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LENIO LUIZ STRECK

/Sum i (it> ^íúii


é um a ob ra d if eren cia da: d e form a inter-
dísciplínar, o auto r fa z uma abordagem
que n a v e g a pelo Direito, pe ia S o c i o l o ­
gia, pela Filosoua e peia Antropologia,
Tema que suscita em polgantes contro­
v érs ia s, o Tribunal do Júri é visto, n e s t a
quart a e d iç ã o , s o b r e uma ótica g a ra n -
tista, a partir da per sp e ctiv a de q u e o
Direito d e v e s e r um s i s t e m a d e g aran ti­
a s. A ss im , no E s t a d o D e m o c rá tico
Direito, o júri é e x a m i n a d o te nd o p o rs*e -
m is s a a m á xim a d e Luigi Ferraioli: Direi­
to mínim o n a e s f e r a penal e m áxim o na
e s f e r a so cia l. Dito d e outro m od o, Len io
Streck sustenta que o direito penal e
p r o c e s s u a l p e n ai não d e v e s e r u s a d o
h o b b es ia n a m en te. O jurista e a s o c i e ­
d a d e não têm que escolher entre civili­
zação e barbárie !

Depois d e ex am inar a crise pela qual p a s ­


s a o Direito em n o s s a soci ed ade, o autor
examina o T-ibunal do Júri no contexto de
um país atrav e ss ad o por c l a s s e s sociais
diferenciadas e díspares, Quem julga
quem? Quais as condições de possibili­
dades que existem para que o júri venha
a se transformar em instrumento de sobe­
rania popular? São perguntas que per­
passam constantemente a obra.

Várias propostas- de modificação do júri


são apresentadas na obra, A alteração no
rito processual, a simplificação dos quesi­
tos, a ilegalídade/inconstitucionalidade do
quesito antigarantista da participação de
qualquer mqcfo (art. 29 do CP), a tesé do
direito penal dò fato como obstáculo à. de­
mocratização do júri, a necessidade do;
alargamento da competência do tribünal
popular, o julgamento sempre por maioria
do votos, a abolição da sala secreta, são
alguns dos pontos discutidos no decorrer
da obra.
Tribunal do Júri
SÍM B O L O S & R IT U A IS

1043
S914A S tre ck , L e n io L u iz
T rib u n n l d o júri: s í m b o l o s e ritu a is / L en io I
St re ck : ' ’ c r n ovrn-
d ,— P orto A le g re: Li
rni cio A l ■ 001.
i y3 j > 1 ’i .

íbH 0-3

1. T rib u n a l d o Júri. I. T ít u lo

C D U 3 4 3 .1 9 5

ín d i c e a lfa b é t ic o
T r i b u n a l do j ú r i

(B ib lio tecária re s p o n s á v e l : M a r ta R o b e r t o , C R B - 1 0 / 6 5 2 )
LENIO LUIZ STRECK

Tribunal do Júri
SÍMBOLOS & RITUAIS

Q U A R T A E D IÇ Ã O
r e v is t a e m o d i f i c a d a

liv ra ria //
DO A D V O G A D O
/ editora

Porto Alegre 2001


© Lenio L u i z S t r e c k , 20 01

R e v is ã o de
R osar .e M a r q u e s Borb a

P rojeto g rá f ic o e d i a g r a m n ç ã o de
Liv raria d o A d v o g a d o E d ito ra

G r a v u r a da capa
H o n o r é D a u m i e r : Q u erem os B arrab ás

D ireitos d esta e d iç ã o r e s e r v a d o s por


L iv raria d o A d v o g a d o L td a.
R ua R iach u elo , 13 38
9 0 0 1 0 - 2 7 3 P o rt o A l e g r e RS
F o n e / fa x : 0 8 0 0 - 5 1 - 7 5 2 2
in fo @ d o a d v o g a d o .co m .b r
w w w .d oa d v o g a d o .co m .b r

Im p re s s o n o Brasil / P rin fe d in Brazil


"A torneira seca
(mas pior: a falta de sede)
A luz apagada
(mas pior: o gosto do escuro)
A porta fechada
(mas pior: a chave por d en tro )"

fnsé Paulo Paes

D ed ico esta obra à m em ória de


A m o S treck e E rvino Schafer.
C ad a u m a sua m aneira,
g ran d es figuras.
Prefácio

Neste livro denso e iconoclasta, Lenio Streck convid a o leitor a


visitar o Tribunal do Júri, mas p ro íb e-lh e o roteiro turístico tradicio­
nal: nada de cartões postais, do tipo doze apóstolos - doze jurados,
do qual aliás Lord Devlin dizia, com hum or, im plicar um Ju d as a
cada Jú r i1, Antes mesmo de tran spor o átrio do tribunal, vê-se o
leitor concitado ao exam e da arga m a ssa que com patibiliza e uniüca
os múltiplos materiais construtivos: o discurso dogm ático.
Advertido para a constante extração de "sig n ifica d o s tranqüili­
zad ores" que a garim pagem d ogm ática efetua nas ja m ais contradi-
tórias jazidas do legisla d or_ racional e neutro, to leitor p o d e r á '
^ to fã v ã írfê T õ !^ m elho r a HçãodeT^mngrTa sobre o hom icí-
/ dio privilegiado, especificam ente sobre o m otivo político: "q u an d o
nobre e altruístico, e não in sp irado em credos su bv ersiv os do atual
regim e social, pode ser in clu ído entre os m otivos de relev ante valor
so cia l"2. Em outras palavras: o h om icíd io da U D R , em defesa de um
dos pilares do regime social, con stitu cio n a lm en te recon h ecido (art.
'í 5 Q, inc. XXIII, CF), será privilegiad o; o hom icídio do M ST, inspirado /
i na idéia repulsiva de que a p ro p rie d a d e n ão é .um direito a b s o lu to j .
) ( a r t 4Q, i;ic.^ XXIII, CF) será h e d io n d o / A propósito, Lenio Streck
desnuda a superioridade hierárquica cia pro p ried ad e sobre a vida,
difusa, porém incontestável m en te expressa nas' escalas penais dos
crim es pluriofensivos em que a tutela dos dois bens ju ríd icos se
entrecruzam.
Q uando o visitante chega à sala de audiências, v ê-se co n v o c a ­
do para uma com preensão geopolítica daqueles espaços e daqueles
assentos, sobre os quais os d iscurso s com plem en tares (e não a n ta­
gônicos, como Lenio observa) da acusação e da defesa d elim itam as
1 Trinl By ju ry . Londres, S t e v e n s & S o n s , 1 97 1 , p, 8.
2 H u n g r ia , Nelso n. C om en tários no C ó d ig o P en al. Rio de j a n e i r o , F o r e n s e , p. 125.
possibilidades do veredito. Lenio propõe urna leitura antropológica
do procedim ento do júri, entrevisto com o rito de p assa g em que se
consum a na sentença pela a greg ação do réu, seja à sociedade
inocente, seja ao rol dos culpados.
A questão da representa ti vidade do corp o de ju rados, costu-
m eiram ente omitida em trabalhos p u ra m en te dogm atico-descríti-
vos, é tratada com destaque. N ada mais ad eq u ado ; a questão
essencial do júri é esta, e seu su rgim ento h istórico está ab soluta­
m en te vinculado ao princípio do ju lg a m en to pelos pares, que na
Inglaterra do século XII dava consistência ju diciária ao caráter
pessoal dos estatutos jurídicos. Em seu belo texto dram ático sobre
Bccket, jean Anoilh põe na boca do arcebispo de C an terb u ry as
seguintes palavras: "N unca poderei aceitar que um elérico se
subm eta ao julgamento de outra jurisdição que mão seja a da
ig r e ja " 3. Henrique II, o soberano em cujo reinado o júri n asceu para
os julgam entos c r im i n a i s ,ji ã q .,gostou do q u e o u v iu, e o r esto cia
história é con h ecid o.fN os tribunais do Brasil c o n te m p o râ n e o ,"ã"
f classe média - fuTiciohários públicos que assim desfrutam de uma
licença extraordinária, profissionais liberais m ais ou m enos desocu-
e um ou outro artista T c r u t a d o ev en tu alm en te por algum
vulo que o admire - a classe m édia ju lga os trabalhadores, os
i pregados e agora os in em p regáv eis que a h egem on ia neoiibe-
rai produz m assivam ente a cada dia. '
O livro se ocupa, tam bém , é claro, dos p ro blem a s técnico-jurí-
dicos que estão na vida dos operadores: os in teressad os em nulida-
de do quesito vago sobre participação n ão se decepcionarão.
Silenciarei sobre minha única d iscordância, acerca da inconstitucio-
nalidade do assistente de acusação, só concebível através de uma
idealização do Ministério Público que expu rgasse d efinitivam ente a
vítima do cenário judicial.
Se tivesse que escolher uma passagem deste livro que mais
legitimam ente o representasse, não hesitaria em indicar aquela na
qual, retom ando a fábula da t^ela__penal, Lenio Streck m enciona
um certo discurso m ístico, que leva os h o m en s a aceitar os rituais
inerentes ao universo jurídico com o necessários à realização da
idéia d e justiça. Esta passagem me evoca o tom decidido com que
Foucault abriu suas reflexões sobre a justiça popular:f"Parece~m e
que não devemos partir da forma do tribunal e p ergu n tar com o e
em que condições pode haver um tribunal popular, e sim partir da
3 Jea n Anoilh, Bccket ou a H on ra de D eu s. T ra d . de F. M i d õ e s . L is b o a , P re se n ça ,
1965, p. 185.
justiça popular, dos atos de ju stiça pop ular e pergun tar que lugar
pod e ai ocupar um trib u n a l"4?! Ainda que o contexto seja tão
diferente - Foucault está pen san d o na ju stiça da revolução, e Lenio,
em revolução na justiça - os dois pen sam entos se encontram na
insubm issão aos rituais do pod er judicial e na d esco nfiança d os}
conteúdos que subjazern e organizam essas form as som brias. \

