas Complementares: Acórdãos do Supremo Tribunal Federal sobre Consu-


midor, Usuário de Serviço Público e Administrados em Geral.
a) “Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa
e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução
das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social,
pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de servi-
ços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros.”
(ADI 319-QO, rel. min. Moreira Alves, julgamento em 3/3/93, DJ de 30/4/93)
b) “Código de Defesa do Consumidor: contrato firmado entre instituição finan-
ceira e seus clientes referente à caderneta de poupança: não obstante as normas
veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor alcancem as instituições fi-
nanceiras (cf. ADIn 2.591, 7/6/2006, Pleno, Eros Grau), não é possível a sua apli-
cação retroativa, sob pena de violação do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.
Precedente (RE 205.999, 16/11/99, Moreira, RTJ 173/263).” (RE 395.384-ED,
rel. min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 26/4/07, DJ de 22/6/07)
c) “(...) CDC. Código de Defesa do Consumidor. Art. 5º, XXXII, da CB/88. Art.
170, V, da CB/88. Instituições financeiras. Sujeição delas ao Código de Defesa
do Consumidor. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. As
instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas
veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. ‘Consumidor’, para os efeitos
do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza,
como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. Ação direta
julgada improcedente.” (ADI 2.591-ED, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em
14/12/06, DJ de 13/4/07)
d) “(...) afastou-se a alegação de que a norma impugnada teria usurpado com-
petência da União para legislar sobre direito comercial e comércio interestadual
(...), ao fundamento de que ela apenas teria visado à proteção ao consumidor, no
sentido de que lhe fossem fornecidas informações sobre as características de pro-
dutos comercializados no referido estado-membro. Asseverou-se que o art. 24, V,
da CF atribui competência concorrente à União, aos estados e ao Distrito Federal
para legislar sobre a produção e o consumo. (...) Precedentes citados: ADI 1980
MC/PR (DJ de 25/2/2000); ADI 1286/SP (DJ de 6/9/96).” (ADI 2.832, Rel.
Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 7/5/08, Informativo 505)
e) Os casos a seguir ilustram muito bem esse diagnóstico (grifamos): i - “Lei n.
3.706/2006, do Distrito Federal, que dispõe sobre ‘a afixação de tabela relativa a
taxas de juros e de rendimentos de aplicações financeiras pelas instituições bancá-
rias e de crédito’. Usurpação da competência privativa da União para fixar nor-
290 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

mas gerais relativas às relações de consumo (CF, art. 24, V, §1º). (ADI 3.668,
rel. min. Gilmar Mendes, julgamento em 17/9/07, DJ de 19/12/07)
II – “Lei 14.861/05, do Estado do Paraná. Informação quanto à presença de
organismos geneticamente modificados em alimentos e ingredientes alimenta-
res destinados ao consumo humano e animal. Lei federal 11.105/05 e Decretos
4.680/03 e 5.591/05. Competência legislativa concorrente para dispor sobre pro-
dução, consumo e proteção e defesa da saúde. Art. 24, V e XII, da Constituição
Federal. (...) Ocorrência de substituição — e não suplementação — das regras
que cuidam das exigências, procedimentos e penalidades relativos à rotulagem
informativa de produtos transgênicos por norma estadual que dispôs sobre o
tema de maneira igualmente abrangente. Extrapolação, pelo legislador estadual,
da autorização constitucional voltada para o preenchimento de lacunas acaso ve-
rificadas na legislação federal. Precedente: ADI 3.035, rel. min. Gilmar Mendes,
DJ 14/10/05.” (ADI 3.645, rel. min. Ellen Gracie, julgamento em 31/5/06, DJ
de 1/9/06)
III – “Ação direta. Resolução n. 12.000-001, do Secretário de Segurança do Es-
tado do Piauí. Disciplina do horário de funcionamento de estabelecimentos co-
merciais, consumo e assuntos análogos. Inadmissibilidade. Aparência de ofensa
aos arts. 30, I, e 24, V e VI, da CF. Usurpação de competências legislativas do mu-
nicípio e da União. Liminar concedida com efeito ex nunc. Aparenta inconstitu-
cionalidade a resolução de autoridade estadual que, sob pretexto do exercício
do poder de polícia, discipline horário de funcionamento de estabelecimentos
comerciais, matéria de consumo e assuntos análogos.” (ADI 3.731-MC, rel.
min. Cezar Peluso, julgamento em 29/8/07, DJ de 11/10/07). No mesmo sentido:
ADI 3.691, rel. min. Gilmar Mendes, julgamento em 29/8/07, DJE de 9/5/08.”
IV – “Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 5.652, do Estado do Espírito
Santo. Comercialização de produtos por meio de vasilhames, recipientes ou em-
balagens reutilizáveis. Gás liquefeito de petróleo engarrafado (GLP). Diretrizes
relativas à requalificação dos botijões. (...) A lei hostilizada limita-se a promo-
ver a defesa do consumidor, dando concreção ao disposto no artigo 170, V, da
Constituição do Brasil. O texto normativo estadual dispõe sobre matéria da
competência concorrente entre a União, os estados-membros e o Distrito Fede-
ral.” (ADI 2.359, rel. min. Eros Grau, julgamento em 27/9/06, DJ de 7/12/06)
V – “Lacres eletrônicos nos tanques dos postos de combustíveis. Competência
concorrente que permite ao estado regular de forma específica aquilo que a
União houver regulado de forma geral.” (ADI 2.334, rel. min. Gilmar Mendes,
julgamento em 24/4/03, DJ de 30/5/03)
f ) “Direito Constitucional e Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionali-
dade da Lei nº 12.420, de 13/1/1999, do Estado do Paraná, que assegura ao con-
sumidor o direito de obter informações sobre natureza, procedência e qualidade
dos produtos combustíveis, comercializados nos postos revendedores situados
naquela unidade da Federação. Alegação de ofensa aos arts. 22, I, IV e XII, 177,
§§ 1º e 2º, I e III, 238 e 170, IV, da Constituição Federal. Medida Cautelar. 1. A
plausibilidade jurídica da Ação Direta de Inconstitucionalidade ficou considera-
velmente abalada, sobretudo diante das informações do Exmo. Sr. Governador
do Estado do Paraná. 2. Com efeito, a Constituição Federal, no art. 24, incisos
O consumidor na experiência da ““Constituição Cidadã””
291

V e VIII, atribui competência concorrente à União, aos estados e ao Distrito


Federal para legislar sobre produção e consumo e responsabilidade por dano ao
consumidor. (...) 3. No caso, a um primeiro exame, o Estado do Paraná, na lei
impugnada, parece haver exercido essa competência suplementar, sem invadir a
esfera de competência da União, para normas gerais. Aliás, o próprio Código do
Consumidor, instituído pela Lei Federal nº 8.078, de 1990, no art. 55, a estabele-
ceu. 4. E, como ficou dito, o diploma acoimado de inconstitucional não aparenta
haver exorbitado dos limites da competência legislativa estadual (suplementar),
nem ter invadido a esfera de competência concorrente da União, seja a que ficou
expressa no Código do Consumidor, seja na legislação correlata, inclusive aquela
concernente à proteção do consumidor no específico comércio de combustíveis.
5. É claro que um exame mais aprofundado, por ocasião do julgamento de mérito
da ação, poderá detectar alguns excessos da lei em questão, em face dos limites
constitucionais que se lhe impõem, mas, por ora, não são eles vislumbrados, nes-
te âmbito de cognição sumária, superficial, para efeito de concessão de medida
cautelar. 6. Ausente o requisito da plausibilidade jurídica, nem é preciso verificar
se o do periculum in mora está preenchido. Ademais, se tivesse de ser examinado,
é bem provável que houvesse de militar no sentido da preservação temporária da
eficácia das normas em foco. 7. Medida Cautelar indeferida. Plenário: votação
unânime.” (ADI 1.980-MC, rel. min. Sydney Sanches, julgamento em 4/8/99,
DJ de 25/2/00)
g) Nesse sentido (grifamos): i - “O Tribunal, por maioria, julgou parcialmente
procedente pedido formulado em ação direta ajuizada pela Confederação Na-
cional da Indústria (CNI) para declarar a inconstitucionalidade da expressão ‘no
Brasil’, contida no art. 2º da Lei n. 13.519/2002, do Estado do Paraná – que
estabelece obrigatoriedade de informação, nos rótulos de embalagens de café co-
mercializado no Paraná, da porcentagem de cada espécie vegetal de que se com-
põe o produto –, a fim de evitar qualquer dúvida de que aquela unidade federada
estivesse legislando para outros Estados-membros (‘Art. 2º. As disposições desta
lei aplicam-se ao café torrado em grão, ao café torrado moído, ao café solúvel e a
todas as demais formas em que o café, destinado ao consumo humano, puro ou
em mistura com outros produtos alimentícios, seja comercializado no Brasil’).
(...) Também se rejeitou a assertiva de afronta aos princípios constitucionais
da livre iniciativa e da livre concorrência (CF, art. 170, IV), tendo em conta o
referido objetivo dessa lei, enfatizando, no ponto, que o inciso V desse mesmo
dispositivo constitucional estabelece, como princípio da ordem econômica, a
defesa do consumidor. Mencionou-se, ademais, o disposto no art. 6º, III, do
Código de Defesa do Consumidor, que garante, como direito básico de todo
consumidor, a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e ser-
viços, com especificação correta de quantidade, características, composição,
qualidade e preço, bem como os riscos que apresentem. Assentou-se, ainda, que
se houvesse desrespeito ao texto constitucional, ele seria indireto.” (ADI 2.832,
rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 7/5/08, Informativo 505)
II – “Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 5.652, do Estado do Espírito
Santo. Comercialização de produtos por meio de vasilhames, recipientes ou em-
balagens reutilizáveis. (...) A compra de gás da distribuidora ou de seu revendedor
é operada concomitantemente à realização de uma troca, operada entre o consu-
midor e o vendedor de gás. Trocam-se botijões, independentemente de qual seja a
292 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

marca neles forjada. Dinamismo do mercado do abastecimento de gás liquefeito


de petróleo. A lei hostilizada limita-se a promover a defesa do consumidor,
dando concreção ao disposto no artigo 170, V, da Constituição do Brasil.”
(ADI 2.359, rel. min. Eros Grau, julgamento em 27/9/05, DJ de 7/12/06)
III – “Farmácia. Fixação de horário de funcionamento. Assunto de interesse local.
A fixação de horário de funcionamento para o comércio dentro da área muni-
cipal pode ser feita por lei local, visando o interesse do consumidor e evitando
a dominação do mercado por oligopólio.” (RE 189.170, rel. p/ o ac. min. Mau-
rício Corrêa, julgamento em 1/2/01, DJ de 8/8/03)
h) Exemplo de particular relevância é o seguinte acórdão, que atesta a constitu-
cionalidade de lei que prevê tratamento especial com o fito de aplicação do Prin-
cípio da Igualdade, em relação a portadores de necessidades especiais usuários
de transportes coletivos públicos (grifamos): “O Tribunal, por maioria, julgou
improcedente pedido formulado em ação direta ajuizada pela Associação Brasi-
leira das Empresas de Transporte Rodoviário Intermunicipal, Interestadual e In-
ternacional de Passageiros (Abrati) contra a Lei nacional 8.899/94, que concede
passe livre no sistema de transporte coletivo interestadual às pessoas portadoras
de deficiência, comprovadamente carentes. (...) Tendo em conta o disposto no art.
175, parágrafo único, II, da CF, aduziu-se que a pessoa portadora de carências
especiais haveria de ser considerada como um potencial usuário do serviço
público de transporte coletivo interestadual, e tratando-se de titular de con-
dição diferenciada, nesta condição haveria de ser cuidado pela lei, tal como se
deu com o diploma questionado. Rejeitou-se, de igual modo, a apontada ofensa
ao princípio da igualdade, ao fundamento de que a lei em questão teria dado
forma justa ao direito do usuário que, pela sua diferença, haveria de ser tratado
nesta condição desigual para se igualar nas oportunidades de ter acesso àquele
serviço público.” (ADI 2.649, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 8/5/08,
Informativo 505)
i – “Além das modalidades explícitas, mas espasmódicas, de democracia direta –
o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (art. 14) – a Constituição da Re-
pública aventa oportunidades tópicas de participação popular na administração
pública (v.g., art. 5º, XXXVIII e LXXIII; art. 29, XII e XIII; art. 37 , § 3º; art.
74, § 2º; art. 187; art. 194, § único, VII; art. 204, II; art. 206, VI; art. 224). A
Constituição não abriu ensanchas, contudo, à interferência popular na gestão da
segurança pública (...).” (ADI 244, rel. min. Sepúlveda Pertence, julgamento em
11/9/02, DJ de 31/10/02)
j) Na espécie, os seguintes julgados: I - “Tribunal de Contas da União: direito de
acesso a documentos de processo administrativo. CF, art. 5º, XXXIII, XXXIV,
b, e LXXII; e art. 37. (...) direito da empresa-impetrante, permissionária de uso,
ter vista dos autos da representação mencionada, a fim de obter elementos que
sirvam para a sua defesa em processos judiciais nos quais figura como parte. Não
incidência, no caso, de qualquer limitação às garantias constitucionais (incisos
X e XXXIII, respectivamente, do art. 5º da CF). Ressalva da conveniência de se
determinar que a vista pretendida se restrinja ao local da repartição, ou, quando
permitida a retirada dos autos, seja fixado prazo para tanto.” (MS 25.382, rel. min.
Sepúlveda Pertence, julgamento em 15/2/06, DJ de 31/3/06)
O consumidor na experiência da ““Constituição Cidadã””
293

II – “O Tribunal, por maioria, referendou liminar deferida em argüição de des-


cumprimento de preceito fundamental (...) para o efeito de suspender a vi-
gência da expressão ‘a espetáculos de diversões públicas, que ficarão sujeitos à
censura, na forma da lei, nem’, contida na parte inicial do § 2º do art. 1º; do § 2º
do art. 2º; da íntegra dos artigos 3º, 4º, 5º, 6º e 65; (...) da Lei 5.250/67 (Lei de
Imprensa). (...). No mérito, entendeu-se configurada a plausibilidade jurídica do
pedido, haja vista que o diploma normativo impugnado não pareceria serviente
do padrão de democracia e de imprensa vigente na Constituição de 1988 (CF,
artigos 1º; 5º, IV, V, IX e XXXIII e 220, caput e § 1º). Considerou-se, ademais,
presente o perigo na demora da prestação jurisdicional, afirmando-se não ser
possível perder oportunidade de evitar que eventual incidência da referida lei, de
nítido viés autoritário, colidisse com aqueles valores constitucionais da democra-
cia e da liberdade de imprensa. (...).” (ADPF 130 MC, rel. min. Carlos Britto,
julgamento em 27/2/08, Informativo 496)
k) Sobre esta alínea, destacam-se as seguintes decisões pretorianas (grifamos):
I – “O Ministério Público possui legitimidade para propor ação civil pública com
o fim de obter certidão parcial do tempo de serviço que segurado tem averbado
em seu favor. (...). Considerou-se que o direito à certidão traduziria prerrogativa
jurídica, de extração constitucional destinada a viabilizar, em favor do indivíduo
ou de uma determinada coletividade (como a dos segurados do sistema de pre-
vidência social), a defesa (individual ou coletiva) de direitos ou o esclarecimento
de situações, de tal modo que a injusta recusa estatal em fornecer certidões, não
obstante presentes os pressupostos legitimadores dessa pretensão, autorizaria a
utilização de instrumentos processuais adequados, como o mandado de seguran-
ça ou como a própria ação civil pública, esta, nos casos em que se configurasse
a existência de direitos ou interesses de caráter transindividual, como os direitos
difusos, coletivos e individuais homogêneos. Enfatizou-se que a existência, na es-
pécie, de interesse social relevante, amparável mediante ação civil pública, restaria
ainda mais evidenciada, ante a constatação de que os direitos individuais homo-
gêneos ora em exame estariam revestidos, por efeito de sua natureza mesma, de
índole eminentemente constitucional, a legitimar desse modo, a instauração, por
iniciativa do parquet, de processo coletivo destinado a viabilizar a tutela jurisdi-
cional de tais direitos.” (RE 472.489-AgR, rel. min. Celso de Mello, julgamento
em 29/4/08, Informativo 504)
II – “A garantia constitucional da ampla defesa afasta a exigência do depósito
como pressuposto de admissibilidade de recurso administrativo.” (RE 388.359,
rel. min. Marco Aurélio, julgamento em 28/3/07, DJ de 22/6/07). No mesmo
sentido: AI 398.933-AgR, rel. min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 2/4/07,
DJ de 29/6/07; AI 408.914-AgR, rel. min. Sepúlveda Pertence, julgamento em
2/4/07, DJ de 29/6/07; RE 389.383, rel. min. Marco Aurélio, julgamento em
28/3/07, DJ de 29/6/07; RE 390.513, rel. min. Marco Aurélio, julgamento em
28/3/07, DJ de 29/6/07. (Nota: A partir do julgamento do RE 388.359 e da ADI
1.976, o Plenário do STF passou a entender que é inconstitucional tanto a exi-
gência de depósito prévio quanto o arrolamento de bens e direitos como condição
de admissibilidade de recurso administrativo. No mesmo sentido: RE 389.383;
RE 390.513; AI 398.933-AgR e AI 408.914-AgR.)
294 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

III – “A exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos como


condição de admissibilidade de recurso administrativo constitui obstáculo sério
(e intransponível, para consideráveis parcelas da população) ao exercício do direi-
to de petição (CF, art. 5º, XXXIV), além de caracterizar ofensa ao princípio do
contraditório (CF, art. 5º, LV). A exigência de depósito ou arrolamento prévio
de bens e direitos pode converter-se, na prática, em determinadas situações, em
supressão do direito de recorrer, constituindo-se, assim, em nítida violação ao
princípio da proporcionalidade. Ação direta julgada procedente para declarar a
inconstitucionalidade do art. 32 da MP 1699-41 – posteriormente convertida na
Lei 10.522/2002 –, que deu nova redação ao art. 33, § 2º, do Decreto 70.235/72.”
(ADI 1.976, rel. min. Joaquim Barbosa, julgamento em 28/3/07, DJ de 18/5/07)
IV – “O direito de petição, presente em todas as Constituições brasileiras, quali-
fica-se como importante prerrogativa de caráter democrático. Trata-se de instru-
mento jurídico-constitucional posto à disposição de qualquer interessado – mes-
mo daqueles destituídos de personalidade jurídica –, com a explícita finalidade de
viabilizar a defesa, perante as instituições estatais, de direitos ou valores revestidos
tanto de natureza pessoal quanto de significação coletiva. Entidade sindical que
pede ao procurador-geral da República o ajuizamento de ação direta perante o
STF. Provocatio ad agendum. Pleito que traduz o exercício concreto do direito de
petição. Legitimidade desse comportamento.” (ADI 1.247-MC, rel. min. Celso
de Mello, julgamento em 17/8/95, DJ de 8/9/95)
Direito do trabalho
295

Constitucionalização do
trabalho e do direito do trabalho:
passado, presente ou futuro?
A Constituição Federal e suas duas
décadas de existência
Nilton Rodrigues da Paixão Júnior

As perguntas específicas devem receber respostas específicas; e


se a série de crises que temos vivido desde o início do século
XX pode nos ensinar alguma coisa, é, penso, o simples fato de
que não há padrões nem regras gerais a que subordinar os casos
específicos com algum grau de certeza.
Hannah Arendt1

Introdução

Se pudéssemos comparar a Constituição Federal a uma pessoa física,


ou natural, ela já teria, com sobra de tempo, alcançado a maioridade
civil e, portanto, a sua capacidade jurídica plena.
Mas não se trata de analisar o texto constitucional sob a ótica da perso-
nalidade jurídica, eis que o seu objeto contém a norma máxima da es-
trutura legislativa nacional. Resta, assim, indagar se os conteúdos cons-
titucionais já têm os seus contornos precisamente acabados, definitivos.
Para José Afonso da Silva2, a “constituição é algo que tem, como forma,
um complexo de normas (escritas ou costumeiras); como conteúdo, a
conduta humana motivada pelas relações sociais (econômicas, polí-
ticas, religiosas etc.); como fim, a realização dos valores que apontam
para o existir da comunidade; e, finalmente, como causa criadora e re-
criadora, o poder que emana do povo. Não pode ser compreendida

1
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004, p. 07.
2
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo:
Editora Malheiros, 2006, p-39.
296 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

e interpretada, se não se tiver em mente essa estrutura, considerada


como conexão de sentido, como é tudo aquilo que integra um conjunto
de valores”.
Na esteira dessa doutrina, pode-se seguramente afirmar que o texto
de uma constituição está permanentemente em reconstrução, sob o
bafejo do poder que advém do povo, tentando dar concretude à tábua
de valores defendida pela sociedade. Desse entendimento ressalta em
importância a atividade hermenêutica dos que buscam compreender
e aplicar os conteúdos constitucionais. Nessa empreitada, certamente,
os direitos fundamentais descortinam-se como o núcleo prioritário
para o qual as atenções devem se voltar, sob pena de vulnerabilidade
do próprio Estado Democrático de Direito. Costuma-se medir o nível
democrático de um determinado Estado pelo respeito que ele devota
aos direitos fundamentais3.
De um modo geral, os constitucionalistas denominam por ‘direitos
fundamentais’ o rol, geralmente exemplificativo, de direitos afetos à
pessoa humana (direitos humanos) reconhecidos, de forma expressa
ou não, nos textos constitucionais4.
Este artigo tratará da importância dos direitos fundamentais, consi-
derando o aspecto teórico da constitucionalização do trabalho e do
direito do trabalho, fenômeno que culmina por impor a hermenêutica
constitucional como bússola de observância obrigatória para o aplica-
dor do direito, já que faz irradiar os valores constitucionais por sobre o
tecido normativo infraconstitucional.
A dignidade da pessoa humana (síntese dos direitos fundamentais), na
qual obviamente se insere a dignidade dos trabalhadores, é o valor fun-
dante da própria noção de Estado Democrático de Direito e também
um marco histórico e social, na medida em que se estabelecem, primei-
ro, direitos para os cidadãos e, depois, deveres frente ao Estado; e para
o Estado restam, primeiro, deveres em face dos cidadãos e, em seguida,
direitos. Não há mais espaço político para estados absolutistas.
Para melhor compreensão do tema, fez-se necessária uma breve digres-
são sobre a história da formação do estado e o progressivo comprome-
timento com a defesa dos direitos humanos, que, aos poucos, foram

3
COELHO, Inocêncio Mártires, GONET BRANCO, Paulo Gustavo e MEN-
DES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília:
Editora Brasília Jurídica, 2000, p-104.
4
Por todos, VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos Fundamentais: uma leitura da juris-
prudência do STF. São Paulo: Editora Malheiros, 2006, p-36-37.
Constitucionalização do trabalho e do direito do trabalho: passado, presente ou futuro?
A Constituição Federal e suas duas décadas de existência 297

positivados num movimento conhecido por constitucionalismo, razão


pela qual se fala em “dimensões” ou “gerações” dos direitos humanos.
Numa primeira “dimensão” dos direitos humanos, estariam os direitos
fundamentais de liberdade, impositivos de limites ao Estado. O foco
foi o individualismo, com destaque para a propriedade individual, sem
qualquer preocupação com as desigualdades sociais, tanto que a liber-
dade sindical e o direito de greve não contavam com a tolerância dos
estados liberais; ao contrário, num primeiro momento, foram tidos
como ilegais e até mesmo configuradores de ilícitos penais5.
A discussão acerca da justiça social só se efetiva no contexto dos direi-
tos humanos de segunda “dimensão”, defensores de prestações posi-
tivas do Estado face às demandas sociais (direitos sociais). Passa-se à
defesa de igualdades materiais, reais, e não meramente formais diante
da lei. Nesse instante, pode-se falar em direito ao trabalho e ao la-
zer, e também em liberdades sociais (sindicalização e greve), além de
direitos fundamentais dos trabalhadores (salário-mínimo, intervalos
remunerados de repouso entre e intrajornadas etc.) 6.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece, em seu art.
23, que o trabalho é um direito de toda pessoa humana, envolvendo a
livre escolha do labor a ser empreendido, as condições dignas para o
seu desenvolvimento e, inclusive, a proteção contra o desemprego.
Conseqüência imediata da constitucionalização do trabalho, com o
qualificativo de direito fundamental social, advém o direito do tra-
balho e a sua proteção, atualmente elevado também ao status consti-
tucional, de que é emblemático exemplo o art. 7º da Constituição da
República brasileira (mais um fenômeno de constitucionalização).
Chega-se, enfim, à terceira “dimensão” dos direitos humanos, já não
mais centrada em individualidades, mas tomando como referência
as coletividades (interesses difusos ou coletivos). Os temas são mais
abrangentes: paz, autodeterminação dos povos, desenvolvimento sus-
tentado, meio ambiente, patrimônio histórico e cultural etc.7

5
COELHO, Inocêncio Mártires, GONET BRANCO, Paulo Gustavo e MEN-
DES, Gilmar Ferreira. Ob. Cit., p-109.
6
Idem, p-110.
7
Idem, p-111.
298 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

1. Pressupostos teóricos da constitucionalização do


trabalho e do direito do trabalho

1.1. A evolução do Estado e o seu diálogo com o trabalho e


o direito do trabalho. O Estado Social interventor na
ordem econômica

O Estado já vislumbrou no trabalho uma reserva titularizada pelos


escravos, para depois alçá-lo ao status do servilismo (regime feudal),
lançando-o, em seguida, no turbilhão do sistema da produção em série
(capitalismo), até chegar à sua redenção como instrumento de concre-
tização da dignidade dos trabalhadores (Estado Social).
No percurso das idéias sociais, o trabalho sempre esteve ligado a uma
noção negativa. Até mesmo no texto bíblico, ele é vislumbrado como
uma condenação, fazendo com que Adão passe a sustentar-se com o
“suor do seu rosto”, e Eva se submeta ao “trabalho” do parto. Tortura,
sofrimento, pena, condenação são conceitos que sempre gravitaram
em torno da construção semântica de labor.
Na Roma e Grécia antigas, expressiva parcela da sociedade era tratada
como coisa e não como pessoa, entre as quais os escravos compunham
o quantitativo mais expressivo. Os escravos são os responsáveis pela
produção, todavia são também os próprios meios de produção, com
natureza jurídica de propriedade móvel alienável. Nos dizeres de Ma-
ria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins8:
Na Antigüidade grega, o trabalho manual é desvalorizado por
ser feito por escravos, enquanto as pessoas da elite, desobrigadas
de se ocuparem com a própria subsistência, dedicam-se ao “ócio
digno”, que, para os gregos, significa a disponibilidade de gozar
do tempo livre e cultivar o corpo e o espírito. Não por acaso, a
palavra grega scholé, da qual deriva “escola”, significava inicial-
mente “ócio”. Para Platão, por exemplo, a finalidade das pessoas
livres é justamente a “contemplação das idéias”, na medida em
que a atividade teórica é considerada a mais digna, por represen-
tar a essência fundamental de todo ser racional.

No contexto medievo, a titularidade da propriedade era indicativa de


poder político e de prestígio social. Como a maioria não tinha acesso
à situação proprietária (vassalos ou fâmulos da posse), ela se submetia
aos caprichos dos senhores feudais, e toda sorte de abusos eram pra-

8
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filoso-
fando: introdução à filosofia. São Paulo: Editora Moderna, 2003, p-37.
Constitucionalização do trabalho e do direito do trabalho: passado, presente ou futuro?
A Constituição Federal e suas duas décadas de existência 299

ticados, cenário no qual se torna impossível sequer discutir dignidade


humana. O Estado não voltava as suas atenções para os anseios dos
trabalhadores medievais; antes, simplesmente os ignorava. Contun-
dente síntese desse estágio da história do trabalho nos faz Jaccard9:
São os camponeses que fazem viver os outros, que os alimentam
e sustentam, são eles que sofrem os mais graves tormentos, a
neve, a chuva, o furacão. Rasgam a terra com suas mãos, com
grande sacrifício e muita fome. Levam uma vida bastante rude,
pobre, mendicante e miserável. Sem essa raça de homens, não sei
verdadeiramente como os outros poderiam viver.

Para dar um basta às explorações gestacionadas no inescrupuloso sis-


tema medieval e no Estado Absolutista, o movimento revolucionário
francês de 1789 inaugura novo paradigma, ideologicamente conduzido
pela burguesia, estabelecendo limites à atuação estatal, legando-nos a
primeira dimensão dos direitos humanos, configuradora da liberdade,
entendida em seu sentido apenas formal, muito mais como direitos de
defesa oponíveis contra o Estado, como elucida Dimitri Dimoulis10:
Trata-se de direitos que permitem aos indivíduos resistir a uma
possível atuação do Estado. Nessa hipótese, E (esfera do Estado)
não deve interferir (“entrar”) em I (esfera do indivíduo), sendo
que o indivíduo pode repelir eventual interferência estatal, resis-
tindo com vários meios que o ordenamento jurídico lhe oferecer.
Estes direitos protegem a liberdade do indivíduo contra uma pos-
sível atuação do Estado e, logicamente, limitam as possibilidades
de atuação do Estado.

Nesse contexto, o valor fundante foi o individualismo, numa tentati-


va frustrada de retorno à liberdade grega clássica. Surge, então, uma
espécie de novo Deus, a autonomia privada, enaltecendo a liberdade
formal diante da lei como ética, e como política, o liberalismo. No
jurídico, prevalece a escola pandectista, responsável pela construção
dos conceitos de sujeito de direito, direito subjetivo e voluntarismo. O
social resta relegado a segundo plano.
Em 1804, surge o Código Civil de Napoleão, com o escopo de prote-
ger o cidadão das arbitrariedades antes praticadas pelo estado feudal,
sendo feito um instrumento legislativo completo (sem lacunas), claro
(de fácil interpretação) e coerente (sem antinomias). Nesse período,
pratica-se um direito silogístico. O juiz nada cria, só aplica o código.

9
JACCARD, P. História social do trabalho. Lisboa: Horizonte, 1974, p-161.
10
DIMOULIS, Dimitri e MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos funda-
mentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p-64-65.
300 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Apesar do apego ao individualismo, à noção de sujeito de direito, de


direito subjetivo e voluntarismo, convém destacar que, ao lado do
estatuto napoleônico, vigiam as constituições americana e francesa,
de indiscutível teor libertário, verdadeiros ícones na defesa dos direi-
tos fundamentais.
O tempo caminha e o progresso é ampliado, notadamente com a Revolução Indus-
trial, momento em que os trabalhadores, inclusive mulheres e crianças de pouca
idade, transformam-se em peças das máquinas recém criadas, submetidos a jor-
nadas de trabalho extenuantes, inclusive com subtração de muitas vidas. Nessa al-
tura, surgem as organizações sociais (sindicatos) exigindo do Estado intervenção
imediata no domínio econômico. O povo que exigiu distância estatal do mercado,
agora o convoca a alterar as regras mercadológicas para atingir a igualdade material,
fomentando o surgimento de uma segunda dimensão de direitos fundamentais – os
direitos sociais (direito a algo). A livre iniciativa deixa de ser um “cheque em bran-
co”, passando a ser condicionada por vários limites de ordem pública, entre os quais
se destacam a função social da propriedade, dos contratos, a dignidade da pessoa
humana e o valor social do trabalho.

Os direitos dos trabalhadores passam a receber atenção constitucional,


sob os influxos do denominado Estado do Bem-Estar Social, o que
não significa que a vida dos trabalhadores atingiu o nível de sublima-
ção. Pelo contrário – basta observar que, no atual estágio do direito do
trabalho constitucional brasileiro, ajuizar uma reclamação trabalhista
ainda na vigência do vínculo empregatício é certeza de desemprego
imediato, uma vez que não há garantia de estabilidade no emprego em
nosso ordenamento jurídico.

1.2. Constitucionalização do trabalho e do direito do trabalho:


que é isto, afinal?

A constitucionalização do trabalho e do direito do trabalho é conse-


qüência direta da normatividade da Constituição, que ocupa o centro
de toda estruturação do processo legislativo brasileiro, impondo-se
como filtro de toda possibilidade hermenêutica em âmbito infracons-
titucional. A constitucionalização de direitos não é fenômeno recente,
como ilustra a Constituição do México (1917).
Há duas concepções acerca da constitucionalização do direito priva-
do. A primeira, que vê a sua gênese na migração de institutos típicos
de subsistemas infraconstitucionais de direito privado para o texto da
Constituição (privatização do público), fenômeno muito bem repre-
sentado pelo art. 7º, o qual estabelece um expressivo rol de direitos
trabalhistas, antes previstos na legislação trabalhista, em especial a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decre-
to-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. A segunda, mais moderna,
Constitucionalização do trabalho e do direito do trabalho: passado, presente ou futuro?
A Constituição Federal e suas duas décadas de existência 301

que vislumbra a constitucionalização do direito como a migração dos


conteúdos axiológicos do texto constitucional para a hermenêutica do
direito privado (publicização do privado) permeando todo o tecido
normativo infraconstitucional.
Segundo Fábio Rodrigues Gomes11, a Constituição “[...] positivou
(juridicizou) o valor trabalho humano nos seus arts. 1º, inciso IV, 170,
caput e 193, sem contar ainda com um alentado catálogo de direitos
consagrados especificamente aos trabalhadores no seu art. 7º”.
O rol meramente exemplificativo dos direitos constitucionais dos
trabalhadores, materializado no art. 7º, está topologicamente locali-
zado no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, espe-
cificamente no Capítulo II – Dos Direitos Sociais. Isso não é uma
coincidência, significando que o trabalho e o direito do trabalho têm
inequívoco conteúdo de direito fundamental.
A inclusão de institutos, regras e princípios de direito privado no texto
constitucional faz com que a atividade do intérprete e aplicador desse
subsistema legislativo infraconstitucional (direito civil, direito empre-
sarial, direito do trabalho etc.) atue conforme a Constituição, como
elucida Eugênio Facchini Neto12:
Desta forma, o fato de o constituinte ter incluído na Carta Magna
vários princípios (mas também algumas regras) tipicamente de direito
privado, faz com que todo o direito privado, naquilo que é atingido
potencialmente por tais princípios, deva ser interpretado em confor-
midade com a Constituição.
Em outras palavras, afirma-se que a Constituição não é apenas um
programa político a ser desenvolvido pelo legislador e pela adminis-
tração, mas contém normatividade jurídica reforçada, pois suas nor-
mas são qualitativamente distintas e superiores às outras normas do
ordenamento jurídico, uma vez que incorporam o sistema de valores
essenciais à convivência social, devendo servir como parâmetro de
confronto para todo o ordenamento jurídico, além de auxiliar a este
como critério informativo e interpretativo validante.

11
GOMES, Fábio Rodrigues. “Constitucionalização do Direito do Trabalho: a
crônica de um encontro anunciado.” In: A constitucionalização do Direito: fundamen-
tos teóricos e aplicações específicas. SARMENTO, Daniel e SOUZA NETO,
Cláudio Pereira (orgs.). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p-909-910.
12
FACCHINI NETO, Eugênio. “Reflexões histórico-evolutivas sobre a consti-
tucionalização do direito privado”. In: Constituição, direitos fundamentais e direito
privado. SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). Porto Alegre: Editora Livraria
do Advogado, 2006, p-40-41.
302 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

2. Os Direitos fundamentais como essência do trabalho


e do direito do trabalho

2.1. Constitucionalismo e neoconstitucionalismo

O movimento designado como constitucionalismo tem início com o


aparecimento das primeiras constituições a partir do séc. XVIII, como
esclarece Alexandre de Moraes13:
A origem formal do constitucionalismo está ligada às Consti-
tuições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América, em
1787, após a Independência das 13 Colônias, e da França, em
1791, a partir da Revolução Francesa, apresentando dois traços
marcantes: organização do Estado e limitação do poder estatal
(primeira dimensão dos direitos humanos), por meio da previsão
de direitos e garantias fundamentais.

Como se vê, o constitucionalismo foi marcado pela limitação do poder,


opondo-se ao governo arbitrário, em que pese o seu conteúdo mos-
trar-se variável, desde as suas origens, em respeito aos vários contextos
culturais em que se forjou. A idéia de supremacia da constituição in-
tegra a própria definição de constitucionalismo. A primeira noção de
constitucionalismo está permeada dos ideários liberais.
Após a Primeira Guerra, impõe-se uma profunda alteração na con-
cepção do constitucionalismo liberal. As constituições de sintéticas14
passam a analíticas15, incluindo, nos seus textos, os direitos econômi-
cos e sociais (segunda “dimensão” dos direitos humanos). A democra-
cia liberal-econômica dá lugar à democracia social, mediante a inter-
venção do Estado na ordem econômica e social, sendo exemplos desse
fenômeno as Constituições do México, de 1917, a de Weimar, de 1919
e, no Brasil, a Constituição de 1934.
As constituições após a Segunda Guerra prosseguiram na linha das
anteriores, ampliando os conteúdos protetivos, legando-nos a deno-
minada terceira “dimensão” de direitos humanos, no âmbito dos di-
reitos fundamentais do homem, em defesa do direito à paz, ao meio

13
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Atlas, 1999,
p-33.
14
Sintética é a constituição que estabelece apenas os princípios e as normas gerais de
regência do Estado, fixando a sua organização e impondo-lhe limites, especialmente
pela técnica dos direitos e garantias fundamentais (Constituição norte-americana).
15
Analítica é a constituição que regula um amplo leque de temas, segundo o que
entende como relevante (Constituição brasileira vigente).
Constitucionalização do trabalho e do direito do trabalho: passado, presente ou futuro?
A Constituição Federal e suas duas décadas de existência 303

ambiente, à co-propriedade do patrimônio comum do gênero huma-


no, entre outras abordagens.
O termo neoconstitucionalismo tem assento hoje para indicar que a
constituição não se restringe a um parâmetro de mera orientação da
política, mas se torna efetiva, com a fiscalização de uma jurisdição cons-
titucional firme e em expansão, promovendo uma reaproximação do
direito e da moral. Esclarecedora a lição da Professora Ana Paula de
Barcellos16 sobre os contornos da expressão “neoconstitucionalismo”:
1. A expressão “neoconstitucionalismo” designa o estado do
constitucionalismo contemporâneo, que apresenta caracterís-
ticas metodológico-formais e materiais. O constitucionalismo
atual opera sobre três premissas metodológico-formais funda-
mentais (a normatividade, a superioridade e a centralidade da
Constituição) e pretende concretizá-las elaborando técnicas
jurídicas que possam ser utilizadas no dia-a-dia da aplicação
do direito. Quanto às características materiais, ao menos dois
elementos merecem nota: (I) a incorporação explícita de valores
e opções políticas nos textos constitucionais relacionados com a
dignidade humana e os direitos fundamentais; e (II) a expansão
de conflitos entre as opções normativas e filosóficas existentes
dentro do próprio sistema constitucional.

Os valores constitucionais irradiam-se por todo o tecido normativo


infraconstitucional, obrigando os operadores do direito à observância
obrigatória da hermenêutica constitucional. Os direitos fundamentais
passam a ser o núcleo mais importante do texto constitucional, como
claramente percebe Jorge Luiz Souto Maior17:
E, examinando a questão na perspectiva exclusiva do Direito
do Trabalho, os valores fundamentais deste, dentro da lógica do
Direito Social, são os de que: a) o trabalho humano não é uma
mercadoria de comércio; e b) a aplicação das normas trabalhistas
serve à melhoria progressiva e constante das condições sociais e
econômicas (de vida e de trabalho) do trabalhador.
Fato é que do ponto de vista do direito positivo, o Direito Social
é um princípio, uma regra geral de caráter normativo, que impõe
a todas as demais normas integradas aos diversos ramos do di-
reito os valores acima mencionados.

16
BARCELOS, Ana Paula. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e
Controle das Políticas Públicas. In: Leituras complementares de Direito Constitucio-
nal: direitos fundamentais. Salvador: Editora Podivm, 2007, p-64.
17
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Direito Social, Direito do Trabalho e Direitos
Humanos. In: Direitos humanos: essência do Direito do Trabalho. São Paulo: Edi-
tora LTr, 2007, p-25.
304 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Não se trata, ademais, de uma opção do intérprete. Estando


vigente um ordenamento jurídico que se pauta pela lógica do
Direito Social, qualquer interpretação que ponha sobre todos
estes valores um outro valor constitui um ato antijurídico. Mas,
não um ato antijurídico qualquer. Diante da razão histórica da
formação do direito social, a negação, em concreto, da vigência
do Direito Social (e seus valores fundamentais), já que não nos
é dado o direito de dizer que não conhecemos nossa história,
representa, sem exagero, um crime contra a humanidade.

2.2. Os direitos fundamentais como núcleo prioritário do


texto constitucional, do trabalho e do direito do trabalho

Sob as orientações teóricas do neoconstitucionalismo, o trabalho e


o direito do trabalho ganham relevo, por se adjetivarem de direi-
tos fundamentais.
Ninguém ousaria afirmar que os direitos fundamentais são meros pro-
gramas a serem observados pelo legislador, pelo administrador e pelo
juiz, pois tal despautério não encontra respaldo em nenhuma visão
doutrinária contemporânea e muito menos nos diversos tratados in-
ternacionais celebrados em âmbito de Nações Unidas. Há um con-
senso no mundo ocidental sobre a relevância e a normatividade dos
direitos fundamentais.
Nas palavras lúcidas de Jorge Luiz Souto Maior18:
Fato é que, tomando-se por base o ordenamento jurídico sob a
vigência do Direito Social, não se pode conceber que se atribua
eficácia plena aos direitos de natureza tipicamente individua-
lista (liberal) sem que os direitos sociais estejam amplamente
assegurados. Assim, se em razão das dificuldades estruturais da
ordem econômica tivéssemos que sacrificar um valor jurídico,
isto não se daria com relação aos direitos sociais, sobretudo os
direitos sociais por excelência (direito do trabalho e direito da
seguridade social), ou seja, os direitos, tipicamente, liberais, que
também se integram ao ordenamento, é que sucumbiriam aos
primeiros. Diante do desajuste econômico, não é o direito social
que perde eficácia e sim o direito liberal. Em termos mais claros:
ninguém tem direito à propriedade enquanto uma pessoa passar
fome... ou, enquanto uma criança estiver sem escola; enquanto,
mesmo com a existência de escolas, houver uma criança sem for-
mação educacional, porque foi obrigada a se dedicar ao trabalho;
enquanto pessoas morrerem nas filas dos serviços médicos; en-
quanto se mantiver a prática da utilização do trabalho em condi-

18
Idem, p-28-29.
Constitucionalização do trabalho e do direito do trabalho: passado, presente ou futuro?
A Constituição Federal e suas duas décadas de existência 305

ções análogas à de escravo; enquanto os direitos trabalhistas fo-


rem publicamente agredidos e voluntariamente descumpridos.

Decorrência imediata do reconhecimento expresso do trabalho e do


direito do trabalho como direitos fundamentais pelo texto constitu-
cional é alçar esses institutos como “topo da hierarquia das escolhas
públicas”19, necessariamente implicando em escolhas pautadas por va-
lorações morais, dificultando sobremaneira a atividade do intérprete e
aplicador do direito ao trabalho e do direito do trabalho.
Atribuir conteúdo de direito fundamental (direitos sociais – arts. 6º e
7º) ao trabalho e ao direito do trabalho, portanto condição de supre-
macia legislativa, traz conseqüências jurídicas imediatas, como elucida
Oscar Vilhena Vieira:
Esta hierarquização imposta pela prevalência dos direitos re-
conhecidos pela Constituição tem diversas conseqüências de
natureza propriamente jurídica. A primeira delas refere-se à su-
premacia dos direitos fundamentais em relação à lei. Por essa
perspectiva, a lei ordinária e outros atos normativos infraconsti-
tucionais podem ser declarados inválidos toda vez que entrarem
em choque com um direito fundamental.

E não deve prosperar a tese de que os direitos sociais não são exigí-
veis, como o são os direitos civis e políticos (prestações negativas ou
de abstenção), porque configuradores de prestações positivas, já que
potencialmente comprometedores de recursos públicos, carentes de
prévia previsão orçamentária. Esse raciocínio é falacioso, como de-
nuncia Luciana Caplan:
No caso dos direitos do trabalho, não se justificam nenhum dos
argumentos usualmente destinados a conter a efetivação dos
direitos sociais: não há ônus ao erário (exceto quando o ente
público contrata trabalhadores e trabalhadoras) mas arrecadação
sobre a folha de pagamento e, por outro lado, a legislação infra-
constitucional que os disciplina é bastante farta.
Impera, assim, o rompimento deste circuito de reação cultural
marcado por um processo ideológico, a fim de que uma lúcida
compreensão do direito do trabalho como um dos instrumentos
garantidores da dignidade humana permita a construção de uma
práxis jurídica e, em especial, uma práxis jurisdicional, comprome-
tida com o respeito pelo ser humano e com sua emancipação.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do


19

STF. São Paulo: Editora Malheiros, 2006, p-47.


306 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

3. Por uma hermenêutica concretizante da dignidade


dos trabalhadores

3.1. O Estado Democrático de Direito e a dignidade humana


como seu valor fundante

Para a exata compreensão do princípio da dignidade da pessoa hu-


mana e de seus desdobramentos (normativos e principiológicos) é
preciso ter em mente que o progresso social, conforme nos noticia a
história, sempre esteve permeado de dor e sofrimento, culminando
por exigir novo regramento de respeito a uma vida digna assegurada
a todo ser humano.
Ainda não sai da memória coletiva da humanidade o sofrimento im-
pingido aos judeus pelo terror do nazismo. O tempo passou, mas a in-
dignidade com tal episódio nunca cessará. Desde então, fez-se inadi-
ável o reconhecimento do ser humano como centro e fim do direito,
cuja dignidade redundaria em valor ético-jurídico intangível.
Kant20, em seus Fundamentos da Metafísica dos Costumes, nos legou
a lição de que o homem é um fim em si mesmo, conformando a pró-
pria noção de personalidade, segundo a qual somente o ser humano
se faz pessoa. Para ele, “o homem não é uma coisa, não é, por conse-
qüência, um objeto que possa ser tratado simplesmente como meio,
mas deve em todas as suas ações ser sempre considerado como um
fim em si”.
Quanto à dignidade, Kant21 ainda é o responsável talvez pela melhor
lição sobre o seu conteúdo. Para o filósofo, no reino dos fins (uma
de suas alegorias) tudo tem preço ou dignidade. O que é precificável
regula-se por uma ótica estritamente mercadológica, encontrando
equivalência no plano das trocas materiais, configurando as necessi-
dades humanas básicas ou mais gerais, como valores relativos, cam-
biáveis. Já o que caracteriza valores não relativos, portanto superiores
a qualquer noção de preço, resultaria em valores internos, insubsti-
tuíveis, imanentes à própria noção de humanidade, conformando o
que se reveste de dignidade, configurador da própria noção de per-
sonalidade jurídica humana.

20
KANT, Immanuel. Fundamentos da Metafísica dos Costumes, p-104. In: DA
SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros
Editora, 2008, p-37-38.
21
Idem.
Constitucionalização do trabalho e do direito do trabalho: passado, presente ou futuro?
A Constituição Federal e suas duas décadas de existência 307

A dignidade da pessoa humana foi erigida a fundamento da própria Re-


pública e do Estado Democrático de Direito (Constituição da Repúbli-
ca, art. 1º, inciso III). Fundamento é algo que funda, que dá sustentação.
Com efeito, se, por hipótese, for retirado, faz com que entre em colapso,
em ruína, tudo o que nele antes encontrava respaldo. Sem dignidade da
pessoa humana, sem Estado Democrático de Direito, sem República.
Não seria, portanto, um exagero afirmar que a dignidade da pessoa hu-
mana é a célula tronco do ordenamento jurídico brasileiro.
A noção em questão é de normogênese, o valor básico de Estado De-
mocrático de Direito, no qual – considerando o caráter normativo dos
princípios constitucionais a conter os valores fornecidos pela demo-
cracia – a elevação do ser humano ao ápice de todo o sistema como
valor supremo a servir de alicerce à ordem jurídica se caracteriza como
pressuposto básico do regime jurídico constitucional vigente.

4.2. A hermenêutica constitucional como vértice da inter-


pretação e aplicação dos direitos infraconstitucionais

Não mais se discute, doutrinariamente, se a Constituição projeta-se


ou não normativamente sobre os microssistemas legislativos ordiná-
rios de direito privado, no qual obviamente se inserem as leis traba-
lhistas, como bem enfatiza Jane Reis Gonçalves Pereira22. Embora sua
análise restrinja-se ao direito civil, esse fato não invalida o raciocínio
aqui desenvolvido:
Já não é novidade afirmar que a força normativa da Constituição
projeta-se sobre todo o ordenamento jurídico. Um dos traços
fundamentais do constitucionalismo contemporâneo é a trans-
formação de uma miríade de assuntos que eram tratados pelo
direito civil em matéria constitucional, tornando tênues as fron-
teiras entre o direito público e privado.

No direito do trabalho, a norma constitucional assume a função de mo-


dificar os institutos tradicionais, validando a norma ordinária aplicável
ao caso concreto (em especial a Consolidação das Leis do Trabalho), à
luz de seus valores e princípios. Espera-se, com isso, pautar as relações
de natureza trabalhista por parâmetros normativos substancialmen-
te mais justos, já que somente o espírito progressista e dinâmico da
Constituição pode fazer a comunicação da normativa laboral com a

22
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves Pereira. Apontamentos sobre a aplicação das
normas de direito fundamental nas relações jurídicas entre particulares. In: A nova
interpretação constitucional; ponderação, direitos fundamentais e relações privadas.
Luiz Roberto Barroso (org.). Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006, p-119-120.
308 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

realidade social da complexa sociedade em que vivemos a caminho de


hermenêutica concretizante da dignidade dos trabalhadores
A idéia é que o efeito do processo de constitucionalização do traba-
lho e do direito do trabalho implique um necessário compromisso
do aplicador do direito com a eficácia jurídica (no mínimo) e com a
efetividade social dos direitos fundamentais, quando da interpreta-
ção e definição do alcance concreto de certas previsões normativas,
bem como de institutos tradicionais do direito do trabalho, ou seja,
deve-se considerar o sentido dos direitos fundamentais como verda-
deiras linhas diretivas da hermenêutica trabalhista, que igualmente
impõe-se concretizante.
As normas constitucionais hão de superar a conotação de mera regra
hermenêutica, para se tornarem regras de comportamento, idôneas a
incidir sobre o conteúdo das relações intersubjetivas, funcionalizando-
as aos seus valores.
A Constituição é o caráter fundante de toda normativa infraconstitu-
cional, como princípio geral de todas as normas do sistema, estando
no ápice de toda a estrutura processual legislativa.
A hermenêutica constitucional é a responsável por dar unidade inter-
pretativa e de aplicação do direito, impondo-se sobre toda a herme-
nêutica jurídica, já que se atribui supremacia ao texto constitucional
sobre as normas infraconstitucionais, como bem esclarece Rodolfo
Viana Pereira23:
Por força dessa característica, a Constituição vai, então, ‘refundar’
todo o Direito, implicando uma incisão compreensiva nos limi-
tes e extensão das possibilidades significativas de todo o resto do
ordenamento. Ela passa a representar, portanto, o que aqui tem-
se denominado lócus hermenêutico: o ‘lugar’ a partir do qual há
uma conformação das possibilidades de sentido de todas as nor-
mas inferiores, não tendo como, pois, compreender, interpretar e
aplicar o Direito independentemente do padrão constitucional.

No interior da nova realidade engendrada no e pelo Estado Democrá-


tico de Direito, não cabe o apego aos velhos métodos de interpretação
e do mero confronto de textos jurídicos no plano da pura infracons-
titucionalidade.
Impõe-se o reconhecimento do papel assumido pela Constituição no
interior desse novo paradigma, como o único em que se possa cons-
truir novos caminhos para a busca da realização dos direitos e ga-

23
PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica filosófica e constitucional. Belo Horizon-
te: Editora Del Rey, 2006, p-120.
Constitucionalização do trabalho e do direito do trabalho: passado, presente ou futuro?
A Constituição Federal e suas duas décadas de existência 309

rantias fundamentais engendrada por ela. O trabalho e o direito do


trabalho têm que deixar de ser mera possibilidade, para serem efetiva
transformação da realidade dos trabalhadores enaltecendo sua digni-
dade humana.

4.3. O trabalho e o direito do trabalho como instrumentos


de concretização da dignidade dos trabalhadores

A dignidade dos trabalhadores não pode ser reduzida simplesmente


ao universo binário do trabalho e do direito do trabalho, embora essas
iniciativas sejam importantes para a concretização da valorização da
força laboral nacional.
Não se pode descuidar de que a dignidade da pessoa humana é um
valor em si mesmo, inclusive pouco importando se alguém tem ou não
um trabalho, como acertadamente conclui Ingo Wolfgang Sarlet24:
[...] no caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre
com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspec-
tos mais ou menos específicos da existência humana (integrida-
de física, intimidade, vida, propriedade etc.), mas, sim, de uma
qualidade tida para muitos – possivelmente a esmagadora maio-
ria – como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte
que a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser
habitualmente definida como constituindo o valor próprio que
identifica o ser humano como tal [...].

A Constituição Federal de 1988 não enumerou apenas o trabalho (e o


direito ao trabalho que lhe dá proteção mediata) como direito social de-
vido aos trabalhadores; ao seu lado, também colocou o lazer, numa clara
visão não reducionista da condição humana, já percebida de há muito
por Miguel Reale25, ao analisar a obra de Luigi Bagolini (Filosofia del
Lavoro), deixando registrado o alerta para que não se caia na tentação de
“deusificar” o trabalho ou colocá-lo como a própria síntese do homem:
[...] É nesse amplo contexto que Bagolini situa o assunto, mos-
trando o perigo da exaltação do trabalho em qualquer forma
imanentista de vida, com a redução trágica do lazer (otium)

24
SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: cons-
truindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: SAR-
LET, Ingo Wolfgang (Organizador). Dimensões da dignidade: ensaios de Filosofia
do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2005, p-16.
25
REALE, Miguel. “Introdução à primeira edição”. In: BAGOLINI, Luigi. O
trabalho na democracia: filosofia do trabalho. Tradução de João da Silva Passos. São
Paulo: LTr; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981, p-12.
310 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

a uma simples pausa entre dois momentos de trabalho, assim


como se deixa uma máquina parada, por certo lapso de tempo,
a fim de evitar-se o desgaste do material. O que se proclama, ao
contrário, é a necessidade de romper-se essa vinculação trágica
entre o ato de trabalhar e o ato de não trabalhar, com o reconhe-
cimento de que este tem validade em si e por si mesmo, gerando
o ‘direito de não trabalhar’[...] o trabalho e o lazer são categorias
heterogêneas, não se devendo considerar o segundo como se fos-
se mero apêndice ou corolário do primeiro.

Todavia não é demais recordar que, nos tempos atuais, apenas os abas-
tados economicamente podem dedicar-se ao ócio26, relativizando o
apego ao trabalho, o que não ocorre com a maioria dos trabalhado-
res, já que estão forçados a buscar, na venda de suas forças físicas, a
alternativa de sustento próprio e de seus familiares, do que resulta a
importância do trabalho e do direito do trabalho.
Sem trabalho, o ser humano não consegue satisfazer suas necessidades
básicas de sobrevivência, não se faz cidadão, não atinge a maioridade
social. A ausência de trabalho digno impede a realização humana ple-
na, como lucidamente nos esclarece Fábio Rodrigues Gomes27:
Deveras, quando voltamos nossos olhos para o fato de que, en-
quanto não houver a satisfação das condições sociais mínimas
(das necessidades básicas), a concessão de liberdade (de escolha
ou de exercício), por si só, não será suficiente à realização da
dignidade da pessoa humana, estamos com isso relevando a idéia
do labor, isto é, do trabalho como ‘instrumento’ essencial à sua
promoção. Pois, ainda que consideremos o Estado no seu as-
pecto provedor (de Estado do Bem-Estar Social), não podemos
colocar de lado a circunstância de que vivemos em um sistema
democrático e de livre-iniciativa, onde, “os cidadãos relacionam-
se no plano horizontal, não no plano vertical”.

Sem trabalho e a sua devida proteção (direito do trabalho), torna-se


impossível concretizar os objetivos fundamentais da República Fede-
rativa do Brasil, no sentido de construção de uma sociedade livre, justa
e solidária, com erradicação da pobreza e da marginalização e conse-
qüente redução das desigualdades sociais e regionais, como expressa-

26
Deixamos de fazer referência aos que não se dedicam ao trabalho por motivos de
saúde ou porque estão desempregados, já que eles não estão em ócio voluntário.
27
GOMES, Fábio Rodrigues. O direito fundamental ao trabalho: perspectivas histó-
rica, filosófica e dogmático-analítica. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008,
p-64. O autor constrói o seu pensamento a partir de uma leitura da visão filosófica
de Robert Alexy (em sua Teoria de los derechos fundamentales) e de Otfried Höffe
(Justiça Social. Justificação e Crítica do Estado de Bem-Estar. In: HOLLENS-
TEINER, Stephan (org.). Estado e sociedade civil no processo de reformas no Brasil e na
Alemanha. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004).
Constitucionalização do trabalho e do direito do trabalho: passado, presente ou futuro?
A Constituição Federal e suas duas décadas de existência 311

mente estabeleceu a Assembléia Nacional Constituinte na literalidade


dos incisos I e III do art. 3º do texto constitucional vigente.
O trabalho e a sua proteção devem ser concebidos da forma mais am-
pla possível, não só porque propiciam a obtenção do mínimo à sobre-
vivência da espécie, mas também pavimentam o caminho de eman-
cipação existencial e dignificação dos trabalhadores, razão pela qual
ressalta de forma inabalável a natureza jurídica de direito fundamental
caracterizadora do trabalho, fazendo-o merecedor de todas as aten-
ções estatais e privadas.

Conclusões

Não há mais como negar ao trabalho e ao direito do trabalho a qua-


lidade de exemplos inequívocos de direitos fundamentais dos traba-
lhadores, tanto obrigando o legislador à sua inafastável observância,
vedando-se retrocessos sociais na elaboração da normativa reguladora
das relações de trabalho, quanto vinculando a atuação do Judiciário,
impondo a hermenêutica constitucional como instrumento sem o
qual não se pode fazer justiça.
O direito social ao trabalho e o seu corolário o direito do trabalho
configuram mínimos que os trabalhadores devem possuir para terem
a sua dignidade assegurada, o que representa, em última análise, a con-
cretude da própria dignidade humana, axioma fundante do Estado
Democrático de Direito, noção sem a qual não se pode falar em de-
mocracia ou cidadania.
Não se pode desconstituir o trabalhador como sujeito, pulverizando-
o na noção abstrata de classe, abrindo espaço para a hipótese de um
direito exclusivamente legitimador da ideologia do mercado, sob pena
de destruição completa do princípio da dignidade da pessoa humana
esculpido no inciso III do art. 1º da Constituição da República.
Qualificar o trabalho e o direito do trabalho como direitos funda-
mentais constitui operação de resgate da dignidade dos trabalhadores,
caminho que permite uma efetiva e concreta proteção da força de tra-
balho deste Brasil.
312 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

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Direito do trabalho
315

A “Constituição Cidadã” e o poder


normativo da Justiça do Trabalho: a res-
posta do Legislativo por uma cidadania
mais consciente e a responsabilidade do
Judiciário pela efetivação da cidadania1
Gisele Santoro Trigueiro Mendes

O “Brasil (...) constitui-se em Estado democrático de direito e


tem como fundamentos: a cidadania; a dignidade da pessoa hu-
mana;” e “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.”1
(Art. 1º, caput, incisos II, III e IV da CF/88)

1. Introdução

A origem do Poder Normativo coincide com a institucionalização da


Justiça do Trabalho, remontando à Carta de 1934, cuja previsão cons-
titucional foi repetida na Carta de 1937. Todavia sua implementação
somente se deu com o Decreto-Lei nº 1.237/39, sob ambiente políti-
co ditatorial e inegável influência do corporativismo.
Ao longo de décadas, esse instituto jurídico sempre encontrou calorosos
opositores e defensores, com os debates aquecidos a partir da promul-
gação de nossa “Constituição Cidadã”, de 1988, e reaquecidos com a
reforma do Judiciário, iniciada em 1992, que resultou na EC 45/2004.
As tendências interpretativas em torno do texto aprovado para o art.
114, § 2º, da Constituição Federal oscilam entre a extinção e a preser-
vação (com algum reducionismo) do Poder Normativo. Em vista, pois,
dessa dicotomia de posições, interessa-nos incitar a reflexão sobre qual
a percepção que a sociedade brasileira tem, ou pode vir a ter, sobre
a utilização do Poder Normativo no momento político em que vive.

1
Artigo baseado na monografia apresentada à Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, em cumprimento às exigências de conclusão do Curso de Especia-
lização em Direito e Processo do Trabalho, sob a orientação do Professor Márcio
Túlio Viana.
316 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Existe de fato um descompasso, um anacronismo, entre a utilização do


Poder Normativo e o Estado democrático de direito? Ou, ao contrário,
a possibilidade de exercício da competência normativa pelos Tribunais
do Trabalho representa uma maturidade política para a consolidação
do regime democrático nacional?
Se o Poder Normativo, em sua origem, servia para dar suporte à po-
lítica de dominação e de enfraquecimento da ação sindical, hoje, o
instituto pode ser utilizado com propósito político diverso, a serviço
do Direito, em busca de efetiva justiça social.

2. O Poder Normativo da Justiça do Trabalho

Considerações gerais: aspectos conceituais e históricos

A aplicação do Poder Normativo – faculdade atribuída à Justiça do


Trabalho para estabelecer normas e condições de trabalho – dá-se nos
Dissídios Coletivos (DC), que são ações judiciais instauradas com base
no procedimento estabelecido nos arts. 856 a 875 da Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de
1º de maio de 1943. Conforme a matéria discutida, o DC pode ser de
natureza jurídica (onde se busca a interpretação de norma jurídica –
lei, convenção, acordo, sentença normativa, regulamento, costume – já
existente) ou de natureza econômica, que é onde reside a propriamen-
te dita atividade criativa de direito pela Justiça Especializada, pois,
nessa hipótese, os Tribunais do Trabalho estabelecem, por meio de
sentenças de natureza constitutiva, novas cláusulas normativas para
regular as relações individuais de trabalho dos integrantes da categoria
abrangidos por aquela ação coletiva.
A solução de conflitos coletivos de trabalho competia às Comissões
Mistas de Conciliação, instituídas pelo Decreto nº 21.396/32. Toda-
via, tendo em vista o caráter facultativo da arbitragem, tais órgãos “(...)
eram praticamente inoperantes, o que gerou movimentos no sentido
de se atribuir a solução destes conflitos à jurisdição estatal.” (HINZ,
2000, p. 51).
Constitucionalmente, a Justiça do Trabalho foi disciplinada, pela pri-
meira vez, em 1934, quando o Brasil se redemocratizou após o Go-
verno Provisório criado pela Revolução de 1930. Tratava-se de uma
justiça administrativa, vinculada e controlada pelo Ministério do Tra-
balho, Indústria e Comércio.
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do Trabalho: a resposta do Legislativo
317

No contexto da Carta de 1937, a Justiça do Trabalho ainda continuou


jungida ao Poder Executivo (art. 139), mas agora era dotada de feição
corporativa, conforme declarava em seu art. 140: “A economia da pro-
dução será organizada em corporações, e estas, como entidades repre-
sentativas das forças do trabalho nacional, colocadas sob a assistência
e a proteção do Estado, são órgãos deste e exercem funções delegadas
de poder público.” Encaixava-se, pois, como uma luva na teoria segun-
do a qual o Estado corporativo constitui-se “numa superior unidade,
dominada por uma única vontade”, composta por todas as forças do
país, controlando-as e dirigindo-as “para os fins essenciais da nação, os
quais transcendem tanto as formações dos partidos quanto as dos sin-
dicatos: estes são utilizados como órgãos indiretos da ação do Estado”.
(COSTAMAGNA apud ROMITA, 2001, p. 26).
Conquanto a economia nacional não tenha, de fato, chegado a ser
baseada em corporações, esse era o objetivo do espírito político do-
minante, próprio da fase de ditadura e marcado pela história como
Estado Novo (1937-1945). Aliás, não poderia fugir a essa concepção,
a regulação sobre a Justiça do Trabalho, estabelecida no art. 139, da
Carta de 1937, onde se declarava a greve e o lock out como recursos
anti-sociais, nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os supe-
riores interesses da produção nacional.
A referida regulação deu-se com o Decreto-Lei nº 1.237, de 1º de
maio de 1939, que organizou a Justiça do Trabalho (oficialmente
instalada em 1º de abril de 1941) e foi incorporado à CLT, aprova-
da em 1943. As normas tutelares seguiam os princípios da política
corporativista de dominação, de modo a “(...) condicionar os inte-
ressados a buscar no Estado a solução dos conflitos concorrentes” e a
expedir, minuciosamente, normas sobre as “(...) condições de traba-
lho, a fim de tornar desnecessária a ação sindical” (ROMITA, 2001,
p. 31). Daí a “(...) competência normativa dos Tribunais do Trabalho,
com o intuito de evitar o entendimento direto entre os grupos inte-
ressados” (ROMITA, 2001, p. 32).
Todavia, em termos constitucionais, o Poder Normativo foi discipli-
nado pela primeira vez quando já estava restabelecida a ordem demo-
crática, na Constituição de 1946, com “os ares liberais dos tempos que
se seguiam à derrocada do fascismo e do nazismo na Europa e ao final
do Estado Novo”, que vai de 1937 até a queda de Vargas, em 1945.
(PEREIRA, 2003, p. 14). E a matéria teve o mesmo tratamento pela
Constituição de 1967, que, quase literalmente, repetiu o texto anterior
em seu art. 134, § 1º e no art. 142, § 1º, após a Emenda de 1969. Mas
foi exatamente na “Constituição Cidadã”, a de 1988, que a matéria foi
318 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

tratada com mais prestígio pelo legislador, ao desvincular a competên-


cia normativa da prévia autorização legal.
De qualquer forma, o Poder Normativo está mesmo atrelado à própria
criação da Justiça do Trabalho, concebida como órgão do Poder Exe-
cutivo, um setor do Ministério do Trabalho, dotado de competência
para dirimir controvérsias de interesse, mediante a criação de normas,
o que, segundo Romita (2001, p. 102), era coerente com o quadro po-
lítico vigente à época: “se o ditador governava o país editando decre-
tos-leis, era muito razoável que um setor do Ministério do Trabalho
(uma parcela do Poder Executivo) exercesse esta competência editan-
do normas no julgamento de Dissídios coletivos de interesses”.
Doutrinariamente, muito já se controverteu sobre a natureza jurídica
desse poder criativo atribuído à Justiça do Trabalho – se a hipótese é
de uma atividade judicante ou de uma atividade legiferante. Atual-
mente, contudo, não existe mais muito espaço para discussões sobre o
respeito, ou não, à clássica divisão de poderes do Estado ante o Poder
Normativo, até porque a doutrina assimilou, com propriedade, a cé-
lebre afirmação de Carnelutti (1936, p. 116-117), para quem “(...) il
contratto collettivo è um ibrido, che há il corpo del contratto e l’anima
della legge; attraverso il meccanismo contrattuale gioca uma forza,
che trascende il diritto soggettivo, e si sprigiona um movimento, che
va oltre il rapporto giuridico tra le parti.” 2 Parodiando o autor italiano,
fala-se, pois, com grande acolhida na doutrina brasileira, que a senten-
ça normativa tem “corpo de sentença e alma de lei”.
Hoje, portanto, a discussão sobre a natureza jurídica do Poder Norma-
tivo deve voltar-se para o tipo de juízo a ser exercido – se meramente
arbitral ou efetivamente processual –, em função das conseqüências
práticas daí decorrentes. Conforme o caso, é possível que um dos ca-
minhos aponte para uma evolução de conceitos sobre sua natureza
jurídica e para uma nova concepção na utilização desse instituto: uma
concepção que, necessariamente, passa por considerações sobre o con-
texto da insípida organização dos trabalhadores, da relativa liberdade
sindical, da crise do sindicalismo, da precarização das relações laborais
e de seus possíveis efeitos, por um lado, de desestimular o desenvolvi-
mento da negociação coletiva, inibindo o movimento sindical, e, por
outro lado, de propagar novos direitos trabalhistas, em um país de
dimensões tão continentais quanto heterogêneo.

2
Tradução livre: “(...) o contrato coletivo é um híbrido, que tem o corpo do con-
trato e a alma da lei; mediante o mecanismo contratual desempenha uma força que
transcende o direito subjetivo e desencadeia um movimento que vai além da relação
jurídica entre as partes.”
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do Trabalho: a resposta do Legislativo
319

3. A emenda 45/2004 e o Poder Normativo

3.1. Ambiência da “Reforma do Judiciário”: o contexto


político e socioeconômico durante as discussões da
PEC nº 96/1992

O cinqüentenário da Justiça do Trabalho, em 1991, foi “festejado”,


sobretudo entre os operadores jurídicos da sociedade brasileira – legis-
ladores, juízes, procuradores, advogados –, com as preocupações vol-
tadas para diversos questionamentos e avaliações sobre a instituição, a
fim de que se pudesse chegar a uma espécie de diagnóstico e de prog-
nóstico que possibilitassem resgatar a celeridade e eficiência almejadas
ao tempo de sua instituição.
Com efeito, o trajeto percorrido em seu cinqüentenário a teria afas-
tado dos objetivos que ditaram sua criação, passando de célere para
morosa, visto que, ao resultar excessivamente congestionada, tornou-
se menos eficiente e menos apta ao desempenho reclamado por uma
cidadania cada vez mais consciente e exigente.
É certo que o legislador constituinte de 1988 tratou a Justiça Laboral
com a preocupação de prestigiá-la, adotando normas que objetivavam
minimizar sua crise estrutural: restou assegurado, por exemplo, um
Tribunal Regional do Trabalho (TRT), pelo menos, em cada Estado
da Federação e criaram-se dez novos cargos de ministros do Tribunal
Superior do Trabalho (TST), propiciando a reorganização interna da
referida Corte, a fim de funcionar com maior agilidade. Com essa
ampliação de magistrados no TST, foi possível a organização das se-
ções especializadas em Dissídios individuais e Dissídios coletivos e a
majoração do número de Turmas, passando de três para cinco.
De fato, em 50 anos, a estrutura da Justiça do Trabalho não havia
acompanhado o crescimento da população operária. Segundo o en-
tão presidente do TST, ministro Luiz José Guimarães Falcão (1991),
os dados estatísticos apontavam a proporção elevadíssima de “(...)
uma Junta de Conciliação e Julgamento para cada grupo de 125.000
brasileiros integrantes da população ativa (14 a 65 anos de idade)” e
demonstravam que “(...) de 8.086 reclamatórias ajuizadas em 1941,
saltamos para 1.208.500 em 1990”. E o problema tendia a crescer
também em virtude de suas funções constitucionais, visivelmente
acrescidas pelo legislador (art. 114 da CF), que devolveu sua antiga
competência para apreciar causas trabalhistas contra a União, as au-
320 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

tarquias federais, etc., que eram incluídas nas atribuições jurisdicionais


da Justiça Federal.
Assim, a despeito do prestígio concedido pelo legislador constituinte
de 1988 à Justiça Laboral, ainda eram apontados diversos problemas
estruturais – entre os quais a representação classista, que havia sido
mantida – e questões não-estruturais, relativas ao Direito – material e
processual – do Trabalho.
A extinção da Justiça do Trabalho passou, pois, a ser a bandeira de
alguns que acreditavam ser este o caminho mais apropriado para a
agilização dos processos trabalhistas e a redução dos custos decorren-
tes de sua então organização e estrutura, tudo em nome de uma efici-
ência maior. Mas a morosidade processual (diretamente relacionada,
entre outras causas, ao excessivo número de demandas), não era (como
não é) um “privilégio” do Judiciário Trabalhista: inegavelmente, esse
problema marca a instituição da Justiça como um todo. E, no caso da
Justiça do Trabalho, a pletora de processos era bastante atribuída aos
sucessivos planos econômicos implementados na década de 80. O Po-
der Executivo era (e talvez ainda seja) o maior “cliente” do Judiciário.
Em matéria publicada na imprensa, o ministro do TST, Dalazen
(1998, p. 1324), fazendo um diagnóstico sobre a “intolerável lentidão”
do processo trabalhista brasileiro, apontou entre os principais fatores,
os diversos pacotes econômicos, “quase sempre atropelando postula-
dos constitucionais e gerando, assim, uma vastíssima proliferação de
litígios trabalhistas” e o “número babilônico de ações”, desnecessaria-
mente repetidos, envolvendo o poder público.
É claro que o excessivo congestionamento – problema genérico de
todo o Poder Judiciário – acaba tornando também essa Justiça – a
do Trabalho – menos eficiente e não tão ágil quanto o exigido pela
necessidade social. Todavia, conquanto pareça contraditório, a própria
crise reafirmava a essencialidade de sua existência como Justiça es-
pecializada: o número de litígios trabalhistas, por si só, já autorizaria
o reconhecimento da necessidade de uma Justiça especializada para
dirimi-los. Tanto mais se o Judiciário Trabalhista solucionava número
espantoso de processos, conforme davam notícia os dados estatísticos
oficiais: a Subsecretaria de Estatística do TST, em tabela sobre a “Mo-
vimentação Processual”, de 1998, relativa às Juntas de Conciliação e
Julgamento, apontava o total de 1.958.939 processos recebidos em
âmbito nacional, dos quais 1.929.225 foram solucionados.
Quanto à pecha da morosidade, Pastore (1999, p?), economista co-
nhecido por questionar o custo do Judiciário Trabalhista, afirmava, à
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do Trabalho: a resposta do Legislativo
321

época, ser “difícil encontrar apoio para a tese de que os juízes e funcio-
nários das Juntas e Tribunais trabalham pouco”, constatando uma elo-
qüente produtividade de julgamentos: “uma média de trinta processos
por hora ou um a cada dois minutos!”
Finalmente, após tensos e longos debates, restou extinta apenas a re-
presentação classista da Justiça do Trabalho, por meio da EC 24/1999.
Arrefeceram-se os ânimos em prol da extinção pura e simples da Jus-
tiça do Trabalho. Afinal, a eliminação da Justiça do Trabalho não sig-
nificava extinguir os milhões de conflitos trabalhistas, e o custo social,
aí sim, seria imensurável para os trabalhadores. Voltaram os debates a
centrar a questão na necessidade de seu aperfeiçoamento, com altera-
ções na esfera do Direito, de ordem material e processual, na forma de
concepção e realização da entrega da prestação jurisdicional.
No contexto das discussões sobre o Direito do Trabalho, o pano de
fundo, na verdade, era (e continua sendo) a crise do capitalismo, en-
volvendo temas sobre a centralidade do trabalho e os novos modos de
produção, daí emergindo, como reflexo, a crise do Direito do Trabalho.
Em nome de sua “modernidade”, exaltam-se vozes em prol da flexi-
bilização e desregulamentação do Direito do Trabalho: em oposição
à rigidez da legislação, ao papel intervencionista e corporativista do
Estado – com a missão de tornar desnecessária a ação sindical e de
condicionar os interessados a buscar nele a solução de seus conflitos –
há que se ceder espaço para as próprias partes buscarem no entendi-
mento direto a solução de seus problemas. E a palavra de ordem passa
a ser negociação – negociação coletiva de trabalho.
Diversas questões foram discutidas no Congresso Nacional e resta-
ram introduzidas no Direito pátrio, com o objetivo de privilegiar a via
negocial, sob o argumento de se modernizar as relações de trabalho,
a exemplo das seguintes matérias: banco de horas, contratação por
tempo parcial, suspensão do contrato de trabalho para a qualificação
profissional, contrato de trabalho por tempo determinado e comissões
de conciliação prévia.
As discussões relativas à negociação coletiva, entretanto, parecem ter
atingido seu ápice com o PL nº 5.483/2001, de iniciativa do Poder
Executivo, propondo que as condições de trabalho ajustadas median-
te convenção ou acordo coletivo prevalecessem sobre as disposições
legais. Seria o fim do princípio protecionista, do princípio da norma
mais favorável ao trabalhador. Prevaleceu, todavia, a reação da socie-
dade, e o mencionado projeto restou arquivado no Senado Federal,
322 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

após ser aprovado na Câmara dos Deputados, em meio a intenso des-


gaste político daqueles que o apoiaram.
O debate em torno da extinção do Poder Normativo também está
atrelado ao tema “negociação coletiva”. Antes mesmo dessa última
Reforma do Judiciário (PEC 96/1992), o Poder Executivo, por meio
do projeto então apelidado de “Emendão”, contendo o “Programa de
Saneamento Financeiro e de Ajuste Fiscal”, já havia tentado suprimir
o § 2º do art. 114, que conferia todo o embasamento jurídico do Poder
Normativo atribuído à Justiça do Trabalho.
Baseado na argumentação de que a possibilidade de instauração do
DC por qualquer uma das partes praticamente inviabiliza a continui-
dade da negociação – já que a parte que sentir que tem mais chance
de ganhar na Justiça interrompe a fase negocial e leva à Corte Traba-
lhista o conflito para arbitramento – o que o “Emendão” propunha era
que se reservasse ao Judiciário Trabalhista apenas os julgamentos das
disputas coletivas de natureza jurídica. Retirava-se-lhe a competência
dos DC de natureza econômica: se as partes não lograssem êxito na
negociação, poderiam buscar árbitros fora da instância judicial para a
solução do conflito.
Por outro lado, mesmo durante as discussões da PEC 96/1992, para-
lelamente o governo tentou algumas reformas tópicas do Poder Judi-
ciário, entre as quais a PEC 623/98, desta vez propondo a limitação
do Poder Normativo. Conquanto o governo sustentasse a necessidade
de revisão do Poder Normativo, mantinha a competência da Justiça
do Trabalho para a arbitragem facultativa dos conflitos coletivos eco-
nômicos, a pedido conjunto das partes, reservando a possibilidade de
ajuizamento unilateral em casos de interesse público.
Essa proposição legislativa não chegou a ser formalmente discutida
no âmbito da Câmara dos Deputados, mas, afinal, seu texto se aproxi-
ma bastante da matéria que restou aprovada em decorrência da PEC
96/1992 (EC 45/2004). Da leitura comparativa entre os dois textos
– o da PEC 623/98 e o que resultou aprovado pela PEC 96/1992
(EC 45/2004) – infere-se que o primeiro era mais explícito quanto à
intenção de atribuir ao Poder Normativo a natureza jurídica de um ju-
ízo arbitral. Essa feição revela-se contundente nos §§ 1º e 4º daquela
PEC. Todavia o texto atualmente vigente enseja discussões no sentido
de não se tratar de um juízo meramente arbitral, tendo em vista que o
mútuo acordo constitui-se em uma condição da ação.
De qualquer forma, com o “Dissídio consensual” a que se chegou a
partir da Reforma do Judiciário (e que também se propunha na PEC
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do Trabalho: a resposta do Legislativo
323

623/98), estabeleceu-se uma posição intermediária entre a extinção do


Poder Normativo, proposta no “Emendão”, e a situação jurídica que
então vigia. Aliás, sob o ponto de vista do Executivo, entre o “Emen-
dão” e a PEC 623/98 ficou claramente evidenciada a alteração da pos-
tura governamental quanto ao referido instituto – de extinção para
manutenção, com algum reducionismo.
Esse antagonismo de posições sempre esteve presente entre os opera-
dores do Direito. De fato, mesmo desde sua instituição (o que equivale
há mais de meio século), o Poder Normativo atribuído à Justiça do
Trabalho encontra fortes opositores de um lado e defensores não me-
nos entusiasmados de outro lado. A crítica dos oposicionistas, em geral,
reside em seu aspecto histórico (origem em seu modelo corporativo)
e em seu fator de inibição à negociação coletiva, forma de composi-
ção direta entre as partes litigantes. Os que advogam a manutenção
do Poder Normativo sustentam que, entre os benefícios do instituto,
estariam os direitos oriundos de sentenças normativas (a exemplo de
cláusulas de proteção à maternidade, como a estabilidade provisória
da gestante) que foram elevados ao nível de legislação ordinária (e até
constitucional). Outro fator em prol da competência normativa dos
Tribunais do Trabalho estaria na precária estrutura do sindicalismo
brasileiro, com incipiente poder de barganha da maioria das categorias
profissionais frente ao segmento produtivo, sobretudo ante a crise do
capitalismo e do mundo do trabalho, em meio a um contexto de glo-
balização, com reflexos no Direito do Trabalho. É clássica a posição de
Genro (1992, p. 414) entre os defensores do instituto:
Com a extinção do Poder Normativo teremos no Brasil um mo-
vimento de categorialização das regras e, ainda, de acantonamento
da produção da regra no âmbito da empresa, e o que deveria ser
conquista global dos trabalhadores será conquista de um peque-
no grupo de trabalhadores dos pólos mais modernos da ativi-
dade econômica. (...) Retirar o (...) Poder Normativo da Justiça
do Trabalho é: distencionar a relação dos trabalhadores com o
Estado, logo, excluir o Estado de sua função diretiva (que deve
ser voltada para garantir a provisão da existência) e retirar o Es-
tado da função de promover novas condições para o exercício da
liberdade, da igualdade e da participação social; é isolar os tra-
balhadores, sem capacidade de barganha, dos conflitos das fon-
tes modernas da sociedade e promovê-los a situações de maior
desigualdade “intraclasse” e de uma “menoridade” ainda mais
profunda; é dar ao Estado uma função meramente “repressivo-
sancionatória”, teorizada pela tradição liberal, vendo o Estado
como Estado meramente “garantista”.
324 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Enfim, sempre houve muita dissidência entre aqueles que queriam


acabar com o Poder Normativo da Justiça do Trabalho e aqueles que
defendiam sua continuidade, sendo, mais uma vez, renovada a discus-
são entre os debates da Reforma do Judiciário (PEC 96/1992, quan-
do em tramitação na Câmara dos Deputados, e PEC nº 29/2000,
no Senado Federal), que resultou em dois textos: um foi enviado
à promulgação, traduzindo-se na EC 45/2004, e outro retornou à
Câmara dos Deputados.
Foram doze anos de acirradas discussões que, na verdade, não chega-
ram ao fim – nem mesmo, é claro, em relação ao texto promulgado.

3.2. A posição do Judiciário antes da Emenda 45/2004

O constituinte de 1988 acabou por tratar o Poder Normativo com


maior prestígio: agora se eliminava a vinculação de sua atuação à lei,
superando o debate de como admiti-lo quando a lei não previsse seu
exercício, conforme lembra o ministro Luciano Pereira (2003), do
TST. Esse debate era latente, tendo em vista que a lei, especificando
“as hipóteses em que as decisões nos Dissídios coletivos poderão es-
tabelecer normas e condições de trabalho” (art. 134, § 1º, da CF/67),
nunca chegou a ser editada. Excepcionalmente, todavia, a legislação
fez remissões pontuais à possibilidade de exercício do Poder Norma-
tivo: na hipótese de fixação do salário dos jornalistas (Decreto-Lei nº
972/69) e na de correção de salários, em geral, com base na produti-
vidade (Lei nº 6.708/79) e nas leis seguintes sobre fixação de salário
(PEREIRA, 2005).
De qualquer forma, segundo o ministro, mesmo nesse período, an-
tes da Constituição de 1988, a atividade normativa proliferava-se “na
vanguarda do Direito do Trabalho”, sendo que o Supremo Tribunal
Federal (STF) ora reconhecia a legitimidade de atuação do Poder
Normativo, a exemplo da estabilidade provisória para a gestante, ora
não, conforme ocorreu com a cláusula normativa sobre a estabilidade
para o acidentado (PEREIRA, 2003).
Mas foi justamente após a liberal Constituição de 1988 que o STF,
em 1996, proferiu histórica decisão (publicada em 1997), limitando o
âmbito de atuação do Poder Normativo da Justiça do Trabalho, que
não poderia atuar: a) havendo legislação vigente, ordinária ou consti-
tucional e b) havendo previsão de reserva legal específica, pois, em face
dos princípios da legalidade e da separação de Poderes, a competência
legislativa seria do Congresso Nacional e não do Poder Judiciário. As-
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do Trabalho: a resposta do Legislativo
325

sim, o Poder Normativo só poderia operar no vazio legal (GALLOT-


TI, apud MELO, 2004, snf).
Ao posicionar-se quanto ao âmbito de atuação da competência nor-
mativa quando vigente legislação ordinária ou constitucional, o mi-
nistro Gallotti partiu da premissa, expressa em seu voto, de que “não
pode a Justiça do Trabalho produzir normas ou condições contrárias à
Constituição” (nem à legislação ordinária, acrescenta-se). E não pode
mesmo. Todavia dispor de forma diversa sobre matéria que já esteja
tratada na Constituição ou na lei não significa, necessariamente, de-
cidir de forma contrária à Constituição ou à lei. Conforme princípio
basilar de Direito Laboral, a CF e a legislação ordinária garantem o
mínimo ao trabalhador. E nem poderia ser diferente, pois a melhoria
de condições de trabalho (e, em decorrência, a melhoria da condi-
ção social do trabalhador) apenas deve ter, como teto, a capacidade
econômica da empresa e a justa retribuição ao capital. Nesse sentido,
inclusive, é o art. 766 consolidado.
Não seria democrático, nem mesmo humanístico, limitar a melhoria
das condições de vida do trabalhador, impondo-se-lhe, sem qualquer
razão plausível, um nível, um patamar econômico-social, que não pu-
desse ser ultrapassado. Seria como que equiparar à “usura” a conquista
do trabalhador pela venda relativa à sua força trabalho; seria retomar a
discussão à fase pré-capitalista, sobre a licitude de ganho em função da
força de trabalho ante a máxima “comerás o pão do suor de teu rosto”
e ao pensamento de que as pessoas teriam nascido predestinadas a
serem servas ou nobres.
O princípio de que as normas jurídicas asseguram o mínimo, e não o
máximo, vem inserido, aliás, na própria Constituição Federal, quando
enumera garantias trabalhistas, após expressamente declarar, no caput
do art. 7º, que tais “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais,
além de outros que visem à melhoria de sua condição social”.
Ora, essa limitação no exercício da competência criativa tampouco se
impõe ao legislativo, sob pena de engessamento do Direito. E o fato
de não se ter essa limitação, não significa que o Poder Normativo da
Justiça do Trabalho ou a competência legislativa do Poder Legislativo
sejam ilimitados. Nesse mesmo sentido entende Melo (2004).
Por outro lado, a Constituição Federal também não é contrariada
quando o magistrado, no exercício de seu Poder Normativo, dispõe
sobre matéria com previsão de reserva legal. No caso, não há invasão
de competência porque ambos os Poderes têm atuação de forma di-
ferenciada, não implicando ofensa ao princípio da legalidade ou ao da
326 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

separação dos Poderes. O Poder Legislativo, ao dispor sobre determi-


nada matéria, o faz de forma genérica, enquanto o Judiciário, ainda
que atuando com a competência normativa, o faz de forma específica,
deliberando sobre matéria trazida pelas partes e que irá obrigar apenas
àquelas categorias envolvidas no Dissídio.
A função essencial de cada Poder não é absoluta nem a ele restrita. O
Executivo, por exemplo, legisla por meio da edição de medidas pro-
visórias e outras atividades normativas (ainda que em cumprimento
de suas funções administrativas). Já o Legislativo possui competên-
cia investigativa (ainda que decorrente da função fiscalizatória) por
meio das Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPI), e mais até: o
Senado Federal, por exemplo, tem a atribuição de processar e julgar o
presidente da República (Art. 52, inciso I, da CF).
Assim como a possibilidade de legislar via medida provisória decor-
re da necessidade prática pela natureza emergencial (conquanto nem
sempre observada) do ato editado pelo Executivo, a de legislar via
Poder Normativo decorre da “impossibilidade prática do Poder Le-
gislativo editar normas específicas (e com o dinamismo próprio das
relações econômicas) para todas as categorias de trabalhadores dos
mais variados recantos do país (com suas circunstâncias próprias e dis-
tintas).” (MARTINS FILHO, 2003, p. 323). Conforme Fava (2006,
snf), “(...) o funcionamento estanque de cada Poder, exercendo exclu-
sivamente suas atividades constitucionais ordinárias, não seria sufi-
ciente a atender as demandas sociais.” Tal não significa, todavia, que a
função delegada a outro Poder não deva ser exercida com parcimônia,
como adverte o referido autor.
Assim, mesmo havendo reserva legal sobre dado assunto, o exercício
do Poder Normativo não implica invasão de competência, com todo o
respeito pelo posicionamento do STF. É bem verdade que essa histó-
rica decisão do STF não obriga os Tribunais do Trabalho porque “pro-
ferida em caso concreto, mediante o controle difuso de constitucionalidade”,
representando o entendimento apenas da primeira Turma daquela
Corte. (MELO, 2004, snf). Contudo não deixa de ser uma linha de
orientação para os magistrados do trabalho, conforme se constata pela
jurisprudência que, vez por outra, repete fundamentação no sentido
de que a matéria já tem previsão legal para rejeitar diversas cláusulas
pleiteadas em DC.
De qualquer forma, mesmo antes desse julgamento do STF, a própria
Justiça do Trabalho acabou esvaziando sua atuação “na elaboração do
Direito Material do Trabalho nos Dissídios coletivos, com a redução
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do Trabalho: a resposta do Legislativo
327

prática do exercício do seu Poder Normativo”. (MARTINS FILHO,


2003, p. 310). É que, sob o contexto do crescente pensamento neolibe-
ral de não-intervenção estatal, em meio às discussões da reforma tra-
balhista e à sempre e atual polêmica sobre a necessidade de extinção
do Poder Normativo como forma de estímulo à negociação coletiva,
o TST aprovou a Instrução Normativa (IN) nº 04, em 14 de junho
de 1993, com a preocupação voltada exatamente para esse fim – o
fomento à negociação.
A estratégia era imprimir o maior rigor na análise das formalidades
para a instauração do Dissídio, tendo a negociação coletiva como pres-
suposto processual: não demonstrado o esgotamento da fase negocial,
ou de qualquer outro pressuposto formal estabelecido na IN 04/93,
o TST extinguia o processo sem julgamento de mérito. Assim, de 36
DCs instaurados no TST em 1994 passou-se para apenas 13 em 2002;
de 3.095 iniciados nos TRTs passou-se para somente 786 em 2002 e
de 717 Recursos Ordinários em DC passou-se para 245 em 2002. A
redução foi significativa, portanto. (MARTINS FILHO, 2003).
Mas se a IN 04/93 surtia o efeito de inibir a instauração de DC, a
jurisprudência do TST firmada em Precedentes Normativos era apon-
tada como fator de desestímulo à negociação, pois sua aplicação pelos
tribunais e pelo próprio TST implicava a generalização de condições de
trabalho sem levar em conta a especificidade de cada categoria. Assim,
em 1998, o TST cancelou 28 de seus 119 Precedentes Normativos.
Em meio a esse contexto, em junho de 2000, a Câmara dos Depu-
tados encaminhou ao Senado Federal a PEC 96/92, sobre a reforma
do Judiciário, já com a aprovação do texto hoje vigente por força da
EC 45/2004.
Entre a aprovação do texto na Câmara dos Deputados e a promulga-
ção da EC 45/2004, o Pleno do TST revogou a IN 04/93, em 20 de
março de 2003, juntamente com os dispositivos do Regimento Inter-
no dessa Corte, que correspondiam aos comandos daquela normati-
zação que norteou, por dez anos, o Processo Coletivo do Trabalho.
Segundo Martins Filho (2003, p. 311), com a ameaça de extinção do
Poder Normativo, ao revogar a IN 04/93, o TST acabou prestigiando
mais o DC (isto é, o litígio) do que a própria negociação coletiva. Mas
a grande redução no número de DC em face daquelas imposições
normativas não implicava, necessariamente, que as partes lograram
atingir a capacidade conciliatória (PEREIRA, 2003).
328 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

3.3. A posição do Judiciário pós Emenda 45/2004

Com a supressão, no texto atual, da expressão anterior que dispunha


sobre a possibilidade de “estabelecer normas e condições”, e com a
contextualização da ambiência política e socioeconômica da reforma
do Judiciário, poderia ser entendido que o Poder Normativo fora ex-
tinto. Mas, mesmo com o levantamento das discussões em torno do
assunto enquanto tramitava a PEC no Congresso, não se pode afir-
mar, categoricamente, que a intenção do legislador foi efetivamente a
de suprimir o Poder Normativo da Justiça do Trabalho.
Spies (2005, p. 300), por exemplo, transcrevendo os anais do Con-
gresso Nacional, sustenta que a “genuína interpretação teleológica”
conduz à conclusão da manutenção do Poder Normativo, enquanto
Campos (2005, p. 5) manifesta entendimento oposto, com base nos
mesmos anais: “inquestionavelmente, o legislador constituinte deriva-
do extirpou do ordenamento jurídico função judiciária que constituía
verdadeira usurpação ao Poder Legislativo.”
Portanto os anais do Congresso Nacional não permitem a constatação
inequívoca da intenção do legislador nesse ou naquele sentido e sim a
certeza de que a divergência de posições não restou superada. Como
Casa eminentemente política, o consenso a que ali se chegou foi de
ordem redacional, exatamente porque tanto os que defendiam a pre-
servação (ainda que um pouco mais limitada) como os que combatiam
a competência normativa da Justiça Laboral vislumbraram, cada qual,
que suas posições, conquanto antagônicas, restaram escritas no texto
aprovado para o § 2º do art. 114 da CF.
Nem mesmo com a grande maioria de votos pela manutenção da ex-
pressão “comum acordo”, quando da apuração do respectivo Destaque
para Votação em Separado (DVS), se infere que prevaleceu a defesa
da extinção ou a defesa da manutenção do Poder Normativo. É que os
votos pela manutenção da referida expressão tanto foram defendidos
por aqueles que entendiam que assim estavam preservando o Poder
Normativo como por aqueles que entendiam assim estar combatendo
o Poder Normativo, a exemplo dos pronunciamentos, entre os primei-
ros, do deputado Mendes Ribeiro – “(...) o PMDB mantém o texto da
relatora, porque entende que é um avanço termos esse Poder Norma-
tivo que está no texto” (apud Spies, 2005, p. 300) – e, entre os segun-
dos, do deputado Ricardo Berzoini – “O Partido dos Trabalhadores
vota pela manutenção da expressão, combatendo o Poder Normativo
da Justiça do Trabalho, que hoje é um elemento de obstáculo à livre
negociação coletiva” (apud Spies, 2005, p. 300).
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do Trabalho: a resposta do Legislativo
329

Não sendo segura a interpretação histórica da nova norma apontando


em uma única direção, as tendências interpretativas em torno do Poder
Normativo, com base no referido texto, oscilam entre sua extinção (de
fato ou de direito) e sua preservação (com algum reducionismo). Dessa
dicotomia – extinção x preservação do Poder Normativo – emergem
diversos questionamentos circundantes que, aliás, antes passam pela
reflexão sobre a própria constitucionalidade da nova norma, em face
da inafastabilidade de acesso ao Judiciário (art. 5º, XXXV, da CF) e
da nova exigência no sentido do “comum acordo” para a instauração
da instância.
Com o devido respeito pelos que entendem de forma contrária, ainda
que haja o impasse, não se pode dizer que é ilegítima a exigência do
“mútuo acordo” para que o Judiciário seja acionado. Com propriedade,
Fava (2006, p. 9) anota que, erroneamente, se instituiu uma interpre-
tação “de existir um direito ao resultado positivo da negociação (...).
Daí imaginar-se que o direito de acesso ao Judiciário (direito de ação),
no plano do Dissídio coletivo, corresponderia a um direito material de
obter o resultado afirmativo da negociação”.
Transportando a discussão para o cível, imagina-se, por exemplo, uma
situação entre um pretenso inquilino e um proprietário de um imóvel,
ambos divergindo sobre o preço da locação. Não há o direito de que o
contrato seja firmado. Nem por isso pode-se dizer que o fato de eles
não terem o direito de ação – para que o Judiciário fixe o valor do
contrato – implique ofensa ao princípio da inafastabilidade de acesso
ao Judiciário. De qualquer forma, a questão será decidida pelo STF,
em face das Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade interpostas
por várias confederações.
Enquanto isso, os demais órgãos do Judiciário já começam a ex-
perimentar a nova norma. O TST pronunciou-se sobre a questão,
pela primeira vez, no processo TST-DC-150085/2005, firmando o
entendimento de que o “comum acordo” pode ser tácito. No âmbito
dos TRTs, o entendimento da 2ª Região (São Paulo), por exemplo,
tem sido unânime no sentido da possibilidade de ajuizamento uni-
lateral do Dissídio e da “facultatividade da condição” de “comum
acordo” para a instauração da instância. As decisões proferidas pela
3ª Região (Belo Horizonte) também vêm se firmando nesse mesmo
sentido, mas não têm sempre prevalecido porque os posicionamen-
tos ainda não são unânimes.
A interpretação da 2ª Região e de parte da 3ª Região tem sido mais
elástica do que a proferida pelo TST, pois vem admitindo o DC mes-
330 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

mo quando a hipótese não é apenas de “concordância tácita”, mas de


“discordância expressa, que vem sendo manifestada desde a negocia-
ção perante a DRT, com registro formal em ata” (CAMPOS, 2005,
p. 6). No entanto esse não foi o contexto fático que conduziu o jul-
gamento do DC da Casa da Moeda. Ali, o TST firmou o entendi-
mento jurídico no sentido de ser possível a concordância tácita para
a instauração da instância porque as premissas fáticas foram mesmo
nesse sentido: na delegacia, foi declarado que as propostas estavam
sendo retiradas para aguardar o Dissídio e já na instância judicial foi
declarado que o processo se encontrava devidamente formalizado nos
termos da nova legislação. Somente após frustradas as tentativas de
conciliação, é que a suscitada quis recuar, tendo o TST entendido que
a suscitada não poderia mais voltar atrás. Todavia, nos processos que
motivaram aquelas decisões do 2º Regional, a discordância com a ins-
tauração do Dissídio vem desde a recusa em negociar. Esse fato foi até
usado contra a suscitada, porém mais como reforço de fundamentação,
uma vez que o Dissídio foi admitido com base em tese jurídica que
independe de premissas fáticas – as imputadas inconstitucionalidade
e ilicitude da condição (tida como faculdade) “de comum acordo” para
o ajuizamento do Dissídio.
Caso venha a se consolidar a tese de o mútuo consentimento tratar-se
de mera faculdade, em vez de exigência para a instauração da instân-
cia, a EC 45/2004 nada terá alterado em termos da competência nor-
mativa da Justiça do Trabalho. Em homenagem aos princípios pecu-
liares que norteiam o processo trabalhista, o “comum acordo” pode até
não ser prévio, ou não significar petição conjunta, ou caracterizar-se
de forma tácita (a fim de evitar que se brinque com a instância judi-
cial, alegando-se a discordância no “apagar das luzes”). Mas daí não se
pode dar uma interpretação tão elástica a ponto de prosseguir-se no
feito, mesmo com a parte, oportunamente, expressando discordância.
Se é possível que o consentimento para a instauração da instância seja
tácito, a facultatividade que se pode daí erigir deve limitar-se à possi-
bilidade de peticionamento individual. Ir além dessa ilação, transfor-
ma em palavras inúteis a expressão “de comum acordo”, pois transmu-
da em facultativa a natureza condicional dessa exigência, retomando a
situação ao estado anterior à EC 45/2004.
Se não se pode dizer, categoricamente, que a vontade do legislador foi
a de, pura e simplesmente, extinguir o Poder Normativo, também não
se pode afirmar que o legislador, após mais de doze anos de debate,
promoveu a alteração de um texto (constitucional) para nada mudar.
Certamente alguma mudança foi pretendida. Resta ao Judiciário efe-
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do Trabalho: a resposta do Legislativo
331

tivar essa pretensão e, manifestando o anseio da sociedade, imprimir a


medida dessa mudança.

3.4. Da possibilidade de uma renovada forma de utilização do


Poder Normativo

No questionamento sobre a nova natureza jurídica do Poder Norma-


tivo – se juízo arbitral ou processo jurisdicional – é que pode residir o
“pulo do gato”, com a possibilidade de o Judiciário vir a atender seus
jurisdicionados de forma mais efetiva: o juízo arbitral não comporta
recursos, e o laudo arbitral é considerado título executivo, podendo ser
questionado judicialmente apenas nas hipóteses de vício ou de nuli-
dade da arbitragem. Essa é a conseqüência prática mais importante
que decorre da interpretação de o procedimento de DC, após a EC
45/2004, possuir a natureza jurídica de um juízo arbitral. É aqui, por-
tanto, que poderá surgir a mudança mais significativa na atuação da
Justiça do Trabalho, após a EC 45/2004, relativamente ao DC.
Das discussões no decorrer da tramitação da PEC 96/92, apelidada
de Reforma do Judiciário, e do contexto político e socioeconômico
que, à época, ambientava o processo legislativo dessa proposição (v.
item 3.1), não dá para afirmar, categoricamente, que a idéia da atuação
arbitral foi afastada e mantida a processualização do DC. O que de
fato se verifica é que, do ponto de vista governamental, houve mesmo
uma alteração de postura entre o que se propunha inicialmente com
o “Emendão” – a extinção do Poder Normativo – e, posteriormente,
com a PEC 623/98 – a redução do instituto, desta feita com a clara
utilização do juízo arbitral.
Com efeito: o § 1º do art. 114, proposto pela PEC 623/98, era explí-
cito no sentido de que “os conflitos coletivos, a pedido conjunto das
partes, poderão ser submetidos à arbitragem, inclusive da Justiça do
Trabalho”; o § 2º mantinha a expressão “podendo a Justiça do Traba-
lho, em caráter excepcional, estabelecer normas e condições” e o § 4º
explicitava que “No exercício da competência normativa prevista no
§ 2º deste artigo, a Justiça do Trabalho limitar-se-á, nas hipóteses de
cláusulas econômicas, a decidir entre duas propostas finais das partes
ou no intervalo entre ambas.”
Mas a idéia do juízo arbitral, contida na PEC 623/98, também está
inserida no texto aprovado pela PEC 96/1992 (EC 45/2004), con-
quanto não mais de forma tão explícita e contundente. É verdade que
o arquivamento da PEC 623/98 poderia até levar a um entendimento
332 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

de que, se esse texto não foi o aprovado, então, historicamente, o que


se pretendeu foi mesmo permanecer com a processualização do DC.
Assim, o mútuo acordo para a instauração da instância seria uma con-
dição de ação, não havendo que se falar em juízo arbitral.
Contudo, rigorosamente, não se pode dizer que aquele texto (PEC
623/98) foi preterido (apenas prejudicado), pois sequer foi formal-
mente discutido: a proposição ficou efetivamente “parada”, apensa à
PEC 346/96, juntamente com a PEC 410/96 e a PEC 28/99, que se
referiam à reformas estruturais e organizacionais da Justiça do Traba-
lho (extinção dos TRTs, extinção do TST, ampliação da representação
classista) e não propriamente à reforma funcional, como é o caso da
competência normativa. Tecnicamente, o correto seria a tramitação
conjunta da PEC 623/98 com a PEC 96/92, ou a tramitação conjunta
de todas essas proposições citadas, uma vez que a PEC 96/92, além da
reforma funcional, também tratava de mudanças estruturais e organi-
zacionais da Justiça do Trabalho. Não havia qualquer óbice regimental
para essas apensações (tanto é que, em 30/3/99, a requerimento do
deputado Ricardo Barros, foi deferida a apensação da PEC 127/95;
PEC 215/95; PEC 368/96 e PEC 500/97 à PEC 96/92). Mas, seja
por razões políticas, seja pelo próprio congestionamento do processo
legislativo, é comum a tramitação separada de proposições legislativas
em condições regimentais de estarem apensadas.
Assim, a análise do contexto na tramitação do processo legislativo não
autoriza concluir que a idéia do juízo arbitral foi superada para man-
ter-se a processualização do DC. Ao contrário, até serve para orientar
as interpretações em torno do texto atualmente vigente, objeto das
presentes reflexões. Afinal, a expressa opção pelo juízo arbitral no tex-
to da PEC 623/98 revela, de forma mais contundente, que esta foi a
feição que se pretendeu imprimir ao instituto, tendo em vista que este
representava mesmo (como ainda representa) um dos pensamentos
entre os operadores do Direito, a exemplo do manifestado pelo Fórum
Nacional do Trabalho (FNT), instituído com o objetivo de imple-
mentar a reforma sindical e trabalhista. Claramente, o relatório final
da Comissão de Sistematização, aprovado na Plenária de 16/3/2004,
na parte relativa ao Sistema de Composição de Conflitos, corrobora o
recrudescimento dessa opção: “Nos conflitos de interesse, a Justiça do
Trabalho poderá atuar como árbitro público, mediante requerimento
conjunto das partes e de acordo com os princípios gerais da arbitra-
gem e de regulamentação específica.” (FNT, 2004).
A manutenção do Poder Normativo da Justiça do Trabalho não im-
plica, necessariamente, a manutenção da processualização do DC.
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do Trabalho: a resposta do Legislativo
333

Süssekind (2005, p. 30) leciona que “tanto o laudo arbitral como a


sentença que resolvem um Dissídio coletivo não são declaratórios de
uma situação jurídica pretérita, para afirmá-la ou negá-la, mas cons-
titutivos, instituidores de direitos e obrigações.” Ruprecht (1995, p.
941) também assevera que “É comum que o laudo arbitral interprete
(jus dicendi) e crie (jus dandi)”, portanto o juízo arbitral também tem
competência normativa.
E nem toda arbitragem é do tipo que se vincula às “ofertas finais”. Nos
Estados Unidos, por exemplo, que é um dos berços da arbitragem vo-
luntária, Nascimento, citado por Teixeira Filho (2003, p. 1220-1221),
constata, além dessa modalidade, a forma “convencional” (a preferida
dos árbitros, porque têm plena liberdade para resolver as questões, tirar
médias ou impor outras situações); a “arbitragem por pacote” (ou packa-
ge, onde a decisão do árbitro não poderá ser sobre algumas pretensões
do sindicato e algumas do empregador, mas o pacote total das ofertas
de um ou o pacote global de outro) e a “med-arb, que é a arbitragem na
qual o árbitro pode atuar como mediador”. Se o que se pretende é fo-
mentar a utilização da arbitragem voluntária, é um contra-senso insistir
na utilização apenas da modalidade “ofertas finais”. De fato, “tal moda-
lidade torna o instituto inviável, já que as partes normalmente apresen-
tam propostas díspares e o árbitro não tem condições de equacionar o
conflito de maneira justa.” (PACHECO, 2003, p. 18).
No mesmo sentido, com propriedade, Teixeira Filho (2003) chama a
atenção para o fato de que a modalidade final offer de arbitragem está
incorporada ao nosso direito positivo, a exemplo da Lei dos Portuários
(Lei nº 8.630/93, art. 23, § 1º) e da Lei sobre participação nos lucros
ou resultados (Lei nº 10.101, de 19/12/2000, art. 4º). Mas “a adoção
dessa modalidade de arbitragem tornou o instituto natimorto. (...) Se
o propósito da norma foi o de abortar definitivamente a via arbitral,
podemos dizer que seu intento será – se já não foi – plenamente atin-
gido.” (TEIXEIRA FILHO, 2003, p. 1221).
Ora, não é propriamente o Poder Normativo que inviabiliza a nego-
ciação e que enfraquece o sindicalismo. Esse efeito está muito mais li-
gado diretamente à possibilidade de o Estado ser acionado por apenas
uma das partes, pela mais fraca, com menos poder de barganha. Sem
condições de obter autonomamente um resultado favorável com a ne-
gociação, a parte solicita a intervenção do terceiro (no caso, o Estado)
para a solução do conflito. Era essa a situação que prevalecia antes da
EC 45/2004. Mas, com a necessidade do mútuo consentimento para
a instauração da instância, a situação é diversa, pois as partes só irão
334 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

aquiescer em submeter o conflito ao Tribunal quando perceberem que


há o equilíbrio de forças.
Mesmo com essa interpretação em prol da manutenção do Poder
Normativo na atuação da Justiça do Trabalho como um juízo arbi-
tral, ainda assim, as categorias que não possuem um sindicato forte –
quase todas neste Brasil de muitos brasis, para usar a expressão de
Pereira (2000, p. 11) – ficarão à margem da criação de novos direitos
e, portanto, de melhorias de condições sociais. Assim, se é inevitável a
limitação do Poder Normativo (pelo reducionismo em sua utilização,
dirigido às partes), resta aos operadores do direito – sobretudo aos
magistrados – valorizarem a utilização da nova norma que impõe o
“comum acordo”, a fim de que os atores sociais possam se prevalecer
das vantagens na utilização da arbitragem institucional.
Afinal, no Brasil, a arbitragem voluntária, privada, não passa de mera
possibilidade prevista em lei pelas seguintes razões: a) “não há ainda
especialistas reconhecidos no assunto”; b) existe uma desconfiança que
decorre da corrupção, pois “as partes entregam sua sorte a uma pessoa
e o conflito a ser arbitrado ocorre entre partes economicamente desi-
guais”, c) o elevado custo desse processo, pois “a maioria dos sindicatos
brasileiros não tem condições e estrutura para suportar as despesas
decorrentes” (MELO, 2002, snf). O entendimento de que o DC, após
a EC 45/2004, resolve-se por meio do juízo arbitral no âmbito oficial,
público, terá o benefício de vencer o óbice cultural na utilização desse
instituto, de superar as questões relativas à confiabilidade das decisões
e ao custo do procedimento, e de desprocessualizar a forma de com-
posição dos conflitos.
Teixeira Filho (2003, p. 1222-1223) noticia que o anteprojeto de Re-
lações Coletivas de Trabalho, concebido pela Comissão de Moderni-
zação da Legislação de Trabalho, “admite tanto a eleição do juiz do
trabalho como árbitro quanto a conversão do procedimento judicial
em arbitral. Em ambos os casos são claramente afastadas as regras
processuais, pertinentes ao Dissídio coletivo.” E defende:
À eqüidistância do magistrado aglutinam-se o adequado proce-
dimento da arbitragem, a agilidade de resposta, a gratuidade da
via e a desprocessualização do conflito. (...). A participação do
magistrado, convertido o processo em procedimento arbitral, em
muito contribuiria para alavancar a prática da arbitragem, apla-
car desconfianças que hoje pesam sobre o instituto, concorrer
para um realinhamento da cultura negocial dos atores sociais e
propagar a assimilação espontânea da arbitragem privada.
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do Trabalho: a resposta do Legislativo
335

A esses argumentos podem ser acrescentados os aspectos positivos


inerentes ao Poder Normativo. Afinal, como já se disse, este não é
incompatível com o juízo arbitral. Resta saber a medida que os magis-
trados darão ao fazer uso dessa prerrogativa que não lhes foi retirada
pela EC 45/2004. Antes, a Constituição exigia que, no exercício do
Poder Normativo, fossem “respeitadas as disposições convencionais e
legais mínimas de proteção ao trabalho”. Com a EC 45/2004, essa
exigência ficou assim redigida: “respeitadas as disposições mínimas
legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas ante-
riormente.”
Para Teixeira Filho (2005, p. 205-206), “A redação dessa norma não
difere, substancialmente, da anterior. Desse modo, no exercício do seu
Poder Normativo, a Justiça do Trabalho deverá respeitar não só as
condições mínimas de proteção ao trabalho, previstas em lei, mas as
normas provenientes de acordo ou convenção coletiva de trabalho”.
No entanto Fava (2005, p. 289) sustenta ser “Impossível, (...) sem qual-
quer preexistência de cláusulas convencionais, a invenção por parte dos
tribunais trabalhistas”. Em face do advérbio “anteriormente” inserido
na norma, argumenta que “Ao decidir o Dissídio, o Tribunal terá como
piso a garantia legal e como teto as condições anteriormente pactuadas”.
(FAVA, 2006, p. 12). Contudo o vocábulo não tem essa força preten-
dida por Fava, pois, mesmo que não estivesse expresso, o dispositivo
constitucional determina que as condições a serem respeitadas sejam as
(já) “convencionadas”. É verdade que se pode entender que as cláusulas
pactuadas constituem um teto em virtude do isolamento da expressão
“disposições mínimas legais” e do deslocamento posterior da frase “bem
como as convencionadas anteriormente”. Ocorre que essa interpretação,
conquanto possível sob o ponto de vista da letra da lei, talvez não seja
a preferível, politicamente, nem a mais adequada sob o aspecto teleo-
lógico. Se a jurisprudência passar a considerar a cláusula preexistente
como teto (e a premissa fática que decorre daí é a sua não-incorporação
ao contrato individual), esse entendimento poderá vir a dificultar futu-
336 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ras negociações3, quando o que se pretende é justamente fomentá-las.


Afinal, nessa linha de interpretação, enquanto as cláusulas negociadas
anteriormente (e não mais vigentes) só possam ser revistas para piorar
situação que já vigeu entre as partes, as fixadas por sentença normativa
não estão condicionadas a esse limite (em que pese o entendimento em
contrário de Fava, conforme acima exposto).
A leitura de Vargas e Fraga (2005, p. 339), quanto à imposição de
que sejam respeitadas as normas “convencionadas anteriormente” é a
de que o Poder Normativo “se limitará às chamadas ‘cláusulas no-
vas’, uma vez que, em relação às cláusulas já existentes, estas necessa-
riamente deverão ser respeitadas como disposições mínimas”, sendo
proibida a reforma prejudicial ao trabalhador. Mais favorável ainda
é a interpretação do ministro Luciano Pereira, do TST: “conceder o
que está na lei não é função da sentença normativa. Se devo respeitar
as disposições legais mínimas, posso fixar direito superior ao que está
previsto em lei, ainda que sem prévio ajuste em norma coletiva ante-
rior. (...) A lei, de regra, é piso e não teto para o exercício do Poder
Normativo.” (PEREIRA, 2005, p. 249-255).
Assim, a doutrina e a jurisprudência ainda oscilam, pois a norma foi
recém-experimentada. Mas é preocupante o tipo de entendimento que
caminha para a tendência “reducionista” (do princípio protetor), a ten-
dência pela política de desregulamentação e de flexibilização, a tendên-
cia para o “fechar as portas” em um caminho contrário à política inclusi-
va que tem (ou tinha) no Direito do Trabalho a “porta de entrada”.
Se o DC há de ser interposto pela vontade de ambas as partes, porque
não chegaram a um acordo, e não estando sob a vigência de qualquer
disposição convencionada, não há razão para limitar a fonte criativa

3
O efeito que se vislumbra é semelhante ao que ocorreu quando da revisão do Enun-
ciado 41, do TST, que passou a ser tratado na forma do Enunciado 330: durante
quase duas décadas prevaleceu na jurisprudência (Enunciado 41) o entendimento
de que a discriminação das verbas só produziria efeito liberatório quanto à importância
paga ao empregado, não eximindo o empregador de pagar possíveis diferenças. Mas,
com a intenção de restringir o acesso ao judiciário trabalhista, a fim de minimizar
o congestionamento desta Justiça especializada, às voltas com sobrecarga de pro-
cessos, o TST firmou o entendimento no sentido da eficácia liberatória da quitação
passada pelo empregado assistido por seu sindicato. A conseqüência imediata dessa
“(r)evolução” (ou involução) jurisprudencial foi a recusa dos sindicatos em presta-
rem, quando da rescisão do contrato, assistência aos seus representados, a fim de
não correrem o risco de prejudicá-los. A situação foi restabelecida após a corrida
às Delegacias Regionais do Trabalho e ao próprio Judiciário, que levou o TST a
“explicitar” o Enunciado 330. Afinal, em consonância com os princípios jurídicos
que informam um Estado Democrático de Direito, um recibo só pode mesmo valer por
aquilo que está escrito, e nunca implicar quitação além do efetivo recebimento.
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do Trabalho: a resposta do Legislativo
337

do Direito. E isso não significa que se esteja desvalorizando a fonte


autônoma de direito, até porque as circunstâncias mudam: as premis-
sas fáticas – a capacidade econômica da empresa e a justa retribuição
ao capital – em que as cláusulas foram pactuadas podem ser bem dife-
rentes daquelas da época do DC.
Não podem ser olvidadas as transformações por que passa o Direito
em uma sociedade pós-industrial, com os novos modos de produção,
a crise do sindicalismo, a onda flexibilizadora e desregulamentadora.
Daí porque devem ser evitadas interpretações que tendem a estabelecer
um teto para as conquistas do trabalhador, a inibir as formas criativas
de melhorias de suas condições sociais ou a estabelecer a prevalência,
a qualquer custo, das normas negociadas sobre qualquer disposição –
legal ou normativa. Já se tentou a prevalência delas sobre a lei – PL nº
5.483/2001 (v. item 3.1), agora seria sobre a atividade do Judiciário.
Plantada a semente, não é difícil imaginar outras disposições legisla-
tivas ou interpretações jurídicas tendentes a “desconstruir” o Direito,
em prol da tendência à flexibilização, infirmando-se o princípio tute-
lar, o princípio da norma mais favorável ao trabalhador... Felizmente,
jurisprudências e doutrinas apontam que esse “desconstruir” ainda se
trata apenas de uma tendência.
Enfim, o papel do intérprete será de fundamental importância para
dar o tom das mudanças orquestradas pelo legislador, por meio da EC
45/2004. Parafraseando o professor Viana (2005), “O Direito não é
obra apenas do legislador, nem uma simples expressão de sua vontade.
Nós também o construímos – ou desconstruímos – em nossas vidas
diárias. E isso nos faz co-responsáveis por ele.”

4. O Judiciário como instrumento de efetivação da cidadania

Entre os “impactos da Constituição” de 1988, inegavelmente a cons-


cientização do direito à cidadania foi um dos primeiros, quiçá pela
constitucionalização de direitos sociais dos trabalhadores. Em um se-
gundo momento, até como conseqüência desse significativo impac-
to inicial, tivemos uma maior participação da sociedade nas grandes
questões nacionais, exigindo reformas que se impunham, em bases de-
mocráticas e concepções pluralistas, para redesenhar e redefinir nosso
Estado de Direito.
No âmbito da Justiça do Trabalho, extinguiu-se a representação clas-
sista, revogou-se a previsão constitucional de, necessariamente, haver
um Tribunal Regional em cada estado; discutiu-se a própria extinção
338 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

dessa Justiça como esfera especializada, preferindo-se, ao invés, am-


pliar, significativamente, a competência material dessa Justiça. Final-
mente, promoveu-se a tão discutida alteração do Poder Normativo.
Foram muitas as respostas do Legislativo por uma cidadania cada vez
mais consciente e exigente.
Nenhuma reforma no ordenamento jurídico-formal, todavia, será su-
ficiente para transformar a utopia do direito em realidade se o Judici-
ário não assumir sua responsabilidade social como instrumento dessa
efetivação de justiça. Decisões que interpretam as novas disposições
sobre o Poder Normativo (EC 45/2004) de forma a transformá-las
em meras alterações estilísticas, de cunho redacional (v. item 3.3), con-
trariam essa missão do Poder Judiciário e seu papel como um dos
pilares fundamentais da Democracia.
Por outro lado, a possibilidade de a competência normativa ainda ser
exercida considera que o Estado brasileiro tenha chegado a uma nova
(ou renovada) forma de uso do Poder Normativo – com a utilização
de uma arbitragem voluntária institucional –, mais em conformidade
com as aspirações políticas nacionais de maior afirmação do Estado
Democrático de Direito. Em meio a tantos “gritos” da sociedade por
reformas processuais que diminuam a possibilidade recursal e as inter-
mináveis procrastinações (sem, contudo, fechar o acesso ao Judiciário),
agora compete ao Poder Judiciário (e não ao Legislativo) a respon-
sabilidade social pela efetivação da desprocessualização do DC e por
disseminar a cultura da utilização do juízo arbitral, público, tornando
sua implementação uma realidade mais próxima.
Dotado dessa nova feição, e irremediavelmente atrelado ao Poder Judi-
ciário, enquanto não se implementar uma verdadeira reforma sindical,
o Poder Normativo ainda pode ser utilizado como forma de melhoria
das condições de trabalho, de efetividade de justiça, mantendo coerência
com a teleologia do Direito e da Justiça do Trabalho como ramos espe-
cializados. Afinal, a extinção do Poder Normativo não implicará o desa-
parecimento dos conflitos coletivos. Estes tendem a desaparecer com a
democratização das relações de trabalho, com a eliminação dos vícios do
autoritarismo e das marcas da escravidão, ainda tão presentes nos dias
de hoje. A conflituosidade e o acúmulo de processos será sempre dire-
tamente proporcional às desigualdades e injustiças sociais. E a supres-
são do Poder Normativo tenderá a acentuar esse problema, imprimindo
aos trabalhadores “maior desigualdade ‘intra-classe’” e uma situação de
“‘menoridade’ ainda mais profunda” (GENRO, 1992, p. 414).
A “Constituição Cidadã” e o Poder Normativo da Justiça do Trabalho: a resposta do Legislativo
339

A simples eliminação do Poder Normativo também não aperfeiço-


ará o desempenho do movimento sindical. Ao contrário, na medida
em que fragiliza ainda mais as categorias profissionais, em face da
tendência à precarização das relações de trabalho, inviabiliza (quando
menos, retarda) a capacidade de organização e, por conseqüência, o
fortalecimento sindical.
Com pertinência, Viana (2004, p. 228) leciona que “a principal razão
da fragilidade do movimento sindical não é a ‘herança de Vargas’, mas
a nova forma de acumulação capitalista. É a estrutura, bem mais que a
circunstância.” E explica: o conteúdo das negociações, ante os efeitos
dos novos modelos de produção, semeiam a “cooptação” e o “medo”,
oferecendo ao sindicato um “espaço residual de manobra, a possibili-
dade de negociar com os governos e as grandes corporações o próprio
processo de precarização, jogando com a perspectiva teórica de redu-
zi-la, mas ajudando na prática a legitimá-la” (Viana, 2004, p. 227).
É o (mau) uso, a forma com que cada Poder utiliza a função que lhe
foi “delegada” para um exercício de forma excepcional, que aponta para
uma situação arbitrária, ditatorial, antidemocrátrica. Afinal, é o próprio
professor Romita (2001, p. 19-20) que, a despeito de advogar a extinção
do Poder Normativo, leciona, prefaciando obra de sua autoria:
(...) a valoração axiológica de certos institutos não deve ser con-
fundida com a afirmação de que, por ter sido consagrado pelo
ordenamento corporativo, determinado instituto tem “origem”
fascista. O fascismo não ‘inventou’ o direito. O ordenamento
fascista fez uso político de certos institutos, de modo a afeiçoá-
los a seus propósitos políticos. Por tal motivo, ao ser criticada a
influência da normatividade italiana sobre o direito positivo bra-
sileiro, leva-se em conta tal influência perniciosa. É o uso político
de certos institutos (por exemplo, o Poder Normativo da Justiça
do Trabalho) que merece a reprovação manifestada a respeito de
determinados assuntos.

Cabe, enfim, ao Judiciário a responsabilidade social pela medida dos


novos impactos de nossa “Constituição Cidadã” na construção da
maturidade democrática de nosso Estado, composto de tantos brasis,
parafraseando, para homenagear, o ministro Luciano Pereira (2000),
do TST.
340 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

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Direito do trabalho
343

A historicidade do direito do trabalho:


a Constituição de 1988 no contexto da
flexibilização das relações trabalhistas
Luiz Henrrique Vogel

Como é sabido, os direitos trabalhistas e sociais consagrados na Cons-


tituição de 1988 foram um dos temas centrais das disputas políticas
travadas durante o período dos trabalhos da ANC pois, acreditavam as
forças políticas de centro-esquerda e os críticos do modelo econômico
adotado durante a ditadura militar, era preciso pensar em uma forma
de incorporar, na nova ordem legal e democrática, os setores tradi-
cionalmente excluídos da sociedade brasileira (Baaklini, 1993: 351).
Jornada de trabalho de 44 horas semanais, licença-maternidade de
120 dias, adicional de férias correspondente a 1/3 do salário, seguro-
desemprego (em caso de desemprego involuntário), remuneração do
serviço extraordinário superior, no mínimo, em 50% à da hora normal,
extensão dos direitos previdenciários aos trabalhadores rurais, direito
de sindicalização do servidor público, direito de greve, representação
dos trabalhadores nos locais de trabalho nas empresas com mais de
200 empregados foram alguns dos novos dispositivos legais, incorpo-
rados pelos constituintes, às regras trabalhistas e sindicais previstas no
modelo de relações entre capital e trabalho vigente no Brasil desde a
década de 30.
No Brasil, a Constituição Federal e a Consolidação das Leis do Tra-
balho (CLT) regulam tanto as relações contratuais presentes no mer-
cado de trabalho como também os mecanismos de representação dos
agentes econômicos, constituindo-se num conjunto regulador que en-
volve articulada trama de direitos individuais e coletivos (Cardoso &
Lage, 2006). O propósito dessas instituições, como frisado por Polanyi
(2000: 96), é proteger a sociedade das leis mais gerais do processo de
acumulação capitalista, pois “o trabalho é apenas outro nome para a
atividade humana que acompanha a própria vida que, por sua vez, não
é produzida para a venda, mas por razões inteiramente diversas, e essa
atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser arma-
zenada ou mobilizada”.
344 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Assim, para Nascimento (1998: 45-46), embora o Direito do Trabalho


seja ramo do Direito Privado, pois nele se encontram dois sujeitos
em um mesmo plano (empregador-empregado) em relação ao Estado,
ainda que em níveis diferentes nas relações entre si, os fatos econômi-
cos e sociais que se seguiram à Revolução Industrial configuraram a
base sob a qual se ergueu a disciplina, havendo nesta forte tendência à
valorização dos direitos humanos do trabalhador “inclusive no plano
constitucional como garantias fundamentais, não disponíveis, subtra-
ídas da esfera negocial e das vicissitudes da economia de mercado, mere-
cedores, portanto, da máxima proteção do Estado por meio de seus
instrumentos legais destinados a tal fim” (grifos acrescentados). No
que se refere às garantias fundamentais, indisponíveis, cabe lembrar
que “a dignidade da pessoa humana” e “os valores sociais do trabalho”
constituem-se em fundamentos do “Estado democrático de Direito”,
segundo o art. 1º, III e IV, da Constituição Federal.
Ademais, ao constitucionalizarem vários temas vinculados à relação
trabalhista e a representação de interesses (na legislação sindical, foi
mantido o princípio da unicidade) os parlamentares que participaram
da elaboração da Carta de 1988 seguiram a tradição vigente no país
desde a década de 30 que, em seu momento inicial, como se sabe,
cumpriu o papel de integração das classes sociais em torno de um pro-
jeto que previa forte intervenção estatal seja no domínio das relações
sociais como também na economia, construindo-se, desde então, as
bases para a superação, ainda que de forma altamente dependente do
capital externo, do modelo de uma sociedade agrária exportadora de
produtos primários. A legislação trabalhista e a regulação da represen-
tação de interesses eram essenciais, nesse contexto, como instrumen-
tos que confirmavam e reproduziam a inserção histórica altamente
subordinada do mundo do trabalho na sociedade brasileira, seja nos
três séculos de escravidão como também na sociedade de classes que
se configura ao longo do século XX.
Para Werneck Vianna (1999: 19), o capitalismo brasileiro – por não
ser hegemônico, tal como nas sociedades do centro do sistema – foi
obrigado a abrir mão da “forma mercantil para as condições de venda
da força de trabalho”, pois as dificuldades que teve de enfrentar no
processo de construção de seu domínio social e político não teriam
sido compatíveis com uma forma efetivamente pluralista de organiza-
ção. Do ponto de vista do pluralismo societal, as limitações da coali-
zão entre industriais e o setor agrário-exportador, hegemônicos desde
a década de 30, podem ser percebidas pela forte oposição, presente
desde a República Velha, ao propósito dos sindicatos e do movimento
A historicidade do direito do trabalho: a Constituição de 1988
no contexto da flexibilização das relações trabalhistas 345

operário de introduzirem a figura do contrato coletivo nas relações


de trabalho, o que contrariava a ortodoxia liberal vigente e a forma
de acumulação do capital, que exigiam a contratação individual da
força de trabalho. Nesse sentido, os tribunais legalizavam a repressão
ao considerarem que as greves, fenômeno coletivo, feriam o contrato
individual de trabalho (Erickson, 1979: 33).
Assim, desde a década de 30, o mundo do trabalho e a regulação de
seu uso e das formas de representação não apenas estarão sob forte
tutela, como também a sua inserção no quadro da legítima disputa de
interesses que caracteriza a dinâmica política das sociedades capitalis-
tas estará orientada pela necessária adequação a um suposto interesse
coletivo, geral, isto é, as reivindicações classistas não podem deixar
de levar em conta os “interesses da Nação”. Nesse quadro, o termo
interesse deixa de ter o caráter propriamente privado para se sujeitar
ao propósito maior do desenvolvimento econômico com paz social.
Enquanto nos modelos hegemônicos de relações sociais capitalistas
predominam os regimes pluralistas de organização do mercado, nos
países periféricos o Estado buscará a harmonia entre os grupos sociais,
de forma a conter, prever e institucionalizar os conflitos sociais, apa-
ziguando as tensões, inerentes à disputa entre capital e trabalho, que
ocorrem na esfera privada (Werneck Vianna, 1999).
Na República de 46, o aparato corporativista montado pelo regime
varguista deixará de servir apenas aos propósitos de controle da classe
operária e passará a ser um instrumento essencial para a mobiliza-
ção política das classes subalternas. A retórica populista, contudo, ao
propugnar o nacionalismo econômico, a defesa da empresa estatal e
a distribuição seletiva de bens e serviços, deixava de considerar duas
questões essenciais no contexto das relações sociais capitalistas: a) as
relações sociais de produção (particularmente o papel do trabalhador
como produtor): como não têm ideologia própria, governos populistas
vêem os trabalhadores sobretudo como consumidores, preocupando-
se em distribuir bens e serviços a eles; b) preocupação exclusiva com a
distribuição leva os regimes populistas a negligenciar a poupança e os
investimentos necessários para a criação de bens e serviços (Erickson,
1979: 83). Mais uma vez, a legislação trabalhista e sindical será fun-
cional aos propósitos da reprodução das relações sociais capitalistas
pois, a despeito das tentativas de controle estatal, no período 45-64,
os sindicatos concentram sua atuação na tentativa de mudança da le-
gislação que regulava as relações de trabalho e a representação de in-
teresses (direito de greve, autonomia sindical, política salarial, redução
da jornada de trabalho, entre outros temas), deixando em segundo plano
346 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

as reivindicações dirigidas aos patrões, no mercado de trabalho (Cardoso,


2002: 21-22) (grifos acrescentados).
Durante a ditadura militar, os dispositivos repressivos previstos na
legislação vigente desde a década de 30 também servirão às inicia-
tivas que previam a intervenção nos sindicatos e ao expurgo das li-
deranças mais combativas, contribuindo para controlar os ímpetos
oposicionistas e mobilizadores presentes na sociedade civil. Assim,
ao apertarem os controles diretos sobre os sindicatos os militares não
permitem que estes estruturem uma base organizacional a partir da
qual pudessem atacar o sistema político e social existente ou opor-se
a algumas políticas estatais específicas, o que contribuiu para susten-
tar a política de arrocho salarial e a transferência de recursos para a
classe patronal, propiciando maior acumulação de capital e cresci-
mento econômico acelerado.
No período democrático, os direitos trabalhistas consagrados na
Constituição de 1988 sofrem a oposição das elites políticas e dos se-
tores empresariais comprometidos com a abertura comercial e a des-
politização das relações econômicas. Nesse sentido, do ponto de vista
dos empresários brasileiros, para que o país pudesse cumprir adequa-
damente a nova agenda requerida pela moderna economia capitalista
“pós-fordista” era necessário reformar as relações de trabalho em três
dimensões: a) controlar ou reduzir o poder sindical; b) eliminar, ao
máximo, as mediações políticas (normativas) da contratação da força
de trabalho; c) reduzir os custos de trabalho via enxugamento dos
encargos sociais, isto é, afastar o Estado do papel de redistribuidor da
riqueza social (Cardoso, 1999: 20).
Tendo como premissa os traços centrais levantados nessa rápida es-
quematização do papel histórico cumprido pela regulação da relação
trabalhista e da representação de interesses no Brasil, buscaremos ana-
lisar algumas alterações legislativas aprovadas pelo Congresso Nacio-
nal no período posterior à aprovação da Constituição de 1988 quando,
nos países centrais, já se tornavam hegemônicas novas formas de in-
serção e regulação do trabalho nas sociedades capitalistas avançadas.
Para tanto, precisamos contextualizar os aspectos principais do mo-
delo brasileiro de relações de trabalho, considerado pelos especialistas
como legislado, por oposição aos modelos contratuais.
A hipótese mais geral do texto parte do princípio de que, guardadas
as diferenças marcantes entre dois momentos históricos distintos – as
décadas de 30 e 90 – devemos estudar o papel cumprido pelo Direito
do Trabalho, em diferentes momentos da história brasileira, tanto na
A historicidade do direito do trabalho: a Constituição de 1988
no contexto da flexibilização das relações trabalhistas 347

reprodução das relações sociais capitalistas como na “integração” das


classes sociais, sendo este último propósito, durante os anos em que
predominou a agenda de “flexibilização” das relações trabalhistas, pre-
terido em favor da adequação da economia nacional aos imperativos
da “mundialização” da economia e da “globalização” das empresas.

I.

Em função da extensiva regulação estatal das relações entre capital e


trabalho e da representação de interesses vigentes no país desde a dé-
cada de 30, vários estudiosos do direito trabalhista e da sociologia do
trabalho no país (Cardoso, 2003; Noronha, 2000; Nascimento, 1998)
classificam o modelo brasileiro de relações de classe como legislado,
por oposição ao modelo contratual ou consensual, como o inglês. Em
seu estudo sobre as normas das relações de trabalho, em especial os
atos da contratação e da dispensa e os direitos garantidos durante a
vigência do contrato de trabalho, Noronha (2000) classifica como “le-
gislado” um modelo no qual “a lei é mais importante na definição de
direitos substantivos do trabalho que os contratos coletivos”. Nesse
sentido, no caso brasileiro, a lei não só define os principais direitos do
trabalho, como influencia as normas criadas por meio dos contratos
coletivos ou definidas unilateralmente pelos empregadores. Eviden-
temente, a legislação trabalhista e as normas internas das empresas
(outro componente importante da relação de trabalho) não esgotam
as possibilidades de regulação da relação entre capital e trabalho, na
medida em que ampliou-se no país o tipo de relação reivindicado pelo
“Novo Sindicalismo” desde as décadas de 70 e 80, a saber, “a nego-
ciação coletiva entre sindicatos e empregadores, sem a mediação de
organismos estatais” (Tavares de Almeida, 1983: 202).
Contudo, dada a abrangência da regulação da legislação trabalhista nos
modelos legislados de relações de classe, o estudo da regulamentação
do uso do trabalho e da representação de interesses deve ser realizado
de maneira integrada pois, no Brasil, desde a década de 30, o Direito
do Trabalho regula dois tipos de relações (Cardoso, 2003: 137):
a) relações de trabalho propriamente ditas, isto é, aquelas estabelecidas
entre os patrões e cada um dos seus empregados e pelos quais se
troca trabalho por remuneração (regulação da jornada do trabalho;
idade mínima e máxima para entrada no mercado de trabalho;
trabalho da mulher gestante); como contraponto ao modelo legis-
lado, em países com tradição contratual, essas regras são definidas
por acordo entre as partes, seja no âmbito da empresa (Reino Uni-
348 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

do e Colômbia), dos ramos da economia (Alemanha, até recente-


mente) ou em nível nacional (Suécia);
b) regulação das relações profissionais (normas que tratam das relações
de “direito coletivo” tais como a organização sindical, negociação
coletiva, representação por locais de trabalho, tratando, assim, da
defesa e da representação dos interesses do capital e do trabalho).
Ademais, por meio da escolha dos seus representantes nos locais
de trabalho, constituindo um espaço de negociação com os patrões,
torna-se viável a fiscalização da aplicação da legislação trabalhista
e do que foi estabelecido nos acordos coletivos, constituindo-se,
assim, um ambiente mais democrático, civilizado e aberto à nego-
ciação no cotidiano das relações entre capital e trabalho.
Dada a extensão da presença do Direito do Trabalho no modelo brasi-
leiro de relações de classe não surpreende que, durante o transcurso das
reuniões da Assembléia Nacional Constituinte (ANC) houve intensa
atuação e mobilização dos parlamentares ligados à representação sin-
dical e empresarial na Comissão da Ordem Social (Subcomissão dos
Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos) e na Comissão da
Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher (Sub-
comissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos), onde
tramitaram a legislação trabalhista e sindical, em suas diferentes fases,
até a votação em Plenário e elaboração da redação final. Do ponto de
vista das relações de trabalho propriamente ditas, a Constituição de
1988 aumentou a proteção social e do trabalho por meio da manu-
tenção dos direitos do trabalho garantidos nas Constituições anterio-
res, introduziu normas procedimentais que aumentaram o poder dos
sindicatos ou dos trabalhadores frente às empresas, elevou, ao nível
constitucional, o status de alguns direitos e introduziu novos direitos
sociais substantivos (Noronha, 2000).
Em depoimento a Noronha (2000: 68), o constituinte Paulo Paim
(PT-RS) confirmou que a estratégia dos sindicalistas era introduzir o
máximo de matérias no corpo constitucional para evitar sua revogação
futura, pois, no final dos anos 80, já se colocava no horizonte político
uma clara tendência mundial de desregulamentação dos direitos tra-
balhistas. Ademais, a década de 80 foi um período de forte atuação
sindical e de renovação da sociedade civil na luta pelo fim do regime
militar. A estratégia grevista foi uma das mais utilizadas na conjuntura
de forte crise econômica que marcou o início da década, tornando o
país o “campeão mundial das greves nos anos 1984-87”: em 87, fo-
ram perdidas 80 milhões de jornadas (horas/dia) (Cardoso, 1999: 37).
Também no final da década de 70, os sindicatos tornaram-se o foco
A historicidade do direito do trabalho: a Constituição de 1988
no contexto da flexibilização das relações trabalhistas 349

que concentrou o ativismo de vários grupos de resistência ao regime


militar, o que contribuiu para a maior politização do movimento sin-
dical e o aumento dos custos de repressão aos novos atores sociais or-
ganizados, na medida em que diversos grupos populares irrompiam na
cena pública para reivindicar seus direitos, “a começar pelo primeiro,
pelo direito de reivindicar direitos” (Sader, 1995: 26).
A expressiva votação do MDB nas eleições em 74, o movimento do
“custo de vida” nos bairros da periferia de São Paulo, a formação das
comunidades de base, entre outros, eram fatores que apontavam cla-
ramente para a emergência, na cena pública, de novos atores coletivos
que, “pela sua linguagem, seus temas e valores; pelas características
das ações sociais em que se moviam” anunciavam o aparecimento de
um novo tipo de expressão dos trabalhadores (Sader, 1995: 36-37).
Toda essa mobilização em torno dos novos direitos requeridos pela
sociedade civil como condição essencial para a convivência civilizada
em uma sociedade em processo de democratização foram importantes
na construção de uma agenda política que teve forte repercussão entre
os constituintes.
Ademais, na medida em que relações de trabalho no âmbito das fábri-
cas eram marcadas pelo uso predatório da força de trabalho (“gerência
despótica, baixos salários, altas taxas de rotatividade e extensão das
horas de trabalho via horas-extras”), houve forte estímulo para que os
trabalhadores se organizassem por intermédio dos sindicatos como
forma de reivindicar maior dignidade e justiça no cotidiano do tra-
balho, elementos fortemente estimuladores da ação trabalhista (Car-
doso, 2003: 35). Ao contrário do que supunham alguns analistas, a
indústria automobilística brasileira não criara uma elite privilegiada
de operários mas, antes, “um proletariado fabril mantido sob controle
pelo poder dos empregadores e do Estado” (Humphrey, 1982: 14).
Segundo Humphrey, o descontentamento dos trabalhadores também
envolvia questões como a ausência de gratificação pelos ganhos de pro-
dutividade, injustiças na estrutura salarial, precariedade dos serviços e
benefícios não-monetários oferecidos pela indústria automobilística,
aumento na intensidade do trabalho, condições de trabalho insalubres,
disseminação da disciplina, controle e medo entre os operários, entre
outras queixas. Essas relações despóticas sofrerão a oposição de novas
lideranças sindicais que emergem durante as reivindicações salariais
e as greves nas décadas de 70 e 80. Na medida em que estavam pou-
co identificadas com o passado populista, seu principal propósito era
organizar os sindicatos em novas bases, especialmente no âmbito das
próprias fábricas (Santana, 1998: 23).
350 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

II.

A despeito das críticas dirigidas pelo “Novo Sindicalismo” à legislação


sindical corporativa, durante os trabalhos da ANC, a reforma desta
estrutura – tema dificilmente consensual entre as diversas correntes
sindicais – não era um dos tópicos prioritários do movimento dos
trabalhadores, que preferiu concentrar suas forças na reivindicação da
redução da jornada de trabalho, garantia de emprego e representação
dos trabalhadores nos locais de trabalho (Tavares de Almeida, 1996:
180). Nesse sentido, o esforço dos sindicalistas, durante a ANC, vol-
tou-se essencialmente para a redução do controle estatal direito sobre
as organizações sindicais e não para a extinção do aparato corporativo
(Cardoso, 2003: 39).
Assim, em vez da vitória do princípio da ampla liberdade sindical,
prevista no Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos, o que se viu
foi “a restrição constitucional das formas de interferência do poder
público na organização e na atividade sindical e não a consolidação da
liberdade sindical” (Siqueira Neto, 1991: 88-89). Embora os consti-
tuintes tenham assegurado, na redação do caput do art. 8º, a liberdade
de associação profissional e sindical, vedada à Lei exigir autorização
do Estado para fundação de sindicato, a redação do inciso II proibiu
“a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau,
representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base
territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregados inte-
ressados, não podendo ser inferior à área de um município”. Ou seja,
ainda que o fim da interferência do Estado na vida sindical (cassando
lideranças, por exemplo) tenha sido um avanço inegável da Constitui-
ção de 1988, a liberdade de associação garantida no caput é relativa,
pois a unicidade e o imposto sindical dependem da interferência esta-
tal – fundamental para a chamada “investidura sindical” por parte do
Estado, que reconhece um único sindicato por base territorial como
destinatário do imposto arrecadado dos trabalhadores.
Nas duas últimas décadas, além da maior fragmentação da representa-
ção sindical propiciada pela manutenção do imposto compulsório (o
que incentivou a criação de novos sindicatos), mudanças na estrutura
social e econômica, aliada ao aumento do desemprego, reduziram a
capacidade de mobilização e poder de barganha dos sindicatos frente
aos patrões. Em primeiro lugar, a indústria brasileira passou a utilizar,
de forma intensiva, novas tecnologias da informação e técnicas de or-
ganização do trabalho que tem como postulado a “produção enxuta”.
Igualmente, a reestruturação produtiva foi uma das principais causas
A historicidade do direito do trabalho: a Constituição de 1988
no contexto da flexibilização das relações trabalhistas 351

para o aumento significativo do desemprego no país, que subiu de 4%


(em 1990) para 8% (em 1998). Ademais, em função das alterações na
configuração do mercado de trabalho, por conta das novas técnicas
gerenciais, de informatização e de produção adotadas pelas empresas
brasileiras, houve uma restrição importante na dimensão do merca-
do formal de trabalho no país, que reduziu-se de 56% para 42% da
população economicamente ativa entre 1990 e 1998 (Cardoso, 2003:
42-43). Como é sabido, o aumento do risco de ficar desempregado e a
queda da inflação depois de 1994, somados, reduziram o engajamento
dos trabalhadores em ações coletivas reivindicatórias.
Também durante a década de 90, mudanças no clima político e ideo-
lógico (adesão das elites nacionais ao ideário neoliberal, com a conse-
qüente despolitização da economia, privatização de empresas estatais
e abandono do projeto nacional-desenvolvimentista, este último com-
prometido com uma concepção civilizatória mais favorável ao mun-
do do trabalho), aliadas ao aumento do desemprego e às alterações
profundas na estrutura ocupacional, reduziram significativamente o
espaço de ação dos sindicatos brasileiros, se compararmos com a con-
juntura mais favorável dos anos 80.
Também é possível identificar uma mudança no principal pólo irra-
diador das pressões pela alteração das linhas centrais do modelo legis-
lado de relações de classe. Se, até meados dos anos 80, a reforma da
legislação trabalhista e sindical era um tema de interesse prioritário
para os trabalhadores, nos anos 90, quando o modelo nacional-desen-
volvimentista havia esgotado seus impulsos modernizadores em meio
à nova inserção do país em uma economia mundial que ampliou a
desregulamentação das relações de trabalho (Chesnais, 1996: 35), os
empresários começam a demandar abrangente revisão no modelo legislado,
o que incluía a chamada “flexibilização do contrato de trabalho”, além
da flexibilização dos mercados de produtos, serviços e de capitais.
Chesnais também menciona os efeitos da crescente automação indus-
trial nas relações entre capital e trabalho: segundo o autor, a introdu-
ção da automação, baseada nos microprocessadores, propiciou a des-
truição de “formas anteriores de relações contratuais, e também dos
meios inventados pelos operários, com base em técnicas de produção
estabilizadas, para resistir à exploração nos locais de trabalho”. Nesse
novo modelo baseado na “fabrica enxuta”, o trabalho assalariado não
é mais a forma predominante de inserção social e de acesso à renda
(Chesnais, 1996: 300):
Até o começo da década de 70, o sistema soube gerar, por meio
de elementos constitutivos da relação salarial fordista, um ní-
352 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

vel de emprego suficientemente alto e bem pago para preencher


as condições de estabilidade social e, ao mesmo tempo, criar os
traços necessários à produção de massa (isto é, para assegurar o
‘fechamento macroeconômico’).

A acumulação flexível, segundo Harvey (1992: 140-41), caracteriza-se


por sua aberta oposição à rigidez do modelo fordista – estando anco-
rada na flexibilidade dos processos e mercados de trabalho, nos produ-
tos e padrões de consumo – o que tem contribuído para o surgimento
de setores de produção inteiramente novos, em diferentes áreas do
globo, fatores decisivos capazes de solapar o trabalho organizado “pela
reconstrução de focos de acumulação flexível em regiões que careciam
de tradições industriais anteriores e pela reimportação, para os centros
mais antigos, das normas e práticas regressivas estabelecidas nessas
novas áreas”. No mundo jurídico, a contrapartida do modus operandi
da acumulação flexível é a exigência de flexibilização do processo de
produção e de exploração da força de trabalho, como também, nesse
caso, “flexível deve ser a legislação, impondo-se a desregulamentação
do ordenamento jurídico de perfil rígido” (Ramos, 1999: 28).
No campo intelectual, contudo, as elaborações pioneiras na esfera do
ideário neoliberal datam de 1944, quando Frederich Hayek publica O
caminho da servidão, uma “reação teórica e política veemente contra o
Estado intervencionista e de bem-estar” (Anderson, 2003: 9), como
também dos governos social-democratas e do papel dos sindicatos na
política e na economia dos Estados europeus. Essas críticas perma-
neceram restritas ao ambiente acadêmico durante quase trinta anos,
sendo fortemente retomadas no início da crise dos “anos de ouro” do
sistema capitalista no século XX – 1945 até 1973, segundo Hobsba-
wn (1995) – quando a primeira crise do petróleo conduziu o mundo
capitalista avançado a uma longa recessão, com baixas taxas de cres-
cimento e alta inflação. Para Hayek e seus companheiros de trabalho
na estação de Mont Pèlerin, na Suíça1, as raízes da crise eram claras,
estando localizadas “no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de
maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as ba-
ses de acumulação capitalista com suas pressões reivindicatórias sobre
os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse
cada vez mais os gastos sociais” (Anderson, 2003: 10).

1
Desde 1947, o local do encontro, a cada dois anos, de um grupo de intelectuais
opositores do Estado de bem-estar europeu e do New Deal estadunidense: Milton
Friedman, Karl Popper, Lionel Robins, Ludwig Von Mises, Walter Lipman, Mi-
chael Polanyi, entre outros.
A historicidade do direito do trabalho: a Constituição de 1988
no contexto da flexibilização das relações trabalhistas 353

Contudo, a despeito dessa clara hegemonia do ideário neoliberal, en-


tão ascendente no mundo, para que esse pensamento fosse admitido
como uma “lógica”, com todas as implicações políticas e econômicas
para o funcionamento do mundo social, era necessário que as elites
nacionais o tomassem como um “programa” a ser executado na esfe-
ra interna de cada país integrado à economia internacional. De fato,
o governo Fernando Henrique Cardoso, no âmbito do programa de
ajuste fiscal editado pelo Ministério da Fazenda no final de 1998,
abertamente propugnava o “fim da era Vargas”, o que incluía a refor-
ma da legislação trabalhista “para adequar o funcionamento do merca-
do de trabalho ao processo de reestruturação econômica por que vem
passando o país” (Pessanha & Morel, 1999: 101). Uma das mudanças
de maior impacto foi produzida pela Lei 9.601/982, que instituiu o
contrato de trabalho por prazo determinado (até dois anos) e o banco
de horas. Como forma de justificar a necessidade da medida e sua
“aceitação” entre alguns sindicatos, antes de enviar o Projeto da Lei
ao Congresso, o governo havia patrocinado uma acordo coletivo entre
o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo (filiado à Força Sindical)
e o Sindicato Nacional da Indústria de Autopeças (Sindipeças), que
previu a contratação de empregados com a redução de encargos sociais
(Ramos, 1999: 83).
Pochmann e Moretto (2002: 78-79) e Krein (2002: 135-37), ao anali-
sarem os principais aspectos das modificações realizadas no Direito do
Trabalho entre 1995 e 2002, classificam as possibilidades legislativas
de alteração da relação entre capital e trabalho em três momentos
distintos:
a) Casos de flexibilização contratual: referem-se à liberdade das em-
presas para empregar e demitir de acordo com os ciclos produ-
tivos, no âmbito de uma estratégia para reduzir custos; enqua-
dram-se, nesta perspectiva, as iniciativas como a Lei 9.601/98, Lei
8.949/94, MP 1.709/98, MP 1.726/98, o Decreto 2.100/96 e a
Portaria nº 2, de 29/6/96.
• Lei 9.601/98: estabelece o contrato de trabalho por prazo de-
terminado e o banco de horas, além de reduzir direitos (permite
à empresa demitir sem aviso prévio nem pagar multa de 40%
sobre o FGTS; os depósitos do FGTS caem de 8% para 2%

2
Regulamentada pelo Decreto 2.290, de 4 de fevereiro de 1998, conforme atribui-
ção conferida pelo art. 84, inciso IV, da Constituição Federal. Para uma análise da
constitucionalidade da Lei 9.601/98 ver Ramos (1999).
354 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

do salário e as contribuições para o chamado “Sistema S” são


reduzidas à metade);
• MP 1.709/98: trabalho em tempo parcial: com jornada de até
25 horas semanais, os salários e os demais direitos trabalhistas
ficam em conformidade com a duração da jornada contratada.
Não prevê a participação do sindicato na negociação.
• Lei 8.949/94: cooperativas profissionais de prestação de servi-
ços: a lei prevê que os trabalhadores formem uma cooperativa de
trabalho e prestem serviços a uma empresa sem que seja caracte-
rizado o vínculo trabalhista. Nesse sentido, “como sócios da co-
operativa, os trabalhadores não recebem os direitos trabalhistas
previstos na relação contratual” (Krein, 2002: 139).
• MP 1.726/98: suspensão do contrato de trabalho: insere dispo-
sitivos na CLT para facultar a suspensão do contrato de traba-
lho para a participação do trabalhador em curso ou programa de
qualificação profissional.
• Decreto 2.100/96: denúncia da Convenção 158 da OIT; se ado-
tada, a convenção teria rompido com a tradição de liberdade de
dispensa, pois seu principal artigo determina que “não se dará
término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que
exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capa-
cidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades da
empresa, estabelecimento ou serviço” (Art. 4º, Sec. A, Parte II).
• Portaria nº 2, de 29/6/96: amplia a possibilidade de utilização da
Lei 6.019/74 (referente ao contrato temporário), generalizando
a utilização do contrato de trabalho precário (Krein, 2002: 138).
b) Casos de flexibilidade funcional (da jornada, das funções e dos salários):
flexibilidade introduzida no mercado interno de trabalho tendo
como propósito possibilitar o ajuste do uso da força de trabalho;
enquadram-se nesta perspectiva, a Lei 9.601/98, a MP 1.709/98 e
a MP 1.878/99;
• Lei 9.601/98 e a MP 1.709/98: banco de horas: possibilita que a
jornada seja organizada anualmente (adequando-a às “flutuações
do mercado”) e amplia para um ano o prazo de compensação
das jornadas semanais extraordinárias de trabalho, por meio de
acordo ou convenção coletiva. O objetivo é reduzir custos com
a remuneração de horas extras, racionalizando a utilização do
tempo de trabalho por meio da jornada anual.
A historicidade do direito do trabalho: a Constituição de 1988
no contexto da flexibilização das relações trabalhistas 355

• MP 1.878/99: liberação do trabalho aos domingos: autoriza, a


partir de 9 de novembro de 1997, o trabalho aos domingos no
comércio varejista, sem a previsão de passar por negociação co-
letiva. Do ponto de vista das políticas de salário introduzidas
pelos patrões, Krein (2002: 136) também menciona as iniciativas
voltadas para a redução do salário fixo e o aumento da parce-
la que depende do cumprimento das metas estabelecidas pelas
empresas (prêmios e bonificações), tendência que individualiza e
descentraliza os níveis salariais.
c) Casos de flexibilidade procedimental: normas que visam alterar as
regras sobre a organização do trabalho, os procedimentos para
a demissão e os espaços normativos para a solução de conflitos,
“proporcionando maior poder às empresas em detrimento dos es-
paços públicos e estatais” (Krein, 2002: 136): enquadram-se, neste
tópico, a Lei 9.958/00, a PEC 33-A/99, a Portaria nº 865/95 e a
Lei 9.957/00.
• Lei 9.959/00: Comissões de Conciliação Prévia: restritas às ca-
tegorias profissionais ou empresas com mais de 50 trabalhadores.
Funciona como primeira instância para os dissídios individuais,
de forma paritária entre patrões e empregados, mas sem estabili-
dade para seus membros.
• PEC 33-A/99: extinção do juiz classista;
• Portaria nº 865/95: o afrouxamento da fiscalização por parte do
Ministério do Trabalho: impede a autuação dos fiscais do tra-
balho nas hipóteses de conflito entre a legislação trabalhista e o
acordo ou convenção coletiva firmado entre patrões e emprega-
dos e permite que acordos ou convenções possam reduzir con-
quistas acertadas em outras negociações.
• Lei 9.958/00: rito sumaríssimo: restrita aos dissídios individuais
cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo vigente
na data do ajuizamento da reclamação.

III.

Não cabe, nos limites deste artigo, analisar em detalhes as coalizões


partidárias necessárias para a aprovação das iniciativas legislativas do
Poder Executivo durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Es-
tudo sobre a sustentação parlamentar do governo FHC na Câmara
dos Deputados entre 1995 e 1998 demonstra que o desempenho das
356 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

iniciativas propostas pelo Poder Executivo foi excelente nas votações


nominais: das 147 votações nas quais houve indicação de seu líder,
o governo ganhou em 132 (90%) e perdeu em apenas 15 (10%). As
derrotas concentraram-se nas votações das Propostas de Emenda à
Constituição: sete derrotas foram relativas às votações da reforma
da Previdência, duas na reforma administrativa, uma na quebra do
monopólio do petróleo e outra na navegação de cabotagem (Nicolau,
2000). Por sua vez, Amorim Neto, Cox e McCubbins (2003: 577)
sustentam que, no período entre 1989 e 1998, apenas o governo FHC
constituiu-se em governo majoritário com partido-cartel3, podendo,
inclusive, optar pela nomeação de um ministério tecnocrático, buscar
implementar sua agenda legislativa por intermédio da promulgação
de Medidas Provisórias e não negociá-la em função do apoio de uma
coalizão majoritária estável.
Ademais, da mesma forma como Figueiredo e Limongi (2001: 76)
identificaram uma lógica partidária na atuação parlamentar, seja na
condução dos trabalhos legislativos (prerrogativas regimentais con-
cedidas aos líderes, como o direito à palavra, possibilidade de propor
matérias e emendas, influir no método de votação, determinar a pau-
ta dos trabalhos, entre outros) na representação das bancadas pelos
líderes como também na articulação, durante as indicações de voto
pelos líderes nas votações em Plenário, de um “continuum ideológico,
da direita para a esquerda, onde as coalizões contíguas são a regra”,
Noronha (2000: 105) também identificou uma lógica partidária no
processo decisório na área de trabalho, polarizada entre os defensores
do modelo legislado de relações de trabalho (localizados nos partidos
de centro-esquerda, liderados pelo PT) e um grupo de deputados fa-
voráveis a uma “redução considerável dos direitos do trabalho garan-
tidos homogeneamente pela Constituição ou pela CLT”, filiados aos
partidos de centro-direita.
Também é possível mencionar, como causas intervenientes na vitória
do projeto governista que flexibilizou a legislação trabalhista nos anos
90, além dos fatores conjunturais já citados (aumento do desemprego
e a reestruturação produtiva), fatores estruturais (em função da indus-
trialização capital-intensiva, a indústria brasileira sempre empregou
número proporcionalmente menor de operários, se compararmos com
os países que se industrializaram nos séculos XVIII e XIX, o que re-

3
Segundo os autores, uma coalizão de partidos governistas constitui um cartel de
agenda parlamentar quando esta controla os cargos que definem a agenda da Casa
e assegura a cada partido membro da coalizão poder de veto sobre a legislação inte-
grante da agenda do Plenário.
A historicidade do direito do trabalho: a Constituição de 1988
no contexto da flexibilização das relações trabalhistas 357

duziu significativamente sua influência social4) e institucionais, tais


como a deliberada e taxativa dissociação do binário histórico entre
“sindicalismo-socialismo”, característico das organizações sindicais na
Europa, por um lado, e a separação rigorosa entre organizações sindicais
e partidos políticos, por outro, ambos mencionados por Oliveira Vianna
(1951: 80-82) como princípios que orientaram a legislação sindical
brasileira desde a década de 305. Diga-se de passagem, a respeito da
atualidade de Oliveira Vianna para a compreensão de nossa formação
social, que a Lei 9.504/97, aprovada pelo Congresso Nacional, expres-
samente prevê, em seu artigo 24, inciso VI, a proibição da contribuição
de “entidades de classe ou sindicais” para o financiamento das campa-
nhas dos partidos políticos e seus candidatos.
Seja como for, tais normas apontam claramente para a necessidade de
“adequar” os direitos trabalhistas aos imperativos da “mundialização”
da economia e da “globalização” das firmas, adaptando fortemente as
regras de contratação e uso da força de trabalho às flutuações da eco-
nomia de mercado. São mudanças institucionais significativas com o
propósito de aprofundar a desregulamentação do trabalho, seja nas
normas de contratação, remuneração ou uso do fator trabalho, como
também nas formas procedimentais de solução de conflitos, agravan-
do o quadro de um sistema que se caracteriza por apresentar grande
flexibilidade, isto é, pela ampla liberdade para as empresas efetua-
rem demissões, especialmente após a introdução do FGTS, em 1966
(Krein, 2002: 162-63).
Na análise da legislação aprovada no período recente, além dos dispo-
sitivos que precarizam as relações de trabalho e retiram direitos con-
sagrados até a década de 80, também devemos estar atentos para as
regras que excluem os sindicatos da negociação trabalhista, o que aponta
para o caráter pouco democrático e civilizado das relações entre ca-
pital e trabalho, característica histórica das relações de classe no país
potencializada com as recentes modificações estruturais vividas pela
sociedade brasileira no mundo da produção e do emprego. Ademais,

4
Segundo Martins Rodrigues (1974: 22-26), a associação entre os movimentos sin-
dical e político deu à classe operária européia uma posição peculiar, seja no conjunto
da sociedade como também em termos de influência na vida política: por exemplo:
na Alemanha, em 1957, em um parlamento com 519 membros foram eleitos 206
sindicalistas, cerca de 40%.
5
Devemos acrescentar, como frisa Pinheiro (1977), que essa “dissociação” entre
partidos e sindicatos também foi obtida por meio da repressão estatal, sendo o PCB
o caso mais notório: entre 1922 e 1979, o partido deixou de estar na clandestinidade
durante aproximadamente quatro anos (de março de 1922, mês de sua fundação, a
julho de 1924; alguns meses no começo de 1927; de 1945 a 47).
358 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

se partirmos da premissa hobbesiana de que o poder é o meio presente


para se obter algum bem futuro, necessariamente deveremos levar em
conta a distribuição de “recursos de poder” entre as classes sociais, em
especial, considerando-o como fator que proporciona aos atores – in-
divíduos ou coletividades – a habilidade para punir ou recompensar
outros atores (Korpi, 1983: 15-18). Nesse sentido, como diz Korpi,
embora a propriedade dos meios de produção forme a base do direito
de controle da gerência sobre o trabalho, a subordinação deste pode
ser uma questão de grau, sendo restringida pela legislação ou pela bar-
ganha coletiva, cuja efetividade é influenciada pela situação de merca-
do. Aplicando esse postulado à conjuntura brasileira recente, salta aos
olhos que a distribuição de recursos de poder resultante das alterações
legislativas promovidas nos anos 90 foi amplamente desfavorável ao
mundo do trabalho.
Durante o governo petista, em função da manutenção dos fatores es-
truturais e institucionais (mencionados acima) amplamente desfavo-
ráveis ao mundo do trabalho – pois tais fatores são fundamentais para
o incremento da representação trabalhista no Parlamento nacional,
elemento importante no contexto da disputa legislativa em torno do
modelo legislado de relações de classe vigente no país – nenhuma
legislação visando alterar o sentido mais geral dos projetos que flexibi-
lizaram as relações trabalhistas entre 1995 e 2002 logrou aprovação no
Congresso Nacional6. No que se refere à legislação sindical, houve a
aprovação da Lei 11.648/08 que estabelece o reconhecimento formal
da existência das centrais sindicais no país e prevê que estas recebam
parcela do imposto sindical arrecadado pelos sindicatos sem, contudo,
assegurar que as centrais tenham a prerrogativa legal de firmar acor-
dos coletivos (tarefa ainda exclusiva dos sindicatos). Por outro lado,
houve um esforço significativo do governo para alterar os aspectos
conjunturais prejudiciais aos trabalhadores por meio de políticas pú-
blicas voltadas para a redução das taxas de desemprego, cujo êxito au-
mentou o número de empregos formais no país.

6
No período 2003-07 foram aprovadas apenas três leis vinculadas à relação traba-
lhista: Lei 11.180/05 (formação profissional de jovens de baixa renda por meio do
“Projeto Escola de Fábrica”), Lei 11.304/06 (permite a ausência do trabalhador ao
serviço, sem prejuízo do salário, na hipótese de participação em reunião oficial de
organismo internacional ao qual o Brasil seja filiado) e a Lei 11.295/06 (direito de
sindicalização do empregado do sindicato).
A historicidade do direito do trabalho: a Constituição de 1988
no contexto da flexibilização das relações trabalhistas 359

IV.

As alterações na legislação trabalhista ocorridas recentemente indicam


que o modelo legislado de relações entre capital e trabalho, a despeito
de suas características mais gerais, pode cumprir diferentes papéis em
momentos históricos diferenciados de uma mesma formação social.
Se, nos anos em que foram predominantes as preocupações “tutela-
res” em direção ao pólo mais fraco da relação trabalhista, a norma, ao
mesmo tempo em que cumpria seu papel de agente reprodutor das
relações sociais capitalistas, também serviu de importante elemento
“integrador” das classes no âmbito dos Estados nacionais, no período
neoliberal esta cumpre a função de adequar as relações sociais às exi-
gências da “mundialização” da economia e da “globalização” das firmas,
na medida em que certos setores das elites nacionais entenderam essas
exigências como uma “lógica”, como um “imperativo” pelo qual foi ne-
cessário lutar. Assim, a norma jurídica contribuiria para a reprodução
das relações sociais capitalistas em outro “nível”, isto é, no âmbito do
capitalismo internacionalizado, ainda que as dificuldades enfrentadas
pelo “projeto” ilustrem a complexa relação entre o processo político
(que ocorre em nível nacional) e a economia internacionalizada, pois,
em decorrência da precarização das relações sociais promovida por
esses “ajustes” na legislação social ocorreu, em vários países, forte e dis-
seminada rejeição eleitoral das elites que executaram tais programas.
Expressão do interesse e da necessária presença do Estado no controle
dos trabalhadores no novo arranjo do poder instaurado a partir de 30,
por um lado, mas também capaz de mobilizar as organizações sindi-
cais em favor de sua mudança, por outro, o Direito do Trabalho exibe,
não apenas no Brasil, sua face contraditória: “ao legalizá-las, expressa
a exploração da força de trabalho e a repressão da ação operária, ao
mesmo tempo em que exprime e legaliza essa luta e as vantagens que
ela possibilitou conquistar” ( Jeammaud, 1978: 338). Assim, segun-
do Jeammaud, na medida em que o contrato de trabalho pressupõe,
para sua realização, o encontro entre o trabalhador desprovido de seus
meios de subsistência e o capitalista, na forma de um acordo “livre”
entre sujeitos iguais, o Direito eleva a esfera da circulação das merca-
dorias em “domínio natural” e torna possível o processo de reprodução
do capital, que ele escamoteia (1978: 342). O Direito é, assim, um
fator “civilizador”, uma alternativa à violência constitutiva da escravi-
360 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

dão, alternativa sem a qual as relações de produção do capitalismo não


poderiam se reproduzir7.
Nesse sentido, o Direito implica na existência de uma unidade de me-
dida comum, formal e impessoal, “não podendo subsistir igualdade
formal entre indivíduos sujeitos a relações de dependência e mútua le-
aldade”, como no regime feudal, onde trabalho e terra não se incluem
entre os bens que comparecem ao mercado e, ademais, a ausência da
formalização estrita da regra jurídica não exige uma burocracia espe-
cializada na interpretação e na aplicação do Direito. Assim, “como a
plena socialização da produção consuma o ponto mais alto de reali-
zação do capital”, a absorção do privado no público – isto é, a con-
gruência, no Direito, entre os interesses do homem privado e a forma
de regulação da ordem social – “exprime a forma superior do Estado
capitalista, suprimindo-se sua aparência ideal e pondo-a a serviço di-
reto do desenvolvimento do modo de produção que lhe corresponde”
(Werneck Vianna, 1999: 44-45).
O Direito trabalhista participa, portanto, das condições de reprodução
da formação social capitalista, parte integrante que é do Estado elevado
à condição de elemento “exterior”, “transcendente” às relações de produ-
ção por ele reguladas, preocupado com o “interesse geral” da sociedade
civil. “Finalidades” e “funções” do Direito do Trabalho, nesse sentido,
seriam dificilmente discerníveis, pois ao participar, juntamente com ou-
tros elementos da ordem jurídica, das mediações das relações de produ-
ção (tornando-as possíveis), ao mesmo tempo em que procura uma real
proteção dos trabalhadores (construindo alguns limites à exploração dos
patrões) este ramo do Direito colabora com a perenidade do modo de produ-
ção capitalista, ao mesmo tempo em que contribui para o enriquecimento da
democracia ( Jeammaud, 1998: 13). Para Jeammaud, a dificuldade seria
descrever, na mesma investigação, a congruência do direito social à or-
ganização capitalista, por um lado, e sua contribuição para a edificação
da “sociedade salarial”, cujas alterações promovidas no período de he-
gemonia neoliberal (flexibilização e precariedade na aquisição e uso da
força trabalho) tornaram mais perceptíveis as suas virtudes.

7
Embora sejam ramos diferenciados, os Direitos Civil e do Trabalho possuem a
mesma razão de ser: promover a “civilização” das relações sociais, isto é, a substitui-
ção das relações de força por relações de direito. Contudo, o direito das obrigações
não pode gerir uma situação na qual é o próprio homem e o seu espírito o objeto
do contrato de trabalho (dificuldade de assegurar a segurança física dos indivíduos,
um dos princípios do Estado de Direito, quando submetidos aos constrangimentos
da produção) nem uma situação no qual ocorre uma submissão da vontade de um
indivíduo a outrem, característica da relação trabalhista (Supiot, 1990: 487).
A historicidade do direito do trabalho: a Constituição de 1988
no contexto da flexibilização das relações trabalhistas 361

Ademais, mesmo os defensores da “flexibilização” das relações trabalhis-


tas não contestam o Direito do Trabalho enquanto tal, ramo da discipli-
na nascido do intervencionismo estatal que impôs diferentes modelos
de regulação social da relação entre capital e trabalho. Importa destacar,
contudo, que a disputa política – legislativa e teórica – em torno do
modelo (por exemplo, a reforma trabalhista promovida pelo governo
FHC) contribui para elucidar as diversas configurações que o Direito
do Trabalho pode assumir em uma determinada formação social.
No período posterior à Constituição de 1988 houve, portanto, acir-
rada disputa legislativa em torno da flexibilização da legislação tra-
balhista, sobretudo das condições de contratação, uso e demissão da
mão-de-obra, fatores que, juntamente com as transformações ocorri-
das na estrutura socioeconômica e na inserção da sociedade brasileira
na economia internacional, contribuíram para enfraquecer os propósi-
tos “integradores” das classes sociais presentes na legislação social que
vigorava no país. Considerações que nos remetem à noção de historici-
dade daquilo que chamamos de “Direito do Trabalho”, ramo da ciência
jurídica que se situa no centro de conflitos radicais entre interesses
antagônicos, especialmente por ocupar posição estrutural privilegiada,
ponto crucial e estratégico em que se cruzam “o coletivo e o individual,
o físico e o mental, o econômico e o social” ( Jeammaud, 1998: 30-31;
Supiot, 1990: 489).

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Direito penal
365

Os princípios
constitucionais penais na
Constituição Federal de 1988
Alexandre Sankievicz

1. A força normativa dos princípios constitucionais

No positivismo jurídico, os princípios gerais de direito eram tratados


como meras normas programáticas e genéricas, haja vista considera-
rem que sua excessiva abstração impedia uma vinculação normativa.
Embora integrassem o ordenamento jurídico, exerciam uma função
meramente suplementar, sendo aplicáveis somente como recursos ao
preenchimento de eventuais lacunas existentes.(SCHIMIDT, 2001,
167) Essa foi a linha traçada no direito brasileiro, quando no artigo 4°
da Lei de Introdução ao Código Civil foi estabelecido que “ quando a
lei for omissa, o juiz decidirá de acordo com a analogia, os costumes e
os princípios gerais de direito.” Nessa fase, os princípios não possuíam
a capacidade de limitar o conteúdo das leis.
A partir da segunda metade do século XX, essa concepção modifi-
cou-se radicalmente em razão de dois fatores: um histórico e outro
teórico. Sob a perspectiva histórica, após a Segunda Guerra Mun-
dial, restou claro que a mera submissão do Estado à lei era insufi-
ciente para impor o respeito aos direitos fundamentais, pois também
o legislador pode ser responsável por incontáveis arbitrariedades. As
doutrinas do período nazista usaram a lei de maneira irracional. Au-
torizaram, no direito penal, o ingresso do mais alto subjetivismo,
mediante nefastas figuras do “tipo normativo de autor ou do inimigo
do povo ou do Estado, identificados não em razão de fatos come-
tidos, mas com base, simplesmente, na personalidade e origem do
réu (FERRAJOLI, 2002, 185). O resultado foi um impressionante
repensar das ciências jurídicas após a guerra, sobretudo acerca dos
alicerces e dos princípios pelos quais deve se nortear “o direito para
ser direito”. Em toda parte, levantou-se a luta contra o positivismo,
partindo-se da idéia de que há leis que não são Direito e Direito
acima das leis (RARDBRUCH, 1973).
366 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Do ponto de vista teórico, os trabalhos de Ronald Dworkin e Ro-


bert Alexy, em especial, contribuíram para atribuir aos princípios
força normativa, que deixaram ser vistos como meros complementos
das regras, para passarem a ser encarados como formas de expressão
da própria norma jurídica. As modernas constituições, por sua vez,
incorporaram grande parte dos valores e preceitos elaborados pelo
jusnaturalismo racionalista e iluminista dos séculos XVII e XVIII,
na forma de princípios normativos fundamentais que impõem limi-
tações negativas ao legislador.
A proclamação da normatividade dos princípios em novas
formulações conceituais e os arestos das Cortes Supremas no
constitucionalismo contemporâneo corroboram essa tendência
irresistível que conduz à valoração e eficácia dos princípios como
normas-chaves de todo o sistema jurídico; normas das quais se
retirou o conteúdo inócuo de programaticidade, mediante o qual
se constumava neutralizar a eficácia das Constituições em seus
valores referenciais, em seus objetivos básicos, em seus princípios
cardeais. (BONAVIDES, 1999, 257)

Para o legislador, assim, surgiu o dever de respeitar os direitos e ga-


rantias fundamentais positivados nas Constituições, encontrando-se
impossibilitado de criar normas que não encontrem respaldo no texto
constitucional. Disso decorre que toda limitação a determinado di-
reito fundamental deve sempre se amparar, ainda que indiretamen-
te, no texto constitucional, sob pena de um interesse momentâneo e
hierarquicamente inferior se sobrepor a valores constitucionalmente
assegurados. O velho e formalista Estado de Direito se transmuda
em Estado Constitucional de Direito e o juízo de validade de uma
norma deixa de ser apenas um exame sobre os seus requisitos formais
de elaboração, para se tornar também um juízo de valor acerca de sua
compatibilidade com direitos consagrados na Constituição.
Segundo esse novo paradigma, é incontestável que o direito penal
funda-se na Constituição, no sentido de que as normas que o consti-
tuem, ou são elas próprias formalmente constitucionais, ou são auto-
rizadas por outras normas constitucionais, que determinam em parte
o conteúdo de suas leis. As opções expressas na Carta Magna, não só
devem ser respeitadas pelas normas penais, como também orientar a
sua interpretação.
Os princípios constitucionais penais na Constituição Federal de 1988
367

2. O princípio da legalidade penal

A Constituição Federal de 1988, consagrou o princípio da legalidade


penal no artigo 5°, inciso XXXIX, segundo o qual não há crime sem
lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. A
Carta também ratificou o princípio da reserva legal, quando atribuiu
somente ao Parlamento a edição de regras em matéria penal e proces-
sual penal ( art. 62, § 1°, “b”). A execução penal igualmente se submete
ao preceito, pois dispõe o artigo 5°, XLVI, que a individualização da
pena será regulada por meio de lei bem como o artigo 68, § 1°, II,
veda a delegação pelo Congresso Nacional ao Executivo de matérias
relacionadas a direito individual.
A competência para legislar sobre direito penal e processual é priva-
tiva do Poder Legislativo Federal( art. 22, inciso I, da CF), ressalvada
a exceção prevista no parágrafo único do mesmo artigo. Por sua vez,
ninguém poderá ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devi-
do processo legal ( art. 5°, LIV) ou julgado por tribunal que não seja
competente para tanto ( art. 5°, XXXVII).
Todos esses dispositivos conferem ao postulado da reserva legal, não
só ó escopo de criar crimes, penas e meios para aplicá-las, mas, prin-
cipalmente, uma função negativa, que assegura a liberdade do cidadão
contra o arbítrio e o abuso do poder.
Mas o princípio da legalidade penal não foi o único preceito penal
alçado a categoria constitucional em 1988. A Constituição Federal
trouxe em seu texto um conjunto de princípios que conferiram uma
nova perspectiva ao direito penal brasileiro.

3. O princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos

A livre manifestação de pensamento, a liberdade de consciência e de


crença, a proibição de qualquer privação de direitos por motivo de
convicção religiosa, filosófica ou política, a livre expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, a inviolabilidade da
intimidade e da vida privada, o livre exercício de qualquer trabalho,
ofício ou profissão garantidos pela Constituição da República (art. 5°,
incisos, IV, VI, VIII, IX, X, .XIII), consagram a liberdade moral e
de autodeterminação individual e trazem importantes conseqüências
para o direito penal (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2003, p. 115):
368 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

a) O Estado não pode impor uma moral ao cidadão, ao invés,


deve garantir um âmbito de autonomia e liberdade para o de-
senvolvimento da sua própria personalidade.
b) As sanções penais não podem incidir sobre condutas que ex-
primam o exercício da autonomia moral que o Estado tem a
obrigação de garantir1. O direito penal, portanto, somente pode
tutelar bens jurídicos que sejam ao menos parcialmente alheios
ao indivíduo.

Vê-se que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos é capaz


de oferecer, com boa margem de segurança, o que não pode ser obje-
to de criminalização, exercendo, segundo Nilo Batista (2001, 97), ao
menos quatro funções.2:
A primeira é impedir a incriminação de uma atitude interna. As idéias,
as convicções, os desejos, sentimentos e aspirações humanas não po-
dem ser objeto de um tipo penal, nem mesmo quando se orientem
para a prática de um crime. A mera cogitação, o projeto mental para a
prática de uma infração jamais será punível.
A segunda é proibir a incriminação de uma conduta que não exceda
o âmbito do próprio autor. Os atos preparatórios para a prática de um
crime, cuja execução jamais é iniciada, o conluio entre duas ou mais
pessoas para a prática de um delito que nunca será cometido, a auto-
lesão, a automutilação, o suicídio e o uso de drogas, segundo o nobre
jurista, não podem ser punidos, pois, embora afetem bens jurídicos,
não ultrapassam a esfera individual do autor.
A terceira é impedir a incriminação de simples estados ou condições
existenciais. O homem é delinqüente não pelo que é, senão pelo que

1
A autonomia moral e a liberdade de pensamento encontram limites na própria
Constituição que em seu artigo 5°, incisos XLI e XLII, por exemplo, estabelece que
a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamen-
tais e sujeita a pena de reclusão aos responsáveis pela prática de racismo.
2
Ao que atribuímos ser função do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos,
Nilo Batista atribui ao princípio da lesividade, também conhecido como princípio
da ofensividade. Entretanto, embora intimamente vinculados, tais princípios não se
confundem. A função da primeiro é delimitar a missão do direito penal, deixando
claro que sua tarefa não é proteger a moral, os costumes, determinada ideologia ou
religião; cuida da separação entre direito e moral e da diferenciação entre crime e
pecado. A função do segundo é estabelecer uma forma de compreender o delito,
excluindo de seu conceito condutas de mera desobediência ou de simples violação a
uma norma imperativa. (GOMES, 2002, p. 43). Enquanto o princípio da exclusiva
proteção de bens jurídicos visa a responder qual deve ser o objeto de proteção penal
ou o que se entende por bem jurídico, o princípio da ofensividade preocupa-se com
o momento a partir do qual se legitima a intervenção, ou seja, quais os limites da
antecipação da tutela penal, de modo a impedir a ocorrência de danos irremediáveis
aos bens jurídicos.
Os princípios constitucionais penais na Constituição Federal de 1988
369

faz. São as ações humanas, e não o simples estado ou condição de


alguém o fundamento da responsabilidade penal. Disso decorre a in-
constitucionalidade de artigos como os 59 e 60 da Lei de Contraven-
ções Penais que punem, de maneira dissimulada, o fato de alguém ser
vadio ou mendigo.
A quarta é proibir a incriminação de condutas que, embora forte-
mente desaprovadas pela coletividade, apenas revelem o exercício de
uma autonomia moral. A Constituição garante o direito à diferença e,
assim, a prática de costumes distintos por grupos minoritários. Não é
função do direito penal a tutela de uma moral, religião, ideologia ou
costume específico, senão a proteção da liberdade de escolha.
Em resumo, da autonomia ética e moral asseguradas pela Constitui-
ção Federal resulta que a conduta puramente interna ou individual,
seja ela pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente, não pode legiti-
mar a edição de uma lei penal incriminadora.
No mais, o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos ainda
pode oferecer parâmetros para se estabelecer o que pode ser objeto de
criminalização, sendo certo que, mesmo não havendo um conteúdo
predeterminado daquilo que pode ser objeto de intervenção penal, a
Constituição será sempre o ponto de referência obrigatório para a se-
leção dos bens penalmente tuteláveis.
Considerando o elevadíssimo valor da liberdade individual, as-
sim como suas gravíssimas conseqüências para o ‘ser’, não tanto (
ou não necessariamente) para o ‘ter’ da pessoa, por razões de pro-
porcionalidade, razoabilidade, e equilíbrio, só resulta legitimada
a privação da liberdade quando estão em jogo ofensas concretas
para outros bens de igual ou equivalente valor e, mesmo assim,
de outras pessoas; nunca a proteção dos próprios bens jurídicos
pode fundamentar a intervenção penal). (GOMES, 2002, 95)

4. Princípio da proporcionalidade

A aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, prevista no ar-


tigo 5°, § 1°, da Constituição Federal, não dispensa por si só a ativi-
dade legislativa para a conformação desses direitos. Muitos direitos
fundamentais – princípios como o direito à liberdade ou igualdade,
por exemplo, – por serem vagos, abstratos e abertos, precisam de uma
regulamentação normativa que delimite seu conteúdo, lhes assegure
maior efetividade e evite colisões com outros princípios eventualmen-
te opostos. A fim de garantir a segurança jurídica, à lei foi confiado o
poder para amoldar esses direitos, dar-lhes forma e contorno (BAR-
370 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ROS, 2003, 74). Posto isto, qual deve ser o modo como deve atuar
o legislador ao editar normas conciliadoras e por vezes restritivas de
direitos fundamentais?
Certo é que de muito pouco adiantariam as solenes declarações nas
Constituições modernas se o legislador, a título de regulamentação
dos direitos fundamentais, pudesse simplesmente suprimi-los. Tendo
isso em vista, o princípio da proporcionalidade visa a estabelecer parâ-
metros racionais para o exercício da função legislativa, de forma a im-
pedir fraude ou abuso à Constituição por meio da lei.(Idem, p. 76).
Em 1971, o Tribunal Constitucional Alemão deixou claro os requisi-
tos necessários para que tenham legitimidade as medidas restritivas
de direitos fundamentais:
O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e ne-
cessário para alcançar o objetivo procurado. O meio é ade-
quado quando com seu auxílio se pode alcançar o resultado
desejado. É necessário quando o legislador não poderia ter
escolhido outro meio igualmente eficaz, mas que não li-
mitasse ou limitasse da maneira menos sensível o direito
fundamental.”(BONAVIDES, 1999, p. 372)

O Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, também já


manifestou que a legitimidade das medidas restritivas de direitos há
de ser aferida no contexto de uma relação entre meio-fim, devendo
ser pronunciada a inconstitucionalidade da lei que tenha limitações
inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais (MENDES 1998, p.
39). Em uma de suas primeiras decisões sobre o tema, o Tribunal, no
Habeas Corpus n° 45.232, em 21 de fevereiro de 1968, considerou
desproporcional a parte do artigo 483 da Lei de Segurança Nacional,
que vedava ao acusado de crime contra a segurança nacional a prática
de qualquer atividade profissional ou privada. No voto do Ministro
Themístocles Cavalcanti, podemos ver os motivos adotados pela Cor-
te para declarar a inconstitucionalidade da norma:
(...) O objetivo da lei foi inverso a essa tendência, porque pro-
curou aumentar o rigor da repressão desses crimes, intimidando
com medidas que atingem o indivíduo em sua própria carne,
pela simples suspeita ou pelo início de um procedimento crimi-
nal fundado em elementos nem sempre seguros ou de suspeitas
que viriam a se apurar no processo.

3
Art. 48. A prisão em flagrante delito ou o recebimento da denúncia, em qualquer
dos casos previstos neste decreto-lei, importará, simultaneamente, na suspensão
do exercício da profissão, emprego em atividade privada, assim como de cargo ou
função na Administração Pública, autarquia, em empresa pública ou sociedade de
economia mista até a sentença absolutória:
Os princípios constitucionais penais na Constituição Federal de 1988
371

Nesse particular, a expressão de medida cruel, encontrada no


texto americano, bem caracteriza a norma em questão, porque,
com ela, se tiram ao indivíduo as possibilidades de uma atividade
profissional que lhe permite manter-se e a sua família.
Cruel quanto à desproporção entre a situação do acusado e as
conseqüências da medida.
Mas não só o art. 150, § 35, pode ser invocado. Também o caput
do art. 150 interessa, porque ali se assegura a todos os que aqui
residem o direito à vida, à liberdade individual e à propriedade.
Ora, tornar impossível o exercício de uma atividade indispen-
sável que permita ao indivíduo obter os meios de subsistência é
tirar-lhe um pouco de sua vida, porque esta não prescinde dos
meios materiais para a sua proteção (MENDES, 1998, p. 69).

Gilmar Mendes leciona que, com a proporcionalidade, o princípio da


reserva legal converte-se no princípio da reserva legal proporcional, que
pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perse-
guidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para a
consecução dos objetivos pretendidos e a necessidade de sua utilização.
Por fim, um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade
da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre o significado da
intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pela lei (propor-
cionalidade ou razoabilidade em sentido estrito).(1998, p. 69)
Enquanto na concepção original o princípio da legalidade visava ape-
nas à defesa de direitos básicos do indivíduo, por meio da reserva da
lei, agora, também dirige-se contra o próprio legislador, trazendo li-
mites à sua liberdade conformadora-concretizadora. Posto isso, exa-
minemos com mais vagar os três subprincípios que compõem o prin-
cípio da proporcionalidade – princípio da necessidade, da adequação
ou idoneidade e princípio da proporcionalidade em sentido estrito – e
suas conseqüências para o direito penal.

4.1 Princípio da necessidade

Beccaria, remetendo-nos a Montesquieu, escreveu que todo ato de


autoridade de homem para homem que não derive da absoluta ne-
cessidade é tirânico (1999, p. 28). E a isso, acrescentou que “proibir
grande quantidade de ações diferentes não é prevenir delitos que delas
possam nascer, mas criar novos” (1999, p. 128). A cada crime criado é
diminuída um pouco a liberdade do indivíduo.
Em nossa Constituição, o reconhecimento da dignidade da pessoa hu-
mana, da livre iniciativa e do pluralismo político como fundamentos
372 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

do Estado brasileiro e a garantia da liberdade, direito individual ex-


pressamente reconhecido como cláusula pétrea no texto constitu-
cional, asseguram que somente quando for estritamente necessário
para a preservação da coletividade poderá o legislador suprimir a
liberdade individual.
O princípio da necessidade preconiza que, sendo a liberdade indivi-
dual a regra, somente é legítima a criminalização de um fato se isso
constituir meio indispensável para a proteção de um determinado
bem. Se outras formas de sanção se revelarem suficientes para a tutela,
a criminalização será desproporcional ( LUISI, 2003, p. 40). Desse
preceito ainda decorrem dois outros princípios: o da subsidiariedade e
o da fragmentariedade do direito penal.
A subsidiariedade pressupõe que somente quando outros ramos do
direito não solucionarem satisfatoriamente o conflito será justificada
a intervenção penal. O Estado possui várias formas menos gravosas
para tutelar bens jurídicos, como o uso do direito civil e administra-
tivo, devendo valer-se do direito penal como ultima ratio.
Por fragmentariedade, entende-se que ao direito penal não cabe
tutelar todos os bens jurídicos de uma coletividade, mas tão-so-
mente os mais relevantes. Significa ainda que não é qualquer ata-
que ao bem jurídico que legitima a intervenção penal, mas apenas
os mais intoleráveis. A fragmentariedade não é um defeito do di-
reito penal, mas uma exigência de ordem político-criminal, tendo
em vista a natureza e a função desse ramo do direito. (GOMES,
2003, p. 86)
Ferrajoli extrai desses princípios algumas conseqüências (2002,
p. 377-384):
a) nenhuma violação a bem jurídico merece uma sanção penal,
no lugar de uma civil ou administrativa, se o seu valor não for
maior do que os bens privados pela pena;
b) a tutela penal de bens jurídicos apenas tem justificação e le-
gitimidade quando é subsidiária de uma política extrapenal de
proteção dos mesmos bens. As ofensas evitadas pelo direito penal,
podem, em muitos casos, ser combatidas de maneira mais eficaz
por meio de campanhas e medidas de natureza administrativa, em
especial no que diz respeito aos delitos culposos. Veja, por exem-
plo, a campanha de educação no trânsito realizada no Distrito
Federal. Noutras palavras, se há meio menos gravoso à liberdade
individual para atingir o mesmo fim, esse deve ser utilizado.

Segundo ainda o mestre italiano, o princípio da necessidade ou da in-


tervenção mínima afeta diretamente os chamados delitos de bagatela,
Os princípios constitucionais penais na Constituição Federal de 1988
373

que não justificam a existência nem do processo penal nem da pena.


