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D’UN MODELE

EPISTEMOLOGIQUE
DA LA COMMUNICATION
A UN MODELE PRAXEOLOGIQUE
_____________________________

Louis QUÉRÉ

Resumo: Este artigo apresenta um esquema conceitual comunicacional que aborda as relações
sociais sob o prisma da atividade conjugada dos atores sociais, através da qual um mundo
comum, um espaço público e um campo prático são continuamente modelados e mantidos
pela participação de sujeitos pertencentes a sua mesma comunidade de linguagem e de ação, e
que dispõem de medições simbólicas compartilhadas. A esse esquema conceitual que busca
elucidar problemas metateóricos, formular teorias e propor reflexões metodológicas, o autor
denomina modelo praxiológico da comunicação.

Palavra-chave: modelo epistemológico; modelo praxiológico; intersubjetividade prática;


racionalidade comunicativa.

Réseaux nº 46-47 CNET - 1991


2

DE UM MODELO EPISTEMOLÓGICO DA COMUNICAÇÃO A UM MODELO


PRAXIOLÓGICO

Louis Quéré

Traduzido por Lúcia Lamounier Sena


Vera Lígia Westin

“O ato de comunicar não se traduz por uma transferência de informação


do emissor a um destinatário, mas antes pela modelagem mútua de um
mundo comum em meio a uma ação conjugada: é nossa realização
social, por ato de linguagem, que empresta vida a nosso mundo (...) De
fato, uma tal rede de gestos de conversação, comportando suas
condições de satisfação, constitui não um instrumento de comunicação,
mas a verdadeira trama sobre a qual se desenha nossa identidade”.1

O que está em jogo no desenvolvimento atual da abordagem comunicacional nas ciências


humanas e da sociedade? Nada menos, sem dúvida, que uma mudança de paradigma para a
análise do social. Certamente a idéia de uma análise dos fenômenos sociais em termos de
comunicação não data de hoje. Ela inspirou vários programas de pesquisa, desde o
pragmatismo americano e o interacionismo simbólico até o estruturalismo. Contudo, parece
ter havido um aprofundamento da perspectiva comunicacional nas últimas décadas, na
bagagem da fenomenologia, da hermenêutica, da análise wittgensteiniana da linguagem e de
suas expressões sociológicas.

Talvez eu deva precisar, desde já, que meu objetivo não é tanto recuperar o interesse
manifestado pelo tema da comunicação - que, como se diz às vezes, esteve na moda há algum
tempo, seja nas mídias, na gestão das empresas e na pesquisa -, mas o desenvolvimento de
uma maneira de conceber o mundo, o homem e a vida social, que concilia à ação

1
Varela, Connaître, p. 115)
3

comunicativa e à “comunidade de comunicação” o que se pode chamar de um “estatuto


transcendental”.

Por abordagem comunicacional, entendo o uso da noção de comunicação como esquema


conceitual para dar conta da atividade e da organização social, das relações sociais e da ordem
social, esquema esse voltado para a elucidação de problemas metateóricos na análise
conceitual, na formulação de teorias e na reflexão metodológica. Este esquema é
comunicacional na medida em que:
a) relaciona a objetividade e a subjetividade, a individualidade e a sociabilidade, na
medida em que elas se especificam reciprocamente e simultaneamente, nas práticas pelas
quais os membros de uma coletividade dão forma e sentido às suas interações com o mundo e
com os outros, num quadro de organização de suas atividades práticas;
b) confere primazia não à representação adequada, do ponto de vista do observador
não-engajado, de proprietários de um mundo exterior ou de um mundo interior pré-
determinados, mas à “atividade organizante” conjugada dos atores sociais, pela qual um
mundo comum, um “espaço público”, um campo prático, um sentido compartilhado de uma
realidade comum, são continuamente modelados e mantidos como condição e resultado da
ação;
c) relaciona o sentido, a racionalidade, a inteligibilidade, a intercompreensão, que
subentende a cooperação social, não à subjetividade individual ou à objetividade da história,
de uma situação ou de uma função social (subjetividade e objetividade postas como origens),
mas a uma produção e a uma recepção coordenadas no espaço público. Relaciona-os, então, a
uma coletividade, a práticas comuns que os sujeitos efetuam, uns em relação aos outros e em
relação ao mundo, sujeitos esses pertencentes a uma mesma comunidade de linguagem e de
ação, e dispondo de mediações simbólicas compartilhadas (conceitos, jogos de linguagem,
formas instituídas) efetuando uns em relação aos outros e em relação ao mundo;
d) confere um lugar essencial à linguagem e a apreende em suas diferentes dimensões,
considerando em particular que a linguagem não serve somente para designar ou para
representar as coisas, mas que ela tem também uma dimensão expressiva constitutiva (ela é
parte integrante de realidades mesmas as quais é capaz de descrever e relacionar).
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Em outros termos, nesse paradigma, a comunicação é tratada como lugar da constituição


social dos fenômenos, que a análise social se propõe a descrever e explicar; como meio no
qual emergem e se mantêm os objetos e os sujeitos, os indivíduos e as coletividades, o mundo
comum e a sociedade. Mas que sentido dar ao termo “comunicação” quando se faz dela uma
dimensão constitutiva de toda organização conjunta de atividades práticas? É ao
esclarecimento desta questão que eu gostaria de consagrar as duas primeiras partes deste texto.

A mudança de paradigma em curso é, em parte, ligada às transformações internas do campo


intelectual e à evolução das diferentes disciplinas. Mas não entrarei na explicação destas
transformações, que são um objeto de investigação em si mesmas. Eu gostaria, também, de
tentar delimitar o mais precisamente possível em que consistem as mudanças que introduzem
a abordagem comunicacional do mundo social, e de identificar algumas de suas implicações
para a análise e a teoria sociológicas. Este será o objeto da terceira parte do texto.

A idéia que vai guiar minha argumentação é que a abordagem comunicacional se apresenta
como uma alternativa crítica à tradição “epistemológica” que herdamos do século XVII. Ela
propõe uma outra concepção do conhecimento e da ação, do mundo e da sociedade, do
indivíduo e da sociabilidade em oposição à concepção “representacionista” e cognitiva. O
problema é, então, também conseguir substituir o modelo representacionista-informacional de
comunicação por um modelo propriamente comu-nicacional. É o que permite, a meu ver,
fazer uma concepção praxiológica da comunicação, articulada a uma problemática da
construção intersubjetiva da objetividade, e a uma concepção “constitutivista” da linguagem,
da expressão e da cognição.

REPRESENTAÇÃO OU CONSTITUIÇÃO PELA AÇÃO RECÍPROCA? DOIS


ESQUEMAS PARA DAR CONTA DA COMUNICAÇÃO

Parece-me que se pode opor esquematicamente duas grandes concepções da comunicação.


Uma é “epistemológica”, no sentido de que ela racionaliza em termos de produção e de
transferência de conhecimento sobre o mundo e as pessoas; ela depende no essencial do
esquema da representação. A outra é “praxiológica” e depende do esquema da constituição de
um mundo comum pela ação, ou, como se diz às vezes em ciências sociais, do esquema da
“construção social da realidade”. Só a segunda concepção, me parece, é suscetível de
5

alimentar a mudança de paradigma, da qual é virtualmente portadora a abordagem


comunicacional dos fenômenos sociais. Eu gostaria de pôr em evidência as premissas desses
dois modelos, e justificar o abandono da concepção “epistemológica” da comunicação2.

O ESQUEMA REPRESENTACIONISTA

É espontaneamente que nós enxergamos a comunicação como um processo de transmissão de


informações. Seguindo as intuições do senso comum chegamos aos pressupostos básicos do
esquema representacionista:
a) a comunicação é, quanto ao seu conteúdo, uma questão de aquisição, de transmissão
e de tratamento da informação, isto é, de elaboração, de difusão e de recepção de
representações do mundo real que estão no espírito e tomam a forma de pensamentos, de
hipóteses ou de fatos (com efeito, conhecer é representar adequadamente o que está em volta
do espírito);
b) quanto à sua modalidade ou ao seu processo, a comunicação consiste em suscitar,
em um destinatário, representações ou idéias semelhantes àquelas que há no espírito daquele
que remete a mensagem;
c) é essencial, para que haja comunicação, e não somente revelação involuntária de
informações, que a transmissão de informação seja intencional, isto é, que o comunicador
tenha uma intenção de informar um certo conteúdo e uma intenção de fazer reconhecer sua
intenção de informar o conteúdo destas intenções, que são estados psicológicos ou mentais,
devendo poder ser mentalmente representado (pois, como diz Locke, o que é próprio de uma
idéia é “resistir diante do espírito de um homem que pensa”);
d) a comunicação é bem sucedida quando representações similares são produzidas
junto ao comunicador e ao seu destinatário. Para os semiólogos, que raciocinam em termos de
códigos e decodificação de mensagens, o que garante este sucesso da comunicação é uma boa
aplicação do código. Para outros, chamados intencionalistas, o que é determinante é o
processo de inferência pelo qual um destinatário calcula as intenções e as representações
exatas de um comunicador. Estes últimos insistem sobre a importância do reconhecimento das

2Emprego o termo epistemológico no sentido inglês do termo. A epistemologia é a teoria do conhecimento. A


palavra francesa que melhor corresponde a epistemological seria gnoseológico. Denomino epistemológico o
modelo da comunicação que raciocina em termos de formação e transição de representações adequadas das
propriedades das coisas, devido a processos mentais e a práticas de “indiciação” de estados internos.
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intenções comunicativas, pois são elas que permitem ao destinatário inferir o que o
comunicador quis exatamente informar (cf. Sperber e Wilson, 1986);
e) a comunicação é um processo de produção e de interpretação de signos, através dos
quais os parceiros da interação tornam mutuamente manifestos os fatos, as hipóteses ou os
pensamentos que eles querem informar aos outros. Num caso (modelo semiológico), trata-se
de sinais dos quais é necessário extrair uma mensagem; em outro (modelo ostensivo-
inferencial), trata-se de indícios permitindo inferir representações e estados mentais
(considero que esses modelos da comunicação distinguidos por Sperber e Wilson dependem
do mesmo esquema “epistemológico”).