N i l o Bat ista

4 f o u c a u l t , M ich el. M icro física do p o d er. Trael. d e R o b e r to M a c h a d o . Rio de J a neiro ,


G raa i, 1 98 2, p. 39,
Sumário

A p r e s e n t a ç ã o ......................................................................................................................................... 13
N o ta s i n t r o d u t ó r i a s ........................................................................................................................... 17
1. O J ú r i , o P ro ce s so P e n a ! e o D i r e i t o P e n a l n a p e r s p e c t i v a do E stad o
D e m o c r á t i c o de D i r e i t o . D a u t i l i d a d e de u m a a n á l i s e g a r a n t i s t a .
P e r s p e c t i v a s ( d e s ) c r i i n i n a l i z a d o i a s : o v e r s o e o r e v e r s o da t u t e l a p e n a l . . 21
2. A (crise da) d o g m á tica j u r í d i c a , o e n s i n o j u r í d i c o e a i d e o l o g i a : um
u n i v e r s o do s i l ê n c i o .................................................................................................................... 31
2.1. f ; ) e i d e o l o g i a ......................................................................................................... ' 31
2.2. A ica jurídica c a crise tio p a r a d i g m a ..................................................................... 34
2.3. C co m u m teórico d o s ju r i s t a s o a c r e n ç a a o Um.-ítu c o m o uni
" s is t e m a logico" e " r a c i o n a l " ........................................................................................... 40
2.4. D o g m á tica e en sin o jurí dico: a i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o de u m u n iv e rso
do s í i ê n c i o .................................................................................................................................. 42
2.5. O form alis m o d o p e n s a m e n t o d o g m á t i c o do D i r e i t o e a d if i c u l d a d e
para a c o m p r e e n s ã o da c o m p l e x i d a d e d o s f e n ô m e n o s s o c i a i s .................. 45
3. V i d a e m o r t e n o C ó d i g o P e n a l. A d o g m á t i c a j u r í d i c a e o b e m j u r í d i c o
s o b a p ro teçã o da l e i .................................................................................................................... 53
3.1. Vida e m orte nos C ó d ig o s e os c ó d i g o s da vid a e da m o rt e ...................... 53
3.2. A teoria do bem ju ríd ico e a " m i s s ã o s e c r e t a " d o D ire it o P en a l ou de
c o m o "Ln iexj es com o In sc r p iciü e; so lo p ica a los t lesa ilz o s" ............................. 56
3.3. A no v a missão (ga ra ntista ) do D i r e i t o P e nal e d o P r o c e s s o P e n a l e m
face d o Estado D e m o c r á t ic o d e D i r e i t o .............. r " ' . ........................................... 60
3.3.1. A perda da v a lid a d e (não r e c e p ç ã o ) de tip os p e n a i s .................................... 62
3.3.2. A (necessária) a p lica çã o d o s p r in c íp io s da p r o p o r c i o n a li d a d e e da
ra zoabilid ade no D ireit o P enal . ............................................................................. 64
3.3.3. A inco nstitucion alic la d e da r e i n c i d ê n c i a ? .......................................................... 71
3.3.4. A (r e)discu ssão do a lca nce da p r i s ã o c a u t e l a r n o E s t a d o D e m o c r á t i c o
de D i r e i t o .............................................................................................................................. 72

4. O T r i b u n a l do Júri - o r ig e m , c o m p o s i ç ã o e c r í t i c a s ............................................... 75
4.1. A o r ig e m do júri e o d ireito a l i e n í g e n a ..................................................................... 75
4.1.1. O jú ri e a com m on hm> - In g la te rr a e E s ta d o s U n i d o s ................................... 75
4.1.2. O jú ri na França .............................................................................................................. 79
4.1.3. O júri em P o r t u g a l ........................................................................................................... 81
4.1.4. O júri na E s p a n h a ........................................................................................................... 84
4.2. O jú ri no B r a s i l ..................................................................................................................... 86
^ 4.3. T ribu nal P o p u la r n o Brasil: p r ó s c c o n t r a s - p o lê m i c a s e m i t o s ................ 90
4.3.1. O s m it os da v e r d a d e re al e da n e u t r a l id a d e j u d i c i a l ............... ...... 92
y 4,3.2. A d is c rim in a ç ã o d o j ú r i .................................................................................................. 95
„<• 4.4. A c o m p o s i ç ã o d o T r i b u n a l do Júri ........................................................................ ... 97
4.5. O s j u ra d o s e a rep re se n ta ti v i d a d e s o c i a l ................................................................. 98
4.6. O corpo de ju ra dos e o e stab ele c im ento de um " p a d rã o de n o r m a l id a d e " 100

5. O T r i b u n a l d o J ú r i: o r itu a l, os a t o r e s e os d i s c u r s o s ............................................ 103


