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PUC-SP
PUC-SP
Gilberto Freyre
Açúcar - 4a Edição, 1997. Pág. 15
SUMÁRIO
ANEXO I 123
ANEXO II 125
Alimentação e cultura
II
Alimentação e cultura
1.
A idéia desse estudo veio da observação, ao longo As revistas femininas, em
das décadas de 1980 e 1990, e começo dos anos 2000, do todo o mundo, têm como praxe
segmento de revistas relacionadas à cozinha no Brasil. oferecer receitas para a sua leitora.
Esse fenômeno pode ser observado
Em meados da década de 80, esse setor da mídia
ainda hoje, quando revistas dirigidas para
impressa especializada em revistas ainda não tinha a mulher solteira, sem filhos e que tra-
destaque expressivo no mercado editorial. A sua presença balha o dia todo, como Nova, tam-
podia ser detectada em colunas de jornais e em seções de bém da Editora Abril, mantêm
a prática.
revistas, especialmente nas femininas1.
Já na década de 1990, a gastronomia passou a ser um objeto
de interesse das pessoas mais diversas, desde chefs de cozinha a donas-de-casa.
Definimos aqui o conceito de gastronomia, fundamental para o nosso trabalho, de
acordo com as palavras de Algranti (2000: 252):
Alimentação e cultura
observar que há uma série de programas de TV sobre o tema e que novos restaurantes
sofisticados abrem as portas todos os dias. No Brasil, particularmente, a mídia impressa
tem destacado o tema. O jornal Estado de S.Paulo lançou, no final de 2005, um caderno
semanal sobre o mundo da gastronomia e seu concorrente, a Folha de S. Paulo,
aumentou sua seção sobre o tema, de uma para duas páginas.
Fazer parte do mundo da gastronomia é pertencer ao mundo das pessoas
especiais, que sabem degustar um vinho ou uma conserva exótica e especial de uma
região remota do planeta. E muitas pessoas, na era da visibilidade total que vivemos hoje,
querem pertencer a um mundo de sofisticação e destaque.
Em se tratando do veículo revista, o aumento dos títulos voltados para o mundo
da gastronomia também foi significativo. Entre a década de 1990 e o período
contemporâneo, surgiram vários títulos voltados para o universo da alta gastronomia:
Gula, a pioneira, Prazeres da Mesa, Alta Gastronomia, Sabor. E revistas como Claudia
Cozinha, nosso objeto de estudo, e Menu, tradicionalmente dirigidas para as donas-
de-casa, passaram também a destacar esse universo mais sofisticado nos últimos anos.
3. A partir da sua transformação em veículo independente3,
Claudia Cozinha começou a buscar um novo público: os jovens
Claudia Cozinha foi
amantes de gastronomia, chefs de cozinha e curiosos pelo tema,
criada em 1967 como um
encarte da revista Claudia,
tornando a revista uma publicação híbrida entre os universos da
tornando-se uma revista
gastronomia e da culinária4.
independente apenas no
ano dde 2000. A escolha dessa revista como objeto de estudo deu-se pelo
fato de ser a publicação voltada para o universo da cozinha há mais
tempo em circulação ainda no Brasil. Assim, poderíamos ter o
parâmetro de uma revista criada há quatro décadas, que pode nos 4.
mostrar a evolução da representação da comida na mídia brasileira No capítulo 1, dis-
cutiremos as diferenças
especializada em revistas. entre os conceitos de
E, para particularizar ainda mais a questão, escolhemos gastronomia e
estudar a representação da comida brasileira. Para definir o que é culinária.
Objeto de estudo
Claudia Cozinha, ao longo de sua história, viu suas características editoriais e
gráficas se modificarem muitas vezes. Nesse estudo pretendemos observar como se
construiu a representação da comida considerada brasileira nas páginas da revista,
utilizando os últimos três anos e meio da publicação para análise.
O estudo da mídia revista é sempre instigante porque uma revista não é apenas
um veículo informativo. Existe uma ligação, que envolve a durabilidade do veículo,
entre o leitor e a revista. Geralmente, só compra uma revista quem se identifica de
fato com ela. Scalzo (2003: 12) diz:
IV
Alimentação e cultura
“Revista é um encontro entre editor e leitor, um contato que se
estabelece, um fio invisível que une um grupo de pessoas e, nesse sentido,
ajuda a construir a identidade, ou seja, cria identificações, dá sensação de
pertencer a um determinado grupo (...) Não é à toa que leitores gostam de
andar abraçados às suas revistas – ou de andar com elas à mostra – para que
todos vejam que eles pertencem a este ou àquele grupo.”
Ao criar essas imagens, Freyre preservou a típica cozinha brasileira como uma
manifestação cultural de importância ímpar da “morte”. A morte, no caso, seria o
esquecimento total dessa tradição. No livro Açúcar, o autor criou imagens narrativas
das tradições dos doces nordestinos, preservando esses doces do esquecimento. Por
meio dessas imagens, Freyre também ajudou a criar um estereótipo da cozinha do
Brasil, que é muito utilizado em estratégias de divulgação do turismo do País, por
exemplo. A mídia revista, como veremos, utiliza-se muitas vezes desse estereótipo,
representando pratos típicos com um caráter de “exoticidade”, que não deveria
permear esse tipo de imagem.
Metodologia de Pesquisa
Para estudar a questão proposta e verificar se a hipótese de que a mídia
transforma a cozinha brasileira e vice-versa se comprova. Utilizaremos como
instrumental a semiótica da cultura e da mídia, enfocando na questão da produção de
imagens da cultura. Por meio de autores como Yuri Lotman, Edgar Morin e Norval
Baitello Jr., Dietmar Kamper, entre outros, trabalharemos o conceito de cultura e de
mídia, verificando como se constroem as imagens da cozinha brasileira nas revistas de
culinária e gastronomia.
V
Alimentação e cultura
Como a questão proposta trata de um objeto de estudo latino-americano, uma
revista brasileira, analisar a complexidade que envolve a cultura de países como o Brasil
é fundamental para a questão. Afinal, a cultura latina é cheia de entrecruzamentos,
junções e conexões particulares, que pedem uma discussão mais aprofundanda. Nesse
quesito, os trabalhos de Jesus-Martín Barbero, Néstor Garcia Canclini e Amálio Pinheiro
nos ajudará na pesquisa fornecendo o suporte necessário.
É importante esclarecer que optamos por deixar de lado a abordagem
antropológica da questão. Embora o capítulo 1 aborde o processo cultural que levou
a espécie humana a criar os conceitos de culinária e gastronomia, a abordagem não é
aprofundada. Abordar a questão da representação midiática da cozinha brasileira já
se mostra um objeto bastante complexo. Acreditamos que autores como Claude Lévi-
Strauss e sua obra O Cru e o Cozido, entre outros, devam ser
preservados para estudos futuros e mais aprofundados.