Em nome da máxima economia das sanções penais, deve se descri-
minalizar toda a categoria das contravenções penais e, junto com ela,
todos os delitos puníveis exclusivamente com penas pecuniárias ou,
alternativamente, com pena privativa de liberdade.
Nenhum bem considerado fundamental a ponto de justificar a
tutela penal pode ser monetarizado, de forma que a mesma pre-
visão de delitos sancionados com penas pecuniárias evidencia
ou um defeito de punição ( se o bem protegido é considerado
fundamenal), ou, mais freqüentemente, um excesso de proibição
( se tal bem não é fundamental). (2002, p. 382)

4.2 Princípio da adequação ou idoneidade

Para que a intervenção penal seja legítima não basta que seja necessá-
ria, mas precisa ser também idônea para tutelar o bem jurídico. Deve
ficar demonstrada a capacidade do meio – crime e pena – para atingir
o fim almejado, revelando-se de imediato injustificada toda a proibi-
ção ou pena que, previsivelmente, revele-se inadequada para alcançar
o fim perseguido.
Entretanto, o julgamento de compatibilidade entre meio e fim traz
alguns problemas, haja vista ser impossível, durante a fase de elabora-
ção legislativa, prever todos os resultados que serão alcançados com a
norma incriminadora.
De acordo com a jurisprudência constitucional tedesca, não há neces-
sidade de que a adequação seja completa, já que a lei é, no momento
de sua edição, apenas uma previsão abstrata cujas virtudes e defeitos
irão se revelar com o decurso do tempo (BARROS, 2002, p. 79). As-
sim, um meio deve ser considerado idôneo à obtenção de um resulta-
do quando, com o seu auxílio, seja favorecido o resultado pretendido.
Consoante o Tribunal Alemão, a medida que puder justificar-se com
base num prognóstico anterior não poderá ser censurada ainda que,
em um juízo posterior, seja constatado que não contribuiu para a ob-
tenção do resultado (GOMES, 2003, p. 132).
O juízo de adequação, portanto, teria um enfoque tão-somente negati-
vo, pois apenas quando inequivocamente o meio se apresentasse como
inidôneo para alcançar o fim deveria ser considerado inconstitucional.
Em se tratando de direito penal, contudo, concordamos com Mariân-
gela Gama de Magalhães Gomes quando diz que, em caso de um prog-
nóstico errado do legislador evidenciado ulteriormente, é sua obrigação
374 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

mudar a lei com base nos novos dados conhecidos, sob pena de o Poder
Judiciário, a partir daí, poder declarar a inconstitucionalidade.
Embora possam ocorrer erros de prognóstico legislativo, assim
como as transformações sociais são capazes de modificar o modo
como a norma é recebida pela coletividade, uma vez constatada
a inidoneidade daquela para a tutela de bens jurídicos, não pode
subsistir em sede de direito penal, o argumento segundo o qual
o juízo prognóstico indicativo da adequação da norma ao esco-
po, realizado no momento da elaboração legal, é suficiente para
excluir qualquer possibilidade futura de declaração de inconsti-
tucionalidade do ato normativo. Seria o mesmo que não admitir
que o juízo de necessidade pode sofrer alterações no decorrer do
tempo, em virtude das mutáveis valorações atribuídas aos bens
jurídicos constitucionais, ou que a proporcionalidade entre de-
lito e infração (proporcionalidade em sentido estrito) seja algo
estanque, não influenciável pelos valores sociais. (2003, p. 134)

No Brasil, por exemplo, se examinarmos a antiga Lei dos Crimes He-


diondos apenas sob o prisma da idoneidade, obteremos fortes indícios
de que a proibição da progressão de regime não se revelou apta para
conter o crescimento da criminalidade.
De acordo com dados apresentados pela presidente da Comissão de
Estudos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, mesmo após a
promulgação da Lei 8.072/90, o crime de homicídio doloso teve um
crescimento de 31,72%, entre 1994 e 1998, e a prática de tráfico de
entorpecentes aumentou 101,71%, entre 1991 e 1998; os crimes de
latrocínio, extorsão mediante seqüestro, estupro e atentado violento
ao pudor permaneceram praticamente estáveis (GOMES, 2003, 142).
Atualmente, com 3% da população mundial, o Brasil é responsável por
13% dos assassinatos cometidos no planeta.
Por outro lado, o déficit de vagas no sistema penitenciário só aumen-
tou. Há pouco mais de uma década, autoridades estimaram que o país
necessitava de 50.934 novas vagas para acomodar a população car-
cerária. Conforme dados mais atualizados do Ministério da Justiça,
apenas nas penitenciárias e casas de detenção esse déficit é de 60.714.
Não há dados sob o déficit de vagas nas delegacias.
A lei referida certamente contribuiu para agravar a situação do já su-
perlotado sistema prisional existente, o que serviu para aumentar a
violência entre os presos, as tentativas de fuga e os ataques aos guardas.
Nesse período, parte das rebeliões nas prisões do país foi diretamente
atribuída à superlotação. Em muitos casos, os presos simplesmente
pediam a transferência para estabelecimentos menos lotados, queren-
Os princípios constitucionais penais na Constituição Federal de 1988
375

do deixar um estabelecimento apertado para uma penitenciária mais


espaçosa.
As informações revelam que a lei dos crimes hediondos conferiu uma
falsa idéia de segurança, cumprindo apenas uma função simbólica e
completamente ineficaz frente à realidade social. No mais, serviu para
agravar o constante desrespeito aos direitos humanos dos presos e à lei
de execução penal, gerando mais custos do que benefícios. Para quem
não considerava a lei inconstitucional desde o início, os dados indicam
ao menos que a norma tornou-se desproporcional.
Em 2006, o § 1° do artigo 2° da lei n° 8.072/90, embora por argumen-
tos diversos, finalmente foi declarado inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal ( Inf. 418 do STF). A corte entendeu que a vedação
da progressão de regime afrontava o direito à individualização da pena
(CF, art. 5º, LXVI), já que, ao não permitir que se considerem as par-
ticularidades de cada pessoa, a sua capacidade de reintegração social
e os esforços aplicados com vistas à ressocialização, acabava tornando
inócua a garantia constitucional.

4.3 Princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade


em sentido estrito

É possível declarar a inconstitucionalidade de uma medida com fun-


damento na proporcionalidade em sentido estrito se essa regra, embo-
ra seja necessária e apta para tutelar determinado bem jurídico, acabe
por atingir outro bem de maneira desarrazoada. O princípio, implica,
assim, a realização de uma rigorosa ponderação entre o significado da
intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador
(MENDES, 1998, 40).
Um exemplo nos aclarará a função desse preceito: sabemos que o exa-
me de DNA é uma medida apta e necessária para a identificação da
paternidade, haja vista ser, muitas vezes, o único meio idôneo para com-
provar ou excluir a relação de parentesco. O Supremo Tribunal Federal,
contudo, mesmo entendendo que a Constituição garante a proteção da
criança, do adolescente e da família, considerou que não se pode obrigar
o réu à coleta de material para o exame, sob pena de violação da intan-
gibilidade do corpo humano. Segundo a Corte, ainda quando o exame
de DNA é o único meio apto para identificar a paternidade, a sua uti-
lização contra a vontade do pai é inconstitucional, pois o atingido pelo
ato tem o seu direito fundamental afetado além do constitucionalmente
permitido ( HC n° 71.373-RS, DJU de 22.11.96).
376 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Em uma situação limite, a proporcionalidade em sentido estrito im-


pede que um direito fundamental seja afetado em seu núcleo consi-
derado essencial, mesmo que o meio escolhido seja o único idôneo
para incrementar a tutela de outro direito fundamental. Em situa-
ções cotidianas, o preceito importa a realização de uma ponderação
que compara, valorativamente, dois bens jurídicos, estabelecendo uma
proporção entre a restrição do bem afetado e o aumento de proteção
do bem beneficiado.
No direito penal, a proporcionalidade em sentido estrito estabelece a
medida em que deve ser restrita a liberdade individual em benefício
da proteção de outro bem de valor constitucionalmente significativo,
sendo certo que a restrição à liberdade será maior à medida que for
maior a importância do bem agredido. Isso significa que o limite que
vincula o legislador na fase de elaboração da lei não se refere apenas à
escolha de determinada conduta como infração penal, mas também à
graduação de sua sanção (GOMES, 2003, p. 156). A tarifa das pena-
lidades é a medida do valor dos bens sociais (FERRAJOLI, 2001, p.
381), cabendo ao legislador buscar a quantidade de pena constitucio-
nalmente devida para cada tipo incriminador.

5. Princípios da humanidade e da individualização da pena

A pena criminal requer a sua aplicação de forma parcimoniosa, pois


tutela bens jurídicos compatíveis com a Constituição por meio de le-
são a outro bem também garantido no texto Constitucional.
Ao tratar da sanção penal, a Constituição Federal proíbe a cominação
de pena de morte, salvo em caso de guerra, de caráter perpétuo, de tra-
balhos forçados e de banimento, assim como as penas cruéis (5°, XLVI).
Também garante a integridade física e moral do preso (5°, XLIX) e
determina no inciso seguinte que serão asseguradas às presidiárias con-
dições para que possam permanecer com os seus filhos durante o perí-
odo de amamentação. Assegura, ainda, que a individualização da pena
será regulamentada por lei ( art. 5°, XLVI), garantindo a incidência do
princípio da reserva legal durante a execução penal. A Carta Magna,
assim, deixa claro quais são os vetores da execução da pena privativa de
liberdade, reconhecendo o preso como sujeito de direitos e a aplicação
do princípio da humanidade na cominação e execução da pena.
Definir qual é a sanção apropriada para cada delito, entretanto, é tarefa
extremamente complexa, haja vista a dificuldade de se racionalizar a
passagem do plano qualitativo da valoração para o plano quantitativo
Os princípios constitucionais penais na Constituição Federal de 1988
377

da medida da pena, seja no momento da previsão da sanção em abstrato


ou de sua aplicação e execução no caso concreto. A idéia aparentemen-
te elementar de proporcionalidade entre pena e delito não oferece, por
si só, nenhum critério objetivo de ponderação. Uma vez dissociada a
qualidade da pena da qualidade do delito e reconhecida a inevitável he-
terogeneidade entre a primeira e o segundo, verifica-se que não existem
critérios naturais para estabelecer a qualidade e quantidade de pena para
cada infração penal (FERRAJOLI, 2001, p. 320)4.
É possível, contudo, identificar alguns parâmetros a serem observados.
O primeiro deles refere-se à ilegitimidade de penas fixas. Dois fatos,
ainda quando possam ser enquadrados como roubos ou homicídios,
nunca são totalmente iguais: serão diversos porque sempre serão dis-
tintos os motivos e as modalidades da ação, assim como a intensidade
da culpa, as conseqüências do dano e as eventuais circunstâncias que
possam justificar a conduta ou atenuá-la. Uma pena fixa, portanto, não
se encontra em consonância com os princípios da individualização da
pena e da igualdade, devendo sempre haver um espaço para que o juiz
possa personalizar a sanção em razão das circunstâncias do caso concre-
to. Nesse sentido, o artigo 59 do Código Penal dispõe que o juiz deve
fixar a pena tendo em vista a culpabilidade, os antecedentes, a conduta

4
Nesse sentido, é importante ressaltar as críticas feitas pelo autor às teorias retribu-
cionistas, fundadas na lei do talião. a) a correspondência entre pena e delito não é
direta como pretendem seus defensores, mas na maioria das vezes simbólica, como
a amputação da mão se o réu é um falsário, a do pé se é um ladrão ou um servo fu-
gitivo, da língua se blasfemou ou testemunhou falsamente etc; b) se as penas devem
ter a mesma qualidade dos delitos, segue-se que devem ser de tantos tipos quanto
sejam os delitos, o que é impossível; c) as penas infamantes, corporais e capitais são
desiguais segundo a sensibilidade de quem as padece e da ferocidade dos que as
impõem e não graduáveis de acordo com a gravidade do delito; d) a aparente igual-
dade entre pena e delito perseguida pelo talião, que pelo menos em abstrato deveria
garantir igualdade de tratamento, tem sido sempre negada pela desigualdade social:
um número muito grande de pessoas comete delitos, mas o poder somente seleciona
os inábeis, de modo que se alguma coisa é retribuída é a inabilidade, e não o delito
(ZAFFARONI, 2004, p. 142). A regra do talião não diz qual é o fundamento ético
que autoriza o homem a retribuir um mal por outro mal e tampouco diz porque
quando uma pessoa sofre o mal é o Estado que deve exigir a retribuição. A teoria
retribucionista representa nada mais do que a sobrevivência de antigas crenças má-
gicas que atribuem à pena a idéia de restauração, remédio ou reafirmação de uma
ordem natural violada, ou ainda da antiga crença religiosa da purificação do delito
por meio do castigo. “A única diferença é que, enquanto nas concepções arcaicas do
tipo mágico-religioso a idéia de retribuição é ligada à objetividade do fato com base
em uma interpretação normativa da natureza, naquelas cristãs-modernas, sejam do
tipo ético, sejam do tipo jurídico, esta se conecta à subjetividade maldosa e culpada
do réu com base em uma concepção naturalista e ontológica tanto da moral como
do direito. (Idem, p. 206).
378 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

social e a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e conse-


qüências do crime, bem como o comportamento da vítima.
Por outro lado, a diferença entre a pena mínima e máxima não pode
ser excessivamente ampla, de modo a permitir que o juiz substitua o
legislador. Margens penais excessivamente largas propiciam confusão
valorativa, porquanto permitem que ofensa a bens jurídicos de impor-
tância distinta possam ser punidos de forma semelhante. Possibilitam
também o desrespeito ao princípio da igualdade e da segurança jurídi-
ca, pois a amplitude da medida da pena que pode ser aplicada ao caso
concreto ocasiona grandes diferenças, por parte dos órgãos julgadores,
no momento de impor a sanção. Tal fato adquire ainda maior relevân-
cia no direito brasileiro, pois os tribunais responsáveis pela unificação
da jurisprudência não reexaminam fatos e provas.
Por fim, ao estabelecer a sanção, o legislador deve sempre considerar a
gravidade da infração e o grau de culpabilidade de seu agente. Afinal,
conquanto se saiba ser impossível medir com precisão matemática a
pena constitucionalmente apropriada para cada delito, de acordo com
o princípio da proporcionalidade, se duas infrações são punidas com a
mesma pena, é porque o legislador as considera de gravidade equiva-
lente. Ao invés, se dois delitos são considerados de gravidade distinta,
contrariará o referido preceito a cominação de penas idênticas ou de
pena mais alta para o delito menos grave. A atividade legislativa deve
ser orientada pela racionalidade cabendo ao legislador distinguir de
maneira coerente as diferenças e semelhanças dos fatos a serem disci-
plinados, de maneira a não ofender a igualdade.

6. Princípio da responsabilidade pessoal

Ao contrário do que ocorria antes do Iluminismo, a pena não pode


atingir pessoas não responsáveis pela prática do delito, ainda que vin-
culadas ao condenado por relações de parentesco. Em nossa Consti-
tuição, o princípio da responsabilidade pessoal está expresso no artigo
5°, inciso XLV onde está disposto que nenhuma pena passará da pes-
soa do condenado.
Hoje, porém, não se ignora que, a despeito de só o condenado ter
a liberdade suprimida, é inevitável que a pena cause sofrimentos a
terceiros. Exemplo dessa situação é o da esposa que, vendo preso o
seu marido e não tendo como conseguir emprego para prover o seu
sustento e de seus filhos, é obrigada a prostituir-se para garantir a
sobrevivência (LUISI, 2003, p. 51).
Os princípios constitucionais penais na Constituição Federal de 1988
379

Para evitar casos similares a esse, a maioria das legislações prevê meios
para auxiliar e prestar assistência à família do condenado. No Brasil,
as Leis 8.112/90 e 8.213/91 prevêem auxílio-reclusão à família do
trabalhador preso. A Lei de Execuções Penais, por sua vez, incumbe
ao serviço de assistência social amparar e orientar a família do preso,
do internado e da vítima ( art. 23, VII), também destinando à família
a remuneração obtida pelo trabalho do condenado na prisão.

7. Princípio da culpabilidade

A Constituição brasileira consagra expressamente o princípio da cul-


pabilidade no artigo 5°, LVII, ao dispor que ninguém será culpado até
o trânsito em julgado da sentença condenatória. Isso implica afirmar
que a sanção penal pressupõe que o agente tenha atuado com dolo ou
culpa para a realização de um delito. A culpabilidade, porém, tem como
principal fundamento a dignidade da pessoa humana ( art. 1°, III), pois
imputar um resultado a alguém, com base apenas na teoria da causali-
dade e sem a prévia constatação de um vínculo subjetivo entre o autor e
o fato, equivale a retirar do homem seu poder de decisão, rebaixando-o
à condição de “coisa causante” (ZAFFARONI, 2004, 245).
Por esse princípio, entende-se que nenhuma conduta humana poderá
servir de fundamento para a imposição de uma pena, se não for previa-
mente fruto de uma decisão. Conseqüentemente, somente a conduta
intencional, realizada com consciência e vontade, por alguém capaz de
compreender e querer, poderá ser objeto de reprovação pelo ordena-
mento jurídico. Quem não tem como comportar-se de maneira distinta,
seja porque não tem discernimento para tanto, seja porque é coagido ou
não tem consciência da ilicitude de seus atos, não poderá ser punido.
Nas palavras de Hart, o princípio da culpabilidade assegura aos indiví-
duos a possibilidade “de prever e de planificar o rumo futuro de nossa
vida, partindo da estrututura coativa do direito”, garantindo-nos que “
ainda quando as coisas vão mal, como ocorre quando se cometem erros
ou se produzam acidentes, uma pessoa que haja feito o máximo possível
para respeitar o direito, não será castigada.” (SCHMIDT, 2001,p. 127)
Somente as ações previsíveis podem ser objeto de prevenção e, conse-
qüentemente, de reprovação, sendo certo que a norma penal somente
será lógica se puder ser observada por parte de seus destinatários.
380 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

8. Princípio da ofensividade

A vinculação entre o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos,


da ofensividade e da fragmentariedade é estrita. Os dois primeiros
princípios definem como missão do direito penal a proteção dos mais
relevantes bens jurídicos da sociedade e separa o direito da moral.
Para criminalizar determinada conduta, entretanto, não basta que o
bem jurídico tenha dignidade penal, deve-se também verificar se a
conduta criminalizada produz algum dano social. O último preceito,
assim, deixa claro que não pode haver delito sem ofensa. Verificada a
ofensividade da conduta, contudo, não se segue necessariamente a sua
criminalização, pois de acordo com o último princípio, não é qualquer
agressão ao bem jurídico que pode ser castigada, mas somente as con-
sideradas intoleráveis.
Nas lições de Luís Flávio Gomes, a lógica é a seguinte: “não há cri-
me sem conduta; não há conduta penalmente relevante sem ofensa a
um bem jurídico, não há ofensa penalmente punível senão quando for
intolerável; porém, em razão da intervenção mínima do direito penal,
nem toda ofensa intolerável deve constituir delito, porque pode haver
outros meios mais idôneos para a sua proteção”(2002, p. 45).
O legislador, desse modo, não somente estaria obrigado a eleger sem-
pre com claridade o bem jurídico, senão também a construir os tipos
legais respeitando a exigência da necessária ofensividade ao bem. A
ofensa passa a ser um requisito interno da infração penal, ao lado dos
demais dados estruturais do tipo legal.
Contudo, se é certo que não pode haver delito sem ofensa, muito mais
complexo é estipular o momento em que essa ofensa se configura.
Afinal, a partir de quando uma conduta se torna penalmente ofensiva
e até que ponto o legislador pode antecipar a proteção do bem jurídico
por meio do direito penal?
Segundo Alice Bianchini, a análise da ofensa deve ser efetuada levan-
do-se em conta o seguinte binômio: grau de importância dos valores
em causa e efeitos de determinado comportamento no âmbito social,
em relação a esses mesmos valores. A lesão vai perdendo a sua tole-
rabilidade à medida que o bem jurídico começa a adquirir relevância
mais acentuada, podendo-se, inclusive, chegar a uma proteção anteci-
pada, por meio da punição de atos preparatórios ou de condutas que
somente o exponham a risco (2002, p. 64-65).
Partindo da idéia de que a função do direito também é preventiva, a
autora afirma não ser necessário esperar a lesão de um bem para que
Os princípios constitucionais penais na Constituição Federal de 1988
381

haja a intervenção penal, ainda mais quando constatada a relevância


do objeto protegido e a probabilidade real de ocorrência de dano irre-
parável. Em situações excepcionais, portanto, é legítima a transferên-
cia do momento consumativo do delito da lesão para aquele da ame-
aça, aperfeiçoando-se a infração no momento em que o bem jurídico
encontrar-se em uma condição objetiva de provável lesão. Surgem, aí,
os crimes de perigo, caracterizados principalmente por representarem
uma antecipação da tutela penal. Em tais situações, o legislador con-
sidera que pôr em perigo determinado bem já é razão suficiente para
criminalizar a conduta, estabelecendo uma barreira de contensão que
dificulta a ocorrência do dano.
Os crimes de perigo são de perigo concreto ou abstrato. A diferen-
ciação entre eles está na necessidade de prova da efetivação do peri-
go: no primeiro caso, exige-se uma comprovação real, no segundo, é
presumido, dispensando-se demonstração (Idem, p. 66). Na doutrina,
a maioria dos autores entende que os crimes de perigo abstrato são
inconstitucionais, por afrontarem o princípio da ofensividade. Alguns,
porém, consideram que eles podem ser criados, desde que se admita
prova contrária em relação à presunção do perigo.
Silva Sánchez, por exemplo, ao discorrer sobre as diferenças entre o
direito penal e o administrativo nos apresenta alguns dos motivos pe-
los quais os crimes de perigo abstrato não são compatíveis com o atual
modelo constitucional:
O primeiro persegue a proteção de bens concretos em casos con-
cretos e segue critérios de lesividade ou periculosidade concreta
e de imputação individual de um injusto próprio. O segundo
persegue a ordenação, de modo geral, de setores de atividade
(isto é, o reforço, mediante sanções, de um determinado modelo
de gestão setorial). Por isso, não tem por que seguir critérios de
lesividade ou periculosidade concreta, senão que deve preferen-
cialmente atender a considerações de afetação geral, estatística:
ainda, assim, não tem por que ser tão estrito na imputação, nem
sequer na persecução ( regida por critérios de oportunidade e
não de legalidade)” (2002, p. 116).

Alice Bianchini, noutro turno, destaca que não se respeita o princí-


pio da dignidade da pessoa humana quando se impõe uma punição a
quem pratica uma conduta que simplesmente não é apta a causar ne-
nhum dano ao bem jurídico. Os crimes de perigo abstrato, segundo
a autora, também ferem o princípio da culpabilidade, pois o castigo
não se imporia em razão da ação do agente, mas em decorrência de
uma dada visão de política administrativa. O crime de perigo abs-
trato não protege o bem jurídico, mas castiga a mera desobediência à
382 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

norma penal, ainda que o autor no caso específico não esteja agindo
com dolo ou culpa.
Luís Flávio Gomes leciona que ver o delito como mera desobediên-
cia à norma imperativa, significa desprezar o que há de mais impor-
tante na norma penal, que é o seu aspecto valorativo. Consiste tam-
bém relegar a história, pois há pouco tempo os Estados totalitários,
para se utilizarem do direito penal como instrumento de sua política
de governo, configuraram o delito como mera desobediência à lei,
ainda quando ocorresse por meio de uma ação inócua em si mesma
(2002, p.60). O autor lembra, ainda, do artigo 17 de nosso Código
Penal que veda a punição de uma ação completamente ineficaz para
atingir o seu objetivo.
No Brasil, não obstante até o presente seja tímida a aplicação do prin-
cípio da ofensividade, já podemos extrair de alguns julgados a tese
de que, após a Constituição Federal de 1988, não há espaço para in-
frações de perigo abstrato. Nesse sentido, a decisão do STF sobre a
atipicidade do porte de arma sem munição:
A Turma concluiu julgamento de recurso ordinário em habeas
corpus interposto por denunciado pela suposta prática do cri-
me de porte ilegal de arma (Lei 9.437/97, art. 10), embora esta
estivesse desmuniciada – v. Informativo 340. Por atipicidade da
conduta, em votação majoritária, deu-se provimento ao recurso
para trancar a ação penal por entender não realizado o tipo penal
à vista dos princípios da disponibilidade e da ofensividade, já
que a arma de fogo seria inidônea para a produção de disparo.
Vencidos os ministros Ellen Gracie, relatora, e Ilmar Galvão,
que o indeferiam, por considerar que o fato de a arma estar sem
munição não a desqualifica como arma nem retira o seu poten-
cial de intimidação. RHC 81057/SP, rel. originária Min. Ellen
Gracie, rel. p/ o acórdão min. Sepúlveda Pertence, 25/5/2004.
(RHC-81057) ( Inf. 349 do STF)

Apesar de decisões como a citada, de maneira alguma se pode afirmar


que foi pacificada a polêmica sobre os crimes de perigo abstrato no
direito brasileiro. Acreditamos, porém, que aos poucos se consolidará
nos Tribunais o princípio de que não há delito sem lesão ou ameaça
concreta ao bem jurídico tutelado.
Os princípios constitucionais penais na Constituição Federal de 1988
383

9. Conclusão

Após esse breve exame dos principais princípios constitucionais pe-


nais da Carta de 1988, não é difícil inferir que, no Estado Consti-
tucional de Direito, a existência e a validade da norma penal estão
condicionadas, não apenas à adoção do correto procedimento para a
sua aprovação, mas também aos parâmetros materiais estabelecidos
pela Constituição.
A norma penal não se ampara apenas nas votações das maiorias – le-
galidade formal – senão em um sistema que, além de tutelar os inte-
resses da coletividade, preserva os direitos e garantias fundamentais
do indivíduo. É na defesa implacável dos direitos fundamentais que
reside o alicerce da legalidade material.
Não se deve sacrificar o indivíduo em benefício da sociedade, pois a
busca do bem-estar geral, apesar de louvável, somente é legítima den-
tro de parâmetros que preservem a dignidade humana. Dworkin nos
ensina que os direitos somente são levados a sério quando preservados
mesmo contra os interesses da maioria e destaca que o direito somente
pode ser assim chamado quando nenhuma diretriz política ou objeti-
vo social possa afastá-lo (2002).
A validade da norma penal pressupõe a preservação da imunidade dos
cidadãos contra as arbitrariedades das proibições e punições mesmo
contra os interesses da maioria; exige, ainda contra supostos emer-
gencialismos, a garantia da defesa do indivíduo por meio de regras
do jogo que sejam iguais para todos, respeitando-se a dignidade do
acusado e a sua liberdade ( FERRAJOLI, 2002, 271).

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Disposições transitórias
387

Apontamentos sobre disposições


constitucionais transitórias
Kley Ozon Monfort Couri Raad

1. Conceito e natureza jurídica

Singelamente considerado, transitório é algo que não tem existência


indefinida, dizendo o Aurélio: “1. De pouca duração, que passa; pas-
sageiro e efêmero, transitivo. 2. Sujeito à morte, mortal”.
Em se tratando do Ato das Disposições Constitucionais Transitó-
rias – ADCT – editado simultaneamente com o texto constitucional
em vigor, é perfeitamente correto concluir que nele foram concentra-
das as matérias que, por sua natureza discrepante do que disciplinado
no corpo permanente, foram apartadas dessa disciplina. E mais, nele
foram arroladas as hipóteses de vigência limitada no tempo.

2.

Por isso causa espécie venham ocorrendo modificações, operadas por


emendas constitucionais, em disposições constantes do ADCT,
cuja finalidade é, por demais sabido, servir de ponte entre duas or-
dens constitucionais, não podendo o constituinte derivado alterar o
conteúdo desse Ato, cuja concepção coube, exclusivamente, ao poder
constituinte originário.

3.

Lê-se em Wolgran Junqueira Ferreira (1989, v. 3, p. 1187, grifo nosso):


As disposições transitórias têm prazo certo de realização, ao
contrário das normas constitucionais propriamente ditas, que
são permanentes e inalteráveis até a reforma ou a emendabilida-
de. Nelas reúnem-se providências, decisões que não teriam, por
sua espécie transitória, lugar e oportunidade entre os preceitos
da Constituição.
Fundamentalmente, o Ato das Disposições Transitórias con-
tém normas de caráter não permanente, destinadas a conciliar,
388 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

no período de transição, algumas regras respeitáveis do regime


anterior com as do novo regime.
As normas que compõem o Ato das Disposições Transitórias
não deveriam criar direitos posteriormente ao período de
transição, nem devem ser invocadas na interpretação do texto
propriamente dito. Realizados os fatos nelas previstos, essas nor-
mas são como se não mais existissem; não poderão ser aplicadas
aos fatos supervenientes.

4.

Na pena sempre precisa de José Afonso da Silva (1998, p. 204 et seq.,


grifo nosso), as disposições transitórias reúnem conjunto de normas,
em geral separado do corpo da Constituição (como na CF de 1946 e
na vigente), com numeração própria de artigos, que é de melhor técni-
ca, pois trata-se de “regular e resolver problemas e situações de caráter
transitório, geralmente ligados à passagem de uma ordem constitu-
cional a outra”.
E prossegue:
As normas das disposições transitórias fazem parte integran-
te da Constituição. Tendo sido elaboradas e promulgadas pelo
constituinte, revestem-se do mesmo valor jurídico da parte per-
manente da Constituição. Mas seu caráter transitório indica que
regulam situações individuais e específicas, de sorte que, uma vez
aplicadas e esgotados os interesses regulados, exaurem-se, per-
dendo a razão de ser, pelo desaparecimento do objeto cogitado,
não tendo, pois, mais aplicação no futuro.
Exemplo típico é a regra constante do art. 1º do Ato das Dis-
posições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal:
“O Presidente da República, o Presidente do Supremo Tribunal
Federal e os membros do Congresso Nacional prestarão o com-
promisso de manter, defender e cumprir a Constituição, no ato
e na data de sua promulgação”. Foi aplicada. Sua eficácia transi-
tória operou-se completamente. Esgotou-se. Não é mais norma
jurídica, mas simples proposição sintática com valor meramente
histórico. Assim são, em geral, todas as que figuram no Ato das
Disposições Transitórias. Muitas já se esgotaram. Outras vão
se esgotando aos poucos.
São normas que regulam situações ou resolvem problemas de
exceção. Por isso, os autores entendem que de seus dispositivos
não se pode tirar argumento para interpretação da parte perma-
nente da Constituição. De uma solução excepcional para situa-
ções excepcionais seria absurdo extrair argumentos para resol-
ver situações e problemas de caráter geral e futuros. A mesma
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
389

doutrina, porém, entende que o inverso é racional e logicamente


recomendável: na dúvida quanto à interpretação e aplicação de
dispositivos das disposições transitórias, deve o intérprete recor-
rer ao disposto na parte permanente da Constituição, pois aqui
se encontram os critérios e soluções que normalmente – e para
um futuro indefinido e um número também indefinido de casos
e situações – a Constituição oferece como regra geral.

5.

O jovem e talentoso constitucionalista brasileiro, Luís Roberto Barro-


so, citado, inclusive, pelo magistral jurista português J. J. Gomes Ca-
notilho (2008, p. 411 et seq., grifo nosso), ensina:
Para que se chegue à melhor inteligência do dispositivo, impõe-
se que se examinem, em detalhe, a natureza, eficácia e espécie
das disposições transitórias. Como se assinalou anteriormente,
a doutrina é escassa, quando não inteiramente omissa, no tra-
to dessa questão. Daí ser necessário o relato mais detalhado que
se segue.
Primeira expressão do Direito na ordem cronológica, a Cons-
tituição cria (ou reconstrói) o Estado. Por sua própria razão de
ser – consolidar estavelmente os princípios supremos que devem
reger a vida coletiva –, toda Constituição nasce com a vocação
de permanência. Sem embargo, nenhuma lei fundamental visa
à perenidade. Ao revés, é regra que se estabeleçam mecanismos
de compatibilização da Constituição com o futuro. Assim, para
que a ordem jurídica possa se adaptar a novas realidades, existe o
mecanismo da emenda constitucional.
Mas não é apenas com o futuro e com as realidades superve-
nientes que uma Constituição precisa compatibilizar-se. Ao en-
trar em vigor, ela trava, igualmente, um embate com o passado.
A afirmação de Seabra Fagundes ao referir-se à Constituição
como primeiro documento na ordem cronológica assume, na
prática, o sentido de uma bela imagem. É que, via de regra, ela
já encontra uma ordem preexistente. Mais que isto, uma nova
Carta se depara com uma normatividade precedente que, em
muitos casos, já vem de longa data, fortemente arraigada, den-
samente incorporada à prática dos indivíduos. Mesmo quando
uma nova Constituição represente uma ruptura jurídica, via de
regra não há um rompimento absoluto com uma certa cultura,
um certo processo histórico, um condicionamento nacional. É
preciso aplainar a travessia entre o velho e o novo.
São precisamente as disposições constitucionais transitórias
que disciplinam esta confluência do passado com o presente, da
positividade que se impõe com aquela que se esvai. Destinam-
390 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

se as normas dessa natureza a auxiliar na transição de uma or-


dem jurídica para outra, procurando neutralizar os efeitos nocivos
desse confronto, no tempo, entre regras de igual hierarquia –
Constituição nova versus Constituição velha – e de hierarquia di-
versa – Constituição nova versus ordem ordinária preexistente.
Ao fazê-lo, as normas transitórias, por vezes, regulam tempo-
rariamente determinada matéria, até que a regra constitucional
permanente possa incidir em sua plenitude. Em outras ocasiões,
criam ou extinguem determinadas situações jurídicas para que
a Constituição já se depare, na sua aplicação regular, com uma
nova realidade. Ou, ainda, suspendem, por um prazo acertado,
o início da eficácia de uma determinada norma constitucional.
Averbe-se, no entanto, porque fundamental, que todas as nor-
mas inscritas na parte ou no apêndice que a Constituição dedica
às disposições transitórias são formalmente constitucionais. Vale
dizer: desfrutam, independentemente de seu conteúdo, da su-
premacia jurídica de tais normas, sendo aplicáveis com o grau de
eficácia que esta posição hierárquica lhes confere.
Com base na ordenação procedida no parágrafo anterior, é pos-
sível identificar as espécies distintas de disposições transitórias,
para agrupá-las nas três categorias abaixo.
(I) Disposições transitórias propriamente ditas. Tais são as
disposições típicas, que regulam provisoriamente determinadas
relações, destinam-se a vigência temporária e, de regra, estão su-
jeitas apenas à ocorrência de uma condição resolutiva ou de
um termo. No Ato das Disposições Transitórias aprovado com
a nova Carta, são exemplos dessa natureza:
Art. 10, § 1º Até que a lei venha a disciplinar o disposto no art.
7º, XIX da Constituição o prazo de licença-paternidade a que se
refere o inciso é de cinco dias.
Art. 23. Até que se edite a regulamentação do art. 21, XVI, da
Constituição, os atuais ocupantes do cargo de censor federal
continuarão exercendo funções com este compatíveis, no De-
partamento de Polícia Federal, observados os dispositivos cons-
titucionais.
(II) Disposições de efeitos instantâneos e definitivos. Nessa
hipótese, geralmente abrangente das normas com caráter orga-
nizatório, não existe, de regra, hipoteticidade, ou seja, a previsão
de um fato em tese e a atribuição de um efeito jurídico. A norma
opera, quer imediatamente, quer no prazo nela estabelecido, a
plenitude de seus efeitos jurídicos, que, realizados objetivamen-
te, se exaurem.
Tal é o caso, e.g., do art. 13 do Ato das Disposições Constitucio-
nais Transitórias: “É criado o Estado do Tocantins”. Ou do art.
15: “Fica extinto o Território de Fernando de Noronha, sendo
sua área reincorporada a Pernambuco.”
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
391

(iii) Disposições de efeitos diferidores. Por fim, estas são as re-


gras que sustam a operatividade da norma constitucional por
prazo determinado ou até a ocorrência de um determinado
evento. Tome-se como exemplo o art. 5º do ADCT: “Não se
aplicam às eleições previstas para 15 de novembro de 1988 o
disposto no art. 16 e as regras do art. 77 da Constituição”.

6.

Raul Machado Horta (1995, p. 321 et seq., grifo nosso), leciona


com percuciência:

1. Natureza do direito transitório

...................................................................................................
A incidência imediata da Constituição acarreta a substituição da
ordem constitucional anterior pela impossibilidade da coexistên-
cia no tempo e no espaço, na condição de fonte e matriz do mes-
mo ordenamento jurídico estatal, de duas Constituições, a antiga,
que desapareceu, e a nova Constituição, que se torna o fundamen-
to monístico da validez e da eficácia do ordenamento jurídico do
Estado. A Constituição nova, salvo no caso limite de ruptura re-
volucionária radical, não acarreta a supressão total do ordenamen-
to jurídico anterior. A técnica constitucional elaborou soluções
de acomodação normativa, que afastam o colapso que adviria do
vazio jurídico: a recepção do direito anterior pela Constituição, a
vigência da legislação anterior que não contrariar as disposições da
nova Constituição e as normas de transição para regular situações
discrepantes das normas constitucionais permanentes.
...................................................................................................
O distanciamento entre normas de transição, para garantir o
direito anterior, e Constituição, fundamento supremo do novo
Direito, desfez-se a partir do momento em que a Constituição
incorporou ao seu conteúdo material as disposições transitó-
rias, com a função de regular a permanência de situações an-
teriores à vigência da Constituição nova.
...................................................................................................
Afastando-se da técnica de 1891 e de 1934, quando predomina-
ram nas Disposições Transitórias as normas de natureza técnica,
regulando composição e atividade de órgãos eletivos, em fase de
implantação, ou a atividade constituinte sucessiva dos Estados-
Membros, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
de 1988, filiando-se à concepção ampliativa de 1946, dilatou o
392 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

seu conteúdo, para incluir numerosas regras de favorecimen-


to a servidores públicos e outras categorias de beneficiários.
A técnica de redação das Disposições Transitórias é diversa
da técnica redacional da parte permanente. Não há divisão da
matéria em Títulos, Capítulos ou Seções, de modo a agrupar
em cada um os assuntos diferenciados. Os temas são tratados
indistintamente, sem a preocupação de ordenação, unidade e
sistematização. É o terreno do depósito residual, da miscelânea
e da mistura normativa. O traço que aproxima as normas hete-
rogêneas é a temporariedade e a transitoriedade. São normas
que vão desaparecer. Esse desaparecimento que as torna mais
efêmeras ou de menor duração no tempo advirá do prazo fixa-
do para cumprimento de atos ou de determinações do cons-
tituinte ou, ainda, pela sucumbência no tempo do direito, da
garantia ou da situação assegurada aos respectivos titulares e
que findarão com eles. Norma permanente nas Disposições
Transitórias é norma anômala. Foi dessa categoria o conhecido
art. 180 da Carta de 1937, que, prevendo competência transi-
tória do Presidente da República – “enquanto não se reunir o
Parlamento Nacional” -, como a condição não se verificou na vi-
gência da Carta de 1937, o art. 180 tornou-se regra permanente,
para fundamentar a pletórica atividade legislativa do Presidente
da República na via dos Decretos-leis.

7.

Analisando o conteúdo do Ato das Disposições Constitucionais


Transitórias de 1988, o festejado jurista identifica as seguintes cate-
gorias normativas (números encontrados em 1995):
1. Normas exauridas (33);
2. normas dependentes de legislação e de execução (43);
3. normas dotadas de duração temporária expressa(4);
4. normas de recepção (4);
5. normas sobre benefícios e direitos(3);
6. normas com prazos constitucionais ultrapassados (14).
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
393

8.

Ivo Dantas (1995, p. 141, grifo nosso) acentua, com ênfase, a impor-
tância do tema:
O estudo das denominadas Disposições Transitórias Constitucionais
comporta, em nosso modo de entender, a elaboração de uma Redução
Teórica, que contudo, ainda não despertou as atenções dos estudiosos
nacionais do Direito Constitucional.
Assim, enquanto alguns se limitam a uma análise sequenciada dos
assuntos que as compõem no texto jurídico-positivo, outros, inclusive,
em “manuais” ou “comentários”, nem nessa perspectiva enfrentam a
matéria, apesar de a prática nos ensinar, seja ele de capital importância,
sobretudo, quando tomado em seu verdadeiro sentido, e não, com
objetivos fisiológicos ou para atender interesses pessoais de alguns
responsáveis por sua elaboração.
A constatação do que ora se afirma poderá ser feita ao longo da leitura
dos artigos que as compõem, visto que a atual Constituição de 1988,
em seus 70 artigos (versão originária) incluiu matérias que, por mais
boa vontade que tenha o intérprete, não justificam sua elevação ao
nível constitucional, mesmo que levada a extremos a teoria das deno-
minadas Constituições Analíticas.
Em decorrência da omissão quanto ao estudo das Disposições Transi-
tórias, sérios problemas deixam de ser enfrentados, o que se reflete no
mundo das relações jurídicas privadas ou públicas, como ocorreu com
as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (nºs 829, 830 e 831) que
objetivavam impedir a antecipação da consulta plebiscitária prevista
no art. 2º do ADCT da Constituição Federal de 5.10.1988, julgadas
em conjunto pelo STF, tendo sido Relator o Ministro Moreira Alves.
394 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

9.

Em levantamento das emendas constitucionais, verifica-se que vá-


rias delas alteraram ou alargaram o conteúdo do ADCT, a saber:
EC Modificações introduzidas
Em artigo único, antecipou a data do ple-
EC nº 2, de 25.08.92 biscito de que tratava o art. 2º do ADCT, a
realizar-se a 07.09.93, para 21 de abril.
Incluiu os arts. 71, 72 e 73, instituindo nos
EC de Revisão nº 1, de
exercícios de 1994 e 1995 o Fundo Social
01.03.94
de Emergência.
Modificou os arts. 71 e 72, incluídos pela
ECR nº 1, de 01.03.94, dando ao art. 71 os
EC nº 10, de 04.03.96
§§ 1º, 2º e 3º e alterando os incisos II, III, IV
e V e os §§ 2º a 5º do art. 72.
EC nº 12, de 15.08.96 Incluiu o art. 74, instituindo a CPMF.
EC nº 14, de 12.09.96 Alterou o art. 60.
Alterou o caput do art. 71 e o inciso V do
EC nº 17, de 22.11.97 art. 72, artigos esses introduzidos pela ECR
nº 1/94 e modificados pela EC nº 10/96.
EC nº 21, de 18.08.99 Acrescentou o art. 75, sobre a CPMF.
EC nº 27, de 21.08.2000 Acrescentou o art. 76.
EC nº 29, de 13.09.2000 Acrescentou o art. 77.
EC nº 30, de 13.09.2000 Acrescentou o art. 78.
Acrescentou os arts. 79, 80, 81, 82 e 83, que
EC nº 31, de 14.12.2000 tratam do Fundo de Controle e Erradicação
da Pobreza.
EC nº 37, de 12.06.2002 Acrescentou os arts. 84, 85, 86, 87 e 88.
EC nº 38, de 12.06.2002 Acrescentou o art. 89.
Mandou, no art. 9º, aplicar o art. 17 da
EC nº 41, de 19.12.2003 ADCT às situações previstas no cor-
po permanente.
Deu nova redação aos arts. 76, 82 e 83 do
EC nº 42, de 19.12.2003 ADCT, acrescentou-lhes os arts. 90, 91, 92,
93 e 94 e revogou o inciso II do art. 84.
EC nº 43, de 15.04.2004 Deu nova redação ao caput do art. 42.
EC nº 53, de 19.12.2006 Alterou o art. 60, já alterado pela EC nº 14/96.
EC nº 54, de 20.09.2007 Acrescentou o art. 95.
Deu nova redação ao caput do art. 76 acres-
EC nº 56, de 20.09.2007 centado pela EC nº 27/00 modificado pela
EC nº 42/03.
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
395

A partir do art. 75, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,


todos foram acrescidos por Emenda Constitucionais, desde primeiro de
março de 1994, data da Emenda Constitucional de Revisor nº 1.

10.

Causa perplexidade, por exemplo, o art. 89 do ADCT, incluído pela


EC nº 38, de 12.06.2003, que dispõe, de maneira permanente, sobre
policiais militares, do ex-Território Federal de Rondônia.

11.

Observa ao propósito Anna Cândida da Cunha Ferraz (1999, p. 66 et


seq., grifo nosso):
[...] a questão do exaurimento do ADCT torna-se ainda mais
complexa ante as Emendas Constitucionais que modificaram o
ADCT, seja para alterar normas transitórias, seja para nele in-
troduzir normas que nada têm de transitórias (vale dizer normas
que não têm o sentido de possibilitar a passagem, sem sobressal-
tos jurídicos, de uma ordem constitucional para outra), seja para
criar institutos e instituições que tendem a ultrapassar os limites
de transitoriedade de duração, próprios destes tipos de normas.
...................................................................................................
Como se vê, não seguiu o constituinte derivado, seja o extraordi-
nário, previsto no art. 3º (Poder de Revisão), seja o constituinte
ordinário (previsto no art. 60), as regras que informam o prin-
cípio da reformabilidade das normas constitucionais transitórias
pelo que, de um lado, as inovações introduzidas no ADCT aca-
baram ou por prolongar o exaurimento das normas nele conti-
das, ou inovar o regramento normativo contido no ADCT, com
o acréscimo de normas autônomas, sem o caráter de transição
que o deveria caracterizar.

12.

Da retrospectiva dos diplomas constitucionais republicanas resulta


o seguinte.
A Constituição de 24 de fevereiro de 1891 contém, em oito artigos,
numerados em apartado, Disposições Transitórias, após o texto per-
manente de noventa e um artigos.
396 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Igual sistema foi adotado na Constituição de 16 de julho de 1934, na


qual, depois de cento e oitenta e sete artigos, seguiram-se vinte e seis,
reiniciando a numeração, das Disposições Transitórias.
Já a Carta outorgada a 10 de novembro de 1937, nos arts. 175 a 187,
estabeleceu Disposições Transitórias e Finais, entre os quais ressalta o
art. 178, que dissolveu a Câmara dos Deputados, o Senado, Assem-
bléias Legislativas e Câmara Municipais.
Como seria admissível em regimes ditatoriais, que tudo podem, leis
constitucionais (leia-se emendas constitucionais previstas no art.
174) tangeram as Disposições Transitórias, como, por exemplo, a Lei
Constitucional nº 8, de 12 de outubro de 1942, que “esclareceu” os
arts. 177 a 1821; a Lei Constitucional nº 9, de 28 de fevereiro de
1948, que deu nova redação aos arts. 175, 176 e 1792 e a Lei Consti-
tucional nº 12, de 7 de novembro de 1945, que revogou o art. 1773.
A Constituição de 18 de setembro de 1946 iniciou a prática de inserir
a latere Ato das Disposições Constitucionais Transitórias dessa vez
com trinta artigos.
Importante ressaltar que a Emenda Constitucional nº 18, de 1º de
dezembro de 1965, que dispôs sobre o sistema tributário nacional,

1
Artigo único. Os Juízes postos em disponibilidade ou aposentados na forma dos
arts. 182 e 177 da Constituição de 10 de novembro de 1937 e
da Lei Constitucional n.o 2, de 16 de maio de 1938, perceberão
vencimentos proporcionais a partir do ato da disponibilidade ou
aposentadoria, salvo se contarem mais de trinta anos de serviço.
2
Art. 1º. Os arts. 7°, 9º e parágrafo, 14, 30, 32 e parágrafo, 33, 39 e parágra-
fos, 46, 48, 50 e parágrafo, 51, 53, 55, 59 e parágrafos, 61, 62, 64
e parágrafos, 65 e parágrafo, 73, 74, 76, 77, 78 e parágrafo, 79, 80,
81, 82 e parágrafo, 83, 114 e parágrafo, 117 e parágrafo, 121, 140,
174 e parágrafos, 175, 176 e parágrafo, 179 da Constituição ficam
redigidos pela forma seguinte respectivamente:
3
Artigo único. Fica revogado o art. 177 da Constituição, restabelecido pela Lei
Constitucional nº 2, de 16 de maio de 1938.
Art. 175. O atual Presidente da República exercerá o mandato até a data da
posse do seu sucessor para o segundo período.
Art. 176. O mandato dos Governadores eleitos dos Estados, que tenha
sido confirmado pelo Presidente da. República, será exercido até
o início do primeiro período de governo, a ser fixado nas Consti-
tuições estaduais.
.......................................................................................................
Art. 179. O Conselho de Economia Nacional deverá ser constituído até a
instalação do Parlamento nacional.
.......................................................................................................
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
397

continha expressamente, no Capítulo VI, Disposições Finais e Tran-


sitórias, revelando boa técnica legislativa.
A Carta outorgada a 24 de janeiro de 1967 seguiu a linha de 1937 ...
submetendo os arts. 173 a 189 ao Título V, com Disposições GErais
e Transitórias, entre as quais o art. 189 que protraiu a sua entrada em
vigor para 15 de março de 1967.
A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, dando
nova redação à Carta de 1967 nada mais sendo que uma nova Cons-
tituição, manteve o critério de inserir em Título, o V, Disposições
Gerais e Transitórias (arts. 181 a 200).
Como admissível em regimes de força, repita-se, que tudo podem. a
Emenda Constitucional nº 7, de 13 de abril de 1977, acrescentou ao
Título V os arts. 201 a 207 V4.

4
Art. 201. Ficam transformados os atuais cargos de Juiz Federal Substituto
em cargos de Juiz Federal.
Parágrafo único. Os Juízes Federais substitutos ficam investidos nos
cargos ora transformados, respeitada, porém, a antigüidade dos atuais
Juízes Federais.
Art. 202. Os Estados adaptarão sua organização judiciária aos preceitos es-
tabelecidos nesta Constituição e na Lei Orgânica da Magistratura
Nacional, dentro de seis meses contados a partir da vigência desta
última, ficando extintos os cargos de Juiz Substituto de segunda
instância, qualquer que seja sua denominação.
§ 1.° Os Juízes cujos cargos forem extintos ficarão em disponibilidade,
com vencimentos integrais. até serem aproveitados, nos termos da
Lei Orgânica da Magistratura Nacional.
§ 2.° No Estado do Rio de Janeiro, a critério do Governador, poderão
ser previamente aproveitados os atuais Desembargadores em dis-
ponibilidade, observada sempre, quanto ao quinto reservado a ad-
vogados e membros do Ministério Público, a condição com que
ingressaram no Tribunal de Justiça.
Art. 203 Poderão ser criados contenciosos administrativos, federais e esta-
duais, sem poder jurisdicional, para a decisão de questões fiscais
e previdenciárias, inclusive relativas a acidentes do trabalho (art.
153, § 4.°).
Art. 204. A lei poderá permitir que a parte vencida na instância administra-
tiva (arts. 111 e 203) requeira diretamente ao Tribunal competente
a revisão da decisão nela proferida.
Art. 205. As questões entre a União, os Estados, o Distrito Federal, os Mu-
nicípios e respectivas autarquias, empresas públicas e sociedades
de economia mista, ou entre umas e outras, serão decididas pela
autoridade administrativa, na forma da lei, ressalvado ao acionista
procedimento anulatório dessa decisão.
Art. 206. Ficam oficializadas as serventias do foro judicial e extrajudicial,
mediante remuneração de seus servidores exclusivamente pelos
398 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A Emenda Constitucional nº 8, de 14 de abril de 1977, acrescentou


os arts. 208, 209 (“reescrito” pela Emenda Constitucional nº 14, de
11 de setembro de 19805) e 2106.
A Emenda Constitucional nº 11, de 13 de outubro de 1978, deu
nova redação às benesses concedidos pelo art. 184, reformulando, ain-
da, o art. 185.
A Emenda Constitucional nº 14, de 9 de setembro de 1980, deu
nova redação ao art. 209.
A Emenda Constitucional nº 16, de 27 de novembro de 1980, alterou
o § 1º do art. 2067, a Emenda Constitucional nº 20, de 20 de outubro

cofres públicos, ressalvada a situação dos atuais titulares vitalícios


ou nomeados em caráter efetivo.
§ 1° Lei complementar, de iniciativa do Presidente da República, dis-
porá sobre normas gerais a serem observada, pelos Estados e pelo
Distrito Federal na oficialização dessas serventias.
§ 2.° Fica vedada, até ao entrada em vigor da lei complementar a que
alude o parágrafo anterior, qualquer nomeação em caráter efetivo
para as serventias não remuneradas pelos cofres públicos.
§ 3.° Enquanto não fixados pelos Estados e pelo Distrito Federal os
vencimentos dos funcionários das mencionadas serventias conti-
nuarão eles a perceber as custas e emolumentos estabelecidos nos
respectivos regimentos.
Art. 207. Enquanto não for promulgada Lei Orgânica da Magistratura Na-
cional, somente serão preenchidos seis dos novos cargos de Mi-
nistro do Tribunal Federal de Recursos criados pelo art. 121 desta
Constituição, sendo três escolhidos dentre juízes federais indicados
em lista tríplice pelo próprio Tribunal, e três de acordo com os
demais critérios estabelecidos no mesmo artigo.
5
Art. 209. Os mandatos dos atuais Prefeitos, Vice-Prefeitos, Vereadores e
seus Suplentes, estender-se-ão até 31 de Janeiro de 1983, com ex-
ceção dos Prefeitos nomeados.
Parágrafo único. As eleições para Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores
serão realizadas simultaneamente em todo o País, na mesma data das elei-
ções gerais para Deputados.
6
Art. 208. Os mandatos do Presidente e do Vice-Presidente da República
eleitos a 15 de janeiro de 1974 terminarão a 15 de março de 1979.
Art. 209. Os mandatos dos Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores eleitos
.em 1980 terão a duração de dois anos.
Art. 210. Na aplicação do d1sposto no § 2º do art. 39, para a Legislatura a
iniciar-se em 1979, não haverá redução do número de Deputados
de cada Estado, fixado para a Legislatura iniciada em 1975.
7
Art. 206. .......................................................................................................
§ 1º Lei complementar, de iniciativa do Presidente da República, dis-
porá sobre normas gerais a serem observadas pelos Estados, Distri-
to Federal e Territórios na oficialização dessas serventias.
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
399

de 1981, acrescentou o art. 2118, a Emenda Constitucional nº 21, de


27 de outubro de 1987 acrescentou o art. 2129 e a Emenda Constitu-
cional nº 22, de 29 de junho de 1982, renumerou os arts. 207 a 212 para
209 a 214, em função de novos acréscimos e alterando e acrescentando
outros artigos) e alterando e acrescentando outros artigos10.

8
Art. 211. Durante o período de 31 de janeiro de 1981 a 31 de janeiro de
1983 são as Câmara Municipais autorizadas a fixar, em uma única
vez, novos subsídios para os Prefeitos Municipais que se encon-
tram no desempenho do mandato, bem como para os Vice-Prefei-
tos quando remunerados.
9 Art. 212. As Assembléias Legislativas poderão fixar a remuneração de seus
membros para vigorar na presente Legislatura, observado o limite
de 2/3 (dois terços) do que percebem, a mesmo título, 06 Depu-
tados federais, excetuadas as sessões extraordinárias e as sessões
conjuntas do Congresso Nacional.
10
Art. 206. Ficam oficializadas as serventias do foro judicial mediante remu-
neração de seus servidores exclusivamente pelos cofres públicos,
ressalvada a situação dos atuais titulares, vitalícios ou nomeados em
caráter efetivo ou que tenham sido revertidos a titulares.
Art. 207. As serventias extrajudiciais, respeitada, a ressalva prevista no arti-
go anterior, serão providas na forma da legislação dos Estados, do
Distrito Federal e dos Territórios, observado o critério da nomea-
ção segundo a ordem de classificação obtida em concurso público
de provas e títulos.
Art. 208. Fica assegurada aos substitutos das serventias extrajudicia1s e do
foro judicial, na vacância, a efetivação, no cargo de titular, desde
que, investidos na forma da lei, contem ou venham a contar cinco
anos de exercício, nessa condição e na mesma serventia, até 31 de
dezembro de 1983.
.......................................................................................................
Art. 215. Os mandatos dos Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores elei­tos
em 15 de novembro de 1982 terminarão em 31 de dezembro de
1988.
Art. 216. Nas eleições de 15 de novembro de 1982, 05 Deputados serão elei-
tos exclusivamente pelo sistema proporcional e seu número, por
Estado, será estabelecido pela Justiça Eleitoral proporcionalmente
à população, com o reajuste necessário para que nenhum Estado
tenha mais de sessenta ou menos de oito Deputados, nem sofra
redução no respectivo número fixado para a Legislatura iniciada
em 1979.
Art. 217. O disposto no item II do § 2º do art. 152 não se aplica às eleições
de 15 de novembro de 1982.
.......................................................................................................
400 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

13.

Tramitam no Congresso Nacional várias Propostas de Emenda à


Constituição, que afetam o Ato de Disposições Constitucionais Tran-
sitórias, a saber.

13.1 Na Câmara dos Deputados:

a) Na Câmara dos Deputados:

PEC Autor Ementa

Acrescenta inciso III ao art. 42 do ADCT,


Deputado destinando 10% dos recursos a serem
84/91 NICIAS RIBEIRO aplicados pela União
e outros em projetos de irrigaação da Ilha
de Marajó.

Acrescenta §§ 6º e 7º ao art. 8º do ACDT,


Deputado assegurando aos servidores militares na
188/94 ZAIRE REZENDE inatividade, os mesmos postos ou quantias
e outros alcançadas por
seus paradigmas.

Altera os arts. 14 e 17 e inserindo art. 74 no


ADCT determinando que perderá o man-
Deputado dato Deputado Federal, Distrital, Senador,
90/95 PAULO CHAVES Deputado Estadual, Vereador, Presidente,
e outros Vice-Presidente, Governador, Vice- Gover-
nador, Prefeito, Vice- Prefeito, que deixar o
partido sob cuja legenda foi eleito

Acrescenta art. 74 ao ADCT, transferindo


Deputado para quadros permanentes do Ministério da
GONZAGA Justiça, a serem alocados no Departamento
156/95
PATRIOTA de Polícia Ferroviária Federal, os atuais poli-
e outros ciais ferroviários federais da RFFSA e
da CBTU.

Dá nova redação aos §§ 3º e 7º do art.


Deputado
60 do ADCT, estabelecendo que o valor,
CARLOS
por aluno, dos Recursos do FUNDEF, será
312/05 ALBERTO
calculado tendo em vista o mínimo definido
ROSADO
para cada região político- administrativa, e
e outros
não em âmbito nacional
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
401

Dá nova redação ao art. 60 do ADCT, dis-


pondo que nos dez primeiros anos da Pro-
mulgação da Emenda à Constituição nº 14,
Deputada
de 1996, os Estados, o DF e os Municípios
342/01 ANA CARDOSO
destinarão não menos de 60% dos recursos
e outros
resultantes de impostos à manutenção e ao
desenvolvimento da educação infantil e do
ensino fundamental.

Senador Altera os arts. 84 e


412/01 JEFFERSON 85 do ADCT, instituindo o Fundo de Desen-
PERES e outros volvimento da Amazônia Ocidental.

Deputado Modifica o art. 60 do ADCT prorrogando


467/01 ARMANDO até o final de 2016 o prazo de vigência
ABÍLIO e outros do FUNDES.

Deputado
Apensada à PEC nº 78/95, modifica os arts.
LUIZ CARLOS
522/02 211 e 212 da CF e revogando o art. 60
HAULY
do ADCT.
e outros

Senador Acrescenta o art. 84 no ADCT, instituindo o


ANTONIO Fundo para Revitalização Hidroambiental e
524/02
CARLOS o Desenvolvimento Sustentável da Bacia do
VALADARES Rio São Francisco.

Senador Altera o art. 84 do ADCT, criando os


544/02 ARLINDO Tribunais Regionais Federais da 6ª, 7ª, 8ª e
PORTO 9ª Regiões.

Dá nova redação ao art. 54 do ADCT,


concedendo aos seringueiros (soldado da
Deputada
borracha) os mesmos direitos concedidos
556/02 VANESSA
aos ex- combatentes: aposentadoria espe-
GRAZZIOTIN
cial e pensão especial,
dentre outros.

Acrescenta os arts. 90 e 91 ao ADCT,


Deputado
possibilitando que os servidores públicos
GONZAGA
2/03 requisitados optem pela alteração de sua
PATRIOTA
lotação funcional do órgão cedente pela
e outros
do cessionário.
402 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Altera os arts.28, 29, 77 e 82 da CF, asse-


gurando artigo ao ADCT, para estabelecer
coincidência dos mandatos federais, esta-
Deputado duais e municipais e fixar em 6 de janeiro as
MAURÍCIO datas de posse do Presidente da República,
6/03
RANDS Governadores dos Estados e Prefeitos
e outros Municipais, dispondo que os Prefeitos e
Vereadores eleitos em 2004 cumpram
mandato de 6 anos, visando a coincidência
das eleições em 2010.

Dá nova redação aos arts. 14, 27, 29, 44,


46 e 82 da CF, introduzindo disposições no
Deputado
ADCT estabelecendo a duração dos manda-
DILCEU
19/03 tos eletivos e dos cargos eleitivos em cinco
SPERAFICO
anos, visando a coincidência dos mandatos
e outros
e extinguindo o princípio das reeleição para
os titulares do Executivo.

Dá nova redação aos arts. 28, 29, 57 e 82 da


CF, introduzindo disposições no ADCT, alte-
rando para 3 de janeiro o prazo dos titulares
Deputado dos carfos eletivos do Poder Executivo, da
46/03 MILTON MONTI União, Estados e Municipios, estabelecendo,
e outros mais, que os parlamentares eleitos em 2006
terão seus mandatos reduzidos para que
os eleitos em 2010 tomem posse em 2 de
janeiro de 2011.

Deputado Acrescenta artigo no ADCT, anistiando os


GONZAGA débitos até R$ 30.000,00 dos agricultores
93/03
PATRIOTA mutuários da Região Norte, nas operações
e outros com recursos do FNE, FAT e PROCERA.

Dá nova redação ao art. 167 da CF e


Deputado Acrescenta artigo do ADCT, para assegu-
94/03 BISMARCK rar recursos para a pesquisa científica e
MAIA tecnológica, no âmbito das instituições e
entidades públicas.

Altera o § 2º do art. 60 do ADCT, para


Deputado .incluir as instituições privadas sem fins
97/03 PASTOR lucrativos, de ensino especial, APAE e
REINALDO Sociedade Pestalozzi, dentre as
beneficiárias do FUNDEF.
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
403

Altera os ats. 92, 105, 108, 109 e 128,


acrescentando a Seção V com os arts.
111- A, 112- A, 113- A e 114- A, da CF e
Deputado os arts. 99, 91 e 92 do ADCT, revogando
Dr. RODOLFO também o inciso XI, do art. 109 e o art.
122/03
PEREIRA 126 da CF, instituindo a Justiça Agrária,
e outros criando Tribunais e juízes agrários, Tribunal
Superior Agrário, Tribunais Regionais Agrá-
rios, Varas Judiciárias e o Ministério
Público Agrário.
Deputado
Acrescenta artigo ao ADCT para estabelcer
MARCELO
132/03 mandato de seis anos para Prefeitos, Vice-
CASTRO
Prefeitos e Vereadores eleitos em 2004.
e outros

Acrescenta parágrafo ao art. 195, alterando


Deputado o art. 198, da CF e revogando artigo do
144/03 Dr. PINOTTI ADCT, para assegurar recursos mínimos
e outros da União para financiamento das ações e
serviço público de saúde.

Deputado Altera os arts. 208 e 212 da CF e o art. 60


ALOYSIO do ADCT, garantindo o ensino obrigatório
173/03 NUNES e gratuito, em creches e pré- escolas às
PEREIRA crianças até seis anos, visando desenvolver
e outros a educação infantil.

Altera o art. 144 da CF, relativo à Segurança


Deputado Pública e Acrescenta o art. 90 ao ADCT,
JOSIAS para incluir na competência das polícias
181/03
QUINTAL civis e militares a possibilidade de atuações
e outros em todas as funções policiais e unificando a
competência das polícias estaduais.

Deputado
Altera o art. 89 do ADCT, incorporando os
NILTON
200/03 servidores do extinto Território Federal de
CAPIXABA
Rondônia aos Quadros da União.
e outros

Dá nova redação ao § 5.º do art. 14 da CF


e Acrescenta artigo no ADCT, extinguindo
Deputado
a reeleição para os cargos de Presidente da
JUTAHY JU-
246/04 República, Governador e Prefeito, prevendo
NIOR
regra de transição para os detentores dos
e outros
atuais mandatos e aumentando para cinco
anos o mandato do Presidente da República.
404 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Apensada à PEC nº 483/05, acrescenta os


§§ 2º e 3º ao art. 89 do ADCT, consideran-
do concretizada a transformação do Territó-
Deputado
rio de Rondônia em Estado a partir da posse
AGNALDO
294/04 do Governador, ocorrida em março de
MUNIZ
1987, disciplinando a situação funcional dos
e outros
servidores civis, admitidos por força de lei
federal, que ingressaram no Serviço Público
após a posse do Governador até 1991.

Deputado
295/04 AGNALDO Idêntica à anterior.
MUNIZ e outros

Dá nova redação ao art. 236 da CF e ao art.


Deputada
32 do ADCT, delegando aos Estados, Distri-
304/04 Dra. CLAIR
to Federal e Municípios a responsabilidade
e outros
sobre os serviços notariais.

Acrescenta § 3 º ao artigo 215 da CF, e o


Deputado artigo 90, ao ADCT, estabelecendo que a
WALTER União destinará, anualmente o percentual
310/04
FELDMAN mínimo de 2% das receitas tributárias ao
e outros financiamento da Política Nacional de Apoio
à Cultura.

Deputado
SANDRO Acrescenta artigo ao ADCT para instituir a
317/04
MABEL Carreira de Administrador Municipal.
e outros

Acrescenta artigo ao ADCT, para convalidar,


independentemente da promulgação da lei
complementar de que trata o § 4º do art.
Deputado 18 da CF e nos termos das respectivas leis
339/04 PEDRO HENRY estaduais que os instituíram, a criação de
e outros Municípios localizados nos Estados da Bahia,
Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul,
Mato Grosso, Piauí, Rio Grande do Norte e
Rio de Janeiro.

Acrescenta parágrafo ao art. 89 do ADCT,


Deputado
para dispor sobre a inclusão dos servidores
343/04 MIGUEL DE
municipais que menciona em quadro em
SOUZA
extinção da Administração Federal.

Deputado Dá nova redação ao inciso II do art. 98 da


ARNALDO CF e ao art. 30 do ADCT, estabelecendo
366/05
FARIA DE SÁ o concurso público para seleção de juiz de
e outros paz, mantendo os atuais até a vacância.
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
405

Dá nova redação ao art. 28, ao inciso II do


art. 29 e ao art. 77 da CF e Acrescenta o
art. 95 no ADCT, alterando para novembro
as eleições para Presidente da República,
Deputado JOÃO Governadores de Estado e Prefeitos, dis-
402/05
LYRA e outros pondo mais que o mandato dos Prefeitos e
Vereadores eleitos em 2008 será de 2 anos
(mandato- tampão), permitida a reeleição
dos Prefeitos no pleito de 2010 (ano das
eleições gerais).

Acrescenta artigos ao ADCT, dispondo


Deputada
sobre a não aplicação do art. 16 da CF às
TELMA DE
456/05 eleições de 2006, prorrogando até 30 de
SOUZA
março de 2006 o prazo para modificação na
e outros
legislação eleitoral para a eleição de 2006.

Senador PEDRO Altera o art. 40 da CF, elevando para 75


SIMON e outros anos a idade para aposentadoria compulsó-
457/05 (com apenso da ria de Ministros do STF, Tribunais Superiores
PEC nº 5/03 e e Tribunal de Constas da União, acrescen-
seus apensados) tando artigo ao ADCT.

Dá nova redação ao inciso II do § 2° do art.


35 do ADCT, estabelecendo que o projeto
Deputado
de lei de diretrizes orçamentárias (LDO)
465/05 JOÃO LYRA
deverá ser encaminhado até nove meses e
e outros
meio antes do término do exercício finan-
ceiro, sendo o novo prazo até 15 de março.

Deputada Acrescenta artigo ao ADCT, para considerar


ALMERINDA DE estáveis os Agentes de Combate às Ende-
479/05
CARVALHO mias, da Fundação Nacional de Saúde-
e outros FUNASA, em atuação há 9 anos, ou mais.

Altera o art. 89 do ADCT, incluindo os ser-


vidores públicos, civis e militares, custeados
Senadora
pela União até 31 de dezembro de 1991,
483/05 FÁTIMA CLEIDE
no quadro em extinção da Administração
e outros
Federal do ex- Território
de Rondônia.

Senador
LUIZ OTÁVIO
Acrescenta artigo ao ADCT, sobre a forma-
495/06 e outros (com
ção de novos municípios até o ano de 2000.
apenso da PEC
nº 339/04)
406 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Altera o art. 60 do ADCT, ampliando até


Senador
2016 a vigência do Fundo de Manutenção e
FRANCISCO
502/06 Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
ESCÓRCIO
de Valorização do Magistério (FUNDEF) e
e outros
do valor mínimo nacional por aluno.

Senador Dá nova redação ao art. 40 e revogando o


ARTHUR art. 92 do ADCT, para alterar a denomina-
509/06
VIRGILIO ção da Zona Franca de Manaus para Pólo
e outros Industrial de Manaus.

Deputado Acrescenta art. 95 ao ADCT, instituindo


EDMUNDO o Fundo para a Revitalização Hídrica,
522/06
GALDINO Ambiental, Econômica e Social da Bacia do
e outros Rio Araguaia.

Altera o art. 212 da CF e o art. 76 do


ADCT, autorizando Estados e Municípios
Deputada
a fixarem percentual maior que o mínimo
LUCIANA
538/06 constitucional para o desenvolvimento do
GENRO
ensino, desvinculando as arrecadações de
e outros
impostos e contribuições sociais vinculadas
ao ensino e saúde.

Deputado Dispõe sobre a inclusão da CPMF nas


MENDES disposições do § 2º, do artigo 76 do ADCT,
558/06
RIBEIRO FILHO desvinculando a CPMF da Desvinculação de
e outros Receitas da União - DRU.

Dá nova redação ao § 5º do art. 14, ao §


1º do art. 27, ao caput do art. 28. ao inciso
I do art. 29, ao parágrafo único do art. 44,
Deputado ao caput do art. 45, aos §§ 1º e 2º, do art.
RAIMNDO 46, ao art. 82, da CF, acrescentando artigos
11/07 GOMES DE ao ADCT, proibindo reeleição para Presi-
MATOS dente da República, Governadores e Pre-
e outros feitos, fixando em cinco anos o mandato
dos cargos eletivos nos Poderes Executivos
e Legislativo, em todos os níveis e determi-
nando a simultaneidade das eleições.

Dá nova redação aos arts. 25 e 144 da CF e


acrescenta artigo ao ADCT, estabelecendo
Deputado que os Estados manterão programas de se-
NEILTON gurança pública com a cooperação técnica e
17/07
MULIM financeira da União e dos Municípios e que
e outros lei federal definirá a valorização dos pro-
fissionais de segurança pública, planos de
carreira e piso salarial profissional nacional.
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
407

Deputado Altera o art. 159 da CF e acrescenta os arts.


FERNANDO 95 e 96 ao ADCT, para que as contribuições
23/07
CORUJA que determina passem a ser divididas entre
e outros Estados e Municípios.

Altera o § 1º do art. 27 da CF e Acrescenta


Deputado artigo ao ADCT, alterarando o início do man-
41/07 ARNALDO dato dos Deputados Estaduais, da legislatura
JARDIM e outros de 2011 a 2015, para o fim de alteração da
data de início da Legislatura de 2016.

Deputado
Acrescenta artigo ao ADCT, dispondo
CARLOS
44/07 sobre o regime constitucional das carreiras
WILLIAN
de delegado de polícia civil..
e outros

Deputado
Altera o art. 35 do ADCT, para prever o
LEONARDO
86/07 calendário de votação de alterações das leis
QUINTÃO
orçamentárias no início dos mandatos.
e outros

Deputado Introduz artigos no ADCT, criando o Fundo


88/07 CLEBER VERDE Especial de Desenvolvimento da Agricultura
e outros (FUNAGRI).

Altera o art. 153 da CF e Acrescenta artigo


no ADCT, criando o imposto de movimen-
Deputado
tação financeira para substituir a CPMF;
CARLOS
90/07 prorrogadondo até 31 de dezembro de
WILLIAN
2011 a Desvinculação de Receitas da União
e outros
e, até 31 de dezembro de 2014, o Fundo
de Combate e Erradicação da Pobreza.

Acrescenta artigo ao ADCT, vedando


a criação, a incorporação, a fusão e o
Deputado desmembramento de municípios até que
100/07 RAUL HENRY sejam promulgadas a lei complementar e a
e outros lei que disciplinará os Estudos de Viabilida-
de Municipal de que trata o § 4° do art. 18
da Constituição Federal.

Deputado
MENDES Suprime o art. 31 do ADCT , que trata da
109/07
RIBEIRO FILHO estatização das serventias do foro judicial.
e outros
408 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Altera disposição ADCT e prevendo dois


artigos, prorrogando até 31 de dezembro
Deputado de 2011 a CPMF e a DRU - Desvinculação
JOÃO de Receitas da União, excetuando a CPMF
112/07
MAGALHÃES dos cálculos para aumentar os gastos obri-
e outros gatórios com saúde e até 31 de dezembro
de 2014 o Fundo de Combate e Erradicação
da Pobreza.

Dá nova redação aos arts. 14, 27, 28, 29,


44, 46 e 82 da CF e introduzindo disposi-
ções ao ADCT, a fim de tornar coincidentes
os mandatos eletivos e de aumentar- lhes
o período de duração, acabando com a
Deputado reeleição para cargos no Executivo Federal,
131/07 JOÃO MAIA Estadual e Municipal, aumentando para
e outros cinco anos a duração dos mandatos de
Presidente da República, Governador, De-
putado Federal, Estadual, Distrital, Prefeito
e Vereador, para dez anos o mandato de
Senador, criando regras transitórias visando
à unificação das eleições a partir de 2014.

Inclui artigo no ADCT, proibindo o aumento


das alíquotas dos tributos, contribuições
e impostos, até 31 de dezembro de 2015,
Deputado
excetuando a base de cálculo dos tributos
GUILHERME
136/07 patrimoniais (ITR, ITCD, IPVA, IPTU, ITBI),
CAMPOS
as alíquotas específicas (ad rem) do IPI, Co-
e outros
fins e Pis/Pasep, bem como os tributos regu-
latórios (imposto de importação, imposto
de exportação e IOF).

Altera o art. 76 do ADCT e Acrescenta- lhe


o art. 95, prorrogando a vigência da Desvin-
Deputado
culação de Arrecadação da União e da Con-
139/07 FILIPE PEREIRA
tribuição Provisória sobre Movimentação
e outros
ou Transmissão de Valores e de Créditos e
Direitos de Natureza Financeira.

Acrescenta artigo ao ADCT, para alterar a


distribuição dos recursos da contribuição
Deputado
provisória sobre movimentação ou trans-
151/07 ASSIS DE COUTO
missão de valores e de créditos e direitos
e outros
de natureza financeira e criar o Fundo de
Apoio ao Desenvolvimento Sustentável.
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
409

Acrescenta artigo ao ADCT para isentar


Deputado as motocicletas, até 150 cilindradas, da
158/07 OSMAR JUNIOR cobrança de taxa de licenciamento e em-
e outros placamento, e do imposto sobre a proprie-
dade de veículos automotores (IPVA).

Altera o inciso III do art. 225 e o § 4º


do art. 231 da CF, e o art. 68 do ADCT,
Deputado estabelecendo que a criação de espaços
CELSO territoriais a serem especialmente protegi-
161/07
MALDANER dos, a demarcação de terras indígenas e o
e outros reconhecimento das áreas remanescentes
das comunidades dos quilombos deverão
ser feitos por lei.

Deputado
Altera o § 4º do art. 12 do ADCT, fixando
PEDRO
163/07 a competência da União e dos Estados para
EUGÊNIO
demarcação de limites de áreas litigiosas.
e outros

Acrescenta art. 95 ao ADCT, para tornar


Deputado
facultativa a permanência de Estados, Dis-
MANOEL
176/07 trito Federal e Municípios na condição de
JÚNIOR
contribuintes do Programa de Formação
e outros
do Patrimônio do Servidor Público – Pasep.

Acrescenta o art. 96 ao ADCT, fixando a


data das eleições municipais de 2008 para
Deputado
a realização de plebiscito sobre revisão
193/07 FLÁVIO DINO
constitucional que, em caso de aprovação,
e outros
deverá ter início a partir de 1º de fevereiro
de 2011.

Dispõe sobre o apostilamento do título de


passagem para a inatividade, ao posto, gra-
duação, cargo ou classe imediatamente su-
Deputado
perior, aos integrantes das Força Armadas,
ARNALDO
195/07 Polícia Federal, Polícias Militares, Corpo
FARIA DE SÁ
de Bombeiros e Polícia Civil dos Estados e
e outros
do Distrito Federal, desde que no serviço
ativo entre 31 de março de 1967 e 15 de
agosto de 1979.

Deputado LUIZ Fixa reserva de vaga na representação da


205/07 CARLOS HAULY Câmara dos Deputados e do Senado Fede-
e outros ral para mulheres.
410 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Acrescenta artigo ao ADCT, integrando aos


quadros efetivos de pessoal os empregados
Deputado de empresa estatal em fase de liquidação
250/08 PEDRO CHAVES ou processo de extinção, que se encon-
e outros tram agregados ao serviço público e que
possuam mais de vinte anos
de exercício.

b) No Senado Federal:

PEC Autor Ementa

Senador Acrescenta o art. 76 ao ADCT , para per-


78/99 PAES DE BARROS mitir o ingresso de professores leigos nas
e outros instituições de ensino superior.

Altera, acrescenta e revoga disposições da


Seção IX do Capítulo I, do Titulo IV, da CF,
Senador PEDRO
34/00 relativa à Fiscalização Contábil, Financeira
SIMON e outros
e Orçamentária da União, e acrescenta
artigos ao ADCT.

Senador Modifica o artigo 212 da CF, acrescentando


RICARDO o artigo 212- A e alterando o art. 60 do
34/02
SANTOS ADCT, dispondo sobre o financiamento da
e outros educação básica.

Dá nova redação ao art. 54 do ADCT que


Senador
concede benefício previdenciário - 13º salá-
24/02 CHICO SARTORI
rio, aos seringueiros aposentados, conheci-
e outros
dos como “soldados da borracha”.

Dá nova redação ao inciso III da CF e ao


Senador PAULO caput do art. 79 do ADCT (erradicação
2/03
PAIM e outros da pobreza, marginalização e redução das
desigualdades sociais , raciais e regionais).

Senador Altera o inciso I do art. 208 da CF e Acrescen-


94/03 DEMOSTENES ta parágrafo ao art. 60 do ADCT, para garantir
TORRES e outros o ensino fundamental em período integral.

Acrescenta novo parágrafo ao art. 73 do


ADCT, para estabelecer, a partir de 2005, a
Senadora regressividade da Desvinculação das Recei-
96/03
IDELI SALVATTI tas da União (DRU) no cálculo da aplicação
de recursos na manutenção e desenvolvi-
mento do ensino (art. 212 da CF).

Senador Acrescenta o art. 95 ao ADCT, para


4/04 LUIZ OTÁVIO criar Fundo de Desenvolvimento da
e outros Amazônia Oriental.
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
411

Acrescenta parágrafos e incisos ao art. 19


Senador do ADCT, dispondo sobre a situação funcio-
ARTHUR nal dos empregados públicos que menciona,
6/04
VIRGÍLIO legalmente cedidos, pelo período mínimo
e outros que estabelece, a órgãos e entidades da
União.

Senador SIBÁ Acrescenta artigo ao ADCT, para estabele-


20/04 MACHADO cer a coincidência dos mandatos federais,
e outros estaduais e municipais.

Altera o art. 89 do ADCT, que dispõe sobre


a regularização da situação dos servidores
Senador VALDIR
43/04 civis que se encontravam prestando serviços
RAUPP e outros
a ex- território na data de sua constituição
em Estado.

Acrescenta artigo ao ADCT, para fixar, pelo


Senador MAR-
prazo de dez anos, o orçamento anual das
49/04 CELO CRIVELLA
Forças Armadas em 2,5%, no mínimo, do
e outros
Produto Interno Bruto.

Acrescenta o art. 95 ao ADCT, para vedar,


pelo prazo dez anos, quaisquer limitações
Senador MAR-
à execução das dotações destinadas ao
53/04 CELO CRIVELLA
reaparelhamento, modernização e à pes-
e outros
quisa e desenvolvimento tecnológico das
Forças Armadas.

Acrescenta artigo ao ADCT, para assegurar


Senador JOSÉ
recursos mínimos às atividades de pesquisa
54/04 MARANHÃO
básica e aplicada e de desenvolvi-
e outros
mento tecnológico.

Dá nova redação ao inciso I, do § 2º, do art.


149, e à alínea a do inciso X, do § 2º, do art.
Senador
155, acrescenta o § 8º ao art. 150, todos
JOÃO BATISTA
9/05 da CF, e Acrescenta o art. 95 ao ADCT, que
MOTTA
altera artigos do Sistema Tributário Nacional
e outros
referentes à não incidência de tributos e à
renúncia de receitas.

Senador Insere novos parágrafos nos arts. 80 e 82


EDUARDO do ADCT, para determinar a transferência,
15/05 SIQUEIRA aos municípios, de metade dos recursos da
CAMPOS e CPMF destinados ao Fundo de Combate e
outros Erradicação da Pobreza.

Altera os arts. 34, 35, 144, 160 e 167 da CF


Senador RENAN
e inserindo artigo no ADCT, dispondo sobre
60/05 CALHEIROS
a obrigatoriedade de aplicação de recursos
e outros
na área de segurança pública.
412 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Altera o art. 159 da CF e o art. 34 do


ADCT, (Altera os percentuais dos tributos
Senador PEDRO arrecadados destinados ao Fundo de Parti-
65/05
SIMON e outros cipação dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios e aos programas de financia-
mento do setor produtivo das regiões).

Altera o § 7º do art. 165 da CF e o art.


Senador TASSO
35 do ADCT para estabelecer os critérios
71/05 JEREISSATI
a serem adotados na regionalização dos
e outros
gastos da União.

Senador Altera os arts. 206, 208, 210 e 212, da CF, e


CRISTOVAM acrescenta o art. 95 ao ADCT, para dispor
74/05
BUARQUE sobre a nacionalização e a qualidade da
e outros educação básica.

Acrescenta o § 7º ao art. 100 da CF e o art.


Senador RENAN
95 ao ADCT, instituindo regime especial
12/06 CALHEIROS
de pagamento de precatórios pela União,
e outros
Estados, Distrito Federal e Municípios.
Senadora
Altera a alínea b, do inciso II, do art. 10 do
HELOÍSA
16/06 ADCT, para dispor sobre a estabilidade da
HELENA
empregada gestante.
e outros
Senadora
Altera a alínea b, do inciso II, do art. 10 do
HELOÍSA
17/06 ADCT, para dispor sobre a estabilidade da
HELENA
empregada gestante.
e outros

Acrescenta art. 95 ao ADCT, para tornar


Senador facultativa a permanência de Estados, Dis-
24/06 LUIZ OTÁVIO trito Federal e Municípios na condição de
e outros contribuintes do Programa de Formação do
Patrimônio do Servidor Público – Pasep.

Acrescenta o § 5º ao art. 14 do ADCT.


(Assegura os direitos e vantagens aos ser-
Senador vidores dos ex-territórios de Roraima e do
MOZARILDO Amapá, que se encontravam no exercício
35/06
CAVALCANTI regular de suas funções prestando serviço,
e outros durante o período de transição entre a pro-
mulgação da CF de 1988 e a promulgação
das respectivas constituições estaduais)

Senador
Acrescenta os arts. 95 e 96 ao ADCT, para
EDUARDO
38/06 determinar a não-coincidência das eleições
AZEREDO
nacionais e das eleições regionais.
e outros
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
413

Acrescenta art. 95 ao ADCT, alterando o


Senador
mandato dos Prefeitos, Vice- Prefeitos e
MARCOS
42/06 Vereadores eleitos em 2008, para determi-
GUERRA
nar a coincidência das eleições para todos
e outros
os cargos eletivos.

Senador Altera e Acrescenta parágrafos ao art. 195


48/06 VALDIR RAUPP da CF e Acrescenta os arts. 95, 96 e 97
e outros ao ADCT.

Altera os arts. 28, 29 e 82 da CF, para alte-


Senador rar regras pertinentes às eleições, mandato
51/06 MARCO MACIEL e posse do Presidente da República, Gover-
e outros nadores de Estado e Prefeitos, acrescentan-
do os arts. 95, 96, 97 e 98 ao ADCT.

Altera a destinação da contribuição provi-


sória sobre movimentação ou transmissão
Senador de valores e de créditos e de direitos de
6/07 FLEXA RIBEIRO natureza financeira, prevista nos arts. 74,
e outros 75, 80, 84 e 90 do ADCT, e autorizando
a instituição de contribuição idêntica, em
caráter permanente e alíquota reduzida.

Acrescenta disposição ao art. 201 da CF e


Senador
artigo ao ADCT, para garantir a equiparação
41/07 VALTER PEREIRA
entre benefícios da mesma natureza, inde-
e outros
pendentemente da data de sua concessão.

Revoga o inciso VII, do art. 20, da CF e o


Senador § 3º do art. 49 do ADCT, para extinguir
53/07 ALMEIDA LIMA o instituto do terreno de marinha e seus
e outros acrescidos e para dispor sobre a proprieda-
de desses imóveis.

Acrescenta art. 95 ao ADCT, para alteração


Senador
do mandato de Governadores e Deputa-
FRANCISCO
60/07 dos Estaduais eleitos em 2010, com o fim
DORNELLES
de estabelecer a coincidência das eleições
e outros
estaduais e municipais.

Altera os arts. 142, 170, 194, 203 e 226,


da CF, e os arts. 79 e 80, do ADCT, para
Senador
dispor sobre a cooperação das Forças
87/07 EXPEDITO
Armadas com ações sociais civis, sobre a
JÚNIOR e outros
assistência social aos moradores de rua, e
dá outras providências.
Senador
Dá nova redação ao § 2º do art. 76 do
CRISTOVAM
93/07 ADCT, para excluir a CPMF da desvincula-
BUARQUE
ção de receitas da União (DRU).
e outros
414 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Altera o ADCT, para dispor sobre a vincula-


Senador ção de recursos da contribuição provisória
CRISTOVAM sobre movimentação ou transmissão de
95/07
BUARQUE valores e de créditos de natureza financeira
e outros à implantação do ensino de tempo integral
nos municípios brasileiros.

Altera o inciso IV do § 1º, inciso III, do §


2º, revoga a alínea a do inciso X do § 2º,
Senador
altera a alínea “e” do inciso XII do § 2º, to-
13/08 JOSÉ NERY
dos do artigo 155 da CF, bem como revoga
e outros
o artigo 76 do ADCT, alterando o Sistema
Tributário Nacional.

Senador
Altera o ADCT para tornar permanente
ANTONIO
14/08 o Fundo de Combate e Erradicação da
CARLOS JÚNIOR
Pobreza.
e outros

Senador
Acrescenta artigos ao ADCT, dispondo
ARTHUR
17/08 sobre a prorrogação dos benefícios para a
VIRGÍLIO
Zona Franca de Manaus.
e outros

14.

Quando tudo já parecia clarificado e dito, com o qualificado pronun-


ciamento dos doutrinadores invocados, eis que se depara com o re-
cente artigo do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres
Britto (2007, grifo do autor), que espancou ainda restantes dúvidas e
cogitações sobre os diversos contornos no trato da matéria, cuja leitu-
ra, na íntegra, se recomenda, por imprescindível.
Assim começa ele:
1. Emendas Constitucionais e Parte Permanente da Consti-
tuição de 1988.
1.1. As emendas à Constituição brasileira de 1988 foram conce-
bidas para redimensionar apenas em parte o nosso Texto Magno.
Aclaro: foram concebidas para incidir tão-somente sobre a ban-
da permanente da nossa Constituição. Não sobre o “ATO DAS
DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRASITÓRIAS”
......................................................................................
2. Transição Constitucional e Parte Transitória da Lei Maior
2.1. Assim ajuizamos porque a banda transitória da Magna Lei
se tipifica por incidir sobre fatos que o legislador constituinte so-
mente valorou como de regração efêmera por efeito, justamente,
da quadra histórica de transição então vivida. E transição cons-
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
415

titucional é fenômeno irreprimivelmente passageiro. Tempo


que transcorre entre dois marcos ou duas eras: a era da Cons-
tituição que sai de cena e a da Constituição que sobe ao palco
da positividade jurídica. Se se prefere, lapso temporal que so-
mente acontece no lusco-fusco de uma Constituição que chega
para revogar outra e entende de criar uma zona intermediária de
regulação, caracterizada por nascer com seus dias contados. Mas
nascer com seus dias contados (a zona intermediária de regula-
ção) pelo único Poder que naquele momento de interseção das
duas Cartas Políticas a tudo sobranceiramente assiste e norma-
tivamente fotografa: o Poder Constituinte. Não pelo Poder Re-
formador, porque a voz de comando que é própria desse Poder
de Reforma é para avaliar o desempenho da nova Constituição
ante o desenrolar dos fatos que se lhe seguiram (primeiro, a
Constituição; depois, os fatos). E esse desempenho é excludente
daqueles fatos cujo desenrolar já se encontra empalhado pelo
próprio Poder Constituinte no chamado ADCT; ou seja fatos
que já foram normados com a precisa indicação do seu começo
e do seu término, que são fatos não mais susceptíveis de vexar
a Constituição, colocando-a como peça legislativa demodé ou
por qualquer modo descompassada com a dinâmica do pensa-
mento médio da população.

Prosseguindo, sustenta o Ministro:


4. ADCT: Núcleo Intangível do Corpo Normativo da Constituição
4.1. Noutro modo de dizer as coisas, o segmento constitucional
transitório é um conjunto normativo que se impõe ao Poder Re-
formador. É todo ele uma cláusula pétrea. Não no sentido de
cláusula intangível pelo tempo em que vigorar a nova Constitui-
ção, mas pelo tempo que se fizer necessário à completa produção
dos seus próprios efeitos no mundo das ocorrências fáticas.
...................................................................................
5. Parte Transitória da Constituição e Futuridade
5.1. Em verdade, ao dotar a Lei Maior de uma porção transitó-
ria, o Constituinte decide que a sua Constituição é para funcio-
nar, no futuro, somente com uma parte permanente. A parte
transitória é como se fosse cordão umbilical a murchar e cair de
vez com o passar dos dias. O que já é o bastante para a dedução
de que não cabe ao Poder Reformador interferir no curso da
natureza, retardando, ou, pior ainda, impedindo mesmo o des-
pencar daquele penduricalho umbilical (mexendo e remexendo
nos comandos efêmeros da Magna Lei, a seu talante).
5.2. Com efeito, admitir que o Poder de reformar a Constituição
possa alcançar também a própria banda transitória do Magno
Texto, esse Poder Reformador se projeta indefinidamente no
416 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

tempo e assim artificializa a duração do que foi definido, justa-


mente, para não se prorrogar jamais.”

E enfrente aquilo que parece representar um problema, mas que na


realidade não o é: a parte transitória dos atos de reforma da Consti-
tuição, ou seja das Emendas Constitucionais:
6. A Parte Transitória dos Próprios Atos de Reforma Constitucional
6.1. Quanto à afirmativa inicial de que os atos de reforma têm
na produção de normas gerais o seu espaço natural de mani-
festação, o seu habitat operacional, isto não implica dizer que
tais atos estejam privados de conter uma parte transitória deles
mesmos. Uma normação que vigore a latere da Constituição. Do
lado de fora, então, e não do lado de dentro da Lei Fundamental.
Daí que tais normas transitórias se veiculem por dispositivos que
passam a ter numeração própria, uma vez que, não se destinando
a entrar na Constituição, não teriam mesmo que renumerar tex-
tos normativos que só à Constituição pertencem [...].

Mais adiante torna mais evidente o seu posicionamento, lucidamente


desenvolvido:
7. Normas Transitórias da Constituição versus Normas Transi-
tórias de Emenda Constitucional
7.1. Diga-se, enfim, que num outro aspecto as normas transitó-
rias da própria Constituição mantêm diferença com as normas
transitórias de uma simples emenda. É que as normas transitó-
rias da Magna Lei são tão materialmente ilimitadas quanto as
normas permanentes que o Poder Constituinte elabora (nada
é tabu material para o Poder Constituinte, que se define, exa-
tamente, como poder que tudo pode no plano da positividade
jurídica, expressão que é de um genuíno poder de fato. Supra-
estatal e suprapositivo, portanto).
7.2. Já as normas transitórias de uma simples emenda, é claro
que elas passam pelas mesmas limitações (temporais, formais,
circunstanciais e materiais, como sabido) que o Poder Refor-
mador conhece para editar normas constitucionais permanentes.
Logo, nem por se tratar da confecção de normas transitórias de
sua própria autoria, fica o Poder Reformador (que, afinal, é um
poder constituído) liberado para ir adiante do que iria na refor-
mulação das normas permanentes da Constituição [...].
Apontamentos sobre disposições constitucionais transitórias.
417

15.

Concluindo, é preciso por cobro a essa desvirtuadora tendência de se


alterar o regramento constitucional através de acréscimos ou modi-
ficações ao Ato das Disposições Constitucionais, em vez de fazê-lo
no próprio texto permanente da Lei Maior, pela via de emendas que
podem, outrossim, conter parte de vida transitória.

Referências bibliográficas

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Educação
419

A educação de jovens e adultos


e a Constituição de 1988
Ana Valeska Gomes

Introdução

Uma das grandes conquistas no campo da educação, introduzida pela


Constituição de 1988, foi a explicitação do direito ao ensino obriga-
tório e gratuito para aqueles que não tiveram acesso na idade própria,
expresso no inciso I do art. 208.
Retomava-se, então, o princípio de que é dever do Estado ofertar um
nível escolar mínimo à população adulta, constante da Constituição
de 1934. No parágrafo único de seu art. 150, determinava-se que o
Plano Nacional de Educação deveria obedecer à exigência de ensino
primário integral e gratuito e de freqüência obrigatória extensivo
aos adultos.
No texto de 1937, essa menção desaparece. A Constituição de 1946
declarava que o ensino primário oficial era gratuito para todos (art.
168, inciso II); já no texto de 1967 introduziu-se a obrigatoriedade
e gratuidade do ensino primário nos estabelecimentos oficiais, mas
somente para aqueles de sete aos quatorze anos (art. 168, inciso II).
Face a essa breve retrospectiva, a Constituição de 1988 foi, sem dú-
vida, um marco histórico para a Educação de Jovens Adultos (EJA),
quando se vislumbraram grandes possibilidades para sua instituciona-
lização como modalidade de ensino.
Esse texto busca apresentar um retrato sintético de como evoluímos
no sentido de garantir o direito à educação de jovens e adultos. Para
tanto, apresenta-se um rápido diagnóstico da expansão da oferta de
EJA e um conjunto de desafios que ainda carecem de políticas públi-
cas efetivas para enfrentá-los.

O acesso de jovens e adultos à educação

Mais que assegurar o acesso ao ensino fundamental obrigatório e gra-


tuito àqueles que não tiveram a oportunidade de cursá-lo na idade pró-
420 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

pria, a Constituição Federal de 1988 determinou que o ensino médio


gratuito seja progressivamente universalizado. (Art. 208, incisos I e II)
Também estabeleceu dispositivos relativos à erradicação do analfabe-
tismo, no art. 214, que trata do Plano Nacional de Educação, e no art.
60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que, à época
da promulgação, dizia1:
Art.60. Nos dez primeiros anos da promulgação da Constituição, o po-
der público desenvolverá esforços, com a mobilização de todos os
setores organizados da sociedade e com a aplicação de, pelo me-
nos, cinqüenta por cento dos recursos a que se refere o art. 212
da Constituição, para eliminar o analfabetismo e universalizar o
ensino fundamental.
Esse conjunto de dispositivos implicava necessariamente a imediata
expansão da educação de jovens e adultos, mas também o planejamen-
to de seu crescimento futuro, à medida que o ensino médio se tornasse
obrigatório e os recém-alfabetizados fossem incorporados ao sistema
para prosseguimento dos estudos.
De certo modo, o texto constitucional de 88 refletiu a transformação
por que passavam à época os paradigmas da educação de jovens e
adultos. Fortalecia-se a concepção de que a aquisição das habilidades
de leitura e escrita apenas se inicia na etapa de alfabetização, devendo
ser consolidada no primeiro ciclo do ensino fundamental para fazer
frente às demandas do contexto de vida de cada cidadão.
O princípio constitucional de que a educação deve visar ao pleno de-
senvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho (art. 205) apontava para uma educa-
ção obrigatória mais abrangente, muito além do ensino fundamental.
E se isso valia para o sistema de ensino regular, por que não valeria
para àqueles que não tiveram essa oportunidade na fase apropriada?
As duas normas legais mais importantes da área de educação, editadas
pós Constituição de 88, a Lei de Diretrizes e Bases e o Plano Nacional
de Educação2, assimilaram esse espírito. Nelas, a EJA começou a ser
tratada num sentido mais ampliado, ora pensando na articulação das
etapas de alfabetização/fundamental/médio e no financiamento, ora
reconhecendo a diferenciação do perfil da clientela e a necessidade de
interface com outras políticas para se fazer efetiva.

1
O art. 60 do ADCT foi alterado pelas Emendas Constitucionais nº 14, de 1996,
e nº 53, de 2006.
2
Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001,
respectivamente.
A educação de jovens e adultos e a Constituição de 1988
421

A urgência de voltar a atenção do Estado para jovens e adultos de baixa


escolaridade tem, ainda, um viés de inclusão sócio-econômica, pois:
A pouca escolarização, além de reduzir drasticamente as possibilida-
des de competição no sistema ocupacional, inabilita para entrar em
setores produtivos de maior exigência tecnológica e melhor remunera-
ção. Estes são fatores importantes na reprodução da pobreza no Brasil,
criando um círculo vicioso, no qual a baixa escolaridade é acompanha-
da de baixa remuneração (...). (Ivany Pino apud MOTTA, 1997)
Diante do passivo do Estado com esse público, em 2001, o Plano
Nacional de Educação previu metas para assegurar, em cinco anos, a
oferta de EJA equivalente às quatro séries iniciais para 50% da popu-
lação de 15 anos e mais sem essa escolaridade. Até 2011, será a vez de
ampliar a oferta de cursos equivalentes às quatro séries finais para toda
a população acima de 15 anos que concluiu o primeiro ciclo3.
No ensino médio, a meta é dobrar a capacidade de atendimento, em
cinco anos, e quadruplicar até 2011. Já com relação ao analfabetismo,
o PNE mirou em sua erradicação, seguindo a determinação da Cons-
tituição Federal.

Cenário atual

O crescimento das matrículas em EJA não é muito alentador frente


às expectativas geradas pela Constituição de 88. Entre 1997, primeiro
ano para o qual o censo escolar dispõe de dados sobre a educação de
jovens e adultos, e 2006, houve um incremento de 69% no total de
matrículas4. (Quadro 1)
O dado, a despeito de ser positivo, perde qualquer brilho quando ana-
lisado de forma mais detida ou à luz de outras estatísticas. Em 2006,
não havíamos sequer dobrado as matrículas existentes nos dois seg-
mentos do ensino fundamental (1ª a 4ª; 5ª a 8ª) no ano de 1997.
Nesse mesmo período, a EJA/Médio ganhou quase um milhão a mais

3
Desde a promulgação da Lei nº 11.274/2006, o ensino fundamental passou a ter
nove anos de duração.
4
Não foram incluídas as matrículas da EJA semipresencial, que decresceram de 1,1
milhão, em 2004, para cerca de 750 mil matrículas em 2006. Possivelmente, essa
redução está relacionada com a expectativa de que o Fundeb contabilizasse apenas
as matrículas da modalidade presencial para efeito de distribuição dos recursos, o
que de fato ocorreu. De acordo com a lei do Fundeb, os recursos só podem ser dis-
tribuídos “na proporção do número de alunos matriculados nas respectivas redes de
educação básica pública presencial”. (art. 8º da Lei nº11.494, de 2007)
422 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

de matrículas, mas praticamente metade dos alunos dessa etapa, em


2006, tinha menos de 25 anos de idade.
Essa concentração numa faixa etária mais baixa é reflexo da inefi-
ciência da educação escolar brasileira, bastante conhecida por todos
aqueles que se interessam pelo tema. Assim, a “juvenilização” da EJA é
reforçada por fatores como: a distorção idade-série de 30% no ensino
fundamental e 50% no ensino médio (2006); a baixa qualidade do
ensino público que expulsa o aluno precocemente do ensino regular, e
um forte indicativo de que a escola tal como está vem perdendo rele-
vância para uma parcela dos adolescentes brasileiros5.

Quadro 1
eja – matrículas por etapas nos cursos presenciais com ava-
liação no processo – brasil – 1997 e 2006 (em milhão)

Etapas
Anos EJA 1a/4a EJA 5a/8a EJA Fund. EJA Fund. Total
Fundamental. Fundamental. Total Total

1997 0,899 1,311 2,210 0,391 2,882


2006 1,487 2,029 3,516 1,345 4,861

Fonte: Censo Escolar 1997/2006 MEC/INEP. Elaboração: Consultoria Legislativa

A expansão da EJA é bastante irregular entre as Grandes Regiões,


com acréscimos variando de 12% no Sul a 172% no Nordeste (Quadro
2). Há, claro, uma diferença em relação à localização da demanda, mas
o quantitativo de pessoas com 15 anos ou mais fora da escola e com
baixa escolaridade, distribuídas por todas as cinco regiões, não justifi-
caria uma amplitude tão significativa.

5
Duas outras estatísticas reforçam a gravidade desse quadro: 17% dos jovens de 15
a 17 anos não estudam, conforme a PNAD/IBGE 2006, e a taxa de desemprego
chega a 19% entre os jovens de 15 a 24 anos, mais do triplo daquela observada entre
os adultos, de acordo com o Ipea. A baixa empregabilidade desses jovens é explicada
sobretudo pela pouca escolaridade que apresentam. No Boletim “Políticas Sociais –
Acompanhamento e Análise”, nº 15, há uma análise da inserção da juventude no
conjunto de políticas públicas federais.
A educação de jovens e adultos e a Constituição de 1988
423

Quadro 2
eja – matrículas nos cursos presenciais com avaliação no pro-
cesso – brasil e grandes regiões – 1997 e 2006 (em milhão)

Ano Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro oeste


1997 2,882 0,326 0,732 1,183 0,431 0,210
2006 4,861 0,608 1,993 1,424 0,481 0,355

Fonte: Censo Escolar 1997/2006 MEC/INEP. Elaboração: Consultoria Legislativa

A demanda potencial de brasileiros acima de 15 anos sem saber ler


e escrever ou com o ensino fundamental e médio incompletos, e que
mesmo assim estão fora da escola, aproxima-se da marca de 80 mi-
lhões em todo o país. (Quadro 3)
A enormidade do número de pessoas que não freqüentam escola e
sequer concluíram o ensino fundamental (47 milhões) ou o ensi-
no médio (15 milhões) é o mais duro retrato do quanto ainda será
necessário avançar para ampliar a oferta da educação de jovens e
adultos, de sorte a elevar a escolaridade de uma parcela significativa
da população brasileira.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2005 aponta
uma média de 6,7 anos de estudo para pessoas de dez anos ou mais de
idade, o que significa um ganho de 1,5 ano de estudo frente à média
de 5,2 verificada em 1995. No entanto, essa melhoria parece estar mais
ligada à expansão e melhoria de fluxo do ensino regular, do que à incor-
poração de segmentos de jovens e adultos excluídos da escola.
Assim, do público potencial de 62 milhões de pessoas para serem
atendidas por EJA6 nas etapas de alfabetização e ensino fundamental,
o atendimento girava, no ano de 2006, em torno de 10% da demanda
com: 4,9 milhões de matrículas nos cursos presenciais com avaliação
no processo; 750 mil em cursos semi-presenciais e 1,6 milhão de be-
neficiários em classes de alfabetização.

6
A LDB permite a realização de exames supletivos no nível de conclusão do ensino
fundamental a partir dos 15 anos de idade e no nível de conclusão do ensino médio
para maiores de 18 anos. (art. 38)
424 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Quadro 3
população de 15 anos ou mais fora da escola por grupos de
anos de estudo – brasil e grandes regiões – 2005 (em milhão)

Grupos de anos de estudo


sem ins-
Regiões de 1a3 de 4a7 de 8 a 10
trução ou
menos de anos anos anos
1ano
Brasil 15,015 14,772 32,064 15,577
Norte 1,19 1,203 2,249 1,098
Nordeste 7,064 4,912 7,4 2,992
Sudeste 4,462 5,535 14,439 7,690
Sul 1,355 2,139 5,663 2,686
Centro-Oeste 0,943 0,983 2,313 1,111

Fonte: IBGE/PNAD 2005. Elaboração: Consultoria Legislativa

Vale comentar os números relativos ao analfabetismo. Durante as duas


décadas de vigência da Constituição de 88, destacaram-se dois gran-
des programas de combate ao analfabetismo. Na gestão do Presidente
Fernando Henrique Cardoso, foi lançado o Programa Alfabetização
Solidária, operando com recursos públicos e parcerias privadas.
Iniciada em 1997, essa ação continua a ser implementada por uma or-
ganização não governamental, tendo atendido, no período 1997-2005,
5,1 milhões de alunos em cerca de dois mil municípios 7.
O Programa Brasil Alfabetizado8 foi instituído pelo Ministério da Edu-
cação, em 2003, juntamente com a criação da Secretaria Extraordinária
de Erradicação do Analfabetismo, posteriormente transformada na Se-
cretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.
Sua estratégia inicial foi a de oferecer apoio técnico e financeiro a pro-
jetos de alfabetização de jovens e adultos apresentados por Estados,
Municípios, instituições de ensino superior e organizações sociais,
com diversidade de metodologias e práticas de ensino. De acordo com
dados do MEC, o Brasil Alfabetizado teve 5,4 milhões de beneficiá-
rios de 2003 a 2005.

7
Ver www.alfabetizacaosolidaria.org.br
8
Criado por meio do Decreto nº 4.834, de 8/9/2003. Alterado pelo Decreto nº
6.093, de 24 de abril de 2007.
A educação de jovens e adultos e a Constituição de 1988
425

Em 2007, o Brasil Alfabetizado foi reformulado. A prioridade será


atender 1.100 municípios com taxas de analfabetismo superiores a
35%. Oitenta por cento dos recursos serão repassados aos municípios,
com o compromisso de definição de metas, engajamento dos profes-
sores da rede pública no processo de alfabetização de jovens e adultos
e integração desta com as séries iniciais da EJA.
Somados, os Programas Alfabetização Solidária e Brasil Alfabetizado
atenderam, no intervalo 2001-2005, cerca de nove milhões de alunos.
Ainda assim, a redução, em termos absolutos, da população analfabeta
de 15 anos ou mais foi de 1,3 milhão entre 2000 e 2005.
Os desafios inerentes a esse conjunto de dados respondem porque um
incremento de 69% nas matrículas de EJA, em dez anos, não pode
ser interpretado de forma muito otimista. As matrículas crescem a
um ritmo lento demais. Esse cenário exige mudanças. Seja do pon-
to de vista da inserção dessas pessoas no mercado de trabalho e do
exercício de seus direitos constitucionais, seja sob a ótica do peso que
essas características de escolarização da população representam para o
desenvolvimento do país.

Os desafios

Começando pelo que o Ministério da Educação chama de “portal


de entrada na cidadania”, há as dificuldades enfrentadas pelas ações
direcionadas à alfabetização de jovens e adultos, patentes nos dados
apresentados na seção anterior.
De acordo com a organização não-governamental Ação Educativa,
uma avaliação9 realizada sobre o “Brasil Alfabetizado” identificou que
as turmas possuem alto índice de evasão e a maioria dos inscritos já
dominam habilidades de leitura e escrita, o que indica problemas de
eficiência e de foco do programa.
Há, ainda, uma cisão entre a alfabetização e a educação básica de jo-
vens e adultos na formulação e implementação de políticas, programas
e ações. Muitas vezes, essa desarticulação decorre da pura e simples

9
A avaliação foi realizada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea),
sob a coordenação de João Pedro Azevedo e incluiu diversos instrumentos que pes-
quisaram questões relativas à mobilização, eficiência e eficácia das turmas e seleção
dos alfabetizandos. Foram usados tanto os registros administrativos do Programa
(como o sistema informatizado de registro das turmas), como dados do IBGE, vi-
sitas in loco e entrevistas com gestores. Ação Educativa, Boletim Informação em
Rede, Novembro de 2007.
426 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

carência de oportunidade de seguir os estudos, o que fragiliza a con-


solidação da aquisição da leitura e da escrita no ciclo inicial do ensino
fundamental. Outro grave problema é a escassez de recursos didáticos
nas salas de alfabetização10.
Iniciativas como o Projeto Recomeço (2001/2002) e o Fazendo Esco-
la (a partir de 2003), que visam apoiar a expansão da educação de jo-
vens e adultos nos sistemas locais, ampliaram a destinação de recursos
financeiros para a EJA (Gráfico 1), mas ainda têm alcance limitado.
Apenas um quarto das escolas públicas brasileiras oferece a oportuni-
dade para jovens e adultos estudarem. (Ação Educativa, 2007)

Gráfico 1
orçamento da união – ministério da educação – 2000 a 2005–
despesa por subfunção educação de jovens e adultos – em
r$ milhões correntes

Fonte: Siafi/Prodasen/Consultoria de Orçamento. Elaboração: Consultoria Legislativa

Por outro lado, o modelo de financiamento adotado na área educa-


cional, no período 1997-2006, desestimulou Estados e Municípios a
investirem em EJA. Em 1996, um veto presidencial à Lei nº 9.42411
não permitiu que os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvi-

10
Em 24 de Abril de 2007, a Portaria MEC nº 9 instituiu o Programa Nacional do
Livro Didático para Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLA).
11
Em 1996, a Presidência da República alegou que o veto ao inciso II, § 1º do art. 2º
da Lei nº 9.424, era necessário para evitar a criação de cursos supletivos sem rigor,
“com o objetivo de garantir mais recursos financeiros ao respectivo governo, em
detrimento da qualidade do ensino”; bem como porque inexistiam dados estatísticos
consistentes para “assegurar uma correta e fidedigna contabilização do alunado”.
A educação de jovens e adultos e a Constituição de 1988
427

mento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fun-


def ) fossem aplicados na educação de jovens e adultos.
A aprovação do Fundeb12, uma ampliação do Fundef para toda a edu-
cação básica, reinseriu a EJA nesse mecanismo de financiamento. Não
obstante, também criou barreiras para a expansão da modalidade, com
um coeficiente de ponderação de 0.7 por matrícula e uma “trava” que
restringe a aplicação de recursos no âmbito dos Fundos.
O art. 11 da Lei nº 11.494/2007, que regulamenta o Fundeb, esta-
belece que a “apropriação dos recursos em função das matrículas na
modalidade de educação de jovens e adultos, nos termos da alínea
“c”, inciso III, caput do art. 60 do Ato das Disposições Constitucio-
nais Transitórias (ADCT), observará, em cada estado e no Distrito
Federal, percentual de até 15% (quinze por cento) dos recursos do
fundo respectivo”.
A lei também diz que a distribuição proporcional de recursos dos Fundos
levará em conta as diferenças entre etapas, modalidades e tipos de estabe-
lecimento de ensino da educação básica. No caso da EJA, foram diferen-
ciadas duas modalidades, ambas com o mesmo coeficiente de 0.7:
I) educação de jovens e adultos com avaliação no processo;
II) educação de jovens e adultos integrada à educação profissional de
nível médio, com avaliação no processo.
A segmentação já é reflexo das ações mais recentes do Poder Público
nesse campo. Nos últimos anos, vêm sendo implementadas iniciativas
com o objetivo de ampliar a oferta de EJA integrada à educação pro-
fissional, como exemplo: Proeja, Escola de Fábrica, Projovem, Saberes
da Terra e Escola Técnica Aberta13.

12
Ver Emenda Constitucional nº 53, de 2006, e Lei nº 11.494, de 2007.
13
Criado em 2006, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional
com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja),
do Ministério da Educação, abrange cursos que proporcionam formação profissio-
nal com escolarização para jovens e adultos. Por sua vez, o Escola de Fábrica e o
Saberes da Terra foram incorporados ao novo formato do Projovem, que pretende
reintegrar jovens de 15 a 29 anos ao processo educacional. As quatro modalidades
do Programa – Projovem Adolescente, Projovem Urbano, Projovem Campo e Pro-
jovem Trabalhador – também miram na oferta de qualificação profissional, além
do acesso a ações de cidadania, esporte, cultura e lazer. A Escola Técnica Aberta
(Etec) visa à ampliação do acesso ao ensino técnico público, através da modalidade
de educação a distância, levando cursos técnicos a regiões distantes das instituições
públicas de ensino técnico e para a periferia das grandes cidades brasileiras, incen-
tivando os jovens a concluírem o ensino médio.
428 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Não há dúvida de que a EJA precisa ser vista de forma intersetorial.


Em geral, o aluno dessa modalidade tem interesses e práticas sociais
em outros campos – inclusão digital, cultura, lazer, meio-ambiente,
assistência social, saúde e, sobretudo, emprego. A articulação com ou-
tras políticas públicas agrega relevância à educação formal na vida do
jovem ou adulto.
Dois outros temas merecem ser comentados: a diversidade do públi-
co de EJA e a qualificação dos profissionais do magistério para atuar
nessa modalidade.
O Censo Escolar de 2006 registra que 99% dos docentes que atuam
em EJA têm formação em nível médio ou superior. (Quadro 4). A
questão mais grave, segundo Di Pierro, é a ausência de políticas que
articulem a EJA de forma orgânica às redes públicas de ensino básico,
o que impede a formação de carreira específica para educadores dessa
modalidade. (DI PIERRO, 2003)
(...) os docentes que atuam com os jovens e adultos são, em geral,
os mesmos do ensino regular. Ou eles tentam adaptar a metodo-
logia a este público específico, ou reproduzem com os jovens e
adultos a mesma dinâmica de ensino-aprendizagem que estabe-
lecem com crianças e adolescentes. (Di Pierro, 2003)

Quadro 4
Número de Funções Docentes na Educação de Jovens e
Adultos – por segmento e nível de formação – Brasil – 2005

Nível de Formação
Etapas Fund. Fund. Médio Superior Total
Incompleto Completo Completo Completo

1ª a 4ª
203 1.539 42.287 23.975 68.004
do E.F
5ª a
8ª do 22 170 21.859 102.467 124.518
E.F.
Ensino
1 1 3.198 81.823 85.023
Médio
Total 226 1.710 67.344 208.265 277.545

Fonte: MEC/Inep. Censo Escolar 2005


Nota: O mesmo docente pode atuar em mais de um nível/modalidade de ensino e em mais de
um estabelecimento.
A educação de jovens e adultos e a Constituição de 1988
429

O desafio é qualificar os profissionais do magistério tendo em vista as


peculiaridades da EJA e sua multiplicidade de públicos, que vão além
da questão geracional: gênero, campo, população carcerária, jovens
cumprindo medidas sócio-educativas, quilombolas, para citar alguns.
A qualificação do docente é, além disso, um dos grandes trunfos para
ajudar o aluno a superar experiências escolares malsucedidas e com-
bater os índices de abandono/evasão nessa modalidade. Nesse sentido,
poderia haver ganhos substanciais se houvesse um maior engajamento
da universidade pública no tema, em especial na formação inicial e
continuada e na realização de pesquisas.
A educação de jovens e adultos não está destinada apenas a suprir as
deficiências do nosso sistema educacional. Numa sociedade em ritmo
acelerado de mudanças e de produção de conhecimentos, é natural
que ela se amplie para buscar a educação permanente dos indivíduos.
Sua natureza, portanto, deve ser variada e flexível.
Infelizmente, a escassez de profissionais habilitados para educar jo-
vens e adultos limita a característica de flexibilidade que deveria ser
inerente a esse processo educacional. A legislação permite toda uma
adequação de estruturas, de duração e de regime escolar que atendam
às condições e situações específicas dos públicos da EJA, mas os siste-
mas de modo geral não usufruem dessa modernidade, estão presos a
modelos do passado.

Conclusão

A Constituição Federal de 88 preocupou-se em explicitar o direito ao


ensino fundamental obrigatório para aqueles que não tiveram acesso
na idade própria, mas essa vitória não foi suficiente para, vinte anos
depois, despojar a educação de jovens e adultos do seu estigma de en-
sino marginal. Tampouco bastou para ampliar de forma significativa
o acesso ao público potencial: quase 50 milhões de brasileiros, que,
apesar de não terem concluído o ensino fundamental, estão fora dos
bancos escolares.
Longe dos nove anos do ensino fundamental obrigatório e, mais ain-
da, de uma formação completa em nível básico, também temos 15
milhões de pessoas sem o ensino médio e fora da escola.
A expansão das matrículas dos cursos presenciais em EJA, da ordem
de 70% entre 1997 e 2006, pode ser considerada tímida frente aos de-
safios. Além do passivo que o Estado tem com milhões de brasileiros,
430 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

as estatísticas são engrossadas graças à ineficiência do sistema de en-


sino regular, que desestimula e induz à evasão precoce ou à repetência
sucessiva, o que provoca um efeito cascata de distorção idade-série.
Mesmo os programas de alfabetização demonstram graves proble-
mas: a evasão é alta, muitos já freqüentaram salas de alfabetização,
mas não ingressaram no ensino fundamental, comumente por falta
de oportunidades.
Por outro lado, houve uma ampliação significativa de recursos finan-
ceiros aplicados em EJA pelo Governo Federal entre 2000 e 2005 e a
modalidade foi incluída, em 2006, no principal mecanismo de finan-
ciamento da educação básica, o Fundo de Manutenção e Desenvolvi-
mento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Edu-
cação, o Fundeb. A exclusão do Fundef contribuiu para desestimular
Estados e Municípios a investirem em EJA, limitando sua expansão.
Outra boa notícia é a ampliação das oportunidades de integração da
EJA à educação profissional, além de articulação com ações nos cam-
pos da cultura, inclusão digital, emprego etc, num reconhecimento
tardio de que esse público precisa de políticas intra e intersetoriais
para acorrer e permanecer no sistema escolar.
Por fim, é preciso reconhecer o papel que um conjunto enorme de ins-
tituições e organizações não-governamentais que atuam nesse campo
desempenharam nessas duas décadas. Face a experiência acumulada, é
desejável e viável desenvolver novas formas de participação sem, con-
tudo, abrir mão do papel do Estado de estabelecer e conduzir políticas
públicas direcionadas à educação de jovens e adultos.
Os desafios não são poucos. Tornar as ações de alfabetização mais fo-
cadas e eficientes, expandir matrículas da EJA no ensino fundamental
e médio são o mote para um conjunto muito maior de ações, como
estimular a qualificação de professores e a utilização de metodologias
mais adequadas a esse público, bem como reconhecer seus perfis dife-
renciados. Um dever de casa inadiável que esse balanço da Constitui-
ção deixa para nós.
A educação de jovens e adultos e a Constituição de 1988
431

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Educação
433

A extensão dos deveres do


Estado em matéria educacional:
repercussões positivas da
Constituição de 1988
Ricardo Chaves de Rezende Martins

Este breve ensaio discute as repercussões da extensão dos deveres do


Estado com relação aos direitos da cidadania brasileira em matéria
educacional, promovida pela Constituição de 1988. A análise de-
senvolvida considera que tal extensão se insere no contexto de uma
tendência contemporânea de ampliação da ação legiferante do Po-
der Legislativo, adentrando no domínio dos direitos subjetivos, dos
direitos sociais mais do que os individuais. O caráter mais genérico
das normas assim estabelecidas tem levado ao desempenho de novos
papéis tanto pelo Poder Executivo (ampliação da ação administrativa)
quanto pelo Poder Judiciário (ampliação da interpretação e da inter-
venção no domínio da ação administrativa).
Os dados reunidos sugerem que, no campo das políticas educacionais,
o resultado da implementação da legislação e das novas formas de
interação entre os Poderes da República tem sido positivo. Para ana-
lisar evidências desta afirmação, este trabalho enfoca principalmente
a oferta e o acesso à educação infantil pública (creches e pré-escolas).
Antes, porém, são feitos alguns comentários gerais sobre os dispositi-
vos que compõem a extensão de deveres do Poder Público em matéria
educacional, especialmente o artigo 208 da Constituição.

Situando a educação na constituição de 1988

Uma das características inovadoras da Constituição de 1988 foi a ex-


tensão dos deveres do Estado com relação ao direito à educação, an-
teriormente restritos, na prática, ao chamado ensino obrigatório. De
fato, a Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda nº 1,
de 1969, ainda que afirmando a oferta do ensino, em seus diferentes
434 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

graus, pelos Poderes Públicos, destacava como obrigatório e gratuito


o ensino primário (mais tarde – a partir de 1971 – entendido como
o ensino de 1º Grau, com oito anos de duração). Com relação aos
níveis médio e superior, mencionava a gratuidade para aqueles com
aproveitamento acadêmico e insuficiência de recursos. Tal gratuidade,
ao longo do tempo, deveria ser substituída pela concessão de bolsas
de estudos restituíveis. Sobre a educação anterior ao ensino primário,
nenhuma palavra. Sobre a educação especial, apenas uma referência de
que lei específica, incluindo várias matérias, iria dispor sobre a educa-
ção de excepcionais.
A Constituição de 1988, em seu Título VIII (Da Ordem Social), de-
dica, no Capítulo III, dez artigos à educação. No art. 205, afirma-se
que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família, a
ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. O mes-
mo direito, entre outros, é novamente citado, no art. 227, com relação
à criança e ao adolescente, como dever da família, da sociedade e do
Estado. Dos demais artigos do capítulo específico da educação, o que
interessa mais de perto à presente discussão, é o art. 208, que deter-
mina o dever do Estado com a educação mediante a garantia do ensi-
no fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive com oferta, também
gratuita, para os que não o cursaram na idade própria; a progressiva
universalização do ensino médio gratuito; o atendimento especiali-
zado aos portadores de deficiência; o atendimento em creche e pré-
escola às crianças de até cinco anos de idade; e outros referentes ao
acesso ao níveis mais elevados do ensino, a programas suplementares
e ao ensino noturno.
Em uma perspectiva comparada, é interessante notar que este grau
de detalhamento não é freqüente nas Cartas Constitucionais dos pa-
íses vizinhos. Tomando como exemplo a menção à educação infantil,
observa-se, na Constituição da Colômbia, a referência a um ano de
educação pré-escolar; na da Venezuela, consta a obrigatoriedade da
educação do maternal ao ensino médio diversificado; e na do Chile
está assinalado o papel do Estado em fomentar a educação infantil
(educación parvularia). As Constituições de países como o Uruguai e a
Argentina não chegam a mencionar a educação infantil sendo que, no
caso da última, não há detalhe algum, fazendo-se genérica referência
ao direito de ensinar e aprender.
A extensão dos deveres do Estado em matéria educacional: repercussões positivas da Constituição de 1988
435

O artigo 208: os deveres do Estado e suas repercussões

O art. 208 da Constituição de 1988, mantendo o caráter de obriga-


toriedade para o ensino fundamental (nova denominação do ensino
de 1º Grau), dispõe de modo específico sobre as demais etapas e mo-
dalidades da educação. Os incisos desse artigo, como já mencionado,
listam os deveres básicos do Estado para com a educação.

O ensino fundamental e a educação de jovens e adultos

Pelo inciso I, cabe ao Estado assegurar o ensino fundamental obriga-


tório e gratuito, mas não só para as crianças e jovens na idade correta
para cursá-lo, mas ofertá-lo gratuitamente para todos os que a ele não
tiveram acesso na idade própria. A redação original foi alterada pela
Emenda Constitucional nº 14, de 1996. O primeiro texto menciona-
va a garantia de ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive
para os que a ele não tiveram acesso na idade própria. Esta redação era
um tanto dúbia, pois poderia dar margem a uma interpretação de que
qualquer pessoa que não houvesse completado o ensino fundamen-
tal, ainda que fora da faixa etária própria, estaria obrigada a cursá-lo.
A nova redação manteve o cunho de obrigatoriedade recíproca e de
gratuidade para as crianças na idade própria e tornou obrigatória, ao
Poder Público, a oferta gratuita desse nível de ensino para os demais.
Trata-se de uma ponderável extensão das obrigações do Estado. Na
população brasileira, em 2006, 10,4% da população com 15 anos ou
mais de idade eram considerados completamente analfabetos, totali-
zando quase 14 milhões e 400 mil pessoas1. Se levado em conta o con-
ceito de analfabetismo funcional, isto é, o atributo daquele que, mes-
mo sabendo ler e escrever frases simples, não consegue se servir mais
amplamente das habilidades básicas de leitura, escrita e cálculo, esta
taxa sobe para pelo menos 22,2%, mais do que dobrando o número
de brasileiros envolvidos. Dos adultos com 25 anos ou mais de idade,
54% de cerca de 104 milhões de pessoas não apresentavam oito anos
de escolaridade, constituindo a clientela potencial para a educação de
jovens e adultos. Isto assumindo-se que deter oito anos de escolarida-
de é equivalente a ter completado o ensino fundamental e sem contar
a demanda pela educação de jovens e adultos no nível médio.

1
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), relativa ao
ano de 2006, realizada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
tística (IBGE)
436 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Esta ampliação do dever do Estado representa um enorme desafio. Os


dados, porém, sugerem que a procura da população por essa modali-
dade de ensino, embora tenha se ampliado, apresenta uma certa ten-
dência à estabilidade, além de enfrentar uma dificuldade adicional: o
elevado índice de evasão ao longo do período letivo. De fato, de 2000
para 2004, o número de matrículas subiu de pouco mais de 3 milhões
e 400 mil para cerca de 5 milhões e 700 mil. Nos dois anos seguintes,
registrou-se um total estável de estudantes, em torno de 5 milhões e
600 mil. Em 2006, houve queda para pouco menos de 5 milhões. Veja-
se que, no pico da série histórica mencionada, o número de matrículas
correspondeu apenas a 10% do total de brasileiros com mais de 25
anos que não concluíram o ensino fundamental.
É preciso destacar ainda que os parágrafos 1º e 2º do artigo 208 ca-
racterizam o acesso ao ensino fundamental como direito público sub-
jetivo (§1º) e sua não-oferta, ou oferta irregular, responsabilidade da
autoridade competente. No que diz respeito ao ensino fundamental
regular, a taxa de atendimento da população na faixa etária de 7 a 14
anos atingiu, em 2006, patamar próximo a 97%, o que é sem dúvida
um índice digno de relevo.

O ensino médio

O segundo inciso do art. 208 também foi alterado pela Emenda


Constitucional nº 14, de 1996. O texto originalmente promulgado
dispunha sobre progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade
ao ensino médio. A nova redação trata da progressiva universalização
do ensino médio gratuito, mas deixa de tratar da obrigatoriedade.
Ocorreu uma considerável expansão de vagas nesse nível de ensino.
De pouco menos de 3 milhões e 800 mil matrículas em 1991, alcan-
çou-se um total superior a 9 milhões de estudantes no ano de 2003.
No entanto, mais recentemente tem havido uma certa estabilidade ou
mesmo redução nas matrículas o que, com certeza, reflete não tanto
a incapacidade dos sistemas de ensino em oferecer vagas – embora
seja recorrente o discurso de falta de meios para prover a expansão –
mas a ineficiência do ensino fundamental que ainda retém, em suas
vagas, quase a metade dos estudantes com quinze a dezessete anos de
idade, faixa etária que, em condições normais, corresponde ao estudo
no nível médio.
A extensão dos deveres do Estado em matéria educacional: repercussões positivas da Constituição de 1988
437

A educação especial
O terceiro inciso trata da garantia do atendimento educacional espe-
cializado aos portadores de deficiência, de preferência na rede regular
de ensino. A modalidade aqui referida é da educação especial, campo
no qual, durante quase toda a história educacional brasileira, o Poder
Público foi largamente omisso, deixando a iniciativa de atendimento
nas mãos de instituições filantrópicas particulares.
O número de crianças e jovens atendidos ampliou-se, é verdade. Em
2001, contavam-se cerca de 29 mil matrículas em escolas especiali-
zadas ou classes especiais; em 2006, registraram-se mais de 375 mil
matrículas. A maior oferta tem sido assegurada pelas instituições pri-
vadas: 86%, em 1991, e 65%, em 2006. A evolução destas proporções,
porém, demonstra um maior envolvimento do setor público na edu-
cação especial. Quando se consideram os estudantes com necessidades
especiais inseridos em classes comuns do ensino regular, a presença do
ensino público torna-se ainda mais expressiva. Adicionam-se assim
mais de 320 mil alunos, dos quais 95% em instituições públicas.
No entanto, em larga parcela das redes de ensino, necessidades simples
não eram e, em larga medida, continuam não sendo suficientemente
atendidas, como, por exemplo, as condições de acessibilidade nos pré-
dios escolares. Que dizer então do preparo dos professores das cha-
madas classes comuns e demais profissionais da educação do ensino
regular para lidar com a diversidade, com as diferenças que o perfil
deste alunado apresenta? E dos meios pedagógicos e didáticos para
oferecer o adequado atendimento? Por mais importantes que sejam
as políticas inclusivas, ainda há muito a avançar nas redes públicas de
ensino com relação a esta modalidade educativa.

Os níveis mais elevados da educação

O quinto inciso dispõe sobre a garantia aos níveis mais elevados do


ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada
um. Aqui certamente se aponta em direção à educação superior, em
suas diferentes etapas (graduação e pós-graduação). Ainda que esteja
subjacente a idéia de que tais níveis mais elevados não serão necessaria-
mente para todos, os dados indicam que o acesso ainda é muito restrito.
De fato, apenas 12% da população de dezoito a vinte e quatro anos de
idade, em 2006, tinha acesso ao ensino superior no país.
438 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O ensino noturno

O sexto inciso trata da oferta do ensino noturno regular, adequado às


condições do educando, uma necessidade educacional e social, tendo
em vista a condição trabalhadora da uma larga parcela do contingen-
te de estudantes brasileiros, em especial no ensino médio (43%, em
2006) e na educação de jovens e adultos (praticamente a totalidade),
mantidos pelo Poder Público.
Os desafios são vários. Um dos principais é de ordem metodológica,
considerando o pequeno tempo disponível pelos estudantes para
estudos fora da sala de aula e o próprio horário em que as aulas
são ministradas.
De todo modo, registre-se que a ampliação da oferta noturna da edu-
cação básica é fenômeno recente, dando acesso a muitos alunos que,
de outra maneira, não teriam condições de continuar estudando.

Os programas suplementares do ensino fundamental

O inciso VII do art. 208 determina a existência de programas suple-


mentares, no ensino fundamental, de material didático-escolar, trans-
porte, alimentação e assistência à saúde. Com relação ao primeiro, de
longa data existe o Programa Nacional do Livro Didático, mantido
pelo Ministério da Educação, que contempla todos os estudantes
do ensino fundamental e, agora, amplia-se para o ensino médio. O
transporte escolar é atendido por dois programas federais: um deles
repassa recursos federais para o atendimento aos estudantes do ensino
fundamental da zona rural; o outro financia a aquisição de veículos.
Os programas federais estão em plena operação. Existe, contudo, no
cenário nacional, uma pendência, em vários estados, com relação ao
repasse, pelos governos estaduais, dos recursos relativos aos custos
incorridos pelos municípios no transporte dos estudantes das redes
estaduais. Esta é uma questão que ainda requer solução no âmbito da
cooperação federativa.
No que diz respeito à alimentação escolar, o Programa Nacional de
Alimentação Escolar, também federal, repassa recursos para suple-
mentar as despesas das redes estaduais e municipais com a merenda
escolar dos estudantes do ensino fundamental e da educação infantil.
A assistência à saúde na escola, embora disponha de alguns progra-
mas específicos federais, é a que ainda requer maiores providências
para sua implementação, atendendo à máxima de que, ao menos sob o
A extensão dos deveres do Estado em matéria educacional: repercussões positivas da Constituição de 1988
439

ponto de vista preventivo, é “mais fácil levar o atendimento à saúde às


escolas, onde estão reunidas as crianças na maior parte do ano, do que
supor que cada família leve seus filhos ao posto de saúde”.

Os deveres e direitos com relação à educação infantil

O quarto inciso do art. 208 dispõe sobre a garantia do atendimento


na educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças de até cinco
anos de idade, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 53,
de 2006. O texto original referia-se às crianças de zero a seis anos de
idade. Aqui tem-se uma das grandes inovações da Carta de 1988, pois
trata-se de matéria até então ausente do texto constitucional, mencio-
nada apenas de passagem na legislação infra-constitucional anterior e
tão-somente com relação ao estímulo devido pelos sistemas de ensino
às empresas que tivessem a seu serviço mães de crianças menores de
sete anos de idade, para que organizassem e mantivessem, diretamente
ou em colaboração, inclusive com o Poder Público, educação prece-
dente ao ensino de primeiro grau.2
Acompanhando a evolução das sociedades, das relações familiares, do
papel da mulher, das relações de trabalho e emprego e do conheci-
mento sobre o desenvolvimento integral da criança e sobre a relevân-
cia do adequado atendimento pedagógico nos primeiros anos de vida,
além dos demais cuidados com o desenvolvimento físico e psicológico,
a legislação educacional passou a contemplar a previsão desse tipo de
atendimento em instituições organizadas e supervisionadas pelos sis-
temas de ensino, com obrigação de oferta pelo Poder Público.
Como escreve Maria Malta Campos (2006, p.91):
Os motivos que justificam a crescente importância que vem
sendo conferida à Educação Infantil são de diversas naturezas.
Em primeiro lugar, decorrem das profundas mudanças ocorridas
no papel da mulher na sociedade moderna, e as conseqüentes
transformações nos arranjos familiares que envolvem a proteção,
o cuidado e a educação dos filhos. Em segundo, são reflexo das
condições de vida nas cidades, onde agora vive a maioria das
populações das nações industrializadas, que provocaram gran-
des mudanças na forma como as crianças vivem sua infância.
Em terceiro, estão fundamentados na evolução das pesquisas
científicas sobre o desenvolvimento infantil, as quais apontam
a enorme importância dos primeiros anos de vida para o desen-
volvimento físico, cognitivo, afetivo e social dos seres humanos,

2
Art. 61 da revogada Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971.
440 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

assim como nos estudos que constatam que a freqüência a boas


pré-escolas melhora significativamente o aproveitamento das
crianças na escola primária, especialmente no caso de alunos de
baixa renda. Finalmente, indicam o reconhecimento, no plano
internacional, dos direitos da criança, que incluem o direito à
educação de qualidade desde os primeiros anos de vida.

No domínio da legislação infraconstitucional, a Lei nº 9.394, de 20


de dezembro de 1996, de diretrizes e bases da educação nacional, con-
sagrou algumas normas dignas de menção. A primeira delas, inserida
no capítulo das Disposições Finais, determinou a incorporação das
creches e pré-escolas aos sistemas de ensino, reafirmando, assim, o seu
caráter educacional e retirando de tais instituições, em especial das
creches, o cunho meramente assistencial de que historicamente eram
revestidas. Do mesmo modo, ao dispor explicitamente sobre o proces-
so pedagógico na pré-escola, estabeleceu diretrizes que nortearam a
expansão e a melhoria de seu atendimento.
Os gráficos adiante apresentados indicam a evolução das matrículas
nas duas etapas da educação infantil, de acordo com os dados dis-
poníveis no Censo Escolar anualmente coletado pelo Ministério da
Educação. Na etapa da pré-escola, ressalta o expressivo número de
matrículas, ainda que a série histórica evidencie ser ele hoje equiva-
lente ao observado há mais de dez anos, tendo até mesmo havido de-
créscimo em determinados anos desse período. Esta redução, entre
os anos de 1996 a 1997, pode ser em parte atribuída à redefinição da
atribuições prioritárias dos estados e dos municípios com relação às
etapas da educação básica, resultante da discussão e promulgação da
Emenda Constitucional nº 14, de 1996. Passando a responsabilidade
prioritária dessa etapa educacional para os municípios, levou a uma
retração e quase desaparecimento de sua oferta pelos estados, o que
somente anos adiante viria a ser compensado pela ampliação das
vagas nas redes municipais. De todo modo, é significativo constatar
que, de acordo com os dados da PNAD de 2006, 76% das crianças
de quatro a seis anos de idade freqüentavam algum estabelecimento
educacional. Considerando o número total de vagas disponíveis, sem
entrar na análise detalhada de sua distribuição no território nacional,
já está praticamente alcançado o percentual estabelecido pelo Plano
Nacional de Educação para o período: 80% das crianças de 4 a 5
anos, considerando que as de 6 anos de idade estarão sendo agora
incorporadas ao primeiro ano do ensino fundamental. Observe-se
que, em 2006, 74% das vagas na pré-escola eram mantidas pelas
redes públicas de ensino.
A extensão dos deveres do Estado em matéria educacional: repercussões positivas da Constituição de 1988
441

Brasil – Matrículas em Pré-escola – 1991-2006. Fonte: MEC/INEP, Censos Escolares

No atendimento em creches, contudo, os números são muito menos


favoráveis. De fato, ainda que a série histórica apresentada3 eviden-
cie um crescimento significativo em números absolutos, o número de
matrículas observado representa apenas cerca de 15,5% da popula-
ção na faixa etária de zero a três anos de idade com acesso a alguma
instituição educacional, de acordo com os dados da PNAD de 2006.
Trata-se de menos de um terço do percentual estabelecido pelo Plano
Nacional de Educação (50%) para atingimento em janeiro de 2011.
A meta parece distante, se considerado que, dos dez anos de vigência
do plano, está em curso o oitavo ano. De todo modo, registram-se
avanços (como o fato de, em 2006, as redes públicas responderem por
64% das vagas) que, seguramente, derivam dos direitos das crianças e
dos deveres do Poder Público inscritos na Carta de 1988. Este quadro
delineou, inclusive, novas formas de interação entre a sociedade e os
Poderes Públicos e destes entre si, como se discute a seguir.

3
Somente a partir de 1997 o Censo Escolar passou a apresentar dados sistematiza-
dos sobre as matrículas em creches.
442 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Brasil – Matrículas em Creches – 1997-2006. Fonte: MEC/INEP, Censos Escolares

Novos cenários para afirmação do direito à educação

Esta expansão de direitos na área educacional se insere em um mo-


mento histórico em que o Estado ultrapassa os limites tradicionais de
“proteção” e “repressão” e adentra no domínio dos direitos subjetivos,
dos direitos sociais mais do que os individuais (CAPPELETTI, 1999,
p. 41). Constata-se a progressiva ampliação da esfera de atuação do
Poder Legislativo, abrangendo sempre mais assuntos, e correlativa-
mente, o crescimento do ramo administrativo, mais relacionado ao
Poder Executivo. Nesse processo, o controle judiciário da atividade do
Executivo também se amplia proporcionalmente.
Nesse contexto, assume especial destaque a proteção aos interesses
coletivos e difusos, cada vez mais explicitamente mencionados na le-
gislação, tanto de ordem constitucional como dela derivada. Freqüen-
temente mencionados do modo vago, fluido ou programático na legis-
lação, “mostra-se inevitável alto grau de ativismo e criatividade do juiz
chamado a interpretá-los” (CAPPELETTI, 1999, p. 60). Dentre os
“novos direitos” sociais e econômicos, são mencionados, por exemplo,
o direito ao trabalho, à proteção da saúde, à segurança material e à
educação. Como afirma Cappeletti (1999, p. 42),
A extensão dos deveres do Estado em matéria educacional: repercussões positivas da Constituição de 1988
443

obviamente, nessas novas áreas abertas à atividade dos juízes, ha-


verá, em regra, espaço para mais elevado grau de discricionarie-
dade e, assim, de criatividade, pela simples razão de que quanto
mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais
amplo se torna também o espaço deixado à discricionariedade
nas decisões judiciárias.

Assim, ainda que a Constituição Federal, no art. 211, determine que


os municípios devam atuar prioritariamente no ensino fundamental
e na educação infantil (creches e pré-escolas) e os estados no ensino
fundamental e médio, e o art. 30 imponha aos municípios a manuten-
ção, com a cooperação técnica e financeira da União e do estado, de
programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental, todas as
normas referentes às obrigações do Poder Público para com a educação,
excetuada aquela relativa ao ensino obrigatório (ensino fundamental),
foram por longo tempo consideradas como normas “programáticas”,
isto é, destituídas de eficácia, como se fossem declaração de princípios,
diretrizes a serem seguidas de acordo com critérios de conveniência e
oportunidade estabelecidos pela própria administração.
Dois promotores de justiça, em recente obra publicada, tratam dessa
questão de modo claro. Digiácomo (2004, p. 289) afirma que não é
mais “(...)admissível invocar a dita ‘discricionariedade’ do administra-
dor para justificar o descumprimento das disposições legais e cons-
titucionais que impõem ao Poder Público a prioridade absoluta de
tratamento a crianças e adolescentes (...)”. No caso específico da edu-
cação infantil, Liberati (2004, p. 237) assinala que
havendo demanda ou procura de serviço essencial da educação
infantil (pelos pais ou responsáveis), nasce o dever do Estado
em disponibilizar o referido serviço. O impedimento do aces-
so da criança à educação infantil em instituições públicas faz
gerar a responsabilidade do administrador público, obrigado a
proporcionar a concretização da educação infantil em sua área
de competência.

Para discutir a questão, examina-se o pronunciamento do Superior


Tribunal de Justiça, com relação a Ação Civil Pública relativa ao di-
reito de matrícula e freqüência de crianças de zero a seis anos de idade
em estabelecimentos de educação infantil em rede pública municipal,
no Município de Santo André, no Estado de São Paulo.
A análise do caso requer a exposição de alguns elementos conceituais
que a inspiram. Para Vallinder (1995, p.13), a judicialização da política
pode ser entendida tanto como a expansão da esfera de atuação do
Poder Judiciário em detrimento daquelas dos políticos e administra-
dores, isto é, a transferência da decisão destes para o primeiro; como
444 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

a expansão dos métodos de decisão judicial para outras esferas que


não a propriamente judiciária.4 Tate (1995, p. 28) apresenta conceito
semelhante, reafirmando seus dois significados principais: o processo
pelo qual o Poder Judiciário progressivamente assume papel afirmati-
vo nas políticas públicas, anteriormente privativo de outras instâncias,
em especial o Poder Legislativo e Executivo; e o processo pelo qual
outras instâncias de decisão e negociação não judicial passam a adotar
normas e procedimentos quase-judiciais”.5
Segundo Cappeletti (1999, p.34) , a politização do juiz, ou mais
amplamente considerada, do Judiciário, é um desenvolvimento que
“constitui indiscutível dado de fato”. De acordo com o autor, trata-se
de uma “radical mudança ocorrida no próprio papel do direito e do
estado na sociedade moderna”. Ressalta ele que esta evolução decorre
da progressiva expansão do âmbito das intervenções estatais ou pú-
blicas, características do chamado welfare state. Trata-se de observar
que “com o aumento do âmbito e intensidade das intervenções pú-
blicas, a tônica da atividade legislativa deslocou-se progressivamente
das regras de conduta para as medidas e acomodações institucionais”,
emergindo no tipo de legislação que indica “certas finalidades ou prin-
cípios, deixando a especificação a normas subordinadas, a decisões de
ministros ou autoridades regionais ou locais, ou aos cuidados de novas
instituições” (CAPPELETTI, 1999, p. 40).
O caso que se busca analisar neste ensaio aponta na mesma direção.
Como já enunciado, trata-se de julgamento, pelo Superior Tribunal
de Justiça (STJ), de Recurso Especial referente a Ação Civil Pública
ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, em favor de
duas crianças, para que lhes fosse garantido o direito de matrícula e
freqüência em creche municipal próxima de sua residência, no Muni-
cípio de Santo André.6 Inicialmente concedida, a liminar foi suspensa

4
“Thus the judicialization of politics should normally mean either (1) the expansion of the
province of the courts or the judges at the expense of the politicians and/or the administra-
tors, that is, the transfer of decision-making rights from the legislature, the cabinet, or the
civil service to the courts or, at least (2) the spread of judicial decision-making methods
outside the judicial province proper”.
5
“For clarity and consistency, I follow Vallinder’s conceptual survey of the judicialization
of politics (chap. 2 of this volume), which suggests two core meanings for the term: 1. the
process by which courts and judges come to make or increasingly to dominate the making of
public policies that had previously been made (or, it is widely believed, ought to be made)
by other governmental agencies, especially legislatures and executives, and 2. the process
by which nonjudicial negotiating and decision-making forums come to be dominated by
quasi-judicial (legalistic) rules and procedures”.
6
Recurso Especial nº 511.274-SP, relator para acórdão ministro João Otávio de
Noronha. DJ de 9/2/2007
A extensão dos deveres do Estado em matéria educacional: repercussões positivas da Constituição de 1988
445

pelo presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-


SP), a requerimento do município. Este alegou a inexistência de vagas
e que a ampliação do número de creches constitui ato discricionário
da administração, de acordo com a conveniência e oportunidade do
Poder Público.
O Ministério Público do Estado opôs dois embargos de declaração,
ambos rejeitados, tendo o Tribunal, no julgamento do segundo, ofe-
recido manifestação expressa pela inaplicabilidade do art. 208, III, e
art. 213 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Baseado na viola-
ção de tais princípios e ainda no art. 54 da mesma lei, foi interposto
recurso especial.
O pronunciamento do STJ, acolhendo o voto do ministro relator, in-
forma que o acórdão do TJ-SP recorrido pelo Ministério Público Es-
tadual, sustentou que
não obstante haja expressa delegação, constante em lei, outor-
gando aos municípios a competência para implantação e super-
visão das instituições de educação de crianças de zero a seis anos
de idade, os atos físicos da administração, tais como construção
de obras e contratações respectivas, estão jungidos ao critério da
conveniência e oportunidade da municipalidade, não cabendo ao
Poder Judiciário intervir.

Após uma breve revisão da legislação sobre a matéria, em especial o


Estatuto da Criança e do Adolescente, afirma o ministro relator que
(...) não há outra exegese a ser extraída de tais dispositivos senão
que constitui dever da Administração Pública propiciar às crian-
ças nessa faixa etária acesso ao atendimento público educacional,
de forma que, jungida ao princípio da legalidade, é sua obrigação
assegurar que tais serviços sejam prestados. A conveniência e
discricionariedade, ao contrário do consignado no acórdão re-
corrido, não constituem princípios informadores da obrigato-
riedade na prestação do serviço, mas restringe-se ao modo de
fazê-lo, pois é lícito à Administração estabelecer critérios, por
exemplo, de comprovação da necessidade de que os menores se-
jam atendidos nas creches, e/ou do critério de localização, sendo
permitido à Administração oferecer vagas em creches outras que
não a escolhida pelos genitores dos menores, etc.

E adiciona que
não cabe ao administrador municipal escolher entre prestar ou
não o serviço questionado, pois deve fazê-lo, dever este esta-
belecido na Constituição Federal e na Lei Federal. (...) Assim
não há de se questionar a intervenção do Judiciário, porquanto
se trata de aferição acerca do cumprimento de exigência em
lei estabelecida, constituída em dever administrativo, que de
446 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

outra ponta revela um direito assegurado ao menor de ver-se


assistido pelo Estado.

Como base para sua argumentação final e voto, o ministro relator evo-
ca decisão precedente do próprio STJ, em 20047, que afirma: (1) o di-
reito à creche é consagrado em regra com normatividade mais do que
suficiente, definida pelo dever do Estado; (2) é um direito subjetivo da
criança, podendo ser exigido em juízo; (3) é um direito homogêneo
e transindividual que enseja propositura de ação civil pública; (4) a
determinação judicial desse dever pelo Estado não enseja ingerência
do Judiciário na esfera da administração; (5) não há discricionariedade
frente a direitos consagrados; (5) o direito consagrado na Constituição
e explicitado na norma infraconstitucional impõe ao Judiciário torná-
lo realidade, ainda que resulte em obrigação de fazer, com repercussão
na esfera orçamentária.
O caso apresentado apresenta muita semelhança com aquele analisa-
do por Casagrande em sua tese de doutorado, ocorrido no município
de Joinville, no estado de Santa Catarina. E suas conclusões apontam
na mesma direção. Como assinala esse autor,
o próprio Judiciário (....) vem cada vez mais se inclinando fa-
voravelmente ao entendimento de que certas diretrizes da
Constituição em matéria de direitos sociais, não são normas de
conteúdo meramente programático, mas sim de plena eficácia, e
portanto, perfeitamente sindicáveis pelo juiz” (CASAGRAN-
DE, 2007, p.155).

Acrescenta ele que


(...) tanto o ECA como a LDB estabeleceram um “programa de
governo” em matéria de educação infantil, atribuindo responsa-
bilidades não apenas ao “legislador” e ao “administrador”, mas
também ao Ministério Público, ao Judiciário e à sociedade civil.
(CASAGRANDE, 2007, p. 156)

Os dois casos tratam da intervenção do Poder Judiciário no domí-


nio das políticas públicas, no campo do “administrador”. No caso de
Joinville, a descrição se encerra na assinatura de um termo de ajusta-
mento de conduta, sem a notícia do julgamento final pelo Tribunal
de Justiça do Estado. No caso de Santo André, seu curso chegou ao
Supremo Tribunal de Justiça, que firmou jurisprudência clara sobre
o assunto, inclusive referenciada em decisão imediatamente anterior,
sobre caso similar.

7
Recurso Especial nº 575.280-SP, relator para acórdão ministro Luiz Fux, DJ de
25/10/2004.
A extensão dos deveres do Estado em matéria educacional: repercussões positivas da Constituição de 1988
447

Concluindo no mesmo sentido que Casagrande, tais decisões segura-


mente têm repercussão em diversas esferas de operação da democracia,
particularmente com relação à exigibilidade da oferta de educação in-
fantil pelo Poder Público municipal (CASAGRANDE, 2007, p. 157).
São um claro exemplo de como a mobilização dos cidadãos e da socie-
dade civil em geral, acionando o Ministério Público, resulta na ação do
Poder Judiciário no domínio da administração na implementação de
políticas públicas voltadas para o atendimento a direitos sociais.

Palavras finais

Os dados apresentados, assim como a descrição de novas relações en-


tre os Poderes Públicos e destes com a sociedade civil, demonstram a
afirmação da ampliação dos direitos da cidadania com relação à edu-
cação, particularmente no que diz respeito à educação infantil.
Esse quadro encontra respaldo e motivação no processos sociais que
levaram à redação do texto constitucional de 1988 e suas alterações
subseqüentes, bem como nas posturas afirmativas dos agentes so-
ciais, públicos ou não, na demanda e na garantia do exercício dos
direitos aí consignados.
Não resta dúvida que a ampliação do atendimento educacio-
nal às etapas anteriores ao ensino fundamental se insere em um mo-
vimento que ultrapassa as fronteiras do país. Mas, seguramente, não
fossem os deveres inscritos na Constituição de 1988, os sistemas de
ensino não teriam caminhado e não estariam sendo instados a avançar
ainda mais na concretização dos direitos do cidadão à educação.
Esta conclusão não deve ser tomada como uma declaração de ufanis-
mo. Afinal, não se tratou aqui da qualidade do atendimento, questão
da mais elevada relevância, que deixa a desejar em um número con-
siderável de estabelecimentos educacionais. Infelizmente, o país não
dispõe de um sistema nacional de avaliação sistemática da educação
infantil. Com certeza é o momento de pensar em sua implantação.
Mas este é assunto para um outro trabalho.

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448 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

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Educação
449

O financiamento da educação e a
Constituição de 1988: a vinculação
de recursos à manutenção e ao
desenvolvimento do ensino
Paulo de Sena Martins

A Constituição de 1988 fixou os dois principais pilares do financia-


mento da educação pública brasileira: a fonte correspondente à receita
resultante de impostos, vinculada à manutenção e ao desenvolvimento
do ensino, e a contribuição social do salário-educação.
Este artigo tem por objetivo discutir a vinculação de recursos de im-
postos, não só como uma regra, mas também como um princípio cons-
titucional. O impacto positivo dessa medida para a política educacio-
nal exige que se mantenha a definição dada pelo poder constituinte
originário face às repetidas e diversificadas formas de sua relativização
ou enfraquecimento.

A regra da vinculação

Histórico

A vinculação de recursos está intimamente associada à necessidade de


garantir a estabilidade das fontes de financiamento, no que se refere à
suficiência de recursos e regularidade de seu fluxo.
Na história da educação brasileira, a primeira lição dessa preocupação
estratégica nos foi legada pelos jesuítas. Com efeito, assinala Mattos
(1958, p.134):
Em vez de doação vinculada aos dízimos de uma única fonte fis-
cal e conseqüentemente sujeita a oscilações naturais do mercado
e dos azares imprevisíveis de sua arrecadação, adotou-se a fór-
mula do “padrão da redízima” sobre todas as utilidades taxáveis
da crescente colônia.
450 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O período que se seguiu, da expulsão dos jesuítas à Constituição de


1934, trouxe a lição do que não fazer, em termos de financiamento
da educação.
Com a retirada de cena da Companhia de Jesus (1759), o Marques
de Pombal, após um hiato de doze anos sem a definição de um me-
canismo de financiamento da educação na corte ou nas colônias por-
tuguesas, criou, em 1772, o subsídio literário, imposto sobre a carne e
a aguardente, que se destinava a financiar o setor. A dependência de
uma única fonte, com alta possibilidade de sonegação e não prioritá-
ria do ponto de vista dos órgãos fiscalizadores da metrópole, redun-
dou num grande período de sub-financiamento do setor educacional
no Brasil.
Mesmo após a Independência, não se cogitou de alterar o cenário
e constituir novas fontes, com a agravante da adoção, pelo governo
central, da postura de não compromisso com o desenvolvimento da
educação que prosseguiu no período que se seguiu à abdicação de D.
Pedro I. Assim, adotou-se uma interpretação equivocada e cômoda do
Ato Adicional à Constituição do Império (1834), passando-se a con-
siderar o financiamento da educação que não fosse de nível superior
um problema exclusivo das províncias, interpretação que se manteve
mesmo com o advento da República.
A educação nos níveis “primário” e “secundário” era uma questão estadual.
A Reforma Couto Ferraz, expressa no Decreto 1331-A, de 1854
(art.133), referente ao ensino primário e secundário do Município
da Corte (Rio de Janeiro), lançava, pela primeira vez, a idéia de um
patamar de gastos do governo central com a educação, “em caso de
deficiência”, limitado a um teto de vinte contos de réis, incluídos os
suprimentos necessários ao Colégio de Pedro II. (Colleção das Leis
do Império do Brasil -1854, tomo 17, parte 2ª, seção 12ª).
Em 1874, o conselheiro João Alfredo, ao propor a instituição de escolas
profissionais em todas as províncias, lançou, em nível nacional, a semen-
te da vinculação de impostos, com a previsão da definição de porcen-
tagem dos impostos gerais, anualmente indicada no orçamento, até o
teto de 30:000$ em cada Município (Anais da Câmara dos Deputados,
18/09/1882, p.315), idéia retomada pelo então Deputado Rui Barbosa
em seu parecer acerca da reforma do ensino primário, em 1882.
Apesar desses antecedentes, a proposta de vinculação, tal como se
delineou até ser consagrada pela Constituição de 1988, começou a
ser debatida na década de 20 do século XX: a Conferência Interes-
O financiamento da educação e a Constituição de 1988:
a vinculação de recursos à manutenção e desenvolvimento do ensino 451

tadual do Ensino Primário, realizada no Rio de Janeiro em 1921,


por convocação do Ministério da Justiça (ainda não fora criado
o Ministério da Educação), além de tratar a educação como uma
questão nacional e tocar na importante questão federativa ao traçar
programa de cooperação entre a União e os Estados, propugnou
pela aplicação por parte destes, de 10% de suas receitas na instrução
primária. A Mensagem do Presidente da República ao Congresso
Nacional, de 1922 (A educação nas mensagens presidenciais, 1987,
p.83), ressaltou que esta Conferência:
[...] chegou, felizmente, a conclusões práticas, consubstanciadas
na lei, com que o governo hoje se encontra armado para enfren-
tar este magno problema nacional, e pela qual foi autorizado
a entrar em acordo com os Estados, a fim de ser estabelecido
um regime de subvenção destinado a difundir o ensino primário
com as seguintes bases:
a) os Estados acordantes se comprometem a aplicar, pelo me-
nos, 10% de sua receita na instrução primária;
b) a subvenção da União variará de 10% a 60% da importância
despendida pelo Estado acordante;
c) a subvenção será relativa às escolas primárias e às normais
julgadas em condições de equiparação ao tipo que a União
adotar;
d) a fiscalização desse serviço competirá à União e aos Estados,
facilitando estes a ação daquela;
e) a fiscalização, por parte da União, poderá ser confiada a fiscais
de nomeação do Ministério da Justiça e Negócios Interiores,
com a gratificação de que trata o Decreto nº 13.014, de 4 de
maio de 1918;
f ) para ocorrer às despesas resultantes da execução deste dis-
positivo o governo poderá abrir créditos não excedentes ao
máximo de 300:000$, por estado acordante [...]

Anos depois (1925) a mensagem anual do presidente ao Parlamento


(ob. cit, p.93-94) lamentava que as condições financeiras do País não
tivessem permitido a realização do programa traçado pela Conferên-
cia de 1921.
A mensagem de Vargas à Assembléia Constituinte mencionava o “es-
pírito de cooperação” que deveria permear a congregação de esforços
entre as diferentes esferas de governo, que deveriam destinar “elevada
ao máximo, uma percentagem fixa de seus orçamentos para prover as
despesas da instrução”. Ressaltava, ainda, que o decreto destinado a
regular os poderes e atribuições dos interventores determinava que
452 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

fossem empregados pelos Estados, no mínimo, 10 % das rendas na


instrução primária e que estes pudessem exigir de seus Municípios
até 15% de suas receitas para aplicação nos serviços de segurança,
saúde e instrução pública, quando por eles exclusivamente atendidos.
Não havia, entretanto, a definição da forma de comprometimento da
esfera federal.
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (março de 1932) en-
fatizava a criação de fundo especial ou escolar, “constituído de pa-
trimônios, impostos e rendas próprias, administrado pelos órgãos do
ensino”. Não mencionava expressamente a destinação de percentuais.
Manoel Bomfim (1932, p.105), intelectual preocupado com a edu-
cação, que não era do círculo dos pioneiros, foi talvez o primeiro a
defender explicitamente o fundo associado à vinculação de recursos,
no patamar de dez por cento de todos os orçamentos, o federal, os
estaduais e os municipais.
O anteprojeto da Constituição elaborado pela Comissão do Itamaraty,
nomeada por Vargas, fazia referência à destinação de percentuais à
instrução primária. O dispositivo não se localizava no capítulo refe-
rente à educação, mas estava inserido entre as regras da intervenção da
União nos entes subnacionais (art.13, “e”) para “tornar efetiva a apli-
cação mínima de 10% dos impostos estaduais e municipais no serviço
de instrução primária e 10% na saúde pública”.
Publicado o anteprojeto (maio de 1933) a Associação Brasileira de
Educação-ABE (ABE, 1934, p.35) realizou simpósio (dezembro de
1933) que formulou suas aspirações para a nova Carta, entre as quais
figurava a adoção de fundos aos quais estaria associado um percentual
da receita (10% no caso da esfera federal e 20% no caso da estadual).
A Constituição de 1934 adotou a vinculação dos recursos à educação
nos seguintes termos:
Art. 156. A União e os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento,
e os Estados e o Distrito Federal nunca menos de vinte por cento
da renda resultante dos impostos, na manutenção e no desenvolvi-
mento dos sistemas educativos.
Parágrafo único. Para a realização do ensino nas zonas rurais, a União
reservará, no mínimo, vinte por cento das quotas destinadas à educação
no respectivo orçamento anual.
A vinculação caiu com o Estado Novo, cuja Carta sequer reconheceu
a Educação como um direito.
A Constituição de 1946 retomou a vinculação de recursos da receita
de impostos, ampliando em relação à Carta de 1934, o percentual re-
O financiamento da educação e a Constituição de 1988:
a vinculação de recursos à manutenção e desenvolvimento do ensino 453

ferente à vinculação das receitas de impostos dos municípios, de dez


para vinte por cento (art. 169).
Com o regime militar a vinculação perdeu o status constitucional e foi
limitada à esfera municipal.
Os trabalhos de Melchior no plano acadêmico e a ação parlamentar
do Senador João Calmon demonstraram como a ausência de vincula-
ção foi danosa ao financiamento da Educação, mesmo no ambiente do
“milagre brasileiro” em que a economia estava em crescimento (CAL-
MON, 1974 e 1990; MELCHIOR, 1983).
Após algumas tentativas abortadas pela resistência do governo (a pri-
meira em 1976), já no ambiente da Abertura política, o Senador Cal-
mon conseguiu ver aprovada a Emenda Constitucional que levou seu
nome (Emenda Constitucional nº 24/83, à Constituição de 1967). O
art. 176 da Constituição estabelecia a vinculação de recursos da União
no patamar de treze por cento e dos Estados, Distrito Federal e Mu-
nicípios no de vinte e cinco por cento da receita de impostos.
A consagração na Constituição não enfraqueceu a resistência ao prin-
cípio da vinculação, tanto assim que, embora aprovada em 1983, so-
mente foi regulamentada em 1985 e aplicada efetivamente em 1986.
E, em 1988, era instalada CPI para verificar a destinação dos recursos
da Emenda Calmon, cujo relatório concluiu:
De tudo quanto investigou, ouvindo e lendo, interrogando e
examinando, comparando, diligenciando, avaliando, pode a
CPI presumir que, em termos de números, cifras, quantias e
tabelas, ou seja, sob o ponto de vista da contabilidade orça-
mentária, a Emenda Calmon teria sido cumprida.Ou seja, o
cumprimento nominal da Emenda Calmon, no último triênio
por parte do MEC, pode ser demonstrado. Mas,o cumprimento
real, não. ( grifos nossos)

Ao ser elaborada a nova Constituição do País, de forma a encerrar o


ciclo do regime militar, foi mantida a vinculação, emblema de todas as
Constituições democráticas da história republicana brasileira.

A regra do art. 212

A vinculação de recursos à educação está intimamente ligada à cida-


dania, à garantia do direito à educação, expressão que, não por acaso,
aparece na primeira Carta em que aquela foi estabelecida. O vigente
Plano Nacional de Educação-PNE coloca a questão nestes termos: o
454 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

fundamento da obrigação do poder público de financiar a educação


reside em seu reconhecimento como um direito.
Dispõe o art. 212, caput da Constituição:
Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoi-
to, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco
por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, com-
preendendo a proveniente das transferências, na manutenção e
desenvolvimento do ensino.

Alguns aspectos do dispositivo merecem destaque (VERAS, 1997,


p.58-59):
1) a obrigação prevista é a aplicação anual. Não se verifica seu cum-
primento a cada mês. Mas o art. 69, § 4º, da LDB estabelece que
as diferenças entre a receita e a despesa previstas e as efetivamente
realizadas, que resultem no não atendimento dos percentuais mí-
nimos obrigatórios, serão apuradas e corrigidas a cada trimestre
do exercício financeiro;
2) há um piso mínimo de aplicação dos recursos vinculados à manu-
tenção e desenvolvimento do ensino: 18% no caso da União e 25%
para os entes subnacionais. Esses percentuais podem ser elevados
pelas Constituições Estaduais, como efetivamente ocorre nos es-
tados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Piauí e São Paulo (30%) e
Mato Grosso, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul (35%), ou pelas
leis orgânicas municipais;
3) a vinculação é realizada em relação às receitas resultantes de im-
postos, e não à totalidade dos recursos orçamentários ou mesmo
tributários – não são apropriados recursos derivados de taxas, con-
tribuições de melhoria, contribuições de intervenção no domínio
econômico ou contribuições sociais. Trata-se de um subconjunto.
O imposto é uma espécie do gênero tributo;
4) o conceito referido no dispositivo é o de receita líquida, isto é:
a) no caso da União deve se deduzir previamente da receita bruta
de impostos a parcela transferida para Estados, Distrito Federal
e Municípios, além da Desvinculação das Receitas da União-
DRU, enquanto subsistir;
b) no caso dos Estados deve se deduzir previamente da receita
bruta de impostos a transferências a parcela transferida aos mu-
nicípios. Não há fundamento para outras deduções;
O financiamento da educação e a Constituição de 1988:
a vinculação de recursos à manutenção e desenvolvimento do ensino 455

c) no caso do DF e dos Municípios, deve se fazer incidir a vin-


culação de 25% sobre toda a receita de impostos (próprios
e transferidos);
5) a Constituição vincula a Manutenção e Desenvolvimento do En-
sino (MDE) toda a receita resultante de impostos, o que inclui
obrigatoriamente as parcelas da dívida ativa e das multas que se-
jam resultantes de impostos;
6) no caso dos entes subnacionais, as receitas provenientes de trans-
ferências que tenham como origem impostos, devem ser compu-
tadas como se impostos fossem, para efeito da vinculação;
7) a receita resultante de impostos pode financiar todos os níveis e
modalidades de educação escolar. Entretanto, o art. 211 da Cons-
tituição fixa as etapas de atuação prioritária de cada ente, sem
prejuízo do exercício da função supletiva por parte da União e
dos Estados. O Conselho Nacional de Educação já entendeu que
é permitida a oferta nos níveis não prioritários do ente somen-
te quando plenamente atendidas as necessidades de sua área de
competência prioritária e com recursos acima dos percentuais mí-
nimos definidos no art.212. A Emenda nº 53/06, que instituiu o
Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização
dos Profissionais da Educação –Fundeb, reforçou esta tendência;
8) a expressão “manutenção e desenvolvimento do ensino” (MDE)
tem um sentido técnico-jurídico preciso. Não se confunde com
educação lato sensu, como eventualmente se entende. Tampouco
com a “função educação”, categoria orçamentária. Há despesas
“com educação” ainda que incluídas na “função educação”, que
não constituem despesas com MDE. A Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional-LDB prevê, nos arts. 70 e 71, as despesas
consideradas, respectivamente, como admitidas e não admitidas
dentro do conceito normativo de MDE.

O princípio da vinculação

A Constituição de 1988 consagrou a vinculação de recursos oriundos


da receita de impostos à manutenção e desenvolvimento do ensino
(MDE). Resgatou, dessa forma, a “inovação fundamental que se incor-
porou à nossa tradição”, na expressão de Miguel Reale (1984, p.652).
O texto constitucional contém ressalva expressa à regra do art.167, IV,
que constitucionalizava o princípio de direito tributário denominado
456 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

de princípio da não-afetação,ou da não-vinculação isto é, proibição de


vinculação de recursos da receita de impostos a órgão, fundo ou despe-
sa (HARADA, 2001, p.91). Este princípio é válido somente para al-
gumas categorias de despesas, entre as quais expressamente não estão
as da educação. A vinculação não é exceção à regra da não-afetação.
Cunha ensina que há conflito aparente quando a regra não constitui
propriamente exceção a um princípio, mas a manifestação de outro
princípio do mesmo sistema (2003, p.239). É o que ocorre com a regra
do art.212. Mais do que isso, o dispositivo contém um princípio, não
menos constitucional, trazido do direito educacional, da vinculação de
recursos às despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino.
Trata-se do corolário da definição da educação como um direito do
cidadão e um dever do Estado.
Assim, a Carta Magna não consolidou apenas a regra da vinculação.
Foi além, e estabeleceu um princípio constitucional. Pinto já notara
que a Carta de 1934, mais que uma regra:
[...] introduziu o princípio da vinculação de um percentual mí-
nimo da receita de impostos dos três níveis de governo para o
financiamento da educação. Esse princípio da vinculação consti-
tucional de recursos para a educação, com exceção dos períodos
ditatoriais(Constituições Federais de 1937 e 1967), tem sido
praticamente o único meio de se assegurar recursos públicos
para a manutenção e o desenvolvimento do ensino.

Os princípios, ensina José Afonso da Silva (1994, p.85) são “orde-


nações que se irradiam e imantam os sistemas de normas”. Ao citar
Canotilho e Moreira, lembra que “os princípios, que começam por
ser a base de normas jurídicas, podem estar positivamente incorpora-
dos, transformando-se em normas-princípio e constituindo preceitos
básicos da organização constitucional”. É o caso da norma-princípio
da vinculação, que se irradia para todo sistema constitucional de fi-
nanciamento da educação. Com efeito, repercute inclusive nas hipóte-
ses de intervenção federal nos Estados e intervenção dos Estados nos
Municípios (arts. 34, VII, “e” e 35, III). Tão grave a violação, que pode
bloquear a apreciação de emenda à Constituição, nos termos do art.
60 da Carta Magna.
Esse princípio constitucional foi inscrito, pela primeira vez, na Car-
ta de 1934 (art. 156). Trata-se, talvez, de um dos mais significativos
marcadores institucionais do grau de democratização da sociedade
brasileira: em todos os momentos de fechamento político o princípio
esteve sob ataque e foi retirado da Constituição. Assim, com os gol-
pes do Estado Novo e do regime militar, as respectivas Cartas (1937
O financiamento da educação e a Constituição de 1988:
a vinculação de recursos à manutenção e desenvolvimento do ensino 457

e 1967) derrubaram a vinculação. Ao fim do regime de exceção, a


emenda Calmon (Emenda Constitucional nº 24/83, à Constituição
de 1967) foi aprovada, na esteira da reforma tributária promovida pela
emenda “Passos Porto”.
Coube às Constituições que restabeleceram a democracia (1946,
art.92 e 1988, art 212) consagrar essa constante do constitucionalismo
democrático brasileiro. Esse processo não se deu sem resistências.
Ao aprovar o Plano Nacional de Educação-PNE (2002), o legisla-
dor diagnosticava:
Embora encontre ainda alguma resistência em alguns nichos da
tecnocracia econômica, mais avessos ao social, a vinculação de
recursos impõe-se não só pela prioridade conferida à educação,
mas também como condição de uma gestão mais eficaz. Somen-
te a garantia de recursos e seu fluxo regular permitem o planeja-
mento educacional.

A vinculação sob ataque

Segundo testemunhou o Senador Calmon (1990, p.24-25), no pri-


meiro anteprojeto da Constituição (Cabral I) a vinculação foi confi-
nada às disposições transitórias: “Por esse texto ocorreria vinculação
apenas até que se aprovasse o orçamento plurianual para o governo” e,
nos Estados e Municípios, o patamar caia de 25% para 20%.O cha-
mado Cabral II recuperava a proposta nos termos do que apresentara
o Senador Calmon – no corpo permanente – e continha o princípio
da vinculação.
Esse princípio sempre esteve sob ataque. O mais grave tipo de ataque
à Constituição, diz José Afonso da Silva (2003,p.128) é o boicote, a
resistência em aplicar suas normas e princípios.
No governo Collor, o chamado “Emendão” (fins de 1991) propunha
que, até o fim de 1993, não incidisse a vinculação sobre a receita que
excedesse a arrecadação do ano anterior, isto é, congelava-se o volu-
me de recursos. No processo de revisão constitucional (1994), foram
apresentadas cinco emendas que visavam suprimir o art.212. O dis-
positivo foi preservado, mas não em toda a plenitude, uma vez que
se inaugurava a era das desvinculações, com a aprovação da emenda
de Revisão nº 1, que criou o Fundo Social de Emergência-FSE, que
previa a dedução prévia de 20% do produto da arrecadação da base
de cálculo da MDE.
458 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Ao FSE sucederam-se o Fundo de Estabilização Fiscal-FEF e a vi-


gente Desvinculação das Receitas da União-DRU. Em 2003, esteve
na agenda política (no âmbito dos debates iniciais da PEC nº 41/03)
a proposta de criação de desvinculações nos planos estadual e mu-
nicipal. À época, segundo calculou a Consultoria de Orçamento e
Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados poderiam variar
de 7,7 a 12 bilhões de reais (conforme se considerasse a arrecadação
própria ou a inclusão das transferências). Nesse período, a presidên-
cia do Fórum de Secretários de Planejamento dos Estados defendeu
a desvinculação em artigo publicado na Gazeta Mercantil, com o
significativo título: “Desvincular para governar”.
A desvinculação explícita faz-se a partir da dedução da base de cálculo,
mecanismo presente no FSE, FEF e DRU. Para Scaff (2004, p.77), o
procedimento adotado através dessas Emendas Constitucionais acar-
retou a utilização de verbas vinculadas a uma destinação para outros
fins que não aqueles constitucionalmente previstos, o que afetou “vas-
tamente a concretização dos direitos humanos”, por falta de recursos
para sua implementação. Assim, para o autor:
[...] o fato de serem emendas constitucionais não afasta a in-
constitucionalidade flagrante decorrente da agressão aos direitos
humanos de Segunda geração (direitos fundamentais sociais)
fruto do afastamento de recursos fiscais constitucionalmente
destinados à educação, saúde e seguridade social.

Ocasionalmente, os órgãos fazendários argumentam que os recursos


retirados pela DRU “retornam” à educação. Um primeiro aspecto a
ser analisado é o fato de que o planejamento educacional requer uma
estabilidade do fluxo – não basta o respeito ao percentual ao final do
exercício financeiro. Mas o que se tem verificado é que os recursos po-
dem ou não retornar, como indica o quadro abaixo construído a partir
de dados dos relatórios do Tribunal de Contas da União, de 1999 a
2006. Nos exercícios de 1999, 2004, 2005 e 2006, não existisse a dedu-
ção referente à DRU os recursos executados em MDE teriam ficado
aquém do patamar mínimo de 18% da receita de impostos.
Execução da despesa com mde, com e sem fef/dru. 1999–2006 r$ milhões

2004 2006
Especificação 1999 2000 2001 2002 2003 2005
SIAFI STN SIAFI STN
Receita de
73.743 77.357 90.129 106.159 113.120 128.156 126.108 156.138 170.303 170.303

de reais.
Impostos (A)

Transferência
para entes sub- 29.348 38.376 43.907 52.308 60.453 51.126 68.557 66.850 72.101 72.101
nacionais (B)

Transferência
para FEF/DRU 18.538 12.962 18.566 22.385 23.240 26.122 26.122 31.207 34.021 34.021
(C)

Receita Líquida
de Impostos
25.857 26.019 27.656 31.466 29.426 50.907 31.428 58.080 64.180 64.180
com FEF DRU
(D= A-B-C)

Receita Líquida
de Impostos sem
44.395 38.981 46.222 53.851 52.666 77.030 57.550 89.287 98.202 98.202
FEF DRU
(E= A-B)
MDE 5.313 7.666 9.181 10.188 10.363 10.622 12.394 10.893 16.137 17.098

% da receita
20,55% 29,5% 33,2% 29% 35,2% 20,87% 39,44% 20,90% 25,14% 26,04%
com FEF e DRU
a vinculação de recursos à manutenção e desenvolvimento do ensino
O financiamento da educação e a Constituição de 1988:

Fonte: a partir dos Relatórios do TCU sobre as contas do governo da República -1999-2006
% da receita
11,96% 19,66% 19,86% 18,91% 19,67% 13,7% 21,53% 12,19% 16,4% 17,41%

como a CIDE (Relatório, p.159). Assim, a base de cálculo foi diminuída em mais de 17 blhões
indevidamente inseridas no montante das transferências receitas não derivadas de impostos,
referentes à dívida ativa, juros e multas resultantes de imposto, mas sobretudo por terem sido
tante do fato de não terem sido considerados no montante da receita de impostos os valores
Obs: Em 2004 o TCU apresentou duas tabelas, face a divergência entre o SIAFI e a STN, resul-
com FEF e DRU
459
460 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Em 2006, a diferença nos percentuais resulta da inserção integral pela


STN de recursos repassados ao DF consignados na ação orçamentária
referente a serviços públicos de saúde e educação.
Além da permanência da DRU, uma nova desvinculação é propos-
ta em relação à base de cálculo do caput do art. 212 pela proposta
original da Proposta de Emenda Constitucional – PEC nº 233/081,
que pretende promover a reforma tributária. Trata-se de mecanismo
assemelhado à DRU, como que uma “DRU embutida”, no próprio
dispositivo referente à vinculação de recursos à MDE.
Embora o crescimento da arrecadação pela União tenha se dado pela
via de contribuições sociais não-partilhadas, recurso que tem sido
considerado como desvirtuamento do pacto federativo e expediente
para escapar à vinculação de recursos, no momento em que se propõe
que a base de cálculo seja alargada, com a inclusão do Imposto de
Valor Agregado - IVA-F, mantém-se, é verdade, o patamar de recur-
sos, mas viola-se frontalmente o princípio da vinculação, inscrito na
Carta Magna pelo legislador constituinte e que expressou a vontade
da sociedade brasileira de efetivamente considerar a Educação como
prioridade nacional.
Os princípios devem governar os números e não o inverso.
Os recursos podem sair do processo de reforma tributária de forma
igual ou equivalente à em que nele ingressaram – mas os princípios,
como o da vinculação, esses saem em frangalhos. A “neutralidade”,
do ponto de vista financeiro, não implica neutralidade conceitual ou
principiológica.
Há, ainda, uma maneira mais sutil de romper o princípio da vincu-
lação, sem tocar na base de cálculo, e que ocorre freqüentemente nas
esferas subnacionais. Trata-se do que denominamos “desvinculação
branca”, que consiste em inflar o conceito de MDE para assumir
novas categorias de gasto. Essa questão esteve presente no debate
acerca da modificação das leis orgânicas dos municípios de São Pau-
lo e Curitiba.
O diagnóstico acerca do financiamento da educação constante do
Plano Nacional de Educação-PNE, aprovado, em 2001, pela Lei
nº10.172/01, já desmistificou a idéia de que a educação contaria com
recursos suficientes. O Financiamento da Educação requer o combate
à lenta e discreta corrosão e desvirtuamento do princípio da vincu-

1
A PEC nº 31/07 apensada, prevê prazo de doze anos no qual não incidiria a vin-
culação sobre os recursos agregados pelo novo IVA.
O financiamento da educação e a Constituição de 1988:
a vinculação de recursos à manutenção e desenvolvimento do ensino 461

lação. Requer a defesa firme deste preceito fundamental inscrito na


“Constituição Cidadã” de 1988: a vinculação de recursos à manuten-
ção e ao desenvolvimento do ensino.

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Energia
463

A Constituição de 1988
e a energia nuclear
Wagner Marques Tavares

1. Introdução

A tecnologia nuclear traz importantes benefícios à sociedade moder-


na. Suas principais aplicações pacíficas ocorrem na medicina, indús-
tria, agricultura e geração de energia elétrica.
Na medicina nuclear os radioisótopos são usados em diagnósticos,
como cintilografias, e em terapias, como a radioterapia, em que fontes
radiativas são usadas para destruir células de tumores, que são mais
sensíveis à radiação do que os tecidos normais (Cardoso).
Radioisótopos são também usados como marcadores na agricultura, e
a irradiação de produtos agrícolas é utilizada para melhor conservá-
los. A radiografia de peças metálicas é largamente realizada na indús-
tria para a detecção de trincas e outros defeitos. Fontes radioativas são
também usadas para a esterilização de material médico e farmacêuti-
co, como seringas, luvas cirúrgicas, gaze e material farmacêutico des-
cartável, que não suportariam o processo tradicional de esterelização
por meio de altas temperaturas.
Atualmente, cerca de 16% da eletricidade produzida no mundo pro-
vém da energia nuclear, gerada por 443 usinas nucleares, que acumu-
lam uma capacidade de 370 gigawatts (International Energy Agency,
2007). Essa energia tem a vantagem de ser praticamente livre da
emissão de gases causadores do efeito estufa e vem tornando-se cada
vez mais competitiva, especialmente com a significativa elevação dos
preços do petróleo no mercado internacional que se observa nesses
últimos anos.
Entretanto, desde a explosão das bombas atômicas lançadas nas cida-
des japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em 1945, que provocaram a
morte de centenas de milhares de pessoas, a humanidade tomou co-
nhecimento dos grandes riscos relacionados ao uso militar da energia
nuclear. Hoje, sabe-se que o poder de destruição das armas dessa na-
464 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

tureza, em poder das denominadas “potências nucleares”, é suficiente


para extinguir a espécie humana.
Em 26 de abril de 1986, por sua vez, com a explosão do reator de uma
central nuclear para a produção de energia, na Ucrânia, deu-se o co-
nhecido acidente de Chernobil, que, além das vítimas e danos locais,
provocou a liberação de extensa nuvem radioativa na atmosfera, que
contaminou significativa área da Europa.
Pouco tempo depois, em 13 de setembro de 1987, ocorreu o grave
acidente radioativo de Goiânia. O episódio aconteceu quando cata-
dores de papel, sem o conhecimento do risco envolvido, violaram uma
bomba de Césio 137, que fora abandonada nas ruínas onde funcionara
uma clínica de radioterapia. O resultado foi um saldo de 297 pessoas
(das 112.800 monitoradas pela CNEN) apresentando níveis de ra-
diação acima do normal e de 4 pessoas que faleceram nos primeiros 2
meses após o acidente (Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvi-
mento Sustentável da Câmara dos Deputados, 2006).
Outra questão que causa preocupação em relação à energia nuclear é a
destinação dos rejeitos de alto nível de radiação, representados, princi-
palmente, por elementos combustíveis irradiados no reator das usinas
nucleoelétricas. Segundo a Agência Internacional de Energia Nuclear
(Nuclear Energy Agency, 1989), são necessários cerca de dez mil anos
para que a radioatividade desses rejeitos decaia para o nível encontra-
do nos minérios usados para a produção do combustível nuclear.
Também é grande o temor de que material radioativo possa ser uti-
lizado por organizações terroristas para a realização de atentados.
Teme-se tanto a explosão de bombas atômicas, como a utilização das
chamadas “bombas sujas”, que, apesar de não possuírem a capacidade
de realizar explosões nucleares, podem causar grande contaminação de
pessoas e do meio ambiente pela dissipação de material radioativo.

2. Energia nuclear na Constituição de 1988

O constituinte de 1988, ciente de que o Brasil não poderia renun-


ciar aos relevantes benefícios propiciados pela tecnologia nuclear, mas
também consciente dos sérios riscos inerentes ao seu emprego, permi-
tiu o uso da tecnologia, mas, por outro lado, estabeleceu um sistema
que garantisse rígido controle de sua utilização.
Nesse sentido, o texto constitucional definiu a competência privativa
da União para legislar sobre as atividades nucleares de qualquer na-
A Constituição de 1988 e a energia nuclear
465

tureza (art. 22, XXVI) e estabeleceu (art. 21, XXIII) que compete à
União “explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natu-
reza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriqueci-
mento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios
nucleares e seus derivados (...)”. A definição das atividades nucleares
sob monopólio da União também consta do artigo 177, V.
As únicas exceções à regra geral do monopólio estatal da União foram
também estabelecidas na Constituição.
Sob o regime de permissão, podem ser autorizadas a comercialização
e a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos médicos, agrí-
colas e industriais (arts. 21, XXIII, b, e 177, V), bem como, também
sob o regime de permissão, a produção, comercialização e utilização
de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas (arts. 21,
XXIII, c, e 177, V, ambos com redação dada pela Emenda Constitu-
cional nº 49, de 2006).
Para melhor compreensão acerca da abrangência da competência da
União para exercer diretamente as atividades nucleares e das situações
em que podem ser exercidas indiretamente, sob regime de permissão,
é preciso que se entenda o que a Constituição considera “serviços e
instalações nucleares de qualquer natureza”.
Nas normas infraconstitucionais brasileiras, as instalações nucleares
são normalmente entendidas como aquelas relacionadas à produção,
utilização, reprocessamento e estocagem do combustível a ser utiliza-
do em reatores de fissão nuclear, bem como as instalações que abri-
guem os rejeitos decorrentes dessa aplicação1.
Já as instalações radioativas2 são tidas como aquelas onde se produ-
zem, utilizam, transportam ou armazenam fontes de radiação ioni-
zante, com exceção das instalações nucleares e dos veículos que as
transportam, mas de que elas não são parte integrante. São conside-
rados materiais radioativos, por sua vez, aqueles que emitam radia-
ção ionizante.
No entanto, o referido artigo 21, XXIII, da Constituição, que aborda
os serviços e instalações nucleares, tratou também de regras relativas
a radioisótopos, que são, tipicamente, considerados materiais radio-
ativos. Também as instalações onde ocorrem as atividades afetas aos
radioisótopos especificados na Constituição são tidas como instala-

1
Vide Lei nº 6.453, de 17 de outubro de 1977 e norma CNEN-NE-1.04.
2
Vide normas CNEN-NE-1.04, CNEN-NE-6.02, CNEN-NN-3.03 e CNEN-
NN-4.01.
466 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ções radioativas, não sendo consideradas, em sentido restrito, como


instalações nucleares.
Depreende-se, então, que o constituinte utilizou o termo “serviços e
instalações nucleares” em sentido abrangente, incluindo tanto as ins-
talações normalmente classificadas como nucleares como também
aquelas relacionadas a radioisótopos, que são normalmente classifica-
das como instalações radioativas. Portanto, a conclusão a que se chega
é que compete à União explorar os serviços e instalações relacionadas
a materiais nucleares e radioativos, bem como exercer monopólio das
atividades afetas ao ciclo do combustível nuclear, autorizada a outorga
de permissão para a realização das atividades relacionadas a radioisó-
topos especificadas no texto constitucional.
Portanto, a lei que disciplinar a utilização de material radioativo em
território nacional, atendendo ao previsto no § 3º do artigo 177 da
Constituição, terá seu objeto delimitado pela competência exclusiva
da União para explorar os serviços e instalações referentes a mate-
riais radioativos, sendo autorizada, no entanto, a outorga de permis-
são para o caso das atividades previstas nas alíneas b e c do inciso
XXIII do artigo 21.
Outra importantíssima restrição ao uso da tecnologia nuclear que o
constituinte de 1988 instituiu foi que toda atividade nuclear em ter-
ritório nacional somente será admitida para fins pacíficos, segundo o
artigo 21, XXIII, a.
Para garantir ainda maior controle sobre as atividades nucleares, a
Constituição determinou que somente serão admitidas atividades nu-
cleares no Brasil que tenham sido aprovadas pelo Congresso Nacional
(arts. 21, XXIII, a, e 49, XIV). Além disso, de acordo com artigo 225,
§ 6º, da Carta Magna, a localização de usinas nucleares precisa ser
definida em lei federal, exigindo, mais uma vez, decisiva participação
do Congresso Nacional.
Também no sentido de assegurar elevado grau de controle sobre as
atividades nucleares, a Lei Maior atribuiu ao Sistema Único de Saúde
a competência de participar do controle e fiscalização da produção,
transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos radioativos
(art. 200, VII).
Para garantir à população brasileira maior segurança quanto à repa-
ração civil por eventuais efeitos nocivos decorrentes das atividades
nucleares, a Constituição estabeleceu que a responsabilidade civil por
danos nucleares independe da existência de culpa (art. 21, XXIII, d).
A Constituição de 1988 e a energia nuclear
467

3. Legislação nuclear na vigência da Constituição de 1967


e a Carta de 1988

A atribuição de competência à União para legislar sobre energia nu-


clear constitui-se na única menção feita pela Constituição de 1967 em
relação a esse tema, contida no artigo 8º, inciso XVII, alínea i, com
redação dada pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969.
A partir dessa competência, na vigência da Constituição de 1967, a
legislação federal instituiu normas que incorporavam grande parte dos
ditames contidos na atual Constituição de 1988.
A Lei nº 4.118, de 27 de agosto de 1962, em seu artigo 1º, já havia es-
tabelecido, em relação aos materiais nucleares, que sua produção, indus-
trialização e comércio estavam compreendidos no monopólio da União,
assim como a pesquisa, lavra e comércio de minérios nucleares.
Em relação às instalações nucleares, por outro lado, ocorreu alguma
mudança no campo das normas jurídicas, uma vez que a Constitui-
ção de 1988 estabeleceu que compete à União explorar os serviços e
instalações nucleares de qualquer natureza, enquanto, sob a égide da
Constituição de 1967, tanto a Centrais Elétricas Brasileiras S/A. –
Eletrobrás quanto as demais concessionárias de serviços de energia
elétrica, mesmo aquelas cujo controle acionário não era detido pela
União, poderiam receber autorização para construção e operação de
usinas nucleoelétricas, de acordo o artigo 10 da Lei nº 6.189, de 16 de
dezembro de 1974.
Quanto à utilização de radioisótopos para a pesquisa e uso médico,
agrícola e industrial, a diferença entre o ordenamento jurídico atual
e o anterior é que, agora, o exercício dessas atividades exige o ins-
trumento da permissão, enquanto, antes, era suficiente uma simples
autorização do órgão competente, de acordo com o artigo 2º, incisos
XVII e XVIII, da Lei 6.189/1974.
O comércio dessas substâncias, a partir da Emenda Constitucional nº
49, de 2006, passou também a ser admitido por meio de permissão,
enquanto, anteriormente, sob as regras da Constituição de 1967, por
meio do art. 1º, II, da Lei 4.118/1962, e mesmo em conformidade
com o texto original da Constituição de 1988, essa atividade estava
inserida no monopólio exclusivo da União.
Da mesma forma, a Emenda Constitucional nº 49, de 2006, também
consentiu a outorga de permissão para a produção de radioisótopos de
meia-vida igual ou inferior a duas horas, o que, anteriormente à essa
emenda, não era possível.
468 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A questão da responsabilidade civil por dano nuclear ser indepen-


dente da existência de culpa também já era prevista antes da Consti-
tuição de 1988, conforme disposto na Lei nº 6.453, de 17 de outubro
de 1977. Essa lei, entretanto, restringe tal responsabilidade apenas ao
operador da instalação nuclear, limitação essa que não consta da Lei
Maior em vigor. Na Constituição de 1988 essa questão é tratada no
art. 21, XXIII, d, como uma das condições para o exercício das compe-
tências da União em relação a matéria nuclear. Conclui-se, assim, que,
em relação aos danos nucleares, aplica-se a regra da responsabilidade
objetiva da União.