5.1. O T ribu na l do Júri c o m o ritual ................................................................................. 103
5.2. O réu e sua trajetória no p r o c e s s o ............................................................................... 109
5.3. O s d is curs os no T r ib u n a l d o j ú r i ................................................................................ 114
-'5 .4 , O Direito Penal do a u t o r v ersu s o D ireit o Penal d o t a t o ................................. 116
5.5. O dis curs o da a c u s a ç ã o .................................................................................................... 119
5-6. O dis curs o da d efesa ......................................................................................................... 121
5.7. O p o d e r d os fr acos v ersu s a p e d r a q u e os c o n s tr u to r e s r e je ita m ou a
dialética r e p r i m i d a ? ............................................................................................................ 123
6. O i m a g i n á r io d is c u r s iv o e os r e s u l t a d o s d o s j u l g a m e n t o s ...................... ... 125
6.1. O d is cu rs o corno m a n i f e s t a ç ã o co n c re ta do im a g i n á r io d o s ju r i s t a s . . 125
6.2. A s co n t ra d iç õ e s so cia is ou " m a t e m - s e e n tr e v ó s q u e nós os j u l g a r e m o s
en tr e n ó s " .................................................................................................................................. 129
6.3. j ú r i , m itos e ritos ou de c o m o o s re s u lt a d o s d os ju l g a m e n t o s s ã o
" e x p l i c a d o s " de form a e s t e r e o t i p a d a ........................................................................ 132
7. A n e c e s s á r ia d e m o c r a t iz a ç ã o <lo T r i b u n a l do j ú r i ............................. ..................... 141
7.1. A s p e c t o s p o i í l i c o - i d e o l ó g i c o s ....................................................................................... 141
7.2. A sp e c to s ib rm a is- i n.s t r u m e n l a i s ................................................................................... 146
7 . 2 . 1. f.) rito p ro ce ssu a l: c e l e r i d a d e q u e se im p õ e - os vário s p r o j e to s e
a n t e p r o j e t o s ........................................................................................................................... 147
7.2.2. O p r o b l e m a dos q u e s i t o s ...................................................... ................................ 15 2'
7.2.3. Q u e s i to ú n ic o nas h i p ó te s e s d e p e d id o de a b s o l v i ç ã o p e lo
M in is té r io P ú b l i c o ............................................................................................................ 155
7.2.4. J u l g a m e n t o s e m p r e p o r m a io r i a d e v o t o s .......................................................... 155
-- 7.2.5. A n e cessá r ia a b o l iç ã o d o q u e s i t o ( a n tig a r a n tista ) g e n é r i c o da
p a r t ic ip a ç ã o " d e q u a l q u e r m o d o " ............................................................................ 156
7.2.6. A i n c o n s ti t u c i o n a l id a d e da n e c e s s i d a d e d o re c u r s o ex o ffic io d o
arl, 4 j 1 d o C P P ...................................................................................'............................... 156
, - 7 . 2 . 7 . A i n c o n s ti t u c i o n a l id a d e d o a s s is te n t e d e a c u s a ç ã o .................................... 158
7.2.8. A tese a n tig a ra n tista (e a n t i - s e c u l a r ) d o " d i r e it o p e n a l d o a u t o r "
c o m o o b s t á c u l o à d e m o c r a t i z a ç ã o do T r ib u n a l do J ú r i ............................. 160
7.2.9. A s o b e r a n ia d o s v e r e d i c t o s e o d u p l o grau de j u r i s d i ç ã o ......................... 162
7.2.10. C r im e s de t rânsito e o T r i b u n a ! d o J ú r i .............................................................. 165
7.2.11. A n e c e s s id a d e do a l a r g a m e n t o da co m p e t ê n c ia d o T r i b u n a l d o J ú r i 169
7,3. D e v e o Júri ser e x t in t o ? O j u l g a m e n t o p o r ín tim a c o n v i c ç ã o , s e m a
n e c e s s id a d e de j u s t i f ic a ç ã o / f u n d a m e n t a ç ã o , é c o m p a t ív e l co m u m a
p e r s p e c t i v a g a ra n tista d o D i r e i t o ? A s p e c t o s p o lí ti e o - i d e o l ó g i e o s e
f o r m a i s - in s t r u m e n la i s a cerca da c o n t r o v é r s i a ................................................... 170
B i b l i o g r a f i a ............................................................................................................................................ 177
Apresentação

"A In m in e m eu que. los bru jos d e Ins com u n h in d es prirniti.


m s d eten tn em i el p o d e r q u e se d esp ren d e d e eicrln s t fe n ic a s
se c re ta s parn o b le n e r d e Ia d ivin dn d o d e In n n tn raleza los
fa v o r es re clam ad os p o r Ui cam u n id ad , el p o d e r d e los ju r is ta s
estrib a en el co n tro l dei secreto so bre las fo r m a s eu q u e Ias
n orm as ju ríd ic a s d eb en c o m b in a rs e parn o b le n e r una reg u la-
ciou m ás 'sntisfactorin' de Ias relacion es so cia les en tre los
hombres. En es te esp acio d ei secreto cn q u e los m itos
reemplaznn a! co n o r im ie n lo y st/ xmelvcn o p era tiv o s, de tal
m od o r .............."arn in ip osib le avan?. ;r eu In p ro d iicciõ n de
eo n o eii iríilicos si uo se iiden tn d e s m a n te la r los
sislcn ií u ceiôii â e ledes mtíus".

R ica r d o t n t c l m a n , in A p o rte s a ia fo rm a ció n de una


e p istcm o lo g ia ju ríd ic a c n b a s e n a lg u n o s a n á í is i s dei
fu n cio n am ien to dei d is c u rs o jurí dico.

A feitura de uma nova edição - agora já a 4 a - apresenta-se


com o um desafio: passar de um tem po para outro, corrigir equívo­
cos formais e materiais, revisitar teorias e questionar os próprios
conceitos em itidos anteriorm ente. Uma questão, porém , perm anece
intacta, qual seja, a perspectiva crítica acerca do Direito e da
dogmática jurídica. Por isso, o Tribunal do Júri é analisado em um
misto de resgate e crítica. C om o m ecanism o de institucionalização
dos conflitos e rep rodução ritualística de uma dada sociedade, o
Júri carece de profundas m odificações. C om o m ecan ism o de partici-
paçcão popular, m orm en te pela possibilidade do alargam ento de sua
com petência, deve o Júri ser fortalecido. E neste m eio-fio que a obra
se forja, buscand o construir um discurso que faça uma síntese no
entrechoque de posições.
Com o advento do Estado Democrático cie Direito, instituído
pela C onstituição de 1988, é indispensável que haja. u m profundo
repensar acerca da função do Estado e do Direito. Ventos neolibe-

T R IB U N A L D O JÚRI 1 3
rais-globalizantes colocam em xeque a perspectiva intervencionis-
ta-promoved ora-transform adora do Estado D e m o crático de Direito.
Nesse sentido, é im portante que qualquer análise que se faça sobre
o Direito e a dogmática jurídica passe pelo crivo desse novo modelo
de Direito, que põe à disposição do cam po jurídico os m ecanism os
necessários para o resgate das promessas da m od ern id ad e e dos
direitos sociais e fundam entais do. Estado Social que não se realizou
em nosso país. Dito de outro modo: no Brasil, a m od ern idade é
tardia e arcaica, onde o Estado Social, invenção capitalista para
am algam ar a crise do Estado Liberal, foi (e continua sendo) um
simulacro.
Isto faz com que o Direito passe a ser visto com o um im portan­
te fator de transformação social. Há que se ab andonar a perspectiva
liobbcsim ia do direito penal e processual penal. Ou seja, o direito
penal não deve colocar o jurista em uma en cru zilh ad a, na qual
tenha que optar entre civilização e barbárie. Por isso, o Direito deve
ser visto com o um sistema de garantias. F,m nosso país, em face da
crise de paradigma vivíeb p d a dogmática ju ríd ica, ou seja, do
esgotam ento do modelo 1 ndivídualista cte Direito, 6 in dis­
pensável uma ampla íill (constitucional) das n orm as cio
sistema. A partir da Constituição, que estabelece um novo modelo
de produção de direito, deve ser feita a readeq u ação das normas
pertencentes ao velho modelo. Quantas n orm as penais perderam
sua validade (Ferrajoli) com o advento do Estado D em ocrático de
Direito? Qual a conseqüência da secularização do Direito, prod uzi­
do por esse novo modelo de Direito, no âm bito do direito penal e
processual penal? E as norm as processuais? P rod u zid as há mais de
cinqüenta anos, estarão elas em consonância com os princípios
constitucionais? Estarão elas sendo (devidam ente) interpretadas em
conform ktade com a Constituição? Estas são algum as questões que
se apresentam para o debate no desenvolvim ento destas reflexões.
A par de todas essas discussões afetas à crise do Direito em
seus mais diversos aspectos - como, por exem plo, a questão do
ensino jurídico, a crise da teoria do bem ju rídico, a m issão secreta
do direito penal, a antigarantista teoria acerca da responsabilidade
do indivíduo, a ritualística do júri com o recu peração/ instituição da
"sociedade-perm itid a", o problema da representatividade social no
júri traduzido na expressão "m atem -se entre vós que nós os ju lgare­
mos entre n ós" - e às condições de possibilidade de uma ruptura do
paradigma liberal-norma ti vista, segue-se a preocupação com as
(necessárias) mudanças mvestrutura jurídico-form al do Tribunal do