6.
No entanto, ao usarmos o trabalho do sociólogo
Franz Boas foi professor
Gilberto Freyre, não deixamos de lado o olhar de Gilberto Freyre na Universi-
antropológico. Afinal, foi esse olhar que permeou todo o dade de Columbia, nos EUA. Lá o
autor obteve o grau de Mestre em
trabalho de Freyre e fez o autor preservar a cozinha
Ciências Sociais com pesquisa
brasileira em suas imagens narrativas. Discípulo de Franz que seria o embrião da obra
6
Boas , pioneiro dos estudos da antropologia cultural, Gilberto Casa-Grande&Senzala.
Freyre sempre trabalhou com esse enfoque no estudo da
história, da cultura humanas e do comportamento humanos.
Justamente por isso, não termos um enfoque antropológico direto nesta pesquisa, mas
ele, certamente permeará todo o estudo. Tanto pelo trabalho de Gilberto Freyre
quanto pela contribuição de Edgar Morin, sociólogo e pensador francês, por meio de
seus estudos sobre a formação do sociogênese humana, como a obra O Enigma do
Homem, citada no primeiro capítulo deste trabalho.
Estrutura da dissertação
A dissertação está dividida em quatro partes. No primeiro capítulo, faremos um
breve histórico do desenvolvimento da alimentação como texto da cultura, e suas
linguagens diversas, como os conceitos de culinária e gastronomia. Ainda faremos uma
apresentação do parâmetro de comida brasileira utilizado: as imagens narrativas das
obras Casa-Grande&Senzala e Açúcar, de Gilberto Freyre, e uma discussão sobre o
conceito de gastronomia do mundo contemporâneo.
No segundo capítulo, desenvolveremos o objeto de pesquisa, ou seja, as revistas
relacionadas ao universo da cozinha e editadas no Brasil. O conceito de mídia impressa
especializada em revistas e sua conexão com o mundo da alimentação será analisado
observando como se processa a construção da imagem da comida brasileira nesses
veículos. Também serão apresentadas as demais revistas, Gula, Prazeres da Mesa e
Menu, que servirão de parâmetro comparativo em relação ao objeto de estudo,
Claudia Cozinha, na análise feita no último capítulo.
Na terceira parte desta pesquisa, será analisado a fundo o corpus Claudia
VI
Alimentação e cultura
Cozinha e a maneira como a revista representa imageticamente a comida brasileira.
Para isso, serão analisados os seus últimos três anos e meio (de março de 2002 a
setembro de 2005. Em cada um dos exemplos analisados discutiremos se a construção
da imagem da comida brasileira na revista confirma, transforma ou apenas trabalha
com o estereótipo dessa cozinha e como tal se relaciona com os conceitos e as imagens
narrativas criadas por Gilberto Freyre.
No quarto e último capítulo, discutiremos a maneira como Claudia Cozinha e as
demais revistas representam essa culinária nacional, categorizando esse trabalho de
acordo com itens que diferenciam o tratamento que cada uma dá ao tema. Serão
observadas comparativamente quatro categorias de análise (gastronomia e culinária;
visibilidade e comensalidade; masculino e feminino; mundialidade e brasilidade). Essa
categorização vai ajudar a deixar mais clara a imagem da comida brasileira na mídia
especializada em revistas dos dias de hoje.
Teceremos ainda algumas considerações sobre o tema e os rumos que a
problemática parece seguir nesse momento, apresentando algumas possíveis idéias
para o prosseguimento da pesquisa. Tais como a hipótese de que, desconsiderando o
suporte revista, a exposição da comida é tamanha nos dias de hoje, que ela mesma, a
comida, pode ser analisada como mídia em si.
Por fim, nos anexos I e II, teremos a compilação de entrevistas com as duas
diretoras de redação de Claudia Cozinha no período de três anos e meio do corpus
deste estudo: Wanda Naesthler e Gisella Tognella. As entrevistas visam dar
embasamento às discussões sobre as mudanças da revista. É interessante destacar que a
revista escolhida como objeto desta pesquisa foi, até o último instante, um objeto de
estudo surpreendente.
No mês de abril de 2006, data limite para a finalização deste trabalho, Claudia
Cozinha anunciou, novamente, mudanças na direção de redação e nos projetos
gráficos e editorial. Gisella Tognella deixou o cargo para Cristina Dantas, antiga
repórter da publicação. Tentamos entrar em contato com Cristina para uma última
entrevista que, certamente, enriqueceria este trabalho, mas não foi possível agendar
uma data. Para colocar a questão, no anexo III, podemos ler o editorial da edição de
abril que anuncia as mudanças e ver alguns exemplos do novo projeto gráfico. Projeto
este que, em um movimento de “gangorra”, é muito semelhante ao penúltimo projeto
da revista, que vigorou de maio de 2003 a janeiro/fevereiro de 2005. Claudia Cozinha
mostra, dessa maneira, que é um objeto desafiador e complexo, justificando o trabalho
de pesquisa realizado neste estudo.
CAPÍTULO 1
A caça, o fogo e o
desenvolvimento da cozinha
8
“O fogo não deve ser concebido apenas como uma inovação que
aumenta o conhecimento prático geral e torna possível a utilização téc-
nica do material lenhoso. Trata-se de uma aquisição de alcance multidi-
mensional; a pré-digestão externa pelo assado alivia o trabalho do apa-
relho digestivo; ao contrário do carnívoro, que adormece pesadamente
depois de devorar a presa, o homínida, senhor do fogo, pode estar em
forma e alerta depois de ter comido; libertando a vigília, o fogo tam-
bém libertou o sono. (…) É, enfim, no plano social que o desenvolvimen-
to da caça e suas conseqüências representam um papel transformador.
Acompanham uma sociogênese que dissocia o modelo social hominídeo
das sociedades de primatas mais avançadas.”
Dessa descoberta das qualidades da comida, que vão além da nutrição, surgiu o
conceito de gastronomia, agente de grandes transformações da cultura dentro do uni-
verso da cozinha. Veremos a seguir, brevemente (pois trata-se de um processo milenar),
a evolução que originou esse conceito.