4. Inovações da Constituição de 1988 no campo da


energia nuclear

As inovações mais significativas realizadas pela Carta Magna em rela-


ção à energia nuclear, referem-se às exigências de fins exclusivamente
pacíficos para a utilização dessa tecnologia; de aprovação pelo Congres-
so Nacional das iniciativas do Poder Executivo referentes às atividades
nucleares; de promulgação de lei federal para definir a localização de
usinas que operem com reator nuclear; e de utilização do regime de
permissão para outorgar atividades relacionadas a radioisótopos.
Um dos desdobramentos do mandamento que determina o uso apenas
pacífico da energia nuclear no Brasil foi a assinatura do Acordo para
o Uso Exclusivamente Pacifico da Energia Nuclear, assinado entre o
Brasil e a Argentina, em 18 de julho de 1991, e a adesão ao Tratado
sobre a Não-Proliferação de Armas Nucleares, aprovado pelo Decreto
Legislativo nº 65, de 2/7/1998.
Além da contribuição para a paz no continente e no mundo, a assina-
tura desses instrumentos de direito internacional permitiu que o Brasil
tivesse acesso a importantes tecnologias, como supercomputadores, que,
normalmente, são negadas aos países que se recusam a assumir compro-
missos de não possuir, ou procurar possuir, arsenal de armas nucleares.
Em relação à aprovação prévia do Congresso de iniciativas referentes
a atividades nucleares, é necessário que seja encaminhada mensagem
do Poder Executivo tratando da iniciativa pretendida, que precisa ser
aprovada pelo Congresso por meio de decreto legislativo, que é o ins-
trumento jurídico utilizado para regular as matérias de exclusiva com-
petência do Poder Legislativo.
Decorridos vinte anos da promulgação da Constituição de 1988, apenas
um único decreto legislativo foi aprovado pelo Congresso Nacional tra-
A Constituição de 1988 e a energia nuclear
469

tando de iniciativa referente a atividades nucleares. Trata-se do Decreto


Legislativo nº 29/94, que “aprova a alteração de contrato de empréstimo
acordada entre Furnas – Centrais Elétricas S.A. e um consórcio de ban-
cos alemães, para transferir recursos financeiros destinados à construção
da Usina Nuclear Angra III para a Usina Nuclear Angra II, e cria co-
missão de avaliação das atividades do setor nuclear”.
Todavia, outras decisões importantes em relação a essa matéria já
foram tomadas pelo Poder Executivo, sem que fossem submetidas à
aprovação do Congresso Nacional.
Decreto Presidencial de 23 de maio de 1997, por exemplo, autorizou
a cisão de Furnas – Centrais Elétricas S/A, alterou o objeto social da
Nuclen – Engenharia e Serviços S.A. e autorizou a transferência da
autorização para construção e operação da Central Nuclear Almirante
Álvaro Alberto, sem que o Congresso se pronunciasse acerca dessas
medidas por meio de decreto legislativo.
Outro exemplo de iniciativa sobre atividade nuclear sem a aprovação
formal do Poder Legislativo foi a decisão do Conselho Nacional de
Política Energética – CNPE, que resolveu, por meio da Resolução nº
3, de 25 de junho de 2007,
Determinar que a Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletro-
brás e a sua controlada Eletrobrás Termonuclear S.A. – Eletro-
nuclear conduzam a retomada da construção da UTN Angra 3,
com vistas a sua entrada em operação comercial em 2013, a qual
integrará a Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto – CNA-
AA, em Angra dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro.

Pela sua relevância, essa iniciativa enquadra-se perfeitamente como


situação que exigiria a aprovação do Congresso Nacional, de acordo
com o texto da Constituição de 1988.
Por fim, cabem comentários a respeito da exigência constitucional de
utilização do regime de permissão para outorgar atividades relaciona-
das a radioisótopos.
Segundo Hely Lopes Meirelles (2003),
permissão é o ato administrativo negocial, discricionário e pre-
cário, pelo qual o Poder Público faculta ao particular a execução
de serviços de interesse coletivo, ou o uso especial de bens públi-
cos, a título gratuito ou remunerado, nas condições estabeleci-
das pela Administração. Não se confunde com a concessão, nem
com a autorização: a concessão é contrato administrativo bilate-
ral; a autorização é ato administrativo unilateral. Pela concessão
contrata-se um serviço de utilidade pública; pela autorização
consente-se uma atividade ou situação de interesse exclusivo ou
470 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

predominante do particular; pela permissão faculta-se a realiza-


ção de uma atividade de interesse concorrente do permitente, do
permissionário e do público.

De acordo com a legislação brasileira, a Comissão Nacional de Ener-


gia Nuclear – CNEN, autarquia subordinada ao Ministério da Ci-
ência e Tecnologia, é a entidade responsável pela regulação das ativi-
dades relativas aos radioisótopos. Suas competências foram definidas
no artigo 2º da Lei nº 6.189/1974. Entre elas, incluem-se produzir
radioisótopos, substâncias radioativas e subprodutos nucleares, e exer-
cer o respectivo comércio; autorizar a utilização de radioisótopos para
pesquisas e usos medicinais, agrícolas, industriais e atividades análo-
gas; e autorizar e fiscalizar a construção e a operação de instalações
radioativas, no que se refere a ações de comércio de radioisótopos.
No entanto, as normas da CNEN não prevêem a utilização do ins-
trumento de permissão para as atividades mencionadas. A norma
CNEN-NN-6.02, que trata do licenciamento de instalações radiati-
vas, classifica essas instalações em grupos. Enquadram-se nos grupos
IV, V ou VI as instalações que utilizam fontes não-seladas, onde se
manipulam, utilizam ou se armazenam radionuclídeos. No item 5 da
norma, que trata do “processo geral para concessão de licenças e auto-
rizações”, constam as seguintes disposições:
O processo geral de licenciamento de uma instalação radiativa
envolve, conforme o caso, a solicitação pelo requerente e a emis-
são pela CNEN, dos seguintes atos:
...............................................................................................
d) Para instalações do GRUPO IV:
Autorização para aquisição de material radioativo
Autorização para operação
e) Para instalações do GRUPO V:
Licença de construção
Autorização para aquisição de material radioativo
Autorização para operação
f ) Para instalações do GRUPO VI:
Aprovação prévia
Licença de construção
Autorização para aquisição de material radioativo
Autorização para operação
...............................................................................................
A Constituição de 1988 e a energia nuclear
471

Nenhuma, menção, portanto, é feita à outorga de permissão.


Assim, é necessária a reformulação das normas da CNEN para que
prevejam o regime de permissão para o caso de atividades envolvendo
radioisótopos, de acordo com as exigências constitucionais.
No entanto, constata-se também que a referida Lei nº 6.189/1974
não atribui expressamente à CNEN a competência para outorgar per-
missões. Dessa forma, para evitar-se possíveis contestações quanto à
atuação da autarquia, é importante que a Lei 6.189/1974 seja alterada
para conceder à CNEN, explicitamente, a atribuição de outorgar per-
missões para o caso das atividades relacionadas a radioisótopos men-
cionadas na Constituição. Ressalte-se que tal alteração deve proceder-
se a partir de projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo, porque a
matéria refere-se à organização da Administração Federal.

5. A questão da responsabilidade civil por danos nucleares

A previsão de que a responsabilidade civil por dano nuclear independe


de culpa já consta das normas jurídicas brasileiras desde 1977, confor-
me dispõe o artigo 4º da Lei nº 6.453, de 17 de outubro de 1977. Tal
responsabilidade foi atribuída por essa Lei ao operador da instalação
nuclear onde ocorrer o acidente nuclear, exceto para o caso de dano re-
sultante de acidente nuclear causado diretamente por conflito armado,
hostilidades, guerra civil, insurreição ou excepcional fato da natureza.
A norma estipula ainda um limite, em cada acidente, de um milhão e
quinhentas mil Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional para a
reparação dos danos nucleares.
A responsabilidade objetiva decorrente de dano nuclear tornou-se pre-
ceito constitucional apenas com o advento da Carta Política de 1988,
que estabeleceu, em seu artigo 21, XXIII, d, que “a responsabilidade
civil por danos nucleares independe da existência de culpa”. Apesar de
não se tratar propriamente de uma inovação, tal prescrição, como se
verá, trouxe mudanças importantes no ordenamento da matéria.
Nossa legislação acerca do tema foi ainda ampliada com a edição
do Decreto nº 911, de 3 de setembro de 1993, que promulgou a
Convenção de Viena sobre a Responsabilidade Civil por Danos Nu-
cleares, aprovada por meio do Decreto Legislativo nº 93, de 23 de
Dezembro de 1992.
O texto da convenção estabelece, em seu artigo IV, que a responsa-
bilidade do operador por danos nucleares será objetiva, isto é, inde-
472 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

pendente de culpa. Esse mesmo dispositivo, no entanto, estipula que


“não acarretarão qualquer responsabilidade para o operador os danos
nucleares causados por acidente nuclear devido diretamente a conflito
armado, a hostilidades, a guerra civil ou a insurreição”.
A Convenção prevê ainda que “o Estado da Instalação poderá limitar
a responsabilidade do operador a uma importância não inferior a 5
milhões de dólares por acidente nuclear”.
Analisando-se as normas infraconstitucionais mencionadas tendo
como base o texto constitucional, conclui-se, inicialmente, que o dis-
positivo da referida Lei nº 6.453/1977 que estabelece um valor limite
para reparação dos danos nucleares, em cada acidente nuclear, não foi
recepcionado pela Constituição de 1988. Caso contrário, ter-se-ia que
admitir uma responsabilidade civil apenas parcial, no caso de danos a
reparar superiores ao teto fixado na lei, o que não encontraria respaldo
na Carta Magna.
Da mesma forma, entende-se que não foi recepcionado pela Consti-
tuição de 1988 o dispositivo da Lei nº 6.453/1977 que prevê a exclu-
são da responsabilidade civil por danos nucleares nos casos de acidente
nuclear causado diretamente por conflito armado, hostilidades, guerra
civil, insurreição ou excepcional fato da natureza, pois a Lei Maior de-
termina a responsabilidade objetiva para todas as hipóteses de acidente
nuclear. Nessa linha, também há que se considerar não-recepcionada a
previsão da Convenção de Viena sobre a Responsabilidade Civil por
Danos Nucleares que estabelece semelhantes hipóteses de exclusão da
obrigação de reparação dos danos decorrentes de acidentes nucleares.
Por fim, entende-se que a responsabilidade objetiva em relação aos
danos nucleares deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo
também os casos de acidentes causados por materiais radioativos. Isso
porque o dispositivo que trata dessa responsabilidade está inserido no
inciso XXIII do artigo 21 da Constituição, que cuida dos “serviços
e instalações nucleares de qualquer natureza” e que dispõe também
sobre materiais radioativos.

6. Conclusões

A tecnologia nuclear traz importantes benefícios à sociedade mo-


derna. Sua principais aplicações pacíficas ocorrem na medicina, in-
dústria, agricultura e geração de energia elétrica. Entretanto, apre-
senta riscos relacionados a acidentes, rejeitos radioativos e utilização
militar ou por terroristas.
A Constituição de 1988 e a energia nuclear
473

O constituinte de 1988, ciente de que o Brasil não poderia renun-


ciar aos relevantes benefícios propiciados pela tecnologia nuclear, mas
também consciente dos sérios riscos inerentes ao seu emprego, permi-
tiu o uso da tecnologia, mas, por outro lado, estabeleceu um sistema
que garantisse rígido controle de sua utilização.
Todavia, na vigência da Constituição de 1967, a legislação federal já
continha normas que incorporavam grande parte dos ditames conti-
dos na atual Constituição de 1988.
Entre as principais inovações da Constituição de 1988, a determi-
nação do uso exclusivamente pacífico da energia nuclear favoreceu a
assinatura de tratados e acordos internacionais para a não-proliferação
de armas nucleares, contribuindo para manutenção da paz no conti-
nente e no mundo. Com isso, o Brasil passou a ter acesso a impor-
tantes tecnologias, como supercomputadores, que, normalmente, são
negadas aos países que se recusam a assumir compromissos de não
possuir, ou procurar possuir, arsenal de armas nucleares.
Entretanto, para a plena consolidação das disposições constitucio-
nais que tratam da energia nuclear, considera-se necessária maior
participação do Congresso Nacional na aprovação de iniciativas afe-
tas ao tema.
Faz-se também necessária a reformulação das normas da CNEN, para
que prevejam o regime de permissão, para o caso de atividades envol-
vendo radioisótopos, de acordo com as exigências constitucionais.
A fim de evitar possíveis contestações quanto à competência da CNEN
para outorgar permissões, é importante que a Lei 6.189/1974 seja
também alterada, de maneira a conceder à CNEN, explicitamente, tal
competência, para o caso das atividades relacionadas a radioisótopos.
Tal alteração deve proceder-se a partir de projeto de lei de iniciativa
do Poder Executivo, porque a matéria refere-se à organização da Ad-
ministração Federal.
A Constituição de 1988 estabeleceu, em seu artigo 21, XXIII, d, que
“a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência
de culpa”. Como essa determinação abrange quaisquer danos nuclea-
res, integralmente, conclui-se que não foram recepcionados pela Carta
Magna os dispositivos da Lei nº 6.453/1977 que prevêem que a respon-
sabilidade civil por danos nucleares somente persiste, em cada acidente,
até determinado valor-limite e que essa responsabilidade objetiva não
existe nos casos de acidente nuclear causado diretamente por confli-
to armado, hostilidades, guerra civil, insurreição ou excepcional fato da
474 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

natureza. Nessa linha, também há que se considerar não-recepcionada


a previsão da Convenção de Viena sobre a Responsabilidade Civil por
Danos Nucleares que estabelece semelhantes hipóteses de exclusão da
obrigação de reparação dos danos decorrentes de acidentes nucleares.
Entende-se ainda que a responsabilidade objetiva em relação aos
danos nucleares deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo
também os casos de acidentes causados por materiais radioativos. Isso
porque o dispositivo que trata dessa responsabilidade está inserido no
inciso XXIII do artigo 21 da Constituição, que cuida dos “serviços
e instalações nucleares de qualquer natureza” e que dispõe também
sobre materiais radioativos.

7. Referências

BRASIL. Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câ-


mara dos Deputados. Relatório do Grupo de Trabalho Fiscalização e Segurança Nu-
clear. 2006.
BRASIL. Conselho Nacional de Política Energética. Resolução nº 3, de 25 de ju-
nho de 2007. Disponível em www.mme.gov.br.
BRASIL. Exposição de Motivos nº 252/MJ/MM/Mex/MRE/MAEr/ENFA/CC-
PR/CM-PR/SAE-PR, de 20 de julho de 1997, dos Senhores Ministros de Estado da
Justiça, Marinha, Exército, Relações Exteriores, Aeronáutica, Chefe do Estado-Maior
das Forças Armadas, Chefe da Casa Civil da Presidência da República e Secretário de
Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
CARDOSO, Eliezer de Moura. Aplicações da energia nuclear – Apostila educativa.
Disponível em http://www.cnen.gov.br.
COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR. CNEN-NE-1.04
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COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR. CNEN-NE-6.02
– Licenciamento de instalações radiativas. 1998. Disponível em www.cnen.gov.br.
COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR. CNEN-NN-3.03
– Certificação da qualificação de supervisores de radioproteção. 1999. Disponível em
www.cnen.gov.br.
COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR. CNEN-NN-4.01
– Requisitos de segurança e proteção radiológica para instalações mínero-industriais.
2003. Disponível em www.cnen.gov.br.
INTERNATIONAL ENERGY AGENCY. IEA Energy technology essentials:
nuclear power. 2007. Disponível em www.iea.org.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29ª Edição. São
Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2003. 792 p.
NUCLEAR ENERGY AGENCY. The disposal of high-level radioactive waste.
1989. Disponível em www.nea.fr
Energia
475

O petróleo na Constituição de
1988: mudanças e perspectivas
Paulo César Ribeiro Lima

1. Introdução

Este trabalho tem como objetivo fazer um histórico constitucional do


setor petrolífero nacional e analisar os ditames da Constituição Fede-
ral de 1998, da Emenda nº 9/1995 e da Lei nº 9.478/1997, conhecida
como Lei do Petróleo. Além disso, faz uma análise das possibilidades
do exercício do monopólio estatal, uma análise comparativa dos dife-
rentes tipos de contrato para pesquisa e lavra de jazidas de petróleo e
gás natural, além de propor alterações no atual marco legal. Por fim,
recomenda um novo regime de exploração e produção para área cha-
mada de pré-sal.

2. Histórico

No Brasil Imperial, o regime de exploração do petróleo era o domi-


nial. Nesse regime, a exploração poderia ser feita por quem a Coroa
outorgasse o direito. Registre-se que as primeiras concessões para ex-
ploração de petróleo foram outorgadas em 1864. O primeiro benefi-
ciário foi o inglês Thomas Denny Sargeant, a quem o Decreto Impe-
rial nº 3.352 concedeu o direito de extrair turfa, petróleo, ferro, cobre
e quaisquer outros minerais nas Comarcas de Camamu e Ilhéus, na
Província da Bahia.
A Constituição Republicana de 1891, em seu art. 72, § 17, adotou um
novo regime denominado fundiário, in verbis:
Os direitos do proprietário mantêm-se em toda a sua plenitude,
salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, me-
diante indenização prévia. As minas pertencem ao proprietário
do solo, salvo as limitações que forem estabelecidas a bem da
exploração deste ramo da indústria.

No entanto, a Carta Política de 1934 eliminou o regime fundiário.


Em seu art. 118, foi estabelecido que as minas e demais riquezas do
subsolo constituíam propriedade distinta da do solo para efeito de
476 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

exploração ou aproveitamento industrial. Esse aproveitamento, ainda


que de propriedade privada, dependia de autorização ou concessão
federal, na forma da lei.
Já o § 1º do art. 119 dispunha que as autorizações ou concessões se-
riam conferidas exclusivamente a brasileiros ou a empresas organiza-
das no Brasil, cabendo ao proprietário a preferência na exploração ou
co-participação nos lucros.
A Constituição de 1937 confirmou a opção pelo regime dominial,
mas introduziu importantes alterações ao proibir a participação de
estrangeiros e ao introduzir a expressão “autorização” em substituição
à expressão “concessão”.
A Lei Magna de 1946 retomou o espírito do texto da Constituição
de 1934, mas eliminou a participação do proprietário nos lucros, con-
servando apenas o direito de preferência. Registre-se, contudo, que na
Constituição de 1946 não foi feita referência explícita ao petróleo.
O monopólio da União para explorar e produzir petróleo, de fato, so-
mente ocorreu com a Lei nº 2.004, de 3 de outubro de 1953, que criou
a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), dispôs sobre a política nacio-
nal do petróleo e fixou atribuições ao Conselho Nacional do Petróleo.
Essa lei não fez referência explícita ao gás natural; usou-se a expressão
“gases raros”.
A Constituição de 1967, além da Emenda nº 9, de 1969, restabeleceu
o direito do proprietário de participar dos resultados da lavra e inovou
ao estabelecer de forma explícita, em seu art. 169, o monopólio da
União na pesquisa e na lavra, in verbis: “Art. 169. A pesquisa e a lavra
de petróleo em território nacional constituem monopólio da União,
nos têrmos da lei”.
Na década de 70, em razão da vulnerabilidade brasileira diante das
crises do petróleo, surgiram os “contratos de risco”, cuja natureza
jurídica era a de contratos de prestação de serviços, firmados entre a
Petrobras e empresas privadas internacionais detentoras de tecnolo-
gia e responsáveis por realizar atividade de exploração. Registre-se
que esses contratos, implantados em 1975, foram feitos sem funda-
mento legal.
O petróleo na Constituição de 1988, mudanças e perspectivas
477

3. A Constituição Federal de 1988 e a Emenda nº 9

A Carta Magna de 1988, em seu art. 176, deixou clara a opção pelo
regime dominial e pela concessão administrativa para exploração dos
recursos minerais, in verbis: “Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e
demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica cons-
tituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou
aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a
propriedade do produto da lavra”.
Destaque-se, contudo, que esse artigo não se aplica ao setor petrolí-
fero, cujo regime especial de aproveitamento foi estabelecido, pelos
Constituintes de 1988, no art. 177, transcrito a seguir:
Art. 177. Constituem monopólio da União:
I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros
hidrocarbonetos fluidos;
II – a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
III – a importação e exportação dos produtos e derivados básicos
resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;
IV – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional
ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem
assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto,
seus derivados e gás natural de qualquer origem;
V – a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a in-
dustrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e
seus derivados.
§ 1º O monopólio previsto neste artigo inclui os riscos e resultados de-
correntes das atividades nele mencionadas, sendo vedado à União
ceder ou conceder qualquer tipo de participação, em espécie ou em
valor, na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural, ressalva-
do o disposto no art. 20, § 1º.
Observa-se, então, que o texto original da Constituição de 1988 impe-
dia qualquer cessão ou concessão por parte da União de qualquer ativi-
dade do setor petrolífero, à exceção das atividades de distribuição.
Manteve-se, assim, a possibilidade de a União, por meio da Petrobras,
nos termos da Lei nº 2.004, continuar exercendo o monopólio estatal
do petróleo.
No entanto, na década de 90, houve uma alteração do texto constitu-
cional relativo ao setor petrolífero. O espírito dessa mudança, mate-
rializado no texto da Emenda Constitucional nº 9, de 9 de novembro
de 1995, foi a flexibilização do monopólio do petróleo e a abertura do
mercado. Essa Emenda introduziu a possibilidade de a União contra-
tar com empresas estatais ou privadas a exploração e a produção de
petróleo e gás natural.
478 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Essa emenda deu nova redação ao art. 177, in verbis:


Art. 177. Constituem monopólio da União:
I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros
hidrocarbonetos fluidos;
II – a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
III – a importação e exportação dos produtos e derivados básicos
resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;
IV – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional
ou de derivados básicos de petróleo produzidos no país, bem
assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto,
seus derivados e gás natural de qualquer origem;
V – ..................................................................................................
§ 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a
realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo
observadas as condições estabelecidas em lei.
§ 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre:
I – a garantia do fornecimento dos derivados de petróleo em todo
o território nacional;
II – as condições de contratação;
III – a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio
da União.
§ 3º ......................................................................................................”

4. A Lei nº 9.478

A partir dos novos ditames do art. 177 da Constituição Federal, edi-


tou-se a Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, também conhecida
como Lei do Petróleo. Essa Lei instituiu o Conselho Nacional de
Política Energética (CNPE) e a Agência Nacional do Petróleo, Gás
Natural e Biocombustíveis (ANP) e ela que estabelece a atual política
do setor petrolífero nacional.
Os arts. 3º ao 5º da Lei nº 9.478 dispõem sobre o exercício do mono-
pólio da União nos seguintes termos:
Art. 3º Pertencem à União os depósitos de petróleo, gás natural e outros
hidrocarbonetos fluidos existentes no território nacional, nele
compreendidos a parte terrestre, o mar territorial, a plataforma
continental e a zona econômica exclusiva.
Art. 4º Constituem monopólio da União, nos termos do art. 177 da Cons-
tituição Federal, as seguintes atividades:
I – a pesquisa e lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros
hidrocarbonetos fluidos;
II – a refinação de petróleo nacional ou estrangeiro;
III – a importação e exportação dos produtos e derivados básicos
resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;
O petróleo na Constituição de 1988, mudanças e perspectivas
479

IV – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional


ou de derivados básicos de petróleo produzidos no país, bem
como o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto,
seus derivados e de gás natural.
Art. 5º As atividades econômicas de que trata o artigo anterior serão
reguladas e fiscalizadas pela União e poderão ser exercidas, me-
diante concessão ou autorização, por empresas constituídas sob
as leis brasileiras, com sede e administração no país.
Observa-se uma pequena diferença entre o art. 177 da Constituição
Federal e a Lei nº 9.478. Enquanto a Constituição dispõe que a União
poderá contratar a pesquisa e a lavra das jazidas, a Lei nº 9.478, con-
forme mostrado, estabelece que a pesquisa e a lavra serão reguladas e
fiscalizadas pela União e poderão ser exercidas por empresas mediante
concessão ou autorização.
Ressalte-se, no entanto, que o art. 23 dessa mesma lei dispõe de modo
diferente, in verbis: “Art. 23. As atividades de exploração, desenvolvi-
mento e produção de petróleo e de gás natural serão exercidas me-
diante contratos de concessão, precedidos de licitação, na forma esta-
belecida nesta lei”.
O art. 23, em vez de usar a expressão “pesquisa e lavra de jazidas”,
usa a expressão “exploração, desenvolvimento e produção” e estabelece
que essas atividades serão exercidas mediante contratos de concessão.
Assim, a expressão “A União poderá contratar”, prevista no § 1º do
art. 177 da Constituição deixa de ser opcional, já que a Lei nº 9.478
obriga a União a conceder as áreas a serem exploradas.
Além disso, o art. 26 da Lei nº 9.478 dispõe que é do concessionário o
petróleo ou gás natural extraídos, nos seguintes termos:
Art. 26. A concessão implica, para o concessionário, a obrigação de
explorar, por sua conta e risco e, em caso de êxito, produzir petróleo
ou gás natural em determinado bloco, conferindo-lhe a proprieda-
de desses bens, após extraídos, com os encargos relativos ao paga-
mento dos tributos incidentes e das participações legais ou contra-
tuais correspondentes.
Depreende-se, então, que a Lei nº 9.478 limitou o monopólio da
União na exploração e produção de petróleo e gás natural. Dessa for-
ma, a União, para pesquisar e lavrar esses recursos naturais, fica obri-
gada a assinar contratos de concessão e o produto da lavra passa a ser
propriedade do concessionário.
480 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

5. O exercício do monopólio constitucional

Nos termos atuais da Constituição Federal, a União poderá exercer as


atividades de pesquisa e lavra de petróleo e gás natural diretamente ou
poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização dessas
atividades. Dessa forma, a Lei nº 9.478 poderia ser alterada de modo a
prever, além do exercício direto pela União da exploração e produção,
diferentes tipos de contratação dessas atividades.
Segundo Bindemann (1999), existem quatro tipos básicos de contra-
to: concessão, acordos de partilha de produção, contratos de serviço
e joint ventures. As diferenças entre eles são de natureza conceitual,
principalmente em relação ao nível de controle sobre o contratado, às
compensações financeiras e ao envolvimento das empresas estatais.

5.1 Contratos de concessão

A região do Oriente Médio é a que tem mais tradição na utilização


dos clássicos contratos de concessão. Esses contratos apresentam três
características básicas:
• grandes áreas;
• longo prazo;
• controle do contratado sobre o desenvolvimento e a produção.
No regime de concessão, em geral, não há exigência com relação à
produção. Se o preço do petróleo estiver baixo, a empresa pode re-
duzir a produção sem incorrer em multas. Normalmente, o governo
tem o direito apenas de receber uma compensação financeira com
base na produção.
Contratos de concessão desse tipo também foram utilizados pelos Es-
tados Unidos até 1930. No entanto, a partir desse ano, as condições
contratuais mudaram bastante. Atualmente, os contratos expiram se
não ocorrer a produção prevista depois de um determinado período.
Além disso, há pagamento de royalties.
A partir de 1950, muitos contratos do Oriente Médio foram renego-
ciados. Esse processo teve início na Arábia Saudita. De acordo com as
novas regras, os lucros passaram a ser divididos meio a meio entre as
partes e a empresa passou a pagar royalties. No Irã e no Iraque também
ocorreram mudanças semelhantes.
O petróleo na Constituição de 1988, mudanças e perspectivas
481

As renegociações provocaram, assim, uma reestruturação do modelo


tradicional de concessões. As empresas tiveram que aceitar esse pro-
cesso por diversas razões. Primeiramente, porque as condições con-
tratuais não eram razoáveis e uma recusa a negociar poderia causar
hostilidades em relação às empresas estrangeiras. Essas hostilidades
poderiam resultar na nacionalização da indústria petrolífera e na per-
da de ativos.
Em segundo lugar, as concessões eram muito rentáveis e condições
menos favoráveis ainda manteriam uma alta rentabilidade. Além dis-
so, as grandes empresas petrolíferas eram verticalmente integradas e
o acesso a reservas era mais importante que uma redução nos lucros,
desde que fosse mantida a lucratividade.
Os contratos mais modernos de concessão ainda mantêm os direitos
exclusivos da empresa de explorar, desenvolver e exportar o petróleo.
No entanto, os períodos são menores, os trabalhos são obrigatórios
e os royalties são maiores. É também bastante comum que empresas
estatais ou nacionais participem no contrato.
Recentemente, a reestruturação do sistema de concessões tem tratado
de três questões essenciais: o nível de controle permitido à empresa
operadora, a partilha das receitas e o nível de envolvimento da em-
presa no país.

5.2 Contratos de partilha de produção

Em meados da década de 60, o governo da Indonésia introduziu os


contratos de partilha da produção em resposta às críticas e hostilida-
des em relação ao sistema de concessões.
Nesses contratos, o petróleo produzido é propriedade do Estado, o
qual contrata uma empresa para explorar uma área e, em caso de des-
coberta comercial, desenvolve a área. A empresa opera o campo sob
seu próprio risco, mas, como prêmio, recebe uma parte da produção.
Assim, a principal diferença entre os contratos de concessão e de
partilha da produção é a propriedade do petróleo produzido. Nas
concessões, todo o petróleo pertence à empresa, mas na partilha de
produção o petróleo pertence ao Estado, sendo uma parte alocada
para a empresa como pagamento pelo risco assumido e pelos servi-
ços prestados.
Os contratos de partilha de produção espalharam-se da Indonésia
para outros países como Egito, Líbia, Argélia e outros países na Áfri-
482 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ca. A seguir, esses contratos tornaram-se muito populares nos países


que formavam a antiga União Soviética, especialmente na região do
Cáspio. Também são muito utilizados no Oriente Médio.

5.3 Contratos de serviço

Os contratos de serviço apresentam similaridades com os contratos de


partilha de produção. No entanto, os contratos de serviço típicos são
bem diferentes. Nesses casos, as empresas assumem os riscos financei-
ros e se engajam na exploração e produção em troca de um pagamento
fixo. As empresas que fornecem serviços e know-how no contrato não
estão em posição de igualdade com o governo.
Os primeiros contratos de serviço foram assinados pela Petrole-
os Mexicanos (PEMEX) e pela Yacimientos Petroliferos Fiscales
(YPF) na década de 50. Contudo, esses contratos popularizaram-se
no final da década de 60 quando Irã e Iraque concluíram muitos
acordos desse tipo.
Em suma, a principal diferença entre os contratos de partilha de pro-
dução e de serviço está na forma da remuneração e no controle sobre
as operações.

5.4 Joint ventures

Nos joint ventures, tanto a empresa quanto o governo, ou uma de suas


agências, participam ativamente na operação do campo e adquirem a
propriedade de uma parte específica da produção.
Assim, além dos royalties e impostos, cabe ao governo uma parcela dos
lucros. Contudo, esses benefícios têm um preço, já que os custos de
desenvolvimento e operação são divididos entre os parceiros: empresa
petrolífera e governo.
Os joint ventures podem assumir tanto a forma de participação quanto
a forma contratual. Na forma de participação, uma companhia conjun-
ta é formada e cada parceiro detém um percentual de participação.
Na forma contratual, existe um acordo de operação e cada parceiro
detém uma parcela da produção. Em geral, o governo detém 51% ou
mais do total.
O petróleo na Constituição de 1988, mudanças e perspectivas
483

5.5 Análise comparativa

Conforme mostrado, a exploração de petróleo em um país pode ocorrer


por meio de vários tipos de contrato entre o governo e as empresas.
Em países com grandes ou potencialmente grandes jazidas, esses recur-
sos e sua extração tendem a ser vitais para a economia. Assim sendo,
muitos governos têm aumentado seu envolvimento no setor petrolífero.
Isso tem resultado em uma maior participação do Estado, o estabele-
cimento de empresas nacionais e maior compensação financeira para
o governo decorrente das operações petrolíferas.
Tanto os tipos de contrato como seus termos variam não somente
entre países mas dentro dos países. Além disso, muitas formas contra-
tuais apresentam características que se superpõem.
Muitos parâmetros devem determinar a natureza do contrato. Entre
esses parâmetros podem ser citados os seguintes:
• a maturidade do setor;
• o regime fiscal;
• a dependência de importação ou exportação;
• os aspectos geológicos;
• os custos;
• a estrutura regulatória.
A Tabela 5.1 mostra os riscos e as recompensas dos principais tipos de
contrato utilizados na exploração e produção de petróleo e gás natural.

Tabela 5.1
Riscos e recompensas dos diferentes tipos de contratação

Contrato Empresa Governo


Todo risco e Recompensa é função
Concessão
toda recompensa da produção e do preço

Partilha Risco exploratório


Parte da produção
de produção e parte da produção

Contrato de
Nenhum risco Todo o risco
serviço típico

Parcela no risco Parcela no risco


Joint Venture
e parte da produção e parte da produção
484 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

6. Exploração e produção na área do pré-sal

No Brasil, a promissora área chamada de pré-sal pode se estender por


cerca de 800 quilômetros, do Espírito Santo até Santa Catarina, em
lâmina d’água de 1,5 mil a 3 mil metros de profundidade e soterra-
mento de 3 mil a 4 mil metros (AZEVEDO, 2008). Soterramento é
a camada do subsolo marinho a ser perfurada entre o leito marinho e
o reservatório.
Até o momento, todos os blocos dessa área tiveram sucesso explora-
tório. A estatal brasileira, Petrobras, anunciou, em novembro de 2007,
que a área de Tupi, no Bloco BMS-11, deve ter volume recuperável
de até 8 bilhões de barris de petróleo. Entre as descobertas ocorridas
nos últimos 30 anos, apenas o campo de Kashagan, com 15 bilhões de
barris, no Cazaquistão, tem maior volume.
Recentemente, a Petrobras divulgou nova descoberta no prospecto de-
nominado Guará, que fica ao norte do bloco BMS-9. Esse bloco teve
a descoberta anunciada em setembro de 2007. Estima-se que Guará
apresente volume recuperável ainda maior que Tupi.
Ressalte-se que a ANP já aprovou os planos de avaliação de três desco-
bertas: Carioca (Bloco BMS-9), Tupi (BMS-11) e Júpiter (BMS-24).
Novas reservas no pré-sal deverão ser descobertas na plataforma con-
tinental brasileira, pois em blocos já licitados ainda não foram per-
furados poços exploratórios, como o promissor Bloco BMS-22, cuja
operadora é a Exxon Mobil. Imagina-se que as descobertas ocorridas
até agora são apenas a “ponta do iceberg”.
Como o risco exploratório dessa área tende a zero, o governo deveria ter
uma participação nos resultados e maior controle da riqueza potencial.
O Brasil é o único país entre os maiores produtores que ainda utiliza
livres contratos de concessão, orientados para atrair investimentos.
Em grande parte do mundo, a exploração em áreas como a do pré-sal
dá-se por meio de contratos de partilha de produção. Esses contratos
transfeririam a propriedade do petróleo produzido à União. As recei-
tas decorrentes dessa propriedade poderiam ser destinadas aos estados
e municípios, ao reaparelhamento das forças armadas, à erradicação
da pobreza, à proteção dos biomas nacionais, à ciência e tecnologia, à
educação etc.
Além disso, os contratos de partilha de produção permitiriam que a
União tivesse maior poder decisório que o decorrente dos contratos de
O petróleo na Constituição de 1988, mudanças e perspectivas
485

concessão. No contrato de partilha, até o ritmo dos trabalhos poderia


ser administrado pela União.
A grande dificuldade na implementação dos contratos de partilha de
produção é a necessidade de se ter uma empresa nacional para repre-
sentar a União nesses contratos.
A Petrobras, em razão de ter 60% do capital social em mãos privadas,
sendo 40% em mãos estrangeiras, não poderia ser essa empresa nacio-
nal, a menos que esse capital fosse recomprado. Caso essa recompra
ocorresse, ela poderia, novamente, ser considerada uma empresa com
orientação pública.
Mantida a atual composição acionária da Petrobras, seria oportuna a
criação de uma empresa pública para representar a União nos contra-
tos assinados com as companhias petrolíferas. Proposta semelhante
foi implementada na Noruega.
Esse país, que já contava com a Statoil, uma estatal semelhante à Pe-
trobras, decidiu pela criação da Petoro. A Petoro e a Statoil, ambas
empresas estatais, têm missões e objetivos absolutamente diferentes.
A Statoil, assim como a Petrobras, é uma companhia petrolífera, com
ações em bolsa, que atua como operadora. Já a Petoro atua em nome
do estado norueguês, com a responsabilidade de atender aos aspectos
comerciais relacionados com o envolvimento direto do governo nas
atividades petrolíferas na plataforma continental do país.

7. Conclusões

A Constituição Federal de 1988 reiterou a opção pelo regime do-


minial e pela concessão administrativa no setor mineral. Entretanto,
manteve o monopólio da União no setor petrolífero e possibilitou à
Petrobras a continuidade do exercício desse monopólio.
No entanto, na década de 90, foi aprovada a Emenda Constitucional
nº 9, que flexibilizou o monopólio do petróleo e promoveu a abertura
do mercado, por possibilitar à União contratar com empresas estatais
ou privadas a exploração e a produção de petróleo e gás natural.
A partir dos novos ditames do art. 177 da Constituição Federal, foi
editada a Lei nº 9.478, conhecida como Lei do Petróleo. Essa lei ins-
tituiu o CNPE e a ANP, além de dispor sobre a atual política do setor
petrolífero nacional.
A Lei nº 9.478 limita o exercício do monopólio estatal na exploração
e produção de petróleo e gás natural, pois obriga a União a assinar
486 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

contratos de concessão para a pesquisa e a lavra, sendo o produto dessa


lavra propriedade do concessionário.
Com a sanção dessa lei, pouco resta da visão dos constituintes de 1988
acerca dos estratégicos recursos naturais que são o petróleo e o gás
natural. Para resgatar parcialmente essa visão, sugere-se a alteração da
Lei nº 9.478 de modo a estabelecer maiores receitas e maior controle
da União sobre a exploração e produção, principalmente em áreas de
grande potencial e baixo risco exploratório, como a do pré-sal.
Essas maiores receitas e esse maior controle poderiam ocorrer com
a celebração de contratos de partilha de produção entre o governo
e as empresas petrolíferas. Como a Petrobras foi desnacionalizada e,
de certa forma, privatizada, seria oportuna a criação de uma empresa
pública para representar a União nesses contratos.

5. Bibliografia

AZEVEDO, José Sergio Gabrielli. Impacto econômico das recentes descobertas de


campos de petróleo no Brasil. Audiência Pública na Comissão de Minas e Energia
da Câmara dos Deputados, 2008.
BINDEMANN, Kirsten. Production-sharing agreements: an economic analysis.
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SANTOS, Janine Medeiros; BARROS, Felipe Maciel. Indústria petrolífera: as-
pectos teóricos e jurídicos acerca das atividades de exploração e produção de
petróleo e gás natural. Jus Navegandi, 2004.
Energia
487

A prestação do serviço público


de energia elétrica na Constituição
Federal de 1988 – concepção original,
alterações e conseqüências
Fausto de Paula Menezes Bandeira

Introdução

O presente trabalho aborda a filosofia adotada na redação original da


Constituição Federal de 1988 para atuação do Estado na economia,
com enfoque nos dispositivos considerados de maior influência para
a prestação do serviço público de energia elétrica, destacando, em se-
guida, as causas que levaram às alterações realizadas no texto consti-
tucional, por intermédio da Emenda Constitucional nº 6, de 1995, e
as conseqüências decorrentes, no passado recente, na atualidade e nas
perspectivas que se apresentam para o setor elétrico nacional.

Histórico

O Texto original da Constituição Federal de 1988 iniciava o Capítulo


VII, referente à ordem econômica e financeira, explicitando, no art.
170, a opção da sociedade brasileira pela adoção de uma lógica econô-
mica predominantemente capitalista e liberal, em que a livre concor-
rência é um princípio a ser observado e o livre exercício de qualquer
atividade econômica seria regra geral, admitidas as exceções definidas
na lei. Tais afirmações filosóficas eram novidade em relação às Cons-
tituições que a precederam.
Porém, logo em seguida, a própria Carta Magna abria exceções a essa
filosofia definindo, no art. 171, tratamento diferenciado para a empre-
sa brasileira de capital nacional em relação às demais empresas. Desta-
que-se que nenhuma das Constituições anteriores fazia tal distinção.
Adicionalmente, a Constituição de 1988, no art. 173, contrariamente
ao que se entenderia de uma leitura rápida desse dispositivo, destacava
o estabelecimento de espaços reservados à atuação do Estado na eco-
488 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

nomia. Tal reserva abrangia os casos previstos na própria Constitui-


ção e todas as demais situações em que alguma lei estabelecesse que
tal atuação seria necessária aos imperativos da segurança nacional ou
apresentava relevante interesse coletivo.
De fato, isoladamente, a Constituição de 1988 reservou significativo
espaço para atuação exclusiva do Estado na economia, permitindo, em
várias das atividades reservadas, que essa atuação se desse diretamente
ou indiretamente, contratando terceiros para exercer a atividade ou
por delegação, empregando, nessa hipótese os institutos da concessão,
da permissão ou da autorização1.

1
Numa avaliação expedita do texto constitucional é possível destacar as seguintes
atividades reservadas à atuação estatal:
I. a exploração do serviço postal e do correio aéreo nacional compete à União.
(CF, art. 21, caput e inciso X);
II. a exploração dos serviços de telecomunicações compete à União, direta-
mente ou mediante autorização, concessão ou permissão (CF, art. 21, ca-
put e inciso XI);
III. a exploração dos serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens com-
pete à União, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão
(CF, art. 21, caput e inciso XII, alínea a);
IV. a exploração dos serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento
energético dos cursos de água competem à União, diretamente ou mediante
autorização, concessão ou permissão (CF, art. 21, caput e inciso XII, alínea b);
V. a exploração da navegação aérea, aeroespacial e da infra-estrutura aeropor-
tuária compete à União, diretamente ou mediante autorização, concessão ou
permissão (CF, art. 21, caput e inciso XII, alínea c);
VI. a exploração dos serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos
brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de estado
ou território compete à União, diretamente ou mediante autorização, con-
cessão ou permissão (CF, art. 21, caput e inciso XII, alínea d);
VII. a exploração dos serviços de transporte rodoviário interestadual e interna-
cional de passageiros compete à União, diretamente ou mediante autoriza-
ção, concessão ou permissão (CF, art. 21, caput e inciso XII, alínea e);
VIII. a exploração dos portos marítimos, fluviais e lacustres compete à União,
diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão (CF, art. 21,
caput e inciso XII, alínea f);
IX. a exploração dos serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e o
exercício do monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento
e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e
seus derivados compete à União (CF, art. 21, caput e inciso XXIII), admi-
tida, sob regime de permissão, a comercialização e a utilização de radioisó-
topos para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais (CF, art. 21,
inciso XXIII, alínea b), bem como a produção, comercialização e utilização,
também sob regime de permissão, de radioisótopos de meia-vida igual ou
inferior a duas horas (CF, art. 21, inciso XXIII, alínea b);
X. a exploração dos serviços locais de gás canalizado compete aos estados, di-
retamente ou mediante concessão (CF, art. 25, § 2º);
XI. a prestação dos serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte
coletivo, compete aos Municípios, diretamente ou mediante concessão ou
A prestação do serviço público de energia elétrica na Constituição Federal de 1988 –
concepção original, alterações e conseqüências 489

Historicamente, no Brasil, observa-se que, na esmagadora maioria


das vezes, quando a norma abre a possibilidade de o Estado atuar
indiretamente na atividade econômica, tem-se optado pelo emprego
de instrumentos de contratação ou delegação permitidos, ou seja, a
concessão, a permissão ou a autorização, de forma que particulares a
explorem por conta e risco próprios, geralmente durante prazos de-
finidos, e sob supervisão do Estado, que assume o papel de agente
regulador da atividade naquele setor da economia. São exemplos dessa
forma de atuação estatal na economia a prestação dos serviços públi-
cos de energia elétrica e de transportes.
Quando a norma admite unicamente, ou predominantemente, a atu-
ação direta do Estado brasileiro na atividade econômica, geralmente
este tem optado pela descentralização, instituindo empresa pública ou
sociedade de economia mista para explorar tal atividade. Nesse caso, o
prazo de exploração da atividade pelo Estado é indeterminado e a re-

permissão (CF, art. 30, caput e inciso V);


XII. a exploração ou o aproveitamento das jazidas, em lavra ou não, e demais
recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica somente poderão ser
efetuados mediante concessão ou autorização da União, observadas condi-
ções específicas estabelecidas na lei quando essas atividades se desenvolve-
rem em faixa de fronteira ou terras indígenas (CF, art. 176, caput e § 1°);
XIII. a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocar-
bonetos fluidos constituem monopólio da União, que poderá contratar com
empresas estatais ou privadas a realização dessas atividades, observadas as
condições estabelecidas em lei (CF, art. 177, caput, inciso I e § 1°);
XIV. a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro constitui monopólio da
União, que poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização
dessa atividade, observadas as condições estabelecidas em lei (CF, art. 177,
caput, inciso II e § 1°);
XV. a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das
atividades de pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros
hidrocarbonetos fluidos e da refinação do petróleo nacional ou estrangeiro
constituem monopólio da União, que poderá contratar com empresas es-
tatais ou privadas a realização dessas atividades, observadas as condições
estabelecidas em lei (CF, art. 177, caput, inciso III e § 1°);
XVI. o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados
básicos de petróleo produzidos no país, bem assim o transporte, por meio
de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer ori-
gem constituem monopólio da União, que poderá contratar com empresas
estatais ou privadas a realização dessas atividades, observadas as condições
estabelecidas em lei (CF, art. 177, caput, inciso IV e § 1°);
XVII. a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização
e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, constituem
monopólio da União, que poderá contratar com empresas estatais ou priva-
das a realização dessas atividades, observadas as condições estabelecidas em
lei, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utiliza-
ção poderão ser autorizadas ou sob regime de permissão (CF, art. 177, caput,
inciso V e § 1°).
490 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

gulação da atividade é irrelevante ou está voltada apenas para a parcela


da atividade econômica em que é admitida alguma atividade privada.
Como exemplos dessa hipótese de atuação do Estado na economia,
temos as atividades de exploração do serviço postal e correio aéreo
nacional, e de pesquisa, lavra, enriquecimento, reprocessamento e co-
mércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, bem como a
exploração dos serviços e instalações nucleares de qualquer natureza.
Prosseguindo com a análise das diretrizes constitucionais originais re-
lativas à atividade do Estado na economia, o art. 174 da Lei Maior,
aparentemente retornando à concepção capitalista liberal de menor
intervenção estatal na economia que se depreendia do art. 170, esta-
beleceu que o Estado, no papel de agente normativo e regulador da
atividade econômica, exerceria as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, na forma da lei, sendo o planejamento determinante
para o setor público e indicativo para o setor privado.
Outra novidade em relação às Constituições Federais anteriores, foi
a definição, no art. 175, de que caberia ao poder público a prestação
de serviços públicos, diretamente ou, indiretamente, sob regime de
concessão ou permissão, sempre através de licitação, definindo ainda,
no parágrafo único desse artigo, que lei disporia sobre o regime das
concessionárias e permissionárias de serviço público, o caráter especial
de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de cadu-
cidade, fiscalização e rescisão da concessão ou da permissão; sobre os
direitos dos usuários, sobre a política tarifária; e sobre a obrigação das
concessionárias e permissionárias manterem serviço adequado.
Especificamente em relação ao setor elétrico, a Constituição de 1988
também inovou em relação às suas predecessoras ao relacionar, no
art. 20, inciso VIII, os potenciais de energia hidráulica entre os bens
da União.
A Constituição de 1988 praticamente reeditou o art. 8°, inciso XV,
alínea b, da Constituição de 1967, ao definir no art. 21, inciso XII,
alínea b, que compete à União explorar, diretamente, ou mediante au-
torização, concessão ou permissão, os serviços e instalações de energia
elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articu-
lação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos,
estabelecendo, assim, uma das exceções referidas no art. 173 para a
atuação do Estado na economia.
Também, no art. 176 da Constituição, é reafirmada a titularidade da
União para exploração dos potenciais de energia elétrica e reduzida
a discricionariedade disposta no art. 21, inciso XII, alínea b, da Lei
A prestação do serviço público de energia elétrica na Constituição Federal de 1988 –
concepção original, alterações e conseqüências 491

Maior quanto à exploração indireta dos potenciais hidráulicos, visto


que o § 1° do art. 176 estabelece que o aproveitamento dos potenciais
de energia hidráulica somente poderá ser efetuado mediante autoriza-
ção ou concessão da União.
Adicionalmente, o art. 175 da Constituição de 1988 inovou em re-
lação às Constituições anteriores ao estabelecer que a prestação de
serviços públicos pelo Poder Público poderia ser feita diretamente ou
poderia ser delegada a terceiros, sob regime de concessão ou permis-
são, sempre através de licitação.
A exigência da realização de um processo licitatório para a delegação
da prestação do serviço público aliada às demais novidades introduzi-
das pela Constituição de 1988, relativas à atuação do Estado na eco-
nomia, trouxeram conseqüências imediatas para o setor elétrico nacio-
nal, demandando, no primeiro momento, a atuação do Legislativo na
regulamentação dos novos dispositivos e, no médio prazo, alterações
no texto constitucional.

O racionamento de energia elétrica de 2001

Como a nova Constituição estabeleceu que o planejamento é uma


função do Estado, sendo determinativo para o setor público, assim que
a nova carta Magna foi promulgada, o Ministério de Minas e Energia
(MME) iniciou um processo de transferência para si da coordenação
do planejamento do setor elétrico nacional, que até então era realizado
pela Centrais Elétricas Brasileiras S/A (Eletrobrás). Porém, em fun-
ção da recessão que o país experimentava, o MME não dispunha de
recursos humanos ou financeiros para assumir a tarefa. Assim, diante
de uma crise institucional, o planejamento setorial, que era um dos
pontos notáveis do setor, ficou praticamente paralisado.
O principal movimento do MME, para tentar adequar o setor elétri-
co às novas disposições formais e às restrições econômicas que o país
experimentava, foi a instauração do processo de reformulação setorial
conhecido como Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasi-
leiro (Reseb), iniciado tardiamente em meados de 1995, que visava à
implantação de um modelo para a indústria de energia elétrica nacio-
nal desverticalizado, com competição nos segmentos de geração e co-
mercialização e forte regulamentação nos segmentos de transmissão e
distribuição. Entretanto, nessa época, um futuro colapso na prestação
do serviço público de energia elétrica era quase inevitável.
492 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Em fins de 1988, o país vivia um período de recessão. Havia sobras


de energia nos reservatórios das usinas hidrelétricas. A inadimplência
das distribuidoras quanto ao pagamento da energia adquirida junto às
geradoras federais era crescente. Diversas obras de geração estavam
paralisadas por falta de recursos para investimentos. A grande preocu-
pação do setor era superar as dificuldades econômicas.
Nessa situação, e sem um planejamento eficiente, o setor foi incapaz
de perceber a tempo as dificuldades que iria enfrentar para atender ao
mercado de energia elétrica nacional, quando ocorresse uma retoma-
da do crescimento econômico. Deixou, então, de adotar as medidas
necessárias para sensibilizar a sociedade, especialmente o Legislativo,
para que fossem adotadas as providências imprescindíveis para possi-
bilitar a superação das dificuldades que enfrentaria para expandir a sua
capacidade de geração.
Note-se que a necessidade de o setor elétrico sensibilizar o Legis-
lativo tempestivamente quanto à problemática associada à expansão
do setor estava associada ao fato de que as suas raízes eram constitu-
cionais. Mais especificamente, estavam consubstanciadas na exigência
constante do art. 175, de que a prestação de serviços públicos se re-
alizasse diretamente ou, indiretamente, por intermédio de concessão
ou permissão, sempre através de licitação. Essa obrigação, associada
ao disposto no art. 176, que determinava que o aproveitamento dos
potenciais de energia hidráulica se desse somente indiretamente por con-
cessão ou permissão, provocou imediatamente a paralisação da outorga
de concessões para implantação de usinas hidrelétricas no Brasil. Essa
situação perdurou por quase sete anos, ou seja, de 1988 até 1995.
Isto ocorreu porque a exploração direta dos potenciais de energia elétri-
ca ou a delegação dessa exploração a terceiros, sem a realização de pro-
cesso licitatório, não havia sido recepcionada pela nova Constituição.
Até então, o Estado já optara por explorar indiretamente os poten-
ciais hidráulicos, porém a delegação dessa exploração obedecia a um
cronograma definido pelo planejamento centralizado do setor, que era
coordenado pela Eletrobrás, e as concessões eram usualmente atribu-
ídas às empresas concessionárias de acordo com as respectivas capa-
cidades financeiras para realizar os investimentos associados e áreas
de atuação. Assim, se a empresa estadual, concessionária de energia
elétrica possuía capacidade financeira e técnica para implantar uma
usina hidrelétrica que estaria situada na sua área de atuação, à conces-
sionária estadual era atribuída a concessão, caso contrário a concessão
era outorgada a uma das empresas federais subsidiárias da Eletrobrás,
A prestação do serviço público de energia elétrica na Constituição Federal de 1988 –
concepção original, alterações e conseqüências 493

ou seja, à Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf ), ou


à Furnas Centrais Elétricas S/A, ou à Centrais Elétricas do Sul do
Brasil S/A (atual Eletrosul – Centrais Elétricas S/A), ou à Centrais
Elétricas do Norte do Brasil S/A (Eletronorte), de acordo com as res-
pectivas áreas de atuação.
A nova Constituição passou a exigir que a outorga dessas concessões
fosse licitada. Entretanto, a lei referida no parágrafo único do art. 175
que deveria dispor sobre o regime das empresas concessionárias e per-
missionárias de serviços públicos; sobre o caráter especial do contrato
de concessão e sua prorrogação; sobre as condições de caducidade,
fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; sobre os direitos
dos usuários; sobre a política tarifária; e sobre a obrigação de manter
“serviço adequado” não existia. A chamada lei das concessões, a Lei nº
8.987, somente foi editada em 13 de fevereiro de 1995.
Assim, praticamente sem planejamento, ou seja, sem uma visão de
médio e longo prazos, com sobras de energia nos reservatórios das
usinas existentes, sem recursos para investir e, principalmente, sem a
lei que possibilitaria a outorga de novas concessões para que terceiros
pudessem aportar recursos e iniciar a construção de usinas hidrelétri-
cas, o setor permaneceu legalmente impedido de iniciar novas obras
de geração de energia hidrelétrica durante quase sete anos, retomando,
nesse período, ainda que com enorme dificuldades para atrair inves-
timentos, apenas aqueles empreendimentos de geração hidrelétrica já
concedidos e que estavam com as obras paralisadas. Esse movimento
de retomada de investimentos no setor ocorreu no âmbito do chama-
do Programa Nacional de Desestatização2 e se deu a partir de 1993,
podendo ser exemplificado com a licitação para retomada das obras da
Usina Hidrelétrica de Itá, na fronteira dos Estados de Santa Catarina
e Rio Grande do Sul.
De fato, a outorga de novas concessões para construção de hidrelétri-
cas, por intermédio de licitações, somente foi retomada em 1998, já
sob a condução da recém-criada Agência Nacional de Energia Elétri-
ca (Aneel), com a realização do leilão para concessão do Aproveita-
mento Hidrelétrico de Campos Novos.
Portanto, em função de restrições legais que tiveram raízes nas inova-
ções introduzidas pela Constituição Federal de 1988, o Brasil passou

2
Vide Decreto n° 724, de 19 de janeiro de 1993, que cria o Programa Nacional de
Desestatização (PND) e dá outras providências; e Decreto n° 915, de 6 de setembro
de 1993, que autoriza a formação de consórcios por empresas interessadas na gera-
ção de energia elétrica, para uso exclusivo.
494 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

praticamente dez anos sem iniciar obras de construção de usinas gera-


doras hidrelétricas, deixando de empregar sua principal fonte de gera-
ção de energia elétrica, os potenciais hidráulicos. O atraso decorrente
no cronograma de adição de unidades geradoras aliado a uma conjun-
ção de fatores climáticos desfavoráveis resultou no racionamento de
energia elétrica experimentado em 2001.
Infelizmente, a maior parte das análises feitas à época, inclusive o re-
latório do Poder Executivo sobre a crise de abastecimento de energia
elétrica, que foi elaborado pela Comissão de Análise do Sistema Hi-
drotérmico de Energia Elétrica3, intitulado O desequilíbrio entre oferta
e demanda de energia elétrica, concluiu que o racionamento decorreu
da “falta de investimentos” e de “falhas de planejamento”, deixando de
perquirir o que as teria causado. É forçoso concluir, portanto, que o
referido relatório não esgotou a matéria, ficando a meio caminho.
De fato, a “falta de investimentos” e as “falhas de planejamento”, que
ocorreram, foram duas conseqüências intermediárias do problema,
que teve como conseqüência principal o racionamento de energia
de 2001.
A causa principal do problema, a nosso ver, foram os dispositivos in-
troduzidos pela Constituição Federal de 1988 e o hiato legal decor-
rente da demora na regulamentação de alguns deles.
A ignorância quanto à influência que expectativas de alterações subs-
tanciais, ou que efetivas alterações nas normas que regem o setor
elétrico nacional têm no comportamento dos agentes e, conseqüen-
temente, no afluxo de recursos e no funcionamento de todo o setor
elétrico resultou em nova paralisia dos investimentos em geração de
energia elétrica, em meados de 2002, durante a disputa das eleições
presidenciais, quando o candidato mais cotado para vencer o pleito
anunciou no seu programa de governo que iria mudar radicalmente as
leis que regiam o modelo do setor elétrico nacional.
Efetivamente, foram realizadas modificações no marco legal setorial,
em fins de 2003, que, felizmente, não foram tão radicais quanto pre-
viamente anunciado e, basicamente, afetaram a forma de realização
dos leilões para outorga de concessões de geração, tornando-os muito
semelhantes aos que, desde 1998, eram adotados para as concessões de
instalações de transmissão.

3
Vide Decreto s/n de 22 de maio de 2001, publicado no Diário Oficial de 23 de
maio de 2001.
A prestação do serviço público de energia elétrica na Constituição Federal de 1988 –
concepção original, alterações e conseqüências 495

Contudo, em função das alterações legais efetuadas a partir da posse


do novo governo, apenas em meados 2005 foram retomados os leilões
para concessões de geração de energia elétrica no país. Decorreram,
portanto, praticamente três anos de paralisia nas obras de geração de
energia elétrica no Brasil. Tal fato aliou-se à ocorrência de novas con-
dições climáticas adversas que provocaram uma redução da energia
afluente nos reservatórios das hidrelétricas entre novembro de 2007 e
janeiro de 2008, e o país quase se viu novamente racionando energia
elétrica. Felizmente, as medidas de monitoramento da situação dos
reservatórios, adotadas após o racionamento de 2001, sinalizaram a
tempo para a necessidade de intensificação da geração termelétrica
nacional. Essa providência, associada à melhoria das condições de
afluência na maior parte das bacias hídricas do país, evitaram que os
brasileiros vivessem novo racionamento de energia elétrica em 2008.
Impende ressaltar, porém, que as alterações introduzidas no marco legal
do setor elétrico nacional a partir de fins de 2003, especialmente no
formato dos leilões de geração, apesar da relativa simplicidade, possibi-
litaram que o modelo brasileiro do setor elétrico se tornasse o único do
mundo em que um empreendedor, ao ganhar a concessão para implanta-
ção de uma usina hidrelétrica, disponha, simultaneamente, de contratos
de venda da energia dessa usina pelos próximos trinta anos, o que reduz
significativamente os riscos comerciais associados ao empreendimento
e possibilita o acesso dos investidores a financiamentos a custos mais
baixos, visto que tais financiamentos são garantidos pelas receitas asso-
ciadas aos contratos da venda de energia do empreendimento. Trata-se,
portanto, de modificação importante que aumenta significativamente a
atratividade de investimentos para o setor elétrico nacional.

A Emenda Constitucional n° 6

O art. 171 foi outro dispositivo, introduzido na Constituição Fede-


ral de 1988, que influenciava negativamente o desempenho do setor
elétrico nacional, uma vez que dificultava a entrada de recursos es-
trangeiros no país para aplicação em investimentos produtivos, auto-
rizando tratamento privilegiado para as empresas brasileiras de capital
nacional. Vale observar que a xenofobia da Assembléia Constituinte
de 1988 não atuou uniformemente, pois deixou de estabelecer qual-
quer empecilho para entrada no país de recursos estrangeiros dirigidos
à especulação financeira.
496 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O texto da Exposição de Motivos n° 37, que integra a Mensagem n°


1934 do Poder Executivo, de 16 de fevereiro de 1995, que encaminhou
a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 55, evidencia de for-
ma cristalina a necessidade de reforma da Constituição de 1988 para
viabilizar a retomada do desenvolvimento econômico e social do país.
Apesar da relativa demora na percepção quanto aos efeitos danosos do

4
“MENSAGEM 193, DE 16 DE FEVEREIRO DE 1995, DO PODER EXECUTIVO
Senhores Membros do Congresso Nacional,
......................................................................................................................................
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS N° 37, DE 16 DE FEVEREIRO DE 1995, ...
Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
..........................................................................................................................
2. A proposta tenciona eliminar a distinção entre empresa brasileira e empresa
brasileira de capital nacional e o tratamento preferencial concedida (sic) a
esta última. Para tanto, firma-se conceito de empresa brasileira como aquela
constituída sob as leis brasileiras e com sede e administração no país.
3. A discriminação ao capital estrangeiro perdeu sentido no contexto de eli-
minação das reservas de mercado, maior inter-relação entre as economias e
necessidades de atrair capitais estrangeiros para complementar a poupança
interna. Com relação ao tratamento preferencial nas aquisições de bens e
serviços por parte do Poder Público, a proposta corrige imperfeição do tex-
to constitucional, passando a favorecer os produtos e serviços prestados no
país, ao invés de empresas classificadas segundo a origem do capital. Com
isso, pretende-se restabelecer o importante instrumento de compra do Es-
tado para estimular a produção, emprego e renda no país. É digno de nota
que a proposta vincula o tratamento preferencial conferido aos produtos e
serviços produzidos internacionalmente à igualdade de condições (preços,
qualidade, prazos, etc.) entre os concorrentes.
4. Uma vez eliminado o conceito de empresa brasileira de capital nacional,
faz-se necessário proceder o ajuste no inciso X do art. 170, conforme prevê
a emenda apresentada, que mantém, entretanto, o tratamento favorecido a
empresas de pequeno porte.
.........................................................................................................................
6. Com o mesmo escopo, a emenda efetua alteração no § 1°, art. 176, de for-
ma a eliminar a exclusividade da pesquisa e lavra de recursos minerais e o
aproveitamento de potencias de energia hidráulica por empresa brasileira de
capital nacional. Pretende-se, assim,viabilizar a atração de investimentos
estrangeiros para o setor de mineração e energia elétrica,mantido o controle
da União mediante autorização ou concessão.
7. Julgamos, senhor presidente, que as alterações propostas irão ao encontro do
projeto de desenvolvimento econômico e social propugnado por Vossa Ex-
celência manifestando-se compatíveis com a construção de uma economia
moderna, dinâmica e competitiva.
Respeitosamente, Nelson Jobim, ministro de Estado da Justiça; Pedro Malan, mi-
nistro de Estado da Fazenda; José Serra, ministro de Estado de Planejamento e
Orçamento; Reinhold Stephanes, ministro de Estado da Previdência e Assistência
Social; Luís Carlos Bresser Pereira, ministro de Estado da Administração e Refor-
ma do Estado; e Raimundo Britto, ministro de Estado de Minas e Energia.”
5
Publicada no Diário do Congresso Nacional de 15 de março de 1995, Seção D, p.
3.245 - 3.246.
A prestação do serviço público de energia elétrica na Constituição Federal de 1988 –
concepção original, alterações e conseqüências 497

art. 171, que extrapolaram o setor elétrico para afetar toda a economia
brasileira, a Emenda Constitucional n° 6 foi promulgada em 15 de
agosto de 1995.
Observa-se que os possíveis efeitos negativos que o art. 171 teria sobre
o fluxo de investimentos dirigidos para a geração de energia elétrica e,
portanto, a contribuição desse dispositivo para a ocorrência do racio-
namento em 2001, foi praticamente eliminada em função da anterior-
mente analisada demora na regulamentação do parágrafo único do art.
175 da Constituição.
Contudo, a alteração do texto constitucional introduzida a partir da
promulgação da Emenda n° 6 possibilitou, já nos seus primeiros anos
de vigência, significativo aporte de recursos estrangeiros para o setor
elétrico nacional, especificamente nos processos de privatização de
concessionárias federais e estaduais de distribuição de energia elétrica
como a Light S/A, que era uma subsidiária da Eletrobrás, e a Eletro-
paulo Metropolitana – Eletricidade de São Paulo S/A, que pertencia
ao governo do Estado de São Paulo.
O fato de a privatização do setor elétrico nacional ter sido iniciada
pelas empresas distribuidoras de energia elétrica, a maioria estatais
estaduais que freqüentemente deixavam de pagar pela energia que re-
cebiam das geradoras, possibilitou o restabelecimento da adimplência
nos contratos de suprimento de energia elétrica, fato essencial para
que os setores de geração e de transmissão de energia elétrica obtives-
sem recursos essenciais para investirem na sua expansão.
Destaque-se que muitas estatais estaduais de distribuição que não fo-
ram privatizadas, tais como a Companhia de Eletricidade do Amapá
(CEA), a Companhia Energética de Roraima (CER), a Companhia
Energética do Piauí (Cepisa), a Companhia Energética de Alagoas
(Ceal), a Centrais Elétricas de Rondônia (Ceron), a Companhia de
Eletricidade do Acre (Eletroacre), e a Boa Vista Energia S/A (Bo-
vesa), permaneceram com os vícios das antigas estatais estaduais,
acumularam enormes dívidas relativas ao suprimento de energia, pos-
suem níveis de perdas comerciais de energia elétrica (furto) altíssimos
e terminaram por serem federalizadas, isto é, absorvidas pela Eletro-
brás, ou estão em processo de federalização.
Portanto, não obstante as críticas ao açodamento do processo de pri-
vatização no setor elétrico, é inegável que ele atraiu novos recursos
para o setor e para o país, possibilitando, também, que, na maioria das
hipóteses, a União seja poupada e os acionistas das empresas privati-
498 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

zadas venham a arcar diretamente com os prejuízos causados a essas


empresas por administrações incompetentes.
Outro aspecto, associado a novidades introduzidas na Constituição
Federal de 1988 relativas ao setor elétrico nacional, que, de certa for-
ma, está ligado à Emenda Constitucional nº 6, de 1995, bem como
à atratividade de recursos para investimentos no setor e ao processo
de privatização no setor elétrico, apresentando-se como um problema
ainda a ser equacionado, é a renovação de contratos de concessão de
instalações existentes.

A questão da prorrogação ou renovação de concessões


do setor elétrico

Em 25 de março de 2008, frustrou-se a terceira tentativa de privati-


zação da Companhia Energética de São Paulo (Cesp), pelo governo
do Estado de São Paulo, por falta de depósito das garantias pelas em-
presas pré-qualificadas. A causa apontada foi a constatação de que, até
2015, diversos contratos de concessão de geração e de transmissão de
energia elétrica da empresa chegarão a termo e não há qualquer sina-
lização quanto às regras que se aplicarão ao caso.
Efetivamente o problema tem alcance muito mais amplo. A totalidade
desses contratos de concessão que se encerrarão nos próximos sete
anos estão nas mãos de empresas estatais, e estima-se que somados
representem cerca de dezessete mil MW, no que se refere à capacidade
instalada de geração de energia, e a milhares de quilômetros de linhas
de transmissão em alta tensão.
No caso específico da Cesp, a assinatura do contrato de concessão6
em questão ocorreu apenas em 2004, observando-se, à época, as datas
dos atos originais de outorga das concessões contratadas, eventuais
prorrogações, e o disposto no § 2° do art. 4° da Lei n° 9.0747, de 7 de
julho de 1995, com a redação dada pela Lei nº 10.848, de 15 de março
de 2004.

6
O Contrato de Concessão n° 003/2004, que regula a concessão das instalações de
geração e de transmissão de energia elétrica da Cesp, está disponível na Internet,
no endereço: http://www.aneel.gov.br/aplicacoes/contrato/documentos_aplicacao/
CG0403cesp.pdf, consultado em 26 de maio de 2008.
7
“§ 2º As concessões de geração de energia elétrica anteriores a 11 de dezembro de
2003 terão o prazo necessário à amortização dos investimentos, limitado a 35 (trinta
e cinco) anos, contado da data de assinatura do imprescindível contrato, podendo
ser prorrogado por até 20 (vinte) anos, a critério do Poder concedente, observadas as
condições estabelecidas nos contratos.”
A prestação do serviço público de energia elétrica na Constituição Federal de 1988 –
concepção original, alterações e conseqüências 499

À luz do ordenamento jurídico em vigor, especificamente do ponto


de vista constitucional, a prorrogação dos contratos de concessão está
prevista no parágrafo único do art. 175, e deve ser feita em conformi-
dade com o que estabelece a legislação ordinária. Ressalte-se que a
Constituição não se refere a prorrogações dos contratos de concessão.
Na mesma linha, o § 2° do art. 4º da Lei n° 9.074, de 1995, admite a
prorrogação do contrato de concessão por vinte anos. Subentende-se,
portanto, que, após o termo da prorrogação definida na Constituição
e na Lei, novo contrato de concessão deverá ser firmado. Para tanto,
como estabelece o caput do art. 175 da Constituição Federal, sempre
deverá ser realizado um processo licitatório.
Lembrando que à Administração Pública somente é permitido fazer
aquilo que está especificado na lei, a menos que a Constituição seja
alterada, as concessões que já foram prorrogadas, ao término do perí-
odo de prorrogação do respectivo contrato de concessão, deverão ser
objeto de um processo de licitação para o estabelecimento de novo
contrato de concessão.
Como vimos anteriormente, a instabilidade das regras ou a expecta-
tiva de que sejam realizadas alterações nas normas que regem o setor,
aumentam a percepção de risco entre os agentes e provoca uma re-
dução do afluxo de investimentos para o setor, enquanto perdurar a
incerteza. Tal fato, invariavelmente resulta em aumento no risco de
racionamento de energia elétrica, com conseqüências gravíssimas para
todos os setores da economia do país.
Portanto, urge discutir o tema e definir a matéria com a antecedên-
cia necessária para permitir que todos os agentes do setor possam
planejar seus posicionamentos, de acordo com as suas possibilidades.
Um critério isonômico é o que, sem dúvida, melhor atende aos in-
teresses do país.
Atualmente, há artigos que discutem a possibilidade de simples
prorrogação das concessões das empresas estatais, considerando in-
terpretação de que a prestação de serviço público por intermédio de
empresas estatais representaria, na verdade, uma forma de exploração
direta da atividade econômica pelo Poder Público. Se, por hipótese,
essa interpretação fosse considerada plausível, em relação à prestação
do serviço público de energia elétrica, a tese não se aplicaria às conces-
sões que foram outorgadas a empresas estatais estaduais, como a Cesp,
a Cemig Geração e Transmissão S/A ou a Companhia Paranaense
de Energia (Copel), visto que estas empresas não pertencem à esfera
administrativa da União.
500 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Ademais, vale lembrar que, assim como as empresas federais perten-


centes ao grupo Eletrobrás, as supracitadas empresas estatais estadu-
ais possuem acionistas privados e, na hipótese de adotar-se critérios
de prorrogações de concessões diferenciados para essas empresas, os
seus acionistas privados seriam privilegiados, tanto em relação aos
demais cidadãos, quanto comparados aos acionistas das demais em-
presas do setor.
Semelhantemente, no caso da recente tentativa frustrada de privati-
zação da Cesp, especula-se quanto à aplicabilidade de resoluções da
Aneel anteriores à assinatura do contrato de concessão da Cesp, que
ocorreu em 2004, e que, evidentemente, inovou as relações entre a
concessionária e o Poder Público. Lembrando que todo contrato é lei
entre as partes, a validade dessas resoluções deve ser reexaminada à luz
do referido contrato. Não podem contrariar, nem inovar em relação
ao contrato.
De forma geral, observa-se que, na ausência de regras claras em rela-
ção à matéria, as especulações em andamento ora pretendem benefi-
ciar concessionárias estatais, ora privilegiar concessionárias privadas,
numa dicotomia que impõe perdas à credibilidade do setor.
Critérios relativos à prorrogação das concessões estão estabelecidos
no Decreto nº 1.717, de 24 de novembro de 1995. Faz-se necessário,
portanto, discutir e definir como serão conduzidas as renovações dos
contratos de concessão das instalações existentes ao termo da prorro-
gação dos respectivos contratos.
Salvo melhor juízo, as leis em vigor são suficientes e tratam a matéria
adequadamente. É admitida uma única prorrogação do contrato de
concessão, e findo o prazo da prorrogação, realiza-se licitação para a
definição do novo concessionário.
Preferencialmente, a licitação para estabelecimento do novo conces-
sionário deverá prever a indenização definida no art. 35, § 4º, e art. 36
da Lei nº 8.987, de 1995. O critério para outorga da concessão empre-
gado na licitação poderá considerar o menor valor da tarifa do serviço
público a ser prestado ou a maior oferta pela outorga da concessão, ou
uma combinação desses critérios, conforme instituem os incisos I, II,
III e VII do caput do art. 15 da Lei nº 8.987, de 1995.
Buscando empregar no setor relações simples, transparentes e dire-
tas, e, principalmente, associando previsibilidade e continuidade no
tratamento da matéria, entendemos, numa primeira análise, que as
licitações para definição dos novos concessionários para operar insta-
A prestação do serviço público de energia elétrica na Constituição Federal de 1988 –
concepção original, alterações e conseqüências 501

lações existentes de geração e transmissão, devem empregar o critério


de menor tarifa pela prestação do serviço, como ocorre atualmente.
Nessa hipótese, as tarifas de prestação dos serviços de geração e de
transmissão de energia elétrica decorrentes das novas licitações de
concessão para exploração das instalações existentes seriam bastan-
te reduzidas, muito próximas dos custos de operação e manutenção
dessas instalações, o que seria ótimo para contrabalançar os crescentes
custos dos empreendimentos associados à expansão da geração e da
transmissão do setor de energia elétrica nacional.
Quanto às futuras licitações para definição de novos concessionários
para exploração de instalações de distribuição, julgamos que deverá
ser utilizado o critério de maior oferta pela outorga, admitindo-se
que a tarifa em vigor, quando da licitação, seria a tarifa de equilíbrio,
mantidos os atuais critérios de reajuste e revisão de tarifas das conces-
sionárias de distribuição de energia elétrica, preservando-se portanto,
basicamente, o mesmo formato adotado como nas licitações de distri-
buidoras anteriormente.
Entendemos, portanto, que não há necessidade da realização de sig-
nificativo esforço legislativo sobre o assunto. Um decreto nos moldes
do Decreto nº 1.717, de 24 de novembro de 1995, que regulamentou
a prorrogação dos contratos de concessão, seria suficiente.
Contrariamente a essa linha de pensamento, poderia ser argumentado
que uma lei conferiria maior estabilidade à questão, porém, impende
lembrar que, mantidas as condições atuais de irrestritas possibilidades
de emissão de medidas provisórias pelo Poder Executivo, a referida
lei poderia ser alterada a qualquer momento pelo presidente da Re-
pública, praticamente tão rapidamente quanto poderia ser alterado o
decreto que propugnamos. Ademais, a lei nova não poderia modificar
os contratos de concessão em vigor, criando a possibilidade de nova
prorrogação ou alterando os prazos definidos, em função do que esta-
belece o art. 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal8.
Assim, a publicação de um decreto esclarecendo a renovação das con-
cessões para exploração de instalações existentes de geração, trans-
missão e distribuição, empregando os critérios que sugerimos acima
reduziria as especulações relativas ao tema, que vêm perturbando a
harmonia do funcionamento do setor elétrico nacional, e forneceria a

8 “XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a


coisa julgada;”
502 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

previsibilidade que o setor requer, com agilidade, e em estrita obser-


vância às leis que regem a matéria.

Conclusões

Como reflexo de um período de transição democrática e de grandes


dificuldades econômicas em que o país se encontrava em1988, quando
realizou a Assembléia Constituinte, o texto constitucional resultante
adotou, originalmente, uma lógica econômica capitalista atenuada por
forte atuação do Estado na economia, com foco no protecionismo ao
capital nacional, e certa xenofobia, aliada a um enfoque assistencialista
na busca da redução das desigualdades sociais e regionais.
Tal filosofia, no curto prazo, resultou no aumento dos gastos do go-
verno, em maiores dificuldades econômicas para o país e na redução
da sua competitividade no plano econômico mundial, evidenciando a
necessidade de modernização da estrutura do Estado e de revisão da
forma e da intensidade de sua intervenção na sociedade, resultando
num número significativo de alterações no texto da Lei Maior que,
até o momento da elaboração do presente trabalho, somam cinqüenta
e seis emendas constitucionais.
Especificamente em relação ao setor elétrico brasileiro, a filosofia ado-
tada na Constituição de 1988 para exploração dos serviços e instala-
ções de energia elétrica sofreu pequenas porém significativas alterações
que apresentaram importantes reflexos na legislação infraconstitucio-
nal que rege o setor. Apesar de, num primeiro momento, as alterações
introduzidas na legislação do setor, a partir da Emenda Constitucio-
nal nº 6, não terem sido capazes de evitar o desastroso racionamento
de energia elétrica ocorrido em 2001, possibilitaram que o setor, na
atualidade, apresente-se como o setor de infraestrutura brasileiro que
possui um dos mais estáveis marcos regulatórios e, conseqüentemen-
te, segundo diversos analistas, reúne melhores perspectivas de atrair
investimentos de longo prazo, especialmente, considerando a recente
conquista do almejado nível de investimento (investment grade) para a
classificação do risco soberano do Brasil pelas agências internacionais
de análise de risco de investimentos.
A experiência demonstra de forma inequívoca que a instabilidade das
regras ou a expectativa de que sejam realizadas alterações nas normas
que regem o setor elétrico nacional, aumenta a percepção de risco en-
tre os agentes e provoca uma redução do afluxo de investimentos para
o setor, enquanto perdurar a incerteza relativa ao marco regulatório.
A prestação do serviço público de energia elétrica na Constituição Federal de 1988 –
concepção original, alterações e conseqüências 503

Tal fato, invariavelmente, resulta em aumento no risco de raciona-


mento de energia elétrica, com conseqüências gravíssimas para todos
os setores da economia do país. Portanto, as incertezas regulatórias
devem ser afastadas o mais rapidamente possível.
Por fim, destacam-se dois importantes desafios normativos que o setor
deve enfrentar no curto prazo. Felizmente, as soluções para esses desa-
fios não demandam qualquer intervenção na Constituição Federal.
Inicialmente, é preciso concluir os trabalhos de consolidação das leis
do setor elétrico nacional, o que possibilitará reunir numa única nor-
ma disposições atualmente dispersas, permitindo a revogação de apro-
ximadamente duzentas leis.
Adicionalmente, é necessário definir, o mais rapidamente possível, os
critérios que deverão ser empregados para as renovações das conces-
sões cujos contratos vencerão nos próximos anos.

Bibliografia

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cional de 5 de outubro de 1988 com as alterações adotadas pelas Emendas Cons-
titucionais de nº 1, de 1992, a 52, de 2006, e pelas Emendas Constitucionais
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estatais e contratos de concessão: uma equação não bem resolvida no direito brasileiro –
reflexos possíveis na prorrogação das outorgas. IFE n.º 2.250, Rio de Janeiro, 28 de
abril de 2008.
LOUREIRO, Luis Gustavo Kaercher e RODRIGUES, Itiberê de Oliveira.
Que papel cabe às empresas estatais no setor elétrico brasileiro? Uma perspectiva de
Direito Constitucional. II Seminário internacional - Reestruturação e regulação
do setor de energia elétrica e gás natural. Grupo de Estudos do Setor Elétrico
(Gesel) – Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Setembro de 2007.
Função social e direito de propriedade
517

Uma análise econômica da


função social da propriedade
na Constituição brasileira
César C. A. Mattos

Marx (...) não entendeu que a propriedade formal


não constitui simplesmente um instrumento de apro-
priação, mas o meio de motivar as pessoas a criarem
um valor real adicional e utilizável.
Hernando de Soto em The mystery of capital

I. Função social da propriedade: histórico e a


Constituição Federal de 1988

A primeira vez que apareceu em uma Constituição brasileira disposi-


tivo conectando o Direito de Propriedade (DP) ao que seria a Função
Social da Propriedade (FSP) foi na Carta Magna de 1934. Afirmava
o seu art. 113 que o DP não poderia ser exercido contra o interesse so-
cial ou coletivo. Três anos depois, a Constituição do Estado Novo, de
1937, removeu tal conexão, que iria retornar apenas na Carta de 1946.
No § 16 do art. 141 desta última, ressalva-se o DP com a possibili-
dade de desapropriação em função do interesse social, e o art. 147 vai
mais além, destacando que “o uso da propriedade será condicionado
ao bem-estar social”, sendo que “a lei poderá, com observância do dis-
posto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade,
com igual oportunidade para todos”.
A menção explícita à FSP estréia, curiosamente, na Emenda Consti-
tucional (EC) nº 10, de 19 de novembro de 1964, à Constituição de
1946, antes de completado o primeiro ano do regime militar. A Cons-
tituição de 1967 mantém a FSP1, elevando-a à categoria de princípio

1
Ainda mais curioso foi o Decreto-Lei nº 1.164 de 1971, que estendeu a jurisdição
federal para as terras nas faixas de até 100 Km em ambos os lados das estradas fede-
rais em construção ou ainda em planejamento na Amazônia. Isso demonstra que a
agressão aos DPs pode emergir de governos dos mais variados matizes ideológicos.
518 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

da ordem econômica, definindo como sua finalidade a realização da


“justiça social”.
Mas é na atual Constituição Federal (CF), promulgada em 1988, que a
idéia de FSP ganha amplo destaque, especialmente no que diz respeito à
propriedade da terra, sujeita à desapropriação para fins de reforma agrária.
Podemos segmentar os dispositivos relativos à FSP na Constituição em
quatro blocos: a) os dispositivos genéricos2; b) os relativos à FSP em imó-
veis urbanos3; c) os relativos à FSP em imóveis rurais4; e d) os relativos à
FSP em empresas estatais5.
Os dispositivos genéricos não delimitam o tipo de propriedade a
que se referem, o que pode ensejar uma interpretação extensiva a
qualquer tipo de propriedade6. Já os outros blocos são direcionados
expressamente a tipos específicos de propriedade. Apesar de a FSP
poder ser aplicada a qualquer tipo de propriedade7, não há dúvida,

2
Art. 5º, incisos XXIII e XXIV, e art. 170 inciso III.
3
Art. 182, §§ 2o e 4o.
4
Arts. 184 a 186.
5
Art. 173, § 1º, inciso I.
6
Uma legislação importante contendo menção à FSP, também de forma genérica, é
o Código Civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (§ 1º do art. 1.228).
7
O art. 2º da Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, por exemplo, descreve si-
tuações tidas como de interesse social as quais podem ser diretamente conectadas à
FSP, quando envolver o DP. Em especial, destaca em seu inciso I “o aproveitamento
de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de
habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir
por seu destino econômico”, o que pode ser entendido como alcançando os proces-
sos produtivos de uma forma geral. O inciso VII do mesmo art. 2º inclui como de
interesse social “a proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água
e de reservas florestais”, o que denota a conexão da FSP com o meio ambiente. O
inciso VIII (incluído pela Lei nº 6.513, de 20 de dezembro de 1977) incluiria mes-
mo áreas apropriadas ao turismo. Mesquita (2007) inclui ainda mais duas leis que
sofreriam influência da FSP. Primeiro, a Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 prevê o
licenciamento de patentes quando não houver exploração de seu objeto em território
nacional, o que constituiria, nesse caso, o cumprimento da FSP. Ou seja, o DP sobre
a patente pode ser constrangido nesse caso. Segundo, o autor destaca que, mesmo as
empresas não sendo bens per se, poderiam se encaixar no conceito constitucional de
propriedade. Conforme o parágrafo único do art. 116 e o caput do art. 154 da Lei
nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, tanto o acionista controlador como o admi-
nistrador seriam responsáveis pela função social da empresa (ou da propriedade da
empresa). Exemplos possíveis de cumprimento da FSP, conforme Mesquita, seriam
“atender ao mercado consumidor local e dar prioridade de emprego à comunidade
em que se instala”. A questão neste último ponto é por que o atendimento do mer-
cado local e a contratação na região seriam socialmente mais justificáveis?
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
519

como destaca Bastos (2001), de que a CF trata preponderantemente


da propriedade rural8.
Na seção a seguir identificamos, em algumas referências, o que se
entende acerca da FSP na doutrina jurídica brasileira. Na seção III
ressaltamos o papel dos DPs na teoria econômica. Na seção IV faze-
mos uma interpretação econômica da CF e, na seção V, apresentamos
nossas conclusões.

II. A FSP no sistema jurídico brasileiro

Um dos artigos mais citados sobre o tema na literatura jurídica é o de


Comparato (1986). Segundo o autor, a FSP não diz respeito a restrições
ao uso e gozo dos bens próprios ou, de forma equivalente, a limites
negativos aos direitos do proprietário. A FSP está relacionada, sim, a
um poder-dever do proprietário de dar à propriedade um destino deter-
minado, vinculado a um objetivo conectado ao interesse coletivo da so-
ciedade e não unicamente ao interesse individual. Nesse sentido, a FSP
definida na EC nº 10 de 1964 e o “interesse social ou coletivo” da Cons-
tituição de 1934 podem ser tomados como conceitos equivalentes.
A FSP, conforme Comparato (1986), encontra sua gênese na Consti-
tuição Republicana Alemã de Weimar no pós-guerra de 19199, não se
tendo extraído, naquele momento, uma aplicação prática do princípio.
A mesma dificuldade é assinalada pelo autor para a Constituição bra-
sileira de 1967. De qualquer forma, Comparato (1986) aponta como
alvos desejáveis da ação estatal, com base na FSP, a “acumulação par-
ticular de terras agricultáveis para fins de especulação”, a “retenção
de terras públicas do mesmo tipo sem utilização compatível com os
interesses da coletividade” e ainda (e curiosamente) o “entesouramen-
to de metais preciosos”. Conforme o autor e ainda Grau (2006), este
regime jurídico se aplicaria tão somente aos bens de produção e não
aos de consumo, dado que “o ciclo de propriedade” desses últimos se
esgotaria na sua própria fruição.
A acumulação de terras para especulação caracteriza a aplicação mais
usual da FSP, que é a penalização dos proprietários de terras que não

8
Como destaca Mesquita (2007), “historicamente, a preocupação com a função
social (ou bem comum) recaiu sobre os bens imóveis rurais, considerados essenciais
para habitação e sobrevivência. Isso pode ser explicado, em parte, pelo fato de no
começo do século XX a maior parte da população brasileira viver no campo e a
economia ser, desde o início, essencialmente agrária”.
9
Mesquita (2007) identifica na Constituição mexicana de fevereiro de 1917 uma
positivação ainda mais antiga da FSP, ainda que naturalmente menos influente.
520 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

utilizam esse ativo para fins produtivos. Tal penalidade é representada,


no Brasil, pela desapropriação da terra para fins de reforma agrária.
Mesquita (2007) destaca que o objetivo último da FSP seria o que
se costuma nomear como “o bem comum”, o bem-estar comum ou o
interesse social, reconhecendo, por outro lado, que tais conceitos são
“indeterminados”, dependendo “da legislação de cada país e do mo-
mento histórico”. Mesmo Grau (2006) reconhece a indeterminação
do conceito de “justiça social”10.
A tendência mais proeminente da doutrina jurídica na interpretação
da FSP na CF é conferir-lhe uma conotação ideológica de contra-
posição ao liberalismo11. Nessa linha de raciocínio, o liberalismo se
identificaria plenamente com o individualismo, constituindo o DP
um suporte aos processos individuais de maximização dos agentes
econômicos que se encontram e agem, descoordenadamente, na arena
de mercado12.
De outro lado, a FSP seria o suporte do processo de maximização do
bem estar da coletividade, dessa vez induzido pelo Estado. Conforme
autores citados por Grau (2006), a FSP representaria “a superação da
contraposição entre público e privado”, passando a “propriedade... a
ser vista desde uma visão prospectiva comunitária, e não mais sob uma
visão individualista”. Na mesma linha, Militão (2007), citando parecer
de José Gláucio Veiga, destaca: “Na abóbada constitucional a chave

10
Como destaca ainda Mesquita (2007): “O legislador tem se mostrado no míni-
mo ‘inseguro’ quanto à regulamentação da função social. Por vezes, cria ou amplia
aspectos não previstos explicitamente na Constituição Federal de 1988, e, às vezes,
entende-os inconstitucionais (...) Cunhada a locução função social, plasmada no
texto constitucional, espraiou-se por inúmeros diplomas normativos como uma es-
pécie de redenção de todos os males sociais, sem, contudo, haver diretrizes, coman-
do e sanções. Muitas vezes, apenas se adjetiva determinado instituto ou se lhe impõe
uma genérica função social, sem maiores detalhamentos ou cominações, como se
isso, por si só, fosse suficiente (...) Deve haver segurança jurídica para que se saiba o
que deve ser feito, de que modo, quais as penalidades, inclusive para que haja exigi-
bilidade por parte da coletividade (...) A atribuição desenfreada de ‘funções sociais’
a tudo somente enfraquece o instituto”.
11
O pano de fundo ideológico dessa relativização é bastante claro em Petrucci
(2004): “a concepção da FSP nasceu exatamente em decorrência do desequilíbrio
social causado pelas idéias liberais. Representa, pois, uma contraposição à ordem
liberal, ao Estado mínimo, que apenas assegurava as condições básicas para o fun-
cionamento das regras de mercado, que a tudo proveriam”.
12
Grau (2006) argumenta ainda que a FSP, conforme a ideologia do Estado Liberal,
se constituiria em mera projeção do poder de polícia, o que sugeriria redução do
alcance do conceito. O autor, no entanto, não cita qual ou quais autores ideólogos
do Estado liberal, defenderiam realmente tal visão, traço comum aos críticos do
liberalismo.
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
521

que sustenta esta cúpula é a propriedade privada, que dia a dia torna-
se menos individual e mais social, menos privada e mais associativa”.
Esta interpretação ocorreria em virtude do objetivo considerado fun-
damental da FSP, apesar de não explicitamente colocado nos dispo-
sitivos que tratam diretamente do tema na CF: a justiça social. Esta
interpretação estaria diretamente vinculada à análise sistemática da
CF, conjugando os dispositivos diretamente ligados à FSP a outros
identificados ao tema.
Silva (2001) destaca que os “conservadores da Constituinte”, ao colo-
car a propriedade privada como um dos princípios constitucionais da
ordem econômica, teriam relativizado o próprio conceito de proprie-
dade, submetendo-o aos ditames da justiça social. Em Bandeira de
Mello (1987), verificamos que tal entendimento acerca da submissão
do DP à justiça social já se encontrava na doutrina jurídica anterior à
CF de 1988. Na verdade, a busca da “justiça social”, na doutrina jurí-
dica do país, pode ser quase que perfeitamente traduzida como a busca
da melhoria da distribuição de renda. Tal equivalência é clara em Grau
(2006)13 e Sundfeld (1987).
Parte da doutrina jurídica brasileira defende que a FSP estaria em
patamar hierárquico superior ao do próprio direito da propriedade
na CF, sendo, conforme Grau (2006), a primeira um pressuposto do
segundo. De acordo com Militão (2007),
a função social é intrínseca à propriedade privada”, constituin-
do o próprio “alicerce constitucional do regime jurídico-consti-
tucional da propriedade, estando todos os demais princípios e
regras constitucionais a ele submetidos, inclusive o princípio da
propriedade privada estabelecido no art. 170, II, da Lei Maior
(...) A propriedade privada e a FSP, quando encaradas como
princípios, se postos no mesmo patamar hierárquico, produzem
uma contradição sem solução. Um ou outro assume um caráter
acessório, no nosso entender. Optamos em colocar a FSP como
princípio superior ao da propriedade privada, já que é justamen-
te aquela o núcleo de sustentação e estabilidade da instituição da
propriedade nos dias atuais14.

Uma das fontes internacionais mais citadas na doutrina brasileira de


FSP é Duguit (1975), para quem “a propriedade não é um direito, é

13
Conforme Grau (2006) “Justiça social, inicialmente, quer significar superação das
injustiças na repartição, a nível pessoal, do produto econômico”.
14
Outro autor que defende tal hierarquia é França (1999):“A FSP informa, instrui
e determina o modo de correção jurídica de todo e qualquer princípio e regra ju-
rídica, constitucional ou infraconstitucional, relacionada à instituição jurídica da
propriedade”.
522 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

uma função social”, o que ficou conhecido como a teoria da “proprie-


dade-dever” ou “propriedade-função”. Nesse contexto, a propriedade
passaria a ser um “dever” e não um “direito”.
A “opção” da grande parte da doutrina jurídica nos parece mais uma
preferência ideológica do que uma tentativa de interpretar a real von-
tade do legislador constituinte. Como veremos na seção IV, a FSP
na CF apresenta maior ênfase no objetivo da eficiência econômica e
menos no da eqüidade.

III. O Papel dos Direitos de Propriedade na Economia

Para se analisar a FSP do ponto de vista econômico, é importante


entender como os economistas entendem o DP em geral e qual o seu
papel no bem-estar social.
Miceli (2004) destaca que, tanto na economia como no direito, a pro-
priedade de um ativo qualquer consistiria em uma “cesta de direitos”,
os quais usualmente incluem os direitos do proprietário de I) usar o
ativo, o que compreende o direito de auferir renda do ativo, II) excluir
terceiros de usar o ativo; III) vender o ativo15.
Qual seria o objetivo do Estado em garantir esta “cesta de direitos”,
ou parte dela, aos proprietários? O objetivo fundamental da defesa
desses direitos é criar condições para a maximização da riqueza na
sociedade. Primeiro, ao permitir ao proprietário auferir renda com o
ativo, espera-se que aquele direcione os seus esforços para o uso que
gerar o maior valor possível do produto.
Segundo, ao excluir terceiros do uso do ativo, o proprietário é capaz
de evitar dois problemas. O primeiro problema evitado diz respeito à
chamada “tragédia dos comuns”, a qual constitui a tendência de um
recurso ou ativo cujo acesso seja irrestrito ser explorado de forma ex-
cessiva. Exemplos são a caça e a pesca predatórias. Como os animais
como jacarés, bacalhau e baleias não têm “proprietário” definido, sen-
do “recursos livres”, caçadores e pescadores individualmente acabam
tendo uma propensão a caçar e pescar em uma intensidade superior
à capacidade de reprodução das espécies. A existência de DPs bem

15
Ver também Shavell (2004) e Cooter e Ulen (2000) para livros-texto em análise
econômica do direito com capítulos especiais sobre a economia dos direitos de pro-
priedade.
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
523

definidos pode ser uma forma de corrigir este problema16. O segundo


problema evitado é que, quando o Estado garante os DP, o proprietá-
rio pode deslocar tempo e recursos, que seriam despendidos em evitar
que invasores e ladrões se apropriem dos frutos de sua atividade, para
se concentrar na devida exploração econômica do ativo.
Enfim, o terceiro direito permite que os ativos possam mudar de mãos,
dos agentes com menor capacidade de criação de valor para os com
maior capacidade, quando a transação ocorrer de forma voluntária en-
tre os agentes (o que pode ocorrer, ou não, se a transação for forçada,
como pela desapropriação17).
Os benefícios da cesta de DPs, no entanto, não são considerados de
forma absoluta pelos economistas. O limite de garantia desses direitos
pelo Estado deve estar, conforme Miceli (2004), “no ponto onde eles
(os direitos) se tornam incompatíveis com os direitos de outros indi-
víduos”. Na linguagem do economista, “direitos incompatíveis seriam
tão-somente uma outra forma de dizer ‘externalidades’, e as leis em
geral deverão limitar os DPs na presença de externalidades”. O exem-
plo mais clássico de um uso de ativo que gera externalidades é quando
o manejo da terra ou a atividade industrial causam danos ao meio
ambiente. Nesse caso, a “externalidade” é representada pelos custos
inflingidos ao resto da população, que terá o seu meio ambiente de-
teriorado. Uma das principais formas de corrigir o problema é através
da implementação de políticas que induzam ou mesmo obriguem o
proprietário a “internalizar” o custo gerado por essa externalidade.
Note-se que esta linha de atuação do Estado pode ser tida como uma
forma de interpretação da FSP que não destoaria, mesmo, do que está
inscrito na CF, como veremos adiante. Ademais, fica claro que a teoria
econômica não considera o DP como algo absoluto. Ela o trata como
um instrumento para maximizar o bem-estar coletivo da sociedade,

16
Ver Mankiw (2006). O autor indaga por que a vaca não corre o risco de extinção
e vários animais como o elefante correm. A explicação seria que vacas são animais
com DP bem definidos e elefantes não. Uma solução interessante que tem sido dada
ao problema em alguns países africanos é a transformação das reservas onde existem
elefantes em parques privados. Nos EUA, o mesmo problema de caça predatória
ocorreu em função do mercado de peles de castores. Em artigo seminal, Demsetz
(1967) descreve como a definição de direitos de propriedade sobre a caça do animal
resolveu o problema.
17
Este poderá não ser o caso quando o proprietário possuir “preferências subjeti-
vas” em relação ao ativo, descoladas das variáveis de mercado. Para um entendi-
mento deste ponto na análise econômica, ver Miceli (2004). Os teóricos da análise
comportamental do direito e economia chamariam a isto de “efeito status quo”: os
agentes econômicos se importam mais em perder o que possuem do que com o que
deixam de ganhar. Ver Sunstein (2000).
524 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

e não o individual do proprietário. Se ambos os objetivos estiverem


em conflito, o bem-estar social é a prioridade e, para que tal direito
cumpra corretamente o seu papel, a teoria econômica prescreverá a
definição de limites ao seu exercício.
A idéia de busca da “eficiência”, que está por trás da defesa dos DPs
pelos economistas, diz respeito à maximização da renda e/ou riqueza
da sociedade como um todo. Isto implica que não se pode confundir a
defesa do DP pelos economistas com uma alegada defesa irrestrita dos
interesses individuais do proprietário em detrimento dos da socieda-
de, o que constitui uma constante das doutrinas jurídicas.
É importante ainda ressaltar que não obrigatoriamente haverá disso-
ciação entre os interesses individuais e os coletivos, o que vários juris-
tas entendem como a motivação fundamental para uma intervenção
do Estado baseada na FSP18. Na hipótese de ausência das chamadas
“falhas de mercado”19, tende a haver convergência entre os interesses
individuais e coletivos, com o mercado se revelando como o melhor
mecanismo de alocação de recursos no sentido da maximização do
produto da economia (ou da sua maior eficiência).
A dicotomia relevante, de qualquer forma, recai sobre o convencional
trade-off entre eficiência e distribuição de renda, assim colocado por
um dos livros-texto de introdução à economia mais utilizados:
Quando o governo redistribui renda dos ricos para os pobres,
reduz a recompensa pelo trabalho árduo; com isso, as pessoas
trabalham menos e produzem menos bens e serviços. Em outras
palavras, quando o governo tenta cortar o bolo econômico em
fatias mais iguais, o bolo diminui de tamanho.20

Isso implica que medidas de redistribuição de renda podem apresen-


tar um custo não negligenciável em termos de perda do produto da

18
Esta dissociação geraria inclusive uma dicotomia realçada por Grau (2006) entre a
propriedade dotada de função social e a propriedade dotada de função individual.
19
Já na presença de falhas de mercado como externalidades, bens públicos e poder
de mercado, por exemplo, os interesses coletivos e individuais tendem a divergir
dentro do próprio mecanismo de mercado. A depender da eficácia da ação do Esta-
do para corrigir tais falhas (ou seja, da existência das chamadas “falhas de Estado”),
a intervenção do Estado torna-se desejável. Nesse caso, no entanto, o objetivo é
aumentar a eficiência (ou ampliar o produto total) da economia e não redistribuir
renda como se almeja com a FSP.
20
Note-se que este trade-off entre distribuição e crescimento não é um consenso
na teoria econômica. Economistas de linha mais neoclássica têm uma propensão
maior a acreditar que “não existe almoço de graça” e uma melhor distribuição de
renda apenas pode ser obtida com sacrifício de produto. Economistas de linha mais
keynesiana, ou até kaleckiana, relativizam este trade-off.
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
525

economia. É certo que as sociedades em geral possuem uma prefe-


rência por distribuições de renda mais igualitárias. Certamente que,
havendo tal preferência da sociedade por uma distribuição de renda
mais equânime, tal preferência deve ser comparada também à prefe-
rência da mesma sociedade por uma maior renda. Tudo dependerá de
o quanto a sociedade está disposta a sacrificar em termos de produto
para melhorar sua distribuição de renda.
De Soto (2000) destaca a importância dos DPs para fazer com que
os ativos sejam capazes de gerar riqueza nas economias capitalistas.
O fato de os países da América Latina, África, Ásia e Oriente Mé-
dio apresentarem dificuldades em construir mecanismos adequados
de garantia de DPs, com a vigência de uma série de sistemas infor-
mais menos eficientes, torna aquela incapacidade de os ativos gerarem
riqueza ainda mais grave. Mais do que isso, a questão principal do
desenvolvimento nesses países, para o autor, não seria a quantidade de
capital existente, inclusive nas mãos dos mais pobres, mas sim a limi-
tada segurança oferecida por esse capital para a realização de ativida-
des produtivas e transações econômicas que poderiam produzir mais
capital, fazendo crescer a economia. Segundo o autor, nesses países
os pobres (...) mantêm recursos em formas defeituosas: casas com-
pradas em terras cujos DPs não são adequadamente registrados,
negócios com responsabilidade indefinida, indústrias localizadas
onde financiadores e investidores não podem vê-las. Dado que
os direitos a essas posses não são adequadamente documentados,
tais ativos não podem ser transformados prontamente em capital,
não podem ser comercializados fora de círculos pessoais muito
estreitos nos quais as pessoas se conhecem e confiam entre si, não
podem ser utilizados como colaterais para um empréstimo e nem
como uma participação em um investimento.

Essa seria, na verdade, a grande diferença em relação aos países de-


senvolvidos:
No ocidente, em contraste, todo pedaço de terra, todo prédio,
todo equipamento, ou loja de estoques é representada em um
documento de propriedade que é o sinal visível de um vasto
processo invisível que conecta todos estes ativos com o resto da
economia. Graças a este processo de representação, os ativos po-
dem levar uma vida invisível e paralela junto à sua existência ma-
terial. Eles podem ser utilizados como colaterais em operações
de crédito. A fonte mais importante de financiamento de novos
negócios nos EUA é uma hipoteca da casa do empreendedor.
Tais ativos podem prover uma relação com a história de crédito
do proprietário, um endereço em que ele pode ser cobrado por
dívidas e impostos, a base para a criação de utilidades públicas
confiáveis e universais, e um fundamento para a criação de um
526 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

mercado de títulos (como os títulos de hipotecas) que podem


ser redescontados e vendidos nos mercados secundários. Por este
processo, os países do ocidente conseguem injetar vida nos ati-
vos, fazendo-os capazes de gerar mais capital.

O problema de certas aplicações da FSP, como no caso da reforma


agrária, é que a estrutura do DP da economia se enfraquece, com-
prometendo os ganhos de eficiência a ele associados e, especialmente,
reduzindo os incentivos para investir.

IV. Uma interpretação econômica da função social da


propriedade na Constituição Federal

A seguir, apresentamos uma análise econômica dos dispositivos da CF


que tratam da FSP nos itens “b”, “c” e “d”, citados na seção I.

IV.1. FSP nos imóveis rurais

FSP e aproveitamento racional e adequado da terra

O inciso I do art. 186 da CF requer o “aproveitamento racional e ade-


quado” da terra para efeito de cumprimento da FSP. A Lei nº 8.629,
de 1993, definiu propriedade produtiva como aquela na qual o grau de
utilização seja igual ou superior a 80% e o grau de eficiência na explo-
ração seja igual ou superior a 100%, ambos decorrentes de fórmulas de
cálculo constantes do texto legal21.
Isso implica não apenas que deve haver atividade produtiva na terra,
mas também que a produtividade da exploração deve ser minima-
mente compatível ao estado da técnica. Naturalmente, este dispositivo
se reveste de um objetivo basicamente econômico (e não social): a
produção agrícola deve ocorrer da forma mais eficiente possível. Os
insumos disponíveis, incluindo terra, trabalhadores e equipamentos,
devem ser combinados de forma ótima, dada a tecnologia e os seus
preços relativos, de forma a viabilizar a maior quantidade possível de
produto. O “aproveitamento racional e adequado” incluiria a própria
escolha do produto agrícola final que obtivesse o maior rendimento
possível naquela terra, considerados ainda os preços finais do conjunto
de produtos agrícolas possíveis de serem explorados. Daí a ressalva em
relação à plena consistência do inciso I do art. 186 da Lei nº 8.629 com

21
Não se esclarece se 100% se refere à eficiência média, o que deve ser o caso. Não
faria sentido mais de 100% sobre a eficiência máxima.
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
527

a racionalidade microeconômica apontada por Vera (2006). Como


há outros insumos envolvidos na atividade agrícola (assim como em
qualquer outra), a legislação não deveria conceituar produtividade ba-
seada tão-somente em um insumo (terra), mas no conjunto.
Para viabilizar uma análise gráfica da microeconomia convencional de
acordo com o que estaria mais próximo ao “aproveitamento racional
e adequado” da terra previsto na CF, suponhamos a existência de dois
insumos, terra e trabalho. Vamos assumir que o produto agrícola final
mais adequado e seu respectivo volume de produção Q* já tenham
sido escolhidos. Este produto pode ser produzido por diversas combi-
nações dos insumos terra (T) e trabalho (L), com preços por unidade
de, respectivamente, pt e pl..
No gráfico abaixo, os eixos representam a quantidade dos dois in-
sumos, terra (eixo vertical) e trabalho (eixo horizontal). A linha reta
com inclinação negativa é a de isocusto, representando o locus de com-
binações dos dois insumos nos quais o empresário agrícola tem um
mesmo custo “C”. A isoquanta representa o locus de pontos nos quais
a combinação de insumos no gráfico resulta em um valor igual da
produção agrícola, Q*.
Assuma-se que o empresário dispõe de uma quantidade de terra T* e
que ele deseja produzir uma quantidade Q* do produto escolhido. O
“aproveitamento racional e adequado” prescrito pela teoria econômica
pode ser descrito da seguinte forma:
• partindo da quantidade de terra disponível T* no eixo vertical, tra-
çamos uma linha horizontal até a isoquanta que representa o volu-
me de produção escolhida Q* no ponto “A”;
• a quantidade de trabalho mínima requerida para combinar com T*
de forma a produzir Q* é L*. Podemos avaliar o “aproveitamen-
to racional e adequado” da quantidade de terra T* de duas formas
complementares, uma o espelho (ou o dual) da outra. Primeiro,
dado que o empresário produz Q*, ele não utiliza mais do que L* de
trabalhadores22. Segundo, dado que o empresário utiliza T* de terra
e L* de trabalhadores, ele não produz menos do que Q*23.
A produção no ponto “A” do gráfico, que utiliza L* de trabalho e T*
de terra, é “racional e adequada”. O comportamento do produtor é

Contratará exatamente L* pois, por construção, a tecnologia disponível não per-


22

mite que se produza Q* com T* e menos que L* trabalhadores.


Produzirá exatamente Q* pois, por construção, a tecnologia não permite que, com
23

T* de terra e L* de trabalhadores, se produza mais do que Q* de produto.


528 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

maximizador de lucro do produto escolhido, dada a quantidade dis-


ponível de terra, T*24 25.

T* A

L* L

Em síntese, o critério inscrito no inciso I do art. 186 pode ser interpre-


tado de forma consistente com o critério de eficiência microeconômica
convencional, sendo que a Lei 8.629, de 1993, que conceitua produ-
tividade para efeitos daquele dispositivo, poderia ser aperfeiçoada no
sentido de incluir o conjunto de insumos (e não apenas terra). Como
destaca Vera (2006), “a compreensão limitada da lei do conceito de
produtividade tem levado os agentes públicos a taxarem propriedades
de produtivas ou improdutivas, muitas vezes equivocadamente”.
Ademais, a teoria econômica preconiza que grande parte dos agentes eco-
nômicos agirá naturalmente respeitando tais postulados de racionalidade
econômica, o que implica que a intervenção estatal de forma a garantir a
FSP se aplicaria apenas às exceções nesse padrão de comportamento.

24
Naturalmente, o “aproveitamento racional e adequado” não necessariamente será,
na prática, tão estrito. Pode-se, por exemplo, definir “aproveitamento racional e
adequado” como a utilização de, no máximo, uma quantidade de trabalho δL*, a
qual combinada com T* produz Q*, sendo δ maior, mas razoavelmente próximo de
1. Por exemplo, podemos pensar em δ=1,05, o que implica que o produtor não uti-
liza mais do que 5% da quantidade de trabalho requerida para produzir Q* a partir
da quantidade de terra T*, dada a tecnologia disponível.
25
Dentro de outra perspectiva, podemos definir “aproveitamento racional e ade-
quado” como a produção de, no mínimo, µQ* a partir de T* e L*, sendo µ menor,
mas razoavelmente próximo a 1. Por exemplo, podemos pensar em µ=0,95, o que
implica que o produtor não produz menos do que 5% da maior quantidade de pro-
duto possível, tendo disponíveis T* de terra e L* de trabalho.
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
529

FSP e meio ambiente

O inciso II do art. 186 indica que a FSP também diz respeito a uma
utilização da terra de forma sustentável e consistente a um meio am-
biente preservado26. Este critério também pode ser avaliado dentro da
perspectiva da teoria econômica.
Primeiro, os eventuais custos ambientais gerados por uma atividade
econômica qualquer, inclusive a agricultura, apenas podem ser jus-
tificáveis na medida em que sejam compensados pelos benefícios da
mesma atividade. Suponha-se que uma determinada produção agrí-
cola gere danos ao meio ambiente, o que ocorre de forma mais evi-
dente, por exemplo, quando é necessária a utilização de determinados
defensivos agrícolas ou quando ocorre a prática de queimadas. Assim,
a melhoria da qualidade do meio ambiente apenas poderá ser obtida
pela redução da produção agrícola ou pelo aumento do custo de pro-
dução resultante do uso de técnicas mais amigáveis, do ponto de vista
do meio ambiente.
A teoria econômica indica que, do ponto de vista social, o incremen-
to da produção agrícola apenas é compensador até o ponto em que
ocorre a igualdade entre o benefício marginal social (do aumento da
produção) e o custo marginal social (resultante da soma dos custos de
produção e ambientais). Suponha que a quantidade na qual isto ocorre
é Q*. Nesse contexto, pelo critério da “utilização adequada dos recur-
sos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente” do inciso II
do art. 186 da CF, a produção agrícola em um determinado pedaço de
terra respeitará a FSP quando for igual ou inferior a Q*. O problema
é que, usualmente, este ponto de ótimo social não é o mesmo daquele
que maximiza os lucros dos agricultores. A produção que maximiza os
lucros tende a ser superior a Q*, pois na ótica da maximização do pro-
dutor não se incorporam os custos marginais ambientais, mas apenas
os custos de produção privados. Ou seja, contrariamente ao primeiro
critério da FSP, a maior parte dos produtores rurais muito provavel-
mente não produzirão voluntariamente uma quantidade compatível
com o ótimo social.
Este resultado está ligado a um típico problema de externalidades ne-
gativas não internalizadas pelo produtor. A produção de um agricul-
tor gera benefícios muito concentrados para ele próprio, enquanto os

26
Alguns autores como Borges (1998) e Gama (2004) destacam que a FSP abrange
a função ambiental, fazendo sentido até em falar de “função social e ambiental da
propriedade” (FSAP). Com o crescente interesse das sociedades atuais na questão
de meio ambiente, esta faceta da FSP tende a ganhar força.
530 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

danos ambientais são arcados por um conjunto bem maior de indiví-


duos. Utilizando o teorema de Coase27, apenas no caso de os custos de
transação em eventual negociação para a correção dessas externalida-
des entre o produtor agrícola e os agentes prejudicados serem nulos
é que o mercado, por si só, seria um mecanismo satisfatório. Este não
será, evidentemente, o caso mais comum.
O meio ambiente constitui usualmente uma questão de longo prazo.
O cálculo de custos e benefícios deve incorporar o futuro, incluindo
o bem-estar das gerações futuras de forma a garantir um crescimento
sustentável. Assim, caberia maximizar o valor presente da diferença
entre benefícios e custos da produção agrícola no presente e no futuro.

Ou seja, o Estado maximizaria a função de bem-estar , sendo

Bt e Ct, respectivamente, o benefício e o custo da produção agrícola no


período “t”. Ainda na fórmula, “r” é a taxa de desconto intertemporal.
Usualmente, a melhoria do meio ambiente obtida com a redução da
produção agrícola e/ou com o aumento de seus custos gera benefícios
proporcionalmente maiores nos períodos futuros e sacrifícios propor-
cionalmente maiores no presente. Assim, para valores de “t” menores,
os valores de “Ct” são maiores e os de “Bt” menores, e vice-versa. Nesse
contexto, a incorporação do futuro implicará uma produção agrícola
socialmente ótima ainda menor que aquela obtida se considerássemos
apenas o bem-estar social no presente (Q* será menor) e/ou custos de
produção superiores que reflitam a necessidade de reduzir o dano ao
meio ambiente a partir de determinada produção agrícola.
Este objetivo, no entanto, encontra-se, na prática no Brasil, em confli-
to com o anterior. Como mostram Alston, Libecap e Mueller (1999),
a aplicação, pelo Incra, do conceito de uso racional e adequado na
Amazônia tem implicado verificar se o proprietário está com sua terra
desmatada, o que indicaria o propósito de iniciar a produção agrí-
cola28. Isso faz com que os proprietários atuem preventivamente no
sentido de desmatar, de forma a evitar a desapropriação. Invasores de

27
O famoso teorema de Coase (1960) estabelece que a alocação dos DPs, mesmo
com a presença de externalidades, não comprometerá o resultado ótimo do ponto
de vista do bem-estar, caso os custos de transação sejam zero. Ou seja, não havendo
custos de transação para a negociação, a existência de externalidades não alterará o
resultado final da barganha, que será eficiente independente de haver propriedade
privada ou coletiva dos ativos.
28
“A terra com floresta é vista como improdutiva e, portanto, as áreas de floresta das
grandes fazendas são vulneráveis a invasões sob as determinações constitucionais
para a reforma agrária”.
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
531

terra também terão incentivos para realizar desmatamentos, para de-


monstrar ao Incra que darão um uso produtivo à terra invadida. Os
invasores podem ser até compensados por “benfeitorias” que tenham
feito à terra, o que inclui o desmatamento, ampliando naturalmente
o incentivo dessa prática. Isto indica que há casos em que o uso mais
eficiente da terra é a sua não-utilização para agricultura, pecuária ou
mesmo extrativismo. Caberia considerar como “uso produtivo” a pró-
pria preservação da mata na forma como se encontra. Em uma era de
“efeito estufa” e “aquecimento global”, este deveria ser um critério cada
vez mais forte nas avaliações acerca do cumprimento da FSP.
Outra fonte de incentivos ao desmatamento na Amazônia, ressalta-
da pelos autores, é a falta de DPs bem definidos na região. Como os
agentes que correntemente exploram a terra não possuem títulos de
propriedade, sua lógica de exploração será naturalmente de curto pra-
zo. Como, no futuro, tais agentes podem não ser mais os proprietários,
seu horizonte de planejamento naturalmente é curto. Conforme Als-
ton, Libecap e Mueller (1999)29:
Se os DPs à terra fossem respeitados, a incerteza do contro-
le da terra seria reduzida, induzindo os indivíduos a focar nas
opções tanto presentes como futuras de produção, em lugar do
imperativo atual de acelerar a exploração predatória, o que é ca-
racterística de condições competitivas de acesso aberto as quais
tipicamente diminuem os retornos futuros.

Em síntese, o objetivo de preservação do meio ambiente da FSP re-


quer uma ação estatal mais intensa, o que inclui o reforço, e não o
enfraquecimento, dos DPs.

FSP e relações de trabalho

O inciso III do art. 186 da CF diz respeito à observância da legisla-


ção trabalhista. Esta última confere uma nítida preferência do legisla-
dor ao bem-estar do trabalhador relativamente ao empregador rural.
Há, no entanto, grande discussão sobre em que medida a legislação
trabalhista realmente beneficia todos os trabalhadores. O argumento
usual é de que legislações com muitos benefícios oneram o custo da
mão-de-obra, aumentando o desemprego e/ou a informalidade. Nesse
caso, o cumprimento da FSP pela observância da legislação trabalhista
eqüivaleria a beneficiar os trabalhadores correntemente empregados
em detrimento dos desempregados.

Os autores citam outras referências que destacam o papel dos incentivos governa-
29

mentais equivocados para o desmatamento da Amazônia.


532 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Este tipo de afirmação é associado a uma visão neoclássica do funcio-


namento do mercado de trabalho. A visão alternativa, de sabor mais
keynesiano, tende a ser mais cética no que toca a uma eventual relação
negativa entre benefícios trabalhistas (ou salário) e desemprego. O ní-
vel de emprego, segundo essa corrente, seria determinado no mercado
de produto pela demanda agregada da economia e não pelo equilíbrio
de oferta e demanda no mercado de trabalho. Um maior volume de
benefícios ou salários alteraria a distribuição de renda em favor do
empregado, sem efeitos negativos sobre o desemprego. Nesse sentido,
a FSP implicaria mais renda para os trabalhadores empregados, mas
não mais desemprego. Na verdade, alguns economistas vão além, afir-
mando que a redistribuição de renda do empresário para o trabalha-
dor, a qual representaria a concretização da FSP, geraria um aumento
da demanda agregada na economia e, portanto, do próprio emprego.
Além dos trabalhadores empregados, o aumento da demanda benefi-
ciaria os atuais desempregados e até mesmo os empresários, como um
grupo, com maior demanda por seus produtos.
O ponto principal aqui é que o cumprimento da FSP, no que tange à
observância da legislação trabalhista, não obrigatoriamente implicará be-
nefícios para toda a classe trabalhadora. Seus efeitos dependem dos reais
mecanismos básicos de funcionamento do sistema macroeconômico, so-
bre os quais não há um consenso na teoria econômica. É até possível que
uma mesma economia responda ao mesmo impulso de forma consistente
a cada uma dessas visões, a depender do momento. Em períodos de de-
manda estagnada e maior capacidade ociosa, o sistema macroeconômico
tende a se comportar de forma mais próxima à visão Keynesiana, enquan-
to que, quando a demanda está mais aquecida , a economia tende a se
comportar mais proximamente do conceito neoclássico.
Os casos em que se defende doutrinariamente, de forma unânime, a
aplicação deste inciso com maior freqüência corresponde aos casos de
existência de trabalho infantil ou escravo, de insegurança no trabalho
e de atenuação das tensões e conflitos no campo. O trabalho infantil
é definido no inciso XXXIII do art. 5º da Constituição como aquele
realizado por menores de quatorze anos, por menores entre quatorze e
dezesseis anos em condições que não a de aprendiz e por menores de
dezoito anos em trabalhos noturnos, perigosos ou insalubres.
O trabalho escravo é tratado legalmente no art. 149 do Código Penal
Brasileiro. É definido como a redução do trabalhador
a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos
forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio,
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
533

sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador


ou preposto.

Ademais, é caracterizado o trabalho escravo quando o empregador


cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador
ou mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de
documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo
no local de trabalho.
Apesar de não haver previsão legal expressa de desapropriação em ca-
sos de trabalho escravo30 e infantil, autores como Marques (1998) de-
fendem que, nesses casos, o descumprimento da FSP é claro, cabendo
à autoridade o recurso à desapropriação.
Em ambos os casos, entendemos ser meritória, do ponto de vista econô-
mico, a adoção de penalidades, inclusive pela desapropriação. Os traba-
lhadores escravos, por terem seu espaço de escolha fortemente limitado,
e as crianças, por terem uma capacidade de tomar decisões consistentes
inferior, em média, aos adultos, merecem proteção especial.
No caso de trabalho escravo compromete-se a própria idéia mais mo-
derna do que é desenvolvimento31, enquanto no caso do trabalho in-
fantil destrói-se a premissa mais importante da análise econômica,
que é a racionalidade, o que constitui pressuposto básico para a con-
secução do ótimo de bem-estar. Nesse último caso, pode-se também
aduzir o argumento de que, ao reduzir o tempo disponível para a es-
cola, reduz-se a produtividade potencial de longo prazo do indivíduo.
Como o empresário não se importa com o potencial futuro de traba-
lho da criança, do qual usualmente não pode se apropriar (enquan-
to a criança e a sociedade poderão se apropriar), mas sabe que pode
contratá-la para trabalhos simples no presente por salários inferiores
aos do mercado, sua função-objetivo privada poderá estar em claro
conflito com a função-objetivo social.

30
Há uma proposta de emenda à constituição, a PEC 438, de 2001, prevendo expli-
citamente a desapropriação nesse caso de trabalho escravo.
31
O desenvolvimento, como argumenta Sen (2000), pode ser entendido como um
processo de expansão das liberdades reais dos agentes. O crescimento da renda é
uma das formas de ampliar o exercício dessas liberdades por viabilizar uma maior
capacidade de escolher entre cestas de consumo distintas. No entanto, a expansão
das liberdades não depende naturalmente apenas de renda, mas de outras variáveis,
especialmente do direito de ir e vir. O trabalho escravo, dentro desse conceito ex-
pandido de desenvolvimento, seria um forte sinal de subdesenvolvimento, a despeito
da renda. A China seria um dos países em que esta contradição entre renda e liber-
dade seria mais aguda.
534 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A garantia da segurança de trabalho, por seu turno, constitui objetivo a


ser buscado continuamente nas sociedades modernas. A análise econô-
mica do direito, no entanto, indica que pode não ser razoável atribuir
responsabilidade integral ao empregador sobre a segurança do empre-
gado para a obtenção dos melhores resultados do ponto de vista social.
Quando a atividade laboral envolver risco que apenas possa ser mitiga-
do por ações do empregador, e não do empregado, isto faz sentido. Já
quando o empregado também pode contribuir, de forma decisiva, para
o aumento de sua própria segurança no trabalho, no dia-a-dia, o ideal
é a incidência dos custos gerados por acidentes sobre ambos os agentes,
na proporção de suas capacidades relativas de redução do risco32. Sen-
do assim, a aplicação deste tipo de disposição para efeito de FSP deve
considerar qual dos dois agentes, empresário ou trabalhador, estará em
melhores condições de reduzir os riscos da atividade laboral.
No que diz respeito à atenuação de conflitos no campo, é importante
compreender o jogo estratégico entre proprietários e invasores de ter-
ra. Alston, Libecap e Mueller (1999) desenvolvem um modelo teórico
e testam um exercício econométrico para o Brasil sobre o confronto
entre invasores de terra e proprietários. Uma conclusão interessante é
a de que, quanto mais o Incra desapropriar em resposta às invasões,
maior tende a ser o uso estratégico das invasões violentas por parte
dos invasores de terra33. Na verdade, haveria uma relação de causali-
dade em ambas as direções. Primeiro, quanto maior o número de co-
lonos assentados, maior será a expectativa de outros colonos também
serem bem-sucedidos em seus pleitos de desapropriação e reforma
agrária, tornando as invasões dos grupos organizados, como o Movi-
mento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mais freqüentes.
Segundo, quanto maior o volume de conflitos, mais o Incra tende a
agir, especialmente em função de determinações do próprio governo,
desejando atenuar a pressão desses grupos e o custo político e reputa-
cional envolvido. Mais do que isso, conforme os autores, a presença do
Incra aumentaria a expectativa de mortes violentas durante conflitos
no campo em nada menos que 568%!

32
Ver os modelos de cuidado unilateral e bilateral, por exemplo, em Miceli (2004,
capítulo 2).
33
“Na medida em que este padrão de comportamento por parte do Incra se tornou
claro, os trabalhadores sem terra concluíram que melhor do que esperar para serem
assentados em um projeto de colonização formal, o qual pode levar décadas, eles
podem acelerar o processo ao invadir uma fazenda.” Em síntese, tal como qualquer
agente econômico, os sem-terra agem de maneira racional face aos incentivos dados
pelo Estado, exatamente igual a qualquer agente da análise econômica.
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
535

Isso implica que a estratégia do governo de responder ao maior nú-


mero de invasões pelos “sem-terra” com maior velocidade na reforma
agrária tende a gerar maior grau de conflito e violência no campo, e
não o contrário. A dinâmica estratégica do conflito da terra no Brasil
sugere que a utilização da FSP para reforma agrária com o objetivo
final de reduzir a violência no campo tende a ser pouco funcional.
Nesse sentido, uma importante medida do final do governo Fernan-
do Henrique Cardoso foi a vedação, com a MP 2.183, de 2001, da
desapropriação de terras que tivessem sido invadidas. Essa regra, no
entanto, tem sido ignorada pelo governo nos últimos anos34.
Uma forma mais eficiente de lidar com tais conflitos, segundo ainda
os autores, seria a concessão de títulos definitivos de propriedade e
demarcação clara das terras, tanto para os atuais proprietários como
para os assentados nos programas de reforma agrária. O fato de tais
atividades serem custosas e menos compensadoras do ponto de vista
político relativamente às atividades de desapropriação e assentamento
resultariam em uma alocação de recursos financeiros e esforços do In-
cra excessivamente voltados a estas últimas35. Essa dinâmica perversa
geraria um aumento dos conflitos no campo.
A mensagem mais importante aqui é que, se a FSP inclui o objetivo de
redução do nível de conflito no campo, a melhor estratégia de longo
prazo seria caminhar no sentido de aprofundar a definição e seguran-

34
Ver, por exemplo, matéria de Thiago Reis e João Carlos Magalhães de 7/5/2007
na Folha de S.Paulo.
35
De fato, o desempenho do Incra é mais julgado pelo número de desapropriações
realizado do que pela viabilidade econômica dos assentamentos no longo prazo. Este
ponto é explicado pelos autores: “Os investimentos da ação do Estado em títulos de
propriedade definitivos de fazendeiros recém-assentados provavelmente proverão
menos benefícios políticos de curto prazo, e se recursos substanciais fossem remo-
vidos do programa de novos assentamentos na reforma agrária, um conflito político
poderia se desenvolver. Além do mais, há uma relação de dependência com os pe-
quenos fazendeiros sem titulação definitiva que deve beneficiar o Incra e o MST se
os títulos não forem concedidos. Na ausência de títulos de propriedade definitivos
e, por conseguinte, acesso potencial ao mercado de capitais (afinal terra sem título
não serve como colateral), os pequenos fazendeiros permanecem dependentes do
Incra para crédito, outros subsídios para assentados como habitação, alimentação
e plantação, e do MST como um advogado para seus interesses. Como retorno,
esses pequenos fazendeiros doam entre 2 e 5% dos fundos que recebem do Incra
para o MST. O MST, por sua vez, organiza os assentados para pressionar o Incra
para pagar tais subsídios. Uma vez que as propriedades ganhem títulos definitivos,
os assentados não mais têm direito aos mesmos recursos do Incra.” Os autores es-
timavam que menos de 10% dos projetos de assentamento na Amazônia após uma
expropriação possuíam títulos definitivos.
536 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ça dos DPs no campo, e não fragilizá-los, como tem sido feito36. Esta
proposição vale tanto para proprietários antigos quanto para os no-
vos, recentemente assentados, e para grandes e pequenas propriedades,
indistintamente.

FSP e Distribuição dos Benefícios

O inciso IV afirma que o cumprimento da FSP depende de que a


exploração favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
O critério de bem-estar econômico mais aceito é o da maximização da
riqueza na sociedade. É plausível, no entanto, esperar que o comando
constitucional do inciso IV seja interpretado como apresentando um
viés em favor do fator trabalho, independente dos eventuais custos em
termos de perda de excedentes econômicos já discutidos.

IV.2. FSP em Imóveis Urbanos

No caso de imóveis urbanos, o descumprimento da FSP se materia-


liza, conforme os §§ 2º e 4º do art. 182 da CF, quando não houver
edificação no terreno, quando ocorrer subutilização ou não utilização
do imóvel ou não houver atendimento ao plano diretor da cidade.
Além de procurar evitar a ociosidade ou ineficiência (subutilização)
do uso do terreno ou imóvel construído, o conceito de FSP do imóvel
urbano pode se tornar tão amplo quanto as autoridades locais (mesmo
as federais) desejarem, o que implica uma incerteza do DP até maior
do que no caso do imóvel rural.
O chamado Estatuto das Cidades, Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001,
por sua vez, definiu diretrizes gerais que acrescentam a variável “meio am-
biente urbano” ao conceito de FSP aplicado a imóveis urbanos37.
Além da desapropriação, a CF incluiu mais duas penalidades possíveis
para efeito de descumprimento da FSP no imóvel urbano: a obriga-
toriedade de parcelar ou edificar e o aumento do IPTU, que poderá
chegar a 15% do valor do imóvel.

36
Ver a interessante comparação de Mueller (2005) sobre a rápida emergência de
DPs no setor agrícola americano em resposta à escassez de terras gerada pelo choque
demográfico mais precoce e o formato da colonização naquele país relativamente
ao Brasil. Este seria um dos fatores explicativos do desempenho distinto das duas
economias em termos de crescimento e bem-estar no longo prazo.
37
No entanto, conforme Mesquita (2007), o Executivo teria entendido como incons-
titucional o atendimento da legislação ambiental dentro da FSP no meio urbano.
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
537

IV.3. FSP, desapropriações e compensação

A penalidade mais importante pelo descumprimento da FSP no Bra-


sil é a desapropriação mediante compensação financeira. A questão
relevante aqui é em que medida a desapropriação será um remédio
correto e se a compensação é ou não uma medida eficiente.
O art. 184 da CF atribui competência à União para desapropriação
da terra por interesse social. Já o art. 185 proíbe a desapropriação para
pequenas e médias propriedades e propriedades produtivas.
Quando a transferência de um ativo de um agente para o outro é
voluntária, vimos na seção III que tal transação tenderá usualmente
a movimentar recursos de agentes que valoram menos para agentes
que valoram mais o ativo, com ganhos mútuos de comércio, o que
representa um movimento eficiente na economia, na ausência de ex-
ternalidades.
Já quando ocorre uma transferência forçada, como no caso das desa-
propriações para reforma agrária, este ganho mútuo de comércio, e,
portanto, a eficiência do movimento, não é mais garantido. Os indi-
víduos para quem a propriedade é transferida podem ser menos efi-
cientes que os proprietários desapropriados, gerando uma perda de
renda da sociedade. Por exemplo, pode-se perder eficiência quando
ocorre a transferência de uma terra de um fazendeiro que a explora
na fronteira do estado da técnica para pequenos produtores que, ao
perderem escala de produção e também possuírem menos expertise
técnica, passam para uma agricultura de subsistência, o que provavel-
mente implicará redução do produto.
É possível mesmo que produtores menores tenham uma renda menor
nessa mesma terra do que teriam caso fossem nela empregados, se o
diferencial de eficiência for suficientemente elevado. Ou seja, a política
baseada em FSP, visando à redistribuição de terras, pode ser tão ine-
ficiente que, além de o produto total cair, os próprios beneficiários da
transferência estariam melhores se se incorporassem no processo pro-
dutivo não como proprietários, mas como empregados. A redistribuição
de terras, portanto, melhoraria a distribuição de riquezas, e mesmo a de
renda, mas com o custo da perda de produto da economia e, mesmo, da
redução absoluta da renda de todos os agentes econômicos.
Nesse sentido, a proibição de desapropriação de pequenas e médias
propriedades constitui critério que não encontra respaldo na busca da
eficiência econômica, dado haver economias de escala na agricultura
até uma determinada quantidade. É sabido que o chamado “agribu-
538 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

siness”, com marcada presença na atividade exportadora, tende a ser


composto por propriedades que não são pequenas.
O próprio Estatuto da Terra, Lei nº 4.504, de 1964, parece incorporar
a idéia de que a curva de custo médio de produção nas propriedades
agrícolas é aquela típica de livro-texto de microeconomia, em forma
de “U”38, a qual implica que propriedades muito grandes ou muito
pequenas tendem a ser mais ineficientes (no sentido de ter um custo
médio maior) do que propriedades com tamanho mediano. O seu art.
20 coloca entre as áreas prioritárias para as desapropriações (caput)
os minifúndios e latifúndios (inciso I). Os minifúndios são definidos
como “o imóvel rural de área e possibilidades inferiores às da proprie-
dade familiar”, indicando que há um tamanho mínimo de proprie-
dade abaixo do qual há ineficiência na exploração. De outro lado, o
“latifúndio” é definido como o imóvel rural que exceder as dimensões
previstas nas alíneas a e b do inciso V do art. 4º daquela lei39.
A eficiência econômica da desapropriação com transferência da terra
pode ficar ainda mais comprometida se as terras forem coletivizadas,
em caráter permanente, dado o problema da “tragédia dos comuns”
associado aos elevados custos de transação, que comprometem a im-
plementação de “barganhas coasianas” entre tais agentes.
Mas, mesmo a teoria econômica convencional não descarta os custos
de propriedade privada individual. Como enfatiza Miceli (2004), a
propriedade individual implica custos de construir cercas, muros ou
outras formas de separar propriedades, e de policiamento dessas fron-
teiras. Outro ponto importante é que, para unidades muito pequenas e
com presença de custos de transação nas negociações entre proprietá-
rios diferentes, a presença de externalidades pode implicar que a fusão
das parcelas de terra sob uma única propriedade (individual ou coleti-
va) seja mais recomendável que manter as duas parcelas separadas (o
que também é argumento para uma concentração um pouco maior da
propriedade da terra). Por fim, e mais importante, a propriedade cole-
tiva permite uma maior diluição de riscos entre proprietários, o que é

38
Conte (2006) estima que a escala ótima de produção (ou seja, o ponto de custo
médio mínimo da curva em forma de “U”) na cultura de soja no Brasil seria de
11.880 toneladas de soja em grão, correspondente a propriedade com 4.000 hecta-
res. Garcia e Filho (2005) estimam também a escala ótima na produção de frango
de corte no Brasil em 110 mil quilos ou 3.500 m 2 de aviário.
39
A alínea a do parágrafo único do art. 4º do Estatuto da Terra confere importante
exceção, excluindo da definição de latifúndio propriedades de qualquer dimensão
“cujas características recomendem, sob o ponto de vista técnico e econômico, a ex-
ploração florestal racionalmente realizada, mediante planejamento adequado”.
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
539

uma consideração particularmente relevante na agricultura, especial-


mente quando os novos donos estão apenas iniciando a exploração da
terra e não possuem experiência empresarial do negócio. O exemplo
dado pelo autor ocorreu nos primórdios da história dos EUA, na co-
lônia dos peregrinos em Plymouth, onde o início da exploração agrí-
cola contou com uma propriedade comunal que teve algum sucesso
pela mitigação de riscos que gerou para os colonos (apesar de já se
verificarem as ineficiências típicas da “tragédia dos comuns”). Após
um período de transição, no entanto, essa colônia foi naturalmente
migrando para a propriedade privada individual, o que gerou signifi-
cativo aumento da eficiência econômica. Por conclusão, a mensagem
principal é que a propriedade coletiva pode constituir um arranjo ini-
cial satisfatório, enquanto os beneficiários “pegam o jeito” do negócio.
Após um período de transição, o ideal é permitir ou criar incentivos
para a individualização das parcelas de terra em regime privado e in-
dividualizado.
Este processo de “privatização” e “concentração” da propriedade das
terras parece ocorrer naturalmente se o Estado não colocar óbices,
com os proprietários mais eficientes (assentados ou não) e propensos
a se tornar verdadeiros empresários adquirindo terras de outros colo-
nos. O problema no Brasil é que a Lei nº 8.629, de 1993, proíbe os
assentados de vender as terras em um período de dez anos. Ou seja, a
legislação brasileira bloqueia uma das principais formas de os DPs ge-
rarem eficiência econômica, que é a transferência de ativos dos agentes
menos eficientes para os mais eficientes40. O dispositivo, de outro lado,
tem o objetivo de evitar atrair colonos cujo único interesse seja não
a exploração da terra, mas sua venda para a obtenção de lucro fácil
com a doação de terras pela reforma agrária. Para conciliar estes dois
objetivos, cabe transformar de maneira mais profunda a forma como
se faz reforma agrária no Brasil, mas certamente o bloqueio da venda
por dez anos deveria ser eliminado imediatamente.
A outra questão relevante na desapropriação é se cabe ou não com-
pensação plena, a valor de mercado, ao antigo proprietário. Enquan-
to há autores na doutrina jurídica brasileira críticos da compensação
plena, como Militão (2007), a CF determina em seu art. 184 que a
desapropriação deverá ser feita mediante “prévia e justa indenização”
em títulos da dívida agrária, sendo as benfeitorias indenizadas em di-
nheiro. As críticas à indenização se baseiam usualmente nos vagos

40
De qualquer forma, o dispositivo é sistematicamente descumprido, o que favorece
a eficiência econômica.
540 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

critérios do que seria “justo” ou não. Descumpridores da FSP, neste


contexto, deveriam ser penalizados por suas infrações, ao invés de re-
ceberem indenização, ou, caso recebessem-na, que ela fosse abaixo do
valor de mercado da terra desapropriada.
Cabe, no entanto, entender a lógica econômica das indenizações. No
âmbito da análise econômica do direito, a idéia de o governo indeni-
zar o proprietário, para quaisquer tipos de uso, não se relaciona com a
questão do que é justo ou não, mas simplesmente com a necessidade
de evitar que o Estado utilize, de forma excessiva e anti-econômica, o
seu poder de coerção sobre o indivíduo41. Se a compensação ocorrer a
preços abaixo do mercado, o Estado ficará tentado a expropriar mais
do que o socialmente desejável.
De outro lado, a indenização plena de benfeitorias feitas na terra, pre-
vista na CF, também não constitui uma prática legitimada pela teoria
econômica. Quando há uma probabilidade razoável de desapropriação
pelo Estado, seja para sua utilização pelo governo em um bem público
(uma estrada por exemplo), seja para cumprimento de FSP, a inde-
nização plena gera incentivos para investimentos excessivos em ben-
feitorias pelos agentes42. Se souberem que serão plenamente ressarci-
dos pelas benfeitorias, os proprietários correntes acabarão investindo
acima do ótimo social nessas mesmas benfeitorias, as quais deveriam
incorporar a probabilidade de desapropriação43. Uma das formas de
corrigir esse problema seria aplicar um desconto sobre o valor das
benfeitorias realizadas, o que poderia ser calibrado para o valor médio
das benfeitorias realizadas em parcelas de terras similares.
Por fim, um dispositivo legal que pode ser entendido como parte da
aplicação da FSP é o usucapião. O art. 1.239 do novo Código Civil
(Lei nº 10.406, de 2002) define que

41
Alston, Libecap e Mueller (1999) afirmam que estaria havendo indenizações com
valor acima do preço de mercado da terra, com clara corrupção de funcionários do
Incra. Em alguns casos, os proprietários estariam inclusive incentivando invasores
para convencer o Incra a desapropriar. O caso mais típico, no entanto, seria de inde-
nizações a preços inferiores ao valor de mercado.
42
No caso de desapropriação para uso público, também é conhecido o problema do
hold-out, no qual cada proprietário individual tem um incentivo a cobrar um valor
muito acima do real valor da terra.
43
Este mesmo problema ocorre na ocupação ilegal de terras públicas em solo urbano
ou rural. O posseiro (de alta ou baixa renda) irregular procura realizar construções
que gerem “fatos consumados” e tornam politicamente custosa a desocupação. A
história de ocupação do solo irregular em Brasília constitui exemplo contemporâneo
deste problema, que não distingue pobres ou ricos (como é o caso dos vários condo-
mínios de classes média e alta irregulares na cidade).
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
541

aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano,


possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição,
área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares,
tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo
nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

A análise econômica do direito respalda esse instituto (conhecido


como de “possessão adversa”), no sentido de evitar comportamentos
oportunistas dos agentes no caso de benfeitorias realizadas em terras
alheias. Usando o exemplo de Miceli (1999), suponha um caso de
uma disputa de fronteira entre dois fazendeiros vizinhos. Suponha
que o fazendeiro A deseja construir em uma porção de terra perto da
divisa com o fazendeiro B. A divisa, no entanto, é inexata, o que gera o
risco de a construção acabar ocorrendo em uma parcela de terra de B,
passando os benefícios para este. Suponha-se que essa parcela de terra
cuja propriedade seja confusa tenha um valor de “m” para A antes da
construção e de “n” para B, sendo m>n. Sendo assim, se a propriedade
dessa faixa de terra fosse conhecida de A e de B, A compraria esta
terra por um preço p ∈ [n,m].
Vamos supor que o valor da porção de terra após a construção passe
a ser V>m. Sendo assim, se for descoberto, após essa construção, que
a terra pertence a B, então o máximo que A estaria disposto a pagar
pela terra sobe para V. Essa diferença V-m representa o que se chama
de uma “quase-renda apropriável”. Dada essa quase-renda, é desejável
que as partes determinem a propriedade dessa faixa de terra antes da
construção, de forma a facilitar o uso eficiente da terra e evitar dis-
pêndios desnecessários de rent-seeking após a construção. O problema
é que B não tem incentivo privado a esclarecer os fatos, pois ele tem
todo o interesse em deixar o valor da terra para A crescer com as ben-
feitorias, de forma a extrair uma quase-renda maior no futuro. Sendo
assim, um sistema de possessão adversa deve ser desenhado, de forma
a criar incentivos para que A evite os erros da divisa errada antes do
investimento, ao mesmo tempo em que gere incentivos a B para mi-
tigar os erros de A de forma tempestiva. O usucapião seria uma das
formas de atenuar este problema.

V. Conclusão

Retomando uma das mensagens principais de Hernando de Soto, é


importante ter claro que uma das formas mais eficazes de privilegiar
o bem-estar em uma sociedade é fortalecer seu sistema de DPs, e não
enfraquecê-lo. Afinal, como enfatizado pelo autor em uma avaliação
542 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

do que teria sido um erro de percepção de Marx quanto ao valor do


DP e já destacado na ementa deste artigo:
Marx não compreendeu plenamente que a propriedade legal
constitui o processo indispensável que fixa e cria o capital, que
sem a propriedade a humanidade não poderia converter os fru-
tos de seu trabalho em formas líquidas e fungíveis que podem
ser diferenciadas, combinadas, divididas, e investidas com o pro-
pósito de produzir excedentes.

A tradição jurídica brasileira, por sua vez, considera a FSP quase que
integralmente como uma forma de melhorar a distribuição de renda
do país e, de forma secundária, como complementar à política de meio
ambiente. Pinheiro (2002), por exemplo, destaca que os juízes brasi-
leiros freqüentemente perseguem objetivos relacionados à redistribui-
ção de renda e riqueza. De fato, em uma pesquisa realizada com uma
amostra de juízes nacionais, eles foram indagados a respeito de qual
tendência, em média, os seduziria mais: “contratos devem sempre ser
respeitados, independentemente de suas repercussões sociais?” ou “o
juiz tem uma função social, de forma a que a busca por justiça social
justifica decisões que violam os contratos?” Como resultado, 73,1%
dos juízes responderam em favor da abordagem da “justiça social”,
contra 19,7% em favor da abordagem “pró-contrato”.
De outro lado, à exceção do cumprimento da legislação trabalhista, de
cunho claramente social, as indicações existentes na CF são totalmen-
te compatíveis com a busca da maximização da renda da sociedade,
o que, mais uma vez, não implica consideração apenas dos objetivos
individuais, mas sim dos coletivos.
Outra falácia é a alegada contraposição da FSP com os DPs. Na reali-
dade, uma das formas mais apropriadas de assegurar a FSP é aperfei-
çoar os mecanismos econômicos das “cestas de direitos” no sentido de
garantir que o DP gere os incentivos esperados sobre o empreendedo-
rismo e o investimento.
Enfim, a aplicação concreta do conceito de FSP requer uma leitura
menos parcial da CF. Há uma clara dissociação entre o que está na CF
e a doutrina jurídica. Esperamos que se possa avançar melhor no en-
tendimento dessa questão nos próximos anos, evitando que a FSP seja
utilizada para objetivos pouco eficazes para a retomada/manutenção
do desenvolvimento econômico sustentável do país.
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
543

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Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
545

Anexo

a) Dispositivos genéricos

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi-
dentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
.........................................................................................
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação
por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social,
mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os
casos previstos nesta Constituição;
..............................................................................................
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do traba-
lho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observa-
dos os seguintes princípios:
.....................................................................................
III – função social da propriedade;
.................................................................................”.

b) Dispositivos relativos à FSP em imóveis urbanos

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo


poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em
lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das fun-
ções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
....................................................................
§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando
atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade ex-
pressas no plano diretor.
............................................................................
§ 4º É facultado ao poder público municipal, mediante lei espe-
cífica para área incluía no plano diretor, exigir, nos termos da lei
federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutiliza-
do ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento,
sob pena, sucessivamente, de:
I– parcelamento ou edificação compulsórios;
546 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana pro-


gressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida
pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal,
com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e
sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

c) Dispositivos relativos à FSP em imóveis rurais

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social,


para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cum-
prindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em
títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor
real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo
ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
.......................................................................
Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de refor-
ma agrária:
I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei,
desde que seu proprietário não possua outra;
II – a propriedade produtiva.
Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à proprieda-
de produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos
relativos a sua função social.
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural
atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência
estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e pre-
servação do meio
ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de
trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e
dos trabalhadores.

d) Dispositivos Relativos à FSP em Empresas Estatais

Art. 173................................................................
§1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da
sociedade de economia mista e de suas subsidiária que explorem
Uma análise econômica da função social da propriedade na Constituição brasileira
547

atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou


de prestação de serviços, dispondo sobre:
I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela
sociedade;
II – ...............................................................
Função social e direito de propriedade
549

Encontra o direito
agrário resguardo no
texto constitucional?
Luiz Almeida Miranda
José Theodoro Mascarenhas Menck

Introdução

A qualquer leitor do texto da Carta Magna de 1988, que esteja preo-


cupado com os sérios problemas fundiários que o nosso país atravessa,
saltará aos olhos que não há um capítulo específico tratando dessas
questões. Seria esse um descaso da Constituição Cidadã? A Consti-
tuição de 1988, célebre pela enorme participação popular, não se pre-
ocupou com essas ingentes questões? Ou seriam os textos agrários
presentes suficientes ao trato da questão, ainda que não agrupados?
A Constituição é, sob o ponto de vista conceitual, o instrumento de
institucionalização política que visa a consolidar pactos sociais e co-
letivos. É, em suma, um conjunto de normas e conceitos que estão
organizados em grupos temáticos, que trata da forma do Estado e de
governo, da estruturação dos órgãos de poder e do estabelecimento
dos limites de sua ação.
Os dispositivos constitucionais que podem ser identificados como
fontes do Direito Agrário não se apresentam sob uma única rubrica
e estão disseminados em todo o texto constitucional. A Constituição
rege as questões agrárias de forma difusa. No entanto, a dispersão das
normas agrárias não lhes reduz o poder normativo, visto que todas as
normas constitucionais são hierarquicamente iguais.
Assim, o estudo das normas constitucionais vinculadas ao Direito
Agrário tem de ser feito mediante a interpretação das normas, averi-
guando o seu significado e analisando o seu conteúdo metodológico,
ideológico e sociológico, e considerando os conhecimentos específicos
desse ramo do Direito.
550 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Para a identificação da matéria normativa constitucional que possa


ter interesse ao estudo do Direito Agrário, faz-se mister, pois, analisar
o sentido de cada norma, a fim de identificar aquelas que tenham
correlação com os temas tipicamente agrários. As normas de interesse
para este estudo são aquelas que tratam diretamente da terra, assim
entendida como o espaço do território nacional, exceto, obviamente,
aquele destinado à ocupação urbana.
Há, também, uma série de normas que não dizem respeito direta-
mente ao trato das questões rurais, mas que são importantes fontes
subsidiárias do Direito Agrário. São as normas constitucionais que se
aplicam, em condições específicas, às matérias agrárias.
Ao par de todo esse conjunto de normas, somam-se aquelas relativas
às políticas sociais, ambientais e culturais, que se revelam pela inter-
venção do Poder Público na distribuição do espaço territorial rural.
As fontes principais e as secundárias constituem, portanto, um con-
junto de normas constitucionais que se complementam, constituindo-
se na disciplina jurídica relativa à regulamentação do uso, da ocupação,
da propriedade da terra e da distribuição do espaço territorial rural.

Normas constitucionais

A Constituição de 1988, ao se propor ser construtora de uma socie-


dade democrática, buscou incorporar em seu bojo uma amplíssima
gama de assuntos, muitos dos quais já enquadrados na legislação in-
fraconstitucional anterior. Não é nenhuma novidade se dissermos que
tal preocupação de abraçar tudo o que considerasse relevante levou-a,
fatalmente, a ser extremamente analítica.
Há autores que se posicionam criticamente, assumindo uma postura
clássica no tema, pois entendem que seria mais eficaz a promulga-
ção de uma Constituição sintética, prevendo apenas os princípios e
as normas gerais, mas, ao mesmo tempo, organizando e limitando o
poder do Estado por meio da fixação da garantia dos direitos funda-
mentais. No entanto, repita-se, nossa Constitução optou por tratar
minuciosamente de vários temas, com grande ênfase para as questões
econômicas, sociais, culturais e ambientais. Destarte, as normas agrá-
rias estão dispersas nos vários Capítulos da Constituição, à medida
em que tais questões são abordadas. Trata-se primordialmente de uma
opção metodológica, que não enfraquece a força normativa dos dispo-
sitivos, nem os torna menos importantes do que os demais.
Encontra o direito agrário resguardo no texto constitucional?
551

São indiscutivelmente agrárias as normas constitucionais que fazem


referência à terra, à propriedade, ao imóvel rural, gleba, área, ou faixa
de fronteira. Tais rubricas encontram-se expressas em, pelo menos, 79
inserções, assim distribuídas: “agrário”, 11 inserções, “terra”, 20 inser-
ções, “propriedade”, 14 inserções, “imóvel rural”, 10 inserções, “gleba”,
3 inserções, “faixa de fronteira”, 3 inserções, “áreas”, 9 inserções. Há,
também, referências correlatas com a matéria agrária, como, por exem-
plo, “espaços”, 2 inserções,“ilhas”, 3 inserções e “sítios”, 4 inserções.
No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, encon-
tram-se sete inserções, na seguinte ordem: “terra”, 4 inserções, “proprie-
dade”, 1 inserção, “área”, 1 inserção, e “faixa de fronteira”, 1 inserção.
Ao todo, temos 60 normas inseridas em 28 artigos da Constituição e
5 disposições em 4 artigos do ADCT, que se apresentam, com nosso
destaque, da seguinte forma:
O direito de propriedade, a sua função social, a impenhorabilidade da
pequena propriedade rural familiar, encontram-se no Título II, que
dispõe sobre os direitos e garantias fundamentais.
No Título III, que trata da organização do Estado, encontram-se de-
finidas as terras que são os bens da União, como, por exemplo, as ter-
ras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, as ilhas fluviais e
oceânicas, os terrenos de marinha, os sítios arqueológicos e as terras
indígenas. A faixa de fronteira, que é de 150 quilômetros de largu-
ra, é considerada fundamental para a defesa do território nacional. É,
também, neste Título que a Constituição delega à União competência
privativa para legislar sobre direito agrário.
No Capítulo III, incluem-se entre os bens dos Estados as áreas e
ilhas fluviais, oceânicas e costeiras e as terras devolutas que não per-
tençam à União.
No Capítulo VII, que trata da Administração Pública, há uma norma
vinculada ao Direito Agrário, segundo a qual a União poderá articular
ações visando ao desenvolvimento e redução das desigualdades regio-
nais, e incentivará a recuperação de terras áridas, cooperando com os
pequenos e médios proprietários rurais para o estabelecimento de fon-
tes de água e de pequena irrigação.
No Título IV – Capítulo I – do Poder Legislativo, é outorgada ao
Congresso Nacional competência para autorizar a exploração e o apro-
veitamento de recursos hídricos, a pesquisa e a lavra de riquezas mine-
rais em terras indígenas. Compete, também, ao Congresso Nacional
aprovar, previamente, a alienação ou concessão de terras públicas com
552 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

área superior a dois mil e quinhentos hectares. No Capítulo II – do


Poder Executivo, a Constituição dá ao Conselho de Defesa Nacional
a atribuição de propor os critérios e as condições de utilização de áreas
indispensáveis à segurança do território nacional, especialmente na
faixa de fronteira. E, no Capítulo III – do Poder Judiciário, a Consti-
tuição dispõe que sobre a criação de varas especializadas para dirimir
conflitos fundiários.
No Título VI, relativo à tributação, estabelece a competência da União
para instituir imposto sobre a propriedade territorial rural, que será
progressivo. Isenta da tributação as pequenas glebas rurais. Atribui aos
Municípios 50% da arrecadação do ITR.
No Título VII – da Ordem Econômica e Financeira, inclui, entre os
princípios gerais da atividade econômica, a propriedade privada e a
função social da propriedade. Estabelece, também, que as atividades
de exploração mineral em faixa de fronteira ou terras indígenas serão
realizadas em condições específicas fixadas por lei.
Merece destaque especial o Capítulo III, que dispõe sobre a política
agrícola e fundiária e reforma agrária. Estabelece as condições para a
desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, das
propriedades rurais que não cumpram sua função social. Exclui da
desapropriação para esses fins a pequena e a média propriedade, assim
como a propriedade produtiva. Cria limitações para a aquisição ou o
arrendamento de propriedade rural por estrangeiros, matéria que de-
verá ser regulada por lei. Estabelece as condições para a aquisição de
imóvel rural por usucapião, exceto terras públicas.
O Capítulo VI, do Título VIII, que dispõe sobre a ordem social, dedica-
se à defesa do meio ambiente, considerado bem de uso comum do povo
e essencial à sadia qualidade de vida, e incumbe ao Poder Público a de-
finição dos espaços territoriais que devem ser especialmente protegidos.
Declara indisponíveis as terras devolutas, ou arrecadadas pelos Estados,
que sejam necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.
A política indigenista é instituída no Capítulo VIII. São reconhecidos
aos índios os direitos originários sobre as terras que ocupam. Define
as terras indígenas passíveis de demarcação. A exploração mineral e o
aproveitamento dos recursos hídricos, em terras indígenas, dependem
de autorização do Congresso Nacional. Declara nulos e extintos os
atos que tenham por objeto a ocupação, domínio e a posse de terras
indígenas, como tais definidas pela Constituição.
Encontra o direito agrário resguardo no texto constitucional?
553

Nas Disposições Constitucionais Gerais (Título IX), a Constituição


determina a expropriação das glebas onde sejam localizadas culturas
ilegais de plantas psicotrópicas.
No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, mere-
ce destaque o art. 68, que reconhece a propriedade definitiva das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.
No entanto, há outras normas que têm correlação com a matéria de
direito agrário, mas não lhe dizem respeito expressamente. O comple-
xo normativo constitucional agrário compõe-se, pois, de normas que
se interagem no disciplinamento do uso e ocupação do solo, envolven-
do matérias de direito privado e público, pois, ao instituir direitos e
obrigações, estabelece, também, as diretrizes de política cultural, social
e ambiental relacionadas com os institutos do direito agrário, dan-
do ao Poder Público a competência para executá-las. As políticas de
destinação de áreas terrestres são, sabiamente, permeadas por normas
de direito civil e administrativo, em harmonia com outros institutos
jurídico-constitucionais.

Aplicabilidade das normas constitucionais

O enorme leque de princípios, postulados e interesses sociais abraça-


dos pela Constituição desafia o intérprete quando se defronta com os
aparentes conflitos das normas constitucionais. A consagração da plena
propriedade privada da terra pode ser tida como contraditória com a
função social que a Constituição vincula ao imóvel rural, por exemplo.
Esta contradição, no entanto, é apenas aparente. A larga doutrina ju-
rídica dedicada à hermenêutica tem defendido, com técnicas sempre
mais sofisticadas, a idéia de que o texto constitucional somente pode
ser lido se nos levar a uma interpretação harmônica de seus artigos.
Um artigo só é bem interpretado se compatível com todos os demais.
Ademais, como ramo da grande árvore jurídica, o Direito Agrário
constitucional também é, o mais das vezes, norma de outro ramo da
ciência do Direito.
O conjunto de normas constitucionais vinculadas ao direito agrário
objetiva o estabelecimento de direitos e garantias individuais e sociais,
a distribuição de competências e o exercício da autoridade, no que
tange ao domínio, posse, ocupação, destinação e uso da terra.
Vários princípios da Constituição vinculam o Direito Constitucional
ao Direito Agrário, já que a Carta Magna encabeça o ordenamento
554 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

jurídico e delineia as regras básicas do sistema normativo, fixando as


regras capitais de certos institutos que a ele se aplicam.
Há, também, uma interface com o Direito Administrativo, que versa
sobre serviços e agentes públicos. Estes são responsáveis pela realiza-
ção da função administrativa, segundo os princípios básicos estabele-
cidos pela Constituição. Compete à Administração Pública dar anda-
mento aos serviços concernentes à desapropriação por interesse social,
a que se refere o art. 184 da Constitiuição, instituir os procedimentos
relativos à demarcação das terras indígenas, conforme estabelece o art.
23, e à criação das reservas ambientais, a que se refere o art. 225, assim
como ao reconhecimento da propriedade definitiva das terras ocupa-
das por remanescentes das comunidades de quilombos, todas essas
questões vinculadas, também, aos fundamentos do Direito Agrário.
A Constituição também estabelece interconexões das normas agrárias
com outros ramos do Direito, como, por exemplo, com o Direito Civil,
do qual é, em última instância, parte. De fato, dispositivos que tratam
do direito de propriedade, sua função social, desapropriação por inte-
resse social, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, usucapião, entre
outros, são conceitos de direito civil que se aplicam, diretamente, ao
Direito Agrário. Outros ramos do direito interagem com as normas
agrárias, como, por exemplo, o Direito Tributário, com relação às nor-
mas relativas à tributação da terra, e o Direito Ambiental, em relação
aos espaços territoriais reservados.
Quanto à aplicabilidade, temos, segundo José Afonso da Silva, citado
por Alexandre de Morais, normas de eficácia plena, que “produzem, ou
têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos
interessses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta
e normativamente quis regular”, as de eficácia contida, “ nos termos que
a lei estabelecer”, e as de eficácia limitada, “porque somemente incidem
totalmente sobre esses interesses, após uma normatividade ulterior que lhes
desenvolva a aplicabilidade”.
No entanto, nos conceitos de aplicabilidade das normas constitucio-
nais surgem os conflitos entre direitos e bens constitucionalmente
protegidos. Para solucioná-los, segundo Fernando Coelho, citado por
Alexandre Moraes, mister se faz investigar o sentido e os fins das nor-
mas, interpretando-os, por meio de regras e processos especiais, a fim
de “desentranhar o próprio sentido das palavras da lei, deixando implícito
que a tradução do verdadeiro sentida da lei é algo bem guardado, entranha-
do, portanto, em sua própria essência”.
Encontra o direito agrário resguardo no texto constitucional?
555

As normas agrárias constitucionais devem, portanto, ser interpre-


tadas por meio do ajustamento das características históricas, polí-
ticas e ideológicas que lhes deram origem, confrontando-as com a
realidade sociopolítico-econômica, a fim de que possam alcançar a
sua plena eficácia, considerando, para tal fim, os princípios e regras
interpretativas.
Canotilho realça que a interpretação constitucional deve ser reali-
zada de maneira a evitar contradições entre suas normas, tendo em
vista a “unidade da Constituição”. Devem ser considerados, também,
os seguintes princípios: “o efeito integrador”, “máxima efetividade”,
“justeza”, “concordância prática ou harmonização” e a “força normativa
da Constituição”.
Com muita precisão, o autor ensina que “Não há, pois, na Constituição,
“simples declarações (sejam oportunas ou inoportunas, felizes ou desafortu-
nadas, precisas ou indeterminadas) a que não se deva dar valor normativo,
e só o seu conteúdo concreto poderá determinar em cada caso o alcance espe-
cífico do dito valor” (Garcia de Enterria). Problema diferente é o de saber
em que termos uma norma constitucional é susceptível de “aplicação directa”
e em que medida é exequível por si mesmo.”
Assim sendo, somente podemos concluir que as normas contidas na
Constituição têm igual “dignidade”, e, ainda segundo Canotilho, “não
há normas só formais, nem hierarquia de supra-infra-ordenação dentro da
lei constitucional”.
Deve-se, portanto, considerar que todas as normas constitucionais
preenchem determinado espaço normativo, não sendo permitido dar-
lhes uma interpretação que reduza suas finalidades específicas. Da
mesma forma, cumpre ao intérprete buscar a “harmonia do texto consti-
tucional”, de forma a obter “a maior aplicabilidade dos direitos, garantias
e liberdades públicas”.
O princípio da harmonização ou concordância prática “tem sido até
agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou
entre direitos fundamentias e bens jurídicos constitucionalmente protegi-
dos). Subjacente a este princípio está a idéia do igual valor dos bens consti-
tucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o
sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e
condicionanamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou
concordância prática entre estes bens.”
Por fim, as leis e os atos normativos editados pelo Poder Público de-
vem submeter-se à supremacia das normas constitucionais. Havendo
556 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

dúvidas quanto ao alcance das normas Infraconstitucionais, deverá o


intérprete dar-lhes o significado que apresente conformidade com as
normas constitucionais. Alexandre de Morais esclarece que, “conforme
entendimento do Supremo Tribunal Federal, a técnica da denominada “in-
terpretação conforme” só é útil quando a norma impugnada admite, dentre
as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta
Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco, tendo salientado o
Ministro Moreira Alves que “em matéria de inconstitucionalidade de lei
ou ato normativo, admite-se, para resguardar dos sentidos que eles podem
ter por via de interpretação, o que for constitucionalmente legítimo – é a
denominada interpretação conforme a Constituição”.
Como demonstrado, e a doutrina é pacífica, as normas constitucionais
são harmônicas entre si. A Constituição não cria hierarquia entres as
normas constitucionais. Destarte, os direitos sociais não se sobrepôem
aos direitos e garantias fundamentais. Nem o contrário, pois não há
direitos que inviabilizem as políticas sociais. A Constituição, ao regu-
lamentar, de forma difusa, o uso, a ocupação, o domínio das terras e
suas implicações sociais, não abdicou da harmonia entre as normas.
Constatada a existência de lacuna de regulamentação ou um vazio
normativo que necessite de norma infraconstitucional para a comple-
mentação de um preceito constitucional, o Poder Legislativo elabora-
rá as normas legais necessárias para atender ao escopo do dispositivo
constitucional.

Ponderação dos princípios e garantias constitucionais

A Constituição de 1988 consagrou uma série de princípios que devem


reger a Administração Pública. Segundo os ensinamentos do douto tra-
tadista Celso Antônio Bandeira de Mello, a doutrina jurídica tem iden-
tificado os seguintes princípios: princípio da legalidade, como previsto
nos art. 5º, II, e 37, caput, e 84, IV; princípio da razoabilidade; princípio
da proporcionalidade; princípio da motivação; princípio da impesso-
alidade; princípio do devido processo legal e da ampla defesa, como
previsto pelo art. 5º LIV e LV; princípio da moralidade administrativa;
princípio do controle judicial dos atos administrativos, art. 5º, XXXV;
princípio da eficiência e princípio da segurança jurídica, entre outros.
Em síntese, nos termos da Constituição, a Administração Pública, a
quem, em última análise, a Constituição atribui a tarefa de concretizar,
por seus atos, os direitos sociais, de que tratamos no Direito Agrário,
Encontra o direito agrário resguardo no texto constitucional?
557

obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,


publicidade e eficiência.
Paralelamente, a Constituição estabelece contra-pontos, a fim de
proteger outros direitos, os direitos individuais, de modo que não se
permita que o Poder Público possa praticar atos arbitrários, que pos-
sam caracterizar, inclusive, abuso de poder. Canotilho assevera que “à
Constituição pertence uma importantíssima função de legitimação do poder.
É a Constituição que funda o poder, é a Constituição que regula o exercício
do poder, é a Constituição que limita o poder.” Temos, assim, as garantias
constitucionais, que, segundo Paulo Bonavides, se consubstanciam nas
garantias individuais, pelas quais o governado tem o direito de exigir
do Estado e de suas autoridades a obrigação positiva ou negativa, con-
sistente em respeitar as “prerrogativas fundamentais de que o homem deve
gozar para o desenvolvimento de sua personalidade” numa relação jurídica
entre o governado e o Estado, “cuja fonte formal é a Constituição”.
Isto posto, podemos ver que, no Capítulo III do Título VII, a Cons-
tituição estabeleceu os termos da política agrícola, fundiária e da re-
forma agrária. Ao fixar os critérios de intervenção no direito de pro-
priedade, impôs como condição precípua para a desapropriação da
propriedade que ela não esteja cumprindo sua função social, como tal
definida pelo art. 186. Portanto, a Constituição restringe a intervenção
a uma situação previamente estabelecida. A seguir, cria uma exceção e
torna insuscetíveis de desapropriação a pequena e média propriedade
rural e a propriedade produtiva.
A criação de unidades de conservação está prevista na Constituição
Federal e tem reflexos no campo jus-agrarista, visto que se constitui
na intervenção do Estado na destinação de terras rurais. Da mesma
forma, assim entendemos quanto à demarcação de terras indígenas
e ao reconhecimento da propriedade das terras ocupadas por rema-
nescentes das comunidades de quilombos. O objeto dessas políticas
é a demarcação de glebas, que são áreas não urbanizadas. A Consti-
tuição não elevou tais políticas a patamares especiais, sobrepondo os
seus objetivos aos direitos e garantias fundamentais. Destarte, o Poder
Público, a quem foi dada a competência para discriminar essas áreas,
não poderá fazê-lo incondicionalmente. As normas são compostas,
também, de pesos e contrapesos.
Ao incumbir ao Poder Público a competência para definir os espaços
terriroriais a serem protegidos, no âmbito da política ambiental, nos
termos do art. 225, a Constituição não autoriza a desapropriação de
propriedades rurais para tal fim. É silenciosa quanto a este aspecto,
558 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

pelo que se conclui que o Poder Público deverá, se necessário, recorrer


à regra geral do art. 5º, que prevê a desapropriação por necessidade ou
utilidade pública. Ademais, a destinação de áreas para a preservação
ambiental pressupõe que elas tenham atributos que justifiquem a in-
tervenção do Poder Público.
Em condições semelhantes a Constituição firma, em seu art. 231, a
política de proteção às comunidades indígenas, determinando a demar-
cação das terras por eles ocupadas. No entanto, no primeiro parágrafo
cuida em definir quais são as terras indígenas passíveis de demarcação,
qualificando-as. Portanto, sabiamente, estipulou parâmetros para a
demarcação das terras indígenas, obstacularizando, portanto, a demar-
cação indiscriminada e incondicional dessas terras. Ao mesmo tempo
em que a Constituição define quais são as terras indígenas passíveis de
demarcação, limitando, portanto, o poder discricionário da Adminis-
tração Pública, que deverá se pautar pela norma constitucional, veda,
também, ao administrado ocupar as terras indígenas, declarando nulos
e extintos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a
posse das terras indígenas, como tais definidas pela Constituição.
Quanto às terras ocupadas por remanescentes das comunidades de
quilombos, a Constituição não ampara ampliações de áreas, mas
reconhece o direito de propriedade apenas aos seus ocupantes, a
título individual.
Por outro lado, fica a lembrança de que, ao garantir, no art. 5º, o direito
de propriedade, a Constituição não o faz em caráter incondicional,
pois não obstaculariza a intervenção do Estado, que poderá lhe dar
outra destinação, seja por necessidade ou utilidade pública e por in-
teresse social ou, em se tratando de propriedade rural, para fins de
reforma agrária.
No art. 5º, a Constituição garante, em caráter geral, o direito de pro-
priedade. Outrossim, dispõe que a propriedade atenderá a sua função
social. À primeira vista, pode parecer ao intérprete que há uma ambi-
guidade no texto constitucional, que garante o direito de propriedade,
mas o extingue quando não atenda a sua função social. No entanto, a
Constituição apenas impinge-lhe um ônus, que, não atendido, poderá
dar ao Estado a legitimidade para intervir. Em se tratando da proprie-
dade rural, a intervenção poderá se dar pela desapropriação para fins
de reforma agrária, como já foi dito.
Por fim, a intervenção do Poder Público, nas hipóteses acima men-
cionadas, é delimitada não apenas pelos dispositivos constitucionais
específicos que tratam de cada política pública, mas, principalmente,
Encontra o direito agrário resguardo no texto constitucional?
559

pelo respeito aos direitos e garantias fundamentais insculpidos no art.


5º. É certo que o Poder Público, ao promover a reforma agrária, ao
criar unidades de conservação da natureza, ao demarcar as terras in-
dígenas e ao reconhecer a propriedade das terras ocupadas por rema-
nescentes das comunidades dos quilombos, não está desobrigado de
respeitar os direitos individuais dos administrados, sabendo-se que a
lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada, assim como ninguém será privado de seus bens sem o devido
processo legal.
Além de serem as normas constitucionais harmônicas e equivalentes,
não se sobrepondo uma sobre outra, existem as garantias constitu-
cionais dos direitos individuais, que constituem em mecanismos de
proteção do cidação contra os abusos de poder do Estado.
Ademais, as intervenções do Poder Público nos processos de desti-
nação das áreas rurais, além de se regerem por regras estabelecidas na
Constituição, a que já nos referimos, podem ser apreciadas pelo Poder
Judiciário e fiscalizadas pelo Congresso Nacional.

O Poder Judiciário como órgão garantidor

Quando o administrado se sentir prejudicado pela Administração Pú-


blica, terá, como garantia, o direito ao farto contraditório e à ampla
defesa, em processo administrativo ou judicial. A Constituição garan-
te ao cidadão o direito de requerer ao Poder Judiciário a apreciação de
matéria relativa à lesão ou ameça de direito.
Nesse sentido, mostra-se oportuna a lição de Manoel Gonçalves Fer-
reira Filho, segundo o qual “o direito do indivíduo fazer passar pelo crivo
do Judiciário toda lesão a seus direitos é essencial a todo regime cioso das
liberdades fundamentais. Deflui inexoravelmente esse princípio da própria
“separação de poderes”, pois outra não é, no fundo, a justificativa da inde-
pendência do Judiciário que não a tutela dos direitos individuais. Todavia,
a sua expressa enunciação , como no art. 5º, XXXV, da Constituição – “a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”
– é sempre recomendável. De fato, o crivo imparcial do Judiciário contraria
muita vez a prepotência dos governantes que, se podem, cuidam de impedir
sua fiscalização.”
Outrossim, a Constituição salvaguarda o direito adquirido, o ato jurí-
dico perfeito e a coisa julgada, que não serão prejudicados. Ademais,
ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal: é o
que apregoa a Constituição no art. 5º, LIV, incorporando em nosso
560 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ordenamento a consagrada cláusula do Direito anglo-americano, o


due process of law. Tal princípio veda qualquer restrição à liberdade e
à propriedade, sem a manifestação do Poder Judiciário, ou seja, sem o
devido processo legal.

O Poder Legislativo como órgão fiscalizador

Da mesma forma, a Constituição Federal dá ao Poder Legislativo fe-


deral a competência para fiscalizar os atos do Poder Executivo. É o
que estabelece o art. 49 da Constituição. Tanto a Câmara dos Deputa-
dos, quanto o Senado Federal, poderão convocar Ministros de Estado
para prestarem pessoalmente informações sobre assuntos relativos às
suas Pastas. As duas Casas legislativas podem, também, encaminhar
pedidos escritos de informação. Não seria demais lembrar que a recusa
de Ministro em comparecer pesssoalmente para prestar esclarecimen-
tos, ou em responder aos pedidos de informação, constitui crime de
responsabilidade.
No entanto, a competência de fiscalizar os atos do Poder Executivo,
que estejam vinculados ao processo de reconhecimento de direitos so-
ciais, culturais, e ambientais, de que tratamos no âmbito do Direito
Agrário, não inclui ações preventivas do Legislativo. Para que o Con-
gresso Nacional exerça a plenitude de seu poder, que não se restringe
apenas à elaboração de leis, é necessário, também, fiscalizar previa-
mente tais atos, que, pela sua relevante importância, têm reflexos nos
mais diversos setores da sociedade brasileira.
Por exemplo, a demarcação das terras indígenas, que se constitui em
um dos pilares da política de proteção dos direitos indígenas, reflete-se
diretamente em outros direitos e com eles conflita, seja no âmbito das
políticas públicas, sociais e estratégicas, afetando interesses e projetos
dos governos federal, estadual e municipal, seja no âmbito dos direitos
individuais. Reflete-se, também, de forma contundente, nas atividades
econômicas desenvolvidas nas áreas afetadas.
As demarcações colidem, até mesmo, com outros direitos sociais,
como, por exemplo, quando incluem em seu perímetro unidades de
conservação da natureza, invadindo, portanto, o campo dos direitos
relativos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à
sadia qualidade de vida, como prevê o art. 225, da Constituição.
As demarcações têm ocasionado, não raro, a sobreposição de terras in-
dígenas às áreas de segurança nacional, na faixa de fronteira. Projetos
de reforma agrária e de assentamentos de agricultores sem terra são
Encontra o direito agrário resguardo no texto constitucional?
561

desfeitos. Propriedades privadas são eventualmente extintas. Obras de


infra-estrutura, tais como redes de transmissão de energia elétrica, te-
lefonia, gasodutos, oleodutos, rodovias e estradas vicinais, ferrovias e
hidrovias, represas e hidrelétricas, áreas urbanas, vilas e aglomerados,
estabelecimentos públicos, escolas, hospitais, igrejas, praças públicas,
cemitérios, etc., são afetadas pelas demarcações das terras indígenas,
sofrem restrições de uso e acesso, têm suas finalidades modificadas e
não raro são extintas.
Há registros de colisão de direitos, também, nas criações de unidades de
conservação, cujos limites são definidos pelo Poder Público. Além disso,
pasme-se, existem casos de sobreposição de reservas indígenas com ter-
ras reivindicadas por remanescentes de comunidades quilombolas.
Destarte, os atos do Poder Executivo não podem passar ao largo da
apreciação prévia do Congresso Nacional, onde se encontram as for-
ças vivas da democracia, legitimadas pelo voto popular. A fiscalização
dos atos do Poder Executivo só terá resultado preventivo se for reali-
zada previamente. Portanto, é salutar para o sistema democrático que
matérias relevantes, como a destinação de significativas parcelas do
território nacional, sejam decididas pelo Poder Executivo e subme-
tidas à apreciação prévia do Congresso Nacional, portanto antes de
entrarem em vigor. A possibilidade de serem realizados os debates
no Congresso Nacional sobre a criação e delimitação das áreas a se-
rem protegidas, a fim de atender a direitos difusos, culturais, e sociais,
permitirá que o processo seja depurado dos eventuais conflitos entre
direitos fundamentais, inclusive dos possíveis abusos de poder que
possam daí advir. Durante a tramitação nas duas Casas Legislativas,
todos os questionamentos podem ser amplamente debatidos e levados
ao sufrágio dos legítimos representantes do povo.
Não é demais salientar que a própria Constituição, no art. 49, XVII,
outorga competência ao Congresso para aprovar, previamente, a alie-
nação ou concessão de terras públicas com área superior a dois mil e
quinhentos hectares. Por que o Congresso é alijado do processo de
destinação de extensa fatia territorial para outros fins? Por que não dar
ao Congresso competência para aprovar previamente a destinação de
grandes extensões territoriais para a proteção do meio ambiente e das
comunidades indígenas?
Afinal, é no princípio da separação de poderes que firma a preserva-
ção da Constituição democrática, liberal e pluralista. Paulo Bonavides,
com sua clarividência, afirma que este é um princípio “invariavelmen-
te sujeito a renascer das ruínas de todas as reformas políticas e jurídicas e
562 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

institucionais que intentam bani-lo do novo Direito Constitucional cons-


truído por obra das idéias sociais do século XX.”.... “De tudo quanto fica
escrito, se infere a conclusão fundamental de que o velho princípio rejuve-
nesceu por obra de intérpretes e aplicadores de um direito constitucional da
liberdade. Voltou assim a fruir a plena atualidade das ocasiões em que foi
emblema de resistência a poderes autocráticos e a formas de governo havidas
por usurpadoras de direitos e garantias fundamentais da pessoa humana”.

Conclusão

Conforme vimos, a Constituição de 1988 trata larga e exaustivamente


de vários aspectos da questão fundiária. São artigos esparsos, porém de
força vinculante óbvia, cujas interpretações devem sopesar os diversos
outros valores que encontram guarida no texto constitucional.
A par das normas essencialmente relacionadas com a ocupação, pos-
se e domínio público ou privado das terras, a Constituição de 1988
deu grande ênfase à destinação de terras para fins sociais, ambientais
e culturais.
Essa vertente social introduz normas que permeiam os regulamentos
e disposições relativos à propriedade rural, dando ao Direito Agrário
uma aparente conotação de direito social. A Constituição estabeleceu,
em suma, os fundamentos das políticas voltadas para a distribuição
de terras. É assim que regulou a distribuição de propriedades rurais a
agricultores sem terra, estabeleceu os critérios para a criação de áreas
de preservação ambiental, definiu as terras indígenas e determinou a
sua demarcação, e reconheceu o direito de propriedade das terras ocu-
padas por remanescentes de comunidades de quilombos.
No entanto, como já demonstramos, as políticas de governo que ver-
sam sobre a distribuição das terras, criação de áreas ambientais, de-
marcação de terras indígenas e reconhecimento da propriedade das
terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos
não se sobrepõem aos direitos individuais igualmente garantidos pela
Constituição, em especial o direito de propriedade. Da mesma forma,
os direitos individuais não se sobrepõem aos direitos sociais.
Nesse sentido, a fórmula constitucional que se apresenta mais ade-
quada para a participação do Congresso Nacional nesse processo é,
certamente, a outorga constitucional ao Congresso Nacional de com-
petência para autorizar previamente os atos do Poder Público que te-
nham por fim a criação de reservas ambientais, demarcação de terras
indígenas, reforma agrária, e outorga de terras aos remanescentes das
Encontra o direito agrário resguardo no texto constitucional?
563

comunidades dos quilombos, assim como em processos que tenham


como objeto a interferência nos direitos e garantias fundamentais,
com o fim de reconhecer os direitos sociais, pois, é o Poder Legislativo
o forum político por excelência. Tudo visando a consolidação da mais
lídima Democracia, fim último da Constituinte de 1987 e de seu sem-
pre lembrado Presidente, Deputado Ulysses Guimarães.

Referências

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 6ª ed. São Paulo, 2006, Malheiros.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 15ª ed. – São Paulo, 2004,
Malheiros.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constitui-
ção, 6ª ed., Coimbra.
LARANJEIRA, Raimundo – Coordenador. Direito agrário brasileiro, São Paulo,
1999, LTr Editora.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, 33ª ed.
– São Paulo, 2007, Saraiva.
FERREIRA, Pinto. Curso de direito agrário, São Paulo, 1994, Saraiva.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 14ª ed.
– São Paulo, 2002, Malheiros.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional, 19ª ed. – São Paulo, 2006, Atlas.
Função social e direito de propriedade
565

A função social como


critério norteador do
direito de propriedade
Alessandra Valério Torres
Caio Hilton Teixeira
Luis Antônio Guerra

I. Introdução

A Constituição de 1988, que em todo o seu texto compromete-se


com a instituição de um Estado de Direito Democrático destinado a
assegurar o exercício dos direitos individuais e coletivos, a eliminar as
desigualdades sociais e regionais e a zelar por um meio ambiente eco-
logicamente equilibrado, não poderia, de forma alguma, adotar outra
postura se não a de enfrentar o caráter absoluto da propriedade.
Indiscutivelmente, o direito de propriedade continua garantido na
Constituição. Porém, acompanhado da exigência inarredável do cum-
primento de sua função social. É o que preceitua o texto constitucio-
nal em diversos dos seus dispositivos (arts. 5°, incisos XXII e XXIII,
170, incisos I e II, 184 e 186). Dispositivos que refletem perfeitamente
a vontade da sociedade de romper com a velha concepção do direito
de propriedade excludente, acumulativo e individual.
Todavia, apesar do texto constitucional ter deixado bem clara a opção
pela construção de uma sociedade justa e livre, enfatizando os direitos
coletivos, há quem insista na defesa da propriedade como um atributo
da condição humana, que confere ao seu titular um direito “de caráter
absoluto” e, como conseqüência, uma ilimitada liberdade de utilização.
Para tanto, utilizam-se de todos os meios para dificultar as mudanças
na concepção do direito de propriedade: “sempre há uma vírgula, um
advérbio ou uma contradição entre incisos ou parágrafos que permi-
tem ao intérprete, juiz, administrador público ou fiscal dizer o que não
566 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

é e manter, por mais algum tempo, o flagelo”1. Exemplo típico foi a


interpolação do art. 185 no texto constitucional.
Com efeito, na Constituição Federal de 1988, o processo reformista do
agro brasileiro passa a ser orientado e tratado sob novo enfoque, não
somente porque conduzido à luz de um novo procedimento especial,
de rito sumário, mas, e sobretudo, porque novas figuras apareceram no
contexto jus-agrarista. Referimo-nos à pequena e média propriedade
e à propriedade produtiva, insuscetíveis de desapropriação para fins de
reforma agrária, conforme disposto no art. 185 de nossa Carta e que,
neste trabalho, merecerá uma incisiva análise crítica por entendermos
que contraria frontalmente dispositivos constitucionais insculpidos
entre os que, pacificamente, são aceitos como direitos metaindividuais
ou coletivos. Um verdadeiro retrocesso na tendência histórica de aper-
feiçoamento sucessivo dos instrumentos impositivos da função social
da propriedade como garantia coletiva.

II. A função social da terra no contexto mundial

Antes de abordarmos o tema central de nosso trabalho, a análise do


art. 185 frente ao cumprimento da função social da propriedade, in-
teressante e necessário relembrar que a função social, entendida como
essência qualitativa do direito de propriedade, remonta aos filósofos
e pensadores antigos, tendo, todavia, em São Tomaz de Aquino seu
grande artífice. E foi na concepção filosófico-tomista, evidentemente,
que se apoiaram algumas das mais famosas encíclicas papais e a maio-
ria das constituições modernas, ao adotarem o princípio da função
social da propriedade em seu ordenamento.
No que se refere às encíclicas, citemos, inicialmente, a Rerum Nova-
rum, 1891, de Leão XIII, que reconhece a função social da propriedade
privada e, sobretudo, afirma, peremptoriamente, que “O proprietário
que tenha recebido bens em abundância não é um possuidor absoluto,
mas simplesmente um administrador da Providência Divina, que lhe
assegurou bens para seu próprio proveito e também para o benefício
de todos os demais”.
Seguiu-se-lhe, em 1931, a encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI, cuja
tônica foi o quase clamor, diante dos horrores da miséria social, no sen-
tido de uma urgente e harmoniosa intervenção estatal na propriedade
privada, para que ela viesse cumprir a função social que lhe é inerente.

1
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Sérgio Antonio Fabris Editor.
Porto Alegre. 2003. Pg. 14.
A função social como critério norteador do direito de propriedade 567

Na década seguinte, surgem La Solemita (1941) e Oggi (1944), por


meio das quais Pio XII reabre o tema da função social da propriedade,
chamando a atenção, já às vésperas da eclosão da Segunda Guerra
Mundial, para as injustiças do capitalismo moderno, onde alguns pou-
cos detêm a maior parte, em detrimento dos menos favorecidos e dos
injustiçados. Face às novas circunstâncias sociais, Sua Santidade pedia
a severa regulamentação do uso da propriedade e, mesmo, a “desapro-
priação como medida sancionadora para aqueles que não dessem à sua
propriedade uso harmonioso com o interesse comum”.
Alguns anos depois, João XXIII, lembrando Leão XIII, dizia em sua
encíclica Mater et Magistra que “Nossos predecessores nunca deixa-
ram igualmente de ensinar que no direito de propriedade privada está
incluída uma função social.(...) Segundo os planos de Deus, o conjun-
to dos bens da terra destina-se, antes de mais nada, a garantir a todos
os homens um decente teor de vida.”
Nessa mesma linha, foi a mensagem contida na encíclica Populorum
Progressio, de Paulo VI, para quem “o supérfluo dos ricos é o necessá-
rio para os pobres”.
Quanto ao ordenamento jurídico internacional, cada país foi adaptan-
do a idéia precursora de uma função social com as próprias caracterís-
ticas nacionais.
Como marco inicial, podemos citar a Constituição Mexicana de 1917,
fruto de uma vitoriosa revolução. Em seu art. 27, estabelece as condi-
ções para o exercício do direito à propriedade privada das terras. Dife-
rencia duas formas de intervenção na propriedade privada: a primeira,
prevendo a desapropriação por razões de utilidade pública e mediante
indenização; a segunda, não reconhecendo o domínio sobre áreas que
não cumpram os preceitos necessários a seu exercício, quando, então, se
faz a intervenção para regular o aproveitamento dos elementos naturais
suscetíveis de exploração e a justa e eqüitativa distribuição da riqueza.
Na Europa capitalista, somente em 1919 estabelecia-se uma restrição
à propriedade privada. Na Constituição de Weimar (Alemanha), cria-
va-se a idéia de obrigação do proprietário. Obrigação que, comuni-
cando-se do proprietário à gleba, ficou conhecida por função social da
propriedade. O exemplo foi seguido por diversas Constituições, como
a da Itália de 1947 e a da Espanha de 1978.
Na América Latina, quase todos os países adotaram o princípio da
função social da propriedade, tenham ou não os ordenamentos re-
cepcionado-o expressamente. A Constituição Argentina de 1994
568 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

nenhuma referência fez à função social, mantendo, em seu art. 17, a


base da Constituição de 1953, que acolhe um princípio de inviolabili-
dade mais rígido. No entanto, o art. 41 do texto constitucional argen-
tino consagra princípios de proteção ambiental e uso racional, o que
não deixa de ser um aspecto da função social inerente à propriedade.
Na Venezuela, o princípio da função social da propriedade foi consa-
grado na Constituição Federal de 1961. E, no mesmo sentido, a Lei de
Reforma Agrária de 1960, estabelece como objetivo principal a forma-
ção de uma nova concepção da propriedade imobiliária, que deve ser
entendida como o direito exercido sobre a terra por conta do trabalho.
O elemento laboral assume ênfase especial, pois a lei reconhece e prote-
ge o direito de propriedade em razão do trabalho de seus titulares.
À revolução boliviana de 1952, levada a cabo pelo Movimento Nacio-
nalista Revolucionário (MNR), coube a tarefa de implantação da re-
forma agrária. A Lei Agrária, então promulgada e calcada na Consti-
tuição mexicana, dispunha que o solo, o subsolo e as águas pertenciam,
por direito originário, à nação boliviana. O art. 2° deixou estabelecido
que se reconhecia a propriedade privada desde que cumprisse “uma
função útil para a comunidade nacional”. Usava o termo cunhado em
Weimar e desconsiderava o domínio sobre a propriedade da terra que
descumprisse tal função.
Na Colômbia, também a Constituição de 1991, considerada a mais
moderna, progressista e multicultural das constituições latino-ame-
ricanas, estabelece a submissão da propriedade privada ao interesse
público ou social. O que significa que não estão no mesmo nível de
proteção a propriedade privada e os direitos coletivos, públicos ou so-
ciais. Estes se sobrepõem àquela.
Também no Chile, a Lei n° 16.640, de 1967 determina que proprie-
dades que não cumprirem a sua função social serão expropriadas, me-
diante pagamento em trinta anos. Entre os fatores ou circunstâncias
que, pela referida lei, caracterizam o descumprimento da função social
estão: tamanho excessivo, baixa produtividade, minifúndios, subdivi-
sões não autorizadas.
Das referências trazidas à luz, pode-se concluir que o princípio da
função social da terra encontra-se consagrado em quase todos os pa-
íses. A funcionalidade vem a ser, pois, a característica mais marcante
do direito de propriedade da terra.
Em síntese, vislumbra-se, nas posições antigas e modernas da Igreja,
e nos ordenamentos jurídicos citados, a existência de dois elementos
A função social como critério norteador do direito de propriedade 569

basilares no direito de propriedade: o primeiro, chamado de direito in-


dividual, que se refere ao fato de que todo homem tem o direito (aqui
absoluto) de possuir tantos bens quantos necessários à satisfação das
necessidades pessoal e social. O outro, elemento dito de direito social,
pelo qual a propriedade deve produzir além das necessidades de seu
detentor, em proveito da sociedade. É esta a idéia-princípio, a um só
tempo antiga e atual, denominada doutrina da função social: idéia de
afetação da propriedade rural a uma finalidade social.