Pode-se decompor, como se segue, o sistema de premissas que estão subentendidas neste
esquema informacional de comunicação. A premissa principal é que a comunicação é um
desafio essencialmente cognitivo: ela contribui para modificar o ambiente cognitivo dos
agentes (no sentido de Sperber e Wilson, cuja teoria é um dos mais belos florões do esquema
representacionista), o conjunto dos fatos ou de hipóteses que são manifestas (perceptíveis ou
inferíveis) por um indivíduo, e sobre cuja base ele age. Esta premissa principal comporta três
elementos. Primeiro, o mundo é pré-definido e suas propriedades são independentes da
percepção e da atividade cognitiva dos sujeitos do conhecimento, que se contentam em
recuperar ou em reconstituir uma realidade extrínseca. O segundo elemento é a convicção de
que há uma separação clara e nítida entre as idéias, os pensamentos, as representações e as
descrições, de um lado, e aquilo sobre o que eles evocam, quer dizer, o mundo real, seja
externo ou interno, do outro. O terceiro elemento é a idéia de que a atividade cognitiva é
uma questão de construção e de validação de representações adequadas das
propriedades deste mundo real pré-determinado, seja com a ajuda da língua, de imagens
ou de artefatos. Fazem parte deste mundo real pré-definido tanto os estados internos dos
sujeitos que podem comunicar suas intenções, desejos, crenças, pensamentos, sentimentos,
emoções etc., (enquanto estados intencionais, reais, discretos, individualizados e diretamente
acessíveis a seus possuidores), quanto os estados das coisas, dos acontecimentos, dos objetos
e das pessoas.
Uma segunda premissa essencial do esquema representacionista é a convicção de que,
face ao mundo e aos outros, se tem um sujeito “epistemológico” cujo espírito é, como diz
Rorty, “o espelho da natureza”. Daí, o privilégio assumido do ponto de vista do observador
que produz, valida, transmite e infere as representações (aí compreendidas a partir do
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reconhecimento das intenções informativas e comunicativas), às quais ele tem acesso direto
pelo modo de observação interna graças ao “olho do espírito”. O modelo “epistemológico”
não conhece no fundo senão sujeitos monológicos. Dotados de estados internos e de
representações mentais, esses não se relacionam com o mundo e com os outros a não ser numa
postura de observação e de objetivação. Eles fixam nas hipóteses as propriedades de um
mundo (externo e interno) pré-definido. Eles tentam saber quais são os fatos ou hipóteses que
são também manifestos pelos outros. Nas suas relações comunicativas entre si, eles procuram
estabelecer, a partir de índices e por inferências, quais são suas intenções informativas
respectivas, enquanto representações ou fatos no espírito. Enfim, se eles se comunicam entre
si, é essencialmente para modificar seus “ambientes cognitivos”, isto é, suas representações, e,
por aí, desencadear comportamentos. Estes sujeitos são observadores descomprometidos (C.
Taylor): para alcançar a natureza intrínseca das coisas e construir uma representação absoluta
das propriedades do mundo real, aí compreendidas as intenções e as representações de seus
parceiros de interação, eles devem abstrair de todo ponto de vista e de todo pertencimento a
uma comunidade de comunicação.

A terceira premissa é uma concepção puramente factual da subjetividade. Além de ser capaz
de representar mentalmente os fatos e de observar diretamente suas representações, o sujeito
“epistemológico” tem estados intencionais (desejos, crenças, intenções, pensamentos,
opiniões), que são eles também realidades em si, independentes de suas atividades e
suscetíveis de serem representados como fatos. Estes estados, supõe-se, são diretamente
acessíveis àquele que os possui; eles não implicam então nenhuma mediação; e a eles é
imputado causar seus comportamentos e seus gestos (cf. a definição de Descartes: “tudo que
está em nós, imediatamente somos seus conhecedores”). A ação se divide então em dois
componentes: os movimentos físicos e os estados mentais que os dirigem. A significação das
ações, ou sua intencionalidade, é o produto das idéias que foram engendradas ou que elas
encarnam. Nesta perspectiva, comunicar é um comportamento causado ou motivado pela
existência de uma intenção prévia de informar (fazer conhecer um fato, um pensamento, uma
hipótese) e de uma intenção, também prévia, de fazer reconhecer esta intenção de informar -
este reconhecimento de segundo nível é essencial à preocupação com as informações que o
comunicador quer transmitir. Estes estados intencionais, cujo conteúdo o sujeito é capaz de
representar mentalmente, são, de todo modo, causa dos acontecimentos ou dos estados
independentes da própria ação comunicativa, que consiste em torná-los mutuamente
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manifestos para a produção e interpretação de índices. A compreensão é então essencialmente


uma questão de formação de representações adequadas ou de acesso àquilo que o
comunicador tem no seu espírito (por observação e inferência); e a determinação daquilo a
que um locutor faz referência no mundo passa por uma reconstituição de suas intenções e de
suas representações. Enfim, este sujeito “epistemológico” sabe agir estrategicamente - ele sabe
produzir índices que farão reconhecer suas intenções - e ele é dotado de uma competência
semiológica (ele sabe associar mensagens a sinais) e de uma competência da ordem do
raciocínio lógico (ele sabe inferir conclusões a partir de premissas e representações a partir de
índices).

A quarta premissa é a aplicação desse esquema dualista à língua. O mundo sendo pré-definido
em torno da língua e independentemente de toda atividade lingüística, a língua apenas serve
para designar as entidades do mundo e para construir representações adequadas de suas
propriedades. Mas, no limite, a língua poderia ser substituída nesta função por outros meios,
imagens ou fórmulas matemáticas, por exemplo. Isto vale também para a manifestação de
estados intencionais dos sujeitos na comunicação. A língua não é essencial a esta
manifestação, pois ela é questão de produção e de interpretação de índices permitindo por sua
vez reconhecer as intenções reais e fazer razoavelmente atribuições de “atitudes
proposicionais” (desejos, crenças, etc.). Uma tal concepção da língua tem implicações
importantes quanto à teoria da significação e da compreensão que ela torna possível. Charles
Taylor pôs perfeitamente em evidência essas implicações, entre as quais a principal é
tematizar a significação numa problemática da representação de estados - estados de coisas e
estados de intenções - e então supor que se pode compreender a língua e seus usos com uma
postura de observador monolítico (pois não se trata de estabelecer fatos e de inferir
representações). Não nos surpreenderá, então, que o esquema representacionista faça da
verdade uma noção semântica fechada - as descrições por meio das quais a língua representa
as coisas são suscetíveis de serem verdadeiras ou falsas -, que ele apreenda a relação do fazer
e do dizer, ou do ser e da língua, numa problemática da correspondência ou que ele se esforce
em destacar nos diferentes tipos de atos de linguagem um núcleo representativo idêntico
suscetível de verdade. Considerar-se-á, por exemplo, que uma ordem, uma promessa, uma
questão desorganizam os estados de coisas que os satisfazem, que eles lhes dão uma
representação lingüística. Distinguindo assim em todo ato de linguagem um conteúdo
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representativo e uma atitude em face desse conteúdo, esta abordagem permite fazer
atribuições de “atitudes proposicionais” aos locutores (crenças, desejos, intenções, etc.).

O ESQUEMA CONSTITUTIVO

Pode-se raciocinar diferentemente e defender uma concepção da comunicação que não se


beneficie necessariamente do senso comum? É suficiente descartar o “pré-juízo do mundo
objetivo” e a concepção representacionista do conhecimento e da ação que ele induz, para
descobrir outras tematizações possíveis da comunicação. A concepção que nos interessa segue
o caminho oposto do esquema “epistemológico”. Ela não trata a objetividade do mundo e a
subjetividade dos agentes (isto é, sua interioridade e seu estatuto de sujeito autônomo e
responsável) como dados; ela as relaciona a uma “atividade organizante”, mediada
simbolicamente, efetuada conjuntamente pelos membros de uma comunidade de linguagem e
de ação no quadro da coordenação de suas ações práticas.