1 4 LEN IO LUIZ STRECK


Júri. A celeridade que se im põe ao rito p ro cessu al, a simplificação
dos quesitos, o alargamento da com p etên cia do Tribunal Popular, a
deselitização do corpo de ju rados, a in c o n stitu c io n a lid a d e d o assis­
tente de acusação, o direito penal do autor co m o obstáculo à
dem ocratização do Tribunal do jú r i, são algu m a s das pautas que
m erecem uma rápida resposta do Poder Legislativo e dos próprios
operadores jurídicos, eis que, m uitas delas, in d ep en dem de provi­
dências de lege ferem la.
Diferentemente do que sustentei nas ed içõ es anteriores, penso,
hoje e já desde a terceira edição, que a apelação das decisões do
Tribunal do Júri, tal como disciplina o art, 593, 111, <1, do C ódigo de
Processo Penal, não fere a sua soberania. A ltero, tam bém , meu
enfoque acerca dos delitos de trânsito e a questão do dolo eventual.
O utros pontos são trazidos à d iscu ssão, com o a feitura, de um
quesito único nas hipóteses de p ed id o de ab solvição pelo Ministério
Público e a abolição do quesito antigarantista da participação "de
qualquer modo".
Enfim, d e s e j e s jr i o d izer que arg u m en to s prós~« contra o
fiui serão encor nos m ais variad os setores da dogmática
jurídica e dos juristas en gajad os nas d iversas teorias críticas do
Direito. A obra se p 'o p õ e a navegar pelos diversos âm bitos da
controvérsia. Por isso, a sua preten são crítica, buscand o (novos)
horizontes de sentido. P arafraseando M ário Benedetti, alguns dos
temas suscitam tamanha controvérsia que, q uan d o se acredita ter
encontrado uma resposta, "se cam bian las pregu n tas"!

Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, fevereiro de 2001.

O A utor,

T RIBU N A L D O JÚ RI 1 5
Notas introdutórias

Estas reflexões se propõem a atravessar alguns níveis possíveis


para com preensão das form ações im aginárias sobre as quais debru­
çam -se tanto a ciência como a filosofia e o senso com um .
A abordagem , ao longo de sua trajetória, busca deslocam entos
que visam a melhor elucidar a com p reen são de alguns âmbitos de
atuação da norma do processo social.
Faz-se necessário, para tanto, aclarar que o fio condutor não se
norteia pela tradição positivista. E n tende-se, assim , que o tratamen­
to rigoroso e, portanto, científico, dedicado às diversas formas de
apreensão do cotidiano dos sujeitos sociais e de suas instituições,
im plica o atravessam ento dos en u n ciados do m undo sistêm ico, aqui
entendido a p artir das ciências norm ativas, e do m undo da vida, aqui
entendido corno o im aginário social.
A ação escolhida não pressupõe uma dicotom ía entre o mundo
sistêmico e o m undo da vida. O que se p reten d e é um deslocamento
m etodológico ante a tradição positivista que põe o m étodo e os
conceitos com o anterioridade aos processos sociais. Ou seja, os
conceitos aqui trabalhados não só têm sua elaboração circunscrita
ao universo dos processos históricos - estan d o historicamente
deterfhinados - como só são possíveis no universo p roduzido pela
forma de capitalismo típico dos cham ados países em desenvolvi­
mento. Cabe frisar, ainda, que o próprio con ceito de razão ou de
racionalidade que norteia este trabalho sig n ifica uma razão reflexiva e
critica em seus fundam entos.
Entende-se, desse modo, que a trajetória a ser seguida teria que
cumprir um conjunto de etapas que, n um a genealogia - lembremos
Foucault permitiria melhor aclarar as formas discursivas que,
fundadas em noções estereotipadas clássicas, d ificu ltam ou obstaculi-
zam a com preensão dos processos sociais que en cam in h am o discur­
so jurídico em sua ação legal.

TRIBUNAL DO JÚRI 1 7
Assim, destas reflexões cabe ressaltar alguns pontos:
1. Entendendo que o discurso n orm a tiv o do ju risdicism o se
apóia em um conju nto de enu nciad os lingüísticos, logicamente
elaborados, os primeiros passos se en ca m in h am para a elucidação
de termos tais como propriedade versus vida, a teoria do bem
jurídico, a inserção da questão da crise do listado, do Direito e da
dogmática jurídica, etc., no interior do sistema jurídico. Tal procedi­
mento busca a com preensão de tais in d icadores no interior das
práticas judiciais e que corro boram / en gen d ram o sentido com um
teórico dos juristas.
2. Nessa linha, procura-se tratar, em segu im en to, em vista da
necessidade da separação da clássica dicotornia m undo sistêm ico
versus m undo da vidn, das relações entre o C ód igo Penal e a
sociedade civil, a partir de uma visão de totalidade, em que emerge
a questão crucial da responsabilidade do indivíduo com o detentor
do "livre arbítrio", diante do bem e do mal. Essa problemática
engloba, im plicitam ente, à evidência, uma critica à idéia cie um
legislador5 como instância de neutralidade e de racionalidade.
3. A seguir, é traçado um perfil dogm ático, histórico e com p a­
rado do Tribunal cio júri, caracterizando-o no Brasil com o (uma)
instância legitimadora das formas de tratamento de processos
sociais, tais como o privilégio da propriedade em confronto com a
vida; a "cria çã o" do direito penal do autor em d etrim ento cio direito
penal do fato e os discursos dos atores ju ríd icos que nele atuam.
Nesse sentido, a abordagem situa o Tribunal do Júri dentro da
tradição antropológica que define os rituais com o expressão funda­
mental da ordem social em que em ergem , através da contribuição
de Victor Turner. São fundam entais, por outro lado, para a com ­
preensão dessa análise simbólica do júri e das relações sociais, os
estudos de Cornelius Castoriaclis.
5 Q u a n d o me refiro à figura do " l e g is la d o r " , estou cien te da p ro b lem á tica
re lacio n a d a ao " m ito do leg is la d o r r a c io n a l" e su a s " t r e z e c a r a c te r ís t i c a s " , m uito
b e m en fo ca d a s e iro n iz a d a s - p o r S a n t ia g o N in o e F erraz Jr. T r a t a -s e , c o n f o rm e
F erraz Jr, " de uma c o n s t ru ç ã o d o g m á t i c a qu e não se c o n fu n d e co m o l eg is la d or
n o rm a tiv o (o ato j u rid ic a m e n te c o m p e t e n te c o n f o r m e o o r d e n a m e n t o ) ne m co m
leg islador real (a vo n tad e que de fato po sitiva n o rm a s) . E um a fig u ra in term éd ia ,
qu e funciona co m o u m terceiro m e ta lin g ü ístico em face da língua n o r m a ti v a (LN)
e da lín g u a-reatid a de (LR). A eie a h e r m e n ê u t ic a se re p o rt a q u a n d o fala qu e "o
leg is la d or p re te n d e qu e ..." , "a i n ten ç ão do l e g is la d o r é q u e . . ." ou m esm o "a m ens
leg is nos diz qu e..." . C o n s u lta r , para ta nto, Ferraz Jr., T é rcío S a m p a i o . In trod u ção no
estu d o do d ireito . São P a ulo, Atlas, 1989, p. 254/5,