III. A função social da terra no Brasil

Com toda essa tradição político-filosófica, e com o arcabouço jurídico


consolidado, através do tempo, em vários países, não poderia a nos-
sa Constituição Federal de 1988 deixar de consagrar a função social
como critério norteador do direito de propriedade.
A função social em nosso país não é uma novidade. O Brasil trouxe a
discussão da função social da propriedade pela primeira vez na consti-
tuição de 1934 que, de uma forma muito tímida, no art. 111, estatuiu
ser garantido o direito de propriedade, direito esse que não pode ser
exercido contra o interesse social ou coletivo.
A Carta de 1937 é silente a respeito. Surgindo novamente na Consti-
tuição de 1946, onde prevê, nos termos do art. 141, a possibilidade da
desapropriação por interesse social. E, ainda, que a propriedade será
condicionada ao bem-estar social (art.147) e que a lei poderá, com ob-
servância do disposto no art. 146, promover, com igual oportunidade
para todos, a justa distribuição da propriedade.
Em 1964, foi editado o Estatuto da Terra, Lei nº 4.504, aderindo
expressamente ao princípio da função social da terra. Nas Cartas de
1967 e 1969 há uma evolução na linguagem normativa e, finalmente,
ao falar do pagamento da desapropriação de imóveis rurais, ambas
tratam da função social da propriedade.
Mas o verdadeiro coroamento da função social da propriedade se dá
na Constituição de 1988. Nota-se uma indisfarçável preocupação da
Constituição em tratar a questão da dignidade e do bem-estar do ci-
dadão como um imperativo de justiça social. Daí, o privilegiamento
da temática dos direitos fundamentais, colocando-os acima dos di-
reitos individuais. Se, antes de 1988, o universo dos direitos vinha
sob a rubrica “Dos Direitos e Garantias Individuais”, hoje, sensível às
demandas e à reorganização da sociedade civil, aquele universo vem
sistematizado com o título “Dos Direitos e Deveres Individuais e
570 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Coletivos”. Com isso, passa a Constituição Cidadã a consagrar os di-


reitos metaindividuais, difusos ou coletivos.
No art. 5°, incisos XXII e XXIII, declara a propriedade como um di-
reito e a função social como dever inerente a ela. Ainda, em seu art.
170, incisos II e III, trata a propriedade privada e sua função social
como princípios da ordem econômica.
No que tange à propriedade rural, nossa Carta foi mais longe. Especi-
ficou os requisitos necessários ao atendimento da sua função social:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural
atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência
estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e pre-
servação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de tra-
balho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e
dos trabalhadores.

Uma vez assim definidos, o descumprimento dos requisitos que infor-


mam o conceito de função social importará, ipso facto, na desapropria-
ção do imóvel, nos termos abaixo:
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social,
para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cum-
prindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em
títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor
real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo
ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

Todavia, apesar de toda essa tutela, contrariando toda a lógica do texto


constitucional, foram introduzidos vários elementos em seu conteúdo
que objetivam, unicamente, dificultar sua aplicação.
A primeira providência dos latifundiários, chamados de rura-
listas, foi introduzir um vírus de ineficácia em cada afirmação.
Assim, onde a Constituição diz como se cumpre a função social,
se lhe acrescenta que haverá de ter uma lei (outra lei, inferior)
que estabeleça ‘graus e exigências’. Com isso, dizem os Tribunais,
já não se pode aplicar a Constituição sem uma lei menor que
comande a sua execução2.

2
MARÉS, op cit. Pg. 118.
A função social como critério norteador do direito de propriedade 571

E, pior, na contramão das conquistas sociais, estruturadas, como já


vimos, num arcabouço juridico-filosófico consolidado através de lon-
gos séculos, foi inserido no texto constitucional o art. 185, que torna
insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária, a peque-
na e a média propriedades rurais e a propriedade produtiva, figuras
estranhas ao conceito de função social.

IV. O Artigo 185 da Constituição Federal

O referido art. 185 conseguiu a façanha de reconduzir ao ordenamen-


to jurídico pátrio a primazia do interesse particular sobre o coletivo.
Nesse mesmo sentido se posiciona, Jacques Távora Alfonsin3:
O direito adquirido sobre a terra, por menos absoluto que o orde-
namento jurídico o reconheça, hoje, continua absoluto econômica
e ideologicamente. Ainda que a velha planta tenha sido cortada ao
pé do caule, por sucessivas promulgações de leis, suas raízes histó-
ricas tem-lhe garantido viço cultural e resistência sociológica com
força suficiente para neutralizar qualquer esforço de renovação.

Não falta razão ao ilustre agrarista, pois o art. 185 está aí para con-
firmar sua afirmação. Todavia, temos que dele discordar quando usa
a expressão “neutralizar”. Sem dúvida, a eliminação dessas “raízes his-
tóricas” não se faz tranqüilamente nem, tão pouco, em curto espaço de
tempo. Prova de que a renovação se faz está na paulatina aceitação de
que a legitimidade do direito de propriedade se transfere, pouco a pou-
co, do título de domínio para o cumprimento da função social. Não por
outra razão, o art. 184 da Constituição determina a desapropriação do
imóvel que não cumpre sua função social. Neste caso, tirar do proprie-
tário o domínio do imóvel é, de forma indireta, porém clara, declarar a
ilegitimidade de seu domínio sobre referido imóvel. Diz o art. 185:
Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de refor-
ma agrária:
I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei,
desde que seu proprietário não possua outra;
II – a propriedade produtiva.
Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à proprieda-
de produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos
relativos à sua função social.

3
ALFONSIN, Jacques Távora. In: Alexandre Gonçalves Lippel... [et al.]. O direito
agrário em debate. Livraria do Advogado. Porto Alegre. 1998. Pg. 282.
572 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Não será necessário minucioso trabalho hermenêutico em torno da


Constituição e da Lei nº 8.629, de 1993, denominada “Lei Agrária”,
para concluir que não existe sinonímia entre produtividade e aprovei-
tamento racional e adequado. Muito menos, ainda, entre propriedade
produtiva e propriedade que cumpre sua função social, haja vista que
a simultaneidade na observância dos quatro requisitos que informam o
conceito é que conota o cumprimento da função social. Não existindo
a sinonímia, e continuando a propriedade dita produtiva insuscetível
de desapropriação, por interpretação de nossos tribunais, a conclusão
óbvia é que o inciso II do art. 185 revoga, anula o art. 186, e entra em
flagrante contradição com o mandamento constante do art. 184.
Como bem expressou Carlos Frederico Marés4: “Ao submeter a fun-
ção social à produtividade, esta interpretação desconsidera a doutrina
e a evolução da teoria da função social e reduz o art. 186 da Constitui-
ção a uma retórica cínica”.
Maior absurdo se verifica com relação à pequena e média proprieda-
des rurais, considerando que sua exclusão do processo expropriatório
se dá sem que atendam elas, pelo menos, ao aspecto econômico da
função social. Ademais, “dimensão” nem mesmo integra o conjunto
dos requisitos de que fala o art. 186, ou seja, aqueles que informam o
conceito de função social.
Indiscutível que se pode, em uma propriedade rural, obter produtivi-
dade, que se afere através dos graus de utilização (GUT) e de eficiên-
cia na exploração (GEE), sem a observância, simultânea, dos quatro
requisitos especificados pelo art. 186, quais sejam: aproveitamento ra-
cional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponí-
veis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que
regulam as relações de trabalho; e, finalmente, exploração que favoreça
o bem-estar dos proprietários e trabalhadores.
De suma importância, neste ponto, reafirmar que tais requisitos tra-
duzem deveres do proprietário, a que correspondem tanto direitos
difusos, inseridos nos incisos I e II, como direitos homogêneos e
individuais inderrogáveis, porquanto fundamentais, nos termos dos
incisos III e IV.
Com relação ao aspecto ambiental, não é de hoje que a preocupação
com o meio ambiente e o uso dos recursos naturais está integrada à
função social da terra. O Estatuto da Terra, Lei n° 4.504, de 1964, por

4
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre. Sergio Antonio
Fabris Editor. 2003. Pg. 120.
A função social como critério norteador do direito de propriedade 573

exemplo, já previa em seu texto a conservação dos recursos naturais


como condição para o cumprimento da função social da propriedade
(art. 2°, § 1°, alínea “c”).
O inciso II, do art. 186 da Constituição, insere dois mandamentos: a
utilização adequada dos recursos naturais e a proteção ambiental. Por-
tanto, não é suficiente respeitar as áreas de proteção ambiental (Áre-
as de Preservação Permanente e de Reserva Legal). Deve-se atentar,
também, para as práticas que podem por em risco a sustentabilidade
da atividade desenvolvida. Assim, também assume relevância o mode-
lo tecnológico que será utilizado, incluindo-se as boas práticas conser-
vacionistas, uso correto dos agrotóxicos, manejo dos resíduos culturais,
práticas de preparo do solo, cuidados com os recursos hídricos etc.
O atendimento deste requisito da função social da terra se materializa
com o cumprimento da legislação ambiental, federal e estadual, que é bas-
tante ampla, estruturada à sombra do art. 225 da Constituição Federal:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletivi-
dade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações.

Em outras palavras, a única forma permitida de utilização do meio


ambiente é aquela que considere sua sustentabilidade. Fora desta, ca-
racteriza-se uma infração ambiental. No caso das propriedades rurais,
a legislação ambiental afeta é muito ampla. Para este trabalho, desta-
camos algumas disposições constantes no Código Florestal.
O Código Florestal, Lei nº 4.771, de 1965, com as alterações inseri-
das pela Lei nº 7.803, de 1989, pela Medida Provisória nº 2.166-67,
de 2001 e pela Lei nº 11.284, de 2006, define as florestas e as demais
formas de vegetação como bens de interesse comum a todos os ha-
bitantes do país, devendo o direito de propriedade ser exercido com
as limitações estabelecidas em lei (art. 1º). De acordo com o código,
é considerado nocivo o uso da propriedade em discordância com as
determinações nele constantes (art. 1º, §1º).
Com efeito, a percepção de que a vegetação nativa constitui um bem
jurídico ambiental dotado de um “valor de existência” permeia todo
o Código Florestal. Não mais a vemos como um bem jurídico am-
biental com, apenas, um “valor de uso”. Tal percepção se consolidou,
realmente, por meio da definição da floresta nativa como bem jurídico
ambiental, mesmo quando localizada em propriedade particular(Lei
nº 6.938, de 1981). Esse entendimento encontra suporte em ditames
574 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

constitucionais que asseguram às futuras gerações um meio ambiente


ecologicamente equilibrado (art.225), e subordinam a atividade eco-
nômica ao uso racional dos recursos naturais (art.170).
Com a mesma concepção, o Código Florestal trata as figuras jurídicas
“Área de Preservação Permanente e Reserva Legal”. Além dessas figu-
ras, abriga a Servidão Florestal (art. 44-A), que representa um avanço
em prol da preservação ambiental, por permitir ao proprietário manter
a vegetação nativa de sua propriedade. Neste caso, independentemen-
te da produtividade, referido imóvel vem de ser considerado como
propriedade que cumpre a sua função social.
Além das vantagens conferidas pela servidão florestal, acima expostas,
cabe ressaltar tratar-se de mecanismo que permite ao proprietário ofe-
recer parte de seu imóvel para compensar a reserva legal de terceiros,
desde que esteja localizado na mesma bacia hidrográfica.
Quanto ao aspecto trabalhista, assim como o cumprimento do inciso
II, do art. 186, está adstrito às normas ambientais, o cumprimento do
inciso III, do referido art., está diretamente vinculado à observância
da legislação que rege as relações de trabalho. Entretanto, inúmeras
situações comprovadas de redução de trabalhadores à condição aná-
loga à de escravo e de sujeição de trabalhadores rurais a condições de
miserabilidade absoluta continuam afrontando, impunemente, a tão
propalada dignidade da pessoa humana. Lembremo-nos, por fim, do
trabalho infantil, tão difusamente utilizado tanto nas plantações de
cítricos, de cana-de-açúcar e de algodão, como na produção de carvão.
Essas e outras práticas, de todos conhecidas, agridem, além do orde-
namento jurídico, a consciência social desta nação.
A realidade, infelizmente, é que, sob o manto protetor do art. 185 de
nossa Carta, propriedades rurais têm, sistematicamente, desrespeitado
os direitos acima referidos. E, apesar de tudo isso, se a propriedade
obtiver índices de produtividade iguais àqueles exigidos pelo Poder
Público, ela não será desapropriada. Cumpre-nos anotar, neste ponto,
que os índices de produtividade atualmente vigentes são aqueles fi-
xados pelo Governo, no ano de 1980, com base nos dados do Censo
Agropecuário de 1975, quando a realidade rural e as técnicas de pro-
dução empregadas eram totalmente diferentes.
Em resumo, queremos deixar consignado que a revogação do art. 185,
além de ser um imperativo de ordem jurídica, o é, também, de justiça
social. Como demonstrado, a revogação do art. 185 não deixará des-
protegida a propriedade rural que cumpre sua função social, nos ter-
mos do art. 186. Isto porque o art. 184, ao contrário do que se pensa,
A função social como critério norteador do direito de propriedade 575

é o instrumento constitucional garantidor da inexpropriabilidade do


imóvel que cumpre a função social, qualquer que seja sua dimensão.
Tanto assim, que a Lei nº 8.629/93, que regulamentou o Capitulo III
do Título VII da Constituição, diversamente do Estatuto da Terra,
não contemplou a possibilidade de desapropriação em razão da di-
mensão da propriedade.

V. Conclusão

Na atualidade, é incontestável que a funcionalidade constitui-se em


elemento interno do conceito de propriedade, sem a qual a proprieda-
de não é perfectível. Não existe mais espaço para a propriedade exclu-
siva e excludente. Entretanto, apesar da Constituição ter deixado bem
claro que a função social da terra só será atendida se satisfeitos, simul-
taneamente, os aspectos sociais (trabalhista e bem-estar), ambientais e
econômicos, na prática, isso não tem ocorrido.
É nítida a “confusão” que se tem feito entre a funcionalidade da proprie-
dade e sua produção, relegando a um segundo plano os demais aspectos
da função social (ambiental e social). Em parte, isso pode ser explicado
se levarmos em consideração que a função social, assim como qualquer
princípio legal, está diretamente relacionada às necessidades e anseios
da coletividade. E, num primeiro momento, a não ociosidade da terra
atendia a esses anseios. A propriedade tinha que produzir.
Entretanto, nos últimos anos têm ganhado espaço no debate público
questões relacionadas aos direitos humanos e à proteção ambiental.
No que tange aos direitos humanos, é inadmissível que, em pleno sé-
culo XXI, ainda haja trabalhadores vivendo em condições análogas
à de escravo, sem falar no trabalho infantil, tão empregado no meio
rural. Ainda sobre os direitos humanos fundamentais, outra questão
que adquire, a cada dia, maior importância é a da soberania e segu-
rança alimentar e nutricional da população. Não por acaso, recente-
mente foi aprovada no Brasil a Lei Orgânica da Segurança Alimentar
e Nutricional (Losan). O tema é complexo e envolve, entre outros,
aspectos como o acesso à terra, a distribuição mais eqüitativa da renda,
a prioridade na produção de alimentos, uma política agrícola eficaz, a
sustentabilidade da produção e a defesa dos direitos dos agricultores
e dos consumidores.
Ao mesmo tempo, acirram-se no cenário mundial, os debates sobre as
questões ambientais. Problemas como poluição, efeito estufa, aqueci-
mento global e mudanças climáticas e suas conseqüências desastrosas,
576 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

passaram à ordem do dia. Como resultado, acendem-se várias discus-


sões em torno de temas como: produção versus proteção ambiental e
segurança alimentar versus produção de biocombustíveis.
Porém, apesar de sabermos que dificilmente se chegará a um consenso
sobre a melhor maneira de enfrentar esses problemas, há a certeza de
que a solução passa, necessariamente, por mudanças no modelo pro-
dutivo, visando sua sustentabilidade ecológica, econômica e social. O
que, sem dúvida, tem tudo a ver com o cumprimento simultâneo dos
requisitos da função social, inscritos no art. 186 da Constituição.
Neste sentido, temos assistido à tímida, mas gradual, conscientização
da importância do cumprimento pleno da função social, com ênfase
no fortalecimento dos aspectos ambientais e sociais. A questão am-
biental, por exemplo, adquiriu tamanha relevância que já há setores
da sociedade que defendem a legitimidade do direito de propriedade
calcada apenas na proteção ambiental.
Não é somente a questão ambiental a preocupação atual da sociedade
brasileira. No aspecto trabalhista, a questão da redução dos trabalha-
dores à condição análoga a de escravo tem sido objeto da atenção
do Congresso Nacional. Não por acaso, inúmeras proposições encon-
tram-se em tramitação prevendo a possibilidade de desapropriação
sem indenização dos imóveis rurais onde forem constatadas essas
práticas. Assim, esse caso de extremo descumprimento da função so-
cial, com afronta à dignidade da pessoa humana, estaria sujeito a uma
verdadeira sanção.
Diante do exposto, impõe-se-nos reafirmar, como inquestionável, que
o cumprimento simultâneo dos requisitos inerentes à função social é
o pressuposto do direito de propriedade, direito esse que não pode ser
atingido pela desapropriação prevista no art. 184. Decorre daí, que
o descumprimento de qualquer dos requisitos caracteriza circuns-
tância objetiva pré-constituída que autoriza o Estado a intervir na
propriedade, pela desapropriação. De outra forma não poderia ser, já
que a função social, como essência qualitativa do direito de propriedade,
somente se conforma pela perfeita, completa e simultânea interação
de todos os seus elementos constitutivos. Inaceitável, portanto, que
dispositivo constitucional torne insuscetível de desapropriação pro-
priedade que atenda somente o aspecto econômico da função social
(produtividade), mesmo que, para o atingimento desse requisito, tenha
atentado, por exemplo, contra o equilíbrio ecológico ou contra a liber-
dade individual do trabalhador.
A função social como critério norteador do direito de propriedade 577

Passados vinte anos da promulgação da Constituição “Cidadã”, a so-


ciedade ainda espera, ainda acalenta o sonho de que a função social não
seja, somente, um critério norteador do direito de propriedade. Espe-
ra, sobretudo, que seja a garantia dos alimentos necessários à satisfação
de suas necessidades, a garantia de um meio ambiente ecologicamente
equilibrado e, finalmente, a garantia da liberdade e da dignidade dos
trabalhadores. Sem isso, onde a garantia dos direitos inalienáveis rela-
tivos à vida, à cidadania e à dignidade da pessoa humana?

Referências

MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre : S. A. Fabris


Ed., 2003.
ALFONSIN, Jacques Távora. In: LIPPEL, Alexandre Gonçalves [et al.]. O di-
reito agrário em debate. Porto Alegre : Liv. do Advogado, 1998..
Medida Provisória
579

A Medida Provisória e sua


evolução constitucional
Ednilton Andrade Pires

1. Introdução

O art. 62 da Constituição brasileira, que instituiu as medidas provisó-


rias no país, representou uma das maiores inovações da Carta Política
de 1988. A complexidade do tema e as implicações políticas que ele
representa têm desafiado políticos e catedráticos, gerando, às vezes,
posições diametralmente opostas a respeito de sua necessidade. O ní-
vel de polêmica em torno das medidas provisórias pode ser traduzido
pelo fato de que talvez seja esse o único instituto da Constituição a
experimentar duas profundas reformas: a primeira, em 2001, com a
promulgação da Emenda Constitucional nº 32; e a segunda, em anda-
mento no Congresso Nacional, desde 2006.
Para uma melhor compreensão da evolução do dispositivo, é impor-
tante conhecer o porquê de sua introdução no ordenamento jurídico
brasileiro. A Constituição de 1988, ainda que não tenha sido escrita
num momento de ruptura institucional, foi definitivamente marcada
pela aspiração de uma nova era democrática decorrente do desgaste do
regime de exceção que durou vinte e quatro anos. Em conseqüência,
houve uma considerável preocupação em garantir as liberdades indivi-
duais, bem como em extirpar qualquer instrumento que representasse
o autoritarismo do regime anterior.

2. Contextualização histórica

O Estado moderno convive com uma realidade completamente dife-


rente daquele ambiente em que foi gestado o pensamento liberal dos
séculos XVII e XVIII. A sociedade alcançou um grau de complexi-
dade e globalização, certamente, jamais imaginado naquela época. As
inumeráveis situações que afetam hoje a sociedade – os cidadãos, as
empresas e o próprio Estado – exigem, muitas vezes, a adoção de me-
didas que proporcionem respostas rápidas e eficientes.
580 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Nesse contexto, surge a medida provisória como um instrumento para


atender situações imprevisíveis, urgentes e absolutamente excepcionais.
O complexo ato de sua formação e permanência no ordenamento jurí-
dico exige a participação dos Poderes Executivo e Legislativo, cada um
com uma parcela diferente de competência no processo. Ao Executivo
compete remediar uma situação relevante e urgente, que exige uma ação
com resultados imediatos e, por isso, não pode prescindir de um instru-
mento hábil para essa tarefa. O Legislativo tem o dever de decidir se
aquela ação, que foi tomada “às pressas”, é a melhor para a sociedade,
devendo, após cuidadosa análise, dar-lhe ou não caráter definitivo.
Considerada um instrumento anômalo do exercício da competência
legislativa, a medida provisória foi recebida pelo ordenamento jurídico
pátrio para suprir a lacuna de seu antecessor, o Decreto-Lei, que não
se harmonizava com o caráter democrático que a Assembléia Nacio-
nal Constituinte de 1987 queria dar ao Brasil.
Sob a ótica legislativa, de fato, o Decreto-Lei representou o mais ca-
racterístico instrumento de exercício do poder do regime de exceção.
Esse veículo excepcional de legislação governamental surgiu pela pri-
meira vez na Constituição de 1937, durante a “Era Vargas”, que ascen-
deu ao poder por meios não democráticos.
A Carta de 1946, privilegiando o regime democrático, eliminou o De-
creto-Lei e proibiu a delegação de poderes. No entanto, intensificou-se
a atividade legislativa do Poder Executivo por meio de atos regulamen-
tares para atender as demandas decorrentes das complexas relações que
se formaram com o impulso desenvolvimentista do pós-guerra.
Em 1964, o governo de regime autoritário que se instalou trouxe de
volta ao ordenamento jurídico brasileiro a figura do Decreto-Lei.
Mais uma vez, o Decreto-Lei tem como pano de fundo um regime de
exceção. O Ato Institucional nº 2, de 1965, que superava, inclusive as
normas constitucionais vigentes, outorgou ao Presidente da Repúbli-
ca a prerrogativa de editar Decretos-Leis sobre matéria de segurança
nacional, sendo ampliada mais tarde, pelo Ato Institucional nº 4, de
1966, para matérias financeiras e administrativas.
Com o fim do período autoritário e com a convocação da Assembléia
Nacional Constituinte, em 1987, tornou-se inelutável a decisão de
banir a prerrogativa presidencial de editar decretos com força de lei.
No entanto, debatia-se que poderes legislativos seriam concedidos ao
governo. As discussões polarizaram-se. Havia uma corrente totalmen-
te contrária à concessão de poderes ao Executivo para edição de atos
A medida provisória e sua evolução constitucional
581

legislativos com força de lei, carreada por constituintes da autoridade


de Michel Temer (1988, p. 8655), que assim asseriu:
... o que está em pauta é a possibilidade de um Legislativo retor-
nar a sua função da Constituição de 1946 e legislar amplamente
ou, ao contrário, se mantivermos as chamadas medidas provisó-
rias, a incapacitação de um legislativo brasileiro legislar na sua
plenitude (...) A medida provisória é um nome novo que se deu
a uma coisa velha (...) é tal qual o Decreto-Lei e, com um agra-
vante, porque, se é verdade que, diversamente do Decreto-Lei,
a medida provisória, se não aprovada pelo Congresso Nacional,
considera-se ineficaz, a verdade é que , no atual sistema, o De-
creto-Lei só pode versar três matérias determinadas: segurança
nacional, finanças públicas e normas tributárias. A chamada me-
dida provisória, com as mesmas características do Decreto-Lei,
pode versar sobre todas e qualquer matéria.

O Deputado Adílson Motta (1988, p. 8654), no mesmo sentido, afirmou:


Se fosse perquirir as razões que, ao longo dos últimos anos, leva-
ram esta Casa ao total descrédito, certamente alinharia entre as
principais, se não a singularizasse, o uso abusivo do instrumento
de exceção que é o Decreto-Lei. O que é um Decreto-Lei? De-
creto-Lei é um ato com força de lei editado pelo Presidente da
República e homologado pelo Congresso Nacional. Pois bem,
se dou esta definição é para que não paire qualquer dúvida de
que o texto, que está sendo proposto, o texto-base, reintroduz na
Constituição brasileira a figura do Decreto-Lei (...)

A outra corrente, tendo em Nelson Jobim (1988, p. 8656) o seu grande


expoente, esposava a idéia da necessidade de um instrumento legislativo
que permitisse ao Executivo atender demandas relevantes e urgentes, que
não pudessem aguardar pelo processo legislativo ordinário, in verbis:
(...) não há uma renúncia, absolutamente, da capacidade legis-
lativa desta Casa. O que há, realmente, efetivamente, é algo que
não podemos controlar, é a circunstância de que situações emer-
genciais e de extrema gravidade se ponham e exijam intervenção
do Estado de imediato, e esta intervenção se dará pelo Executi-
vo, que, graças a Deus, será um Executivo parlamentarista [...]
Srs. Constituintes, não estamos tratando de Decreto-Lei, esta-
mos tratando de algo moderno, algo absolutamente moderno,
que corresponde àquilo que a sociedade conhece, a necessidade
da intervenção expedita e rápida do Estado em situações emer-
genciais e de grande gravidade absoluta. E esta Casa vigiará de
forma absoluta, e com toda a sua força legislativa, qualquer ex-
cesso que venha a ser praticado.

Importou-se, então, o modelo do sistema parlamentar italiano, razão


pela qual encontra-se na literatura jurídica aqueles que afirmam que a
582 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

introdução das medidas provisórias na Constituição está inseparavel-


mente vinculada ao sistema parlamentar de governo. No entanto, Nel-
son Jobim (2000, p. 2-3), lembrando os fatos do período da elaboração
da Constituição, rebateu veementemente essa afirmação:
Começaremos, portanto, pela sessão de 19 de março de 1988 da
Assembléia Nacional Constituinte. Já então se discutia o siste-
ma de Governo. Na Comissão de Sistematização da Assembléia
Constituinte, havia sido aprovado o sistema parlamentar de go-
verno, e todo o desenho do sistema parlamentar de governo estava
posto sobre a mesa. Os presidencialistas uniram-se em torno da
Emenda Coletiva nº 1.830, assinada pelo então Senador Humber-
to Lucena e pelo Deputado Vivaldo Barbosa, membro do Partido
Democrático Trabalhista. Nessa emenda presidencialista já estava a
emenda coletiva, que havia sido apresentada à Câmara dos Deputados,
antes da discussão, em plenário, sobre as medidas provisórias (...). Por-
tanto, historicamente é falsa a afirmação de que no momento em
que foi aprovada a emenda presidencialista, deveria cair o texto
das medidas provisórias, porque essas seriam instrumentos típicos
dos regimes parlamentaristas. Essa afirmação, historicamente, é
falsa. A emenda coletiva de Humberto Lucena e Vivaldo Bar-
bosa foi a emenda presidencialista que restou aprovada na sessão
de 23 de março de 1988 (...). E lá os Deputados Adylson Motta
e Michel Temer encaminharam contrariamente à adoção de me-
didas provisórias no texto da Constituição. O Deputado Egídio
Ferreira Lima e eu defendemos sua adoção e a votação foi no sen-
tido de sua aprovação com os votos dos presidencialistas.

Desta maneira, as medidas provisórias passaram a integrar o cotidiano


do cidadão brasileiro e, independentemente da filiação partidária, do
projeto de governo, das promessas de campanha, ou do momento políti-
co, todos os Presidentes da República do Brasil usaram com freqüência
a medida provisória. A Tabela 1 traduz em números o uso de medidas
provisórias por Presidente da República desde a sua instituição .
Tabela 1 – Medidas provisórias por presidente

Presidente Originais Reedições Total


Sarney 132 15 147
Collor 88 72 160
Itamar 138 367 505
FHC (1º Mandato) 156 2453 2609
FHC (2º Mandato) 185 2606 2791
Lula (1º Mandato) 240 - 240
Total 939 5513 6452
Fonte: Legin – Legislação Informatizada da Câmara dos Deputados/Portal do Senado Federal/
Portal da Presidência da República
A medida provisória e sua evolução constitucional
583

A medida provisória está completando vinte anos no Direito brasilei-


ro, e é possível dividir a sua existência em dois momentos, que clama-
ram por reformas. O primeiro momento é o da reedição, que durou
desde a criação do instituto até o ano de 2001, quando foi promulgada
a Emenda Constitucional nº 32. O segundo momento é o do sobres-
tamento, que se inicia em 2001 e chega aos dias atuais.

3. A medida provisória e o problema da reedição

A permissão de reedição de medida provisória, comumente atribuí-


da ao Supremo Tribunal Federal foi, na verdade, primeiramente uma
decisão do Congresso Nacional. O Deputado Nelson Jobim (2000)
narra que, em fevereiro de 1989, o Presidente José Sarney, editou a
Medida Provisória nº 39, que foi uma reedição da Medida Provisória
nº 29, portanto, a primeira reedição de medida provisória da história
do Congresso Nacional. Surgiu uma questão de ordem que levou o
Presidente do Congresso Nacional, Senador Nelson Carneiro, a de-
signar uma comissão especial mista para examinar o tema da reedição
de medidas provisórias. Em março de 1989, sob a relatoria do De-
putado Nelson Jobim e a presidência do Deputado Afonso Arinos,
publicou-se o parecer da comissão, no qual o Congresso Nacional ad-
mitia formalmente a reedição de medidas provisórias, ou seja, a pri-
meira manifestação sobre reedição de medida provisória foi feita pelo
Congresso Nacional, não pelo Poder Judiciário.
Daí, o que se seguiu foi um crescente número de edições e reedições
de medidas provisórias. Observe na coluna de reedições da Tabela 1
tal evolução.
O instituto, inserido na Carta de 1988 como um instrumento legislativo à
disposição do Presidente da República para ser usado em caso de relevân-
cia e urgência, passou a ser utilizado sem qualquer respeito a esses pressu-
postos constitucionais e, frise-se, com a anuência do Congresso Nacional,
ou, para ser mais preciso, com a anuência da maioria parlamentar, que
invariavelmente faz parte da base de sustentação do governo.
O sintético texto original do art. 62 da Constituição do Brasil deu
margem a uma série de interpretações jurídicas e políticas, que in-
crementaram acentuadamente a participação do Poder Executivo no
processo legislativo. O Congresso Nacional foi, então, compelido à
busca de um novo texto que restabelecesse o equilíbrio das competên-
cias constitucionais de cada Poder.
584 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A empreitada culminou com a promulgação da Emenda Constitucio-


nal nº 32, em 11 de setembro de 2001, e, posteriormente, com a edição
da Resolução nº 1, de 2002-CN. A maior inovação dessa emenda foi
o estabelecimento do sobrestamento de todas as deliberações legislati-
vas da Casa em que estivesse tramitando uma medida provisória com
mais de 45 dias, contados de sua publicação.

4. O sobrestamento: de solução a problema

Após mais de seis anos de vigência do novo regime das medidas pro-
visórias, sob o mando da Emenda Constitucional no 32, os resultados
colhidos não foram aqueles esperados. O Congresso Nacional não tem
apreciado tempestivamente as medidas provisórias, o que tem causado
sucessivos trancamentos das pautas de suas Casas Legislativas.
Em 2008, a pauta somente foi liberada no mês de maio, ou seja, o pri-
meiro semestre da atividade legislativa ficou, em grande parte, voltado
apenas para a apreciação de medidas provisórias, o que demonstra a
dificuldade que o Poder Legislativo encontra para estabelecer a sua
própria agenda de trabalho.
O novo regime procurou dar mais racionalidade ao uso da medida
provisória, limitando o seu campo material, proibindo as suas reedi-
ções, alterando o seu rito processual e criando mecanismos para que
o Congresso Nacional fosse obrigado a examiná-las tempestivamente.
No entanto, por que as alterações constitucionais e regimentais rela-
tivas às medidas provisórias não proporcionaram a desejada agilidade
de sua apreciação pelo Congresso Nacional?
Uma incursão histórica no processo de criação da Emenda Consti-
tucional nº 32, de 2001, revela as causas do insucesso. As discussões
parlamentares no plenário e nas comissões do Senado Federal e da
Câmara dos Deputados permitem inferências que apontam para con-
clusões bem diferentes daquelas que permeiam o conhecimento po-
pular, que invoca freqüentemente a desídia do Congresso Nacional e
o abuso do Poder Executivo para explicar o fenômeno.
A forte pressão dos fatos sociais e políticos num momento de turbu-
lência econômica, com altíssimo índice inflacionário, contribuiu para
a decisão do Supremo Tribunal Federal em não impedir o Poder Exe-
cutivo de expandir o exercício de sua excepcional competência legisla-
tiva, contando também com a passividade do Congresso Nacional por
cerca de sete anos.
A medida provisória e sua evolução constitucional
585

A partir de 1995, os discursos de inconformismo em relação à siste-


mática que se instalou começaram a ganhar espaço na agenda do Con-
gresso Nacional. O Senador Ademir Andrade (1999, p. 33284), com a
sua experiência de constituinte, declarou que as normas estabelecidas
no texto original da Constituição acerca das medidas provisórias, em
face da mutação constitucional1, desviaram-se da mens legislatoris, re-
ferindo-se ao pensamento político que inspirou a inserção da medida
provisória na Carta Magna de 1988, a saber:
O conceito que tínhamos era da compreensão nítida, clara e que
mantemos até hoje – não mudo o meu ponto de vista sobre essa
questão – de que existem determinados momentos e circuns-
tâncias em que um integrante do Poder Executivo necessita de
rapidez numa certa deliberação (...). Nós admitíamos a edição
de medidas provisórias, votamos a favor delas. Agora, o enten-
dimento que tínhamos era de que medida provisória seria algo
de caráter eminentemente emergencial, uma necessidade de que
algo passasse a prevalecer no dia seguinte e que isso não duraria,
em nenhuma hipótese, mais do que trinta dias. Foi com esse
conceito que aprovamos claramente esse instituto na Constitui-
ção Brasileira. Lamentamos até hoje a interpretação do Supremo
Tribunal Federal, que permitiu a edição indefinida de medidas
provisórias e fez com que o Poder Executivo passasse a legislar
em lugar do Congresso Nacional.

O Deputado Prisco Viana (VIANA apud BACCI, 1999, p. 22501)


chamou a atenção para o fato de o Congresso Nacional estar assu-
mindo um papel pouco relevante, tornando-se um agente de conduta
meramente homologatória das decisões do governo:
Maior complexidade advém desse instituto a cada reedição,
quando o Poder Executivo não se limita a renovar a eficácia, mas
vai além, com pequenas ou quase imperceptíveis alterações que
afetam, porém, a substância do direito legislado a títulos provi-
sórios. Depara-se o Congresso sob a contingência de, passados
vários meses de publicação de uma medida provisória, defron-
tar-se com situações amplamente constituídas e consolidadas,
determinando a sua conduta meramente homologatória.

O Senador Lúcio Alcântara (1999, p. 33276-33277) mostra que as


regras vigentes, especialmente as relativas ao processo de tramita-
ção, favorecem, no jogo das forças políticas, às maiorias ocasionais,

1
A mutação constitucional consiste na alteração, não da letra ou do texto expresso,
mas do significado, do sentido e do alcance das disposições constitucionais, por
meio ora da interpretação, ora dos costumes, ora da legislação infraconstitucional.
Em resumo, constitui um processo informal de mudança da Constituição.
586 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

normalmente alinhadas com o Executivo. O parlamentar traduz esse


momento político da seguinte maneira:
Não há condições políticas de sustentação para a atual sistemá-
tica, que vem vigorando, para a grande insatisfação da sociedade,
muito mais do que para nós, Parlamentares, que estamos tendo,
em parte, nosso direito de legislar usurpado. É a sociedade que
não aceita, nem entende por que as medidas provisórias se su-
cedem, são reeditadas. É ela que nos cobra: “Vocês, que estão
lá, o que fizeram? Por que não votam? Por que não aprovam,
rejeitam ou modificam?”. Não modificamos, não aprovamos, não
rejeitamos, porque também o processo de tramitação não per-
mite sequer que nos articulemos para isso, e maiorias ocasionais,
eventuais, terminam fazendo como que elas sejam reeditadas,
para que o processo decisório não se dê (...) A medida provisória
tal como está não é nada mais, nada menos do que uma tentação
autoritária. Existe, está disponível, e, evidentemente, quem está
governando dela se socorre com muita freqüência, todo instante,
a todo momento.

O jogo de forças políticas sempre existiu e é próprio do regime de-


mocrático. No caso das medidas provisórias, como revelou o Senador
Lúcio Alcântara, o processo legislativo de sua apreciação pelo Con-
gresso Nacional desempenha um papel de fundamental importância
no resultado desse embate pelo poder.
A forma de apreciação, os prazos estabelecidos, as sanções aplicáveis ao
seu descumprimento, a existência ou não de mecanismos que obriguem
o Congresso a deliberar, os critérios de escolha de relatores, enfim, todos
esses são fatores que somados às forças políticas irão determinar a eficá-
cia com que o Poder Legislativo apreciará as medidas provisórias.
Como anteriormente afirmado, as mudanças promovidas pela Emenda
Constitucional nº 32, de 2001, e pela Resolução nº 1, de 2002-CN, que
pretendiam restabelecer o equilíbrio das competências legislativas do
Poder Legislativo em relação ao Poder Executivo, não alcançaram êxito.
A situação ficou ainda pior, pois o sobrestamento, mecanismo que tran-
ca a pauta da Casa em que a medida provisória estiver tramitando após
o quadragésimo quinto dia a partir de sua publicação, acabou por repre-
sentar um grande transtorno à ação legislativa ordinária do Congresso
Nacional, marcando presença na maioria das sessões deliberativas.
Os números, por si só, traduzem a dimensão do problema. Segundo um
levantamento realizado pelo PSDB, com dados fornecidos pela Secre-
taria Geral da Mesa, nos últimos 4 anos, 70 % das sessões deliberativas
da Câmara dos Deputados foram obstruídas por medidas provisórias,
ou seja, em apenas 30% das vezes, os deputados puderam deliberar
A medida provisória e sua evolução constitucional
587

livremente sobre outros assuntos que não medidas provisórias. Em


2008, vale lembrar, somente no mês de maio, a pauta foi liberada.
Ao se proibir a reedição de medidas provisórias na mesma sessão
legislativa, reduziu-se o número total de medidas provisórias, mas a
quantidade de medidas originais, ou seja, aquelas que não são ree-
dições, mas, sim, uma inovação no ordenamento jurídico, essas não
tiveram sua quantidade reduzida.
Na verdade, o número ficou ainda maior. No primeiro mandato do
Presidente Fernando Henrique Cardoso foram 156 medidas originais;
no segundo mandato, parcialmente sob a égide da Emenda Constitu-
cional nº 32, de 2001, foram 185. No primeiro mandato do Presidente
Lula, o número de medidas provisórias foi de 240, e, para o segundo
mandato, baseado na média de edições de 2007, projeta-se mais um
outro tanto de novas medidas provisórias.
Portanto, o sobrestamento tornou-se o ponto central da atenção dos
parlamentares no que diz respeito às regras de tramitação das medi-
das provisórias. O discurso dos presidentes da Câmara e do Senado
na abertura da atual Sessão Legislativa tratou com especial destaque
desse assunto, pautando-o como uma prioridade do Congresso Na-
cional. Tanto que, imediatamente foi instalada, na Câmara dos Depu-
tados, uma comissão especial para apreciar cerca de trinta propostas de
emenda constitucional que estão tramitando naquela Casa, inclusive
uma já aprovada no Senado, a PEC nº 511, de 2006.
A Emenda Constitucional nº 32, de 2001, que instituiu o sobresta-
mento, foi apreciada por seis anos, tramitando duas vezes na Câmara
dos Deputados e três vezes no Senado Federal, mas não resolveu o
problema, por quê?

5. O sobrestamento: análise do problema

Para melhor compreensão do fenômeno atual, convém seja relembra-


do os pontos que foram alvos de crítica no regime original das medi-
das provisórias.
Naquele regime, havia a questão das reedições, do excesso de medidas
provisórias, da falta de limitação material, enfim, diversos problemas.
Não obstante a simplicidade redacional do art. 62 da Constituição,
surgiram muitos posicionamentos conflitantes entre a doutrina, a ju-
risprudência e a prática legislativa. As diversas interpretações dadas ao
588 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

instituto da medida provisória deixaram-no sem uma base normativa


bem determinada.
Em sede doutrinária, houve divergência do pensamento político pre-
valente no Congresso Nacional, especialmente no que diz respeito à
possibilidade de reedição de medidas provisórias. Por outro lado os
juristas raramente perscrutavam o rito processual das medidas provi-
sórias dentro do Congresso Nacional e as relações políticas vinculadas
ao seu funcionamento, ou seja, desprezaram em suas análises o fator
político, que, por tantas vezes, exerce papel determinante no processo
legislativo, mesmo contrariando a lógica jurídica.
Didaticamente, o pensamento doutrinário pode ser dividido em
três grupos. Primeiramente, o grupo daqueles que tratam da me-
dida provisória pelo prisma da descrição histórica, ou da descrição
da estrutura do dispositivo, apresentando suas características gerais,
seus objetivos e seus ideais. Um outro grupo critica o instituto das
medidas provisórias, afirmando serem estas um mal para o país, e
que não deveriam existir. Segundo esse grupo de juristas, as medidas
provisórias sempre darão margem ao uso abusivo pelos governantes,
independentemente de orientação partidária ou de ideologias pesso-
ais. O terceiro grupo, que parece apresentar maior inovação, é aquele
que estuda o rito das medidas provisórias e as relações políticas esta-
belecidas nesse processo, ou seja, o que acontece com elas no interior
do Congresso Nacional.
A literatura desse terceiro grupo é extremamente exígua. Poucos aden-
traram a seara do rito processual das medidas provisórias. Há uma la-
cuna literária acerca do tema, mas notadamente acerca do pensamento
político que orientou o estabelecimento do atual rito constitucional e
regimental das medidas provisórias nas Casas Legislativas.
Tal lacuna pode ser preenchida por uma análise baseada nas discus-
sões havidas à época da tramitação da PEC nº 1, de 1995, do Senado
Federal, que recebeu o número de PEC nº 472, de 1997, na Câmara
dos Deputados, que deu origem à Emenda Constitucional nº 32, de
2001. As discussões nos plenários e comissões da Câmara e do Sena-
do revelam uma grande riqueza de informações sobre o instituto das
medidas provisórias em todas as suas fases gestacionais.
Os debates parlamentares revelam respostas para uma questão funda-
mental: a quem interessava o sobrestamento ou, em outras palavras, de
quem é o direito que o sobrestamento deveria proteger?
A medida provisória e sua evolução constitucional
589

Três são as alternativas: o direito da maioria, o direito da minoria ou


o direito de ambos.
A resposta é apresentada pelos deputados de oposição à época das dis-
cussões da proposta de emenda constitucional das medidas provisó-
rias. O Deputado José Genoíno (1998, p. 20), que à época compunha
o bloco da minoria, expôs:
A relação maioria e minoria fica inteiramente deformada, e con-
cordo com a observação do Sr. Ministro (Ministro do Supremo
Tribunal Federal Sepúlveda Pertence, convidado para participar
de audiência pública na Câmara dos Deputados). Cria-se a obs-
trução da maioria, que não se expõe em matérias polêmicas, e a
minoria não tem força para obrigar à votação.

A assertiva do parlamentar apresenta um indicativo de quem é que


tinha interesse no sobrestamento.
Outra citação, agora, da deputada Sandra Starling (1998, p.14), que
debateu muito o tema enquanto o projeto tramitou na comissão espe-
cial da Câmara criada para analisar a proposta de emenda constitucio-
nal das medidas provisórias:
O papel do Poder Legislativo de não querer examinar as medi-
das provisórias não é um problema do Poder Legislativo; é um
problema para as minorias, porque são exatamente elas que são
impedidas de examinar as medidas provisórias.

Observe, então, que o sobrestamento nasceu de um desejo das mi-


norias, pois, no antigo regime, a maioria não queria apreciar as
medidas provisórias.
Em decorrência da assertiva anterior, surge uma nova indagação: por
que a maioria não queria apreciar?
O então ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim (2000),
quando convidado para participar de audiência pública na Câmara
dos Deputados, esclareceu que o comportamento da maioria explica-
va-se por três razões bem objetivas.
A primeira referia-se à inconveniência de votar matérias com risco
de insucesso. Por exemplo, a maioria apoiou, votou e aprovou a medi-
da provisória do Plano Collor. Porém, em face do insucesso daquele
plano econômico, a maioria ficou politicamente prejudicada. A partir
de então, a maioria preferia não votar medidas provisórias relativas às
matérias dessa natureza, deixando para o Governo o ônus quanto ao
seu resultado.
590 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A segunda razão dizia respeito ao desgaste político para votar medidas


impopulares ou polêmicas, razão pela qual as medidas provisórias so-
bre o valor do salário mínimo passavam anos no Congresso Nacional
sem serem apreciadas.
Uma terceira razão, ainda conforme depoimento do ministro Jobim
(2000), dizia respeito ao poder de barganha política que as medidas
provisórias representavam para a maioria. A maioria não votava as me-
didas para forçar a reedição, na qual se pleiteava a inserção, exclusão
ou modificação de dispositivos do seu interesse. Se o Executivo não
negociasse com a maioria, corria o risco de ver sua medida provisória
votada e rejeitada. Portanto, a “não votação” da medida provisória acaba-
va por atender aos interesses da maioria parlamentar e do Poder Execu-
tivo, deixando à margem qualquer expressão de vontade das minorias.
Constata-se, então, que o acúmulo de medidas provisórias no Con-
gresso Nacional, no período do regime original, pouco tem a ver com
desídia do Poder Legislativo ou com o tão propalado abuso do Po-
der Executivo. Trata-se, na verdade, de um jogo de interesses políticos
bem articulado entre a maioria e o Poder Executivo. Por essa razão, as
minorias clamaram pela introdução do dispositivo que estabeleceu o
sobrestamento.
A previsão do sobrestamento não estava presente no texto inicial da
Proposta de Emenda Constitucional nº 1, de 1995, apresentada pelo
Senador Esperidião Amin, nem na primeira versão aprovada pelo Se-
nado Federal. O sobrestamento foi proposto pelos deputados por oca-
sião da primeira tramitação da proposição na Câmara. É importante
salientar que as decisões mais significativas não ocorreram durante
as discussões na comissão especial ou no plenário, mas resultaram de
acordos políticos realizado nos gabinetes de lideranças.
O Deputado João Paulo Cunha (2000, p. 25), que à época integrava
a oposição, fazendo uso da palavra na comissão especial criada para
apreciar a Proposta de Emenda Constitucional nº 472, de 1997, con-
firmou a assertiva anterior:
Estou falando isso porque nós, da Oposição, fizemos um acordo
com o governo no sentido de estabelecer alguns parâmetros. É
verdade que nem sempre tranqüilos para nós, nem sempre sos-
segados, nem sempre aceitos com a normalidade que deveria,
mas admitimos prorrogar o prazo por sessenta dias, com uma
prorrogação, e, com 45 dias, seria sobrestada a pauta, e teria, ne-
cessariamente, etc... Enfim, acordamos isso.
A medida provisória e sua evolução constitucional
591

Mesmo que os acordos tenham sido selados fora do ambiente das


comissões ou do plenário, os debates nesses colegiados têm o condão
de revelar os termos de suas negociações.
Pelas discussões e pelo primeiro texto aprovado na Câmara, observa-
se que houve um acordo para aprovação do dispositivo que previa o
sobrestamento das demais deliberações legislativas quando a medida
provisória atingisse 45 dias, a partir da prorrogação, sem a conclusão
de sua votação.
O dispositivo aprovado pela Câmara, portanto, implicava o sobres-
tamento em 105 após a publicação, que é a soma dos 60 dias iniciais
com 45 dias do período prorrogado. Foi nesses moldes que a Câmara
propôs o sobrestamento.
Uma vez que houve alteração do texto pela Câmara, a proposta de
emenda constitucional regressou ao Senado para uma nova tramitação
naquela Casa, onde foi novamente alvo de alterações.
A mais significativa alteração, mas que pouca atenção despertou à
época, envolve a troca de apenas uma palavra: a palavra “prorrogação”
foi substituída pela palavra “publicação”.
A despeito da importância e das conseqüências dessa alteração, ra-
ras vezes o tema foi alvo de discussão nos debates que se seguiram.
Ninguém atentou para o fato do prazo de livre apreciação ter ficado
muito mais exíguo. Quase sempre, os parlamentares faziam referência
ao prazo total de vigência da medida provisória – 60 dias prorrogá-
veis por igual período – inferindo, equivocadamente que o Congresso
Nacional teria 120 dias livres para deliberar. Na verdade, o prazo de
livre apreciação passou para apenas 45 dias, após os quais haveria o
trancamento da pauta, paralisando as demais deliberações legislativas
da Casa em que estivesse tramitando.
Com essa e outras alterações implementadas pelo Senado Federal, a
proposta de emenda constitucional precisou tramitar mais uma vez
pela Câmara dos Deputados, não sofrendo mais alterações signifi-
cativas, salvo a imposição de que as medidas provisórias teriam sua
tramitação sempre iniciadas pela Câmara dos Deputados.
Durante a segunda tramitação na Câmara dos Deputados, os parla-
mentares não apresentaram objeções à radical alteração do Senado em
relação à redução do prazo de livre apreciação das medidas provisó-
rias. O Deputado Professor Luizinho (2000, p. 31) declarou: “foi uma
pequenina alteração”. Na verdade, ele não estava se referindo ao so-
brestamento em si, mas ao conjunto de alterações feitas pelo Senado.
592 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Pouco depois, por ocasião da reunião da comissão especial para apre-


ciar as medidas provisórias, em 30 de março de 2000, o parlamentar
(2000, p. 30) voltou ao tema: “Foi para o Senado e teve uma mudança
muito pequena (...). O grosso do acordo da Câmara dos Deputados foi
assimilado pelo Senado Federal”.
Observa-se que não foi dada a devida atenção à alteração do Senado
porque tudo estava acontecendo em nível de acordo dos gabinetes. A
substituição da expressão “prorrogação” por “publicação” ceifou ses-
senta dias do prazo de livre apreciação do Congresso Nacional. O
sobrestamento, que foi criado como mecanismo de exceção, tornou-se
um transtorno para as Casas Legislativas dada a freqüência de sua
ocorrência. Praticamente, a totalidade das medidas provisórias acabam
por trancar a pauta.
Os acordos, seguindo a praxe política, não foram feitos durante as
discussões de plenário ou das comissões das Casas Legislativas. Eles
sempre foram feitos nos gabinetes. Nesse sentido, o Deputado José
Genoíno (2000, p. 3) desabafou: “Nós, da oposição, sempre trabalha-
mos juntos, mas fomos excluídos do banquete em que o acordo foi se-
lado, na segunda-feira à noite. Esta comissão certamente irá defrontar
com os termos daquele acordo.”2
A comissão realmente se defrontou com os termos do acordo, mas
não deu a devida atenção para a questão do sobrestamento. O próprio
Deputado Genoíno (2000, p. 43) confirma a assertiva. Após comparar
o texto da Câmara dos Deputados, que previa 105 dias para a ocorrên-
cia do sobrestamento, com o do Senado Federal, que previa apenas 45
dias, o parlamentar disse:
Comparando os dois textos, o da Câmara e o do Senado – estou
com essa comparação aqui –a única diferença entre eles é no que
diz respeito à tramitação alternadamente. Há outros itens, mas
em decorrência desse núcleo. Esse é o núcleo central da modifi-
cação das duas proposições.

É importante lembrar que o estabelecimento da regra do sobresta-


mento, bem como as demais alterações constitucionais produzidas
pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001, foram impulsionados
pela busca de soluções para as seguintes alegações:

2
Conforme a ata da reunião da comissão especial criada para apreciar a proposta
de emenda constitucional das medidas provisórias na Câmara dos Deputados, de 23
de fevereiro de 2000, a “segunda-feira” citada pelo Deputado José Genoíno foi a de
21 de fevereiro de 2000.
A medida provisória e sua evolução constitucional
593

a) O curto prazo de vigência e de apreciação. O prazo de vigência


confundia-se com o prazo de apreciação, ou seja, 30 dias. A medida
provisória era válida pelo prazo de trinta dias, prazo em que deveria
ser apreciada.
b) O grande número de medidas provisórias e reedições.
c) A apreciação conjunta em face da dificuldade de reunir as duas
Casas.
d) A comissão mista, estabelecida pelo Regimento Comum para
dar parecer prévio de admissibilidade e mérito, que não funcio-
nava. Mesmo sendo instalada, não se reunia para apreciar as me-
didas provisórias.
e) A falta de interesse da maioria parlamentar em apreciar medidas
provisórias com risco de insucesso, impopulares, polêmicas ou que
lhe permitissem barganhar politicamente com o Poder Executivo.
Esses eram os problemas alegados à época da concepção e da gesta-
ção da Emenda Constitucional nº 32, de 2001. É possível, entretanto,
mostrar que cada uma das soluções apresentadas por essa Emenda
encontrou óbices para o seu sucesso.
A constitucionalização do sobrestamento foi uma decisão que deveria
ser acompanhada de uma efetiva contrapartida em termos de prazo
de livre apreciação. No entanto, o aumento do prazo de apreciação
não foi significativo, passando de 30 para 45 dias, diferentemente da
proposta inicial da Câmara dos Deputados, que propôs aumentá-lo
para 105 dias.
A redução do número de medidas provisórias editadas pelo Poder Exe-
cutivo também foi um objetivo perseguido pelas alterações constitucio-
nais. Tal escopo foi frustrado por atacarem a causa errada, pois procu-
rou-se limitar materialmente o campo de possibilidades de apreciação
de medidas provisórias, no entanto, poucas eram as medidas provisórias
editadas antes da Emenda Constitucional nº 32, de 2001, contendo a
matéria limitada. Por conseqüência, não houve um reflexo significati-
vo no número de medidas provisórias em função da limitação material
imposta. Decorre daí que a quantidade de medidas provisórias perma-
neceu num patamar elevado. Não houve uma redução no número de
medidas provisórias originais. A redução em números absolutos ocor-
reu, e deveu-se à proibição das reedições, mas o que aumenta realmente
a demanda de tempo de apreciação são as medidas provisórias originais,
pois trazem matéria nova.
594 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Além do fator “prazo de apreciação”, que, como demonstrado, não foi


significativamente ampliado, não se criou um mecanismo que obri-
gasse a comissão mista a emitir um juízo político quanto aos pressu-
postos constitucionais de relevância e urgência, tornando-se tal juízo
mera formalidade do parecer dado em plenário.
De fato, em função de uma brecha regimental contida nos §§ 1º e
2º do art. 6º da Resolução nº 1/2002-CN, a medida provisória pode
ser levada ao plenário para discussão e votação sem o parecer prévio
aprovado pela comissão mista, prevista na Constituição.
Essa prática teve a sua constitucionalidade questionada no Supremo
Tribunal Federal – MS nº 24.149/DF, relator ministro Nelson Jobim,
DF, 8/2/2002, que a admitiu para o caso de medidas provisórias com
mais de 45 dias de vigência. A análise da decisão do referido manda-
do não revela uma fundamentação com base legal convincente para
a conclusão de que as medidas provisórias com mais de 45 dias de
vigência poderiam prescindir do parecer da comissão mista, determi-
nado pelo § 9º do art. 62, do novo texto constitucional.
Adicionalmente, a sistemática das comissões mistas, dura e una-
nimemente criticada, não foi alvo de aperfeiçoamento significati-
vo. As comissões mistas não funcionavam antes e continuam não
funcionando. Conforme depoimentos de diversos parlamentares,
as comissões mistas, no modelo anterior, não funcionavam por-
que o volume de medidas provisórias era muito grande e o prazo
de trinta dias era muito curto, sendo inviável a criação de tantas
comissões mistas. Associada a essa razão de natureza processual,
havia também razões de natureza política que indicavam um pro-
pósito da maioria parlamentar de não votar as medidas provisórias
impopulares, polêmicas ou que permitissem barganhas políticas
com o Poder Executivo.
Como a Resolução nº 1/1989-CN abria a possibilidade de o parecer
ser apresentado em plenário por um relator designado em substituição
à comissão mista, não havia qualquer impedimento para o processo
continuar sem a opinião daqueles órgãos colegiados. Com o tempo, o
que era exceção tornou-se a regra.
As comissões mistas, no novo regime, também não têm funcio-
nado porque, em sua essência, não diferem do modelo anterior,
e os fatores que frustravam o funcionamento das comissões mis-
tas no regime anterior permanecem presentes no novo regime, a
saber: a quantidade de medidas provisórias, que, desconsideran-
do as reedições, não foi reduzida, e o prazo de livre apreciação,
A medida provisória e sua evolução constitucional
595

que, conforme demonstrado, não aumentou significativamente.


Quanto ao fator político, que consistia de uma decisão da maioria
parlamentar de não votar as medidas provisórias, esse, com o fim
da reedição e com a obrigatoriedade de apreciação decorrente do
sobrestamento, não mais afeta a apreciação das medidas provisó-
rias, o que tem conduzido os seus líderes a uma nova jornada para
alteração do regime.
Acentua o problema o fato de a comissão mista, mesmo não se reu-
nindo, consumir 14 dias, dos 45 dias de que o Congresso Nacional
dispõe para deliberar livremente. Isso ocorre porque a Constituição,
não obstante ter exigido que uma comissão mista apreciasse previa-
mente a medida provisória, deixou para a regulamentação regimen-
tal a decisão de sua natureza – permanente ou temporária – bem
como as regras de seu funcionamento. A Resolução nº 1, de 2002-
CN, que é a norma que regulou o funcionamento dessas comissões,
só permite que a medida provisória seja enviada ao plenário, sem o
parecer da comissão mista, depois de vencido o prazo de quatorze
dias. Conclui-se então que o prazo de apreciação, no contexto da
realidade, voltou a ser os mesmos trinta dias de antes. Adicional-
mente, a mesma sistemática de antes – uma nova comissão mista
para cada medida provisória – associada ao ainda grande volume
de provimentos provisórios, também têm colaborado para que esses
colegiados não se reúnam, nem deliberem acerca dos pressupostos
constitucionais e do mérito das medidas provisórias.
Por fim, a apreciação em sessões separadas, que foi enfaticamente de-
fendida nos pronunciamentos à época da apreciação da PEC nº 1, de
1995, como fator importante na celeridade de apreciação de medida
provisória, não tem apresentado resultados. Esperava-se uma redu-
ção no tempo de tramitação, pois, conforme alegado, era muito difícil
reunir o Congresso Nacional para a apreciação conjunta. Porém, a tra-
mitação em sessão separada não chegou a influenciar o tempo médio
de apreciação pois, na maioria absoluta das vezes, a pauta tem sido
trancada ainda na fase de tramitação na Câmara dos Deputados.
A Tabela 2 sintetiza a análise apresentada.
596 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Tabela 2 – Síntese da análise

Efeito da
Antes da Depois da Efeito do
Res. nº
EC 32/2001 EC 32/2001 Sobrestamento
1/2002-CN

Prazo de
Vigência/Livre 30d / 30d 120d / 120d 120d / 45d 120d / 31d
Apreciação

Pressão dos
2791 240
partidos da base
Volume
do governo para ---
de MP’s (FHC 2º (LULA 1º
redução do número
mandato) mandato)
de MP’s editadas.

Paralisa a atividade
Forma de Sessão Con- Sessão
da Casa na qual a ---
Apreciação junta Separada
MP está tramitando.

Os §§ 1º e 2º
do art. 6º da
O STF admite apre- Resolução nº
ciação sem o parecer ½-CN, admite
Exigência prévio da comissão que a medida
Comissão Exigência
mista para as MP’s provisória pode
mista Regimental
Constitucional que estão sobrestan- seja levada ao
do a pauta. (MS nº plenário sem o
24.149/DF, 8/2/2002) parecer prévio
da comissão
mista.

Previsão
Sobrestamento Não havia --- ---
Constitucional

6. Considerações finais

Atualmente, o Congresso Nacional tem envidado esforços no sentido


de reformar novamente o instituto das medidas provisórias com o ob-
jetivo de desafogar as Casas Legislativas dos transtornos decorrentes
dos freqüentes trancamentos de suas pautas. Para tanto, na Câmara
dos Deputados, foram reunidas diversas propostas de emenda consti-
tucional que estavam tramitando, e criada uma comissão especial para
apreciá-las. O trabalho da comissão especial resultou na apresenta-
ção de um substitutivo que deverá ser apreciado pelo Plenário. Uma
vez aprovada, a proposta de emenda constitucional será encaminhada
para o Senado Federal. Se tudo caminhar conforme a vontade polí-
tica expressa nos mais recentes discursos dos presidentes da Câmara
dos Deputados e do Senado Federal, até o final da 53º Legislatura, o
A medida provisória e sua evolução constitucional
597

instituto da medida provisória estará entrando no seu terceiro ciclo de


vida, após o da reedição e o do sobrestamento.

Referências

ALCÂNTARA, Lucio. Votação da PEC nº 1, de 1995: 2ª tramitação, 2º turno,


Diário do Senado Federal, 2 dez. 1999, p. 33276-33277.
ANDRADE, Ademir. Votação da PEC nº 1, de 1995: 2ª tramitação, 2º turno,
Diário do Senado Federal, 2 dez. 1999, p. 33284.
BACCI, Enio. Votação da PEC nº 472, de 1997 (PEC nº 1, de 1995, no SF): 1ª
tramitação, 1º turno, Diário da Câmara dos Deputados, 20 maio 1999, p. 22501.
CUNHA, João Paulo. Ata: Reunião da Comissão Especial PEC 472-A/97 –
Edição de Medidas Provisórias, 22 mar. 2000. Brasília: Câmara dos Deputados,
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GENOÍNO, José. Ata: Reunião da Comissão Especial - PEC 472-A/97 – Edição
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_________. Ata: Reunião da Comissão Especial PEC 472-A/97 – Edição de
Medidas Provisórias, 23 fev. 2000. Brasília: Câmara dos Deputados, p. 3.
________. Ata: Reunião da Comissão Especial PEC 472-A/97 – Edição de Me-
didas Provisórias, 30 mar. 2000. Brasília: Câmara dos Deputados, p. 43.
JOBIM, Nelson. Ata: Reunião da Comissão Especial PEC 472-A/97, Edição de
Medidas Provisórias, 30 mar. 2000. Brasília: Câmara dos Deputados, 2000, p. 2.
________. Pronunciamento: Assembléia Nacional Constituinte por ocasião da
votação da emenda que suprimiria a previsão de medidas provisórias do proje-
to de Constituição. Diário da Assembléia Nacional Constituinte, 19 mar. 1988, p.
8656.
LUIZINHO, Professor. Ata: Reunião da Comissão Especial PEC 472-D/97 – Edi-
ção de Medidas Provisórias, 22 mar. 2000. Brasília: Câmara dos Deputados, p. 31.
________. Ata: Reunião da Comissão Especial PEC 472-D/97 – Edição de
Medidas Provisórias, 30 mar. 2000. Brasília: Câmara dos Deputados, p. 30.
MOTTA, Adílson. (Pronunciamento na Assembléia Nacional Constituinte por
ocasião da votação da emenda que suprimiria a previsão de medidas provisórias
do projeto de Constituição). Diário da Assembléia Nacional Constituinte, 19 mar.
1988, p. 8654.
STARLING, Sandra. Ata: Reunião da Comissão Especial PEC 472-A/97 – Edição
de Medidas Provisórias, 5 mar. 1998. Brasília: Câmara dos Deputados, p. 14.
TEMER, Michel. (Pronunciamento na Assembléia Nacional Constituinte: vo-
tação da emenda que suprimiria a previsão de medidas provisórias do projeto de
Constituição). Diário da Assembléia Nacional Constituinte, 19 mar. 1988, p. 8655. .
Meio ambiente
599

A questão ambiental e a
Constituição de 1988:
reflexões sobre alguns
aspectos importantes
Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo
Roseli Senna Ganem
Maurício Boratto Viana
José de Sena Pereira Jr.
Ilídia da Ascenção G. Martins Juras

Introdução

A Constituição Federal dedica um capítulo específico à questão am-


biental (art. 225) e apresenta referências ao tema em outros disposi-
tivos esparsos, como os que tratam de bens da União e dos estados
(arts. 20 e 26), repartição de competências governamentais (arts. 21,
23 e 24) e outros. O conteúdo desses dispositivos apresenta reflexos
relevantes, tanto na elaboração e sustentação jurídica das normas am-
bientais quanto nas ações executivas referentes à Política Nacional do
Meio Ambiente.
Seria inviável reunir em um único texto considerações sobre todo o im-
pacto da Carta de 1988 nesse campo, diante da variedade de temas en-
volvidos: flora, fauna, conservação da biodiversidade, recursos hídricos,
poluição, resíduos, energia, políticas públicas para o meio ambiente e
seus diversos instrumentos, aspectos sociais da questão ambiental etc.
Optou-se neste estudo, então, por selecionar cinco tópicos que, por sua
atualidade ou relevância, na visão dos autores assumidamente influen-
ciada por suas diferentes áreas de trabalho, mereciam comentários es-
pecíficos em uma coletânea voltada aos vinte anos da Constituição.
São eles: a cooperação entre os entes federativos e a política ambiental,
o licenciamento ambiental, os recursos hídricos, as unidades de con-
servação e a fauna. Sobre cada um deles, são apresentadas algumas
reflexões quanto à evolução pós-88 e a situação atual no âmbito da
política ambiental.
600 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A cooperação entre os entes federativos


e a política ambiental

O art. 23 da Constituição Federal dispõe sobre as chamadas com-


petências comuns de União, estados, Distrito Federal e municípios.
Trata-se de atribuições materiais, relacionadas à formulação e imple-
mentação de políticas públicas, que abrangem temas variados como
saúde, educação, habitação e outros. Entre as atribuições comuns, es-
tão “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer
de suas formas” (inciso VI) e “preservar as florestas, a fauna e a flora”
(inciso VII). Tem-se, nesse caso, uma competência “[...] voltada para
a execução das diretrizes, políticas e preceitos relativos à proteção am-
biental” (SILVA, 2004, p. 77).
Cumpre registrar que, como o caput do art. 225 de nossa Magna
Carta impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e
proteger o meio ambiente ecologicamente equilibrado, para as pre-
sentes e futuras gerações, o compartilhamento de responsabilidades
nessa área envolve não apenas os órgãos governamentais, mas a so-
ciedade como um todo.
O parágrafo único do art. 23 da Constituição estabelecia em sua re-
dação original que lei complementar deveria fixar normas regulando a
cooperação entre a União e os estados, o Distrito Federal e os municí-
pios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar
em âmbito nacional. A partir da Emenda Constitucional no 53, de
2006, o dispositivo passou a referir-se a leis complementares com essa
finalidade. A idéia é que, diante das responsabilidades compartilhadas
entre as diferentes esferas de governo quanto às ações insertas nas
competências comuns, a legislação infraconstitucional contribua para
esclarecer como os diferentes entes federativos deverão articular-se
para que as importantes obrigações em termos de políticas públicas
inerentes ao art. 23 de nossa Carta Política sejam implementadas de
forma a efetivamente contribuir para o desenvolvimento do País. A
alteração recente feita no texto constitucional induz o intérprete a
defender que caberá lei complementar específica para cada um dos
temas abrigados pelo referido dispositivo constitucional.
A implementação das ações governamentais em meio ambiente deri-
vadas das competências explicitadas pela Constituição ocorre hoje com
base na Lei n° 6.938, de 1981 (Lei da Política Nacional do Meio Am-
biente), que instituiu o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama),
integrado por órgãos e entidades federais, estaduais e municipais.
A questão ambiental e a Constituição de 1988: reflexões sobre alguns aspectos importantes
601

Ocorre que, mesmo tendo sido instituído há mais de duas décadas,


na prática o Sisnama ainda não se encontra estruturado e articulado
como um verdadeiro sistema nacional. São exemplos de problemas
existentes: (i) centralização excessiva de atribuições no Ministério do
Meio Ambiente (MMA)/Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama); (ii) sobreposição e conflito
nas atuações do MMA/Ibama e dos órgãos seccionais (estaduais); (iii)
indefinição do papel dos órgãos locais (municipais); (iv) nebulosidade
quanto ao limite do poder normativo do Conselho Nacional do Meio
Ambiente (Conama); e (v) falta de diálogo com sistemas voltados a
áreas específicas da gestão ambiental, como o Sistema Nacional de
Gerenciamento dos Recursos Hídricos, que reúne os comitês de bacia
e as agências de água.
Em face desses problemas, desde meados da década de 1990, pas-
sou-se a debater a possibilidade de edição de uma lei complementar
voltada a regular a atuação conjunta dos órgãos ambientais, com base
no art. 23, incisos VI e VII e parágrafo único, da Constituição. As pro-
postas nesse sentido têm gerado algum nível de polêmica, entre outros
motivos, porque não há precedente de lei complementar elaborada
declaradamente com base no parágrafo único do art. 23 nas outras
matérias definidas como competência comum.
Milaré (2000, p. 242), por exemplo, parece acreditar na necessidade
dessa lei complementar:
A proteção do meio ambiente como um todo e, em particular,
dos recursos naturais, explicitamente fauna e flora, bem como o
controle de poluição, foram incluídos entre as matérias de com-
petência comum.
[...] A forma como as várias instâncias de poder, tendendo ao
peculiar interesse, cuidarão das matérias enumeradas deverá ser
objeto de lei complementar nacional (art. 23, parágrafo único).

Machado (1999, p. 49-54), por sua vez, tem posição que soa cautelosa
ou mesmo reticente:
O art. 23 merece ser colocado em prática em concordância com
o art. 18 da mesma Constituição, que determina: “A organização
político-administrativa da República Federativa do Brasil com-
preende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
todos autônomos, nos termos desta Constituição”.
[...] As atribuições e obrigações dos Estados e Municípios só a
Constituição Federal pode estabelecer. Leis Infraconstitucionais
não podem repartir ou atribuir competências, a não ser que a
própria Constituição tenha previsto essa situação, [...].
602 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

[...] A lei complementar, com base no art. 23, parágrafo único, da


Constituição Federal, deve ter como fundamento a mútua ajuda
dos entes federados. Dessa forma, essa lei não visa, e não pode
visar, à diminuição da autonomia desses entes, despojando-os de
prerrogativas e de iniciativas que constitucionalmente possuem,
ainda que não as exerçam, por falta de meios ou de conscienti-
zação política.

Em 2003, o Deputado Sarney Filho, ex-ministro do Meio Ambiente,


apresentou o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 12, que pre-
tende fixar normas para a cooperação entre União, estados, Distrito
Federal e municípios no que se refere às competências administrativas
comuns na área ambiental, exatamente com base no art. 23, incisos VI
e VII e parágrafo único, da Constituição. Atualmente1, estão apen-
sadas a esse projeto duas proposições com o mesmo escopo, o PLP
127/2007, de autoria do Deputado Eliseu Padilha, e o PLP 388, de
2007, de autoria do Poder Executivo.
O PLP 388, de 2007, cabe destacar, originado a partir de esforços de
grupo de trabalho formado por representantes do MMA, do Ibama,
da Agência Nacional de Águas (ANA), da Associação Brasileira de
Entidades Estaduais de Meio Ambiente (Abema) e da Associação
Nacional dos Municípios e Meio Ambiente (Anamma), é oficialmen-
te uma das iniciativas que integram o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC). A constatação do governo federal é que a inde-
finição de papéis na política ambiental, especialmente no que respeita
ao licenciamento dos empreendimentos potencialmente poluidores
ou capazes de causar degradação ambiental, constitui um entrave ao
desenvolvimento do País.
O PLP 12, de 2003 e seus apensos estão sob análise das comissões da
Câmara dos Deputados. O processo, é muito provável, gerará um tex-
to substitutivo, inspirado no conteúdo das três proposições apensadas
e espelhando o resultado do processo de negociação política em torno
do tema. O texto final da lei complementar, certamente, tratará de ex-
plicitar atribuições e dispor sobre a forma como se devem concretizar
as atuações supletiva e subsidiária.
Há alguns tipos de atribuições a cargo dos órgãos do Sisnama que, por
sua própria natureza, deverão permanecer na futura lei complementar
como tarefa conjunta de União, estados, Distrito Federal e municípios.
É o caso, por exemplo, da criação de unidades de conservação da na-
tureza e da promoção da educação ambiental. Há determinadas ações,

1
Junho de 2008.
A questão ambiental e a Constituição de 1988: reflexões sobre alguns aspectos importantes
603

todavia, sobretudo os atos governamentais de autorizar ou licenciar as


atividades ou empreendimentos potencialmente causadores de impac-
to ambiental, que demandam distribuição mais concreta de atribui-
ções, sob pena de serem mantidos conflitos praticamente insanáveis.
Deve-se ter em mente que a lei complementar em debate não deve
e não pode ser encarada como geradora de uma nova repartição de
competências entre União, estados, Distrito Federal e municípios em
relação à questão ambiental. O que se propõe, na prática, é o detalha-
mento de atribuições de cada esfera governamental a partir de uma
interpretação do texto constitucional, emanada do próprio legislador,
sobre quais matérias, no âmbito da competência comum, são de pre-
dominante interesse municipal, quais são de predominante interesse
estadual e quais são de interesse nacional.
A elaboração dessa futura lei complementar é, sem dúvida, um dos
principais processos legislativos em trâmite no Congresso Nacional
no campo da política ambiental, talvez o mais importante deles. O
diploma legal é necessário e urgente. Se aprovado, com certeza mini-
mizará parte dos conflitos hoje existentes na implementação das ações
administrativas a cargo dos órgãos do Sisnama.
Deve ficar claro, todavia, que a aprovação dessa nova lei complementar
não solucionará todos os problemas hoje existentes nos processos de li-
cenciamento ambiental, ou outras disfunções desse tipo na política am-
biental. Em outras palavras, como em toda nova lei, deve-se cuidar para
que não sejam criadas expectativas em demasia quanto a seus efeitos.

O licenciamento e os estudos ambientais

Como reflexo da tendência que já se manifestava nos Estados Unidos


e na Europa a partir da década de 1960, também no Brasil, duas déca-
das após, as atividades e os empreendimentos utilizadores de recursos
ambientais, considerados poluidores ou capazes de causar degradação
ambiental passaram a ser obrigados a efetuar Avaliação de Impacto
Ambiental (AIA). Tal obrigatoriedade foi estabelecida, ainda antes da
atual Constituição Federal, pela Lei 6.938, de 1981, que, em seu art.
9º, previu, como instrumentos da Política Nacional do Meio Ambien-
te, tanto a AIA (inciso III) quanto o licenciamento ambiental (inciso
IV), entre outros.
A AIA, como um dos instrumentos dos princípios da precaução
e da prevenção (Princípios nºs 15 e 17, respectivamente, da De-
claração da Rio-92), é o conjunto de procedimentos empregados
604 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

para o exame sistemático das alterações provocadas no meio am-


biente por um empreendimento ou atividade, com a apresentação
adequada dos resultados ao público e aos órgãos decisores e a ga-
rantia da adoção das medidas de proteção ambiental, caso venha
a ser implantado(a). Trata-se, igualmente, de um instrumento do
processo de planejamento e de tomada de decisão, seja no âmbito
governamental, seja na iniciativa privada.
Já o licenciamento ambiental, previsto no art. 10 da mesma lei, é o pro-
cedimento (ou, segundo alguns entendimentos, o processo) administra-
tivo pelo qual o Poder Público, com objetivo preventivo (ou corretivo, no
caso de atividades ou empreendimentos implantados antes do advento
da lei ambiental), e desde que preenchidos pelo empreendedor os requi-
sitos normativos exigidos, licencia a localização, a construção, a instala-
ção, a ampliação e o funcionamento das atividades e empreendimentos
citados. Ou seja, por meio do licenciamento ambiental, a Administração
Pública fixa as condições e os limites aos quais as atividades econômicas
estarão submetidas para o seu desenvolvimento.
Essas explicações são necessárias em razão de, no caso brasileiro, a
AIA ter encontrado maior aplicação justamente no âmbito dos estu-
dos ambientais demandados por ocasião do licenciamento ambiental.
Entre estes, destaca-se o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), que é
o exigido, em caráter prévio, no licenciamento de empreendimentos e
atividades causadores de significativa degradação ambiental. Tal ter-
mo costuma estar associado ao respectivo Relatório de Impacto Am-
biental (Rima), texto condensado, em linguagem acessível ao público
em geral, que deve refletir seus pontos principais e conclusões.
A Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu art. 170, parágrafo
único, que “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer ativida-
de econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos,
salvo nos casos previstos em lei”. Ao mesmo tempo, ela prevê, em
seu art. 225, §1º, que incumbe ao Poder Público “exigir, na forma da
lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de
significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto
ambiental, a que se dará publicidade” (inciso IV).
Observe-se que a Constituição Federal sequer faz menção aos termos
AIA e licenciamento ambiental, referindo-se apenas ao EIA. No âm-
bito estadual, a exemplo da Lei Maior, a maioria das Constituições
dos estados-membros também faz alusão apenas ao EIA, sendo que
somente as do Amazonas, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraíba e São
A questão ambiental e a Constituição de 1988: reflexões sobre alguns aspectos importantes
605

Paulo referem-se ao licenciamento ambiental propriamente dito, e as


de Roraima e Tocantins não fazem referência a nenhum dos termos.
No plano legislativo federal, a lei prevista no art. 225, §1º, inciso IV, da
Constituição ainda não existe, a despeito de haver inúmeros projetos
de lei em tramitação no Congresso Nacional, sendo a questão ainda
regida, de forma genérica, pela Lei 6.938, de 1981 (cujo regulamento
atual é o Decreto 99.274, de 1990). Essa lei dá poderes ao Conama para
estabelecer normas e critérios para o licenciamento (art. 8º, inciso I),
define o órgão estadual como a principal entidade licenciadora, atribui
ao órgão federal (Ibama) competência supletiva e responsabilidade de
licenciar atividades e obras com significativo impacto ambiental, de âm-
bito nacional ou regional, mas não reconhece competência licenciadora
à esfera municipal (talvez por ter sido editada antes do advento da atual
Constituição, que consagrou a autonomia municipal).
Na prática, os processos administrativos de licenciamento ambiental
vêm tomando por base as resoluções do Conama (em especial, a 01,
de 1986 e a 237, de 1997 – apenas esta última prevê a competência
municipal –, além de outros atos destinados a atividades ou empreen-
dimentos específicos, como a Instrução Normativa Ibama 65, de 2005
– licenciamento de usinas hidrelétricas), bem como as legislações esta-
duais e algumas municipais (principalmente nas capitais dos estados-
membros). Assim, as políticas ambientais no Brasil foram implanta-
das na forma do Sisnama, envolvendo, gradualmente, os três níveis
da Federação. Ao longo dos últimos vinte e poucos anos, milhares de
licenças já foram emitidas pelos órgãos ambientais em todo o Brasil,
principalmente no nível dos estados-membros.
Nesse contexto, portanto, os empreendimentos e atividades impactan-
tes passaram a se submeter, desde a década de 1980, ao licenciamen-
to ambiental, que consistia, inicialmente, na obtenção das Licenças
de Instalação – LI e de Funcionamento – LF. Posteriormente, essas
duas licenças foram transformadas em três: Licença Prévia – LP (em
que se atesta a viabilidade do empreendimento e se estabelecem as
condicionantes ambientais), Licença de Instalação – LI (em que se
libera a sua implantação, após a aprovação dos projetos executivos do
empreendimento e das medidas de controle ambiental) e Licença de
Operação – LO (em que se libera a sua operação, após a implantação
dos projetos citados).
A despeito de alguns entendimentos contrários (entre os quais, Ma-
chado, 2005, p. 266), o instrumento do licenciamento ambiental foi
direcionado, em nosso País, à emissão de licenças, ou seja, de atos
606 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

administrativos vinculados, declaratórios de direito preexistente e ge-


radores de direito subjetivo, no âmbito de seu prazo de validade (ge-
ralmente, entre quatro e dez anos), revogáveis apenas por violação das
normas ou por interesse público, neste caso mediante indenização. É o
que consta, implícita ou expressamente, nas principais normas federais
a respeito, tanto ao nível das leis quanto das resoluções.
Apesar disso, diversos estados-membros criaram, em decorrência da
excessiva demanda por licenciamento, a modalidade da autorização
ambiental, que é um ato constitutivo, com caráter discricionário e pre-
cário, não gerador de direitos subjetivos e revogável a qualquer mo-
mento, sem indenização, pela autoridade ambiental. Ela é aplicada,
em geral, aos casos de atividades não sujeitas a LP/LI/LO ou a EIA/
Rima, destinando-se àquelas temporárias, de pequeno porte ou de im-
pacto ambiental reduzido. Outra diferença notável entre a licença e a
autorização ambiental é que a emissão desta não está sujeita, em geral,
a prévia vistoria por parte do órgão ambiental competente, baseando-
se, tão somente, na autodeclaração do empreendedor.
Entre os instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente ci-
tados no art. 9º da Lei 6.938, de 1981, a avaliação de impactos am-
bientais e o licenciamento ambiental vêm sendo, certamente, o mais
efetivo em termos de controle ambiental, pelo menos em face da ainda
limitada aplicação de outros (zoneamento ambiental, Sistema Nacio-
nal de Informação sobre Meio Ambiente – Sinima, instrumentos
econômicos). Embora não se destine a avaliar políticas, planos e pro-
gramas governamentais (que poderiam ser objeto de Avaliação Am-
biental Estratégica – AAE), o licenciamento, como um instrumento
de comando e controle, tem produzido bons resultados no âmbito de
seu campo de aplicação.
A publicidade que a Lei Maior exige para os estudos ambientais é ma-
terializada pela disponibilização do EIA/Rima ao público interessado
e, principalmente, pela realização de audiência(s) pública(s), quando
solicitada(s) pelos legitimados previstos na Resolução 09, de 1987 do
Conama. Contudo, após duas décadas de aplicação, já se sente a ne-
cessidade de aperfeiçoar as normas referentes às audiências públicas,
com o intuito de fortalecer seu caráter transparente, democrático e
participativo. Em alguns estados-membros e municípios, outra forma
de controle social é a participação da sociedade nos órgãos colegiados
ambientais, que se dá, algumas vezes, com representação paritária ou
tripartite (sociedade civil, setor produtivo e entidades governamen-
tais), nos processos de emissão de licenças e de aplicação de sanções.
A questão ambiental e a Constituição de 1988: reflexões sobre alguns aspectos importantes
607

Por seu caráter eminentemente preventivo, o licenciamento ambien-


tal tem conformação pró-ativa, visando a conciliar o desenvolvimento
econômico com o uso sustentável dos recursos naturais e assegurar,
simultaneamente, a integridade dos ecossistemas e a sadia qualida-
de de vida humana. Além disso, por pregar o compartilhamento da
responsabilidade pela preservação ambiental com a coletividade, nos
termos prescritos pela Lei Maior, ele é um interessante mecanismo
de diálogo intersetorial, de exercício da cidadania e de conciliação,
permitindo que a variável ambiental seja incorporada ao planejamento
dos diversos setores que fazem uso dos recursos naturais ou que pro-
vocam impactos no meio ambiente.
Obviamente, por também constituir um palco de conflito de interesses
distintos, que nem sempre podem ser atendidos, o instrumento sofre
críticas constantes, provenientes das mais diversas origens, com o fim
de contestar sua utilidade ou de deturpar os fins a que se destina. Essas
críticas devem ser encaradas com naturalidade e de forma construtiva,
ou seja, como excelentes oportunidades de aperfeiçoar o instrumento,
adequando-o às novas demandas da sociedade, em constante mutação,
mas sempre atento a que sejam cumpridas as exigências ambientais.
Em conclusão, ao fazer alçar ao nível supralegal as diretrizes centrais
da Lei 6.938, de 1981 e das resoluções do Conama que lhe seguiram,
e mesmo não tendo sido feita referência direta ao termo licenciamento
ambiental, mas ao estudo que mais o caracteriza, a Constituição Fede-
ral deu importante contribuição para que esse instrumento de contro-
le ambiental fosse definitivamente incorporado às políticas públicas
de meio ambiente do País. Desta forma, o licenciamento ambiental é
hoje mecanismo indispensável para assegurar o direito ao meio am-
biente ecologicamente equilibrado a todos, conforme preconizado no
art. 225 da Lei Suprema.

Recursos hídricos

A Constituição Federal considera que são bens da União “os lagos,


rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que
banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou
se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os
terrenos marginais e as praias fluviais”(art. 20, inciso III). Da mesma
forma, o art. 176, caput, prevê que “os potenciais de energia hidráulica
constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração
ou aproveitamento, e pertencem à União”. Já o inciso I do art. 26 dis-
põe que “incluem-se entre os bens dos Estados as águas superficiais
608 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste


caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, portanto, no Brasil,
não existem águas de domínio dos municípios e nem águas particula-
res ou privadas com domínio vinculado à propriedade da terra. Foram
tacitamente revogados os dispositivos do Código de Águas, estabele-
cido pelo Decreto n° 24.643, de 10 de julho de 1934, que definem e
tratam das águas dominiais, particulares e dos direitos das águas alve-
olares ou marginais, relacionados com a propriedade da terra.
Estão entre os bens dos estados, portanto, a maioria absoluta das
nascentes e dos pequenos e médios corpos de água e a totalidade
dos aqüíferos subterrâneos. À União cabe administrar as águas dos
grandes rios e aquelas acumuladas em lagos formados por barragens
edificadas com recursos dela originários, como o são boa parte dos
reservatórios das grandes usinas hidrelétricas e dos açudes nordesti-
nos. Em uma grande bacia hidrográfica, como a do São Francisco, o
rio principal está sob a administração da União, enquanto a maioria
dos afluentes está sob a gestão dos estados. Tal situação eventual-
mente gera alguns conflitos, especialmente controvérsias relaciona-
das ao controle da poluição e à outorga para captações, entre outras.
As razões para que a Constituição defina como bens dos estados a
maioria das águas encontram-se correlacionadas com o princípio fe-
derativo. Não há como dissociar a gestão dos recursos hídricos – no
conceito de bacia hidrográfica – da gestão do território e, portanto,
das políticas agrícola, industrial e urbana, entre outras, formuladas e
implementadas no âmbito das administrações estaduais. A gestão da
bacia hidrográfica é parte, assim, da gestão do território. E a gestão do
território pelos respectivos estados é condição essencial para a existên-
cia da Federação, cláusula pétrea de nossa Carta Magna.
As águas de domínio da União resumem-se, portanto, aos corpos hí-
dricos especificados no inciso III do art. 20 da Constituição Federal,
dissociadas dos territórios das respectivas bacias hidrográficas. Isso
tem, também, suas razões técnicas e logísticas. Em primeiro lugar, os
cursos principais dos corpos de água que banham mais de um esta-
do, assim como os que procedem de ou vão para outros países, rela-
cionam-se com competências específicas da União, entre as quais a
manutenção de relações com Estados estrangeiros (art. 21, inciso I),
e a navegação fluvial e o sistema portuário marítimo e fluvial (art. 21,
inciso XII, alíneas “c” e “f”).
A questão ambiental e a Constituição de 1988: reflexões sobre alguns aspectos importantes
609

A gestão dos “rios internacionais” envolve negociações do Brasil com


os países que os compartilham sobre assuntos os mais diversos. São
os casos dos rios Paraná, Uruguai, Solimões/Amazonas e Madeira,
entre outros. Os cursos principais dos grandes rios, por outro lado, são,
em muitos casos, vias navegáveis que ultrapassam as divisas estaduais,
constituindo, assim, objeto do interesse nacional, que se sobrepõe aos
interesses estaduais e locais.
As alterações constitucionais relacionadas com a “propriedade das
águas” foram fundamentais para que o Brasil desse o primeiro passo
rumo à elaboração de uma Política Nacional de Recursos Hídricos
baseada nas constatações e conceitos estabelecidos a partir da Rio-92 e
na Agenda 21. A partir desse encontro, que discutiu temas ambientais
fundamentais e resultou no programa de ações conjuntas firmado por
179 países, a água passou a ser considerada um recurso natural escasso e,
por isso, dotado de valor econômico, que deve ser utilizado com racio-
nalidade e parcimônia, com a participação do Poder Público, dos usuá-
rios e da sociedade em geral. O objetivo é garantir sua disponibilidade
quantitativa e qualitativa para os usos da atual e das futuras gerações.
A distribuição do domínio dos recursos hídricos (águas) feita pelo
Código de Águas, prevendo águas particulares ou dominiais e direito
ripário ou alveolar, impedia a gestão desses recursos com base na de-
manda e na disponibilidade. Várias eram as situações em que o Poder
Público não tinha condições jurídicas para controlar o uso ou para
estabelecer medidas para evitar a degradação dos recursos hídricos.
Dois dos instrumentos mais importantes da Política Nacional de Re-
cursos Hídricos, estabelecida pela Lei nº 9.433, de 1997, a outorga de
direito de uso e a cobrança pelo uso de recursos hídricos, só tiveram
sua implementação possível a partir das disposições constitucionais
sobre o domínio dos recursos hídricos. Afinal, como exigir outorgas
para os diversos usuários da água, se parte dela é de propriedade par-
ticular? Como estabelecer políticas para a recuperação e manutenção
da disponibilidade de recursos hídricos com qualidade, se justamente
as nascentes estão fora do controle do Poder Público? As disposições
da Constituição de 1988, incluindo as águas entre os bens da União
e dos estados, viabilizaram a aplicação desses instrumentos, bastando,
para tanto, que haja organização institucional e recursos técnicos e
materiais suficientes.
O sistema de outorga de direito de uso de recursos hídricos permite
manter uma espécie de contabilidade da água, compatibilizando dispo-
nibilidade e demanda, de forma a evitar ou administrar conflitos entre
610 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

usos e usuários. Por meio desse sistema, os gestores dos recursos hídricos
podem, por exemplo, reduzir temporária ou definitivamente a retirada
de água para um determinado uso, com o objetivo de aumentar a oferta
de outro considerado prioritário, como o abastecimento humano.
A Lei 9.433, de 1997, em seu art. 12, considera como usos dos re-
cursos hídricos sujeitos a outorga de direito de uso: (I) derivação ou
captação de parcela da água existente em um corpo de água para con-
sumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo
produtivo; (II) extração de água de aqüífero subterrâneo para consu-
mo final ou insumo de processo produtivo; (III) lançamento em corpo
de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou
não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final; (IV)
aproveitamento dos potenciais hidrelétricos; e (V) outros usos que
alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água existente em
um corpo de água. Esses usos são também passíveis de cobrança, no
termos do art. 20 da mesma lei, após decisão do respectivo comitê de
bacia hidrográfica (art. 38, incisos V e VI).
A inclusão do lançamento de esgotos e outros despejos entre os usos
da água sujeitos a outorga e cobrança representa um enorme avanço
tanto para a gestão dos recursos hídricos quanto para a recuperação
e manutenção do meio ambiente. A diluição de despejos de sistemas
públicos de esgotos sanitários ou provenientes de indústrias sempre
teve seus custos repassados para a sociedade, sem nenhuma respon-
sabilidade dos empreendedores – públicos ou privados –, mesmo que
os prejuízos diretos, como a inviabilização de outros usos da água,
fossem óbvios.
Outros usos, como o aproveitamento de potenciais hidráulicos para
a geração de energia elétrica, embora aparentemente não interfiram
na disponibilidade de água, estão incluídos no sistema de outorga e
cobrança pelo fato de alterarem os regimes de escoamento dos cursos
de água, bem como para que as vazões por eles requeridas possam ser
compatibilizadas com outros usos que exigem a captação e desvio de
água de seus cursos naturais, como a irrigação e o próprio abasteci-
mento público. A Lei 9.433, de 1997 trouxe os instrumentos legais
para conter essa perversa distorção econômica. Isto só foi possível
graças aos dispositivos da Constituição de 1988, que passaram para
os estados e para a União a propriedade de todas as águas, mesmo
aquelas situadas em propriedades particulares.
Em resumo, as inovações introduzidas pela Constituição de 1988 via-
bilizaram a instituição de uma Política Nacional de Recursos Hídricos
A questão ambiental e a Constituição de 1988: reflexões sobre alguns aspectos importantes
611

e de políticas estaduais e do Distrito Federal compatíveis com o fato


de que os recursos hídricos são recursos naturais cada vez mais escas-
sos e, por essa razão, devem ser bem administrados e usados com par-
cimônia. Elas antevêem, em boa medida, conclusões e recomendações
posteriores, expressas nos resultados da Rio-92 e na Agenda 21.

Unidades de conservação

O Brasil é considerado o líder de um grupo privilegiado de quinze


países em todo o mundo, ditos megadiversos, pois abrigam cerca de
70% da biodiversidade do Planeta2. As unidades de conservação são
de vital importância para esses países, que têm na diversidade biológi-
ca um patrimônio a ser utilizado com responsabilidade, em benefício
de suas populações.
No Brasil, normas de conservação de parcela desse patrimônio fo-
ram editadas desde o século XVI, como as limitações à exploração do
pau-brasil, a transformação das matas costeiras em propriedade da
Coroa Portuguesa, a conservação das espécies madeireiras e mesmo a
proibição do corte de algumas espécies de interesse para a construção
(DEAN, 1996; URBAN, 1998). No entanto, essas políticas tinham
um viés muito pragmático e pontual.
A preocupação em conservar os recursos biológicos nacionais de forma
mais abrangente surgiu no século XVIII, motivada pelo desmatamento
da Mata Atlântica pela cultura da cana-de-açúcar. Nos séculos XVIII
e XIX, alguns autores já criticavam o modo como se dava a exploração
dos recursos naturais no Brasil e defendiam a manutenção desses recur-
sos como instrumento de progresso da Nação (PÁDUA, 2002).
No início do século XX, diversos conservacionistas brasileiros toma-
ram para si a tarefa de inserir, no País, os princípios de um movimento
mundial que se organizava em prol da manutenção da flora e da fauna.
Eles denunciavam o desmatamento, defendiam reformas nas técnicas
agrícolas e a implantação de uma política florestal (URBAN, 1998;
FRANCO, 2002; FRANCO & DRUMMOND, 2005). O trabalho
desses conservacionistas resultou na instituição do Código Florestal,
em 1934, cuja “versão atual” (Lei 4.771, de 1965) constitui uma das
mais importantes leis ambientais do País. Resultou, também, na cria-
ção dos primeiros parques nacionais brasileiros (Itatiaia, em 1937, e
Serra dos Órgãos e Iguaçu, em 1939).

2
Além do Brasil: África do Sul, Bolívia, China, Colômbia, Costa Rica, Equador,
Filipinas, Índia, Indonésia, Malásia, México, Peru, Quênia e Venezuela.
612 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Ainda assim, entre as décadas de 1930 e 1980, as conquistas foram


pontuais e surtiram pouco efeito, pois as vozes em prol da conservação
eram raras. Foram criadas novas reservas, conhecidas como unidades
de conservação (UCs), mas havia uma grande carência de conheci-
mentos sobre a biodiversidade nacional, faltavam informações carto-
gráficas que orientassem a seleção de áreas e as instituições responsá-
veis pelas UCs eram muito frágeis.
Além disso, não havia norma legal que disciplinasse a criação de UCs.
O Código Florestal e a Lei de Fauna (Lei 5.197, de 1967) previam a
criação de parques nacionais, reservas biológicas, florestas nacionais e
parques de caça pelo Poder Público, bem como os objetivos dessas áreas.
O Código Florestal também possibilitava ao proprietário de floresta
preservada gravá-la com perpetuidade, dispositivo que, posteriormente,
deu ensejo à criação das Reservas Particulares do Patrimônio Natural
(RPPNs). Mas essas leis não chegaram a constituir uma política de con-
servação da biodiversidade. Não disciplinavam, por exemplo, os critérios
para a criação e a gestão de unidades de conservação.
Na década de 1970, surgiu um movimento social ambientalista brasi-
leiro, que ganharia força política na década de 1980 (DRUMMOND,
1999). Esse movimento propiciou a elaboração e aprovação de leis am-
bientais modernas, entre elas a Lei 6.938, de 1981, que instituiu a Polí-
tica Nacional do Meio Ambiente. A proteção dos ecossistemas, com a
preservação de áreas representativas, é um dos princípios que regem essa
política (art. 2º, inciso IV, da Lei 6.938, de 1981). O art. 9º, inciso VI,
dessa lei, na sua redação original, previa “a criação de reservas e estações
ecológicas, áreas de proteção ambiental e as de relevante interesse eco-
lógico, pelo Poder Público federal, estadual e municipal” como um dos
instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente3.
Esses dispositivos da Lei 6.938, de 1981 refletem o aprofundamento dos
debates, nacionais e internacionais, acerca da importância da diversida-
de biológica e da necessidade de sua conservação, e foram consagrados
no art. 225 da Constituição Federal de 1988. A Carta Magna instituiu
o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput)
e, para que esse direito seja garantido, estabeleceu diversas incumbências
ao Poder Público, entre as quais as de “preservar e restaurar os processos
ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossis-

3
Posteriormente, a redação desse inciso foi modificada pela Lei 7.804, de 1989.
O art. 9º, inciso VI, em sua redação atual, prevê “a criação de espaços territo-
riais especialmente protegidos pelo Poder Público federal, estadual e municipal,
tais como áreas de proteção ambiental, de relevante interesse ecológico e reser-
vas extrativistas”.
A questão ambiental e a Constituição de 1988: reflexões sobre alguns aspectos importantes
613

temas”; “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético


do País”, “definir, em todas as unidades da Federação, espaços territo-
riais e seus componentes a serem especialmente protegidos” e “proteger
a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em
risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou subme-
tam os animais a crueldade” (art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII).
Os dispositivos constitucionais acima citados são um reconhecimen-
to da importância da diversidade biológica para o desenvolvimento
nacional. Ao preceituar que a proteção do patrimônio biológico é ne-
cessária à garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibra-
do, a Constituição incorpora a idéia de que as espécies selvagens e a
cobertura vegetal nativa são essenciais para a manutenção de serviços
ecossistêmicos, entre os quais a conservação do solo e da água, o con-
trole de predadores, a polinização e a dispersão de sementes, a fixação
de carbono e a regulação do clima.
Ao determinar ao Poder Público que proteja a integridade do pa-
trimônio genético nacional, a Carta Magna coloca a biodiversidade
como recurso estratégico para o País, fonte de matéria-prima para o
desenvolvimento industrial. A Constituição protege a base de recursos
a partir dos quais poderão ser realizados os estudos de bioprospecção
e desenvolvimento tecnológico, especialmente para as indústrias quí-
mica, farmacêutica e cosmética.
Finalmente, a Constituição reconhece a criação de espaços territoriais
especialmente protegidos pelo Poder Público como uma das princi-
pais estratégias de proteção das espécies e dos ecossistemas nativos. A
manutenção desses espaços, aqui entendidos como unidades de con-
servação4, é garantida no art. 225, § 1º, inciso III, que veda qualquer
uso que comprometa a integridade dos atributos que justificaram a
sua criação.
O mesmo dispositivo constitucional determina que a alteração e a su-
pressão dos espaços territoriais especialmente protegidos ocorram so-
mente por meio de lei. Não existe restrição à criação de UCs por decre-
to, mas a alteração e a supressão dependem de autorização legal. Essa
exigência para revisão de um ato do Poder Executivo foi motivada pela

4
A expressão “espaço territorial especialmente protegido” tem sido utilizada sob
dois enfoques: ora como sinônimo de UCs, ora como algo de natureza mais ampla,
incluindo as próprias UCs, mas também as reservas legais, as áreas de preservação
permanente, reservas indígenas, áreas de quilombos, corredores ecológicos, zonas
de amortecimento e outras legalmente instituídas pelo Poder Público que tenham
como um de seus objetivos a conservação dos recursos naturais. Para maiores deta-
lhamentos sobre a questão, ver Ganem & Araújo (2006).
614 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

extinção do Parque Nacional de Sete Quedas, para a implantação da


Usina Hidrelétrica de Itaipu, em 1982, realizada sem debates com a
sociedade, a despeito dos protestos da opinião pública (MERCADAN-
TE, 2001). Machado (2001) afirma que a exigência de autorização le-
gal foi proposta à Assembléia Nacional Constituinte pela Sociedade
Brasileira de Direito ao Meio Ambiente, sob inspiração da Convenção
Africana sobre Conservação da Natureza, de 1968.
A exigência de lei para alteração e supressão de UCs oferece maior
estabilidade ao sistema de áreas protegidas pelo Poder Público. Ma-
chado (2008) ressalta que os atos do Poder Executivo não prevêem um
debate público e um lapso de tempo antes da sua edição. A elaboração
e aprovação de um projeto de lei, ao contrário, constitui processo mais
lento e permite intensa participação democrática. Segundo o autor, o
dispositivo constitucional evita que as áreas protegidas sejam mutila-
das e deturpadas ao sabor de soluções demagógicas, às vezes intitula-
das como de interesse público.
O art. 225, § 1º, inciso III, da Constituição não apenas reconheceu a
importância das unidades de conservação, como ensejou a instituição
de uma política de conservação da biodiversidade por meio da criação
e gestão dessas áreas. Essa política foi estabelecida pela Lei nº 9.985,
de 2000, que regulamenta os incisos I, II, III e VII do art. 225 da
Constituição Federal.
A Lei do SNUC, como é conhecida, criou o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), composto por diver-
sas categorias de UCs. Em relação à legislação anterior, ela apresenta
diversos avanços, entre os quais:
1. Consolida um conceito de unidade de conservação, ausente na le-
gislação anterior à Constituição Federal. Unidade de conservação
é definida como “espaço territorial e seus recursos ambientais, in-
cluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevan-
tes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de con-
servação e limites definidos, sob regime especial de administração,
ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção” (art. 2º, III).
Portanto, a UC pode abranger terras públicas ou privadas, mas deve
ser criada e gerida pelo Poder Público. Nesse sentido, difere de áreas
de preservação permanente, reserva legal e outras áreas de interesse
para a conservação.
A questão ambiental e a Constituição de 1988: reflexões sobre alguns aspectos importantes
615

2. Define dois tipos de UCs: de proteção integral e de uso sustentável.


As de proteção integral5 englobam cinco categorias e destinam-se à
preservação dos recursos naturais. As de uso sustentável6 abrangem
sete categorias de UCs e admitem o uso direto dos recursos natu-
rais, desde que compatível com a sua conservação. As doze catego-
rias de UCs possuem diferentes objetivos, formas de dominialidade
da terra, tamanhos e graus de proteção. Diversas admitem a pre-
sença de população humana residente e algumas visam a estimular
as atividades extrativistas como forma de promover o uso sustentá-
vel da biodiversidade. Diferentemente do que ocorria na legislação
anterior à Constituição Federal, a Lei do SNUC estabeleceu um
conjunto diversificado de UCs de proteção integral e de uso susten-
tável, as quais são complementares no objetivo central de conservar
a biodiversidade. O uso sustentável passou a ser valorizado como
estratégia de conservação.
3. Define normas sobre a presença de populações tradicionais em
UCs, tendo em vista a sobreposição das áreas de moradia e de tra-
balho dessas populações com áreas de interesse para a proteção da
biodiversidade. Essas normas abrangem desde a instituição de cate-
gorias de uso sustentável específicas (reservas extrativistas e reservas
de desenvolvimento sustentável) para áreas onde essas populações
estão presentes, até a previsão de regras que tornam compatível a
manutenção temporária de comunidades tradicionais em parques
nacionais. As normas da Lei do SNUC resultaram de um complexo
debate entre preservacionistas e socioambientalistas, no fim da dé-
cada de 1980 e nos anos 1990, relativo aos conflitos entre a proteção
da biodiversidade por meio de UCs e a conservação do patrimônio
cultural representado pelos modos de vida das populações tradicio-
nais. A legislação anterior à Constituição Federal não previa regras
nesse sentido.
4. Institui a consulta pública (exceto para reserva biológica e estação
ecológica) e a elaboração de estudos técnicos previamente à criação
das UCs. A consulta pública visa a criar um canal de comunica-
ção entre o Poder Público e as possíveis comunidades afetadas pela
criação das UCs, especialmente as de proteção integral. Os estudos
técnicos têm o objetivo de apontar a localização, a dimensão e a

5
Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural e
Refúgio da Vida Silvestre.
6
Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta
Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento
Sustentável e Reserva Particular do Patrimônio Natural.
616 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

categoria mais adequada para a unidade. Na legislação anterior à


Constituição Federal, a consulta pública e os estudos técnicos não
estavam previstos. Em geral, as UCs eram criadas sem qualquer en-
volvimento das comunidades locais.
5. Prevê a criação de zonas de amortecimento e de corredores ecoló-
gicos entre as UCs. Os dois instrumentos têm por fim promover a
gestão do entorno das unidades de conservação, de forma a mini-
mizar os impactos das atividades humanas sobre a biodiversidade
protegida na UC e propiciar o fluxo gênico entre as populações de
diferentes unidades. Essa norma representa um grande avanço, pois
evita a implantação de um sistema de áreas isoladas, cujo objetivo
de conservação da biodiversidade pode tornar-se comprometido, a
longo prazo.
6. Preceitua que o SNUC promova o desenvolvimento sustentável e
insira a utilização dos princípios e práticas de conservação da na-
tureza no processo de desenvolvimento. O Poder Público deve as-
segurar que o processo de criação e a gestão das UCs sejam feitos
de forma integrada com as políticas de administração das terras e
águas circundantes. Esses objetivos, ausentes nas leis anteriores à
Constituição Federal relativas às UCs, visam a minimizar os con-
flitos entre o desenvolvimento socioeconômico e as necessidades de
proteção da biodiversidade.
A instituição de uma política nacional abrangente de unidades de
conservação, a partir do art. 225 da Constituição Federal, deu grande
impulso à criação dessas áreas. A superfície coberta por UCs federais
passou de dezessete milhões de hectares, em 1988, para aproxima-
damente 34 milhões de hectares, em 1990 (CASTRO, 2004), dupli-
cando, portanto, logo após a promulgação da Carta Magna. De 1990
a 2005, foram acrescentados 37 milhões de hectares em unidades de
conservação federais (DRUMMOND, FRANCO & NINIS, 2005).
Sem sombra de dúvidas, muito ainda há que ser feito, mas os últimos
vinte anos foram de consolidação da política de conservação da biodi-
versidade no Brasil, e a Carta Magna deu importante passo nesse sen-
tido, ao inserir os espaços territoriais especialmente protegidos como
um dos pré-requisitos para a garantia do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
A questão ambiental e a Constituição de 1988: reflexões sobre alguns aspectos importantes
617

Fauna

Como referido anteriormente, uma das incumbências do Poder Públi-


co para assegurar o direito ao meio ambiente ecologicamente equili-
brado é “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas
que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais a crueldade.” (art. 225, § 1º, inci-
so VII, da Constituição).
No que se refere à crueldade contra os animais, o disposto na Cons-
tituição teve algumas boas repercussões. São relevantes, nesse sentido,
decisões emanadas do Supremo Tribunal Federal (STF) que conde-
nam certas práticas consideradas cruéis. Como exemplo, foi conside-
rada discrepante da norma constitucional a denominada “farra do boi”
(RE 153.531, julgamento em 3/6/1997). Da mesma forma, foram de-
claradas inconstitucionais leis estaduais que intentavam regulamentar
as “rinhas” ou “brigas de galo”, como a Lei nº 7.380, de 1998, do Estado
do Rio Grande do Norte (ADI 3.776, julgamento em 14/6/2007), e a
Lei nº 2.895, de 1998, do Estado do Rio de Janeiro (ADI 1.856-MC,
julgamento em 3/9/1998, e ADI 2.514, julgamento em 29/6/2005).
Já no que se refere à extinção de espécies, o referido dispositivo
constitucional não logrou tanto êxito. Na Lista Oficial de Espécies
Animais Ameaçadas de Extinção da Fauna Indígena publicada em
1973 (Portaria 3.481-DN, do Instituto Brasileiro de Desenvolvi-
mento Florestal, de 1973), foram reconhecidas como ameaçadas de
extinção 86 espécies animais. Já a Lista publicada em 1989 (Portaria
1.522, de 1989, do Ibama), com revisões até 1998, continha 216
espécies, e a publicada em 2003 (Instrução Normativa 003, de 2003,
do MMA) continha 395 espécies animais. Ou seja, o número de
espécies de animais ameaçados de extinção cresce assustadoramente.
Ainda que se possa tecer críticas à forma com que tais espécies são
incluídas na lista, não há dúvida de que a caça, o tráfico de animais
e a destruição de hábitats, em decorrência da poluição e do desma-
tamento, têm posto em risco a sobrevivência de inúmeras espécies,
apesar do mandamento constitucional.
Embora a simples existência de legislação de proteção à fauna não
seja garantia de que tal proteção de fato ocorrerá, a falta de normas ou
a sua inadequação podem contribuir para agravar a situação da fauna
no País. A esse respeito, cabe comentar que principal lei de proteção à
fauna silvestre, a Lei no 5.197, de 1967, encontra-se bastante desatua-
lizada e, além disso, com a edição da Lei no 9.605, de 1998, abranda-
ram-se as penas relativas aos crimes contra os animais. Também está
618 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

desatualizada e incompleta a legislação relativa ao bem-estar animal,


representada basicamente pelo Decreto no 24.645, de 1934, que tra-
ta da proteção aos animais contra maus-tratos, e pela Lei no 6.638,
de 1979, que estabelece normas para a prática didático-científica da
vivissecção de animais. Louve-se que, recentemente7, a Câmara dos
Deputados aprovou proposição estabelecendo procedimentos para o
uso científico de animais (PL 1.153, de 1995), ainda a ser analisada
pelo Senado Federal.
Em resumo, ainda há muito a fazer no País pela proteção à fauna.

Conclusão

O art. 225 e os demais dispositivos da Constituição Federal que apre-


sentam relação com a questão ambiental, deve-se reconhecer, estrutu-
ram uma base extremamente importante para nortear as ações públi-
cas e privadas tendo em vista a garantia de padrões ambientalmente
sustentáveis de desenvolvimento.
A proteção do meio ambiente é explicitamente inserida na Carta
de 1988 como uma tarefa compartilhada pelas diferentes esferas de
governo e, também, pela sociedade. As ações governamentais nesse
campo, todavia, necessitam ser feitas de forma mais articulada, como
bem demonstra a experiência de mais de um quarto de século com o
Sisnama. Para isso, a aprovação da lei complementar tratando da co-
operação entre os entes federativos quanto à política ambiental pode
ser passo relevante.
Contudo, devem-se evitar expectativas demasiadas em relação a
essa lei complementar, assim como em relação a qualquer outra lei.
As normas ambientais já em vigor no Brasil têm algumas lacunas
e outros problemas, mas são consideradas modernas e consistentes
pela maior parte dos técnicos e dos doutrinadores. Isso não tem sido
suficiente, contudo, para assegurar de forma efetiva o controle da
degradação ambiental.
Sem dúvida, tem havido avanços nos últimos vinte anos em termos de
implementação das diretrizes e instrumentos da Política Nacional do
Meio Ambiente. Exemplo importante está na grande ampliação do
número de empreendimentos submetidos a licenciamento ambiental,
incluindo a exigência de EIA e outros estudos ambientais. Por seu

7
Aprovação do PL 1.153, de 1995 pelo Plenário da Câmara dos Deputados em
20/5/2008.
A questão ambiental e a Constituição de 1988: reflexões sobre alguns aspectos importantes
619

caráter preventivo, essas ferramentas constituem peça-chave no con-


trole ambiental em qualquer país do mundo. Não é sem razão que a
Constituição deu destaque ao EIA.
O licenciamento ambiental e os estudos que o integram, exatamente
por sua relevância, estão entre as matérias que merecem algum aper-
feiçoamento no campo normativo. Será bem-vinda uma lei da União
que regule especificamente esse processo, nos moldes das propostas
já em trâmite no Legislativo. A prática de vários anos de emissão das
licenças pelos órgãos do Sisnama certamente poderá apontar os avan-
ços necessários nesse campo.
Os ajustes nas normas que regulam o licenciamento ambiental, deve-
se frisar, não poderão ser conduzidos como uma resposta simplista às
demandas do setor empresarial pela agilização dos processos de libe-
ração de seus empreendimentos. Grande parte dos entraves à emissão
das licenças está associada à falta de estrutura dos órgãos do Sisnama,
não a exigências desmesuradas das normas ambientais.
Os recursos hídricos constituem um dos melhores exemplos de avan-
ços na legislação ambiental pós-88. As decisões do Legislador Cons-
tituinte foram fundamentais para a elaboração da Lei da Política Na-
cional dos Recursos Hídricos, que contempla instrumentos modernos
e extremamente relevantes como a outorga de direito de uso e a co-
brança pelo uso de recursos hídricos. A implementação dessas ferra-
mentas, hoje ainda em fase inicial, constitui elemento essencial, tendo
em vista assegurar disponibilidade hídrica quantitativa e qualitativa
para os usos da atual e das futuras gerações.
Entre os avanços na legislação associados a temas tratados na Cons-
tituição Federal, deve necessariamente ser citada também a Lei do
Sistema Nacional de Unidades de Conservação. A aprovação de um
diploma legal abrangente, que regula de forma sistêmica e consistente
essas áreas protegidas, tem gerado efeitos bastante positivos, com o
impulso à criação de novas unidades de conservação, tanto de prote-
ção integral quanto de uso sustentável, a democratização de seu pro-
cesso de criação etc.
Quanto ao tema fauna, não se verificaram ainda alterações de vulto nas
normas que tratam da matéria após a promulgação da Constituição.
Não são sem significado, contudo, os efeitos das diferentes decisões
do Judiciário que procuram assegurar a proteção da fauna lastreadas
diretamente no texto de nossa Carta Política.
620 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

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Município e política urbana
621

Autonomia municipal na
Constituição Federal de 1988
Márcio Silva Fernandes

1. Introdução

O município brasileiro alcançou, com a promulgação da Constituição


Federal de 1988, uma posição de destaque no pacto federativo or-
ganizado por aquela Carta, jamais obtida na trajetória constitucional
pátria anterior, ou mesmo nos ordenamentos constitucionais de outros
países, ao ser expressamente mencionado como parte da Federação.
Essa posição do município veio acompanhada de uma série de nor-
mas referentes às suas competências e aos seus Poderes Legislativo e
Executivo, destinadas a garantir a autonomia do ente municipal frente
aos demais entes da Federação. Não se poderia falar em autonomia,
se o município restasse dependente, seja da União, seja do estado em
que estivesse localizado, não podendo auto-organizar-se, arrecadar e
aplicar suas próprias rendas ou escolher os membros de seus poderes.
Nem mesmo as limitações impostas pela União, posteriormente à pro-
mulgação da Constituição de 1988, ao longo dos vinte anos de sua
vigência, por meio do poder constituinte derivado, tais como as relati-
vas à criação de novos municípios e às despesas municipais, lograram
reduzir a autonomia conquistada pelos municípios, pois visaram cor-
rigir distorções que se verificaram na aplicação prática dos dispositivos
constitucionais.
O presente estudo pretende, assim, descrever as competências munici-
pais referidas pela Constituição de 1988, além das restrições impostas
por normas posteriores à promulgação da Carta Magna.

2. O município no direito comparado

Em outros países, a posição dos municípios entre os entes estatais


sofre variações, decorrentes da formação política histórica das respec-
tivas nações.
622 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Nesse sentido, o direito francês admite a divisão do território em re-


giões, departamentos e comunas, sendo estas últimas correspondentes
aos municípios, com personalidade jurídica própria e autonomia fi-
nanceira, patrimonial e política. O governo das comunas tem como
órgãos o Conselho Municipal (órgão deliberativo) e a Municipalidade
(órgão executivo), composta por um prefeito (maire) e seus adjuntos,
eleitos pelo Conselho Municipal dentre seus pares.
Entretanto, a organização das comunas francesas obedece a um Código
Municipal, aplicado a todas, exceto Paris, Lyon e Marseille. Os atos do
prefeito estão ainda submetidos ao poder hierárquico do prefeito do
departamento (préfet), que é indicado pelo Presidente da República. O
prefeito do departamento pode anular, aprovar ou substituir as decisões
adotadas pelo prefeito da comuna ou do Conselho Municipal.
MEIRELLES, citando outros autores, revela ainda outras formas de
interferência na comuna no âmbito do direito francês:
Com efeito, no plano municipal o Conselho pode ser dissolvido
por decreto motivado do Presidente da República; o maire e seus
adjuntos podem ser suspensos por um mês pelo préfet (agente
executivo do departamento) e por três meses pelo ministro do
Interior, e révoqués, isto é, destituídos de suas funções executivas,
sem prejuízo de sua condição de conselheiros municipais, por
decreto do Presidente da República – em qualquer caso, sempre
motivadamente. (2003, p. 56)

O direito alemão, por outro lado, reconhece Estados-membros, dis-


tritos e Municípios no âmbito de sua organização político-adminis-
trativa, garantindo-se aos Municípios eleição direta para o Conselho
Municipal e autonomia administrativa e financeira.
Os municípios alemães não possuem, contudo, competência legislati-
va, que é atribuída apenas à Federação e aos estados-membros, poden-
do apenas emitir regulamentos administrativos. A autonomia finan-
ceira é relativa, na medida em que cabe aos estados-membros fixarem
os percentuais de tributos transferidos. Também a organização interna
dos municípios é definida pelo estado.
Na Itália, a Constituição prevê, além das comunas (correspondentes
aos municípios), as regiões e as províncias. As comunas possuem com-
petência para editar leis e arrecadar tributos, mas sua organização deve
atender a normas aplicáveis a toda a República. Os atos praticados no
âmbito da comuna estão sujeitos à supervisão e ao controle exercido
pelo governador da província que pode, inclusive, anular ato conside-
rado ilegítimo.
Autonomia municipal na Constituição Federal de 1988 623

Nos Estados Unidos, a Constituição Federal não faz qualquer menção


aos municípios, cabendo a legislação acerca dos mesmos aos estados,
que lhes conferem as mais variadas formas de administração. Compe-
te às municipalidades prestar os serviços de âmbito local, bem como
arrecadar as receitas relativas a impostos sobre o patrimônio imobiliá-
rio e taxas sobre os serviços disponibilizados. Em geral, os municípios
têm grande poder de arrecadação, ressaltando sua autonomia quanto a
este aspecto. Em geral, cabe aos municípios promulgar suas leis de or-
ganização, denominadas Home Rule Charters, atendidos os princípios
constantes das Constituições Federal e do respectivo estado.
O direito português, por meio da Constituição promulgada em 1976,
estabeleceu uma autonomia local e regional em Portugal, com atribui-
ções e recursos próprios. A administração municipal cabe ao Concelho
Municipal, à Câmara Municipal e a seu presidente, sendo o presidente
da Câmara Municipal designado pelo governo e os vereadores, pelo
Concelho. Os membros do Concelho podem ser natos ou eleitos.
Para SILVA, “a mola propulsora da autonomia no Direito português
é a competência constitucionalmente atribuída aos municípios na ela-
boração da legislação local. Assim, a par dos recursos que lhes são
assegurados, do poder que possuem de organizarem-se, editam seus
próprios ordenamentos jurídicos, dentro da limitação constitucional.”
(2003, p. 60).
Em nenhum dos aludidos países analisados, portanto, verifica-se a
elevação dos entes municipais à condição de parte da Federação, como
o fez a Constituição pátria em 1988.

3. O município no ordenamento Constitucional


anterior a 1988

O tratamento dado ao município no ordenamento pátrio sofreu signi-


ficativas mutações, desde o seu surgimento, ainda no período colonial,
o qual seguia o modelo vigente em Portugal à época. Dessa forma, os
municípios sofriam as restrições oriundas das capitanias e seus gover-
nadores, apesar de, aos poucos, ganharem espaço e atribuições, entre
estas as legislativas, administrativas e judiciais.
Com a Constituição do Império de 1824, foram instituídas câmaras
municipais nas cidades e vilas, com eleição para vereadores e competên-
cia para “o governo econômico e municipal das mesmas vilas e cidades”
(art. 169). Tal dispositivo foi regulamentado em 1828, acarretando, to-
davia, grande subordinação das câmaras aos presidentes das províncias,
624 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

fazendo com que os municípios se tornassem mera divisão territorial,


sem influência política ou autonomia para cuidar de seus interesses.
A primeira Constituição republicana trouxe, no papel, garantia de au-
tonomia municipal, nos termos a serem definidos pelos estados. Na
prática, porém, os municípios continuavam sob o poder de políticos
que os controlavam inteiramente, os chamados “coronéis”, que esco-
lhiam os administradores locais segundo seus interesses. Os muni-
cípios não dispunham de recursos próprios e nem de competências
próprias estabelecidas em nível constitucional, o que comprometia a
pretendida autonomia.
A Carta de 1934 trouxe a autonomia municipal como princípio cons-
titucional, determinando a eletividade do prefeito e dos vereadores e
sendo a primeira a discriminar as rendas cabíveis à municipalidade. Tais
inovações, todavia, não puderam ser avaliadas, pela curta duração da
vigência do ordenamento constitucional em que estavam inseridas.
A Constituição de 1937 representou um retrocesso quanto à autono-
mia municipal, ao determinar que os prefeitos seriam indicados pelo
governador do estado. Com o golpe que originou o Estado Novo, os
estados passaram a ser administrados por um interventor, que indicava
os prefeitos. Nesse panorama, os interesses da coletividade não eram
prioridade, pois os prefeitos preocupavam-se apenas em manter-se
nos cargos. MEIRELLES assim compara o sistema da Carta de 1937
com o período imperial:
Pode-se afirmar, sem vislumbre de erro, que no regime de 1937
as Municipalidades foram menos autônomas que sob o centra-
lismo imperial, porque na Monarquia os interesses locais eram
debatidos nas Câmaras de Vereadores e levados ao conhecimen-
to dos governadores (Lei de 1828) ou das Assembléias Legis-
lativas das Províncias (Ato Adicional de 1834), que proviam a
respeito, ao passo que no sistema interventorial do Estado Novo
não havia qualquer respiradouro para as manifestações locais em
prol do município, visto que os prefeitos nomeados governavam
discricionariamente, sem a colaboração de qualquer órgão local
de representação popular. (2003, p. 56).

A Carta de 1946, promulgada após o fim do período de exceção, deu


novo alento aos municípios, discriminando suas rendas, fortalecendo
a divisão entre os poderes Executivo e Legislativo dos municípios e
estabelecendo eleições para prefeitos e vereadores. A mesma Consti-
tuição deu aos municípios participação em tributos arrecadados pelos
estados e pela União.
Autonomia municipal na Constituição Federal de 1988 625

Sobre o tema, MIRANDA asseverou que “a Constituição de 1946,


sem ir até onde deveria ter ido, restaurou a autonomia municipal e deu
nova oportunidade à intensa política municipalista.” (1990, p. 44)
A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969 pri-
maram pelo caráter centralizador, apesar de manter a eleição direta
para prefeitos e vereadores de municípios que não fossem capitais,
estâncias hidrominerais ou declarados de interesse da segurança
nacional. Manteve-se a discriminação dos impostos municipais e a
participação em tributos federais e estaduais. Todavia, impôs limite
ao número de vereadores e também à remuneração dos edis, a serem
estabelecidos em lei complementar federal, além de ampliar os casos
de intervenção do estado no município. E de estabelecer o exercício
do controle externo da Prefeitura pela Câmara, com o auxílio do
Tribunal de Contas do estado.
Nesse período, assim como nas Constituições anteriores, as leis or-
gânicas municipais eram aprovadas, em regra, por lei complementar
estadual, por força da omissão sobre a matéria da Carta Federal, so-
mada à competência atribuída aos próprios estados pelas respectivas
Constituições estaduais, o que limitava, sobremaneira, a autonomia
das municipalidades, além de desconsiderar as diferentes realidades
dos municípios situados em um mesmo estado.

4. O município na Constituição Federal de 1988

4.1. O município como parte da Federação

O art. 1º, caput, da Constituição Federal de 1988, conferiu aos mu-


nicípios brasileiros posição única no mundo e também na tradição
histórica brasileira, ao dispor que “A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos estados e municípios e do Dis-
trito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos...”.
Os municípios, dessa forma, foram expressamente elevados à posição
de componentes da Federação, ao lado dos estados e do Distrito Fede-
ral, deixando a condição de mera unidade administrativa inferior que
ocupavam nos regimes constitucionais anteriores.
Ao mesmo tempo, o art. 18, caput, da Carta Magna assegura a autono-
mia municipal em situação equivalente à dos demais entes, ao afirmar
que “A organização político-administrativa da República Federativa
626 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

do Brasil compreende a União, os estados, o Distrito Federal e os mu-


nicípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”
Tais disposições, somadas às que conferem atribuições exclusivas aos
municípios, reforçam a autonomia concedida aos mesmos, na medida
em que os colocam em plano semelhante à União e aos estados, sem a
existência de hierarquia. MEIRELLES assim comenta sobre a posi-
ção atual dos municípios:
Em face dessas atribuições já não se pode sustentar, como sus-
tentavam alguns publicistas, ser o município uma entidade me-
ramente administrativa. Diante de tais atribuições tão eminente-
mente políticas e de um largo poder de autogoverno, sua posição
atual no seio da Federação é de entidade político-administrativa
de terceiro grau, como bem salientavam os comentadores da
Constituição. (2003, p. 46)

Essa posição dos municípios como parte da Federação é criticada por


diversos autores, sob o argumento de que tais entes não possuem re-
presentação direta no Senado Federal e nem legitimidade para propor
emenda à Constituição Federal. Além disso, seus atos normativos não
estão sujeitos ao controle concentrado de constitucionalidade pelo
Supremo Tribunal Federal. Por último, os municípios sequer possuem
Poder Judiciário próprio, sendo seus interesses julgados pela justiça
estadual ou federal.
SILVA reconhece o caráter peculiar do Federalismo brasileiro, mas
assim comenta acerca da elevação dos municípios à condição de parte
da Federação:
E os Municípios, transformaram-se mesmo em unidades federa-
das? A Constituição não o diz. Ao contrário, existem onze ocor-
rências das expressões unidade federada e unidade da Federação
(no singular ou no plural) referindo-se apenas aos Estados e Dis-
trito Federal, nunca envolvendo os municípios. (1997, p. 590)

Dessa forma, embora componentes da Federação, ainda faltaria aos


municípios alguns elementos para terem o mesmo nível de participa-
ção dos estados.
De qualquer forma, apesar da discussão citada, todos os autores con-
sideram inegável a autonomia concedida pela Lei Maior aos municí-
pios, com um plexo de competências próprias, emanadas diretamente
da Constituição, a respeito das quais não cabe à União ou ao estado
limitar ou retirar.
A autonomia municipal pode ser considerada, inclusive, cláusula pé-
trea, protegida pelo art. 60, §4º, I, da Carta Magna, sendo inerente
Autonomia municipal na Constituição Federal de 1988 627

ao pacto federativo firmado pelo poder constituinte originário, não


podendo ser suprimida, sequer, por meio de emenda à Constituição.
Essa autonomia municipal somente pode ser restringida diante do
surgimento de alguma das quatro hipóteses de intervenção a ser exer-
cida pelo estado, previstas no art. 35 da Constituição Federal.

4.2. Competência para auto-organizar-se

Dentre todas as competências atribuídas aos municípios pela Consti-


tuição, sem dúvida uma das mais relevantes diz respeito à capacidade
de auto-organizar-se, mediante a edição de sua lei orgânica, consoante
dispõe o art. 29, caput, da Lei Maior.
Aludida lei orgânica deveria ser votada em dois turnos e aprovada
por dois terços dos vereadores, obedecendo aos preceitos fixados pela
Constituição Federal e pela Constituição do estado.
As Cartas anteriores, como já mencionado, deixavam aos estados a res-
ponsabilidade de definir tal matéria, sendo que a ampla maioria optou por
editar leis orgânicas aplicáveis a todos os municípios, indistintamente.
A permissão para elaborar sua própria lei orgânica dá aos municípios
a possibilidade de conceder direitos e distribuir poderes internamente,
da forma que entender mais conveniente à Administração municipal.
A elaboração da lei orgânica municipal não é inteiramente livre, pois a
Constituição Federal já trouxe arroladas diversas normas que deverão fa-
zer parte da mesma. Além disso, a lei orgânica não poderá contrariar a
Constituição Federal ou a do respectivo estado, o que, por si só, já repre-
senta uma grande limitação, em face do caráter detalhista da Lei Maior.
Sobre o conteúdo da lei orgânica municipal, SILVA salienta que “ela
é uma espécie de constituição municipal. Cuidará de discriminar a
matéria de interesse local de competência exclusiva do município (art.
30, I), observadas as peculiaridades locais, bem como a matéria de
competência comum que a Constituição lhe reserva juntamente com
a União e os estados e a suplementar da legislação federal e estadual
(art. 30, II). Indicará, dentre a matéria de sua competência, aquela que
lhe cabe legislar com exclusividade e que lhe seja reservado legislar
suplementarmente.”(1989, p. 9)
Todavia, apesar da competência deferida pela Carta Magna, a maioria
das municipalidades optou por repetir as normas presentes na Consti-
tuição Federal e do Estado, mitigando, em parte, o benefício alcança-
do. Tal realidade é reflexo, ainda, do despreparo de muitas Câmaras de
628 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Vereadores para elaborar uma lei orgânica de forma diferente, conso-


ante as necessidades locais, sem incidir em inconstitucionalidades.

4.3. Competências dos municípios

O art. 30 da Constituição Federal estabelece as competências dos mu-


nicípios, enfatizando a capacidade para legislar sobre assuntos de inte-
resse local. Tais assuntos são, evidentemente, de maior conhecimento
de prefeitos e vereadores, que estão mais próximos da realidade da
municipalidade do que as demais esferas governamentais.
MEIRELLES salienta que “a expressão ‘legislação local’ abrange não
só as leis votadas pela Câmara e promulgadas pelo prefeito, como,
também, os regulamentos expedidos pelo Executivo em matéria de
sua alçada.” (2003, p. 108)
Tal cláusula genérica de competência engloba outras arroladas no re-
ferido art. 30, como as de suplementar a legislação federal e estadual,
a de instituir e arrecadar tributos da sua alçada, a de criar e suprimir
distritos, a de prestar serviços públicos de interesse local (como trans-
porte coletivo, educação infantil, ensino fundamental e atendimento
à saúde) e a de promover o ordenamento territorial e a proteção do
patrimônio histórico-cultural local.
No que tange à competência para promover o ordenamento territorial
do município, prevista no art. 30, VIII, a Constituição estabelece que
a Municipalidade executará a política de desenvolvimento urbano, de
modo a garantir a função social da cidade e o bem-estar de seus habi-
tantes, conforme o art. 182 da Carta Magna. O §1º do referido dispo-
sitivo constitucional determina a aprovação, pela Câmara Municipal,
do plano diretor, como instrumento básico da política de desenvolvi-
mento e de expansão urbana. As competências em relação ao orde-
namento territorial urbano foram regulamentadas pela Lei Federal
nº 10.257/01, conhecida como Estatuto da Cidade, a qual forneceu
diversos mecanismos para que os municípios exerçam adequadamente
a competência de organização das cidades.
As competências mencionadas no aludido art. 30 são, em sua maioria,
exclusivas dos municípios. Dessa forma, por exemplo, será tida por
inconstitucional uma lei estadual que verse sobre matéria de interesse
do município, como a que trate do transporte coletivo local.
Também não é possível à União ou ao estado anular, administrativa-
mente, ato praticado pelo município. Essa anulação somente é cabí-
Autonomia municipal na Constituição Federal de 1988 629

vel se o ato estiver eivado de ilegalidade, conforme determinado pelo


Poder Judiciário, em procedimento regular, com a garantia do devido
processo legal.
Por último, os municípios dispõem, ainda, da competência comum
com a União e os estados, que é estabelecida pelo art. 23 da Consti-
tuição Federal.

4.4. Eletividade e prerrogativas dos membros dos


poderes municipais

A Constituição de 1988 consagrou a eletividade periódica dos prefei-


tos, vice-prefeitos e vereadores de todos os municípios nacionais, em
seu art. 29, I, ao contrário do regime anterior, que impedia a eleição
dos prefeitos de capitais, estâncias hidrominerais e municípios decla-
rados de interesse da segurança nacional.
Tal inovação vai de encontro ao princípio da autonomia municipal as-
segurado pela Carta Magna, pois é incompatível com tal autonomia a
nomeação por outro ente (União ou estado) do dirigente máximo da
municipalidade, sem a participação da coletividade na escolha, por meio
de processo eleitoral realizado de acordo com as normas constitucio-
nais. Além disso, prefeitos e vereadores não podem ter seus mandatos
revogados pelos demais entes da Federação. A perda do mandato de
prefeitos e vereadores deve obedecer à legislação específica e dependerá
de apreciação pelo Poder Judiciário ou pela Câmara de Vereadores, con-
forme a hipótese de ilegalidade ocorrida no exercício do mandato.
As eleições para prefeitos, vice-prefeitos e vereadores obedecem a re-
gras aplicáveis às demais eleições no âmbito estadual e federal, sendo
análogos a duração dos mandatos e as regras de inelegibilidades. A
Constituição estabeleceu, para municípios com mais de duzentos mil
eleitores, a aplicação da regra que prevê a realização de dois turnos
de votação para o cargo de prefeito, caso nenhum candidato atinja a
maioria absoluta do eleitorado no primeiro turno (art. 29, II).
Paralelamente à eletividade dos prefeitos e vereadores, a Lei Maior ga-
rantiu a remuneração dos mesmos, a ser fixada por lei de iniciativa da
Câmara Municipal, que deve, todavia, observar as limitações fixadas pela
Constituição (art. 29, V). Deixam de existir municípios onde a atividade
de vereador não seja remunerada, como em outros tempos.
Outra prerrogativa assegurada aos vereadores diz respeito à imunida-
de, prevista no art. 29, VIII, da Constituição, que se restringe às suas
630 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição


do Município. Trata-se, portanto, apenas de imunidade material, com
limitação territorial. Tal imunidade, segundo MORAES, significa “sub-
tração da responsabilidade penal, civil, disciplinar ou política do parla-
mentar por suas opiniões, palavras e votos”(2002, p. 400). Os edis não
estão sujeitos, nessas condições, aos chamados ‘crimes de opinião’.
Ao contrário dos deputados federais e estaduais, não se aplica aos ve-
readores a imunidade formal, relativa à possibilidade de sustação da
ação penal ou de impedir a prisão. MORAES leciona que não existe
qualquer possibilidade de criação pelas Constituições estaduais, nem
pelas respectivas Leis Orgânicas dos municípios, de imunidades for-
mais em relação aos vereadores, e tampouco de ampliação da imuni-
dade material, uma vez que a competência para legislar sobre Direito
Civil, Penal e Processual é privativa da União, nos termos do art. 22, I,
da Constituição Federal”(2002, p. 280-281).
Em relação aos prefeitos, a Constituição concedeu-lhes foro privile-
giado, para que sejam julgados perante o Tribunal de Justiça.

4.5. Competência para arrecadar seus tributos e


aplicar suas rendas

Não se pode falar em autonomia de um ente se não há uma regra fixa


para que este ente obtenha os recursos necessários para o atendimento
das suas necessidades básicas. A ausência de tais receitas acarretaria
a dependência da municipalidade em relação aos estados ou à União,
que forneceriam recursos apenas na medida de seus próprios interes-
ses e não dos interesses da localidade.
Nesse sentido, a Carta Magna de 1988 estabeleceu a competência dos
municípios para instituir e arrecadar os tributos de sua competência,
consoante aduzido pelo seu art. 30, III. Ao lado de tal competência,
aos municípios também compete aplicar suas receitas, devendo, po-
rém, prestar contas e publicar balancetes, conforme disposto em lei e
na própria Constituição.
A fiscalização dos atos de gestão do município é realizada pela Câma-
ra Municipal, com o auxílio do Tribunal de Contas do estado ou do
município, ou pelos Tribunais de Contas dos municípios, onde houver,
consoante dispõe o art. 31, §1º, da Lei Maior.
Os impostos a serem instituídos pelos municípios estão elencados no
art. 156 da Constituição, que estabelece ser da competência de tais
Autonomia municipal na Constituição Federal de 1988 631

entes os impostos sobre a propriedade predial e territorial urbana; so-


bre transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens
imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imó-
veis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisi-
ção; e sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art.
155, II, da Constituição, definidos em lei complementar.
Além disso, o art. 145 da Lei Maior admite a instituição, pelos mu-
nicípios, de taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela
utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divi-
síveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição, e de con-
tribuições de melhoria, decorrente de obras públicas. Tais espécies tri-
butárias decorrem da prestação de serviços ou da realização de obras
que estejam inseridos no âmbito da competência dos municípios.
A Constituição estabeleceu ainda sistema participativo de arrecada-
ção, mediante transferências, no qual os municípios recebem parcelas
de impostos arrecadados por outros entes. Dessa forma, o art. 158
determina pertencerem aos municípios o imposto sobre a renda dos
servidores públicos municipais, metade da arrecadação do imposto da
União sobre propriedade territorial rural (que pode ser integralmente
entregue aos municípios, se fiscalizado e cobrado pelos municípios em
que estiverem situadas as terras), metade da arrecadação do imposto dos
estados sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seu
território, e vinte e cinco por cento do imposto do estado sobre opera-
ções relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços
de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.
Outra transferência recebida pelos municípios diz respeito ao Fundo
de Participação dos Municípios, estabelecido pelo art. 159, I, ‘b’ da
Constituição. Tal Fundo é composto por vinte e dois inteiros e cinco
décimos por cento do produto da arrecadação, pela União, dos impos-
tos sobre a renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos
industrializados. Os municípios ainda recebem participação em valo-
res transferidos aos respectivos estados, consoante dispõem o art. 159,
§§ 3º e 4º da Carta Magna.
Aos municípios, todavia, não se deferiu competência para criar novos
impostos não previstos na Constituição, o que somente é possível para
a União, conforme o art. 154, I (competência residual). Cabe, apenas, a
instituição dos impostos já elencados no art. 156 da Carta Magna.
632 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

5. Restrições à autonomia municipal posteriores a 1988

Ao longo dos vinte anos de vigência da Constituição Federal promul-


gada em 1988, o modelo de autonomia municipal preconizado pelo
poder constituinte originário permanece em vigor.
Todavia, algumas restrições foram impostas, por emenda à Constituição
ou por meio de legislação infraconstitucional, onde havia autorização
para tanto da Carta Magna, a fim de corrigir distorções que se verifica-
ram, decorrentes ora da interpretação equivocada do texto constitucio-
nal, ora da própria aplicação prática pelos municípios, em contrariedade
aos princípios maiores que norteiam a Administração Pública.
Além disso, o Poder Judiciário contribuiu para impor limitações aos
municípios quanto ao número de vereadores, em função de distorções
verificadas em alguns locais.

5.1. Subsídios de prefeitos e vereadores

A questão dos subsídios de prefeitos e vereadores sofreu modificações,


em razão de abusos verificados em alguns municípios, incompatíveis
com a ordem jurídica vigente e com os princípios que devem nortear
a Administração Pública.
Em relação à remuneração dos prefeitos, a Constituição não sofreu
grandes alterações posteriores a 1988. A principal delas se refere à
remuneração exclusiva por meio de subsídio em parcela única, previs-
to no art. 39, §4º, aplicável a todos os detentores de mandato eletivo,
em todas as esferas governamentais. Tal subsídio passou ainda a ser
limitado pelo subsídio dos ministros do Supremo Tribunal Federal
(art. 37, XI), sendo o subsídio do prefeito considerado o teto para a
remuneração de todos os servidores municipais.
Os vereadores, por outro lado, sofreram uma significativa modificação
no regime de subsídios a eles aplicados. Nesse sentido, a redação ori-
ginal do art. 29, VI, da Constituição preconizava que os edis poderiam
receber até setenta e cinco por cento do valor estabelecido, em espécie,
para os deputados estaduais.
A Emenda Constitucional nº 25, de 2000, alterou tal dispositivo, es-
tabelecendo seis faixas populacionais e fixando o subsídio máximo dos
vereadores de acordo com diferentes percentuais do subsídio dos depu-
tados estaduais. Assim, na primeira faixa (municípios com até dez mil
habitantes), os vereadores estão limitados a vinte por cento do subsídio
Autonomia municipal na Constituição Federal de 1988 633

dos deputados estaduais, enquanto na última faixa (municípios com


mais de quinhentos mil habitantes) o subsídio máximo dos edis pode
atingir setenta e cinco por cento do subsídio dos deputados estaduais.
Além disso, a Emenda Constitucional nº 1, de 1992, incluiu o inciso
VII no art. 29 da Constituição, determinando que o total da despesa
com a remuneração dos vereadores não poderá ultrapassar o montante
de cinco por cento da receita do município. Trata-se de norma que visou
impedir eventuais excessos, de modo que os recursos disponíveis à Mu-
nicipalidade sejam aplicados em benefícios para a população local.
Aplicam-se ainda aos vereadores as normas relativas à remuneração
mediante o recebimento de subsídios, já mencionadas no que tange
aos prefeitos.

5.2. Despesas municipais

Além das restrições introduzidas quanto à remuneração dos vereadores


e prefeitos dos municípios, procurou-se impor normas restritivas à exe-
cução das despesas municipais, no plano constitucional e infraconstitu-
cional, de modo a adequar a comum escassez de recursos à necessidade
de prestar serviços adequados à população local, minimizando, assim, os
possíveis desvios de recursos e o endividamento do município.
A referida Emenda Constitucional nº 25, de 2000, acrescentou à
Constituição o art. 29-A, que impôs limite ao total da despesa do Po-
der Legislativo Municipal em percentuais da receita tributária somada
às transferências constitucionais, conforme a população local, varian-
do entre cinco e oito por cento da referida receita municipal.
Além disso, o §1º do referido art. 29-A determinou que a Câmara
Municipal não gastará mais de setenta por cento de sua receita com
folha de pagamento, incluído o gasto com o subsídio de seus Verea-
dores. O desrespeito ao limite constitui crime de responsabilidade do
presidente da Câmara Municipal. Tal norma, entretanto, não acarretou
a economia desejada, pois tem obrigado as câmaras a aumentarem os
gastos com outras despesas, inclusive obras, nem sempre necessárias.
São da Lei Complementar nº 101, de 2000, a Lei de Responsabilida-
de Fiscal, porém, as maiores restrições impostas aos municípios, com
fundamento no art. 163 da Constituição, que determina a edição de
lei complementar federal sobre os assuntos ali mencionados.
Uma delas diz respeito ao limite imposto às despesas com pessoal, que,
nos municípios, não deve ultrapassar 60% da receita corrente líquida,
634 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

definida pela referida lei complementar, que traz, ainda a repartição do


aludido limite entre os Poderes Executivo e Legislativo do município.
Outro limite imposto diz respeito ao endividamento do ente muni-
cipal, que não pode ultrapassar os máximos fixados em resolução do
Senado Federal.
A mencionada Lei Complementar determina também a aplicação de
sanções pelo descumprimento de algum dos limites nela estabelecidos.

5.3. Limitação do número de vereadores

A redação da Constituição, quanto ao número de vereadores, dispõe,


no seu art. 29, IV, que tal número será proporcional à população do
município, estabelecendo ainda três faixas populacionais, para as quais
há os limites mínimo e máximo de vereadores. Por exemplo, nos mu-
nicípios com menos de um milhão de habitantes, o número de verea-
dores deveria variar entre nove e vinte e um.
A Constituição deixou, assim, aos municípios a competência para fixar
a composição de sua Câmara Municipal na respectiva Lei Orgânica,
composição esta que deveria refletir, em princípio, as necessidades lo-
cais e o volume de serviço no Poder Legislativo.
Ocorre, contudo, que foram verificados alguns abusos, com a criação de
número excessivo de cargos de vereador em alguns municípios, resultando
em aumento nas despesas com o Poder Legislativo Municipal. Diante de
tal fato, várias foram as ações judiciais que buscaram limitar o número de
vereadores, por meio de uma interpretação do princípio da proporcionali-
dade entre tal quantitativo e o tamanho da população local.
O Supremo Tribunal Federal, instado a apreciar a matéria, decidiu
pela inconstitucionalidade de dispositivo contido em lei orgânica mu-
nicipal “...por considerar que o art. 29 da CF, de 1988 estabelece um
critério de proporcionalidade aritmética para o cálculo do número de
Vereadores, não tendo os municípios autonomia para fixar esse núme-
ro discricionariamente, sendo que, no caso concreto, o município em
questão deveria ter nove vereadores, sob pena de incompatibilidade
com a proporção determinada constitucionalmente.”1

1
RE nº 197.917, cujo relator foi o eminente ministro Maurício Correa, concluído o
exame em 24/3/2004, interposto contra Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo que reconheceu a constitucionalidade de dispositivo da Lei Orgânica
do município de Mira Estrela, que fixou o número de vereadores em 11 (onze), em-
bora tivesse o município apenas 2.651 habitantes.
Autonomia municipal na Constituição Federal de 1988 635

Dessa forma, reconheceu o Pretório excelso que a proporcionalidade


para fixação do número de vereadores é meramente aritmética, não
havendo qualquer discricionariedade para o município em tal fixação.
Para os municípios com até 47.619 habitantes, o número de vereado-
res deverá ser exatamente nove.
O Tribunal Superior Eleitoral, usando de sua competência normati-
va, editou resolução2 determinando o número exato de vereadores em
cada uma das faixas populacionais mencionadas na decisão da Supre-
ma Corte, reduzindo, assim, drasticamente, o número de vereadores.
Ao elaborar tal norma, produziu-se, no fundo, uma nova injustiça, pois
a redução do número de vereadores, além de atentar contra a autono-
mia municipal, não provocou a redução esperada nas despesas do Po-
der Legislativo Municipal, já que os limites de gastos permaneceram
os mesmos, determinados pela Constituição Federal.
A referida limitação, imposta pelo Poder Judiciário ao interpretar a Carta
Magna, decorrem na verdade, de uma visão centralista, de que o poder
central conhece melhor os interesses de todo o país e, em conseqüência,
está apto a corrigi-los, ainda que, para isso, formule normas, como a citada
resolução, que não decorrem explicitamente do texto constitucional.
O Congresso Nacional fez algumas tentativas, até aqui frustradas,
de alterar tal panorama e restabelecer parte do número de vereadores
extinto pela Resolução do Tribunal Superior Eleitoral, fixando nova
correlação entre tamanho da população e número de vereadores.

5.4. Limitação à criação de municípios

A redação original do art. 18, §4º, da Constituição Federal trazia


maior facilidade para a criação de municípios, pois a mesma se dava
mediante “lei estadual, obedecidos os requisitos previstos em Lei
Complementar estadual, e dependerão de consulta prévia, mediante
plebiscito, às populações diretamente interessadas.” Dessa forma, além
da vontade do estado em promover a alteração, prevalecia a vontade da
população interessada, no caso, a do distrito emancipando.
Tal facilidade conduziu a alguns abusos, com a ampla proliferação de
municípios pelo país, alguns dos quais sem a mínima condição de so-
brevivência autônoma, em face da inexistência de recursos suficientes

2
Resolução 21.702, de 2 de abril de 2004, que fixou faixas populacionais às quais
atribuiu o número exato de vereadores, iniciando-se pelos municípios que possuem
até 47.619 habitantes, que passariam a ter nove vereadores.
636 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

para fazer frente às despesas municipais. Essa criação excessiva de mu-


nicípios sem condições próprias de sobrevivência gerou uma distorção
na autonomia dos mesmos, que tornaram-se dependentes da União e
dos respectivos estados, para assegurar as verbas mínimas necessárias ao
funcionamento de sua estrutura administrativa.
Diante de tal fato, a Emenda Constitucional nº 15, de 1996, alterou
os requisitos para a criação de municípios, determinando que a mesma
dar-se-á “por lei estadual, dentro do período determinado por lei com-
plementar federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito,
às populações dos municípios envolvidos, após divulgação dos estudos
de viabilidade municipal, apresentados e publicados na forma da lei”.
Dessa forma, criou-se um procedimento mais difícil, por envolver a
consulta aos municípios envolvidos e não apenas à população interessa-
da, além de se exigir a divulgação de estudos de viabilidade municipal.
No entanto, a efetiva criação de municípios depende da aprovação, pelo
Congresso Nacional, de dois diplomas legais: um para definir o perí-
odo em que são cabíveis as modificações nos municípios, e outro para
estabelecer a forma de apresentação e publicação dos referidos estudos
de viabilidade municipal, por tratar-se de norma de eficácia limitada. A
ausência desses diplomas impediria a criação de novos municípios.
Na prática, todavia, foram criados alguns municípios, mesmo sem as nor-
mas exigidas, e o Supremo Tribunal Federal reconheceu a mora do Con-
gresso Nacional em editar aludidas leis, fixando prazo para que o mesmo
legisle. Em atendimento ao princípio da segurança jurídica, a Suprema
Corte considerou inconstitucionais as leis estaduais criadoras de muni-
cípios após a mencionada Emenda Constitucional nº 15, de 1996, sem,
porém, pronunciar a nulidade das mesmas, em face da situação excepcio-
nal consolidada, fixando um prazo para que o Congresso regulamente o
dispositivo constitucional que trata da criação de municípios.

5.5. Nova hipótese de intervenção

A Emenda Constitucional nº 29, de 2000, acrescentou nova hipótese


de intervenção dos estados nos municípios, pela alteração do art. 35,
III, da Carta Magna.
Assim, conforme a citada norma, cabe a referida intervenção quando “não
tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção
e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde”.
Autonomia municipal na Constituição Federal de 1988 637

A redação anterior do dispositivo contemplava apenas a intervenção


atinente à desobediência da aplicação do mínimo na manutenção e
desenvolvimento do ensino, ou seja, acrescentou-se hipótese relativa
às ações e serviços de saúde, o que é compatível com o objetivo de-
clarado pela citada Emenda Constitucional de valorizar os serviços
naquela área, obrigando uma aplicação maior de recursos.

6. Conclusão

A autonomia municipal consagrada pela Constituição Federal de


1988, que elevou o município à condição de parte da Federação, re-
presentou uma grande inovação tanto no plano interno, quanto no
externo, pela ausência de paradigma semelhante na tradição constitu-
cional brasileira ou no Direito Constitucional Comparado.
Para garantir que tal autonomia passasse do plano teórico para o prá-
tico, a Carta enumerou uma série de competências para os municípios,
tais como a de auto-organizar-se, de arrecadar e aplicar suas rendas e
de eleger os membros dos seus Poderes Executivo e Legislativo por
meio do mesmo processo eleitoral aplicado para todos os cargos eleti-
vos do país, no âmbito federal e estadual.
A análise da utilização prática da autonomia concedida pelo texto
constitucional permite inferir, todavia, que nem sempre os municípios
souberam valer-se do benefício alcançado em 1988, seja por falta de
preparo de administradores e técnicos municipais, seja por má-fé das
pessoas ligadas aos poderes municipais, o que levou à existência de
distorções na interpretação dos dispositivos constitucionais relativos
aos municípios ou na não aplicação de outros dispositivos.
Essa má utilização da autonomia recebida decorre, em grande parte,
da forma de construção dos municípios ao longo da história, em que
sempre privilegiou-se o poder central em detrimento dos entes des-
centralizados. Ao mesmo tempo, os administradores preocuparam-
se muito mais com interesses pessoais do que com os interesses da
comunidade que administravam.
A tentativa de corrigir aludidas distorções levou a União a modificar al-
gumas regras vigentes, tais como as relativas à remuneração de vereadores
e à criação de novos municípios, de modo a impor restrições a serem apli-
cadas à liberdade dos municípios, dentro da já tradicional visão centralista
de que cabe à União determinar o que é melhor para os demais entes.
638 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

No entanto, as alterações procedidas nos vinte anos de vigência da


Constituição Federal não alteraram o cerne das normas relativas à au-
tonomia municipal, que permanece, sob o ângulo teórico, incólume.

Referências

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 13.ed., São Paulo : Ma-
lheiros, 2003.
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo : Saraiva,
1990.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 12. ed. São Paulo : Atlas, 2002.
SILVA, José Afonso da. O município na Constituição de 1988. São Paulo : RT,
1989.
_____. Curso de direito constitucional positivo. 14. ed. São Paulo : Malheiros,
1997.
SILVA, Sandra Krieger Gonçalves. O município na Constituição Federal de 1988.
São Paulo : Juarez de Oliveira, 2003..
Município e política urbana
639

A Constituição Federal de
1988 e a criação de
novos municípios e
regiões metropolitanas
Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo
Maria Sílvia Barros Lorenzetti

1. Introdução

Movido por um espírito democrático e descentralizador, o constituinte de


1988 tomou algumas decisões importantes no que tange à divisão terri-
torial, que alteraram, de forma significativa, o mapa do país. É o caso da
criação do Estado do Tocantins, cuja existência ficou estabelecida no art.
13 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), ou da
transformação dos então Territórios Federais do Amapá e de Roraima em
Estados Federados, firmada no art. 14 do ADCT. O art. 15 do ADCT,
por sua vez, determinou a extinção do Território Federal de Fernando de
Noronha, incorporando sua área ao Estado de Pernambuco.
Esse mesmo viés descentralizador manifestou-se nas posições toma-
das pela Assembléia Constituinte em relação a dois outros aspectos do
ordenamento territorial, que são a criação de municípios e de regiões
metropolitanas, sobre os quais pretendemos nos debruçar aqui.
A Carta Política de 1967 assim dispunha sobre esses temas1:
Art. 14. Lei complementar estabelecerá os requisitos mínimos
de população e renda pública, bem como a forma de consulta
prévia às populações, para a criação de municípios.
Parágrafo único. A organização municipal, variável segundo as
peculiaridades locais, a criação de municípios e a respectiva divi-
são em distritos dependerão de lei.

1
Conforme redação dada pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969, que não trouxe
alterações significativas ao texto anterior.
640 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Art. 164. A União, mediante lei complementar, poderá, para a


realização de serviços comuns, estabelecer regiões metropolita-
nas, constituídas por municípios que, independentemente de sua
vinculação administrativa, façam parte da mesma comunidade
sócio-econômica.

Como se vê, a criação de municípios, embora dependente de consulta


às populações locais, ficava condicionada à obediência a requisitos mí-
nimos de população e renda pública definidos em lei complementar
federal. Em obediência a esse dispositivo constitucional, foi editada a
Lei Complementar nº 1, de 9 de novembro de 1967, que estabelecia
os referidos requisitos mínimos de população e renda pública, bem
como dispunha sobre a forma de consulta prévia às populações locais
para a criação de municípios. Esses requisitos, que eram uniformes
para todo o país, compreendiam:
• população estimada superior a dez mil habitantes ou não inferior a
cinco milésimos da população existente no estado;
• eleitorado não inferior a dez por cento da população;
• centro urbano já constituído, com o mínimo de duzentas casas; e
• arrecadação mínima de cinco milésimos da receita estadual de impos-
tos, computada no exercício anterior ao processo de emancipação.
Comprovado o atendimento a tais exigências, a assembléia legislativa
do respectivo estado determinava a realização de plebiscito e, havendo
resultado favorável, editava a lei de criação do novo município.
Quanto à criação de regiões metropolitanas, a prerrogativa era exclu-
siva da União, que a exerceu em 1973 e 1974, quando as Leis Comple-
mentares nº 14 e 20 estabeleceram as primeiras regiões metropolitanas
brasileiras: São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador,
Curitiba, Belém, Fortaleza (Lei Complementar 14, de 1973) e Rio de
Janeiro (Lei Complementar 20, de 1974, que também determinava a
fusão dos antigos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, forman-
do o atual Estado do Rio de Janeiro).
A Constituição federal de 1988 e a criação de municípios e regiões metropolitanas 641

2. A criação de municípios2

A Constituição Federal de 1988 alterou radicalmente o cenário ju-


rídico anterior sobre a criação de municípios, como bem demonstra
uma simples leitura do § 4º do art. 18 da Carta Magna de 1988, que
estatuía em sua redação original:
Art. 18. ....................................................................................
§ 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de
municípios preservarão a continuidade e a unidade histórico-
cultural do ambiente urbano, far-se-ão por lei estadual, obedeci-
dos os requisitos previstos em lei complementar estadual, e de-
penderão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações
diretamente interessadas.

Com isso, cessava a interferência do poder central. A criação, a incor-


poração, a fusão e o desmembramento de municípios foram deixadas
inteiramente a cargo dos respectivos estados, obedecidos requisitos
definidos em lei complementar estadual. O objetivo, em tese correto,
seria o de evitar que realidades sociais, econômicas, geográficas e cul-
turais diferenciadas fossem tratadas de forma igual.
Na prática, essa opção revelou-se danosa. As leis complementares es-
taduais produzidas para regular o dispositivo constitucional citado, via
de regra, estabeleceram requisitos tíbios, o que facilitou os procedi-
mentos de emancipação. Em decorrência, inúmeros novos municípios
foram criados, muitos dos quais visando ao atendimento de interesses
ilegítimos, que não resistiam à confrontação com critérios técnicos.
Os novos entes políticos criados, em sua maioria, não dispunham de
receita própria compatível com as demandas de sua auto-sustentabili-
dade, o que os tornava totalmente dependentes de repasses de receitas
estaduais e federais.
Os números são eloqüentes: em 1980, existiam no país 3.974 municí-
pios instalados, montante que passou a 4.090, em 1984, e para 4.180,
em 1987, o que significa um incremento de cerca de 5%. Em 1996,
a contagem de população realizada pelo Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística (IBGE) apontava a existência de 4.974 municípios
instalados e outros 533 aguardando instalação3, ou seja, um acrésci-
mo de aproximadamente 32% desde 1987. Ainda segundo o IBGE,

2
Esta seção baseia-se no estudo técnico Criação, Incorporação, Fusão e Desmem-
bramento de Municípios, de autoria de Maria Sílvia Barros Lorenzetti, disponível
em: http://apache.camara.gov.br/portal/arquivos/Camara/internet/publicacoes/es-
tnottec/pdf/305317.pdf.
3
A data de referência dessa contagem é 1º de agosto de 1996.
642 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

por ocasião do censo de 2000, o número de municípios atingia 5.561,


dos quais 5.507 instalados e 54 aguardando instalação. Desnecessário
mencionar que o Produto Interno Bruto (PIB) nacional (assim como
a arrecadação de receitas públicas) não cresceu na mesma proporção
nesse período, o que significa dizer que as fatias de receita de cada
município ficaram menores.
A consciência de que a situação estava atingindo níveis insustentáveis
levou o Congresso Nacional a aprovar e promulgar a Emenda Cons-
titucional nº 15, de 12 de setembro de 1996. A partir de então, o § 4º
do art. 18 da Constituição Federal passou a dispor:
Art. 18. ....................................................................................
§4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de
municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período deter-
minado por lei complementar federal, e dependerão de consulta
prévia, mediante plebiscito, às populações dos municípios envol-
vidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal,
apresentados e publicados na forma da lei.

Como se pode depreender da leitura do dispositivo, a criação, a in-


corporação, a fusão e o desmembramento de municípios continuam
consumando-se mediante lei estadual, porém passa a haver a exigência
de uma lei complementar federal para determinar o período de tempo
no qual será admitido qualquer um desses processos. O dispositivo
constitucional ainda introduz a figura dos estudos de viabilidade mu-
nicipal, cuja apresentação e publicação deve ser disciplinada por uma
lei. Embora não se especifique a esfera legislativa, nem tampouco o
nível hierárquico dessa última norma legal exigida pelo § 4º do art. 18,
a interpretação corrente é de que se trata de uma lei ordinária federal,
entendimento esse que encontra paralelo em outros dispositivos da
Carta Magna onde aparecem redações similares4. Note-se, ainda, a
substituição da expressão “populações diretamente interessadas” pela
“populações dos municípios envolvidos”, que implica a inclusão, na
consulta plebiscitária, da população do município-mãe.
Acerca dessa matéria, assim se manifestam os eminentes juristas Cel-
so Bastos e Ives Gandra Martins:

4
Entre os exemplos possíveis, pode-se citar o parágrafo único do art. 175 da Cons-
tituição, que prevê a regulação por lei (“lei disporá ...”) de matéria relacionada à pres-
tação de serviços públicos, exigência que resultou na chamada Lei das Concessões
(Lei 8.987, de 1995).
A Constituição federal de 1988 e a criação de municípios e regiões metropolitanas 643

Sobre exigir lei complementar federal, determinou, o constituin-


te, que estudos de viabilidade municipal devem ser apresentados
e publicados na forma da lei ordinária, para apenas depois poder
convocar um plebiscito, condicionando, portanto, o surgimento
de uma nova unidade federativa, a sua viabilidade política, eco-
nômica e social. (2001).

Há quem defenda, ainda, que a norma legal exigida para disciplinar os


estudos de viabilidade municipal seria da esfera estadual. Essa tese é
questionável do ponto de vista jurídico, uma vez que, nos casos em que
a Carta Magna quis remeter um determinado tema à esfera estadual, o
fez explicitamente, como ocorre no próprio § 4º do art. 18 em análise.
Além disso, a tese não resiste ao exame da lógica. Afinal, a Emenda
Constitucional 15, de 1996 nasceu da constatação de que o modelo
anterior, que deixava para os estados a definição dos requisitos a serem
observados para a criação de municípios, gerava uma série de proble-
mas. Por que, então, o legislador, no uso do poder constituinte deriva-
do ao elaborar a emenda, iria manter a mesma situação, delegando aos
estados a disciplina dos estudos de viabilidade municipal?
A aprovação da Emenda 15, de 1996, exigindo a edição de disposições
legais para a plena eficácia do dispositivo constitucional, motivou a
apresentação de várias proposições no Congresso Nacional. Dessas
iniciativas, dois projetos de lei chegaram a ser aprovados e enviados à
sanção: o Projeto de Lei nº 2.105, de 1999, e o Projeto de Lei Com-
plementar nº 41, de 2003.
A primeira dessas proposições, o PL 2.105, de 1999, que tinha por
objetivo definir “parâmetros mínimos para os Estudos de Viabilidade
Municipal previstos no § 4º do art. 18 da Constituição Federal de
1988”, foi integralmente vetada pelo Presidente da República por in-
constitucionalidade. A Mensagem nº 4, de 6 de janeiro de 2003, que
comunica o veto, apresenta como razão:
Sem embargo de posicionamentos contrários, parece-nos ques-
tionável, do ponto de vista da hermenêutica constitucional, que
a interpretação conferida ao art. 18, § 4º, por parte da doutrina
pátria, admita a conclusão de que sejam necessárias duas leis,
uma lei ordinária e uma lei complementar, para tratar de temas
afins contidos no mesmo dispositivo constitucional.

O entendimento defendido no veto, contudo, não é pacífico. Pelo con-


trário, a leitura do § 4º do art. 18 da Constituição Federal mostra
que o legislador, ao exigir lei complementar, refere-se explicitamente
ao período de tempo no qual podem ocorrer os processos de criação,
644 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

incorporação, fusão e desmembramento de municípios. Ao prever a


necessidade de disciplina dos estudos de viabilidade municipal, por
outro lado, exige-se uma lei, referência que, como já foi mencionado
anteriormente, costuma ser interpretada como lei federal ordinária.
Assumindo-se uma postura pragmática, poder-se-ia sugerir que se-
ria mais adequado, do ponto de vista dos operadores do direito, que
se reunisse numa única norma legal toda a regulação exigida no ní-
vel federal para a matéria. Essa suposição, contudo, parece incapaz
de sustentar o argumento do veto. Afinal, se o desejo do legislador
constituinte era o de reunir numa mesma lei complementar tanto a
regulação do prazo, quanto a dos estudos de viabilidade municipal, por
que razão não o fez expressamente?
Na defesa do veto, o Executivo fundamenta-se em manifestação do
Supremo Tribunal Federal (STF) relativa à Ação Direta de Inconsti-
tucionalidade (ADIn) nº 2.381, ajuizada contra a Lei 11.375, de 1999,
do Estado do Rio Grande do Sul. Quando do deferimento da medida
cautelar, o relator, ministro Sepúlveda Pertence, assim se exprimiu:
É certo que o novo processo de desmembramento de municí-
pios, conforme a EC 15, de 1996, ficou com sua implementação
sujeita à disciplina por lei complementar, pelo menos no que diz
com o Estudo de Viabilidade Municipal que passou a reclamar, e
com a forma de sua divulgação anterior ao plebiscito. É imediata,
contudo, a eficácia negativa da nova regra constitucional, de modo
a impedir – de logo e até que advenha a lei complementar – a ins-
tauração e a conclusão de processos de emancipação em curso.

Cabem aqui algumas considerações importantes. De plano, registre-se


que o foco da ADIn não é a discussão sobre a natureza do diploma
legal exigido para a plena aplicação do disposto no § 4º do art. 18 de
nossa Carta Política, mas a eficácia limitada do referido dispositivo
constitucional, até que este seja disciplinado no nível federal. Confor-
me apontou o relator, essa limitação não impede sua eficácia negativa
imediata, obstruindo a instauração e conclusão de processos de cria-
ção, incorporação, fusão e desmembramento de municípios. Assim, a
lei estadual examinada na ADIn, que tratava da criação do município
A Constituição federal de 1988 e a criação de municípios e regiões metropolitanas 645

de Pinto Bandeira5, no Estado do Rio Grande do Sul, foi suspensa


até o julgamento do mérito, tendo em vista a ausência de regulação
do § 4º do art. 18 da Constituição Federal, nos termos trazidos pela
Emenda 15, de 1996.
A menção à exigência de lei complementar para regular os estudos de
viabilidade municipal foi feita apenas de passagem no voto do minis-
tro Sepúlveda Pertence. Tal observação é da maior importância, pois
está relacionada à abrangência do efeito vinculante, ou seja, à parte
da decisão que tem efeito vinculante para os órgãos constitucionais,
tribunais e autoridades administrativas.
O ministro Gilmar Mendes, em texto que aborda os limites objetivos
do efeito vinculante (1999), afirma que é de suma relevância verificar
se, da mesma forma que ocorre em relação à coisa julgada e à força de
lei, o efeito vinculante está adstrito à parte dispositiva da decisão ou
se ele se estende também aos chamados fundamentos determinantes,
ou, ainda, se o efeito vinculante abrange as considerações marginais, as
coisas ditas de passagem, isto é, os chamados obiter dicta. Na seqüência
do texto, o eminente jurista ensina que, segundo a melhor doutrina, o
efeito vinculante abrange tanto a parte dispositiva da decisão quanto
seus fundamentos determinantes, de forma a permitir o julgamento
de casos paralelos. Não inclui, portanto, os elementos marginais não
relevantes para a decisão.
O Projeto de Lei Complementar 41, de 2003, por sua vez, que preten-
dia regulamentar o “§ 4º do art. 18 da Constituição Federal, dispondo
sobre o período de criação, incorporação, fusão e desmembramento
de municípios”, também foi vetado integralmente pelo Presidente da
República, sob alegação de inconstitucionalidade e contrariedade ao
interesse público6.
Em sua manifestação, o Ministério da Justiça argumentou que a re-
dação do art. 2º da proposição dava “margem a uma má aplicação do
dispositivo”, uma vez que definia prazo para o início da tramitação de

5
Distrito de Bento Gonçalves que estava em processo de emancipação quando da
promulgação da Emenda nº 15, de 1996. Apesar da liminar concedida pelo STF
em fins de 2001 ter sido cumprida imediatamente pelo Governo federal, que sus-
pendeu o repasse de recursos para o município, o governo estadual demorou para
tomar essa decisão e os recursos continuaram a ser repassados até o início de 2003.
Assim, houve uma demora na concretizou da reintegração da área emancipada ao
município-mãe, o que motivou o ajuizamento da Reclamação 2367. Em novembro
de 2003, o STF julgou procedente a reclamação, mantendo a extinção do município
de Pinto Bandeira.
6
Mensagem nº 289, de 30 de junho de 2003.
646 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

procedimento destinado à criação, fusão, incorporação e desmembra-


mento de municípios, mas não dispunha de forma precisa que o referido
prazo deve incluir também o respectivo trâmite do procedimento.
Assim estabelecia o dispositivo questionado:
Art. 2º O início da tramitação de procedimento destinado à
criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios
se dará no período de tempo compreendido entre a posse dos
prefeitos (art. 29, III, da Constituição Federal) e 10 (dez) meses
da data prevista para a realização das eleições municipais (art. 29,
II, da Constituição Federal).

Ainda segundo o Ministério da Justiça, o referido dispositivo deixava


para o aplicador da lei pressupor, de forma vaga, que o período de
tramitação do procedimento em análise ia da posse dos prefeitos até
dez meses antes da data prevista para a realização das eleições muni-
cipais, acarretando insegurança jurídica. Salvo melhor juízo, há um
equívoco nesse posicionamento, uma vez que não é imprescindível que
os procedimentos de criação, fusão, incorporação e desmembramento
de municípios iniciem e terminem sua tramitação dentro do referido
intervalo de tempo. Procedimentos iniciados e não concluídos até dez
meses da data prevista para as eleições municipais simplesmente têm
a sua tramitação suspensa, o que ficava claro no art. 3º da proposição
aprovada pelo Legislativo, que determinava:
Art. 3º É vedada a tramitação de procedimento para a criação,
a incorporação, a fusão e o desmembramento de municípios, a
partir de 10 (dez) meses da data prevista para a realização das
eleições municipais até a posse dos prefeitos eleitos.
Parágrafo único. Se já em tramitação, o procedimento ficará
sobrestado durante o lapso referido no caput deste artigo.

A leitura conjunta dos dois dispositivos citados mostra que o legisla-


dor foi, ao contrário do que argumenta o Ministério da Justiça, bas-
tante claro, definindo não apenas o período em que os procedimentos
poderiam tramitar, como aquele em que esses mesmos procedimentos
deveriam estar suspensos. No mais, não parece ofender o interesse pú-
blico que procedimentos iniciados e não terminados no período deter-
minado no referido art. 2º ficassem suspensos durante o ano eleitoral e
retomassem seu trâmite normal após a posse do prefeito eleito.
Por outro lado, o Ministério das Cidades, também ouvido no proces-
so de análise do texto aprovado do PLP 41, de 2003, defendeu que
as normas regentes da criação de municípios “não podem se limitar
à definição do período próprio para o processamento”, sob pena de
frustrar a razão de ser da Emenda 15, de 1996, visto que a redação
A Constituição federal de 1988 e a criação de municípios e regiões metropolitanas 647

primitiva do § 4º do art. 18 da Constituição Federal já outorgava aos


estados a prerrogativa de estabelecer os requisitos para a criação de
municípios. Assim, segundo a manifestação do Ministério das Cida-
des, “o que se deseja é que a Lei Complementar Federal, no interesse
da Federação, defina o período e os critérios mínimos reclamados
pelo dispositivo constitucional”.
Esse posicionamento demonstra, de um lado, o receio que, uma vez
definido em lei complementar federal o período para a tramitação de
procedimentos de criação, incorporação, fusão e desmembramento de
municípios, os estudos de viabilidade municipal seriam disciplinados
por lei estadual. Por outro lado, o Ministério das Cidades conclui pelo
mesmo entendimento esposado no veto do PL 2.105, de 1999, qual
seja, que a disciplina dos estudos de viabilidade municipal deve ser
objeto de lei complementar, tanto quanto a definição do período.
Além dessas duas iniciativas, existem outras proposições ainda em tra-
mitação que, a par de dispor sobre o período em que seriam aceitos
os processos de criação, incorporação, fusão e desmembramento de
municípios, e sobre a disciplina dos estudos de viabilidade municipal,
ainda avançam sobre questões relacionadas à realização do plebiscito
e à instalação do município eventualmente criado. Pode-se apontar
o Projeto de Lei Complementar nº 130, de 1996, que traz diversos
apensos, como a mais importante dessas proposições. Cumpre men-
cionar, ademais, a existência, somente na Câmara dos Deputados, de
cinco Propostas de Emenda à Constituição, as de nº 165, de 1999, 52,
de 2003, e 56, 70 e 101, de 2007, que pretendem alterar o art. 18 da
Carta Magna, ora para restaurar as condições originalmente previstas
pela Assembléia Nacional Constituinte, ora para promover pequenas
alterações no texto atualmente em vigor. Claramente, o fato de todas
essas iniciativas não terem sido apreciadas demonstra o impasse que,
vários anos depois da Emenda 15, de 1996, ainda paira sobre o tema.
É inegável que algo precisa ser feito, pois, a continuar como está, tem-
se a completa inviabilização de arranjos na divisão territorial brasilei-
ra. Embora alguns poucos municípios tenham conseguido oficializar
sua emancipação após a edição da Emenda 15, de 1996, a falta de
regulamentação do § 4º do art. 18 da Constituição Federal congela,
por tempo indeterminado, o mapa político-administrativo atual, o que
não traz, necessariamente, vantagens ao país. Entretanto, essa regula-
mentação deve passar longe da simples facilitação para a criação de
novos entes municipais, sem levar em conta sua capacidade de auto-
sustentação, pois isso significaria comprometer, irremediavelmente, a
saúde dos municípios existentes, incapacitando-os de exercer as fun-
648 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ções que a própria Carta Política lhes atribui, seja na elaboração de


políticas públicas, seja na promoção dos direitos individuais e sociais.

3. A criação de regiões metropolitanas

A criação de regiões metropolitanas encontra-se disciplinada pelo §


3º do art. 25 da Constituição Federal, que a lança, totalmente, sob a
responsabilidade do respectivo estado:
Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constitui-
ções e leis que adotarem, observados os princípios desta Consti-
tuição....................................................................................
§3º Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir
regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões,
constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para
integrar a organização, o planejamento e a execução de funções
públicas de interesse comum.

Note-se que esse dispositivo de nossa Carta Política fala em três entes
diferenciados de planejamento e gestão: regiões metropolitanas, aglo-
merações urbanas e microrregiões. Não há consenso sobre a conceitu-
ação exata dessas unidades regionais. A questão urbana, destaque-se,
não é parâmetro único de definição. O IBGE e os estados trabalham
com microrregiões com homogeneidade geográfica em sentido amplo,
que abarca aspectos físicos, ecológicos, socioeconômicos e outros.
Técnicos da área defendem que as aglomerações urbanas constituem
gênero, caracterizado essencialmente em razão do espaço urbanizado
contínuo que ultrapassa os limites territoriais de um município, do qual
as regiões metropolitanas são espécie. Para a caracterização de uma
metrópole, ou de uma aglomeração urbana de caráter metropolitano,
colocam-se em pauta fatores como centralidade, relacionada à área de
influência do centro urbano, escala de urbanização e complexidade da
economia urbana. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea
(2001), entre outros, adota essa interpretação, diferenciando, em razão
dos mesmos critérios, metrópoles globais, nacionais e regionais. Nessa
linha, algumas regiões metropolitanas oficialmente instituídas sequer
teriam caráter metropolitano, configurando-se como centros regionais
ou mesmo sub-regionais.
A colocação das aglomerações urbanas como gênero, contudo, não pa-
rece ser a leitura mais direta do texto de nossa Carta Política. Ao que
parece, a distinção entre as regiões metropolitanas e as aglomerações
urbanas, para o legislador constituinte, estaria fudamentada antes de
A Constituição federal de 1988 e a criação de municípios e regiões metropolitanas 649

tudo em uma análise de dimensão que, em regra, incluirá fatores ci-


tados como centralidade e escala de urbanização, mas também pode
estar baseada em outros critérios, definidos por cada estado de acordo
com suas peculiaridades. As aglomerações urbanas, em princípio, pelo
texto da Constituição, constituiriam um tipo de região metropolitana
de menor influência no sistema urbano ou de menor porte.
Os únicos requisitos da Carta de 1988 para que os estados instituam
regiões metropolitanas, assim como as outras duas unidades regionais
referidas no art. 25, § 3º, são: (I) edição da lei complementar estadual;
(II) inserção de municípios limítrofes; e (III) objetivo explícito de
organização, planejamento e execução de funções públicas de interesse
comum. Consolida-se hoje uma situação de ampla liberdade decisória
para as administrações estaduais nesse campo.
O STF tem imposto alguns limites em situações concretas, deve-se
comentar. Houve estados que estabeleceram em sua própria consti-
tuição exigências procedimentais para a criação de regiões metro-
politanas, mas o STF tem tratado essas iniciativas com cautela. O
§ 1º do art. 216 da Constituição do Estado do Espírito Santo que,
com base nos requisitos para a criação de municípios, previa consulta
prévia, mediante plebiscito, às populações diretamente interessadas,
para a criação de regiões metropolitanas, foi declarado inconstitu-
cional na decisão relativa à ADIn 796/ES (DJ de 17/12/99, p. 2).
O parágrafo único do art. 357 da Constituição do Estado do Rio de
Janeiro, que dispunha que a participação de qualquer município em
uma região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião de-
penderia de prévia aprovação pela respectiva Câmara Municipal, foi
declarado inconstitucional na decisão relativa à ADIn 1841/RJ (DJ
de 20/9/02, p. 88). Em ambos os casos, avaliou-se que as exigências
ultrapassavam a demanda do texto da Carta Magna. Em relação ao
dispositivo da Constituição fluminense, cabe notar, ainda, que a de-
cisão implica a manutenção do caráter compulsório da participação
dos municípios nas unidades regionais tratadas no § 3º do art. 25 da
Constituição Federal.
A liberdade decisória quanto ao tema regiões metropolitanas, sem dú-
vida ampla, pelo menos no que se refere a funções públicas e muni-
cípios a serem incluídos, bem assim à sua operacionalização, configu-
rou um quadro de alteração completa em relação à situação anterior a
1988. Cumpre destacar que, além da centralização da prerrogativa de
criação das regiões metropolitanas na União, as duas leis complemen-
tares, por meio das quais nossas nove primeiras regiões metropolitanas
650 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

foram instituídas na década de 70, consolidaram, também, um modelo


administrativo uniforme para todas elas.
Cada região metropolitana deveria ter um conselho deliberativo, pre-
sidido pelo governador do estado, e um conselho consultivo compos-
to de um representante de cada município. Previa-se a elaboração de
plano de desenvolvimento integrado da região metropolitana, sob
responsabilidade do conselho deliberativo. Definiam-se os seguintes
serviços comuns como de interesse metropolitano: planejamento in-
tegrado do desenvolvimento econômico e social; saneamento básico,
incluindo abastecimento de água, redes de esgotos e serviço de lim-
peza pública; uso do solo metropolitano; transportes e sistema viário;
produção e distribuição de gás combustível canalizado; aproveitamen-
to dos recursos hídricos e controle da poluição ambiental; e outros
serviços que viessem a ser incluídos na área de competência do con-
selho deliberativo mediante lei federal7. O modelo uniforme imposto
pela tecnocracia, parece consenso, foi uma das principais causas do
insucesso governamental ocorrido no enfrentamento dos problemas
metropolitanos. Em face de dificuldades de diferentes ordens, no final
da década de 80 os conselhos deliberativos e consultivos de várias re-
giões metropolitanas encontravam-se inoperantes (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 2004, p. 7).
Cumpre registrar que a transferência da competência de criação das
regiões metropolitanas aos estados pela atual Carta da República,
consoante jurisprudência, não afastou automaticamente do mundo
jurídico as Leis Complementares 14, de 1973 e 20, de 1974. Enten-
deu-se que as nove regiões metropolitanas então criadas continuavam
a existir, a menos que leis complementares estaduais viessem a ex-
tingui-las ou alterar sua composição em termos de municípios (STJ.
ROMS 314/MG, DJ de 17/10/94, p. 27.859).
No final de 2003, o Brasil possuía 27 regiões metropolitanas oficial-
mente instituídas, detalhadas na Tabela 1. Constatam-se realidades
bastante diferenciadas nos dados organizados nessa tabela. Além disso,
por suas dimensões reduzidas e características de contigüidade urba-
na, tende-se a considerar que a Região Integrada de Desenvolvimento
(Ride) do Distrito Federal e Entorno, cuja criação foi autorizada pela

7
Ver arts. 2º a 4º da Lei Complementar 14, de 1973 e art. 20 da Lei Complementar
20, de 1974.
A Constituição federal de 1988 e a criação de municípios e regiões metropolitanas 651

Lei Complementar Federal nº 94, de 19988, pode ser abordada tec-


nicamente como uma região metropolitana, ou melhor, como uma
aglomeração urbana de caráter metropolitano (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 2005, p. 33).
Nossas duas metrópoles globais – São Paulo e Rio de Janeiro –, eviden-
temente deixam as demais bastante distantes em termos de população
e densidade demográfica, e são acompanhadas de outras oito regiões
com mais de dois milhões de habitantes – Campinas, Belo Horizonte,
Fortaleza, Recife, Salvador, Porto Alegre, Curitiba e a Ride do DF –,
das quais seis são consideradas funcionalmente metrópoles nacionais e
duas regionais. Reunidos, os 28 centros urbanos totalizavam em 2000
cerca de 69 milhões de habitantes, equivalentes a pouco mais de 40%
da população total do país.
Há estados em que a escala de urbanização não parece ter sido tão
preponderante na delimitação das regiões metropolitanas. A situação
do Estado de Santa Catarina merece atenção particular. Foram cria-
das seis regiões metropolitanas em um território pequeno e com um
contingente populacional que destoa do grau de urbanização tecnica-
mente associado à uma realidade metropolitana – Região Metropo-
litana Carbonífera; Região Metropolitana de Florianópolis; Região
Metropolitana da Foz do Rio Itajaí; Região Metropolitana do Norte/
Nordeste Catarinense; Região Metropolitana do Vale do Rio Itajaí; e
Região Metropolitana de Tubarão. O foco estava mais no planeja-
mento regional lato sensu do que no planejamento urbano. Certamen-
te em razão da constatação dessa distorção, essas regiões foram todas
extintas pela Lei Complementar estadual n° 381, de 2007.
É interessante registrar que, com um IDHM de (0,86), a Grande Flo-
rianópolis apresentava em 2000 a melhor colocação nesse sentido entre
as regiões metropolitanas brasileiras. Estavam no mesmo estado, tam-
bém, a segunda e a terceira colocações, com as regiões do Norte/Nor-
deste Catarinense e do Vale do Itajaí. Esse tipo de constatação gera
um campo interessante de estudo e aponta, claramente, para um padrão
de desenvolvimento regional mais equilibrado que no restante do país.

8
A criação da Ride do DF e Entorno baseia-se no art. 43 de nossa Carta Política,
que trata da atuação da União em unidades regionais que abranjam mais de um
estado. O dispositivo fundamenta, por exemplo, a criação de estruturas administra-
tivas com atuação na Amazônia Legal ou no Nordeste brasileiro, com abrangência
macrorregional que vai muito além da questão urbana. No caso da Ride do DF e
Entorno, o art. 43 da Constituição foi adotado como um escape à impossibilidade
de criação de uma região metropolitana pela esfera federal de governo.
652 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Outras análises desse tipo poderiam ser feitas em relação à realidade de


outros estados, mas isso ultrapassaria o escopo deste trabalho.
Impõe-se que se compreenda que a concentração da população em
grandes regiões metropolitanas vem naturalmente acompanhada
de uma série de outras concentrações. Apenas nossas duas metró-
poles globais concentravam, em 2000, 18% da população economi-
camente ativa (PEA) brasileira e 17% do total das pessoas ocupa-
das. Também são reunidos nesses locais um conjunto complexo de
problemas. A taxa média de desemprego para o conjunto de regiões
metropolitanas e suas áreas de expansão era, no mesmo ano, 18,3%
superior à média brasileira. Entre 1991 e 2000, as regiões metropo-
litanas aumentaram sua participação no total de pobres no Brasil
de 22,2% para 25%, o que representa um acréscimo de 1,4 milhão
de pessoas nessa situação (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2005,
p. 36 e 37).
Deve-se aqui destacar que, após a transferência da competência para
institucionalização das regiões metropolitanas para os estados pela
Constituição de 1988, a União “praticamente abandonou o tema
‘metrópoles’, no que se refere seja a programas de apoio técnico aos
estados e municípios, seja à alocação de recursos financeiros”. Na
verdade, há omissões nas três esferas de governo. “A União omite-
se e os municípios colocam variadas barreiras à subtração do poder
local” e mesmo os estados “não tomam suas principais decisões bali-
zados pela ótica metropolitana” (CÂMARA DOS DEPUTADOS,
2004, p. 2 e 8).
No Congresso Nacional, as iniciativas relacionadas ao tema têm-
se concentrado no acompanhamento da atuação governamental
por meio das câmaras técnicas especializadas, como a Comissão
de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados (CDU).
Nesse debates, têm sido freqüentes queixas de atores técnicos e
políticos de relevo quanto à ausência do tema metropolitano nas
macropolíticas do Governo federal, situação que seria incoerente
com a relevância das regiões metropolitanas na dinâmica da eco-
nomia e com a complexidade de seus problemas sociais. Não raro,
têm surgido também algumas demandas no sentido de se estabele-
cerem parâmetros normativos mínimos nesse campo, incluindo as
três unidades regionais referidas no § 3º do art. 25 da Constituição
Federal, bem como as Rides.
No processo de elaboração do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de
2001), chegou-se a trabalhar dispositivos voltados a regular o tema
A Constituição federal de 1988 e a criação de municípios e regiões metropolitanas 653

regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, mas esse conteúdo


acabou sendo suprimido em decorrência de questionamentos quanto
à sua constitucionalidade em face do disposto no § 3º do art. 25 da
Constituição. Avaliou-se, à época, que a União não poderia restringir
mediante lei a liberdade dos estados nessa área.
Outro fator que, em alguma medida, pode ter contribuído para a ex-
clusão do tema da Lei 10.257, de 2001 é a concepção assumidamente
municipalista do Estatuto da Cidade. As ferramentas de política ur-
bana reguladas por essa lei, por reflexo direto do capítulo de política
urbana da Constituição (arts. 182 e 183), estão à disposição e serão
implementadas pelo poder público local.
Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de
Lei nº 3.460, de 2004, de autoria do Deputado Walter Feldmann,
que “institui diretrizes para a Política Nacional de Planejamento
Regional Urbano, cria o Sistema Nacional de Planejamento e Infor-
mações Regionais Urbanas e dá outras providências”. Essa proposi-
ção tem tido uma tramitação lenta. Não houve, até junho de 2008,
a manifestação sequer da primeira comissão de mérito, a CDU. As
razões para isso provavelmente estão no fato de que a proposta é
complexa, incluindo opção por um corte “regional urbano” não tra-
dicional no meio técnico e definições de parâmetros para a criação
de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões
bastante rígidos. Na continuidade desse processo, estarão presentes
debates interessantes sobre o conflito centralização versus descentra-
lização, bem como sobre a consistência do suporte do conteúdo de
uma lei federal desse tipo em nossa Constituição Federal.