Esse processo não implica no desuso de textos anteriores, o que explica o porque
de a culinária não ter sido anulada pelo conceito de gastronomia; pelo contrário, essas
linguagens se completam, criando textos híbridos. Um exemplo no campo da comuni-
cação é o de revistas como Claudia Cozinha e Menu, que se situam na fronteira entre
ambas as definições, colhendo frutos dessa interação. O entrecruzamento de linguagens
caracteriza uma maior riqueza cultural, pois símbolos e códigos geram textos com mais
camadas e maior complexidade. No caso da revista, esses veículos chamados de híbridos
traduzem de maneira mais adequada culturas como a brasileira, do que revistas que se
situam apenas na linguagem gastronômica, como Gula, por exemplo. Sobre a relação
entre mídia e culturas latino-americanas, Barbero (ibidem: 139) comenta :
Sobre esses encontros culturais de diversos povos, como os que formaram a cul-
tura brasileira e, por conseguinte, a sua comida, as palavras de Lotman (ibidem: 90)
sobre a riqueza que pode resultar desse processo são elucidativas:
“De manera análoga podríamos decir que el contacto con otra cul-
tura desempeña el papel de un ‘mecanismo de arranque’ que pone en mar-
cha procesos generativos. La memoria del hombre que entra en contacto
con el texto, puede ser considerada como un texto complejo, el contacto
con el cual conduce a cambios creadores en la cadena informacional.”
13.
Ao destacar a alimentação como elemento primordial na
No período rupestre, o
formação da sociedade e cultura do Brasil, Freyre reforçou uma homem já “magicizava” seu
verdade já observada, ainda que instintivamente, pelo homem cotidiano com imagens. Antes da
das cavernas: a comida acaba por se transformar um ritual que caça, o animal ambicionado era
desenhado, acreditando-se que,
forma sociedades. E para muitas delas, como a arte rupestre13
assim, seria mais fácil
pode comprovar desde a antiguidade, a comida é um elemento caçá-lo.
mágico. Cascudo (ibidem: 378) diz sobre essa questão:
17
Lépine (apud KOMINSKY, E., LÉPINE, C. & PEIXOTO, F., 2003: 295), sobre o tra-
balho de Gilberto Freyre nos estudos da alimentação brasileira afirma:
“O povo não come galinha assada com recheio, peixe sem espi-
nhas ao molho branco, coquetéis de camarão, lagosta com mayonnaise.
Come carne, farinha, feijão, arroz. Noventa por cento cozinhando. Carne
assada implica farofa. Peixe traz o cortejo do pirão escaldado ou mexi-
do no fogo. O feijão de ementa comum não é a feijoada. Nem todos os
pratos populares são diários“.
Quando um tipo de cozinha conserva-se por meio de imagens, sejam elas visuais
ou narrativas como as de Freyre, verificamos que a memória da cultura atuou como um
programa de ação e conservação nesse processo. Ação porque criou e estruturou a lin-
18
Hoje, além da faceta ritualística do ato de comer, essa atividade cotidiana pode
representar também um passaporte de
status social pois, para muitos, o interesse
pela gastronomia nasce devido ao símbolo
de sofisticação que ela pode representar.
Segundo Kamper, “vincular o tempo sig-
nifica vincular-se como tempo15”. Dessa
maneira, ao vincular-se com esse momen-
to contemporâneo de interesse redobrado
pelos assuntos de cozinha, o homem vai
além, torna-se esse tempo e transforma a
comida numa imagem daquilo que ele
deseja ser socialmente. Usa o comer como
um trampolim para ver e ser visto, fato
observável na intensa exposição que re-
presentam ou restaurantes “badalados”.
Figura 3: Caderno Equilíbrio, Folha de S.Paulo, 23 de agosto de 2005
Esse fenômeno não é novo na cul-
tura. A publicidade já trabalha o apelo do “querer ser”, dos desejos humanos, há muito
tempo. O que se torna aqui um diferencial é que o processo venha
15. ocorrendo com a gastronomia, que de linguagem da alimen-
Citação feita pelo Prof.
tação, está se aproximando cada vez mais das estratégias comu-
Dr. Norval Baitello Jr. durante
o curso de Sistemas Visuais/ nicativas peculiares à publicidade.
Espaciais – Teoria da Mídia e O desejo de pertencimento a um grupo seleto, e uma
Questões da Imagem, ministra- constante busca humana pelo passado — um tempo sempre
do na PUCSP durante o 2º
melhor— explicam casos como os dos o jovens citados na
semestre de 2004.
reportagem da Folha de S.Paulo. Eles, mesmo a despeito das faci-
lidades da vida moderna, voltam a ter prazer em preparar suas próprias
refeições na cozinha de suas casas, muitos vezes usando utensílios e técnicas antigas.
Entre as novidades desse universo gastronômico, uma das últimas a chegar ao
Brasil foi a comida servida em gramas, colheres, copinhos ou minixícaras. Trata-se de um
revisionismo da nouvelle cuisine, movimento da cozinha francesa das décadas de 1970
e 1980, que pregava que o prazer dos alimentos só seria alcançado em pratos com
porções pequenas. E com preços altíssimos. A chamada “comida de colher” reduz ainda
mais as porções e aumenta ainda mais os preços (figuras 4 e 5).
21
Afinal, o homem é um ser que cria imagens desde a sua pré-história. Baitello Jr.
(ibidem:10) afirma ainda que:
Nesse contexto, observa-se que livros de receitas com fotos, em geral, são mais
atraentes e vendem mais do que aqueles que não as possuem. O tempo é escasso, a
imagem da comida acaba fazendo parte de um processo de seleção. Pela imagem,
seleciona-se qual é a receita que interessa e apenas aquela será lida.
No caso das revistas de gastronomia e culinária, pode-se dizer que a imagem de
uma comida apetitosa na capa pode ser a responsável pela boa vendagem em banca
da publicação. A foto traz à tona a gula do leitor. Exemplos de capas que despertam
a eterna fome do homem podem ser observados nas figuras 6, 7, 8 e 9.
Figuras 10 e 11: Edições especiais da Casa Dois Editora sobre chocolates e panetones
“A modernização
diminui o papel do culto e
do popular tradicionais no
conjunto do mercado sim- Figura 13: Prazeres da Mesa, janeiro de 2004
Figuras 16 e 17: Menu, novembro de 2005 e Claudia Cozinha, julho/ agosto de 2003
homogeneização nas revistas brasileiras. Todas se parecem entre si. Assim como acabam
sendo semelhantes graficamente a revistas estrangeiras.
Já a “releitura” de pratos brasileiros feita pelas revistas de alta 22.
gastronomia, também apresenta um traço de homogeneização, de A questão da
transformação cultural que parece levar todas as cozinhas do mundo mesmice no design edito-
rial contemporâneo é de
a se tornarem iguais. Assim, o produto pode vender mais facilmente. suma importância e será
É a cultura se tornando, mais do que nunca, produto de consumo. retomada na última parte
Barbero (2004: 35) fala sobre essa tentativa de se transformar textos da deste trabalho.