1 8 LENIO LUIZ STRECK

I
II
4, Busca-se, desse modo, d ep reen d er, tanto n o plano das
práticas profissionais - leia-se juizes, p ro to m o res, advogados, etc, -,
com o no plano dos agentes sociais n ão a tin gid o s d iretam en te por
esse com plexo de significações (Castoriadis), que o universo discur­
sivo obtido limita-se a avaliar as d im en sões m e ra m e n te sintom áti­
cas, 011 seja, do que aparece (M arilena Chauí). Tal perspectiva
obrigatoriamente remete o trabalho à d iscussão da categoria "rep re­
sentações", que são entendidas com o con stitu in tes do real, uma vez
que seria trair a objetividade c on sid erar os agen tes sociais com o não
tendo representações, pois os agentes sociais têm um "v iv id o " que
não constitui a verdade com pleta daquilo que eles fazem, mas que,
no entanto, faz parte da verdade de sua prática (Pierre Bourdieu).
Em vista disso, o esforço d esenvolvid o nestas reflexões se dirige à
produção de parâmetros alternativos para a av aliação de determ i­
n ados fatos sociais, que são, via de regra, ap oia d os em estereótipos
produzidos no interior da ideologia das classes d om inan tes, no qual
os não-detenlores do saber/pod er/lei síío su btraíd os em sua p ossibili-
dnsle de co}i’,j'i'i,p"cFio í!uc •■Tirfis rires en tre as instituições e
os agentes , Í n í i »> •• » assim , ■ ; ' v a din âm ica da estrutura
ideológico h » *. ;quc >o que ela • - t. ■ c iaim en te determ inada e
que, para exphca-la, e indispensável chegar até seus determ inantes,
procurando, porém, não perder os m ecan ism o s pelos quais ela
recebe e responde a sua própria d eterm in a ção (M iriam Limoeiro
Cardoso).
5. Nessa linha, o im aginário p ro d u z id o pelo Tribu n al do Júri,
buscando estabelecer (os) padrões de c o m p o rta m en to da sociedade,
oculta a gênese de sua ação interessada, ob stacu liz an d o, com isso, a
instituição de uma razão com unicativa (H aberm as), pela qual seria
possível elucidar os efeitos cia prática ju rídica (em sua interação)
com o m undo das ações cotidianas.
Enfim, a opção por uma trajetória interd isciplinar significa
uma alternativa teórica conseqü ente, para não correr o risco da
unidade positivista e de um ecletism o n ão -co n seq ü en te , que supõe
abordagens diferenciadas, sem, no entanto, a d eq u ar-se a uma racio­
nalidade elucidativa do cotidiano cio sentido c o m u m teórico dos
juristas.

T R IB U N A L DO JÚRI 1 9
1 . O Júri, o Processo Penal e o Direito Penal
na perspectiva do Estado D em ocrático
de Direito. Da utilidade de uma análise
garaniista. Perspectivas
(des)criminalizadoras: o verso e o
reverso da tutela penal.

Com o advento do Estado D em ocrático de Direito, toda a teoria


ju rídica necessita de uma adequação a esse novo m odo (modelo) de
prod ução de direito. R om p en d o com a perspectiva de o Direito ser
ordenador (m odo/m od elo de pro dução liberal-individualista-nor-
mativista), passa-se a perceber/entender o Direito como promovedor
(Estado Social) e transform ador (Estado D em o crático de Direito).
A vançando sobre as perspectivas de Estado e de D ireito vigentes
até então, o Estado Dem ocrático de Direito nasce com um a perspec­
tiva criadora, com o uni autêntico plus n orm ativo em relação ao
Estado Social e aõ Estado Liberal, isto porque traz em seu âmago,
isto é, no texto da C onstituição de cunho dirig en te e social, n ão somente
as prom essas da m odernidade (n ão-cum pridas), mas as próprias^
possibilidades de estas serem realizadas.
À evidência, tudo isso deve(ria) repercutir junto à teoria do
direito. O Direito não pode mais ser visto com o uma (mera)
racionalidade instrumental. A lguns autores, com o Luigi Ferrajoli6,
6 Ver, p a ra ta nto, Ferr ajo li, Luigi. D erech o y R azón . M a d r i d , T r o ta , 1 9 95 , p. 851-903,
e O D ireito c o m o siste m a de g ara n tia s. In : O n ovo em D ireito. J o s é A Ic e b ia d e s .d e
Oliveira J r (org). P orto A leg re, Liv raria do A d v o g a d o , 1 9 96 , p. 8 9 - 1 0 9 ; N o te
critich e ed A u t o c r i ti c h e In to rn o alia D is c u s s io n e su D iritto e R a g i o n e , in G ian for-
n iaggio L etig ia (org). Le R a gio ni dei G a r a n t i s m o . T o r in o , G i a p p i c h e l l i , 1993; El
E stado C o n stitu c io n a l d e D erech o H o i/. In: Ib a n e z , P e rf e c to A n d ré s . C o r r u p c i ó n y
Estado d e D e recho . El p a p e l d e In Ju risd icció n . M a d r i d , T r o tt a , 1 996; B ona v id es.

TRIBUNAL DO JÚRI 2 1
perceberam bem essa problem ática. Com efeito, e n te n d e ele que o
papel de garantia do Direito tornou-se hoje possível pela específica
com plexidade de sua estrutura form al, que é m arca d a, nos ordena­
mentos de constituição rígida, por um a dupla artificialid ade: não só
pelo caráter positivei das norm as produzidas, que é a característica
específica do positivismo jurídico, mas tam bém pela sua sujeição ao
Direito, que é a característica específica do Estado C on stitucion al de
Direito, onde a própria produção jurídica é d isciplin ad a por nor­
mas, já não apenas formais, com o tam bém su bstan ciais, de Direito
positivo. São, em suma, os próprios m odelos axio ló g ico s do Direito
Positivo, e não só os seus conteúdos contingentes - o seu "d ever ser",
e não apenas o seu "ser" - que no Estado Constitucional de Direito são
incorporados no ordenamento, como Direito sobre o Direito, sob a
forma de limites e vínculos jurídicos de produção ju rídica.
Assim, graças a esta dupla artificialidade - do seu " s e r " e do
seu "dever se r" - a legalidade positiva ou form al .do E stad o C onsti­
tucional de Direito mudou de natureza: já não é só condicionante,
mas também é eia própria condicionada por v ín c u lo s ju rídicos não
só formais, corno tam bém substanciais. Para Ferrajoü, podemos
cham ar "m o d e lo " ou "sistem a garan íisia", em op o sição ao paleo-
juspositivismo, a esse sistema de legalidade, a q u e esta dupla
artificialidade confere u m papel de garantia relativam en te ao Direi­
to ilegítimo7. Graças a ele, o Direito co n tem p orân eo não programa
P aulo. C u rso d e D ireito C o n stitu cion al. S ã o P aulo, M allieiro s, 1996, p, 435. G u erra
Filho, W illis Sa n tia g o . D ireito s f u n d a m e n t a is , p r o c e s s o e p rin cíp io da p r o p o r c i o ­
n a lida d e. In: D os d ireito s hu m n iw s nos d ire ito s fu n d a m e n ta is . W i ll i s S a n t i a g o G uerra
F ilh o (org). Porto A legre , Livraria do A d v o g a d o , 1 9 9 7; V i e i r a , O s c a r Vilheno.
N e o lib e ra lis m o e E stad o de D ireito. In: R ev ista B rasileira d e C iê n c ia s C rim in a is n. 14
- a b r-ju n /9 6 . São P aulo, Ed. R evis ta dos T rib u n a is, 1996, 2 0 1 - 2 1 4 ; C a d e m a rlo ri,
Sérg io . E stad o d e D ireito e L eg itim id ad e: um a a b o rd a g em g a r a n tis ta . P o r t o A leg re,
Liv raria do A d v o g a d o , 1999; C a r v a lh o , Saio. P en a e G a ra n tia s: um a leitu ra do
g a ra n tism o d e L u ig i F errajoli no B r a s il R io de Ja n eiro , L u m e n Ju ris, 2 00 1 .
' N esse s en tid o é im p o rta n te que se c o lo q u e um a a d v e r t ê n c i a : o g a r a n ti s m o é
visto, n o s lim ite s desta a b o r d a g e m , c o m o um a m a n e i r a d e fa z e r d e m o c ra c i a
d e n tro do D ire ito e a partir do Direito. C om o "tipo ideal", o g a r a n tis m o reforça a
resp o n sa b ilid a d e ética do op era d o r do D ireito. É e v i d e n t e q u e o g a r a n t i s m o n ã o se
c o nstitu í e m uma p an acéia para a cura d os " m a l e s " d e c o r r e n t e s de u m E stado
S o c ia l qu e n ã o h o u v e no Brasil, cujos re flexos a r r a z a d o r e s d c v e (r ia )m i n d ig n a r os
lid ad o res do Direito. O q u e o co rre é q u e, em fa c e da a g u d a c ris e d o p ositiv ism o
ju ríd ic o -n o rm a tiv ista , não se pode desp rez a r um co n trib u to p a ra a o p e r a c io n a lid a d e do
D ireito do p o r te do g a ran tism o, q u e p reg a , en tre ou tras co isa s, q u e a C o n s titu iç ã o (em sua
totalid ad e) d ev e ser o p arad ig m a h erm en êu tico de d efin iç ã o do q u e seja um a n orm a válida
ou in v álid a, p ro p icia n d o toda u m a filtrag em dns n orm as in fra c o n s titu c io n a is q u e , em bora
v ig en tes, p erd em sua v alid ad e em f a c e da L ei M aior. D ito de o u t r o m o d o , o g a ra n tis m o
n ão significa um retorno a um " E s t a d o b o m " que já h o u v e . N o s p a ís e s a v a n ç a d o s