4. Considerações finais

Nos dois temas aqui abordados, criação de municípios e de regiões


metropolitanas, os vetores da descentralização que moldaram a Cons-
tituição de 1988 levaram a reformas profundas nas regras que vigo-
ravam anteriormente. Foi retirada da União a prerrogativa de tomar
decisões relevantes nesse campo, em resposta à centralização excessiva
que existia anteriormente.
A implementação dessas medidas descentralizadoras, como é natural
em qualquer processo de aprendizado, produziu excessos. No caso da
criação de municípios, a explosão numérica sem o devido respaldo na
realidade socioeconômica, muitas vezes em mera resposta a demandas
políticas extremamente locais. Na gestão metropolitana, certo abandono
654 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

do tema, diante da omissão completa da União e de situações mal defi-


nidas em termos de atribuições estaduais e municipais.
Atualmente, são perceptíveis os movimentos no sentido de serem
enfrentados esses excessos e, até mesmo, de retorno de algum nível
de centralização. Com o impasse em torno das regras que regu-
lamentarão a nova redação do § 4º do art. 18 da Constituição, a
União, na prática, concentrou poderes e está impedindo a criação
de municípios. Em relação às regiões metropolitanas, o Governo
federal não chamou a si o tema, mas não são desconsideráveis as
demandas por uma atuação mais forte da União, incluindo o es-
tabelecimento de alguns regramentos básicos. Espera-se que esses
movimentos sejam tratados com a prudência e a responsabilidade
necessárias, para que não sejam gerados novos excessos de interfe-
rência do poder central.
A Constituição federal de 1988 e a criação de municípios e regiões metropolitanas 655

Tabela 1 – Dados estatísticos das regiões metropolitanas e ride do DF

IDHM Região
Número de
Região me-
tropolitana

municípios

Densidade
População

Categoria
TCA1980/

TCA1991/
(hab/km2)
(2000)

(2000)
1991

2000
Sede

Ipea
São Paulo (SP) São Paulo 39 17.852.244 2.948,01 1,87 1,64 0,828 MG

Campinas (SP) Campinas 19 2.338.148 582,44 3,51 2,54 0,835 MR

Baixada Santista (SP) Santos 9 1.476.820 900,13 2,19 2,14 0,817 CR


Belo
Belo Horizonte (MG) Horizonte 34(1) 4.208.616 556,96 2,37 2,15 0,811 MN

Vale do Aço (MG) Ipatinga 4(2)


399.580 569,95 1,50 2,29 0,803 CSR-2
Rio de
Rio de Janeiro (RJ) Janeiro 19 10.894.156 2.245,89 1,03 0,71 0,816 MG

Belém (PA) Belém 5 1.795.536 837,52 3,58 2,79 0,797 MR

Fortaleza (CE) Fortaleza 13 2.984.689 821,17 3,46 2,44 0,767 MN

Recife (PE) Recife 14 3.337.565 1.887,68 1,85 1,50 0,780 MN

Salvador (BA) Salvador 10 3.021.572 1.214,38 3,19 2,14 0,794 MN


Porto
Porto Alegre (RS) Alegre 31 3.718.778 735,30 2,48 1,60 0,833 MN

Curitiba (PR) Curitiba 26 2.768.394 364,24 2,80 2,26 0,824 MN

Londrina (PR) Londrina 8 678.032 - - 1,70 0,813 CR

Maringá (PR) Maringá 9 479.324 214,51 4,02 2,44 0,817 CSR-1

Florianópolis (SC) Florianópolis 9(3) 709.407 - - - 0,859 CR

N/Ne Catarinense (SC) Joinville 2(4) 453.249 - 3,62 2,49 0,853 CSR-1

Vale do Itajaí (SC) Blumenau 5(5) 399.901 - - - 0,850 CSR-1

Carbonífera (SC) Criciúma 7(6) 289.272 - - - 0,813 CSR-2

Tubarão (SC) Tubarão 3(7) 117.830 - 1,98 1,47 0,835 -

Foz Rio Itajaí (SC) Itajaí 5(8) 319.389 - 3,92 4,10 0,812 CSR-2

Goiânia (GO) Goiânia 11(9) 1.639.516 302,27 3,67 3,24 0,812 MR

Vitória (ES) Vitória 7 1.438.596 996,38 4,07 2,77 0,798 CR

Maceió (AL) Maceió 11 989.182 272,92 3,06 1,49 0,724 CR

Natal (RN) Natal 8 1.079.273 968,92 3,66 2,63 0,762 CR

São Luís (MA) São Luís 4 1.070.688 485,98 5,68 3,01 0,766 CR

João Pessoa (PB) João Pessoa 9 945.503 415,97 - - - -

Aracajú (SE) Aracaju 4 734.709 412,76 - - - -


Brasília (Ride DF) Brasília 22 2.911.571 143,78 4,83 5,52 0,749 MN
Totais 347 69.051.540

Fonte: CÂMARA DOS DEPUTADOS (2004), com base em dados do Metrodata (UFRJ/Fase),
Ipea (2001) e Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (PNUD)
656 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Legenda

TCA 1980-1991: Taxa de Crescimento Anual entre 1980 e 1991


TCA 1991-2000: Taxa de Crescimento Anual entre 1991 e 2000
IDHM: Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
Categoria Ipea: categoria de classificação do município-sede no es-
tudo do Ipea sobre a rede urbana brasileira (2001): MG = metrópole
global; MN = metrópole nacional; MR = metrópole regional; CR =
centro regional; CSR-1 = centro sub-regional de nível 1; CSR-2 =
centro sub-regional de nível 2

Notas de fim

(1) Não inclui os catorze municípios do Colar Metropolitano de Belo


Horizonte, que tem população de 461.346 habitantes.
(2) Não inclui os 22 municípios do Colar Metropolitano do Vale do
Aço, que tem população de 163.493 habitantes.
(3) Não inclui os treze municípios da área de expansão metropolitana,
que totalizam 106.908 habitantes. Extinta pela LC (SC) 381/07.
(4) Não inclui os dezoito municípios da área de expansão metropolita-
na, que totalizam 455.733 habitantes. Extinta pela LC (SC) 381/07.
(5) Não inclui os onze municípios da área de expansão metropolitana,
que totalizam 158.264 habitantes. Extinta pela LC (SC) 381/07.
(6) Não inclui os três municípios da área de expansão metropolitana,
que totalizam 35.475 habitantes. Extinta pela LC (SC) 381/07.
(7) Não inclui os quinze municípios da área de expansão metropolita-
na, que totalizam 206.761 habitantes. Extinta pela LC (SC) 381/07.
(8) Não inclui os quatro municípios da área de expansão metropolita-
na, que totalizam 56.200 habitantes. Extinta pela LC (SC) 381/07.
(9) Não inclui os sete municípios da Região de Desenvolvimento In-
tegrado de Goiânia.
A Constituição federal de 1988 e a criação de municípios e regiões metropolitanas 657

Referências

ASSIS, Luiz Gustavo Bambini. Criação de novos municípios: alternativa ou erro?


Revista Jurídica, Brasília, v. 8, n. 81, 2006. Disponível em: <http://www.planal-
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Município e política urbana
659

A Constituição Federal de
1988 e a política urbana
Maria Sílvia Barros Lorenzetti

1. Antecedentes históricos

Durante a segunda metade do século XX, o Brasil passou por um pro-


cesso de urbanização bastante intenso. Os números são eloqüentes: o
índice de urbanização, que aponta o percentual da população total que
vive em áreas urbanas, aumentou de cerca de 31%, em 1940, segundo
dados do IBGE, para quase 45%, em 1970. Esse crescimento, marca-
do pela grande concentração populacional nas áreas metropolitanas,
continuou em ritmo acelerado nas décadas seguintes, atingindo pouco
mais de 81% em 20001.
Essa realidade espelha-se no texto das Constituições que o Brasil teve
no período. A Carta Magna de 1946 não faz menção à política urbana,
nem estabelece competência específica em relação à legislação urba-
nística. O direito à propriedade aparece assegurado, como mostram os
dispositivos transcritos abaixo2:
Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estran-
geiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concer-
nentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade,
nos termos seguintes:
.....................................................................................
§ 16. É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desa-
propriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse
social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso
de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as au-
toridades competentes poderão usar da propriedade particular,

1
A definição de população urbana utilizada pelo IBGE baseia-se apenas em um parâ-
metro político-administrativo, ou seja, a população considerada urbana corresponde à
que reside em domicílios localizados em cidades (sedes municipais) ou vilas (sedes dis-
tritais). Para a Organização das Nações Unidas (ONU), somente deve ser considerada
população urbana aquela que reside em localidades com mais de 20 mil habitantes.
2
Os dispositivos foram alterados pela Emenda 10, de 1964, porém apenas no que se
refere à propriedade rural.
660 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o


direito a indenização ulterior.
....................................................................................
Art. 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar
social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141,
§ 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual
oportunidade para todos.

Não obstante o legislador ter condicionado o uso da propriedade ao


bem-estar social (art. 147), num embrião do que viriam a ser, mais
tarde, as sanções à propriedade ociosa presentes na Constituição de
1988, a matéria apresentava então um viés bastante civilista.
De fato, como o antigo Código Civil, de 1916, entendia que o direi-
to de propriedade implicava o poder legal de usar, gozar e dispor de
seus bens (art. 524), reconhecido está o direito de construir, visto que
no uso, gozo e disponibilidade da coisa se compreende a faculdade
de transformá-la, edificá-la, beneficiá-la, enfim, com todas as obras
que lhe favoreçam a utilização ou lhe aumentem o valor econômi-
co (MEIRELLES, 1996, p.27). Assim, eventuais restrições ao uso da
propriedade eram vistas apenas como decorrentes das relações de vizi-
nhança ou como limitações administrativas3.
Com relação aos municípios, a Constituição Federal de 1946, além de
definir os impostos que lhes pertenciam, limitava-se a garantir-lhes a
autonomia, em termos bastante acanhados, como se vê a seguir:
Art. 28. A autonomia dos Municípios será assegurada:
I – pela eleição do Prefeito e dos vereadores;
II – pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar
interesse e, especialmente,
a) à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e
à aplicação das suas rendas;
b) à organização dos serviços públicos locais.
§ 1º Poderão ser nomeados pelos Governadores dos Estados ou
dos Territórios os prefeitos das capitais, bem como os dos Mu-

3
O atual Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) continua a reconhecer
ao proprietário a faculdade de usar, gozar e dispor de seu bem, sujeito a regulamentos
administrativos, mas o § 1º do seu art. 1.228 traz um grande avanço, ao dispor que
o “direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades
econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o esta-
belecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o
patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.
A Constituição Federal de 1988 e a política urbana 661

nicípios onde houver estâncias hidrominerais naturais, quando


beneficiadas pelo Estado ou pela União.
§ 2º Serão nomeados pelos governadores dos Estados ou dos
Territórios os prefeitos dos Municípios que a lei federal, me-
diante parecer do Conselho de Segurança Nacional, declarar ba-
ses ou portos militares de excepcional importância para a defesa
externa do país.

Em 1967, embora o processo de urbanização já caminhasse a passos


largos, a Carta Magna então elaborada refletia apenas timidamente as
mudanças na sociedade. Aos brasileiros e estrangeiros residentes no país
continuava sendo assegurada a inviolabilidade dos direitos concernentes
à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, em termos bastante se-
melhantes aos do texto anterior (art. 150, § 22). A novidade ficava por
conta da expressão “função social da propriedade”, que já aparecia, na-
quele texto, como um princípio da ordem econômica (art. 157, caput).
O principal avanço, entretanto, trazido pela Constituição Federal de
1967, foi a possibilidade de desapropriação da propriedade territorial
rural, mediante pagamento de prévia e justa indenização em títulos
especiais da divida pública, com cláusula de exata correção monetária,
resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais suces-
sivas (art. 157, § 1º). Esse tipo de desapropriação, com a finalidade
de facilitar a reforma agrária e apenar o latifúndio improdutivo, é de
especial interesse para o tema desse art., visto que veio a servir de
modelo para disposição semelhante direcionada para áreas urbanas,
posteriormente adotada.
Quanto aos municípios, sua posição não registrava mudanças significa-
tivas, em termos de autonomia e competências4, o que é compreensível,
tendo em vista que o país vivia, na época, um regime pouco democrático.
Não obstante, como local de reprodução da força de trabalho e dos
meios de produção, além de fator de acumulação de capital, a cidade
torna-se, cada vez mais, palco de lutas em torno das questões de mora-
dia, da precariedade dos serviços públicos e da carência de equipamen-
tos comunitários. Esse cenário impõe a formulação de um conjunto
de intervenções que têm por objetivo ordenar o desenvolvimento das
áreas urbanas e de expansão urbana, e sua inter-relação com as áreas
rurais, de forma a satisfazer os interesses e necessidades materiais dos
diversos grupos sociais.
Assim surgiram, na esfera infraconstitucional, os primeiros planos dire-
tores, a partir de meados dos anos 1960, fruto de uma ação intensa do

4
Vide art. 16 da Constituição Federal de 1967.
662 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

então Ministério do Interior (Minter), por intermédio do Serviço Fe-


deral de Habitação e Urbanismo (Serfhau), criado em 1964, juntamente
com o Banco Nacional de Habitação (BNH). O objetivo era implantar
o processo de planejamento nos municípios, facilitando a execução de
projetos setoriais, com ênfase em saneamento básico, programa habita-
cional e na organização dos serviços municipais. No âmbito urbanístico,
esses planos não tinham aplicação direta, mas limitavam-se a orientar
a elaboração de instrumentos operacionais, como o zoneamento (PIN-
TO, 2005). De qualquer forma, a elaboração de planos diretores chegou
a ser posta como uma exigência para que as prefeituras pudessem can-
didatar-se a certos programas financiados pelo BNH.
Estes planos diretores tinham por objeto os aspectos sociais, econô-
micos, físicos e institucionais, começando por um estudo preliminar
e evoluindo para um plano de ação imediata ou, em casos mais com-
plexos, para um plano de desenvolvimento local integrado. Um as-
pecto relevante desse sistema de planejamento é sua posição em face
da administração municipal. Via de regra, a concepção é tecnocrática
centralizada, colocando-se o Poder Público local em segundo plano,
opção que se demonstrou, mais tarde, um grande equívoco (MO-
REIRA, 2000). O resultado eram os chamados “planos diretores de
prateleira”, isto é, vistosos na teoria mas de pouca aplicação prática.
Na maioria das vezes, contratava-se uma empresa de consultoria, a
qual produzia um documento, adequado ou não, que era adotado sem
maiores discussões. A falta de participação popular, diretamente ou
por meio dos vereadores, não gerava compromissos com o plano e não
criava vínculos que garantissem sua posterior implementação.
A frustração gerada pelo baixo índice de implantação desses planos
diretores integrados, aliada à extinção do Serfhau, em 1974, fez com
que esse movimento enfraquecesse, cedendo lugar para o planejamen-
to setorial, particularmente nas áreas de saneamento e habitação. Aos
poucos, no entanto, o planejamento urbano foi perdendo vigor na es-
fera federal, até quase desaparecer, no início dos anos 1980, a despeito
da existência de órgãos setoriais específicos, como a Comissão Nacio-
nal de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU), criada em
1974, e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU),
que a sucedeu, em 19795.

5
Este último com a finalidade explícita de propor a política nacional de desenvolvi-
mento urbano e acompanhar sua execução, de acordo com as diretrizes e prioridades
estabelecidas nos planos nacionais de desenvolvimento (Decreto 83.355/79).
A Constituição Federal de 1988 e a política urbana 663

Paralelamente, há que se registrar a elaboração de dois Planos Nacio-


nais de Desenvolvimento, o I PND (que vigorou entre 1972 e 1974)
e o II PND (previsto para ser implantado entre 1975 e 1979). O pri-
meiro deles era voltado para grandes projetos de integração nacional
(transportes e telecomunicações, principalmente), enquanto o segundo
estava direcionado para o investimento em indústrias de base (em es-
pecial siderurgia e petroquímica) e energia, mas ambos não chegaram
a ser totalmente implementados. No que tange à política urbana, o II
PND apontava para necessidade de a estrutura urbana acompanhar a
estratégia de desenvolvimento do país, o que implicava uma proposta
de desconcentração das grandes cidades, com a efetiva implantação
das regiões metropolitanas recém-criadas6 e a definição de pólos se-
cundários como núcleos de apoio ao processo de ocupação. (PRADO
Fº, 2002, p.177).
À parte do planejamento, a pressão social derivada da crescente ur-
banização fez com que se começasse a pensar na necessidade de ins-
titucionalização de um marco legal condizente com a nova realidade
urbana do país. Ainda em 1963, foi realizado, em Petrópolis, o Semi-
nário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, onde profissionais
das mais diversas áreas discutiam reformas sociais que pudessem en-
frentar algumas questões que, já na época, se apresentavam. Em 1977,
no âmbito da CNPU, houve uma primeira tentativa de formulação da
proposta de uma lei nacional de desenvolvimento urbano, texto que só
veio a se concretizar em 1983, com o envio ao Congresso Nacional,
pelo Poder Executivo, do Projeto de Lei nº 775.
O PL 775/83 pretendia dispor sobre a promoção do desenvolvimento
urbano, com base em princípios e diretrizes bastante avançados para
a época, como o controle da especulação imobiliária e da excessiva
concentração urbana, bem como a definição de sanções para o solo
urbano não utilizado. Propunha-se, também, a positivar instrumentos
urbanísticos novos, como, por exemplo, o direito de superfície e o di-
reito de preempção, que tinham como finalidade precípua facilitar o
acesso à terra urbanizada. Era uma proposta extremamente avançada
para a época, que não teve boa acolhida no meio político, o que difi-
cultou sobremaneira sua tramitação.

6
Foram nove regiões metropolitanas, criadas pela União, sendo oito delas (São Pau-
lo, Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém)
por meio da Lei Complementar nº 14, de 1973, e a última (Rio de Janeiro) pela Lei
Complementar nº 20, de 1974. A questão metropolitana, embora guarde relação
direta com a política urbana, não é o foco deste texto, visto que, em virtude de suas
especificidades, mereceu capítulo próprio.
664 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

2. A Constituição de 1988

A redemocratização do país e perspectiva da elaboração de uma nova


Constituição fez com que a discussão sobre a reforma urbana fosse
retomada. Uma emenda de iniciativa popular, que incorporava o acú-
mulo teórico da questão urbana e o avanço político dos movimentos
populares, foi encaminhada à Assembléia Nacional Constituinte e
contribuiu para a formulação dos dispositivos da Carta Magna rela-
tivos à política urbana. Três princípios básicos referenciam a questão
da reforma urbana: o direito à cidade e à cidadania, a gestão urbana
democrática e a função social da cidade e da propriedade (GRAZIA,
2001). Essa emenda popular tornou-se a base de um capítulo inteiro
dedicado à política urbana, introduzido na Constituição Federal de
1988. Diz o texto:
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo
poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em
lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das fun-
ções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obri-
gatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o ins-
trumento básico da política de desenvolvimento e de expansão
urbana.
§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando
atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade ex-
pressas no plano diretor.
§ 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com
prévia e justa indenização em dinheiro.
§ 4º É facultado ao poder público municipal, mediante lei espe-
cífica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei
federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutiliza-
do ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento,
sob pena, sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana pro-
gressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida
pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal,
com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais
e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros
legais.
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até du-
zentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininter-
A Constituição Federal de 1988 e a política urbana 665

ruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou


de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja pro-
prietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos
ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do es-
tado civil.
§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais
de uma vez.
§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

Como se pode depreender da leitura, a execução da política de desen-


volvimento urbano passa a ser atribuição municipal e tem no plano di-
retor seu instrumento básico. Assim como na Carta Magna de 1967, o
direito à propriedade figura entre os direitos e garantias fundamentais,
mas a propriedade deve atender a sua função social (art. 5º, incisos XXII
e XXIII, e art. 170, incisos II e III, da Constituição Federal de 1988). A
novidade diz respeito à definição de um critério para aferir o cumpri-
mento da função social da propriedade urbana, que se dá com o aten-
dimento das exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas
no plano diretor, conforme o § 2º do art. 182, transcrito acima.
Vistos em conjunto, esses dispositivos indicam que o exercício do
domínio pelo proprietário não se realiza de forma ilimitada ou sem
orientação, mas vinculado a uma visão social, segundo a qual o uso da
propriedade deve contemplar, também, o bem-estar da coletividade.
Em outras palavras, o direito particular de cada cidadão à propriedade
e à cidade deve coexistir com os interesses e deveres superiores da
coletividade, o que traz ao direito privado uma característica própria
do direito público, qual seja, o condicionamento do poder a uma fina-
lidade social (LEAL, 1998, p. 118-120).
Grande vitória dos movimentos populares, o § 4º do mesmo art. 182
constitui um poderoso instrumento no combate à especulação imo-
biliária, que se caracteriza pela manutenção de terras urbanas sem
utilização, como simples estoque de valor. A especulação imobiliária
produziu no Brasil, ao longo das décadas, enormes vazios no interior
do tecido urbano ou em áreas suburbanas, interferindo no equilíbrio do
mercado de terras e dificultando o acesso à propriedade pela população
de baixa renda. Ao mesmo tempo, provocou a expansão da cidade, mui-
tas vezes mediante ocupação irregular, encarecendo o custo dos serviços
públicos. A plena aplicação do dispositivo, contudo, não se deu de ime-
diato, pois a Carta Magna requeria explicitamente uma lei federal para
definir os termos mediante os quais o Poder Público municipal poderia,
mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir do
666 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado


que promovesse seu adequado aproveitamento, sob pena de sucessivas
sanções. Essa norma regulamentadora só veio a se consubstanciar com
a aprovação do Estatuto da Cidade, anos mais tarde.
Por sua vez, o art. 183, que se refere à usucapião especial de imóvel ur-
bano, também chamada de usucapião especial urbana ou pró-moradia,
inspirava-se na usucapião especial rural, que já era utilizada para fins de
reforma agrária. Embora o instrumento não dependesse de regulamen-
tação para ser colocado em prática, deve-se registrar que o uso da ex-
pressão “título de domínio e concessão de uso” (art. 183, § 1º), suscitou
alguma polêmica entre juristas, uma vez que a usucapião gera apenas
aquisição de domínio. Mais tarde, com o advento do Estatuto da Ci-
dade e da Medida Provisória nº 2.220, de 2001, pacificou-se a questão,
mediante a interpretação, defendida pelos movimentos populares, de
que a concessão de uso prevista pelo dispositivo refere-se a um direito
real adquirido pelos possuidores de área pública que cumprirem os mes-
mos requisitos previstos pelo art. 183 para a usucapião especial urbana.
Cumpre destacar que, além da posição de executor da política de
desenvolvimento urbano, que lhe é conferida pelo art. 182 da Carta
Magna, o município ainda concentra a maior parcela de responsabili-
dade na implementação de ações relativas a esta política. A Constitui-
ção Federal, em seu art. 30, define expressamente que:
Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
................................................................................
IV – criar, organizar e suprimir Distritos, observada a legislação
estadual;
V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão
ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o
de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
................................................................................
VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territo-
rial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento
e da ocupação do solo urbano;
................................................................................

Pode-se afirmar que a Constituição de 1988 estabelece as bases para


uma nova forma de atuação no setor ao conceder maior autonomia
para os municípios, que são, inclusive, colocados expressamente como
componentes da Federação, nos termos do art. 18. Ao contrário de
A Constituição Federal de 1988 e a política urbana 667

suas antecessoras, que não explicitavam o poder de auto-organização


dos municípios, limitando-se a conceder-lhes governo próprio e algu-
mas competências exclusivas, a atual Carta Magna consagra a auto-
nomia municipal, com base em quatro pilares: capacidade de auto-or-
ganização, capacidade de autogoverno, capacidade normativa própria
e capacidade de auto-administração. Avançando ainda mais, o Texto
Constitucional de 1988, conforme já mencionado, aborda a temática
das cidades de modo explícito e, também, define a divisão de compe-
tências entre os três níveis de governo, a partir de princípios como a
descentralização administrativa e a participação popular, que agora,
obrigatoriamente, conformarão a moldura dos diferentes campos de
intervenções públicas, incluída a política urbana.
Sobre esse tema, assim ensina José Afonso da Silva (2002, p. 477-478):
Competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade,
ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões.
Competências são as diversas modalidades de poder de que se ser-
vem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções.
Isso permite falar em espécies de competências, visto que as
matérias que compõem seu conteúdo podem ser agrupadas em
classes, segundo sua natureza, sua vinculação cumulativa a mais
de uma entidade e seu vínculo a função de governo. Sob esses vá-
rios critérios, podemos classificar as competências primeiramen-
te em dois grandes grupos com suas subclasses: (1) competên-
cia material, que pode ser: (a) exclusiva (art. 21); e (b) comum,
cumulativa ou paralela (art. 23); (2) competência legislativa, que
pode ser: (a) exclusiva (art. 25, §§ 1º e 2º); (b) privativa (art. 22);
(c) concorrente (art. 24); (d) suplementar (art. 24, § 2º). (Grifos
do autor.)

Assim, o art. 21 da Carta Magna estabelece as competências exclusivas


da União, entre as quais insere-se a instituição de diretrizes para o de-
senvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento e transportes
urbanos (inciso XX). Esse dispositivo, vale dizer, tem sido interpreta-
do como uma referência às ações da União, nos planos tanto executivo
(formulação de políticas públicas), quanto normativo (formulação de
leis e regulamentos). O art. 23, por sua vez, determina a competência
executiva comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios para promover programas de construção de moradia e a
melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (inciso 
IX), que são políticas setoriais importantes ligadas à política urbana.
Ressalte-se que, no caso da competência comum, a Constituição pre-
vê a edição de leis complementares, ainda inexistentes, para regular
as formas de cooperação entre as instâncias federativas em cada um
668 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

dos temas inseridos nas competências comuns, visando o equilíbrio


do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. Além disso,
o § 3º do art. 25 remete aos estados a prerrogativa de instituir regiões
metropolitanas7, aglomerações urbanas e microrregiões.
Do ponto de vista da iniciativa sobre legislação, o art. 22 dispõe que
compete privativamente à União legislar sobre direito civil (inciso I),
o que inclui temas como usucapião e desapropriação (inciso II), en-
quanto o art. 24 determina a competência concorrente da União, dos
estados, dos municípios e do Distrito Federal para legislar sobre direi-
to urbanístico (inciso I). Vale lembrar que, no âmbito da competência
concorrente, o papel da União será o de traçar normas gerais, que
serão complementadas pelas leis estaduais e municipais. Não havendo
lei federal sobre determinado assunto, os estados poderão exercer a
competência legislativa plena, no atendimento de suas necessidades,
porém, a posterior edição de uma lei federal suspende a eficácia da lei
estadual, naquilo em que esta lhe for contrária.
Na divisão das receitas, o IPTU é consagrado como tributo municipal
e como instrumento de política urbana, surgindo em dois dispositivos
distintos da Carta Política, o já citado art. 182, § 4º, e o art. 156, § 1º.
Esse último prevê que o IPTU pode ter alíquotas diferentes de acordo
com a localização e o uso do imóvel e ser progressivo em razão do va-
lor do imóvel, progressividade esta que é independente da progressi-
vidade no tempo, concebida como uma sanção à retenção especulativa
da terra urbana, prevista no art. 182, § 4º.
Por fim, não se pode deixar de lembrar que a Constituição Federal de
1988 tem um caráter democrático e descentralizador, que se manifesta
em vários dispositivos ao longo de todo o texto. Como exemplo, pode-
se mencionar o art. 14, que inclui a iniciativa popular de projetos de
lei entre os mecanismos passíveis de serem utilizados para o exercício
da soberania popular. Esse mecanismo, detalhado no § 2º do art. 61
da Carta Magna, reflete-se na organização de estados e municípios,
conforme atestam, respectivamente, o art. 27, § 4º, e o art 29, inciso
XIII, que trazem parâmetros para o uso dessa prerrogativa nos níveis
estadual e municipal.
Com essa estrutura geral e, particularmente, com o capítulo dedica-
do à política urbana, é inegável que a Constituição Federal de 1988
inovou ao tratar de política urbana e ao conferir ao município prerro-

7
Esse é mais um exemplo do espírito descentralizador que caracteriza a Carta Mag-
na de 88, visto que, anteriormente, a instituição de regiões metropolitanas era atri-
buição da União.
A Constituição Federal de 1988 e a política urbana 669

gativas até então inéditas. Com tais disposições, a Carta Magna pre-
tende levar a uma apropriação equilibrada e coletiva do espaço urbano,
organizando o desenvolvimento e a reprodução deste espaço. O plano
diretor é o instrumento mais importante de que o Poder Público local
dispõe para conduzir neste processo, pois permite organizar a ação
dos agentes públicos e privados, garantindo que cada propriedade in-
dividualmente, e a cidade em si, cumpra a sua função social. Como
já dissemos, a obrigatoriedade do plano diretor não constitui em si
uma total novidade para os municípios brasileiros, mas a necessidade
de aprovação do plano diretor pela Câmara Municipal, em conjunto
com os canais para participação popular abertos pela Carta de 1988,
constitui avanço importante no sentido de evitar a ocorrência de ex-
periências frustrantes como as anteriores.

3. O Estatuto da cidade

Logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, começou


a tramitar no Senado Federal um projeto de lei que pretendia, entre
outras providências, fixar diretrizes para a política de desenvolvimen-
to urbano, em atendimento ao que dispõe o inciso XX do art. 21 da
Carta Magna, e regulamentar a aplicação das sanções à especulação
imobiliária, cumprindo requisito imposto pelo § 4º do art. 182 da
Carta Política. Em 1990, depois de apenas um ano de tramitação na
Casa de origem, a proposição chegou à Câmara dos Deputados, onde
recebeu vários apensos, entre os quais o histórico Projeto de Lei nº
775, de 1983, já mencionado.
O processo de tramitação na Câmara dos Deputados foi longo e in-
cluiu a apreciação da matéria pelas Comissões de Economia, Indústria
e Comércio (CEIC) e de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e
Minorias (CDCMAM)8, onde foram elaborados e aprovados substi-
tutivos. O trabalho culminou com a aprovação, em 1999, de um substi-
tutivo na Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior (CDUI)9,
última das comissões de mérito a se manifestar sobre a matéria10. Esse

8
Hoje Comissões de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio (CDEIC)
e de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS).
9
Hoje Comissão de Desenvolvimento Urbano (CDU).
10
Segundo o Regimento da Câmara (art. 53), cada proposta deve ser analisada pelas
comissões de mérito a que estiver afeta, sendo que, tradicionalmente, o despacho
de distribuição coloca a comissão considerada mais importante em último lugar.
Somente após esse exame é que a matéria segue para a Comissão de Constituição,
Justiça e de Cidadania.
670 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

substitutivo, que agregava todo o processo de discussão conduzido ao


longo de quase uma década, foi a base do texto aprovado, ano seguinte,
pela Comissão de Constituição e Justiça e de Redação (CCJR)11. A
matéria, então, retornou ao Senado Federal, que acatou por unanimi-
dade a proposição, que acabou se consubstanciando na Lei nº 10.257,
sancionada em 10 de julho de 2001.
O Estatuto da Cidade apresenta-se, hoje, como a lei federal mais im-
portante no campo do direito urbanístico, pois traz diretrizes gerais de
política urbana, que devem ser aplicadas tanto pela União, como pe-
los estados e, principalmente, pelos municípios, e cumpre a exigência
no que tange à regulamentação dos instrumentos de política urbana
previstos no art. 182 da Constituição Federal. Além disso, ele tam-
bém coloca à disposição dos municípios, para o cumprimento de sua
atribuição de executor da política de desenvolvimento urbano, outras
ferramentas úteis, como a outorga onerosa do direito de construir e de
alteração de uso, o direito de preempção, a transferência do direito de
construir e as operações urbanas consorciadas.
Ao contrário dos instrumentos constantes do art. 182, § 4º, da Cons-
tituição Federal, esses últimos não precisariam, em tese, de uma lei
federal para serem utilizados pelos municípios, tanto assim que já
vinham sendo adotados em algumas municipalidades. Nesse caso, o
papel do Estatuto da Cidade é de definir uma padronização mínima
que venha a nortear o uso de tais ferramentas, de forma a prevenir dis-
torções ou o mau uso delas. Dessa forma, pode-se dizer que as normas
trazidas pelo Estatuto da Cidade caracterizam-se como normas gerais
no campo do direito urbanístico, pois apenas desenham parâmetros
que induzem à aplicação dos instrumentos de política urbana.
A utilização dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade tem
como objetivo a efetivação de princípios constitucionais, como os da
gestão democrática da cidade, da participação popular, da função social
da propriedade, do direito a moradia, a saúde e a regularização. Acres-
centa-se agora ao ordenamento jurídico a obrigação ao administrador
público de dar efetividade a estes princípios e diretrizes. A possibilidade
do uso indevido ou da não-aplicação desses instrumentos pelos municí-
pios poderá ser questionada até mesmo pela via judicial, pelo desrespei-
to à lei federal e às normas constitucionais da política urbana. Com base
no próprio Estatuto da Cidade poderá esta prática ser considerada uma
lesão a ordem urbanística (art. 53 da Lei nº 10.257, de 2001).

11
Hoje Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).
A Constituição Federal de 1988 e a política urbana 671

Outro aspecto interessante é o vínculo que o Estatuto da Cidade faz,


sob inspiração da própria Constituição, entre a aplicação dos instru-
mentos urbanísticos por ele disciplinados e o plano diretor, a começar
por aqueles previstos no § 4º do art. 182 da Carta Magna, cuja efeti-
vação depende da existência de plano diretor atualizado, onde esteja
especificada área sujeita a parcelamento, edificação ou utilização com-
pulsórios. Também depende do plano diretor a utilização do direito
de preempção, da outorga onerosa do direito de construir e de alte-
ração de uso, das operações urbanas consorciadas e da transferência
do direito de construir. Com isso, o Estatuto da Cidade presta-se ao
importante papel de incentivar a elaboração e a atualização dos pla-
nos diretores municipais, mesmo em cidades com população inferior
a vinte mil habitantes e teoricamente isentas da obrigação trazida pela
Carta Magna.
Cabe registrar que, em seu capítulo específico dedicado ao plano di-
retor, o Estatuto da Cidade, com base na competência da União para
instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano e de legislar sobre
normas gerais em direito urbanístico (art. 21, inciso XX, e art. 24,
inciso I, da Carta Magna), inclui, entre os casos de obrigatoriedade
de elaboração de plano diretor, as cidades integrantes de regiões me-
tropolitanas e aglomerações urbanas, as integrantes de áreas de es-
pecial interesse turístico e aquelas inseridas na área de influência de
empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental
de âmbito regional ou nacional. Ademais, nas cidades com mais de
quinhentos mil habitantes, o Estatuto da Cidade obriga, também, à
elaboração de um plano de transporte urbano integrado, compatível
com o plano diretor ou nele inserido12.
Diante das diferentes realidades dos municípios brasileiros, o Esta-
tuto da Cidade exime-se de apresentar um modelo fechado para o
plano diretor ou criar regras excessivamente detalhadas. Restringe-se
a traçar parâmetros gerais quanto à abrangência da obrigatoriedade do
plano, seu conteúdo e processo de elaboração. Por outro lado, enfatiza
a necessidade de integração entre esse instrumento e todo o sistema
de planejamento municipal, determinando que o plano plurianual, as
diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporem as diretri-
zes e as prioridades contidas no plano diretor (art. 40, § 1º, da Lei
10.257, de 2001). Combinando-se tais disposições com a nova forma
de gestão urbana preconizada pelo Estatuto da Cidade, que, ressoando
princípios essenciais da Carta Magna de 1988, acentua mecanismos

12
Ver arts. 39 a 42 do Estatuto da Cidade.
672 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

de participação e a mobilização política, pode-se afirmar que estão


conjugados os elementos demandados para a implementação de
um modelo de planejamento verdadeiramente sinérgico, capaz de
conferir um novo rumo para o processo de urbanização brasileiro e
para a formulação de políticas urbanas mais objetivas e socialmen-
te mais justas.
Em 2003, o Governo Federal criou o Ministério das Cidades e, no seu
âmbito, a Secretaria Nacional de Programas Urbanos que traz como
missão contribuir para a plena implantação do Estatuto da Cidade,
por meio de ações de capacitação e mobilização, bem como mediante
apoio financeiro. Para cumprir essa missão, uma das linhas de atuação
desenvolvidas tem sido o apoio à elaboração e revisão de planos dire-
tores, via processos participativos e democráticos. Para tanto foi lan-
çada uma campanha, “Plano Diretor Participativo: Cidade de Todos”,
que realizou atividades de capacitação em mais de 1.300 municípios,
dos 1.682 que deveriam elaborar ou revisar seus planos diretores no
prazo previsto pelo Estatuto da Cidade. Pesquisas realizadas pelo Mi-
nistério em final de 2006 e início de 2007 mostraram que a estratégia
foi bem sucedida, pois 92,5% dos municípios sujeitos à obrigação es-
tavam com seus planos diretores aprovados ou, pelo menos, em pro-
cesso de aprovação.

Referências
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elaborado para o curso “A legislação municipal decorrente do Estatuto da Ci-
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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21. ed. São Paulo
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Nacionalidade
675

A Constituição Federal
de 1988 e a
nacionalidade brasileira
Vicente Marcos Fontanive

A Constituição Federal de 1988 pode ser considerada conservadora,


tradicionalista e relativamente pouco inovadora, no que se refere ao
tratamento jurídico destinado aos temas de Direito Internacional e das
relações exteriores do Estado brasileiro. A expressão “Direito Interna-
cional Constitucional” tem sido utilizada comumente para designar
“as normas constitucionais que regulamentam as relações exteriores
do Estado” (embora pairem dúvidas, a nosso ver procedentes, quanto
à sua plena validade técnico-jurídica). Nesse sentido, o denominado
Direito Internacional Constitucional tem sido interpretado como uma
tentativa de adaptar a Norma Fundamental à ordem jurídica interna-
cional, que se sobrepõe a ela. Na verdade, o insigne mestre jusinterna-
cionalista, Celso Duvivier de Albuquerque Mello, negava a existência
de um ramo do Direito que se denominaria “Direito Internacional
Constitucional” por falta de um objeto e método próprio. Contu-
do, o saudoso professor admitia o emprego hodierno da expressão em
sentido comum, para designar a inegável existência de “normas cons-
titucionais de alcance internacional”, as quais devem ser analisadas
em cada caso, procurando compatibilizar o Direito Constitucional e o
Direito Internacional.
Ao considerar o conjunto das normas do Direito Constitucional bra-
sileiro contemporâneo – abrangendo a Constituição de 1988, a Revi-
são Constitucional de 1994 e as Emendas Constitucionais posterior-
mente aprovadas – com implicações para o Direito Internacional e
para as relações exteriores do Brasil (o chamado Direito Internacional
Constitucional) merecem destaque os dispositivos, e suas subseqüen-
tes alterações, que versam sobre o tema da nacionalidade.
Definida como vínculo político-jurídico entre o Estado e o indivíduo
a nacionalidade é tema essencialmente constitucional, pois se refere à
definição e à caracterização de um dos elementos fundamentais do
676 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Estado nacional: o povo, o que reclama e ao mesmo tempo depende


do estabelecimento de critérios para a atribuição, para o reconheci-
mento do vínculo da nacionalidade. Segundo Pontes de Miranda, “na-
cionalidade é o laço jurídico-político de direito público interno, que
faz da pessoa um dos elementos componentes da dimensão pessoal
do Estado”. A nacionalidade resulta da emanação da soberania de cada
Estado, onde o aspecto político supera os aspectos meramente morais,
históricos e jurídicos. O Estado soberano outorga a nacionalidade aos
indivíduos, cuja soma constitui o povo, pilar fundamental que, ladeado
por outro, o território, compõe a essência da estrutura estatal. A impor-
tância do tema da nacionalidade e dos critérios a serem adotados para a
sua concessão aos indivíduos, critérios esses que são essenciais, seja para
a construção da identidade nacional, seja para distinguir os nacionais
dos estrangeiros, fizeram com que o tema merecesse no Brasil, desde a
Independência, tratamento jurídico-legal em esfera constitucional.
As normas constitucionais sobre nacionalidade podem ser considera-
das objeto de estudo do (ainda que de questionada existência) Direito
Constitucional Internacional, porque são elas que determinam para o
Estado brasileiro, o direito à nacionalidade, estabelecendo, portanto, se
o indivíduo será considerado nacional ou estrangeiro. De tal definição,
operada com base em critérios objetivos, decorerrão, naturalmente,
uma série de conseqüências e efeitos jurídicos nos planos do direito
interno e do direito internacional. Constituem-se desta maneira as
bases constitucionais do tratamento jurídico e dos direitos que são re-
conhecidos, pelo Estado, aos brasileiros e aos estrangeiros, respectiva-
mente. Tais normas estabelecem também, portanto, de forma mediata,
planos de relacionamento com os Estados estrangeiros, pois condicio-
nam, de um lado, o tratamento que é dado aos estrangeiros, cidadãos
desses Estados, por parte do Brasil, e de outro lado, o tratamento que
será dado por esses Estados aos cidadãos brasileiros, em aplicação do
princípio da reciprocidade. Outra implicação refere-se ao dever, do
Estado brasileiro, de proteção aos cidadãos brasileiros que se encon-
tram no exterior, bem como o reconhecimento de direito da mesma
natureza, aos estrangeiros que se encontram no Brasil.
As mudanças no texto constitucional quanto ao tema da nacionali-
dade, promovidas pelo Congresso Nacional ao longo das três últimas
décadas, tiveram como objetivo atualizar a normativa constitucional
em função das transformações verificadas nos fluxos migratórios in-
ternacionais envolvendo nosso país. Nesse período, o Brasil passou
da tradicional e histórica condição de país receptor de imigrantes, de
país das Américas, para a posição de nação emissora de migrantes. As
A Constituição Federal de 1988 e a nacionalidade brasileira 677

razões que determinaram tal mudança são várias, dentre elas: as faci-
lidades dos transportes, a redução dos custos das viagens, o aumento
do intercâmbio cultural, artístico, técnico e científico, o avanço das
comunicações, a globalização, etc. Mas, a principal causa, sem dúvida,
foi a sucessão de crises econômicas ocorridas no país, que levaram
os brasileiros a buscar no exterior novas oportunidades de trabalho e
estudo e novas perspectivas de vida.
O Poder Legislativo, atento a estas transformações, buscou adequar a
legislação constitucional e infraconstitucional, de sorte a contemplar
as situações que foram gradativamente se apresentando, como reflexo
da nova realidade. O Congresso promoveu mudanças na legislação
que alcançaram, inclusive, temas angulares, inerentes à própria estru-
tura do Estado brasileiro, como é o caso da nacionalidade. Por con-
seguinte, os legisladores constituintes de 1988 introduziram poucas,
mas importantes mudanças nas normas constitucionais sobre nacio-
nalidade. O texto final aprovado em 1988 representa, definitivamente,
um concreto avanço, em comparação às normativas constitucionais
anteriores, inclusive em relação àquela que imediatamente lhe prece-
deu, vigente nos termos da Emenda Constitucional Nº 1, de 1969. A
nova redação, dada em 1988, aos dispositivos que disciplinam o tema
da nacionalidade é juridicamente melhor, mais enxuta, e sobretudo,
tecnicamente mais precisa que a redação anterior, além de conter im-
portantes mudanças materiais.
Não obstante isso, o texto ainda foi aperfeiçoado em 1994, em 1999 e
em 2007, com vistas aos seu aprimoramento ou mesmo face à necessi-
dade de promover a correção de uma imprecisão que ele apresentava,
como no caso da EC nº 54, de 2007, que visou a sanar um erro da
redação anterior, o qual comportava, como efeito direto, a produção
de indivíduos apátridas. A Emenda Constitucional de Revisão nº 3,
de 1994, modificou o texto de 1988, buscando facilitar a aquisição
da nacionalidade brasileira aos nascidos no exterior e, nesse sentido,
dispensou a “necessidade” do registro feito no exterior, como forma ou
condição para a aquisição da nacionalidade brasileira. Com a inten-
ção de eliminar uma exigência, o legislador constituinte suprimiu um
procedimento que, mais tarde, consensualmente se reconheceu como
sendo uma faculdade. Extinguiu-se um direito que assistia aos nas-
cidos no exterior. Equivocadamente, esse direito foi interpretado, em
1994, como um entrave burocrático que, como tal, se desejou extirpar.
Ao longo deste trabalho analisaremos detalhadamente esta questão.
A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, disciplina-
va o tema da nacionalidade em seus arts. 145 e 146, nesses termos:
678 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Art. 145. São brasileiros:


I – natos:
a) os nascidos em território, embora de pais estrangeiros, desde
que estes não estejam a serviço de seu país;
b) os nascidos fora do território nacional, de pai brasileiro ou mãe
brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço do Brasil; e
c) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasi-
leira, embora não estejam estes a serviço do Brasil, desde que
registrados em repartição brasileira competente no exterior ou,
não registrados, venham a residir no território nacional antes de
atingir a maioridade; neste caso, alcançada esta, deverão, dentro
de quatro anos, optar pela nacionalidade brasileira.
II – naturalizados:
a) os que adquiriram a nacionalidade brasileira, nos termos
do art. 69, itens IV e V, da Constituição de 24 de fevereiro
de 1891;
b) pela forma que a lei estabelecer:
1 – os nascidos no estrangeiro, que hajam sido admitidos no
Brasil durante os primeiros cinco anos de vida, estabelecidos
definitivamente no território nacional. Para preservar a nacio-
nalidade brasileira, deverão manifestar-se por ela, inequivocada-
mente, até dois anos após atingir a maioridade;
2 – os nascidos no estrangeiro que, vindo residir no País antes
de atingida a maioridade, façam curso superior em estabeleci-
mento nacional e requeiram a nacionalidade até um ano depois
da formatura;
3 – os que, por outro modo, adquirirem a nacionalidade bra-
sileira, exigidas aos portugueses apenas residência por um ano
ininterrupto, idoneidade moral e sanidade física.
Parágrafo único. São privativos de brasileiro nato os cargos de
Presidente e Vice-Presidente da República, Ministro de Estado,
Ministro do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal
Militar, do Tribunal Superior Eleitoral, do Tribunal Superior
do Trabalho, do Tribunal Federal de Recursos, do Tribunal de
Contas da União, Procurador-Geral da República, Senador, De-
putado Federal, Governador do Distrito Federal, Governador e
Vice-Governador de Estado e de Território e seus substitutos,
os de Embaixador e os das carreiras de Diplomata, de Oficial da
Marinha, do Exército e da Aeronáutica.
Art. 146. Perderá a nacionalidade o brasileiro que:
I – por naturalização voluntária, adquirir outra nacionalidade;
A Constituição Federal de 1988 e a nacionalidade brasileira 679

II – sem licença do Presidente da República, aceitar comissão,


emprego ou pensão de governo estrangeiro; ou
III – em virtude de sentença judicial, tiver cancelada a naturali-
zação por exercer atividade contrária ao interesse nacional.
Parágrafo único. Será anulada por decreto do Presidente da Repú-
blica a aquisição de nacionalidade obtida em fraude contra a lei.

Na Constituição Federal de 1988, as normas sobre nacionalidade no


Brasil (atualizadas segundo as emendas aprovadas por ocasião da Revi-
são Constitucional de 1994: a Emenda Constitucional de Revisão nº 3,
de 1994; e também das Emendas Constitucionais de nº 23, de 1999 e
de nº 54, de 2007) encontram-se em vigor com a seguinte redação:
Art. 12. São brasileiros:
I – natos:
a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de
pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu
país;
b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou de mãe bra-
sileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República
Federativa do Brasil;
c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasi-
leira, desde que sejam registrados em repartição brasileira com-
petente ou venham a residir na República Federativa do Brasil
e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maiorida-
de, pela nacionalidade brasileira; (Alínea com redação dada pela
Emenda Constitucional nº 54, de 2007)
II – naturalizados:
a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira,
exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas
residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;
b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade residentes na Repú-
blica Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos
e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade
brasileira. (Alínea com redação dada pela Emenda Constitucional de
Revisão nº 3, de 1994)
§ 1º Aos portugueses com residência permanente no País, se
houver reciprocidade em favor dos brasileiros, serão atribuídos
os direitos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos nesta
Constituição. (Parágrafo com redação dada pela Emenda Consti-
tucional de Revisão nº 3, de 1994)
§ 2º A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos
e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição.
680 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

§ 3º São privativos de brasileiro nato os cargos:


I – de Presidente e Vice-Presidente da República;
II – de Presidente da Câmara dos Deputados;
III – de Presidente do Senado Federal;
IV – de Ministro do Supremo Tribunal Federal;
V – da carreira diplomática;
VI – de oficial das Forças Armadas;
VII – de Ministro de Estado da Defesa. (Inciso acrescido pela
Emenda Constitucional nº 23, de 1999)
§ 4º Será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que:
I – tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em
virtude de atividade nociva ao interesse nacional;
II – adquirir outra nacionalidade, salvo nos casos: (Inciso com re-
dação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994)
a) de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei es-
trangeira; (Alínea acrescida pela Emenda Constitucional de Revisão
nº 3, de 1994)
b) de imposição de naturalização, pela norma estrangeira, ao
brasileiro residente em Estado estrangeiro, como condição para
permanência em seu território ou para o exercício de direitos
civis; (Alínea acrescida pela Emenda Constitucional de Revisão nº
3, de 1994)

A comparação dos dois dispositivos nos conduz à conclusão, a qual


acenamos anteriormente, de que o novo texto constitucional, sobretu-
do com as subseqüentes emendas aprovadas, é decididamente melhor
que o texto anterior, sob vários aspectos. Juridicamente considerados,
os dispositivos e a respectiva técnica legislativa empregada são mais
acurados e precisos. O texto é mais sintético e generalista no que res-
peita a sua aplicabilidade, comportando menos casuísmos e especi-
ficidades que o texto anterior. Além disso, o texto da Constituição
Federal de 1988 é mais moderno e mais liberal, traduzindo e ao mes-
mo tempo mostrando-se apto a responder às transformações sociais
e culturais contemporâneas relacionadas ao aumento da mobilidade
internacional das pessoas, de brasileiros e estrangeiros, principalmente
em face às mudanças nos fluxos migratórios.
Vejamos, a seguir, os principais pontos em que a Constituição Federal
de 1988, juntamente às emendas constitucionais aprovadas sob a sua
vigência, constituíram-se em reais avanços do “Direito Constitucional
A Constituição Federal de 1988 e a nacionalidade brasileira 681

Internacional” brasileiro, tomando por referência a sistemática consti-


tucional anteriormente vigente.
A Carta Magna de 1988 repetiu a sistemática das legislações cons-
titucionais anteriores no que se refere à definição dos dois critérios:
principal e acessório, para a atribuição da nacionalidade brasileira.
Assim, seguiu sendo o critério do jus solis o elemento central para
o reconhecimento do direito à nacionalidade brasileira, aplicando-se
também, residualmente, em casos específicos, o jus sanguinis. É o que
transparece da leitura do art. 12, inciso I, alíneas a, b e c. Vejamos cada
uma deles:
Art. 12. São brasileiros:
I – natos:
a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais
estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país:

Por este dispositivo é assentada a regra geral do jus solis, sendo definida
a adoção deste critério como pedra fundamental para a atribuição da
nacionalidade brasileira em caráter originário. Quanto a este aspecto
não há muito que aduzir, senão reconhecer que aqui o legislador cons-
tituinte manteve-se fiel à tradição do constitucionalismo brasileiro,
respeitando costume que remonta aos tempos do Império, qual seja, o
de reconhecer aos nascidos em território nacional, ainda que de pais
estrangeiros, o direito à cidadania brasileira, exceção feita (a qual aliás,
no direito comparado, é encontrada na maioria das legislações estran-
geiras sobre nacionalidade) aos casos em que o rebento for filho de
pais estrangeiros que se encontrem a serviço de seu país, hipótese em
que a nacionalidade brasileira não será, portanto, atribuída.
Na alínea b do inciso I do art. 12, os constituintes também mantive-
ram a tradição das normativas constitucionais anteriores, nesse caso,
determinando a aplicação do critério do jus sanguinis para o reconhe-
cimento da nacionalidade brasileira, garantindo-a aos nascidos no es-
trangeiro, de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que qualquer
deles se encontre a serviço do Brasil, nesses termos.
Art. 12. São brasileiros:
I – natos:
(...)
b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou de mãe bra-
sileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República
Federativa do Brasil; (...)
682 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Neste caso, também não se apresenta qualquer dificuldade, pois a nor-


ma atende ao interesse daqueles que se ausentam do território na-
cional a fim de cumprir missão oficial e que, em tais circunstâncias,
têm filhos em território estrangeiro. É dever moral, reconhecido igual-
mente no plano jurídico, do Estado brasileiro, reconhecer a respectiva
nacionalidade aos filhos destes brasileiros. Além disso, tal norma en-
contra correspondência no costume internacional, sendo que disposi-
ções semelhantes são com freqüência encontradas em ordenamentos
jurídicos internos de outros Estados.
A terceira hipótese de reconhecimento da condição de brasileiro nato
é definida pela alínea c do inciso I do art. 12, (já com a recente redação,
dada pela Emenda Constitucional nº 54, de 2007), nesse termos:
Art. 12. São brasileiros:
I – natos:
(...)
c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasi-
leira, desde que sejam registrados em repartição brasileira com-
petente ou venham a residir na República Federativa do Brasil
e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade,
pela nacionalidade brasileira;

É oportuno analisarmos com maior detalhe esta hipótese, seja por ela
haver sido objeto de sucessivas e, na maioria das vezes, malfadadas re-
dações, seja pela casuística mais recente, que importou na correção de
uma falha a qual, conforme referimos, se não houvesse sido corrigida
a tempo, haveria resultado na produção de apátridas não fosse inter-
pretação dada, nesse ínterim, pelo Ministério da Justiça, à legislação
constitucional e infraconstitucional.
Em 1988 a Assembléia Nacional Constituinte aprovou o dispositivo so-
bre a nacionalidade, o art. 12, trazendo a alínea c a seguinte redação:
Art. 12. São brasileiros:
I – natos:
(...)
c) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira,
desde que sejam registrados em repartição brasileira competen-
te, ou venham a residir na República Federativa do Brasil antes
da maioridade e, alcançada esta, optem em qualquer tempo pela
nacionalidade brasileira;

A fim de aperfeiçoar a normativa constitucional quanto a este parti-


cular, foi aprovada pelo Congresso Revisor a Emenda Revisional n.° 3,
A Constituição Federal de 1988 e a nacionalidade brasileira 683

de 1994, a qual modificou o texto adotado pela Constituição de 1988,


passando a alínea c a vigorar com a seguinte redação:
Art. 12. São brasileiros:
I – natos:
(...)
c) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou de mãe brasilei-
ra, desde que venham a residir na República Federativa do Brasil e
optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira.

Tal alteração do texto constitucional, ao suprimir a possibilidade dos


brasileiros registrarem seus filhos, nascidos no exterior, em repartição
local competente, nos termos da Lei dos Registros Públicos e da Lei
de Introdução ao Código Civil, fez dessas crianças nascidas em terras
alienígenas potenciais órfãs da nação brasileira, embora filhas de nos-
sos compatriotas. Ao extirpar do texto constitucional a possibilidade
de se efetuar o registro no exterior, com o condão de constituir o vín-
culo da nacionalidade, o texto aprovado na revisão de 1994 pratica-
mente fechou as portas de acesso ao manto da nacionalidade brasileira
às crianças nascidas a partir de tal reforma.
A consulta aos debates dos anais das sessões do Congresso Revisor
evidencia contudo, o desígnio de favorecer os filhos de brasileiros nas-
cidos no exterior. Os legisladores do Congresso Revisor, com a adoção
da emenda que modificou o texto constitucional, objetivaram conce-
der facilidades para aquisição da nacionalidade aos nascidos no exte-
rior ao dispensá-los do registro. Ao mesmo tempo, a emenda estabe-
leceu, como providência suficiente a tal fim, a fixação de residência no
país antes do alcance da maioridade. Porém, com o intuito de suprimir
aquilo que, à época, se considerou ser um ônus (e que, de certa forma,
poderia até ser), retirou-se, na verdade, o que é efetivamente uma fa-
culdade, ou mesmo um direito, que era historicamente garantido pelas
precedentes Cartas Constitucionais aos filhos de brasileiros nascidos
no exterior o direito ao procedimento do registro, feito no exterior em
repartição competente.
Com a nova redação, aprovada pela Emenda Constitucional de Re-
visão nº 3, de 1994, aos filhos de brasileiros nascidos no exterior
restou somente uma alternativa para adquirir a nacionalidade brasi-
leira, qual seja, o cumprimento das condições cumulativas previstas
pela alínea c do art. 12, ou seja: 1) vir a residir no Brasil e 2) optar,
a qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira. Conseqüentemen-
te, considerando que a Constituição Federal suprimiu o registro no
exterior como modo de aquisição da nacionalidade, enquanto esses
684 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

filhos de brasileiros nascidos no exterior não viessem a residir no


Brasil (e fizessem a opção pela nacionalidade brasileira) não pode-
riam ser considerados brasileiros de pleno direito.
O mais grave é que, dependendo do país em que houvessem nasci-
do, não teriam direito à nacionalidade local, o que tecnicamente faria
deles indivíduos apátridas, não fosse a interpretação que vinha sendo
dada ao texto constitucional e à legislação, pelo Governo, garantindo
a essas crianças o direito a uma nacionalidade provisória. O problema
é que, segundo esta interpretação - baseada na expectativa de direito
que detêm as crianças nascidas nesse período (desde 1994 até 2007),
os nascidos no exterior teriam de vir ao Brasil e aqui fixar residência
no momento em que atingissem a maioridade (ao completarem 18
anos) para poderem fazer a opção pela nacionalidade Brasileira.
Na realidade, estávamos diante de um verdadeiro imbróglio, causado
pela Emenda Revisional nº 3, de 1994. Até que fosse sanado o pro-
blema, mediante a adoção de nova Emenda Constitucional, a EC Nº
54, DE 2007, tivemos que conviver no País - durante o período de
1994 a 2007, que felizmente acabou - com uma terrível expressão, um
neologismo, surgido para designar uma nova categoria de indivíduos,
os “brasileirinhos apátridas”, expressão que, aliás, contém uma contra-
dição intrínseca e que pode até parecer curiosa, mas que, lamentavel-
mente, recorda a triste situação destas crianças, ameaçadas que estive-
ram de se verem privadas da nacionalidade e da proteção do Estado.
Felizmente, em 20 de setembro de 2007 foi aprovada, após sete anos de
tramitação, a Emenda Constitucional Nº 54, a qual deu nova redação
à alínea c do inciso I do art. 12 da Constituição Federal e acrescentou
o art. 95 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, assegu-
rando o registro nos consulados de brasileiros nascidos no estrangeiro.
Segundo esta EC o novo texto da alínea c passou a ser o seguinte:
Art. 12. São brasileiros:
I - natos:
(...)
c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasi-
leira, desde que sejam registrados em repartição brasileira com-
petente ou venham a residir na República Federativa do Brasil
e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade,
pela nacionalidade brasileira;

Complementando a modificação, de sorte a salvaguardar os direitos


dos filhos de brasileiros nascidos no exterior no período de 1994 a 2007,
A Constituição Federal de 1988 e a nacionalidade brasileira 685

a EC nº 54, de 2007, alterou o Ato das Disposições Constitucionais


Transitórias, o qual passou a vigorar acrescido do seguinte art. 95:
Art. 95. Os nascidos no estrangeiro entre 7 de junho de 1994 e a
data da promulgação desta Emenda Constitucional, filhos de pai
brasileiro ou mãe brasileira, poderão ser registrados em repartição
diplomática ou consular brasileira competente ou em ofício de
registro, se vierem a residir na República Federativa do Brasil.

Atualmente, sanada está a situação, portanto, com a aprovação da


mencionada emenda constitucional (EC nº 54, de 2007). Facultado o
registro no exterior, ficam os brasileiros que têm os seus filhos nascidos
em outros países com o direito à opção de registrá-los em repartição
consular competente para que, em combinação e por força da norma
constitucional, adquiram a nacionalidade brasileira. Resguardou-se
também, aos filhos que não hajam sido registrados, alternativamente,
o direito à opção pela nacionalidade brasileira, o qual poderá ser exer-
cido a qualquer tempo, contanto que esses filhos venham a residir no
território nacional.
No que se refere à forma derivada de aquisição da nacionalidade, a
naturalização, o texto da Constituição de 1988 é sem sombra de dú-
vida melhor que a normativa constitucional precedente. A Emenda
Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, previa uma intrincada
combinação de condições fáticas com atitudes e manifestações positi-
vas de vontade – muitas vezes de difícil caracterização e comprovação
– por parte daqueles que desejassem adquirir a nacionalidade brasilei-
ra pela naturalização, conforme se pode constatar com a leitura de seu
texto, retro transcrito.
Os constituintes de 1988 nortearam-se na redação do novo texto pela
simplificação, tornando-o mais sintético e, ao mesmo tempo, mais
abrangente. Estabeleceu-se assim a regra geral, nos termos do art. 12,
inciso II, alínea a, que consiste na remissão da naturalização à legis-
lação infraconstitucional, ficando autorizada a aquisição da nacionali-
dade brasileira na forma da lei.
Além disso, foram definidas especificidades, consubstanciadas em
duas hipóteses em que a naturalização será facilitada, quais sejam: dos
cidadãos dos países de língua portuguesa, dos residentes no país há
mais de trinta anos (prazo posteriormente reduzido para quinze anos),
além de uma terceira hipótese, referente aos cidadãos portugueses
com residência permanente no país, os quais, além de gozarem do be-
nefício do prazo menor para requerer a naturalização (por se tratarem
de cidadãos de país de língua portuguesa), gozarão, ainda que não se
naturalizem, dos mesmos direitos inerentes aos brasileiros, ressalvados
686 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

os casos previstos na Lei Maior (cargos do Estado privativos de brasi-


leiro nato) e desde que haja reciprocidade por parte de Portugal.
Cumpre destacar aqui uma sutil diferença, em relação ao texto da
Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Segundo
seus termos, era exigido aos portugueses a residência por um ano
ininterrupto, idoneidade moral e sanidade física para que pudessem,
mediante requerimento, adquirir a nacionalidade brasileira, ou seja,
para serem então naturalizados e exercerem os mesmos direitos dos
brasileiros, enquanto que sob a égide da Constituição de 1988 desa-
parece a necessidade de naturalização para o exercício desses mesmos
direitos, contanto que haja reciprocidade de Portugal e salvo os cargos
privativos de brasileiro nato ( art. 12, II, parágrafo único).
Nesse âmbito, o aspecto que nos parece mais digno de destaque e de
enaltecimento são as mudanças relativas aos cidadãos dos países de
língua portuguesa. No caso desses cidadãos, a Carta Magna de 1988
introduziu de forma inédita e até ousada a consagração de uma pos-
tura permanente de política externa de reconhecimento e estímulo à
aproximação com os povos dos países de língua portuguesa, facilitando
a naturalização de seus nacionais, tomadas por referência as exigências
impostas aos cidadãos de outros países, exigindo-lhes apenas a resi-
dência por um ano ininterrupto no Brasil e idoneidade moral. Quanto
a este particular, parece-nos que andou bem a Constituição de 1988
com o estabelecimento dessa norma, pois ela consagra uma política
perene do Estado brasileiro de crescente aprofundamento das relações
com as nações de língua portuguesa, na esteira da qual mais tarde sur-
giu (muito provavelmente contando com a força do estabelecimento
desta norma constitucional) a até hoje bem sucedida experiência da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Outra hipótese de instituição de facilidade de naturalização consiste
na caracterização da residência em território brasileiro durante certo
lapso de tempo somada ao requisito da inexistência de condenação
penal e à condição de manifestação volitiva inequívoca de aquisição da
nacionalidade brasileira, mediante a apresentação de requerimento de
naturalização. Essa forma de naturalização pode ser interpretada como
a instituição, em favor dos estrangeiros de qualquer nacionalidade, de
uma naturalização ex Constitutione (art. 12, II, b), suplementar à natu-
ralização a ser definida e regulamentada pela lei ordinária (art. 12, II,
a), nos termos da qual é autorizado um rito sumário para a naturaliza-
ção, atendidos cumulativamente os requisitos estabelecidos na própria
Norma Fundamental, quais sejam: a prova de residência no Brasil por
A Constituição Federal de 1988 e a nacionalidade brasileira 687

mais de quinze anos ininterruptos, a inexistência de condenação penal


e o requerimento de aquisição da nacionalidade brasileira.
O prazo de residência no País, requisito para a apresentação do reque-
rimento de naturalização com base nesse dispositivo constitucional fora
inicialmente fixado em 30 (trinta) anos ininterruptos, pelo Congresso
Constituinte de 1988, contudo, na Revisão Constitucional, este prazo
foi considerado demasiado longo e, após breve discussão, foi aprovada
sua redução para 15 (quinze) anos ininterruptos, nos termos da redação
dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994.
A norma do § 2º do art. 12 traduz-se em outra interessante novidade
no constitucionalismo brasileiro, a qual, ao mesmo tempo, expressa
sua modernização. Segundo ela, extinguem-se e ficam vedados os es-
tabelecimentos em lei de quaisquer distinções entre brasileiros natos e
naturalizados. Tal proibição encontra-se em consonância e ao mesmo
tempo fortalece entre nós o império do princípio da isonomia legal.
São excetuados porém, os casos previstos pela Constituição, como é
o caso do §3º do mesmo art. 12, que define os cargos do Estado que
serão privativos de brasileiro nato. Aliás, quanto à reserva ao exercício
dos altos cargos e magistraturas nacionais aos cidadãos brasileiros na-
tos, a norma segue a tradição constitucional brasileira sobre o tema.
Este é um aspecto interessante da abordagem jurídica da nacionalida-
de pelo ordenamento jurídico pátrio: o conceito de “brasileiro nato”,
que se transformou em verdadeiro instituto constitucional, conceito
esse que foi contemplado pelas sucessivas oito Cartas Magnas do
Brasil, de 1824 até 1988. Conforme assinala o mestre Cretella Júnior,
o vocábulo “nato” vem do latim natu (m), acusativo do adjetivo de
primeira classe natus, nata, natum, originando na língua portuguesa
os alótropos “nato” (forma erudita) e “nado” (forma popular, mas ar-
caica, hoje em desuso). Nesse contexto, é pacífica a interpretação da
expressão “brasileiro nato” no sentido de que ela significa, no âmbito
do direito constitucional, “brasileiro de nascença”, isto é, a pessoa que
é brasileira em função das circunstâncias de seu nascimento, seja em
virtude do local do nascimento (no caso, o território brasileiro), em
aplicação do jus solis (art. 12, I, a) seja em virtude da filiação, em apli-
cação do jus sanguinis, para os nascidos no estrangeiro (art. 12, I, b e c),
em conformidade com a normativa constitucional.
Aos brasileiros natos o texto constitucional de 1988 reservou o exercí-
cio dos cargos de Presidente e Vice-presidente da República; de Pre-
sidente da Câmara dos Deputados; de Presidente do Senado Federal;
de ministro do Supremo Tribunal Federal; da carreira diplomática;
688 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

de oficial das Forças Armadas. Posteriormente, por força da Emenda


Constitucional nº 23, de 2 de setembro de 1999, foi acrescentado ao
mencionado rol o cargo de ministro de Estado da Defesa. A alteração
foi necessária devido à criação do Ministério da Defesa, em substitui-
ção ao Estado-Maior das Forças Armadas, que foi extinto, sendo os
Ministérios da Marinha, do Exército e da Aeronáutica transformados
em Comandos. As Forças Armadas passaram a ser subordinadas ao Mi-
nistério da Defesa, nos termos do art. 3º da Lei Complementar nº 97,
de 9 de junho de 1999 (lembrando que, conforme determina o art. 2º
da LC nº 97, de 1999, o comandante supremo das Forças Armadas é o
Presidente da República), e abriu-se assim a possibilidade de que esta
pasta, à qual compete a Direção Superior das Forças Armadas, segundo
o art. 9º da Lei Complementar nº 97, de 1999, fosse exercida por um
civil. (note-se que na hipótese do cargo de ministro de Estado da Defe-
sa ser ocupado por um militar, um oficial das Forças Armadas, já estaria
cumprido o requisito relativo à condição de brasileiro nato, essencial
para o acesso ao oficialato militar – cf. CF, Art. 12, 3º, VI).
À época da criação do Ministério da Defesa, diante da possibilidade
de que o ministro fosse um civil – o que tem costumeiramente aconte-
cido desde a sua criação – tornou-se necessário estender a exigência da
condição de brasileiro nato para o preenchimento de tal magistratura a
fim de garantir, da melhor forma possível, que tal função fosse exercida,
por razões de segurança e de defesa nacional, por pessoa reconhecida-
mente fiel à pátria e comprometida, acima de tudo, com os interesses do
país (utilizamos a expressão “da melhor forma possível”, pois obviamen-
te cuida-se aqui de uma ficção jurídica, já que a condição de brasileiro
nato, seja civil ou militar, não significa garantia plena de fidelidade à
pátria, Contudo, há que se ponderar, de outra parte, ser bastante im-
provável que não haja total fidelidade em tão alta esfera do poder, o que
confere grande força à norma quanto ao alcance de sua finalidade).
Com a aprovação da Emenda Constitucional nº 23, de 2 de setembro
de 1999, o Congresso Nacional fez com que fosse adotado, no caso do
cargo de ministro de Estado da Defesa, idêntico raciocínio utilizado
quanto aos oficiais militares, com a aplicação do mesmo fundamento
jurídico que legitima a exigência da condição de brasileiro nato para o
exercício dos cargos de oficial das Forças Armadas e, de modo suple-
mentar, logrou manter a coerência do texto constitucional.
Por fim, os legisladores constituintes de 1988, ao se debruçarem sobre
a questão da perda da nacionalidade brasileira, mostraram-se a um
tempo conservadores, mas, sobretudo, sintéticos. A redação original
de 1988 simplesmente repetiu duas hipóteses de perda da nacionali-
A Constituição Federal de 1988 e a nacionalidade brasileira 689

dade consagradas pelo constitucionalismo brasileiro, nos termos das


Cartas anteriores, quais sejam: a perda da nacionalidade por parte do
brasileiro que, por naturalização voluntária, adquirir outra nacionali-
dade e, também por parte do brasileiro naturalizado que, em virtude
de sentença judicial, tiver cancelada a naturalização, por exercer ativi-
dade contrária ao interesse nacional. Foi, por outro lado, suprimida a
norma que impunha a perda da nacionalidade ao brasileiro que, sem
licença do Presidente da República, aceitasse comissão, emprego ou
pensão de governo estrangeiro.
Na verdade, estas três normas foram reproduzidas, quase na íntegra,
com mínimas variações, a partir de Constituições precedentes. É o
que se pode constatar mediante a comparação da redação dos seguin-
tes dispositivos constitucionais: art. 107 da Constituição de 1934; art.
116 da Constituição de 1937; art 130 da Constituição de 1946; art.
141 da Constituição de 1967; e art. 146 da Emenda Constitucional
nº 1, de 1969.
Porém, mais tarde, na oportunidade da Revisão Constitucional de
1994, o Congresso Revisor, no exercício do poder constituinte de-
rivado que lhe foi atribuído, demonstrou maior desprendimento em
relação à tradição constitucional e modificou a normativa referente à
perda da nacionalidade, introduzindo disciplina claramente mais libe-
ral. Com efeito, a Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994,
embora haja preservado, ao que nos parece, acertadamente, a norma
relativa à perda da nacionalidade em face do cancelamento da natura-
lização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao inte-
resse nacional, introduziu duas exceções ao princípio geral da perda da
nacionalidade brasileira em virtude da aquisição de outra nacionalida-
de, quais sejam: nos casos em que a aquisição da outra nacionalidade
se operar por força de “reconhecimento de nacionalidade originária
pela lei estrangeira” (o que se distingue da naturalização, que é modo
de aquisição de nacionalidade derivada) e nos casos de “imposição de
naturalização, pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em Es-
tado estrangeiro, como condição para permanência em seu território
ou para o exercício de direitos civis”, conforme dispõe o art. 12, § 4º,
inciso II, alíneas a e b da Constituição. Passou assim o Direito positivo
pátrio a reconhecer juridicamente, de forma explícita, a ocorrência de
dupla nacionalidade.
A emenda aperfeiçoou a redação do dispositivo constitucional por-
que permitiu fosse afastada a incerteza quanto à sua interpretação,
existente sob a vigência dos textos anteriores, inclusive o de 1988, os
quais meramente determinavam a perda da nacionalidade brasileira
690 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

em face da aquisição de outra nacionalidade, sem distinguir o caráter


de tal aquisição. Ou seja, o texto não diferenciava os casos em que
se cuidava de aquisição em modo derivado, tratando-se portanto, em
sentido próprio, de uma naturalização, dos casos em que se operava o
mero reconhecimento da existência de um vínculo de nacionalidade
pré-existente, por força da aplicação concorrente de lei estrangeira, o
qual coincide com o vínculo de nacionalidade atribuído pelo Brasil.
Outra exceção prevista e aprovada pelo Congresso Revisor consiste na
exclusão da declaração de perda da nacionalidade quando a aquisição
da nacionalidade estrangeira decorrer de imposição de naturalização,
pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em Estado estrangeiro,
como condição para permanência em seu território ou para o exercício
de direitos civis. Nesse particular, o Congresso Revisor atentou para
as transformações nos movimentos migratórios internacionais envol-
vendo brasileiros e deliberou com base na constatação de que o Brasil
passou a ser uma nação emissora de emigrantes. Nesse sentido, os
legisladores buscaram proteger nossos concidadãos que, por motivos
diversos, são levados a migrar para o exterior aos quais, eventualmente,
venha a ser-lhe imposto – como condição para a permanência no ter-
ritório do país estrangeiro, para o exercício de trabalho ou dos direitos
civis – o dever de naturalizar-se no respectivo país. Para esses cida-
dãos, a normativa constitucional em vigor estabelece exceção, desde
1994, admitindo a preservação da nacionalidade brasileira.
Cumpre porém destacar que, com a redação final dada à norma pela
Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994, caso não sejam
atendidas as condições previstas para a caracterização das excepciona-
lidades supradescritas, conserva plena vigência o mandamento cons-
titucional constante do art. 12, § 4º, inciso II, da CF, nos termos do
qual será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que adquirir
outra nacionalidade, nesta hipótese, por via de naturalização (desde
que ela decorra de manifestação da vontade livre e que não seja resul-
tante de constrangimento ou decorrente de aplicação de lei estrangei-
ra), sendo esta, portanto, a conclusão a que nos conduz a interpretação
deste dispositivo, uma vez analisado em conjunto com as exceções que
ele comporta.
Consideradas as disposições constitucionais relativas à nacionalidade,
cabe assinalar, a título de conclusão e ratificando o que afirmamos no
início, a preponderância da fidelidade da redação da Carta de 1988,
e de suas subseqüentes emendas, à tradição do direito constitucional
brasileiro referente ao assunto, não obstante a introdução de impor-
tantes e pontuais avanços. Além disso, sobretudo por tratar-se de tema
A Constituição Federal de 1988 e a nacionalidade brasileira 691

visceral, ligado de forma indissociável à existência do Estado, é pecu-


liar, pela sua própria natureza, que a disciplina constitucional quanto à
nacionalidade apresente caráter perene, sendo, inclusive, conveniente
que tal disciplina permaneça pouco mutável e de certa forma imune
às influências, movimentos e transformações sociais, que hão de ser
valorados com base em horizontes temporais mais amplos, de sorte a
proteger e a preservar, em última instância, os atributos da cidadania
e da nacionalidade, bem como os interesses da própria Nação. Nesse
contexto, as normas constitucionais em vigor sobre a nacionalidade,
ao mesmo tempo em que sustentam e emanam estabilidade, conso-
lidada ao longo do tempo, como é de se esperar de normas basilares
do edifício de construção do Estado e da Nação, podem ser conside-
radas, além de modernas, aptas a responder aos desígnios do Brasil e
dos brasileiros, estando também em perfeita adequação com a ordem
jurídica internacional.

Referências

MELLO, Celso D. de A. , Direito constitucional internacional. Rio de Janeiro :


Ed. Renovar, 1994.
Nacionalidade
693

Distinções entre natos e


naturalizados nas
Constituições brasileiras
Elir Cananéa Silva

1. Introdução

O presente artigo apresenta, de modo sintético, as restrições impostas


aos brasileiros naturalizados, sob o prisma da atual Constituição e das
diversas cartas políticas que vigeram no País. De início, cumpre des-
tacar que o texto não tenciona esgotar o tema, que, em razão de sua
amplitude, demandaria a elaboração de obra específica.
Antes de tratar das limitações aos naturalizados, com o objetivo de
auxiliar a compreensão do tema, foram dedicadas algumas linhas às
definições do termo nacionalidade, em sua dupla dimensão, socioló-
gica e jurídica, bem como aos critérios normalmente utilizados pelos
Estados para a atribuição da nacionalidade originária.
Item específico versa sobre a nacionalidade originária como condição
para a investidura nos cargos da carreira diplomática e nas Forças Ar-
madas, no Brasil.

2. Definições do termo nacionalidade – dimensão socioló-


gica e jurídica

As definições do termo nacionalidade variam conforme o enfoque dado,


sociológico ou jurídico. O internacionalista Celso D. de Albuquerque
Mello leciona, com base na doutrina de Mancini, que nacionalidade, em
sentido sociológico, “corresponde ao grupo de indivíduos que possuem a
mesma língua, raça, religião e possuem um querer viver em comum”1.
No mesmo sentido, Paul Lagarde, citado por Jacob Dolinger, atribui
duas dimensões à nacionalidade, uma horizontal, outra vertical. A

1
Mello, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público, vol 2, p.
829, Ed. Renovar, 1997.
694 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

vertente horizontal, ou sociológica, é a “que faz do nacional membro


de uma comunidade, da população que constitui o Estado”. 2 A di-
mensão vertical, de natureza jurídico-política, consiste “na ligação do
indivíduo com o Estado a que pertence, que lembra a relação do vassalo
com seu suserano, e que contém uma série de obrigações do indivíduo
para com o Estado (v.g. lealdade, serviço militar etc), com a contrapar-
tida da proteção diplomática que o Estado estende ao indivíduo onde
quer que se encontre no estrangeiro”.3 Além de Lagarde, definem a
nacionalidade como o vínculo jurídico e político, que une o indivíduo ao
Estado, Pontes de Miranda, Clóvis Beviláqua e Potesdá Costa.
A atribuição da nacionalidade aos indivíduos é ato que deflui da sobe-
rania dos Estados e, por incluir-se no seu domínio reservado, é regula-
da por normas de direito interno. O princípio de que os Estados detêm
o poder exclusivo de atribuição de sua nacionalidade foi reconhecido
pela extinta Corte Permanente de Justiça Internacional, em 19234, e
confirmado pela Convenção de Haia de 1930, cujo texto é considerado
uma representação fiel do direito costumeiro internacional5. Entretan-
to, em razão dos seus efeitos jurídicos extraterritoriais, a nacionalidade,
apesar de regulada pelo direito interno, é objeto de estudo do Direito
Internacional Público e do Direito Internacional Privado6.
No plano interno, a atribuição da nacionalidade confere ao indivíduo
a titularidade de direitos civis e políticos, que variam de um Estado
soberano para outro. Em geral, tais direitos comprendem o sufrágio
em sua dimensão ativa, e o acesso a determinados cargos públicos ve-
dados aos estrangeiros em geral. Por outro lado, a condição de nacio-
nal impõe alguns deveres, tais como, a prestação de serviço militar, o
alistamento eleitoral e o voto.
No âmbito do Direito Internacional, as normas sobre nacionalidade
criam sobretudo deveres para o Estado atribuidor, como a proteção
diplomática daqueles que detenham a qualidade de nacional. Tais re-
gras também geram efeitos na execução de certos tratados (eg. acordos
de imigração; de isenção de vistos; de extradição).

2
Dolinger, Jacob. Direito Internacional Privado, Parte Geral, p. 133, 2ª edição, Ed.
Renovar.
3
Dolinger, Jacob. op. cit. p. 133
4
Caso dos Decretos de nacionalidade na Tunísia e no Marrocos.
5
Thierry, Hubert e outros. Droit International Public, p. 292
6
Guido Fernandes Silva Soares ensina que “a nacionalidade é o vínculo mais antigo
nas relações internacionais, e esteve presente nas antigas civilizações mesmo antes de
o conceito ser adotado pelo Direito Internacional Público (...). Soares, Guido Fernan-
do Silva. Curso de direito internacional público, p. 314, Editora Atlas, 2002.
Distinções entre natos e naturalizados nas Constituições brasileiras 695

3. Critérios de atribuição da nacionalidade originária

Segundo o critério de aquisição, a nacionalidade pode ser originá-


ria ou derivada. Esta última, também conhecida como naturalização,
pressupõe a manifestação da vontade do indivíduo como condição
para sua aquisição7. No caso brasileiro, a naturalização é ato do Poder
Executivo, que a declara após o cumprimento, pelo estrangeiro domi-
ciliado no País, de certas formalidades preceituadas na lei. Com a carta
de naturalização, o estrangeiro adquire o status de nacional, sendo-lhe
vedado, apenas, o acesso a determinados cargos, funções e atribuições
previstas no texto constitucional como privativas de brasileiro nato (v.
arts. 12, § 3º e 89, VII, da CF).
Diz-se originária, a nacionalidade outorgada ao indivíduo em razão
de seu nascimento. A doutrina identifica dois critérios de atribuição
dessa espécie de nacionalidade: o jus sanguinis e o jus soli8.
Utilizado em larga escala pelos países europeus, o jus sanguinis é o cri-
tério que define a nacionalidade de uma pessoa em razão da naciona-
lidade de seus pais (um deles ou ambos). Considerado o mais antigo
dos critérios, suas raízes remontam à antiga Roma, havendo provas
de que, no passado, também o adotavam o Egito, a Índia e o povo
hebreu9. Cumpre esclarecer que o princípio do jus sanguinis não se
ampara no sangue – como o nomem juris pode equivocadamente levar
a crer -, mas na filiação. Daí porque alguns autores, após apontarem a
incorreção da denominação, defendem a expressão “nacionalidade por
filiação”, que definiria com maior precisão o instituto10.
Pelo critério do jus soli, a nacionalidade é fixada em razão do local
de nascimento do indivíduo. Utilizado pela maioria dos Estados sul-
americanos e pelos Estados Unidos da América, as bases do princípio
do jus soli surgiram, presumivelmente, no período feudal, durante o
qual se privilegiou o vínculo do indivíduo com a terra. Na América
Latina, segundo La Pradelle, o princípio ressurgiu no século XIX não

7
Como exceção à regra da manifestação de vontade do interessado para a aquisição
da nacionalidade derivada, a Constituição brasileira de 1891 estatuiu duas hipóteses
de nacionalização tácita de estrangeiros (art. 69, 4º e 5º).
8
Alguns autores consideram como misto o critério que conjuga a filiação com o
local de nascimento. Nesse sentido, Hidelbrando Accioly, in:. Manual de Direito
Internacional Público, p. 71, Ed. Saraiva, 1986
9
Del’Olmo, Florisbal de Souza. O Mercosul e a Nacionalidade, p.46, Ed. Forense,
2001
10
Dardeau de Carvalho, A. A Nacionalidade e a Cidadania, p.13, Ed. Freitas Bastos,
1956
696 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

como um vestígio do feudalismo, mas como uma garantia de inde-


pendência territorial e como fonte da liberdade, não apenas nacional,
porém individual.11
Desde a Constituição, de 1824, o Brasil acolhe o jus soli como o pri-
meiro critério para atribuição da nacionalidade brasileira. Contudo,
é preciso destacar que todos os textos constitucionais vigentes não
se limitaram a consagrar apenas o ius soli, que sempre conviveu com
regras baseadas no jus sanguinis. A Constituição Federal de 1988 não
foge a essa regra. Assim, ao compulsar o inciso I, do art. 12, verifica-se
sem dificuldade a coexistência de ambos os critérios. Por isso, não será
incorreto afirmar que nosso País adota o sistema misto, haja vista as
concessões aos cânones do ius sanguinis, em particular o disposto nas
alíneas b e c do artigo abaixo transcrito:
Art. 12. São brasileiros:
I – natos:
a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de
pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu
país;
b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira,
desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federa-
tiva do Brasil;
c) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira,
desde que venham a residir na República Federativa do Brasil e
optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira.” (Reda-
ção dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994)

4. Brasileiros natos e naturalizados – distinções –


cargos e funções privativos de brasileiros natos

No Brasil, tradicionalmente, as regras de atribuição da nacionalida-


de originária são disciplinadas nos textos constitucionais, que costu-
mam, também, estatuir distinções entre os brasileiros por nascimento
e aqueles que adquiriram a nacionalidade por opção.12
A tendência de privilegiar o cidadão considerado nato, em detrimen-
to do naturalizado, tem início com a Constituição de 1934, que, em

11
Del’Olmo, Florisbal de Souza. Op. cit, pag. 47.
12
Nos ordenamentos jurídicos estrangeiros as regras sobre nacionalidade são en-
contradas nas respectivas Constituições, nas normas de direito público e até mesmo
nas de direito civil.
Distinções entre natos e naturalizados nas Constituições brasileiras 697

contraposição ao viés liberal da Carta de 1891, aumentou de modo


significativo o rol de cargos e funções reservadas aos brasileiros natos.
Interessante observar que, a Constituição de 1891 estatuía no art. 73
a plena igualdade entre brasileiros (sem quaisquer qualificativos), no
que se refere à investidura nos cargos civis ou militares. Assim, com
exceção do cargo de Presidente da República (art. 41, § 3º, 1º), os de-
mais cargos públicos eram acessíveis aos naturalizados.
Art 73 Os cargos públicos civis ou militares são acessíveis a
todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade es-
pecial que a lei estatuir, sendo, porém, vedadas as acumulações
remuneradas.

Não obstante todas as constituições vigentes comportarem disposi-


tivos sobre a nacionalidade brasileira, bem como regras restritivas de
direitos aplicáveis aos estrangeiros e aos naturalizados, somente na
Constituição de 1946 é adotado o princípio segundo o qual a lei (or-
dinária ou complementar) não pode criar diferenciações entre brasi-
leiros natos e naturalizados13, tal como preceituado no § 2º, do art. 12,
da Constituição de 1988.
Antes de 1946, as Constituições de 1937 e de 1934 proibiam apenas
distinções entre brasileiros natos, conforme se depreende dos seguin-
tes dispositivos:
Constituição de 1937:
Art. 32 É vedado à União, aos Estados e aos Municípios:
a) criar distinções entre brasileiros natos ou discriminações e de-
sigualdades entre os Estados e Municípios;
Constituição de 1934:
Art. 17 É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
I – criar distinções entre brasileiros natos ou preferências em
favor de uns contra outros Estados;

Interpretados a contrariu sensu, verifica-se que os dispositivos consti-


tucionais supratranscritos não vedavam distinções entre natos e natu-
ralizados. Isso permitiu ao legislador ordinário a promulgação de di-
versos diplomas normativos, que impediam aos naturalizados o acesso
a cargos e funções no serviço público e no setor privado (v. Anexo 1).

13
Art. 31 À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:
I – criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de uns contra outros
Estados ou Municípios;.........................................................................................
698 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Nos itens seguintes, são apresentadas as várias restrições, no tocante


à investidura dos naturalizados em cargos, funções públicas e outras
atividades, consagradas pelas Constituições que vigoraram no Brasil.

4.1. Constituição de 1824

A Constituição de 1824, promulgada durante o período imperial, re-


gulava a nacionalidade14 brasileira no seu art. 6º, verbis:
Art. 6. São Cidadãos Brazileiros
I – Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou
libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não
resida por serviço de sua Nação.
II – Os filhos de pai Brazileiro, e Os illegitimos de mãi Brazilei-
ra, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domi-
cilio no Imperio.
III – Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangei-
ro em sorviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer
domicilio no Brazil.
IV – Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sen-
do já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a In-
dependencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta
expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia.
V – Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Re-
ligião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter
Carta de naturalisação.

Essa Constituição consagrava poucas restrições aos brasileiros natura-


lizados15, como, por exemplo, a Coroa do Império. Os naturalizados
tinham o direito de votar nas eleições primárias (art. 91, II). Todavia,
não podiam ser nomeados Deputados (art. 95, II) nem ocupar o cargo
de Ministro de Estado (art. 136). Importante ressaltar que a Carta
imperial não possuía qualquer dispositivo que proibisse a distinção
entre natos e naturalizados.

4.2. Constituição de 1891

Sob forte influência da Constituição dos Estados Unidos, de cunho


eminentemente liberal, a primeira Constituição republicana brasileira,

14
Assim como Carta de 1824, a de 1891 fazia referência a “cidadãos brasileiros”.
15
A Constituição de 1824 utilizava a expressão “estrangeiro naturalizado”.
Distinções entre natos e naturalizados nas Constituições brasileiras 699

de 1891, somente reservava aos brasileiros natos os cargos de Presi-


dente da República e Vice-Presidente da República (art. 41, § 3º, 1º).
Eram considerados, cidadãos brasileiros, de acordo com o art. 69, da
Carta de 1891:
Art 69 São cidadãos brasileiros:
1º) os nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não resi-
dindo este a serviço de sua nação;
2º) os filhos de pai brasileiro e os ilegítimos de mãe brasileira, nasci-
dos em país estrangeiro, se estabelecerem domicílio na República;
3º) os filhos de pai brasileiro, que estiver em outro país ao serviço
da República, embora nela não venham domiciliar-se;
4º) os estrangeiros, que achando-se no Brasil aos 15 de novem-
bro de 1889, não declararem, dentro em seis meses depois de
entrar em vigor a Constituição, o ânimo de conservar a naciona-
lidade de origem;
5º) os estrangeiros que possuírem bens imóveis no Brasil e fo-
rem casados com brasileiros ou tiverem filhos brasileiros con-
tanto que residam no Brasil, salvo se manifestarem a intenção de
não mudar de nacionalidade;
6º) os estrangeiros por outro modo naturalizados.

Ressalte-se que essa Constituição possibilitava ao naturalizado, desde


que observado determinado lapso temporal, ser eleito Deputado Fe-
deral ou Senador (art. 26, 2º)16, bem como o acesso aos cargos públicos
civis e militares, nos termos da lei (art. 73). Regra semelhante à do art.
26, 2º, da Constituição de 1891, que condiciona o exercício do direito
do naturalizado ao decurso de um período, é encontrada no art. 222
da Constituição de 1988.17

4.3. Constituição de 1934

Em oposição à natureza liberal da Carta de 1891, a Constituição de


1934 reservou aos brasileiros natos uma série de cargos e atribui-
ções, alguns dos quais adotados pelas Cartas que a sucederam. Nesse

16
“Art 26. São condições de elegibilidade para o Congresso Nacional:
1º ) estar na posse dos direitos de cidadão brasileiro e ser alistado como eleitor;
2º ) para a Câmara, ter mais de quatro anos de cidadão brasileiro, e para o Senado
mais de seis.”
17
“Art. 222. A propriedade de empresa jornalística e de rádio e difusão sonora de
sons e imagens é privativa de brasileiro nato ou naturalizado há mais de dez anos, ou
de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País.”
(EC Nº 36/2002)
700 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

contexto, além dos cargos de Presidente e de Vice-Presidente da Re-


pública, essa Constituição destinava aos natos os cargos de Membros
da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Ministros da Corte
Suprema, de Membros dos Tribunais Federais, de Juízes Federais, de
Procurador-Geral da República e de Ministros de Estado.
Em conformidade com a Constituição de 1934, eram privativos de
brasileiros natos, também: a responsabilidade principal e a orientação
intelectual ou administrativa da imprensa política ou noticiosa; a pro-
priedade, a armação, o comando dos navios nacionais e, pelo menos,
dois terços de seus tripulantes; a assistência religiosa nas expedições
militares; e a revalidação dos diplomas profissionais expedidos por
institutos estrangeiros de ensino.

4.4. Constituição de 1937

A Carta Política de 1937 quase não inovou em relação à de 1934,


no que se refere aos cargos e funções privativas de brasileiros natos.
Em oposição à Constituição de 1934, a de 1937 não restringia aos
naturalizados o acesso aos cargos de Deputado Federal, sendo que os
Representantes dos Estados no Conselho Federal (o Senado havia
sido dissolvido) deviam ser brasileiros natos (arts. 51 e 52). Não proi-
bia, também, a Carta de 1937, a prestação de assistência religiosa nas
Forças Armadas por naturalizados.

4.5. Constituição de 1946

Com o fim do Estado Novo, uma nova Constituição é promulgada em 18


de setembro de 1946. Considerada avançada na área social e dos direitos
políticos por inúmeros juristas, no campo das restrições aos brasileiros
naturalizados, essa Carta não apresenta avanços expressivos em face de
suas antecessoras. Nota-se que esse texto constitucional apenas deixa de
considerar, como direito privativo de brasileiro nato, a revalidação de di-
plomas profissionais expedidos por institutos estrangeiros de ensino.

4.6. Constituição de 1967 e Emenda nº 1, de 1969

Entre as Constituições que vigoraram no País, a de 1967, promulgada


durante o regime militar, foi a que mais reservou cargos aos brasileiros
natos. Em conformidade com o texto original dessa Carta, antes das
alterações promovidas pela EC nº 1, de 1969, eram privativos dos na-
Distinções entre natos e naturalizados nas Constituições brasileiras 701

tos os cargos de Presidente, Vice-Presidente da República, Membros


da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, Ministros do Supre-
mo Tribunal Federal, do Superior Tribunal Militar, do Tribunal Fede-
ral de Recursos, de Juízes Togados do Tribunal Superior do Trabalho e
de Procurador-Geral da República, Ministros de Estado, Governador
e Vice-Governador de Estado e de Território. A Carta de 1967 res-
tringia, também, aos brasileiros natos: a responsabilidade, orientação
intelectual e administrativa das empresas jornalísticas, a propriedade,
a armação e o comando dos navios nacionais, bem como pelo menos
dois terços de sua tripulação.
O § 2º, do art. 140, da Constituição de 1967 proibia, expressamente, o
estabelecimento de restrições relativas ao local de nascimento do bra-
sileiro, salvo os casos expressos na própria Carta18. Esse dispositivo,
entretanto, foi excluído do texto constitucional pela Emenda Cons-
titucional nº 1, de 1969, permitindo, em tese, ao legislador ordinário
criar restrições no tocante aos naturalizados.
A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, tratou dos cargos privativos
de brasileiro nato no § único do art. 145. Este dispositivo ampliou
ainda mais o rol do § 1º do art. 140, da Constituição de 1967, para
incluir os cargos de Ministros do Tribunal de Contas da União, do
Tribunal Superior do Trabalho,19 os embaixadores e membros da carrei-
ra diplomática, e os oficiais da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.

4.7. Constituição de 1988

A Constituição de 1988 reduziu, de modo significativo, a relação de


cargos e atribuições privativos de brasileiros natos, estatuída pela Car-
ta de 1967. Pelas regras vigentes (que não autorizam à lei o estabeleci-
mento de distinções entre brasileiros natos e naturalizados, ressalvados
os casos expressos na Constituição), são privativos de natos os cargos
de Presidente e Vice-Presidente da República, de Presidente da Câ-
mara dos Deputados, de Presidente do Senado Federal, de Ministros
do Supremo Tribunal Federal, de Ministro da Defesa, da carreira di-
plomática, de oficial da Forças Armadas, além dos cidadãos indicados
para integrar o Conselho da República.

18
Art. 141. § 2º - Além das previstas nesta Constituição, nenhuma outra restrição
se fará a brasileiro em virtude da condição de nascimento.
19
O § único do art. 145, da CF de 1967, com redação dada pela EC nº 1, de 1969,
referia-se a Ministros do TST, sem exceções. Donde se conclui que a exceção se
aplica a todos.
702 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Com esteio no jurista Alexandre de Moraes, cumpre destacar que a


enumeração do texto constitucional é taxativa, o que não autoriza sua
ampliação por meio de lei ordinária.20 Pela atual Carta, os naturali-
zados podem ser eleitos para a Câmara dos Deputados, para Senado
Federal e demais cargos legislativos no âmbito dos Estados e dos Mu-
nicípios, bem como ser nomeados ministros de Estado, inclusive das
Relações Exteriores, ressalvado o cargo de Ministro da Defesa.
No que se concerne aos cargos da carreira diplomática e de oficial das
Forças Armadas, a Carta Política de 1988 não diferiu de sua predeces-
sora, ao dispor que estes e aqueles são privativos de brasileiros natos.
(art. 12, § 3º, incisos V e VI). Nem sempre, porém, as Constituições
brasileiras exigiram, expressamente, a condição de nato para o exer-
cício da diplomacia e o ingresso no oficialato de uma da três armas,
conforme será visto adiante.

5. A nacionalidade originária como condição para a


investidura nos cargos da carreira diplomática e de
oficial das Forças Armadas

Até o advento da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, que alterou a


Carta de 1967, não há registro, no direito constitucional brasileiro, de
restrições aos naturalizados quanto à investidura nos cargos da carrei-
ra diplomática e de oficial da Forças Armadas.
Em comento ao parágrafo único do art. 145 da Constituição de 1967
(com redação dada pela EC nº 1/69), que tratava dos cargos privativos
de brasileiros natos, Pontes de Miranda assim justificava a adoção de
restrições em benefício dos natos:
Alguns cargos a Constituição considerou privativos de Brasilei-
ros natos. A ratio legis está em que seria perigoso que interesses
estranhos ao Brasil fizessem alguém naturalizar-se Brasileiro,
para que, em verdade, os representasse.21

A Carta Política de 1988, conforme destacado no item 4.7 deste artigo,


não inovou no tratamento conferido aos oficiais militares e diploma-
tas, reservando o acesso às respectivas carreiras aos brasileiros natos.
Poucos são os juristas que, ao comentar o disposto nos incisos V e VI
do § 3º do art. 12 da Constituição Federal, se pronuciaram sobre o que
motivou o constituinte a incluir tais exceções na Constituição. Um

20
Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional, p. 228, Ed. Atlas, 2004.
21
Miranda, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, p. 509, Editora Revista
dos Tribunais, 1970.
Distinções entre natos e naturalizados nas Constituições brasileiras 703

dos poucos a escrever sobre o tema, o constitucionalista Alexandre


de Moraes registra que o “legislador constituinte fixou dois critérios
para a definição dos cargos privativos de brasileiros natos: a chamada
linha sucessória e a segurança nacional.” Sobre o critério lastreado na
segurança nacional, esse autor sustenta que “as funções exercidas pelos
diplomatas e oficiais das Forças Armadas, que em virtude de suas po-
sições estratégicas nos negócios do Estado, mereceram maior atenção
por parte do legislador constituinte.”22
No caso específico dos militares, antes da reserva imposta pela Emen-
da Constitucional nº 1, de 1969, malgrado o silêncio das Constitui-
ções que a antecederam, diversos Estatutos dos Militares, aprovados
por leis ordinárias ou Decretos-Lei, exigiam a nacionalidade de ori-
gem para ingresso nos quadros das respectivas Armas ou nas escolas
militares, conforme se depreende do art. 17 do Decreto-Lei nº 3.084,
de 1941, do art. 17 do Decreto-Lei nº 3.864, de 194123 e do art. 8º do
Decreto-Lei nº 9.698, de 1946.
Nesse passo, ressalte-se que o inciso I do art. 31 da Constituição de
1946 proibia a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
criarem distinções entre brasileiros. Apesar disso, não há registro de que
qualquer dos artigos dos Estatutos dos Miltares acima referidos tenha
sido objeto de questionamento no que se refere à constitucionalidade24.
Em alguns textos normativos promulgados antes de 1941, que regu-
lavam o ingresso nas Instituições Militares, não há referências expres-
sas aos natos, como, por exemplo, o art. 32, inciso 1º, do Decreto nº
19.877, de 16 de abril de 1931, que dá novo regulamento à Escola
Naval. Esse dispositivo, sem fazer distinções entre naturalizados e
natos, preceituava que ninguém será admitido no Curso Prévio da
Escola sem provar que é brasileiro.
Por seu turno, o Decreto nº 3.234, de 17 de março de 1889, que aprova
o regulamento para o corpo de oficiais inferiores da Armada, promul-
gado durante a vigência da Constituição de 1891, estabelecia como
condição para admissão: ser cidadão brasileiro (o texto não se referia
a brasileiro ou cidadão nato) e estar no gozo de seus direitos civis

22
Moraes, Alexandre de. Op. cit., p. 227
23
O § único do art. 17 desse diploma, também encontrado no Decreto-Lei nº 3.084,
de 1941, estabelece que a prestação do serviço militar pelos brasileiros naturalizados
será regulada em lei especial.
24
Durante o período de vigência da Carta de 46, o Supremo Tribunal Federal con-
siderou incompatível com a Constituição disposição do Decreto Estadual nº 6.574,
de 1949, do Paraná, que distinguia entre brasileiros natos e naturalizados para efei-
tos de promoção de militar (RMS 6901-PR Relator Ministro Nelson Hungria)
704 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

e políticos, comprovado por documento autêntico (art. 19, 1ª). Essa


disposição legal está em harmonia com o espírito da Carta de 1891,
que somente destinava aos natos os cargos de Presidente e Vice-Pre-
sidente da República.
Durante a vigência da Constituição de 1967, alterada pela Emenda
Constitucional nº 1, de 1969, foram editados três Estatutos dos Mili-
tares, aprovados, respectivamente, pelo Decreto-Lei nº 1.029, de 1969,
pela Lei nº 5.774, de 1971 e pela Lei 6.880, de 1980. Característica
comum aos três documentos normativos é a existência de dispositivo
que considera privativas de brasileiros natos as carreiras de oficial da
Marinha, do Exército e da Aeronáutica.25 Há que se destacar que a
Lei nº 6.880, de 1980, foi recepcionada pela vigente Constituição da
República, sendo certo que o comando insculpido no § 2º, do art. 5º,
dessa Lei, não destoa do disposto no inciso VI, do § 3º, do art. 12, da
Carta Política de 1988.
No que se refere aos diplomatas, as leis e normas que regulavam
a carreira destes e dos cônsules, antes da EC nº 1, de 1969, nem
sempre consagraram restrições aos naturalizados. Nesse contexto,
o art. 5º, alínea “a”, do Regulamento do Corpo Consular Brasileiro,
aprovado pelo Decreto nº 14.058, de 1920, e o art. 6º, § 1º, alínea
“a”, do Regulamento do Corpo Diplomático, aprovado pelo Decreto
nº 14.057, de 1920, fazem referência a “cidadão brasileiro’, sem qual-
quer qualificativo.
Por outro lado, o § 1º do art. 1º do Decreto nº 8.325, de 1945, que
dispõe sobre o pessoal do Ministério das Relações Exteriores e dá
outras providências, estabelece que somente podem se inscrever, nos
concursos para a carreira de diplomata, brasileiros natos.
No mesmo diapasão, a alínea “a” do art. 2º do Decreto-Lei nº 9.032,
de 1946, considerava condição essencial para inscrição no concurso de
diplomata, ser brasileiro nato. Regra semelhante também é encontra-
da no parágrafo único do art. 1º do Decreto-Lei nº 9.202, de 1946.
Segundo este Decreto-Lei, ainda que a nomeação de embaixadores
recaísse sobre indivíduo estranho aos quadros do Itamaraty, este deve-
ria ser brasileiro nato e ter mais de trinta e cinco anos (art. 5º, § 1º, do
Decreto-Lei nº 9.202, de 1946).
Conforme destacado anteriormente, o inciso I do art. 31 da Constitui-
ção de 1946 vedava à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Mu-

25
Art. 9º, § 2º, do Decreto-Lei nº 1.029, de 1969; art. 6º, § 2º da Lei nº 5.774, de
1971; art. 5º, § 2º, da Lei nº 6.880, de 1980.
Distinções entre natos e naturalizados nas Constituições brasileiras 705

nicípios criar distinções entre brasileiros. Esse dispositivo, presumivel-


mente, norteou a redação do art. 32 da Lei nº 3.917, de 14 de julho de
1961, que se refere, genericamente, a brasileiros e não apenas aos natos.
A Lei nº 7.501, de 1986, com as alterações promovidas pela Lei nº
9.888, de 1999, promulgada na vigência da Constituição de 1967,
estatuía que o concurso para a carreira diplomática era restrito aos
brasileiros natos. No mesmo sentido, a vigente Lei nº 11.440, de
2006, que institui o regime dos Servidores do Serviço Exterior e dá
outras providências, em consonância com o texto constitucional de
1988, dispõe que “ao concurso público de provas ou de provas e títulos
para admissão na Carreira de Diplomata somente poderão concorrer
brasileiros natos.” (art. 36).

6. Considerações finais

As limitações constitucionais e legais aos naturalizados, concernentes à


investidura nas funções políticas, aos cargos públicos de elevado nível e
ao exercício de determinadas atividades econômicas, são indicadores rele-
vantes da política de determinado Estado em relação aos estrangeiros.
Desde a primeira Constituição de 1824, até a Lex Magna de 1988,
evidencia-se a preocupação dos legisladores em impedir o acesso ao
cargo político mais importante do País aos estrangeiros, inclusive os
naturalizados. Proibições nesse sentido são encontradas na Consti-
tuição Imperial, cujo art. 119 preceituava que nenhum estrangeiro
poderia suceder na Coroa do Império do Brasil, e em todas as Cons-
tituições republicanas, que sempre reservaram os cargos de Presidente
e de Vice-Presidente da República aos brasileiros natos.
Em comparação com a Constituição de 1967, observa-se que a Lei
Fundamental de 1988 é bem mais flexível e avançada no que se refere
à investidura em cargos, funções públicas e ao exercício de certas ati-
vidades privadas, pelos naturalizados. Da Carta de 1988 extrai-se, por
exemplo, que os naturalizados podem ser eleitos Deputados Federais,
Senadores e ocupar os cargos de Ministro de Estado, com exceção do
cargo de Ministro da Defesa. Em síntese, verifica-se sem dificuldade
que a Constituição vigente reduziu a nove o número de cargos e fun-
ções privativos dos natos, o que é pouco se comparado às dezesseis hi-
póteses previstas na Carta Política de 1967, alterada pela EC n° 1/69.
O disposto nos incisos I a VIII do § 3° do art. 12 da Constituição de
1988 leva a acreditar que a intenção do constituinte era resguardar aos
natos o cargo de Presidente da República e todos os seus eventuais
706 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

sucessores, como o Vice-Presidente, o Presidente da Câmara, o Presi-


dente do Senado Federal e o Ministro do Supremo Tribunal Federal
que, eventualmente, esteja na Presidência dessa Corte.26
Além desses casos, destacou-se que a Lei Maior de 1988 considerou
privativos dos brasileiros natos os cargos da carreira diplomática, de ofi-
cial da Forças Armadas e o de Ministro de Estado da Defesa.27 Nas
obras doutrinárias consultadas para a elaboração deste trabalho, os auto-
res alegaram razões de segurança para justificar a inclusão dos membros
da diplomacia e dos oficiais da Forças Armadas no rol dos cargos pri-
vativos de brasileiros natos. Às razões de segurança, pode-se adicionar o
componente da tradição, um pouco menos contundente em relação aos
diplomatas, muito forte entre os militares, como comprovam os inúme-
ros diplomas Infraconstitucionais citados no item 5, que restringiam o
ingresso nas Forças Armadas aos natos.
Conforme exposto no item 5, somente a partir de 1969 os cargos de
oficiais militares e diplomatas são considerados privativos de natos,
por disposição constitucional. Antes, apesar das proibições legais, os
textos constitucionais silenciavam sobre o assunto.

Referências

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raiva, 1986.
CANOTILHO, José Gomes de. Direito constitucional. Coimbra : [S.n.], 1989.
DARDEAU DE CARVALHO, A. A nacionalidade e a cidadania. [S.l.] : Freitas Bas-
tos, 1956.
DEL’OLMO, Florisbal de Souza. O Mercosul e a nacionalidade. [S.l.] : Fo-
rense, 2001.
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 2. ed. [S.l.] :
Renovar, [20-?].
MAGALHÃES, Roberto Barcelos. A Constituição Federal de 1967 comentada.
[S.l.] : J. Konfino Ed., 1967.
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. [S.l.] :
Renovar, 1997.
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. [São Paulo] : Ed.
Rev. dos Tribunais, 1970.

26
A Presidência do STF é rotativa. Em todo caso, o constituinte decidiu deferir aos
brasileiros natos os cargos da mais alta Corte do País.
27
O cargo de Ministro de Estado da Defesa foi incluído no rol do § 3º, do art. 12,
pela Emenda Constitucional nº 23, de 1999.
Distinções entre natos e naturalizados nas Constituições brasileiras 707

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. [São Paulo] : Atlas, 2004.


SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de direito internacional público [São
Paulo] : Atlas, 2002.

THIERRY, Hubert et al. Droit international public. [S.l.] : Ed. Montchrestien, 1979.

Anexo

Restrições impostas por lei e normas infraconstitucionais


aos brasileiros naturalizados28

1. Reger escolas rurais (art. 85 do Decreto-Lei 406 de 4/5/1938).


2. Exercer funções a bordo de aeronaves nacionais, salvo se tiver pres-
tado serviço nacional no Brasil (Decreto-Lei 9.867, de 13 de setem-
bro de 1946).
3. professor primário (Decreto 406 de 4/5/1938).
4. Lecionar Geografia do Brasil, Português ou História do Brasil, sen-
do todavia, permitido ao professor naturalizado brasileiro e nascido
em Portugal registrar-se para o ensino da língua nacional (Decreto-
Lei 8.777, de 22/1/1946).
5. Ser prático de barras, portos, rios, lagos e canais (Lei dos dois terços).
6. Contrair núpcias com funcionários dos serviços diplomáticos e
consulares brasileiros (Decreto-Lei 791, de 14/10/1938).
(Mais uma portaria do Ministério de Relações Exteriores, publica-
da no Diário Oficial de 12 de dezembro de 1945, passou a formular
a exigência de que também os cônjuges dos candidatos de carreira
sejam brasileiros natos).
7. Acionista de empresas de mineração. – Em caso de comunhão total de
bens, ser casado com brasileiro nato (Decreto-Lei 2.063, de 7/3/1940).
8. Ser agente ou representante das mesmas empresas que sejam autar-
quias da União ou esteja incorporadas ao patrimônio nacional, ou
assumirem a gerência de pessoa jurídica que exerça suas agências ou
representações (Decreto-Lei 7.027, de 7/11/1944 – art. 1).

28
Magalhães, Roberto Barcelos. A Constituição Federal de 1967 Comentada, pp.
356/359, José Konfino editor, 1967.
708 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

9. Ser presidente de Associações Profissionais reconhecidas por Sindi-


cato (art. 515 – Letra “C” - da Consolidação das Leis do Trabalho,
aprovado pelo Decreto-Lei 5.452, de 1/5/1943).
10. É preciso ser naturalizado há mais de 2 anos para ser admitido
ao concurso ou prova de habilitação para preenchimento de car-
gos efetivos do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Indus-
triários. (Art. 157 do regulamento aprovado pelo Decreto-Lei
1.918, de 27/8/1937, com as modificações do Decreto 20.442, de
22/1/1946).
11. Explorar a distribuição de venda de jornais, assegurado ao vendedor,
distribuidor ou capataz de serviços de distribuição. (Decreto-Lei
4.826, e 12/10/1942).
12. Espetáculos públicos em geral. (Lei nº 385, de 26/1/1937).
Art. 1 Os programas musicais que se executarem em quaisquer
salas de espetáculos, de concertos e teatros, conterão obrigatoria-
mente peças de autores brasileiros natos.

13. Concessionários dos serviços de loteria (Dec.-Lei 6.259, de


10/2/1944, art. 7).
14. Constituir mais de 25% (como qualquer estrangeiro) nos núcleos de
população existentes numa faixa de 150 quilômetros ao longo das
fronteiras. (Decreto-Lei 1.968, de 17/1/1940 – art. 2, letras I E).
15. Dirigir com autonomia empresas de indústria ou comércio ao lon-
go da faixa de 150 quilômetros da fronteira. (Dec-Lei 6.430, de
17/4/1944, art. 2 e s/parágrafo).
16. Na faixa de fronteira compreendida nos primeiros quilômetros, a
partir da linha da fronteira do território nacional, pleitear terras dis-
tribuídas pelo governo da União (art. 6 do Decreto-Lei nº 1.968, de
17/1/1940).
17. O livre exercício da profissão de químicos a brasileiros naturalizados
está subordinado a prévia prestação do Serviço Militar no Brasil
(Art. 325 da Consolidação das Leis do Trabalho).
18. Só aos brasileiros natos é permitida a revalidação dos diplomas de
químicos, expedidos por institutos estrangeiros de ensino superior
(art. 325, da Consolidação das Leis do Trabalho).
19. Presidir associações sindicais de grau superior (Federações e Confe-
derações). (Consolidação das Leis do Trabalho).
Distinções entre natos e naturalizados nas Constituições brasileiras 709

20. Ser inscrito como servidor do Ministério das Relações Exteriores


(Decreto-Lei 9.202 de 26/4/1946).
21. Diretor da E. F. Central do Brasil. (Dec.-Lei 3.306, de 24/5/1941.
– art. 5).
22. Presidente da Caixa de Aposentadoria e Pensões (art. 30 do De-
creto-Lei 3.939, de 16-9-1941, com as alterações do Decreto-Lei
6.930, de 5/10/1944).
23. Presidente do Banco do Crédito da Borracha S.A. (Decreto-Lei
4.451, de 9/7/1942).
24. Membros da Diretoria Executiva das Cooperativas (art. 96, do De-
creto-Lei).
25. Exercer funções de vogal da junta ou suplente (Sindicatos) – (Art.
661 da Consolidação das Leis do Trabalho).
26. Ser presidente ou membro do Conselho Nacional do Trabalho (art.
694 – Parágrafo 2 da Consolidação das Leis do Trabalho).
27. Ser membro do Conselho Nacional de Aeronáutica (Decreto 483,
de 8/6/1938 – art. 10).
28. Membro do Conselho Nacional do Petróleo (Dec.Lei 395, de
29/4/1938 – art. 4).
29. Membro do Conselho Nacional de Águas e Energias Elétricas
(Dec.-Lei 1.285, de 18/5/1939 – art. 2 – Dec. 1.699, de 14/10/1939
– art. 3).
30. Membro do Conselho Nacional de Minas e Metalurgia.
31. Membro do Conselho Rodoviário (Decreto-Lei 8.463, de 27 de de-
zembro de 1945 – art. 4).
32. Ministério do Tribunal de Contas (art. 3 do Decreto-Lei 426 de
12/5/1938).
33. Juízes dos Tribunais do Trabalho (art. 654 – Parágrafo 1 – Consoli-
dação das Leis do Trabalho).
34. É preciso ser naturalizado há mais de 5 anos para admissão do
pessoal ao serviço do IAPC (Decreto-Lei 2.122, de 9/4/1940 – art.
16 – Par. 1.
Orçamento público
711

A herança orçamentária
da Constituição
Roberto Bocaccio Piscitelli
Alexandre de Brito Nobre

1. Introdução

O processo orçamentário constitui um tema curioso. A rigor, abrange


à primeira vista todos os aspectos da vida pública de um país, estando
presente desde os mais insignificantes, como os suprimentos de fun-
dos ou cartões corporativos para servidores públicos, até a definição
das linhas mais importantes de atuação no programa de trabalho do
governo nacional. Seu alcance chega até mesmo a circunstâncias apa-
rentemente desconexas, como a definição do dia da posse do Presi-
dente da República e dos Governadores estaduais, que foi transferida
na Constituição de 88 para 1º de janeiro puramente em função de
preocupações orçamentárias. Correspondendo, dessa forma, ao pró-
prio sistema circulatório do aparelho estatal, que irriga toda a ativi-
dade governamental com os recursos materiais indispensáveis, era
de se esperar que a sistemática de elaboração, discussão, aprovação
e execução do orçamento fosse um dos assuntos mais atentamente
acompanhados, seja pela atuação cotidiana dos Parlamentares, seja
pelo controle que devem exercer as organizações da sociedade em ge-
ral. Infelizmente, não é esse o caso, pelo menos no Brasil. Aqui, esta
matéria nunca foi tratada com o destaque de que desfruta em outros
países de tradição democrática consolidada, onde as questões relacio-
nadas ao orçamento provocam debates que rivalizam em importância
com os temas nacionais fundamentais, chegando mesmo a provocar
longos litígios judiciais.
No decurso dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, esse
relativo desinteresse não deixou de se manifestar. A maioria dos deba-
tes destinados à definição dos novos princípios de gestão orçamentária
atraiu pouquíssima ou nenhuma atenção e tudo acabou sendo deci-
dido por um número extraordinariamente pequeno de Parlamentares.
Chama também a atenção a quase absoluta ausência de polarização
partidária. As eventuais convergências ou divergências ocorriam, o
712 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

mais das vezes, em torno de problemas localizados e suprapartidários


- como a redução de desigualdades regionais –, e não propriamente
ideológicos. Apesar de o texto oriundo da Subcomissão de Orçamento
e Fiscalização Financeira ter sido significativamente alterado na eta-
pa seguinte da tramitação, por intermédio do Substitutivo aprovado
pela Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças, daí para
frente os princípios consagrados naquela Comissão foram mantidos
tanto pela Comissão de Sistematização, como pelo Plenário, salvo al-
terações muito pontuais, que serão comentadas oportunamente.
Não se pode dizer, entretanto, que de um tal cenário de indiferen-
ça tenha resultado uma deficiência no ordenamento constitucional.
Ao contrário, a ausência de conflitos muito acirrados proporcionou,
pelo menos no âmbito do Capítulo II, do Título VI – “Das Finan-
ças Públicas” –, a elaboração de um texto bastante consistente, que
logrou até mesmo introduzir mecanismos absolutamente originais.
Se é verdade que alguns dos problemas existentes anteriormente, na
vigência da Constituição de 67, permanecem até os dias de hoje, e
que também ocorreram dificuldades novas, ainda mais graves, na ad-
ministração orçamentária, isso certamente não pode ser atribuído às
normas constitucionais escritas em 88. Boa parte da “culpa” da enorme
persistência dos erros mais comuns recai - isso sim - sobre o privilégio
exagerado que os sucessivos governos têm dado a determinados tipos
de gastos, particularmente aqueles relacionados com a administração
da dívida pública, em detrimento de todas as demais considerações
técnicas, políticas ou de gestão, o que restringe as margens de mano-
bra do planejamento, por melhor que seja a intenção de concebê-lo e
implementá-lo.
De todo modo, a recuperação da gênese dos princípios constitucionais
hoje vigentes pode constituir excelente ponto de partida para a com-
preensão de uma série de entraves hoje existentes, levando, por con-
seqüência, à identificação e – quem sabe – à percepção dos caminhos
mais adequados para resolvê-los.

2. A transformação constitucional

É possível dizer, sem temor de cometer exagero, que o processo or-


çamentário surgido a partir da promulgação da Constituição Cidadã
é inteiramente diferente do praticado até então. Do ponto de vista
político, até a realização da Constituinte, o orçamento continuava sen-
do a farsa legislativa (não há mérito algum na amenização do termo)
idealizada desde os governos militares, que, a fim de oferecer uma
A herança orçamentária da Constituição
713

aparência de convivência democrática, faziam suas propostas orça-


mentárias passarem pelo Congresso apenas para receberem o carimbo
de aprovação daquilo já há muito decidido. Nada além disso era pos-
sível fazer e, ainda que fosse, muitas das parcelas mais significativas
do gasto público nem sequer constavam do projeto que era dado ao
Legislativo conhecer. Depois da Constituição, a etapa de discussão
legislativa ganhou o direito de interferir radicalmente no orçamento,
seja na supressão de despesas consideradas indesejáveis, seja na inclu-
são de novos projetos e atividades ou simplesmente na transferência
de recursos de uma categoria de programação para outra.
Quanto aos aspectos técnicos, uma infinidade de mudanças foram
também introduzidas. Até então, as regras de elaboração e execução
orçamentárias baseavam-se em conceitos e documentos definidos há
mais de duas décadas, pela Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964.
Tendo sido discutida e aprimorada por muitos anos até a sua aprova-
ção final, essa norma legal foi responsável pela primeira utilização no
Brasil do conceito de orçamento-programa, em que as despesas são
classificadas de acordo com o critério funcional-programático, segun-
do o qual, mais importante do que os órgãos governamentais a que se
destinam os recursos e o objeto do dispêndio, devem ser as finalidades
últimas do gasto. Por esse e vários outros motivos, a Lei nº 4.320, de
1964, sempre foi considerada pelos especialistas da área uma norma
bastante eficaz, que não apenas se manteve atual durante muito tem-
po, como também, a rigor, ainda se encontra em plena vigência, já que
boa parte de seus dispositivos não está em conflito com as normas
constitucionais vigentes, sendo, portanto, recepcionada no novo or-
denamento como Lei Complementar. Apesar disso, era evidente que
as complexidades da gestão pública no final do século estavam a exi-
gir profunda reformulação técnica, que foi efetivamente levada a cabo
pela Constituição de 88.
Uma nota interessante que precisa ser feita é que o modelo de or-
çamento arquitetado pela Constituição pode-se dizer surpreendente-
mente inédito. Não foi copiado de experiências estrangeiras diversas,
nem recuperado de outros momentos históricos do País. É verdade
de foram feitas tentativas, em aspectos localizados, de repetir regras já
aplicadas em outras circunstâncias, mas todas acabaram por ser rejei-
tadas antes da definição do texto final. Algumas das novidades intro-
duzidas, como é o caso da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO),
por exemplo, chegaram mesmo a se tornar modelos de legislação
avançada, exportados para países em desenvolvimento por meio das
instituições financeiras multilaterais.
714 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A análise das inúmeras regras novas que passaram a vigorar a par-


tir de 1988 deve começar, naturalmente, pelo próprio Orçamento da
União, denominado na Constituição de “Lei Orçamentária Anual”
(LOA). Ressalta-se, antes de tudo, a nova abrangência do documento.
Uma das grandes omissões dos orçamentos até então elaborados dizia
respeito aos gastos referentes à área da Seguridade Social. Nos anos
imediatamente anteriores, as despesas com previdência até chegavam
a constar do programa de trabalho do governo federal, mas apenas
pelos seus valores globais, o que já poderia ser considerado um pro-
gresso, uma vez que, antes disso, nem mesmo os totais eram incluídos.
O absurdo de tal ausência fica mais eloqüente quando se lembra que,
no ano em que a Constituição foi promulgada, as receitas da previ-
dência igualaram pela primeira vez as tributárias, depois de excluídas
as transferências a estados e municípios. Mesmo assim, não havia pre-
visão de sua inclusão no substitutivo aprovado pela Subcomissão de
Orçamento, coisa que só foi feita no âmbito da Comissão do Sistema
Tributário, Orçamento e Finanças.
Quanto aos investimentos realizados pelo conjunto de empresas esta-
tais, sua menção era, quando muito, indireta. Somente nos casos em
que fossem financiados por recursos ordinários do Tesouro Nacional,
os valores correspondentes às despesas de capital apareciam no or-
çamento do ministério ou órgão da administração direta responsá-
vel pela transferência às estatais. Na mudança para as novas regras,
correu-se o risco de passar de um extremo a outro, quando o bloco
parlamentar conhecido na Constituinte como “Centrão” propôs que
todos os recursos das estatais, aí incluídos os de custeio, integrassem
o orçamento e que fossem consideradas não apenas as empresas em
que a União detivesse a maioria do capital, mas todas aquelas em que
houvesse qualquer percentual de participação acionária pública. Con-
siderando a inviabilidade de uma medida que envolvesse até mesmo
empresas que, em decorrência de benefícios fiscais, retivessem uma
participação acionária simbólica da União de 1%, por exemplo, a me-
dida acabou por ser rejeitada.
Não há dúvida, porém, de que o maior avanço em termos de inclusão
no orçamento de todas as despesas públicas ocorreu no âmbito da
administração da dívida. Até 1988, o Banco Central poderia financiar
a dívida pública federal por meio de operações de compras de títulos
do Tesouro, que eram tão formidáveis quanto obscuras; mas, a partir
da proibição que o texto constitucional impôs a essas operações, res-
salvados os casos relacionados com a operação da política monetária,
os encargos financeiros da União passaram a ser evidenciados clara-
A herança orçamentária da Constituição
715

mente na LOA, permitindo, então, o acompanhamento legislativo e


social daquele que é, sem a menor sombra de dúvida, o maior e mais
significativo ônus do governo federal. Ainda sobre o Banco Central
– e também em decorrência da necessidade de submeter à apreciação
do Poder Legislativo todos os gastos públicos –, foram transferidos
para o Tesouro Nacional os empréstimos a empresas privadas feitos
em operações de fomento ao desenvolvimento e proibida a suplemen-
tação de recursos de empresas estatais durante o exercício financeiro,
sem autorização legislativa.
Em suma, os encargos da dívida pública foram incorporados ao orça-
mento fiscal a partir de 1981, mas as operações de crédito, somente
a partir de 1988. O chamado “orçamento monetário” constituía uma
espécie de programação financeira do governo federal, através de suas
instituições financeiras. Tais operações, à margem da aprovação do
Congresso Nacional, passavam pela esfera de decisão – às vezes até in-
formal ou ad-referendum – do Conselho Monetário Nacional e com-
preendiam aspectos tão díspares tais como comercialização de pro-
dutos – trigo, açúcar, álcool –, política de preços mínimos, formação
de estoques reguladores, subsídios creditícios a setores – agricultura,
energia, exportação. A “conta-movimento” do Banco do Brasil, por
exemplo, era utilizada continuamente, para lançamento de operações
ativas e passivas praticadas pelo Banco por conta do governo e do
próprio Banco Central, praticamente sem controle específico.
O último dos itens mais importantes que passaram a integrar a LOA
é o chamado “orçamento de gastos tributários”, um documento cuja
função é demonstrar, de forma regionalizada, o efeito das isenções,
anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tri-
butária e creditícia sobre as despesas e receitas públicas (art. 165, §
6º). Dado que ele apenas “acompanha” a LOA, sua natureza não é,
evidentemente, impositiva, mas apenas demonstrativa. É uma manei-
ra bem-vinda de levar mais transparência ao processo de concessão
de privilégios fiscais que, de outra forma, poderia obedecer a critérios
pouco objetivos.
Gastos tributários – bem entendido – são as chamadas renúncias de
receitas, os valores de que o Poder Público abre mão em favor de po-
líticas regionais e setoriais; em vez de realizar ele mesmo a aplicação,
confere ao interessado a prerrogativa de fazê-lo em benefício individual.
O conjunto dos contribuintes banca aquilo que se considera prioritário
e inadiável, sob a perspectiva de que os benefícios futuros reverterão em
favor da própria coletividade.
716 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Mais tarde, com a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal, definiu-


se renúncia de receita como compreendendo anistia, remissão, sub-
sídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral,
alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique
redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios
que correspondam a tratamento diferenciado.
Entre os pouquíssimos temas que proporcionaram alguma polêmica,
talvez o mais importante tenha sido a questão da regionalização do
orçamento. As bancadas das regiões pobres reuniram-se em torno da
posição de que o texto constitucional não deveria limitar-se a definir
a redução de desigualdades regionais como um dos princípios nor-
teadores do orçamento, mas adotar medidas concretas que levassem
à consecução desse objetivo. Na opinião desse grupo de constituin-
tes, as despesas deveriam ser incluídas em razão direta da população
e inversa da renda per capita. O princípio da regionalização deveria
também abranger todos os demais documentos de planejamento de
curto, médio e longo prazos. Mas, apesar da grande pressão exercida,
o relator da Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças,
Deputado José Serra, preferiu colocar o assunto apenas como uma
orientação programática, que acabou consubstanciada no § 7º, do art.
165, cujo cumprimento pode estar sujeito a um largo espectro de ava-
liação subjetiva e de aplicação problemática.
Uma das mais bem sucedidas alterações do texto constitucional de 88,
a LDO nasceu de uma idéia extraordinariamente oportuna. No de-
curso das discussões a respeito da posição defendida por alguns cons-
tituintes, de que o orçamento deveria ser bianual, surgiu a proposta de
criar uma espécie de pré-orçamento, em que as metas e prioridades
macroeconômicas fossem discutidas antes de se entrar nos pormeno-
res de cada ação governamental. Argumentava-se que os investimen-
tos costumavam ser incluídos em rubricas genéricas, do tipo “obras
várias”, que deixavam ao Poder Executivo ampla oportunidade para
a prática de clientelismo e desvios. Em países de orçamento bianu-
al, por outro lado, uma versão ajustada do programa de trabalho é
apresentada a cada ano para vigência nos dois exercícios seguintes e o
Legislativo tem o ano inteiro para discutir os detalhes. Haveria, assim,
um momento de discussão dos investimentos em termos genéricos
e outro em que eles seriam discriminados caso a caso na peça orça-
mentária. O novo mecanismo tinha, portanto, o mérito de reunir as
preocupações daqueles que defendiam o orçamento bianual, evitando,
ao mesmo tempo, as dificuldades que poderiam advir de uma vigência
A herança orçamentária da Constituição
717

muito longa do orçamento em um cenário de alta inflação, como era o


caso do final da década de 80.
Essa construção institucional acabou criando uma figura jurídica ím-
par: a lei ordinária que subordina normas legais posteriores. Como
se sabe, pelo princípio da revogação tácita, toda lei que dispuser de
forma contrária a outra de igual hierarquia que lhe seja prévia revoga
a norma anterior. Não obstante, no processo orçamentário há duas leis
ordinárias (teoricamente, de igual hierarquia) aprovadas em momen-
tos distintos, mas com efeitos diversos do normal: primeiro a LDO,
depois a LOA; mas a segunda deve submeter-se à primeira, porque a
Constituição, que é superior às duas, assim determinou. Não fosse isso
suficiente, a LDO acabou por suprir uma série de lacunas reservadas,
na verdade, à legislação complementar. A lei complementar destinada
a estabelecer as normas gerais de direito financeiro, prevista pelo art.
165, § 9º, da Constituição, nunca foi aprovada, e há certas normas que
não foram tratadas pela Lei nº 4.320, de 1964, nem pela Lei de Res-
ponsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 2000), como é o
caso, por exemplo, das regras para a estruturação e execução dos orça-
mentos. Assim, não restou outra saída a não ser incluir dispositivos na
LDO, que, rigorosamente falando, encontram-se deslocados.
Ao contrário da LDO, que se transformou em instrumento de plane-
jamento e controle ativo e sempre presente no processo orçamentário,
o Plano Plurianual (PPA) continua até hoje sem cumprir todos os
objetivos para que foi criado. Antes da Constituição, o documento
correspondente ao PPA chamava-se “Orçamento Plurianual de Inves-
timentos”, ou OPI, um plano que, apesar de ser trienal, era elaborado a
cada ano, excluindo-se o primeiro ano do OPI anterior e acrescentan-
do-se outro, no final do período. O problema é que os investimentos
eram incluídos apenas em termos dos recursos financeiros necessários
e a aceleração inflacionária rapidamente tornava seus valores irreais. O
PPA deveria resolver esse problema com duas medidas importantes:
primeiro, as despesas de capital deveriam ser listadas de acordo com os
objetivos e metas físicas almejados, que, aliás, deveriam ter seus efei-
tos regionalizados; segundo, seriam também previstas todas as outras
despesas necessárias à continuidade dos programas, cuidado perfeita-
mente justificável, já que nenhuma obra poderá ser colocada em ope-
ração se os decorrentes gastos de custeio não tiverem sido previstos
com o investimento. Apesar de tudo, a cultura brasileira, infelizmente,
não favorece a efetiva implementação de um planejamento de longo
prazo. As boas intenções relacionadas aos planos são geralmente atro-
peladas por mudanças de última hora, a toda hora. A prova disso é que
718 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

o PPA, cujo projeto deve ser apresentado ao Congresso Nacional no


primeiro ano de cada mandato presidencial, apesar de vigência esta-
belecida para os quatro anos subseqüentes, nunca atrai tanta atenção
do público em geral ou dos próprios parlamentares quanto o projeto
de orçamento, com vigência limitada ao exercício financeiro, um futu-
ro mais imediato. Tramitam, inclusive, simultaneamente na Comissão
Mista de Orçamentos, mas é o PLOA que desperta muito mais inte-
resse nos meios políticos e técnicos.
A propósito, as atribuições e o funcionamento da Comissão Mista de
Orçamentos também foram objeto de análise e modificação pela As-
sembléia Nacional Constituinte. Nesse caso, por muito pouco não fo-
ram repetidos os erros da ditadura militar, que não permitia alterações
legislativas na proposta do governo. Os substitutivos da Subcomissão
de Orçamento e da Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e
Finanças – e até da Comissão de Sistematização – estabeleciam, todos,
uma combinação de severas restrições à prerrogativa dos parlamentares
de emendar a proposta do Executivo, com regras que davam excessivo
poder às decisões da Comissão Mista, cujo parecer seria terminativo,
exceto quando questionado por um terço dos membros das duas Casas
do Congresso. Sob o argumento de que, a permanecerem tais regras,
os congressistas não integrantes da Comissão Mista seriam relegados
a um segundo plano institucional, a medida foi felizmente rejeitada,
embora quase no “apagar das luzes”, no segundo turno da votação em
Plenário. Caíram, portanto, as restrições às emendas que modificas-
sem a natureza econômica da despesa ou que tratassem de despesas
de custeio, permanecendo, porém, as proibições relativas às alterações
de dotações de pessoal e encargos sociais, do serviço da dívida e das
transferências constitucionais a estados e municípios.
Um último aspecto merece menção: o problema da indexação do or-
çamento. Diante do cenário inflacionário que o país vivia, era grande a
tentação de incluir normas destinadas a ajustar monetariamente a lei
orçamentária no curso de sua execução. A principal proposta estabe-
lecia que, se o excesso de arrecadação decorrente da inflação fosse dis-
tribuído de forma proporcional por todas as dotações orçamentárias, a
suplementação daí resultante não dependeria de autorização legislati-
va adicional para a sua execução. A Comissão do Sistema Tributário,
Orçamento e Finanças compreendeu, no entanto, que um dispositivo
dessa natureza seria específico demais para constar como uma regra
constitucional, que, além disso, daria menos transparência à execução
do orçamento, e optou por excluí-lo.
A herança orçamentária da Constituição
719

3. Na prática, pouco mudou

Como se pode ver, inúmeras mudanças foram introduzidas pelo tex-


to constitucional de 88 no processo orçamentário, mas a conclusão
inevitável de quem analisa como o orçamento tem sido elaborado,
discutido, aprovado e executado é que, não obstante a verdadeira re-
volução normativa ocorrida no âmbito constitucional, a prática tem
demonstrado que os erros do passado continuam a ser cometidos e o
orçamento continua a ter um papel de pouca importância no cenário
político nacional.
O festejado vínculo entre o planejamento, orçamento e execução da
despesa pública, por exemplo, nunca ocorreu de fato como deveria.
No Brasil, prevalece ainda o princípio segundo o qual, se as regras
em vigor oferecem qualquer tipo de obstáculo à política que o gover-
no federal pretende colocar em prática, são as regras que devem ser
modificadas. É assim com o PPA, que, uma vez elaborado, somente é
seguido até o momento em que as autoridades econômicas decidem
que é hora de mudar de rumos, quando, então, o Plano é alterado para
refletir as novas orientações. É assim também, por exemplo, com as
vinculações de receitas. Na Constituinte, adotou-se o entendimento
contrário ao comprometimento de parcelas fixas da arrecadação tri-
butária com determinadas finalidades, diante da convicção de que isso
traria uma rigidez excessiva ao orçamento, dada a necessidade de pro-
mover ajustes e rever prioridades sempre que as circunstâncias venham
a se modificar. Até mesmo o percentual reservado à manutenção e
desenvolvimento do ensino somente foi incluído porque já constava
da Constituição anterior e muitos constituintes consideraram que sua
exclusão seria um retrocesso. Apesar disso, desde 1988, o dispositivo
constitucional que proíbe vinculações já foi alterado três vezes, para
prever novas hipóteses, e não é impossível que venha a sofrer outras
modificações no futuro, pois inúmeras e recorrentes são as propostas
nesse sentido.
Não quer isso dizer, evidentemente, que as vinculações de receitas se-
jam um mal em si mesmas. Pelo contrário, há muitos casos em que,
se o percentual de aplicação dos recursos não fosse definido como
obrigatório na legislação, as ações públicas correspondentes nunca se-
riam colocadas em prática pelos governantes, principalmente no âm-
bito municipal. Aliás, mesmo com as vinculações não se conseguem
evitar os contingenciamentos, as retenções de recursos, as vinculações
superpostas (DRU), o entesouramento, as aplicações de disponibili-
dades em títulos públicos e os desvios puros e simples (com outras
720 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

finalidades). Nesse sentido, convém até mesmo saudar a decisão da


Constituinte de não remeter as vinculações às definições da LDO,
como era o desejo do Deputado José Serra, relator da matéria. Tivesse
prevalecido tal posicionamento, as vinculações certamente cairiam no
que se costuma chamar vulgarmente de “letra morta”. O problema
para o qual cabe chamar a atenção aqui é que a própria Constituição
estabelece um princípio (no caso, a não-vinculação) que, em decor-
rência das sucessivas alterações, acaba sendo pouco respeitado, tantas
são as exceções.
A cultura política que atribui pouca relevância ao conteúdo da lei
orçamentária é tão enraizada que a própria Constituição estabelece
regras um tanto inconsistentes. Dos quinze incisos e parágrafos do
art. 167, que definem o rol de proibições na gestão orçamentária, oito
poderiam ser objeto lei. Tendo em vista que o próprio orçamento é
uma lei, a maioria das vedações constitucionais pode, em princípio, ser
simplesmente ignorada na prática. É verdade que as regras vigentes
precisam ter certa flexibilidade, para ajustar-se o cenário previsto às
mudanças eventualmente ocorridas na conjuntura econômica e polí-
tica, mas, quando se leva isso a extremos, joga-se por terra qualquer
tentativa de tornar o planejamento uma ferramenta eficaz, consistente
de gestão.
Quanto às prerrogativas do Poder Legislativo de interferir no orça-
mento, as mudanças introduzidas, embora significativas, acabaram
não atacando diretamente o mais sério problema de gestão pública do
governo federal: a administração da dívida. Ao proibir a apresentação
de emendas que incidam sobre o serviço da dívida, a Constituinte
impediu o Congresso Nacional de opinar sobre a despesa que mais
compromete o Orçamento da União. Muitos argumentaram, na oca-
sião, que esses gastos referem-se a contratos, não estando portanto su-
jeitos a discussão, mas é bom lembrar, a propósito, que todas as outras
despesas públicas relacionadas com contratos, como os investimentos
e alguns tipos de transferências, podem ser objeto de emendas modifi-
cativas ou até mesmo supressivas. O problema parece ocorrer somente
quando os contratos envolvem instituições financeiras. Como se disse
aqui anteriormente, a simples evidenciação das despesas com juros e
amortização da dívida no orçamento já constitui significativo progres-
so em relação ao que ocorria no ordenamento constitucional anterior,
mas a proibição de o Poder Legislativo efetivamente interferir na ad-
ministração da dívida pública acabou por deixar os avanços pelo meio
do caminho.
A herança orçamentária da Constituição
721

Em nenhum outro aspecto, o cenário idealizado pela Constituição de


88 ficou tão distante da realidade como no caso da fiscalização orça-
mentária e financeira. Prevaleceu na Constituinte a tese no sentido de
que, se as normas de fiscalização fossem remetidas à legislação infra-
constitucional, estariam sujeitas à manipulação daqueles a quem ela se
destina controlar, ou seja, o Poder Executivo. Assim, foram incluídos
todos os pormenores do mecanismo de controle externo, e o Tribunal
de Contas da União viu seus poderes e atribuições serem significati-
vamente fortalecidos. Os contratos lesivos ao patrimônio público, por
exemplo, que antes somente poderiam ser cancelados pelo Congresso
Nacional, passaram a seguir nova sistemática. Primeiramente, o caso
deve ser denunciado ao Poder Legislativo, mas, decorridos noventa
dias sem uma decisão a respeito, o TCU pode sustar o ato de forma
independente. As multas e os débitos em geral aplicados pelo órgão
passaram a ter o valor de título executivo, beneficiando-se, portanto, de
um rito de cobrança judicial mais célere. Para evitar o aparelhamento
do TCU, dois terços de seus ministros passaram a ser escolhidos pelo
Congresso, e o terço restante, nomeado pelo Presidente da República,
deve ser escolhido entre auditores e membros do Ministério Público.
Apesar dessas e de uma série de outras mudanças, as dificuldades do
sistema de controle externo continuam as mesmas de antes. Os casos
mais graves de corrupção ou desvio de recursos públicos, que resulta-
ram na destituição de autoridades públicas, foram identificados pela
Polícia Federal ou pelos órgãos de imprensa, restando ao TCU uma
atuação a posteriori, geralmente de importância secundária.
Nem mesmo a questão das empresas supranacionais, assunto que de-
veria estar pacificado na vigência da Constituição Cidadã, foi definiti-
vamente resolvido. Antes de 1988, empresas como a Binacional Itaipu
ou o extinto Banco Brasil-Iraque recusavam-se a submeter-se ao con-
trole do TCU, sob a alegação de que o Brasil não detinha seu controle
acionário, mas o inciso V do art. 71 da nova Constituição não deixou
margem a dúvidas, de que essas entidades estavam de fato sob a juris-
dição do controle externo. Apesar disso, a Itaipu recusa-se até hoje a
cumprir as normas de licitação estabelecidas pela Lei nº 8.666, de 21
de junho de 1993, continuando a considerar que sua natureza especial
faz com que as referidas regras legais não lhe sejam aplicáveis.
Toda a discussão ocorrida na Constituinte em torno dos prazos para
aprovação dos orçamentos parece ter sido em vão. De início, os parla-
mentares dividiam-se entre a regra da Constituição de 46, que previa
a repetição do orçamento do ano anterior, no caso de rejeição da pro-
posta em curso, e a Constituição de 67, em cuja vigência o orçamento
722 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

era automaticamente aprovado, caso a proposta não fosse analisada


pelo Congresso até o final do exercício financeiro. Enquanto isso, na
Comissão da Organização dos Poderes e Sistemas de Governo sur-
gia uma idéia nova: a não-interrupção da sessão legislativa enquanto
não fosse aprovado o projeto de lei orçamentária. O relatório final da
Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças encampou
a idéia, mas apenas a adotou para a tramitação da LDO, prevendo,
no caso da LOA, uma regra de inspiração francesa, que consistia na
execução temporária do orçamento proposto, por meio de decreto, até
que a lei fosse aprovada. Na etapa de Plenário, no entanto, essa execu-
ção temporária foi rejeitada, mas não se chegou a um consenso em re-
lação à norma que deveria substituí-la, e a hipótese de não-aprovação
da LOA acabou ficando sem qualquer regulação constitucional. Che-
gou-se a defender que tal ausência levaria a um grande empenho dos
Poderes Legislativo e Executivo nas negociações e no entendimento,
mas, infelizmente, não foi isso o que aconteceu. Desde a Constituição,
somente para o exercício financeiro de 1997 o orçamento foi aprovado
em dezembro do ano anterior. Em 1996, 2000 e 2006, a lei orçamen-
tária entrou em vigor apenas em maio do ano seguinte e, em 1994,
chegou-se ao absurdo de aprovar a proposta do Executivo no dia 9 de
novembro do ano a que se referia o orçamento, ou seja, aprovou-se a
lei somente para efeito de balanço, logo em seguida.
O desprestígio do processo orçamentário fica patente, entre outros fa-
tos, pela falta da lei complementar que deveria dispor sobre as normas
gerais de Direito Financeiro. Passados vinte anos desde a promulgação
da Constituição, até hoje não houve interesse na regulação da matéria,
e os projetos apresentados acabaram arquivados sem a apreciação de
uma única Comissão Técnica. O problema se torna ainda mais grave,
porque muitos assuntos foram remetidos à legislação infraconstitu-
cional apenas porque não houve acordo na Constituinte e, embora a
Lei de Responsabilidade Fiscal tenha resolvido – ou introduzido de
forma até impertinente – algumas questões mais ligadas ao controle
da gestão financeira, outras ainda permanecem indefinidas.
No inciso III do art. 167 da Constituição, foi consagrado um princípio
que costuma ser chamado de “regra de ouro” da gestão orçamentária,
que consiste na vedação à realização de operações de crédito que ex-
cedam o montante das despesas de capital. A idéia central deste dis-
positivo é impor um controle ao crescimento da dívida pública, uma
vez que novos empréstimos somente poderão ser contratados para
pagar o principal da dívida previamente existente ou realizar novos
investimentos/inversões financeiras. Os juros e demais encargos, que
A herança orçamentária da Constituição
723

constituem despesas correntes, terão que ser financiados pelas receitas


correntes. Durante a maior parte da Assembléia Constituinte, a posi-
ção majoritária era um pouco mais liberal em relação à dívida, tanto
que os substitutivos aprovados permitiam que o endividamento fosse
usado como fonte de recursos para rolar o principal e os demais en-
cargos, como os juros. Na fase de Plenário, entretanto, prevaleceu um
entendimento bem mais restritivo, retirando os encargos da dívida do
total permitido para a realização de operações de crédito.
Trata-se de uma atitude extraordinariamente ousada de combate ao
déficit público, que, entretanto, permanece até hoje, na sua essência,
ignorada. Se a “regra de ouro” fosse seguida à risca, como determina
a Constituição, novos títulos não poderiam ser lançados no mercado
para pagar os encargos da dívida existente, que teriam, então, de ser
honrados por meio de superávit financeiro primário. Diante da polí-
tica de juros altos, que tem constituído o eixo central de praticamente
todos os governos há já bastante tempo, se isso fosse feito, o orça-
mento fiscal ficaria seriamente comprometido mesmo para as ações
regulares de governo. Um breve exame da evolução histórica da dívida
pública mostra o que vem de fato ocorrendo. Em 1999, quando come-
çou a ser apurada pelo Banco Central, a dívida líquida harmonizada
interna do setor público era de 344 bilhões de reais, que saltaram para
1 trilhão e 188 bilhões em abril de 2008. Apesar da redução signifi-
cativa de muitos gastos ordinários do orçamento, como é o caso das
despesas de pessoal, cuja participação relativa nas receitas correntes
líquidas caíram de 55,14% em 1996, para 25,52% em 2008, os juros
da dívida permanecem pressionando indefinidamente o crescimento
da dívida, num processo que se realimenta e auto-alimenta, autônomo,
porque não resulta mais de déficits orçamentários convencionais, e
que é conseqüência, em grande medida, da política monetária, e não
da política fiscal, caracterizada pelas elevadíssimas taxas de juros e, nos
anos mais recentes, pela situação cambial, dada a enxurrada de dólares
no mercado.
O último dos aspectos cuja determinação constitucional parece não
ter sido respeitada diz respeito aos fundos contábeis de natureza es-
pecial. Como esses fundos podem servir de veículo para a consecução
de uma série de desvios e fraudes, o art. 36 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias determinou que “os fundos existentes na
data da promulgação da Constituição, excetuados os resultantes de
isenções fiscais que passem a integrar patrimônio privado e os que
interessem à defesa nacional, extinguir-se-ão, se não forem ratifi-
cados pelo Congresso Nacional no prazo de dois anos”. Diante da
724 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

impossibilidade de confirmação individual de cada fundo em opera-


ção, acabou-se optando por uma solução bem diferente daquela dese-
jada pelos constituintes: determinou-se, na lei orçamentária de 1990,
que os fundos incluídos naquela lei para receber recursos da União
considerar-se-iam automaticamente ratificados em bloco, nos termos
do art. 36 do ADCT. Desde então o número de fundos especiais – que
são um outro mecanismo de vinculação – só tem aumentado.

4. Conclusão

É evidente que os princípios constitucionais estabelecidos em 1988


promoveram amplas modificações em todos os aspectos legais, téc-
nicos e políticos do processo de planejamento, mas também parece
razoavelmente claro que boa parte das medidas acabaram não atin-
gindo os objetivos a que se destinavam. É possível até mesmo dizer
que, se as normas constitucionais tivessem sido observadas em sua
integralidade, o país não teria assistido a tantos casos de corrupção
que infelizmente têm ocorrido.
Apesar disso, o efeito da promulgação da Constituição Cidadã sobre
os orçamentos, em todos os níveis de governo, é indubitavelmente po-
sitivo. Se, por um lado, a prática demonstrou que alguns mecanismos
institucionais não apresentaram os resultados desejados, muitos ou-
tros aspectos resultaram em mudanças importantes. O Banco Central,
por exemplo, foi confinado a um papel exclusivo de administração da
política monetária, suprimindo-se, pelo menos em parte, a confusão
institucional anterior entre Banco Central e Tesouro Nacional, numa
mistura de atribuições que, além de dar pouquíssima transparência a
um processo vital para o país, contribuía para uma gestão frouxa, tanto
em relação à dívida, como em relação à própria política monetária. O
recurso à emissão de moeda para suprir déficits financeiros constituía
uma tentação que, em diversos momentos, foi irresistível, apesar dos
efeitos deletérios na economia que essa prática certamente acarreta.
Não fosse isso suficiente, a determinação do art. 163, § 3º, da Consti-
tuição, de que as disponibilidades de caixa da União fossem deposita-
das exclusivamente no Banco Central, representou significativo avan-
ço na gestão pública nacional, e mesmo em relação a outros países.
Uma medida que somente se tornou possível por causa da entrada em
operação, um ano antes da promulgação da Constituição, do Sistema
Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI),
o “caixa único do Tesouro” proporcionou a centralização de recursos
e uma racionalização no seu uso, necessárias e indispensáveis para o
A herança orçamentária da Constituição
725

controle efetivo da gestão financeira, ao tempo em que evitava o des-


perdício decorrente da dispersão das disponibilidades e da inflação
elevada. O novo mecanismo de gestão mostrou-se eficiente a ponto
de ser adotado por outros países, inclusive alguns do grupo dos mais
desenvolvidos.
A recolocação virtual do Poder Legislativo no centro das decisões so-
bre planejamento e orçamento teve também um efeito extremamente
positivo: contribuiu para preparar melhor os parlamentares no desem-
penho de suas funções e para reformular as estruturas administrativas
das duas Casas Legislativas, a fim de colocá-las em condições de exa-
minar em pé de igualdade com as áreas técnicas do Executivo todas as
peças e informações oriundas daquele Poder. Um Congresso Nacional
plenamente apto à avaliação técnica das propostas em matéria orça-
mentária é um avanço indiscutível para a democracia brasileira.
Em suma, ainda há um longo caminho a percorrer até que as autori-
dades brasileiras possam admitir que “o orçamento não é uma peça de
ficção”, mas é preciso reconhecer que boa parte do percurso foi abre-
viada pelas normas constitucionais em vigor desde outubro de 1988.

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Partidos políticos
727

Autonomia de organização
partidária: antes e depois da
Constituição Federal de 1988
Márcio Nuno Rabat

Introdução

A Constituição Federal de 1988, como qualquer texto legal, deve ser


situada historicamente. Tal cuidado é particularmente relevante quan-
do se aborda a consagração constitucional da autonomia de organiza-
ção partidária. O objetivo deste artigo é lembrar, em breves pincela-
das, como distintas concepções do que seja o vínculo entre sociedade
e Estado, via partidos políticos, se articularam e se contrapuseram
– antes, durante e depois da Assembléia Nacional Constituinte. A
recapitulação é útil, primeiro, para a correta compreensão das opções
feitas pelos constituintes; depois, para criar parâmetros que permitam
acompanhar o que vem acontecendo a essas opções.
Tanto no período de consolidação como no de distensão do regime
de 1964, fatores conjunturais – ligados a disputas políticas imediatas
– tiveram papel de relevo nas alterações sofridas pela regulamentação
legal do funcionamento dos partidos políticos – e esse papel deve ser
esclarecido. No entanto, sob a conjuntura, encontravam-se presentes
concepções distintas a respeito de qual deva ser, estruturalmente, a
relação entre sociedade, partidos e Estado. É nesse segundo nível que
a análise se faz mais relevante.
Duas opções estruturais contrapostas merecem ser destacadas: a ên-
fase na intervenção estatal para a definição da forma como os seg-
mentos sociais se organizam em partidos vs. a ênfase na autonomia
dos agentes sociais para definir suas formas de auto-organização
político-partidária. A Constituição Federal de 1988 toma decidida
posição a favor da segunda opção. Trata-se, talvez, em nossa história,
do embate social e político em que mais claramente a tutela estatal
sobre as organizações da sociedade civil foi derrotada no plano jurí-
dico-constitucional.
728 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O regime de 1964

De 1964 a 1979, pelo menos, predominou, no Brasil, a repressão física


e legal à livre participação política de amplos setores da sociedade.
Ao contrário de muitos regimes ditatoriais, no entanto, o regime de
1964 manteve a engrenagem partidária e eleitoral em funcionamento,
embora altamente controlada. Manifestações evidentes do esforço de
controle autoritário sobre os efeitos das instituições representativas
foram a exclusão de certos cargos (como a presidência da República
e o governo dos estados) do processo de preenchimento por eleições
populares diretas e a expulsão da esfera política (ou mesmo do país) de
personalidades eleitoralmente relevantes, mas opostas ao projeto que
se desejava implantar.
A repressão sobre os partidos políticos decorria de objetivos políti-
cos pontuais (como o de limitar a ambição eventual de alguma figura
pública) e da convicção estrutural da necessidade de que o sistema
partidário seja mantido sob permanente controle. Em muitos casos,
as duas preocupações se conjugaram, como ocorreu com a principal
intervenção autoritária sobre a esfera partidária, qual seja, a iniciativa
de extinguir as agremiações previamente existentes (Ato Institucional
nº 2, de 27 de outubro de 1965) e sua substituição por “organizações
que terão (...) atribuições de partidos políticos” (Ato Complementar
nº 4, de 20 de novembro de 1965)1.
A decisão de intervir só foi tomada depois que as eleições realizadas
em 1965 mostraram que as cassações de mandatos, a expulsão de per-
sonalidades da esfera política e o próprio clima de repressão reinante
não eram suficientes para impedir a articulação eleitoral eficiente de
parte dos setores sociais derrotados em 1964. Para evitar surpresas
desagradáveis, a extinção dos partidos foi conjugada com restrições
legais que impedissem a formação de mais de dois partidos em subs-
tituição às agremiações extintas.
O depoimento de Juracy Magalhães, talvez o principal articulador da
nova legislação partidária, ao Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio
Vargas, em 1977, esclarece os motivos da dissolução do sistema ante-
rior e da implantação do bipartidarismo:
A entente PTB-PSD era indestrutível, pois colocava ao lado de
um partido conservador um partido progressista, socialista mes-
mo, tornando invencível essa esdrúxula aliança. A revolução, para

1
As citações da legislação eleitoral e partidária foram retiradas de Jobim e Porto.
Autonomia de organização partidária: antes e depois da Constituição Federal de 1988
729

que pudesse ter uma possibilidade de vitória eleitoral, precisava


partir de uma realidade partidária inteiramente nova (p. 195).

Insinuavam-se, assim, sob as dificuldades pontuais do regime, me-


didas de longo alcance destinadas a conter o potencial de imprevi-
sibilidade existente em um sistema eleitoral e partidário livre. Essa
linha de preocupações sempre encontrou apoio, entre nós, nos mais
variados argumentos, das sofisticadas análises de Oliveira Vianna
sobre a incompatibilidade do predomínio do poder rural e familiar
com as formas políticas do liberalismo avançado ao mais rasteiro
preconceito sobre a falta de civilidade do povo brasileiro, sempre
a precisar de tutelas de todos os tipos, inclusive institucionais; das
remissões bem informadas aos infortúnios da República de Weimar
à experiência concreta de sucessivas derrotas eleitorais por parte dos
setores sociais “esclarecidos”.
É essa resistência estrutural à liberdade de participação política que
possivelmente explica a compulsão de construir – sobre um bipartida-
rismo já mais do que suficientemente autoritário – uma série de regras
restritivas da autonomia de organização partidária. Um tão grande
acúmulo de restrições não deve ter tido por única motivação as dispu-
tas pontuais de poder.
O Ato Complementar nº 4, de 1965, reafirmou a cláusula do art. 47 da
Lei nº 4.740, de 15 de julho de 1965 (Lei Orgânica dos Partidos Políti-
cos), que determinava o cancelamento do registro de partido que não ele-
gesse doze deputados federais, distribuídos por sete estados, pelo menos,
e que não obtivesse votação correspondente a, no mínimo, três por cento
do eleitorado inscrito no país. A Constituição Federal de 24 de janeiro
de 1967, pouco depois, incluiu entre os princípios a serem observados na
regulamentação dos partidos a “exigência de dez por cento do eleitorado
que haja votado na última eleição geral para a Câmara dos Deputados,
distribuídos em dois terços dos estados, com o mínimo de sete por cento
em cada um deles” e de “dez por cento de deputados, em, pelo menos, um
terço dos estados, e dez por cento de senadores”. Tudo isso sem contar a
irônica, naquele contexto, proibição das coligações eleitorais.
A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, manteve-se
na mesma linha, incluindo, no art. 152 da Constituição, normas seme-
lhantes às acima referidas. A elas se agregava, em parágrafo único, a
previsão de perda do mandato do parlamentar que, “por atitudes ou pelo
voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de
direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda foi eleito”.
730 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Em significativa tomada de posição, a já citada Lei Orgânica dos


Partidos Políticos (Lei nº 4.740, de 1965) – assim como sua subs-
tituta, a Lei nº 5.682, de 21 de julho de 1971 – caracterizava os
partidos políticos como pessoas jurídicas de direito público. Tal-
vez com fundamento nesse caráter público, a lei estabelecia, para a
fundação e o registro de partidos políticos, enormes dificuldades.
Em seu art. 7º, ela estipulava que o partido político se constituiria,
“originariamente de, pelo menos, três por cento do eleitorado que
votou na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distri-
buídos em onze ou mais estados, com o mínimo de dois por cento
em cada um”. Os arts. 11 e seguintes descreviam a forma de coleta
de assinaturas que comprovassem o número de adesões requerido
para a fundação do partido e o rígido mecanismo de controle da
correção do processo de coleta. O art. 17 proibia expressamente o
“registro provisório de partido”.
A inadequação entre uma legislação partidária tão restritiva e as ne-
cessidades de representação política do país foi percebida por muitos
observadores, em diversos momentos, e teve conseqüências práticas.
Assim, o próprio regime houve por bem institucionalizar (por exem-
plo, na Lei nº 5.453, de 14 de junho de 1968) o sistema de sublegen-
das em eleições majoritárias e proporcionais, pois havendo apenas dois
partidos para abarcar as distintas correntes sociais e políticas que se
queriam fazer representar, foi necessário permitir que, sob a legenda
de cada um deles, se apresentassem diferentes chapas de candidatos
nas chamadas sublegendas.
Na mesma direção, Osvaldo Cordeiro de Farias, outro importante ar-
ticulador da reforma partidária de 1965, também em depoimento ao
CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, revelou, em outubro de 1976,
sua discordância com o sistema ao fim implantado: “Quando se aban-
dona um sistema multipartidário, é muito difícil enquadrar todo o sis-
tema em apenas duas legendas” (p. 620). “Ora, homens como Ulisses
Guimarães e Tancredo Neves poderiam estar no MDB? Pessedistas,
conciliadores, aderiram ao movimento oposicionista pela falta de um
terceiro partido, pois suas velhas rivalidades com a UDN não permiti-
riam seu ingresso na Arena” (p. 621).
Autonomia de organização partidária: antes e depois da Constituição Federal de 1988
731

A abertura

O processo de abertura política do regime de 1964 foi marcado por


uma série de contradições – e a regulamentação da autonomia parti-
dária não foi exceção à regra. Mais uma vez, sob a capa de disputas e
decisões conjunturais, se contrapunham distintas concepções a respei-
to do grau de autonomia com que os segmentos sociais se deveriam
organizar em partidos políticos.
Do ponto de vista do regime em dissolução, havia pelo menos um
problema conjuntural importante a ser enfrentado. O bipartidarismo
forçado se mostrara, desde relativamente cedo, um instrumento de
manifestação de repúdio ao governo (bastava, aos opositores, votar no
partido de oposição). A tentativa de ultrapassar essa situação, voltando
ao pluripartidarismo, colidia com o projeto de manter a abertura sob
controle. Essa ambigüidade favorecia a pregação dos que, de fora do
regime, impulsionados pela própria experiência da luta contra a tutela
estatal, defendiam a ampla autonomia de organização popular, tam-
bém no que toca à construção de seus partidos políticos.
A Lei nº 6.767, de 20 de dezembro de 1979, deu o passo decisivo
em direção ao pluripartidarismo. Ela extinguiu “os partidos criados
como organizações, com base no Ato Complementar nº 4, de 20 de
novembro de 1965” (ou seja, a Arena e o MDB), e modificou a Lei
nº 5.682, de 21 de julho de 1971 (Lei Orgânica dos Partidos Polí-
ticos), estabelecendo o quadro legal dentro do qual seriam criados e
funcionariam os novos partidos políticos. Tratava-se, no entanto, de
um enquadramento legal ainda bastante restritivo, seja em termos de
regras de fidelidade partidária, seja em termos de regras de acesso dos
partidos às casas legislativas (cláusula de barreira).
Sob o primeiro governo civil em vinte anos, o processo de liberalização
da esfera eleitoral e partidária ganhou fôlego. A necessidade simbólica
de distinguir o regime emergente perante o regime a ser ultrapassado
reforçou a posição dos que defendiam a autonomia popular na cons-
trução de suas alternativas partidárias.
A Emenda Constitucional nº 25, de 15 de maio de 1985, modificou
profundamente a ordem vigente no que toca à liberdade e à amplitude
da participação eleitoral e da organização partidária. No que diz res-
peito às eleições, a emenda restabeleceu a eleição popular direta para
a presidência da República e – no avanço legislativo mais importante,
nessa área, desde a década de 1930 – reconheceu o direito de sufrá-
gio dos analfabetos. No que diz respeito às agremiações partidárias,
732 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

a Emenda não apenas reafirmou a liberdade de criação de partidos


políticos como garantiu o direito de reorganização dos “partidos com
registros indeferidos, cancelados ou cassados”, abrindo espaço para o
ingresso oficial dos partidos comunistas nas disputas eleitorais, após
quase quarenta anos de exclusão (exclusão que alcançou, inclusive, o
primeiro pleito pluripartidário, em 1982).
No entanto, dando continuidade às preocupações quanto ao potencial
disruptivo da ampla liberdade de organização partidária e participação
política, subjacentes ao regime que findava, a Emenda Constitucional
nº 25, de 1985, na redação estabelecida para os §§ 1º e 2º do art. 152
da Constituição ainda vigente, mantinha a barreira a que os partidos
que não alcançassem determinado resultado nas eleições para a Câ-
mara dos Deputados tivessem representação nessa Casa e no Senado
Federal, embora reduzindo o desempenho mínimo exigido. Registre-
se que a cláusula permitia a preservação do mandato dos candidatos
eleitos por partidos que não a satisfizessem, desde que optassem, no
prazo de sessenta dias, por um dos partidos remanescentes.
A verdade, porém, é que o surgimento de um novo sistema pluripar-
tidário dependia da flexibilidade da legislação, dificultando a ação dos
que eventualmente preferissem um controle estrito, ao longo de todo
o processo de distensão política, da liberdade de organização parti-
dária. Assim, a própria Emenda nº 25, em seu art. 5º, determinava a
não aplicação da cláusula de barreira, nela prevista, às eleições de 15
de novembro de 1986. E a Lei nº 7.332, de 1º de julho de 1985, que
regulamentou as eleições municipais de 1985, o alistamento eleitoral e
o voto dos analfabetos, facilitou a participação eleitoral dos “partidos
políticos em formação” (art. 13) e permitiu a coligação de partidos nas
eleições de prefeitos e de vereadores.
A Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, que
determinou a reunião dos membros da Câmara dos Deputados e do
Senado Federal, unicameralmente, em Assembléia Nacional Consti-
tuinte, a partir do dia 1º de fevereiro de 1987, deu continuidade ao
processo de abertura, ao conceder anistia a “todos os servidores pú-
blicos civis da administração direta e indireta e militares, punidos por
atos de exceção, institucionais ou complementares” (art. 4º, caput) e
“aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e repre-
sentantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servi-
dores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados
por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas
legais” (art. 4º, § 1º). A conjugação, em um mesmo diploma, desses
dispositivos com a convocação da Assembléia Constituinte já indica
Autonomia de organização partidária: antes e depois da Constituição Federal de 1988
733

como o projeto de participação política ampla se articulava com a for-


mação de uma nova ordem jurídica.

A Carta de 1988

A Constituição Federal de 1988 marca o auge da tendência a se for-


talecer a autonomia de cidadãs e cidadãos para organizarem, da forma
que melhor lhes convier, os partidos políticos destinados a intermediar
a participação popular na esfera de decisões públicas.
O elemento mais importante da opção constitucional pela ampla li-
berdade de organização partidária encontra-se, provavelmente, no § 2º,
do art. 17, da Constituição, segundo o qual “os partidos políticos, após
adquirirem personalidade jurídica, na forma da lei civil, registrarão seus
estatutos no Tribunal Superior Eleitoral”. Esse dispositivo, ao localizar
na esfera do direito privado (“na forma da lei civil”), o momento em que
o partido político surge como pessoa jurídica, se contrapõe ao direito
partidário anterior, inclusive ao disposto na Emenda Constitucional nº
25, de 1985, que ainda fazia coincidir a aquisição da personalidade jurí-
dica com o registro dos estatutos no Tribunal Superior Eleitoral.
É certo que a instituição partido político, tal como surgiu e se afirmou
na prática sociopolítica contemporânea, guarda inevitável ambigüida-
de quanto a sua pertença à esfera privada ou à esfera pública. Afinal,
as forças sociais presentes na sociedade (âmbito privado) se organi-
zam em partidos para influenciar na composição dos órgãos decisórios
do Estado e participar das decisões coletivas (âmbito público). Daí a
possibilidade objetiva de que a legislação e a doutrina oscilem entre
considerar as agremiações partidárias órgãos auxiliares do Estado ou
instrumentos privados de organização dos grupos sociais.
Tal oscilação não diminui (antes aumenta) a relevância da decisão
constitucional sobre que lado da balança privilegiar. E a Constituição
Federal de 1988, em função do projeto de autonomização da socieda-
de civil frente à tutela estatal, claramente privilegiou o lado privado.
Assim, aos grupos sociais é assegurada a liberdade para a criação e a
extinção de partidos políticos e a esses é assegurada a autonomia para
definir sua estrutura interna, organização e funcionamento. Como
corolário dessas determinações, e ao contrário do que prevaleceu ao
longo do regime de 1964, a disciplina e a fidelidade partidárias pas-
sam a constituir assuntos internos aos partidos, disciplinados em seus
estatutos; não se cogita de cláusula de barreira ou de punição estatal
por infidelidade partidária.
734 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Nada disso impede que exista, no texto constitucional, a inequívoca op-


ção por um regime representativo fundado em sistema partidário capaz
de intermediar satisfatoriamente as relações entre sociedade e Estado.
Talvez a determinação mais nítida nessa direção seja aquela que con-
diciona a elegibilidade à filiação partidária (art. 14, § 3º, V), impondo
um caminho (logo, limites) para a participação eleitoral de cidadãs e
cidadãos: todos têm direito de candidatar-se a cargos dirigentes do Es-
tado, desde que se organizem em partidos. Em alguns momentos, a
Constituição chega a indicar limites à própria liberdade de organização
partidária, como quando estabelece o caráter nacional dos partidos polí-
ticos (art. 17, I), impedindo (ou, ao menos, dificultando) que interesses e
valores exclusivamente locais se articulem para as disputas eleitorais.
Ora, ao combinar a imposição da via partidária para que cidadãs e
cidadãos participem na esfera político-eleitoral com a ampla autono-
mia de organização social no processo de formação e condução dos
partidos políticos, a Constituição não está caindo em qualquer insa-
nável contradição. A compatibilidade entre as duas escolhas é visível.
O espaço social e político para o surgimento e a consolidação de agre-
miações partidárias representativas da complexidade social brasileira é
não apenas defendido como cuidadosamente cultivado no texto cons-
titucional; no entanto, o processo em si de construção dos partidos e
do sistema partidário cabe única e exclusivamente aos segmentos so-
ciais engajados nesse esforço. A confiança na capacidade da população
brasileira para cumprir essa tarefa constitui trave-mestra da concepção
de democracia constitucionalmente consagrada.

Depois da Constituição

A decisão constitucional de privilegiar a capacidade de organização


dos diversos segmentos sociais como elemento decisivo da construção
de um sistema partidário sólido e eficiente não eliminou a força da
posição oposta, que preza a predeterminação legal ou judicial do ro-
teiro para o funcionamento do sistema. Além de encontrar apoio na já
citada ambigüidade estrutural da situação dos partidos políticos den-
tro da ordem jurídico-constitucional contemporânea, a posição der-
rotada na Assembléia Constituinte beneficiou-se da dificuldade para
distinguir o necessário processo de superação de um sistema caduco
– com tudo que isso implica de “desestruturação criativa” – de uma su-
posta tendência inerente aos partidos políticos e ao sistema partidário
brasileiros para a desordem.
Autonomia de organização partidária: antes e depois da Constituição Federal de 1988
735

Ressurgiu, então, com toda a força, a disputa entre a ênfase na autono-


mia dos segmentos sociais para organizarem seus partidos políticos e
a ênfase na restrição dessa autonomia em benefício de um modelo que
controle a irresponsabilidade supostamente contida na esfera política.
O diploma legal em que mais nitidamente se expressa a disputa entre
projetos contrapostos – e a rearticulação da corrente derrotada na As-
sembléia Constituinte – é a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995
(Lei dos Partidos Políticos)2. Nela, de um lado, se estabelece o quadro
legal dentro do qual pode florescer a auto-regulamentação do funciona-
mento das agremiações partidárias; de outro lado, contudo, são adotadas
regras que claramente dificultam a organização autônoma de segmentos
sociais para atuar partidariamente na esfera política. Dentro dessa se-
gunda vertente, duas determinações legais são de particular significado.
A primeira diz respeito à criação e ao registro de partidos políticos.
Dado que a Constituição Federal de 1988 retirara definitivamente da
área do direito público o processo de formalização de novas agremia-
ções partidárias, a Lei dos Partidos não podia fazer outra coisa senão
disciplinar o registro civil das agremiações em moldes tão livres quan-
to aqueles que se aplicam a qualquer associação civil. No entanto, algo
ironicamente, os partidos assim criados foram definidos pela incapa-
cidade de participar dos pleitos eleitorais. São partidos políticos, mas
partidos que não podem apresentar candidatos a cargos eletivos. Para
tanto, eles precisam registrar seus estatutos no Tribunal Superior Elei-
toral – e, para efetuar o registro, devem realizar procedimento similar
ao que a Lei nº 4.740, de 1965, exigia para que eles existissem: coleta
de um grande número de assinaturas de apoio.
A segunda determinação legal particularmente interessante como in-
dício da mudança do vento em direção à heteronomia das organiza-
ções partidárias encontra-se na “cláusula de barreira” estabelecida no
art. 13 da Lei dos Partidos. Como a Constituição Federal, rompendo
com a legislação que vigorava desde a implantação do regime de 1964,
eliminara qualquer referência a uma cláusula desse tipo, dificilmente
se entenderia que uma determinação infraconstitucional, menos de
dez anos depois da Assembléia Constituinte, impedisse o acesso às ca-
sas legislativas de candidatos (eleitos) cujos partidos não alcançassem
determinado desempenho eleitoral. A alternativa adotada foi a de não

2
Incompreensivelmente, a relevância dessa Lei é pouco acentuada nas dis-
cussões sobre a reforma da legislação eleitoral e partidária. No entanto,
sozinha, ela vale por toda uma reforma política. E qualifica a atuação do
Congresso Nacional nessa seara.
736 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

impedir a posse dos candidatos eleitos nessas condições, impedindo,


no entanto, que os partidos sob cujas legendas eles se elegeram tives-
sem funcionamento parlamentar.
No plano judicial, também houve, ao longo desses vinte anos, decisões
que se podem colocar na conta do reforço da autonomia partidária e
decisões que caminharam no sentido contrário. Entre as primeiras,
merece destaque a posição unânime, adotada pelo Supremo Tribunal
Federal, em 2006, no sentido da inconstitucionalidade da citada “cláu-
sula de barreira” do art. 13 da Lei dos Partidos Políticos. Apesar das
naturais divergências, inclusive entre os próprios Ministros que com-
põem a Suprema Corte, a respeito do significado preciso da decisão,
não há duvida de que a unanimidade alcançada indica adesão à causa,
que a Constituição de 1988 representa, da livre e ampla participação
popular na esfera política.
Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal
Federal tomaram importante posição, em direção contrária à que
prevalecera na Assembléia Constituinte, ao estabelecerem a possi-
bilidade de perda de mandato eletivo (ainda que eventualmente por
renúncia implícita) para o mandatário que se desfilie do partido sob
cuja legenda se elegeu. Aparentemente favorável à consolidação do
sistema partidário, a decisão, na verdade, subtrai às cidadãs e aos cida-
dãos a responsabilidade de construir partidos políticos consistentes e,
ao mesmo tempo, concede a muitos dos partidos políticos existentes
uma presunção de consistência que não se verifica na prática (como a
própria decisão comprova). Em resumo, é uma decisão que esconde a
realidade – e, assim, dificulta que ela seja enfrentada pelos verdadeiros
responsáveis por superar suas inconsistências.

Conclusão

A Constituição Federal de 1988, por força de uma série de condi-


cionantes históricas, consagrou juridicamente a confiança na capaci-
dade de auto-organização do povo brasileiro. Por uma compreensível
sensação de urgência, por consciente ou inconsciente adesão à idéia de
uma sociedade tutelada pelo Estado, por temor da organização popu-
lar autônoma, pela ânsia de dar respostas rápidas a nossas perplexida-
des, pelas naturais dificuldades enfrentadas na transição de um regime
político para outro, mais democrático, por essas e por tantas outras
razões, procuramos, muitas vezes, criar atalhos que “facilitem” alcançar
a democracia desejada. Talvez não devêssemos.
Autonomia de organização partidária: antes e depois da Constituição Federal de 1988
737

Referências

FARIAS, Osvaldo Cordeiro de. Meio século de combate (depoimento a Aspásia


Camargo e Walder de Góes). Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1981.
JOBIM, Nelson e PORTO, Walter Costa (orgs). Legislação eleitoral no Brasil: do
século XVI a nossos dias. Brasília : Senado Federal, 1996. v. III.
MAGALHÃES, Juracy. Minhas memórias provisórias (depoimento a Alzira Al-
ves de Abreu, Eduardo Raposo Vasconcelos e Paulo César Farah). Rio de Janeiro
: Civilização Brasileira, 1982.
Poder Judiciário
739

A judicialização da
política no contexto da
Constituição de 1988
Amandino Teixeira Nunes Junior

Introdução

O objetivo do presente artigo é analisar a judicialização da política no


Brasil e os contornos que esse fenômeno vem adquirindo no cenário
político-institucional de nosso país, a partir da promulgação da Cons-
tituição de 1988. A análise foi desenvolvida com base em discussões
sobre o tema presentes no Direito e na Ciência Política e em decisões
do Supremo Tribunal Federal, ao julgar processos desencadeados por
meio de ações diretas de inconstitucionalidade, mandados de seguran-
ça e habeas corpus.
A pesquisa foi realizada a partir do seguinte diagnóstico: (I) a rede-
mocratização do Brasil nos anos 80, que redundou na reconquista
das liberdades democráticas e da cidadania e na conscientização das
pessoas e dos grupos sociais sobre seus próprios direitos; (II) a pro-
mulgação, em 1988, de uma Constituição que ampliou o catálogo
dos direitos e garantias fundamentais para introduzir novos direitos
e novas ações, visando à tutela de interesses; (III) a ascensão ins-
titucional do Poder Judiciário na proteção dos direitos individuais
e coletivos e no controle dos demais poderes constituídos, o que o
levou a exercer papel importante como instância decisória na resolu-
ção de questões nunca antes suscitadas; (IV ) a expansão da jurisdi-
ção constitucional, que envolve a interpretação e aplicação do texto
constitucional e tem como seus principais instrumentos o controle
de constitucionalidade das leis e a tutela dos direitos fundamentais,
dando ao Supremo Tribunal Federal uma posição de proeminência
nesse contexto.1

1
Esse fato pode ser constatado a partir dos julgados do STF que determinaram, por
exemplo, os limites de atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) e
do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados.
740 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Ariosto Teixeira (2001, p. 33), ao analisar o tema, afirma que


[...] a judicialização da política corresponde a fenômeno de
comportamento institucional registrado pela pesquisa em Ci-
ência Política em diferentes sociedades contemporâneas, cuja
característica central é a expansão do papel do Judiciário no sis-
tema de poder.

Nosso escopo, portanto, é compreender as causas e as conseqüências do


papel político assumido pelo Poder Judiciário a partir da promulgação
da Constituição de 1988, em especial pelo Supremo Tribunal Federal.
Nesse sentido, o artigo apresenta-se estruturado em três partes, con-
forme abaixo descrito.
A primeira parte discute o conceito e os traços característicos da judi-
cialização da política com base em literatura própria, a separação dos
poderes nesse contexto e o controle de constitucionalidade das leis
como expressão do poder político do Judiciário no Estado moderno.
A segunda parte aborda a judicialização da política no Brasil, exa-
minando o tema no contexto da Constituição de 1988 e a posição
assumida pelo Supremo Tribunal Federal nesse cenário. A análise da
atuação política da Corte Suprema é precedida do exame do sistema
brasileiro de controle de constitucionalidade e dos instrumentos cons-
titucionais da judicialização da política no Brasil.
A terceira parte analisa o tema no direito comparado, com destaque
para os exemplos de judicialização da política nos Estados Unidos e
na Europa.
Finalmente, a conclusão do artigo apresenta as contribuições do autor
ao tema ora examinado.

1. A judicialização da política

1.1. Conceito de judicialização da política

A expressão “judicialização da política” entrou para a literatura con-


temporânea a partir do esforço analítico apresentado de forma coleti-
va na obra The global expansion of Judicial Power, de 1995, de Neal Tate
e Torbjörn Vallinder (1995).
Nesse livro os autores traçam as características de um fenômeno glo-
bal de recrudescimento da interação entre Direito e Política. Para che-
gar a esse entendimento, Neal Tate e Torbjörn Vallinder examinam
A judicialização da política no contexto da Constituição de 1988 741

os contextos jurídicos e políticos dos Estados Unidos, Reino Unido,


Austrália, Canadá, Itália, França, Alemanha, Suécia, Holanda, Malta,
Israel, Estados pós-comunistas (integrantes da ex-URSS), Filipinas
e Namíbia, partindo da idéia de que a expansão global do Poder Ju-
diciário e as técnicas de controle de constitucionalidade decorreriam
da maior visibilidade dos Estados Unidos como modelo democrático.
Em face da repercussão da obra em escala mundial, o debate sobre a
judicialização da política foi trazido ao Brasil. O art. intitulado O Su-
premo Tribunal Federal e a judicialização da política, de 1997, de Mar-
cus Faro de Castro (1997, p. 147-156), foi o marco inicial desse debate
em nosso país, seguido, mais tarde, em 1999, pelo livro A judicialização
da política e das relações sociais, de Luiz Werneck Vianna, Maria Alice
Resende de Carvalho, Manuel Palacios Cunha Melo e Marcelo Bau-
mann Borges (VIANNA et al., 1999).
Marcus Faro de Castro (1997, p. 148) analisa, em seu art., o impacto
político do comportamento do Supremo Tribunal Federal, entenden-
do que a judicialização da política promove uma interação entre os
poderes, o que não é, necessariamente, prejudicial à democracia; ao
revés, esta constitui requisito da expansão do Poder Judiciário. Nas
palavras do autor:
[...] Nesse sentido, a transformação da jurisdição constitucional
em parte integrante do processo de formulação de políticas pú-
blicas deve ser vista como um desdobramento das democracias
contemporâneas. A judicialização da política ocorre porque os
tribunais são chamados a se pronunciar onde o funcionamento
do Legislativo e do Executivo se mostra falho, insuficiente ou
insatisfatório. Sob tais condições, ocorre uma certa aproxima-
ção entre Direito e Política e, em vários casos, torna-se mais
difícil distinguir entre um “direito” e um “interesse público”,
sendo possível se caracterizar o desenvolvimento de uma “po-
lítica de direitos.

Já Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Resende de Carvalho, Manuel


Palacios Cunha Melo e Marcelo Baumann Borges basearam seu estu-
do sobre a judicialização da política brasileira no modelo do controle
abstrato de constitucionalidade pela via da ação direta adotado pela
Constituição de 1988. Segundo esse estudo, a crescente institucio-
nalização do Direito na vida brasileira, invadindo espaços que antes
lhe eram inacessíveis, como algumas esferas do setor privado, levou à
judicialização das relações sociais.
Para os autores, o Direito do Trabalho teve uma importância fun-
damental para judicializar as relações sociais no Brasil, ao introduzir
742 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

no campo jurídico um argumento de justiça inexistente na concepção


ortodoxa do contratualismo liberal, procurando compensar a parte
economicamente mais fraca nas relações de trabalho e retirando “[...]
o tema da justiça social da arena livre da sociedade civil, dos partidos e
do Parlamento, compreendendo-o como um feito a ser regulado pelo
Poder Judiciário, de cuja intervenção dependeria uma convivência har-
moniosa dos interesses divergentes” (VIANNA et al., 1999, p. 17).
Assim, o Direito do Trabalho promoveu um viés igualitário na ordem
liberal, e a dissociação entre as esferas do público e do privado cedeu
lugar à publicização da esfera privada. A mediação das relações sociais
redundou, ao fixar os direitos dos grupos organizados corporativa-
mente, na jurisdicização das relações sociais.
A discussão sobre a judicialização da política tem atraído o interesse
de juristas e de cientistas políticos, embora, no caso brasileiro, a litera-
tura especializada dedicada ao tema ainda mereça maior atenção.
Relativamente ao conceito de judicialização da justiça, podemos to-
mar por empréstimo o de Torbjörn Vallinder:2
[…] Thus the judicialization of politics should normally mean
either: (1) the expansion of the province of the courts or the
judges at the expense of the politicians and/or the administra-
tors, that is, the transfer of decision-making rights from the leg-
islature, the cabinet, or the civil service to the courts or, at least,
(2) the spread of judicial-making methods outside the judicial
province proper. In summing up we might say that judicializa-
tion essencially involves turning something into a form of judi-
cial process. (TATE; VALLINDER, 1995, p. 13).

Por esse conceito, há dois aspectos a considerar em face da judiciali-


zação da política. O primeiro refere-se à transferência da tomada de
decisão da arena administrativa (Poder Executivo) ou política (Poder
Legislativo) para a arena judicial (Poder Judiciário). O segundo diz
respeito à propagação do procedimento judicial para outros procedi-
mentos: o procedimento administrativo e o procedimento legislativo.
Judicializar a política, segundo Torbjörn Vallinder, implica expandir a
área de atuação do Poder Judiciário e valer-se dos métodos e procedi-

2
“Assim, a judicialização da política deve normalmente significar: (1) a expansão da
jurisdição dos tribunais ou dos juizes a expensas dos políticos e/ou dos administra-
dores, isto é, a transferência de direitos de tomada de decisão da legislatura, do gabi-
nete ou da administração pública para os tribunais, ou, pelo menos, (2) a propagação
dos métodos de decisão judiciais fora da jurisdição propriamente dita. Em resumo,
podemos dizer que a judicialização envolve essencialmente transformar algo em
processo judicial” (TATE; VALLINDER, 1995, p. 13, tradução nossa).
A judicialização da política no contexto da Constituição de 1988 743

mentos próprios do processo judicial para a resolução de conflitos nas


arenas políticas distintas daquelas típicas dos tribunais em dois contex-
tos, como salientam Débora Maciel e Andrei Koerner (2002, p. 114):
[...] O primeiro resultaria da ampliação das áreas de atuação dos
tribunais pela via do poder de revisão judicial de ações legislati-
vas e executivas, baseada na constitucionalização de direitos e dos
mecanismos de checks and balances. O segundo contexto, mais
difuso, seria constituído pela introdução ou expansão de staff
judicial ou de procedimentos judiciais no Executivo (como nos
casos de tribunais e/ou juízes administrativos) e no Legislativo
(como é o caso das Comissões Parlamentares de Inquérito).

Os principais componentes que estão presentes no conceito de judi-


cialização da política podem ser assim expostos: (i) a presença de um
novo ativismo judicial, com o surgimento de novas questões aptas a
serem dirimidas pelos juízes e tribunais; (ii) o interesse dos políticos
e administradores em adotar: (a) métodos e procedimentos típicos do
processo judicial; (b) parâmetros jurisprudenciais – ditados pelo Judi-
ciário – nas suas deliberações.
Em resumo, a judicialização da política pode ser contextualizada tanto
na expansão da área de atuação dos órgãos do Poder Judiciário, com a
transferência de decisões da arena política para a arena judicial, quanto
na propagação dos métodos típicos do processo judicial para fora dos
tribunais, como a designação de relatores, votos, recursos, audiências
públicas e até mesmo o socorro a precedentes.
Acresce o fato de que as técnicas de controle de constitucionalidade de-
senvolvidas pelos tribunais nas democracias contemporâneas têm am-
pliado seu domínio sobre os resultados dos processos legislativos e das
políticas públicas, fazendo com que o Legislativo e o Executivo, nas suas
ações e deliberações, se preocupem em não violar a Constituição.
Daí por que esse fenômeno pode ser também contextualizado em
processos políticos nos quais a jurisprudência constitucional se torna
parâmetro do processo decisório, visto que a possibilidade de decisões
judiciais, com base em preceitos constitucionais, direciona ou pode,
até mesmo, alterar os resultados legislativos.
Vê-se, pois, que a judicialização da política ocorre nos Estados consti-
tucionais tripartites e significa a expansão do papel do Poder Judiciá-
rio no sistema político.
744 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

1.2. A separação dos poderes no contexto da


judicialização da política

O desenho das instituições políticas, presente nas Constituições de


derivação liberal, obedece, de modo geral, ao estabelecido por Mon-
tesquieu na sua obra clássica sobre a separação dos poderes (MON-
TESQUIEU, 1985).
Assim é que, no Brasil, estrutura-se o poder político de acordo com
essa teoria. Isso é tão verdadeiro na Constituição de 1824 – embora
esta acrescente à fórmula de Montesquieu um quarto poder, o Mode-
rador – como na Constituição de 1988, em vigor, cujo art. 2º preceitua:
“[...] São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Todavia, essa teoria, na sua concepção clássica, parece que não mais se
sustenta nos dias atuais. Na verdade, afigura-se cediço na doutrina con-
temporânea que a rígida separação dos poderes, segundo o preceituado
por Montesquieu (1985, p. 152), na qual os juízes não são mais do que
“[...] a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não
podem moderar nem sua força nem seu rigor”, deve ser revista.
Com efeito, a doutrina contemporânea não mais concebe a função
do juiz como atividade mecânica, sem criatividade. De igual modo,
não mais admite a compreensão de que a lei tem apenas um sentido,
que há somente um significado verdadeiro do texto legal e que a lei
é completa, inexistindo lacunas. Assim, é errôneo conceber hoje que
a função do juiz se restringe simplesmente a verificar a ocorrência do
fato e enquadrá-lo na hipótese legal – a chamada subsunção judicial,
herdada do positivismo jurídico, de origem kelseniana.3
A aplicação do direito pelo juiz, dada a sua complexidade, oferece di-
versas possibilidades interpretativas sobre um mesmo caso concreto,
conduzindo a elementos criativos. Nos dias atuais, o juiz, com freqü-
ência, depara-se com textos legais abertos, que contêm mais de um
significado possível, o que lhe atribui certa margem de liberdade para
decidir entre as várias interpretações cabíveis.
A verdade é que o Poder Judiciário assumiu novo papel em face das
transformações decorrentes do Estado do Bem-Estar (Welfare State),
passando a exercer funções que antes não lhe eram próprias, como a

3
O positivismo de Hans Kelsen, que se tornou, nas primeiras décadas do século XX,
a filosofia dos juristas, reduzia o Direito ao conjunto de normas em vigor e, como sis-
tema completo e perfeito, não precisava de qualquer justificação, além de sua própria
existência. Essa teoria não mais se sustenta, nos dias atuais. Cf. Kelsen (2000).
A judicialização da política no contexto da Constituição de 1988 745

de “intromissão” em assuntos de outros poderes, assim como a ocupar


espaços que antes pertenciam às relações privadas ou políticas entre os
diversos grupos sociais, substituindo a família, a Igreja e os fóruns de
discussão política. Daí a maior influência política do Poder Judiciário
nas sociedades contemporâneas.
Em conhecida obra, Mauro Cappelletti (1993) estuda a questão do
direito jurisprudencial (ou judiciário) e, mais especificamente, o papel
criativo dos juízes, no sentido de que estes criam o direito.
Afirma o autor que esse fenômeno, de alcance tendencialmente uni-
versal, não se limita ao campo do direito jurisprudencial, “[...] pois
de modo mais geral reflete a expansão do Estado em todos os seus
ramos, seja Legislativo, Executivo ou Judiciário” (CAPPELLETTI,
1993, p. 19), ou melhor, “[...] na verdade, a expansão do papel do Ju-
diciário representa o necessário contrapeso, segundo entendo, num
sistema democrático de checks and balances, à paralela expansão dos
ramos políticos do Estado moderno” (CAPPELLETTI, 1993, p. 19).
Reconhece Mauro Cappelletti (1993, p. 25) que é intrínseco em todo ato
de interpretação alguma medida de criatividade, sendo que a verdadeira
questão que se coloca é saber “[...] o grau de criatividade e os modos, li-
mites e legitimidade da criatividade judicial”. Ressalta, porém, que certo
grau de criatividade “[...] não deve ser confundido com a afirmação de
total liberdade do intérprete” (CAPPELLETTI, 1993, p. 23).
Buscando compreender as causas e os efeitos da intensificação da cria-
tividade jurisprudencial, deixa claro o autor que se trata de fenômeno
típico do século XX, quando o formalismo jurídico foi, paulatinamen-
te, cedendo espaço para maior criatividade dos juízes, em face “[...] da
grande transformação do papel do Estado e do direito na moderna
sociedade do Bem-Estar (Welfare State)” (CAPPELLETTI, 1993, p.
34), cujo aparecimento, que teve como conseqüência o crescimento do
ativismo estatal e, em especial, das funções legislativas, trouxe consigo
a necessidade de um aparelhamento administrativo mais complexo.
Para Mauro Cappelletti, foi nos Estados integrantes da família Com-
mon Law, especialmente nos Estados Unidos, que o Poder Judiciário
adotou uma postura mais ativa e criativa, passando a controlar não só a
atividade civil e penal dos cidadãos, mas também os poderes políticos,
o que implicou uma importante contribuição para a construção de
um sistema de controle dos outros poderes. “[...] Na verdade, é difícil
imaginar que algum sistema eficaz de controles e de contrapesos possa
hoje ser criado sem o crescimento e fragmentação do Poder Judiciá-
rio” (CAPPELLETTI, 1993, p. 53).
746 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Portanto, a rígida separação dos poderes de Montesquieu cede passo


ao sistema de controles recíprocos – o cheks and balances do sistema
constitucional americano.
Como afirma Mauro Cappelletti:
[...] Extremamente instrutivas apresentam-se as vicissitudes dra-
máticas da Europa continental nos últimos dois séculos, durante
os quais o ideal propugnado pelos espíritos amantes da liberdade
civil foi, com pertinácia digna da melhor causa, o ideal da dema-
siada rígida séparation de pouvoirs, ao invés de recíprocos contro-
les e contrapesos. Como se viu, o ideal da estrita separação dos
poderes teve como conseqüência um Judiciário perigosamente
débil e confinado, em essência, aos conflitos privados. Esse ide-
al significou, assim, até época relativamente recente e mesmo
hoje, em não poucos países, não a existência de um Legislati-
vo totalmente não controlado, como de um Executivo também
praticamente não controlado, pelo menos até que se conseguisse
desenvolver um autônomo sistema de justiça administrativa, a
se impor como guardião da administração pública (CAPPEL-
LETTI, 1993, p. 53).