Segundo o conceito de Baitello Jr. (2002: 5), a imagem da comida que foi de
fato apreciada por Tom Jobim foi devorada e transformada em um novo prato, dife-
rente daquele original, que seria aquela dos bares cariocas:
nhamento ocorre com o prato Pudim de claras com caramelo de figos indianos, que
oferece um doce muito distante do pudim de claras que pode habitar o universo sim-
bólico da alimentação dos brasileiros e de outros povos. O pudim deveria ser simples,
enfeitado apenas com ameixas, se muito. Essas comidas deveriam evocar uma lem-
brança, uma memória individualizada, que afeta emocionalmente de maneira diver-
sa cada um dos leitores27. mas não é isso que acontece, pois não há iden-
tificação entre a cozinha brasileira e esses pratos. 27.
O que se pode apreender dos exemplos da revista Prazeres da Lucrécia D’Aléssio
Ferrara define lembrança
Mesa é que esta é uma revista que se define, de fato, como um como “o espaço da memória
veículo que retrata o mundo da alta gastronomia, adequando qual- individualizado”. Para ver mais:
quer padrão diferente a este. A publicação certamente perde em FERRARA, L. D. Significados
Urbanos. São Paulo,
valores culturais brasileiros que não são levados ao leitor com essa
Edusp, s/d.
opção, mas há uma fidelidade ao seu papel no mercado editorial.
45
sadas na comida vendida pela revista e não nos conceitos ou aprendizado sobre gastrono-
mia que ela possa oferecer. No entanto, a revista traz matérias completas, especialmente
sobre ingredientes e vinhos. Mas, nessas, não publica receitas. Os territórios das matérias
e receitas são definidos, não se misturam como nas outras revistas.
As páginas intituladas “Os sabores e aromas da comida baiana”, da edição de
julho de 2004, também seguem a mesma tendência de simplicidade, como pode ser
observado nas figuras 35 e 36. Elas valorizam as comidas mais conhecidas da culinária
baiana, como o acarajé, e outras que são símbolos da comida sertaneja, como a tapio-
ca e a carne-seca. Não há a “releitura” gastronômica dos pratos. É uma foto da tapioca
com sua receita ao lado, nada mais. Nota-se uma grande valorização dessas imagens, já
que três delas estão ocupando páginas inteiras – sendo que o tamanho total da
47
O autor, na citação acima, faz um retrato dos doces nordestinos que bem
poderia figurar em uma página de uma revista de cozinha contemporânea. Ele retrata
não apenas a estética da comida, mas também o visual das séries da cultura que a
52
O autor compunha suas obras literárias com narrativas visuais, criando imagens
da comida brasileira que se mantêm no imaginário coletivo e que
31.
afetam, inclusive, um designer editorial31 quando este começa a Para ver mais:
compor as páginas de uma revista como Claudia Cozinha, Gula ou ADG Brasil. O Valor do
Prazeres da Mesa. A opulência de gostos, temperos e formas da Design. São Paulo,
Editora Senac,
comida brasileira está presente nas imagens das comidas
2002: 28.
reconhecidas como brasileiras, mesmo quando elas são adaptadas à
alta gastronomia – como pôde ser observado em exemplos do capítulo 2. A seguir,
veremos como a revista Claudia Cozinha produz imagens da nossa cozinha.
Figura 42: Claudia Cozinha Edição Especial Festas, janeiro de 1980, páginas 20 e 21
Nas décadas de 1970 e 1980 a revista modificou seu padrão. As páginas passam
a termais fotos, mas ainda há grande quantidade de receitas. As imagens das comidas
mostradas continuam distantes da representação típica da comida brasileira, como
mostra a figura 42, em página de Claudia Cozinha do começo da década de 80. O
exemplo lembra cenas de filmes norte-americanos, onde os piqueniques ao ar livre
são comuns, o que não acontece no Brasil. Afinal, o padrão seguido ainda era o de
revistas estrangeiras – se funcionava no exterior, deveria funcionar aqui. É importante
lembrar que esse paradigma não mudou muito, porque a mesmice do design gráfico
brasileiro tem raízes nesse mesmo pensamento. Prova disso é a massificação de
repetições de revistas como Esquire e Wallpaper, como foi visto no capítulo anterior.
Já a mesa de Páscoa (figura 43) destaca personagens de uma festa de família e re-
força esse padrão que não é brasileiro. Com o tempo, no final da década de 1980, a revista
eliminaria a necessidade de trazer personagens para caracterizar suas matérias, apos-
tando apenas nas comidas – numa fase em que o universo ficou restrito às fotos de pratos
55
esse trabalho, como louças, utensílios de cozinha, enfeites, toalhas de mesa. O que
chama a atenção também é o bom acabamento do texto, que não teria mais espaço
no jornalismo feito nos dias de hoje, quando as redações pagam salários baixíssimos
e acabam contratando jornalistas inexperientes para esse tipo de trabalho. São mostras
de que o paradigma da época em que o especial foi feito mudou radicalmente.
A partir do ano 2000, a revista passou a ser um veículo independente e bi-
mestral. O projeto gráfico foi radicalmente alterado, contendo maior número de fotos
e de detalhes, como boxes de informações complementares. Já o projeto editorial
trouxe a novidade, já tradicional em Gula, do texto introdutório às receitas. Um
exemplo desse novo momento é a edição de junho/julho de 2001, onde duas matérias
versam sobre a comida brasileira: a primeira sobre o milho nas festas juninas e a outra
sobre a comida do Vale do Rio Paraíba, em São Paulo.
A reportagem sobre comida de tropeiro (figuras 51 e 52) ganha o recurso da
ilustração, que mostra o caminho desses bandeirantes que desbravaram o interior de
São Paulo, deixando padrões de sua alimentação que proporcionaram o surgimento
de pratos como Feijão-Tropeiro e a Vaca Atolada. As fotos ganham também detalhes
de utensílios típicos, como a toalha xadrez.
Essa mudança mostra a necessidade que a revista sentiu de levar mais informação
so-bre a área de gastronomia para o leitor. Como afirmou antes a diretora de redação de
Menu33, Solange Souza, mais do que receitas, o público “quer informação na área”. Assim,
Claudia Cozinha se aproximou do paradigma das outras revistas e passou a disputar espaço
no mercado diretamente com elas, mas sem abandonar seu público. Veremos agora como
as mudanças no título se processaram nos três anos de análise de corpus desta pesquisa,
entre 2002 e 2005.
33.