Se a comunicação não é transmissão de informações por código e decodificação, ou por


“indiciação” de intenções comunicativas e inferência, o que mais ela pode ser? O caráter
hermenêutico do modelo anti-representacionista não deve conduzir muito cedo a substituir a
transmissão de estados internos e de representações dos estados das coisas (fatos ou hipóteses)
pela compreensão mútua ou pela intercompreensão. Pois se arrisca a simplesmente deslocar
o problema, já que é tentador se chegar a uma concepção representacionista da compreensão
(a compreensão como acesso à subjetividade do outro, às suas intenções, motivos, etc.). Ora, é
precisamente o esquema epistemológico da representação, como núcleo da concepção de
sentido comum da comunicação, que se trata de desconstruir. Como esquemas alternativos
clássicos tem-se aqueles da expressão e da constituição. Ainda é necessário, para que eles
possam fecundar uma abordagem não representacionista da comunicação, que eles sejam
subtraídos das premissas da tradição epistemológica ou, como diz Habermas, da filosofia da
consciência. O que é possível, caso eles sejam reconstruídos como esquemas praxiológicos,
quer dizer, em termos de atividade, de práticas ou de operações, e se for reconhecido o
primado do caráter “encarnado” da expressão e da constituição, em relação à consciência clara
e distinta que permitem a reflexão e a formulação discursiva.
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Quando se procede a essa mudança de perspectiva, a comunicação torna-se uma questão de


“modelagem mútua de um mundo comum em meio a uma ação conjugada”, para retomar a
excelência da formulação de Varela no texto citado em epígrafe. A idéia fundamental é então
que a comunicação é não um processo no qual os estados intencionais são previamente
providos de suas determinações, onde os fatos e as hipóteses (representações de um mundo
real pré-definido) tornam-se mutuamente manifestos, mas uma atividade conjunta de
construção de uma perspectiva comum, de um ponto de vista compartilhado, como base de
inferência e de ação. Em particular, esta perspectiva comum permite aos parceiros especificar
o modo pelo qual eles se relacionam temporariamente uns com os outros e com o mundo, e
então, construir, de maneira coordenada e de acordo com o modo do “sentido encarnado”,
aquilo que eles tornam a si mesmos manifesto ou sensível na interação: a saber, uma maneira
de se ligar, uma estrutura de expectativas recíprocas, um mundo e um horizonte comuns, e
seguramente um conteúdo da comunicação (que não está disponível no modo de
representações discretas, individualizadas, senão de maneira derivada, isto é, em função de um
compromisso situado). Esta definição se aplica melhor à comunicação ordinária, que à
comunicação social na cena pública (onde a construção de uma perspectiva comum sobre os
acontecimentos é o objeto de uma ação coletiva).

O cerne da comunicação consiste então, para os agentes, em modelar em conjunto esta


perspectiva comum que lhes permite configurar, conjuntamente e de maneira “encarnada”,
suas intenções informativas e comunicativas respectivas, e ao mesmo tempo tornar
mutuamente manifesto o que é problema entre eles. Quando falo de uma perspectiva comum,
não espero nem uma concordância de pensamentos ou de opiniões, nem uma convergência de
pontos de vista pessoais, mas o fato, para os parceiros, de construir juntos o lugar comum a
partir do qual eles vão momentaneamente se relacionar uns com os outros, se relacionar com o
mundo e organizar suas ações recíprocas. Então, para o modelo praxiológico, a comunicação é
essencialmente um processo de organização de perspectivas compartilhadas, sem o que
nenhuma ação, nenhuma interação é possível. Esse processo pode ser explicitado em termos
de construção conjunta de um espaço público, segundo as modalidades pertinentes para o
avanço da análise.

Salientaremos a seguir que esse raciocínio se distingue daquele do modelo epistemológico: a


partir de agora consideraremos a questão de uma atividade conjugada de construção de um
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espaço público, de modelagem de um mundo comum e de configuração recíproca dos termos


da relação na interação com os outros e com o mundo, e não mais simplesmente um cálculo
de representações ou de estados a partir de índices. Por outro lado, a individualização das
intenções de comunicação (querer dizer) e a determinação dos conteúdos da comunicação
(aquilo que é problema para os parceiros) se passam inteiramente entre os agentes, no seu
espaço público, e são sua obra conjunta. As intenções e os referentes (aquilo a que se faz
comumente referência) são emergências; eles procedem de uma cumplicidade coordenada,
que é mediada por sua vez pelo tempo e pelas práticas, operações, símbolos, conceitos e
significações públicas. Em síntese, não há mais neste modelo o mundo pré-definido, seja ele
externo ou interno, que se trataria de representar adequadamente. É na ação comunicativa,
enquanto um processo de “publicização”, que as coisas e os seres adquirem sua determinação
- para todos os fins práticos - através da construção de relações com um “nós”.

Enfim, a linguagem se reveste aqui de dimensões novas. Abolido o dualismo do modelo


epistemológico, a linguagem e o mundo real cessam de se relacionar um com o outro em duas
ordens de realidade independentes. Contrariamente ao modelo epistemológico, o modelo
praxiológico atribui à linguagem, em vez da dimensão representativa, uma dimensão
expressiva e uma dimensão constitutiva. Ele considera que a língua é uma mediação essencial
na “realização social que empresta vida a nosso mundo” porque há uma “constituição
lingüística do ser no mundo” 3.Ou ainda, que compreender uma linguagem implica não
estabelecer as condições de verdade de representações lingüísticas de estados de coisas ou de
acontecimentos, mas sim compreender as atividades sociais da qual é parte integrante,
compreender aquilo que articula as práticas, as orientações e as relações das pessoas em uma
“forma de vida”.

A retórica da transmissão e do tratamento da informação não tem muito sentido nesse quadro.
Pois o que tem valor de informação emerge localmente e sem representação, quer dizer, de
maneira encarnada, na estruturação de uma interação com os outros e com um ambiente. Por
outro lado, a concepção representacionista se desfaz completamente a partir do privilégio que
ela confere à postura do observador desinteressado, no momento em que se descobrem a
estrutura normativa e moral dos “fatos”, o caráter social da “manifestação mútua” 4das

3
Gadamer
4
Sperber e Wilson
12

intenções e das representações, assim como sua ancoragem na ação coletiva de uma
comunidade de práticas e de comunicação. Para demonstrar isto, me apoiarei em dois
exemplos, um emprestado de um estudo realizado por Marc Relieu para seu D.E.A. de
sociologia, o outro, de um estudo de conversações ordinárias. A partir desses dois exemplos,
gostaria de indicar, o mais precisamente possível, alguns pontos em que consiste o modo de
raciocínio aplicado à comunicação pelo esquema “praxiológico”.

A COMUNICAÇÃO COMO PROCESSO DE PUBLICIZAÇÃO

A CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO COMUM

Interessando-se pelos problemas de coordenação da ação entre videntes e não videntes, M.


Relieu trabalhou no registro em vídeo de um almoço entre amigos, do qual participava um
cego. Um incidente significativo reteve sua atenção: o pequeno grupo acabava de tomar o
aperitivo em torno da mesa sobre a qual a refeição era servida, quando o anfitrião propôs que
se provasse o vinho que um dos participantes havia levado. Ele sugeriu precisamente a A, o
cego, que desse sua opinião sobre o vinho. B, o vizinho de A, logo tomou a garrafa e propôs a
A servir-lhe o vinho, para que ele honrasse a proposta do anfitrião. A, que sabia que havia
ainda um pouco de aperitivo no seu copo, pede a B para esperar um pouco, e se apressa em
terminar seu aperitivo, ignorando que ele dispunha de um copo de mesa para o serviço do
vinho. Alguns segundos mais tarde, vendo que havia terminado seu aperitivo, B lhe indicou
que ele lhe servira o vinho como convém. Acreditando que o vinho tinha sido servido no copo
onde ele havia tomado seu aperitivo (ele havia identificado bem a posição desse copo sobre a
mesa), A levou o copo vazio à boca com o gesto próprio de um tal ritual, e, descobrindo que
ele não continha o vinho, dirigiu-se a B com um tom de censura na voz: “Mas você não me
serviu!”. Confuso, B lhe explicou então, que ele tinha um copo de mesa diante da sua cadeira
e que o vinho lhe havia sido servido nesse copo. A acentuou que ele devia tê-lo prevenido
disso.