Indubitavelmente, uma profunda mudança na coordenação entre os


poderes ocorreu no século XX, tendo o Poder Judiciário ampliado sua
atuação no cenário político-institucional delineado pelo constitucio-
nalismo atual.

1.3. O controle de constitucionalidade: poder político


do Judiciário

O Estado, para Max Weber (1999, v. 1, p. 525), é “[...] aquela comu-


nidade humana que, dentro de determinado território, reivindica para
si o monopólio da coação física legítima”, e a política é “[...] a tenta-
tiva de participar no poder ou de influenciar a distribuição do poder”
(WEBER, 1999, v. 1, p. 525).
Ora, em sendo parte integrante do Estado, o Judiciário participa, de
alguma forma, da composição e distribuição do poder político.
Aléxis de Tocqueville (1977, p. 82 et seq.), em obra clássica, constata
que o poder político do Judiciário resulta da possibilidade de invali-
dar leis e atos normativos emanados de outros poderes, por meio da
interpretação constitucional. Esse mecanismo de poder do Judiciário
denomina-se “controle de constitucionalidade”.
O controle de constitucionalidade só se tornou possível com o surgi-
mento do Estado moderno, que estrutura seu sistema jurídico-norma-
A judicialização da política no contexto da Constituição de 1988 747

tivo numa perspectiva piramidal. No vértice dessa pirâmide teórica,


encontram-se as normas constitucionais, que se sobrepõem às demais
normas do sistema, servindo-lhes de fundamento de validade.
Assim, na hipótese de confronto entre as normas constitucionais e as
normas Infraconstitucionais, devem prevalecer as primeiras. Esse é o
princípio da supremacia da Constituição, cabendo ao Judiciário, nor-
malmente por meio de um órgão especial ou de cúpula, examinar esse
confronto, declarando a nulidade da norma infraconstitucional.
A maior ou menor importância atribuída ao papel do Poder Judiciário
no sistema político está diretamente relacionada com a sua maior ou
menor capacidade de controlar a constitucionalidade das leis e assegu-
rar a integridade da Constituição.4
Segundo José Afonso da Silva (2006, p. 49), existem atualmente três
sistemas de controle de constitucionalidade: o “político, o jurisdicio-
nal e o misto”.
O controle político é aquele realizado por órgãos de natureza políti-
ca, tais como o próprio Parlamento, na Inglaterra, ou órgão especial,
como o Conselho Constitucional, na França.
Por sua vez, o controle jurisdicional, também conhecido por judicial
review, é aquele realizado por órgãos do Poder Judiciário. É o que
ocorre nos Estados Unidos, na Alemanha e no Brasil. É considerado
o mais generalizado dentre os sistemas de controle de constituciona-
lidade existentes.
Finalmente, o controle misto é aquele em que algumas categorias de
normas estão sujeitas ao controle político e outras categorias subme-
tidas ao controle jurisdicional. É o que sucede na Suíça, onde as leis
federais ficam sob controle político do Parlamento, e as leis locais, sob
controle jurisdicional.
Dentre os sistemas de controle de constitucionalidade acima descri-
tos, ganha importância para este estudo o controle jurisdicional, que
apresenta dois critérios, segundo José Afonso da Silva (2006, p. 49):
“controle difuso” e “controle concentrado”.
Verifica-se o critério de controle difuso, também chamado “jurisdição
constitucional difusa”, quando se reconhece o seu exercício pela via

4
No caso brasileiro, a Constituição de 1988 estabelece duas espécies de inconstitucio-
nalidade: (a) a inconstitucionalidade “por ação”, que ocorre com a produção de ato legis-
lativo ou administrativo que contrarie norma constitucional; (b) a inconstitucionalidade
“por omissão”, que consiste na inércia do poder público de produzir determinado ato
legislativo ou administrativo necessário para tornar efetiva norma constitucional.
748 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

incidental a qualquer juiz ou tribunal. Nesse tipo de controle, não se


discute a lei em tese ou em abstrato, mas aplicada ao caso concreto,
valendo os efeitos da decisão inter partes (entre as partes).
Já o critério de controle concentrado, também conhecido por “ju-
risdição constitucional concentrada”, ocorre quando se defere o seu
exercício pela via direta a tribunal de cúpula do Poder Judiciário ou
a uma corte especial. Nesse tipo de controle, discute-se a lei em tese,
não sendo necessária, portanto, a existência de um caso concreto. A
decisão, nesse caso, tem efeitos erga omnes (contra todos).
Impõem-se algumas observações relativamente às formas de controle
anteriormente descritas. A primeira observação é que o controle juris-
dicional “[...] subordina-se ao princípio geral de que não há juízo sem
autor (nemo iudex sine actore), que é rigorosamente seguido no sistema
brasileiro, como geralmente ocorre nos países que adotam o critério de
controle difuso” (SILVA, 2006, p. 50).
A segunda observação é que, pela via incidental ou de exceção, típica
do critério de controle difuso, qualquer demandado (réu) pode argüir
a inconstitucionalidade de lei, quando apresenta sua defesa num caso
concreto, isto é, num processo proposto contra ele. Daí por que esse
tipo de controle permite a qualquer juiz declarar a inconstitucionalidade
de lei que, no seu entendimento, viole a Constituição. É claro que, por
força do princípio do duplo grau de jurisdição, a sua decisão poderá vir
a ser reformada ou anulada por um tribunal em grau de recurso.
A terceira observação é que, pela via direta ou principal, típica do cri-
tério de controle concentrado, somente os legitimados, nos termos da
Constituição,5 poderão argüir a inconstitucionalidade de lei em tese
ou em abstrato, por meio do ajuizamento de ações específicas perante
órgão de cúpula ou corte especial.
A quarta observação é que se admite, também, nos sistemas de critério
concentrado, o controle por iniciativa do juiz dentro do processo, in-
dependentemente do pedido das partes. É o que ocorre, por exemplo,
no direito alemão (Richterklage).

5
A Constituição de 1988, no seu art. 103, arrola os legitimados para a propositura
da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalida-
de perante o Supremo Tribunal Federal, quais sejam: o Presidente da República, a
Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de Assembléia
Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de Estado
ou do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso
Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
A judicialização da política no contexto da Constituição de 1988 749

Por fim, assinale-se que o sistema de controle de constitucionalidade


adotado pelo Brasil, desde a Constituição de 1891, é o jurisdicional.
As Constituições posteriores à de 1891, no entanto, foram introduzin-
do inovações, de sorte que, à vista da Constituição vigente, promulga-
da em 1988, “[...] temos a inconstitucionalidade por ação ou omissão,
e o controle de constitucionalidade é o jurisdicional, combinando os
critérios difuso e concentrado, este de competência do Supremo Tri-
bunal Federal” (SILVA, 2006, p. 51).

2. A judicializaçâo da política no Brasil

2.1. A judicialização da política no contexto da


Constituição de 1988

A redemocratização do Brasil decorrente da abertura política nego-


ciada entre os militares e a elite política civil, em 1985, culminou com
a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, destinada a
elaborar e aprovar uma nova Constituição, que foi promulgada em 5
de outubro de 1988.
Trata-se da Constituição Cidadã, “[...] na expressão de Ulysses Gui-
marães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte que a produ-
ziu, porque teve ampla participação em sua elaboração e especialmen-
te porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania”
(SILVA, 2006, p. 90).
Com efeito, apesar das muitas críticas ao texto produzido pela Assembléia
Nacional Constituinte, no que concerne ao casuísmo e à prolixidade de
seu conteúdo, à abrangência de suas normas e à conjugação desarticulada
entre propostas estruturais e medidas conjunturais, são inegáveis as inova-
ções e os avanços que a Constituição de 1988 consagrou.
Talvez a maior prova dessas medidas inovadoras, modernas e demo-
cráticas sejam as normas sobre os direitos e garantias fundamentais
espelhadas por todo o texto da Carta de 1988,6 cujos destinatários
são todos os brasileiros e estrangeiros no território nacional, pessoas
físicas e jurídicas.

6
A atual Constituição trouxe, no seu Título II, os direitos e garantias fundamen-
tais, subdividindo-o em cinco Capítulos: direitos individuais e coletivos, direitos
sociais, nacionalidade, direitos políticos e partidos políticos.
750 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Com relação ao Poder Judiciário, as alterações decorrentes da Cons-


tituição de 1988 significaram mais um ingrediente, dentre muitos, no
sentido da consolidação da novel democracia brasileira.
A propósito, aduz Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1994, p. 8):
[...] A reestruturação do Poder Judiciário não era prioridade de qual-
quer das correntes que predominavam na Constituinte de 1987. Por
isso, o tema não suscitou maiores controvérsias. Mas, apesar dessa
apatia, uma reestruturação de monta houve, decorrente de uma com-
binação de propostas desconexas e de variada inspiração. Disto resul-
tou, por surpreendente que seja, uma profunda, porém inesperada,
transformação do Judiciário, como se demonstra nesse estudo.

Para o autor, entre as mudanças relevantes está o novo enfoque dado à


função de julgar, bem diverso do tradicional, ampliando consideravel-
mente a participação do juiz e dando-lhe um certo distanciamento em
relação à lei, o que não admitia a doutrina clássica, de índole positivista.
Completa o autor:
[...] Com efeito, o texto importou a due process of law substantivo
do direito anglo-americano (art. 5º, LIV), afora o aspecto for-
mal, de há muito presente em nosso sistema por meio dos prin-
cípios da ampla defesa, do contraditório, etc., mantido no art. 5º,
LV, da Constituição. Assim, pode hoje o magistrado inquietar-se
sobre a razoabilidade da lei, a proporcionalidade dos encargos
que acarreta, etc., quando antes não lhe cabia senão ser a voz da
lei (FERREIRA FILHO, 1994, p. 8-9).

Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1994) aponta também outras altera-


ções importantes advindas da ordem constitucional inaugurada em 1988,
quais sejam: (I) instituição da ação de inconstitucionalidade por omissão,
nos casos em que não sejam praticados atos legislativos ou administrativos
requeridos para tornar efetivas normas constitucionais (art. 102, § 2º); (II)
ampliação dos legitimados para a propositura da ação direta de inconsti-
tucionalidade (art. 103, I a IV); (III) instituição do mandado de injunção,
quando a ausência de norma regulamentadora inviabilizar o exercício de
direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacio-
nalidade, à soberania e à cidadania (art. 5º, LXXI); (IV) alargamento do
objeto da ação popular, que incluiu, além do patrimônio público ou de en-
tidade de que o Estado participe, a moralidade administrativa, o meio am-
biente, o patrimônio histórico e cultural (art. 5º, LXXIII); (V) instituição
da ação declaratória de constitucionalidade, que visa a preservar a presunção
de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal (art. 102, I, “a”);7 (VI)

7
A ação declaratória de constitucionalidade foi introduzida na Constituição de
1988 pela EC nª 3/1993.
A judicialização da política no contexto da Constituição de 1988 751

ampliação das funções institucionais do Ministério Público, que pas-


sou a atuar em variadíssimos campos, como a proteção do patrimônio
público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos, inclusive do consumidor (art. 129, I a IX).
Entende o autor que essas mudanças provocaram a ruptura do modelo
tradicional de atuação do Judiciário brasileiro, transformando-o em
poder de caráter político.
Nesse sentido, assevera:
[...] Tire-se desta análise o primeiro registro de algo que se re-
petirá, o papel do Judiciário torna-se acentuadamente de caráter
político. No caso do controle de constitucionalidade, a ação dire-
ta de inconstitucionalidade, que se generaliza, e a ação direta de
constitucionalidade fazem dele um legislador negativo, enquanto
a ação de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de in-
junção o impelem de tornar-se um legislador ativo (FERREIRA
FILHO, 1994, p. 11).

O autor menciona, também, o controle das eleições pelo Poder Judiciário


como outra importante mudança decorrente da Constituição de 1988,
que levou à judicialização da política no Brasil. É o que ocorre com a ação
de impugnação de mandato, de competência da Justiça Eleitoral, fundada
em abuso do poder econômico, corrupção ou fraude (art. 14, § 10).
Ressalte-se, ainda, a instituição da ação de descumprimento de pre-
ceito fundamental, que tem por finalidade argüir o descumprimento
de preceito fundamental constitucional, quando for relevante o fun-
damento da controvérsia entre lei ou ato normativo federal, estadual
ou municipal, inclusive os anteriores à Constituição, e normas consti-
tucionais (art. 102, § 1º).8
De modo geral, não há como negar, pois, que os avanços e as inova-
ções da Carta de 1988 vêm propiciando uma participação cada vez
mais ativa do Poder Judiciário nas questões políticas. Os argumentos
expendidos por Manoel Gonçalves Ferreira Filho são robustos indi-
cadores do aprofundamento da judicialização da política brasileira.
Indubitavelmente, a expansão da jurisdição constitucional é o fator de
impulso desse aprofundamento, o que torna proeminente o papel do
Supremo Tribunal Federal nesse processo, como salientado.

8
Segundo José Afonso da Silva (2006, p. 562), “[...] preceitos fundamentais não
é expressão sinônima de “princípios fundamentais”: é mais ampla, abrange estes
e todas as prescrições que dão sentido básico do regime constitucional, como são,
por exemplo, as que apontam para a autonomia dos Estados, do Distrito Federal, e
especialmente as designativas dos direitos e garantias fundamentais”.
752 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

2.2. O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da política

A combinação dos dois critérios de controle de constitucionalidade


– o difuso e o concentrado – confere ao Supremo Tribunal Federal
uma posição singular no sistema constitucional brasileiro.
No primeiro caso, o Supremo Tribunal Federal atua, por meio da
competência recursal, como órgão de revisão das causas decididas em
única ou última instância, quando a decisão recorrida: (I) contrariar
dispositivo da Constituição; (II) declarar a inconstitucionalidade de
tratado ou lei federal; (III) julgar válida lei ou ato de governo local
contestado em face da Constituição; (IV) julgar lei local contestada
em face de lei federal (art. 102, III, “a”, “b”, “c” e “d”).
Assim, em se tratando de competência recursal, o Supremo Tribunal
Federal atua como instância revisora final das decisões proferidas
por juízes ou tribunais no exercício do critério de controle difuso de
constitucionalidade.9
No segundo caso, o Supremo Tribunal Federal atua, por meio da
competência originária, como órgão de cúpula encarregado de exa-
minar a constitucionalidade das leis e dos atos normativos em face da
Constituição mediante ações diretas de inconstitucionalidade, ações
de inconstitucionalidade por omissão, ações declaratórias de constitu-
cionalidade e ações de descumprimento de preceito fundamental (art.
102, I, “a”, e § 1º).
Portanto, em se tratando de competência originária, o Supremo Tri-
bunal Federal atual como instância exclusiva para julgar os litígios
constitucionais decorrentes do exercício do critério de controle con-
centrado de constitucionalidade. Trata-se da jurisdição constitucional
concentrada, que visa a assegurar o princípio da supremacia da Consti-
tuição sobre todo o ordenamento jurídico (SILVA, 2006, p. 562).
Daí por que a nossa Corte Suprema, como assinalado, tem apresentado
posição de proeminência, no que concerne à atuação política do Poder
Judiciário no Brasil. Nesse sentido, a Constituição de 1988, na medida
em que atribui ao Supremo Tribunal Federal, em sede de critério de
controle concentrado, a função exclusiva para proceder ao exame da

9
A competência recursal do Supremo Tribunal Federal é exercida por meio do re-
curso extraordinário, no qual o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral
das questões constitucionais discutidas no caso, a fim de que o STF examine a
sua admissão, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus
membros (art. 102, § 3º, introduzido pela EC nº 45, de 2004).
A judicialização da política no contexto da Constituição de 1988 753

constitucionalidade das leis e dos atos normativos, abre espaços gene-


rosos para a ocorrência do fenômeno da judicialização da política.
O Supremo Tribunal Federal tem sede na capital da República e juris-
dição em todo o território nacional, competindo-lhe, precipuamente,
a guarda da Constituição (art. 101, caput). Compõe-se de onze Mi-
nistros, escolhidos dentre cidadãos brasileiros com mais de 35 anos e
menos de 65 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada,
nomeados pelo Presidente da República, após aprovada sua escolha
pela maioria absoluta do Senado Federal, sendo-lhes asseguradas
– como de resto aos demais magistrados – as garantias da vitalicie-
dade, da inamovibilidade e da irredutibilidade de subsídio (art. 101,
parágrafo único, e art. 95, I, II e III).10
A Carta de 1988, mantendo uma tradição que vem desde a primeira
Constituição da República (1891) e inspirada no constitucionalismo
norte-americano, não estabelece mandato para os cargos de Ministros
do Supremo Tribunal Federal, como sói acontecer nas Cortes Consti-
tucionais européias, exemplificativamente o Conselho Constitucional,
na França, e o Tribunal Constitucional, na Alemanha, cujos membros
cumprem mandatos de nove e doze anos, respectivamente.
O fato de os membros de nossa Corte Suprema não cumprirem man-
dato não impediu, entretanto, o predomínio, na história do Supremo
Tribunal Federal, de magistrados com perfil nitidamente político.11

2.3. O controle de constitucionalidade das leis no Brasil

Como examinado, a Constituição de 1988 adota a inconstituciona-


lidade por ação ou omissão e o sistema jurisdicional de controle de
constitucionalidade, combinando os critérios difuso e concentrado,
aquele de competência de qualquer juiz ou tribunal e este de compe-
tência do Supremo Tribunal Federal.

10
O Poder Judiciário brasileiro apresenta uma tradição de investidura por concurso
público de provas e títulos, com exceção dos membros do Supremo Tribunal Federal
(art. 101, parágrafo único), do Superior Tribunal de Justiça (art. 104, parágrafo úni-
co, I e II) e do quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais
dos Estados e do Distrito Federal, que é preenchido, alternadamente, por membros
do Ministério Público e advogados (art. 94).
11
Ariosto Teixeira (2001, p. 76) assinala que a literatura especializada mostra que
o Poder Judiciário tem tido papel político relevante desde os primeiros instantes da
fundação do Brasil, seja enquanto colônia, seja como nação independente de Portu-
gal e, mais tarde, na trajetória republicana.
754 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Assim é que tanto os órgãos de primeiro grau (juízes singulares) como


os órgãos de segundo grau (tribunais em geral), quando provocados,
estão constitucionalmente legitimados a intervir nos processos deci-
sórios de outros poderes mediante exame da constitucionalidade das
leis e atos normativos, visto que a possibilidade de decisões judiciais,
com base em preceitos constitucionais, direciona ou pode até mesmo
alterar os resultados dos processos decisórios e das políticas públicas.
Ademais, o desenho dado à ação direta de inconstitucionalidade e à
ação declaratória de constitucionalidade pela Carta de 1988, notada-
mente com o amplo rol de seus legitimados ativos, reforçou o critério de
controle concentrado no Brasil, com a maior capacidade de intervenção
do Supremo Tribunal Federal em questões de natureza política.

2.4. Os instrumentros constitucionais da judicialização


da política no Brasil

Não apenas as ações diretas de inconstitucionalidade (art. 103) e os


mandados de segurança individuais e coletivos (art. 5º, LXIX e LXX)
têm sido instrumentos utilizados para limitar a ação de outros poderes
pelo Poder Judiciário, no que concerne à defesa da Constituição e à
proteção dos direitos fundamentais.
Na verdade, outros instrumentos com potencial para judicializar a po-
lítica, no Brasil, são também comumente utilizados como a ação decla-
ratória de constitucionalidade (art. 103), a ação de descumprimento de
preceito fundamental (art. 102, § 1º), o habeas corpus (art. 5º, LXVIII),
o mandado de injunção (art. 5º, LXXI), o habeas data (art. 5º. LXXII), a
ação popular (art. 5º, LXXIII) e a ação civil pública (art. 129, III).

3. A judicializaçâo da política no direito comparado

A partir do final do século passado, a expansão do poder judicial é fenô-


meno ocorrente em diversas democracias, como bem observaram Neal
Tate e Torbjörn Vallinder (1995, p. 5). Nesse sentido, são inúmeros os
exemplos da judicialização da política nos Estados Unidos e na Europa.
Convém salientar que a literatura especializada registra que a judicia-
lização da política não é um fenômeno uniforme, visto que cada país
demonstra sua própria dinâmica de possibilidades e limites consti-
tucionais, conforme a maior ou menor interação judicial-política e o
maior ou menor grau de desenvolvimento do sistema de controle de
A judicialização da política no contexto da Constituição de 1988 755

constitucionalidade. Por isso mesmo é que podem ser encontradas,


nos diversos países, áreas mais judicializadas do que outras.

3.1. Estados Unidos

Nos Estados Unidos, a judicialização da política é fenômeno verifica-


do desde o paradigmático caso Marbury v. Madison, de 1803, quando
a atuação do Poder Judiciário no controle da constitucionalidade das
leis passou a exercer um papel de destaque na vida política e social
daquele país. Transpareceram do voto do juiz John Marshall, Chief
Justice da Suprema Corte, as conexões entre a questão política, de um
lado, e a discricionariedade administrativa e a lesividade do direito
individual, de outro, conexões que viriam repercutir sobre toda a dou-
trina mundial acerca do tema.
Mas foi a partir do século XX que a Suprema Corte norte-americana
passou a acolher entendimentos em favor da efetivação dos direitos
individuais, notadamente em sede de revisão judicial.12
Não há dúvida de que a jurisprudência da Suprema Corte tem sido
fator relevante para o desenvolvimento da revisão judicial e, conse-
qüentemente, da expansão do Poder Judiciário naquele país.
Hodiernamente, os autores norte-americanos exaltam o papel do Poder
Judiciário como o ramo mais importante do denominado Government,
em que se incluem os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário.
Nas palavras do jurista norte-americano Ronald Dworkin (1999, p. 15):
“[...] Nenhum ministério é mais importante do que nossos tribunais”.
Na verdade, a capacidade de os juízes e os tribunais dos Estados Uni-
dos influírem no modo como funcionam as instituições norte-ameri-
canas é enorme e parece aumentar com o passar do tempo.

3.2. Europa

Na Europa, são também inúmeros os exemplos ocorrentes do fenô-


meno da judicialização da política. O sistema europeu de controle de
constitucionalidade funda-se no critério concentrado (preventivo e
repressivo), diversamente do sistema norte-americano, marcado pelo

12
Conferir, a respeito, os seguintes casos, dentre outros: Est Coast Hotel v. Parrish,
de 1937; Griffin v. Illinois, de 1956; Baker v. Carr, de 1962; Gideon v. Wainwright,
de 1963; Shapiro v. Thompson, de 1969; Goldberg v. Kelly, de 1970; Papasan v. Allain,
de 1986.
756 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

critério difuso. Às Cortes Constitucionais européias cabem não apenas


solucionar os conflitos suscitados entre jurisdições e atividades admi-
nistrativas ou a constitucionalidade das leis e tratados internacionais,
como também decidir sobre as violações dos direitos fundamentais
constitucionalmente assegurados.
Assim, na França, os efeitos da intervenção do Conselho Consti-
tucional sobre a ordem política têm sido relevantes. Nesse sentido,
Marcus Faro de Castro (1997, p. 149) assinala que o papel desse ór-
gão “[...] foi decisivo para a sorte de diversas iniciativas de reforma,
tais como o programa de nacionalização patrocinado pelo governo de
François Mitterrand, a política universitária e a política de competiti-
vidade incluída na Lei de Imprensa de 1984”.
Na Alemanha, de modo idêntico, a atuação do Tribunal Constitucio-
nal tem orientado definitivamente a vida e os debates políticos. Todos
os movimentos político-constitucionais alemães trouxeram consigo
processos de conscientização política da magistratura. O legislador
alemão está submetido ao direito e sabe que suas ações poderão ser
controladas judicialmente. Para Louis Favoreu (2004, p. 76):
[...] A possibilidade de [o Tribunal Constitucional] solucionar
todo conflito de atribuições entre os órgãos constitucionais ou
entre a Federação e Lânder confere ao juiz constitucional um
poder de arbitragem enorme. Finalmente, a Corte Constitucio-
nal exerceu uma função indispensável no estabelecimento e no
fortalecimento da coesão da sociedade política, sendo ao mesmo
tempo um elemento estabilizador e uma força de integração.

Lembra Marcus Faro de Castro (1997, p. 149) que, na Alemanha,


[...] a atuação do Poder Judiciário revelou-se de extrema impor-
tância para a determinação da dinâmica do processo político e
de seus resultados em diversas áreas substantivas, que vão desde
a política externa (Ostpolitik) até a política universitária e a po-
lítica de relações industriais.

Na Espanha, quase trinta anos após o início do funcionamento do Tribu-


nal Constitucional (1980), a jurisprudência é considerável, notadamente
em decorrência do “recurso de amparo”, mas tende a desenvolver-se tam-
bém sobre as relações entre o Estado e as Comunidades Autônomas.
Assim, a atuação política do Tribunal Constitucional espanhol torna-se
cada vez mais importante, à medida que contribui para reduzir e paci-
ficar os conflitos entre o Estado e as Comunidades Autônomas, princi-
palmente as mais poderosas, que são a Catalunha e o País Basco.
Finalmente, na Itália, assinala Marcus Faro de Castro (1997, p.149) que,
A judicialização da política no contexto da Constituição de 1988 757

[...] a politização da magistratura judicial através de reformas na


estrutura da carreira e dos órgãos de representação profissional
desde o final da década de 1960, determinou um aumento de
intervenções judiciais em setores como as relações industriais, a
defesa de interesses difusos e a repressão ao terrorismo (e mais
recentemente à corrupção).

Daí por que a atuação da Corte Constitucional italiana tem sido de-
cisiva para a revisão da legislação sobre Direito Civil, Direito Penal
e Processual Penal, Direito Administrativo e Direito Social. Nesse
sentido, cite-se a jurisprudência elaborada sobre o direito de greve e a
aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares
(eficácia horizontal).

Conclusão

Pretendeu o presente artigo analisar a judicialização da política no


Brasil no contexto da Constituição de 1988. Para atender a esse desi-
derato, percorreram-se três caminhos.
Inicialmente, examinamos, com base na literatura especializada, o
conceito e os traços característicos desse fenômeno, a separação dos
poderes nesse cenário e o controle de constitucionalidade como ex-
pressão do poder político do Judiciário.
Em seguida, abordamos a ascensão institucional do Judiciário bra-
sileiro nesse contexto, notadamente do Supremo Tribunal Federal,
e tentamos mostrar de que maneira a crescente interferência desse
Poder, no âmbito da política, vem se processando no Brasil, inclusive
com estudo de caso e dos instrumentos constitucionais pertinentes.
Finalmente, analisamos a judicialização da política no direito compa-
rado, destacadamente nos Estados Unidos e na Europa.
Temos daí, agora, algumas considerações finais a tecer.
Com efeito, a judicialização da política no âmbito das democracias
contemporâneas é tema central de muitas das discussões que se pro-
cessam no direito e na ciência política. O ativismo dos órgãos judi-
ciais, notadamente dos tribunais constitucionais, não só põe em xeque
os princípios da separação dos poderes e da neutralidade política do
Poder Judiciário, como inaugura um tipo inédito de espaço institucio-
nal, desvinculado das clássicas instituições político-representativas.
Na verdade, se observarmos o que ocorre atualmente no âmbito da
jurisdição constitucional, seja nos Estados Unidos, seja na Europa, é
758 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

possível constatar que a forte pressão e a mobilização política da so-


ciedade estão na origem daquilo que se passou a designar como o
“novo ativismo judicial”.
Os cidadãos buscam limitar a atuação dos governantes, valendo-se
dos instrumentos constitucionais postos à sua disposição e socorren-
do-se do Poder Judiciário, dentro do quadro político-institucional das
democracias contemporâneas. A ampliação do número de ações judi-
ciais contra os atos do Poder Público integra o jogo democrático das
sociedades atuais.
Nesse sentido, é possível afirmar que o aumento do número de pro-
cessos, mormente no âmbito da jurisdição constitucional, não é apenas
fenômeno jurídico, mas também político. Nas sociedades democráti-
cas atuais, a ação política é deslocada de sua arena própria (arena polí-
tica) para uma outra arena (arena judicial), o que significa a expansão
do Judiciário no sistema de poder.
Conquanto seja perfeitamente compatível com as democracias con-
temporâneas, a judicialização da política não é fenômeno uniforme:
manifesta-se diversamente de acordo com as peculiaridades históricas
e culturais de cada sociedade, podendo o Judiciário assumir posiciona-
mentos distintos e existir áreas mais judicializadas do que outras.
Assim, nos Estados Unidos, os direitos individuais, as disputas entre
Estados e entre estes e a União e as políticas governamentais são al-
tamente judicializadas. Na Alemanha, a atuação do Tribunal Consti-
tucional influi na vida democrática e nos debates políticos. Na França,
nacionalização, privatização e política universitária são setores forte-
mente judicializados. Na Itália, as intervenções judiciais em setores
como as relações industriais, a proteção de direitos difusos e o com-
bate à corrupção têm aumentado consideravelmente. No Brasil, os
processos legislativo e eleitoral e algumas políticas públicas (educação,
saúde, energia elétrica, telefonia, privatização e tributação, por exem-
plo) são áreas crescentemente judicializadas.
No caso brasileiro, releva perceber o protagonismo do Supremo Tri-
bunal Federal quando estão em risco direitos individuais e coletivos.
A mesma postura pode ser observada na seqüência de decisões judi-
ciais que têm anulado deliberações das Comissões Parlamentares de
Inquérito e do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara
dos Deputados.
Daí por que o Supremo Tribunal Federal vem desempenhando um
poder político de fato, de modo que o olhar dos juristas e dos cien-
A judicialização da política no contexto da Constituição de 1988 759

tistas políticos voltou-se à discussão das conseqüências da atuação da


Corte para a sustentação da democracia brasileira, debatendo o fenô-
meno da judicialização da política.
Sem dúvida, a judicialização da política sinaliza que o processo rede-
mocratizador viabilizado pela Constituição de 1988, com a ampliação
do catálogo de direitos e garantias fundamentais e dos legitimados
ativos para a propositura das ações diretas de inconstitucionalidade,
repercutiu na agenda da sociedade brasileira. Constitui, assim, na visão
de Anderson Lobato (2001, p. 48), um “[...] sinal de consolidação das
nossas instituições democráticas”.
A judicialização da política não significa, pois, uma “aristocracia judi-
ciária”, incompatível com o sistema representativo previsto na Cons-
tituição de 1988 (art. 1º, parágrafo único). Na verdade, o fato de o
ordenamento constitucional brasileiro permitir – cada vez mais – a re-
visão judicial do que o Legislativo majoritariamente decide, por meio
de um sistema misto de controle de constitucionalidade, assegurando
o respeito aos direitos fundamentais, garante o exercício democrático
do poder.

Referências

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de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nº 1/1992 e
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Poder Judiciário
761

O Judiciário na
Constituição de 1988.
Um poder em evolução
Regina Maria Groba Bandeira

1. Aspectos relevantes do perfil constitucional do Poder


Judiciário na Carta Política de 88

Nos anos 80 do século XX, após longo período de ditadura militar,


que durou aproximadamente vinte anos, nosso país atingiu elevado ní-
vel de evolução política com a promulgação, sem ruptura institucional,
da Constituição de 1988, chamada Constituição Cidadã, que refletiu
muitas das esperanças do povo brasileiro num novo tempo de democra-
cia, desenvolvimento socioeconômico e liberdade para os cidadãos.
Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988 ampliou sensivelmente o
catálogo de direitos individuais e coletivos a demandar proteção judicial.
A criação de novos instrumentos individuais e coletivos de acesso ao Po-
der Judiciário acarretou o crescimento da demanda por Justiça no Brasil.
Ocorre que já estava instalada à época verdadeira crise do Poder Judi-
ciário, vinculada à crise dos Poderes do Estado, que se agravou a partir
de novas relações da sociedade capitalista e do crescimento do papel
do Estado em nível mundial. A crise do Poder Judiciário inviabiliza-
va especialmente o órgão de cúpula do Poder Judiciário pelo excesso
de processos. Nesse ponto, também era conhecida como a crise do
Supremo (STF), que, a partir da década de 40 do século XX, vinha
suportando constante aumento de recursos.
Na busca de soluções para a superação da crise do Poder Judiciário,
o legislador constituinte criou novos órgãos jurisdicionais, o Superior
Tribunal de Justiça (STJ), corte competente para a uniformização da
interpretação das leis federais, e os cinco Tribunais Regionais Fede-
rais (TRFs), órgãos de segundo grau da Justiça Federal, sendo que o
primeiro substituiu, em parte, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o
Tribunal Federal de Recursos (TFR), que foi extinto.
762 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Adicionalmente, a partir do advento da Constituição de 88, o Supre-


mo Tribunal Federal teve suas competências ampliadas na esfera da
jurisdição constitucional, reforçando seu papel de corte constitucional.
A ampliação do rol de legitimados para a propositura da ação direta de
inconstitucionalidade, antes privativa do procurador-geral da Repú-
blica, foi importante inovação trazida pela Carta. Manteve, contudo,
a competência originária e a recursal ordinária, que refogem ao seu
papel precípuo de órgão guardião da Constituição.
Cabe lembrar que o Tribunal Federal de Recursos já havia sido criado
pela Constituição de 1946 com o objetivo de aliviar a sobrecarga do
Supremo Tribunal Federal, que persistiu pela possibilidade de inter-
posição de recurso extraordinário e de agravo de instrumento com
base em dispositivos facilmente invocados pelos interessados e insufi-
cientes medidas obstativas à admissibilidade, como esclarece Alcides
de Mendonça Lima1.
A Constituição Federal manteve, em seu art. 92, a listagem de ór-
gãos federais e estaduais do Poder Judiciário, reafirmando-se, assim,
o caráter unitário e nacional da Instituição. A Constituição Federal
suprimiu do rol de órgãos o Conselho Nacional da Magistratura, pas-
sando o Poder Judiciário a carecer de importante órgão de fiscalização
e disciplina da magistratura.2
As garantias da magistratura traduzidas na vitaliciedade, na inamovi-
bilidade e na irredutibilidade de vencimentos foram mantidas como
forma de assegurar a imparcialidade e independência dos magistrados
no exercício da função pública.
Quanto às Justiças especializadas, a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar
não tiveram sua estrutura alterada na Constituição de 88. Na Justi-
ça Laboral, a Constituição de 88 manteve a representação classista,
prevista no texto constitucional desde 1946. A participação classista
ocorria nas Juntas de Conciliação e Julgamento, órgãos colegiados de
primeiro grau, e nos Tribunais Regionais do Trabalho e no Tribunal
Superior do Trabalho.3

1
LIMA, Alcides de Mendonça. O Poder Judiciário e a Constituição. Rio de Janeiro:
Aide Ed., 1989.
2
O Conselho Nacional da Magistratura foi criado por meio da Emenda Consti-
tucional nº 7, de 1977 e ratificado pela Lei Complementar nº 35, de 14/3/79 (Lei
Orgânica da Magistratura (Loman).
3
Posteriormente, com a Emenda Constitucional nº 24, de 1999, a representação
classista foi extinta.
O judiciário na Constituição de 1988. Um poder em evolução 763

Com vistas a garantir o acesso à Justiça de forma simplificada e célere,


foram constitucionalizados os Juizados Especiais, órgãos jurisdicionais
estaduais e do Distrito Federal, criado, nesse último caso, pela União. An-
tes previstos na Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1984, para processar
e julgar causas cíveis de reduzido valor econômico, passavam os Juizados
Especiais a tratar também de matéria criminal com utilização de pro-
cedimento oral e sumaríssimo, permitida, consoante o previsto em lei, a
transação e o julgamento de recursos por juízes de primeiro grau.
No que concerne às garantias institucionais do Poder Judiciário, cumpre
notar o importante avanço da Constituição de 88 ao assegurar expressa-
mente a autonomia administrativa e financeira desse Poder do Estado.
Em seu art. 99, a Constituição Federal pretendeu resguardar a indepen-
dência do Poder Judiciário ante os Poderes Legislativo e Executivo.
A Constituição Federal destinou capítulo especial para as funções es-
senciais à Justiça, destacando as missões do Ministério Público, da De-
fensoria Pública, da Advocacia. O Ministério Público alcançou autono-
mia e independência, tendo sido colocado fora do âmbito dos Poderes
da República, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. A repre-
sentação judicial da União, antes da competência do Ministério Público,
passou a ser exercida pela Advocacia-Geral da União, instituição ligada
ao Poder Executivo. A criação das Defensorias Públicas da União, do
Distrito Federal e Territórios e dos estados, incumbidas da orientação
jurídica e defesa, em todos os graus, dos necessitados, constituiu grande
avanço na busca da ampliação do acesso à jurisdição.

2. A Reforma do Judiciário promovida pela Emenda


Constitucional nº 45, de 2004. As alterações que o
consenso logrou produzir após doze anos de
discussões no Congresso Nacional

Não obstante os aperfeiçoamentos da normativa constitucional de 88,


os mecanismos e instrumentos produzidos não foram suficientes para
impedir a morosidade da prestação jurisdicional, a dificuldade de aces-
so à Justiça, o número excessivo de recursos nos tribunais e a ineficácia
dos mecanismos de controle interno do sistema jurisdicional pátrio.
Adicionalmente, como a Constituição de 88 foi pródiga na consagra-
ção de direitos e garantias fundamentais de caráter individual e cole-
tivo, houve uma multiplicação de processos em escala exponencial. Tal
quadro vem demandando das autoridades constituídas pronto equa-
cionamento, sob pena de deletérios reflexos socioeconômicos para nosso
764 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

país. Contudo, é consabido que as modificações do texto constitucional


são demoradas, reflexo do sistema democrático e representativo.
Ênfase deve ser dada ao fato de que a crise do Judiciário não é um fato
isolado em nossa sociedade. Ocorre no contexto da crise dos Poderes
do Estado, fenômeno que afeta o Brasil e grande parte das nações de-
senvolvidas e em desenvolvimento, em decorrência das novas relações
da sociedade capitalista e do crescimento do papel do Estado, em nível
mundial, notadamente a partir do século XX.
Neste contexto, destacam-se também como fatores que vêm contri-
buindo para a sobrecarga da máquina judiciária e recrudescimento de
sua crise, a ampliação do poder legiferante do Executivo por meio da
edição excessiva de medidas provisórias, a proliferação de leis elabora-
das para atender às necessidades de uma nação em desenvolvimento,
bem como o uso excessivo, em juízo, de recursos e expedientes prote-
latórios pela administração pública.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 96, de 19924, cujo
primeiro signatário foi o Deputado Hélio Bicudo, originou a chamada
“Reforma do Judiciário” com a aprovação da Emenda Constitucional
nº 45, de 2004. Deu-se, com ela, um primeiro passo em direção à
modificação da estrutura do Judiciário, tão esperada pela sociedade.
Trata-se da primeira fase da Reforma, pois retornou à Câmara dos
Deputados a PEC nº 358, de 20055, PEC paralela da Reforma, que
contempla matérias sobre as quais o Congresso Nacional não alcan-
çou ainda consenso.
A primeira parte da Reforma do Judiciário, em nível constitucional,
foi debatida no Congresso Nacional por mais de doze anos, tendo
sido designados relatores da PEC nº 96, de 1992, sucessivamente,
na Câmara dos Deputados, os deputados Federais Jairo Carneiro,
Aloysio Nunes Ferreira e Zulaiê Cobra; no Senado Federal, os sena-
dores Bernardo Cabral e José Jorge. As comissões designadas para a
análise da matéria ouviram autoridades e representantes das funções
essenciais à Justiça, que muito contribuíram para o esclarecimento
de temas importantes para o aperfeiçoamento do desenho institu-
cional do Judiciário.
Com o decorrer dos debates no Congresso Nacional, a proposta de
emenda à Constituição original, cujo conteúdo limitava-se a propor al-

4
A PEC da Reforma do Judiciário, que deu origem à Emenda Constitucional nº
45, de 2004, teve o nº 96, de 1992, na Câmara dos Deputados, e o nº 29, de 2000,
no Senado Federal.
5
A numeração é de proposição da Câmara dos Deputados.
O judiciário na Constituição de 1988. Um poder em evolução 765

terações pontuais da Carta Política em vigor, foi substituída por um


texto mais abrangente, que pretendeu abarcar, senão todos, pelo menos
um número importante de assuntos relativos à prestação de Justiça.
Entre as principais inovações introduzidas na Constituição Federal pela
Emenda Constitucional nº 45, de 2004, cabe assinalar a modificação de
princípios do Estatuto da Magistratura, a instituição da súmula vincu-
lante do Supremo Tribunal Federal, a criação do Conselho Nacional de
Justiça, a instituição da repercussão geral das questões constitucionais.
Destacam-se dois novos princípios constitucionais previstos no art. 5º da
Constituição Federal, segundo a redação da Emenda Constitucional nº
45, de 2004: o princípio da garantia da razoável duração do processo e o
que confere status constitucional aos tratados sobre direitos humanos.
Dentre os novos princípios a serem observados pelo Estatuto da Ma-
gistratura, cabe ressaltar os referentes ao ingresso e promoção na car-
reira; preparação e aperfeiçoamento dos magistrados; férias dos ma-
gistrados; número de juízes; publicidade das decisões administrativas;
regime disciplinar dos magistrados; eleição dos órgãos diretivos dos
tribunais e proibição do nepotismo.
A criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de planeja-
mento e controle disciplinar do Judiciário, foi tema bastante polêmi-
co e importante inovação na estrutura dessa Instituição trazida pela
Emenda Constitucional nº 45, de 2004.
Cabe, ainda, especial enfoque às alterações constitucionais relativas ao
Supremo Tribunal Federal e à competência da Corte Suprema no sistema
de controle de constitucionalidade adotado pelo ordenamento jurídico
pátrio. As polêmicas súmula vinculante e súmula impeditiva de recursos,
bem como a repercussão geral das questões constitucionais, merecerão da
doutrina e da jurisprudência detida análise diante de sua importância para
o aperfeiçoamento dos trabalhos das cortes superiores.
Podem ser também destacadas inovações relativas ao acesso à Justiça,
como os princípios da não-interrupção dos trabalhos judiciários e o
do número de juízes proporcional à demanda e à população e as mo-
dificações constitucionais relativas à Defensoria Pública e à criação da
Justiça itinerante e câmaras regionais no âmbito dos Tribunais Regio-
nais Federais, dos Tribunais Regionais do Trabalho e dos Tribunais de
Justiça dos estados.
Merecem menção específica outras importantes modificações intro-
duzidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, no ordenamen-
to jurídico-constitucional pátrio: a extinção dos tribunais de alçada,
766 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

a criação de ouvidorias de justiça, o incidente de deslocamento de


competência para a Justiça Federal nas hipóteses de grave violação de
direitos humanos, a submissão do Brasil à jurisdição de Tribunal Penal
Internacional, a criação do Conselho Nacional do Ministério Público
e as novas competências da Justiça do Trabalho.

3. Questões da Reforma do Judiciário no Supremo


Tribunal Federal e no Conselho nacional de Justiça

Após a aprovação da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, o Su-


premo Tribunal Federal foi provocado diversas vezes para, em controle
concentrado de constitucionalidade, dar a interpretação de dispositivos
constitucionais que geraram maior polêmica. O STF também teve que
pôr em prática dois novos institutos: súmula vinculante e repercussão
geral. Ao mesmo tempo, com a criação do Conselho Nacional de Justiça
e o exercício de seu poder normativo, várias resoluções foram questiona-
das no Supremo Tribunal Federal. A seguir, destacamos alguns temas da
Reforma que mereceram a atenção do STF e do CNJ.

3.1. Criação do Conselho Nacional de Justiça

Questão importante levada ao Supremo Tribunal Federal foi a refe-


rente à constitucionalidade do Conselho Nacional de Justiça, órgão
criado pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que promoveu a
Reforma do Judiciário. Entre outras atribuições, o CNJ é competente
para a elaboração de políticas estratégicas para o Judiciário e, em cará-
ter suplementar, cuida de questões disciplinares.
A Reforma criou um órgão administrativo nacional e de composição
mista. Julgando a ADI nº 3.367, ajuizada pela Associação dos Magis-
trados Brasileiros, o Supremo Tribunal Federal considerou que o caráter
nacional do Conselho não ofende o princípio federativo, pois o Con-
selho não seria federal, mas nacional e o Poder Judiciário, segundo o
texto constitucional, tem caráter nacional. Segundo a decisão do STF,
a criação do Conselho também não fere o princípio da separação dos
Poderes, ao fundamento de que as decisões do Conselho estariam sub-
metidas ao Supremo Tribunal Federal, em grau de recurso, integrando o
novo órgão o Poder Judiciário com funções meramente administrativas,
sem interferência nas decisões judiciais.
Sobre a competência do Conselho para decretar a perda do cargo do
magistrado, cabe lembrar que o Senado Federal suprimiu expressões
O judiciário na Constituição de 1988. Um poder em evolução 767

do texto final para que restasse preservada a garantia da vitaliciedade.


Assim, o CNJ, que tinha competência jurisdicional, com a supressão
dessa competência, passou a mero órgão administrativo. Note-se, con-
tudo, que não foi suprimido o dispositivo que o elenca entre os órgãos
jurisdicionais do Poder Judiciário, havendo os que apontam, nesse pon-
to, incorreção de técnica legislativa (art. 92, inciso I-A). Na realidade,
o problema ocorreu em razão da promulgação parcelada. Nesse ponto,
concordamos com Newton Tavares Filho, quando assinala a imperfeição
da promulgação fragmentada, pois a mudança de trechos de um art. da
Constituição Federal pode acarretar o surgimento de um terceiro texto6.
Sobre o tema, observe-se, ainda, que a PEC nº 358, de 2005, admite a
possibilidade de representação do Conselho, por voto de três quintos, ao
Ministério Público, que poderá dar início ao processo visando a perda
do cargo do magistrado, por meio de sentença judicial.
No que diz respeito à tramitação da Reforma do Judiciário no Con-
gresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal considerou que a su-
pressão, pelo Senado Federal, da competência do CNJ para a decreta-
ção de perda de cargo de magistrado, constante do texto encaminhado
pela Câmara dos Deputados, não foi suficiente para macular o sentido
normativo do texto residual aprovado e promulgado (art. 103-B, § 4º,
III). Não houve, portanto, segundo o STF, ofensa ao art. 60, § 2º, da
Constituição Federal.

3.2. Competência da Justiça do Trabalho

Quanto à competência da Justiça do Trabalho, segundo a Emenda Cons-


titucional nº 45, de 2004, passa a abranger todas as relações de tra-
balho, as de empregados (assalariadas e subordinadas), autônomos,
avulsos, eventuais, cooperados, voluntários, empreiteiros, aprendizes,
temporários, domésticos e rurais, excluindo-se as relações de consumo
e as estatutárias (art. 114 da CF)7.
No que tange às relações estatutárias, note-se que o Senado Federal ex-
pressamente as exclui da competência da Justiça do Trabalho no texto da
PEC nº 358, de 2005, que retorna à apreciação da Câmara dos Depu-

6
TAVARES, Newton Filho. A Emenda Constitucional nº 45 e a Reforma do Poder
Judiciário: algumas observações. Plenarium, Brasília, DF: n. 2, nov. 2005.
7
MARTINS Filho, Ives Gandra da Silva. A reforma do Poder Judiciário e seus desdo-
bramentos na Justiça do Trabalho. Direito Público, nº 7, p. 36 – Jan-Fev-Mar/2005
768 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

tados8. Outrossim, o ministro Nelson Jobim concedeu liminar, na ADI


3.395-6/DF, proposta pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Aju-
fe), suspendendo a aplicação do inciso I do art. 114 da CF no que amplia
a competência da Justiça Laboral em relação aos servidores estatutários.
A liminar foi mantida pelo Supremo Tribunal Federal, que entendeu que
a redação dada pelo Senado Federal à norma e suprimida à promulgação
em nada alteraria o âmbito semântico do texto definitivo.

3.3. Vedação de nepotismo

A proibição de nepotismo não foi inserida no texto constitucional por


meio da Reforma do Judiciário. Entenderam os deputados federais
que a matéria deveria ser tratada de forma isonômica em relação aos
demais Poderes. A natureza estatutária da matéria também foi susci-
tada, lembrando aqueles que não queriam que a matéria fosse tratada
na Constituição Federal que vários regimentos internos de tribunais
já contemplavam dispositivos análogos.
De fato, a Lei nº 9.421, de 24 de dezembro de 1996, que cria as car-
reiras dos servidores do Poder Judiciário, prevê disposição de teor
análogo ao proposto pela PEC nº 358, de 2005 (art. 10). A proibição
de contratação de parentes também está prevista em dispositivos do
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Na PEC nº 358, de 2005, a norma que veda o nepotismo, no âmbito
do Poder Judiciário, foi incluída entre os princípios a serem observa-
dos pelo Estatuto da Magistratura.
A matéria teve sua admissibilidade aprovada pela Comissão de Cons-
tituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados na análise
da PEC nº 334, de 1996, e da PEC nº 358, de 2005, entendendo
aquele órgão que a proibição de nepotismo não ofende o princípio da
igualdade e não fere direitos individuais.
A diferenciação normativa entre parentes e não-parentes, neste caso,
não pode ser considerada discriminatória, pois a finalidade, qual seja a
ampliação do acesso aos cargos públicos, está em conformidade com
os princípios constitucionais da Administração Pública da impessoa-
lidade e da moralidade.

8
Art. 114. I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de
direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos
estados, do Distrito Federal e dos municípios, exceto os servidores ocupantes de cargo
criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações
públicas dos referidos entes da Federação;
O judiciário na Constituição de 1988. Um poder em evolução 769

Logo após a aprovação da EC 45, de 2004, o CNJ editou a Reso-


lução nº 7, de 2005, alterada pela Resolução nº 9, de 2005 e 21, de
2006, que veda a prática de nepotismo no âmbito de todos os órgãos
do Poder Judiciário.
Em 2006, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) propôs
Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC-MC 12/DF) em
prol da citada Resolução nº 7, de 2005 do Conselho Nacional de Justi-
ça. O Tribunal, por maioria, concedeu a liminar nos termos do voto do
relator, ministro Carlos Ayres Britto, para, com efeito vinculante e erga
omnes, suspender, até exame de mérito da ação, o julgamento dos pro-
cessos que têm por objeto questionar a constitucionalidade da Resolu-
ção nº 7; impedir que juízes e tribunais venham a proferir decisões que
impeçam ou afastem a aplicabilidade da mesma resolução e suspender,
com eficácia ex tunc, ou seja, desde a sua prolação, os efeitos das decisões
já proferidas, no sentido de afastar ou impedir a sobredita aplicação.
Segundo o ministro relator da citada ADC, a Resolução nº 07, de 2005 se
dota, ainda, de caráter normativo primário, dado que arranca diretamente
do § 4º do art. 103-B da Carta Cidadã e tem como finalidade debulhar
os próprios conteúdos lógicos dos princípios constitucionais de centrada
regência de toda a atividade administrativa do Estado, especialmente o
da impessoalidade, o da eficiência, o da igualdade e o da moralidade. O
ato normativo densifica apropriadamente os quatro princípios do art. 37
da Constituição Federal, razão por que não há antinomia de conteúdos
na comparação dos comandos que se veiculam pelos dois modelos nor-
mativos: o constitucional e o infraconstitucional. Conclui, então, que o
Conselho Nacional de Justiça fez adequado uso da competência que lhe
conferiu a Carta de 88, com as alterações da Emenda 45/04.

3.4. Criação das súmulas vinculantes

As súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal têm o objetivo


de pacificar a discussão de questões examinadas em primeiro e se-
gundo graus de jurisdição. Após sua aprovação, por no mínimo oito
ministros, as súmulas passam a vincular agentes públicos, tanto do
Judiciário quanto da Administração Pública. As súmulas vinculantes
justificam-se diante do grande número de ações sobre o mesmo tema
a impedir o pronunciamento da Corte Suprema em tempo razoá-
vel. Estão em consonância com a tendência contemporânea para os
conflitos de massa, as demandas múltiplas e as ações coletivas, nas
quais a tese jurídica é apenas uma, multiplicada pelo grande número
de interessados na solução do litígio.
770 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Parece-nos que a súmula vinculante criada no âmbito do Supremo


Tribunal Federal vem prestigiar os juízes de primeiro grau e os tribu-
nais, cujas decisões, sempre recorríveis, não têm a eficácia desejável, tan-
to para seus prolatores quanto para as partes. E, indubitavelmente, esse
novo mecanismo também valoriza o Supremo Tribunal Federal como
órgão competente pela guarda da Constituição Federal. Diante do acú-
mulo de processos, o STF vem dando respostas tardias aos jurisdiciona-
dos em detrimento da celeridade processual e da segurança jurídica.
A súmula vinculante depende de reiteradas decisões sobre maté-
ria constitucional, conforme preceitua a Emenda Constitucional nº
45/04, o que assegura, a nosso ver, o amadurecimento do tema, tanto
no STF quanto nos juízos singulares e demais tribunais.9
Ademais, os juízes poderão, fundamentadamente, deixar de aplicar a
súmula vinculante caso esta não se aplique ao caso, consoante o prin-
cípio da motivação das decisões judiciais. O mesmo ocorre no regime
da common law, quando o juiz demonstra que o caso concreto não é
idêntico ao precedente judiciário (distinguishing e overruling).
A partir de maio de 2007, o Supremo Tribunal Federal passou a editar
súmulas vinculantes.10 Até a presente data11, foram editadas seis súmu-
las vinculantes, que tratam de variados assuntos: FGTS; bingos e lo-
terias; processo administrativo no TCU; salário mínimo usado como
indexador; defesa em processo administrativo disciplinar e fixação de
remuneração inferior ao salário mínimo.

3.5. Repercussão geral

A Reforma adota mecanismo de admissibilidade de recursos extraor-


dinários no Supremo Tribunal Federal, diante da enorme quantidade
de processos judiciais sob apreciação da Corte Suprema (art. 102, § 3º).
Segundo o Banco de Dados do Supremo Tribunal Federal, somente
em 2007 foram distribuídos 112.938 processos, sendo 94,4% recursos

9
BANDEIRA, Regina Maria Groba. Comentários sobre a reforma do Judiciário. A
Emenda Constitucional nº 45, de 2004. Cadernos ASLEGIS – jan./abr. 2005, p. 41.
10
A Lei nº 11.417, de 19/12/2006, regulamenta o art. 103-A da Constituição Fede-
ral e altera a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, disciplinando a edição, a revisão
e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Fede-
ral, e dá outras providências.
11
O presente estudo foi elaborado em junho de 2008.
O judiciário na Constituição de 1988. Um poder em evolução 771

extraordinários e agravos de instrumento12, um número inimaginável


para a realidade de países de sistema jurisdicional avançado.
Impende lembrar que, no âmbito dos recursos extraordinários, a União
é demandada em 19,3% do total de recursos. O Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS) vem em segundo, com 13,9%. A Receita Federal
(8,6%), a Caixa Econômica Federal (7,1%), o Estado do Rio Grande
do Sul (2,5%) e o Estado de São Paulo (2,1%) vêm em seguida.13
A Repercussão Geral, como novo filtro para a interposição de recursos
extraordinários, inspira-se na “argüição de relevância”, introduzida no
§ 1º do art. 119 da Constituição de 1967 pela Emenda Constitucional
nº 7, de 13 de abril de 1977. A matéria era regulada nos arts. 327 a 329
do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, entendendo-se
relevante a questão federal em virtude de seus reflexos na ordem jurí-
dica, considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais
da causa. A argüição de relevância foi considerada um instrumento do
arbítrio em razão de ter sido criada no período de ditadura militar.
O instituto da repercussão geral foi regulamentado pela Lei nº 11.418,
de 19 de dezembro de 2006, que acrescentou os arts. 543-A e 543-B, e
seus parágrafos, ao Código de Processo Civil. O prazo para a exigência
de fundamentação de repercussão geral nos recursos extraordinários
foi definido pelo STF na análise de questão de ordem no Agravo de
Instrumento 664.567. Somente poderá ser exigida a fundamentação
nos recursos extraordinários em que o início do prazo para sua in-
terposição tenha ocorrido após 3/5/07, data em que foi publicada a
Emenda Regimental nº 21 do STF, que regulamenta a questão.

4. A segunda parte da reforma do Judiciário em tramitação


na Câmara dos Deputados, por meio da pec nº 358, de 2005.

Merece especial registro, por ser tema muito polêmico, a modificação


de dispositivos relativos ao foro especial por prerrogativa de função,
com extensão para os ex-detentores de cargos públicos e abrangendo
a ação de improbidade (art. 97-A e art. 29, X).

12
Página do Supremo Tribunal Federal. Estatísticas do STF. Disponível em www.
stf.gov.br . Acesso em 20 mai. 2008.
13
Centro de Pesquisa de Opinião Pública – DATAUnB - Perfil das maiores deman-
das do Supremo Tribunal Federal. Relatório Final apresentado em 21/3/2005, p. 35.
Disponível em www.stf.gov.br , em Justiça em Números. Acesso em 6 set. 2005. Ver
também em Estado demanda mais no Supremo. Valor Econômico. 18/5/2005.
772 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Destacam-se, entre os temas objetos de alteração constitucional, a au-


tonomia das Defensorias Públicas da União e do Distrito Federal nos
moldes da autonomia das Defensorias Estaduais (EC nº 45); a criação
das súmulas impeditivas de recursos no Superior Tribunal de Justiça
e no Tribunal Superior do Trabalho; e a ampliação do objeto da Ação
Declaratória de Constitucionalidade, permitindo sua propositura em
face da legislação estadual.
A seguir, enumeramos as principais modificações constitucionais pro-
postas pelo substitutivo da Comissão Especial da Câmara dos Depu-
tados destinada a dar parecer à PEC nº 358, de 2005 (Relator Depu-
tado PAES LANDIM):
• Art. 21, XIII; art. 22, XVII; art. 48, IX; art. 134, §§ 1º e 3º – Au-
tonomia da Defensoria Pública da União e do Distrito Federal. A
União deixa de ter a competência para manutenção da Defensoria
Pública do DF, assim como a competência privativa para legislar
sobre esse órgão. A União conserva a competência de organizar e
manter o Poder Judiciário e o Ministério Público do DF. A União
mantém, ainda, a competência privativa para legislar sobre organi-
zação judiciária e do Ministério Público do DF, Ministério Público
da União e Defensoria Pública da União.
• Art. 93, III – O acesso aos tribunais de segundo grau obedecerá às
normas constantes do inciso II do art. 93, que estabelece as regras
para promoção por merecimento e antigüidade.
• Art. 93, XVI – Vedação do nepotismo no âmbito do Poder Judici-
ário. A PEC atingia os parentes até o segundo grau. O substitutivo
adotado pela Comissão Especial estendeu a vedação aos parentes
até o terceiro grau, nos moldes de Resolução do CNJ.
• Art. 95, I – O prazo para a aquisição da vitaliciedade é ampliado
de dois para três anos. O Conselho Nacional de Justiça passa a ter
competência para, pelo voto de três quintos de seus membros, re-
presentar ao Ministério Público para a abertura de processo visando
à perda do cargo de magistrado vitalício. O inciso I estabelece algu-
mas hipóteses nas quais poderá haver representação ao MP: negli-
gência e desídia reiteradas no cumprimento dos deveres do cargo,
arbitrariedade ou abuso de poder; procedimento incompatível com
o decoro de suas funções; infração do disposto no parágrafo único
do art. 95, que enumera cinco atividades vedadas aos magistrados
(texto que já está em vigor), entre elas, exercer a advocacia no juízo
ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afas-
tamento do cargo por aposentadoria ou exoneração.
O judiciário na Constituição de 1988. Um poder em evolução 773

• Art. 96, I, a – Eleição dos órgãos diretivos dos tribunais. O dispo-


sitivo estabelece que o quórum será de maioria absoluta, mediante
voto secreto. Permite a recondução dos dirigentes de tribunal, ve-
dando tão-somente a reeleição para mandato subseqüente. Essas
matérias têm natureza estatutária. O dispositivo deixa expresso que
os tribunais terão a competência para dispor sobre a criação e a
composição de seus órgãos.
• Art. 96, I, b – Competência privativa dos tribunais de organizar sua
polícia, como já ocorre com a Câmara dos Deputados e o Senado
Federal (arts. 51, IV, e 52, XIII).
• Art. 98, I – Dispositivo relativo aos juizados especiais. As turmas
recursais serão compostas por juízes de primeiro grau, integrantes,
sempre que possível, do sistema dos juizados especiais.
• Art. 98, § 3º – O dispositivo constitucionaliza o juízo arbitral. A Lei de
Arbitragem (Lei nº 9.307/96) foi considerada constitucional pelo STF,
decidindo a Homologação de Sentença Estrangeira – SE 5.206.
• Art. 99, § 2º, I – Encaminhamento de proposta orçamentária.
Competência do Conselho Nacional de Justiça constante da LDO.
(Parecer de mérito do Conselho Nacional de Justiça)
• Art. 99, § 6º – A abertura de créditos adicionais está condicionada a
prévio parecer de mérito do CNJ, excetuada a situação do Supremo
Tribunal Federal. Competência do Conselho Nacional de Justiça
constante da LDO.
• Art. 102, I, a e art. 102, § 2º – Amplia o objeto da Ação Declaratória
de Constitucionalidade, permitindo sua propositura para questio-
namento de legislação estadual.
• Art. 102, § 3º – Repercussão geral no STF. O substitutivo suprime a
fixação de quórum para a inadmissão de recurso extraordinário pelo
STF. O quórum aprovado pela EC nº 45, de 2004, é de dois terços
dos membros do STF.
• Art. 103-B – Segundo o substitutivo, o Conselho Nacional de Jus-
tiça passa a ter dezesseis membros, com o ingresso de um ministro
do STM.
• Art. 103-B, I – O presidente do STF passa a ser membro nato do CNJ.
• Art. 103-B, VI e art. 107 – Alteração da denominação dos juízes
do TRF. Os juízes dos TRFs passam a ser chamados desembarga-
dores federais.
774 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

• Art. 103-B, VIII e art. 115, caput – Alteração da denominação dos


juízes do TRT. Os juízes dos TRTs passam a ser chamados desem-
bargadores federais do trabalho.
• Art. 103-B, § 10 – Dispositivo alterado pelo substitutivo para que os
membros do CNJ tenham as garantias e vedações da magistratura.
• Art. 104, p.u., I – No substitutivo, na composição do STJ, um terço
dentre desembargadores federais dos Tribunais Regionais Federais
e um terço dentre desembargadores dos Tribunais de Justiça, indica-
dos em lista tríplice elaborada pelo próprio Tribunal, não precisam ser
oriundos da carreira da magistratura, como pretendia o texto original da
PEC. A expressão “oriundos da carreira da magistratura” foi suprimida
por força da aprovação da Emenda nº 1 da Comissão de Constituição
e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (CCJC).
• Art. 105, §§ 2º e 3º – Competência do STJ para definir a com-
petência do foro nas ações civis públicas e nas ações propostas por
entidades associativas na defesa dos direitos de seus associados. O
alcance territorial da decisão poderá ser restringido pelo Superior
Tribunal de Justiça, considerando-se a magnitude da lesão.
• Art. 105, § 4º – Inadmissibilidade de recurso especial. A lei preverá
as hipóteses em que os recursos não serão apreciados pelo STJ por
inadmissibilidade. Trata-se de mecanismo de filtragem de recursos
a ser definido em lei.
• Art. 105-A – Criação da súmula impeditiva de recursos do Superior
Tribunal de Justiça. Trata-se de mecanismo que impede a interposi-
ção de recurso contrário a decisão judicial que aplica súmula do STJ.
• Art. 107, II – O substitutivo prevê a promoção de juízes federais
para os TRFs por antigüidade e merecimento, alternadamente.
Aplica-se a regra do art. 93, II, b, da CF, não alterada pelo substitu-
tivo (primeira quinta parte).
• Art. 111-A, II – Dispositivo sobre a composição do TST. Hoje, o
TST é composto de quatro quintos de juízes dos TRTs, oriundos
da magistratura de carreira. Supressão da expressão “oriundos da
magistratura de carreira” pelo Destaque nº 35. A expressão foi
suprimida do art. 104, p. u., I, pela Emenda nº 1 da CCJC.
• Art. 111-A, § 1º – Lei disporá sobre a competência do TST para a
reclamação para preservação de sua competência. Quanto ao STF,
por exemplo, tal competência está prevista no art. 102, I, alínea l, da
Constituição Federal.
O judiciário na Constituição de 1988. Um poder em evolução 775

• Art. 111-B – Criação da súmula impeditiva de recursos do TST.


Trata-se de mecanismo que impede a interposição de recurso con-
trário a decisão judicial que aplica súmula do TST.
• Art. 114, I – Na competência da Justiça Laboral, o dispositivo con-
templa ressalva quanto ao julgamento de causas relativas aos servi-
dores públicos da administração direta, autárquica e fundacional.
Essas causas continuarão a ser julgadas pela Justiça Federal.
• Art. 116-A – A lei criará órgãos de conciliação e mediação, de aces-
so facultativo, sem caráter jurisdicional e sem ônus para os cofres
públicos, com representação de trabalhadores e empregadores, que
terão competência para conhecer de conflitos individuais de traba-
lho e tentar conciliá-los.
• Art. 123 – O STM passa a contar com onze membros. Hoje, são
quinze. O número de membros militares cai de dez para sete. Já o
número de civis diminui de cinco para quatro.
• Art. 124 – Competência da Justiça Militar da União para o proces-
so e julgamento das punições disciplinares aplicadas aos membros das
Forças Armadas. A Justiça Militar estadual já tem a competência para
as ações judiciais contra atos disciplinares militares (art. 125, § 4º).
• Art. 125, § 2º - Ação de inconstitucionalidade e de constituciona-
lidade no âmbito dos estados e do Distrito Federal. O substitutivo
inclui o Distrito Federal e a possibilidade de impugnação de legis-
lação distrital.
• Art. 125, § 8º – Criação de ouvidorias de justiça pelos Tribunais
de Justiça. O substitutivo acrescenta competência do CNJ ao qual
caberá a atribuição avocatória e revisional dos atos das mencionadas
ouvidorias de justiça.
• Art. 128, § 1º – O chefe do Ministério Público da União será es-
colhido dentre os integrantes do Ministério Público Federal. Fica
permitida uma única recondução.
• Art. 128, § 5º, I, a – O prazo para a aquisição da vitaliciedade pelo
membro do Ministério Público é ampliado de dois para três anos. O
Conselho Nacional do Ministério Público passa a ter competência para,
pelo voto de três quintos de seus membros, representar ao Ministério
Público para a abertura de processo visando à perda de cargo.
• Art. 129, § 6º – Denominação dos membros dos Ministérios Pú-
blicos dos estados e do Distrito Federal é modificada. Passam a ser
chamados promotores de Justiça.
776 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

• Art. 129, § 7º – Denominação dos procuradores-gerais de Justiça


dos estados e do Distrito Federal é alterada. Passam a ser chamados
promotores-gerais de Justiça.
• Art. 132 – Além dos procuradores dos estados e Distrito Federal, os
procuradores municipais também serão organizados em carreira, na
qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos,
com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as
suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica
das respectivas unidades federadas.
• Art. 168 – Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias,
compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos
órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público
e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada
mês, em duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere
o art. 165, § 9º. Inclusão no dispositivo das Procuradorias-Gerais
dos estados e do Distrito Federal.
• Art. 3º do substitutivo aprovado pela Comissão Especial – Revoga
o inciso X do art. 52 da Constituição Federal. Supressão da compe-
tência do Senado Federal para suspender a execução, no todo ou em
parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Su-
premo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade.

5. Conclusão

O presente estudo buscou dar um panorama das alterações consti-


tucionais mais relevantes atinentes ao Poder Judiciário desde a pro-
mulgação da Constituição de 88, traçando, em breves linhas, o que se
pode chamar de novo perfil dessa Instituição após a promulgação da
Emenda Constitucional nº 45, de 2004.
O princípio da garantia da prestação jurisdicional tempestiva consubs-
tancia importante diretriz para as reformas Infraconstitucionais que
serão implementadas, notadamente a reforma da legislação processual,
conforme determinação do art. 7º da Emenda Constitucional nº 45,
de 2004.14 Exige a mudança de atitude dos operadores do direito, prin-
cipalmente para praticar os atos que já lhes competem segundo o or-
denamento jurídico vigente, pois são as etapas mortas e não os prazos

14
Nessa linha, foi recentemente editada a Lei nº 11.672, de 8 de maio de 2008, que
estabelece procedimento para o julgamento de recursos especiais no âmbito do STJ
quando detectada multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão
de direito.
O judiciário na Constituição de 1988. Um poder em evolução 777

previstos em lei que mais retardam os processos judiciais. A estatística


ganha muita importância nesse contexto, permitindo o conhecimento
da realidade do Judiciário, a partir da coleta e estudo de dados, e o pla-
nejamento da Instituição com maior segurança e eficácia.
O processo de seleção de magistrados e as escolas voltadas para a for-
mação de juízes devem enfocar e aperfeiçoar a capacidade de síntese
do juiz, de visualização de casos e abordagem prática das teorias. Há
que se dar ênfase a novos aspectos na formação cultural do juiz, exi-
gindo-se dos candidatos conhecimentos sobre os problemas sociais,
economia e filosofia.
Parece-nos que a proibição do nepotismo poderia ser tratada em ní-
vel estatutário, pois os princípios constitucionais da moralidade e da
impessoalidade já repelem sua prática no serviço público em geral. Se
tratada em sede constitucional, deveria se referir aos três Poderes da
República e não apenas ao Judiciário, por uma questão de simetria.
O funcionamento ininterrupto do Judiciário e a exigência de aumento
do número de juízes de acordo com a população e a demanda são
princípios conducentes à ampliação do acesso à Justiça, exigindo a
implementação de uma política de maior investimento em recursos
materiais e humanos no Poder Judiciário.
A criação do Conselho Nacional de Justiça é o resultado de muitos anos
de debates no Congresso Nacional sobre a necessidade ou não de cria-
ção de órgão de controle do Poder Judiciário. Primeiramente, tem-se a
impressão de que o que animava os defensores da criação do Conselho
era a possibilidade de instituição de órgão competente para receber de-
núncias de corrupção e reclamações quanto aos serviços do Judiciário,
mas, ao longo do tempo, amadureceu a idéia de criação de um órgão
que pudesse, antes de tudo, pensar o Judiciário em nível nacional, de-
senvolvendo uma política nacional para o Poder Judiciário, e, em tarefa
complementar à das corregedorias, exercer o controle disciplinar.
Nesse passo, além do maior controle social sobre as atividades admi-
nistrativas do Poder Judiciário, o que atende à exigência republicana,
a sociedade brasileira espera que a criação do Conselho Nacional de
Justiça e outros mecanismos gerenciais que poderão ser fomentados
nos Tribunais e juízos possam provocar um verdadeiro choque de efi-
ciência na Instituição.
A atribuição de eficácia vinculativa às decisões do Supremo Tribunal
Federal restringe-se a situações bem delineadas no texto constitucional,
sendo razoável imaginar que esse Órgão de cúpula da estrutura judiciária
778 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

brasileira bem ponderará o alcance e limites de tais poderes excepcionais,


em matérias exaustivamente discutidas e que demandam soluções urgen-
tes para grande número de processos em tramitação no Judiciário.
A introdução da repercussão geral, a seu turno, é consentânea com o pa-
pel de uma Suprema Corte no exercício de sua jurisdição constitucional.
Compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, donde só
se pode concluir que o texto constitucional outorga ao STF o poder de
politicamente (de acordo com os fins e valores constitucionais) decidir
as causas que vai ou não julgar, como ocorre na Suprema Corte dos Es-
tados Unidos e em boa parte dos Tribunais Constitucionais europeus.
A Emenda Constitucional nº 45, de 2004, deu um primeiro passo para
a estruturação da prestação de assistência jurídica integral e gratuita
no país ao conferir autonomia administrativa e financeira às Defenso-
rias Públicas estaduais.15 O passo seguinte, talvez por meio da PEC nº
358, de 2005, será conferir também autonomia às Defensorias Públi-
cas da União e do Distrito Federal.
A ausência de autonomia das Defensorias Públicas impede, hoje, o
planejamento institucional e a definição e implementação de políti-
cas, o que, a nosso ver, é extremamente prejudicial para o sistema de
Justiça. Com a conquista da autonomia, parece-nos que a Defensoria
Pública poderá uniformizar procedimentos e estabelecer prioridades
para a Instituição, independentemente da interferência do Executivo.
Nessa linha, além de sua atuação conforme mandamento constitucio-
nal, a Defensoria Pública poderá desenvolver outras atividades volta-
das para a conscientização de direitos e deveres do cidadão.
Impende lembrar que a urgência das Reformas, tanto a constitucional
quanto a infraconstitucional, foi declarada pelos presidentes da Repú-
blica, do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal e da Câmara
dos Deputados, em 15 de dezembro de 2004, no ‘’Pacto de Estado em
favor de um Judiciário mais rápido e republicano’’, pois a morosidade
dos processos judiciais e a baixa eficiência de suas decisões retardam
o desenvolvimento nacional, desestimulam investimentos, propiciam
a inadimplência, geram impunidade e solapam a crença dos cidadãos
no regime democrático.

15
As Defensorias Públicas funcionam em vinte e quatro estados da Federação. A
Defensoria Pública do Estado de São Paulo foi criada por meio da Lei Comple-
mentar nº 988, de 9 de janeiro de 2006, e está em processo de implantação. As
Defensorias Públicas dos estados de Santa Catarina e Goiás ainda não estão em
funcionamento.
O judiciário na Constituição de 1988. Um poder em evolução 779

Desde então foram editadas leis ordinárias federais que aperfeiçoaram


o processo judicial, cabendo destacar: a lei que conferiu nova discipli-
na ao cabimento dos agravos retido e de instrumento (Lei nº 11.187,
de 19 de outubro de 2005), a que estabelece a fase de cumprimento
das sentenças no processo de conhecimento e revoga dispositivos re-
lativos à execução fundada em título judicial (Lei nº 11.232, de 22
de dezembro de 2005), a lei de informatização do processo judicial
civil, penal, trabalhista e os processos dos juizados especiais em todos
os graus de jurisdição (Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006),
e as leis que regulamentam a repercussão geral (Lei nº 11.418, de 19
de dezembro de 2006) e as súmulas vinculantes (Lei nº 11.417, de 19
de dezembro de 2006). Com o objetivo de implantar o CNJ, foram
editadas as Leis nºs 11.364, de 26 de outubro de 2006; 11.365, de 26
de outubro de 2006, e 11.618, de 19 de dezembro de 2007.
Forçoso reconhecer, portanto, que o Poder Judiciário vem merecendo do
legislador atenção consentânea com o fortalecimento de seu papel no
Estado Democrático de Direito em consolidação no Brasil. Como bem
ressalta Luis Roberto Barroso, o Poder Judiciário foi o grande vitorioso
nos vinte anos que sucederam a edição da Constituição Cidadã, com a
ampliação da demanda por Justiça e a judicialização de importantes ques-
tões nacionais. A seu ver, o Judiciário recuperou suas garantias e passou
a ser Poder político que disputa espaço com os demais Poderes estatais.
Aponta, ainda, a importância da jurisdição constitucional e o papel do
Supremo Tribunal Federal na proteção das minorias, na perspectiva de
que há avanços que o processo político majoritário não logra alcançar.16
Os passos seguintes da Reforma do Judiciário devem considerar, con-
tudo, a lúcida advertência do Ministro Gilmar Mendes, Presidente do
STF, ao alertar sobre a “cultura ‘judicialista’ que se estabeleceu forte-
mente no País, segundo a qual todas as questões precisam passar pelo
crivo judicial para serem resolvidas”. Em seu discurso de posse na Pre-
sidência do STF, o Ministro Gilmar Mendes conclamou a sociedade
civil, as organizações não governamentais, as entidades representativas
de classe e os órgãos como a Defensoria Pública, a “mobilizarem-se
para combater esse quase hábito nacional de exigir a intermediação
judicial para fazer-se cumprir a lei”17.
Trata-se especialmente de modificar a visão e o comportamento dos
operadores do direito e agentes públicos para a busca da prevenção de

16
Conferência “20 Anos da Constituição de 1988” proferida em 9/5/08, no VIII
Congresso Brasileiro de Direito de Estado, realizado em Salvador, Bahia.
17
Discurso de posse proferido em 23/4/08.
780 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

instalação de litígios e a utilização de mecanismos extrajudiciais de


solução de conflitos, a partir do reconhecimento de uma realidade: cabe
ao Judiciário prestar um serviço público, mas a colaboração da sociedade
é essencial para alcançar uma Justiça mais efetiva e ágil. Nessa linha, o
Movimento pela Conciliação, projeto lançado pelo Conselho Nacional
de Justiça em 23.08.06, pretende difundir uma nova cultura no país para
a resolução de conflitos e tem dado excelentes resultados, com o aumen-
to significativo de acordos na forma processual e pré-processual.
A Reforma do Judiciário depende também de uma mudança de hábi-
tos daqueles que entendem que se deve recorrer por recorrer, mesmo
que não haja razão para tanto; que se deve protelar para ganhar tempo,
enquanto a parte contrária espera por Justiça. Sem essa mudança de
comportamento, dificilmente combateremos o excesso de processos
e recursos nos juízos e tribunais, não obstante todos os esforços para
realizar as reformas constitucionais e da legislação processual.
Por fim, cabe lembrar que até mesmo o trabalho de consolidação das
leis federais no Congresso Nacional, em observância ao disposto na Lei
Complementar nº 95, de 1998, deve ser acelerado, na medida em que
contribui para a segurança jurídica e facilitará a prestação jurisdicional.
Resta evidente, assim, que o Poder Judiciário está em processo de
evolução, demandando medidas internas e externas para a superação
dos problemas ainda existentes, inclusive alterações da normativa per-
tinente em nível constitucional. Nessa marcha, acreditamos não ser
difícil projetar, a médio prazo, um serviço público de Justiça célere,
eficiente e condizente com o progresso que esperamos no terceiro mi-
lênio, prestado com respeito à dignidade do povo brasileiro.

Referências

BANDEIRA, Regina Maria Groba. Comentários sobre a reforma do Judici-


ário: a Emenda Constitucional n. 45, de 2004. Cadernos. ASLEGIS, Brasília,
jan./abr. 2005.
LIMA, Alcides de Mendonça. O Poder Judiciário e a Constituição. Rio de Janeiro
: Aide Ed., 1989.
MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. A reforma do Poder Judiciário e
seus desdobramentos na Justiça do Trabalho. Direito Público, n. 7, p. 36, jan.-fev.-
mar./2005.
TAVARES, Newton Filho. A Emenda Constitucional n. 45 e a reforma do Poder
Judiciário: algumas observações. Plenarium, Brasília, n. 2, nov. 2005..
Previdência Social
781

A Constituição de 1988 e seus


impactos na Previdência Social
Cláudia Augusta Ferreira Deud

I. Previdência Social sob a ótica da Constituição de 1988

A Constituição de 1988, no campo das políticas públicas voltadas ao


bem-estar social, inovou ao instituir o conceito de “seguridade social”,
para congregar as ações nas áreas de saúde, previdência e assistência so-
cial, submetendo-as aos princípios de universalidade, de uniformidade
de tratamento entre as populações urbanas e rurais e de eqüidade na
participação do custeio.
Para cada uma das áreas componentes da seguridade social, no entanto,
foram estabelecidos critérios diferenciados. O direito à saúde foi asse-
gurado a todos os brasileiros, a assistência social prestada a quem dela
necessitar e a previdência social ficou restrita aos seus contribuintes.
Trata-se de importante inovação, haja vista que as Constituições de
1946 e de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, sequer
possuíam título dedicado unicamente aos direitos sociais, incluindo
os dispositivos relativos à assistência médica e aos direitos previden-
ciários no Título da Ordem Econômica e Social. No âmbito da pre-
vidência social, previa-se apenas a cobertura dos eventos de doença,
velhice, invalidez, morte, seguro desemprego, acidentes do trabalho e
proteção à maternidade. Determinava-se, ainda, que os direitos pre-
videnciários seriam financiados com base nas contribuições da União,
do empregador e do empregado.
Além da introdução do conceito de seguridade social, foram as seguin-
tes as principais mudanças produzidas pela nova ordem constitucional
782 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

no âmbito da previdência social voltada para o trabalhador da iniciati-


va privada:1:
• instituição de um regime geral, para atender tanto a trabalhadores
urbanos como a trabalhadores rurais;
• elevação do piso dos benefícios para um salário mínimo. Anteriormen-
te, prevaleciam como limites mínimos: 95% do salário mínimo, para os
benefícios urbanos, e 50% do salário mínimo, para os benefícios rurais;
• redução em 5 anos, para os homens, e em 10 anos, para as mulheres, dos
limites de idade para efeito de aposentadoria dos trabalhadores rurais.
Esses trabalhadores se aposentavam somente após 65 anos de idade;
• extensão aos trabalhadores rurais sob regime de economia familiar
do direito à percepção dos benefícios do regime geral de previdência
social. Antes, somente o chefe ou arrimo da unidade familiar faziam
jus aos benefícios do Prorural;
• extensão, aos homens ou companheiros, do direito à pensão por
morte. Anteriormente, somente os maridos inválidos tinham direi-
to a esse benefício;
• extensão às mulheres do direito à aposentadoria proporcional após
25 anos de trabalho. Antes, somente os homens tinham direito à
aposentadoria proporcional após 30 anos de trabalho;
• extensão às professoras do direito à aposentadoria especial após 25
anos de exercício da função de magistério. Anteriormente, o bene-
fício era concedido após 30 anos de magistério, em termos propor-
cionais, aos homens e, integralmente, às mulheres;
• ampliação do período de licença à gestante de 90 para 120 dias;
• atualização monetária de todos os salários-de-contribuição envol-
vidos no cálculo do valor dos benefícios. Até então, dos 36 últimos

1
No âmbito do Regime Próprio dos Servidores Públicos, as alterações mais impor-
tantes foram as seguintes:
∙ previsão de instituição do Regime Jurídico Único para os servidores públicos civis
no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios (implantado
na União em 1991, com a Lei nº 8.112, de 1990);
∙ concessão de estabilidade aos empregados com mais de cinco anos de serviço público;
∙ elevação da pensão por morte para 100% da aposentadoria ou da remuneração.
Antes, o valor da pensão correspondia a 50% da aposentadoria;
∙ extensão da pensão por morte aos homens e companheiros. Tal como na previdência
dos trabalhadores em geral, somente às viúvas era concedido o direito à pensão;
∙ instituição da regra da paridade no reajustamento dos proventos e pensões.
A Constituição de 1988 e seus impactos na Previdência Social 783

salários tomados para efeito do cálculo da média corrigiam-se ape-


nas os 24 primeiros;
• reajuste dos benefícios com base em índice que preserve seu valor real;
• recomposição de todos os benefícios em manutenção na data de pro-
mulgação da Constituição com base no número de salários mínimos
a que correspondiam na data de sua concessão. Essa vinculação de
todos os benefícios previdenciários ao salário mínimo perdurou até a
entrada em vigor das Leis nºs 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de
1991, que regulamentaram as matérias relativas ao custeio da seguri-
dade social e aos benefícios da previdência social. A partir de então, os
benefícios passaram a ser reajustados com base em índices de preços,
exceto o piso, que se manteve atrelado ao salário mínimo.
Para financiar os novos direitos relativos à Seguridade Social, a Carta
Constitucional de 1988, previu que seriam utilizadas contribuições da
União, dos Estados e dos Municípios, bem como da sociedade em geral,
esta última representada pelos empregadores e trabalhadores. Como fon-
tes de recursos foram determinadas as provenientes da folha de salários,
do lucro e do faturamento. Em que pesem terem sido adotados critérios
específicos para cada uma das áreas da seguridade social, o financiamento
de suas ações dar-se-ia por meio de um orçamento unificado.
No que se refere ao financiamento da seguridade social, portanto, a
Constituição de 1988 inovou ao estabelecer a diversidade da base de
financiamento, uma vez que até então apenas as contribuições oriun-
das da União, dos empregadores e dos trabalhadores eram menciona-
das como fontes de custeio da previdência social.

II. Repercussões das novas regras no período 1988/1995

As medidas propugnadas na Constituição Federal de 1988 acarreta-


ram uma elevação significativa na quantidade de benefícios pagos pelo
Regime Geral de Previdência Social (RGPS). No período de 1988 a
1995, o número de benefícios emitidos elevou-se de 11,5 milhões para
16,2 milhões, refletindo um crescimento de 41%.
Tal comportamento decorreu do crescimento vertiginoso das con-
cessões no período, em especial a partir de 1992, quando foram efe-
tivamente implementados os direitos assegurados na Carta Magna,
784 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

através da entrada em vigor da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 19912,


conforme pode-se verificar na Tabela I.

Tabela I – Quantidade de benefícios concedidos

A concessão de aposentadorias por idade ao trabalhador rural ele-


vou-se do patamar de 129 mil, em 1991, para 670 mil, em 1992, 919

2
A recomposição dos benefícios previdenciários dos trabalhadores urbanos, prevista no
art. 58 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, foi efetuada em 1989.
A Constituição de 1988 e seus impactos na Previdência Social 785

mil, em 1993, e 421 mil, em 1994. Tal comportamento foi resultado


da redução, em dez anos, do limite de idade para obtenção do be-
nefício pela trabalhadora rural, e, em cinco anos, para o trabalhador
rural. Além disso, permitiu-se que o cônjuge do trabalhador rural
que já percebia aposentadoria por idade pudesse requerer sua própria
aposentadoria.

As aposentadorias por tempo de serviço, concedidas aos trabalhadores


urbanos, passaram do patamar de 60 mil, em 1990, para mais de 200
mil, a partir de 1992, muito provavelmente em função da permissão
para a aposentadoria proporcional aos 25 anos de serviço para a segu-
rada do RGPS e pelo próprio amadurecimento do regime previdenci-
ário brasileiro, este último fator refletindo-se, também, na elevação da
concessão de aposentadorias por idade.
As pensões também tiveram um crescimento significativo, pois passa-
ram a ser concedidas aos cônjuges do sexo masculino.
Além do aumento na concessão dos benefícios previdenciários, a des-
pesa cresceu em virtude da recomposição, em número de salários míni-
mos da época da concessão, dos valores dos benefícios em manutenção
pagos ao trabalhador urbano e da elevação, para um salário mínimo,
de benefícios anteriormente concedidos a trabalhadores rurais, cujos
valores eram inferiores a esse parâmetro.
Quanto ao financiamento das despesas previdenciárias, apesar da Car-
ta Magna ter incluído as contribuições sociais incidentes sobre fatu-
ramento e lucro como fontes de financiamento da Seguridade Social,
a contribuição incidente sobre a folha de salários permaneceu como
principal fonte de custeio da previdência social, embora durante o pe-
ríodo em análise tenha havido transferências da União para cobertura
dos gastos com benefícios previdenciários, em especial dos Encargos
Previdenciários da União (EPU), que são pagos pelo Instituto Nacio-
nal do Seguro Social mas cujo financiamento é de responsabilidade
única do Tesouro Nacional.
A conjugação dos direitos assegurados pela Constituição Federal e
das mudanças no padrão demográfico da sociedade acabaram por
elevar significativamente a despesa com benefícios previdenciários
de 2,5% do PIB, em 1988, para 5,0%, em 1995, conforme pode-se
constatar na Figura 1.
786 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Figura 1 – Receita e Despesa Previdenciária em


Relação ao PIB (%)

Fonte: Anuário Estatístico da Previdência Social

Enquanto foi registrado um crescimento expressivo da despesa com


benefícios previdenciários, a arrecadação bancária líquida, isto é, a
contribuição incidente sobre folha de salários descontadas as transfe-
rências efetuadas a terceiros (como Sesi, Senai, Sesc,Senac, Sest, Se-
nat, Senar, entre outros), cresceu com menor intensidade, em virtude
do aumento da informalização do mercado de trabalho, das baixas
taxas de crescimento econômico e do aumento do desemprego. De
fato, essa receita elevou-se de 4,3% do PIB, em 1988, para 4,6% do
PIB, em 1995. Com isso, a despesa com benefícios previdenciários,
que correspondia a 61% do total arrecadado com base na folha de
salários líquida, em 1988, passou para 103%, em 1995, comprometen-
do o repasse, existente à época, de parte dos recursos incidente sobre
a folha para o extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da
Previdência Social (Inamps).
A Constituição de 1988 e seus impactos na Previdência Social 787

Tabela II – Fluxo Caixa Instituto Nacional


do Seguro Social – R$ mil Valores Nominais

Apesar do substancial impacto financeiro, as medidas contidas na


Constituição Federal de 1988 tiveram importante repercussão redis-
tributiva na sociedade brasileira, com efeitos positivos sobre a redução
da pobreza no Brasil.
Em primeiro lugar, houve o resgate de uma dívida para com aposenta-
dos e pensionistas urbanos cujos benefícios estavam totalmente defasa-
dos em virtude de uma legislação que impedia a atualização monetária
dos doze últimos salários-de-contribuição considerados no cálculo do
valor do benefício em um período em que a inflação acumulada no ano
chegou a mais de 2.000%. Além disso, até 1991, quando se implemen-
tou a regra de reajuste com base na reposição integral da inflação, pre-
vista na Constituição Federal, a política salarial aplicada aos benefícios
não conseguia repor integralmente as perdas decorrentes dos elevados
índices inflacionários registrados no período. O precário equilíbrio fi-
nanceiro entre receitas e despesas da previdência social era obtido com a
redução, em termos reais, do valor dos benefícios previdenciários.
Os efeitos maiores se fizeram sentir na área rural, quando, apenas nos
anos de 1992 a 1994, foram concedidos mais de 1,7 milhão de bene-
fícios no valor de um salário mínimo a trabalhadores rurais, enquanto
outros 4 milhões de segurados rurais tiveram o seu benefício multi-
plicado por dois, haja vista que percebiam benefícios de valor inferior
ao mínimo. Considerado o efeito multiplicador dos benefícios previ-
denciários, o qual, segundo Fagnani (2008), e com base em estatísti-
cas do IBGE, é de 2,5 beneficiários para cada segurado diretamente
788 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

abrangido pelo RGPS, mais de 14 milhões de pessoas na área rural


foram afetadas positivamente pelas novas regras constitucionais, o que
representa um importante efeito distributivo de renda.
Como resultado final, pode-se detectar, hoje, uma queda nos níveis de
desigualdade social da população brasileira, resultado, principalmente,
de políticas de transferência direta de renda à população mais caren-
te, por meio dos benefícios previdenciários e assistenciais previstos
na Constituição Federal. Boletim de Políticas Sociais do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea (2007) constatou, com base
em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad
(2004) que, considerada a renda total percebida pelos brasileiros,
11,3% da população estariam abaixo da linha da indigência (renda
familiar per capita inferior a um quarto de salário mínimo mensal) e
30,1% abaixo da linha da pobreza (renda familiar per capita inferior
a meio salário mínimo mensal), em 2004. Se retirado dessa renda o
montante percebido através de programas de transferência de renda
direta (bolsa-família, por exemplo), benefícios de caráter assistencial e
benefícios previdenciários, esses percentuais se elevariam para 22,6%
e 41,7%, respectivamente.

III. Reformas constitucionais no período 1998/2003

Em que pesem os impactos sociais positivos, a significativa elevação


das despesas previdenciárias, decorrente da implementação dos novos
princípios constitucionais, provocou seguidas reformas constitucio-
nais no âmbito da Previdência Social. Entendeu-se necessário buscar
de forma mais efetiva o equilíbrio das contas previdenciárias, ade-
quando as normas relativas a benefícios aos padrões demográficos da
população brasileira. Nesse sentido, foram promulgadas três emendas
constitucionais ao longo do período 1998 a 2006: as duas primeiras
com o claro objetivo de fixar critérios mais rígidos para a concessão
de benefícios tanto pelos regimes próprios de previdência social dos
servidores públicos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios, como pelo RGPS, tutelado pelo Instituto Nacional do
Seguro Social; e a terceira com medidas, de certa forma, compensató-
rias para os servidores públicos.
Importante ressaltar que reformas previdenciárias não têm ocorrido
apenas no Brasil. Mais de dez países da América Latina e Caribe re-
formaram o seu sistema previdenciário a partir da década de 90, espe-
cialmente o Chile, que iniciou o processo já nos anos 80.
A Constituição de 1988 e seus impactos na Previdência Social 789

Mesa-Lago e Muller (2003) destacam dois tipos básicos de reforma


previdenciária:
• Estrutural, assim considerada aquela em que o sistema público é
substituído ou complementado por um sistema privado paralelo.
Subdivide-se em:
a) substitutiva – substituição do sistema público pelo sistema pri-
vado de capitalização;
b) paralela – sistema público continua a existir, mas tem a concor-
rência de um sistema privado de capitalização;
c) mista – sistema público reformado continua a existir, é de
filiação compulsória e responsável por uma pensão mínima,
enquanto o sistema privado de capitalização, também de ca-
ráter compulsório, responde pelo pagamento de pensão de
caráter complementar.
• Paramétrica, ou Incremental, assim chamada a reforma em que o
sistema público de repartição é preservado, mas suas finanças são
reforçadas, seja pela modificação nas regras de aquisição do benefí-
cio seja pela elevação da contribuição previdenciária.
As reformas constitucionais brasileiras foram todas paramétricas, nos
termos da conceituação acima. A primeira delas decorreu da Emen-
da Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, que “modifica
o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá
outras providências”.
A tramitação desta emenda iniciou-se em 28 de março de 1995 com
o envio ao Congresso Nacional da Proposta de Emenda Constitucio-
nal (PEC) nº 33, de 1995, elaborada pelo Poder Executivo durante o
governo de Fernando Henrique Cardoso.
A referida PEC nº 33, de 1995, tramitou durante aproximadamente
três anos e nove meses no Congresso Nacional, tendo sido convertida
na citada Emenda Constitucional nº 20, de 1998, cujas principais al-
terações produzidas no RGPS foram as seguintes:
• veda a utilização de recursos provenientes da contribuição social
incidente sobre a folha de pagamentos das empresas e a remune-
ração dos segurados para outros fins que não o pagamento dos
benefícios do RGPS;
• amplia a base de incidência da contribuição incidente sobre a folha
de salários, admitindo incidência da contribuição sobre os demais
rendimentos do trabalho pagos ou creditados a qualquer título à
790 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

pessoa física que presta serviço para a empresa, mesmo sem vínculo
empregatício;
• permite a incidência de contribuição social não só sobre o fatura-
mento como também sobre a receita da empresa;
• veda a incidência de qualquer contribuição previdenciária sobre as
aposentadorias e pensões concedidas pelo RGPS;
• substitui a aposentadoria por tempo de serviço por aposentadoria
por tempo de contribuição, sem, no entanto, adotar um limite de
idade mínimo;
• extingue a aposentadoria por tempo de serviço proporcional, em-
bora nas regras de transição exista a possibilidade de aposentadoria
por tempo de contribuição proporcional para aqueles que já estives-
sem filiados ao Regime na data de publicação da Emenda;
• veda a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a apo-
sentadoria, exceto nos casos de atividades exercidas sob condições
especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, definidos
em lei complementar;
• eleva o limite máximo para o valor dos benefícios do RGPS para R$
1.200,00 (equivalente, na época da publicação da Emenda Consti-
tucional nº 20, de 1998, a 9,2 salários mínimos);
• determina o pagamento do salário-família e do auxílio-reclusão
unicamente para os servidores e segurados de baixa renda, assim
considerados aqueles cuja renda bruta mensal fosse igual ou inferior
a R$ 360,00 mensais;
• veda o trabalho de menores de dezesseis anos, salvo na condição de
aprendiz, a partir dos quatorze anos;
• fixa regras de transição para a aposentadoria dos segurados que já
haviam se filiado ao RGPS até a data de publicação da Emenda.
Esta regra de transição não teve completa eficácia, uma vez que
não foi mantido, quando da discussão e votação na Câmara dos
Deputados, o critério de aposentadoria por tempo de contri-
buição conjugada com idade mínima, conforme adotado para os
servidores públicos;
• assegura direitos adquiridos para aqueles que já haviam implemen-
tado os requisitos necessários para a obtenção de aposentadoria e
pensão na forma da legislação anterior;
A Constituição de 1988 e seus impactos na Previdência Social 791

• fixa regras específicas para a previdência complementar: regime com-


plementar autônomo em relação ao RGPS e de caráter facultativo;
• determina que as contribuições do empregador, benefícios e condi-
ções contratuais previstas nos estatutos dos planos de benefícios de
entidades de previdência complementar não integram o contrato de
trabalho do empregado participante;
• veda o aporte de recursos a entidade de previdência privada pela
União, estados, Distrito Federal e municípios, suas autarquias, fun-
dações, empresas públicas, de economia mista e outras entidades
públicas, salvo na condição de patrocinador;
• elimina a menção à previdência complementar de caráter público, a
cargo do INSS.
Também foram adotadas medidas de contenção de gastos no âm-
bito do regime de previdência dos servidores públicos, em especial
a fixação de idade mínima para a aposentadoria por tempo de con-
tribuição, com regra de transição para os servidores que já estavam
vinculados ao setor público na data de promulgação da Emenda nº
20, de 1998.
A segunda reforma previdenciária foi determinada pela Emenda
Constitucional nº 41, de 2003. Diferentemente da Emenda Constitu-
cional nº 20, de 1998, a Emenda nº 41 tramitou por apenas 8 meses
no Congresso Nacional, tendo sido apresentada pelo Poder Executivo,
no Governo de Luís Inácio Lula da Silva, no dia 30 de abril de 2003,
por meio da PEC nº 40, de 2003, e promulgada no dia 19 de dezem-
bro de 2003.
As principais modificações introduzidas pela Emenda Constitucio-
nal nº 41, de 2003, referem-se ao regime de previdência do servidor
792 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

público3. No âmbito do RGPS, limitou-se a prever um sistema espe-


cial de inclusão previdenciária para trabalhadores de baixa renda, ga-
rantindo-lhes acesso a benefícios de valor igual a um salário mínimo,
exceto aposentadoria por tempo de contribuição, e a elevar, mais uma

3
As modificações introduzidas no regime de previdência dos servidores públicos
foram as seguintes:

∙ estabelece regras mais rígidas a serem aplicadas ao teto remunera-


tório no âmbito do setor público;
∙ determina que, além de preservar o equilíbrio financeiro e atuarial,
o regime dos servidores públicos deverá ser solidário, com con-
tribuições do ente público, dos servidores ativos e inativos e dos
pensionistas;
∙ para efeito do cálculo dos proventos de aposentadoria determina
que sejam consideradas as remunerações utilizadas como base para
as contribuições do servidor aos regimes de previdência, inclusive
do RGPS;
∙ fixa limites para a pensão por morte, sendo equivalente ao limite
máximo estabelecido para os benefícios do RGPS para os servido-
res que percebam remuneração correspondente a até aquele valor e
correspondente à soma do teto do RGPS e uma parcela de 70% do
que exceder a esse limite para os servidores que percebem remune-
ração de valor superior ao teto do RGPS;
∙ altera a forma de reajuste dos benefícios, não mais vinculada à re-
muneração percebida em atividade, mas sim a critérios que assegu-
rem o valor real dos benefícios;
∙ determina a incidência de contribuição sobre os proventos de apo-
sentadorias e pensões cujo valor exceda ao teto do RGPS;
∙ permite a instituição de previdência complementar para o servidor
público por meio de lei ordinária;
∙ autoriza a concessão de abono de permanência, de valor equiva-
lente ao valor da contribuição previdenciária, para os servidores
que tenham implementado as condições para a aposentadoria e
permaneçam em atividade. Este benefício, mais amplo, substituiu
a isenção da contribuição previdenciária prevista na Emenda nº 20,
de 1998;
∙ estabelece nova regra de transição para os servidores que já haviam
ingressado no serviço público até a data de publicação da Emen-
da Constitucional nº 20, de 1998, e outra, com possibilidade de
aposentadoria com proventos integrais, para aqueles que tenham
ingressado no serviço público até a data de publicação da Emenda
nº 41, de 2003;
∙ define regras para a fixação da alíquota de contribuição para os ser-
vidores inativos e pensionistas da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, estabelecendo que deverá ser igual à dos
servidores titulares de cargo efetivo e incidente sobre 50% ou 60%
da parcela que exceder o limite máximo do RGPS.
A Constituição de 1988 e seus impactos na Previdência Social 793

vez, o limite máximo para o valor dos benefícios para R$ 2.400,00,


equivalente, na época da promulgação, a 10 salários mínimos.
Paralelamente à PEC nº 40, de 2003, tramitou no Congresso Nacio-
nal a PEC nº 77, de 2003, que também objetivava alterar o sistema
previdenciário. De ressaltar que, diferentemente das demais, esta PEC
não foi enviada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, mas sim
apresentada, no Senado Federal, pela Senadora Ideli Salvatti, do PT
de Santa Catarina, como resultado de um acordo feito entre o governo
Lula e os Senadores. Para evitar que o substitutivo da Câmara ao texto
da PEC nº 40, de 2003, fosse significativamente alterado no Senado
e tivesse que retornar à origem, o que atrasaria a entrada em vigor das
medidas de contenção de gastos na previdência social, as modificações
de interesse dos Senadores foram incorporadas à citada PEC nº 77, de
2003, que, por isso, ficou conhecida como PEC Paralela.
A referida PEC nº 77, de 2003, foi apresentada no Senado Federal no
dia 8 de outubro de 2004 e, após cumprir os ritos regimentais naquela
Casa, foi enviada para a Câmara dos Deputados no dia 6 de janeiro de
2004, onde foi renumerada para PEC nº 227, de 2004. Na Câmara,
a proposta foi aprovada, com alterações, no dia 16 de março de 2005,
sendo, por isso, necessário o reenvio ao Senado Federal, o que foi feito
em 22 de março de 2005.
Novamente tramitando no Senado Federal, a proposta foi renume-
rada para PEC nº 77, de 2005, e teve a sua aprovação concluída em
15 de julho de 2005, quando foi convertida e promulgada a Emenda
Constitucional nº 47.
Importante destacar que a PEC nº 77, de 2003, teve sua tramitação
facilitada tanto no Senado Federal como na Câmara dos Deputados
porque continha alguns dispositivos neutralizadores às regras mais rí-
gidas existentes na Emenda Constitucional nº 41, de 2003.
As principais alterações contidas na Emenda Constitucional nº 47, de
2005, são as seguintes:
• exclui dos limites remuneratórios as parcelas de caráter indenizatório;
• permite a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a apo-
sentadoria também nos casos de atividades de risco e para pesso-
as com deficiência, no âmbito do setor público. Já em relação ao
RGPS, foi permitida a diferenciação de critérios apenas para as pes-
soas com deficiência;
• fixa limite diferenciado para a incidência da contribuição previden-
ciária sobre os proventos de aposentadoria e pensão do portador
794 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

de doença incapacitante, só podendo incidir contribuição sobre a


parcela da remuneração que supere o dobro do limite do RGPS;
• altera as normas relativas ao sistema especial de inclusão previden-
ciária no âmbito do RGPS, determinando que atenda a trabalha-
dores de baixa renda e àqueles sem renda própria que se dediquem
exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência.
Esses segurados passarão a ter direito a todos os benefícios no valor
de um salário mínimo, além de alíquotas e carências inferiores às
vigentes para os demais segurados;
• estabelece nova regra de transição para aposentadoria por tempo de
contribuição para os servidores públicos que tenham ingressado no
serviço público até 16 de dezembro de 1998. Existem, portanto, qua-
tro regras para aposentadoria por tempo de contribuição para os ser-
vidores públicos, a depender da data de entrada no serviço público;
• assegura a paridade entre proventos de aposentados e pensionistas
e remuneração dos servidores em atividade para a regra de transi-
ção prevista no art. 6º da Emenda Constitucional nº 41, de 2003,
e para os que se aposentarem na forma do art. 3º da Emenda nº
47, de 2005.
Ainda com relação às reformas constitucionais com impacto junto à
previdência social, cumpre mencionar, também, as Emendas Consti-
tucionais nºs 21, de 18 de março de 1999; 37, de 12 de junho de 2002;
e 42, de 19 de dezembro de 2003; que alteram o sistema tributário
nacional e, em especial, prorrogam a cobrança da Contribuição Provi-
sória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e
de Direitos de Natureza Financeira (CPMF).
As referidas Emendas destinaram parte da arrecadação da CPMF para
financiar a previdência social. Além disso, a Emenda nº 42, de 2003,
acrescentou dispositivo ao art. 195 da Constituição Federal, que dispõe
sobre o custeio da Seguridade Social, para instituir nova contribuição so-
cial, a cargo do importador de bens ou serviços do exterior ou de quem a
ele a lei equiparar, não-cumulativa com a contribuição incidente sobre o
faturamento ou a renda da empresa, e para permitir, por meio de lei or-
dinária, a substituição gradual da contribuição incidente sobre a folha de
pagamentos por aquela incidente sobre o faturamento e a renda.
Além da promulgação de três Emendas Constitucionais, o Gover-
no Federal vem sistematicamente alterando a legislação infraconsti-
tucional relativa à previdência do trabalhador da iniciativa privada,
consubstanciada nas Leis nºs 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de
A Constituição de 1988 e seus impactos na Previdência Social 795

1991, para ajustar o RGPS. Uma das alterações de maior significado


foi a introdução de nova regra para o cálculo do valor dos benefícios,
determinada pela Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999.
A referida Lei nº 9.876, de 1999, estabelece que para efeito do cálculo
do valor dos benefícios previdenciários será utilizada a média aritmé-
tica simples dos maiores salários-de-contribuição correspondente a
oitenta por cento de todo o período contributivo, multiplicado pelo
fator previdenciário, quando se tratar de aposentadoria por tempo de
contribuição ou por idade, sendo que, no caso desta última, a opção
pelo fator previdenciário é facultativa.
O fator previdenciário consiste em uma fórmula que eleva o valor do
benefício quanto maior o tempo de contribuição ou a idade do segurado
na data de requerimento do benefício, reduzindo-o quanto menor o
tempo de contribuição e a idade do segurado. A aplicação do fator no
cálculo dos benefícios previdenciários foi progressiva, de tal sorte que no
primeiro mês seguinte ao da publicação da lei incidiu apenas sobre um
sessenta avos da média aritmética simples, tendo se elevado cumulati-
vamente, a partir de então, mês a mês, até completar, em novembro de
2004, sessenta sessenta avos da média aritmética simples calculada.

IV. Impactos financeiros das reformas no âmbito


do regime geral de previdência social no período
1998/2006

Mesmo com as constantes reformas legais, as despesas com benefícios


previdenciários continuaram em ascensão. Em 1998, foram gastos R$
51 bilhões com o pagamento de benefícios do RGPS, enquanto, em
2006, esse montante foi de R$ 146 bilhões, o que representa, em termos
reais4, um crescimento de 58%. Pode-se afirmar, portanto, que as refor-
mas não surtiram, até o momento, os efeitos financeiros globais almeja-
dos, em especial a redução dos gastos com benefícios previdenciários.
O expressivo crescimento das despesas previdenciárias tem estreita cor-
relação com o atrelamento do piso previdenciário ao salário mínimo. Em
obediência ao disposto no art. 201, §§ 2º e 4º da Constituição Federal e
no art. 41 da Lei nº 8.213, de 1991, este último sucessivamente alterado
por legislações posteriores, a despesa com benefícios previdenciários é
reajustada anualmente com base em dois índices: a parcela correspon-
dente aos benefícios de valor igual ao piso previdenciário acompanha a

4
O INPC foi utilizado como índice de atualização.
796 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

variação do salário mínimo, e a parcela correspondente aos benefícios


de valor superior ao piso acompanha a variação do Índice Nacional de
Preços ao Consumidor (INPC), calculado pelo IBGE.
Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, o salário mínimo
vem sendo reajustado em níveis superiores à variação de preços, se to-
marmos o INPC como parâmetro. Busca-se fazer cumprir o disposto
no art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal, isto é, que o valor do
salário mínimo possa fazer face às necessidades vitais básicas do tra-
balhador e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde,
lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Assim sendo,
no período de 1998 a 2006, o salário mínimo foi reajustado em 169%,
enquanto a variação de preços calculada pelo INPC foi de 80%.
Como resultado, verifica-se, com base na Tabela III, que desde 1998
mais de 60% dos segurados do RGPS estão percebendo benefícios de
valor correspondente a até um salário mínimo. No tocante às despesas,
32% estavam, naquele ano, vinculadas a esse parâmetro, percentual
esse que tem se elevado gradativamente ano após ano, tendo atingido
37% em 2006. Esses números incorporam, também, a queda, no piso
previdenciário, de segurados do RGPS que tiverem suas rendas men-
sais iniciais concedidas com valor superior ao salário mínimo e que,
sistematicamente, tiveram reajustes inferiores à variação deste último,
em virtude da atual política de concessão de ganhos reais anuais ao
salário mínimo.

Tabela III – Quantidade e despesa com benefícios


previdenciários por faixa de salário mínimo posição
em dezembro de 1998 e 2006
A Constituição de 1988 e seus impactos na Previdência Social 797

No entanto, cabe registrar, como efeito positivo das seguidas alterações


legislativas, a redução significativa no número de aposentadorias urbanas
por tempo de contribuição concedido a partir de 1999, se comparado
aos anos de 1995 a 1998. Mesmo não tendo sido instituída uma idade
mínima5 para aposentadoria por tempo de contribuição, as concessões
foram reduzidas para 110 mil benefícios, em 2001, elevando-se a partir
daí até atingir 183 mil, em 2006, mas ainda longe de alcançar os pata-
mares de 1995 a 1998, conforme pode-se constatar nas Tabelas I e IV.

Tabela IV – Quantidade de benefícios concedidos

5
A idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição foi instituída pela
Emenda Constitucional nº 20, de 1998, para os servidores públicos, mas por um
voto não foi mantida, na Câmara dos Deputados, no âmbito do RGPS.
798 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Os resultados obtidos em relação à aposentadoria por tempo de con-


tribuição decorrem da exigência na comprovação de contribuição por
30 ou 35 anos, da eliminação da aposentadoria proporcional6, da exi-
gência de comprovação da efetiva exposição a agentes nocivos para
a concessão de aposentadoria especial7 e da adoção de uma regra de
cálculo desfavorável para o segurado que requerer o benefício com
idade reduzida.
Em relação a esse último ponto, Delgado, Quirino, Rangel e Stivali
(2006) comprovaram que o fator previdenciário acarretou aumento na
idade média da aposentadoria por tempo de contribuição e redução
no valor do benefício concedido, principalmente no caso das mulhe-
res, penalizadas pelo fato da legislação assegurar a elas a possibilidade
de saída mais cedo do mercado do trabalho8.

6
A aposentadoria proporcional continua a ser permitida para o segurado que já
estava filiado ao RGPS na data de publicação da Emenda Constitucional nº 20, de
1998, desde que contribua por um período de tempo adicional e que conte com 53
anos de idade, se homem, e 48 anos de idade, se mulher
7
O Anuário e o Boletim Estatístico da Previdência Social incluem a aposentadoria
especial como uma das espécies de aposentadoria por tempo de contribuição.
8
A Constituição Federal, em seu art. 201, § 7º, inciso I, permite a aposentadoria
aos trinta anos de contribuição para a mulher. Por isso, ao requerer esse benefício,
a segurada na maioria das vezes conta com idade reduzida em relação aos homens.
Para minimizar essa perda, o cálculo do fator prevê um acréscimo de cinco anos no
tempo de contribuição da mulher, conforme previsto no art. 29, § 9º, inciso I, da Lei
nº 8.213, de 1991, alterada pela Lei nº 9.876, de 1999.
A Constituição de 1988 e seus impactos na Previdência Social 799

Já as concessões de aposentadorias por idade na área urbana, após uma


queda nos anos de 1996 a 2001, tornaram a crescer a partir de 2002.
Tal comportamento pode ser explicado por um trade-off entre esta
aposentadoria e a aposentadoria por tempo de contribuição: impos-
sibilitado de comprovar 30 ou 35 anos de contribuição, o segurado
acaba por optar pela aposentadoria por idade que exige no máximo 15
anos de contribuição9. Além disso, a aplicação do fator previdenciário
é optativa na aposentadoria por idade e compulsória na aposentadoria
por tempo de contribuição. Na área rural, após o crescimento expres-
sivo registrado entre 1992-1994, a concessão dessa aposentadoria es-
tabilizou-se em torno de 280 mil concessões anuais, número esse bem
superior aos registrados em 1988 (126 mil), quando o benefício era
concedido a apenas um dos cônjuges.
Quanto ao auxílio-doença, concedido em caso de doença ou acidente
sem qualquer nexo causal com o trabalho do segurado na empresa
para a qual presta serviços, as concessões elevaram-se abruptamente
no período e ajudam a explicar parte do crescimento das despesas com
benefícios previdenciários emitidos no período sob análise. As con-
cessões desse benefício apresentaram um crescimento sem preceden-
tes a partir de 2002, tanto na área urbana como rural. Na área rural,
as concessões elevaram-se em 57% em 2002, mas estabilizaram-se a
partir de então. Já na área urbana, houve um crescimento de 63%,
passando de cerca de 660 mil concessões, em 2001, para 1.079 mil,
em 2002. Mas, ao contrário da área rural, continuaram em ascensão,
tendo atingido 1.927 mil concessões em 2006. Importante mencionar
que esse crescimento não foi detectado no âmbito do auxílio-doença
acidentário, assim chamado aquele que é decorrente de acidente ou
doença profissional.
O aumento nas concessões de auxílio-doença comum decorreu das
condições de trabalho insalubres, desemprego e dificuldade na rea-
daptação após doença ou acidente do trabalho, mas, principalmente,
da mudança da regra de cálculo do benefício determinada pela Lei
nº 9.876, de 1999. Mora (2007) comprovou um aumento do valor da
renda dos segurados que solicitaram auxílio-doença nos anos de 2003
e 2004. Como a fórmula de cálculo leva em conta 80% dos maiores
salários-de-contribuição desde 1994 e atualiza-os monetariamente, o

9
A Lei nº 8.213, de 1991, em seu art 142, estabeleceu uma regra de transição para o
aumento da carência da aposentadoria por idade para os segurados que já estivessem
inscritos na previdência social urbana até 24 de julho de 1991. Para aqueles que
requereram o benefício em 2007, a carência é de 156 meses.
800 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

valor do benefício acaba sendo, na maioria das vezes, superior ao ren-


dimento do trabalho do segurado. Além disso, a pesquisadora levanta
a hipótese de que os obstáculos impostos à concessão da aposenta-
doria por tempo de contribuição, inclusive àquela de caráter especial,
possam ter contribuído para a migração de segurados para o auxí-
lio-doença. Finalmente, Cechin e Giambiagi (2004) apontam fatores
administrativos, como a terceirização da perícia médica do INSS e o
fim da homologação da perícia dos credenciados por peritos do pró-
prio INSS, como fundamentais na análise da significativa elevação da
concessão do auxílio-doença no período.
Por último, cabe mencionar que o crescimento das despesas com be-
nefícios do RGPS tem sido acompanhado pelo crescimento da arreca-
dação da contribuição incidente sobre folha de pagamentos, embora a
elevação desta última mantenha ritmo inferior ao da primeira (Figura
1). Com isso, em 2006, a despesa com benefícios do RGPS já corres-
pondia a 146% da arrecadação bancária líquida.10
Agravam esse desequilíbrio as inúmeras renúncias fiscais, em especial
aquela relativa à área rural. Em 2006, por exemplo, foram gastos R$
30 bilhões com o pagamento de benefícios rurais, enquanto a contri-
buição previdenciária do segurado especial e aquela incidente sobre a
produção rural totalizaram, nesse mesmo ano, R$ 1,9 bilhão11, insufi-
ciente, portanto, para fazer frente à despesa.
Também geram repercussões negativas sobre o comportamento da
contribuição sobre a folha de pagamentos a baixa cobertura previden-
ciária no Brasil. Dados da Pnad apontam que a População Economi-
camente Ativa ocupada em 2005 era de 87 milhões de pessoas, das
quais apenas 41 milhões contribuíam para algum sistema de previdên-
cia, o que representa escassos 47%. Em relação ao RGPS, em 2005,
contabilizou-se 31 milhões de contribuintes e 21 milhões de benefici-
ários, o que resultou em 1,47 contribuinte para cada benefício emiti-
do, proporção extremamente baixa para assegurar a sustentabilidade
financeira do Regime sem fontes de recursos adicionais à contribuição
a cargo dos próprios segurados.
Especificamente quanto à previdência social no Brasil, Delgado (2006)
aponta que estão excluídos do sistema trabalhadores por conta própria

10
Em 2006 a arrecadação bancária líquida foi de R$ 113,4 bilhões e a despesa com
benefícios do RGPS foi de R$ 165,5 bilhões, segundo dados do Anuário Estatístico
da Previdência Social de 2006.
11
Anuário Estatístico da Previdência Social de 2006, Tabela 41.4.
A Constituição de 1988 e seus impactos na Previdência Social 801

não-agrícolas (11,8% da PEA); desempregados procurando emprego


(8,9% da PEA) e trabalhadores assalariados sem carteira de trabalho
(21,5% da PEA).

V. Conclusões

A Constituição de 1988 buscou integrar os direitos dos contribuintes


e dos cidadãos. Com isso, objetivava redistribuir renda em favor do
segmento populacional mais carente, sem, no entanto, prejudicar o
direito de aposentadoria de trabalhadores em atividade. Nesse sentido,
adotou o conceito de seguridade social, abrangendo as áreas de saúde,
previdência e assistência social.
Para financiamento dos novos direitos, a Carta Magna previu a diver-
sificação da base de custeio, instituindo um Orçamento da Seguridade
Social com recursos das contribuições incidentes sobre folha de salá-
rios, faturamento e lucro.
A atuação integrada das áreas de saúde, previdência e assistência social
não se consolidou em termos administrativos, cabendo aos Ministé-
rios da Saúde, da Previdência Social e do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome o equacionamento das ações nas suas respectivas
áreas de atuação.
No tocante à previdência social, os direitos assegurados na Consti-
tuição Federal elevaram as despesas de 2,6% do PIB, em 1988, para
4,3% do PIB, em 1992, ano em que foi implementada a maioria dos
dispositivos constitucionais.
A implementação de políticas redistributivas de renda contidas na
Constituição Federal de 1988, em especial a ampliação do número
de beneficiários na área rural e o pagamento do benefício de caráter
assistencial, acarretaram significativa redução nos índices de pobre-
za. Estima-se que as ações de previdência e assistência social, nos
moldes propugnados na Carta Magna, tenham reduzido os percen-
tuais de pobreza de estimados 41,7% da população brasileira para os
atuais 30,1%.
Sem embargo dos efeitos positivos na sociedade brasileira, a eleva-
ção do gasto previdenciário deu início a um período de constantes
reformas paramétricas na legislação previdenciária, com o intuito de
minimizar o desequilíbrio financeiro e atuarial de seu sistema previ-
denciário público projetado para os anos seguintes.
802 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

As principais medidas adotadas buscaram conter as despesas com be-


nefícios previdenciários, embora também algumas alterações legais te-
nham sido feitas com o objetivo de aumentar a contribuição ou elevar
o grau de fiscalização em relação a esses recursos.
Uma avaliação preliminar permite-nos constatar, no entanto, que os
objetivos das recentes reformas previdenciárias, em especial a redução
dos gastos totais com benefícios previdenciários emitidos pelo RGPS,
não foi alcançada Como proporção do PIB, a despesa com benefícios
passou de 5,5%, em 1998, para 7,1% do PIB, em 2006. Enquanto isso,
as receitas derivadas da tributação incidente sobre a folha de salá-
rios das empresas têm tido um crescimento real menor, atingindo, em
2006, 5,3% do PIB.
O equacionamento do sistema previdenciário brasileiro é, ainda, um
dos grandes desafios a ser enfrentado pelos gestores públicos.
Na busca de um equilíbrio financeiro duradouro, algumas medidas
com impactos diretos sobre o montante de gastos com benefícios po-
dem, ainda, ser adotadas: a substituição do fator previdenciário por
limites de idade fixados na Constituição Federal; o fortalecimento da
carreira da Perícia Médica com o intuito de evitar eventuais fraudes na
concessão do auxílio-doença; a aprovação do Projeto de Lei nº 1.291,
de 2007, oriundo do Senado Federal (nº de origem: PLS nº 261, de
2005), que modifica a fórmula de cálculo do auxílio-doença com o
objetivo de evitar que o valor desse benefício na data da concessão
seja superior ao rendimento do trabalho do segurado; a equiparação
das condições para aposentadoria das mulheres com os homens; a re-
avaliação das regras aplicáveis aos segurados rurais e da vinculação do
piso previdenciário ao valor do salário mínimo, inclusive em relação
aos benefícios de prestação continuada de caráter assistencial, institu-
ídos pela Lei nº 8.472, de 1993.
Em relação às duas últimas medidas mencionadas, qualquer alteração
na legislação em vigor há que ser feita com base em uma avaliação
criteriosa, haja vista estar comprovada a importância dos benefícios
previdenciários e assistenciais na redução da pobreza e dos níveis de
desigualdade social no Brasil. No entanto, entende-se que a adoção de
políticas públicas que busquem ampliar a cobertura do atendimento,
com a devida sustentação financeira, podem ter impactos econômicos
semelhantes a menor custo.
Estudo da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe –
Cepal (2006) conclui que a razão da reduzida cobertura previdenciária
na América do Sul e Caribe decorre da ênfase nos sistemas tradicio-
A Constituição de 1988 e seus impactos na Previdência Social 803

nais de previdência social, que excluem os trabalhadores vinculados a


atividades sazonais, informais ou de baixa produtividade. As reformas
que têm sido implementadas em todos os países da região não têm
respondido adequadamente a essa questão, principalmente na substi-
tuição do modelo de repartição pelo de capitalização individual, que
desconsidera a reduzida capacidade de poupança de grande parte da
população, e que, portanto, a opção feita pelos trabalhadores de menor
renda é pelo consumo presente e não pelo consumo futuro.
As soluções para a previdência social passam, portanto, não só pelo
incremento da contribuição previdenciária e pelo equacionamento
dos benefícios às mudanças dos padrões demográficos da população,
alvo constante das reformas paramétricas realizadas no Brasil, como
também pela discussão sobre a precarização das relações de trabalho,
crescimento econômico e distribuição de renda.

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Processo legislativo
805

A competência conclusiva das


comissões da Câmara dos
Deputados – da previsão
constitucional à prática
Luciana Botelho Pacheco

1. Uma breve digressão histórica

O parlamento concebido idealmente na época das Revoluções bur-


guesas dos séculos XVII e XVIII era formado por homens livres e
iguais, “iluminados” e movidos pela razão, considerados capazes de
decidir de forma desapaixonada e conforme o bem comum e a “von-
tade geral”.
Aquele, não custa lembrar, era um tempo em que a igualdade era “me-
nos igual” que a de hoje: a participação política não se estendia para
muito além de uma classe social, a burguesia, e as leis tinham um
caráter marcadamente genérico e abstrato, típico do Estado moderno
e liberal nascido das Revoluções.
Sob a premissa fundamental de que todos os legisladores eram igual-
mente capazes de examinar e decidir, pelo uso da razão, cada questão
apresentada às Câmaras, não se cogitava, nesses primórdios da história
parlamentar, da organização e divisão do trabalho legislativo por meio
de um sistema de comissões de tipo permanente e especializado como
o conhecemos hoje. Comissões só eram criadas excepcionalmente,
para o cumprimento de alguma tarefa específica, sendo desconstituídas
após sua realização. Em alguns parlamentos, como o norte-americano,
instituíram-se mecanismos para permitir a plena expressão da vonta-
de das maiorias e garantir ampla participação de todos no exame das
matérias, como foi o caso do “Committee of the Whole House”. Questões
políticas mais significativas eram consideradas primeiramente por essa
“comissão do todo”, que traçava as linhas principais dos projetos antes
de encaminhá-los a comissões especiais, constituídas para o exame
dos detalhes (Smith & Deering 1985, p.26).
806 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Essa concepção iluminista da lei e do Parlamento, contudo, não demoraria


muito a se apartar da realidade (Neves et al, 1980, p. 155). O progressivo
alargamento do direito de sufrágio, correlato ao surgimento dos partidos
políticos, viria alterar substancialmente o quadro da representação polí-
tica, fazendo com que a luta pelo poder se transportasse do campo das
instituições para o das forças sociais, crescentemente mais consolidadas e
organizadas. De outra parte, com a implementação gradual do Estado de
Providência e o incremento das tarefas do poder público, a lei de coman-
dos genéricos e abstratos da concepção clássica passaria a conviver com
outro tipo de normas, reguladoras de interesses específicos e de situações
concretas, emergentes, conjunturais. O idealismo dos revolucionários dos
setecentos e dos juristas dos oitocentos, como nota Clève (2000, p. 49),
não pôde resistir às mudanças que se operaram na vida social desde então,
e que vieram culminar na emergência do Estado social e da sociedade
técnica que marcam a contemporaneidade.
Nessa passagem de um a outro tipo de Estado, os Legislativos, sobrecar-
regados e despreparados tecnicamente, entraram em crise. Como relata
Ferreira Filho (1995, p.119), “os parlamentos e seus métodos de trabalho
não estavam em condições de dar conta desse acréscimo de funções e des-
se novo mister completamente diferente daquele para o qual foram ima-
ginados o controle político e, posteriormente, a elaboração legislativa.”
Com o crescimento do número de membros das Câmaras1e também
com o aumento da carga do trabalho legislativo, tornou-se extrema-
mente dificultoso o exercício do trabalho parlamentar naqueles mol-
des iniciais. Não se podia atender eficientemente a todas as demandas:
“o simples aumento da Câmara tornou impraticáveis as discussões ra-
cionais de princípios, inicialmente concebidas para ocorrerem numa
comissão do todo” (Smith & Deering, 1985, p. 29).
Segundo Castro (1985, p. 22), o despreparo técnico, aliado às dificul-
dades naturais decorrentes de sua estrutura colegiada e deliberativa,
fez com que se acentuassem as críticas de morosidade e ineficiência
que recaíam sobre os Parlamentos face à demanda regulatória cada vez
maior do Estado Social. Algumas mudanças na forma de atuação das
Casas Legislativas acabariam por se impor em nome da sobrevivência
da instituição parlamentar. Para superar a “pecha de poder moroso,
antiquado e problemático”, o Legislativo teria de se aparelhar melhor
tecnicamente, além de se empenhar na busca por mecanismos de oti-

1
A Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, por exemplo, passou de 64
para 142 membros na décima legislatura e para 241, na 29ª, conforme informam
Smith & Deering.
A competência conclusiva das comissões da Câmara dos Deputados – da previsão constitucional à prática 807

mização dos trabalhos que pudessem reduzir em alguma medida os


custos tradicionais do processo de deliberação.
Nesse contexto histórico o sistema de comissões parlamentares evoluiu
consideravelmente. Como anotam Neves et al (1980, p. 156), “compreen-
de-se que, ao longo do tempo, os plenários tenham transigido em cometer
a grupos de deputados o encargo de preparar as soluções fora do bulício da
grande sala, poupando-se boa parte dos debates, e que tenha repousado na
competência técnica dalguns a decisão preliminar das questões”. Na condi-
ção de organismos capazes de desempenhar “funções gerais de especializa-
ção técnica, de libertação do plenário de certas tarefas pouco adequadas a
sua estrutura e de ligação ao mundo dos interesses profissionais e econômi-
cos” (idem., p. 162), as comissões acabaram assumindo especial relevância
na forma de estruturação dos trabalhos legislativos, chegando a constituir,
em muitos modelos de organização parlamentar, um fórum privilegiado na
consecução das tarefas atinentes ao processo de elaboração das leis.
De órgãos ad hoc, temporários e eventuais, criados caso a caso por de-
cisão dos plenários, as comissões passaram a dispor de caráter perma-
nente e especializado, assumindo competências próprias, estabelecidas
nas normas internas das casas legislativas: “asi se hicieron practicamente
independientes del Pleno, consolidándose como otros órganos más de produc-
ción parlamentaria”( Medina, citado por Montero e Lopez, 2002, p.5)).
Se o “Parlamento em Assembléia” foi o tipo de órgão característico
do constitucionalismo do século XIX, o “Parlamento em comissões”
tornar-se-ia a figura destacada e prevalecente do constitucionalismo
contemporâneo, como apontado por Montserrat (1997, p. 101).

2. Comissões com poderes legiferantes: origens do modelo

O sistema de comissões concentra, na atualidade, parcela importante


dos processos de decisão dos Legislativos de muitos países, como é o
caso sempre notório dos Estados Unidos, mas igualmente o da Fran-
ça, o da Alemanha e o da Itália, para citar apenas alguns exemplos.
O modelo italiano, em especial, destaca-se pelo pioneirismo na ins-
tituição de um procedimento inovador em relação aos mecanismos de
elaboração legislativa mais tradicionais. A partir da Constituição de
1947, que se encontra até hoje em vigor naquele País, as comissões par-
lamentares da Itália passaram a dispor de competência não só para exa-
minar e dar parecer sobre os projetos apresentados às Casas legislativas,
808 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

como sempre ocorreu, mas também para decidir sobre a aprovação ou


rejeição de alguns deles, substituindo o Plenário nessas deliberações2.
Como informa Segado (2003, p.27/29), durante os debates da Assem-
bléia Constituinte italiana suscitara-se a problemática da adoção de
fórmulas de deliberação legislativa mais ágeis, que pudessem respon-
der à exigência, dos setores políticos e de parte da opinião pública, de
uma legislação rápida e adequada às crescentes tarefas do Estado so-
cial de direito. De uma proposta inicial de se remeter às comissões os
projetos sobre leis de caráter mais técnico, para que sobre eles se mani-
festassem em parecer a ser votado no Plenário sem debates, evoluiu-se,
nos trabalhos constituintes, para o procedimento afinal aprovado, que
defere às comissões não só o exame preliminar dos textos legislativos,
mas também a possibilidade de sua aprovação ou rejeição sem neces-
sidade de remessa ao plenário, salvo em caso de recurso subscrito pelo
governo ou pelas minorias, mecanismo que, nas palavras de Segado,
“constituyó verdaderamente um ‘quid novi’ en la historia de los modernos
ordenamientos constitucionales”.
Embora concebido em princípio para ser empregado não de forma
corriqueira, mas em situações específicas, que exigissem especial cele-
ridade, informa ainda Segado que na prática parlamentar essa relação
acabou se invertendo, vindo o procedimento de comissões a ser usado
em grande vantagem, já nas primeiras duas legislaturas pós-consti-
tuinte, em torno de três vezes para cada uma de plenário3. Tais dados
também são relatados em Di Ruffia (1984, p. 340).
Sob influência do sistema italiano, também na Constituição espanhola
de 1978 foi inserida uma disposição referente ao poder decisório das
comissões, que já tivera alguns precedentes no regime autoritário an-
terior. Embora fosse nítida a determinação dos constituintes de 1977
em repelir radicalmente as instituições da era do franquismo, esse ins-
tituto acabou sobrevivendo na nova Constituição, em parte, como se
disse, por influência do modelo italiano, mas em parte também por já
se ter incorporado plenamente à prática parlamentar, tendo sido ado-

2
A origem histórica do instituto remonta, na verdade, a uma lei do regime fascista
anterior, mas a Constituição de 1947 tratou de adaptar plenamente o procedimento
às práticas e princípios do regime democrático (Segado, 2003, p.24).
3
“Esta proporción, em torno al 75 por 100 a favor del procedimento descentralizado, como
revelan los datos ofrecidos por Martines, se mantendría, incluso en un leve pero constante
ascenso, hasta la sexta legislatura, iniciándose en la séptima una inversión de la tendencia
que, por ejemplo, ha situado esse porcentaje en la décima legislatura em torno de 54 por
100. Todo ello conduce a uma conclusión evidente: se ha producido um verdadero vuelco
em la relación existente entre el procedimiento supuestamente normal y el formalmente
conformado como excepcional.” (Segado, op.cit.)
A competência conclusiva das comissões da Câmara dos Deputados – da previsão constitucional à prática 809

tado até pelas próprias câmaras constituintes – inspiradas, então, no


Regulamento das Cortes de 1971, de reconhecida qualidade técnica,
como apontado por Segado (idem, p.27/29).
No que diz respeito à aplicação prática dessa “competência legislativa
plena” das comissões, expressão usada para identificar o mecanismo nos
regimentos internos do Congresso de Deputados e do Senado da Espa-
nha, anota Nieves (1994, p. 18) que, como no sistema italiano, naquele
país se tem igualmente verificado o fenômeno da “generalizada práctica
de sanción de leyes por parte de las comisiones antes que por el Pleno (...).”

3. A instituição do mecanismo no Brasil

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 inspirou-se nitidamente


nos textos italiano e espanhol ao adotar, em seu art. 58, a possibilidade
de as comissões parlamentares virem a discutir e votar projetos de lei
que, de acordo com o Regimento Interno de cada Casa legislativa,
possam prescindir de apreciação pelos Plenários.
A influência do modelo italiano já se fizera sentir entre nós desde a
aprovação da Emenda Constitucional nº 17/654, que introduzira na
Constituição de 1946 duas disposições conferindo parcela de poder
decisório às comissões: o § 5º do art. 67, que viria a cogitar da possibi-
lidade de delegação, pela Câmara ou pelo Senado, de poderes legisla-
tivos a comissões especialmente criadas para essa tarefa (resguardada
a possibilidade de recurso aos plenários); e o § 9º do mesmo art., que
daria às comissões permanentes de cada Casa o poder de impedir a
remessa de projetos à deliberação dos plenários quando os pareceres
por elas proferidos fossem unanimemente no sentido de sua rejeição.
Reproduzidas em termos assemelhados tanto na Constituição de
1967 quanto na Emenda Constitucional nº 1/695, tais disposições não
teriam, contudo, aplicação prática significativa sob o regime políti-
co então instaurado, que teve no uso autoritário do Decreto-Lei sua
maior expressão, como menciona Horta (2003, p. 550).

4
Relata HORTA (2003, p. 541) que o processo legislativo organizado na Consti-
tuição de 1946 não demorou a suscitar críticas e propostas de aperfeiçoamento, pre-
conizando correções e ajustamentos aos reclamos de maior eficiência na elaboração
das leis. A Emenda Constitucional nº 17/65 viria a representar a primeira etapa
de um processo de reformulação das instituições legislativas que se aprofundaria,
depois, com a Constituição de 1967 e sua Emenda nº 1/69.
5
Cf. arts. 56 e 61, § 2º, CF de 1967 e 53 e 58, § 2º, EC de 1969.
810 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A inserção, pois, no texto da Constituição de 1988 da possibilidade


de os regimentos internos das Casas legislativas atribuírem poder le-
gislativo às comissões parlamentares acabou sendo recebida e saudada
como verdadeira novidade entre nós – e de fato assumiu esse caráter,
pelo ineditismo da extensão e da amplitude com que foi previsto no
art. 58, § 2º, da Carta Constitucional. Diferentemente dos textos an-
teriores, agora a competência de votar projetos é atribuível a todas as
comissões parlamentares, e não apenas a comissões especiais criadas
para o exame de uma matéria; além disso, não há mais necessidade de
o Plenário votar uma delegação para cada caso: quem estabelece as hi-
póteses em que as comissões terão poder de decisão sobre os projetos
são os regimentos internos de cada Casa.
Considerado um instrumento moderno, voltado à otimização dos tra-
balhos legislativos, o poder conferido às comissões deveria substituir o
Plenário na deliberação de matérias mais corriqueiras. Na expectativa
dos constituintes de 1988, o mecanismo haveria de imprimir nova di-
nâmica ao trabalho parlamentar. Confiram-se, a propósito, as palavras
do então Deputado Pimenta da Veiga, emblemáticas do estado de
espírito com que se adotava no País o novo instituto:
(...) é um notável avanço, é um encontro com a modernidade a
aprovação das emendas dos deputados constituintes Henrique
Córdova e Fernando Lyra, que dão nova estrutura aos trabalhos
das comissões, mantida a representação partidária para que pos-
sam discutir e votar, em caráter terminativo, os projetos de lei,
reservado sempre ao Plenário o recurso indispensável. Isto fará
com que as comissões técnicas despertem um novo interesse e
possam efetivamente produzir o trabalho que é produzido nos
demais Parlamentos: realizar audiências públicas, convocar, e
não apenas convidar, Ministros de Estado, acompanhar, junto ao
governo, a elaboração da proposta orçamentária, bem como sua
posterior execução. São avanços extraordinários que vão mudar a
vida da Câmara e do Senado. Aprovada esta emenda, o Plenário
não será exposto a reunião para deliberação sobre matérias sem
importância, mas ao contrário, ficará resguardado para exami-
nar apenas aquelas de real importância. Com isso, as comissões
terão um grande comparecimento, porque suas decisões trarão
uma grande conseqüência, e o Plenário ficará protegido daquelas
lamentáveis sessões, onde há apenas meia dúzia de deputados(...)
Por isso mesmo, caros Constituintes, pelo avanço que a medida
encerra, pela dinâmica nova que poderá emprestar à atividade
parlamentar, proponho a aprovação da iniciativa.6

6
Cf. Diário da Assembléia Nacional Constituinte de 18 de março de 1988, p. 8621.
A competência conclusiva das comissões da Câmara dos Deputados – da previsão constitucional à prática 811

O entusiasmo era justificável. Como observa Clève (2000, p.83), a pre-


visão constante do art. 58, § 2º, da Constituição de 1988, constituía-se
em exemplo de mecanismo de descentralização legislativa, fenômeno
cada vez mais presente nos parlamentos da atualidade, consistente na
possibilidade de criação de atos normativos, sob a forma de lei ou não,
por outros órgãos além dos plenários das casas legislativas, já muito
sobrecarregados. Nas palavras do autor:
Trata-se de mecanismo voltado à racionalização do Legislativo,
que favorece a sua adaptação às circunstâncias produzidas pela
sociedade técnica. Especialização (preparo técnico) e celeridade
são os objetivos perseguidos pelo Legislativo descentralizado, a
fim de não frustrar as expectativas normativas crescentes da so-
ciedade pós-industrial.

Na Câmara dos Deputados, o Regimento Interno adotado a partir de


1989 pretendeu dar o emprego mais amplo possível ao mecanismo
do poder decisório das comissões. A regra geral impressa em seu art.
24, inciso II, foi a de que projetos de lei ordinária seriam discutidos e
votados apenas por meio desse novo procedimento, ressalvadas algu-
mas exceções ali expressamente mencionadas. Procurou-se, assim, res-
guardar o Plenário para a apreciação de matérias tidas como de maior
relevância institucional – como propostas de emenda à Constituição,
projetos de lei complementar, projetos de código, projetos de iniciati-
va popular e mesmo projetos de lei ordinária que envolvessem temas
politicamente mais sensíveis, como direito eleitoral ou direitos e ga-
rantias individuais, por exemplo. Ao Plenário também ficou reservada
a apreciação de projetos que, seja por não obterem consenso entre as
comissões quanto à aprovação ou rejeição, seja por se encontrarem em
regime de urgência, exigindo apreciação mais célere, não se tornassem
suscetíveis de apreciação pela via do rito ordinário das comissões.7

4. Da previsão constitucional à prática: alguns problemas


e entraves verificados

A despeito de todo o entusiasmo e expectativa dos constituintes quando


de sua instituição, o poder decisório conferido às comissões, no caso da
Câmara dos Deputados, não obteve desde logo o prestígio e a visibili-
dade pública que se imaginava viesse a alcançar, muito pelo contrário.
Vários fatores desfavoráveis pareceram conspirar contra seu bom de-
sempenho e funcionalidade, a começar pela incipiente regulamentação.

7
As exceções à regra da apreciação via poder conclusivo estão listadas nas alíneas a
a h do art. 24, inciso II, do Regimento Interno da Câmara.
812 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Na verdade, embora concebido para ser o procedimento mais corri-


queiro de apreciação de projetos de lei, esse mecanismo, novo e estra-
nho à sistemática tradicional do processo legislativo, acabou recebendo
muito pouca atenção do Regimento Interno afinal aprovado, que não
dedicou sequer uma seção inteira ao disciplinamento de seu exercício
pelas comissões. As poucas normas que lhe dizem respeito foram es-
palhadas ao longo do texto, o que dificulta sua adequada identificação
mesmo pelos leitores mais atentos.
A expressão “poder conclusivo” ou “apreciação conclusiva”, por exem-
plo, apesar de hoje consagrada na linguagem dos “especialistas” em
Regimento Interno para designar a nova competência atribuída às
comissões, não chega nem a ser mencionada no art. 24, inciso II, prin-
cipal referência normativa para essa matéria.8 Em outras disposições
regimentais, contudo, é empregada como se se tratasse de um conceito
já conhecido, ao qual se faz referência sem maiores esclarecimentos,
na suposição de que o aplicador da norma saberá do que se está ali a
tratar. É o caso, por exemplo, do art. 58, que prescreve o procedimento
a ser aplicado após “encerrada a apreciação conclusiva da matéria (...)”,
ou também do art. 119, que dispõe sobre a apresentação de emendas
em comissão “no caso de projeto sujeito a apreciação conclusiva (...)”.
O problema se complica um pouco mais pela confusão decorrente
do uso, no mesmo Regimento, de termo sinônimo – “terminativo”
– para se referir a um tipo de parecer de comissão que, na verdade,
não coincide exatamente com as hipóteses de apreciação conclusi-
va previstas no art. 24, II. Trata-se, no caso da Câmara, daqueles
pareceres emitidos sobre os aspectos de admissibilidade jurídico-
constitucional e financeiro-orçamentária das proposições em geral,
que têm o condão de pôr fim ao respectivo trâmite se lhes forem

8
Dispõe o referido art.: “Às comissões permanentes, em razão da matéria de sua
competência, e às demais comissões, no que lhes for aplicável, cabe: (...) II – discutir
e votar projetos de lei, dispensada a competência do Plenário, salvo o disposto no
art. § 2º do art. 132 e excetuados os projetos: a) de lei complementar; b) de código;
c) de iniciativa popular; d)de comissão; e) relativos a matéria que não possa ser ob-
jeto de delegação, consoante o § 1º do art. 68 da Constituição Federal; f)oriundos
do Senado, ou por ele emendados, que tenham sido aprovados pelo Plenário de
qualquer das Casas; g) que tenham recebido pareceres divergentes; h) em regime de
urgência”. Observa-se que é por meio da menção a “art. 24, II” que a Mesa sinaliza
às comissões, nos despachos de distribuição das proposições, que a apreciação a ser
feita terá caráter conclusivo. Quando não há essa menção é porque o rito a ser se-
guido, no entendimento da Mesa, deverá ser o tradicional, provavelmente porque a
proposição se encaixa em alguma das hipóteses listadas no inciso II do art. 24.
A competência conclusiva das comissões da Câmara dos Deputados – da previsão constitucional à prática 813

desfavoráveis9. Em rigor, são ambos poderes derivados do mesmo


fundamento constitucional - o art. 58, § 2º, I, da Carta da República
- mas o Regimento, embora não tenha sido feliz na tarefa, pretendeu
distingui-los para alguns efeitos, o que gera ainda hoje na prática
grande confusão entre leigos e desavisados.
A falta de atenção do legislador interno com o novo procedimento
ficou evidente também no que diz respeito à prescrição dos prazos
para a apreciação das matérias pelas comissões. Apesar de consumir
mais tempo em cada comissão que o rito tradicional10, o procedi-
mento conclusivo não foi contemplado com prazos próprios, mais
alargados que os daquele, o que algumas vezes põe em risco a própria
manutenção da competência decisória das comissões sobre a maté-
ria, uma vez que o esgotamento dos prazos sem a devida apreciação
por parte de uma comissão pode ter como conseqüência a remessa
do projeto para o âmbito do Plenário.11
A ausência de uma sistemática normativa própria e adequada às es-
pecificidades do novo procedimento é fator que contribui, ainda, para
sua pouca visibilidade no conjunto dos trabalhos da Casa. As regras
empregadas na discussão e votação conclusiva dos projetos pelas co-
missões acabaram sendo praticamente as mesmas aplicadas no proce-
dimento tradicional: o que se põe em votação, num e noutro caso, são
pareceres sobre as proposições e não seus textos em si mesmos, como
ocorre no Plenário . Não há reuniões de comissão exclusivamente in

9
Dispõe o art. 54 do Regimento Interno: “Será terminativo o parecer: I – da Co-
missão de Constituição e Justiça e de Cidadania, quanto à constitucionalidade ou
juridicidade da matéria; II da Comissão de Finanças e Tributação, sobre a adequa-
ção financeira ou orçamentária da proposição; III – da comissão especial referida no
art. 34, II, acerca de ambas as preliminares.”
10
No rito conclusivo, diferentemente do tradicional, há uma fase de emendamento
perante as comissões que consome cinco sessões a partir do recebimento da maté-
ria em cada uma delas. E quando há texto substitutivo ao da proposição principal
proposto pelo respectivo relator, outras cinco sessões deverão ser destinadas à apre-
sentação de emendas a esse substitutivo. Só aí, como se pode ver, já se terão gasto
todas as dez sessões destinadas à apreciação de um projeto que tramite em regime de
prioridade, por exemplo. Mesmo quando se dispõe de um prazo maior, como o de
quarenta sessões para projetos em regime de tramitação ordinária, há prejuízo evi-
dente para os trabalhos de rito conclusivo quando comparado ao procedimento de
Plenário, que não tem fase de emendamento perante as comissões e permite maior
folga nos prazos de apreciação da matéria pelas comissões.
11
Essa regra sobre perda dos prazos e possibilidade de quebra do poder conclusivo
está no art. 52, § 6º, do Regimento Interno, que dispõe: “(...) esgotados os prazos
previstos neste art., o Presidente da Câmara poderá, de ofício ou a requerimento de
qualquer Deputado, determinar o envio de proposição pendente de parecer à comis-
são seguinte ou ao Plenário, conforme o caso, independentemente de interposição
do recurso previsto no art. 132, § 2º, para as referidas no art. 24, inciso II.”
814 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

sede legislativa12, nem se cuida de dar nenhuma especial distinção e


publicidade ao procedimento. O resultado disso é que, muitas vezes,
nem mesmo os parlamentares se dão conta de quando estão votando
com efeito decisório ou meramente opinativo sobre um projeto. Ex-
pectativas como a do então Deputado Sólon Borges do Reis (expres-
sadas quando ainda se discutiam as novas regras regimentais pós-88),
de que, ante o novo status constitucional dado às comissões, agora os
Deputados, ao votar nos órgãos técnicos, “saberiam que estariam le-
gislando”13, nem sempre conseguem se concretizar na prática.
Uma outra ordem de problemas, pertinente à estrutura e à organiza-
ção interna do sistema de comissões como um todo, não pode também
deixar de ser mencionada como fator capaz de afetar parte da funcio-
nalidade do mecanismo do poder decisório das comissões no âmbito
da Câmara dos Deputados.
A Casa conta, atualmente, com um sistema complexo e um tanto ca-
ótico que abriga vinte comissões permanentes especializadas e um
sem-número de temporárias a disputarem entre si a atuação, o tem-
po e a dedicação dos parlamentares. Além disso, a distribuição de
competências entre os órgãos permanentes é pouco equilibrada, com a
concentração de muitas atribuições nas mãos de apenas alguns deles,
conduzindo a verdadeiros “engarrafamentos” no trâmite de muitas das
proposições. O caso da Comissão de Constituição e Justiça e de Cida-
dania é o mais dramático de todos: encarregada do exame de admissi-
bilidade jurídico-constitucional de praticamente todas as proposições
apresentadas à Casa, além de uma série de outras matérias pertinentes
a seu campo temático próprio, acaba tendo de se manifestar sobre um
número inacreditavelmente grande de proposições, muitíssimo maior
que o da maioria das outras comissões e que o do Plenário. O resul-
tado, como seria de se esperar, é uma pauta permanentemente lotada,
e muitas matérias ali estacionadas por mais tempo que o permitido
regimentalmente, sob o risco, como já se mencionou anteriormente,
de perda do caráter conclusivo da apreciação pelo esgotamento dos
prazos sem a devida deliberação da comissão.
Além de todas essas deficiências de ordem normativa e organizacional
aqui apontadas, relatam Cintra e Lacombe (2005, p.161) que alguns

12
Tomamos de empréstimo, aqui, a feliz nomenclatura empregada no Regimento
da Câmara dos Deputados Italiana para designar as reuniões de comissão em que se
delibera conclusivamente sobre proposições.
13
Discurso proferido por ocasião dos debates travados no âmbito da Comissão de
Elaboração do Projeto de Resolução que viria a dar origem ao Regimento Interno
pós-1988, citado por AZEVEDO ( 2001, p. 31).
A competência conclusiva das comissões da Câmara dos Deputados – da previsão constitucional à prática 815

trabalhos realizados sobre as primeiras legislaturas pós-88 ainda pro-


curaram demonstrar que o maior empecilho a um bom desempenho
do poder conclusivo das comissões estaria no formato do modelo
decisório adotado pela Casa, que concentraria poder demasiado nas
mãos dos líderes partidários e da Mesa diretora. Essas duas instâncias,
empenhadas principalmente em “permitir a tramitação expedita das
propostas originárias do Poder Executivo”, valer-se-iam, para isso, do
uso rotineiro do regime de urgência, que atropela a rotina das co-
missões levando as matérias diretamente para o Plenário. Segundo
tais estudos, o “grosso” do trabalho legislativo passaria ao largo dos
trabalhos desenvolvidos nas comissões, ali retratadas como órgãos de
pouca ou nenhuma influência na definição da agenda dos trabalhos
legislativos e no resultado final da produção da Casa (Figueiredo e
Limongi, 2001).
Um desses trabalhos, que examinou as leis elaboradas no período
1989-1994, mostrou que mais de 50% dos projetos aprovados pela
Câmara teve tramitação pelo regime de urgência contra 16%, apenas,
dos aprovados pela via do poder conclusivo. Nas conclusões, apon-
taram os pesquisadores que seria “desnecessário enfatizar o efeito
do pedido de urgência sobre o papel das comissões no processo le-
gislativo e sobre a própria consolidação de seu poder” (Figueiredo e
Limongi, 2001, p.58 ). Mais recentemente, os mesmos autores indi-
caram também que, de 1989 a 2001, 50% das leis aprovadas teriam
tramitado em regime de urgência, sendo que a maioria, dentre essas,
foram examinadas pelo plenário antes que as comissões chegassem
a emitir seus pareceres opinativos sobre a matéria (Figueiredo e Li-
mongi, 2004, p. 51).
Dados apresentados por Pereira e Muller (2000, p. 48/50), referentes
à legislatura 1995/1998, foram um pouco menos incisivos: 36,5% das
propostas promulgadas no período teriam recebido pedido de urgência,
contra 63,34% das aprovadas via regime ordinário de tramitação – dos
quais 13,16% pelo rito do poder conclusivo das comissões.
Embora divergindo em alguns índices, numa avaliação mais geral to-
dos pareceram concordar com o fato de que a tramitação em regime
de urgência seria o grande instrumento de que se valem os líderes
partidários e a Mesa diretora para tirar das comissões e manter em
suas mãos o controle do processo decisório, de manejo supostamente
mais difícil no sistema descentralizado do poder conclusivo. Segundo
a análise de Santos (2004, p.36), não seria difícil entender que o “re-
curso sistemático ao instrumento do pedido de urgência, incidindo
especialmente sobre matérias importantes, acaba por enfraquecer o
816 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

trabalho das comissões permanentes, diminuindo, por conseguinte, os


incentivos para uma participação mais ativa nesses órgãos.”

5. Apesar de todos os problemas...

Não obstante todos esses fatores que, conjugados, pareciam atentar


contra a produtividade e a eficiência do novo mecanismo de delibera-
ção legislativa instituído pela Constituição de 1988, alguns resultados
práticos apresentados em legislaturas mais recentes surpreenderam.
Em pesquisa realizada sobre a tramitação de proposições apresenta-
das à Câmara no ano de 1999, pudemos constatar que, de um total de
mais de 2000 projetos de lei identificados, os de iniciativa de Depu-
tados ou do Senado Federal representavam cerca de 98,5%, dos quais
bem mais da metade – 72% - tramitaram, ou continuavam tramitando
na época da coleta dos dados, pelo rito do poder conclusivo das comis-
sões (Pacheco, 2005). O “grosso” do trabalho legislativo naquele ano,
portanto, pelo menos do ponto de vista quantitativo, foi constituído
por projetos de autoria parlamentar e esteve predominantemente en-
tregue ao juízo exclusivo das comissões.
Verificamos, na mesma pesquisa, que a capacidade decisória do rito
conclusivo mostrava-se ainda significativamente maior que a do Ple-
nário. Quando se examinaram os números referentes aos projetos que
chegavam a concluir toda a tramitação na Casa no período pesquisa-
do, os índices apurados em favor do primeiro acusaram uma diferença
importante em relação aos de Plenário, que também perdeu, de longe,
na comparação dos dados referentes à celeridade da tramitação.
O exame detalhado do trâmite dos projetos que se sujeitaram ao rito
conclusivo das comissões revelou também outros indicadores impor-
tantes para a avaliação do desempenho geral do mecanismo.
No que diz respeito às deliberações tomadas, os dados apurados apon-
taram para uma atuação extremamente criteriosa das comissões na
apreciação das matérias submetidas a sua apreciação: apenas 15,7%
dos projetos que sofreram deliberação via poder conclusivo recebe-
ram parecer pela aprovação, contra 84,3% dos rejeitados. Entre esses,
ainda, notou-se uma parte significativa, embora não-majoritária, de
projetos repelidos por problemas de constitucionalidade/juridicidade
ou de adequação/compatibilidade financeiro-orçamentária, indicando
uma razoável capacidade do sistema para impedir a aprovação de ma-
térias que não atendam aos requisitos básicos para admissibilidade no
ordenamento legal.
A competência conclusiva das comissões da Câmara dos Deputados – da previsão constitucional à prática 817

No caso dos projetos que lograram aprovação, uma boa parte já con-
cluíra toda a tramitação na Casa, mas não havia ainda sido encami-
nhada à sanção presidencial por se encontrar aguardando deliberação
no Senado Federal. Os que efetivamente chegaram a se transformar
em lei, embora não representassem percentual muito expressivo den-
tro do conjunto examinado – cerca de 5% apenas - corresponderam
exatamente à metade do total de projetos apresentados à Câmara no
ano de 1999 (incluídos os de iniciativa do Executivo) que chegaram
ao mesmo resultado, o que se revela um dado relevante a apontar a boa
capacidade do sistema conclusivo para incluir as iniciativas do próprio
Legislativo no conjunto da produção legal.
Finalmente, em relação aos projetos que ainda se encontravam em trami-
tação, pôde-se observar a impressionante disparidade entre o número de
pendências identificadas no âmbito da Comissão e Constituição e Justiça
e de Cidadania (59,9% do total) e o verificado nas demais comissões per-
manentes, denunciando, como já se mencionou anteriormente, a exagerada
concentração de atribuições e competências num mesmo órgão como em-
pecilho ao atingimento de melhores índices de celeridade na tramitação de
projetos pela via do poder conclusivo. Com relação às demais comissões,
algum desequilíbrio em favor da Comissão de Finanças e Tributação tam-
bém foi observado, mas em proporção bem menor que a da CCJC: liderava
o grupo com 10,6%, seguida de não muito longe pela Comissão de Seguri-
dade Social e Família, com 6,7%, e pela Comissão de Trabalho, de Admi-
nistração e Serviço Público, com 4,5%. As demais comissões apresentaram
índices inferiores a quatro por cento do total de pendências verificadas na
pesquisa, demonstrando não representarem pontos de estrangulamento de
impacto significativo sobre o andamento dos processos.
Outro trabalho realizado na mesma época sobre o assunto agregou da-
dos novos. Na pesquisa apresentada por Vieira (2005), os números apu-
rados mostraram que a via da apreciação conclusiva pelas comissões não
apenas respondeu, desde o início de sua instituição no período pós-88,
por parte significativa dos trabalhos legislativos na Câmara dos Depu-
tados, como tem crescido de importância ao longo das sucessivas legis-
laturas a partir de 1991. De uma participação inicial de 45% no total
de projetos aprovados pela Câmara dos Deputados na 49ª legislatura,
o poder conclusivo das comissões foi responsável por cerca de 50% no
período seguinte, e deu um salto substancial para 63% na 51ª – muito
provavelmente, conforme anota o autor, em face da mudança substan-
cial do perfil da atividade legislativa do Plenário após a aprovação de
818 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

novo rito para as medidas provisórias, que passaram a depender de sua


deliberação e sobrecarregaram a respectiva pauta.14
Mais recentemente, Santos (2007) também procurou fazer uma avalia-
ção do poder conclusivo tendo como ponto de partida os números pu-
blicados no “Anuário Estatístico” de 2005, da Câmara dos Deputados,
no qual foi registrada uma participação da competência decisória das co-
missões em nada menos que 60% da produção legislativa daquele ano.
A autora buscou verificar se se tratava de algum fenômeno isolado ou se
essa razoável capacidade decisória do sistema seria uma tendência hoje
predominante. Os resultados a que chegou, baseados em dados da 52ª
legislatura (2003/2007) indicaram que as comissões têm desempenhado
com destaque sua função legislativa no uso do poder conclusivo: do total
de 286 proposições aprovadas pela Casa no período, cerca de 66% foram
resultantes desse tipo de apreciação. Restringindo o foco apenas às que se
transformaram efetivamente em lei, a produção ainda se manteve bastan-
te considerável (na ordem de 43% ) quando comparada à de Plenário.
O problema do rito de urgência, apontado naqueles primeiros estudos
a que nos referimos anteriormente como o principal fator de enfra-
quecimento do poder decisório das comissões, também não pareceu,
na conclusão de Santos, influir de forma tão determinante assim no
resultado final da produção da Casa. Na legislatura por ela examinada,
apesar de as comissões terem perdido poder conclusivo em relação a 47
das 88 proposições que se converteram em lei após tramitar em regime
urgência (as 41 restantes eram originalmente dependentes do Plenário
mesmo), ainda chegaram a produzir, pelo rito ordinário e sem a partici-
pação do Plenário, outras 69 leis. Ou seja: mesmo em se reconhecendo
que o mecanismo da urgência tem, efetivamente, se constituído num
instrumento de uso muito comum na prática parlamentar, por meio do
qual se consegue subtrair do exame das comissões e levar diretamente ao
Plenário projetos tidos como mais importantes, geralmente de iniciativa
governamental, não se pode deixar de ter em conta que numericamente
tais projetos são muito pouco expressivos diante da enorme massa de
proposições apresentadas pelos parlamentares, que seguem tramitando
ordinariamente pelo rito do poder conclusivo das comissões.

14
Até a aprovação da Emenda Constitucional nº 32/2001, medidas provisórias não
eram apreciadas pelo Plenário da Câmara dos Deputados e sim pelo do Congresso
Nacional, formado pela reunião conjunta das duas Casas, Câmara e Senado. De-
pois da Emenda, a apreciação passou a ser feita separadamente, e com prioridade
absoluta sobre as demais matérias, o que tornou extremamente apertada e disputada
a pauta do Plenário.
A competência conclusiva das comissões da Câmara dos Deputados – da previsão constitucional à prática 819

Quanto à iniciativa das leis aprovadas, os resultados confirmaram


aquilo que já havíamos registrado no trabalho de 2005: no rito con-
clusivo, a iniciativa parlamentar é largamente prevalecente, havendo
sido aprovadas 47 leis originárias de projetos de Deputado ou Sena-
dor contra apenas 19 do Poder Executivo, relação que se inverte por
completo quando se trata das leis aprovadas pelo rito tradicional de
Plenário, quando os projetos de autoria do Presidente da República
(53) superam de longe o conjunto de todos os demais (38).

6. Considerações finais

A despeito de permanecer, após vinte anos de sua adoção, ainda muito


longe do foco das atenções públicas e da mídia em geral, o mecanismo do
poder decisório das comissões da Câmara dos Deputados parece ocupar
hoje um papel de inegável importância na engrenagem dos trabalhos
legislativos, respondendo pela maior parte da enorme demanda de propo-
sições recebidas ordinariamente para tramitar a cada legislatura.
Um de seus maiores pontos de fragilidade talvez resida no fato de de-
sempenhar esse papel de forma um tanto discreta demais, sem o alarde
e a visibilidade que costumeiramente marcam as sessões do Plenário,
por exemplo. Muito embora, a pouco e pouco, o novo mecanismo ve-
nha até conquistando certo prestígio e reconhecimento junto às lide-
ranças e ao próprio Governo como canal alternativo de deliberação15,
o público em geral pouco se dá conta da existência dessa parcela de
poder legiferante concedida às comissões.
A ausência de divulgação dos trabalhos produzidos nessa seara che-
gou a ser objeto das preocupações de Silva (2006, p.111):
(...) o trabalho desses organismos do Congresso Nacional não
tem merecido a difusão que seria justo se lhe concedesse, pois

15
Um exemplo bem recente disso foi o interesse manifesto da base governista na
aprovação do Projeto de Resolução nº 47, de 2007, que transfere para o juízo con-
clusivo das comissões a apreciação de tratados e outros atos internacionais firmados
pelo Executivo. No parecer aprovado sobre o projeto na Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania, o Relator, Deputado Leonardo Picciani, ressaltou ser “fran-
camente favorável à aprovação do projeto sob exame, que certamente contribuirá
para dar maior celeridade à apreciação dos projetos de decreto legislativo que versam
sobre ratificação de acordos, tratados e demais atos internacionais firmados pelo
Executivo. Apesar de o procedimento de apreciação conclusiva não ser compatível
com o regime de urgência atualmente previsto para a tramitação dessas matérias(...)
– motivo pelo qual se propõe a revogação da regra do art. 151, I, j, do Regimento
– sua adoção pode implicar, na prática, melhores resultados em termos de eficiência
e agilidade na tramitação dessas proposições, que hoje ficam a depender de inclusão
na concorrida e disputada pauta de votações do Plenário”.
820 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

desempenham papel de importância fundamental no processo


de formação das leis. Na maioria das vezes os membros das co-
missões são os que mais trabalham e prestam ativa colaboração
na feitura das leis, no entanto, são inteiramente esquecidos e não
chegam, às vezes, a serem reeleitos por terem pouca ou nenhu-
ma cobertura publicitária que lhes torne conhecidos e populares
– embora sejam muito mais eficientes que os expoentes das tri-
bunas parlamentares e, mais que estes, prestem serviço à coleti-
vidade. Mas é certo, também que muitos outros membros das
comissões, por omissão, interesse ou outro motivo, desservem
a causa pública, engavetando projetos de alto valor para a co-
munidade, pelo que seria ainda uma atitude de justiça torná-los
conhecidos do público.

Não contando com a devida visibilidade aos olhos desse público, as de-
cisões tomadas por meio do novo mecanismo, no limite, correm o risco
do desvalor e da perda de legitimidade. Como já advertia a indefectível
lição de Bentham, “o melhor projeto preparado nas trevas excitará mais
receio que o pior arranjado com os auspícios da publicidade” 16.
Se há ainda muito caminho a percorrer no sentido do aperfeiçoamen-
to da organização interna do sistema de comissões e do disciplina-
mento normativo do instituto do poder conclusivo, esse caminho, não
temos dúvida, passa necessariamente por fórmulas de trabalho que
consigam realçar o procedimento e destacá-lo dentro do conjunto
das demais atividades desenvolvidas pelos órgãos técnicos, dando-lhe
mais visibilidade pública, relevo e especial distinção.

16
Cf. “Táctica das Assembléias Legislativas”, obra extraída dos manuscritos de Je-
remy Bentham por Mr. E. Doumont. Olinda, Tipografia de Pinheiro e Faria e Cia,
1832, p.13.
A competência conclusiva das comissões da Câmara dos Deputados – da previsão constitucional à prática 821

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R elações civis-militares
823

Poder político versus poder


militar: algumas reflexões
Fernando Carlos Wanderley Rocha

1. Considerações iniciais

Este artigo, escrito ao sabor das idéias brotadas assistematicamente


ao longo de sua redação, traz à baila algumas questões palpitantes que
dizem respeito às Forças Armadas brasileiras, muitas surgidas após a
promulgação da Constituição Federal de 1988; outras, ditadas pelos
acontecimentos que desde a redemocratização tiveram lugar, em espe-
cial ações que vêm mais recentemente sendo conduzidas no âmbito do
Poder Executivo sem que a sociedade e o Poder Legislativo, a quem
cabe a fiscalização e controle da Administração Pública, se dêem con-
ta ou prestem a devida importância.
Não se buscará estabelecer aqui comparações entre as Cartas de 67 e
de 88, mas é preciso que se diga que aquela foi elaborada e sucessi-
vamente modificada ao sabor da doutrina da segurança nacional, re-
forçando os poderes do Estado, ao mesmo tempo em que diminuía
os direitos e as garantias fundamentais, plenamente restabelecidas e
reforçadas pela Constituição Federal de 88.
No curso desta leitura, é preciso ter em mente que os governantes
não podem abrir mão dos dois instrumentos fundamentais para uma
política externa independente, de modo a impor a vontade do Estado,
contrapor-se à vontade dos outros e manter a paz: a diplomacia e o
poder bélico; os dois caminhando pari passu. Privilegiar um ou outro
é um grave erro. Diplomata e soldado devem ser ouvidos nas questões
de Estado. Dar lugar apenas ao diplomata é mero exercício de retóri-
ca, que cessará assim que forem ouvidos os choques das baionetas e o
ribombar dos canhões, com a força do Direito cedendo ao direito da
força e o vencedor escrevendo o Direito a ser cumprido pelos venci-
dos. Vae victis! (Ai dos vencidos!)
Por essas e outras razões as forças armadas de qualquer país com re-
lativa projeção no campo internacional devem, permanentemente, es-
tar adestradas, equipadas, motivadas, profissionalizadas ao máximo e
824 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

totalmente absortas nos assuntos militares, por demais complexos por


si só. E, além de tudo, subordinadas e obedientes ao poder político.
O controle das instituições militares pelos governos, que é uma ques-
tão delicada, particularmente nos países menos afeitos às tradições
democráticas, torna-se mais grave quando os governos, por mais ab-
surdo que possa parecer, estão divorciados dos legítimos interesses do
Estado e da sociedade a que um e outro – poder armado e poder
político – devem servir.
Em que pese o parágrafo anterior colocar os dois poderes em uma
relação horizontal, em tese, o poder militar está, ou deveria estar, su-
bordinado ao poder político, na medida em que a relação entre os dois
não se representa por uma equação, mas por uma relação vertical, com
supremacia deste sobre as instituições castrenses.
Todavia, mesmo nas democracias mais sólidas, o jogo político e os res-
pectivos interesses em jogo nem sempre serão conduzidos pela mesma
ética que vige na caserna. Em circunstâncias assim, os militares até
podem aceitar, ainda que de mau grado, a tutela de um poder que
segue por valores de quilate diversos dos seus, deixando que a própria
sociedade, através do voto, faça as necessárias depurações. Em outros
momentos, principalmente quando contando com respaldo popular
– e a história mostra isso – diante de ações políticas não coincidentes,
por vezes até contrárias, ao que percebem como os reais interesses na-
cionais, chega-se ao rompimento da normalidade institucional.
Há, é certo, conflitos de regras, interesses e valores. O jogo político tem
suas peculiaridades e não cabe aos militares nele se intrometer. Quando
o fazem, em que pese sucessos que podem comemorar, como no de-
senvolvimento econômico, científico e tecnológico ocorrido no Brasil
pós-64, acontece com enorme desgaste perante a opinião pública, afeita
a outro tipo de relação com os políticos, e com enorme peso para as
instituições castrenses, desvirtuadas que foram da sua destinação.
De qualquer modo, diante das críticas a intervenções militares e das
comparações com a postura politicamente neutra como se colocam
as instituições militares de países apontados como modelo de demo-
cracia, as comparações, para serem justas, uma vez que envolvem as
relações entre o poder militar e o poder político, deveriam se fazer,
também, enxergando as instituições políticas dos mesmos países que
tiveram suas instituições militares comparadas. Há circunstâncias em
que o rompimento da normalidade institucional pelas armas torna-se
o recurso extremo para a sobrevivência do Estado e para aplacar o cla-
mor da sociedade, tal o nível de deterioração do poder político.
Poder político versus poder militar: algumas reflexões 825

No mundo inteiro, as forças armadas são consideradas instituições


permanentes a serviço da pátria, da nação, do Estado, enfim. Isso leva
a que alguns militares se percebam como tutelados diretamente pelo
Estado, e não pelo governo; isso quando não se vêem como os verda-
deiros e legítimos intérpretes dos interesses nacionais, menosprezan-
do, ignorando até, as instituições políticas, a quem vêem como tempo-
rárias pela própria temporariedade daqueles que são votados.
Evidentemente que nas democracias mais maduras, não freqüentemen-
te conspurcadas por seguidos exemplos de corrupção e de atividades que
lesam os interesses da sociedade e do Estado, as instituições políticas e
militares caminham no mesmo sentido, permitindo um convívio har-
monioso, e estas, sem reservas, aceitam de bom grado sua plena subordi-
nação ao poder civil, na medida em que o percebem como identificado
com os interesses e aspirações da sociedade e do Estado.
O voto não é condição sine qua non para a democracia. Pode até se di-
zer de uma democracia de voto, mas só se terá uma verdadeira demo-
cracia quando os eleitos efetivamente exercerem seus mandatos sem
divórcio desses interesses e aspirações. Não sendo assim, débil será
a democracia e a ameaça de intervenções militares será diretamente
proporcional à fragilidade das instituições políticas.

2. O retorno à normalidade democrática

No Brasil, em particular, a partir do restabelecimento da normalidade


democrática, os militares, via de regra, têm acatado, sem contestação, a
tutela do poder político. Reações esporádicas surgiram, mas bem loca-
lizadas e, em geral, por envolverem questões extremamente sensíveis: a
criação do Ministério da Defesa; manifestações ideológicas de setores
do governo buscando revolver o passado dos anos dos governos mili-
tares; emprego das Forças Armadas em missão de polícia e na remoção
dos arrozeiros em Roraima; o rompimento da hierarquia e disciplina,
como se viu no episódio dos controladores de vôo; e a política adotada
para a ocupação e desenvolvimento da Amazônia, que é a jóia da coroa
para as instituições militares brasileiras. Nenhuma dessas reações com
o sentido de movimento de tropas ou de emprego de armas.
Do lado dos militares, os próprios ministros e, depois, comandantes
militares contribuíram para essa postura de enquadramento das suas
Forças às mudanças institucionais, deixando patente não haver ne-
nhum anseio político por parte delas, cumpridoras fiéis que se fizeram
dos mandamentos constitucionais e legais.
826 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Tal a sua neutralidade em relação às questões políticas que, durante o


processo de impeachment do Presidente Collor, conduzido pelo Congres-
so Nacional, mantiveram-se completamente alheias aos desdobramentos;
algo verdadeiramente inusitado em termos de América Latina.
A forma como se deu, no país, a passagem dos governos militares para
a plena democracia, no que se chamou de uma “abertura lenta e gra-
dual”, também contou com a interveniência expressiva de lideranças
políticas; o que permitiu uma transição sem traumas em um processo
harmonioso de reacomodação de forças, daqueles que só se vêem em
um país como o nosso.
Nesse processo de transição, os presidentes José Sarney, Fernando Collor
e Itamar Franco e o próprio Congresso assumiram posturas conciliatórias,
não alterando sensivelmente o status quo dos militares e das suas institui-
ções, o que contribui decisivamente para essa transição harmoniosa.
A bem da verdade, Collor deu alguns passos que, indiretamente, se refle-
tiram no campo militar: a extinção da Secretaria de Assuntos de Defesa
Nacional; o fim do projeto de fabricação da bomba atômica; e a extin-
ção do Serviço Nacional de Informações (SNI) e subseqüente criação
da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), esvaziada de tratar de
assuntos de cunho ideológico e que desaguou, já no governo Fernando
Henrique, na criação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
O que se viu, com a abertura democrática e a rearrumação das forças,
foi os militares habilmente se articulando em torno dos Poderes Exe-
cutivo e Legislativo.
Os ministros militares, já subordinados ao poder civil, no trato direto
com o Presidente da República, detiveram durante algum tempo bas-
tante prestígio e influência no âmbito do Poder Executivo. Pelo menos
até a criação do Ministério da Defesa.
Nas relações com o Parlamento, no curso do processo de transição, os
militares rapidamente perceberam que o campo de jogo era outro e as
regras também. Para isso, estruturaram suas assessorias parlamentares.
Sempre atuando com eficiência ímpar, estas conduziram poderoso e
eficiente lobby junto às Casas do Congresso Nacional, particularmente
a partir dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte.

3. Os militares e a Assembléia Nacional Constituinte

Durante os trabalhos da Assembléia Constituinte de 1988, os mili-


tares se articularam para que fossem preservadas algumas condições
Poder político versus poder militar: algumas reflexões 827

vigentes até então, tais como as missões constitucionais das Forças


Armadas, o serviço militar obrigatório e a jurisdição especial para os
crimes de natureza militar.
As esquerdas, como forma de diminuir a influência dos militares junto
ao Presidente da República e aumentar o controle civil sobre as Forças
Armadas, chegaram a aventar a criação do Ministério da Defesa, mas
a proposta não prosperou, como também não vingaram idéias pela ex-
tinção da Justiça Militar e submissão dos militares aos tribunais civis
pelos delitos cometidos no exercício da atividade militar. Do Conse-
lho de Segurança Nacional e do Conselho Constitucional, extintos,
surgiram o Conselho de Defesa Nacional e o Conselho da República,
diminuídos em poder, mas assemelhados em algumas funções.
É interessante perceber que, enquanto grupos normalmente se movi-
mentam em torno de interesses corporativos, buscando a manutenção
e a obtenção de mais privilégios, todos os temas em torno dos quais os
militares cerraram fileiras representavam interesses institucionais, não
dizendo respeito a vantagens pessoais para os integrantes das Forças
Armadas. Não se pode dizer que estivessem os militares despidos de
interesses corporativos, mas esses não eram os de maior relevo nos
seus pleitos durante a Assembléia Constituinte.
As Forças Armadas mobilizaram pessoalmente os seus altos escalões
junto às lideranças políticas do Executivo e do Legislativo, enquanto
os ministérios elaboravam, em conjunto e separadamente, documen-
tos que eram divulgados e distribuídos aos parlamentares, todos fa-
lando uma só linguagem, ao mesmo tempo em que as assessorias par-
lamentares movimentavam-se pelos plenários, gabinetes e corredores
do Congresso Nacional.
Em que pese a multiplicidade de temas, o foco principal foi não dei-
xar que se alterasse a destinação constitucional da Forças Armadas, o
que foi conseguido. Naquela ocasião, não houve espaço para discutir a
fundo, em termos constitucionais, o controle das Forças Armadas pelo
poder civil. A criação do Ministério da Defesa, por sua vez, naufragou
diante de argumentos muito bem articulados que as Forças Armadas
adotaram no seu discurso.
Paradoxalmente, o Decreto-Lei nº 200/67, editado sob a égide do
regime militar, trazia um capítulo (arts. 168 e 169) sobre a integração
das Forças Armadas, estabelecendo que o Poder Executivo promove-
ria estudos, visando à criação do Ministério das Forças Armadas, para
oportuno encaminhamento de projeto de lei ao Congresso Nacional,
828 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ainda que esses dois dispositivos tenham sido imediatamente revoga-


dos no ano seguinte.
De tudo isso, pode-se concluir que as Forças Armadas brasileiras e os
militares venceram a etapa da Assembléia Nacional Constituinte sem
nenhuma alteração significativa nas suas prerrogativas.

4. Criação do Ministério da Defesa

O primeiro movimento radical, respeitando os mandamentos constitu-


cionais, foi a criação, pelo Presidente Fernando Henrique, do Ministé-
rio da Defesa. Provocou algumas reações adversas, logo neutralizadas.
A sua criação só veio a acontecer pela Lei Complementar nº 97, de
9 de junho de 1999, que, mantendo a destinação constitucional das
Forças Armadas, atribuiu-lhes, também, o cumprimento das missões
subsidiárias listadas naquela lei e outorgou ao ministro da Defesa o
exercício da direção superior das Forças Armadas. Logo em seguida,
a Emenda Constitucional nº 23, de 2 de setembro de 1999, alterou
os arts. 12 e 91 da Carta Magna, neles introduzindo referências ao
ministro de Estado da Defesa.
De forma subterrânea, pois essas coisas não aparecem documentadas,
há quem diga que o advento do Ministério da Defesa, algo absoluta-
mente necessário, obedeceu a orientação externa e a motivação polí-
tica interna, ambas desejosas de ver deprimido o poder militar. Cor-
re, também, que, em obediência aos ventos externos, o Ministério da
Defesa deveria ser ocupado maciçamente por civis, pois seus assuntos
seriam muito importantes para ficar em mãos apenas dos militares.
Pelo sim e pelo não, houve ponderável ocupação do Ministério por
civis, a começar por ministros sem qualquer vivência para o exercício
do cargo em que foram empossados. Sua criação coincidiu, também,
com a agencificação dos serviços públicos e intensa privatização, tudo
com inspiração em modelos externos, baseados em sistemas jurídicos
e construções totalmente alheias ao nosso país.
Esse momento também coincide com a pregação dos novos papéis para
as forças armadas: as do primeiro mundo, de polícia internacional em
nome das causas nobres – desarmamento, paz, liberdade, direitos huma-
nos, meio ambiente, povos indígenas, democracia etc. – sob o patrocí-
nio de novas concepções diplomáticas – dever de ingerência, soberania
limitada ou compartilhada etc. –; e, para as forças armadas dos demais
Poder político versus poder militar: algumas reflexões 829

países, o de polícia interna, combatendo os delitos transnacionais – nar-


cotráfico, terrorismo, contrabando de armas e munições etc.
No Brasil, de forma expressa, houve rejeição a esses papéis, mas, ta-
citamente, aqui e acolá – não estamos aqui discutindo o mérito – as
Forças Armadas brasileiras têm sido empregadas em operações que
se assemelham aos novos papéis pregados para elas, ainda que não se
digam como de polícia, inclusive no plano internacional. Também na
faixa de fronteira, no mar e nas águas interiores e no espaço aéreo bra-
sileiros, a Lei Complementar no 97/99 atribuiu às nossas instituições
militares, de forma expressa e nos termos nela estabelecidos, o poder
de polícia de segurança pública.
Voltando ao Ministério da Defesa, é evidente que as nossas Forças
Armadas careciam, e ainda carecem, de plena capacidade para atua-
rem de forma integrada, que é própria dos conflitos bélicos contem-
porâneos, mas, até o momento, esse Ministério revelou-se uma expe-
riência desastrosa para o país, com as Forças Armadas tendo perdido
status, recursos financeiros, pessoal e capacidade operacional, ficando
evidente que o Poder Executivo relegou as questões relativas à defesa
nacional a um plano secundário, com o discurso não tendo correspon-
dido à realidade.
Agora, no segundo governo Lula, anunciam-se profundas reformu-
lações estrutural e doutrinária das Forças Armadas sob a batuta do
Comitê de Formulação do Plano Estratégico Nacional de Defesa,
presidido pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, e coordenado pelo
ministro de Planejamento de Longo Prazo, Mangabeira Unger.
É esperar para ver se o discurso formal não esconde finalidades sub-
jacentes como parece ter acontecido quando da criação do Ministério
da Defesa.

5. As Forças Armadas e o quadro político atual

De qualquer modo, com ou sem Ministério da Defesa, nos dias que


correm, não nos parece que os políticos se sintam ameaçados por um
retrocesso político ditado pela força militar. Tampouco, sofrendo ainda
os desgastes dos anos dos governos militares, se percebe qualquer fer-
vor revolucionário nas fileiras castrenses, mesmo quando discordando
dessa ou daquela postura do governo, limitando-se aquelas apenas a
consignar sua discordância.
830 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Para isso também contribuem as condições internas do país, hoje, to-


talmente diversas das encontradas na década de 60, e o próprio con-
texto internacional. Àquele tempo, a Guerra Fria bipartia o mundo
geo-político-estrategicamente em duas correntes ideológicas. Neste
momento, os “aliados” de ontem poderão não estar alinhados conosco.
Talvez até estejam em campos opostos.
Houve quem tenha visto, com a aprovação da Lei Complementar n°
69, de 23 de julho de 1991, regulando o emprego das Forças Armadas
em operações de garantia da lei e da ordem, um retorno de prerroga-
tivas antidemocráticas típicas do regime militar, dando-lhes poderes
para intervenção.
Ora, não só há previsão constitucional nesse sentido como também
havia a necessidade de uma lei tratando desse emprego. E, nos ter-
mos da lei, esse emprego dar-se-á somente em obediência aos poderes
constitucionais e segundo parâmetros determinados.
Mesmo que nem houvesse a previsão na Carta Magna, seria absolu-
tamente impensável que o Estado, detentor do monopólio da força,
não fizesse uso dela em circunstâncias excepcionalmente graves para
restabelecer a lei e a ordem.
Esse diploma legal foi revogado pela Lei Complementar nº 97/99, que
manteve o emprego das Forças Armadas em operações de garantia da
lei e da ordem, ampliando o seu emprego para outras hipóteses, como
também criou o Ministério da Defesa, conforme citado anteriormente.
Ainda que renumerado, a nova lei manteve o dispositivo (art. 15, § 1°) que
determina competir ao Presidente da República a decisão do emprego das
Forças Armadas em atendimento a pedido manifestado por quaisquer
dos poderes constitucionais, por intermédio dos presidentes do Supremo
Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados.
Julgamos esse dispositivo de duvidosa constitucionalidade, não em re-
lação ao emprego das Forças Armadas nessa hipótese, mas sim quanto
à autoridade que determinará o seu emprego. Na Constituição Federal
está consignado que, por iniciativa de qualquer dos três Poderes, as
Forças Armadas têm, também, a destinação de garantia da lei e da
ordem (art. 142).
Causa-nos estranheza que uma lei tenha regulado de forma diversa
do que está determinado pela Carta Magna. Não menos estranho é
que o Poder Legislativo, tão docilmente, tenha se prestado a esse pa-
pel, abdicando, e levando junto de roldão o Judiciário, de, como po-
der constitucional, acionar diretamente as Forças Armadas, passando
Poder político versus poder militar: algumas reflexões 831

a submeter-se ao poder discricionário do Presidente da República, a


quem caberá acatar ou não o pedido de emprego das tropas. E se re-
solver não acatar?
Temos a opinião de que, paulatinamente, sem que a sociedade e o Par-
lamento brasileiros percebam, está em curso um processo de hipertro-
fia do Poder Executivo no controle das Forças Armadas, quando, na
verdade, elas se enquadram na estrutura administrativa daquele Poder,
mas pertencem ao Estado e, portanto, sujeitas ao emprego a partir da
iniciativa de qualquer dos três Poderes.
Entendemos que não caberá ao Presidente da República, nos termos
da Constituição Federal, a competência discricionária de decidir se
atenderá ou não aos presidentes do STF, da Câmara ou do Senado.
Ele estará vinculado à iniciativa dessas autoridades no que diz respeito
ao emprego das Forças Armadas. A ser nos termos do que diz a lei,
estará rompido o princípio de que os Poderes são independentes e
harmônicos entre si, pois o emprego de um instrumento do Estado
por qualquer dos outros Poderes ficará submetido à apreciação subje-
tiva do chefe do Poder Executivo. Não tem cabimento.
De qualquer forma, além da provocação que se fez aqui sobre a du-
vidosa constitucionalidade do tal dispositivo, foi nossa intenção mos-
trar o controle absoluto que se anuncia sobre nossas Forças Armadas
pelo Poder Executivo, que, com rara maestria e respeitando os ditames
constitucionais, vem conduzindo esse processo.
Ainda que o discurso oficial possa ser outro, os fatos revelam que o
controle político, pelo Executivo, sobre o poder militar faz-se, de um
lado, pelo manejo dos instrumentos legislativos; e de outro, pelo pior
caminho que podia ter sido escolhido e que não corresponde aos inte-
resses nacionais: pelo desprestígio e garroteamento das Forças Armadas
brasileiras, materialmente sucateadas e achatadas em termos salariais.

6. O controle político das Forças Armadas pelo


Congresso Nacional

Pelos fatores vistos no tópico anterior, entre outros, é que o controle


político das Forças Armadas não pode ser exclusivo do Poder Execu-
tivo. Questões que dizem respeito a elas não são exclusivas deste. Mais
uma vez ressaltamos: as Forças não são instrumentos do governo, mas
do Estado. Daí a responsabilidade por elas e sobre elas ter de ser, ne-
cessariamente, compartilhada com o Poder Legislativo.
832 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Como forma de aumentar o controle do Parlamento sobre os assun-


tos de defesa nacional, a título de exemplo, a promoção aos postos de
oficiais-generais das três Forças deveria ser submetida ao Congresso
Nacional, modificando um processo que, hoje, é terminativo no âmbi-
to do Poder Executivo. O Alto Comando de cada Força submete lista
ao Presidente da República, que, em geral, a aprova.
Nas relações dos militares com os políticos, é certo que a transição de-
mocrática provocou significativas mudanças na correlação de forças. Ao
tempo dos governos militares, quando as Forças Armadas e Poder Exe-
cutivo falavam a mesma linguagem, o Congresso Nacional era o “inimi-
go comum”, palco das resistências mais significativas ao governo.
Passados os primeiros governos após o restabelecimento da normali-
dade democrática, a partir da assunção do Poder Executivo por auto-
ridades hostis às Forças Armadas, motivadas tão somente por razões
ideológicas, aquele passou a ser a “força inimiga” e o Congresso Na-
cional passou a ser visto como “tropa amiga”.
Evidentemente que essas coisas não são ditas, mas as evidências não
negam a nossa percepção. Tanto é assim que, atualmente, com raras
exceções, observa-se na atividade parlamentar uma mútua simpatia
entre as Forças Armadas e as Casas do Congresso Nacional.
As assessorias parlamentares das Forças Armadas se movimentam
com facilidade entre os parlamentares, receptivos a ouvir o que aquelas
têm a dizer. Mesmo assim, estas, formalmente, se conduzem oficial-
mente pelos posicionamentos das suas respectivas Forças, que, nem
sempre, representam os anseios e as necessidades reais das instituições
militares e dos seus integrantes, haja vista que reproduzem a orienta-
ção dos seus comandantes, que, por sua vez, seguem o pensamento do
chefe do Poder Executivo, a que se subordinam.
A rigor, as instituições militares e seus integrantes estão órfãos de quem
as represente. O velho chavão de que os comandantes são aqueles que
defendem os interesses dos seus subordinados e que os comandantes
das Forças falam em nome delas vai sendo enterrado. Manifestar-se,
ainda que obedecendo aos preceitos hierárquicos e disciplinares, de
forma contrária ao pensamento do comandante supremo das Forças
Armadas, significará a transferência para um cargo sem importância e
o apagar das luzes de uma brilhante carreira. Isso se “as asas não forem
imediatamente decepadas”. Em outros termos, os comandantes das
Forças, no lugar de representá-las perante o Poder Executivo, torna-
ram-se prepostos deste perante suas instituições e seus subordinados.
Poder político versus poder militar: algumas reflexões 833

A partir da criação do Ministério da Defesa e da entrega da pasta a


um civil, os militares foram afastados do núcleo decisório do governo.
Nessa orfandade castrense, o Congresso Nacional avultou em impor-
tância e as assessorias parlamentares, mesmo com restrições, passaram
a representar um poderoso elo entre suas Forças e o braço legislativo
do poder político. Assim, à mesma medida que o Executivo foi ficando
insensível e distante em relação à caserna, o Congresso Nacional foi se
tornando o ouvidor das necessidades e dos queixumes castrenses.
No seu mister, os parlamentares também têm limitações no trato dos
assuntos militares, haja vista que quase toda iniciativa legislativa nes-
sa seara, em obediência aos mandamentos constitucionais, é da com-
petência privativa do Presidente da República. Mas percebe-se uma
franca movimentação no Parlamento brasileiro em favor das Forças
Armadas ou de temas que elas abraçam como seus. E, ainda que de
trâmite e possibilidade de prosperar mais difíceis, propostas de emen-
da à Constituição, livres do mandamento da iniciativa privativa do
chefe do Poder Executivo, têm sido apresentadas por parlamentares.
Salta aos olhos que não é mais no Poder Executivo que estão as maio-
res preocupações em favor do reaparelhamento das Forças Armadas,
pela remuneração condigna dos militares, pelo aumento da presença
militar na Amazônia, pelo incremento do nosso poder aeronaval na
defesa das nossas plataformas petrolíferas, com a nossa soberania sen-
do deprimida por inspirações externas orquestradas pelos lesa-pátria
no plano interno. São das tribunas da Câmara dos Deputados e do
Senado Federal que se ouvem os mais veementes brados, enquanto a
imprensa os reverbera e amplia.
A partir daí, então, é que se anunciam os movimentos do Poder Exe-
cutivo em favor das Forças Armadas. Por reflexo dos clamores do
Congresso Nacional e da opinião pública, que começam a perceber
que as coisas que dizem respeito às instituições militares não estão
sendo conduzidas a contento por aqueles que detêm o poder-dever de
agir em consonância com os interesses e aspirações nacionais.
Nos plenários, as comissões, no exercício da função de fiscalização e con-
trole da administração pública, acompanham o revezamento de autorida-
des civis e militares informando, prestando contas e debatendo temas e
assuntos pertinentes às Forças Armadas e às preocupações destas.
Percebe-se que, aos poucos, o controle parlamentar das atividades da
Defesa vai se tornando uma tradição do Congresso Nacional; o que é
excelente, pois entendemos que esses assuntos, se precípuos dos mi-
litares, não são exclusivos destes, dizendo respeito a todos os poderes
834 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

constitucionais e à sociedade como um todo. Até mesmo as atividades


de inteligência, mesmo que de forma ainda incipiente, passaram a es-
tar submetidas ao controle civil do Parlamento através da Comissão
Mista de Controle das Atividades de Inteligência.