Ver página
3.4. Claudia Cozinha de 2002 a 2003
45, segundo
A revista Claudia Cozinha se tornou independente em 2000. Nos dois capítulo.
primeiros anos ela se manteve muito semelhante à sua fase como suplemento
59
Veremos agora como a comida brasileira era retratada neste espaço e tempo (de
abril de 2002 a maio de 2003) no projeto gráfico e editorial da revista, sob a luz das
imagens narrativas criadas por Gilberto Freyre. Espaço e tempo, aliás, são
preocupações da obra do autor pernambucano, que acreditava em uma observação
histórica baseada no tempo tríbio. Essa categoria é composta pela intersecção de
passado, presente e futuro, que se entrecruzam sempre, e não em um tempo linear
cronológico, como explica Andrade (2002: 91):
TABELA 1
Edição Vezes que o Tema das matérias
tema surge
Jul/2002 1 Tapioca
portugueses trouxeram e lhe demos características nacionais. Burke (idem, 2003: 50)
afirma que o hibridismo é um processo e não um estado. Assimilações de ingredientes,
como o caso da galinha no século XVI ainda ocorrem hoje, mesmo em graus menores.
Edward Said (apud BURKE, 2003: 51) diz que “todas as culturas estão envolvidas entre
si (…), mas nenhuma delas é única e pura, todas são híbridas e heterogêneas”.
O texto da matéria trata justamente dessa questão, abordando as miscigenações
da comida portuguesa – como a paixão pelo açúcar – que se hibridizaram com a
comida indígena e, posteriormente, com a africana. A matéria também conta
curiosidades sobre a alimentação portuguesa nessas viagens, como o que se comia
dentro dos navios, por exemplo. O desenho dessas páginas é um pouco dramático,
carregado, procurando contar em formato de “saga histórica” a chegada desse
ingrediente ao cardápio brasileiro.
Já na sequência, o design das páginas (figuras 54 e 55) fica mais leve, com fundo
branco e ilustrações de flores de estilo medieval no lado direito para dar um toque
63
mais colorido. Essas ilustrações florais remetem ao período medieval, quando era
comum esse tipo de desenho, mas sua presença também realiza essa função de colorir
as páginas, deixando-as mais interessantes visualmente para o leitor.
Dessa forma, observamos vários textos de várias culturas que se apresentam
nessa reportagem, compondo uma imagem dos primórdios da comida brasileira. É
bastante difícil tipificar esse tipo de acontecimento cultural, como esse da incorporação
de um ingrediente novo a uma cozinha. Esse fato implica tanto a sua importância na-
quele período quanto nos seus desdobramentos posteriores. Dessa maneira é proble-
mático tipificar, colocar numa categoria rígida, esse tipo de acontecimento.
Lotman (apud GUIMARÃES, 2001: 16) fala sobre essa referida problemática da
tipologia da cultura:
Assim, o texto cultural produzido por essas páginas é um texto com estreitas
ligações com inúmeros outros, mas é difícil tipificá-lo como um texto da cultura da
alimentação brasileira ou da alimentação portuguesa, visto que esse é o exato
momento que elas se cruzam pela primeira vez. Claudia Cozinha fez uma abordagem
interessante da questão, que começa com grande impacto visual, mas perde um pouco
na monotonia das páginas seguintes. Afinal, o abre da reportagem é bastante
complexo, mas as duplas de páginas sequenciais são praticamente iguais, como pode
ser observado nas figuras 54 e 55.
Há uma mesmice visual, que pode ser explicada no momento em que a página
foi desenhada. Após resolver o abre da matéria, o designer editorial responsável pode
ter tentado desenhar as demais páginas da maneira mais simétrica possível. De fato a
leitura é linear, mas há um empobrecimento visual que não corresponde ao tema rico
da reportagem:um encontro de culturas distintas. A revista começa representando de
maneira eficiente esse acontecimento, mas acreditamos que ela poderia ter desen-
volvido de forma mais elaborada a continuação da reportagem.
3.5.3. Festas juninas: Na edição de junho de 2002, há duas matérias sobre comida
brasileira. Uma delas analisa as festas juninas, evento cultural bastante característico
do interior do Brasil. A imagem dessas festas é naturalmente associada ao “caipira” do
interior, seja ele paulista ou nordestino. São ritos ligados à religiosidade católica, que
têm seu auge nas festas realizadas no mês de junho em homenagem a Santo Antônio,
São João e São Pedro. É importante lembrar que tais comemorações são carregadas de
outros significados, adquiridos ao longo do processo histórico e cultural de seu de-
senvolvimento no território brasileiro. Uma festa junina não é mais apenas uma
celebração de santos, mas sim um acontecimento histórico, cultural e social, que pode
mobilizar comunidades: um ritual. Sobre esses ritos, Barbero (ibidem: 97) aponta:
Claudia Cozinha encontra raízes nas imagens da cultura. Assim, são os fenômenos
culturais que geram as imagens midiáticas e não o contrário, observando-se que, de
maneira clara, a mídia é responsável por transformações na cultura, mas, que a via
inversa – da cultura agindo na mídia – é ainda mais forte e atuante.
As demais fotos que dão continuidade à matéria, mostram a tapioca feita com
diversos tipos de recheios (com suas respectivas receitas). Essas fotos são imagens que
estimulam o consumo desse prato, porque despertam a fome do olhar inerente a esse
tipo de situação. Elas possuem uma ligação com o contexto da matéria – oferecem um
alimento exuberante e apetitoso. Baitello Jr. (2000: 9) diz que “a imagem também se
constitui em diálogo com seu entorno. Assim temos que considerar seu espaço
circundante como parte integrante essencial delas”.
O papel de despertar os sentidos, nesse caso a gula, é uma estratégia da
publicidade que vem sendo incorporada à mídia, tornando a fronteira que divide esses
dois sistemas da cultura cada vez mais tênue. A propaganda de alimentos sempre se
utilizou dessa fome imagética para vender – e a revista de cozinha segue o mesmo
caminho. Assim, da mesma maneira que o comercial de margarina mostra o pão
quentinho com o produto derretendo, a revista traz a tapioca exuberante, com recheio
escorrendo, pedindo para ser devorada logo (figura 62).
70
Vemos que a qualificação ambiental das imagens das duas matérias citadas age
exatamente informando sobre o lugar do qual ambas tratam, qualificando-o antes de
mostrar sua cozinha típica. A comida mineira e goiana figuram como decorrências dos
lugares onde foram criadas. De fato, como afirma Baitello Jr. (2003: 44) “o texto da
importantes dessa cozinha, e entre as cinco mostradas, três são derivadas da mandioca.
A disposição gráfica, vai além da mesmice, é ainda mais simples. Ao contrário do
material sobre Goiás e Minas Gerais (figuras 65 e 66), essas páginas não mostram
detalhes de Alagoas ou componentes visuais que caracterizem a identidade brasileira
dessa comida. Apenas os pratos típicos têm destaque.