2 2 LENIO LUIZ STRECK


som ente as suas formas de pro d ução através de n o rm a s procedi­
m entais sobre a form ação das leis e dos ou tros atos normativos.
Program a ainda os seus con teúd o s substan ciais, vinculando-os
norm ativam ente aos princípios e valores inscritos nas constituições,
m ediante técnicas de garantia que é ob rigação e responsabilidade
cia cultura jurídica elaborar. Daí que, para Ferrajoii, resulta uma
alteração noutros níveis do m odelo ju spositivista clássico, a saber:
a) no plano da Teoria do D ireito, onde esta dupla artificialida­
de comporta uma revisão da teoria da valid ade, baseada sobre a
dissociação entre validade e vigência e sobre uma nova relação
entre a forma e a substância das decisões;
b) no plano da teoria política, on d e com po rta uma revisão da
concepção puramente processual da dem ocracia e o reconheci roem.,
to de sua dimensão substancial;
c) no plano da teoria da in terp retação e da aplicação da lei,
onde comporta uma redefinição do papel do ju iz e uma revisão das
formas e das condições da sua su jeição à lei;
d) no plano da meta teoria do Direito, e p ortan to do papel da
ciência jurídica, que é investida de uma função já não sim plesm ente
descritiva, mas tam bém crítica e criativa (p rog eitn ale) em relação ao
seu objeto. - -
O garantismo, assim, deve ser en ten did o co m o uma técnica de
limitação e disciplina dos poderes pú blicos e por essa razão pode
ser considerado o traço mais característico, estrutural e substancial
da Democracia: garan tias tanto liberais com o- sociais expressam os
D ireitos Fundam entais do cidadão fr e n t e aos pod eres do Estado, os
interesses dos mais débeis em relação aos m ais fortes, tutela das m inorias
m arginalizadas frente às m aiorias in tegradas.
A perspectiva garantista de Ferrajoii tem c o m o b a se u m projeto
de Democracia social, que forma um todo único com o Estado social
de Direito: consiste 11a expansão dos direitos dos cidadãos e dos
deveres cio Estado na maximização das liberdades e na mlnimízação
dos poderes, 0 que pode ser representado pela seguinte fórmula:
Estado e Direito mínimo na esfera pen a l8, graças à m inim ização das
da E u r o p a , b e nefic iá rio s do w d fare State, isso at é seria p o ssív e l. N o Brasil, ao
co n trá rio , o n d e o E st ado So cial foi u m s i m u l a c r o , o g a r a n t i s m o p o d e servir de
i m p o r t a n t e m ecan ism o na c o n s t ru ç ã o das c o n d iç õ e s d e p o s s i b i l i d a d e s para o
resgate d a s pro m e ssas da m o d e rn id a d e .
8 Em p a ís e s per iférico s, ocorr e e x a t a m e n t e o c o n trá rio : " D i a n t e da a m p li a ç ã o dos
b o is õ e s d e miséria nos ce n tros u r b a n o s , da e x p a n s ã o da c r i m i n a l i d a d e e da
p r o p e n s ã o à deso bediência co le tiva, as i n s titu içõ e s j u r í d i c a s e ju d ic ia i s d o Est ad o
(...) a ca b a m agora te n d e n d o a a s s u m ir p a p é i s e m i n e n t e m e n t e p u n ítiv o -re p re ssi-
vos, Para tanto, 0 Direito Penal tem sid o a l te r a d o ra d ic a lm e n te , n u m a d im e n s ã o

TR IB U N A L DO JÚRI 2 3
restrições de liberdade do cidadão e à correi ativa extensão dos limites
impostos à atividade repressiva; Estado e Direito m áxim o na esfera
social, graças à maximização das expectativas materiais dos cidadãos
e à correia tiva expansão das obrigações publicas de satisfazê-las.
A evidência, Ferrajoli trabalha com a idéia de que a legitim ação
do Direito e do Estado pro v êm de fora ou d esd e a bajo, entendida
com o a soma heterogênea de pessoas, de forças e de classes sociais.
Ou seja, com o con trapon to às teorias au lo p oiética s do D ireito, que
visam, mediante um direito do tipo "re ile x iv o ", a não adaptar o
Direito aos anseios da sociedade, mas, sim, aos lim ites do estnb-
Jislinierii-, reduzindo, com isto, a com plexidad e social, Ferrajoli parte
de uma perspectiva heteropoiética, ó dizer, d esd e um pon to de vista
externo, que significa sobretudo dar prim azia axiológica à pessoa, e,
portanto, de todas as suas específicas e diversas identidades, assim
com o da variedade e pluralidade de pontos de vista externos
expressos por ela.
É relativamente fácil, alerta o professor italiano, delinear um
m od elo garantista em abstrato e traduzir seus p rincípios em normas
constitucionais dotadas de claridade e capazes de d eslegitim ar, com
relativa certeza, as norm as inferiores que se apartem dele. Difícil,
porem , é m odelar as Dcnicas legislativas e ju diciais a deq u adas para
assegurar efetividade aos princípios constitucionais e os Direitos
Fundam entais consagrados por eles. Por isso, faz uma forte crítica à
ciência penalista que teoriza sobre o m on opólio penal e ju dicial da
violência institucional, que esquece as práticas au toritárias e as
ilegalidades da polícia, confunde a im agem n orm ativa do Direito
Penal como técnica de tutela de Direitos Fundamentais e de minimiza-
ção da violência: o sistema jurídico por si só não pode garantir
absolutamente nada; as garantias não podem estar sustentadas apenas
em norm as; nenhum Direito fundam ental p o d e sobrev iver concre-
tamente sem o apoio da luta-pela realização por parte de quem é seu
titular e da solidariedade da força política e social, conclui.
Essa idéia tem com o suporte a relevante circunstância de que
cabe à Constituição fornecer o fundam ento último do ordenam ento
m ais seve ra. P or isso, en q u a n to no âm b ito dos d ireito s socinis e eco n ô m ico s se v iv e hoje
um p eríod o d e reflu xo, no D ireito P en al a silu n çn o é o p o s ta . O q u e aí se tem é a
d efin ição de n o v o s tipos p e n a is , a erim in alização de n o v a s a t iv i d a d e s e m i n ú m e ­
ros seto r es na vida so cial, o e n f r a q u e c im e n t o d os p rin cíp io s da l e g a li d a d e e da
tip ic id ade por m eio d o re c u rs o a reg r a s sem c o n c e it o s p r e c is o s , o e n c u r t a m e n t o
d as fases d e i n v e s tig a ç ã o crim in a l e i n s tr u çã o p r o c e s s u a l e i n v e r s ã o d o ô n u s da
p ro v a " . Cfe. Fari a, J o s é E d u a r d o . G l o b a l i z a ç ã o e d ir e it o s h u m a n o s . In: E spnço
A berto. O E sta d o d e S ã o P aulo, p. A -2, 11 out 97. (grifei)