7. Alguns problemas atuais

Uma crítica contumaz às Forças Armadas é a grande quantidade de


unidades em grandes centros urbanos. Sem esvaziá-los por completo
dos seus quartéis, pois razões há para que ali se mantenham muitos
deles, as próprias Forças Armadas propugnam, sim, por uma nova dis-
tribuição geográfica das suas unidades, particularmente em direção à
Amazônia, onde seus efetivos têm aumentado gradativamente, mas de
forma muito lenta.
O marco histórico mais recente desse movimento para a ocupação
da Amazônia se deu, ao final da década de 60, com a mudança do
Comando Militar da Amazônia da cidade de Belém para Manaus,
concomitantemente com a criação da Zona Franca. De lá para cá, só
não houve maior deslocamento de efetivos devido à contumaz falta
de recursos.
O Programa Calha Norte, um projeto de Estado, segue aos trancos,
empacado por falta de vontade e ação políticas, haja vista que, de todo
o aparelho estatal, só as Forças Armadas levaram avante, até onde pu-
deram, a parte que lhes cabia.
Pode-se dizer de uma crise de identidade por que tenham passado
as nossas Forças Armadas com o fim do perigo do inimigo interno,
representado pela ameaça comunista, e dos potenciais atritos que exis-
tiam com os nossos vizinhos do Sul. Essa crise está superada pelo
afloramento de novas ameaças ao Estado brasileiro, representadas por
interesses externos sobre a Amazônia e sobre nossas plataformas pe-
trolíferas. A rigor, essas ameaças sempre existiram, ficando mais pa-
tentes no momento histórico por que passamos.
Retornando à idéia anteriormente esposada, hoje agudizam-se as
pressões internacionais que justificam intervenções militares externas
em nome da preservação dos direitos dos povos indígenas, do meio
ambiente, das minorias e do combate aos delitos transnacionais, ao
lado de outras “causas nobres”, e sob “novas concepções diplomáticas”,
tais como: dever de ingerência, soberania relativa ou compartilhada e
interferências humanitárias.
Poder político versus poder militar: algumas reflexões 835

Ao mesmo tempo em que ONGs atuam livremente contra os interesses


nacionais, o Poder Executivo, em postura francamente dúbia, assume
compromissos no campo externo que restringem a nossa soberania.
Cada vez que assinamos um acordo, um protocolo, um tratado, uma
declaração nos submetendo aos caprichos de outras nações, abdicamos
de parcela da nossa soberania. Cada vez que organizações de direitos
humanos, de minorias, de índios e outras do gênero levam conflitos
internos a fóruns internacionais, ignoram os poderes constitucionais
e fragilizam o país no contexto internacional. Tudo abrindo brechas
para intervenções internacionais em território brasileiro.
Ao mesmo tempo, há uma tendência em aumentar as missões sub-
sidiárias, que sempre foram vistas como empregos excepcionais das
Forças Armadas, ampliando o seu envolvimento em atividades de as-
sistência social e humanitária, geração de emprego e reinserção social
e em ações tipicamente policiais como o combate ao contrabando, ao
crime organizado, ao narcotráfico e aos delitos ambientais; o que não
enxergamos com bons olhos por descaracterizá-las de suas atribuições
constitucionais, para as quais devem estar profissionalmente aptas no
mais elevado nível possível de aprestamento.
Não bastasse, em nome de um assento que se busca no Conselho de
Segurança da ONU – como se isso fosse o bastante para dobrar os
países que lá hoje estão assentados com base no seu poder atômico – o
emprego de tropas brasileiras em intervenções militares internacio-
nais, como a que se faz no Haiti, passou a ser incluído na agenda dos
assuntos de defesa.
No concerto das nações, as Forças Armadas brasileiras são insignifi-
cantes quando consideradas em relação à extensão geográfica do país,
ao tamanho da população brasileira e à projeção geo-político-estraté-
gica do país. E, nos últimos anos, no lugar de terem crescido acompa-
nhando a multiplicação da população e o aumento da inserção do país
no contexto internacional, foram encolhidas. Normalmente a falta de
recursos é a justificativa padrão adotada pelas autoridades governa-
mentais para isso.
E, aí, aparecem alguns luminares propugnando pela redução dos efe-
tivos militares brasileiros, tomando como referência vários países que
vêm, paulatinamente, reduzindo os efetivos das suas forças armadas.
Mas essas mentes brilhantes não percebem que, quando se tem muito,
a redução de efetivos assume um significado; mas quase se tem muito
pouco, a redução poderá resultar em praticamente coisa nenhuma.
836 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Por outro lado, nesses países tomados como paradigma, a redução


tem-se feito acompanhada da adoção de tecnologias militares de pon-
ta, por vezes de armamento nuclear, do que abdicamos em obediência
a pressões externas e querendo agradar, em busca do tão malfadado
assento no Conselho de Segurança da ONU.
Alguns temas continuam latentes e, periodicamente, ganham relevo
maior nos meios de comunicação, tais como a extinção do serviço mi-
litar obrigatório e da Justiça Militar.
Sobre a manutenção do serviço militar obrigatório, não temos posição
definida diante dos argumentos esgrimidos contra e a favor, apesar de
já nos termos debruçado sobre o tema, que se vincula com o debate
sobre a redução dos efetivos. Não se pode bater o martelo contra o
serviço militar obrigatório sem que se tenha concluído pelo modelo
de Forças Armadas e de recrutamento que passaremos a adotar. Não
custa lembrar que os EUA, no Iraque, se viram compulsados a utili-
zar mercenários de empresas privadas, estimados em 50 mil homens,
talvez mais.
Mas não nos furtamos de uma observação bastante cáustica sobre o
modelo de recrutamento atualmente adotado. A grande maioria dos
recrutas, pelo menos nas fileiras do Exército, que absorve o maior efe-
tivo, é oriunda das camadas mais pobres da população, levando consi-
go problemas que são mais patentes nessas classes sociais e desejosos
ardentemente de serem incorporados às fileiras, até como meio de
sobrevivência e de ascensão social. Ao priorizar estes, passam a ser
carreados para o serviço militar justamente aqueles que têm menos
a perder no caso de um conflito armado, porque muito pouco têm,
enquanto os mais abastados, em regra os mais críticos do serviço mi-
litar obrigatório, esquivam-se do cumprimento do seu dever legal, de
modo que o quartel vai perdendo o seu papel de integrador social,
passando ao de assistente social em favor dos desvalidos, acolhidos
em busca de um prato de comida, tão incerto quanto os recursos que
chegam para o rancho, e de um vencimento que, só agora, alcançou o
valor do salário mínimo.
Na questão salarial, o ministro da Defesa, na Câmara dos Deputados,
em audiência pública realizada na Comissão de Relações Exteriores e
de Defesa Nacional, no dia 4 de junho de 2008, foi claro ao dizer da
comparação que se fazia entre os salários da Polícia Federal e os das
Forças Armadas, aqueles sensivelmente mais elevados, que naquela
instituição policial a greve era o instrumento de pressão.
Poder político versus poder militar: algumas reflexões 837

Também é corrente a comparação entre as remunerações dos inte-


grantes das Forças Armadas e as dos policiais e bombeiros do Distrito
Federal; estas, extraordinariamente mais elevadas, apesar de os cofres
da União serem a fonte comum dos recursos.
À luz da Constituição Federal, as instituições militares distritais não
podem fazer greve, mas fatos recentes revelam que a simples ameaça
foi eficiente para que as suas reivindicações fossem atendidas. Em sín-
tese, os que promovem as greves são prestigiados pelo governo e aufe-
rem maiores ganhos, enquanto os que permanecem silentes, em nome
da hierarquia e disciplina e da obediência aos preceitos constitucionais
e legais, são condenados a míseros salários.
Por conta de vários fatores, mas particulamente dos salários avilta-
dos, enxergamos um abastardamento paulatino das Forças Armadas
brasileiras. O universo de candidatos às suas escolas de formação de
oficiais e de sargentos se restringe, resultando no acesso de indivíduos
de menor desempenho. A evasão para a iniciativa privada e para ou-
tros cargos públicos aumenta em uma escala assustadora, levando as
melhores cabeças. A dedicação com a carreira se esvai, com o tempo
de estudo passando a ser dirigido à formação acadêmica civil e à pre-
paração para os concursos públicos. Quem fica? Esses que ficam são os
quadros e as cabeças pensantes das instituições militares de amanhã. É
isso que se deseja para o Brasil? É possível que alguns queiram assim,
como vem se desenhando.
Sobre a extinção da Justiça Militar, a idéia nos parece proporcional-
mente estúpida às pessoas que por ela propugnam na medida que
falam sem conhecimento de causa. Repetem argumentos esquálidos,
ouvidos aqui e acolá, ditados quase sempre por razões exclusivamente
ideológicas, querendo enxergar nela uma justiça corporativista, igno-
rando que, mesmo durante os governos militares, a justiça castrense
concedeu inúmeras liminares e habeas corpus em favor de opositores ao
regime, em total independência, como é próprio de qualquer órgão do
Poder Judiciário.
Aliás, para os desavisados, a Justiça Militar não é parte da Forças Ar-
madas, mas do Poder Judiciário. Também não é tribunal de exceção
e a especialização que ela representa garante eficiência, eficácia e ce-
leridade processual, sendo formada por militares e civis conhecedores
dos valores e das peculiaridades da atividade castrense. Também lida
com uma codificação penal que traz a tipificação de delitos que não
encontram correspondentes na legislação ordinária.
838 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Clemenceau dizia que “assim como há uma sociedade civil fundada


sobre a liberdade, há uma sociedade militar fundada sobre a obediên-
cia, o juiz da liberdade não pode ser o da obediência”. E mais, os bens
protegidos pelo Direito Penal comum e pelo Direito Penal Militar
estão em prioridades diferentes. Aquele tem a vida como o bem su-
premo e, depois, a liberdade; este, a sobrevivência do Estado, ainda que
com o sacrifício da própria vida, e, depois, a hieraquia e a disciplina.
A propósito, o Superior Tribunal Militar, que comemora duzentos anos
no corrente ano, é o mais antigo dos tribunais superiores brasileiros,
com uma longa tradição que remonta à chegada da família imperial.
De qualquer modo, mantida essa jurisdição especial, anuncia-se uma
tendência de submeter aos tribunais comuns os militares que cometerem
delitos no exercício de atividades subsidiárias, ou seja, atividades executa-
das pelas Forças Armadas que não são vistas como tipicamente militares:
controle de tráfego aéreo, construção de rodovias, assistência social etc.
Aqui, provocamos um debate com a seguinte colocação: se o militar,
no exercício de uma atividade dessas, cometer um crime tipicamente
militar, insubordinação, por exemplo, recusando-se a cumpri-la, por
quem será julgado? Não se pode ter dois pesos e duas medidas diante
das mesmas circunstâncias.
Se a atividade subsidiária não se configura como militar, recusando-se
o militar a cumpri-la, como levá-lo aos tribunais militares? Mas tam-
bém como levá-lo a um tribunal ordinário se não existe a tipificação
do crime de insubordinação na legislação penal comum? Não haverá
crime a ser a ele imputado. Perigoso precedente para a quebra da hie-
rarquia e disciplina.
Neste ponto, alinhamo-nos com aqueles que dizem ser parcialmente
inconstitucional a lei complementar que estabeleceu as normas gerais
adotadas na organização, preparo e emprego das Forças Armadas (LC
97/99), especificamente nos dispositivos que deram as elas atribuições
subsidiárias. O legislador não poderia ter ido além da vontade expres-
sa pelo constituinte originário na Carta Magna, que enumerou, taxa-
tivamente, as hipóteses de emprego das Forças Armadas. Colocando
de outra forma, não pode a norma menor pretender-se mais ampla do
que a norma maior.
Poder político versus poder militar: algumas reflexões 839

8. Conclusão

Curiosamente, durante a redação das últimas linhas deste trabalho, deu-


se o lamentável episódio do Morro da Providência, na cidade do Rio de
Janeiro, no final do primeiro semestre de 2008, com farta cobertura da
mídia. Nessa ocasião, militares do Exército, em uma missão com todas
as características de garantia da lei e da ordem – apesar do discurso
oficial falar em segurança a uma atribuição subsidiária – entregaram
três homens que os haviam desacatados a traficantes de um morro rival,
terminando no bárbaro assassinato dos três. Um episódio que resultou
de um projeto com fins aparentemente eleitorais, ao qual acedeu o Co-
mando da Força, para lá mandada com a recomendação expressa de não
reagir a provocações.
Esse fato é uma síntese dos muitos problemas aqui tratados sobre as
Forças Armadas: as missões de segurança pública, suas atribuições
subsidiárias, a descaracterização de suas missões constitucionais, seu
uso político, competência da Justiça Militar e, particularmente, a atu-
ação do Poder Legislativo no controle do emprego delas. Tivesse sido
esse emprego submetido à apreciação do Congresso Nacional, prova-
velmente nada disso teria acontecido.
Por tudo isso e muito mais, ainda que a formulação e a condução da
política de defesa nacional sejam essencialmente da alçada do Execu-
tivo, com a participação dos estrategistas militares, o Legislativo deve
acompanhar essas ações, auscultando aquilo que os formuladores e
condutores têm a dizer, e, ainda, interferir em aspectos tais como mis-
são, organização, regime jurídico, remuneração, gastos e efetivos das
Forças Armadas.
Assim como os assuntos de defesa nacional são muito importantes
para serem da alçada apenas dos militares – dizendo respeito à sobre-
vivência do Estado e, portanto, a todos os brasileiros –, por semelhante
raciocínio são por demais importantes para ficarem na competência
exclusiva do Poder Executivo, cabendo ao Poder Legislativo ocupar
o espaço que lhe cabe no exercício das suas funções legiferante e de
fiscalização e controle da administração pública.
Esse é o melhor caminho para se estabelecer o controle do poder mi-
litar pelo poder político. Todavia, esse controle compartilhado pelo
Executivo e pelo Legislativo, sem olvidar, evidentemente, as possíveis
contribuições do Judiciário, far-se-á tanto mais facilmente quanto os
poderes constitucionais efetivamente pautarem suas ações pelos inte-
resses e aspirações nacionais.
840 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Há problemas gravíssimos assolando as nossas instituições castrenses,


que não pertencem aos militares e tampouco aos poderes constitu-
cionais, mas à Nação. Urge corrigir os desvios antes que entremos em
um caminho sem volta e deixemos comprometido o futuro dos nossos
filhos e netos.
Os conflitos bélicos neste século XXI, pelos exemplos recentes, dis-
pensam o formalismo da declaração de guerra. Os meios de comuni-
cação social já prenunciam o que está por vir, na sua tarefa de preparar
a opinião pública mundial para as invasões iminentes.
Também se foi o tempo das longas e demoradas mobilizações. As
Forças Armadas têm de, obrigatoriamente, estar armadas, municiadas,
equipadas e adestradas como se a guerra começasse agora.
Essas circunstâncias exigem não só o controle sobre as Forças Arma-
das, mas também o controle da sua organização, dos meios colocados
à sua disposição, do seu adestramento, do seu emprego e demais as-
suntos inerentes ao exercício do poder militar.
Nesse intento, não assumindo o Poder Legislativo o papel que lhe cabe
no controle, debilitar-se-á o poder militar do Brasil e, no lugar de Forças
Armadas a serviço do Estado, correr-se-á o risco de se ter uma guarda
pretoriana a serviço do governo, utilidade para a qual algumas institui-
ções, talvez, se prestem, mas que jamais se coadunaria com as atribuições
e tradições da Marinha, do Exército e da Aeronáutica brasileiros.
Poder político versus poder militar: algumas reflexões 841

Referências

BRASIL. Câmara dos Deputados. Departamento de Taquigrafia, Revisão e Re-


dação. Debate sobre segurança nas plataformas petrolíferas da Petrobras; influ-
ência da alta mundial dos alimentos na missão brasileira do Haiti; e, finalmente,
a reserva indígena Raposa Serra do Sol.: Audiência Pública com o ministro da
Defesa. Nota Taquigráfica, n. 824/2008, 4 jun. 2008. Brasília.
LEANDRO, Fortes. Caserna Reformada. Carta Capital, São Paulo, v. 14, n. 497,
28 maio 2008.
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo. De Geisel a Collor: Forças Armadas, transição e de-
mocracia. Campinas : Papirus, 1994.
PORTO, Mario Andre da Silva. Direito Penal Militar. Rio de Janeiro : Univ.
Castelo Branco; Fund. Trompowsky, 2008.
Salário mínimo
843

Diretriz constitucional para


políticas de salário mínimo
José Veríssimo Teixeira da Mata

O texto da Constituição de 1988 traz novidades inequívocas no que


concerne ao salário mínimo. Não tanto por sua presença na Consti-
tuição, pois já aparecera nos textos constitucionais de 1937, de 1946 e
de 1967, mas pela sua formulação e por sua posição.
Verdade que a Constituição de 1934 não nomeava o salário que se
chamaria mínimo, mas seu texto colocava como fim assegurar a vida
digna. Assim nela se escreveu:
Art 115. A ordem econômica deve ser organizada conforme os
princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo
que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é
garantida a liberdade econômica.
Parágrafo único. Os poderes públicos verificarão, periodicamen-
te, o padrão de vida nas várias regiões do país.

Vê-se aqui, portanto, que a ordem social aparece indissoluvelmente


vinculada à ordem econômica, e também se acolhe com clareza a pos-
sibilidade de a ordem política coordenar a ordem econômica de modo
a atingir os fins sociais propostos.
Na Constituição de 1937, a noção de salário mínimo é apresentada
pela primeira vez e aparece no seguinte enunciado:
Art. 137. A legislação do trabalho observará, além de outros, os
seguintes preceitos:
...................................................................................................
h) salário mínimo, capaz de satisfazer, de acordo com as condi-
ções de cada região, as necessidades normais do trabalho;

Na Constituição de 1946, sobre a matéria se escreveu:


Art 157. A legislação do trabalho e a da previdência social obe-
decerão nos seguintes preceitos, além de outros que visem a me-
lhoria da condição dos trabalhadores:
844 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

I – salário mínimo capaz de satisfazer, conforme as condições


de cada região, as necessidades normais do trabalhador e de
sua família;
A Carta de 1967, por sua vez, diz a propósito desse conceito fundamental:
Art. 165. A Constituição assegura aos trabalhadores os seguin-
tes direitos, além de outros que, nos termos da lei, visem à me-
lhoria de sua condição social:
I – salário mínimo capaz de satisfazer, conforme as condições de
cada região, as suas necessidades normais e as de sua família;

O enunciado na carta de 1988 ganha precisão analítica, como se de-


preende de sua leitura:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de
outros que visem à melhoria de sua condição social:
I – ..............................................................................................
II – ............................................................................................
III – ...........................................................................................
IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado,
capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua
família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestu-
ário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes pe-
riódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua
vinculação para qualquer fim;

O conceito de salário mínimo indica cada item da composição desse


de modo a precisar que a totalidade deve dar conta exatamente de cada
uma das partes referidas: moradia, alimentação, educação, saúde, lazer,
vestuário, higiene, transporte e previdência social. Prevêem-se ainda os
reajustes periódicos para a manutenção de seu poder aquisitivo. Evi-
dentemente, a formulação do salário na plenitude de seu alcance exige
implementação que passa por reajustes periódicos, não simplesmente
para preservar o seu poder aquisitivo, mas para elevá-lo de modo a ga-
rantir a cobertura do rol de necessidades garantidos no inciso IV do art.
7º da Constituição Federal. Enfim, a Constituição prevê políticas de
reajustes do mínimo e é por isso que se veda sua vinculação para qual-
quer fim. Com esse algoritmo constitucional, o legislador constituinte
visou a desfazer eventuais embaraços que se criariam por aumentos de
salários ou outros fatores que se vinculassem ao salário mínimo, os quais
poderiam não só produzir situações aberrantes como aumentar a pró-
pria resistência às políticas de resgate do mínimo.
É o salário mínimo constitucional norma de substância programática,
para usar a terminologia cara ao professor J. Joaquim Gomes Canoti-
Diretriz constitucional para políticas de salário mínimo
845

lho (1994, 462). Essa norma está sempre a exigir a sua concretização
plena. A vedação de sua vinculação realça ainda mais o seu alcance
programático e chama a atenção para o seu programa específico que
não deve ser confundido com outros programas salariais ou de renda
que não têm a sua dimensão constitucional. Demais, para deslanchar-
se, o programa do salário mínimo não concede nem pode conceder
caronas. Esse o sentido da vedação à vinculação.
Porém, não só o enunciado sugere a maior importância dada ao con-
ceito de salário mínimo pela atual Constituição como a sua própria
posição aponta para a hierarquia das normas inscritas no texto do Di-
ploma Maior. Os direitos sociais aparecem já nos primeiros artigos do
texto constitucional e constituem o capítulo segundo da rubrica de
Direitos e Garantias Fundamentais; o capítulo primeiro se reserva aos
Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. E o salário está posicio-
nado no interior dos direitos sociais. Portanto, a posição do preceito
nos primeiros movimentos intertextuais conta da enorme significação
que o constituinte originário emprestou a esse direito cujo lugar no
Texto Maior é, ou deveria ser, indicativo ou conformativo de políticas
públicas constitucionais, capazes de garantir esse programa social que
embute o próprio conceito de salário mínimo e que é, sem dúvida, um
dos mais importantes contributos da Constituição de 1988. A questão
aqui, no caso específico do mínimo, se traduz ou se deve traduzir na
eleição de meios legislativos e executivos para sua implementação, e
é mais questão de política. A hermenêutica apenas comparece1 para
confirmar a inscrição desse programa político mínimo na Constitui-
ção e para confirmar que dele não se pode fugir.
A posição constitucional do salário mínimo destaca a sua nature-
za diretiva na formulação das políticas sociais do Estado e também
para as formulações econômicas das políticas de Estado que visem ao
fortalecimento do mercado interno e da consolidação do país como
respeitável economia nacional capitalista. Eis por que esse comando
da Constituição social é também importante comando da chamada
constituição econômica. Pouco importa se ele lá está escrito ou não.
Todavia, sua projeção é, deve ser e vai ser seguramente muito impor-
tante na Constituição econômica. E aqui se aplicaria com propriedade
a afirmação de Canotilho (ibidem, p. 467) segundo a qual “No Estado
Democrático-Constitucional a direção política não só é heterônomo-
negativamente vinculada, mas também heterônomo-positivamente

1
Não se excluem aqui conflitos jurídicos, mas, como mostrarei adiante, a matéria é
preponderantemente política.
846 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

determinada pelas normas e princípios da constituição.” Ou, ainda,


que “a dinâmica constitucional” exige “dinâmica política” (ibidem, p.
463); o programa constitucional aponta para o “programa de governo”
e para atos de direção político-programática.
Pensando naturalmente em uma Constituição que nasceu de uma
ruptura democrática, como a portuguesa, com amplo respaldo da po-
pulação2, o professor coimbrão diz já nas páginas finais de sua clássica
obra: (ibidem, p. 465) “a definição dos fins do Estado não pode nem
deve derivar autônoma e primariamente de vontade política do go-
verno; os fins políticos supremos e as tarefas de uma república encon-
tram-se normatizados na constituição.” Em nossa Constituição, até
pela precedência dos preceitos, que não é casual, a substância desses
fins recai de forma inequívoca sobre os preceitos sociais e sobre os di-
reitos e garantias fundamentais. Aqui, portanto, a posição dos direitos
sociais, e especialmente do salário mínimo na Constituição de 1988
é novidade com conseqüências políticas importantes para a ação do
legislador e do governo. Essa posição cobra com autoridade constitu-
cional políticas de garantia do salário mínimo que devem propiciar-
lhe reajustes periódicos e de forma permanente. O Poder Legislativo e
o Poder Executivo devem ter sempre presente que é sua competência
eleger os meios mais eficazes para garantir a implementação do pro-
grama constitucional do salário mínimo.

A projeção do salário mínimo sobre a chamada


Constituição Econômica

O salário mínimo é o direito social com maior projeção sobre a consti-


tuição econômica. É verdade que a compressão histórica da massa sala-
rial no Brasil permitiria, pelo aumento do mínimo e algumas políticas
que lhe dessem sustentação, a expansão do mercado interno. Era esse
o projeto de Vargas e de Goulart, seu herdeiro (BANDEIRA, 1977, p.
15). Tratava-se também de criar um mercado interno, que começasse
pela nomenclatura de produtos mais simples e ascendesse até à indus-
trialização nacional do país, para nos remetermos à experiência do pero-
nismo na Argentina. Esse projeto que sofreu os seus descaminhos polí-
ticos, com a industrialização à JK (BANDEIRA, 1977, p. 17) e depois

2
Em Portugal, com o 25 de abril, as instituições do Poder Judiciário foram refunda-
das, aparecendo o Tribunal Constitucional de modo a garantir os fins da Constitui-
ção, por sua estrutura e composição. Esse não é o caso brasileiro, onde praticamente
não há rupturas em nível do Judiciário que sejam simétricas às rupturas políticas no
sentido próprio.
Diretriz constitucional para políticas de salário mínimo
847

com o golpe de 1964, que institucionalizou a repressão política e im-


plantou o arrocho salarial, supunha o desenvolvimento rápido da nação,
e sua divisa, que permanece como projeto, pode ser lida com máxima
clareza no enunciado seguinte do economista Celso Furtado (1983, p.
43): “Somente a orientação do desenvolvimento para padrões de consu-
mo menos elitistas poderá viabilizar a obtenção de taxas razoavelmen-
te altas de crescimento num contexto externo adverso” E continuava: “
Em síntese, trata-se de recuperar a liberdade de ação, de reconstruir os
instrumentos da política econômica, de redirecionar o modelo de de-
senvolvimento. A tarefa é evidentemente de enorme complexidade, mas
ao alcance da capacidade técnica já existente no país. (...)”. Esse projeto
visaria em última instância à construção de uma sociedade capitalista de
economia nacional, que seria a organização da produção em função das
necessidades próprias da população que dela participa, segundo Caio
Prado Junior (1974, p. 270).
Evidentemente, o crescimento do salário mínimo em níveis qualitati-
vos demandaria cada vez mais políticas ativas para a sua sustentação,
aumentando a projeção desse salário sobre o conjunto da economia.
Demais, o desenvolvimento da economia e os aumentos do salário
mínimo terminam por engolir muitas faixas salariais, facilitando até
por essa tendência à uniformização a grande produção.

Ataques ao conceito de salário mínimo

Do final da década de noventa do século passado até o início do primei-


ro governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o salário mínimo
passou pelos ataques mais duros em sua história recente em nosso país.
Pretendia-se não mais discutir esse ou outro percentual de aumento
do mínimo, mas, e isso que é extraordinário, questionar de modo ab-
soluto a eficácia de seus aumentos. Os pressupostos desses ataques são
o recesso do movimento dos trabalhadores no Brasil, a hegemonia dos
trabalhadores qualificados e mais remunerados (hegemonia atualmente
em processo de erosão pelo aumento do capital constante e a diminui-
ção dos postos mais remunerados) e a grande vaga neoliberal, que tem
grande impulso com o colapso do sistema soviético. A desvinculação do
salário mínimo, como conceito da constituição social, da constituição
econômica é expressão perfeita desse período.
Com a ausência de hegemonia de forças políticas capazes de inter-
vir em favor do chamado Estado nacional, o salário mínimo como
realização de política econômica torna-se, desse modo, apenas uma
848 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

impossibilidade. É por isso que o salário mínimo, que fez a glória de


Vargas e que está diretamente ligado à queda de João Goulart do Mi-
nistério do Trabalho em 53 (FERREIRA, p. 100) e da Presidência em
643, aparecerá naturalmente como uma formulação quimérica para os
representantes mais conseqüentes das políticas neoliberais no Brasil, e
os economistas da nova vaga provarão por A mais B a ineficácia das po-
líticas de resgate do mínimo. Esse tipo de formulação seria impossível
na era de Vargas ou de João Goulart, e mesmo os que se empenharam na
deposição de um e de outro jamais pensaram em recorrer a semelhantes
argumentos. Até porque os efeitos das políticas de salário mínimo es-
tavam massivamente provados. Os coronéis que se insurgiram contra o
mínimo não duvidavam do seu aumento, mas temiam os seus efeitos.
Eis por que temos de agregar aos pressupostos que tornaram possí-
vel a investida contra esse conceito central de nossa Constituição – o
salário mínimo – também a prática contumaz de esquecimento da
história, a ausência de memória. Já não se trata aqui de mera heauto-
referência ao sujeito individual em que esse oblitera o que já afirmara
ou escrevera, mas agora se desconhece simplesmente o que a história
mostra, esquece-se a experiência seminal do salário mínimo e o que
ela significa para o nível geral de vida dos trabalhadores, para fração
importante de empresários nacionais da indústria, do comércio e do
campo. Esquece-se o que significa a política de salário mínimo de
Vargas, de João Goulart, seu ministro, com a proposição de aumento
de cem por cento, em 1953.

A nominalização do salário mínimo

Como se disse há pouco, a desvinculação da constituição social da


constituição econômica é expressão do pensamento neoliberal e, natu-
ralmente, onde mais conseqüente essa desvinculação, a concretização
das políticas de salário mínimo só pode aparecer como uma quime-
ra, mero exercício nominalista, eventualmente com fascínio eleitoral.
Sem a implementação de políticas econômicas específicas não se po-
dem concretizar políticas de salário mínimo. A esse propósito, cito
ensaio do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso (2006, p. 151),
que ilustra com propriedade o que se acaba de dizer:

3
O salário mínimo e outras medidas visando a melhorar a vida dos trabalhadores e
consolidar o mercado interno no Brasil, como as anunciadas no famoso comício da
Central, explicam as reações de militares como Ernesto Geisel: “O seu governo era
faccioso, voltado inteiramente para os trabalhadores(...)” (D’Araújo, p. 141).
Diretriz constitucional para políticas de salário mínimo
849

Vou dar um exemplo pessoal, ocorrido na campanha da re-


eleição em 1998. Numa discussão de estratégia me levaram
o seguinte slogan: “Quem venceu a inflação vai vencer o de-
semprego.” Isso é mentira, porque vencer inflação é algo que
depende realmente de atos de governo, e portanto você pode
dizer que vai fazer um esforço para vencê-la, como acabamos
vencendo. Mas o desemprego não dependia de mim como
presidente. Resultado: pessoalmente nunca usei esse slogan,
embora setores da campanha o usassem. Outro caso foi o sa-
lário mínimo, este na minha primeira campanha. Eu concordei
em dizer que em quatro anos nós dobraríamos o salário mínimo.
Mas não disse, nem poderia dizer, que iria dobrar o salário mínimo
real. Bom nós dobramos, mas dobramos o salário mínimo nominal.
O salário real aumentou muito também, mas não na mesma
medida. Sim, você pode saltar de 50 para 100, só que a questão
verdadeira é saber qual o valor exato destes 100 em relação aos
50 de antes, em termos de efetivo pode de compra; se não for
o dobro, é porque não dobrou em termos reais. É bem simples,
portanto, basta não se iludir nem iludir a população.
A citação acima tem o mérito de exibir claramente a separação da
constituição econômica da constituição social no neoliberalismo. Re-
cordemos que Perón (1984, p. 130) definia governar como criar em-
pregos e a formulação do político brasileiro assume que as políticas de
emprego não passam pela Presidência da República. Também esse as-
sume que os anunciados aumentos do salário mínimo são meramente
nominais. O que está claro nessa separação abismal entre o nominal e
o real é que o neoliberalismo, em sua versão mais purista, não reco-
nhece a programação econômica mesmo no quadro da limitada cesta
de produtos e serviços referente ao salário mínimo no Brasil da atual
quadra histórica.
De todo modo, vale a pena lembrar que, talvez porque se confiava no
elemento meramente nominal do salário mínimo (ou dos números
das famigeradas pesquisas), mensagem do Ministro da Fazenda em 27
de março de 2002, referente à Medida Provisória nº 35-A, de 2002,
que dispunha sobre o aumento do mínimo a partir do 1º de abril da-
quele ano afirmava:
o aumento do poder de compra assegurado ao salário mínimo,
no governo de Vossa Excelência, é o mais expressivo dos últimos
quarenta anos no Brasil e contribuiu, juntamente com a que-
da da inflação e o fim do imposto inflacionário, para que, nesse
período, ocorresse significativa redução do número de pobres.
Conforme estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplica-
da (Ipea), o nível de pobreza da população caiu de 41,7º% para
34%. Caso fossem excluídas as transferências de recursos feitas
por intermédio do sistema previdenciário e assistencial, o nível
850 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

de pobreza de 1999 seria de 45%. Ou seja, 18 milhões de pessoas


vivem atualmente acima da linha de pobreza graças às políticas
públicas de previdência e assistência social.

O IBGE, por sua vez, como se não se impressionasse com os números


dos doutos estudos do Ipea, revelava em maio de 2002 que a renda do
trabalho caía pelo 15° mês consecutivo. O certo é que para sustentar o
aumento real do salário mínimo seriam requeridas políticas públicas
que não poderiam ter lugar no conseqüente receituário neoliberal que
vigia no ano de 2002. A alternativa mais adequada teoricamente seria
bombardear o conceito de salário mínimo, encontrar uma forma de
esvaziar a sua substância constitucional, desvalorizando sua positiva
projeção na constituição econômica.4
Tratava-se então de colocar objeções de fundo ao salário mínimo de
modo exemplar. À pergunta “o salário mínimo é mesmo insuficiente para
combater a pobreza e distribuir renda?” respondia-se acenando com o
fantasma do desemprego e do aumento do custo de vida, acrescenta-
va-se que o mercado informal tende a minimizar o impacto do míni-
mo e que o informalismo era uma das marcas do mercado de trabalho
brasileiro. Também se poderiam alegar as dificuldades de avaliar o al-
cance do salário mínimo:
Os efeitos do salário mínimo na distribuição de renda são mais
difíceis de serem avaliados, na medida em que outros fatores de
caráter estrutural podem atuar em sentido contrário. Os merca-
dos de trabalho dos países desenvolvidos, especialmente aqueles
que têm relações de trabalho mais flexíveis, têm apresentado uma
tendência à ampliação das desigualdades sociais, cuja principal
causa parece ser a mudança na demanda de trabalho na direção de
trabalhadores com maior nível de qualificação. A política de salário
mínimo pode fazer muito pouco para se contrapor a essa situação.5
(Furtado, A. 1999, p. 57)

O argumento in casu parece ainda mais interessante, pois se desloca do


problema brasileiro para uma nação desenvolvida e se conclui que em
tal país o mínimo não pode fazer muito contra as desigualdades salariais.
Enfim, o argumento se desloca do salário mínimo para uma espécie de
salário único e então se conclui com decepção que o salário mínimo não

4
“ Geralmente, os reajustes do salário mínimo resultam em benefício, como o au-
mento da renda do trabalhador, mas também produzem efeitos colaterais como o
aumento do desemprego e da informalidade.” Declaração à Folha de S.Paulo de 25
de maio de 2002, de Marcelo Néri, chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV
5
O que se observa com a automação nos países desenvolvidos é exatamente o con-
trário. Os processos já não exigem a qualificação anteriormente requerida , pois são
transferidos para a máquina.
Diretriz constitucional para políticas de salário mínimo
851

produziu o salário único. De todo modo, o acento, dentro do mais puro


neoliberalismo, é a incapacidade de se intervir positivamente no campo
econômico em favor do salário mínimo (“A política de salário mínimo
pode fazer muito pouco para se contrapor a essa situação.”).
Embora as políticas de aumento do mínimo fossem condenadas, en-
contrava-se um lugar para defender a sua diminuição. O aumento se-
ria ineficaz; a diminuição, não. Chegou-se assim à tese segundo a qual,
havendo mais de um posto de trabalho ocupado pelos membros da fa-
mília com o aumento da ocupação feminina, deveria se incorporar ao
cálculo do salário mínimo esse dado. Desse modo, o valor do mínimo
poderia ser dividido por dois.
O problema do impacto deficitário do salário mínimo sobre as con-
tas da Previdência também era lembrado sem que se fizesse qualquer
projeção sobre a diminuição da informalidade, que aparecia quase
sempre como um elemento da realidade, fora de qualquer horizonte
de controle da sociedade política. Assim se sustentava que o aumento
do mínimo e da contribuição previdenciária a ele vinculada não elidi-
ria o problema de caixa da Previdência, porque o aumento alcançaria
um grupo significativo, mas relativamente estreito de trabalhadores da
ativa. Esse argumento esquece que aumentos realmente substanciais
(o valor do mínimo, em abril de 2008, deveria estar em torno de R$
1.900,00 reais, segundo o Dieese) incorporariam uma larga faixa de
trabalhadores que se situa atualmente fora da faixa do salário mínimo.
Na verdade, a grande diferença salarial entre categorias de trabalhado-
res apenas exibe a baixíssima qualidade do salário mínimo.
Consideremos, portanto, que o mínimo nos níveis postulados pelo
Dieese produziria uma unificação maior dos trabalhadores e permiti-
ria uma unificação da data de reajuste, que tem previsão constitucional,
e que é, atualmente, embaralhada pelos chamados mínimos regionais
(Lei Complementar n° 103, de 14 de julho de 2000).
Em seis anos de governo do Presidente Lula, o valor do mínimo foi
elevado a ponto de hoje ser suficiente para comprar mais de duas ces-
tas de alimentos. Isso significa que toda uma nomenclatura de novos
itens foi aberta, além dos itens alimentícios. O trabalhador alcançou,
portanto, novas faixas de consumo, e a indústria expandiu a produ-
ção nessas mesma faixas. Demais, passou a fazer parte da agenda po-
lítica discutir os reajustes do salário mínimo com as centrais sindi-
cais. A despeito do aumento e do seu forte impacto, a política social
e econômica permanece longe do imperativo constitucional e opera
numa estreita margem de tal sorte que os fundamentos do modelo
852 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

econômico seguem inalterados6. Acresce que a pressão sobre o preço


dos alimentos, advinda da chamada renda absoluta da terra, em época
de comércio global de alimentos, pesa cada vez mais sobre os valores
da cesta alimentar, ameaçando as conquistas referidas. A renda abso-
luta da terra é o sobrevalor que se destina aos proprietários produtores
de alimentos ou de outras commodities, em razão de deterem a pro-
priedade da terra, e que é dividido com os grandes grupos que fazem o
comércio de tais commodities ou que produzem os seus insumos.
Agrava a pressão sobre o preço dos alimentos a ausência de zonea-
mento da produção agrícola7. Aqui a cultura de cana para produção
de biocombustível termina por retirar de outras culturas largas áreas
de terra. No caso brasileiro, vê-se também o desaparecimento de cin-
turões verdes de abastecimento das cidades. É conseqüência disso não
apenas a redução de áreas destinadas à produção de alimentos, como
também a necessidade de novos e maiores custos de transportes.
Deve-se, porém, reconhecer que o fato de o salário mínimo hoje com-
por a agenda política é coisa importante, mesmo se se considera a
necessidade de liberá-lo imediatamente de décadas de compressão
para realizar o imperativo constitucional e fortalecer o mercado inter-
no. Essa descompressão do arrocho histórico, pela implementação do
mínimo do Dieese, permitiria, portanto, que se alcançasse também a
implementação do art. 219 da Constituição Federal:
Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e
será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultu-
ral e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia
tecnológica do país, nos termos de lei federal.

6
Para ilustrar a distorção do modelo, é interessante notícia que o jornal O Estado
de S. Paulo publicava em 29 de maio de 2008: No melhor momento da sua história
no país, a indústria automobilística foi a mais beneficiada pelos incentivos fiscais a
investimentos concedidos pelo governo no pacote da nova política industrial. Dos
R$ 6,1 bilhões em desonerações fiscais previstas para estimular os investimentos
dos diversos setores da indústria até 2011, as montadoras e os fabricantes de auto-
peças vão ficar com R$ 3,2 bilhões, o que representa mais da metade (52,8%) dos
subsídios.“Não é justificável uma concentração tão significativa dos incentivos em
um único setor”, diz o economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida, assessor do
Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) e ex-secretário de
Política Econômica do Ministério da Fazenda, autor do levantamento sobre a deso-
neração dos investimentos.
7
A opção do zoneamento ou plano diretor agrícolas das regiões produtoras poderia
minorar o problema. (Zica, 2007, 38)
Diretriz constitucional para políticas de salário mínimo
853

Tabela do Dieese

Salário mínimo Salário mínimo


Período
nominal necessário

2006

Abril R$ 350,00 R$ 1.536,96


Maio R$ 350,00 R$ 1.503,70
Junho R$ 350,00 R$ 1.447,58
Julho R$ 350,00 R$ 1.436,74
Agosto R$ 350,00 R$ 1.442,62
Setembro R$ 350,00 R$ 1.492,69
Outubro R$ 350,00 R$ 1.510,00
Novembro R$ 350,00 R$ 1.613,08
Dezembro R$ 350,00 R$ 1.564,52

2007

Janeiro R$ 350,00 R$ 1.565,61


Fevereiro R$ 350,00 R$ 1.562,25
Março R$ 350,00 R$ 1.620,89
Abril R$ 380,00 R$ 1.672,56
Maio R$ 380,00 R$ 1.620,64
Junho R$ 380,00 R$ 1.628,96
Julho R$ 380,00 R$ 1.688,35
Agosto R$ 380,00 R$ 1.733,88
Setembro R$ 380,00 R$ 1.737,16
Outubro R$ 380,00 R$ 1.797,56
Novembro R$ 380,00 R$ 1.726,24
Dezembro R$ 380,00 R$ 1.803,11

2008

Janeiro R$ 380,00 R$ 1.924,59


Fevereiro R$ 380,00 R$ 1.900,31
Março R$ 415,00 R$ 1.881,32
Abril R$ 415,00 R$ 1.918,12

Salário mínimo nominal: salário mínimo vigente.


Salário mínimo necessário: salário mínimo de acordo com o preceito constitucional “salário
mínimo fixado em lei, nacionalmente.
854 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O voluntarismo jurídico e o salário mínimo

Nesse quadro persistente de salário mínimo degradado, em 2002 apa-


recia ensaio produzido pelo grupo da constitucionalista Aldacy Ra-
chid Coutinho (p. 221 a 253) descrevendo as desventuras do mínimo
e projetando o impacto positivo de seus aumentos sobre a economia.
Esse ensaio também destacava a importância do Poder Judiciário na
realização do programa da Constituição e buscava reforçar a funda-
mentação para decisão judicial que enfrentasse o problema do salário
mínimo na senda inaugurada entre nós por Lênio Streck. Segundo
esse autor (apud Coutinho, 2002, p. 233), “a inadequação da lei que
fixa o mínimo só pode ser resolvida pela tarefa criativa dos juízes,
e os indivíduos encarregados de conduzir os processos democráticos
necessitam de espírito crítico para compreender a complexidade da
própria democracia, sob pena de, a partir de uma formação dogmática
e autoritária, construírem a antítese do processo democrático.”
Percorrendo os sentidos da decisão do juiz, o texto resgata a idéia de
que o magistrado não decide para depois buscar a fundamentação,
mas que esta é a condição de possibilidade da decisão. Pretende-se,
portanto, com âncora no texto constitucional, permitir a atuação cria-
tiva do Judiciário de modo a dar ao salário mínimo a dignidade que
naturalmente lhe deveria pertencer.
Não se trata aqui de discutir essas idéias renovadoras cujos arautos são
competentes professores. Todavia, a questão do mínimo, em sua for-
mulação plena, toca toda a sociedade, todas as suas projeções funda-
mentais, de tal sorte que não seria um poder (que é mais uma função
e que tem natureza sempre funcional em relação ao modelo político-
econômico posto) que poderia trazê-la à baila e decidi-la.
Essa decisão pode até acontecer nos trabalhos da magistratura e se
constituir em um dos momentos da vitalização do mínimo, mas ela
não terá a menor condição de possibilidade, se fundamentos, para
além dos fundamentos meramente jurídicos, não estiverem postos, se
não houver a necessária correlação das forças políticas que o permita.
Fora desse contexto, se cairia no que se poderia bem chamar de volun-
tarismo jurídico, o qual não teria senão existência meramente periféri-
ca em face da conservadora máquina judiciária e de suas decisões, ou,
na melhor das hipóteses e no melhor dos mundos, apenas produziria
decisão ineficaz ou de baixíssima eficácia. O mínimo, como questão de
amplitude total que é, diz respeito a todas as instituições que realmen-
te contam, e não pode nem poderia ter a sua solução na movimentação
meramente autopoiética do Poder Judiciário.
Diretriz constitucional para políticas de salário mínimo
855

Conclusão

O texto da Constituição de 1988, comparado com os textos das Cons-


tituições anteriores que registraram a idéia de mínimo, deu mais pre-
cisão ao conceito de salário mínimo, respondendo ao novo momento
político do país. Emprestou-lhe uma natureza ao mesmo tempo atual
e programática. Passados vinte anos, observa-se, contudo, que a ques-
tão do mínimo ainda não recebeu solução consentânea com o texto
constitucional. Durante esse período, o próprio conceito de salário
mínimo sofreu ataques, os quais são basicamente os seguintes:
1) os aumentos substanciais do mínimo seriam apenas nominais;
2) o alcance dos aumentos do mínimo seria muito restrito;
3) o aumento substancial do mínimo implodiria necessariamente a
Previdência ;
4) não se poderia esperar que o trabalho de apenas um dos membros
da família cobrisse o rol de necessidades previstas no conceito de
salário mínimo.
A despeito dos ataques, o conceito seguiu solidamente implantado na
Constituição, afinal suas raízes remontam à década de trinta. É um con-
ceito que tem história e cobra a superação da dicotomia entre o chamado
salário mínimo real e o salário mínimo necessário.8 A sua interpretação
revela que, além de fazer parte da constituição social, é norma diretriz da
constituição econômica, esteja ou não lá.9 Eis onde exatamente se coloca
como imposição programática para os Poderes Executivo e Legislativo.
As conexões do conceito são, a uma só vez, tão profundas e amplas que
dificilmente ele poderia ser judicializado, pelo menos de modo a que
suas exigências fossem razoavelmente atendidas. Sua solução e sua não-
solução seguem, portanto, essencialmente políticas.

8
Salário mínimo necessário: salário mínimo de acordo com o preceito constitu-
cional “salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender
às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação,
educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajusta-
do periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação
para qualquer fim” (Constituição da República Federativa do Brasil, capítulo II,
Dos Direitos Sociais, art. 7º, inciso IV). Foi considerado em cada mês o maior
valor da ração essencial das localidades pesquisadas. A família considerada é de
dois adultos e duas crianças, sendo que estas consomem o equivalente a um adulto.
Ponderando-se o gasto familiar, chegamos ao salário mínimo necessário.
9
O intérprete “extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama
interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do direito” (Ma-
ximiliano, p. 13).
856 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Referências

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ZICA, Luciano. Teoria e Debate, São Paulo, n. 71, maio/jun. 2007.
Saúde
857

Desafios para a Saúde


20 anos após a promulgação
da Constituição Federal
Luciana da Silva Teixeira

Introdução

A Constituição Federal de 1988 consagrou, em seu art. 196, como dever


do Estado, o direito de todos os cidadãos à saúde e ao acesso universal e
igualitário às suas ações e serviços. Dispôs, ainda, em seu art. 198, que as
ações e serviços públicos de saúde devem integrar uma rede regionalizada
e hierarquizada e constituírem-se em um sistema único, organizado de
acordo com as diretrizes da descentralização, da integralidade e da par-
ticipação da comunidade. Nossa Carta Magna criou, assim, o que veio a
ser o Sistema Único de Saúde (SUS), fruto de debates realizados pelo
movimento sanitarista brasileiro ao longo de mais de duas décadas.
Dessa forma, o sistema de saúde brasileiro passou a ser formado por um
segmento público, o SUS, que é de acesso universal e gratuito; um seg-
mento privado autônomo, onde predominam operadoras de planos e se-
guros de saúde, cujos serviços são custeados integralmente pelas famílias
ou por elas em conjunto com empresas; e um sistema de desembolso dire-
to, representado pelos gastos diretos das famílias com serviços de saúde.
Com o advento do SUS, mais de 60 milhões de brasileiros foram in-
corporados ao sistema público de saúde, antes acessível apenas à par-
cela da população vinculada ao mercado formal de trabalho por meio
da Previdência Social. A cobertura assistencial também foi significa-
tivamente ampliada.
Assim, iniciou-se uma verdadeira revolução no setor da saúde, marca-
da pela ênfase na prevenção e promoção da saúde; pela ampliação ex-
pressiva da participação social; pela expansão dos gastos com cuidados
básicos e ambulatoriais; pela criação dos fundos de saúde, que deram
maior transparência aos gastos e possibilitaram maior autonomia aos
estados e municípios; pela ampliação da cobertura vacinal; pelo cres-
cimento da participação de estados e municípios no financiamento
858 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

da saúde; pela política de medicamentos genéricos; e pelo início da


implementação do Cartão Nacional de Saúde como política relevante
para o alcance da integralidade, entre outros feitos.
Em 2007, o SUS produziu 2,7 bilhões de procedimentos ambulato-
riais, 300 milhões de consultas, 11,3 milhões de internações, 350 mi-
lhões de exames laboratoriais, entre outras ações e serviços oferecidos
à população brasileira por sua rede assistencial. Em março de 2008,
essa rede contava com 6,7 mil hospitais, 30,8 mil centrais de saúde,
14,5 mil unidades de serviço de apoio de diagnose e terapia, 10,9 mil
postos de saúde e 697 prontos-socorros.
A legislação que se seguiu à promulgação da Constituição – a Lei
8.080, de 19 de setembro de 1990, e a Lei 8.142, de 28 de dezembro de
1990 – reservou à União a competência para formular políticas, definir
normas e coordenar o sistema nacional, bem como incentivar o gestor
estadual; aos Estados e ao Distrito Federal, o papel de promoção das
condições para que os municípios possam gerir seu sistema e de gestão
supletiva de serviços e ações, nos casos em que os municípios não este-
jam aptos para tanto; e aos municípios, a gestão e prestação de serviços
públicos de saúde, bem como o planejamento, organização, controle e
avaliação das ações e dos serviços de saúde em seu território.
Um dos pilares da reforma sanitária brasileira, a descentralização das
ações e serviços de saúde passou a assumir papel de destaque no SUS,
tornando-se condição necessária para o alcance de outros objetivos
como integralidade, eqüidade, eficiência e qualidade da atenção à saú-
de. A adaptação dos serviços às condições locais e a maior participação
da população na tomada de decisões são as mais evidentes conquistas
do processo de descentralização da saúde.
Outro grande avanço foi alcançado no financiamento da saúde. As
transferências de recursos federais para estados e municípios têm sido
realizadas, cada vez mais, com base no critério per capita, tanto para a
atenção básica quanto, mais recentemente, para os procedimentos do
primeiro nível da média complexidade, o denominado “M1”1. Eviden-
cia-se também uma nítida tendência para que parcelas crescentes dos
recursos sejam repassadas com base em programação (Programação

1
O Bloco de Procedimentos de Média Complexidade foi reorganizado em três
grandes elencos de procedimentos (EPM-I, EPM-II e EPM-III, denominados
também de M1, M2 e M3, respectivamente), admitindo incorporação tecnológica
diferenciada e gradativa entre serviços e entre os diferentes municípios que com-
põem uma dada microrregião ou região de saúde.
Desafios para a Saúde 20 anos após a promulgação da Constituição Federal
859

Pactuada e Integrada – PPI)2 – que, no entanto, ainda não foi imple-


mentada satisfatoriamente –, em detrimento de pagamentos diretos a
prestadores ou com base em séries históricas de gasto.
Em que pesem os inúmeros avanços, “a coexistência de regiões com
elevadas taxas de mortalidade infantil e materna, a persistência da des-
nutrição e da pobreza, as ameaças recorrentes de surtos epidêmicos,
a cronicidade das endemias, associada a um padrão demográfico ca-
racterizado por um aumento da população de jovens (especialmente
nas regiões Sul e Sudeste) e de idosos e, ainda, a brutal expansão de
acidentes e da violência urbana, apontam mais desafios para o SUS”3.
A transição demográfica, com incremento relativo dos grupos de maior
idade, tem ampliado a participação relativa de patologias crônicas no
total de doenças que acometem os brasileiros. Essa mudança do perfil
epidemiológico da população vem exigindo e exigirá cada vez mais re-
cursos humanos do que equipamentos, mais generalistas do que espe-
cialistas, mais cuidados de enfermagem do que intervenções médicas e
maior interligação entre os serviços de saúde e de assistência social.
A redução da morbidade e da mortalidade por doenças transmissíveis
tem sido acompanhada pelo ressurgimento de outros problemas como a
cólera, a dengue e a aids. A interrupção da cadeia de transmissão dessas
doenças depende de diagnóstico e tratamento eficientes, os quais, por
sua vez, estão associados com maior integração entre prevenção e pro-
moção e a rede assistencial, bem como com políticas inter-setoriais.
Em que pese o impacto da redução das doenças infecciosas na morta-
lidade infantil, a taxa de óbitos infantis e as desigualdades neste indi-
cador ainda são inaceitáveis. Essa situação revela não só a precariedade
dos atendimentos pré-natal, ao parto e ao recém-nascido como tam-
bém, especialmente no Nordeste, as deficientes condições de sanea-
mento, socioeconômicas e ambientais. O quadro relativo à mortalida-
de materna também é alarmante, ainda mais quando se considera que
a quase totalidade dessas mortes poderiam ser evitadas.

2
A Norma Operacional Básica nº 01, de 1996 do Ministério da Saúde estabeleceu o
processo de Programação Pactuada e Integrada (PPI) entre os gestores e integrada
entre as três esferas de governo, envolvendo as atividades de assistência à saúde,
de vigilância e de epidemiologia e controle de doenças. A PPI teria como função
definir as responsabilidades dos municípios no que diz respeito à garantia de acesso
da população aos serviços de saúde no próprio território ou por meio de encaminha-
mento a outros municípios.
3
ABRASCO (2000).
860 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

No tocante às doenças crônico-degenerativas, nota-se o crescimento


das neoplasias e das doenças do aparelho respiratório como causas de
mortes no país. Esses fatos revelam a adoção de hábitos de vida pouco
saudáveis e a aceleração caótica do processo de urbanização, que exi-
girão políticas de saúde voltadas à prevenção e à promoção da saúde e
o desenvolvimento de ações inter-setoriais.
Concomitantemente, observa-se aumento brutal das causas externas
de mortalidade no Brasil, especialmente dos homicídios, que se cons-
tituem na principal causa de morte de jovens do sexo masculino entre
quinze e dezenove anos.
Ante o exposto, conclui-se que, apesar de todos os avanços logrados
pelo SUS nestes vinte anos, a situação de saúde no Brasil é ainda pre-
cária e vulnerável. Verificam-se elevados custos privados, decorrentes
dos significativos gastos com saúde e da perda de rendimentos das fa-
mílias, bem como significativos custos socioeconômicos, relacionados
não somente aos crescentes gastos públicos direcionados à atenção à
saúde, mas também à queda da produtividade e a outras perdas advin-
das de mortes prematuras e agravos à saúde.
Postam-se desafios ao sistema de saúde brasileiro, tanto para a imple-
mentação efetiva das diretrizes que norteiam o SUS quanto para que
as ações e serviços de saúde sejam ofertados de forma mais eficiente,
eqüitativa e com qualidade, valorizando os profissionais de saúde e os
usuários do sistema, conforme será analisado a seguir.

Universalidade

A precariedade financeira do Estado brasileiro, confrontada com a


universalização dos direitos à saúde, levou ao que se convencionou
chamar de “universalização excludente”. Dadas as restrições orça-
mentárias, o mecanismo de racionamento se deu por meio da queda
da qualidade das ações e serviços oferecidos pelo SUS. Essa situação
tornou o SUS pouco atrativo para as parcelas mais ricas da população
brasileira, que, em certa medida, abandonaram o sistema público, que
passou a ser rotulado como “o lugar dos mais pobres”. Assim é que
Nelson dos Santos, militante do movimento sanitarista, cunhou a ex-
pressão “sistema público pobre para os pobres e complementar para os
afiliados aos planos privados”.
Pesquisa do Ibope de 1998 mostrou que 53% dos brasileiros com ren-
da familiar mensal de até dois salários mínimos utilizam exclusiva-
mente os serviços do SUS. Esse valor cai para 13% entre brasileiros
Desafios para a Saúde 20 anos após a promulgação da Constituição Federal
861

com renda superior a dez salários mínimos. Do total de atendimentos


de saúde realizados pelo SUS, 79% foram destinados ao quintil de
renda mais baixa e 15,5% ao quintil de renda mais elevada.
Se esses dados, aparentemente, mostram a boa focalização alcançada
pelo SUS, pode-se argumentar que eventualmente tal resultado es-
taria mais relacionado ao afastamento das classes de maior renda do
atendimento integral no SUS do que à adoção de políticas deliberada-
mente focalizadoras. Não obstante, cabe mencionar que a população
de maior renda continuou freqüentando o SUS para a realização de
procedimentos de médias e altas complexidade e custo. Em que pese
a imposição legal de ressarcimento, pelas operadoras de planos e se-
guros de saúde, dos atendimentos realizados no SUS, na prática, esses
recursos não têm sido devolvidos aos cofres públicos4.

Integralidade

Verifica-se no SUS a precariedade da integração horizontal – referente


às funções de promoção, prevenção e recuperação da saúde –, bem como
a falta de integração vertical, isto é, entre os diferentes níveis de atenção
– primária, secundária e terciária –, o que gera descontinuidade na ofer-
ta de serviços e, conseqüentemente, baixa resolutividade e ineficiências.
A falta de integração no SUS pode ser medida pela elevada proporção
de internações devidas a condições sensíveis à atenção ambulatorial –
isto é, condições em que o paciente, se atendido a tempo e com eficácia
no ambulatório de atenção primária à saúde, teria menor risco de hos-
pitalização. Estudo citado por Mendes (2001) mostrou que, excluídas
as internações por parto, 36,2% das internações efetuadas no país foram
decorrentes de condições sensíveis à atenção ambulatorial. Esse dado
revela deficiências na organização da atenção primária à saúde no Brasil
e a falta de conexão entre esse nível de complexidade e os demais.
Em parte, essa situação é explicada pelo fato de a atenção básica ainda
não se constituir como “porta de entrada” para os serviços de saúde.
Em geral, esse papel tem sido desempenhado por ambulatórios es-
pecializados de média complexidade e pelos prontos-socorros, que se
encontram, na maioria das vezes, sobrecarregados.

4
Segundo depoimento do Presidente da ANS, na CPI dos Planos de Saúde, o mon-
tante de recursos efetivamente ressarcidos ao SUS (R$ 45 milhões), até aquela data
(novembro de 2003), representavam apenas 20% do total cobrado das operadoras
(R$ 225 milhões).
862 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Em linhas gerais, os desafios da atenção primária à saúde consistem


na ampliação dos serviços oferecidos (como a vigilância à saúde do
trabalhador, os serviços de reabilitação, o atendimento adequado aos
pacientes de idade avançada) e na expansão dos já existentes, princi-
palmente nas capitais e grandes centros urbanos, bem como no au-
mento da qualidade. É oportuno mencionar que o parâmetro uni-
versal de resolução de 85% dos problemas de saúde dirigidos ao nível
básico não foi alcançado pelo Brasil.
A insuficiência da oferta de serviços também – e principalmente –
atinge a atenção de média e alta complexidades. Outro problema a
considerar é a precariedade das referência e contra-referência inter-
municipais e interestaduais5, resultante, entre outros motivos, do mau
funcionamento das Centrais de Leitos e de Consultas. A ampliação
da atenção básica, por meio do Programa de Agentes Comunitários
de Saúde (PACS), do Programa de Saúde da Família (PSF) e de uma
série de outras ações, trouxe para o SUS novas demandas epidemioló-
gicas, sanitárias e ambientais que esbarraram na fragmentação, na bai-
xa resolutividade do sistema e na ausência de recursos para ampliação
da oferta de serviços de média e alta complexidade.
A 11ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2000, apontou,
também, como obstáculo à integralidade na saúde, a
grande quantidade de programas e projetos federais especiais
(controle do câncer de colo uterino, catarata, tuberculose, diabetes,
hanseníase) centralizados e paralelos aos planos de saúde e às re-
alidades e prioridades locais, que acabam por se tornarem inefica-
zes, pois não se inserem na rotina das redes de unidades básicas de
saúde (UBS) e da rede suporte de média complexidade6.

Descentralização

A transferência de responsabilidades, especialmente no tocante à exe-


cução de funções sociais, da União para estados e, principalmente,
para municípios, tem se deparado com deficiências organizacionais e
financeiras das três esferas de governo, bem como com ineficiências,
devido a perdas de escala e de escopo resultantes da excessiva frag-
mentação dos serviços de saúde.

5
Ações prestadas por município ou estado a cidadãos residentes em outros municí-
pios ou estados.
6
Biasoto Jr. (2004) defende que os mutirões de cirurgias tiveram excelentes resulta-
dos e reduziram as grandes filas para cirurgias eletivas no país.
Desafios para a Saúde 20 anos após a promulgação da Constituição Federal
863

No que tange às deficiências organizacionais, destaca-se o proble-


ma da duplicidade de comando sobre os prestadores de serviços, que
costuma gerar conflitos de competência entre estados e municípios.
Mesmo em alguns municípios em estágio avançado de autonomia na
gestão de seus sistemas de saúde, os governos estaduais respectivos
continuaram a manter relações diretas com prestadores.
A segunda dificuldade do processo de descentralização – a perda de
escala produtiva – resultou do incremento no número de estabeleci-
mentos, muitas vezes com baixa taxa de ocupação, e de equipamen-
tos, sem que houvesse base quantitativa que os justificasse. Essa lógica
produziu sistemas de saúde ineficientes e de qualidade baixa.
Mendes (2001) defende que os serviços de saúde devam combinar
elementos de concentração e de dispersão. Os serviços que devem ser
ofertados de forma dispersa são aqueles que não se beneficiam de eco-
nomias de escala, para os quais há recursos suficientes e em relação
aos quais a distância é fator fulcral para o acesso. Por outro lado, os
serviços que devem ser concentrados são aqueles que se beneficiam de
economias de escala e de escopo, para os quais os recursos são relati-
vamente mais escassos e em relação aos quais a distância tem menor
impacto sobre o acesso.
Um dos objetivos da implementação de sistemas microrregionais de
saúde é recompor uma escala adequada à organização dos serviços
de saúde, ao agregar municípios de forma cooperativa. As Normas
Operacionais da Assistência à Saúde (Noas 01, de 2001 e Noas 01,
de 2002) iniciaram o processo de organização regional da saúde.
Desde então, entraves e impasses dificultaram a implantação desse
processo, que tem sido lento e desigual entre as regiões, estados e
municípios brasileiros7.
Mais recentemente, o Pacto pela Saúde, instituído pela Portaria/
GM nº 399, de 26 de fevereiro de 2006, buscando sanar as debilida-
des da norma anterior, trouxe novas diretrizes para a regionalização.

7 Alguns entraves frearam a regionalização induzida pela Noas: a rigidez e a com-


plexidade dos critérios organizativos propostos; o planejamento baseado mais na
oferta, e não na necessidade de serviços, e concentrado na assistência, desconsi-
derando as ações de vigilância em saúde; a inexistência de estratégias compatíveis
à gestão de microrregiões de saúde; e a ausência de incentivos financeiros para a
constituição de redes descentralizadas e regionalizadas, principalmente no que se
refere à média e alta complexidade. Por sua vez, essas fragilidades resultaram em
impasses: pouco interesse dos municípios e estados em implementar a regionaliza-
ção proposta pela Noas 01/02; fragilidade dos espaços de negociação e planejamen-
to regional; excesso de instrumentos normativos; discordâncias em relação ao papel
das esferas de governo e à forma de alocação de recursos.
864 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O objetivo é racionalizar os gastos e otimizar os recursos, potencia-


lizar o processo de descentralização e aumentar a resolutividade e a
qualidade das ações e serviços de saúde.

Eqüidade

Os indicadores de eqüidade em saúde abrangem resultados – qualida-


de de vida, exposição específica aos riscos para a saúde, morbimorta-
lidade por estratos da população; acesso, tanto à capacidade instalada
quanto a procedimentos e intervenções nos diversos graus de utiliza-
ção desses serviços; e alocação de recursos entre custeio e investimento
e entre as diferentes esferas de governo.
Quanto às desigualdades relativas ao acesso a ações e serviços de saú-
de segundo a faixa de renda, dados de 2000 revelam que grupos de
melhor renda per capita (15 salários-mínimos) tiveram acesso a 2,64 mais
consultas do que a parcela da população de menor renda (um quarto do
salário-mínimo). Em relação às consultas ambulatoriais, apenas 3% da
população mais rica utilizou os serviços do SUS, enquanto 81,5% da par-
cela de menor renda dependeu desses serviços. A taxa de internação no
SUS é 12,6 vezes maior nos grupos de menor renda (até R$ 37,75)8.
As maiores desigualdades são encontradas no Sudeste, onde, também
em 2000, a utilização de consultas ambulatoriais entre os mais pobres
foi 42 vezes maior do que entre os mais ricos. A menor desigualdade
foi encontrada no Nordeste, onde essa razão foi de 11 vezes.
A relativa eqüidade no uso de serviços de saúde no SUS segundo a
faixa de renda não resultou, entretanto, em eqüidade na situação de
saúde da população brasileira. A focalização do SUS nas faixas mais
baixas de renda deve ser analisada à luz da baixa qualidade da aten-
ção à saúde oferecida pela rede pública. Essa questão, somada às co-
nhecidas desigualdades socioeconômicas, descortina um cenário de
iniqüidades em termos de resultados de saúde, segundo as faixas de
renda. Por esses motivos, para alcançar maior eqüidade de resultados
em saúde é necessário ampliar a qualidade da atenção e desenvolver
ações multisetoriais (de saneamento, educação e redução da pobreza,
entre outras).
Quanto à alocação de recursos, verificou-se que, a despeito da redução
das desigualdades de financiamento entre as unidades federadas, os
maiores montantes per capita de recursos federais ainda são destinados

8
Vianna et alli (2001).
Desafios para a Saúde 20 anos após a promulgação da Constituição Federal
865

aos estados mais ricos (SP, PR, RS e RJ) e os menores volumes, para
os mais pobres (RR, AP, AM e PA). Isso reflete a preponderância
da alocação de recursos baseada ainda na oferta. Por esse motivo, as
maiores iniqüidades estão relacionadas com os repasses destinados ao
financiamento da assistência ambulatorial e hospitalar.
A desorganização regional também produz forte impacto sobre a
eqüidade. Documento do Conselho Nacional de Saúde9 considera
que a Programação Pactuada e Integrada (PPI) e a implementação da
Noas não conseguiram organizar, satisfatoriamente, o espaço regional
a fim de orientar:
1) o número, o perfil e a distribuição das unidades prestadores de
serviços de saúde; 2) a produção, distribuição, alocação e grau de
utilização dos equipamentos hospitalares, laboratoriais e ambu-
latoriais, dos medicamentos, reagentes e imunobiológicos; 3) o
número, o perfil e a distribuição dos profissionais de saúde e dos
seus processos de trabalho.

Controle social

A participação comunitária e o controle da sociedade, nos âmbitos


federal, estadual e municipal, são assegurados pelos Conselhos de
Saúde, que contam com a participação paritária de representantes dos
usuários (50%) e do Estado, prestadores de serviços e trabalhadores
da saúde (50%). Ademais, de quatro em quatro anos são realizadas
Conferências Nacionais de Saúde, também de composição paritária.
Há ainda a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), no âmbito fede-
ral, formada por representantes do Ministério da Saúde e dos Con-
selhos de Secretários Estaduais (Conass) e de Secretários Municipais
de Saúde (Conasems), e as Comissões Intergestores Bipartite (CIB),
com representação estadual e municipal.
Em que pese a ênfase dada à participação da sociedade nas decisões
do SUS, o controle social tem sido prejudicado pela ausência de legi-
timidade de alguns conselhos municipais e pela irregularidade na sua
composição. Muitos não dispõem de autonomia frente ao gestor, o
que acarreta a concentração e abuso de poder e, em última instância, a
falta de representatividade dos conselheiros. A ausência de articulação
e a insuficiência de mecanismos de comunicação entre os Conselhos
nas três esferas de governo também impedem o fortalecimento do
controle social no SUS.

9
Ministério da Saúde/Conselho Nacional de Saúde (2002b).
866 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Ainda que certos conselhos funcionem adequadamente, sua participa-


ção na gestão do SUS ainda sofre diversos percalços, como: falta de
controle sobre a central de marcação de consultas, internações, exames
e leitos; pouco acesso aos dados em saúde para orientar as prioridades
e o planejamento; carência de informações sobre o SUS, o que distan-
cia os usuários do sistema da participação efetiva nos Conselhos de
Saúde; e falta de capacitação dos conselheiros.
A necessidade de criação de instâncias gestoras regionais, para avaliar o
grau de resolutividade, qualidade e humanização, bem como as deman-
das reprimidas de caráter regional, é outro aspecto que tem sido enfatiza-
do como instrumento para o fortalecimento do controle social no SUS.
De acordo com o Ministério da Saúde, as “Comissões Gestoras Regio-
nais deverão constituir-se, portanto, em espaços de decisão política e de
definição das prioridades de ação regional, entre outras atribuições”.
Constata-se também a necessidade de ampliação do controle social
da saúde suplementar, por meio de legislação que explicite as relações
e competências do Conselho Nacional de Saúde (CNS), do Conse-
lho Nacional de Saúde Suplementar (Consu) e da Câmara de Saú-
de Suplementar (CSS). A CPI dos Planos de Saúde denunciou as
dificuldades do CNS para exercer o seu papel de instância máxima
de discussão e de deliberação sobre temas relativos à saúde no país,
principalmente no segmento privado.

Eficiência

A imagem da saúde pública no Brasil está freqüentemente associada


a longas filas de espera para atendimento, carência de profissionais de
saúde e de equipamentos. Em parte, esse cenário pode ser explicado
pelo subfinanciamento do setor. Admite-se, também, que tal situação
resulta de problemas de gestão da saúde pública e do trabalho, que
produzem ineficiências no gasto dos recursos públicos.
Debate-se, assim, a necessidade de um “choque de gestão” no SUS. A
esse respeito, tramita no Congresso o Projeto de Lei Complementar
nº 92, de 2007, que prevê a instituição de fundações sem fins lucra-
tivos, com personalidade jurídica de direito público ou privado, para
Desafios para a Saúde 20 anos após a promulgação da Constituição Federal
867

desempenhar atividades de saúde10. Segundo o Ministério do Pla-


nejamento, Orçamento e Gestão, por meio dessas fundações estatais
de direito privado solucionam-se vários problemas, entre os quais a
inadequação e rigidez do modelo da administração pública direta e
autárquica para uma gestão hospitalar eficiente e com qualidade; e as
dificuldades decorrentes da limitada autonomia de gestão, com parti-
cular estrangulamento na área de gestão das pessoas.
Outros fatores também podem ser apontados como geradores de ine-
ficiência no sistema de saúde brasileiro. Dentre eles, destacam-se as
perdas de escala e de escopo na produção de ações e serviços, devidas
à excessiva atomização de equipamentos e instalações em decorrência
da municipalização, como foi mencionado no tópico sobre descen-
tralização. Em 2001, 58,2% dos hospitais vinculados ao SUS tinham
menos de 50 leitos e somente 7% possuíam a escala ótima, segundo
padrões internacionais, de 200 leitos11.
A ineficiência também é expressa pelos elevados índices de procedi-
mentos evitáveis. Sua redução depende da incorporação de protocolos
e diretrizes de condutas (diagnósticas e terapêuticas), sua aplicação e
controle, incluindo critérios de requisição de exames-diagnósticos e de
encaminhamentos. Mendes (2001) afirma que a implantação da ges-
tão patológica torna-se especialmente indicada para doenças crônicas
como diabete, asmas ou cardiopatias, que necessitam de cuidados por
longo tempo e em diferentes pontos de atenção. É mais eficiente e
efetivo, visto que “envolve o desenvolvimento de um conjunto inte-
grado de serviços que cubram todo o espectro de uma doença, com
intervenções clínicas e não-clínicas”.
Pelo critério da eficiência alocativa, haverá que se dirigir recursos adi-
cionais para intervenções e ações mais custo-efetivas.
Por fim, cabe ressaltar a criação do Sistema de Planejamento do SUS
(PlanejaSUS), em 2006, cujo objetivo é articular as áreas de planeja-
mento das três esferas de gestão do SUS, tomando por referência o
Plano de Saúde e suas respectivas programações anuais e os relatórios
anuais de gestão. O PlanejaSUS pode, assim, tornar-se um poderoso
instrumento para o aumento da eficiência de gestão do SUS.

10
A adoção do modelo de gerenciamento por fundação estatal de direito privado,
organizações sociais (OS) e organizações sociais de interesse público (OSCIP), bem
como regimes de concessão pública foi rechaçada pela 13ª Conferência Nacional
de Saúde. Essa Conferência apoia o fortalecimento da gestão e da rede pública de
saúde, como condição para efetivar a universalidade e a integralidade da atenção à
saúde no Brasil.
11
Dados apresentados em Biasoto Jr. (2004), pg. 19.
868 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Financiamento

O financiamento da saúde na década de 90 foi marcado pela instabili-


dade quanto à sua arrecadação, bem como pela ausência de vinculação
para o financiamento de órgãos e programas, provocando uma signi-
ficativa variação da destinação de fontes por área. A fim de dirimir
essas incertezas - agravadas, ainda, pela destinação de recursos para o
pagamento de contribuições previdenciárias e pela indisponibilidade
de grande parte dos recursos provenientes da Contribuição Social so-
bre o Lucro Líquido (CSLL) e da Contribuição para Financiamento
da Seguridade Social (Cofins), devido a questionamentos jurídicos – e
de permitir um aporte de recursos mais adequado, foi garantida a vin-
culação de recursos ao setor da saúde por meio da Emenda Constitu-
cional nº 29, de 13 de novembro de 2000.
De 2001 a 2004, a Constituição fixou regras transitórias de vinculação
de recursos para ações e serviços públicos de saúde12. A partir de 2005,
lei complementar, a que se refere o § 3º do art. 198 da Constituição
Federal, deveria estabelecer regras definitivas sobre o montante de re-
cursos para a saúde da União, estados, Distrito Federal e municípios,
os critérios de rateio e a fiscalização e controle desses recursos.
Mais de três anos após o prazo previsto, ainda tramita no Congresso
Nacional o Projeto de Lei Complementar nº 1, de 2003, tendo sido
aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal (transfor-
mado em PLP nº 121, de 2007), restando mais um turno de votações
na Câmara. Na ausência da regulamentação, prevalecem os percen-
tuais de 2004 para estados, DF e municípios e a variação nominal do
PIB para a União.

12
Ficaram definidas no art. 77, parágrafo 1º do ADCT, as regras transitórias de
vinculação de recursos a ações e serviços públicos de saúde. No caso da União, no
ano 2000, o total de recursos mínimos aplicado em ações e serviços de saúde seria
equivalente ao montante empenhado no exercício financeiro de 1999 acrescido de,
no mínimo, 5%. Do ano 2001 ao ano 2004, o valor mínimo seria aquele apurado
no ano anterior, corrigido pela variação nominal do PIB. No caso dos estados e do
Distrito Federal, os recursos mínimos seriam equivalentes a 12% da arrecadação
de impostos e das transferências constitucionais, deduzidas as parcelas que foram
transferidas aos municípios. Quanto aos municípios, os recursos mínimos deveriam
ser equivalentes a 15% da arrecadação de impostos e dos recursos de transferências
constitucionais. Caso os estados, Distrito Federal e municípios aplicassem menos
recursos que os percentuais previstos, estabeleceu-se a obrigação de elevarem pro-
gressivamente suas aplicações em saúde até 2004, na razão de pelo menos um quinto
por ano e que, a partir de 2000, suas aplicações serão de pelo menos 7%. Caso a
regulamentação não viesse a ser aprovada no prazo estipulado, conforme de fato
aconteceu, prevaleceriam os percentuais de 2004 para estados, Distrito Federal e
municípios e a variação nominal do PIB para a União.
Desafios para a Saúde 20 anos após a promulgação da Constituição Federal
869

Na Câmara dos Deputados não foi mantida a proposta de vinculação


da despesa federal com saúde a 10% da Receita Corrente Bruta, como
constava do projeto original. Permaneceu, assim, a vinculação dessa des-
pesa à variação nominal do PIB, acrescida da destinação de uma nova
parcela da CPMF, que corresponderia a R$ 24 bilhões ao longo de qua-
tro anos. Com a rejeição da prorrogação da CPMF, ocorrida no final de
2007, esse formato, que já resultaria em perdas de recursos para a saúde
em comparação com a proposta original, ficou ainda mais distante do
montante de recursos que se pretendia garantir para o setor.
No Senado, porém, o texto original foi restaurado e, portanto, as des-
pesas da União voltaram a estar vinculadas à Receita Corrente Bruta,
começando, de forma progressiva, com 8,5%, em 2008, e crescendo
0,5% ao ano até atingir um nível de 10% a partir de 2011. O projeto
aprovado também define o que deve ser considerado como “ações de
saúde” para o cálculo dos gastos com saúde de cada esfera federada,
excluindo o pagamento de inativos e pensionistas, as ações de sane-
amento básico, merenda escolar e outros programas de alimentação,
preservação do meio ambiente e ações de assistência social.
Esperava-se que o estabelecimento de patamar mínimo de gastos da
União com saúde e a vinculação de recursos dos orçamentos de estados
e municípios, garantidos pela Emenda Constitucional nº 29, trouxes-
se maior estabilidade ao financiamento do setor, constituindo-se numa
forma de proteção à área em períodos de crise econômica. Contudo, la-
mentavelmente, o Governo federal não cumpriu, em 2003 e em 2004, o
disposto na referida emenda13. Da mesma forma, cerca de um terço dos
estados e uma pequena parcela de municípios não atingiram, até 2007,
os percentuais estipulados. Nova esperança se abre com a regulamenta-
ção da Emenda nº 29, ora em tramitação, a qual trará maior estabilidade
jurídica à vinculação de recursos para a saúde.
Como grande parte dos recursos para a saúde é arrecadada pelo Go-
verno federal, há que se analisar o volume de repasses da União para
estados e municípios, bem como os critérios utilizados para essas trans-
ferências. Quanto aos recursos transferidos da União para os demais
entes federados, observou-se, em anos recentes, aumento, em termos
absolutos, de repasses, conforme mencionado anteriormente, os quais
passaram de R$ 1,68 bilhão, em 1993, para quase R$ 30 bilhões em
2006, segundo o Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos
em Saúde (Siops).

13
Biasoto Jr. (2004).
870 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O expressivo aumento dos recursos transferidos às esferas subnacio-


nais se deu, entretanto, por meio de mecanismos que vinculam as
transferências a ações e serviços específicos, diminuindo a autonomia
dos estados e municípios. É preciso, portanto, analisar o avanço da
descentralização não só pela ótica quantitativa, mas também levando-
se em conta a gestão dos recursos descentralizados.
Quanto aos critérios de transferências de recursos entre as esferas de
governo, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
apesar de se ter tentado estabelecê-los por meio de normas, “não havia
uma orientação estratégica” e, dessa forma, “criou-se um número ex-
cessivo de critérios ou formas de repasses (mais de cem)”.14
Não obstante, observou-se o aumento do volume de recursos repassa-
dos por meio do critério per capita. Convém lembrar, entretanto, que
esse critério não garante a eqüidade, visto que o tratamento igual de
desiguais acaba por perpetuar o status quo. A aplicação do art. 35 da
Lei nº 8.080, de 1990, que determina a adoção de critérios para re-
passe de recursos federais para estados e municípios que contemplem
perfil demográfico e epidemiológico, características da rede de saúde,
desempenho técnico e financeiro, plano de investimento na rede, entre
outros, seria o melhor critério para a alocação federativa de recursos
para a saúde.
O Pacto pela Saúde para 2006, que inclui novas diretrizes para o
financiamento do SUS, procurou simplificar e melhor organizar as
formas de financiamento, flexibilizando o uso dos recursos e dando,
assim, mais autonomia aos gestores locais. Pela nova sistemática, fo-
ram criados cinco grandes blocos de financiamento para o custeio da
saúde, que são: (i) atenção básica; (ii) atenção de média e alta com-
plexidade; (iii) vigilância em saúde; (iv) assistência farmacêutica; e (v)
gestão do SUS.

Recursos Humanos

A crescente precarização das relações de trabalho na área da saúde


– baixa remuneração, jornada múltipla de trabalho dos profissionais
– tem sido considerada como um dos maiores problemas para a gestão
do SUS. Em muitos municípios há aumento dos contratos temporá-
rios e a contratação de cooperativas e outras formas de organização.
A terceirização dos profissionais de saúde é prática freqüente em mu-

14
IPEA (2007), pg. 83.
Desafios para a Saúde 20 anos após a promulgação da Constituição Federal
871

nicípios, estimulada por limitações impostas pela Lei de Responsabili-


dade Fiscal. Ademais, há falta ou qualificação inadequada de recursos
humanos na rede – inclusive no atendimento de urgência/emergência.
Com o intuito de sanar essas dificuldades, foram elaborados pelo
Conselho Nacional de Saúde (CNS), com a participação da Comissão
Intersetorial de Recursos Humanos (CIRH) e da Mesa Nacional de
Negociação do SUS, quatro versões do documento “Princípios e di-
retrizes para uma Norma Operacional Básica de Recursos Humanos
(NOB/RH-SUS)”, um instrumento de debate da Política Nacional de
Recursos Humanos para o SUS.
O objetivo da NOB/RH-SUS é estabelecer parâmetros gerais para
a Gestão do Trabalho no SUS. Dentre eles, destaca-se a valorização
dos perfis profissionais generalistas e do trabalho em equipe, mediante
adicionais de desempenho e de resultados para a saúde da população;
concurso público e Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS);
educação visando aos perfis profissionais orientados pelas necessida-
des da população, em cada realidade regional e em cada nível de com-
plexidade; reformulação dos currículos das escolas de saúde, levando
em conta diretrizes do SUS, incluindo como prioridade as ações de
atenção básica, bem como a adoção de políticas que estimulem a per-
manência do profissional no campo, onde há maior carência.
Outras iniciativas neste sentido são o Programa Nacional de Des-
precarização do Trabalho no SUS (DesprecarizaSUS), constituído em
2003 com o intuito de buscar soluções para a precarização dos víncu-
los de trabalho nas três esferas federadas, e o Programa de Qualifi-
cação e Estruturação da Gestão do Trabalho e da Educação no SUS
(ProgeSUS), instituído em 2006. O ProgeSUS possui quatro grandes
campos de atuação: financiamento para a modernização de setores
de recursos humanos, por meio da aquisição de mobiliário e equi-
pamentos de informática; disponibilização de sistema de informação
gerencial para o setor; capacitação de equipes de recursos humanos e
participação no Sistema Nacional de Informações de Recursos Hu-
manos do Sistema Único de Saúde (InforSUS).

Qualidade

A insuficiência de recursos destinados ao setor de saúde frente às ne-


cessidades de saúde da população brasileira, aliada a deficiências de
gestão, levaram à progressiva degradação da qualidade dos serviços
oferecidos pelo SUS.
872 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O percentual de óbitos por causas mal definidas, utilizado por Vian-


na et alli como indicador de qualidade15, revela as grandes disparida-
des entre as regiões brasileiras. Em 1998, 30% das mortes não foram
identificadas no Nordeste e 24,2%, na Região Norte. Nas regiões Sul,
Sudeste e Centro-Oeste, o número de óbitos por causas mal definidas,
neste mesmo ano, foi de 7,68%, 9,95% e 10,63%, respectivamente. Em
que pese a persistência de grandes desigualdades regionais quanto a
esse indicador entre 1990 e 1998, tais desigualdades foram reduzidas,
o que, segundo os autores, deve estar sinalizando a ampliação da co-
bertura de serviços de saúde nas regiões mais carentes.
Outros indicadores de qualidade – como percentual de gestantes com
seis ou mais consultas de pré-natal e razão da mortalidade por câncer
de mama e de colo de útero – analisados por Vianna et alli (2001)
também revelam uma situação insatisfatória e iníqua entre as regiões
e estados brasileiros, no que se refere à qualidade da atenção à saúde.
Problemas de infra-estrutura da rede de serviços; distribuição espacial
e hierarquização da rede e instalações inadequadas; falta de protocolos
que orientem o médico e a equipe de saúde quanto aos procedimentos
adequados para a maioria dos problemas de saúde; dificuldades de
encaminhamento/marcação de pacientes para serviços de média e alta
complexidade, associadas à relativa desorganização de serviços de saú-
de, também contribuem para a baixa resolutividade do sistema.
Portanto, a melhoria da qualidade da atenção à saúde está diretamente
relacionada ao equacionamento de problemas para a efetivação das
diretrizes e princípios do SUS. Pode-se destacar, assim, algumas me-
didas necessárias para se atingir o objetivo de assegurar a oferta de
serviços e ações de saúde com qualidade: reversão da segmentação do
sistema de saúde brasileiro, resultante da excessiva descentralização e
da ausência de regionalização; criação de incentivos monetários e a
reorientação da formação dos profissionais da saúde pelos princípios
do SUS; garantia da integralidade das ações e serviços de saúde e, por
último, implementação de inovações de gestão que permitam a utili-
zação mais racional e eficiente de recursos, mantendo-se os princípios
que norteiam a saúde pública no Brasil.
O Conselho Nacional de Saúde entende que os planos municipais e
regionais de saúde devem conter, obrigatoriamente, metas de produ-
ção, qualidade e resultados de saúde. Ademais, a provisão dos serviços
deve ser regulada pelo gestor por meio de centrais de regulação e sub-

15
Não identificar adequadamente a causa de óbito está relacionado, geralmente, à
falta ou a deficiências da assistência médica.
Desafios para a Saúde 20 anos após a promulgação da Constituição Federal
873

metida a controles de qualidade, avaliação dos resultados e acompa-


nhada pelos respectivos Conselhos de Saúde16.
A lógica supramencionada foi incorporada aos denominados Termos
de Compromisso de Gestão Municipal, do Distrito Federal, Estadual
e Federal, que são os documentos de formalização do Pacto pela Saú-
de 2006. A assinatura desses Termos de Compromisso é a declaração
pública dos compromissos assumidos pelo gestor perante outros ges-
tores e perante a população sob sua responsabilidade, por meio da pac-
tuação de indicadores e metas de saúde. Estabeleceu-se, também, que
as unidades públicas prestadoras de serviço devem, preferencialmente,
receber os recursos de custeio em conformidade com a realização das
metas pactuadas no plano operativo, e não por produção.

Conclusões

As condições sócio-econômicas da população brasileira e a mudança


de seu perfil epidemiológico nas últimas décadas, somadas às defici-
ências do SUS, debatidas ao longo do art., impõem inúmeros desafios
para a melhoria da situação de saúde da população brasileira. Os maio-
res desafios atuais dizem respeito à estruturação de um novo modelo
de atenção à saúde que privilegie os interesses coletivos e realize, de
forma efetiva, ações de promoção e proteção à saúde, levando-se em
consideração os princípios da universalidade, eqüidade e integralidade
e o resgate do conceito intersetorial de saúde.
Em linhas gerais, os principais desafios apontados ao longo do texto
dizem respeito à:
melhoria da coordenação horizontal e vertical entre os diversos
pontos de atenção, o que implica, entre outras ações, a imple-
mentação do caráter de porta de entrada dos serviços de atenção
básica à saúde;
oferta de serviços de saúde de forma contínua e orientados às
necessidades da população;
garantia de financiamento condizente com as necessidades de
saúde da população brasileira;

16
Ministério da Saúde/Conselho Nacional de Saúde (2002b).
874 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

investimento na oferta de serviços para grupos populacionais


com acesso e utilização insuficientes, sem prejudicar segmentos
que já têm o acesso garantido17;
ampliação da qualidade da atenção;
maximização da eficiência no uso dos recursos, seja por meio
de economias de escala e escopo, seja pela adoção de protocolos
clínicos e de modelos de gestão mais flexíveis, preservando os
princípios do SUS;
integração intersetorial do sistema de serviços de saúde com ou-
tras políticas públicas;
adoção de soluções de acordo com a diversidade do território
nacional, respeitando as realidades regionais, estaduais e locais,
especialmente no tocante ao financiamento;
alocação de recursos de acordo com o perfil epidemiológico e
demográfico da população brasileira;
disseminação do uso de informações de saúde, de forma a tornar
o controle social mais efetivo;
implementação de uma política nacional de recursos humanos
no SUS.

Ressalte-se que a necessidade de reorganizar os serviços de atenção


por meio de uma rede regionalizada e hierarquizada, que conte com
mecanismos e instrumentos de gestão e regulação claros e transpa-
rentes, em conformidade com os princípios do SUS, assume caráter
de urgência.
Elevada atenção também deve ser dispensada ao acesso a medicamen-
tos, tendo em vista a alta regressividade dessas despesas. É imperativa
a implantação de laboratórios estatais para suprir a demanda pública
por medicamentos essenciais mediante a produção de genéricos. Para
tanto, há que se readquirir não somente a capacidade de formulação
de medicamentos genéricos, mas também de síntese de seus princí-
pios ativos, assegurando assim a sustentabilidade de longo prazo da
política de produção desses medicamentos.
Apesar de não ter sido o foco deste artigo, o sistema de saúde suple-
mentar também merece atenção especial. Convém frisar que o art.
199 da Constituição Federal de 1988 afirmou que “a assistência à saú-
de é livre à iniciativa privada”.

17
O Conselho Nacional de Saúde considera que este “desafio tem precedência sobre
os demais , por se constituir no princípio e no objetivo estratégico central, que per-
passa os demais desafios, tornando-se estratégia para a universalidade e aumento da
eficácia do sistema”(MS/CNS, 2002b).
Desafios para a Saúde 20 anos após a promulgação da Constituição Federal
875

O crescimento surpreendente deste setor na última década, acompa-


nhado da marcante desigualdade de acesso segundo a faixa de renda e
as regiões do país, vem exigindo do Estado uma profunda revisão de
sua forma de atuação. Nesse sentido, o setor ainda se ressente da inse-
gurança de seu marco regulatório, em especial quanto a lacunas exis-
tentes no disciplinamento das relações entre agentes privados, bem
como entre agentes privados e públicos. Vale lembrar, mais uma vez,
que a Constituição prevê que a participação privada no SUS pode ser
realizada de forma complementar “mediante contrato de direito pú-
blico ou convênio”. O setor privado ofertou, em 2005, de acordo com
o IBGE, 57,6% do total de leitos disponíveis no SUS.
Assim, a questão da contratualização assume papel de destaque não
apenas entre planos privados e prestadores, mas também entre estes
e gestores do SUS, como forma de ampliar a qualidade das ações e
serviços oferecidos e de garantir direitos. O Pacto pela Saúde 2006
estabelece requisitos de planejamento local para efetuar contratos ou
convênios com entidades privadas. A expectativa é que, em um ano,
haja a contratualização de todos os prestadores de serviços ao SUS,
bem como a colocação de todos os leitos e serviços ambulatoriais con-
tratualizados sob regulação. Estes contratos deverão definir metas, ob-
jetivos, normas de atendimento, acompanhamento e monitoramento
de indicadores.

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Saúde
877

Embates sobre a Saúde na


Constituinte e 20 anos depois
Fábio de Barros Correia Gomes

A Constituição Federal de 1988 (CF 88) representa um marco na defi-


nição da política de saúde brasileira, por meio da instituição do Sistema
Único de Saúde (SUS), que mudou drasticamente o tipo de atenção
pública à saúde oferecida à população. Apesar das dificuldades na im-
plantação do sistema, em grande parte devidas a um subfinanciamento
crônico e ao lento processo de aperfeiçoamento do controle social e da
capacidade de gestão em todos os níveis da federação, o país superou a
fase em que grande parcela da população não tinha direito à atenção da
saúde, dependia de ações de benemerência e chegava a ser denominada
de “indigente”. Antes de 1988 esse tipo de atenção era de competência
da previdência social e abrangia os trabalhadores formais e seus depen-
dentes. Ao Ministério da Saúde cabiam apenas ações de proteção geral
da sociedade, como o combate às epidemias e endemias.
Considerou-se relevante resgatar os temas dos principais embates na
Constituinte relacionados à saúde, pois, como se observará adiante,
alguns deles persistem até a atualidade. Para esse resgate recorreu-se à
publicação de um dos integrantes do movimento sanitário brasileiro,
Eleutério Rodriguez Neto (2003), consultor legislativo (aposentado)
da Câmara dos Deputados. Observações sobre a situação atual do
SUS finalizam o texto.
Neto (2003) considerou que a inclusão de dispositivos sobre a política
de saúde na Constituição de 1988, ou seja, a aposta na via do Parla-
mento para encaminhar as demandas do movimento da reforma sani-
tária, “foi uma das estratégias mais bem-sucedidas.” O autor salientou
o papel do Congresso, destacando que a partir da realização do 1º
Simpósio Nacional de Política de Saúde promovido pela Comissão de
Saúde da Câmara dos Deputados, em 1979, sob assessoria do Centro
Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), a proposta que originaria o
SUS foi colocada para o debate público. O documento discutido no
evento – A questão Democrática na Área da Saúde – acabou trans-
formando-se no documento final do Simpósio e na “cartilha” do mo-
vimento sanitário.
878 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Segundo Neto (2003), em novembro de 1981, com o agravamento da


crise da previdência, ao lado de medidas iníquas de aumento de alí-
quotas e redução de benefícios, foi criado o Conselho Consultivo de
Administração da Saúde Previdenciária (Conasp), que promoveu ex-
periências de reorganização dos serviços de saúde. Em novo Simpósio
Nacional de Política de Saúde, também realizado na Câmara dos De-
putados, foi divulgada uma versão do plano do Conasp para as ações de
saúde. Esse plano foi aprovado em 1982 e tinha como características:
racionalizar gastos, modificar o sistema de pagamento por procedimen-
tos específicos para procedimentos mais agregados, além de promover
a eficácia técnica de programas e da rede de assistência, então sob a
responsabilidade do Ministério da Previdência. Criou-se o Programa de
Ações Integradas de Saúde (Pais), com maior integração das unidades
federadas e municipais, ocupando suas capacidades instaladas.
Por meio do Pais foram realizadas experiências em municípios como
Niterói, Lages e Curitiba. Em maio de 1984, todos os estados já parti-
cipavam desse programa. A disputa entre o Ministério da Previdência
e o Ministério da Saúde sobre o controle das ações e serviços de saúde
desgastou um pouco o movimento sanitário que possuía integrantes
atuando em ambos os ministérios, os quais discordavam sobre os meios
para a implantação das diretrizes da reforma sanitária. Entretanto, em
1986, por ocasião da realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde
(CNS), foram refeitas alianças e traçadas estratégias que propiciaram
uma unidade e consistência das propostas que seriam defendidas na
Constituinte (NETO, 2003).
A Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abras-
co) assumiu papel de destaque nesse contexto. Por exemplo, o 1º Con-
gresso Brasileiro de Saúde Coletiva, também realizado em 1986, de-
fendeu as seguintes propostas, que representaram a base do que foi
discutido na Constituinte: o direito universal e igualitário à saúde; o
papel do estado, tanto em relação às ações específicas setoriais, quanto
às políticas econômicas e sociais; a natureza pública das ações de saúde
e o papel supletivo do setor privado; a criação do Sistema Único de
Saúde, com suas características e conteúdos, inclusive a saúde ocupa-
cional; o financiamento ampliado e diversificado do SUS; e as relações
de subordinação das políticas de insumos (medicamentos, sangue, etc),
de equipamentos, de ciência e tecnologia, e de recursos humanos em
relação à política de saúde (NETO, 2003).
Neto (2003) registrou que, nas discussões da Constituinte sobre a saú-
de, o projeto de Constituição elaborado pela Comissão Afonso Arinos
Embates sobre a Saúde na Constituinte e 20 anos depois 879

“sequer foi considerado”, uma vez que não contemplava as contribui-


ções da 8ª CNS.
De acordo com o regimento da Constituinte, o processo de elabora-
ção da Constituição envolveria a apreciação de quatro órgãos: as sub-
comissões, as comissões temáticas, a comissão de sistematização e o
Plenário da Constituinte. A saúde foi abordada pela Subcomissão de
Saúde, Seguridade e Meio Ambiente da Constituinte e, no momento
seguinte, pela Comissão da Ordem Social.
A Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, presidida
pelo Deputado José Elias Murad (PTB/MG) e relatada pelo Deputa-
do Carlos Mosconi (PMDB/MG), representou a porta de entrada das
propostas sobre saúde na CF. Nesse órgão foram realizadas audiências
públicas com ampla participação dos interessados.
Neto (2003) reconheceu três tipos de propostas feitas pelos consti-
tuintes: a) derivadas e orgânicas com a 8ª CNS, apresentadas pela
Comissão Nacional de Reforma Sanitária (CNRS), Conselho Na-
cional de Secretários de Saúde (Conass), entidades sindicais, associa-
ções profissionais, conselhos federais, Abrasco, etc.; b) em defesa da
prática liberal e da iniciativa privada, representadas por cooperativas
médicas, representações de hospitais, entre outras; c) institucionais,
especialmente representadas pelas posições dos ministérios da Saúde
e da Previdência, “cada qual na defesa da preservação e valorização
corporativa da sua pasta”.
A CNRS apresentou proposta que interpretou a partir das recomen-
dações da 8ª CNS; entretanto, foi uma proposta majoritária, não con-
sensual, uma vez que houve polarização entre o movimento sanitário
e representantes da iniciativa privada, que compunham essa comissão.
O “movimento (sanitário) a considerou como conteúdo mínimo acei-
tável para apresentação à Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio
Ambiente da Constituinte” (NETO, 2003).
A subcomissão introduziu aspectos novos ao que foi proposto pela
CNRS, como: execução das ações e serviços de saúde como de respon-
sabilidade do Estado (um avanço); proibição da propaganda de me-
dicamentos e produtos nocivos à saúde; e a “facilidade” para os trans-
plantes (NETO, 2003). A subcomissão não conseguiu chegar a um
acordo sobre o financiamento, remetendo o assunto para a Comissão
de Ordem Social. O anteprojeto foi aprovado na subcomissão com
grande maioria nos seus vários itens.
880 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Na Comissão da Ordem Social, presidida pelo Deputado Edme Ta-


vares (PFL/PB) e relatada pelo Senador Almir Gabriel (PMDB/PA),
não era prevista a realização de audiências públicas, apenas a apre-
sentação de emendas e a votação dos anteprojetos. Nessa comissão
observou-se maior polarização, pois havia mais membros apoiando o
setor privado do que na subcomissão. Foi introduzida a idéia da segu-
ridade social, sob influência das idéias defendidas pelo Ministério da
Previdência Social, sob a argumentação da modernidade, da retirada
do ranço corporativo da saúde e da superação da perspectiva do segu-
ro, privilegiando a universalização e a ampliação de benefícios inde-
pendente da contribuição (NETO, 2003). O argumento pragmático
relacionou-se à obtenção de tratamento diferenciado para o financia-
mento da seguridade, o que não ocorreria se fosse dado um tratamen-
to em separado para a obtenção de recursos para a previdência, saúde
e assistência social. Descartou-se a idéia de fundos específicos, como
reivindicado pela saúde, bem como percentuais orçamentários para
setores específicos (NETO, 2003).
A Comissão de Sistematização foi encarregada de elaborar o projeto
da Constituição propriamente dito, a ser discutido, emendado e vota-
do pelo Plenário da Constituinte. Foi composta por presidentes e re-
latores de comissões, de relatores de subcomissões, além de indicações
proporcionais de todo os partidos. A princípio não deveria criar no-
vos conteúdos, mas trabalhar com aqueles dos anteprojetos (NETO,
2003). Foi possibilitada a apresentação de emendas populares. Houve
mobilização popular em busca de apoio para as mesmas (pelo menos
30 mil assinaturas). A Plenária das Entidades de Saúde foi organizada
para esse fim e foram coletadas menos de 60 mil assinaturas, enquanto
a emenda sobre a reforma agrária obteve mais de 3 milhões, e a do en-
sino público, mais de um milhão de assinaturas. Segundo Neto (2003),
“as dificuldades enfrentadas na coleta de assinaturas evidenciaram o
quanto o movimento estava distante das entidades realmente popula-
res, de base, na sua prática cotidiana. Nos locais em que o movimento
popular de saúde era mais forte, como São Paulo, os resultados foram
mais expressivos. Isso evidenciou ainda mais a necessidade de o movi-
mento da saúde, da Reforma Sanitária, buscar seus verdadeiros aliados
especialmente os que estão fora das academias e das corporações”.
O ministro da Saúde defendeu o projeto do SUS. O da Previdência
chegou a apresentar proposta para a seguridade em que a saúde aparecia
em apenas um art. e o SUS era omitido (NETO, 2003). Nas votações
da Comissão de Sistematização, os problemas se concentraram na saúde
ocupacional e no monopólio estatal para compra de matérias-primas,
Embates sobre a Saúde na Constituinte e 20 anos depois 881

medicamentos e equipamentos. Por meio de acordo, o primeiro perma-


neceu e o último foi rejeitado. O movimento sanitário considerou que o
texto distanciou-se das propostas iniciais e da emenda popular, mas que
manteve a essência da proposta do movimento (NETO, 2003).
No Plenário da Constituinte a polarização cresceu. Parlamentares
insatisfeitos com processos deliberativos da Constituinte organiza-
ram-se no Centro Democrático, o Centrão, e conseguiram aprovar
mudanças no regimento da Constituinte, permitindo apresentação de
emendas globais que poderiam se constituir em projetos alternativos
ao que foi aprovado nas comissões. No caso da saúde, as disputas fo-
ram polarizadas nas dimensões: interesse públicos e privados, traba-
lho e capital, estatização e liberalismo (NETO, 2003). O combate à
estatização uniu os setores hospitalar privado, da medicina de grupo,
das cooperativas médicas e o setor liberal da medicina e o projeto do
Centrão atendia a esse setor, apesar de afirmar que saúde é direito de
todos e dever do Estado (NETO, 2003).
Com o avanço das negociações, possibilitadas pela falta de coesão ide-
ológica entre os membros do Centrão a respeito das propostas para a
saúde, as principais dificuldades decorreram da discussão sobre a inclu-
são da saúde ocupacional como competência do SUS e sobre a natureza
pública dos serviços de saúde. Com relação a todo o processo da Cons-
tituinte, a essência da proposta do movimento sanitário foi mantida, e
“o aspecto mais polêmico, além do referente ao detalhamento e à parti-
cipação do setor privado, foi o relativo ao financiamento, evidenciando
seu insuficiente tratamento técnico anterior” (NETO, 2003).
Ao discutir os dispositivos incluídos sobre a saúde na CF 88, Neto (2003)
destacou que “o que se instituiu foi um sistema único público paralelo a
um sistema privado, o qual poderá participar do primeiro mediante con-
trato de direito público e submetido às suas normas e diretrizes”.
Neto (2003) chamou a atenção para a possibilidade de destinação de
recursos públicos para serviços privados de saúde, “por fora do SUS”,
pois não há indicação constitucional explícita de que os recursos pú-
blicos para ações de saúde sejam aplicados exclusivamente no SUS.
Esse receio do autor demonstrou ser fundamentado, pois atualmente
consideráveis recursos públicos são usados para co-financiar planos
de saúde de servidores públicos em todos os níveis da federação; além
disso, recursos públicos federais são usados para facilitar a venda de
determinados medicamentos a baixos custos em farmácias privadas,
enquanto a assistência farmacêutica na rede do SUS tem sido objeto
freqüente de ações judiciais. Ainda que muitas dessas ações abordem
882 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

onerosas terapias ainda não regulamentadas pelo Ministério da Saúde,


não é trivial a quantidade de ações para o provimento de medicamen-
tos que fazem parte da lista governamental dos que deveriam estar
disponíveis para a população.
Sobre o financiamento da saúde, Neto (2003) destacou a “necessidade
de mecanismos legais que assegurem pisos de gastos necessários à Saú-
de, seja por via de percentuais mínimos, seja pela vinculação interna
de elementos da receita da Seguridade Social à Saúde”. Reconheceu
que “tudo terá que ser conquistado através da legislação complemen-
tar.” De fato, o embate para a obtenção de mais recursos para a saúde
continuou. Outro simpósio nacional de saúde foi promovido pela Câ-
mara dos Deputados em 1989 para pressionar pela elaboração da Lei
Orgânica da Saúde. Em 2005 e 2007 novos simpósios sobre política
de saúde também foram realizados na Câmara dos Deputados, sob a
liderança da Frente Parlamentar da Saúde e outras entidades da saúde,
demandando solução adequada para o financiamento da saúde.
Neto (2003) considerou que a ciência e tecnologia foi a área que mais
perdeu no processo de negociação na Constituinte, pois não foi inclu-
ída obrigação específica, apenas uma recomendação. Sobre os recursos
humanos, destacou que a legislação infraconstitucional poderia facili-
tar um plano de cargos e salários para o setor público.
Em resumo, o autor considerou que
os preceitos aprovados na nova Constituição apontam, pelo me-
nos do ponto de vista formal, para a possibilidade de não só se
construir um sistema de atenção à saúde mais racional, como
também de as políticas econômicas e sociais terem a Saúde
como referência e, conseqüentemente, utilizá-la politicamente
como critério para o avanço da luta por uma sociedade mais jus-
ta e equânime (NETO, 2003).

Entretanto, a partir da aprovação da CF 88, o autor observou que a


implantação do SUS foi realizada de modo a prejudicar “o planeja-
mento ascendente, os planos de saúde e a descentralização com dire-
ção única em cada esfera de governo”, provocando o afastamento do
SUS do princípio da integralidade da atenção à saúde (NETO, 2003).
Em 2002, o Ministério da Saúde tinha mais de sessenta maneiras de
repassar recursos. Não era isso o que determinava a Lei Orgânica da
Saúde, a Lei nº 8.080, de 1990. Os recursos tornaram-se “carimbados”
pelo nível central, prejudicando o planejamento e a ação dos conselhos
de saúde. De todo o modo, o autor reconheceu que as normas do SUS
representaram fator de resistência à idelogia predominante de ajuste
fiscal (NETO, 2003).
Embates sobre a Saúde na Constituinte e 20 anos depois 883

Os detalhados registros de Eleutério Neto sobre as discussões na


Constituinte fundamentam a observação de que a tensão entre a par-
ticipação privada e a pública na atenção à saúde foi um tema crítico que
persiste na atualidade. Segundo Ivanete Boschetti, a seguridade social
(composta pelas áreas da saúde, da previdência social e da assistência
social) não foi implementada conforme prevista na CF 88, uma vez que
a tendência política foi de fragmentar as políticas sociais e de ameaçar
as bases conceituais e financeiras, dificultando sua consolidação (BOS-
CHETTI, 2003). Conseqüentemente, as políticas setoriais componen-
tes da seguridade social enfraqueceram-se, pois precisaram disputar os
recursos disponíveis, contrariando a determinação constitucional de re-
partição integrada de recursos para o financiamento de cada um desses
componentes, por meio do orçamento da seguridade social.
Após várias crises de financiamento das ações e serviços de saúde na
década de 1990, em 2000 foi obtida maior estabilidade, graças à de-
finição, pela Emenda Constitucional nº 29, de percentuais mínimos
para aplicação em saúde por parte de municípios e estados e a manu-
tenção da aplicação da União. Como resultado, observou-se aumento
da participação no financiamento por parte dos municípios e dos esta-
dos e retração da participação relativa da União (FRENTE PARLA-
MENTAR DA SAÚDE, 2005). Entretanto, muitos dos problemas
do SUS ainda têm sido atribuídos ao não-cumprimento pelos entes
federados das regras de financiamento constitucionais, conforme di-
vulgado no Seminário sobre Saúde e Seguridade Social da Câmara
dos Deputados (2007a). Os conflitos relacionados ao financiamento
do SUS são exemplificados pela recente dificuldade de o Congresso
Nacional aprovar a regulamentação da Emenda Constitucional nº 29,
de 2000, por meio de um projeto de lei complementar que defina o
percentual orçamentário para a participação da União e esclareça os
tipos de gastos que devem ser considerados para o cálculo de percen-
tuais mínimos de gasto em saúde.
Ainda que o SUS tenha conseguido manter seus conceitos no pla-
no legal e tenha obtido algum sucesso no controle social da política
de saúde, na prática a política de limitação nos gastos sociais, imple-
mentada por sucessivos governos desde a década de 1990, tem difi-
cultado uma adequada descentralização das ações e serviços de saúde
(FRENTE PARLAMENTAR DA SAÚDE, 2005). A implemen-
tação incompleta do SUS, devido a seu inadequado financiamento,
afeta a qualidade do serviço oferecido à população e abala sua credibi-
lidade. Isso pode ser percebido como falha na concepção do sistema,
em vez de falha em sua implementação. A crise de confiança, por sua
884 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

vez, pode dificultar a obtenção de apoio necessário para aprovação no


Congresso Nacional de medidas para reverter o subfinanciamento.
É digno de menção que, enquanto um modelo de atenção universal à
saúde, como o SUS, enfrentava dificuldades para o seu financiamento
imediatamente após sua criação, o Banco Mundial recomendava que o
setor público dos países deveria financiar: bens públicos e semi-públi-
cos que fossem custo-efetivos e para os quais a demanda fosse inade-
quada; intervenções custo-efetivas que preferencialmente beneficias-
sem os pobres; e cuidados de saúde de custo catastrófico (MUSGROVE,
1999, p. 24). Essa visão opunha-se à universalidade e integralidade dos
serviços oferecidos à população pelo SUS.
As dificuldades observadas na implementação do SUS parecem re-
fletir uma dissociação entre sua base normativa, universal e inclusiva,
e seus resultados observáveis, que muitas vezes expressam a focaliza-
ção, a seleção dos mais pobres e a priorização dos procedimentos com
custos catastróficos. Ao lado de casos de sucesso do SUS em progra-
mas específicos, que são mais adequadamente financiados, como o de
transplante de órgãos e o de controle da Aids, alguns serviços menos
complexos são inadequadamente financiados e têm cobertura e quali-
dade insuficientes.
As dificuldades de acesso a ações e serviços de saúde por meio do
SUS foram recentemente explicitadas durante audiência pública na
Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos De-
putados, para debater questões relativas ao financiamento da saúde
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2007a). Dados apresentados pelo
Ministério da Saúde indicaram defasagens na tabela de remunera-
ção do SUS e estimaram que há 13 milhões de hipertensos que não
estão sendo tratados e acompanhados adequadamente e 4,5 milhão
de diabéticos na mesma situação (CÂMARA DOS DEPUTADOS,
2007b). Também foi destacado que: 25% da população portadora de
doenças negligenciadas, como tuberculose, malária, hanseníase, entre
outras, não têm acesso regular ao sistema de saúde; 47% das gestantes
não cumprem o mínimo de sete consultas de pré-natal e 90 mil bra-
sileiros com diagnóstico de câncer estabelecido farão cirurgia e qui-
mioterapia, mas não terão acesso à radioterapia pela insuficiência de
capacidade instalada (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2007b).
Além disso, é preciso considerar que o acesso da população brasileira
aos serviços do SUS não se dá de modo uniforme, pois há desigual-
dades regionais. Por exemplo, Mariângela Cherchiglia et al. (2007)
verificaram assimetria regional no acesso à diálise renal. Em 2003,
Embates sobre a Saúde na Constituinte e 20 anos depois 885

enquanto no Sudeste a prevalência de pessoas em diálise foi de 443


por milhão de habitantes (p.m.h.), no Norte foi de 140 p.m.h.
Nesse contexto, quase 40 milhões de brasileiros, mesmo tendo direito ao
atendimento público integral, recorrem a planos de assistência médica
privados, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar
(AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR, 2006), o
que apóia a tese de Carlos Pereira (1996) de que a falta de qualidade dos
serviços públicos fortalece a medicina privada suplementar.
A desigualdade na qualidade de ações e serviços públicos de saúde
de baixa e média complexidade produz um contexto de iniqüidade e de
ineficiência em que a parcela mais pobre da população sofre restrição
de acesso a serviços de qualidade (com relação à oportunidade e re-
solutividade do atendimento) para prevenir e reduzir a incidência de
doenças que terminam por demandar tratamentos mais caros e com-
plexos. É o caso do deficiente acesso ao tratamento do diabetes e da
hipertensão arterial, que pode prejudicar a prevenção de complicações
renais e cardiovasculares e, conseqüentemente, aumentar a demanda
potencial por transplante de órgãos.
A ambigüidade do modelo de atenção pública à saúde efetivamente
adotado no país e expresso nas prioridades de financiamento do siste-
ma, na prática, combina universalidade (para os serviços de alta com-
plexidade e os relacionados à vigilância epidemiológica e sanitária) e
certa seletividade para a população mais pobre (para os serviços de
saúde de baixa e média complexidade), alimentando uma estrutura de
desigualdade no acesso da população aos serviços de saúde.
Em resumo, o SUS foi concebido pelos constituintes na lógica do
Estado do bem-estar redistributivo, mas, em larga medida, implemen-
tado segundo uma lógica residual, em função da tentativa de relati-
vização e de limitação do direito constitucional à saúde, às custas do
subfinanciamento e da focalização de uma política que a Constituição
Federal estabeleceu como universal.
Nesse contexto desafiador à manutenção e ao desenvolvimento da
seguridade social, a implantação do SUS tem enfrentado obstáculos,
como já referido, mas também tem alcançado significativos êxitos,
indicando o acerto da concepção do sistema e o empenho dos pro-
fissionais que o compõem e dos cerca de 100 mil conselheiros que
atuam no controle do sistema em todo o país. Dados referentes às
atividades desenvolvidas pelo SUS em 2006 destacam a grandiosidade
de sua produção: 1,3 bilhões de atendimentos básicos, 1,2 bilhões de
atendimentos especializados, 600 milhões de consultas, 212 milhões
886 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

de atendimentos odontológicos, 360 milhões de exames laboratoriais, 11


milhões de ultrassonografias, 11,8 milhões de internações, 3,1 milhões de
cirurgias (141 mil cardíacas), 150 milhões de vacinas, 1,3 milhão de to-
mografias, 23 milhões de ações de vigilância sanitária, 12 mil transplantes,
entre outros procedimentos (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2007a).
Aproximadamente 100 mil transplantados já foram beneficiados pelo
SUS, o qual custeia a quase totalidade dos transplantes e diálises re-
nais realizados no País. O programa da Aids tem promovido o controle
dessa síndrome e evitou as graves conseqüências de uma epidemia em
maior escala. O programa de imunização, que já contava com o sucesso
da erradicação da poliomielite, também se destaca na eliminação do
sarampo e nas altas coberturas de vacinação de idosos contra a gripe.
Em 2006, foi alcançada a certificação internacional de eliminação da
transmissão da doença de Chagas. Na busca pela ampliação do acesso às
ações básicas de saúde, o Programa de Saúde da Família tem ampliado
sua cobertura progressivamente e se destacado como um dos fatores que
estão contribuindo para a redução da mortalidade infantil.
Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef
(2007), o Brasil conseguiu reduzir quase pela metade a taxa de mor-
talidade infantil entre 1990 e 2006, de 46,9 por mil para 24,9 por mil
nascidos vivos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
tica (2008), a expectativa de vida ao nascer do brasileiro era de 66,57
anos em 1990 e chegou a 72,48 em 2007. Embora esses resultados
positivos não dependam apenas das ações de saúde, certamente foram
influenciados por atividades desenvolvidas pelo sistema de saúde con-
formado pela CF 88.
O impacto da Constituição na saúde pública brasileira é incontestável,
mas nem sempre os benefícios de uma de suas mais relevantes criações,
o SUS, são percebidos. Esse sistema representa uma conquista que,
após 20 anos, já não admite retrocessos perante a população, apenas
aperfeiçoamentos. Entretanto, como alertou Eleutério Neto (2003), o
SUS “precisa começar a dar certo, aos olhos da população e da mídia”.
Para tanto, entre outras recomendações, mencionou a necessidade de
solucionar os problemas do subfinanciamento, da falta de uma polí-
tica de recursos humanos para o SUS e, principalmente, sugeriu uma
maior aproximação com os “movimentos populares”.
Provavelmente, uma maior conscientização dos cidadãos (dos que de-
pendem exclusivamente do SUS ou não) a respeito de seus direitos,
aperfeiçoará o controle social do sistema e legitimará a demanda pe-
rante os eleitos para atuar no Legislativo e no Executivo, a fim de que
Embates sobre a Saúde na Constituinte e 20 anos depois 887

proporcionem um financiamento e gestão adequados aos princípios


constitucionais. Um sistema público mais eficiente e adequadamente
financiado produzirá ainda mais benefícios à saúde da população, bem
como fortalecerá a participação das instituições públicas e também
das privadas contratadas pelo SUS, aproximando-se da vontade origi-
nal dos constituintes.

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Saúde
889

Saúde nas
Constituições brasileiras
Fábio de Barros Correia Gomes

Este texto apresenta o resultado da análise dos oito textos constitu-


cionais elaborados no Brasil entre 1824 e 1988, no que concerne ao
tratamento dispensado a temas da saúde.
Nossa primeira Constituição, a de 1824, preocupou-se em garantir
“direitos civis, e políticos dos cidadãos” brasileiros do Império, to-
mando por “base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade”
(BRASIL, 1824). Mencionou que os códigos civil e criminal seriam
fundados “nas sólidas bases da justiça, e eqüidade” (art. 179, inciso
XVIII). Referências a temas de saúde apenas foram observadas no art.
179, sobre os direitos dos cidadãos, entretanto sem nenhuma menção
à organização de serviços de saúde como dever do Estado, como se
observa a seguir.
XXI – As Cadêas serão seguras, limpas, o bem arejadas .
...................................................................................................
XXIV – Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou
commercio póde ser prohibido, uma vez que não se opponha aos
costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos.
...................................................................................................
XXXI – A Constituição tambem garante os soccorros publicos.

Vale destacar que outra política social, a educação, mereceu atenção


especial no mesmo art.: “XXXII – A Instrucção primaria, é gratuita a
todos os Cidadãos.”
A Constituição republicana de 1891 (BRASIL, 1891), em seu art. 72,
dedicado aos direitos dos cidadãos, também de cunho liberal, assegu-
rou “a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade
dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à pro-
priedade” e não fez menção a tema de saúde, a não ser pela vaga indi-
cação de que “os cemitérios terão caráter secular e serão administrados
pela autoridade municipal” (§ 5º).
890 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A Constituição de 1934 destacou “a liberdade, a justiça e o bem-es-


tar social e econômico” em seu preâmbulo (BRASIL, 1934) e pela
primeira vez incluiu menção explícita à saúde como competência de
unidades federadas: “Art. 10. Compete concorrentemente à União e
aos estados: (...) II – cuidar da saúde e assistência públicas”. No art. 113,
dedicado aos direitos individuais, apenas manteve o dispositivo sobre
o caráter secular dos cemitérios (item 7). Maior ênfase foi colocada na
assistência ao trabalhador, como se observa no art. 121:
Art. 121. A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as
condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a
proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do país.
§ 1º A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além
de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador:
...................................................................................................
d) proibição de trabalho a menores de 14 anos; de trabalho no-
turno a menores de 16 e em indústrias insalubres, a menores de
18 anos e a mulheres;
...................................................................................................
h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, asse-
gurando a esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo
do salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante
contribuição igual da União, do empregador e do empregado,
a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de
acidentes de trabalho ou de morte;

O art. 138 incumbiu à União, aos estados e aos municípios, nos termos
das leis respectivas, entre outras, a “adoção de medidas legislativas e
administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade
infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças
transmissíveis”, além do cuidado com “a higiene mental”. Também foi
indicado que a União deveria organizar “o serviço nacional de com-
bate às grandes endemias do país, cabendo-lhe o custeio, a direção
técnica e administrativa nas zonas onde a execução do mesmo exceder
as possibilidades dos governos locais” (art. 140). O art. 157, dedicado
aos fundos de educação da União e de estados, destacou que parte dos
mesmos seriam aplicados “em auxílios a alunos necessitados, mediante
fornecimento gratuito de material escolar, bolsas de estudo, assistência
alimentar, dentária e médica, e para vilegiaturas” (§ 2º).
A Constituição de 1937, preocupada com a “paz política”, a “infiltração
comunista”, a “luta de classes” e a “decomposição das nossas institui-
ções civis e políticas” (preâmbulo), eliminou atribuições do Congresso,
substituiu o Senado Federal pelo Conselho Federal, com membros
Saúde nas Constituições brasileiras 891

indicados pelo presidente e eleitos pelas assembléias legislativas dos


estados (BRASIL, 1937). No campo da saúde, reconheceu competên-
cia privativa da União para legislar sobre “normas fundamentais da
defesa e proteção da saúde, especialmente da saúde da criança (art. 16,
XXVII)”. Aos estados cabia suprir as lacunas da legislação federal (art.
17) ou “atender às peculiaridades locais”, desde que não dispensassem
ou diminuíssem “as exigências da lei federal” em assuntos específicos,
entre os quais a “assistência pública, obras de higiene popular, casas de
saúde, clínicas, estações de clima e fontes medicinais (art. 18, c)”.
O art. sobre direitos individuais (122) assegurou aos brasileiros e es-
trangeiros residentes no país o direito à liberdade, à segurança indi-
vidual e à propriedade e apenas mencionou o dispositivo sobre os ce-
mitérios com teor semelhante ao de outras constituições (item 5). A
prioridade aos direitos dos trabalhadores foi enfatizada no inciso “l”
do art. 136, pela previsão de “assistência médica e higiênica ao tra-
balhador e à gestante, assegurado a esta, sem prejuízo do salário, um
período de repouso antes e depois do parto”.
A Constituição de 1946 redemocratizou o país, reinstituiu e revigorou
as competências do Senado Federal, fortalecendo o regime represen-
tativo, a Federação e a República (BRASIL, 1946). Manteve a com-
petência da União para legislar sobre a proteção da saúde (art. 5º, XV,
b). Sobre os direitos individuais (art. 141), assegurou aos “brasileiros e
aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos con-
cernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade” e
também manteve a referência aos cemitérios (§ 10). Sobre a melhoria
da condição dos trabalhadores, a Constituição fez menções à higiene
e segurança do trabalho, benefícios à gestante e proteção de menores
de 14 anos (art. 157) e especificou a “assistência sanitária, inclusive
hospitalar e médica preventiva, ao trabalhador e à gestante” (art. 157,
XIV). É digno de menção que uma política social, a educação, foi
alvo de vinculação de recursos públicos: “anualmente, a União aplicará
nunca menos de dez por cento, e os estados, o Distrito Federal e os
municípios nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos
impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 169). A
solução dos problemas de saúde da população continuou fortemente
vinculada à situação trabalhista dos indivíduos.
A Constituição de 1967 restringiu direitos políticos e subordinou o
Congresso ao Executivo (BRASIL, 1967). No campo da saúde, re-
conheceu competência da União para “estabelecer planos nacionais
de educação e de saúde” (art 8º, XIV) e manteve a competência para
892 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

legislar sobre “normas gerais” de “defesa e proteção da saúde” (art 8º,


XVII, c).
Uma política social recebeu destaque. O art. 168 declarou que a “edu-
cação é direito de todos”, especificando que “o ensino dos sete aos
quatorze anos é obrigatório para todos e gratuito nos estabelecimen-
tos primários oficiais”.
No art. sobre direitos individuais (150), foi mantida a garantia “aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos
direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade”.
Foi retirada a menção aos cemitérios. Sobre os trabalhadores, foram
mantidas as conquistas prévias de assistência sanitária e benefícios
para gestantes e menores trabalhadores, acrescentando-se que “ne-
nhuma prestação de serviço de assistência ou de benefício compreen-
dido na previdência social será criada, majorada ou estendida, sem a
correspondente fonte de custeio total” (art. 158).
Em 1969, a Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969,
revisou todo o texto constiucional, alterando a numeração de vários
artigos (BRASIL, 1969). As já mencionadas competências da União
na área da saúde foram mantidas (art. 8º). As garantias sobre direitos
individuais (art. 153) e a assistência sanitária para trabalhadores e be-
nefícios para gestantes também foram mantidos (art. 165).
A educação recebeu ainda maior destaque. O art. 176 foi enfático: “a
educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de
liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e
será dada no lar e na escola”. A Emenda Constitucional nº 24, de 1983,
modificou esse art., estabelecendo que anualmente, a União aplicaria
“nunca menos de treze por cento, e os estados, o Distrito Federal e os
municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante
de impostos, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.
Algum nível de prioridade para o financiamento da saúde foi expresso
apenas por meio da Emenda Constitucional nº 27, de 1985, que mo-
dificou o art. 25 (que abordava a repartição de impostos arrecadados
pela União), indicando que os municípios aplicariam “em programas de
saúde, 6,0% (seis por cento)” de valores creditados por meio do Fundo
de Participação dos Municípios. Observa-se, entretanto, que não havia
menção constitucional ao direito à saúde. Tal direito foi introduzido
pela Constituição Federal de 1988 (CF 88), entretanto é interessante
observar que conquistas sociais (e até expressões) de constituições an-
teriores foram sendo mantidas e ampliadas.
Saúde nas Constituições brasileiras 893

A saúde na Constituição Federal de 1988

A CF 88 declarou que “o exercício dos direitos sociais e individuais, a


liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e
a justiça” são valores supremos de uma sociedade (BRASIL, 1988). Os
artigos sobre direitos individuais e sociais foram destacados já nos dis-
positivos iniciais da CF 88, ao contrário dos textos anteriores. O art.
5º mencionou a garantia “aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade.” O art. 6º explicitou os direitos sociais: a
educação, a saúde, o trabalho, a moradia (inserida pela Emenda Cons-
titucional nº 26, de 2000), o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.
Ao dispor sobre o direito dos trabalhadores, indicou-se que o salário
mínimo (art. 7º, IV) deveria ser capaz de atender às necessidades vi-
tais básicas do trabalhador e de sua família, incluindo a saúde entre
vários itens. O mesmo art. abordou benefícios para gestantes, a licença
paternidade e o adicional de remuneração para as atividades penosas,
insalubres ou perigosas.
O art. 23, inciso II, reconheceu a competência comum da União, dos
estados, do Distrito Federal e dos municípios para “cuidar da saúde
e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de
deficiência”, e o art 24, a competência concorrente da União, estados e
Distrito Federal para legislar sobre “previdência social, proteção e de-
fesa da saúde” (inciso XII). O mesmo art. limitou a competência da
União ao estabelecimento de normas gerais, sem excluir a compe-
tência suplementar dos estados; de modo que, inexistindo lei federal
sobre normas gerais, os estados exercerão a competência legislativa
plena para atender a suas peculiaridades, embora a superveniência de
lei federal sobre normas gerais suspenda a eficácia da lei estadual, no
que lhe for contrário.
Os municípios receberam competência para “legislar sobre assuntos
de interesse local” (art. 30, I); para “suplementar a legislação federal e a
estadual no que couber” (art. 30, II); e para “prestar, com a cooperação
técnica e financeira da União e do estado, serviços de atendimento à
saúde da população (art. 30, VII).
A CF 88 previu algumas situações de intervenção da União nos es-
tados e Distrito Federal, e em 2000, por meio da Emenda Consti-
tucional nº 29, acrescentou-se o caso da não-aplicação do “mínimo
exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a
894 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do


ensino e nas ações e serviços públicos de saúde” (art. 34, e). A Emenda 29
também inseriu a possibilidade de intervenção do estado ou União no
município em caso de não-aplicação do “mínimo exigido da receita
municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e
serviços públicos de saúde” (art. 35, III).
O art. 167 vedou vinculação de receitas de impostos a órgãos especí-
ficos, mas desde 2000, também devido à Emenda 29, foi ressalvada
a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde
(inciso IV).
A CF 88 inseriu a saúde no contexto da seguridade social, que “com-
preende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes
públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à
saúde, à previdência e à assistência social” (art. 194). O art. 194 indicou
os seguintes objetivos para a seguridade social:
I – universalidade da cobertura e do atendimento;
II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às po-
pulações urbanas e rurais;
III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios
e serviços;
IV – irredutibilidade do valor dos benefícios;
V – eqüidade na forma de participação no custeio;
VI – diversidade da base de financiamento;
VII - caráter democrático e descentralizado da gestão adminis-
trativa, com a participação da comunidade, em especial de traba-
lhadores, empresários e aposentados;
VII – caráter democrático e descentralizado da administração,
mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalha-
dores, dos empregadores, dos aposentados e do governo nos ór-
gãos colegiados. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº
20, de 1998)

Foi estabelecido que o financiamento da seguridade social seria realiza-


do mediante recursos dos orçamentos da União, dos estados, do Distrito
Federal e dos municípios e de contribuições sociais (art. 195).
Admitiu-se que a “lei poderá instituir outras fontes destinadas a ga-
rantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido
o disposto no art. 154, I1 (art. 195, § 4º). Foi mantida previsão da

1
Mediante lei complementar, (...) desde que sejam não-cumulativos e não tenham
fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição.
Saúde nas Constituições brasileiras 895

constituição anterior segundo a qual “nenhum benefício ou serviço


da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a
correspondente fonte de custeio total” (art 195, § 5º) .
Os arts. 196 a 200 tratam especificamente da saúde. O art. 196 re-
conheceu que a “saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. O art.
197 estabeleceu que “são de relevância pública as ações e serviços de
saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua
regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita
diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou
jurídica de direito privado”.
O art. 198 abordou as ações e serviços públicos de saúde, que “inte-
gram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um siste-
ma único”. Como diretrizes do sistema público destacou:
I – descentralização, com direção única em cada esfera de go-
verno;
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades
preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III – participação da comunidade.
Sobre o financiamento da saúde, parágrafo do art. 198 estabeleceu que
o sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com
recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos estados, do
Distrito Federal e dos municípios, além de outras fontes. A Emenda
Constitucional nº 29, de 2000, modificou o art. 198, tornando mais
específicas as obrigações relacionadas ao financiamento da saúde:
§ 2º A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios
aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde re-
cursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados
sobre:
I – no caso da União, na forma definida nos termos da lei com-
plementar prevista no § 3º;
II – no caso dos estados e do Distrito Federal, o produto da
arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recur-
sos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso
II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos
municípios;
896 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

III – no caso dos municípios e do Distrito Federal, o produto da


arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos
de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.
§ 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada
cinco anos, estabelecerá:
I – os percentuais de que trata o § 2º;
II – os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à
saúde destinados aos estados, ao Distrito Federal e aos muni-
cípios, e dos estados destinados a seus respectivos municípios,
objetivando a progressiva redução das disparidades regionais;
III – as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas
com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal;
IV – as normas de cálculo do montante a ser aplicado
pela União.
Em 2006 foram acrescentados mais três parágrafos ao art. 198, tratan-
do da possibilidade de admissão “de agentes comunitários de saúde
e agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo pú-
blico, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e
requisitos específicos para sua atuação”, eliminando-se a necessidade
de concurso público para esses casos.
O art. 199 indicou que “a assistência à saúde é livre à iniciativa priva-
da”. Seu § 1º admitiu que “as instituições privadas poderão participar
de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes
deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo prefe-
rência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. O § 2º vedou
“a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às ins-
tituições privadas com fins lucrativos”. O § 3º vedou “a participação
direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à
saúde no país, salvo nos casos previstos em lei”. O § 4º tratou de temas
de relevância pública, indicando que “a lei disporá sobre as condições e
os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias
humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a
coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo
vedado todo tipo de comercialização”.
O art. 200 especificou algumas das competências do sistema único de
saúde e indicou que outras podem ser estabelecidas em lei:
I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substân-
cias de interesse para a saúde e participar da produção de me-
dicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados
e outros insumos;
Saúde nas Constituições brasileiras 897

II – executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica,


bem como as de saúde do trabalhador;
III – ordenar a formação de recursos humanos na área de
saúde;
IV – participar da formulação da política e da execução das
ações de saneamento básico;
V – incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento
científico e tecnológico;
VI – fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o con-
trole de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para
consumo humano;
VII – participar do controle e fiscalização da produção, trans-
porte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoati-
vos, tóxicos e radioativos;
VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreen-
dido o do trabalho.

Entre as disposições específicas para a educação encontram-se deter-


minações relacionadas à saúde:
• “o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a ga-
rantia de: (...) atendimento ao educando, no ensino fundamental,
através de programas suplementares de material didático-escolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde” (art. 208, VII);
• “os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde
previstos no art. 208, VII, serão financiados com recursos prove-
nientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários”
(art. 212, § 4º).
No que diz respeito à comunicação social, o art. 220, § 3º, inciso II,
estabeleceu competência de legislação federal para impor restrições à
“propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos
à saúde e ao meio ambiente”. O § 4º do mesmo art. indicou que “a
propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, me-
dicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais (...) e conterá,
sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de
seu uso”.
No capítulo dedicado à família, à criança, ao adolescente e ao idoso, foi
declarado o dever da família, da sociedade e do Estado em assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, uma série de direi-
tos, entre os quais a vida, a saúde e a alimentação (art. 227). Também
foram especificadas obrigações do Estado em promover programas
de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida
898 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

a participação de entidades não-governamentais (art. 227, § 1º). Para


tais programas foi estabelecido: “aplicação de percentual dos recursos
públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil” (art. 227,
§ 1º, I); “criação de programas de prevenção e atendimento especiali-
zado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem
como de integração social do adolescente portador de deficiência, me-
diante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do
acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos
e obstáculos arquitetônicos” (art. 227, § 1º, II); programas de preven-
ção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependen-
te de entorpecentes e drogas afins (art. 227, § 3º).
O art. 243 estabeleceu que bens confiscados em decorrência do tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins seriam revertidos “em benefício
de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de
viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização,
controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias”
(parágrafo único).
O ato das disposições constitucionais transitórias apresentou relevan-
tes determinações para o financiamento da saúde. O art. 55 indicou
que, até que fosse “aprovada a lei de diretrizes orçamentárias, trinta
por cento, no mínimo, do orçamento da seguridade social, excluído
o seguro-desemprego”, seriam destinados ao setor de saúde. Pelo que
consta, essa determinação não foi cumprida.
A Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 1994, instituiu, por
meio do art. 71, o Fundo Social de Emergência para os exercícios
financeiros de 1994 e 1995, “com o objetivo de saneamento finan-
ceiro da Fazenda Pública Federal e de estabilização econômica, cujos
recursos serão aplicados no custeio das ações dos sistemas de saúde”,
entre outras. A Emenda Constitucional nº 10, de 1996, modificou o
art. 71 e estendeu a existência desse fundo para o período de 1996 e
1997, alterando sua denominação para Fundo de Estabilização Fiscal.
A Emenda Constitucional nº 17, de 1997, ampliou a duração do Fun-
do até 1999.
O art. 74 das disposições transitórias, incluído pela Emenda Consti-
tucional nº 12, de 1996, permitiu à União “instituir contribuição pro-
visória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos
e direitos de natureza financeira,” a CPMF, com alíquota de contri-
buição que não poderia exceder a vinte e cinco centésimos por cento,
com o produto da arrecadação a ser “destinado integralmente ao Fundo
Nacional de Saúde, para financiamento das ações e serviços de saúde”
Saúde nas Constituições brasileiras 899

e com previsão de que não poderia ser cobrada por prazo superior a
dois anos. A Emenda Constitucional nº 21, de 1999, incluiu o art. 75
nas disposições transitórias, que prorrogou a cobrança da contribuição
por mais trinta e seis meses, estabeleceu que a alíquota da contribui-
ção seria de trinta e oito centésimos por cento, nos primeiros doze
meses, e de trinta centésimos, nos meses subseqüentes. O resultado do
aumento da arrecadação, decorrente da alteração da alíquota, nos exer-
cícios financeiros de 1999, 2000 e 2001, seria “destinado ao custeio da
previdência social”.
Em 2000, a Emenda Constitucional nº 29, finalmente estabeleceu
previsões mais estáveis para o financiamento da saúde, por meio da
inclusão do art. 77 no ato das disposições constitucionais transitórias.
Em 2000, os recursos mínimos aplicados nas ações e serviços públicos
de saúde pela União deveria ser equivalente ao “montante empenhado
em ações e serviços públicos de saúde no exercício financeiro de 1999
acrescido de, no mínimo, cinco por cento”. Do ano 2001 ao ano 2004,
deveriam ser aplicados “o valor apurado no ano anterior, corrigido pela
variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB”. No caso dos estados
e do Distrito Federal, deveriam ser aplicados “um mínimo de doze por
cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art.
155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e
inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos
municípios”. No caso dos municípios e do Distrito Federal, o mínimo
a ser aplicado seria de “quinze por cento do produto da arrecadação dos
impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts.
158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º”.
Foi admitido que estados, Distrito Federal e municípios que não apli-
cassem os percentuais indicados elevassem a aplicação gradualmente
“até o exercício financeiro de 2004, reduzida a diferença à razão de,
pelo menos, um quinto por ano”. Entretanto, a partir de 2000, a apli-
cação seria “de pelo menos sete por cento”. Dos recursos da União
apurados nos termos do art. 75, “quinze por cento, no mínimo”, seriam
aplicados nos municípios, segundo o critério populacional, em ações e
serviços básicos de saúde, na forma da lei.
A Emenda 29 estabeleceu que os recursos dos estados, do Distrito
Federal e dos municípios destinados às ações e serviços públicos de
saúde e os transferidos pela União para a mesma finalidade seriam
aplicados por meio de Fundo de Saúde a ser acompanhado e fiscali-
zado por Conselho de Saúde, sem prejuízo do disposto no art. 74 da
Constituição Federal (referente aos sistemas de controle). Também foi
indicado que, na ausência de lei complementar, prevista no art. 198,
900 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

a partir do exercício financeiro de 2005 aplicar-se-ia à União, aos es-


tados, ao Distrito Federal e aos municípios os parâmetros disposto
no art. 77 das disposições transitórias. A referida lei complementar
tem sido objeto de discussão no Congresso Nacional desde 2003, e
recentemente ganhou destaque pela associação dessa regulamentação
à criação de uma nova contribuição social específica para a saúde2.
Ainda em 2000, a Emenda Constitucional nº 31 incluiu o art. 79 nas
disposições transitórias, para instituir o Fundo de Combate e Erradi-
cação da Pobreza, para vigorar até o ano de 2010, no âmbito do Poder
Executivo Federal, com o objetivo de viabilizar a todos os brasileiros
acesso a níveis dignos de subsistência, cujos recursos serão aplicados em
ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de
renda familiar e outros programas de relevante interesse social voltados
para melhoria da qualidade de vida. Essa Emenda também incluiu o art.
80, indicando que um dos componentes desse Fundo seria uma “parcela
do produto da arrecadação correspondente a um adicional de oito cen-
tésimos por cento, aplicável de 18 de junho de 2000 a 17 de junho de
2002, na alíquota da contribuição social de que trata o art. 75 (a CPMF)
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.
Finalmente, a Emenda Constitucional nº 37, de 2002, incluiu os arts.
84 e 85 nas disposições transitórias, tratando da ampliação da du-
ração da CPMF (até 2004), da divisão do produto da arrecadação
entre o Fundo Nacional de Saúde, a previdência social e o Fundo de
Combate e Erradicação da Pobreza, além de isenções de cobrança da
contribuição em algumas situações, como o investimento em ações e
investimentos estrangeiros especificados.
Em conclusão, os dados coletados nesta análise documental sugerem
que a abordagem da saúde nas constituições brasileiras evoluiu pro-
gressivamente, acompanhando o processo histórico de ampliação dos
direitos do cidadão. Ao longo de quase 200 anos, a sociedade brasileira
partiu de uma visão política mais liberal do Estado – garantidor das
liberdades individuais e da segurança coletiva –, passando pelo Estado
promotor do desenvolvimento e garantidor de direitos trabalhistas e
da reprodução da força de trabalho, até chegar ao Estado provedor e
garantidor de direitos sociais, não apenas vinculados à condição de
trabalhador, mas à condição de cidadão.
A CF 88 abordou a polêmica relação entre os interesses privados e
públicos na assistência à saúde e, tomando por base um conceito am-

2
Em decorrência da rejeição da prorrogação da CPMF pelo Senado federal em
dezembro de 2007.
Saúde nas Constituições brasileiras 901

pliado de saúde (não apenas o relacionado às ações diretas de atenção à


saúde), inseriu os pilares da política de saúde pública. O Sistema Único
de Saúde foi concebido de modo a racionalizar os esforços das unidades
federadas, por meio da descentralização e da cooperação, e a prestar uma
atenção integral à saúde de todos os cidadãos, não apenas a dos mais
pobres. Também fomentou a participação comunitária no controle do
sistema, fornecendo poderoso instrumento para que a sociedade venha
a experimentar na prática os direitos normativos conquistados.

Referências

BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui-
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Constituiçao24.htm>. Acessado em: 18 jun. 2008.
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de 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
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çao37.htm>. Acessado em: 18 jun. 2008.
______. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946.
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao67.htm>. Aces-
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rior1988/emc01-69.htm>. Acessado em: 18 jun. 2008.
______. Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acessa-
do em: 18 jun. 2008.
Servidor público
903

Acumulação de proventos
de inatividade com
vencimentos de cargo
Kley Ozon Monfort Couri Raad

Três coisas cuidava o homem que tinha, mas na


realidade não as tinha: muita ciências, muita
paciência, muita benevolência nos amigos.
Padre Manuel Bernardes

1. Do regime jurídico da acumulação de cargos

A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, ao tratar da acumu-


lação de cargos, no art. 37, XVI, não vedava aos aposentados a acu-
mulação de proventos, ficando eles livres para o reingresso no serviço
público, pela via do concurso público de provas, ou de provas e títulos.
Não existia vedação constitucional para a acumulação de proventos
com vencimentos. Nesse sentido é unânime e maciço o entendimento
doutrinário e jurisprudencial, administrativo e judicial, sempre procla-
mando a licitude da acumulação de proventos.
Assim, os mais respeitados administrativistas, como Hely Lopes Meirel-
les, José Afonso da Silva, Nagib Slaibi Filho, Diogo de Figueiredo Morei-
ra Neto, Maria Sylvia Zanella di Pietro, Adilson de Abreu Dallari, Sérgio
de Anréa Ferreira, Celso Antônio Bandeira de Mello, e muitos outros,
sustentaram o não impedimento para a acumulação de proventos.
904 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

2.

Só para evocar apenas alguns, traz-se à colação os seguintes ensinamentos.


José Afonso da Silva (1989, p. 577), prestigiado autor de Direito
Constitucional, afirmou:
[...] não é mais proibido acumular proventos com vencimentos
de cargo, emprego ou função. Significa que o servidor aposenta-
do ou mesmo em disponibilidade poderá exercer qualquer car-
go, emprego ou função pública sem restrição alguma, recebendo
cumulativamente seus proventos da atividade assumida.

Adilson de Abreu Dallari (1992), a respeito da acumulação, demonstrou:


Entendemos que não há qualquer restrição ao exercício das fun-
ções públicas pelos aposentados [...]. A exigência do concurso
público como única forma de ingresso no serviço público em
caráter permanente já evita qualquer abuso.

Celso Antônio Bandeira de Mello (1991, p. 90), esclareceu:


Entendemos que não se podendo construir proibições onde não
existem, resulta que hoje é possível acumular, sem restrições, pro-
ventos, isto é, o que se recebe na condição de aposentado com
vencimento de cargo, função ou emprego que exerça. Deveras, o
aposentado não exerce cargo algum. Não acumula, pois, cargo al-
gum. Tanto é assim que a aposentadoria abre vaga no cargo dantes
ocupado e só por isso outrem pode nele ser provido. Então, posto
que o aposentado não ocupa nem exerce cargo, função ou empre-
go, não está colhido pelo inciso XVI do art. 37, que veda a acu-
mulação de cargo. Ali não se fala em acumulação de vencimentos,
salário ou proventos, mas de ‘cargo’, O inciso XVI também não
fala em vencimentos, salários ou proventos, mas em acumulações
de ‘funções’ ou ‘empregos’. Logo, o aposentado em face da Consti-
tuição é livre para ocupar qualquer cargo, função ou emprego.

O Desembargador do Estado do Rio de Janeiro, Nagib Slaibi Filho


(1989, p. 377), com percuciência ressalta:
À evidência não foi casual que a nova Constituição tivesse se
omitido quanto à proibição de acumulação de proventos - todo o
sistema constitucional indica que a ausência de proibição, menos
que significar um campo livre à legislação infraconstitucional,
pretende estabelecer uma liberdade de cumulação de proventos
com outro cargo ou emprego [...] O trabalho, junto ao serviço
público, em qualquer nível federativo, não é mais uma função
honorária, como na Antigüidade, ou um feudo particular, alie-
nado por título particular, como na época medieval. Os cargos,
empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que
preencheram os requisitos da lei (art. 37, I) e a investidura em
Acumulação de proventos de inatividade com vencimentos de cargo
905

cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em con-


curso público de provas ou de provas e títulos (art. 37, II).

3.

Até mesmo a acumulação de dois cargos, e mais uma aposentadoria,


foi admitida antes da Emenda Constitucional nº 20 de 15 de dezem-
bro de 1998, como se vê nas hipóteses conhecidas pelo Tribunal de
Justiça de Minas Gerais:
- Apelação. Ação Ordinária. Acumulação de dois cargos de pro-
fessora, do Estado e do Município de Governador Valadares,
mais uma aposentadoria, tudo antes da EC nº 20/98. Possibi-
lidade de tal acumulação, em vista do disposto no art. 11, da
referida Emenda pelo provido, para julgar procedente a ação.
Acumulação possível, diante da ressalva do art. 11, da EC nº
20/98, ao executar a vedação do art. 37, X, da CF, sem se referir
a número de cargos, ressalvada a impossibilidade de acumula-
ção de mais de uma aposentadoria (TJ/MG, Rel. Des. Jarbas
Ladeira, Ap. Cível nº 1.0024.03.924410-8/001, 2ª C.C., DJ de
20.05.2005).

4.

Corsíndro Monteiro da Silva, dos maiores conhecedores da matéria,


na condição de Consultor Jurídico do Estado-Maior das Forças Ar-
madas, em parecer aprovado pelo Ministro-Chefe daquela Pasta, em
28 de outubro de 1992, fincou as bases da questão, – considerando o
parecer SA-04, de 1989, do Consultor Geral da República, Sebastião
Afonso (Revista de Direito Administrativo nº 177, p. 91-97) – ex-
postas na obra Os Hermeneutas da Intransigência.

5.

A orientação estabelecida pela Presidência da República foi desse


Parecer SA-4, que, de forma vinculante e obrigatória para toda a Ad-
ministração Federal, ex vi do disposto no art. 40, § 1º, da Lei Com-
plementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993 (reproduz tal norma o
conteúdo do art. 22, § 2º, do antigo Decreto nº 92.889, de 7 de julho
de 1986), dá pela inexistência de proibição constitucional para a acu-
mulação de proventos de inatividade com remuneração de cargo ou
emprego no setor público.
906 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O Ministro do Supremo Tribunal Federal Moreira Alves (1992, p. 12


et seq., grifo nosso) manifestou entendimento nessa linha. No tópico
de designação - “A acumulação de cargos, empregos e funções” - foi
categórico: “Igualmente não se encontra, na Constituição vigente,
norma que proíba o aposentado acumular os proventos com venci-
mentos de cargo, emprego ou função pública que venha a exercer de-
pois da aposentadoria.”

6.

Todo esse entendimento, que deu pela exclusão dos inativos da proi-
bição de acumular, não resultou do acaso ou mero capricho do intér-
prete, como também, sem dúvida, essa liberação do aposentado não
decorreu de eventual omissão da Constituição, mas, sim, de uma po-
sição deliberada do constituinte, visto que o texto aprovado nas Co-
missões Temáticas vedou a “acumulação remunerada de cargos, funções,
empregos e proventos” (art. 14 do projeto), mas que, afinal, como art.
87, foi aprovado sem a palavra “proventos”, excluído que foi esse termo
a partir da Emenda Supressiva nº 1P19194-7, de autoria do saudoso
Senador NELSON CARNEIRO, com parecer favorável do Deputa-
do BERNARDO CABRAL, opinando pela sua aprovação por consi-
derá-la “medida do mais elevado espírito de justiça”.
Essa emenda teve a embasá-la justificação do Senador NELSON
CARNEIRO, deixando patente e explícita a vontade do constituinte
de afastar da vedação o aposentado.

7.

No magistério de SERGIO DE ANDREA FERREIRA, não se


pode vislumbrar qualquer omissão o não se referir o art. 37, XVI,
da Lei Maior, à acumulação de proventos. Não configura isso lacuna,
nem se pode incluir na disposição os “proventos”, por que no texto
preliminar nas Comissões Temáticas, quando quis abrangê-los, utili-
zou, explicitamente, o vocábulo proventos.

8.

Conquanto não logrando aprovação, o Constituinte LUIZ MAR-


QUEZ apresentou na mesma trilha a Emenda Modificativa nº 1P-
02732-2, de 02 de julho de 1987, visando à exclusão da palavra “pro-
Acumulação de proventos de inatividade com vencimentos de cargo
907

ventos” do texto original do projeto. E mais a Emenda Modificativa


nº 7S-01461-1, da lavra dos Constituintes OTTOMAR PINTO e
MARLUCE PINTO, com justificação assim vazada:
Os servidores aposentados e militares em inatividade na (reserva
ou reformado), quando contratados para o exercício de ativida-
des técnicas ou especializadas, têm sido penalizados com a exi-
gência patronal da sistemática de SERVIÇOS PRESTADOS,
isto é, de caráter temporário, a título precário, sem vínculo em-
pregatício e benefícios da legislação social.
Argúem os empregadores que o contrato de trabalho perma-
nente configura acumulação indevida de proventos, vedada pela
Constituição.
É chegado o momento de repor as coisas nos devidos lugares,
reintegrando na plenitude de seus direitos esses experientes e
eficientes servidores aposentados e inativos, que em nome de
uma interpretação constitucional tendenciosa e equívoca, vêm
sendo esbulhados há muitos anos.

9.

O texto do anteprojeto da Comissão Temática, vedava “a acumulação


remunerada de cargos, funções públicas, empregos e proventos.”
E o projeto da Comissão de Sistematização repetiu o mesmo texto
(art. 87), prevendo, ainda, no § 2º, regra semelhante a do § 4º do art.
69 do texto de 1969, qual seja: “a proibição de acumular proventos não
se aplica aos aposentados quanto ao exercício de mandato eletivo, de
magistério ou de cargo em comissão.”
O Senador NELSON CARNEIRO, todavia, ofereceu emenda supres-
siva à palavra “proventos” no caput do art. 87 e, por via de conseqüência,
a eliminação do § 2º, que regulava as exceções ao preceito proibitivo.
Aprovada a emenda, não apenas deixou de existir a interdição quanto a
proventos, como excluída ficou, por desnecessária, a ressalva permissiva.
Afastada, como regra, a vedação de acumular proventos, não mais ca-
bia prever exceções que amparavam situações especiais.
A justificação da emenda tinha o propósito de
[...] reabrir o serviço público a todo e qualquer cidadão nele ina-
tivo, desde que prestante e útil ao serviço. Sem isso a aposentado-
ria se constitui em castigo, quando sua instituição preside a idéia
de prêmio. A prevalecer a situação reinante, cidadãos prestantes
e saudáveis estariam sendo condenados à inércia, com magros
proventos e, portanto, condenados a se sentirem velhos - sem
908 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

segurança, sem serenidade, sem alegrias, sem felicidade, aban-


donados ao largo de uma sociedade indiferente à sua sorte. E
sentir-se velho é que é ser velho, pois a senectude não existe para
o homem enquanto busca, como disse Rostand. A busca é que
tem o condão de alçar o idoso acima da adversidade fatal do fato
biológico. Com essas razões, justifico a pretensão de eliminar do
caput do art. 87 a palavra “proventos” e suprimir o seu § 2º.

10.

Em parecer datado de 13 de março de 1995, o Professor Caio Tácito


enfatizou o valor do elemento histórico na exegese da matéria.
A gênese do inciso XVI, do art. 37, é fundamental para extrair a
mens legis.
Partindo daí, o Direito Constitucional Positivo passou a contar com
regra expressa explicitando a não vedação à acumulação de proventos. A
Constituição do Estado do Rio de Janeiro, no art. 77, XX, promulgada
a 5 de outubro de 1989, estatuiu que “a proibição de acumular não se
aplica a proventos de aposentadoria”. E a Lei Orgânica do Município
da capital dispõe, no parágrafo único do art. 188, identicamente.
Também no Judiciário, várias decisões proclamaram a licitude da acu-
mulação de proventos.
No âmbito do Tribunal de Contas da União, no processo TC-
003.363/89-9, sendo Relator o Ministro Bento José Bugarin, em sua
composição plenária, de há muito deixou assente inexistir qualquer
proibição constitucional na espécie, invocando, inclusive, o Parecer
SA-04, da extinta Consultoria Geral da República, e iterativa juris-
prudência dos Tribunais.
Padece que se se retirou deliberadamente do texto a referência à acumu-
lação de proventos, é por que nunca foi intento dos constituintes deixá-
los implicitamente embutidos na Carta. A supressão do termo “proven-
tos” teve por objetivo eliminar, na raiz, a vedação tida por descabida.

11.

Na vigência da Constituição de 1946, várias decisões da Suprema


Corte proclamaram a licitude da álhia, como se pode observar no
acórdão proferido pela 2ª Turma do Pretório Excelso, a 27 de agosto
de 1957, no julgamento do RE nº 34054-DF, sendo Relator o Mi-
nistro Villas Boas:
Acumulação de proventos de inatividade com vencimentos de cargo
909

É possível acumulação dos proventos de aposentadoria com sub-


sídios de deputado ou senador.
As normas de caráter restritivo devem sempre aplicar-se na me-
dida da força de sua expressão. O art. 185 veda acumulação de
cargos. Não se refere, como seria de toda a conveniência, às reu-
niões de vantagens pecuniárias. Assim, não há como proibir que
o aposentado que se torne membro do Poder Legislativo, perce-
ba simultaneamente os proventos da inatividade e os subsídios
pelo exercício do mandato.

A CF de 1988, imbuída de manifesto espirito liberal e com institutos


novos, não pode no particular se confundir com as Cartas anteriores,
ainda mais por ter sido ela, como bastas vezes demonstrado, objeto da
Emenda Nelson Carneiro, que fez expungir do texto do art. 37, XVI,
a referência a proventos, tudo com vistas a deixar o inativo fora do
alcance da vedação de acumular.

12.

Posteriormente, no Recurso Extraordinário nº 163.204-6-SP, em que


um investigador de polícia aposentado, que passou a ministrar au-
las de matemática como professor temporário, ou seja, como servidor
não concursado, teve seus vencimentos não pagos pelo Estado de São
Paulo, sob alegação de acumulação ilícita, a Corte Suprema, em sessão
plenária de 9 de novembro de 1994, decidiu, por maioria pela impos-
sibilidade de acumulação, acompanhando o voto do Ministro Carlos
Mário da Silva Velloso, vencido o Ministro Marco Aurélio.
Após escorço histórico da cumulação de cargos, desde a Carta Impe-
rial de 1824, entendeu o Ministro Marco Aurélio que a Constituição
de 1988 adotou, implicitamente postura inovadora, considerando que
nos trabalhos constituintes foi acolhida a emenda supressiva da refe-
rência a proventos, tendo o silêncio sentido afirmativa de permissão.
A decisão do STF, mesmo antes da publicação do acórdão, provocou,
em órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público, atitudes de
compreensão restritiva da acumulação, convocando aposentados a op-
tar entre proventos da inatividade e o exercício dos novos cargos.
O acórdão referente ao Recurso Extraordinário, sabidamente, como
preceitua o art. 472, do Código de Processo Civil, só poderia ter eficá-
cia entre partes, sem repercussão perante terceiros, conforme aliás, no
caso específico do julgado do STF, em sessão plenária de 30 de março
de 1995, teve oportunidade de decidir o Tribunal Regional Federal
da 2ª Região, ao acolher recurso interposto por juizes federais contra
910 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

determinação daquela Corte para que optassem entre os proventos e


vencimentos do cargo. Segundo o aresto, referido Tribunal entendeu
só operar o julgado do STF entre as partes do litígio, nos termos do
precipitado art. 472.

13.

Vários juristas de escol contestaram o acórdão da Corte Suprema, re-


afirmando a liberação dos aposentados, avultando, entre eles, Celso
Antonio Bandeira de Mello e Caio Tácito.
Caio Tácito (1995), discorreu sobre a trajetória do tema no Direito
Constitucional Brasileiro:
O tema da acumulação de cargos antecede a independência do
País. O direito português cogitou de proibi-la desde a Carta Ré-
gia de 6 de maio de 1623, confirmada no Alvará de 8 de janeiro
de 1627, no decreto de 28 de julho de 1668 e em várias Ordens
Régias subseqüentes.
O decreto de 18 de junho de 1822, do Príncipe Regente, man-
dava cumprir ditames moralizadores para que não fossem feitos
pagamentos a funcionários” sem que tenham assíduo exercício
em seus ofícios e empregos” e o princípio foi renovado, durante
o Império, em sucessivas leis especiais.
Barbalho, no início da República, acentuava que” é um acha-
que muito velho o da acumulação de cargos remunerados” e ar-
rolava frustrações no respeito à proibição inserida no art. 73
da Constituição de 1891. Advertia que à “execução do preceito
constitucional, que pode ser severo, mas utilíssimo, erguessem os
interesses contrariados”. (Comentários à Constituição Federal
Brasileira - 1902 - p. 340).
Rui Barbosa, na pureza de suas convicções, contestava o acerto
da proibição absoluta e defendia a conveniência de se compa-
tibilizar a ocupação simultânea de cargos técnico-profissionais,
que viria a ser admitida na legislação ordinária de 1892, revista
em 1909. Sustentava, especialmente, a legitimidade do direito
adquirido à percepção da aposentadoria porque “se a jubilação
não é cargo, se cargo não é a aposentadoria, a reforma, a disponi-
bilidade, a pensão - o pensionista, o funcionário em disponibili-
dade, o reformado, o aposentado, o jubilado, que nenhum cargo
exerceu, não incorrem na interdição do art. 73, quando algum
cargo assumirem” (Obras Seletas de Rui Barbosa - X - Traba-
lhos jurídicos - p. 10).
A Constituição de 1934 acolheu o princípio da proibição miti-
gada, permitindo a acumulação de cargos de magistério e téc-
nico-científicos, respeitada a compatibilidade de horários (art.
Acumulação de proventos de inatividade com vencimentos de cargo
911

172), voltando, porém, a Carta outorgada em 1937 à vedação


absoluta (art. 159).
Regressou ao sistema constitucional de 1946 a permissão excep-
cional de acumulação de cargos, quando pelo menos um deles
fosse de magistério ou técnico-científico (art. 185), tolerada, ain-
da, a acumulação de dois cargos médicos, com a Emenda Cons-
titucional n. 20, de 25 de maio de 1966.
Em pareceres emitidos como Consultor Geral da República,
HAROLDO VALLADÃO abonou o entendimento de que a
proibição de acúmulo era extensiva aos proventos de disponibi-
lidade ou aposentadoria bem como à remuneração de manda-
tos eletivos (Revista de Direito Administrativo - voI. 15 - p.
304/343).
A exceção consagrada na Carta de 1946 perdurou no regime da
Constituição de 1967 (art. 97).

14.

Por força da Lei nº 9.527, de 10 de dezembro de 1997, resultando de


Medida Provisória nº 1595 – 14, de 1996 foi inserido § 3º ao art. 118
da Lei 8112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o regime
jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das
fundações públicas federais, regulamentado pelo Decreto nº 20277,
de 11 de outubro de 1996.
§ 3º Considera-se acumulação proibida a percepção de venci-
mento de cargo ou emprego público efetivo com proventos da
inatividade, salvo quando os cargos de que decorram essas remu-
nerações forem acumuláveis na atividade.

Em face desse mandamento legal, tornou-se imprescindível a desacu-


mulação dos aposentados no exercício de cargos obtidos por concurso
público, em alguns casos com situação já perdurante - licitamente -
por quase dez anos.
Levantaram-se, então, inúmeras vozes cogitando de direitos adquiridos.
Muita tinta, então, se gastou focalizando a questão, na defesa de
que não se tratava de um falso direito, em discrepância com normas
constitucionais, mas de situações jurídicas que nasceram, se desen-
volverem e se mantinham durante largo período, em plena compa-
tibilidade e adequação com Direito então lidiminamente revela-
da e praticado. Não era, pois, o caso de direito adquirido contra a
Constituição, mas de direitos adquirido conforme a interpretação
912 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

e aplicação escorreita e duradoura de todo um sistema, com o aval


das Administração empossante.
Tal exegese ficou assente não só no campo doutrinário e jurispruden-
cial, mas também na prática e na normatização administrativa, tudo
sob o manto da presunção de legitimidade.
O caso não se confunde com violação a regra jurídica, nem de frau-
de à lei, abuso ou excesso de poder, mas simplesmente de alteração
de interpretação.

15.

Eis então que veio a lume a Emenda Constitucional nº 20, de 15 de


dezembro de 1998 (PEC nº 33, de 1995), que, após acrescentar § 10
ao art. 37 da Lei das Leis,
§ 10. É vedada a percepção simultânea de proventos de apo-
sentadoria decorrentes do art. 40 ou dos arts. 42 e 142 com a
remuneração de cargo, emprego ou função pública, ressalvados
os cargos acumuláveis na forma desta Constituição, os cargos
eletivos e os cargos em comissão declarados em lei de livre no-
meação e exoneração.

dispôs no art. 11:


Art. 11. A vedação prevista no art. 37, § 10, da Constituição Fede-
ral, não se aplica aos membros de Poder e aos inativos, servidores e
militares, que, até a publicação desta Emenda, tenham ingressado
novamente no serviço público por concurso público de provas ou
de provas e títulos, e pelas demais formas previstas na Constitui-
ção Federal, sendo-lhes proibida a percepção de mais de uma
aposentadoria pelo regime de previdência a que se refere o art. 40
da Constituição Federal, aplicando-se-lhes, em qualquer hipótese,
o limite de que trata o § 11 deste mesmo art..

Que § 11 é esse? Do art. 11 da EC nº 20, de 1998 ou do art. 37 da


Constituição Federal?
Além de exibir deplorável técnica legislativa, a regra incorre em du-
vidosa constitucionalidade, pois afronta, ademais, o princípio mais
prestigiado da Constituição Federal, em todo o seu decorrer, qual o
da ISONOMIA, com que todos devem ser tratados. Não desnuda,
por outro lado, com aberta precisão, o seu intento quando não permite
mais de uma aposentadoria, deixando confusa a sua ratio.
Acumulação de proventos de inatividade com vencimentos de cargo
913

16.

O texto enviado pelo Poder Executivo adotava a seguinte redação:

Art. 18. Não se aplica a vedação prevista no art. 37, § 7º (hoje §


10) aos servidores públicos aposentados que tenham sido nome-
ados, até a data da promulgação desta Emenda, para cargos de
provimentos efetivo em virtude do concurso público ou estabi-
lizados nos termos do art. 19 do Ato das Disposições Constitu-
cionais Transitórias.

Posteriormente, já como art. 11, foi objeto da emenda de redação nº


21, qual seja:
Art. 11. A vedação prevista no art. 37, XVI, e § 1º, da Consti-
tuição, não se aplica aos membros de Poder e aos inativos, ser-
vidores e militares, que até a publicação desta Emenda, tenham
ingressado novamente no serviço público por concurso público
de provas ou de provas e títulos, e pelas demais formas previstas
na Constituição, sendo-lhes proibida a percepção de mais de
uma aposentadoria pelo regime de previdência a que se refere
o art. 40 da Constituição, aplicando-se-lhes, em qualquer hi-
pótese, o limite de que trata o § 11 deste mesmo art.

O atual § 10 do art. 37 do Texto Supremo foi proposto com outra


roupagem:
§ 7º É vedada a percepção simultânea de proventos de aposenta-
doria pagos pelos regimes de previdência de que tratam os arts.
40 e 42, com remuneração de cargo, emprego ou função pública,
observado o disposto no inciso XVI deste artigo, no art. 95, pa-
rágrafo único, inciso I, e no art. 128, § 5º, inciso II, alínea d, e
ressalvados os casos de cargos vitalícios, eletivos ou e cargos em
comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração.

17.

Na apreciação do Substitutivo do Senado à PEC nº 33, de 1995, o


Deputado Nilson Gibson, em VOTO EM SEPARADO, com bas-
tante lucidez discorreu:
Dispondo a Constituição, no inciso I do seu art. 37, que os car-
gos, empregos e funções são acessíveis aos brasileiros que preen-
cham os requisitos estabelecidos em lei, vedar aos aposentados,
por norma adventícia emanada do poder reformador, a acessi-
bilidade àqueles, apenas pela sua condição de inativos, viola o
princípio da isonomia, enunciado no art. 5º, caput da Lei Maior,
como direito individual.
914 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Viola, depois, o princípio da irretroatividade, estabelecido pelo po-


der constituinte originário, no art. 5º, inciso XXXVI, da Lei Maior.
Com efeito, investidos nos seus novos cargos e empregos públi-
cos, através de concurso público, na forma de norma constitucio-
nal e legal, os inativos tiveram suas atuais situações regularmente
constituídas, como as anteriores, não sendo legítimo que venha
agora a PEC nº 33 intentar desconstituí-las, o que atentaria, a
um só tempo, contra os princípios da irretroatividade, legali-
dade e moralidade (este último estabelecido em boa hora, pelo
art. 37, caput, da Constituição de 1988), todos erigidos como
princípios pelo poder constituinte originário.
Afrontado, pois, o art. 60, § 4º, IV, da Constituição, com o acrés-
cimo do § 7º ao art. 37, pretendido pela PEC nº 33.
............................................................................................
A propósito, assinale-se que o art. 11 do Substitutivo, que apa-
rentemente resguarda as situações constituintes, ressalvando o
disposto no art. 37, § 7º, acrescido, na verdade não o faz com-
pletamente, permitindo que os servidores ali referidos apenas
continuem nos seus cargos e empregos, vedando, expressamente,
a possibilidade de se aposentarem naqueles.

18.

Com relação ao tratamento isonômico, começa a despontar e con-


solidar jurisprudência na direção de ser possível a segunda aposen-
tadoria, sopesando, inclusive, que isonomia existe quando em jogo
cobrança de contribuições previdenciárias.
Veja-se, por exemplo, decisão do STF na Medida Cautelar no Manda-
do de Segurança nº 26.974-0-DF, sendo impetrante José de Campos
Amaral e Relator o Ministro Celso de Mello, decisão essa publicada
no Diário da Justiça - Seção I, nº 214, de 7 de novembro de 2007, cuja
ementa se transcreve:
DECISAO: Trata-se de mandado de segurança, com pedido
de liminar, impetrado com o objetivo de questionar a valida-
de jurídica de deliberação emanada do E. Tribunal de Contas
da União, que considerou que, “Ressalvadas as aposentadorias
decorrentes dos cargos acumuláveis na forma da Constituição
Federal de 1988, é vedada a percepção de mais de uma aposen-
tadoria à conta do regime de previdência previsto no art. 40 da
Carta Constitucional” (fls. 181 - grifei).
O ora impetrante, para justificar a sua pretensão, sustenta, em
síntese, que as aposentadorias que percebe, cumulativamente,
estão vinculadas a “regimes profundamente diversos, porque,
Acumulação de proventos de inatividade com vencimentos de cargo
915

ao ser nomeado Desembargador, tinha o direito de perceber os


proventos de sua aposentadoria anterior com os vencimentos do
cargo e de ser aposentado compulsoriamente ao completar 70
anos de idade, consoante o disposto nos arts. 93, VI, e 40, II, da
Constituição” (fls. 16).
O exame da pretensão mandamental ora deduzida nesta sede
processual suscita reflexão em torno de matéria impregnada de
relevo jurídico.
Concorre , por igual, situação configuradora de “periculum in
mora”. É que, como se sabe, os proventos (e os vencimentos)
revestem-se de caráter alimentar (HELY LOPES MEIREL-
LES, Direito Administrativo Brasileiro, p. 401, 17ª ed., 1992,
Malheiros). Essa especial natureza jurídica, que caracteriza
o estipêndio funcional, permite, por isso mesmo, qualificá-lo
como típica dívida de valor.
Essa é a razão que me leva a conceder a medida cautelar ora
postulada, pois é importante ter em consideração, para esse
efeito, o caráter essencialmente alimentar da remuneração dos
servidores públicos - inativos ou em atividade -, na linha do
que tem sido iterativamente proclamado pela jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal (RTJ 110/709 - RTJ 117/1335),
inclusive por aquela que se formou sob a égide do vigente or-
denamento constitucional (RTJ 136/1351 - RTJ 139/364-368
- RTJ 139/1009 – RTJ 141/319 - RTJ 142/942).
A ponderação dos valores em conflito - o interesse da Admi-
nistração Pública, de um lado, e a necessidade social de preser-
var a integridade do caráter alimentar que tipifica a remunera-
ção funcional, de outro - leva-me a vislumbrar ocorrente, na
espécie, uma clara situação de grave risco a que estaria exposto
a parte ora impetrante, caso viesse a ser privada de valor signifi-
cativo de seus proventos.
Sendo assim, em juízo de estrita delibação, e sem prejuízo de
ulterior reexame da pretensão mandamental deduzida na pre-
sente sede processual, defiro o pedido de medida liminar, em
ordem a suspender, cautelarmente, até final julgamento desta
ação de mandado de segurança, a eficácia da deliberação ema-
nada do E. Tribunal de Contas da União consubstanciada no
Acórdão nº 1.042/2005 (fls. 144/149), confirmado pelo Acór-
dão nº 3.233/2007 (fls. 181/189), proferidos nos autos do Pro-
cesso TC nº 013.611/2004-7.
.........................................................................................”
916 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

19.

Sob outro ângulo, se não se permite mais de uma aposentadoria, o


acumulante excepcional não pode ser alcançado pela compulsória,
aos setenta anos de idade, contemplada no art. 40, § 1º, II, da Lei
Maior, fadado (ou condenado), lamentavelmente, a trabalhar até que
a morte o carregue...

Referências

ALVES, Moreira. O problema da função pública no Brasil. Cadernos de Direito


Constitucional e Ciência Política, São Paulo, v. 1, n.1, p. 7-18, out./dez. 1992.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 26.974-0-DF.
Impetrante: José de Campos Amaral. Relator: Celso de Mello. Diário da Justiça,
Brasília, Seção 1, n. 214, 7 nov. 2007.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 34054-DF. Relator: Ministro Villas
Boas. Julgado em 27 de agosto de 1957. Revista Trimestral de Jurisprudência, Bra-
sília, v. 3, 1999.
DALLARI, Adilson Abreu. Regime constitucional dos servidores públicos. 2. ed. rev.
atual. de acordo com a Constituição Federal de 1988. São Paulo : Rev. dos Tri-
bunais, 1992.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Regime constitucional dos servidores da ad-
ministração direta e indireta. São Paulo : Rev. dos Tribunais, 1991.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 5. ed. São Paulo :
Rev. dos Tribunais, 1989.
SLAIBI FILHO, Nagib. Anotações à Constituição de 1988: aspectos funcionais.
Rio de Janeiro : Forense, 1989.
TÁCITO, Caio. Cumulação de proventos e vencimentos. Rev. Trim. Dir. Público,
Rio de Janeiro, n. 10, p. 52-57, 1995.
Sistema financeiro nacional
917

A reestruturação do sistema
financeiro nacional diante da
alteração do art. 192 da
Constituição pela Emenda
Constitucional nº 40, de 2003
José Machado de Oliveira Filho

Este trabalho se propõe a examinar a contribuição da Constituição de


1988 para o aperfeiçoamento do sistema financeiro nacional e para
adequá-lo ao papel de contribuir para o desenvolvimento do país. A
discussão tem interesse não só pela extraordinária mudança ocorrida
na administração financeira brasileira, com a construção de uma moe-
da estável, o domínio da inflação e a reestruturação do sistema finan-
ceiro, como, em sentido inverso, pela virtual revogação, pela Emenda
Constitucional nº 40, de 2003, do art. 192 da Constituição, que conti-
nha as prescrições relativas ao novo ordenamento do sistema financei-
ro nacional, do texto original da Constituição de 1988.
A ocorrência de tais fatos remete ao paradoxo de termos, no período
pós-constitucional, uma mudança vigorosa de nosso sistema financeiro,
sem que se tenha conseguido regulamentar o art. 192 da Constituição,
que determinava sua estruturação sob novos paradigmas e enfeixava um
conjunto de diretrizes a serem observadas nesta regulamentação.
O art. 192 tinha originalmente o seguinte texto1:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a
promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos
interesses da coletividade, será regulado em lei complementar,
que disporá, inclusive, sobre:
I – a autorização para o funcionamento das instituições financei-
ras, assegurado às instituições bancárias oficiais e privadas acesso
a todos os instrumentos do mercado financeiro bancário, sendo

1
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.:1988.
918 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

vedada a essas instituições a participação em atividades não pre-


vistas na autorização de que trata este inciso;
II – autorização e funcionamento dos estabelecimentos de segu-
ro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fisca-
lizador e órgão oficial ressegurador;
III – as condições para a participação do capital estrangeiro nas
instituições a que se referem os incisos anteriores, tendo em vis-
ta, especialmente:
a) os interesses nacionais;
b) os acordos internacionais;
IV – a organização, o funcionamento e as atribuições do Banco
Central e demais instituições financeiras públicas e privadas;
V – os requisitos para a designação de membros da diretoria do
Banco Central e demais instituições financeiras, bem como de
seus impedimentos após o exercício do cargo;
VI – a criação de fundo ou seguro, com o objetivo de proteger
a economia popular, garantindo créditos, aplicações e depósi-
tos até determinado valor, vedada a participação de recursos da
União;
VII – os critérios restritivos da transferência de poupança de re-
giões com renda inferior à média nacional para outras de maior
desenvolvimento;
VIII – o funcionamento das cooperativas de crédito e os requi-
sitos para que possam ter condições de operacionalidade e estru-
turação próprias das instituições financeiras.
§ 1º A autorização a que se referem os incisos I e II será inegociá-
vel e intransferível, permitida a transmissão do controle da pessoa
jurídica titular, e concedida sem ônus, na forma da lei do sistema
financeiro nacional, a pessoa jurídica cujos diretores tenham capa-
cidade econômica compatível com o empreendimento.
§ 2º Os recursos financeiros relativos a programas e projetos de
caráter regional, de responsabilidade da União, serão depositados
em suas instituições regionais de crédito, e por elas aplicados.
§ 3º As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer
outras remunerações direta ou indiretamente referidas à conces-
são de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao
ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime
de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que
a lei determinar.

O exame formal do texto do art. 192 evidencia, no caput, um coman-


do de reestruturação do sistema financeiro nacional, na forma de lei
A reestruturação do sistema financeiro nacional diante da alteração do 919
art. 192 da Constituição pela E menda Constitucional n º 40, de 2003

complementar, seguido de prescrições quanto aos conteúdos dessa re-


gulamentação, contidas em oito incisos e três parágrafos.
A interpretação do artigo deixa clara a determinação dos constituintes
de promover mudanças no sistema financeiro nacional. As duas diretri-
zes que deverão nortear a nova estruturação encontram-se no próprio
caput do artigo: promover o desenvolvimento equilibrado do país e ser-
vir aos interesses da coletividade. Na primeira, destaca-se a intenção
dos constituintes de engajar os bancos na realocação de financiamentos
e outros recursos, privilegiando as regiões mais carentes, com a finali-
dade de equilibrar o desenvolvimento nacional. Há subjacente, talvez
de uma forma equivocada ou exagerada, a idéia de que a atuação dos
bancos constitui uma das forças econômicas que criaram e mantêm as
desigualdades regionais no Brasil. A segunda diretriz dirige-se à ênfase
a ser dada à atuação do sistema reestruturado, que deverá privilegiar o
interesse coletivo, ao par de sua finalidade econômica.
É razoável supor que as prescrições efetuadas pelos constituintes pro-
cederam de um diagnóstico tempestivo da atuação do Sistema Fi-
nanceiro Nacional e representavam as diretrizes de mudança para se
alcançar o objetivo de um sistema financeiro comprometido com a
redução das desigualdades regionais e sociais e a serviço da sociedade,
e não apenas de seu benefício próprio.
O exame do Relatório Final da Subcomissão do Sistema Financeiro,
da Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças2, atesta
essa conclusão:
Por constituir uma concessão do Estado, as atividades finan-
ceiras deveriam pautar-se, rigidamente, segundo os interesses
maiores da sociedade. Entretanto, os bancos têm-se mostrado
incapazes de se ajustarem a esse papel. Não têm, na realidade, se
subordinado às metas de desenvolvimento econômico-social e
de redução das desigualdades regionais.
Os desvios ocorridos ao longo dos anos fizeram com que o concei-
to de risco praticamente desaparecesse da atividade bancária. Em
vez de captar recursos e emprestá-los àqueles que vão usá-los em
investimentos produtivos, os bancos preferem atuar apenas nos
negócios de curto prazo, o que tem constituído autêntico ponto de
estrangulamento para o processo de desenvolvimento nacional.
E o pior é que a preferência dos bancos por aplicações no cur-
tíssimo prazo acentua-se nos momentos de maior instabilidade

2
CÂMARA DOS DEPUTADOS – Assembléia Nacional Constituinte – V – Co-
missão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças – V-c – Subcomissão do Sis-
tema Financeiro – Anteprojeto – Relatório Final.
920 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

política e econômica, o que acaba por descaracterizá-los e dis-


tanciá-los ainda mais de sua função social.
Diante de um processo inflacionário crônico, não se preocupa a rede
bancária em apresentar soluções para a redução do custo de inter-
mediação, preferindo a cômoda posição de atribuir culpa ao Gover-
no. A preocupação básica é saber principalmente quanto ganhará
com a inflação. Quanto maior a inflação maior o seu ganho.
.....................................................
A ausência de princípios constitucionais na Carta em vigor não
apenas deixou de nortear os intermediários financeiros para suas
funções sociais. Acabou também por ensejar práticas ora legíti-
mas, ora ilegais e, principalmente, a usurpação da competência
legislativa que deveria caber ao Congresso.
Uma legislação omissa, a condescendência governamental e o
sentimento generalizado de impunidade têm muito a ver com
as origens de inúmeros escândalos financeiros, que transferiram
para a sociedade prejuízos imensuráveis.
...................................................
A articulação de grandes bancos nacionais – dos quais apenas
seis dominam 44% dos depósitos, 40% dos empréstimos e 40%
do total de agências – viabilizaria em situações peculiares, movi-
mentos capazes de fazer frente a determinações decorrentes de
políticas monetárias e, até, ao Poder Central.
...................................................
A gigantesca dependência do Tesouro Nacional em relação à
poupança financeira, para financiamento dos déficits crônicos do
Orçamento da União não é nova. Nasceu com o Estado brasileiro,
que sistematicamente gasta acima de suas possibilidades de arre-
cadação. Hoje essa dependência assumiu tal vulto que assusta, não
apenas pelo volume das operações envolvidas, mas também pelas
disfunções que instalou na política monetária e no Banco Central
e pelos lucros que proporciona aos conglomerados financeiros.

Para se compreender melhor o diagnóstico efetuado pelos consti-


tuintes, é necessário considerar o ambiente econômico do período de
trabalho constituinte. O Brasil amargava a frustração do fracasso do
Plano Cruzado, e de sua tentativa de conserto, o Cruzado II, convivia
com índices de inflação elevados, juros altos e crédito escasso. A taxa
de inflação, medida pelo IPCA, que fora de 79,65% em 1986, em
razão do congelamento de preços do Plano Cruzado, recrudesceu em
A reestruturação do sistema financeiro nacional diante da alteração do 921
art. 192 da Constituição pela E menda Constitucional n º 40, de 2003

1987, com um índice de 363,41%, e, em 1988, ano da promulgação,


alcançou 980,22%3.
Essa conjuntura difícil explicaria as críticas à visão de curto prazo dos ban-
cos e à falta de ação no combate à inflação e no financiamento produtivo.
O primeiro desafio oriundo da redação do art. 192 consistiu na discus-
são sobre a vigência imediata ou não do § 3º, que estabelecia o limite de
juros em 12% ao ano. Antes mesmo da promulgação da Constituição,
o staff econômico do governo Sarney estava a postos para examinar a
questão da auto-aplicabilidade do limite dos juros. Na oportunidade,
como consultor geral da República, o Dr. Saulo Ramos foi encarrega-
do de redigir parecer defendendo que § 3º não era auto-aplicável e a
necessidade de regulamentação de todo o art. 192 como requisito para
vigência do limite dos juros. O Parecer SR-70 foi publicado no Diário
Oficial do dia 7 de outubro de 1998.
O Banco Central do Brasil, por sua vez, editou a Circular nº 1.3654,
cujo texto, após o preâmbulo, esclarecia:
Enquanto não for editada a Lei Complementar reguladora do
Sistema Financeiro Nacional, prevista no art. 192 da Constitui-
ção da República Federativa do Brasil, as operações ativas, pas-
sivas e acessórias das instituições financeiras e demais entidades
sujeitas à autorização de funcionamento e fiscalização por parte
do Banco Central do Brasil permanecerão sujeitas ao regime
das Leis nºs 4.595, de 31.12.64, 4.728, de 14.07.65, 6.385, de
07.12.76 e demais disposições legais e regulamentares vigentes
aplicáveis ao Sistema Financeiro Nacional.

O Parecer SR/70 e a Circular nº 1.365, de 6 de outubro de 1988, do


Banco Central do Brasil, que determinou às instituições financeiras a
continuidade da aplicação da legislação anterior até que se providen-
ciasse a lei complementar regulamentadora do art. 192, foram objeto
da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADIn nº 4-7/DF, deman-
dada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). O Supremo Tri-
bunal Federal, ao se manifestar sobre a ADIn, julgou improcedente a
ação, considerando que “a norma do § 3º do art. 192 da Constituição
tinha sua aplicabilidade condicionada à edição de lei complementar”5

3
Fonte: Portalbrasil e IBGE – IPCA – Disponível em <http://www.portalbrasil.
net/ipca.htm>.
4
Banco Central do Brasil. Disponível em <https://www3.bcb.gov.br/normativo/de-
talharNormativo.do?N=088128472&method=detalharNormativo.>
5
Súmula nº 648 do STF e ADI 4. Disponíveis em http://www.stf.gov.br/por-
tal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=648.NUME.%20NAO%20S.
FLSV.&base=baseSumulas
922 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

e que “só tratamento global do Sistema Financeiro Nacional na futura


lei complementar, com a observância de todas as normas do caput, dos
incisos e parágrafos do art. 192, é que permitirá a incidência da referi-
da norma sobre juros reais e desde que estes também sejam conceitua-
dos em tal diploma”6. A interpretação de que uma só lei complementar
deveria dar tratamento global às matérias constantes do art. 192 viria a
ser uma dificuldade a mais para a reestruturação do sistema financeiro,
dada a sua abrangência.
De fato, não houve consenso para se regulamentar, no período entre
a promulgação da Constituição e a da Emenda Constitucional nº 40,
o § 3º do art. 192, não apenas pela inconveniência e inviabilidade de
se limitar os juros no limite determinado quanto pela dificuldade de
traduzir em regras práticas a redação do parágrafo, já que esta incluía
no limite as comissões e outras remunerações direta ou indiretamente
referidas à concessão do crédito.
Na Câmara dos Deputados, assim como no Senado, foram apresen-
tadas diversas propostas de regulamentação, algumas parciais outras
abrangentes, o que levou a Presidência da Câmara a constituir comissão
especial para apreciar e dar parecer sobre as proposições em tramita-
ção na Casa. A Comissão Especial do Sistema Financeiro funcionou
durante três legislaturas seguidas, e teve como relatores nomes como
Cezar Maia, Benito Gama, Gonzaga Mota, Saulo Queiroz e Edinho
Bez. Todavia, apesar dos esforços dos relatores, não houve, em nenhum
momento, o consenso necessário, nem o apoio do governo e da socieda-
de para aprovar um Substitutivo no âmbito da Comissão Especial.
A frustração desses esforços levou ao abandono da tarefa e, em 11/6/97,
o então Senador José Serra apresentou a Proposta de Emenda Cons-
titucional nº 21/97, destinada a revogar sumariamente o art. 192 e o
inciso V do art. 163 da Constituição e o art. 52 do Ato das Disposi-
ções Constitucionais Transitórias7. A PEC não teve o apoio neces-
sário para sua aprovação, considerava-se radical a revogação integral
dos artigos. O relator na Comissão de Constituição e Justiça, Senador
Jefferson Péres, no sentido de salvar a iniciativa, ofereceu Substitutivo

6
Ementa da ADI nº 4-7 Distrito Federal. Disponível em <http://www.stf.gov.br/
portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=648.NUME.%20NAO%20S.
FLSV.&base=baseSumulas>
7
O texto e a tramitação estão disponíveis em: <http://www.senado.gov.br/sf/
atividade/Materia/Consulta.asp?R AD_TIP=PEC& SEL _TIP_MATE=AF
S&radAtivo=S& selAtivo=AFS& selInativo=ADF&TXT_NUM=21&TXT_
ANO=1997&Tipo_Cons=6&Flag=1>. Acesso: em 5 jun. 2008
A reestruturação do sistema financeiro nacional diante da alteração do 923
art. 192 da Constituição pela E menda Constitucional n º 40, de 2003

preservando apenas as diretrizes do caput e as determinações quanto


ao capital estrangeiro e às cooperativas de crédito.
Na Câmara dos Deputados, o texto foi aprovado tal qual veio do Se-
nado, na forma do parecer do Dep. Rubem Medina, Relator da Co-
missão Especial, e, em 29 de maio de 2003, a Emenda Constitucional
nº 40 foi promulgada. O novo texto do art. 192 passou a ser então:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a
promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos
interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem,
abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis
complementares, que disporão, inclusive, sobre a participação do
capital estrangeiro nas instituições que o integram.8

É de se destacar que o novo texto explicita claramente a possibilida-


de de que a regulamentação seja feita em leis complementares, supe-
rando, pois, a interpretação dada pelo STF ao texto original, de que
deveria ser feita numa única lei complementar. Tal circunstância dá
ao legislador a faculdade de fatiar a regulamentação como bem lhe
aprouver, seja em termos do conteúdo de cada lei complementar seja
em termos do tempo de cada uma.
Entretanto, a promulgação da EC nº 40, de 2003 não teve o efeito de
viabilizar e ultimar a regulamentação do art. 192, ante as facilidades
que trouxe à sua elaboração. Pelo contrário, após sua promulgação,
houve uma acomodação geral, minguando, até a extinção, as novas ini-
ciativas parlamentares de regulação do sistema financeiro nacional. A
discussão predominante passou a ser então a aplicabilidade do Código
de Proteção e Defesa do Consumidor aos contratos financeiros e em
que medida tais disposições se coadunariam com as disposições ema-
nadas do Conselho Monetário Nacional, órgão normativo máximo da
atividade financeira no país.
Dado que o comando de reestruturação e as prescrições do art. 192
decorreram de um diagnóstico negativo da atuação do Sistema Fi-
nanceiro Nacional, a sua revogação quase integral suscita as seguintes
questões: em que medida se poderá considerar que a promulgação da
EC nº 40 constituiu o abandono da vontade constituinte de promo-
ver mudanças significativas no Sistema Financeiro Nacional, especial-
mente do propósito de lhe atribuir um papel social? A desistência da
regulamentação constituiu uma vitória da resistência das instituições
financeiras a se porem a serviço da sociedade? A falta de regulamen-
tação do texto constitucional e sua posterior revogação contribuíram

8
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.:1988.
924 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

para a continuidade do estado de ineficiência diagnosticado pelos


ilustres membros da Constituinte?
O desenrolar dos fatos veio indicar que, não obstante esse percalço, o
trabalho constituinte contribuiu decisivamente para as mudanças ocor-
ridas no Sistema Financeiro Nacional, principalmente a partir de 1994,
quando a instituição do Real e o início do declínio da inflação levou
todas as instituições financeiras a um dramático esforço de adaptação.
Pode-se constatar que, malgrado o fracasso da regulamentação do art.
192 na forma original, algumas de suas determinações foram colocadas
em prática utilizando o arcabouço jurídico anterior à Constituição.
A autorização para funcionamento de instituições financeiras, em
substituição às cartas-patentes, foi uma dessas mudanças. Como se
sabe, a carta-patente constituía barreira à entrada no sistema financei-
ro: uma vez que era emitido um número limitado dessas cartas, muitos
empreendedores, mesmo com capacidade financeira para o empreen-
dimento, só podiam se estabelecer se adquirissem a carta-patente de
uma outra instituição. Em razão disso, os preços eram muito elevados,
o que impedia a entrada de novos competidores no mercado financei-
ro. Com a oferta dominada por um pequeno número de instituições
bancárias, os serviços financeiros eram caros e deficientes, em conse-
qüência da pouca concorrência.
A instituição da autorização na forma definida no art. 192, inciso I e §
1º, veio garantir a quem comprovasse a capacidade financeira e idonei-
dade a possibilidade de ingresso no sistema financeiro sem a necessida-
de de negociar uma carta-patente com as instituições já existentes.
Além disso, diante dos temores gerados pela quebra do Banco Econô-
mico, que produziu grande clamor da sociedade, em razão das perdas
sofridas por depositantes e poupadores, a instituição do fundo ou se-
guro destinado a proteger a economia, prevista no inciso VI, foi im-
plementada pelo Conselho Monetário Nacional mediante uma fór-
mula jurídica que se adiantou à regulamentação do artigo. Por meio
da Resolução nº 2.1979, de 31/8/95, o CMN autorizou as próprias
instituições financeiras a criarem o fundo e posteriormente aprovou a
sua constituição, mediante a Resolução nº 2.21110, de 16 de novembro
de 1995, que aprovou o estatuto e o regulamento do Fundo Garanti-
dor de Créditos (FGC).