Ferrara (ibidem: 20) diz que “mesmo que o lugar seja informado, para entendê-lo
é necessário refletir sobre o significado urbano que ele produz e sobre o conceito de
informação e sua distinção em relação à comunicação”. O lugar, Alagoas, foi notificado,
mas não caracterizado por Claudia Cozinha. As comidas mostradas poderiam ser de
qualquer estado brasileiro – não há traços culturais que a identifiquem como alagoana.
Essas páginas denotam um aparente”esgotamento” dos projetos gráfico e
editorial da revista naquele momento. As páginas não conseguem representar com
complexidade a cultura das matérias sobre cozinha típica. A mesmice visual, sem dúvida,
é um dos elementos que contribuiem para falha na representação dessa cozinha.
74
reportagem sobre cocada, temos um coco, mas sua imagem não é de compreensão rápida
e direta. O fruto está na foto, mas decomposto em três imagens - em todas elas o coco
vai ficando mais próximo do leitor, assim como a cocada que está dentro dele.
Há uma proximidade visual, mas observamos também um distanciamento. A
cocada, tema da reportagem, acaba praticamente de-saparecendo no fundo branco do
coco. Não parece haver a intenção de fazer da cocada um prato apetitoso e sim de
deixá-la exposta, quase como se ela fosse uma obra-de-arte.
O layout da página foi produzido para dar uma certa sensação de vazio. É como
se a edição da reportagem disesse: “vamos falar de um prato típico do Brasil, mas não
queremos ser tão exagerados como é a nossa comida”. A página está equilibrada
visualmente, é bonita, mas não desperta o apetite. Houve uma devoração da imagem
anterior e uma redução ainda maior de suas dimensões. Baitello Jr. (s/d: 5-6) fala sobre
a perda das dimensões das imagens do mundo que vivemos:
3.7.1. Boi-Bumbá: Logo na primeira edição desse novo projeto, a revista traz uma
matéria sobre as típicas festas juninas do Maranhão, intitulada “Boi na rua, gostosuras
no arraial”. O boi em questão trata de uma tradição ligada ao Bumba-meu-Boi, festejo
típico do Estado. O primeiro olhar para as páginas revela que a revista mudou
graficamente em um sentido: a mesmice da contigüidade de foto-receita que marcava
o projeto anterior foi abandonada, dando mais liberdade para a diagramação, que
ganhou movimento. As páginas parecem menos estáticas e há mais elementos visuais
despertando a atenção do leitor da revista.
A abertura da reportagem apresenta duas fotos do Bumba-meu-Boi e uma foto
de comida (figura 73). Há branco na página, dando leveza à mesma, mas de maneira
mais suave do que no exemplo anterior da figura 72. Observamos também uma coluna
de texto descentralizada na página da direita, o que garante um movimento não linear
a essa página. Nas páginas seguintes (figuras 74 e 75) há uma riqueza visual, quando
fotos dos pratos típicos se misturam a fotos de casarios (prédios antigos) maranhenses,
e de bebidas típicas, como o guaraná Jesus. Verificamos que o lugar foi bem marcado
e caracterizado, como no exemplo 63 e 64, das comidas mineira e goiana.
Forma-se, dessa maneira, uma imagem mais rica da cultura maranhense do que na
matéria sobre a comida alagoana. No exemplo das figuras 73, 74 e 75 a comida das festas
juninas do Maranhão é mostrada como sendo um de seus bens culturais, e não uma
atividade exótica. Esse fato pode ser visto como uma mudança acertada da revista, que
soube adequar a comida do Brasil ao seu contexto cultural. No entanto, as fotos de pratos
não são mais tão apetitosas como eram anteriormente. Um pouco desfocadas e
enfraquecidas, diminuídas de tamanho, elas não despertam a gula. Iluminou-se o folclore
maranhense, assombreando sua comida. Sobre a questão de regiões iluminadas da
imagem, Baitello Jr. (s/d: 2) diz que:
79
Quando verificamos tais explosões na mídia revista, podemos observar que o uni-
verso desse tipo de publicação relacionado à cozinha é amplo e capaz de representar
tanto o momento mais tradicional, como o da festa de Boi-Bumbá do Maranhão e suas
comidas típicas, quanto o moderno, aquele representado pelo design leve da revista
naquele momento. A cultura gera explosões e uma delas foi essa inovação no design grá-
fico da revista que se alinha melhor com a representação das festas populares do Brasil.
81
A imagem traz um único canapé no foco de uma grande foto (com outras canapés
iguais no fundo, este já desfocado), que não desperta nenhuma gula, visual ou gustativa.
É apenas uma imagem ilustrativa e não qualifica qual é a gastronomia que está sendo
retratada. Na página seguinte, o resultado é melhor, ainda que também um pouco
distante da exuberância que se pode esperar da comida típica brasileira. A foto do
Surubim ao molho de hortaliças e purê de banana-da-terra traz um prato passível de se
encontrar na alimentação nacional (figura 78).
A compreensão e a expectativa de ver imagens da nossa cozinha típica influí
diretamente no processo comunicativo entre leitor e veículo. Lotman (ibidem: 89) diz:
“En la compreensión actual del texto, éste deja de ser un portador pasivo del sentido,
y actúa como un fenómeno dinámico, internamente contradictorio.” É esse dinamismo
entre autor e receptor faz da revista de gastronomia um sistema complexo, que emite
e troca informações constantemente com todo o universo da cultura.
83
Na figura 79, logo verificamos uma complexidade visual que remete ao espaço
de sobreposição de elementos que se espera de um mercado. Mostrando os diversos
produtos que ali podem ser adquiridos, como frutas, peixes, carnes, queijos e os bares,
restaurantes e personagens do local, a matéria compõem um mosaico que representa
midiaticamente a riqueza do lugar . Mas que não suplanta uma experiência ao vivo no
local, carregado por imagens mais complexas, mas de maior dificuldade de tradução.
Olhar a revista oferece um pré-conhecimento sobre a imagem do Mercado
Municipal de São Paulo. Já ir pessoalmente até ele é uma experiência complexa,
exaustiva, mas rica, a que muitos, por preguiça visual e de assimilação e pelo torpor
provocado por um mundo contemporâneo marcado pelo excesso de informações, não
se permitem. É mais fácil se contentar com a assimilável superfície pequena da revista,
84
3.7.4. Cozinha brasileira light: Outra matéria curiosa edição de janeiro/ fevereiro de
Claudia Cozinha e que promove o mesmo confronto entre real e sua representação
midiática (bidimensional e tridimensional) é “Mungunzá Light?”. Essa reportagem
propõe um novo modo de preparo que deixe mais leves, do ponto de vista calórico,
pratos típicos do Brasil como o mungunzá, feijão tropeiro e pudim de tapioca.