O que esse exemplo ilustra é, primeiro, o fato de que a informação pertinente se constitui
localmente no quadro de uma atividade e que ela emerge em função da estruturação do
ambiente de uma ação por um processo de seleção e de ordenamento, do qual resulta um
13

campo determinado de visibilidade. Engajar-se na atividade ritual, que consiste em provar o


vinho no começo do almoço, torna mutuamente manifestos, porque pertinentes para o
compartilhamento desta atividade, certos elementos do ambiente ou certo estados de coisas -
copos, por exemplo, que até aquele momento não haviam chamado a atenção, e também o
“fato” de que há copos de mesa distintos de copos de aperitivo. A visibilidade desses objetos e
desses estados de coisas é de toda sorte produzida por sua aparição na ação em curso, isto é,
pelo fato de que esta ação faz emergir “seu” mundo, com os primeiros planos e os horizontes,
os estados de coisas e as esperas. No caso presente, o cego não faz [desses objetos]
manifestamente a mesma “aparição” que os outros; ele não constrói o mesmo mundo.
Certamente para ele o fato de ter provado o vinho dá uma pertinência particular a esses
elementos do ambiente que são os copos, mas ele não se refere aos mesmos copos que os
outros, pois não lhe é manifesto o que é manifesto aos outros (e que estes crêem
compartilhar), a saber, que ele dispõe de copos de mesa para o serviço do vinho. A
“manifestação mútua” disso faz emergir precisamente, enquanto componente da organização
conjunta de uma atividade social, e que supõe uma “atividade organizante”, a apreensão de
uma “configuração sensível” por uma apropriação (como quando se mata uma charada).

Quanto à intenção de B - servir o vinho para que A o provasse antes de lhe pregar uma peça,
por exemplo, ou o levar ao ridículo - ela emerge paralelamente na interação enquanto intenção
encarnada na ação que a exprime; ela é configurada publicamente na produção e no
reconhecimento do que B faz como ação normal, identificável em função de usos e costumes,
e atribuível a um agente manifestamente capaz de orientar e de controlar seus atos. Não há
grande sentido em procurar atrás do gesto um querer fazer que lhe teria correspondido, uma
idéia que o teria engendrado, ou um estado psicológico, com um conteúdo mentalmente
representado que teria provocado ou acompanhado a realização física do ato. O querer fazer
de B está totalmente incorporado ao que ele faz manifestamente, e indistintamente da sua
realização pública. Ele não é determinável fora de sua ação efetiva, cuja identidade supõe um
“produzir-como” e um “ver como” (senão a ação se reduz a uma seqüência de gestos
ininteligíveis). Por outro lado, B teria podido se justificar tarde demais invocando estados
intencionais como razão de agir: uma crença, um desejo, um querer-fazer do gênero “eu
acreditei que você tinha localizado seu copo de mesa”, “eu pensei que você tinha ouvido o
vinho ser despejado no outro copo”, etc. Mas, trata-se aqui, de uma capacidade engendrada
14

por um fazer efetivo, antes que por estados internos: é o que ele pode dizer em apoio do que
ele efetivamente fez, e não o estofo psicológico ou mental de seu ato público.

Este exemplo, que combina gestos e ações verbais, permite sublinhar dois outros aspectos
importantes do raciocínio “praxiológico” aplicado à comunicação. O primeiro é que é por um
engajamento na ação, e não por um desengajamento permitindo uma representação objetiva,
adequada, da realidade, que aquela se abre ao conhecimento, que suas propriedades são
descobertas e que os fatos se tornam mutuamente manifestos, porque eles são precisamente
constituídos como fatos por uma atividade organizante. É um “fato”, por exemplo, que o cego
ignorava a presença de um copo de mesa diante dele. Mas a factualidade desse “fato” e seu
tornar-manifesto foram completados pela construção de mundos diferentes no quadro da
atividade conjunta ocasionada pelo projeto de provar o vinho. De outra parte, os membros
desse grupo sabiam bem, por representação, o que é um cego; era de se supor poderem
deduzir desse seu saber como se conduzir na suas interações com A ou determinar as
hipóteses nas quais A era suscetível de se apoiar para tratar a situação. Ora, parece que é na
organização de uma atividade prática que se tornam concretamente manifestas ou sensíveis,
sem representação, as “propriedades” de um cego, e isto para todos os fins práticos, pois são
“propriedades” às quais os outros devem ajustar seus comportamentos in situ. A faz também
parte do ambiente das ações dos membros desse grupo, mas de um outro modo que o de um
elemento objetivo ao qual eles se adaptariam através da formação de uma representação
adequada. É nos detalhes concretos da experiência de interação, no contato poderíamos dizer,
para fazer uma oposição, de um pensamento por contato, a um pensamento por representação
(C.Taylor), que se tornam manifestas por uns e por outros o que é ser cego e também que um
cego não constrói o mesmo mundo como base de inferência e de ação. Estes são, poderíamos
dizer, fatos e propriedades encarnadas nas interações situadas.

O segundo aspecto interessante neste exemplo refere-se ao caráter encarnado da compreensão


comum, ou mais exatamente o fato de que essa é mediada pela construção comum de objetos,
ou ainda de um campo de visibilidade compartilhado. Por exemplo, quando B se propõe a
servir o vinho a A para que ele o prove, A interpreta aparentemente esta oferta como uma
incitação a acabar rapidamente seu aperitivo, pois lhe é manifestado que seu copo de aperitivo
não está vazio e que ele pode considerar que esse fato está também manifesto a B. O que
aparece é que para que esta proposição tenha o mesmo sentido, o mesmo propósito, a mesma
15

intenção para quem a faz e para seu destinatário, é necessário que eles estruturem
similarmente seu ambiente ou o campo daquilo que lhes é mutuamente manifesto. Ora, no
caso presente, A não sabe que dispõe de um copo de mesa para o vinho. O que o conduz, de
uma certa maneira, a atribuir ao propósito de B, (a ação de o servir), uma intenção que ele não
pode ter em relação a qualquer um que dispõe desta “informação”: por exemplo, a pressa de
acabar seu aperitivo para poder passar à degustação do vinho. O que importa aqui é, primeiro,
o fato de que a construção de um mundo comum como mundo da ação conjunta em curso
produz uma visibilidade determinada dos objetos e das pessoas. Segundo o fato de que esta
construção é circular: no caso presente, por exemplo, é a ação, orientada para um começo e
um termo que lhe são intrínsecos, que estrutura seu próprio ambiente de tal sorte que essa
construção torna a própria ação publicamente identificável como sendo esta ação
precisamente, e não uma outra, e permite que ela se complete segundo sua formalidade
própria. É pela mediação deste ambiente ou deste mundo do qual a ação se dota para se
completar, que a intencionalidade que estrutura a ação se torna manifesta, e que a ação pode
ser relacionada a intenções e a motivações de sujeitos. É assim que uma subjetividade-origem
da ação pode ser construída interativamente pela mediação da construção intersubjetiva de um
mundo objetivo e vice-versa.

A INSTAURAÇÃO DE UM ESPAÇO PÚBLICO

Para o segundo exemplo, eu partirei de uma situação descrita por C. Taylor. Trata-se de dois
passageiros em um trem circulando em uma região em que faz muito calor. Ambos sofrem de
canícula5. E lhes é mutuamente manifesto (isto se vê pela transpiração e pelo comportamento)
que cada um sofre deste mesmo calor excessivo. Em um determinado momento, um se dirige
ao outro, limpando a fronte e dizendo qualquer coisa como “Ai! Ai!” Num sentido estrito, ele
não diz nada que o outro já não saiba, ou não revela nada que não seja mutuamente manifesto.
No entanto, esse início de conversa (não poderia ser mais elementar) introduz uma diferença
qualitativa nesta co-presença: uma relação do tipo interlocutória inicia-se pelo fato de se
dirigir a qualquer um; uma proposição de perspectiva comum a construir é efetuada pela
sugestão de um tema; um espaço público que não se reduz mais ao espaço de uma percepção
mútua é esquematizado. Resumindo, a co-presença corporal torna-se um “entre-nós” como diz
Taylor. Se, a princípio, um certo número de fatos ou hipóteses eram mutuamente manifestas
16

aos parceiros somente pelo fato dessa co-presença corporal, pela simples inferência de estados
internos a partir de índices visíveis e interpretáveis, agora o que lhes torna manifesto é o
resultado de uma expressão verdadeira e de uma atividade organizante; o que se torna
manifesto ocupa um lugar no espaço público moldado por eles na construção da sua relação e
no curso da ação.

Este novo espaço público se define a princípio por um “entre-nós”, no sentido de que os
agentes se colocam entre eles enquanto sujeitos que se constituem e se ligam reciprocamente
pela alternância dos papéis comunicacionais da primeira e segunda pessoa, para constituir
o espaço de sua interação. Ele se define também pela perspectiva comum que eles adotam
praticamente. Esta perspectiva que eles constróem em conjunto, com o auxílio de mediações
públicas, especifica um modo e uma forma de relação com o mundo e com os outros; ela cria
um horizonte de expectativas, define práticas e fornece uma organização de pontos de vista
correlatos. É através da introdução coordenada de uma estrutura de atividade conversacional
que uma tal perspectiva comum torna-se mutuamente sensível.