9
Disponível em <https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalharNormativo.do?N=0
95174234&method=detalharNormativo> Acesso em 5 jun. 08
10
Disponível em <https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalharNormativo.do?N=0
95236407&method=detalharNormativo>
A reestruturação do sistema financeiro nacional diante da alteração do 925
art. 192 da Constituição pela E menda Constitucional n º 40, de 2003

A partir de 2006, por força da Resolução nº 3.40011, de 6 de setembro


de 2006, a garantia proporcionada pelo FGC, que era de R$ 20.000,00
(vinte mil reais), passou a ser de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) por
pessoa, nos créditos contra uma mesma instituição ou contra todas as
instituições de um mesmo conglomerado financeiro. No encerramen-
to de 2007, o saldo de recursos do Fundo era de R$ 15,03 bilhões,
para a cobertura de depósitos e créditos no montante de R$ 301,87
bilhões, correspondentes aos créditos e depósitos de 99% dos clientes
e a 30,54% dos depósitos do Sistema Financeiro Nacional.12
A matéria constante do inciso VIII, não obstante a falta de regula-
mentação, teve algum avanço. De fato, a partir da Resolução 3.058,
de 20 de dezembro de 2000, o Conselho Monetário Nacional vem
promovendo uma flexibilização da regulamentação das cooperativas
de crédito, cujo regulamento se consolida na Resolução nº 3.32113,
de 30 de setembro de 2005. As mudanças da regulamentação das co-
operativas ensejou a organização das cooperativas de crédito em um
sistema encimado por um banco cooperativo, que tem, junto ao Banco
Central, os mesmos privilégios de uma instituição financeira normal,
como manter conta de reservas bancárias, provendo assim a assistên-
cia à liquidez das cooperativas filiadas. O estágio atual da regulamen-
tação das cooperativas de crédito certamente não é o desejado pelos
constituintes, que determinaram que a regulamentação lhes concedes-
se “condições de operacionalidade e estruturação próprias das institui-
ções financeiras”, mas certamente é mais favorável que a constante da
ordem jurídica anterior à Constituição.
Também o sigilo bancário, instituto constante da Lei nº 4.595, de 31
de dezembro de 1964, foi objeto de atualização, por intermédio da Lei
Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, que “dispõe sobre o si-
gilo das operações de instituições financeiras e dá outras providências”.
É interessante observar que, embora o sigilo bancário não esteja ex-
plicitamente listado entre os conteúdos especificados no art. 192 da
Constituição, a julgar por sua inserção na Lei nº 4.595/64, é matéria
de regulamentação do sistema financeiro. Tanto é assim que se adotou
a forma de lei complementar para sua regulamentação, o que conduz
à conclusão de que tanto o Poder Executivo, autor do projeto, quanto

11
Disponível em https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalharNormativo.do?N=10
6276675&method=detalharNormativo
12
Disponível em http://www.fgc.org.br/libs/download_arquivo.php?ci_arqui-
vo=62
13
Disponível em <https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalharNormativo.do?N=1
02210355&method=detalharNormativo>
926 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

os parlamentares que o apreciaram consideravam a matéria como


inserida no comando do caput do art. 192. Como foi feita antes da
promulgação da EC nº 40/03, esta regulamentação parcial do siste-
ma financeiro constituiu, de certa forma, uma burla à interpretação
do STF de que a regulamentação deveria ser efetivada numa única
lei complementar. No entanto, a discussão de sua constitucionalidade
nunca foi levada à Corte Suprema.
O inciso II já fora objeto de uma Emenda Constitucional, de nº 13,
de 1996, com o objetivo de retirar do texto original a referência ao
“órgão oficial ressegurador”, para dar espaço à abertura do mercado
de resseguros à iniciativa privada, acompanhando um modelo adotado
em praticamente todo o mundo.
Após essa mudança, o Poder Executivo enviou o Projeto de Lei nº
1.699/9914, que se transformou na Lei nº 9.932, de 20 de dezembro de
1999, que “dispõe sobre a transferência de atribuições da IRB – Brasil
Resseguros S.A. – IRB-Brasil Re para a Superintendência de Seguros
Privados (Susep), e dá outras providências”. Esta lei, entretanto, teve
sua vigência parcialmente suspensa por liminar do Supremo Tribunal
Federal, em decisões sobre as ADIs nº 2.244-0 e 2.223-7, impetradas
respectivamente pelo Partido dos Trabalhadores e Partido Comunista
do Brasil. A promulgação da EC nº 40/03, com a revogação dos dis-
positivos constitucionais invocados veio causar a prejudicialidade das
ADIs citadas.
Possibilitada a regulamentação fracionada do art. 192 – em leis comple-
mentares – o Poder Executivo encaminhou o Projeto de Lei Comple-
mentar nº 249, de 200515, que, aprovado, converteu-se na Lei Comple-
mentar nº 12616, de 15 de janeiro de 2007, que estabeleceu a disciplina
de mercado de resseguros no Brasil. Foi dado então mais um passo para
a reestruturação do sistema financeiro, embora em direção diversa da
traçada pelos Constituintes, que ainda consideraram a continuidade do
ressegurador oficial. Em tempo: o legislador teve o cuidado de revogar a
Lei nº 9.932/99, para liquidar de vez o objeto das ADIs 2.223 e 2.244.
De outro lado, vale lembrar que, além das disposições do art. 192, a
Constituição de 1988 introduziu na atuação do Banco Central, órgão

14
Tramitação disponível em busca em http://www2.camara.gov.br/proposicoes
15
Tramitação disponível em busca em http://www2.camara.gov.br/proposicoes
16
Dispõe sobre a política de resseguro, retrocessão e sua intermediação, as opera-
ções de co-seguro, as contratações de seguro no exterior e as operações em moeda
estrangeira do setor securitário; altera o Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de
1966, e a Lei nº 8.031, de 12 de abril de 1990; e dá outras providências.
A reestruturação do sistema financeiro nacional diante da alteração do 927
art. 192 da Constituição pela E menda Constitucional n º 40, de 2003

máximo de execução da política monetária e fiscalizador das institui-


ções financeiras, as seguintes alterações:
• o exercício exclusivo da competência da União para a emissão de
moeda (art. 164);
• a nomeação de seu presidente e diretores condicionada à aprovação
prévia do Senado Federal, por voto secreto, após argüição pública
(arts. 52, III, d, e 84, XIV);
• a vedação de conceder, direta ou indiretamente, empréstimos ao
Tesouro Nacional ou a qualquer entidade que não seja instituição
financeira, ressalvando-se, porém, a possibilidade de comprar e ven-
der títulos de emissão do Tesouro Nacional com o objetivo de regu-
lar a oferta de moeda ou a taxa de juros (art. 164, §§ 1º e 2º);
• receber com exclusividade o depósito das disponibilidades de caixa
da União (art. 164, § 3º).
Na linha de relacionamento do Banco Central com o Governo Fede-
ral e com o setor público de um modo geral, ocorreram mudanças sig-
nificativas para o sistema financeiro. Nesse aspecto, o grande destaque
foi a Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101, de 4
de maio de 200017–, que veio estabelecer regras para a gestão fiscal dos
diversos entes federativos, inclusive aquelas relacionadas ao endivida-
mento público. Entre outras disposições, a Lei de Responsabilidade
Fiscal determinou a transferência dos resultados do Banco Central
ao Tesouro Nacional e a inclusão na lei orçamentária das despesas do
Banco Central relativas a pessoal e encargos sociais, custeio adminis-
trativo, inclusive os destinados a benefícios e assistência aos servidores,
e investimentos. Além disso, estabeleceu a demonstração trimestral do
impacto e custo fiscal das operações realizadas pelo Banco Central.
A LRF também proibiu ao Banco Central a emissão de títulos da
dívida pública, a partir de dois anos após a publicação da lei, além
das seguintes vedações: i) a compra de título da dívida, na data de
sua colocação no mercado, ressalvado a compra de títulos da União
para refinanciar a dívida mobiliária federal que estiver vencendo em
sua carteira; ii) a permuta, ainda que temporária, de título da dívida
de ente da Federação por título da dívida pública federal, bem como
a operação de compra e venda, a termo, daquele título, cujo efeito
final seja semelhante à permuta; e iii) a concessão de garantia. Vedou
também ao Tesouro Nacional adquirir títulos da dívida pública federal

17
Lei Complementar nº 101, de 2000 – Estabelece normas de finanças públicas
voltadas para a responsabilidade fiscal e dá outras providências.
928 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

existentes na carteira do Banco Central, ainda que com cláusula de


reversão, salvo para reduzir a dívida mobiliária.
Embora seja uma lei essencialmente de natureza fiscal, a LRF teve um
efeito significativo para o sistema financeiro, pois reduziu a demanda
de financiamento dos diversos entes federativos e das empresas con-
troladas pelo poder público. Outro ponto importante foi a considera-
ção do impacto fiscal e do custo das operações do Banco Central.
Nessa linha, é digno de menção o art. 28, que transcrevemos:
Art. 28. Salvo mediante lei específica, não poderão ser utiliza-
dos recursos públicos, inclusive de operações de crédito, para
socorrer instituições do Sistema Financeiro Nacional, ainda que
mediante a concessão de empréstimos de recuperação ou finan-
ciamento para mudança de controle acionário.
§ 1º A prevenção de insolvência e outros riscos ficará a cargo de
fundos, e outros mecanismos, constituídos pelas instituições do
Sistema Financeiro Nacional, na forma da lei.
§ 2º O disposto no caput não proíbe o Banco Central do Brasil
de conceder às instituições financeiras operações de redesconto e
de empréstimos de prazo inferior a trezentos e sessenta dias.

A LRF veio disciplinar as operações de salvamento do Banco Cen-


tral, que mobilizavam elevadas somas para dar liquidez a instituições
financeiras em dificuldades ou para viabilizar a sua incorporação por
outra, recursos esses lançados à conta do contribuinte. Exemplo má-
ximo e emblemático desta situação foi o socorro aos Bancos Marka
e FonteCindam, na desvalorização do Real ocorrida em 1999, com a
venda de dólares favorecida, o que teria gerado um prejuízo de R$ 1,6
bilhão ao Banco Central.
O episódio dos Bancos Marka e FonteCindam, além de claramente
ter influenciado para o art. 28 da LRF, influenciou também para a
aprovação da Lei nº 10.21418, de 27/3/2001, que instituiu o Sistema
de Pagamentos Brasileiro. Editada inicialmente na forma da Medida
Provisória nº 2.008, de 14/12/00, esta lei, juntamente com a Resolução
nº 2.88219, do Conselho Monetário Nacional, estabeleceu as bases para
a implantação do sistema de pagamentos brasileiros, com as diretrizes
para que as câmaras de compensação e de liquidação assegurem, no caso

18
Lei nº 10.214 – Dispõe sobre a atuação das câmaras e dos prestadores de serviços
de compensação e de liquidação, no âmbito do sistema de pagamentos brasileiro, e
dá outras providências.
19
Disponível em https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalharNormativo.do?N=10
1163546&method=detalharNormativo
A reestruturação do sistema financeiro nacional diante da alteração do 929
art. 192 da Constituição pela E menda Constitucional n º 40, de 2003

de inadimplência de participante, a liquidação tempestiva de obrigações


em montante equivalente à maior posição compensada devedora.
No sistema de pagamentos brasileiro merece destaque o Sistema de
Transferência de Reservas (STR), assim definido na página eletrônica
do Banco Central na Internet: “sistema de transferência de fundos
com liquidação bruta em tempo real (LTBR), operado pelo Banco
Central do Brasil, que funciona com base em ordens de crédito, isto
é, somente o titular da conta a ser debitada pode emitir a ordem de
transferência de fundos. O sistema é de importância fundamental
principalmente para liquidação de operações interbancárias realizadas
nos mercados monetário, cambial e de capitais, inclusive no que diz
respeito à liquidação de resultados líquidos apurados em sistemas de
compensação e liquidação operados por terceiros.”20
O STR veio implementar a sensibilização da conta de Reservas Mo-
netárias das instituições financeiras em tempo real, tanto pelas trans-
ferências de recursos interbancárias como pela liquidação de posições
ocorridas em outras câmaras de compensação, o que dá ao Banco
Central um maior poder de supervisão e evita a surpresa de posições
altamente devedoras no fechamento diário do movimento.
Todas essas mudanças tornaram, sem dúvida, o Sistema Financeiro
Nacional mais seguro e eficiente. A expansão do crédito em relação
ao Produto Interno Bruto vem crescendo nos últimos seis anos, tendo
alcançado o montante de R$ 1,018 trilhão, em abril de 2008, equiva-
lente a 36,1% do PIB (Tabela 1).

Tabela 1– Operações de crédito do sistema financeiro


percentual do PIB

Ano Perc. do PIB – %


1988 31,8
1989 24,1
1990 24,1
1991 24,1
1992 28,6
1993 29,0
1994 36,6
1995 32,0
1996 28,8
1997 26,8
1998 27,9

20
Banco Central do Brasil. Sistema de Transferência de Reservas – STR. Disponí-
vel em http://www.bcb.gov.br/htms/novaPaginaSPB/str.asp
930 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Ano Perc. do PIB – %


1999 24,9
2000 26,4
2001 24,7
2002 22,0
2003 24,0
2004 24,5
2005 28,1
2006 30,7
2007 34,7
2008 36,1

Fonte: Banco Central do Brasil21

De outro lado, a participação do sistema financeiro no PIB tem-se


reduzido, o que demonstra que vem se reduzindo o peso da interme-
diação financeira sobre a renda dos demais setores da economia. De
12,78%, em 1990, decresceu para 5,99% em 2005 (Tabela 2).

Tabela 2 – Participação das instituições


financeiras no PIB22

Ano Part. no PIB -%


1990 12,78
1991 10,53
1992 12,13
1993 15,61
1994 12,37
1995 6,94
1996 5,66
1997 5,53
1998 5,62
1999 5,99
2000 5,18
2001 6,34
2002 7,45
2003 6,71
2004 *
2005 5,99
Fonte: De 1990 a 1995 IBGE/Andima (1997), de 1996 a 2001, Sistemas
de Contas Nacionais Brasil 2003 e 2004-2005 - Página do IBGE na Inter-
net (elaborado pelo autor)
* Indisponível.

21
Disponível em http://www.bcb.gov.br/?seriesfn
22
IBGE/ANDIMA. Sistema Financeiro – Uma análise a partir das Contas Nacionais
1990-1995, IBGE-ANDIMA – Rio de Janeiro, 1997.
A reestruturação do sistema financeiro nacional diante da alteração do 931
art. 192 da Constituição pela E menda Constitucional n º 40, de 2003

Há outros aspectos positivos, de natureza operacional. Os correspon-


dentes bancários, autorizados pela Resolução nº 2.70723, de 30 de
maio de 2000, possibilitaram levar atendimento bancário a todos os
municípios do país, o que permitiu o acesso de um grande contingente
de cidadãos, até então excluídos, aos serviços financeiros e facilitou ao
governo federal pagar os benefícios dos programas sociais.
Outro ponto de preocupação dos constituintes, o controle do siste-
ma financeiro brasileiro pelo capital estrangeiro teve igualmente uma
evolução favorável. Após um período de crescimento, em seguida ao
Plano Real, em razão do ajuste do setor ao ambiente de inflação baixa
e pelo interesse do governo federal de captar divisas, a participação do
capital estrangeiro nas instituições financeiras brasileiras teve um perí-
odo de crescimento até 2002, quando chegou a 32,89% o percentual de
participação no patrimônio líquido, tendo decrescido a partir de então
e se situado em 21,78% em 2006 (Tabela 4). Em setembro de 2007, o
capital estrangeiro tinha participação no capital votante de 188 institui-
ções financeiras do país, em percentuais diversos (Tabela 3).

Tabela 3 – Participação estrangeira em instituições


financeiras no país

Capital Votante | Posição: 30/9/2007

Percentual de Tipo de instituição


Participação
BC BM BI SCTVM SDTVM
0% ––– 10% 1 16 1 3 8
10% |––– 20% 12 1 5
20% |––– 30% 2
30% |––– 40% 1 1
40% |––– 50%
50% |––– 60% 1 1
60% |––– 70%
70% |––– 80% 1
80% |––– 90% 2 1 1
90% |–––| 100% 1 46 5 18 13
TOTAL 2 78 9 23 29

23
Disponível em https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalharNormativo.do?N=10
0054612&method=detalharNormativo
932 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Percentual de Tipo de Instituição


Participação
SAM SCFI SCI CH Filial SCM Total
0% ––– 10% 5 2 1 37
10% |––– 20% 4 2 24
20% |––– 30% 2
30% |––– 40% 1 3
40% |––– 50%
50% |––– 60% 2
60% |––– 70%
70% |––– 80% 1
80% |––– 90% 4
90% |–––| 100% 18 5 2 7 115
Total 27 10 3 7 188

Fonte: Banco Central do Brasil

Tabela 4 – Participação percentual das instituições do segmento bancá


rio no patrimônio líquido deste segmento

em percentual

Instituição do 1996 1997 1998 1999 2000


segmento bancário Dez Dez Dez Dez Dez

Bancos Públicos
12,40 11,49 11,35 11,10 5,66
(+ Caixas Estaduais)

Banco do Brasil 11,86 11,76 10,03 9,73 9,89


Caixa Econômica
8,85 9,09 5,42 5,22 3,82
Federal

Bancos Privados
54,21 51,82 49,75 46,69 50,33
Nacionais

Bancos com Contro-


11,41 14,29 21,86 25,46 28,31
le Estrangeiro

Cooperativas de
1,27 1,55 1,59 1,80 1,99
Crédito
Total 100 100 100 100 100

Fonte: Banco Central - Cosif - transação PCOS200 (doc. 4016)


A reestruturação do sistema financeiro nacional diante da alteração do 933
art. 192 da Constituição pela E menda Constitucional n º 40, de 2003

em percentual

Instituição do 2001 2002 2003 2004 2005 2006


segmento
bancário Dez Dez Dez Dez Dez Dez
Bancos Públicos
(+ Caixas 3,46 4,60 4,33 4,66 4,74 4,74
Estaduais)
Banco do Brasil 8,76 7,77 8,28 8,69 9,30 10,54
Caixa Econômi-
3,90 3,91 3,92 4,11 4,39 4,66
ca Federal

Bancos Privados
51,14 48,66 53,17 52,89 54,15 55,11
Nacionais
Bancos com
Controle 30,72 32,89 28,06 27,09 24,56 21,78
Estrangeiro
Cooperativas
2,02 2,17 2,24 2,56 2,86 3,16
de Crédito
Total 100 100 100 100 100 100

Fonte: Banco Central - Cosif - transação PCOS200 (doc. 4016)

Em contraponto a esses aspectos positivos, aumentaram os conflitos


entre as instituições financeiras e os consumidores de serviços finan-
ceiros. Segundo o Departamento de Proteção e Defesa do Consumi-
dor (DPDC)24, do Ministério da Justiça, os bancos encabeçam a lista
de reclamações: “Filas longas, atendimento ruim, taxas cobradas in-
devidamente, cartões de crédito enviados sem autorização são alguns
dos problemas que o cidadão brasileiro costuma enfrentar nos bancos
onde possui conta”. Entre agosto de 2006 e julho de 2007 foram regis-
trados 96,5 mil25 atendimentos pelos órgãos de defesa do consumidor
em reclamações contra instituições financeiras.
Apesar de uma redução significativa da taxa básica de juros – a Selic
– as taxas de juros ainda se situam em patamares elevados, em relação
a outros países. Em abril/2008, as taxas de juros prefixados, cobradas
nos empréstimos a pessoas físicas, foram, em média, de 47,71%, e de
26,26% nos empréstimos a pessoas jurídicas. O spread bancário no

24
DPDC (Ministério da Justiça) – Notícias – Direito do Consumidor. Disponí-
vel em http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ5E563276ITEMIDF0F4E0ED602
D4E6187319DBD644C9A89PTBRIE.htm
25
idem
934 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Brasil continua a ser um dos mais altos do mundo, situando-se na


média geral de 24,99% no mês de abril26.
Pode-se concluir que, não obstante a falta de regulamentação do art.
192 da Constituição Federal, as prescrições constitucionais para a re-
estruturação do sistema financeiro foram, pelo menos em parte, pos-
tas em prática e contribuíram para a segurança e desenvolvimento do
mercado financeiro brasileiro e para o controle do gasto público e da
inflação, em benefício da população brasileira. Entretanto, a persistên-
cia de taxas elevadas de juros e de spread bancário e o mau atendimen-
to aos clientes indicam que um sistema financeiro comprometido com
o desenvolvimento equilibrado do país e empenhado em servir aos
interesses da coletividade, como queriam os constituintes, está ainda
muito longe de se concretizar. Tal objetivo poderá ter sido apenas uma
utopia da Constituição, um ideal que talvez nem a regulamentação do
art. 192 será capaz de viabilizar.

Referências

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Normativo.do?N=088128472&method=detalharNormativo>
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Normativo.do?N=095236407&method=detalharNormativo>
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mativo.do?N=106276675&method=detalharNormativo>
__________. Disponível em; <https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalhar-
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__________. Disponível em; <https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalhar-
Normativo.do?N=101163546&method=detalharNormativo>
__________. Sistema de Transferência de Reservas – STR. Disponível em;
http://www.bcb.gov.br/htms/novaPaginaSPB/str.asp>
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__________. Disponível em; <https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalhar-
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__________. Disponível em; <https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalhar-
Normativo.do?N=095174234&method=detalharNormativo> Acessado em: 5
jun. 08

26
Dados do Banco Central do Brasil – II Taxas de aplicação, captação e spread
– Taxas consolidadas.
A reestruturação do sistema financeiro nacional diante da alteração do 935
art. 192 da Constituição pela E menda Constitucional n º 40, de 2003

BRASIL. Câmara dos Deputados. Assembléia Nacional Constituinte: V – Comis-


são do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças – V-c – Subcomissão do Siste-
ma Financeiro – Anteprojeto: Relatório Final.
__________. Tramitação disponível em busca em <http://www2.camara.gov.
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__________. Tramitação disponível em busca em <http://www2.camara.gov.
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil
:1988 – texto constitucional de 5 de outubro de 1988 com as alterações adotadas
pelas Emendas Constitucionais de n. 1, de 1992, a 52, de 2006, e pelas Emendas
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BRASIL. IBGE. Portal Brasil: IPCA. Disponível em: <http://www.portalbrasil.
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dor. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ5E563276ITEM-
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senado.gov.br/sf/atividade/Materia/Consulta.asp?RAD_TIP=PEC&SEL_
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NUM=21&TXT_ANO=1997&Tipo_Cons=6&Flag=1>. Acessado em: 5 jun.
2008
FUNDO GARANTIDOR DE CRÉDITOS. Disponível em <http://www.
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__________. Ementa da ADI nº 4-7 DF. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/
portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=648.NUME.%20NAO%20S.
FLSV.&base=baseSumulas>
Tributação
937

Constituição de 1988:
a hipertrofia tributária e
suas conseqüências
Murilo Rodrigues da Cunha Soares

Constituição de 1988: a hipertrofia tributária


e suas conseqüências

Em 5 de outubro de 1988 promulgava-se a Constituição Federal. Vin-


te anos e 62 emendas constitucionais depois1, seu texto permanente
contém um capítulo específico para o Sistema Tributário Nacional,
com quatro seções e vinte artigos, seis deles tratando de repartição de
receitas. São 197 dispositivos (artigos, parágrafos, incisos e alíneas) aos
quais devemos acrescentar outros 65 similares, espalhados pela Cons-
tituição (36) e pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(29). Como se vê, no Brasil, além de toda a legislação Infraconstitu-
cional, a cobrança e repartição dos tributos sujeita-se a um volume
expressivo de normas constitucionais.
Este art. pretende mostrar que essa hipertrofia da normatização cons-
titucional-tributária não encontra eco na experiência internacional e
comentar algumas das conseqüências desse fenômeno.
Nesse sentido, a primeira seção oferece um panorama do tratamento
que a nossa Constituição concede às questões de ordem fiscal-tributá-
ria. A segunda seção mostra como a matéria é tratada nos textos consti-
tucionais de alguns países escolhidos. A terceira seção aponta alguns dos
problemas relacionados com a profusão de normas constitucionais-tri-
butárias. Por fim, registramos nossas conclusões e considerações finais.

1
Dez das emendas promulgadas contêm normas fiscal-tributárias, assim entendidas
aquelas que tratam de tributos (impostos, taxas, contribuições de melhoria, contribui-
ções sociais, contribuições de intervenção no domínio econômico, contribuições de
interesse das categorias profissionais e econômicas), suas destinações e vinculações.
938 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

1. A tributação na Constituição brasileira

A Constituição da República Federativa do Brasil conta com um ca-


pítulo tributário – Do Sistema Tributário (Capítulo I do Título VI)
–, que é subdivido em seis seções tratando Dos Princípios Gerais (Se-
ção I); Das Limitações do Poder de Tributar (Seção II); Dos Impostos da
União (Seção III); Dos Impostos dos Estados e do Distrito Federal (Seção
IV); Dos Impostos dos Municípios (Seção V); Da Repartição das Receitas
Tributárias (Seção VI)2.
Essa estrutura parece lógica e apropriada para a implementação do
sistema tributário de um país federativo, e, de fato, vários dos coman-
dos são dignos de constar em um texto constitucional.
Todavia, há dispositivos no capítulo tributário que exibem evidente voca-
ção infraconstitucional. Citamos como exemplo aqueles que estabelecem
tratamentos tributários privilegiados para: as cooperativas (art. 146, “c”);
as micro e pequenas empresas (arts. 146, “d” e parágrafo único, e 179; art.
94 do ADCT); as exportações (arts. 149, § 2º, I; 153, §3º, III; 155, § 2º,
X, “a”; 156, § 3º, II); os livros, jornais, periódicos e papel destinado a sua
impressão (art. 150, V, “d”); a aquisição de bens de capital (art. 153, § 3º,
IV); as pequenas glebas rurais (art. 153, § 4º, II); o ouro ativo financeiro
(arts. 153, § 5º, e 155, § 2º, X, “b”); os serviços de comunicação por rádio
e televisão (art. 155, § 2º, X, “d”); a transmissão de bens e direitos com
objetivo de integralização de capital (art. 156, § 2º, I).
Regras tributárias banais também são encontradas, como, por exem-
plo: o teto para as contribuições previdenciárias estaduais, distrital e
municipais (art. 149, § 1º); a tributação ad valorem ou específica para
as contribuições sociais e CIDEs (art. 149, § 2º, III, “a” e “b”); a co-
brança da contribuição para a iluminação pública juntamente com a
fatura de energia elétrica (art. 149-A, parágrafo único).
O ICMS é um caso à parte, pois possui um verdadeiro regulamento na
Constituição (art. 155, §§ 2º a 5º), tratando de regras sobre momento
e local de incidência do imposto, determinação da base de cálculo,
fixação de alíquotas, tributações especiais (petróleo, combustíveis e lu-
brificantes dele derivados, gás natural, energia elétrica, serviços de te-
lecomunicações) e partilha do produto da receita do tributo. O fato de
tratar-se de um imposto de difícil administração, uma vez que estados
e Distrito Federal compartilham a exploração da sua base, não justifica

2
O art. 195, CF-88, também mereceria ser incluído nesse rol de dispositivos de na-
tureza tributária, uma vez que define as contribuições destinadas ao financiamento
da Seguridade Social.
Constituição de 1988: a hipertrofia tributária e suas consequências 939

a profusão de normas inseridas na Constituição. Pelo contrário, não


parece recomendável “constitucionalizar” exageradamente sua cobran-
ça, o que provoca a remessa da interlocução entre os entes federativos
para o Supremo Tribunal Federal.
Fora do capítulo tributário, o panorama não é mais animador. Novos
tributos são praticamente criados no Texto Constitucional, como, por
exemplo: os royalties sobre recursos minerais3 (art. 20, § 1º); a contri-
buição dos inativos (art. 40, §§ 18 a 21); a Cide-Combustíveis (art.
176, § 4º, I e II, “a” a “c”); a contribuição para o Salário Educação (art.
212, § 5º), as contribuições para o PIS e o Pasep (art. 239); as con-
tribuições para o Sistema “S” (art. 240); o IPMF4 (art. 2º da Emenda
Constitucional nº 3/93); a CPMF5 (arts. 84, 85, 90 do ADCT). A ad-
ministração tributária também é contemplada com vários dispositivos
constitucionais (arts. 37, XVIII; 52, XV; 114, VIII; 131, § 3º; 237; e,
arts. 29, § 5º, e 78, § 2º, do ADCT).
Vários dispositivos constitucionais tratam de vinculações e destinações
de receitas tributárias, como no caso de: transportes e combustíveis
(art. 177, § 4º, “a” a “c”; art. 93 do ADCT); saúde (arts. 34, VII, “e”, e
198, §§ 2º e 3º; arts. 55 e 77 do ADCT ); regime geral de Previdência
Social (art. 167, XI); assistência social (art. 204, parágrafo único); Fun-
do de Combate à Pobreza (arts. 79 a 83 do ADCT); educação (arts.
34, VII, “e” e 212, caput; art. 60 do ADCT); cultura (art. 216, § 6º);
pesquisa científica (art. 218, § 5º); pagamento de dívidas dos estados
e municípios com a União (art. 167, § 4º). E outros de desvinculações
de receitas, seja para estabelecer a regra geral aplicável aos impostos
(art. 167, IV), seja para criar o Fundo Social de Emergência6 (arts. 71
a 73 do ADCT) ou a DRU (art. 76 do ADCT).
Outros incentivos fiscais e tratamentos tributários privilegiados en-
contram-se espalhados pela Constituição e ADCT, como, por exem-
plo: a desoneração de imóveis desapropriados para fins de reforma
agrária (art. 184, §5º) e de aplicações em bolsas7 (art. 85 do ADCT);
as alíquotas especiais para contribuição previdenciárias de trabalha-
dores com baixa renda e para aqueles que se dediquem ao trabalho

3
Há controvérsias sobre a natureza das receitas de royalties, que, a nosso ver, são
patrimoniais. Mas há vários especialistas em Finanças Públicas que as consideram
receitas tributárias, dada a sua cobrança estatal coativa sobre as empresas que ex-
ploram recursos minerais e potencial hídrico.
4
Tributo extinto.
5
Contribuição social extinta.
6
Fundo extinto.
7
Trata-se de desoneração da extinta CPMF.
940 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

doméstico no próprio lar (art. 201, §§ 12 e 13); os incentivos fiscais


para a adoção de crianças e órfãos (art. 227, § 3º, VI); a Zona Franca
de Manaus (art. 40 do ADCT); os incentivos fiscais regionais nos
tributos federais (art. 43, § 2º, III).
Mais raros são os tratamentos tributários agravados, como, por exem-
plo, no caso: do IPTU progressivo para induzir ao adequado aprovei-
tamento do imóvel (art. 184, § 5º); da vedação de concessão de privi-
légio fiscal para empresas estatais e sociedades de economia mista (art.
173, § 2º) e de anistias e remissões de contribuições sociais em valores
superiores aos fixados em lei complementar (art. 195, § 11).
De fato, a maioria desses comandos é incompatível com aquilo que a
doutrina qualifica de normas materialmente constitucionais. Disposi-
tivos tributários dignos de ingressarem na Carta Magna são aqueles
que limitem o poder de tributação, estabeleçam as garantias dos con-
tribuintes e, em casos como o nosso, distribuam o “bolo tributário”
entre os entes da Federação. Evidentemente, grande parte das normas
anteriormente mencionadas são apenas formalmente constitucionais,
enxertadas no Texto Maior com o objetivo de proteger interesses es-
pecíficos, de agentes públicos e privados, da imprevisibilidade do pro-
cesso legislativo infraconstitucional.
O irônico é que muitas vezes essa proteção nem é eficaz. Se uma série
de produtos adquire imunidade ao pagamento de impostos, cobram-
se sobre eles contribuições sociais; se é praticamente impossível para
a União criar um imposto residual, dadas as draconianas regras do
art. 154, I, CF-88, criam-se novas contribuições para a Seguridade
Social, contribuições sociais gerais, CIDEs, taxas, “encargos tarifários”
e quantas outras exações forem necessárias para “fechar” o caixa; se es-
tados e municípios elevam sua participação do produto da arrecadação
do imposto de renda e IPI, a União “esvazia” as bases desses tributos e
“infla” as dos não partilhados; se as receitas são vinculadas a despesas
com saúde e educação, aprova-se a DRU ou, pior, faz-se o contingen-
ciamento da execução orçamentária por decreto.
Talvez a agressão mais contundente à Constituição ocorra exatamente
com o seu tributo mais “regulamentado”: o ICMS. O comando re-
ferente à não-cumulatividade é verdadeira letra morta, já que vários
estados não honram os créditos relativos ao imposto recolhido em
outro estado, em frontal desrespeito ao art. 155, § 2º, I; a seletividade
conforme a essencialidade, mencionada no art. 155, § 2º, III, tam-
bém fica comprometida, pois mais de 30% da arrecadação são obtidos
sobre energia elétrica e combustíveis, os insumos mais essenciais da
Constituição de 1988: a hipertrofia tributária e suas consequências 941

economia; os exportadores não recebem os créditos acumulados pela


desoneração das exportações, tornando apenas uma “meia verdade” o
art. 155, § 2º, X, “a”; a proibição de concessão de incentivos fiscais
por parte dos estados é totalmente desrespeitada e os governadores,
ou seus prepostos, chegam a assinar “contratos de gaveta” para atrair
empreendimentos, fazendo tábula rasa do art. 150, § 6º, combinado
com o art. 155, XII, “g”.
Os municípios não escapam desse “vale-tudo” tributário. Cada capital
ou cidade de grande porte tem pelo menos um município “paraíso
fiscal” do ISS entre os seus vizinhos, que, mediante burla ao art. 156,
3º, I e II, combinado com o art. 88, ADCT, atrai os prestadores de
serviços para sua jurisdição.
Assim, podemos afirmar que a proliferação de normas fiscal-tributá-
rias tem gerado contínuos, frontais e flagrantes atos de desrespeito ao
nosso Texto Maior.

2. A tributação nas constituições de outros países

Vejamos, então, como os demais países tratam da matéria fiscal-tri-


butária em seus textos constitucionais8, ressalvando-se, porém, que o
objetivo desta seção é oferecer uma visão panorâmica do assunto, es-
capando ao escopo do artigo o estudo mais aprofundado do arcabouço
normativo-tributário de cada uma das nações escolhidas. Não abor-
daremos a legislação infraconstitucional, que, ao fim e ao cabo, é que
estabelece o regime de cobrança e repartição de tributos de cada país.
O presente art. somente tratará do arcabouço fiscal-tributário inscrito
nas respectivas constituições.
Cumpre registrar, ainda, que buscamos escolher países assemelhados
ao Brasil, ou seja, países com grande extensão territorial; federalistas;
submetidos a regimes democráticos representativos9; e detentores de
economia razoavelmente diversificada. A nosso ver, essas variáveis,

8
As constituições analisadas, exceção feita à da Índia, foram obtidas nos endereços
eletrônicos relacionados ao sítio http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
intenacional4.htm, com as atualizações disponíveis em cada um deles.
9
Esse é o motivo pelo qual excluímos da lista a República Popular da China. De
fato, a Constituição chinesa de 1982 não deixa dúvidas sobre o comando político
centralizado que vige naquele país (arts. 1 e 3). Também o regime de propriedade
é diferenciado, com preponderância da propriedade estatal (art. 7) e da economia
socialista de mercado (art. 11). A questão tributária está sinteticamente explicitada
no dever de todos pagarem seus impostos, na forma da lei (art. 56).
942 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

juntamente com o processo histórico de cada nação, são determinan-


tes na explicação do sistema tributário adotado.
É necessário lembrar também que a tributação é uma atividade hu-
mana que precede, em muito, as constituições e até mesmo o direito.
Assim, não há surpresas com o fato de que o princípio da legalidade
tributária, insculpido na famosa expressão “no taxation without repre-
sentation”, seja um dos pilares da Carta Magna de 1215, considerada
pela expressiva maioria da doutrina como o primeiro texto com natu-
reza constitucional. É notório, ainda, que a questão tributária esteve
no centro das principais revoluções do século XVIII – a Francesa10
e a Americana11 –, que são o ponto de partida dos sistemas jurídi-
co-constitucionais modernos. Assim, constituição e tributação na sua
concepção moderna – ou seja, a obtenção de receitas públicas sujeita a
regras e limites aprovados pelos cidadãos – nascem juntas; na verdade,
a tributação é uma das principais causas do surgimento da consti-
tuição, que, por sua vez, é o sustentáculo da tributação, numa relação
entre ambas quase necessária do ponto de vista ontológico.

a) Estados Unidos da América

Comecemos, então, pelos Estados Unidos. Vejamos as matérias tributárias


contidas na Constituição de 1787 (The Constitution of the United States).
A Constituição americana é composta por apenas sete artigos. Foram
aprovadas 27 emendas, sendo que as Emendas I a X constituem-se nos
chamados Bill of Rigths, que, aliás, não contemplam garantias individuais
de ordem expressamente tributária. A que mais se aproxima disso é a
Emenda VIII que veda, genericamente, a aplicação de multas excessivas.
É no art. I da Constituição que as matérias tributárias foram inseridas.
A seção 7 estipula que a tramitação dos projetos de lei de natureza tri-
butária inicia-se na Câmara dos Deputados (House of Representatives).
A seção 8 cuida dos poderes do Congresso Nacional (Congress), confe-
rindo-lhe competência para estabelecer e coletar tributos (taxes, duties,

10
Na Revolução Francesa, houve a revolta do “Terceiro Estado” (a burguesia) contra
os privilégios da nobreza e do clero, especialmente contra os benefícios de natureza
tributária.
11
A independência dos Estados Unidos da América esteve intrinsecamente ligada
à questão tributária. O estopim da separação da Inglaterra ocorre com a “Revolta
do Chá”, quando os colonos se rebelam contra a concessão do monopólio fiscal do
produto para a Cia. das Índias Orientais, devendo ser lembrado que o federalismo
foi construído, na prática, com o processo de elaboração e aprovação da Constitui-
ção americana.
Constituição de 1988: a hipertrofia tributária e suas consequências 943

imposts, excises). Estabelece, ainda, a cobrança uniforme por todo terri-


tório de algumas das espécies tributárias (duties, imposts, excises).
A seção 9 impede o Congresso de proibir a “migração e importação de
determinadas pessoas”, pelo menos até 1808, mas permite a cobran-
ça de imposto sobre esse tipo de “importação”, limitado a dez dólares
por cabeça (escravo)12. Veda, ainda, a cobrança de capitações13 ou de
outros impostos “diretos”, tendo essa última vedação sido flexibilizada
pela Emenda XVI, como se verá à frente. Proíbe a imposição de tributo
sobre artigos exportados pelos estados, impedindo a cobrança recíproca
de encargos aduaneiros sobre os navios desembarcados em seus portos.
A seção 10 proíbe os estados de cobrarem tributos sobre importações
e exportações, exceção feitas a taxas de inspeção, cujo produto da arre-
cadação fica com a União.
Digna de nota a Emenda XVI, que autoriza o Congresso Nacional a
impor e coletar imposto sobre a renda, provinda de qualquer fonte, tri-
buto cujo produto da arrecadação não é dividido com os estados. Por
oportuno, cabe mencionar que os estados e os municípios americanos
podem cobrar seus próprios impostos de renda, não sendo raro o cida-
dão ou empresa recolher o tributo aos três níveis de governo14.
Também é necessário esclarecer que os estados americanos obtêm sig-
nificativa fonte de receitas com os impostos sobre vendas (Sales Tax),
responsáveis por quase um terço das receitas tributárias estaduais15.
Trata-se de tributo sobre a venda ao consumidor final, sendo sua co-
brança um caso isolado na experiência internacional. A opção ame-
ricana tem a grande vantagem de não onerar o produção, mas, pela
dificuldade de controle dos inúmeros pontos do comércio varejista,
os demais países normalmente estabelecem incidências sobre o valor
agregado, forma de tributação na qual o imposto é recolhido ao longo
das etapas do processo produtivo.

12
Para um relato sobre como a escravidão influenciou a elaboração da Constituição
americana, v. http://www.usconstitution.net/consttop_slav.html.
13
Capitação é o tributo cobrado “por cabeça”, ou seja, mediante imposição de valores
fixos para cada cidadão ou classe de cidadãos. Muito comum na Idade Média, é
considerado um dos mais injustos, pois o pagamento não tem relação com qualquer
sinal de capacidade contributiva.
14
PRICEWATERHOUSECOOPERS (2003a), p. 536. PRICEWATERHOU-
SECOOPERS. (2003b), p. 881.
15
Em 2005, a receita tributária dos estados americanos foi de US$ 647 bilhões, des-
tacando-se os seguintes tributos: imposto de renda (US$ 258 bilhões), sales tax (US$
212 bilhões) e excises taxes (US$ 98 bilhões). Informações disponíveis em http://
www.census.gov/compendia/statab/tables/08s0439.xls.
944 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

b) Alemanha

Na Gründgesetz (Lei Fundamental,) alemã, aprovada em 1949, a tri-


butação está basicamente contida no Capítulo X (Das Finanzwesen),
que tem quatorze artigos, mas apenas quatro deles cuidam de matéria
fiscal-tributária.
O art. 105 atribui à União (der Bund) a competência de legislar de forma
exclusiva sobre aduanas e monopólios fiscais, bem como sobre tributos
que devam ser cobrados uniformemente em todo o território federal ou
que coloquem em risco a unidade jurídica ou econômica do país. Os
estados (die Länder) legislam sobre os impostos locais sobre o consumo,
inclusive bens de luxo, e tributos que não sejam similares aos federais.
O art. 106 especifica a destinação do produto das receitas de deter-
minados tributos para a União (monopólios fiscais, importação, consu-
mo, transporte de mercadorias, movimento de capital, seguros, comércio,
adicionais sobre impostos sobre o patrimônio, impostos para esforço de
guerra, taxas e adicionais relacionados à Comunidade Européia) e para os
estados (imposto sobre fortunas, sucessões, veículos, cerveja, movimen-
tação e transação de bens não alcançados pela União, jogos). O imposto
de renda (pessoa física e jurídica) e o imposto sobre valor agregado (IVA)
são partilhados entre União e estados. As comunidades (die Gemeinden)
recebem cotas-partes do imposto de renda e do IVA. Elas arrecadam,
ainda, impostos sobre o consumo local e sobre o serviço profissional, com
cobrança de adicionais em favor da União e dos estados.
O art. 107 trata, basicamente, de partilha de receitas. Lei federal, com
aprovação do Senado (Bundesrat), fixa a parcela dos estados na arreca-
dação do imposto de renda recolhido pelas empresas e assalariados em
suas jurisdições. A cota-parte dos estados no produto da arrecadação do
IVA é fixada pro rata, de acordo com o número de habitantes, mas lei
federal, com aprovação do Senado, pode prever cota-parte complemen-
tar a estados cuja receita per capita (tributos próprios e participação no
imposto de renda das pessoas físicas e jurídicas) seja inferior à média do
conjunto dos estados. O art. trata de outras regras de auxílio aos estados
para que consigam cumprir suas obrigações financeiras.
O art. 108, fundamental para o funcionamento do sistema tributário
alemão, cuida da administração fiscal. Tributos aduaneiros (inclusive
o IVA sobre importações), monopólios fiscais e impostos sobre con-
sumo regidos exclusivamente por legislação federal são administrados
pela União. Exceção feita a esses tributos, as administrações tributá-
rias estaduais cobram os demais tributos, mesmo que as receitas sejam,
Constituição de 1988: a hipertrofia tributária e suas consequências 945

integral ou parcialmente, da União, caso em que atuam como delega-


das da Federação. Além disso, podem, também por delegação, cobrar
os impostos das Comunidades. A organização dos fiscos estaduais e
a formação de seus servidores podem ser reguladas por lei federal,
com aprovação do Senado, que pode estabelecer, ainda, a cobrança
conjunta (Federação e estados) de certos impostos. Os diretores dos
níveis intermediários do fisco federal são nomeados após consulta aos
governadores; em contrapartida, os servidores estaduais do nível inter-
mediário são nomeados em comum acordo com o governo federal.
Vários comandos constitucionais contidos nos artigos acima atribuem
ao Senado a tarefa de legislar sobre matérias que envolvam tributos
partilhados. Os demais artigos do Capítulo X tratam de direito finan-
ceiro ou orçamentário.
É interessante registrar que a bancada dos estados é proporcional à
população e os “Senadores” são indicados pelos governadores, nos ter-
mos do art. 51.
Como se vê, o federalismo fiscal alemão é fundado não somente na
partilha de receitas tributárias, mas também na co-responsabilidade
das administrações tributárias, federal e estaduais, em arrecadar, fisca-
lizar, controlar e repassar os tributos uns dos outros.
Chama a atenção o fato de que a Constituição alemã não estipula,
nem no capítulo fiscal, nem no capítulo dos direitos fundamentais
(arts. 1 a 19), as tradicionais garantias ao contribuinte (princípios da
legalidade, anterioridade, etc.), que provavelmente são estabelecidas
no Código Tributário Alemão.

c) Canadá

A Constituição canadense de 1867 (Constitutional Act) trata da ques-


tão fiscal nos arts. 102 a 126, que formam a Seção VIII (Revenues,
debts, assets, taxation).
O art. 102 prevê a criação do Fundo Consolidado, formado pelos tri-
butos federais e destinado a financiar o serviço público canadense. Os
artigos que se seguem tratam de outras regras de finanças públicas, até
o art. 121, que prevê o trânsito, sem tributação, de bens e produtos entre
as províncias. O art. 122 mantinha em vigor os tributos aduaneiros e
os impostos específicos (excise taxes) existentes à época da aprovação
da Constituição, até que fossem alterados pelo Parlamento, dispositivo
superado por regulamentação posterior. O art. 123 estabelecia regras
946 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

aduaneiras para os casos de importação e circulação de bens e produtos,


envolvendo a União e províncias, dispositivo também superado. O art.
124 tratava da tributação sobre atividade madeireira em New Brunswick,
dispositivo que foi revogado. O art. 125 estabelece a imunidade tribu-
tária para as terras e as propriedades da União e das províncias. O art.
126 prevê que as receitas tributárias próprias das províncias, bem como
as decorrentes de partilha da receita da Federação, formarão um fundo
único de receitas consolidado.
Fora da Seção VIII, destacamos o rito especial criado para as “leis
financeiras” (Money Votes), aquelas que impõem tributos ou destinam
receitas públicas. A tramitação inicia-se na Câmara dos Deputados
(House of Commons), exigindo-se que o projeto tenha sido recomenda-
do pelo governador geral, nos termos dos arts. 53 e 54.
Há, ainda, autorização para que cada província estabeleça a tributação di-
reta dentro de seu território, de acordo com os arts. 91, “1”, e 92, “2”, bem
como a cobrança de impostos sobre recursos não renováveis, indústria
madeireira, produtos primários e energia elétrica, na forma do art. 92-A.
A representação das províncias no Senado também não é uniforme,
conforme o art. 22, ainda que a desproporção original tenha sido mi-
tigada por alterações posteriores.
A Constituição canadense sofreu um processo de modernização em
1982. Dentre as novas regras estabelecidas (Schedule B to the Consti-
tution Act), o art. 36, “2”, constante da seção que cuida do equilíbrio
regional (Part III: Equalization and Regional Disparities), estabeleceu
princípio pelo qual o Parlamento e o Governo do Canadá se com-
prometem em assegurar que as províncias tenham receitas suficientes
para prestar serviços públicos razoáveis e comparáveis (com os pres-
tados pelas demais províncias), garantindo-se um nível de tributação
razoável e comparável (com o suportado nas demais províncias).

d) México

A Constituição mexicana de 1917 (Constitución Política de los Estados


Unidos Mexicanos) contém os seguintes dispositivos tributários.
O art. 73, VII, autoriza o Congresso a estabelecer os tributos (contri-
buciones) necessários para cobrir as despesas orçamentárias, iniciando-
se a tramitação das leis tributárias pela Câmara dos Deputados, con-
forme o art. 72, H. Já o inciso XXIX, “a”, do referido art. 73, autoriza
o Congresso a cobrar tributos sobre comércio exterior, exploração de
Constituição de 1988: a hipertrofia tributária e suas consequências 947

determinados recursos naturais, instituições financeiras, prestação de


serviços públicos e alguns impostos especiais (energia elétrica, tabaco,
gasolina e derivados de petróleo, fósforos, exploração florestal, cerve-
ja). Esses impostos especiais são partilhados com os estados na pro-
porção determinada por lei federal especial (ley secundaria federal). As
câmaras locais (legislaturas locales) podem fixar percentual do imposto
sobre energia elétrica para os municípios.
O art. 115, IV, trata das receitas dos municípios, que são fixadas por
legislação local, compondo-as, de toda forma, os tributos sobre pro-
priedade imobiliária, inclusive sua transmissão, e as participações re-
passadas pela Federação. Curiosamente, esses tributos imobiliários e
a forma, o prazo e as bases para os repasses federais são estabelecidos
pelas legislaturas dos estados, respeitadas as imunidades dos bens de
domínio público de todos os entes federativos.
Os arts. 117, IV a VII, vedam aos estados a imposição de tributos
sobre o trânsito de mercadorias e pessoas pelos seus territórios, bem
como o tratamento tributário diferenciado em função da procedência
da mercadoria. Na mesma linha, o art. 118, I, proíbe os estados de
cobrarem tributos sobre importações e exportações. Essa competência
é reservada à Federação, nos termos do art. 131, podendo o Congresso
autorizar o Poder Executivo a aumentar ou reduzir tais tributos.
São encontrados, ainda, dispositivos constitucionais que visam esta-
belecer um duro controle fiscal sobre os contribuintes. Por exemplo,
o art. 27, que trata de desapropriação de terras e outras propriedade
privadas, em seu inciso VI, fixa a indenização no valor declarado pelo
proprietário para fins fiscais, somente se sujeitando a avaliação ad-
ministrativa ou judicial as melhorias ou deteriorações ocorridas pos-
teriormente à última declaração ao fisco. Já o art. 123, que trata da
participação dos trabalhadores nos resultados da empresa, estabelece
como base dessa participação o lucro declarado para fins de imposto
de renda, podendo os empregados levantar objeções quanto ao mon-
tante declarado e solicitar as averiguações que entenderem necessárias,
nos termos do inciso IX, “e”, do referido art..
Esses comandos eram consentâneos com o espírito revolucionário da
época de promulgação da Constituição mexicana, mas podem estar, na
prática, superados pela onda liberalizante por que passou aquele país,
sendo a instalação das maquiladoras, na região próxima da fronteira com
os Estados Unidos, o clássico exemplo (tributário) desse fenômeno16.

Para uma visão do regime tributário das maquiladoras, v. PRICEWATERHOU-


16

SECOOPERS (2003b), p. 520-521.


948 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

e) Federação Russa

A Constituição da Federação Russa de 1993 trata a questão tributária


com muita parcimônia.
O art. 57 estabelece o dever de todos pagarem os tributos legalmente
devidos, proibindo o efeito retroativo das leis tributárias.
O art. 71 delega à Federação a competência para dispor sobre os orça-
mentos e impostos federais, bem como sobre os fundos de desenvolvi-
mento regionais. O art. 72, “1”, “i”, determina a competência conjunta
da Federação e entes federados para estabelecer normas gerais de tri-
butação.
O art. 74 proíbe a criação de aduanas internas, bem como de outras
restrições à movimentação de mercadorias e serviços dentro do terri-
tório da Federação, exceção feita à possibilidade de a lei federal estabe-
lecê-las em razão de segurança, saúde, proteção ao meio ambiente ou a
valores culturais. O art. 74, “3”, atribui à lei federal a competência para
fixar os impostos federais, cuja aprovação é feita pela Câmara dos De-
putados (Duma) e deve ser acatada pelo Senado Federal (Conselho da
Federação), nos termos do art. 106, “b” (tributos federais) e “c” (tributos
aduaneiros). O art. 75 delega à lei federal competência para estabeleci-
mento das normas gerais dos impostos federais, bem como dos princí-
pios gerais de tributação, aplicáveis em toda a Federação Russa.
O art. 104, “3”, impõe restrições ao projeto de lei que cria ou suprime
impostos ou que estabeleça benefícios fiscais, cuja tramitação inicia-se
na Duma, mediante resolução do Governo da Federação Russa.
O art. 132, “1”, determina que os governos locais estabeleçam os tri-
butos locais.
Interessante notar que a Federação Russa é constituída por uma ex-
tensa lista de repúblicas, territórios, regiões, cidades federais (Moscou
e São Petersburgo) e áreas autônomas (art. 65, “1”), sendo que cada
ente federativo participa com dois representantes no Senado, sendo
um deles escolhido pelo Poder Legislativo e outro pelo Poder Execu-
tivo locais (art. 95, “2”).
Deve ser ressalvado, ainda, que a inclusão da Federação Russa no pre-
sente rol é bastante discutível. Embora desde a derrocada da União So-
viética tenha havido eleições diretas para escolha dos principais cargos
com relativa regularidade, é duvidoso que seus governantes estejam de
fato constrangidos aos obstáculos inerentes aos regimes democráticos
substanciais. A questão tributária não passa ao largo dessa deficiência
Constituição de 1988: a hipertrofia tributária e suas consequências 949

democrática. Como foi amplamente noticiado pela imprensa, investi-


gações fiscais podem ter sido utilizadas como arma política17.

f) Índia

A Constituição da Índia de 1949 (The Constitution of India) é um pá-


reo duro para a Constituição brasileira em termos de quantidade de
dispositivos de natureza tributária.
Antes de abordá-los, temos que contextualizar o surgimento da Cons-
tituição indiana. Ela foi aprovada no bojo da independência da Grã-
Bretanha e da diáspora religiosa entre, de um lado, hindus e siks, que
majoritariamente permaneceram na Índia, e, de outro, muçulmanos,
que majoritariamente se deslocaram para o Paquistão, Ocidental e
Oriental18.
Talvez isso explique uma série de dispositivos constitucionais pou-
co usuais, como, por exemplo, a não obrigatoriedade de pagamento
de tributos destinados a financiar ou promover algum culto religioso,
regra inscrita no art. 27. Também esse deve ser o motivo pelo qual
grande parte do arcabouço constitucional dos estados indianos é en-
contrado na própria Constituição Federal, em réplica quase perfeita
dos preceitos aplicáveis ao nível central de governo. Essa opção do
Constituinte Originário indiano deve ter sido tomada para prevenir o
separatismo e evitar fracionamento ainda maior da nação.
Feitas essas observações, vejamos algumas das muitas normas tributá-
rias contidas na Constituição indiana.
No Capítulo I (Finance) da Parte XII (Finance, property, contracts and
suits) estão contidos os arts. 265 a 290-A, que criam inúmeras regras
tributárias. Vejamos as mais importantes.
O art. 265 estabelece o princípio da legalidade tributária. Os arts. 268
e 267 criam o Fundo Consolidado da Índia, o Fundo Consolidado
dos Estados e o Fundo de Contingências, todos financiados por re-
ceitas tributárias. Esses fundos desempenham papel crucial na parti-
lha do bolo tributário. O art. 268 prevê o imposto (excise tax) sobre
medicamentos e cosméticos, de competência da União, mas coletado

17
V. por exemplo o caso da Yukos Oil Co, autuada em US$ 3,4 bilhões, com de-
cretação da prisão de seu sócio – Mikhail Khodorkovsky – supostamente com o
intuito de afastá-lo da política. Detalhes disponíveis em http://news.bbc.co.uk/1/hi/
business/3213505.stm.
18
O Paquistão Oriental, em 1971, tornou-se a nação independente Bangladesh.
950 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

e apropriado pelos estados. O art. 268-A estabelece o imposto sobre


serviços, estabelecido, coletado e apropriado por União e estados, nos
termos da lei. O art. 269 cria o imposto sobre bens, estabelecido e
coletado pela União, com repasse de recursos para os estados. O art.
270 atribui à União os demais tributos da Union List, todos eles esta-
belecidos e coletados pelo governo central. O art. 271 autoriza o Par-
lamento a aumentar, a qualquer tempo, os tributos mencionados nos
arts. 269 e 270, mediante imposição de adicional para a União, sendo
os recursos carreados para o Fundo Consolidado da Índia. O art. 273
previa a compensação de alguns estados pela exportação de juta, mas o
dispositivo não se encontra mais em vigor. O art. 274 prevê iniciativa
exclusiva do Presidente da República para os projetos que modifiquem
impostos de interesse dos estados ou que alterem a definição de renda
agrícola para fins de imposto de renda. O art. 274 atribui à lei fede-
ral a tarefa de fixar repasses do Fundo Consolidado da Índia para os
estados. O art. 276 autoriza os estados e as comunidades a cobrarem
impostos sobre atividades profissionais e sobre negócios, tributos que
não podem superar 2.500 rúpias por ano para cada contribuinte. O
art. 277 mantém sob a competência dos estados e municípios, até que
lei federal disponha em contrário, os tributos que pertenciam a esses
entes e que se tornaram federais após a aprovação da Constituição. O
art. 279 define “receita líquida” do tributo, assim entendida sua arreca-
dação menos os custos da administração tributária. A “receita líquida”
será o parâmetro de distribuição e partilha de recursos a estados e
municípios. O controlador-auditor geral da Índia é o responsável pela
validação do cálculo das “receitas líquidas”. Os arts. 280 e 281 tratam
da Comissão de Finanças, que recomenda ao Presidente da República
a distribuição das “receitas líquidas” partilhadas com os estados, bem
como os repasses do Fundo Consolidado da Índia para os estados e os
do Fundo Consolidado dos estados para os municípios e localidades,
dentre outras medidas de ordem fiscal. Os arts. 282 e 284 estabelecem
regras para os fundos consolidados e medidas de controle administra-
tivo. O art. 285 estabelece a imunidade das propriedades da União em
relação aos tributos estaduais. O art. 286 veda a cobrança de tributos
estaduais sobre compra e venda de bens quando a operação é realizada
fora do território do estado ou quando ela se caracteriza como uma
operação de importação ou exportação. O Parlamento pode impor
restrições e regras tributárias para as operações interestaduais. Os arts.
287 e 288 estabelecem imunidade para os impostos estaduais sobre
energia elétrica e água, sob certas circunstâncias (por exemplo, no caso
de energia utilizada nas ferrovias). O art. 289 estabelece imunidade
Constituição de 1988: a hipertrofia tributária e suas consequências 951

das propriedades dos estados em relação aos tributos federais. O art.


290 prevê recursos para outro fundo (Devaswom Fund).
Diversas outras regras tributárias são localizadas ao longo do Texto
Constitucional indiano, como, por exemplo, a supra citada dispensa de
pagamento de tributos de índole religiosa. Além disso, a competência
tributária residual da União é reforçada no art. 248, cabendo ao Parla-
mento estabelecer o novo tributo.
Na Constituição indiana também são encontrados os ritos especiais
para aprovação das “leis financeiras” (Money Bills), tanto no nível fe-
deral (arts. 109 e 110), como no estadual (art. 198 e 199). O projeto
inicia-se na Câmara dos Deputados (House of the People) e, aprova-
do, segue para o Senado (Concil of States), que tem prazo para sua
apreciação. Caso não apreciado nesse prazo, ele é compulsoriamente
promulgado e colocado em vigor. As leis sobre a matéria tributária são
consideradas Money Bills, conforme o art. 110, “a”.
Outra novidade é a possibilidade de se criarem Panchayats, autogover-
nos localizados em zonas rurais, os quais são autorizados pelo Poder
Legislativo dos estados a estabelecer impostos, nos termos dos arts.
243-H e 243-I, autorização que também pode ser dada pelos estados
aos municípios, de acordo com os arts. 243-X e 243-Y.
Esses são apenas alguns exemplos das normas tributárias fora do ca-
pítulo próprio, o que nos leva a crer que não sejamos os campeões
mundiais em quantidade de dispositivos constitucionais-tributários.
A Índia talvez nos supere na disputa desse duvidoso troféu.

g) Argentina

A Constituição argentina de 1994 (Constitución Nacional) é das mais


lacônicas em matéria fiscal-tributária. Ela não contém uma seção pró-
pria sobre tributação e nem mesmo sobre orçamento ou finanças pú-
blicas em geral.
E são raras as referências tributárias, encontradas de forma esparsa
pelo texto constitucional. A coleta de tributos é prevista de forma ge-
nérica nos arts. 4º e 17. O princípio da isonomia tributária é encontra-
do no art. 16. Nos arts. 20 e 25, impede-se a cobrança de contribuições
especiais e de impostos sobre os estrangeiros que venham “lavrar a ter-
ra, melhorar a indústria e introduzir ou ensinar as ciências e as artes”.
A atribuição do Congresso para dispor sobre tributos aduaneiros e
contribuições diretas e indiretas é encontrada no art. 75, “1” e “2”.
952 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

O art. 52 estabelece a iniciativa exclusiva da Câmara dos Deputados


sobre tributos (contribuciones), e o art. 99 veda ao Poder Executivo
baixar leis tributárias, mesmo em situações excepcionais.

3. Conseqüências da hipertrofia da normatização


constitucional-tributária

Como se vê, exceção feita à Índia, a opção dos grandes países, fede-
rativos, democráticos e economicamente diversificados tem sido pela
relativa parcimônia na inclusão de normas fiscal-tributárias nas suas
respectivas constituições. Portanto, a alternativa brasileira, no sentido
oposto, não encontra inspiração na experiência internacional. E, pior,
ela não é isenta de conseqüências.
Além dos problemas já expostos neste art., lembramos as conclusões de
Carvalho (2008). A excessiva “constitucionalização” da tributação acarre-
ta, sim, graves problemas, dificultando o funcionamento do sistema tribu-
tário, que se pretende mais ágil, dada a dinâmica econômico-social de um
país que ainda padece de desequilíbrios de todas as ordens.
Também é verdadeiro que, sempre premido por problemas de ordem
fiscal-tributária, o legislador é obrigado a alterar constantemente as nor-
mas constitucionais, “desmoralizando-as”, na feliz expressão do autor.
Ademais, os julgados dos tribunais superiores são, muito freqüente-
mente, desconexos e contraditórios, quando não em completa afron-
ta à jurisprudência anterior. Alguns deles tornam a interpretação e
a aplicação do direito tributário uma verdadeira aventura. Além dos
exemplos citados pelo autor, podemos agregar os seguintes, que consi-
deramos particularmente delicados: as inúmeras decisões conflitantes
sobre a decadência do direito de se efetuar o lançamento, por parte do
fisco, e do direito de restituição de indébito, por parte do contribuin-
te19; a verdadeira balbúrdia que se tornou o aproveitamento de crédi-
tos do IPI, quando são adquiridos insumos em operações desoneradas

19
Uma resenha sobre as idas e vindas das posições judiciais a respeito de decadência
e prescrição encontra-se no voto da min. Eliana Calmon, no RESP Nº 987.943-SC.
Embora trate-se de julgado do STJ, o caso envolve evidentes questões constitucio-
nais e deverá ser apreciado pelo STF.
Constituição de 1988: a hipertrofia tributária e suas consequências 953

do tributo20; a interpretação amplificada do instituto da imunidade


tributária, com decisões que, potencialmente, podem esfrangalhar a
ordem econômica21.
Mas não poderia ser diferente. O deslinde do contencioso tributário
exige do julgador o domínio profundo de uma série de outros ramos
do conhecimento (contabilidade, economia); ele precisa conhecer
detalhes comezinhos dos bens, mercadorias e serviços, assim como
de seu processo produtivo; ele deve ser capaz de enxergar a essência
de complexas operações patrimoniais entre os agentes econômicos,
dentre outros requisitos. Essa minudência, essa visão especializada de
cada detalhe, de cada aresta do caso em julgamento é incompatível
com decisões que se esperam de uma Corte Constitucional, que nor-
malmente são calcadas em conceitos abstratos e princípios gerais e
vocacionadas a dirimir questões que tangenciam a jus-filosofia.
A esses inconvenientes apontados por Carvalho (2008) adicionamos
outro, a nosso ver, não menos importante.
A questão fiscal-tributária, por vezes, extrapola seu locus próprio e
influencia a produção de normas materialmente constitucionais de
transcendental importância para evolução histórica do nosso ordena-
mento jurídico.
O exemplo mais saliente desse fenômeno é, sem dúvida, a ação de-
claratória de constitucionalidade, inserida na Constituição por meio
da Emenda Constitucional nº 3, de 1993, que trata de matéria de

20
O RE 212.484-RS reconheceu o direito de aproveitamento de crédito de IPI na
aquisição de insumos isentos. O RE 350.446-PR estendeu esse direito à aquisição
de insumos sujeitos a alíquota zero. Esses julgados praticamente inviabilizam a tra-
dicional sistemática de apuração do tributo, que, desde a década de 60, utiliza-se
do mecanismo de confronto entre o imposto destacado nas notas fiscais de saída e
o destacado na nota de entrada. No caso dos insumos isentos, a alternativa mais
adequada parece ser a utilização da alíquota da Tipi para as operações não isentas.
Mas, no caso dos insumos sujeito à alíquota zero, não há qualquer indicação, legal,
jurisprudencial ou administrativa sobre como o contribuinte deve proceder. Para
breve descrição da evolução da jurisprudência sobre o assunto, v. Alexandrino &
Paulo (2004), p. 160-161.
21
Levado ao extremo os termos do EDv RE 210.251-SP, uma entidade sem fins
lucrativos poderia produzir, em escala industrial, cigarros, energia elétrica, combus-
tíveis, bebidas, cosméticos e outros itens sem pagar impostos, desde que o produto
da venda fosse aplicado nas suas atividades fins. Isso colocaria em evidente perigo a
concorrência, especialmente em mercados nos quais a tributação é um dos maiores
componentes do custo das empresas com fins lucrativos. Para breve descrição da evo-
lução da jurisprudência sobre o assunto, v. Alexandrino & Paulo (2004), p. 111-114.
954 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

eminentemente fiscal-tributária22. O fato de a ADC ter sido aprovada


no bojo de uma PEC tributária, por si só, não significa grande coisa.
Por vezes, para facilitar o trâmite pelo processo legislativo, insere-se
matéria extravagante à temática nuclear do diploma em votação. Pro-
jetos de emenda constitucional não escapam dessa sina23. Mas, nesse
caso, não se tratou de uma simples “carona” legislativa. Pelo contrário,
a inclusão da ADC no nosso ordenamento teve como (irresistível)
motivação a questão fiscal.
À época, a arrecadação federal passava por um dos piores momentos
da história recente do país. A redemocratização havia arrefecido o te-
mor que o contribuinte tinha em litigar contra o Estado autoritário.
Os planos econômicos mostraram-se efêmeros e fracassados, deixando
para trás uma série de litígios jurídicos24. A promulgação de um novo
Texto Constitucional abriu novos horizontes de argumentação jurídi-
ca. A decepção com a abertura política, em particular com a primeira
eleição direta para Presidente da República, deslegitimou a cobrança
de tributos, especialmente frente às acusações de desvio de recursos
públicos25. Tudo isso contribuiu para a formação de um inédito volu-
me de contencioso judicial-tributário. Praticamente não havia tributo
que não enfrentasse uma importante querela nos tribunais26.
O Finsocial talvez fosse a exação em situação mais crítica. Estabele-
cido pelo Decreto-Lei nº 1.984, de 1982, ele era cobrado basicamen-
te sobre o faturamento27, com a modesta alíquota de 0,5%. Prevista
a manutenção da sua cobrança em caráter provisório no art. 56 do
ADCT, tentou-se simplesmente transformá-lo permanentemente
na contribuição sobre o faturamento prevista do art. 195, I, CF-88.
Depois disso, sua alíquota foi elevada para 1%, 1,25% e, finalmente,

22
A EC nº 3, de 1993 autorizou a criação do IPMF, revogou os adicionais de impos-
to de renda e o imposto sobre venda a varejo, previu a substituição tributária “para
frente”, além de tratar de outras matérias fiscais.
23
A EC nº 6, de 1995 é um exemplo: ela trata de micro e pequenas empresas; de
exploração de recursos minerais e potencial hídrico; e de regulamentação de dispo-
sitivos constitucionais por medida provisória.
24
Planos Cruzado (1986), Verão (1987) e Collor (1990), todos eles estabeleceram
algum tipo de desindexação da economia. Com a volta da inflação, as receitas tri-
butárias inevitavelmente perdiam grande parte de seu valor real até a produção de
efeitos da lei que reindexasse a economia.
25
Acusações que levaram ao impeachment do Presidente Collor (1992).
26
Relembramos, dentre outros, os seguintes casos: a diferença IPC-BTN e a Lei
nº 8.200, de 1991 (IRPJ); a inconstitucionalidade dos Decretos-Lei nº 2.443, de
1988 e 2.445, de 1988 (PIS/Pasep); a utilização de medida provisória em matéria
tributária (CSLL).
27
A prestação de serviços sujeitava-se a uma cobrança especial.
Constituição de 1988: a hipertrofia tributária e suas consequências 955

2%28. Praticamente todos os fundamentos da sua cobrança passaram


a ser litigados em juízo: a forma pela qual se tentou reinseri-lo no
ordenamento; o conceito de faturamento; a majoração das alíquotas; a
cobrança sobre prestação de serviços, dentre outros29.
Em vista dessa situação, a despeito da brutal elevação de alíquotas, a
arrecadação do Finsocial não reagia. Pelo contrário, sua receita real tor-
nou-se declinante: de US$ 6,7 bilhões (1,61% PIB), em 1990, para US$
5,8 bilhões (1,35% PIB), em 199130. A substituição pela Cofins, ainda
que efetuada mediante aprovação da Lei Complementar nº 70/9131, não
logrou sucesso em recuperar a capacidade arrecadatória da base sobre
o faturamento. Em 1992, as receitas da Cofins/Finsocial reduziram-se
ainda mais em termos reais: US$ 4,5 bilhões (1,01% PIB)32.
Em 18 de março, é publicada a EC nº 3/93; em 21 de julho de 1993,
o Presidente da República, as Mesas do Senado Federal e da Câmara
dos Deputados ingressam com a primeira ação declaratória de consti-
tucionalidade; superada a prejudicial de inconstitucionalidade da nova
espécie de ação, em 1º de dezembro de 1993, o Pleno do STF, por
unanimidade, declara a constitucionalidade da Cofins.
Os efeitos sobre a arrecadação foram imediatos: se, ao longo de 1993,
já havia uma leve recuperação para US$ 6,4 bilhões (1,34% PIB), em
1994, depois da decisão de mérito do STF, há um salto na receita da
Cofins para US$ 12,9 bilhões (2,42% PIB), recuperação que, diga-se
de passagem, auxiliou sobremaneira a implementação do Plano Real,
juntamente com outras medidas fiscal-tributárias33.
Como se vê, não foi por mero acaso que a ADC surgiu numa PEC
que tratava de matéria tributária. E louvamos a decisão do legislador
constituinte, não somente pelo papel desempenhado com sucesso no

28
A Lei 7.689, de 1988 tentou perenizar o Finsocial e as Leis nº 7.787, de 1989, nº
7.894, de 1989 e nº 8.147, de 1990 elevaram as alíquotas.
29
V. Paulsen ( 2006), p. 544-545 e 553-554.
30
Todos os dados de receitas contidos nessa seção foram obtidos nos estudos de
carga tributária da Secretaria da Receita Federal do Brasil disponíveis em www.
receita.fazenda.gov.br.
31
Cuidado posteriormente considerado excessivo pelo STF, cf. ADC nº 1.
32
Em 1992, nos três primeiros meses foi cobrado o Finsocial e nos demais, a Cofins.
33
De fato, entre 1991 e 1994, as receitas da União saltaram de US$ 70,3 bilhões
(16,12% PIB) para US$ 106,2 bilhões (19,9% PIB), o que deu um certo lastro fiscal
para o inventivo plano de desindexação da economia. Na realidade, o Plano de Ação
Imediata, que tratava basicamente de medidas fiscal-tributárias, antecedeu o Plano
Real. Informações disponíveis em http://www.fazenda.gov.br/portugues/real/pai.asp
956 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

combate ao flagelo inflacionário, conforme acima relatado, mas pelo


mérito intrínseco que esse tipo de ação possui34.
O que nos parece preocupante, todavia, é a forma pela qual a evolução
da Constituição foi brutalmente influenciada pela questão fiscal-tri-
butária. Afora a “faca no pescoço” com que os ministros do Supre-
mo decidem os bilionários casos tributários, o próprio rumo da nossa
história constitucional tem sido ditado por interesses fiscais, o que, a
nosso ver, configura inaceitável inversão de papéis: a evolução da nossa
Carta Magna é que deve nortear a da tributação, e não o contrário.

4. Conclusões e considerações finais

À guisa de conclusão, podemos afirmar que quase todos os grandes


países que, como o Brasil, enfrentam mais problemas do que os outros
para montar seu sistema tributário pouparam suas constituições da
tarefa de “regulamentar” detalhadamente a matéria fiscal-tributária.
No Brasil, optou-se por inserir uma volumosa quantidade de coman-
dos de natureza tributária na Constituição Federal, gerando uma série
de problemas, como o enrijecimento do sistema tributário; a sobrecar-
ga da Corte Constitucional, às voltas com questões técnicas menores;
a “desmoralização” da Carta Magna, freqüentemente mudada ao sabor
dos interesses dos grupos sociais mais poderosos e das necessidades de
caixa das Fazendas Públicas.
Ingenuidade pensar que esse processo ocorreu por acaso ou que será
facilmente revertido. A diminuição da “regulamentação” dos tributos
pela Constituição exigirá uma seqüência relativamente coordenada de
eventos. (a) A conscientização dos diversos grupos sociais e agentes
públicos de que, no campo fiscal, a realidade sempre ultrapassa co-
mandos normativos, sendo ilusória e efêmera a proteção que logram
obter do legislador constituinte. (b) O restabelecimento da boa fé
nas relações entre fisco e contribuinte, entre União, Distrito Federal,
estados e municípios, entre executivo, judiciário e legislativo, o que
somente se dará com a boa gestão dos recursos públicos, utilizados
sem desvios ou apropriações indevidas; com a total transparência das
informações econômico-fiscal, detidas pelas administrações fiscais
como instrumento de poder; e com a construção de um sentimento de
intolerância da sociedade com a evasão fiscal, passando a receita tri-
butária a ser vista como o bem público que é. (c) A desmontagem do

34
Deixamos de enumerar prós e contras a ADC, haja vista que extrapolaria os ob-
jetivos deste artigo.
Constituição de 1988: a hipertrofia tributária e suas consequências 957

aparato tributário-constitucional, que somente será possível se feita


de forma cuidadosa, deslocando os comandos constitucionais para a
legislação infraconstitucional, com inevitável enfrentamento dos seto-
res mais poderosos da sociedade, que, a despeito dos discursos contra
carga tributária, não nos enganemos, apostam no status quo.

Referências

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PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Constituição e código tributário à luz
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PRICE WATER HOUSE COOPERS. Corporate taxes: 2003-2004; worldwide
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_________. Individual taxes: 2003-2004; worldwide summaries. New Jersey : J.
Wiley & Sons. 2003b.
Tributação
959

”Desconstitucionalizar”
a tributação
Cristiano Viveiros de Carvalho

Introdução

A Constituição brasileira tem sido sempre acusada de analítica e de-


talhista; o seu capítulo sobre a ordem tributária testemunha decisi-
vamente em favor dessa imputação. Muito embora parte da doutrina
constitucional identifique certa tendência evolutiva de ampliação do
conteúdo das constituições, no rastro do alargamento do papel social,
político e econômico do Estado igualmente observado no decorrer do
último século1, de fato, quando se trata da disciplina dos tributos, o
constituinte de 1988 parece ter inserido no texto de nossa Lei Maior
regras que, seja da perspectiva histórica, seja do ponto de vista técnico,
em princípio melhor se localizariam em nível de lei ordinária ou mes-
mo de regulamento.
O alvo das críticas naturalmente não é a quantidade desses dispo-
sitivos abrigados no texto constitucional, embora também sob esse
aspecto elas talvez não carecessem de fundamento. Critica-se o conte-
údo desses dispositivos, a sua natureza, a sua compatibilidade com um
diploma normativo de nível tão elevado. Assenta-se assim o debate
sobre o pressuposto de que as regras do direito positivo se distribuem
– ou se deveriam distribuir –, pelos estratos hierarquicamente dispos-
tos que de acordo com a doutrina constitucional prevalecente consti-
tuem o ordenamento jurídico, segundo a natureza do seu conteúdo,
distinguindo-se entre normas de conteúdo essencialmente constitu-
cional – caracterizadas, entre outros predicados, por elevado grau de
abstração e generalidade –, e normas de natureza infraconstitucio-
nal, aprioristicamente predispostas a figurar em legislação ordinária
ou mesmo regulamentar. As primeiras se destinariam, ainda por essa
mesma doutrina, a expressar os princípios do sistema e suas diretri-
zes gerais de políticas públicas e de organização do Estado; às outras

1
SILVA, José Afonso: Curso de Direito Constitucional Positivo, pp. 46-7; BONAVI-
DES, Paulo: Curso de Direito Constitucional, pp. 64 e ss.
960 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

incumbiria condensar e densificar aqueles princípios e diretrizes em


comandos normativos mais concretos, capazes de efetivamente vincu-
lar os comportamentos e disciplinar os fatos do mundo real2.
Aceito esse pressuposto, ao menos no que tange ao capítulo da ordem
tributária, apontam-se normas que figuram no texto da Carta Política a
despeito de não conterem, em absoluto, matéria intrinsecamente destina-
da a integrar plano tão elevado. Em geral, por demasiadamente concreta.
Mas a crítica soaria como preocupação meramente acadêmica, caso
não demonstrados inconvenientes práticos, sérios e relevantes para o
funcionamento do Estado, decorrentes dessa configuração normativa
que se denuncia errônea. Não houvesse, com efeito, problemas dignos
de nota: cerceamento de direitos, desequilíbrios econômicos, desvios
sociais enraizados no solo envenenado por esse desenho equivocado
da ordem jurídica, o tema não mereceria maior destaque no conjunto
de hipóteses que a meditação teórica costuma fomentar. O presente
trabalho parte da premissa de que existem, sim, problemas, inconve-
nientes e deformidades imputáveis a essa “inturgescência” constitucio-
nal, principiando pela rigidez que acomete algumas dessas regras sim-
plesmente por se terem tornado matéria constitucional3, mesmo que
seu conteúdo não o requeira – ou ainda que o rejeite, por incompati-
bilidade. Tais obstáculos passam ainda pela excessiva judicialização do
processo econômico e pela complexidade da definição de conceitos e
marcos legais importantes, para afinal desaguarem na perda de eficácia
impositiva das próprias normas constitucionais.

1. Que normas tributárias convém inscrever


na Constituição?

Para efeito de organização do pensamento, parece conveniente esta-


belecer, de início, uma classificação das regras que compõem a Cons-
tituição de acordo com o seu conteúdo material. Nesse intuito adota-
se a divisão proposta por José Afonso da Silva, que distingue cinco
categorias de “elementos das constituições”: (I) orgânicos, (II) limitati-

2
Não é o escopo deste trabalho aprofundar as discussões teóricas sobre o tema,
que resvalam no debate acerca da força normativa da Constituição, ou das nor-
mas constitucionais, em função de seu conteúdo específico, com as considerações
já exaustivamente elaboradas pela doutrina moderna a respeito dos destinatários
dessas normas, dos mecanismos de interpretação de seus conteúdos e do seu grau
de eficácia concreta.
3
Conforme a abalizada doutrina de José Afonso da Silva (op. cit., loc. cit.), entre
vários autores.
“Desconstitucionalizar” a tributação 961

vos, (III) sócio-ideológicos, (IV) de estabilidade constitucional e (V)


formais de aplicabilidade. As normas que costumam compor textos
constitucionais se distribuem por esses elementos segundo a natureza
de suas disposições: (I) regulem a estrutura do Estado e do poder; (II)
consubstanciem direitos e garantias fundamentais; (III) firmem com-
promisso para a atuação do Estado, entre a orientação individualista
e a intervencionista; (IV) assegurem a solução dos conflitos constitu-
cionais e a defesa da própria Constituição; ou (V) estatuam as regras
de aplicação da Constituição. As normas que estabelecem o funciona-
mento do sistema tributário são tomadas, no entanto, em seu conjun-
to, e ficam todas localizadas, como capítulo, na primeira categoria, a
dos elementos orgânicos destinados a regular a estrutura do Estado4.
Sem qualquer pretensão de dogmatizar sobre o tema, dentro dos li-
mites estritos do presente estudo, propõe-se dividir e classificar indi-
vidualmente os dispositivos do capítulo sobre a ordem tributária – em
lugar de considerá-los todos como um elemento único –, em pelo me-
nos três subgrupos:
a) o primeiro, reunindo as normas que estabelecem garantias para o
contribuinte frente ao poder impositivo do Estado, correspondente
à precitada categoria dos elementos limitativos;
b) o segundo, enquadrando as normas destinadas a regular as interfe-
rências entre os membros da Federação, como as que fixam a repar-
tição das competências tributantes de cada nível de poder; as que
regulam a divisão de atribuições nas zonas de interseção entre essas
competências, visando a prevenir o surgimento de tensões; e tam-
bém as que fixam os critérios de repartição das receitas tributárias;
c) o terceiro subgrupo, por fim, concentrando a disciplina dos aspectos
e regras específicos de cada tributo, bem como do seu processamen-
to e administração.
Às normas enfeixadas nos dois primeiros subgrupos parece razoável
reconhecer conteúdo materialmente constitucional5. Trata-se, afinal,
ou de enumerar direitos do cidadão contribuinte, ou de disciplinar

4
SILVA, J.A., op. cit., loc. cit..
5
Certa doutrina, como se sabe, divide as normas constitucionais em materialmente
constitucionais – que têm conteúdo característico de norma destinada a integrar
a Constituição –, e formalmente constitucionais – que são constitucionais apenas
por constarem do texto da Constituição. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência
majoritária não hesitam em atribuir a toda norma constitucional idêntica força nor-
mativa, no entanto, independentemente de o seu conteúdo considerar-se material-
mente ou formalmente constitucional.
962 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

o relacionamento entre as unidades federativas, no que tange à re-


partição da receita pública. Com o último subgrupo, porém, dá-se o
inverso. Além de não apresentarem natureza intrinsecamente consti-
tucional, parece que a elevação das normas que o integram a esse status
privilegiado produz mais inconvenientes do que benefícios.

1.1. Direitos e garantias do contribuinte

Os princípios enumerados em 1988 como garantias do contribuinte


em geral não discrepam da tradição constitucional brasileira. Ao lado
daqueles que já integravam os textos constitucionais desde os primór-
dios de nossa existência republicana – como o princípio da legalidade,
por exemplo –, também figuram na atual Carta Política institutos que,
conquanto jamais alçados a esse elevado patamar normativo no passa-
do, já se poderiam considerar sedimentados na ordem jurídica pátria
há muito tempo, aceitos pacificamente em sede de doutrina, jurispru-
dência ou mesmo de legislação ordinária, de maneira que sua inscrição
na chamada Lei Fundamental, parece razoável afirmar, surtiu efeito
meramente declaratório, não constituindo de fato direito novo.
O mencionado princípio da legalidade, com efeito, segundo o qual
“[é] vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (...)
exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça” (art. 150, I, da Cons-
tituição em vigor), já vinha inscrito no § 30 do art. 72 da Constituição
de 18916, e desde então só não constou – sintomaticamente – do texto
adotado em 1937. Também o princípio da anterioridade – entendido
como a proibição de cobrar tributo no mesmo exercício em que publi-
cada a sua lei instituidora (art. 150, III, “b”) – assumiu posição entre
as normas constitucionais expressas já em 1946 (art. 141, § 34)7, na
forma de uma subordinação dessa cobrança à prévia autorização or-
çamentária. A redação que lhe deu o art. 150, III, da Constituição de
1988 aperfeiçoa a anterior – levando em conta até mesmo o Código
Tributário Nacional e o texto de 1967, emendado em 1969 –, fixando
melhor o exato conteúdo dessa garantia quanto a dois aspectos dis-
tintos: a proibição de cobrar tributos (I) em relação a fatos geradores

6
“Art. 72. ......................................................................................................................
§ 30 – Nenhum imposto de qualquer natureza poderá ser cobrado senão em virtude
de uma lei que o autorize.”
7
“Art. 141. ....................................................................................................................
§ 34 – Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; ne-
nhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressal-
vada, porém, a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra. (grifado).
“Desconstitucionalizar” a tributação 963

ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído


ou aumentado (art. 150, III, “a”); e (II) no mesmo exercício financeiro
em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou (art.
150, III, “b”).
Outros dispositivos há, finalmente, que foram alçados ao nível de
matéria constitucional apenas em 1988. Tal é o caso da “vedação ao
confisco” (art. 150, IV), cujo conteúdo, inegavelmente fluido e subjetivo,
fica por ser delimitado e declarado pelo Poder Judiciário em cada caso
concreto8. É certo que essa disposição já havia sido objeto de conside-
ração, no regime constitucional anterior, à guisa de princípio implícito,
ancorado no direito à propriedade privada, vale dizer, a proibição de uso
de tributo com efeito de confisco se questionava, então, por colocar em
risco o direito à propriedade9. A Carta Política vigente, ao acolhê-lo
expressamente, pretendeu enfatizar sua importância como limitação ao
poder tributante do Estado e, a contrario sensu, garantia do contribuinte,
mas não seria correto afirmar que tenha criado direito novo.
Em resumo, a explicitação no texto constitucional de uma posição
do constituinte em relação a questões principiológicas, ainda mais no
caso daquelas que já tenham produzido debate nos meios jurídicos ou
sociais, não apresenta, em exame preliminar, inconveniente de relevân-
cia do ponto de vista da aplicação cotidiana do direito constitucional.
Ao contrário, nesse passo a norma constitucional opera como diretriz
para o legislador, para o administrador e para o julgador, exercendo
assim de fato o seu papel natural e, geralmente, aproveitando-se dos
conceitos já sedimentados pelo debate doutrinário e jurisprudencial.

1.2. Repartição de competências e


relacionamento federativo

No segundo subgrupo da classificação acima proposta, registram-se


as normas destinadas a regular e disciplinar as relações entre os entes
da Federação, no que concerne (i) à divisão da competência tributária,
(ii) às interferências mútuas, no exercício do seu poder de tributar, e

8
Conforme o entendimento majoritário do STF. Veja-se, sobre o tema, entre ou-
tros, o voto do Ministro Celso de Mello na concessão liminar de suspensão de
vigência do art. 3º da Lei nº 8.846/94 (ADI nº 1.075-DF), em que se discute a
concretização do conceito aberto de “efeito confiscatório” dos tributos. Na mesma
linha de entendimento, ADI nº 1.094-D, Relator o Min. Carlos Velloso.
9
MACHADO, Hugo de Brito: Curso de Direito Tributário, p. 47. ROSA JR. Luiz
Emygdio: Manual de Direito Financeiro e Direito Tributário, p. 320. TORRES, Ri-
cardo Lobo: Curso de Direito Financeiro e Tributário, p. 66.
964 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

(iii) ao compartilhamento de receitas fiscais. A primeira dessas sub-


categorias abriga os arts. 153 a 156 da Constituição, que enumeram
expressamente os impostos da União (arts. 153 e 154), dos estados
(art. 155) e dos municípios (art. 156).
Parece razoável afirmar que, a despeito das alterações efetivamente
realizadas no mérito, em relação à ordem constitucional pretérita, a
disciplina constante no texto de 88 em relação à distribuição de com-
petências tributantes pouco inovou10. Seguindo a tradição constitu-
cional brasileira, fez-se uma divisão dos impostos entre a União, os
estados e os municípios, baseada em um misto de critérios históricos
e técnicos. As diferenças observáveis com relação às disposições pas-
sadas dizem respeito sobretudo à atribuição de certas competências
específicas, como, por exemplo, a substituição dos impostos únicos
sobre combustíveis, lubrificantes, energia elétrica e serviços de comu-
nicação (antes da União), pelo ICMS (estadual), ou a repartição do
imposto sobre transmissão da propriedade imobiliária entre estados
e municípios – no regime anterior exclusivamente estadual, embora
parte significativa da receita coubesse ao município.
A tendência de se definir expressamente, já no texto constitucional,
os principais tributos e a pessoa jurídica de direito público competen-
te para sua imposição, em muitos casos até mesmo vinculando a sua
arrecadação a órgão ou despesa específica, marca presença na história
constitucional do Brasil desde o princípio. Por certo o grau de deta-
lhamento dessa divisão sofreu variações, desde a primeira constituição
republicana, mas o fundamental a observar, deixando de lado algu-
ma hesitação com relação a impostos específicos11, é a estabilidade de
critérios para a distribuição dos impostos entre os diversos níveis de
governo. Fundados em geral sobre a natureza dos seus fatos geradores,
grosso modo cabiam à União os impostos sobre a importação e a ren-
da; e aos estados, os incidentes sobre consumo12, sobre as exportações

10
Embora esse aspecto ultrapasse os limites do presente trabalho, convém chamar
atenção para o fato de que, não obstante as competências tributantes terem perma-
necido basicamente as mesmas, houve forte descentralização de receitas, da União
para Estados e Municípios. Os últimos vinte anos marcam-se também pelas inú-
meras tentativas de reconcentração de rendas, levadas a efeito principalmente por
parte da União.
11
O que espelha, muito provavelmente, meros ajustes tópicos em busca de uma
configuração ideal do ponto de vista da administração fiscal: é o caso, por exemplo,
do Imposto Territorial Rural (ITR).
12
Vendas e consignações, em 1934 e 1946; operações de circulação de mercadorias,
partir de 1967/69.
“Desconstitucionalizar” a tributação 965

de seus próprios produtos13 e parte dos incidentes sobre patrimônio


(mais especificamente, os que oneravam a transmissão de direitos pa-
trimoniais). Aos municípios restavam, em geral, os impostos sobre pa-
trimônio imobiliário urbano (desde 1934), e as taxas de licenciamento
e de serviços municipais.
Esse desenho se reproduz, embora com alguma variação, no texto da
Constituição de 88. Houve alterações importantes, sim, na repartição
efetiva do bolo de receitas, mas ao dividir a competência tributante o
constituinte se mostrou bastante conservador.
Diferença marcante, que importa registrar desde logo, refere-se ao fato
de que o constituinte aparentemente pretendia esgotar a disciplina do
ICMS, descendo a minúcias que melhor caberiam à lei complementar,
que ele próprio prescreveu, aliás, no art. 155. Em muitos dispositi-
vos desse art., a menção à lei complementar acaba assumindo ares de
mera formalidade, já que o próprio art. constitucional registra o que
nela se há de dispor, e como se há de fazê-lo. Ficam estabelecidos na
Carta, assim, não apenas diretrizes, princípios e normas gerais, como
seria recomendável, mas aspectos eminentemente técnicos, regras de
conteúdo quase procedimental, como em vários incisos do § 2º do
mencionado art. 155.
No segundo subgrupo arrolam-se também prescrições sobre a disci-
plina das interferências mútuas e dos pontos de interseção entre as
competências impositivas dos três níveis de governo: indispensáveis,
por assim dizer, em um regime federativo. É o caso, por exemplo, da
chamada imunidade recíproca, ou do que se poderia eventualmente
nomear princípio da “uniformidade territorial”, que veda à União “ins-
tituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou que
implique distinção ou preferência em relação a estado (...) em detrimento de
outro...” (art. 151, I), ou ainda o da vedação à limitação de tráfego por
meio da instituição de tributos (art. 150, V)14.
Parece razoável classificar ainda, junto a essa mesma estirpe de regras
constitucionais, a que proíbe a União de tributar “a renda das obriga-
ções da dívida pública dos estados, do Distrito Federal e dos municípios,
bem como a remuneração e os proventos dos respectivos agentes públicos,
em níveis superiores aos que fixar para suas obrigações e para seus agentes”
(art. 151, II), bem como a que, no art. 152, veda à União, aos estados

13
Até a Emenda nº 18, de 1965, à Constituição de 1946, quando o imposto sobre
exportações passou também à órbita da União.
14
Todos esses temas estão presentes no direito constitucional positivo brasileiro
desde 1891.
966 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

e aos municípios “estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de


qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino”. Todas essas
disposições ancoram-se em longa tradição constitucional brasileira e
não apresentam alteração relevante em relação ao modelo anterior.
Exceção quanto a esse aspecto, o inciso III do art. 151 traz uma veda-
ção, dirigida à União, quanto ao poder de “instituir isenções de tributos
da competência dos estados, do Distrito Federal e dos municípios”, inver-
tendo a orientação normativa em sentido diametralmente oposto ao
da regra vigente no direito anterior, que autorizava a chamada “isenção
heterônoma”, em determinadas situações15.
Não obstante essa discriminação expressa e taxativa das competências
de cada nível de governo para impor e arrecadar seus tributos, o texto
constitucional prescreve uma igualmente detalhada e rígida fórmu-
la de repartição dos recursos públicos. Segue-se tradição iniciada em
1934, então por meio de um singelo dispositivo (parágrafo único do
art. 10), que distribuía entre a União, os estados e os municípios as
receitas arrecadadas no exercício da competência residual concorrente
deferida à União e aos estados (art. 10, VII).
Essa prática de se estabelecer em nível constitucional critérios de par-
ticipação de uma unidade federativa nas receitas arrecadadas por outra
foi-se incrementando e aperfeiçoando com o tempo, para ser nota-
velmente exacerbada nos diplomas de 1967/69, quando se construiu
uma complexa estrutura de compartilhamento, grosso modo mantida
no texto atual. Parece razoável, em princípio, tal modelo de co-par-
ticipação, em uma federação como a brasileira. Caminha-se por seu
intermédio em direção à maior eficiência fiscal, dividindo-se as res-
ponsabilidades de acordo com a aptidão de cada nível de poder para
exercer de fato as atividades de regulamentação e fiscalização, em face
de suas estruturas administrativas, sem contudo debilitar o orçamento
dos outros níveis, aos quais se assegura o respectivo quinhão.

15
Mediante lei complementar e atendendo a relevante interesse social ou econômico
nacional – art. 19, § 2º, CF 1967; no caso de serviços públicos concedidos, quando a
União tivesse instituído mediante lei especial e em vista do interesse comum, isen-
ção relativa aos próprios serviços – art. 31, parágrafo único, CF 1946.
“Desconstitucionalizar” a tributação 967

O art. 162 da Carta de 8816 merece um registro especial, por estatuir


regra meramente procedimental: a obrigação dirigida às esferas en-
carregadas de arrecadar quanto à publicidade dos dados sobre essa
arrecadação, incluindo a estipulação de prazos para a publicação. Tra-
ta-se, nesse caso, de excessivo e dispensável preciosismo do constituin-
te, declarando formalmente um dever que aliás já está implícito nas
demais disposições sobre o tema, normatização que assume conteúdo
meramente político, porque, desprovida de sanção, carece também de
força bastante para, sem a intermediação da lei ordinária, vincular o
comportamento concreto dos agentes públicos. Nada obstante, não
se tem notícia de questões concretas relevantes surgidas com espeque
nesse dispositivo.
Dadas as características de nosso modelo federativo e a longa tradição
histórica, portanto, parece inevitável que as regras de que trata este se-
gundo subgrupo continuem a figurar em texto constitucional, mesmo
contrariando em certa medida as recomendações da doutrina, por ex-
cessivamente concretas17. Os custos políticos da mudança de orientação
normativa se poderiam mostrar excessivos, tanto mais considerando a
inexistência de problemas reais, relacionados a esses dispositivos.

1.3. Especificação de tributos e procedimentos fiscais?

O último conjunto em que se dividiram, neste estudo, as regras consti-


tucionais que compõem o capítulo da ordem tributária reúne especifi-
cidades concernentes a cada tributo e ao processamento administrati-
vo de sua arrecadação. É nesse subgrupo que se exacerba o já apontado
inchamento do texto constitucional de 88, com regras de caráter niti-
damente inferior. Esse fenômeno não constitui – convém desde logo
destacar – inovação do último legislador constituinte: trata-se de ten-
dência que desponta já em versões anteriores de nossa Lei Magna,
mas que sofreu um inegável processo de exasperação em 1988.

16
Art. 162. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios divulgarão, até
o último dia do mês subseqüente ao da arrecadação, os montantes de cada um dos
tributos arrecadados, os recursos recebidos, os valores de origem tributária entre-
gues e a entregar e a expressão numérica dos critérios de rateio.

Parágrafo único. Os dados divulgados pela União serão discriminados por Estado e
por Município; os dos Estados, por Município.
17
“... deve-se resistir à tentação de desorganizar esse documento [a constituição es-
crita] com emendas sobre questões muito concretas (...) que envolve a tolice evidente
de se pretender, hoje, resolver os problemas de amanhã. O risco mais insidioso desse
proceder, contudo, é o seu efeito danoso sobre a força moral da própria Constitui-
ção”. (Lon Fuller, apud ELY, J.H: Democracy and Distrust, p. 88 – traduzido).
968 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Tome-se como exemplo o § 2º do art. 155 da Constituição, que es-


miuça a disciplina do ICMS. Que sentido poderia haver em inscre-
ver-se, na Lei Fundamental do país, regras como as dos incisos II,
III, VII e VIII (entre outros)? Dispõem sobre a disciplina do apro-
veitamento de créditos nas operações isentas do imposto (inciso II);
da sua seletividade (inciso III); ou das alíquotas aplicáveis em opera-
ções interestaduais (incisos VII e VIII). Ainda que se argumente que
repercutem discussões presentes no Judiciário, naquele momento, ou
que procuram resolver – ou mesmo prevenir – disputas efetivamente
existentes entre estados, o fato é que se trata de normas excessivamen-
te concretas, de nível tipicamente infraconstitucional, conforme aliás
transparece na própria redação do inciso XII, que remete as definições
de contribuinte e responsável (substituto), do regime de compensação
do imposto, do local do fato gerador e da sua base de cálculo, entre
outros aspectos, à lei complementar.
Esse fenômeno reflete, na verdade, certa ansiedade do constituinte em
resolver disputas, nem sempre claramente manifestas e em geral difí-
ceis de identificar, de fundo econômico e político, contrapondo vários
setores sociais e econômicos relevantes: indústria, comércio, finanças,
trabalhadores e até mesmo governos. No entanto, além de em muitas
situações não se ter alcançado o intento de pacificação, a constitucio-
nalização das contendas produziu uma série de distorções e debilida-
des para a eficácia do sistema tributário.

2. Por que “desconstitucionalizar”?

A crítica que ora se apresenta à excessiva constitucionalização do di-


reito fiscal não assenta em dogmática vazia, portanto. O problema
não constitui simples curiosidade acadêmica, não se refere “apenas”
à pureza teórica da distribuição temática das normas pelos diversos
planos do ordenamento jurídico. Ao contrário, diz respeito aos não
poucos inconvenientes – institucionais, econômicos e práticos – que
procedem desse equivocado desenho normativo. Inconvenientes que
principiam pelas dificuldades de ajustar o marco jurídico às exigências
das mudanças de cenário econômico, aos desafios propostos pelas no-
vas tecnologias, à evolução demográfica, à dinâmica sócio-econômica
do mundo real, enfim. Inconvenientes que, passando pela inutilização
de instrumentos importantes de fomento e de intervenção no domí-
nio econômico, vão chegar até o desprestígio e a perda de eficácia das
próprias normas constitucionais em geral.
“Desconstitucionalizar” a tributação 969

Ao especificar minuciosamente os tributos e os seus parâmetros, o


constituinte em tese almeja “proteger” o contribuinte, por assim dizer,
contra o exercício exacerbado pelo Estado de seu poder de tributar.
Essa proteção, no entanto, se mal dosada, impõe à sociedade um ônus
severo, de outra natureza mas igualmente pernicioso, que é a obriga-
ção de escolher entre dois males: ou se altera freqüentemente o texto
da Constituição, para aperfeiçoar e atualizar o regime de seus tributos,
quando for preciso, ou se renuncia a essas atualizações e aperfeiçoa-
mentos, mesmo que muito necessários, em vista dos custos políticos
da mudança constitucional.
Um exemplo concreto ilustra bem essa afirmação: o longo e penoso
processo que se fez necessário para estabelecer a incidência, sobre as
operações de importação de bens e serviços, da Contribuição para o
PIS/PASEP e da Cofins. O regime dessas contribuições, como se sabe,
calcava-se inicialmente sobre a base de cálculo do “faturamento”, com o
que não alcançava importações, mas onerava bens e serviços produzidos
no país. Gerou-se um absurdo desprestígio fiscal para a atividade eco-
nômica nacional, sobreonerada no próprio mercado interno em relação
ao que se trazia do exterior. E justamente quando se vivia em meio a
delicado panorama macroeconômico, conclamando-se as empresas bra-
sileiras a se engajarem no aumento da produtividade, visando à compe-
tição no mercado internacional e ao incremento de exportações, para
equilibrar a balança comercial. À medida que evoluía o comércio exter-
no, nesse contexto, agravava-se ainda mais o problema. Mesmo assim,
para corrigi-lo, foram necessárias duas emendas constitucionais – as de
nº 33/2001 e 42/2003 – e dois anos de espera18.
A rigidez inerente ao texto constitucional, ademais, associada a restri-
ções, talvez excessivas, ao exercício da competência tributária residual,
em certa medida dificulta também o emprego extrafiscal dos tributos
no fomento e na intervenção sobre a economia. Elucidativo quanto
a esse aspecto, o exemplo da CIDE-Combustíveis, cuja instituição
decorreu também de amplo processo de alteração constitucional (que
resultou na Emenda nº 33, de 2001). A necessidade de mudança do
texto da Constituição, nesse caso, deveu-se ao propósito de armar a
nova contribuição de maior flexibilidade, para atender a sua finalidade

18
Na primeira oportunidade (Emenda nº 33, de 2001), as resistências contra o au-
mento da carga tributária – pela incidência das contribuições sobre a importação
– suplantaram o natural interesse pela correção do desequilíbrio fiscal em favor
do produto estrangeiro sobre o nacional, de maneira que as contribuições ficaram
restritas à importação de combustíveis. Somente com a aprovação da Emenda nº 42,
em 2003, erigiu-se enfim a base constitucional da cobrança sobre a importação de
bens e serviços em geral.
970 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

regulatória, de modo que suas alíquotas se pudessem fixar por meio de


ato do Poder Executivo.
Dois predicados eram essenciais à CIDE-Combustíveis, com efeito:
(i) calcular-se por alíquotas específicas (ad rem); (ii) que se pudessem
alterar de pronto, sempre que necessário ou conveniente contrabalan-
çar os efeitos de eventuais variações dos preços do petróleo no mer-
cado internacional. Para viabilizar essa segunda característica, no en-
tanto, fazia-se indispensável explicitar na própria Lei Maior a exceção
ao princípio da anterioridade, o que se propunha no § 4º a ser acres-
centado ao art. 177. Nesse mesmo parágrafo, talvez por comodidade,
talvez por estratégia política, ou mesmo apenas com o fim de acelerar
a entrada em vigor da nova contribuição, consignou-se também pra-
ticamente toda a sua disciplina, restando de substancial ao legislador
ordinário apenas a tarefa de lhe fixar o quantum19.
Assim, quando posteriormente, do dinâmico evolver da política, nas-
ceram exigências de compartilhamento com estados e municípios
também das receitas da CIDE-Combustíveis, foi necessário alterar
novamente o texto constitucional. Não sem razoável desgaste institu-
cional, porém.
É que o excesso de alterações exerce como que um efeito “desmoralizante”
do texto constitucional, sujeitando-o a casuísmos e enfraquecendo-lhe a
legitimidade e a “força normativa”20. Perde-se, a cada alteração, um pouco
daquela autoridade de norma fundamentadora. Em lugar de ajustar-se
aos seus mandamentos, os agentes públicos – e a sociedade em geral – ha-
bituam-se à outra hipótese: a de ajustar os mandamentos constitucionais
à própria agenda. Parece claro, também, que as delongas e exigências de
uma penosa tramitação de emenda constitucional, apenas para manter
atualizada a legislação tributária, ainda que se considerem a agilidade e o
espírito público dos legisladores, acabam inevitavelmente revertendo em
certo nível de defasagem, obsolescência e perda de eficácia normativa. A
chamada “guerra fiscal” não deixa dúvida quanto a isso.
Apesar da atenção minuciosa que o constituinte de 1988 dispensou à
sua regulamentação, o exaustivo e aparentemente completo conjunto
de dispositivos sobre o ICMS inscrito no art. 155 contém lacunas.
Lacunas que o passar do tempo, a evolução dos fatos e a criatividade

19
No caso da CPMF, não se reservou ao legislador ordinário sequer essa incumbên-
cia, já que até mesmo a sua alíquota foi definida no texto constitucional (arts. 74, 75,
80, 84, 85 e 90 do ADCT). À CPMF, aliás, podem-se creditar pelo menos quatro
emendas do texto constitucional.
20
Vide nota nº 16, acima.
“Desconstitucionalizar” a tributação 971

do legislador estadual foram impiedosamente revelando, ampliando e


explorando, para criar toda sorte de incentivos fiscais, exceções, isen-
ções, créditos presumidos e mesmo benefícios diretos, ao arrepio das
restrições e prescrições do inciso XII do §2º.
Nesse contexto de perda de eficácia, aliás, a rigidez constitucional, que
se pretendera empregar à guisa de proteção, transforma-se na verdade
em fardo, obstáculo que embaraça e retarda os indispensáveis ajustes.
Todo esse processo degenerativo cria um ambiente propício ao surgi-
mento de inúmeras controvérsias interpretativas, e a interferência ju-
dicial no processo econômico se torna então fenômeno corriqueiro21.
E como quase sempre se podem encontrar, no prolixo e multifacetado
texto constitucional, desvãos e saliências onde encaixar todo tipo de
questionamentos constitucionais, aumenta a probabilidade de que es-
ses questionamentos judiciais consigam escalar toda hierarquia dos
tribunais, atingindo o cume onde se situa a Suprema Corte do país.
Tomando ainda essa vez como exemplo a Cofins, podem-se enumerar
ao menos quatro teses relevantes que lograram submeter-se ao exame
do STF nesse período, todas com impacto potencial de monta sobre
a economia privada, assim como a estabilidade do orçamento público,
questionando: (I) a espécie normativa adequada para discipliná-la, se
lei complementar ou ordinária22; (II) a incidência da contribuição so-
bre as operações favorecidas pela imunidade prevista no § 3º do art.
155 da Constituição (relativas a energia elétrica, serviços de teleco-
municações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do país)23;
(III) a dimensão do conceito de “faturamento”, alargada para abranger
também as receitas não operacionais24; e (IV) a incidência da contri-
buição sobre o ICMS cobrado na operação25.

21
A ponto de se ter cunhado expressão – bastante reveladora – para designá-lo:
“indústria de liminares”.
22
Demanda que afinal acabou por ensejar a primeira Ação Direta de Constitucio-
nalidade (ADC nº 1).
23
No julgamento do RE 227.832, Relator Min. Carlos Velloso, o STF entendeu que
a incidência da contribuição teria por fundamento o inciso I do art. 195 da Consti-
tuição, não se sujeitando, assim, à mencionada imunidade.
24
No julgamento do RE nº 346.084, relator para o acórdão o Min. Marco Aurélio,
o STF declarou a inconstitucionalidade do § 1º do art. 3º da Lei nº 9.718, de 1998,
que amplia o conceito de faturamento (ou receita bruta), para “envolver a totalidade
das receitas auferidas por pessoas jurídicas”.
25
Questão que ainda se encontra sub judice (RE nº 240.785), até o momento con-
tando com seis votos favoráveis e um contrário à tese da inconstitucionalidade dessa
incidência (Informativo STF nº 437).
972 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A solução de demandas dessa natureza, naturalmente demorada e dis-


pendiosa, sujeita-se ainda a toda espécie de equívocos. Além do conges-
tionamento dos tribunais e da complexidade técnica da matéria – que
pode envolver aspectos contábeis e econômicos muito específicos –, a
elevação a tribunais superiores de questões muito concretas em geral
traz um elemento adicional de risco, em face da tendência que têm os
pronunciamentos dessas cortes de se transformar em molde conceitu-
al para as futuras interpretações. Nem sempre é possível conciliar com
sucesso as tarefas de “fazer justiça” no caso concreto e estabelecer prin-
cípios abstratos e abrangentes, precedentes com eficácia erga omnes. As
decisões dos tribunais superiores, com efeito, têm propensão para a efi-
cácia geral. Ao se voltarem para a justiça individual se expõem à perda
de coerência entre si, com prejuízos não somente para a estabilidade e a
segurança do ordenamento jurídico como um todo, mas também para a
reputação e a autoridade do próprio órgão julgador.

Conclusões

Propor simplesmente a “desconstitucionalização” de nosso direito


tributário positivo pode aparentar ingenuidade. Por aguda que seja
a convicção sobre a impropriedade do desenho traçado em 1988,
deve-se sempre ter presente o fato de que esse desenho não resultou
apenas de uma disposição arbitrária de vontade do constituinte, mas
certamente decorreu da complexidade do processo político subjacente,
cujas raízes, no caso da ordem tributária, remontam ainda ao ordena-
mento constitucional anterior.
Inúmeras são as razões que podem estimular a sociedade – ou alguns
de seus setores – a estabelecer em nível constitucional interesses espe-
cíficos. Ao lado do propósito de regulamentar – ou conter – o avanço
do Estado sobre os negócios privados, registrado em parte da doutrina,
apresentam-se às vezes motivos de cunho estritamente técnico, como
a necessidade de se afastar excepcionalmente alguma regra constitu-
cional de caráter geral26, ou mesmo imperativos de ordem política,
tal como a disciplina das relações intrafederativas. Em outros casos, a
elevação de certas normas ao status de texto constitucional representa
simplesmente uma forma de “fugir ao jogo democrático”: ao retirar
determinados preceitos do alcance do legislador ordinário, imunizan-
do-os contra possíveis modificações futuras no panorama político, a
maioria do presente, em última análise, está resguardando os seus in-

26
Como no mencionado caso da CIDE-Combustíveis.
“Desconstitucionalizar” a tributação 973

teresses contra as maiorias do futuro. É essa a tensão entre “dois modos


de ver a liberdade”27 que sugere o clássico dilema “Constitucionalismo
versus Democracia”.
Característica marcante nos vinte anos de vigência da atual Cons-
tituição, o fato de que, na maior parte desse período – em todos os
governos empossados depois de 1988 –, esteve sempre presente a ex-
pectativa de uma reforma tributária, atual ou iminente. Orientaram-se
tais propostas segundo as mais variadas idéias e diretrizes, mas jamais
se cogitou simplesmente da remessa de dispositivos, deslocados no
texto constitucional, para onde estariam mais bem ajustados: a legis-
lação ordinária. O mesmo se pode afirmar do projeto que ora inicia os
percalços característicos da tramitação de propostas de emenda cons-
titucional sobre matéria tributária no Congresso.
A intensidade crescente da “guerra fiscal”, no entanto, demonstra que
a “solução” consistente no exaustivo disciplinamento constitucional
das relações entre unidades federativas não é a que contém a fórmula
do sucesso. Apesar disso, há propostas que o aprofundam ainda mais,
como as que propugnam pela fixação na Lei Fundamental de novos
mecanismos de repasse automático das transferências obrigatórias,
por exemplo. Essa insistência no modelo de constitucionalização do
direito fiscal denuncia, na verdade, uma certa falência das instituições,
um esgarçamento da confiança geral na eficácia do direito como fator
de estabilidade política e pacificação social, o descrédito do princípio
da boa-fé como regra característica do relacionamento político-insti-
tucional entre órgãos do Estado.
A prática de legislar em ambiente jurídico envenenado pelo institu-
to das medidas provisórias, finalmente, requer um bocado a mais de
precaução, no que tange ao direito tributário. Nesse contexto, os en-
traves e obstáculos interpostos pela constitucionalização, mesmo que
excessiva, contrapõem-se de certa forma aos riscos da concentração
de poderes e da pouca transparência que normalmente caracterizam o
processamento legislativo dessa estirpe de normas.
Nessa ordem de idéias, não parece absurdo cogitar que o verdadeiro
problema não esteja propriamente no mau posicionamento hierárqui-
co de normas relativas à tributação, mas em outro aspecto da questão:
o grau de acirramento do conflito político que esse mau posiciona-
mento reflete, ou a relevância econômica das disputas que o provo-
caram, apesar de todos os inconvenientes já enumerados e analisados

27
CANOTILHO, J.J.: Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 92.
974 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

neste trabalho. A viabilidade política de uma alteração tão acentuada


no modelo constitucional tributário, como a que ora se propõe, depen-
de portanto do surgimento, no horizonte de futuro que se consegue
discernir, de alguma solução aceitável e aparentemente concretizável
para esses conflitos e disputas.
A idéia de se “desconstitucionalizar” o direito tributário brasileiro des-
ponta assim, nesse panorama, a despeito da gravidade dos problemas
decorrentes do modelo em vigor e da severidade de suas conseqüên-
cias sobre a realidade sócioeconômica do país, ainda como uma tese
curiosa, aventada – às vezes meramente pelo amor ao debate – de
maneira isolada e assistemática por um ou outro especialista28. E, no
entanto, a força de sua lógica intrínseca e o malogro das diversas ten-
tativas de reforma do passado, que insistiram sempre em reproduzir
o mesmo desenho constitucional excessivamente minucioso e deta-
lhista, compõem um quadro que deveria ao menos encorajar à am-
pliação das fronteiras do debate, incorporando soluções que, mais do
que meramente administrar e repetir os erros do presente, signifiquem
verdadeira inovação.

Referências

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros,


1997.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coim-
bra: Almedina, 1997.
ELY, John Hart. Democracy and distrust. Cambridge : Harvard Univ. Press,
1998.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 21. ed. São Paulo : Ma-
lheiros, 2002.
ROSA JR., Luiz Emygdio. Manual de direito financeiro e direito tributário. 10. ed.
Rio de Janeiro : Renovar, 1995.
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 10. ed. São Paulo :
Malheiros, 1995.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 14. ed. Rio de
Janeiro : Renovar, 2007.

28
Conforme Relatório da Subcomissão Temporária da Reforma Tributária (Caert),
“destinada a avaliar a funcionalidade do sistema tributário nacional e o desempenho das
administrações tributárias, e analisar a reforma tributária”, da Comissão de Assuntos
Econômicos do Senado Federal, relator o Senador Francisco Dornelles. Também o
art. “Outras reflexões sobre mitologia tributária”, publicado no jornal Gazeta Mercantil,
em 20/3/2008, pelo consultor Everardo Maciel.
Tributação
975

Tributação da fortuna, preceito


constitucional irrealizado
Paulo Euclides Rangel

Destacam-se, no capítulo do Sistema Tributário Nacional esculpido


na Constituição Federal de 1988, dois preceitos não concretizados.
Um deles prevê, no elenco dos impostos de competência da União, a
possibilidade de instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, nos
termos de lei complementar (art. 153, VII).
O outro faz aceno ao princípio da transparência no âmbito da tributa-
ção do consumo, na confluência do território das relações de consumo
com o mundo obrigacional tributário (art. 150, § 5º).
É sintomática, desde logo, a restrição imposta à transparência tribu-
tária, circunscrita ao território das relações de consumo. Por que não
emular, entre nós, a ousadia do governo italiano, no início de 2008, de
expor na Internet irrestritamente os dados das declarações de imposto
de renda dos cidadãos em vista do saudável exercício do confronto
democrático das respectivas relações financeiras com o Estado, ou a
equivalente permissão legal francesa, ainda que condicionada?
São muitos os preceitos constitucionais não implementados, alguns
dentre eles exprimindo valorações utópicas, que o Constituinte de
1988 quis esculpir no Estatuto Magno como salvaguarda contra
décadas de autoritarismo político. Mas no capítulo tributário, nada
tão concreto e material quanto ele, não se trata de fazer utopia. Ali é
crucial o princípio da capacidade contributiva, universalmente aceito,
pois incorpora nada menos do que um dos pilares da Declaração dos
Direitos do Homem, que emergiu da Revolução Francesa.
Pois a implementação deste princípio dos princípios tem esbarrado
sistematicamente na secular indulgência em relação à subtributação
da riqueza e à supertributação dos trabalhadores consumidores. As es-
tatísticas oficiais desnudam a regressividade persistente de nosso siste-
ma tributário que faz o componente fiscal dos orçamentos familiares
decrescer inversamente ao incremento da renda.
976 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

Os dois preceitos destacados instrumentalizam o princípio da tributa-


ção segundo a capacidade contributiva. A tributação sintética progres-
siva da riqueza global, seja separadamente na forma de imposto sobre
fortunas ou sobre sucessões e doações, seja no interior do quadro do
imposto sobre a renda, é o método mais acabado de implementação
do princípio da capacidade contributiva.
A intransparência dos tributos embutidos nos preços, a opacidade dos
procedimentos das administrações fiscais e o ocultamento das rela-
ções comparadas dos cidadãos com o Fisco favorecem a corrupção,
o desvirtuamento do imposto, a profusão de privilégios irracionais, a
suspeição do cidadão contra os aparelhos governamentais, a resistên-
cia ao imposto; portanto, conspiram contra a realização do princípio
da capacidade contributiva.
Assim, aparentemente desconexos, os dois preceitos descumpridos
têm íntima conexão. A dupla lacuna encontra uma única raiz explica-
tiva na ótica da sociologia política aplicada à prática fiscal, na medida
em que a inaplicabilidade de ambos interessa aos donos do poder, a que
se refere Raymundo Faoro, porquanto serve à estratégia de centrifugar
o esforço contributivo em direção à periferia social.
De um lado, mantém-se a obscuridade dos tributos anestésicos sobre
o consumo de massa, múltiplos, falsamente não-cumulativos, calcu-
lados por dentro, com o imposto constituindo sua própria base, im-
posto incidindo sobre imposto, tornando impossível o esmiuçamento
dos encargos fiscais enquanto componentes embutidos nos preços das
mercadorias, bens e produtos consumidos, tudo na esteira da histórica
feição anti-social de nosso sistema tributário calcado predominante-
mente na tributação regressiva do consumo, nociva aos menos afortu-
nados, e na tributação levemente progressiva das rendas do trabalho
das classes médias.
De outro lado se restringe, em patamar muito suave, a tributação dos
rendimentos do capital e se reduz ao mínimo senão a zero, a tribu-
tação do capital estocado, convertendo-se em tabu a aversão atávica
à tributação patrimonial. De resto, é cediça a avaliação de que nosso
direito concreto protege mais severamente o patrimônio do que a vida
e os demais direitos humanos e sociais.
Esse diagnóstico, que pode parecer chocante enquanto circula pouco
em nossa volumosa literatura tributária, é, no entanto, moeda corrente
nos países dotados de história social mais rica e de ciência social mais
desenvolvida do que a nossa.
Tributação da fortuna, preceito constitucional irrealizado 977

A história social do imposto no mundo atesta o fenômeno universal


da disputa social pela distribuição do ônus do financiamento do Esta-
do, de tal sorte que os segmentos sociais mais fortes lutam e alcançam
sucesso, maior ou menor, no intento de transferir o esforço fiscal para
os segmentos mais fracos.
A história da democracia ocidental está ligada umbilicalmente ao
equacionamento dessa disputa mediante o refinamento da representa-
ção política, em busca da eqüidade na distribuição do encargo fiscal.
Nosso país jovem, sociedade adolescente, democracia implume, costu-
ma enfrentar desafios por certo sem apegos ao passado, portanto com
maior flexibilidade que as sociedades tradicionais do hemisfério norte,
mas, carente de educação, de informação e de experiência acumulada
na história dos embates sociais, reage aos desafios com impetuosida-
de e pouco cálculo, sendo raros os posicionamentos matizados, tem-
perados de visão holística, decorrentes de maior densidade histórica,
comuns nas sociedades mais igualitárias do hemisfério norte, onde as
elites aceitam bem a noção do dever contributivo solidário.
Paradoxalmente, em contraste com o que ocorre nas democracias do
hemisfério norte, a atividade de proteção estatal aos negócios, à rique-
za, ao patrimônio, embora muito maior do que o empenho do Estado
em atender aos direitos sociais dos cidadãos, é financiada predomi-
nantemente por tributos sobre consumo de massa. Aqui quem mais
contribui, em proporção de sua renda, é quem menos recebe contra-
prestação do Estado. No entanto, a extremada susceptibilidade em re-
lação à idéia de dever contributivo baseado no domínio sobre acervos
patrimoniais acaba sempre por impor-se.
Por isso tudo é duplamente intrigante a figura do Imposto sobre
Grandes Fortunas. De um lado surpreende o desembarque súbito
ocorrido vinte anos atrás, no ápice do edifício de nossa pirâmide jurí-
dica, à maneira iluminista, de cima para baixo, sem ter sido precedido
por internalização do conceito pelas organizações sociais, nem pela
respectiva depuração no embate entre atores sociais.
De outro lado desconcerta o isolamento em que sobreviveu, estéril por
vinte anos, esse enxerto de preceito constitucional. Suscitou parcos
empolgamentos e esparsos espasmos de repúdio. Pouco frutificou em
elaborações acadêmicas, estudos de viabilidade, estimativas de impac-
to, projetos consistentes, iniciativas legislativas sustentadas.
Dir-se-ia que engendrou, mais do que tudo, estranheza, seguida de
incredulidade. Ficou entendido que a nacionalização da figura do IGF
978 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

exprimiu, no início de 1989, inofensivo arroubo de social-democracia


ilustrada, sem empenho tendente à concretização.
Foi mais fácil inscrever no firmamento estrelado da Constituição de
1988 a figura do Imposto sobre Grandes Fortunas como símbolo tu-
telar, mantido em seu papel ornamental, do que votar uma modesta
regra regulamentar operável, apta a desatar os nós de aço das relações
materiais congeladas no recorte brasileiro dos um por cento que de-
têm cinqüenta por cento da riqueza.
São menores os aspectos anedóticos do fenômeno, que não se afastam
do quadro acima sintetizado. A idéia da tributação do ativo líquido, ou
da fortuna, surgiu pela primeira vez na literatura brasileira, ao que se
saiba, em alguns papéis para discussão interna no âmbito da chamada
“Comissão Sayad”, comissão de estudos de reforma tributária criada
em 1986 pelo então ministro do Planejamento. Os papéis foram rus-
ticamente enfeixados pelo Ipea em publicação restrita. Uma versão
deles foi editada no número 367 da Revista de Finanças Públicas da
antiga Secretaria de Economia e Finanças do Ministério da Fazenda
(GIFFONI, F. P.; RANGEL, P. E. “Reforma tributária e imposição
do ativo líquido pessoal”. Brasília, 1986).
No contexto da rivalidade que então opunha as estruturas comandadas
pelos ministros Sayad, do Planejamento, e Funaro, da Fazenda, a buro-
cracia fazendária se opôs, no gênero, ao assédio da reforma tributária
arquitetada fora da Casa, sustentando a postura conservadora no velho
bordão “imposto bom é imposto velho”. Na espécie, resistiu à novidade
“socialista” da tributação da fortuna, esgrimindo o argumento de que o
custo e a dificuldade não valiam a modesta arrecadação estimada. O que
não impediu espíritos antenados e generosos de comprar essa idéia que
frutificava na “onda rosa” do socialismo reformista que varria a Europa,
materializando-se em legislações modernas na França e na Espanha. A
idéia incorporou-se ao programa do partido MDB e consumou-se no
preceito do art. 153, VII, da Constituição de 1988.
O então Senador Fernando Henrique Cardoso emprestou seu pres-
tígio a projeto de lei complementar de sua autoria, posteriormente
refundido em substitutivo de Roberto Campos, o qual repousa até
hoje nos escaninhos da Câmara dos Deputados, ainda em tramitação
vinte anos depois, com vários apensos.
Declinando a adesão psicológica e política do PMDB e do PSDB à
figura desse imposto malvisto pelas elites, a idéia deslizou definitiva-
mente para a agenda dos partidos de esquerda, sendo que o PT não se
poupou de patrocinar, na época, uma versão assustadora, ameaçando
Tributação da fortuna, preceito constitucional irrealizado 979

mutilar em dez por cento os grandes patrimônios em uma única inci-


dência, versão inspirada em incidente excepcional ocorrido na França
durante a primeira grande guerra.
Com isso a idéia arrefeceu, recolheu-se, mal conhecida e já degradada
em idéia maldita, na qual atilado sociólogo identificou a função de
espantalho político. Nesse ínterim, manifestações raras, pulverizadas,
testemunham no mais das vezes o primarismo acima apontado, que
continua idêntico vinte anos depois, como que congelado, em razão da
ausência de lutas e de oportunidades de amadurecimento.
Contra a ameaça de revigoramento implícita na astúcia da iniciativa
governamental da reforma tributária de 2008, que propõe incluir o
IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas) na base dos tributos parti-
lhados com Estados e Municípios, desta feita jogando com a função
de espantalho, reagem os porta-vozes da elite patrimonialista com os
mesmos argumentos canhestros de outrora, condenações apressadas,
exorcismos desinformados.
O discurso brasileiro não refinou argumentos, nesses vinte anos, mes-
mo porque o debate a respeito da tributação da fortuna permaneceu
sufocado. Não se investiu na elaboração conceitual. Os detratores da
modalidade se satisfazem em reproduzir pouco mais de meia dúzia
de alegações que se revelam simplórias quando confrontadas com os
arsenais argumentativos desenvolvidos em sociedades politicamente
mais “quentes”.
Esse discurso dominante se esgota numa produção ideológica reativa
que espelha, em imagem invertida, o modo afoito de apropriação da
idéia pelos partidos da esquerda brasileira, de parte a parte predomi-
nando percepções primárias desprovidas de lastro conceitual.
Na falta de literatura de referência, em nosso país, é patente a con-
veniência e utilidade de reunir alguma informação apta a estimular o
enriquecimento do debate. As idéias que aqui têm repercutido são fre-
qüentemente falsas, na parte ou no todo, mas se impõem pela simpli-
cidade, pela facilidade de compreensão, pela aparência de veracidade, e
desmobilizam por sua tonalidade depreciativa. O aprofundamento do
debate pressupõe certo grau de disposição intelectual para a elabora-
ção conceitual, o que nem sempre está presente, tal circunstância favo-
recendo o triunfo do imobilismo fundado em avaliações deformadas.
Eis o modesto elenco de vocalizações habitualmente contrárias ao tri-
buto sobre fortunas. Que não deu certo em lugar nenhum, pois foi
abolido na maior parte dos países em que existia. Que é anacrônico,
980 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

pois está desaparecendo em todo o mundo. Que onde existe é visto


com antipatia. Que rende pouco e custa muito. Que repele investi-
dores. Que desestimula a poupança. Que provoca evasão de capitais e
evaporação de patrimônios. Que é confiscatório porque supostamente
atingiria, por exemplo, o quinhão deixado à viúva sem renda. Que se
sobrepõe a outros tributos reais. Que não é justo tributar a aplicação
onde a renda repousa se a mesma renda já teria sido tributada na oca-
sião em que foi ganha. Que incomoda e espanta os ricos, subentendi-
do que os ricos devam ser adulados e atraídos incondicionalmente.
É preciso matizar esses raciocínios em que meias verdades falseiam o
debate ao serem maliciosamente alçadas à dimensão, que intrinseca-
mente lhes falece, de avaliações completas ou de vereditos finais.
Assim, é verificável que o imposto patrimonial sintético veio sendo
desativado na maioria dos países do norte europeu, onde existia há
muito tempo, não porque não deu certo, mas exatamente ao contrário,
porque deu completamente certo, porque desempenhou exaustiva-
mente o que dele se esperava, porque cumpriu seu papel.
Os países nórdicos ostentam, hoje, padrões invejáveis de desenvolvi-
mento humano e eqüidade social, sendo atualmente ali mínimas as
disparidades de renda e de riqueza. Mas esses países não abdicaram
de impostos sobre a renda, abrangentes e progressivos, agora incre-
mentados com os avanços da tecnologia da informação, e continuam
a aplicar impostos sintéticos sobre sucessões e doações. Não precisam
mais das velhas modalidades de impostos sobre ativos líquidos.
No contexto histórico da Constituinte de 1988, treze países-mem-
bros da OCDE praticavam impostos sobre ativos líquidos de pessoas
físicas. Tirantes a França e a Espanha, que se dotaram desse imposto
mediante legislações modernas, Imposto sobre o Patrimônio Líquido
na Espanha, Imposto sobre Grandes Fortunas na França, eram então,
antes, onze países em 1978, quando a OCDE editou relatório panorâ-
mico a respeito do assunto, dando conta de legislações muito antigas.
Alguns países tributavam então, também ou somente, ativos líquidos
de pessoas jurídicas.
Neste passo é imperativo firmar algumas precisões conceituais. O que
se está chamando de imposto sobre as fortunas, ou sobre a riqueza
(wealth tax), reúne várias modalidades de tributos que a OCDE clas-
sificou como impostos sobre ativos líquidos (OCDE, Paris, 1979).
Contempla-se uma técnica tributária que considera sinteticamente
o patrimônio global do contribuinte, pessoa física ou núcleo familiar,
Tributação da fortuna, preceito constitucional irrealizado 981

em periodicidade anual (em poucos países bienal ou trienal), com es-


trutura de alíquotas progressivas.
Modalidades análogas ficaram fora dessa classificação, e a inclusão
delas aumentaria o número de países praticantes de reforçada tribu-
tação patrimonial. Há países, como observado acima, que tributavam,
ou ainda tributam, ativos líquidos de pessoas jurídicas. Muitos países
praticam modalidades analíticas de tributação sobre itens isolados do
patrimônio. A Índia e o Paquistão possuem (por exemplo, há outros)
tributos sobre itens conspícuos, ou suntuários, do patrimônio.
A Alemanha chegou a ter, segundo se diz, mais de trezentos impostos,
a maioria deles ferindo itens individualizados do patrimônio, parte
deles posteriormente reunidos e por fim extintos. Alguns autores en-
tendem que o imposto norte-americano sobre a propriedade (Property
Tax), maior fonte de receitas dos entes locais daquele país, pela sua im-
portância e volume, que corresponde a aproximadamente dez por cento
da arrecadação tributária norte-americana, e pela abrangência, que in-
clui enormidade de itens do patrimônio, teria analogia com o imposto
sobre a fortuna, faltando-lhe apenas uma assumida dimensão sintética.
Outra precisão conceitual importante é que a base do imposto sobre
fortunas é idêntica à base dos tributos sintéticos sobre sucessões e do-
ações, praticados, há muitas décadas, pela quase totalidade dos países
mais desenvolvidos do mundo. Entende-se então que, de um ponto de
vista econômico, um tributo anual sintético sobre a fortuna pode ser
dimensionado para equivaler matematicamente ao tributo sintético
sobre sucessões e doações que incide uma vez em cada geração. Sus-
tenta-se, portanto, a equivalência conceitual de tributos patrimoniais
sintéticos progressivos, seja sobre a fortuna em periodicidade anual,
seja sobre sucessões e doações em periodicidade geracional.
Aspecto valioso, implícito na conceituação precedente, é a justificação
estatística dessas modalidades tributárias. A rubrica patrimonial aparece
na maioria dos países do mundo como aspecto especialmente vulnerável
das estatísticas oficiais. A principal fonte de dados utilizada nessas esta-
tísticas são as informações reunidas no âmbito do imposto sobre suces-
sões e doações. Muitos países responderam a questionário da OCDE
explicitando a função de fonte de dados estatísticos patrimoniais como
principal motivo de seu apego a impostos sobre ativos líquidos, razão
pela qual alguns autores os batizaram de impostos estatísticos.
Vale observar que todos os países que deixaram de aplicar impostos so-
bre fortunas continuam a praticar impostos sintéticos progressivos sobre
sucessões e doações, sendo que alguns deles expressamente declinaram
982 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

de aplicar tributo anual sobre fortunas com a justificação de possuírem


tributação equivalente na modalidade sobre sucessões e doações.
Esse foi o principal argumento técnico esgrimido na conclusão do re-
latório (Rapport Ventejol-Blot) elaborado no final do governo conser-
vador de Valéry Giscard d’Estaing, com a intenção de desaconselhar a
adoção do imposto sobre grandes fortunas na França, o que, dada sua
inspiração ideológica, não comoveu o governo do sucessor socialista
François Mitterand, engajado na instauração desse imposto.
No Brasil o argumento não vale, pois não possuímos tributo sintético
progressivo sobre sucessões e doações. Nosso imposto sobre transmis-
são causa mortis não é progressivo, tem alíquota fixa de quatro por cen-
to, abaixo dos oito por cento estipulados pelo Senado como alíquota
máxima, e incide praticamente apenas sobre o componente imobiliário
da massa sucessória. Alguns estados, como São Paulo, procuram mo-
dernizar a legislação para torná-la mais abrangente, mas é certo que
a vocação para uma apreensão sintética do patrimônio global estaria
na esfera federal, percepção essa que alguns parlamentares chegaram
a materializar em propostas de emenda constitucional. Decorrência
grave dessa lacuna é a extrema pobreza e inconfiabilidade, para não di-
zer ausência dramática, de estatísticas patrimoniais oficiais no Brasil.
Mais uma precisão conceitual merece ênfase. Os impostos sobre ativos
líquidos ou fortunas eram concebidos, pela maioria dos países que
responderam a questionário da OCDE, como imposto suplementar
de renda, exibindo claramente essa natureza jurídica na sobrevivente
legislação francesa, assim interpretada por forte doutrina e jurispru-
dência. Ficou assentado que a assimilação legal francesa do imposto
sobre grandes fortunas ao imposto sobre sucessões e doações refere-se
apenas ao aspecto operacional atinente à complexa metodologia da
avaliação dos bens, não à natureza intrínseca do imposto.
A natureza de imposto suplementar de renda decorre também da (ou
resulta na) estipulação, em todos os países que tributam fortunas, de
um teto de contribuição, de todos os impostos diretos somados, não
superior a setenta ou oitenta por cento da renda do contribuinte, as-
sim como da dedução, do imposto sintético sobre ativos líquidos ou
fortunas, dos valores pagos para liquidar outros tributos incidentes so-
bre itens específicos do patrimônio. O teto referido vigorava na maio-
ria dos países relatados pela publicação da OCDE em 1979. Hoje, o
teto chamado de bouclier fiscal (escudo fiscal), na legislação francesa
sobrevivente, é de cinqüenta por cento da renda, sendo que o governo
Sarkozy acena com redução para quarenta por cento.
Tributação da fortuna, preceito constitucional irrealizado 983

A maioria dos países que, no final dos anos setenta, na época do rela-
tório da OCDE, respondeu ao questionário, manifestou-se favorável
ao imposto sobre ativos líquidos ou fortunas, entendido como coadju-
vante da administração do imposto sobre a renda, considerou tal im-
posto menos complexo do que o imposto sobre a renda e avaliou que
o custo administrativo desse imposto, diluído no interior do aparelho
administrativo do imposto sobre a renda, era mais do que compen-
sado pelo aporte de arrecadação suplementar no quadro do próprio
imposto de renda.
Deve-se sublinhar essa importante informação resolutamente susten-
tada pelas respostas oficiais dos países intervenientes. Ninguém foi
torturado nem seduzido para fabricar tais respostas. São avaliações
ponderadas prestadas por sisudos responsáveis pelas administrações
fiscais de países altamente civilizados. Tal informação, de resto perfei-
tamente óbvia, desmente as opiniões depreciativas expostas por espe-
cialistas brasileiros de que o imposto sobre fortunas teria custo proibi-
tivo em relação à arrecadação esperada. A verdade é que o custo é nulo
e que a arrecadação que induz indiretamente, no âmbito do imposto
sobre a renda, pode superar a sua arrecadação própria.
Dois axiomas se deduzem, nesse passo, do relatório da OCDE. Pri-
meiro, que em toda parte é nulo o custo administrativo do imposto
sobre fortunas, diluído no interior do aparato administrativo do im-
posto sobre a renda. Esta é a avaliação oficial de todos os países que
praticaram esse imposto. Não desmerece essa verdade o fato de alguns
países, como o Japão e a Irlanda, que decidiram não implantar o im-
posto, terem justificado sua decisão com a alegação especulativa de
que o custo respectivo seria dissuasivo.
Segundo axioma, que a complexidade do imposto sobre a renda é in-
comparavelmente superior à do imposto sobre fortunas, o que não
impediu o imposto sobre a renda de firmar-se historicamente e con-
sagrar-se em todo o mundo como paradigma de imposto justo capaz
de atender ao princípio da capacidade contributiva. A implantação do
imposto de renda no mundo não teve vida fácil mas se impôs pela sua
consistência intrínseca e pela força dos movimentos sociais.
Cumpre ressaltar, aqui, importantíssimo fundamento conceitual da
tributação da fortuna, ao lado do fundamento mais banal do princípio
da solidariedade social.
É que a realização plena do princípio da tributação segundo a capaci-
dade contributiva não é possível sem o conhecimento da estrutura, da
984 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

formação e da evolução dos patrimônios e sem a consideração desse


fator na apuração do imposto.
Esse princípio da capacidade contributiva é habitualmente instru-
mentalizado pelo imposto progressivo sobre a renda, e os países que
responderam ao questionário mencionado enfatizaram a utilidade
do imposto sobre fortunas no suprimento das lacunas da tributação
da renda, sem falar-se na conhecida aptidão teoricamente afirmada
do imposto sobre fortunas de mais aproximar-se dos imperativos de
eqüidade vertical e horizontal.
A evolução legislativa do imposto sobre a renda no sentido de abran-
ger todo acréscimo patrimonial a qualquer título, de um lado, e as faci-
lidades trazidas pela evolução da tecnologia da informação no conhe-
cimento dos patrimônios e de suas mutações, de outro lado, explicam
o abandono do tributo sobre fortunas na maioria dos países que o pra-
ticavam. Consta que a Holanda, por exemplo, fez substituir o extinto
imposto sobre ativos líquidos por um suplemento anual de imposto
de renda calculado sobre o acréscimo anual de patrimônio a qualquer
título, chamado de “enriquecimento anual”, e o Luxemburgo o substi-
tuiu por tributo de dez por cento sobre rendimentos financeiros.
Assim explicado, fica claro que o desaparecimento dos impostos sobre
fortunas nos países europeus não se deu porque não deram certo, e sim
pela razão contrária, de que o espírito desse imposto foi assimilado pelo
conjunto dos respectivos sistemas tributários, tornando desnecessários
aqueles velhos impostos patrimoniais instaurados, por exemplo, na
Prússia em 1893; depois na Alemanha em 1923; na Áustria igualmente
em 1923; na Dinamarca em 1903; na Finlândia em 1920; no Luxem-
burgo em 1944; na Noruega em 1918; nos Países Baixos em 1892; na
Suécia em 1910; no cantão suíço de Basiléia em 1840, ali precedendo
historicamente inclusive o próprio imposto sobre a renda.
Tais impostos teriam sido suprimidos em 1993 na Áustria, em 1995
na Dinamarca, em 1997 na Alemanha e Irlanda, em 1998 na Itália,
em 2001 na Holanda e Luxemburgo, em 2007 na Suécia, em 2008 na
Espanha. A indicação das datas talvez contenha imprecisões no que se
refere ao momento da supressão legal e o momento do efetivo alívio
para o contribuinte.
Sobrevive praticamente isolada a chamada “exceção francesa”, onde
o imposto sobre grandes fortunas, instituído em 1981, tombou em
1986 (por razões ideológicas, na coabitação Mitterrand-Chirac), sen-
do reformulado em 1989 na forma de imposto de solidariedade sobre
fortunas. O atual Presidente Sarkozy prometera, na campanha, tentar
Tributação da fortuna, preceito constitucional irrealizado 985

abolir o imposto, mas foi dissuadido, uma vez alçado ao poder, ao ve-
rificar a pujança de sua arrecadação.
Desde o início dos anos noventa o imposto exibe ano a ano crescente
e “insolente saúde”, como lamenta o grande órgão da imprensa conser-
vadora francesa, Le Figaro, abrangendo em 2007 o universo de 520 mil
unidades contributivas e arrecadando 4,3 bilhões de euros. O piso de in-
cidência era em 2007 de 760 mil euros (aproximadamente dois milhões
de reais), a tabela de incidência previa sete faixas, aplicando-se a alíquota
máxima de 1,8% para patrimônios superiores a 15.810 mil euros.
É curioso lembrar o escândalo que suscitou, no Brasil, há quase vinte
anos, a previsão de alíquota máxima de um por cento, no projeto Fer-
nando Henrique Cardoso, não faltando quem a considerasse confisca-
tória. A menção à alíquota robusta de 1,8% seria condenada, entre nós,
com redobrada virulência, como obra de incendiário.
A graça da pequena história está em observar que o autor da introdu-
ção dessa alíquota de 1,8%, em 1998, na França, Dominique Strauss-
Kahn, então ministro das finanças do governo socialista de Lionel
Jospin, foi guindado pelo atual Presidente Sarkozy a posição de proa
no establishment financeiro mundial, pois preside hoje o FMI – Fun-
do Monetário Internacional. Trata-se de profissional que dedicou boa
parte de sua vida a estudos de economia patrimonial em organizações
francesas especializadas e em organismos multilaterais, autor de obras
de referência sobre a matéria, que adotou aquela robusta incidência,
portanto, com perfeito conhecimento de causa.
Nada indica que a pujança econômica francesa tenha sido abalada nes-
ses anos por efeito da tributação das fortunas. Sem embargo, o INSEE,
órgão francês de estatísticas econômicas e sociais, equivalente ao nosso
IBGE, verificou interessante efeito realocativo na estrutura dos patri-
mônios franceses como efeito presumível da continuada tributação das
fortunas, o que de certa forma reconduz à argumentação de Allais abai-
xo referida, e constatou também significativo efeito redistributivo.
Importa concluir decididamente contra, portanto, a alegação de que
o desaparecimento de tais impostos em quase todo o mundo europeu
desaconselharia sua implantação em outros países menos desenvolvi-
dos. Desapareceram velhas carcaças, mas sobreviveu seu espírito. De-
sapareceram ali porque cumpriram sua função.
Focalizando comparativamente, com os países mencionados, o impos-
to de renda brasileiro destoa, primeiro, por atingir nada mais que uma
franja da sociedade, a saber, nada mais que três por cento da população
986 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ou menos de sete por cento da população economicamente ativa; se-


gundo, por ostentar progressividade muito atenuada e alíquota má-
xima de 27,5%, uma das mais baixas do mundo, contrastando contra
alíquotas máximas européias da ordem de quarenta a cinqüenta por
cento; terceiro, por ter baixa efetividade, concentrando-se no mundo
do trabalho assalariado em atividades formais, tratando de maneira
favorecida os profissionais liberais e privilegiando os rentistas.
Desde o final dos anos oitenta que reformadores tributários pelejam,
uns, pelo aumento da abrangência e das deduções de ajuste do im-
posto de renda brasileiro para torná-lo mais robusto e mais justo, à
imagem do imposto de renda norte-americano, e outros, no caminho
inverso, pela simplificação radical do imposto, em direção a alíquota
única moderada com abolição de toda e qualquer dedução, espécie de
flat tax, idéia que fracassou nos Estados Unidos, mas tem sido adotada
recentemente por diversos países da Europa oriental, novos membros
do clube do capitalismo global.
O caminho da simplicidade conflita com a exigência de justiça tribu-
tária. O imposto de renda brasileiro é avançado do ponto de vista de
que a legislação abrange fatos geradores de configuração ampla, como
os acréscimos patrimoniais a qualquer título, e sobretudo, do ponto
de vista do emprego intensivo de tecnologia da informação. A opera-
cionalidade do imposto vitaminou-se notavelmente com o acesso às
movimentações financeiras dos contribuintes.
Mas as disparidades expressivas na distribuição da renda se refletem
em lacunas na efetividade do imposto. A desigualdade é ainda maior
na distribuição da riqueza do que na da renda. E o conhecimento da
riqueza é incipiente em nosso país. Algum tempo de tributação das
fortunas seria imprescindível, a nosso ver, para mapear a dinâmica da
renda e da riqueza no país e para implementar um sistema tributário
mais próximo do respeito ao princípio da capacidade contributiva.
Os teóricos da tributação da renda reconhecem o que Hobbes já enun-
ciara, a saber, que o domínio sobre um patrimônio confere a seu pos-
suidor singular vantagem em relação a quem nada possui. A tributação
progressiva da renda é impotente para atingir o suplemento de capaci-
dade contributiva propiciado pela fruição do patrimônio. Possuidores
de grandes patrimônios podem praticar permutas, impor vassalagem,
obter ganhos decorrentes de prestígio, dispensando a percepção de
renda tributável e, no limite, escapando à tributação da renda.
O imposto de renda fere o esforço produtivo, desestimula a atividade
criadora, amputa a geração de valor e passa ao largo da riqueza empo-
Tributação da fortuna, preceito constitucional irrealizado 987

çada, do patrimônio estagnado, da propriedade sem utilidade social. O


imposto sobre lucros pune o sucesso e a eficiência econômica e premia
os empreendedores ineficientes. O imposto de renda brasileiro pune o
trabalho e estimula o rentismo.
Essa é a motivação econômica pela qual, entre outros luminares, o pres-
tigiado economista liberal Maurice Allais, galardeado com o prêmio
Nobel de Economia em 1988, justificava a tributação moderada do ca-
pital como incitação à dinamização econômica. Entendia que a tributa-
ção ótima deveria inibir a riqueza esterilizada, o capital coagulado, não o
enriquecimento, não a formação da riqueza, não a geração de valor.
A detenção de patrimônio desfruta da proteção do Estado e deve
custar, ao detentor, imposto moderado equivalente a um prêmio de
seguro, que o incite a buscar utilidade social capaz de propiciar ren-
tabilidade superior ao montante do imposto. Com tal objetivo, Allais
recomendava a tributação mesmo sobre detentores sem renda, que os
forçaria a procurar alternativas patrimoniais mais rentáveis.
Ao aproveitar o argumento, cabe esclarecer que Allais, como bom li-
beral, opunha-se à tributação progressiva, propugnava a abolição do
imposto de renda e vislumbrava um tripé fiscal que teria, numa ponta,
imposto uniforme impessoal e universal sobre o capital físico, com
alíquota de dois por cento, devendo render oito por cento do PIB, uma
vez que, segundo dados franceses e norte-americanos, o valor do capi-
tal físico tributável equivale a quatro vezes o PIB; as duas outras pon-
tas do tripé fiscal de Allais seriam, uma, a senhoriagem sobre a massa
monetária e, outra, o imposto sobre valor adicionado no consumo.
Alguns autores acreditam que os velhos impostos sobre ativos ou for-
tunas, instaurados no norte europeu no final do século XIX e início do
século XX, cumpriram satisfatoriamente o papel de incitação à alocação
racional de ativos e à otimização de sua rentabilidade, portanto, de im-
pulsionadores da dinâmica capitalista. Nessa ótica, impostos equivalen-
tes, com feição mais moderna, teriam muito a fazer nos países menos
desenvolvidos onde patrimônios estagnados e retenções especulativas
aguardam e merecem tributação patrimonial incitadora da dinâmica
econômica e do cumprimento da função social da propriedade.
Imposto evidentemente ninguém gosta de pagar, pois se é imposto,
forçado é, não é ato voluntário, é mutilação parcial do patrimônio do
contribuinte, que alguns franco-atiradores da psicanálise do imposto
chegaram a assimilar ao “complexo de castração” enunciado por Freud.
988 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

A rejeição psicológica ao imposto é particularmente aguda no caso


dos impostos diretos, de difícil translação, ainda mais difícil nas hi-
póteses de impostos sobre o patrimônio, já que o imposto de renda
muitas vezes se translada mediante acréscimo de renda exigida por
quem a percebe. Não procede, portanto, a objeção de que o tributo
patrimonial suscita antipatia. Tributo que suscita simpatia ou é tri-
buto anestésico, como são tributos moderados sobre o consumo, ou é
tributo sobre os outros.
Também não procedem os argumentos de que a tributação de fortunas
é nociva ao investimento e à poupança e provoca fuga de capitais. É ins-
trutivo observar que os cinco países do mundo que ostentam tributação
do patrimônio com arrecadação por volta de dez por cento das receitas
fiscais totais (mais do que o triplo da performance brasileira) são, todos,
potências capitalistas situadas entre as dez maiores economias do mun-
do, a saber, Estados Unidos, Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de
Gales, Irlanda do norte), Canadá, Japão e Coréia do Sul.
É evidente que a densa tributação do patrimônio, tradicional nesses
países, não parece ter prejudicado, ali, o investimento e a pujança ca-
pitalista! A decisão de investir envolve diversos outros fatores, e a tri-
butação moderada do patrimônio é, por certo, fator de somenos. Tam-
bém ofende a lógica imaginar que tributação moderada do patrimônio
possa tornar menos atraente a poupança a ponto de direcionar toda
a renda para o consumo, sabendo-se que a tributação do consumo é
incomparavelmente mais elevada!
O receio da expatriação de pessoas com seus capitais é outra assom-
bração que os fatos desmentem no longo prazo. Relatório recente do
senado francês sobre a oportunidade de abolir a chamada “exceção
francesa” do sobrevivente imposto de solidariedade sobre a fortuna,
transpirando motivação político-ideológica, clama por socorro ao im-
putar a esse imposto a explicação pelo nível médio constatado de uma
pessoa por dia emigrando da França para outros países (Marini, Paris,
2004). O argumento faz rir.
Primeiro, é improvável que o modesto imposto de solidariedade sobre
fortunas tenha alguma culpa por esse movimento. Segundo, na fase
atual do capitalismo global e de liberdade de movimentos no interior
da comunidade européia, é irrisório o número constatado de emigran-
tes. A emigração de brasileiros ostenta cifras muito superiores, assim
como a saída de capitais para o exterior, isso tudo no contexto brasilei-
ro de suavíssima tributação da propriedade e de ausência de imposto
sobre fortunas!
Tributação da fortuna, preceito constitucional irrealizado 989

Convém observar com prudência o uso ideológico de factóides, como


a saída rumorosa de celebridades, em protesto contra o Fisco. Citam-
se casos como o de Alain Delon e, no final do ano de 2007, Johnny
Halliday, para a Suíça, típicos casos isolados de manobras publicitá-
rias, o último reclamando do Presidente Sarkozy, que havia prometido
abolir o ISF, por não ter cumprido a promessa.
Foi doloroso, quando aconteceu, o caso mais antigo, da atriz e modelo
Laetitia Casta, que encenou expatriação para a Inglaterra. A bela atriz,
sucedendo ícones como Brigitte Bardot, Catherine Deneuve, Isabelle
Adjani, chegou a inspirar, como elas, a modelagem da efígie de Marian-
ne, presente na contraface ou coroa das moedas francesas. Ora, a atriz
percebeu, mais tarde, que seu prestígio não decorre exclusivamente de
seus belos olhos, que o glamour de todo o contexto da cena francesa é
parte integrante de sua marca, e acabou regressando ao país de origem.
O fisco francês relata, a quem quiser ouvir, a improcedência desses
ruídos de expatriação. Reportagens dão conta, por exemplo, do afluxo
recente de franceses à Irlanda, onde buscam oportunidades de mu-
dança de vida e progresso econômico, sem omitir a observação de que
a maioria deles alimenta poupanças na França, utiliza da educação
pública francesa para seus filhos, não abre mão, obviamente, da segu-
ridade social francesa e aspira terminar seus dias na pátria de origem.
Caso exemplar ocorreu na França em 1982, quando, após a vitória
socialista e a investidura de Mitterrand, com a implantação do Impos-
to sobre Grandes Fortunas, muitas imponentes figuras da elite patri-
monial, então reposicionadas politicamente na oposição, cumpriram
a ameaça de promover fuga em massa de capitais. Ocorreu que, logo
depois, o serviço de inteligência do exército francês obteve listagem
em código junto a bancos suíços, evidentemente por meios alheios à
estrita legalidade, e logrou decriptá-la, flagrando cerca de cinco mil
contas de figurões, abastecidas no período da transição política com
recursos evadidos ilicitamente.
O caso engendrou incidente diplomático entre os dois países e fruti-
ficou na posterior flexibilização do governo suíço em relação ao sigi-
lo de contas bancárias de origem injustificada. O fisco francês atesta
que todas essas cinco mil contas, sem exceção, transacionaram com o
governo francês a repatriação dos capitais e o pagamento de pesadas
multas, em troca da indulgência atinente à persecução criminal.
Tais procedimentos são mais usuais do que se imagina nos países do-
tados de função pública profissionalmente devotada à defesa do inte-
resse público nacional. A imprensa reportou, no início do ano de 2008,
990 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

caso semelhante ocorrido entre o governo da Alemanha e os paraísos


fiscais do Luxemburgo e Liechtestein. A guerra da informação, ali-
mentada em permanência nos bastidores, abrange também o mundo
das finanças públicas.
O fisco não pode ser leniente, menos ainda apregoar leniência, como
ocorre quando se descarta a priori a idéia da tributação das fortunas,
concedendo-se que os patrimônios imediatamente se evaporariam e
se expatriariam. Pobre do país cujo único fator de atração e fixação de
capitais fosse a ausência de tributação patrimonial!
No país das capitanias hereditárias, cuja formação econômica se perfez
em ciclos sucessivos de exploração predatória de recursos naturais, não
se consumou ainda a construção de identidade nacional consistente e é
ainda falho o processo de identificação das elites com um projeto demo-
crático de nação que mereça sacrifícios pelo bem comum. Isso espelha
um atraso civilizatório, ou visto mais cruamente, é signo de selvageria.
É compreensível, nessa perspectiva histórica, que os porta-vozes da
elite patrimonialista condenem a idéia de uma tributação sintética
progressiva da fortuna, assim como se eriçam contra qualquer ameaça
de aumento da progressividade de impostos diretos ou de reforço de
tributos patrimoniais.
Mas enquanto a questão da legitimidade social da propriedade e da
herança não é formulada explicitamente, negociada democraticamen-
te e equacionada em contrato social entre iguais que envolva seguran-
ça mútua e solidariedade contributiva, sobrevive-se em meio a uma
guerra civil larvar. Não é desejável viver em tal estado de coisas sem
mirar-se nas técnicas sociais que propiciaram a construção das demo-
cracias bem-sucedidas do mundo desenvolvido.
O humanismo laico, temperado por um pouco de ética protestante e
espírito do capitalismo, que alicerçam o elevado patamar civilizatório
alcançado por países da Europa setentrional, erigiram padrões de in-
clusão social, de valoração do ente humano, de uso parcimonioso da
riqueza que representam, por si, formidável libelo contra nossa insen-
sibilidade em relação às mazelas sociais, à baixa produtividade social
de nossas riquezas e a seu perfil distributivo que causa escândalo no
mundo civilizado.
A tributação patrimonial, ainda que declinante no mundo, continua
persistentemente forte, bem acima da média, exatamente nas mencio-
nadas potências capitalistas mais impregnadas da ideologia liberal, a
saber, Estados Unidos, Japão, Inglaterra, Canadá e Coréia do Sul.
Tributação da fortuna, preceito constitucional irrealizado 991

A tributação patrimonial está entre as técnicas tributárias mais an-


tigas, é verdade, mas é certo que ela desempenhou importante papel
no desenvolvimento do capitalismo, em todos os países-locomotivas
do capitalismo. O capitalismo tardio, nos países periféricos, particu-
larmente no Brasil, onde o atraso na implementação de reforma da
propriedade agrária acarretou inegável freio ao desenvolvimento de
relações modernas de produção, é que convive com ampla rejeição à
tributação patrimonial. Isso é atraso; portanto, não é modernidade.
Lá fora, a tributação da fortuna cumpriu sua função econômica e social,
isso foi reconhecido pela maioria dos países que a praticaram, ao passo
que aqui, onde desigualdades distributivas são efetivamente disfuncionais
em relação à modernidade capitalista, técnicas tributárias progressivas, de
índole redistributiva, ainda têm importante caminho a percorrer.
O paradigma da progressividade e a adesão à idéia da função redistri-
butiva do sistema fiscal triunfaram nas discussões cultivadas no final
dos anos oitenta e início dos anos noventa, no âmbito da reforma
tributária norte-americana. Esse triunfo foi celebrado como um reco-
nhecimento simbólico, entranhado nas vísceras da civilização huma-
nista norte-americana, do princípio da solidariedade, que foi afirmado
expressamente e comemorado como tal, com a derrota das propostas
do “flat tax”, derrota que sucedeu intensos debates, reflexões, estudos,
simulações e se revestiu da dignidade de assumida rejeição social.
Não deixa de ser promissora a recente inflexão ocorrida no órgão go-
vernamental de pesquisas econômicas, o Ipea, quando deu publicidade
a documento, de autoria de seu presidente, restaurador de preocupa-
ções com a função redistributiva da tributação, com o reforço da tribu-
tação patrimonial, o incremento da progressividade, a busca da cura da
destoante regressividade do sistema tributário brasileiro, movimento
esse que talvez resulte em fazer, mais adiante, o art. 153, VII, da CF,
deixar de ser ornamento constitucional desbotado.

Referências

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Hermann, 1988.
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VENTEJOL, G.; BLOT, R.; MÉRAUD, J. Rapport de la commission d’étude d’un
prélèvement sur les fortunes. Paris : La Documentation Française, 1979. 3v.
Perfil profissional
993

Perfil profissional dos autores,


dos organizadores da obra e dos
membros da Comissão Editorial,
em ordem alfabética

AÉRCIO DOS SANTOS CUNHA, economista (Faculdade de


Ciências Econômicas da UFMG, 1968); doutor em Economia
(Universidade Vanderbilt, EUA, 1978); é consultor legislativo
desde 1994, atuando na Área X – Agricultura e Política Rural.
E-mail: aercio.cunha@camara.gov.br

ALESSANDRA VALÉRIO DA SILVA TORRES, engenheira


agrônoma (UFV, 1992); especialista em Sensoriamento Remoto e
Sistemas de Informações Geográficas (UFPB, 1998); mestre em
Desenvolvimento Sustentável (UnB, 2003); é consultora legislativa,
desde 2003, atuando na Área VI – Direito Agrário e Política Fundiária.
E-mail: alessandra.silva@camara.gov.br

ALESSANDRO GAGNOR GALVÃO, jornalista (UnB, 1986);


mestre em Antropologia Social (UnB, 2005); é consultor legislativo
desde 1991, atuando na Área XX – Redação e Discurso Parlamentar.
E-mail: alessandro.galvao@camara.gov.br

ALEXANDRE DE BRITO NOBRE, economista (Faculdade


de Ciências Econômicas da UFC, 1988); especialista em Políticas
Públicas (ENAP, 1990); é consultor legislativo desde 1991, atuando
na Área IV – Finanças Públicas.
E-mail: alexandre.nobre@camara.gov.br

ALEXANDRE SANKIEVICZ, bacharel em Direito (UnB,


2002), especialista em Direito Público (Instituto Brasiliense de
Direito Público, 2005); mestrando em Direito Constitucional; é
consultor legislativo desde 2004, atuando na Área II – Direito Civil
e Processual Civil, Penal e Processual Penal, de Família, do Autor, de
Sucessões, Internacional Privado.
E-mail: alexandre.sankievicz@camara.gov.br
994 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

AMANDINO TEIXEIRA NUNES JUNIOR, bacharel em


Ciências Econômicas (UFMA, 1981); bacharel em Direito (PUC/
MG, 1985); especialista em Administração Pública (Fundação João
Pinheiro, 1985); mestre em Direito (UFMG, 1989); especialista
em Direito Público (UnB, 1995); doutor em Direito (Universidade
Federal de Pernambuco - UFPE); é consultor legislativo desde 1994,
atuando na Área I – Direito Constitucional, Eleitoral, Municipal,
Administrativo, Processo Legislativo e Poder Judiciário.
E-mail: amandino.junior@camara.gov.br

ANA VALESKA AMARAL GOMES, jornalista (UniCEUB/


DF, 1993); especialista em Políticas Públicas (EPPG/UFRJ,
1998); mestre em Educação (UnB, 2002); é consultora legislativa,
desde 2005, atuando na Área XV – Educação, Cultura, Desporto,
Ciência e Tecnologia.
E-mail: valeska.gomes@camara.gov.br

ANTÔNIO OCTÁVIO CINTRA, sociólogo, especialista em


Administração Pública (UFMG, 1961), mestre em Sociologia
(Faculdade Latinoamericana de Ciencias Sociales, Chile, 1963),
doutor em Ciência Política (Massachusetts Institute of Technology,
1969); é consultor legislativo desde 1991, atuando na Área XIX –
Ciência Política, Sociologia Política, História, Relações Internacionais.
E-mail: antonio.cintra@camara.gov.br

BERNARDO ESTELLITA LINS, engenheiro civil (UnB,


1981), mestre em Economia (UnB, 2003); doutor em Economia
(UnB, 2008); é consultor legislativo desde 1994, atuando na Área
XIV – Comunicação Social, Informática, Telecomunicações,
Sistema Postal, Ciência e Tecnologia.
E-mail: bernardo.lins@camara.gov.br

CAIO HILTON DE FREITAS TEIXEIRA, bacharel em


Direito (Faculdade de Direito de Uberaba - MG, 1972);
especialista em Direito Agrário (Faculdade “La Sapienza” de Pisa,
Itália); é consultor legislativo desde 1991, atuando na Área VI
– Direito Agrário e Política Fundiária.
E-mail: caio.teixeira@camara.gov.br
Perfil profissional 995

CÉSAR C. A. MATTOS, economista (UnB, 1986); mestre em


Economia (PUC/RJ, 1991); doutor em Economia (UnB, 2001);
é consultor legislativo desde 2003, atuando na Área IX – Política
e Planejamento Econômicos, Desenvolvimento Econômico,
Economia Internacional.
E-mail: cesar.mattos@camara.gov.br

CLÁUDIA AUGUSTA FERREIRA DEUD, economista (UnB,


1984); especialista em Políticas Públicas (UnB, 1988); bacharel em
Direito (UniCEUB, 2000); é consultora legislativa, desde 1991,
atuando na Área XXI – Previdência e Direito Previdenciário.
E-mail: claudia.deud@camara.gov.br

CLAUDIA GOMES PAIVA, lingüista, Licenciada em Língua e


Literatura Inglesas (UnB, 1988); especialista em Língua Portuguesa
(UniCEUB, 2002); mestre em Lingüística (UnB, 2006); Doutoranda
em Lingüística (UnB, 2007); é consultora legislativa desde 1994
atuando na Área XX – Redação e Discurso Parlamentar.
E-mail: claudia.paiva@camara.gov.br

CRISTIANO VIVEIROS DE CARVALHO, engenheiro civil


(UnB, 1982); e bacharel em Direito (AEUDF, 1997); mestre em
Direito Público e Estado (UnB, 2000); é consultor legislativo desde
1991, atuando na Área III – Direito Tributário.
E-mail: cristiano.carvalho@camara.gov.br

EDNILTON ANDRADE PIRES, bacharel em Direito (Centro


Universitário do Distrito Federal, 1998); Engenheiro (UnB, 1986);
especialista em Processo Legislativo (Centro de Formação da
Câmara dos Deputados, 2008); é consultor legislativo desde 1994,
atuando na Área VIII – Administração Pública.
E-mail: ednilton.pires@camara.gov.br

EDUARDO FERNANDEZ SILVA, economista (Faculdade de


Ciências Econômicas da UFMG, 1972); especialista em Economia
Urbana e mestre em Economia (Institute of Social Studies, Haia,
Holanda, 1975 e 1976); é consultor legislativo desde 2003, atuando
na Área IX – Política e Planejamento Econômicos, Desenvolvimento
Econômico, Economia Internacional.
E-mail: eduardo.fernandez@camara.gov.br
996 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ELIR CANANÉA SILVA, bacharel em Direito (Faculdade


de Direito da UFRJ, 1989); é consultor legislativo desde 1991,
atuando na Área XVIII – Direito Internacional Público,
Relações Internacionais.
E-mail: elir.cananea@camara.gov.br

ELIZABETH MACHADO VELOSO, jornalista (Faculdade de


Comunicação da UnB, 1991); especialista em Difusão Científica
e Tecnológica (UnB, 1992); especialista em Desenvolvimento
Gerencial (UnB, 2003); é consultora legislativa desde 2005, atuando
na Área XIV – Comunicação Social, Telecomunicações, Sistema
Postal, Ciência e Tecnologia.
E-mail: elizabeth.veloso@camara.gov.br

EMILE PAULUS JOHANNES BOUDENS, licenciado em


Filosofia (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras
de São João Del Rei – MG, 1973); especialista (pós-graduação
latu sensu) em supervisão escolar (PUC/MG, 1980); é consultor
legislativo desde 1991 (aposentado em 2003), com atuação na Área
XV – Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia.
E-mail: emileboudens@hotmail.com

FÁBIO DE BARROS CORREIA GOMES, médico (UFPE,


1987); especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental
(ENAP, 1998); mestre em Saúde Pública (Emory University
School of Public Health, 1991); mestre em Política Social (UnB,
2007); doutorando em Ciência Política pelo Iuperj (desde 2007);
é consultor legislativo desde 2003, atuando na Área XVI – Saúde
Pública, Sanitarismo.
E-mail: fabio.gomes@camara.gov.br

FAUSTO DE PAULA MENEZES BANDEIRA, engenheiro


eletricista (UnB, 1980); advogado (AEUDF, 2000); especialista em
Engenharia de Sistemas Elétricos (EFEI, 1983); especialista em
Energia (MBA-ESAD/FUNCEFET-UFRJ, 2003); especialista em
Direito Público (UCB, 2005); é consultor legislativo desde 2003,
atuando na Área XII – Recursos Minerais, Hídricos e Energéticos.
E-mail: fausto.bandeira@camara.gov.br
Perfil profissional 997

FERNANDO CARLOS WANDERLEY ROCHA, oficial da


Reserva do Exército Brasileiro (Curso de Infantaria da AMAN,
1975); bacharel em Direito (Faculdades de Direito da UFPA,
UERJ e UFMG, 1985); especialista em análise de sistemas (Centro
de Estudos de Pessoal/Exército Brasileiro, 1988); especialista em
Filosofia Moderna e Contemporânea (UFJF, 2002); mestre em
Aplicações Militares (Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais/
Exército Brasileiro, 1985); é consultor legislativo desde 2003,
atuando na Área XVII – Segurança Pública e Defesa Nacional.
E-mail: fernando.wanderley@camara.gov.br

GISELE SANTORO TRIGUEIRO MENDES, bacharel em


Direito (AEUDF, 1980); especialista em Direito do Trabalho,
pós-graduada, lato sensu, (PUC/MG, 2006); é consultora legislativa,
desde 1991, atuando na Área V – Direito do Trabalho e Processual
do Trabalho.
E-mail: gisele.mendes@camara.gov.br

GUSTAVO ROBERTO CORRÊA DA COSTA SOBRINHO,


engenheiro agrônomo (Escola Superior de Agricultura de Lavras
- ESAL, 1989); mestre em Agronegócios (Consórcio UnB, UFMS e
UFGO, 2006); é consultor legislativo desde 2003, atuando na Área
X – Agricultura e Política Rural.
E-mail: gustavo.sobrinho@camara.gov.br

ILÍDIA DA ASCENÇÃO GARRIDO MARTINS JURAS,


bióloga (Instituto de Biociências da USP, 1974); mestre (USP, 1980)
e Doutora em Oceanografia Biológica (USP, 1989); é consultora
legislativa desde 1994, atuando na Área XI – Meio Ambiente e
Direito Ambiental, Organização Territorial, Desenvolvimento
Urbano e Regional.
E-mail: ilidia.juras@camara.gov.br

JOÃO SANTOS COELHO NETO, bacharel em Direito (UFPB,


1971); especialista em Direito de Mineração (UnB, 1973) e em Direito
de Petróleo Comparado (Universidade de Dundee, Escócia, 1982
- 1983); é consultor legislativo desde 1978 (aposentado em 1998), com
atuação na Área XII – Recursos Minerais, Hídricos e Energéticos.
E-mail: jsantoscoelho@globo.com
998 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

JOSÉ CORDEIRO DE ARAÚJO, engenheiro agrônomo


(Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel – UFPEL, 1970); MSc em
Fitotecnia de Forrageiras (UFRGS, 1972); especialista em Políticas
Públicas e Governo (EPPG/UFRJ, 1998); é consultor legislativo
desde 1991, atuando na Área X – Agricultura e Política Rural.
E-mail: jose.araujo@camara.gov.br

JOSÉ DE SENA PEREIRA JR., engenheiro civil (Departamento


de Engenharia Civil da UnB, 1973); engenheiro sanitarista
(especialista - Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São
Paulo - USP, 1979); é consultor legislativo desde 1991, atuando
na Área XI – Meio Ambiente e Direito Ambiental, Organização
Territorial, Desenvolvimento Urbano e Regional.
E-mail: jose.sena@camara.gov.br

JOSÉ MACHADO DE OLIVEIRA FILHO, engenheiro civil


(Federação das Escolas Superiores do Estado do Maranhão, 1975);
pós-graduação em Consultoria de Pequenas e Médias Indústrias
(UNICAMP, 1976); especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental (ENAP, 1990); é consultor legislativo desde 1991,
atuando na Área VII – Sistema Financeiro, Direito Comercial,
Econômico, Defesa do Consumidor.
E-mail: jose.filho@camara.gov.br

JOSÉ MACIEL DOS SANTOS FILHO, engenheiro agrônomo


(Escola de Agronomia da UFBA, 1972); mestre em Agronomia
(UFRGS, 1976); doutor em Economia (USP, 1988); é consultor
legislativo desde 1994, atuando na Área X – Agricultura e Política Rural.
E-mail: jose.maciel@camara.gov.br

JOSÉ MARIA G. DE ALMEIDA JR. - bacharel e licenciado


em Ciências Biológicas (USP, 1965); bacharel em Direito (UniDF,
1989); especialista em Genética (USP, 1965); especialista em Direito
Ambiental (Fulbright Environmental Program, USA, 1990); mestre
em Biologia (Indiana University, USA, 1970); mestre e doutor em
Educação Ecológica / Ecologia Humana (Harvard University, USA,
1975); é consultor legislativo desde 1991, atuando na Área XV
– Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia.
E-mail: jose.almeida@camara.gov.br
Perfil profissional 999

JOSÉ RICARDO ORIÁ FERNANDES, graduado em


História (Universidade Estadual do Ceará, 1983); bacharel
em Direito (UFC, 1988); mestre em Direito Público (UFC,
1995); doutorando em História da Educação (USP); é consultor
legislativo desde 1994, atuando na Área XV – Educação, Cultura,
Desporto, Ciência e Tecnologia.
E-mail: ricardo.oria@camara.gov.br

JOSÉ THEODORO MASCARENHAS MENCK, bacharel em


Direito (UnB, 1985); especialista em Direito Romano (Primeira
Universidade de Roma - La Sapienza – 1987); mestre em História
Social (UnB; 1995); doutor em História das Relações Internacionais
(UnB; 2001); é consultor legislativo desde 1993, atuando na Área
I – Direito Constitucional, Eleitoral, Municipal, Administrativo,
Processo Legislativo e Poder Judiciário.
E-mail: jose.menck@camara.gov.br

JOSÉ VERÍSSIMO TEIXEIRA DA MATA, licenciado em


Filosofia (USP, 1985); bacharel em Direito (PUCCAMP, 1991);
mestre em Filosofia Antiga (USP, 1992); é consultor legislativo
desde 1994, atuando na Área I – Direito Constitucional, Eleitoral,
Municipal, Administrativo, Processo Legislativo e Poder Judiciário.
E-mail: jose.mata@camara.gov.br

KLEY OZON MONFORT COURI RAAD, bacharel em Direito


(Faculdade Nacional de Direito – UFRJ, 1962); pós-graduada em
Direito Público (Institut International d’Administration Publique,
Paris, 1978); é consultora legislativa desde 1993, atuando na Área
I – Direito Constitucional, Eleitoral, Municipal, Administrativo,
Processo Legislativo e Poder Judiciário.
E-mail: kley.ozon@camara.gov.br

LUCIANA BOTELHO PACHECO, bacharel em Direito


(Faculdade de Direito da UERJ, 1988); especialista em Assessoria
Parlamentar e Processo Legislativo (Depto. de Ciência Política,
UnB, 2004); é consultora legislativa, desde 1991, atuando na Área
I – Direito Constitucional, Eleitoral, Municipal, Administrativo,
Processo Legislativo e Poder Judiciário.
E-mail: luciana.pacheco@camara.gov.br
1000 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

LUCIANA DA SILVA TEIXEIRA, economista (UnB, 1992);


mestre em Economia ( Johns Hopkins University, 1996); Doutora
em Economia (UnB, 2003); é consultora legislativa desde 2003,
atuando na Área IX – Política e Planejamento Econômicos,
Desenvolvimento Econômico, Economia Internacional.
E-mail: luciana.teixeira@camara.gov.br

LUCIANO GOMES DE CARVALHO PEREIRA, engenheiro


agrônomo (UnB, 1980); especialista em Fontes Alternativas de
Energia para a Agricultura (Abeas/PUC-RS, 1986); Engenharia da
Irrigação (Abeas/UnB, 1987); Agricultura Tropical (Abeas/UFRPE,
1988); Direitos de Propriedade, Biodiversidade e Conhecimento
Tradicional (Redcapa, 2005); Manejo Integral de Zonas Costeiras
(Redcapa, 2005); é consultor legislativo desde 1991, atuando na Área
X – Agricultura e Política Rural.
E-mail: luciano.pereira@camara.gov.br

LÚCIO SOARES PEREIRA, economista (UnB, 1969); advogado


(AEUDF, 1996); pós-graduado em Mercado de Capitais (EPGE/
FGV, 1972) e em Análise de Sistemas (IBM/Petrobrás, 1970); é
consultor legislativo da Câmara dos Deputados desde 1991, atuando
na área IX – Economia.
E-mail: lucio.pereira@camara.gov.br

LUÍS ANTONIO GUERRA CONCEIÇÃO SILVA,


engenheiro agrônomo (UnB, 1980); especialista em Extensão Rural
(EMBRATER, 1982); bacharel em Direito (UnB, 1998); é consultor
legislativo desde 2004, atuando na Área VI – Direito Agrário e
Política Fundiária.
E-mail: luis.guerra@camara.gov.br

LUIZ ALMEIDA MIRANDA, bacharel em Ciências Contábeis


(Faculdade de Ciências Contábeis/ FUPAC/ Barbacena - MG,
1969); bacharel em Direito (Faculdade de Direito “Milton Campos”,
Belo Horizonte - MG, 1989); é consultor legislativo desde 1994,
atuando na Área VI – Direito Agrário e Política Fundiária.
E-mail: luiz.miranda@camara.gov.br
Perfil profissional 1001

LUIZ HENRIQUE CASCELLI DE AZEVEDO, bacharel em


Direito (UnB, 1986) e em Filosofia (UnB, 1990); pós-graduado
em Fenomenologia (UnB, 1992); mestre em Direito do Estado
(UnB, 2000); doutor em Teoria do Direito (UFGRS, 2006); é
consultor legislativo desde 1994, atuando na Área I – Direito
Constitucional, Eleitoral, Municipal, Administrativo, Processo
Legislativo e Poder Judiciário.
E-mail: luiz.azevedo@camara.gov.br

LUIZ HENRIQUE VOGEL, bacharel em Comunicação Social


– Jornalismo (PUC-RS, 1990); mestre em Ciência Política (UnB,
2002); e doutorando em Ciência Política (Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ); é consultor legislativo desde
2003, atuando na Área XIX – Ciência Política, Sociologia Política,
História, Relações Internacionais.
E-mail: luiz.vogel@camara.gov.br

MÁRCIO NUNO RABAT, bacharel em Direito (Universidade


de Coimbra, 1989); é consultor legislativo desde 1993, atuando
na Área XIX – Ciência Política, Sociologia Política, História,
Relações Internacionais.
E-mail: marcio.rabat@camara.gov.br

MÁRCIO SILVA FERNANDES, bacharel em Direito


(UnB, 2001); especialista em Direito Civil (Unisul, 2006); é
consultor legislativo desde 2003, atuando na Área I – Direito
Constitucional, Eleitoral, Municipal, Direito Administrativo,
Processo Legislativo e Poder Judiciário.
E-mail: marcio.fernandes@camara.gov.br

MARIA REGINA REIS, bacharel em Direito (UnB,1985); é


consultora legislativa desde 1991, atuando na Área II – Direito Civil
e Processual Civil; Penal e Processual Penal de Família, do Autor, de
Sucessões, Internacional Privado.
E-mail: regina.reis@camara.gov.br

MARIA SÍLVIA BARROS LORENZETTI, arquiteta


(Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, 1884);
especialista em Políticas Públicas (EPPG/UFRJ, 1998); é
consultora legislativa desde 1994, atuando na Área XIII –
Desenvolvimento Urbano, Trânsito e Transportes.
E-mail: msb.lorenzetti@camara.gov.br
1002 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

MAURÍCIO BORATTO VIANA, geólogo (UFMG,


1983); bacharel em Direito (UFMG, 1994); especialista em
Gerenciamento de Recursos Naturais (UFMG, 1985); mestre
(Centro de Desenvolvimento Sustentável - UnB, 2007);
doutorando (Centro de Desenvolvimento Sustentável da
UnB); é consultor legislativo desde 2004, atuando na Área XI
– Meio Ambiente e Direito Ambiental, Organização Territorial,
Desenvolvimento Urbano e Regional.
E-mail: mauricio.boratto@camara.gov.br

MILSO NUNES VELOSO DE ANDRADE, bacharel em


Administração de Empresas (USP, 1970); mestre em Administração
(USP, 1987); bacharel em Direito (AEUDF, 2001); “Eisenhower
Fellow” (1996 Single Nation Program for Brazil), Eisenhower Co.,
Philadelphia - PA, EUA; mestrando em Direito Constitucional (IDP/
DF); é consultor legislativo desde 1991, atuando na Área VII – Sistema
Financeiro, Direito Comercial, Econômico, Defesa do Consumidor.
E-mail: milso.andrade@camara.gov.br

MURILO RODRIGUES DA CUNHA SOARES, engenheiro


(Escola de Engenharia de São Carlos - USP, 1982); bacharel em Direito
(UnB, 2006); especialista em Administração de Empresas (FGV-SP,
1986); mestre em Economia (FGV-SP, 1997); é consultor legislativo
desde 2003, atuando na Área III – Direito Tributário, Tributação.
E-mail: murilo.soares@camara.gov.br

NILTON RODRIGUES DA PAIXÃO JÚNIOR, bacharel


em Direito (UniDF, 1987); mestre em Direito (UFPE, 2003);
especialista em Filosofia e Existência (Universidade Católica de
Brasília, 2008); é consultor legislativo desde 1991, atuando na Área
V – Direito do Trabalho e Processual do Trabalho.
E-mail: nilton.junior@camara.gov.br

PAULO CÉSAR RIBEIRO LIMA, engenheiro mecânico


(UFMG, 1980); especialista em Engenharia de Dutos (Petrobras,
1987); mestre em Engenharia Mecânica (UFRJ, 1992); doutor
em Engenharia de Fluidos (Universidade de Cranfield, Inglaterra,
1999); é consultor legislativo desde 2003, atuando na Área XII
– Recursos Minerais, Hídricos e Energéticos.
E-mail: paulocesar.lima@camara.gov.br
Perfil profissional 1003

PAULO DE SENA MARTINS, bacharel em Direito (Faculdade


de Direito da USP, 1987); mestre em Direito (Faculdade de Direito
da USP, 1994); doutorando em Educação (Faculdade de Educação -
UnB, iniciado em 2006); é consultor legislativo desde 1994, atuando
na Área XV – Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia.
E-mail: paulo.martins@camara.gov.br

PAULO EUCLIDES RANGEL, bacharel e licenciado em Filosofia


(USP, 1968); bacharel em Direito (USP, 1977); pós-graduado em
Administração de Empresas (FGV-SP, 1975); especialista em
Finanças Públicas (Univ. Paris I - Panthéon-Sorbonne, 1981); é
consultor legislativo desde 1994, atuando na Área III – Direito
Tributário, Tributação.
E-mail: paulo.rangel@camara.gov.br

REGINA MARIA GROBA BANDEIRA, bacharel em Direito


(UnB, 1986); especialista em Direito Público (UCB, 2005); é
consultora legislativa, desde 1994, atuando na Área I – Direito
Constitucional, Eleitoral, Municipal, Direito Administrativo,
Processo Legislativo e Poder Judiciário.
E-mail: regina.bandeira@camara.gov.br

RICARDO CHAVES DE REZENDE MARTINS, economista


(UFRJ, 1974); mestre em Educação (Fundação Getúlio Vargas,
1981); doutorando em Ciência Política (IUPERJ, iniciado em 2007);
é consultor legislativo desde 1991, atuando na Área XV – Educação,
Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia.
E-mail: ricardo.martins@camara.gov.br

RICARDO JOSÉ PEREIRA RODRIGUES, graduado em


Geografia (California State University, Northridge, 1980) e
Comunicação Social (Universidade Católica de Pernambuco, 1985);
mestre em Ciência Política (UFPE, 1990); doutor em Ciência
Política (State University of New York, Albany, 2005); é consultor
legislativo desde 1994, atuando na Área XIX – Ciência Política,
Sociologia Política, História, Relações Internacionais.
E-mail: ricardo.rodrigues@camara.gov.br
1004 Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira

ROBERTO BOCACCIO PISCITELLI, graduado em


Ciências Contábeis (UERJ, 1970); economista (CEUB/DF, 1986);
especialista em Política e Administração Tributária (FGV/RJ, 1976)
e em Administração Econômica e Financeira (Universidade Paris
I, 1973); mestre em Administração Pública (UnB, 1985); créditos
de doutorado de 3º ciclo em Economia do Desenvolvimento
(Universidade Paris I, 1974); é consultor legislativo desde 1991,
atuando na Área IV – Finanças Públicas
E-mail: roberto.piscitelli@camara.gov.br

ROSELI SENNA GANEM, bióloga (UnB, 1982); mestre em


Ecologia (UnB, 1988); Doutora em Desenvolvimento Sustentável
(Centro de Desenvolvimento Sustentável, UnB, 2007); é consultora
legislativa desde 2005, atuando na Área XI – Meio Ambiente e
Direito Ambiental, Organização Territorial, Desenvolvimento Urbano
e Regional.
E-mail: roseli.ganem@camara.gov.br

SUELY MARA VAZ GUIMARÃES DE ARAÚJO, arquiteta


e urbanista (UnB, 1984); bacharel em Direito (UniCEUB, 1997);
mestre em Ciência Política (UnB, 2007); é consultora legislativa
desde 1991, atuando na Área XI – Meio Ambiente e Direito
Ambiental, Organização Territorial, Desenvolvimento Urbano e
Regional.
E-mail: suely.araujo@camara.gov.br

SUELY PLETZ NEDER, graduada em Ciências Políticas e Sociais


(USP, 1966); bacharel em Direito (Faculdades Unidas Católicas de
Mato Grosso, 1976); pós-graduada em Sociologia da Cooperação
(USP, 1966) e em Análise de Projeto de Desenvolvimento Regional
Integrado (convênio OEA/SEPLAN/SEPLAN-MS, 1980); é
consultora legislativa desde 1994, atuando na Área I – Direito
Constitucional, Eleitoral, Municipal, Administrativo, Processo
Legislativo e Poder Judiciário.
E-mail: suely.neder@camara.gov.br
Perfil profissional 1005

VICENTE MARCOS FONTANIVE, bacharel em Direito


(UFRGS, 1986); especialista em Direito e Economia das
Organizações Internacionais (Faculdade de Direito da Universidade
de Parma, Itália, 1989); é consultor legislativo desde 1991,
atuando na Área XVIII – Direito Internacional Público, Relações
Internacionais.
E-mail: vicente.fontanive@camara.gov.br

VILSON VEDANA, administrador (Faculdade de Administração


da UFRGS, 1978), bacharel em Direito (AEUDF, Brasília, 1995);
especialista em Serviços Postais (Deutsche Bundespost, Alemanha,
1985); é consultor legislativo desde 1991, atuando na Área XIV
– Ciência e Tecnologia, Comunicações e Informática.
E-mail: vilson.vedana@camara.gov.br

WAGNER MARQUES TAVARES, engenheiro eletricista (PUC-


MG, 1990); é consultor legislativo desde 2003, atuando na Área XII
– Recursos Minerais, Hídricos e Energéticos.
E-mail: wagner.tavares@camara.gov.br
Vol. 1
Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira
Câmara dos
A CONSULTORIA LEGISLATIVA
Deputados Vinte anos passados da festeja-
é um órgão de assessoramento insti- da promulgação de uma nova or-
tucional da Câmara dos Deputados dem constitucional brasileira exi-
que analisa situações, formula mi- gem reflexão.
nutas de propostas, realiza estudos
aprofundados e sugere alternativas O momento é propício para uma
de ação para fundamentar a atua- avaliação, sob a ótica de especialis-
tas, dos impactos das disposições
Ensaios sobre impactos da
ção do parlamentar. Trata-se de um
serviço prestado aos parlamentares, da Constituição Federal de 1988
às comissões técnicas da Câmara e sobre a sociedade brasileira, para
a análise da aplicação ou da reo-
aos demais órgãos do Parlamen-
to brasileiro de forma apartidária
e institucional.
Constituição Federal de 1988 rientação das políticas públicas e
das questões relativas às alterações

na sociedade brasileira
legislativas decorrentes dos novos
Para prestar esse serviço, a Con- mandamentos e dos novos tempos
sultoria Legislativa conta com iniciados há duas décadas.
uma equipe multidisciplinar de Sobre a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados
duzentos especialistas nas mais
Consultoria Legislativa Essa é uma das intenções da pre-
diversas áreas do conhecimento. O sente obra. Incorporando dife-
quadro de consultores é preenchi- A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) rentes enfoques e categorias de
do exclusivamente por profissio- cita-a como exemplo de instituição “bem-sucedida em desenvolver ampla análise, busca lançar algumas
nais de nível superior, experientes conclusões (ou inquietações, ou
capacidade técnica no Parlamento nos anos noventa, em nível comparável interrogações) sobre alguns temas
e especializados, recrutados por
meio de concurso público. No seu
aos das democracias mais antigas, como Grã-Bretanha, França ou Estados selecionados pelos autores, a par-
grande número de pós-graduados, Unidos” (SANTISO, Javier; WHITEHEAD, Laurence. Ulysses, the sirens tir do texto constitucional e con-
siderando a experiência brasileira
mestres e doutores, a Consultoria and the art of navigation: political and technical rationality in Latin Ameri-
Legislativa conta com especialis- nesse período caracterizado pela
ca. Relatório da OCDE, nº 256, set. 2006). Vol. 1 virada do milênio.
tas da área jurídica, engenheiros,
administradores, auditores, jorna- O Banco Interamericano de Desenvolvimento a reconhece, assim como às Trata-se de mais uma contribui-

Coleções Especiais | Obras Comemorativas | 02


listas, arquitetos, cientistas sociais, ção da Consultoria Legislativa
demais consultorias do Congresso Nacional, “como um fator-chave para
educadores, entre profissionais de da Câmara dos Deputados ao
muitas outras categorias. assegurar que os acordos e transações políticas que resultam das negocia- debate e ao aprofundamento do
ções do Congresso não sejam alcançados às custas da qualidade técnica das conhecimento acerca da realidade
Os consultores legislativos aten-
dem anualmente a mais de vinte leis” (BID. A política das políticas públicas: progresso econômico e social na brasileira e de suas relações com
mil solicitações de trabalho, entre América Latina, relatório 2006. São Paulo: Campus, 2007). as leis e com nossa Carta Magna.
consultas, estudos e atividades de Envolvendo o esforço e dedicação
elaboração legislativa. Cabe res- ж de mais de sessenta consultores
legislativos, esta obra aponta um
saltar que a Consultoria Legis-

Coleções Especiais | Obras Comemorativas | 02


lativa fez-se presente no assesso- caminho que será, indubitavel-
ramento do Congresso Nacional mente, seguido: a ampliação dos
durante o período constituinte, estudos e a continuidade da in-
que culminou com a elaboração quietação intelectual criadora, tão
da Constituição Federal de 1988, presente em vários segmentos da
bem como durante o processo de academia e desse órgão do Legis-
revisão constitucional, em 1994, lativo Brasileiro.
além de participar dos processos
de elaboração legislativa que re-
dundam em reforma constitucio-
nal e em novas leis para o país.

ж brasília | 2008

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