Em tempo de preocupação com a saúde e a boa forma, muitos locais de tradição
3.7.5. Cozinha do samba: Inspirada em um livro que aborda a Velha Guarda da Escola
de Samba Portela e sua tradicional cozinha, as páginas da edição janeiro/fevereiro de 200
começam a transmitir essas tradições na abertura da reportagem, mas a promessa não se
cumpre na sequência da matéria. Um prato de galinha com quiabo no canto direito e
desenhos que lembram o carnaval, como as letras que parecem dançar no título e o
pandeiro que ilustra discretamente o abre, dão a impressão inicial de que a reportagem
mostrará esse universo, que também envolve sua cozinha (figura 81).
O imaginário de riqueza cultural e visual que cerca o carnaval carioca e, por
cpnsequência, a velha guarda das escolas de samba, não é observado na imagem
composta pelas páginas da revista. A culinária típica que é preparada nos morros cariocas
fica comprometida nas fotos simples, que não caracterizam o seu lugar de origem.
As escolas de samba do Rio de Janeiro são conhecidas também por oferecer ao
público uma cozinha exuberante, com pratos típicos como feijoada e frango com
quiabo, entre muitos outros. Essa cozinha é sempre acompanhada por tradicionais
86
Ainda sobre o prato, podemos fazer uma comparação entre essas imagens e as
de Gula (figuras 24, 25 e 26), vistas no capítulo 2 deste trabalho. A feijoada de Gula
era completamente descontextualizada de ambiente. A revista mostrou apenas como
preparar o prato, sem ligar sua imagem a de alguma comemoração tipicamente
brasileira. Já Claudia Cozinha não exlcluiu esse caráter de prato que agrega, reúne
pessoas a sua volta, ainda que tenha colocado a feijoada em um ambiente mais
sofisticado. Esses dois modos distintos de trabalhar a imagem de um mesmo prato
típico mostram claramente as diferenças de representação da comida brasileira que são
adotadas por essas revistas. No quarto capítulo deste trabalho veremos mais
detalhadamente essa questão.
A primeira observação sobre a nova fase de Claudia Cozinha é que a
identificação com a alta gastronomia aumentou muito, começando já no novo lema
da revista, “O prazer da gastronomia na sua vida”, que substitui o antigo “Todas as
receitas testadas e com fotos”. Já com a imagem construída ao longo das anos de
credibilidade acerca de suas receitas, a revista mudou seu lema, que agora volta-se
para a necessidade de usar o conceito gastronomia para se posicionar de maneira
competitiva no mercado editorial.
Além do novo lema, Claudia Cozinha também passa a agregar nessa edição um
novo elemento: dicas de vinhos que harmonizam sabores com as receitas oferecidas. Essas
dicas agregam valor à revista, incluem-na em um mundo mais sofisticado, distante da
culinária – ainda que esse o projeto anterior se preocupasse em mostrar uma certa
sofisticação, o discurso da revista nesse novo momento é ainda mais contundente. O
mundo dos vinhos, exclusivo e excludente, é perfeito para marcar essa nova imagem.
No entanto, o diagramação da revista seguiu caminho inverso, abandonando o
estilo clean, com muitos brancos e fontes sem serifa do projeto anterior, e investindo
em um projeto mais pesado. Observamos o uso de muitas cores, imagens maiores,
fontes coloridas e outros elementos visuais. Todo esse rebuscamento visual gera
imagens mais complexas, que demoram mais a ser lidas e que compõem um paradoxo.
Afinal, se afastam muito das páginas de Gula e Prazeres da Mesa, dando a entender
que Claudia Cozinha tem uma inteção superficial de entrar no mundo da alta
gastronomia, pois a imagem construída passa longe desse desejo.
exemplo citado traz o chef Olivier Anquier, um francês radicado no Brasil, em visita ao
Mercado Ver-o-Peso, localizado no Estado do Pará.
O local é reconhecido por ter uma exuberância particular de cores, sabores e
ingredientes típica da região Norte do Brasil. A intenção da reportagem é ver o
profissional da alta gastronomia descobrindo essa face da comida brasileira. Na
representação dessa viagem a revista investe em uma mistura de sofisticação e
elementos típicos. A sofisticação é vista no uso de fotos em preto e branco, que dão
leveza às paginas. Já os elementos típicos da cozinha paraense, considerada uma das
mais tradicionais do Brasil, podem ser vistos permeando todas as imagens. Mais uma
vez podemos observar um caráter de exoticidade nessa representação. Afinal, é o chef
francês visitando um lugar que é extranho até para o restante do nosso País.
Observamos que a nova imagem de Claudia Cozinha é aquela que busca, mais do
que as imagens dos projetos anteriores, o desejo de “ser visível e existir no mundo”. Em
um universo que valoriza a sofisticação e a busca pelo status a qualquer preço, a tentativa
da revista é alcançar, mais do que nunca, esse mundo, sofisticando seu conteúdo, mas
criando uma imagem visual que chame a atenção do leitor diretamente.
92
Claudia Cozinha, nessa matéria, fez a associação pretendida entre os dois, sistemas
da cultura, gastronomia e turismo, mas nos parece nítido que o segundo acabou
ganhando maior destaque. Essa é uma tendência da seção “Viagem gastronômica”, que
acaba iluminando o turismo em detrimento da cozinha visitada.
É nítido, nesse momento, que a revista se mantêm, no “Segundo Mundo” das
revistas ligadas ao universo da cozinha, embora tenha adotado o lema da
gastronomia. Afinal, ao mesmo tempo que sofistica a viagem de um chef francês ao
Jul - 2005 2 Belém do Pará/ Seção “Última Pitada” sobre comida da “roça”
Brasil tradicional, traz elementos típicos das revistas de receita, como a seção “Cozinha
Prática” (figura 90). Nela temos uma foto e uma receita por página, numa composição
simples, que cumpre a tarefa de manter o público mais fiel ligado à revista, oferecendo
receitas. Mas vemos um exagero visual que não compõe de maneira harmônica com
os desejos de sofisticação de Claudia Cozinha.
Paradoxalmente a revista se apropria de um conteúdo sofisticado, erudito, mas
com um formato mais popular, que remete mais à culinária do que, talvez, a publicação
gostaria que ocorresse. Assim, Claudia Cozinha assume um projeto editorial com toques
mais refinados, formato popular e conteúdo que oscila entre as duas fronteiras.
Em relação ao tema desse estudo, a comida brasileira, a revista, no período do
corpus analisado, não deixou claro se haverá um espaço fixo para essa cozinha. A comida
típica é vista em alguns momentos, mas há, como em Gula e Prazeres da
Mesa uma nítida tendência que aponta para a “releitura” de pratos 41.