Imaginemos, por exemplo, que nossos dois viajantes estabeleçam um conhecimento mais
amplo e comecem mutuamente a se darem conta das razões de sua viagem ou falem de suas
vidas. Estes tipos convencionais de uma atividade conversacional lhes fornecem um certo
ponto de vista para se relacionarem um com o outro (aí compreendidos seus lugares e papéis),
para se relacionarem com o mundo, com os outros, com os acontecimentos; e lhes indicam
também toda uma gama de práticas a efetuar e de operações a fazer um em relação ao outro;
eles tornam pertinentes uma certa rede conceitual e um certo vocabulário de motivos, etc.

Podemos ainda avançar a análise e mostrar que nestes tipos de interação, os parceiros se
constituem reciprocamente como sujeitos da ação, uma vez que, precisamente, é a natureza
mesma da perspectiva comum que eles tomam como base de inferência e de intervenção -
base essa que lhes abre um espaço de ação e de responsabilidades recíprocas. Isso vale
também para suas relações. As pessoas podem estar ligadas umas às outras por relações de
parentesco, amizade e conhecerem muitas coisas uma sobre as outras; isto não significa, no
entanto, que esta relação prévia possa determinar completamente por si só como essas pessoas
vão se relacionar uma com as outras em um encontro, uma conversa, um contato telefônico.

5
Canícula: nnnnn (nota do tradutor).
17

Cada situação de interação requer que uma relação seja construída como condição de
possibilidade e como componente de uma ação conjunta (mesmo que seja uma simples
conversa). Sem dúvida o estado da relação prévia fará com que a troca tenha um certo tom ou
um certo estilo (intimidade, conivência, familiaridade, etc.) e que o segundo plano de
expectativas e informações tácitas seja mais ou menos ampliado. Mas, por outro lado, é na e
pela maneira com que as pessoas configuram suas relações recíprocas na troca, que elas
tornam mutuamente sensível ou manifesto o laço social que as une.

Quando se trata simplesmente de iniciar uma conversa não se pode evitar ter que especificar
os tipos de atividade e relações apropriadas para estes tipos de atividade: trocar notícias,
programar uma atividade futura, pedir um serviço ou uma informação, pedir ou dar um
conselho, coordenar agendas, convidar, etc. É iniciando estes tipos de atividade de maneira
coordenada (com a ajuda de operações que foram descritas pela análise conversacional) que os
parceiros adotam uma perspectiva comum para construir a relação segundo a qual eles serão
momentaneamente presentes um para o outro, a fim de transformar esta relação na medida
exata do desenrolar da troca e para fazer emergir um mundo comum. Enfim, se eles tiram
informações de suas trocas (fatos ou hipóteses que representam o mundo real) é devido a isso
que eles reapropriam reflexivamente com as distinções que permitem a formulação discursiva
da experiência, uma parte daquilo que eles tornaram mutuamente manifesto em uma conversa
sobre o mundo do “sentido encarnado”.

PARA ALÉM DE UMA CONCEPÇÃO REPRESENTACIONISTA DA LINGUAGEM

Estes dois exemplos ilustram um dos principais traços da racionalização “praxiológica”. Esta
se opõe ao modelo “epistemológico” em aspectos essenciais. Enumerarei quatro. O primeiro é
o lugar da linguagem na comunicação. Se para o modelo informacional, a linguagem é um
instrumento de representação ou de transmissão de representações e de estados intencionais,
para o modelo comunicacional a linguagem é necessariamente parte integrante da construção
social da realidade. É necessário aqui precisar em que sentido.

Se nós não fazemos uso da língua unicamente para moldar, validar e transmitir representações
adequadas de propriedades de um mundo pré-definido, que outra utilização fazemos dela? Ela
nos serve a princípio para formular as coisas e para articular nossa experiência. Ela nos
18

permite particularmente passar de uma apreensão confusa, pouco clara, “encarnada” daquilo
que somos, daquilo que nos motiva, daquilo que buscamos dizer ou fazer, e daquilo que está
em questão em nossas conversas, a uma visão na qual as coisas aparecem mais claramente,
onde os objetos e as pessoas são nitidamente individualizados, onde nossas palavras e nossos
atos adquirem contornos mais precisos, portanto, a uma visão mais articulada do mundo e de
nós mesmos - isso devido às distinções que ela nos permite introduzir a partir do vocabulário
que ela nos fornece.

Em segundo lugar, a linguagem tem um papel importante na compreensão que temos de nós
mesmos e de nossas práticas ordinárias. Na verdade, é nela e por ela que nos é possível
formular o horizonte de valores, a “textura das pertinências” ou as “caracterizações do
desejável” em função das quais nos orientamos e qualificamos nossas ações e nossas condutas
interiores. É graças a ela que nós podemos estabelecer e formular conjuntamente
discriminações que nos permitem distinguir aquilo que é importante daquilo que não é,
determinar aquilo que merece ser honrado, pesquisado, perseguido e aquilo que não merece,
qualificar os atos e os comportamentos de uns e de outros, relacionar distinções de valor,
exigências de validade, padronização de conduta, critérios de excelência, etc. Como escreveu
Taylor, “our typically humam concern only exists through articulation and expression”6.

Por outro lado, a linguagem nos permite também articular nossos sentimentos, nossas
emoções, nossas práticas e nossas relações, mas em um sentido em que ela é propriamente
constitutiva. Por exemplo, tratando-se de sentimentos, parece que nossa capacidade de
formulá-los com a ajuda de um vocabulário e de distinções da linguagem transforma sua
natureza mesma, na medida em que ela os clarifica e que acrescenta sua individualidade
diferenciando-os e tornando seus contornos mais claros. Quanto às nossas práticas, elas são
constituídas não somente pelas nossas operações e nossos gestos, mas também pela rede de
conceitos e de vocabulários de motivos que nos permitem articulá -los, isto é, orientá-los,
controlá-los, torná-los sensíveis, inteligíveis, desejáveis e comunicáveis, justificá-los, etc. A
linguagem é dessa forma uma parte essencial das realidades das quais ela fala. Por exemplo,
as práticas democráticas que tiveram curso em nossa sociedade, com as noções que lhes são
consubstanciáveis, de igualdade, de liberdade, de justiça, etc., perderiam sua própria
identidade, inteligibilidade e, portanto a base de motivação de nossa adesão e investimento, se
19

elas cessassem de ser concebidas, articuladas e descritas em um vocabulário que comporte


estas noções. Para dar um outro exemplo, seria impossível compreender como os
trabalhadores que fazem greve saberiam o que eles fazem, porquê eles o fazem e porquê eles
investem nesse tipo de comportamento, se eles não dispusessem da rede conceitual e do
vocabulário de motivos nos quais a greve se articula como tipo de ação significativa em
nossas sociedades, para organizar seu movimento enquanto uma conduta inteligível,
comunicável e descritível. A linguagem da greve não serve somente para nomear, categorizar,
descrever como post factum uma realidade que teria sua determinação nela mesma, fora da
linguagem. Esta linguagem faz parte do próprio sentido da greve e contribui para a
manifestação pública desse sentido em um acontecimento. É nesse sentido que podemos dizer
que a linguagem é uma parte essencial de nossos sentimentos, fins, relações, práticas, objetos:
estes não seriam as realidades que são sem os vocabulários pelos quais eles se auto-
descrevem.

DO EXTERNO PARA O INTERNO

O segundo ponto concerne ao espaço público. Eu já sublinhei o caráter construído do espaço


público, assim como o fato de que a “publicidade” que o caracteriza não é jamais redutível à
visibilidade correlativa a um ponto de vista do observador monológico, uma vez que ela é
uma visibilidade socialmente organizada e construída. O ponto que eu mais quero sublinhar
concerne ao próprio processo da “publicização”. No modelo representacionista, onde as coisas
já estão sempre pré-determinadas, o fato de que uma intenção, um fato, uma hipótese, uma
representação as tornam manifestas, não muda nada no seu próprio ser. Estamos numa pura
lógica de transmissão dos fatos, quer dizer das coisas estáveis (sem que nos interroguemos
jamais sobre o processo social da constituição do fato). É essencial que aquilo que é
transmitido conserve suas determinações, senão seria impossível estabelecer qualquer tipo de
similitude entre o que é comunicado e o que é recebido. No modelo “praxiológico”, tudo se
passa de outra maneira: além da manifestação se relacionar a uma atividade organizante, em
particular a construção acordada de um ponto de vista comum (sempre no sentido operacional
do termo) e a adoção de uma perspectiva por outros generalizada sobre as ações e os

6
TAYLOR, 1985, 270
20

acontecimentos, o devir público ou manifesto de uma ação, de um pensamento, de uma


intenção, mas também de um objeto ou de um acontecimento, seu “aparecer” representa o
próprio movimento pelo qual eles adquirem suas determinações em “todos os fins práticos”.
Como lembra Arendt, “Ser e Aparecer coincidem”. O que conduz ao primado da realização
em um espaço público: é por esta realização, mais do que pelos estados internos que
engendram supostamente as coisas, que estas são dotadas de identidade e de individualidade,
de significação e intencionalidade.