2 4 LENIO LUiZ 5TRECK


ju rídico, "um a vez desaparecida a crença na fu n d am en tação 'sobre-
/natural' de um direito de origem divina, e tam bém a confiança na
|'n áturalidade' do direito, que não se precisa tornar objetivo pela
positivação, por auto-evidente ao sujeito dotad o de racionalidade.
Os valores fundamentais, sob os quais se erige aquele ordenamento,
passam a integrar esse m esm o ordenam en to, aos serem inscritos no
texto constitucional. A consecu ção desses valores, por sua vez,
requer a intermediação de proced im en tos, para que se tomem
d ecisões de acordo com eles, sendo esses p ro ced im en tos, igu alm en­
te, estabelecidos com respeito àqueles valores. O processo aparece,
então, com o resposta à exigência de racionalidade, que caracteriza o
direito m o d ern o "9.
D ito de outro m odo, em face do Estado D em ocrático de Direito
instituído pela Constituição brasileira, "o valor norm ativo da C on s­
tituição deve ser potencializado, especialm ente a norm atividade
dos capítulos condensadores dos interesses das classes não-hege-
m ônicas. Mas, para isso, é necessário en ten der que a C onstituição é,
en tre ou tras coisas, tam bém norm a, e não m era declaração de princípios ou
de propósitos. E se é norma (o preconceito contra a norm a não deve
subsistir), dela decorrem, inexoravelm ente, con seqü ên cias jurídicas
que são sérias e que devem ser tomados a sério. E, mais que tudo,
sendo norma suprema, o sentido de seu discurso deve contaminar
todo o direito in fracon stitu d on al, que não pode nem d ev e ser
interpretado (concretizado/aplicado) senão à luz da Constituição,
A filtra g em constitucional consiste em interessante m ecan ism o propi-
ciador de atribuição de novo, atualizado e com pro m etid o sentido
ao direito civil, ao direito penal, ao direito processual, e tc ." 10.
Tais questões devem ter uma imediata inserção no âm bito das
práticas judiciárias11. N esse contexto, além da sobretida filtragem
9 C i e , G u er ra Filho, W illis S a n tia g o . D ireitos fu n d a m e n ta is , p ro c es so c p rin cíp io dn
p ro p o rc io n a lid a d e , op. cit. p. 21.
10 Cfe. C lèv e, C lèm erso n M erlin. A teoria c o n s t itu c io n a l e o d ir eit o a lter n a tiv o
(para u m a d o g m á tica c o n st itu c io n a l e m a n c i p a t ó r ia ) . In D ireito alternativo. S eleções
ju ríd ic a s . Rio d e Ja n eiro , In stitu to d o s A d v o g a d o s B ra sileir os, j u n h o /9 3 , p. 48.
11 A 2 a C â m ara C r im inal do T r i b u n a l de A lça d a do RS tom a s s u m id o p o siçõ es
g a r a n ti s t a s em vá rio s ju l g a m e n t o s . C o m efeit o , va le t r a n s c r e v e r e m e n ta d o a có r­
d ã o r es u lta n te da ap e la çã o n. 2 8 6 0 4 2 3 3 6 , rei. N e w t o n Brasil d e L eão: ROUBO
D U P L A M E N T E C IR C U N S T A N C IA D O . A a p lica çã o de p en a carcerária d e 5 an os e 4
m eses d e reclu são não ê sim p les a b stra çã o , assim com o não é. a b stra to o d elito im p u tad o ao
réu . "O ju ris ta (ju iz, p ro m otor, a d v o g a d o ) d ev e en ten d e r q u e não está lid an d o com fic ç õ es .
C a so con trário, c orrerá o risco de c o n fu n d ir as fic ç õ e s dn realid ade, com n rettlhiraie,...daí
fic ç õ es". (G rifo no original). Em o u tro a c ó r d ã o (n. 2 9 7 0 1 5 7 2 9 ) , tam b ém b a s e a d o em
p a r e c e r de m in ha auto ria, de form a g a ra n tista , a 2a C â m a r a re f o r m o u se n t e n ç a de

TRIBUNAL DO J0«J 2 5
das normas infraconstitucionais, deve ficar claro que as garantias
penais e processuais não podem ser m ais que um sistema de
proibições inderrogáveis:12 proibições de castigar, de privar a liber­
dade, de registrar, de censurar ou de sancionar de algum a ou outra
forma, se não concorrerem as cond ições estabelecidas pela lei em
garantia do cidadão frente aos abusos de poder. A lém de in d errogá­
veis ou invioláveis, estes Direitos são indisponíveis ou inalienáveis.
Má que se referir, por outro lado, que, se de um lado há um
limite claramente garantísta proveniente do m o d ern o Estado D e ­
mocrático de Direito, que não pod e ser ultrapassado, há tam bém uma
áren reservada à coerção est nhü no qual o Estndo uno pode renunciar.
N ecessário lembrar, com Ferreira da C unha, que aC onstituição -
entendida no seu sentido com prom issárío, dirigente e social - não
deve ser vista sim plesm ente de forma unilateral, preocupada ape­
nas com a defesa do indivíduo potencial crim inoso (ou acusado de
tal), mas também com as potenciais vítim as e com a defesa de toda
a sociedade. Assim como teria legitim idade para conter o poder
p rim e iro grau que co n d e n a ra doír n i i O' u > i >
roubo qu.iKlicndo. O a có rd ã o fico
D efeso c, ao ju iz, tom ar j<or co n fesso ré
condição, por si só, mio d e s in a u u b e t r .... .......
acerca da au toria e da m aterialid a d e d o s fa to s qu e p reten d a in v estig a r, e p elo s qu ais
p reten d a resp o n sab ilizar crim inalm cnte o cidadão". Rei. Nevvton Bra sil de L e ão. Na
m e sm a linha, a có rd ã o s n. 2 9 7 0 1 5 9 6 8 , rei. A lfr e d o F orster, e 11 . 2 9 7 0 1 6 7 3 5 , rei.
T u p i n a m b á Pinto de A ze v ed o .
12 Para se ter uma idéia da n ecessid ad e d essa filtr a g e m d as n orm as in fracon stitu cion n is,
a d e q u a n d o -s e -a s ao m o d e lo de d ir eito pró prio d o E s t a d o D e m o crá tico de D ireito,
b a s ta que se dê uma ex a m i n a d a na E x p o s iç ã o d e M o t iv o s do C ó d i g o d e P ro ces so
Penal em vigor: " A R E F O R M A D O P R O C E S S O P E N A L V I G E N T E - D e p a r co m a
n e c e s s id a d e de c o o r d e n a ç ã o sistem á tica das re g r a s d o p r o c e s s o p e n a l n u m C ó d i ­
go ú n ico para todo o Brasil, im p u n h a o seu a ju s ta m e n t o ao o b je ti v o de m a io r
efic iência e en ergia da ação rep ressiv a do Estndo co ntra os q u e d elin q ü em . A s
n ossas v ig en tes leis de p ro cesso p en a l a sseg u ram nos réus, ain da q u e c o lh id o s cm flagrante
ou con fu n d id os peia ev id ên cia das p ro v a s, um tão c x le n s o catálog o d e g a r a n tia s e fa v o r e s ,
que a rep ressão se tonta, n ecessariam en te, d efeitu o sa e retard atária , d ec o rr en d o d a í um
in d ireto estím u lo à ex p a n são da crim in alid ad e. U rg e qu e seja ab olid a a inju s tificá vel
prim az ia do in ieresse do i n d iv íd u o s o b r e 0 da tutela so cial. Não se pode co n tin u a r a
con tem p orizar ruiu p scu d od /rcitos in d iv id u a is em p reju íz o do bem com u m . O ind iv íd u o,
p r in cip a lm en te q u a n d o vem se m o stra r reb el de à d is cip lin a ju rí d i c o - p e n a l da vida
em so cied ad e, não p o de invoca r, em face do E st a d o , ou tras f ra n q u ia s ou im u nida-
des além d aqu ela s q u e o a ss e g u re m co ntra o e x e r cício do p o d e r p ú b l i c o fora da
m edida recla m ada pelo in teresse social. Este o critério qu e p re sidiu à e la b o ra ç ã o
d o p re se n te p ro je to de Có dig o, N o seu texto, n ão sã o rep ro d u z id a s as fórm u las
trad icion ais de um m al av isad o fn v o re cim cn to legal nos c r im in o s o s.( ...)" .( E x p o s iç ã o de
M o tiv o s do C ó d ig o de Pro cesso P ena l, p u b licad a no D iário O fic ia l da U n i ã o de 13
de o u tu b r o de 1941, que resultou no D ec reto -L ei n. 3.689, d e 3 -1 0 -1 9 4 1 ) . (grifei)