A entrevista em
típicos. A diretora de redação da revista, Gisella Tognella41 afirma que,
questão pode ser
em 2006, a revista passará a dedicar mais espaço para o tema, mas o lida no ANEXO II
fato ainda não foi observado no período subsequente ao do corpus deste trabalho.
deste trabalho. Vemos na tabela 3, as matérias que foram produzidas
sobre comida brasileira nesse período. E, na sequência, trabalharemos o exemplo mais
significativo desse período – ao lado da “Viagem Gastronômica” no Pará – sobre a
representação da comida brasileira.
3.8.3. Brasil com sotaque francês: Na edição de agosto de 2005, Claudia Cozinha
traz na seção “Sugestão do Chef” pratos típicos da França e Itália que recebem
temperos do Brasil. Assim, a Tarte Tatin, a mais conhecida sobremesa francesa, ganha
como acompanhamento sorvete de coco, sabor bastante brasileiro. E a polenta, prato
italiano por excelência, é preparada com carne-seca e couve, uma combinação
tradicionalmente brasileira (figuras 91 e 92).
O estranhamento aqui fica por conta do fato de que a imagem desses pratos
não se parece em nada com aquelas que habitam nosso imaginário. São pratos
dispostos visualmente de maneira linear e com comidas que se assemelham a pratos
franceses. Há receitas, como o Confit de Marreco com Galette de Batata que possuem,
94
na sua preparação, cogumelos shitake e shimeji, vinho do Porto, nozes, mas nenhum
ingrediente tipicamente brasileiro.
A reportagem prometia toques nacionais, mas os deixou de lado, em uma
demonstração de que a revista pretende, mais do que nunca, alcançar o “Primeiro
Mundo” das revistas de cozinha. No entanto, como esse desejo é bastante contraditório,
a imagem dessa matéria já faz parte do novo paradigma da revista: o de uma cozinha que
se pretende mundializada, mas com um design que lembra a culinária. Nas figuras 91 e
92, a comida está pronta para ser servida. Até parece estar próxima de qualquer dona-
de-casa. Mas não está. Seus nomes e preparos mais complexos a aproximam sim do
mundo dos chefs de alta gastronomia, embora a imagem construída pelo design das
páginas lembre as receitas da seção “Cozinha Prática (figura 90).
De acordo com Tognella, esse novo design gráfico visa dar cor aos pratos
representados em Claudia Cozinha, torná-los mais interessantes para os leitores,
mostrando o mundo da comida como um universo rico, visual e culturalmente. A
imagem da comida nas páginas leves do projeto gráfico anterior, segunda ela,
95
A cozinha e seu
caldeirão de mídias
109
Fontes de pesquisa
115
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Anexos
123
Anexo I
ANEXO I: Entrevista com Wanda Naesthler, diretora de
redação de Claudia Cozinha – julho de 2004
Há algum cuidado especial com a questão das receitas típicas, já que alguns
ingredientes são difíceis de ser localizados?
Sim, nós sempre apresentamos possíveis substituições para os ingredientes utilizados. A
guariroba, por exemplo, é um tipo de palmito de Goiás, muito utilizado na receita do
“Empadão Goiano”. Quando publicamos essa receita recentemente (edição de março/
abril de 2003), tomamos o cuidado de comunicar a leitora de que ela poderia substituí-
lo por palmito tradicional, de preferência o de pupunha, ecologicamente correto.
Anexo I
Claudia Cozinha tem o cuidado de regionalizar a comida quando vai fotografá-la, isto
é, deixá-la com cara de mineira, caso seja um prato de Minas. Usamos recursos que
lembrem o local como quadros, artesantos, pinturas, etc. Nunca um prato baiano
aparece sem contexto, por exemplo.
Anexo II
ANEXO II: Entrevista com Gisela Tognella, diretora de
redação de Claudia Cozinha – setembro de 2005
Por que Claudia Cozinha mudou totalmente seu projeto gráfico e editorial
em meados de 2005?
Isso aconteceu porque a revista estava perdendo mercado, ela não se posicionava nem
entre os tradicionais leitores que compram revistas pelas suas receitas e nem entre os
amantes da alta gastronomia, que estavam preferindo títulos como Gula e Prazeres da
Mesa. Nós estamos agora mais voltados para essa alta gastronomia, tanto que
mudamos nosso lema de “Todas as receitas testadas e com fotos” para “O prazer da
gastronomia em sua vida”. Queremos mostrar que a alta gastronomia pode ser
desfrutada pelo leitor da nossa revista, mas sempre lembrando que, sim, as receitas
publicadas, todas, são testadas e publicadas com suas respectivas fotos.
Nós precisamos mudar para reagir ao mercado que estava caminhando para um super
avanço do que chamamos de revistas “talebans”, que são aquelas feitas com custo
baixíssimo, sem testes e com fotografias compradas. Não se realiza o prato para
fotografá-lo como Claudia Cozinha faz. Isso gera uma revista de baixíssimo custo e, por
isso, de baixo preço ao consumidor final, mas sem nenhuma qualidade.
Então a revista não quer mais ser vista como uma fonte de receitas apenas?
Sim, mas queremos que o leitor ainda nos veja como uma publicação que oferece bons
pratos para o dia-a-dia e para ocasiões especiais. Um de nossos lemas continua sendo
o “receber bem”. Mas incorporamos alguns elementos mais sofisticados, como as dicas
de vinhos que podem acompanhar as receitas, além das já tradicionais sugestões de
decoração e apresentação dos pratos.
Claudia Cozinha é a pioneira na valorização da culinária no Brasil. Nossa revista
praticamente criou o mercado que hoje é tão disputado por diversos títulos.
Precisávamos honrar nossa tradição e continuar nos mantendo como uma revista de
ponta na área.
Anexo II
precisa ser a arte do pouco. É possível ter prazer com comidas coloridas, alegres,
apetitosas. Por isso aumentamos as cores, o número de fotos, a exuberância das
imagens da revista. Hoje os pratos de Claudia Cozinha despertam a vontade imediata
de comer, o desejo da gula que precisa ser satisfeito rapidamente.
Anexo III
ANEXO III: Carta do editor e exemplos da mudança gráfica
ocorrida em Claudia Cozinha em abril de 2006
Veremos, a seguir, a capa (figura 106) e a carta do editor (figura 107) da edição
de abril de 2006 de Claudia Cozinha, que anunciou novas mudanças na equipe e nos
projetos gráfico e editorial da publicação. Na sequência teremos duas imagens (figuras
108 e 109), que servem como exemplo do novo projeto gráfico da revista.
Figura 106: Claudia Cozinha, abril de 2006 Figura 107: Claudia Cozinha, abril de 2006, página 4
Anexo III
Figura 108: Claudia Cozinha, abril de 2006, páginas 22 e 23