Isto implica, por exemplo, para a comunicação, que o conteúdo mesmo daquilo que se tornou
manifesto entre os parceiros não somente não é complemente determinado antes da própria
interação, mas também que não existe outra “realidade” do que aquela que é configurada
conjuntamente no espaço público, ao modo do “sentido encarnado”. No entanto, este conteúdo
de contornos imprecisos e parcialmente indecidíveis, pode ser reformulado com a ajuda de
categorias e de distinções da linguagem, reapropriada por um interlocutor como
correspondente ao seu querer dizer, ou ao propósito do qual ele pode responder com a
autoridade da primeira pessoa.

Uma outra dimensão importante dessa “publicização” concerne às perspectivas adotadas pelos
parceiros para comunicar. Pensa-se espontaneamente que os agentes apreendem os objetos, os
acontecimentos e situações no seu ponto de vista singular, e que eles tornam mutuamente
manifestos suas percepções privadas, suas preferências subjetivas ou suas opiniões pessoais.
Mas por este raciocínio esquece-se dos processos de anonimação e de “generalização” que
tornam possível a intercompreensão na comunicação. Por exemplo, qualquer um que formule
sua opinião pessoal sobre um objeto ou um acontecimento dado incorpora necessariamente
em seu julgamento uma perspectiva pública sobre aquilo que ele qualifica, mesmo que seja
somente uma definição implícita correspondente a uma certa maneira de apreender, de
tematizar e de lhe dar sentido em uma comunidade de comunicação. No mais, seu julgamento
se apresenta como formado sob a força do objeto. Nesse sentido, não é o sujeito que projeta
seu ponto de vista sobre o fenômeno, mas é este que merece ser desta forma qualificado por
ele devido ao fato de que aquilo que ele é ou parece ser para todos, em um quadro de maneiras
“normais” de ver as cosias, de definir e de julgar cada uma supõe subscrevê-lo em uma
comunidade (ver neste sentido meu artigo sobre a opinião em Réseaux, n.43).
21

O CARÁTER ENCARNADO DA EXPRESSÃO

O terceiro ponto de vista concerne ao problema da expressão. Nós vimos que o modelo
“epistemológico” repousa sobre uma concepção “indiciadora” da comunicação. Os pares
produzem e interpretam indícios de maneira a inferir as intenções e as informações
transmitidas. Em um universo no qual tudo é sempre já pré-definido, a expressão é toda ou
mais a manifestação indireta de uma realidade determinada que existe independente de sua
expressão e previamente a ela. O problema desta teoria é que ela faz da ostensividade
(produção de índices) e da inferência mediações necessárias de toda expressão. Ora, a
verdadeira expressão não é da ordem ostensivo-inferencial. Por exemplo, eu posso dizer que a
presença do carro de um de meus colegas no estacionamento de uma universidade me permite
inferir que ele está em seu escritório ou nas proximidades; o carro é o índice de um estado de
coisas. Imaginemos que eu acreditasse que este colega está nos corredores e que eu o encontre
particularmente alegre. O reconhecimento de sua alegria, manifestada sobre sua fisionomia,
pode também fazer uma inferência da mesma ordem que a precedente? Isto remeteria à
consideração de que a alegria na sua fisionomia é um indício fisionômico de um estado
psicológico, independente e invisível nele, observável no instante da observação interna que é
o espírito do sujeito, e que este estado somente se torna manifesto aos outros por uma
produção de índices deste tipo. O que parece bastante inverossímil. O modelo “praxiológico”,
ao desenvolver uma outra concepção da expressão, evita o dualismo do modelo
“epistemológico” (estados internos + movimentos, comportamentos externos). Este modelo
considera que a expressão é uma manifestação encarnada nas ações, ou nos objetos
expressivos, de um desejo, de uma intenção, de um sentimento, etc., de tal maneira que estes
não existam previamente a esta expressão ou independentemente dela. A expressão pública é
ela própria constitutiva do ser daquilo que é expresso. Por exemplo, não existe um lugar de
postular uma intenção comunicativa distintamente dos termos da intenção “encarnada” num
fazer interacional (um “trying to get”); ela é o que um locutor procura, mais ou menos,
confusamente fazer entender, tomando forma progressivamente, com a colaboração dos
outros, no desenrolar de uma discussão ou de uma conversa. De maneira que é tanto no
princípio quanto no fim que a interação comunicativa é verdadeiramente determinada, o
22

agente dispondo de seu “querer dizer” em função do que ele efetivamente disse em um espaço
público que ele construiu com seus parceiros.

O PROBLEMA DA INTENÇÃO COMUNICATIVA

Isto aqui pode colocar um problema, e é o quarto ponto que eu desejava mencionar, sob o
olhar de nossa concepção de sentido comum da comunicação, que é sensível ao caráter
intencional da ação comunicativa. Uma distinção que nos parece efetivamente importante é
aquela que opõe aquilo que nos é dado a ler de nós mesmos sem intenção expressa de
comunicá-la, ou daquilo que nós deixamos transparecer involuntariamente em nossos gestos e
comportamentos, àquilo que nos comunicamos propriamente falando, quer dizer
intencionalmente (Goffman insistiu muito sobre esta distinção). Ao fazer depender desta
maneira a intenção comunicativa de uma realização acordada, temporal e pública, o modelo
“praxiológico” não anula também a especificidade da comunicação humana? E podemos, ao
analisar os processos de comunicação, fazer inteiramente a economia de uma atribuição de
intenções de comunicação aos agentes? Não posso examinar estes problemas em toda a sua
complexidade. Mas o raciocínio esboçado aqui deixa entrever a orientação de uma
argumentação alternativa àquela do modelo representacionista. Ela consiste essencialmente na
sustentação de duas idéias. De um lado renunciamos à suposição de que existem, na mente
dos agentes, intenções prévias claramente definidas, independentemente da própria ação
comunicativa. Consideraremos que a intenção comunicativa se exprime de maneira encarnada,
na busca confusa, em um quadro de interação com o outro ou consigo mesmo, de uma
formulação adequada para os pensamentos, idéias, opiniões etc. Esta formulação toma forma
progressivamente com a ajuda dos outros, no desenvolvimento do curso da ação
conversacional segundo sua temporalidade própria. Longe de ser imediatamente acessível ao
sujeito por observação interna, à intenção comunicativa aparece desta forma mediada por sua
encarnação em uma realização pública.

A segunda idéia é de que esta intenção emerge de um processo recíproco de atribuição


manifesta de intenções, sem que elas sejam jamais completamente expostas. Na verdade, os
agentes apreendem aquilo que eles dizem e fazem reciprocamente sob um presunção de
intencionalidade; eles buscam, portanto, determinar do que se trata, dar sentido aos propósitos
e gestos realizados, adotando aqui o agente de intenções, do querer dizer ou do querer fazer.
23

Eles o fazem em função da situação, das informações que eles dispõem e, sobretudo do tipo
de ação na qual eles se engajam conjuntamente (das perspectivas que eles dão, do horizonte de
expectativas que eles criam, das proposições de associação que eles suscitam etc.). Eles
manifestam também mutuamente as intenções que eles se atribuem reciprocamente, ao preço
para eles de terem de corrigir as atribuições errôneas. Neste processo, não existe garantia de
chegar às intenções reais, simplesmente porque freqüentemente estas não existem como
estados independentes, reservados, individuais na mente dos indivíduos, mas como sentido
encarnado nas suas palavras e atos, como aquilo que os polariza confusa e tacitamente.
Enquanto estados reservados, estas intenções são mais conquistas do que ponto de partida. O
modelo praxiológico é, portanto, a medida de salvaguardar a dimensão intencional da
comunicação; mas ele a tematiza fora do esquema dualista e atomista da tradição
“epistemológica” e do sentido comum. No entanto, seu ponto de vista não é simplesmente
atribuicionista, pois as intenções não são somente mutuamente prestadas e validadas; elas são
atribuídas sobre a base de um processo interacional de construção, que supõe um trabalho de
apreensão de “configurações sensíveis” e de apropriação (ver a este respeito à descrição
garfinkeliana do “método documental de interpretação”).

QUAIS AS IMPLICAÇÕES PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS?

Em que medida a passagem de um modelo “epistemológico” da comunicação para um modelo


“praxiológico” tem implicações não somente ao nível de uma teoria da comunicação, mas
mais amplamente ao nível da abordagem com das Ciências Sociais? É forçoso convir que os
dois modelos não atribuem o mesmo desafio à comunicação humana e que eles não têm o
mesmo aporte teórico e epistemológico. O modelo “epistemológico” apela mais a uma
psicologia cognitiva do que a uma sociologia. O modelo “praxiológico”, que relaciona a
determinação das coisas, dos acontecimentos e das pessoas às práticas de organização social,
apela mais para a sociologia. Mas ele obriga a reconsideração de muitas premissas da
conceitualização e da teorização em ciência sociais, o que não me parece ser o caso do outro
modelo. Eu caracterizei a abordagem “praxiológica” como “comunicacional”, em razão do
estatuto transcendental que aqui adquire a ação comunicativa. E sugeri que a adoção de um tal
modelo como esquema conceitual para a análise social representava uma verdadeira troca de
paradigma nas Ciências Sociais. Mas em que consiste exatamente esta troca? Para começar a
responder, o mais simples é voltar aos autores que contribuíram para esta mudança
24

comunicacional na sociologia ou na teoria social. Será preciso levar em consideração várias


obras importantes, tais como G. H. Mead e J. Habermas.

A INTERSUBJETIVIDADE PRÁTICA

Quando pioneiramente Mead se esforçava em tematizar “o espírito, o ser, a sociedade” em


termos de comunicação, ele não buscava preconizar o “tudo comunicação” na análise social;
de toda maneira, seria absurdo pretender que tudo é comunicação. Se inscrevendo na corrente
pragmática iniciada por Peirce - uma corrente que é fundamentalmente anti-dualista e anti-
cartesiana - ele propunha uma aproximação praxilógica e emergencial das propriedades do
mundo, do ser e do espírito. Seu ponto de partida era a colocação em causa do esquema
behaviorista da análise do comportamento e do esquema estímulo-resposta. A este esquema,
ele opunha um raciocínio no qual a ação e o ambiente se determinam recíproca e
simultaneamente: os agentes não reagem a estímulos pré-definidos reencontrados em um
mundo objetivo; eles produzem estes estímulos organizando seu ambiente por um trabalho de
seleção e qualificação a partir de uma perspectiva determinada. Esta perspectiva resulta por
sua vez da intencionalidade do curso da ação e de uma organização social de pontos de vista.
Os estímulos, desta maneira constituídos, suscitam, por parte dos agentes, respostas
correspondentes às capacidades e disposições da ação (socialmente formadas) incorporadas
em seu organismo; mas a atualização destas capacidades e disposições é mediada por um
controle reflexivo do agente - o “self” sendo esta instância de controle. Nesta teoria, o
conhecimento tem como sítio natural à ação; ela é um componente essencial de uma atividade
organizante, pela qual são determinadas, reciproca e simultaneamente, o sujeito e o objeto, o
ambiente da ação e os sujeitos entre eles.

Por outro lado, para Mead, o processo mesmo do pensamento ou da reflexão pela qual o
agente controla sua ação, retorna sobre si, ou melhor, se relaciona consigo numa consciência
de si, é de natureza comunicacional. Essa ação consiste em adotar o ponto de vista do outro
sobre si, seja a do outro particular com quem se interage, ou do outro generalizado acessível
pela imaginação. Este ponto de vista do outro generalizado não é mais do que uma
organização social de perspectivas interdependentes, no qual a mais fundamental é aquela da
25

comunidade de comunicação. Para Mead, como para todos os pragmatistas, é em uma


intersubjetividade prática (primado da ação e da comunidade de comunicação) que são
fundadas a objetividade e a subjetividade, a individualidade e a sociabilidade.

Já Habermas, ao propor reformular a conceituação de base da sociologia, em particular a


teoria da ação e da ordem social que ele utiliza, no quadro do paradigma da comunicação, não
pretende somente desenvolver uma teoria sociológica geral que concederia à comunicação um
lugar que ela jamais teve nas teorias habituais da sociologia, nem produzir uma teoria da
comunicação que seja utilizável para fins de análise e teoria sociológicas movidas por um
questionamento clássico. Ele pretende, sobretudo transformar profundamente as premissas do
raciocínio sociológico e reformular o quadro de referência no qual são habitualmente
tematizados os problemas de ordem metateóricos, quer dizer, aqueles que dizem respeito às
definições da ação social, da ordem social, da significação, da compreensão, da
inteligibilidade, da racionalidade etc., definições que são introduzidas na teorização e na
análise de fenômenos particulares.

Para Habermas, o paradigma da comunicação constitui essencialmente uma alternativa à


filosofia da consciência, isto é, à concepção do homem central na modernidade, que projeta o
espírito como o “espelho da natureza”. Este paradigma privilegia o ponto de vista do
observador não engajado faz da subjetividade individual a origem do sentido e da
racionalidade, considera a comunicação como uma transmissão de representações e de estados
determinados, formados na interioridade dos sujeitos e imediatamente acessíveis àqueles que
os possuem. Pressupõe também que a intercompreensão humana é um assunto de acesso aos
estados intencionais, mentais ou psicológicos dos indivíduos. Sobre este plano, a introdução
de uma aproximação comunicacional tem a princípio um desafio teórico importante.
Particularmente, torna possível um conceito ampliado de racionalidade e uma análise não
reducionista da modernização social e cultural como perspectiva de racionalização. E ela
permite conferir um fundamento normativo, de natureza antropológica (uma teoria das
condições sociais de uma intersubjetividade autêntica) ao projeto de uma teoria crítica da
sociedade.

O que importa aqui, além da crítica das premissas individualistas e subjetivistas da filosofia
da consciência incorporadas na teoria social moderna, é a atualização, em uma atividade e
26

organização social, de um nível da constituição intersubjetiva da objetividade e da


subjetividade através de práticas sociais. Trata-se de um estrato mais fundamental que aquele
das unidades de base habituais do discurso sociológico: o indivíduo, suas ações e seus estados
intencionais, de um lado, as entidades “anônimas” engajadas na explicação (nações, classes,
mentalidades, sociedades) de outro. No paradigma da comunicação, estas unidades não são
mais originais; elas não são tampouco substâncias; elas são derivadas, relacionais e
socialmente constituídas; elas são correlatas de uma atividade organizante pré-intencional,
realizada conjuntamente pelos agentes sociais no seu comércio entre eles e com seu ambiente
(a construção social da realidade é inconsciente, e nós não temos consciência de por quais
operações nós constituímos nossas experiências do mundo e dos outros).

Para Habermas, é o uso da língua para fins de coordenação e de ação (ligação das pessoas e de
seus atos, atualização de definições respectivas da situação) que instaura uma
intersubjetividade prática: o reconhecimento recíproco como sujeitos só é, a seu ver,
plenamente assegurado quando os pares da interação se relacionam uns com os outros agindo
comunicacionalmente, isto é, explorando, para cobrir suas necessidades de entendimento
ligadas à coordenação da ação, o potencial da racionalidade contido implicitamente na base de
validade dos discursos (racionalidade comunicativa).

O tema da intersubjetividade se desdobra nas seguintes dimensões: a primeira é que as


relações dos membros de uma sociedade com seu mundo, com os outros e com eles mesmos
não são diretas; elas são mediadas por um pertencimento a uma comunidade de comunicação,
mas também por expectativas normativas e por julgamentos, reais ou virtuais, emitidos pelo
outro, sobre a validade ou a aceitabilidade daquilo que é dito e feito. A metáfora da
triangulação, utilizada por Davidson, descreve muito bem o fenômeno: sem relação com o
outro, que é nele mesmo um contato com o mesmo mundo, um indivíduo não pode diferenciar
entre aquilo que parece ser e aquilo que realmente é, entre aquilo que é verdadeiro ou falso,
entre aquilo que é justo ou não. Portanto ele não pode ter conceitos de um mundo objetivo, de
um mundo social, de um mundo subjetivo sem que para tanto ele interaja ao mesmo tempo
com objetos terceiros no mundo exterior, com ele mesmo e com os outros que estão também,
por sua vez, em contato com estas coisas exteriores e interiores. Os mundos objetivos (social e
subjetivo) são mundos partilhados; e é esta intersubjetividade que funda os conceitos de
verdade objetiva, de justeza normativa e de autenticidade.
27

Uma outra dimensão da intersubjetividade foi fortemente sublinhada por Habermas. O “meio”
no qual os membros de uma coletividade ampliam suas atividades e suas relações não é
fundamentalmente constituído de objetos e de sujeitos em si, nos quais as propriedades
demandariam ser representadas. Estes membros não são subjetividades confrontadas com os
contrários, com as limitações e determinações opostas a seus desejos, preferências, intenções
pelo mundo físico, por estruturas sociais ou por uma natureza interna. Este “meio” é, a
princípio, uma intersubjetividade, o que implica que ele é sempre conhecido em comum com
os outros e, sobretudo que ele é tanto um horizonte de expectativas normativas e morais,
apelando por atos de satisfação, quanto um conjunto de estados de coisas, apelando por atos
de representação e manipulação. Na verdade, os membros de uma coletividade se relacionam
uns com os outros sobre a base de exigências de validades que eles se impõem mutuamente a
honrar, em função de um acordo tácito, sempre submetido à prova da coordenação da ação,
sobre definições, sobre critérios de julgamento e sobre hierarquias de valor. Sob este aspecto,
o paradigma da comunicação permite melhor apreender, segundo sua lógica interna, a maneira
pela qual, na sua experiência, os agentes estruturam suas relações com o mundo, com os
outros e com eles mesmos, e pela qual eles tomam suas relações como base de inferência e de
ação. Habermas insiste particularmente sobre o caráter mediado e público das relações.

ALGUNS PONTOS DE BIFURCAÇÃO

Partindo da oposição entre um modelo “epistemológico” e um modelo “praxiológico” da


comunicação, considerei que a adoção do segundo modelo como esquema conceitual para a
análise social correspondia a uma verdadeira troca de paradigma nas Ciências Sociais: ela leva
a tratar a objetividade de um mundo comum, a subjetividade dos membros de uma
coletividade e a sociabilidade das condutas, dos fatos e dos eventos como emergências
interacionais, a relacioná-las a uma realização social, implicando operações de constituição,
uma atividade organizante coordenada e um “meio” de intersubjetividade. Gostaria, para
terminar, de evocar alguns pontos sobre os quais a abordagem comunicacional se distingue
das abordagens mais clássicas.
28

O modelo intersubjetivo propõe uma outra ontologia diferente da que está freqüentemente
implícita na análise social e que é dominada pelo pensamento objetivo - aquela que toma os
objetos em si, esquecendo sua origem “no coração mesmo da experiência”7. É o próprio
estatuto do conjunto de entidades, categorias e distinções que a sociologia toma por base de
suas operações de conhecimento que se encontra profundamente transformado. Mais
precisamente / é a substancialidade mesma de seus objetos que escorrega pela abertura que
opera o modelo praxiológico (ausência de um mundo pré-determinado; ausência de
determinação completa e definitiva dos objetos e dos sujeitos; permanência de uma parte
irremediável de indeterminação e de indecidibilidade etc.). Por exemplo, os sociólogos
consideram facilmente que eles podem tomar como unidades de referência para seu trabalho
de teorização e de pesquisa aquilo que eles pensam ser entidades irredutíveis do mundo real: o
indivíduo, seus estados intencionais, suas motivações e suas ações; o sujeito como realidade
em si; os fatos e os acontecimentos como elementos do mundo objetivo; os grupos, as classes
e as nações como realidades substanciais; e, seguramente, a sociedade concebida como
entidade sui generis do mundo real. Ora, no paradigma da comunicação, tal qual esboçado
aqui, estas entidades escapam ao “pensamento objetivo”, e prontamente deixam de constituir
pontos de partida ou fontes para análise; enquanto correlatos ou resultados de um atividade
social organizante multiforme, elas se tornam temas de pleno direito da investigação
sociológica.

Esta extensão do domínio da análise social precedente não é mais do que a contrapartida
metodológica da mudança introduzida sobre o plano da ontologia; nesta nova perspectiva, à
qual nós nos referimos em última instância assim que nos propusemos a compreender o
mundo social, não são fatos objetivos, sujeitos motivados e constrangidos, quadros inertes da
existência coletiva, mecanismos inconscientes de modelagens das motivações e de
comportamentos, mas formas instituídas, um “mundo de significações” sócio-históricas, e de
operações ou práticas pré-intencionais de organização, de esquematização e de configuração
que os agentes realizam uns em relação aos outros em suas interações ou em suas intervenções
sobre o mundo.

É por isso, aliás, que um segundo aspecto da mudança mencionada concerne à passagem do
plano da intencionalidade àquele que suporta a “rede de intencionalidade” (Searle) no qual se

7
Merleau-Ponty
29

organiza nossa vida consciente (intenções, crenças, pensamentos, desejos etc.). Se é “nossa
realização social que dá vida ao nosso mundo”, resta que esta modelagem se faz sem uma
consciência de operações pelas quais nós a fazemos. Pois o suporte infra-intencional da rede
de intencionalidade é constituído de capacidades e de práticas, de formas tácitas ou
encarnadas de pensamento, de orientação no mundo e de controle de ação. O modelo
praxiológico considera que se pode estudar este suporte operacional da constituição da
experiência do mundo e dos outros, mas que isto exige utilizar uma linguagem de descrição
diferente do vocabulário intencional pelo qual nós temos costume de dar conta da atividade
social.

Incontestavelmente, o modelo esboçado se situa ao lado das abordagens que adotam um ponto
de vista construtivista da realidade; nós pensamos simplesmente perceber o mundo que na
verdade nós construímos sem nos dar conta das operações das quais nós não temos
consciência. Nesta perspectiva, a relação entre um agente e seu ambiente não é pensada em
termos da relação cognitiva-instrumental entre um espírito ou uma consciência e um mundo
externo ou objetos definidos, como “aquilo que existe independentemente dos pontos de vista
e da experiência dos sujeitos”. Este ambiente é, ao contrário, socialmente construído, não
tanto no sentido pelo qual ele é o resultado de uma historia social, o efeito dos processos
sociais inconscientes ou a conseqüência da intervenção das forças sociais (o que é
seguramente o caso de nosso ambiente sócio-técnico objetivo), quanto no sentido pelo qual
ele é definido de maneira contínua por uma atividade adaptativa implicando a cognição,
interpretação, esquematização etc., no contexto da organização social das ações práticas.

Agora, sob este rótulo de “construção social da realidade” encontram-se pontos de vista
completamente diferentes, dos quais alguns avizinham-se com o solipsismo, quer dizer, com a
idéia de que nenhuma realidade existe fora de meu espírito, que “o mundo só existe na minha
imaginação e que a única realidade é o ‘eu’ que ‘imagina o mundo’ ” 8. Não posso proceder
aqui a uma diferenciação aprofundada destes pontos de vista. Basta-me indicar que a
perspectiva inerente ao modelo “praxiológico” proposto não é aquele de um “construtivismo
radical” (defendido por autores como Watzlawick, Von Glasersfeld, Von Foerster etc.), que
faz da “realidade” o puro correlato do espírito, da consciência, da linguagem ou da
interpretação. Este pensamento raciocina, sobretudo em termos de organização social, então,
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de práticas e operações pré-intencionais e de determinação recíproca no quadro das interações


dos agentes entre eles e com um ambiente. Parece-me que seria também a perspectiva de
Mead, evocada mais acima. Mead defendia o ponto de vista de um “relativismo objetivo”, que
considera que todo o ambiente humano é real e objetivo, mas somente relativamente a nós e à
nossa comunidade de linguagem e de ação. É que o mundo objetivo incorpora então um ponto
de vista, uma perspectiva, a partir dos quais são construídas a identidade e a objetividade do
mundo. Ora, só existe perspectiva para as formas vivas, que possuem não somente uma
estrutura psicológica e física, mas também expectativas e necessidades construídas
culturalmente e, sobretudo disposições socialmente formadas para responder de maneira
determinada aos estímulos do ambiente (e desta forma também preservá-los). Se a
objetividade do mundo é o correlato de uma organização social de perspectivas, cujo suporte é
uma comunidade de comunicação, as propriedades do mundo não são feitas de consciência ou
de imaginação: elas pertencem ao mundo objetivo. Enfim, para este “relativismo objetivo” a
noção de realidade em si não tem muito sentido; uma coisa emerge como um objeto definido,
significativo ou pertinente, quando ela é determinada em seu curso por uma interação com os
agentes dotados de uma capacidade de percepção, de seleção, de manipulação e de um poder
de simbolização. O fato de tratar uma coisa como objeto definido implica uma abstração
considerável, uma seleção de alguns dos múltiplos elementos que comportam nosso campo de
experiência.

A sorte do “relativismo objetivo”, próprio do modelo “praxiológico”, não deixa


evidentemente intactas as concepções tradicionais do caráter social, da determinação social,
ou da inscrição social dos acontecimentos e das condutas dos agentes sociais. Por um lado, a
idéia da sociedade como realidade sui generis capaz de determinar os comportamentos do
exterior sobre o modo de aplicação de uma força ou do exercício de uma pressão, submerge
com a crítica do esquema representacionista-realista. Por outro lado, uma vez que a
subjetividade é tematizada não mais como origem da ação e seu sentido, mas como
conseqüência (por apropriação) da efetuação e da recepção públicas de uma ação, (cujo curso
é determinado localmente em um quadro de um processo de interação com o ambiente, a
partir de uma perspectiva), não faz mais sentido dar conta da ação unicamente pela motivação
dos agentes, nem conceber a socialização da ação como sendo mediada pela realização das
motivações dos agentes, pela institucionalização e interiorização dos valores e das normas de

8
Von Foerster, in Watzlawick, 1988
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uma coletividade. O paradigma da comunicação torna então possível uma abordagem


internalista da socialização das condutas e dos acontecimentos, no sentido de que aquilo que
as pessoas dizem e fazem é socialmente produzido por uma atividade organizante dos agentes,
que relacionam os atos e as palavras com um ambiente familiar e supostamente conhecido em
comum com os outros. Nesta nova perspectiva, o caráter social das ações e dos
acontecimentos é uma realização coordenada, o resultado de uma operação de socialização, no
sentido de uma inscrição social, tanto ao nível da produção quanto da recepção. Além disso,
ele é interno no sentido de que a própria organização de um curso de ação identificável,
inteligível e comunicável, requer dos atores e seus pares que, na sua atividade organizante,
mobilizem seu saber de senso comum das estruturas sociais e honrem suas expectativas
normativas recíprocas de segundo plano, relativas às operações, socialmente organizadas, que
eles fazem uns em relação aos outros às definições da ordem das coisas que eles consideram
como legítimas, aos quadros normativos da atividade que são supostamente tomados como
base de inferência e ação.

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