2 6 LBNIO LU ÍZSTRECK
crim inalizador, autorizando-o ap en a s à tutela de objetos legítimos,
teria tam bém legitimidade para lhe im p o r um m ínim o irrenunciá-
vel de tutela. Só esta con cepção estaria em sintonia com a atual
função da Constituição. As críticas às im po siçõ es de cru ninalízação
radicam ainda numa herança da visão liberal pura das relações
entre Sociedade e Estado e da C on stitu ição co m o mera garantidora
de om issões estaduais, visão que se d ev e considerar, hoje, m anifes­
tamente insuficiente.13
Na mesma linha, Costa A n d ra d e14 assevera que "a C onstitui­
ção não é apenas matriz cie linhas de força no sentido da descrimi-
nalização. Os m esm os p rin cípios con stitu cion ais e as m esm as categorias
político-dositrinnis têm o seu reverso que a p on ta no sen tido contrário. Há
bens jurídicos de relevo social tão in eq u ív oco e a gressões tão
intoleráveis que o Estado não pode deixar de as pôr a coberto do
direito criminal, sob pena, com o acentua M u ller-D ietz, de frustrar
as suas obrigações no dom ínio da D asein sv orsorg e" .
É nesse sentido que C an o tilh o e V ital M o reira vão d izer que a
Constituição parece apontar para uma ob rigação estadual (isto é,
legislativa) de detesa penal de valores econ ôm icos even tualm ente
ainda não defendidos, tendo particu larm en te em aten ção que as
novas formações econôm icas con tid as na C on stitu ição exigirão
naturalmente novas form as de proteção penal ou afim . C ontinuo,
pois, convencido de que o texto constitucional, ao c o m a n d a r (ordem
de legislar) a atividade do le g islad or,15 traz im plícita - por exem plo,
no cam po do direito penal - a necessária h ierarqu iza ção que deve
13 Cfe. F e rreir a da Cu nh a, M a r ia da C o n c e i ç ã o . C o n s titu iç ã o c C rim e. U m a p e r s p e c ti­
va da c rim in aiização c da descrim in alizn çn o. P orto, U n i v e r s i d a d e C a t ó lic a P o rt u g u e s a ,
19 95, P . 30 6
14 Cfe. C o sta A nd ra d e, M a n u e l da. O N o v o C ó d i g o P ena l e a M o d e r n a C rim in o lo -
gia, In: O N ovo C ódigo P ena! P ortu g u ês c L eg isla çã o C o m p le m en ta r, fo r n a d a s d e D ireito
C rim in al, C en tro d e E studos C rim in a is, L isb o a, P etro n y , 1 9 8 3 , p. 118 - g r i f e i
15 E n t e n d o que o d ir eito, no E sta do D e m o c r á t ic o d e D ireito , te m um a fu n ção
tran sfo rm ad ora, sen do, p o is , u m p lu s n o r m a t i v o e m re l a ç ã o ao E s t a d o S o c ia l e ao
E sta d o Liberal. A C o n stitu ição e s t a b e le c e as d ir e tr iz e s e .co n ô m ico -p o lítie a s para o
d e s e n v o l v i m e n t o do E stad o. C o m o b e m ressalta C a n o t i lh o (em su a p rim eira fase),
o p rin cíp io da d em o cra cia e c o n ô m ic a e so cial c o n stitu i u m a a u to riz a ç ã o c o n s t itu ­
cional no sen tid o de o l e g is la d o r d e m o c r á t i c o e os o u t r o s ó r g ã o s e n c a rre g a d o s da
co n c re tiz a ç ã o p olííico -con stiiu cio n al a d o ta r em as m ed id as n ece ss á ria s vara a ev o lu çã o
da ordem con stitu cion al sob a ótica de u m a "ju stiça con stitu cío n n t" n as v es tes de um a
"ju stiç a social" . O p rin cíp io da d e m o c r a c i a e c o n ô m i c a e so ci al im p õ e tarefas ao
E stad o e justific a que elas .sejam tarefas de c o n f o r m a ç ã o , t r a n s f o r m a ç ã o e m o d e r ­
n iza çã o d a s es tru tu ra s e co n ô m ica s e so cia is , de form a a p r o m o v e r a i g u a ld a d e
real en tre os cidadãos. Cfe. C an o tilh o , J. j . G o m e s . D ire ito C o n s tit u c io n a l. C o im b ra,
A h n e d i n a , 1996, p, 468.

T R IB U N A L DO JÚ RI 27
ser feita na distribuição dos crim es e das penas. N esse sentido, vem
a magistral lição de Palazzo, para quem , en quan to as indicações
constitucionais de fundo (que atuam no sentido da descrim inaliza-
ção) são, ainda, expressão de um quadro constitucional característi­
co cio Estado Liberal de Direito, pressu pon d o, outrossim , uma
implícita relação de "te n s ã o " entre política criminal e direito penal,
as vertentes orientadas no sen tido da criiuinnliznção traduzem a expressão
de unia visão bem diversa do papel da C on stitu ição no sistem a penal: as
obrigações de tutela penal no confronto de determinados bens jurídi­
cos, não infreqüentemente característicos do novo quadro de valores
constitucionais e, seja como for, sempre de relevância constitucional,
contribuem para oferecer a imagem de um Estado em penhado e ativo
(inclusive penalm ente) na persecução de maior núm ero de metas
propiciadoras de transform ação social e da tutela de interesses de
dim ensões ultraindividual e coletivas, exaltando, continuada mente,
o papel instrum ental do direito pen al com respeito à política crim inal,
ainda quando sob os auspícios - por assim dizer - da C on stituição.16
O jurista italiano afirma, ainda, que juntes às ex pressas cláu su ­
las de penalização (registre-se que, no Brasil, há o com an d o ex p re s­
so de penalizar com rigor os crimes hediondos, da tortura, do
racismo, etc.) existem onirns que, tacitaiuente, obrigam o legislador a
estabelecer penaiizações. Isto porque o que se acha no bojo da ordem
constitucional e im põe a proteção penalística d o s valores, m esm o
não sendo objeto de uma cláusula expressa de penalização, há, de
qu alqu er modo, de ser en ten d id o com o p arte in tegran te do que fo i
expressam en te afirm ado pelo co n stitu in te.17
Dito de outro m odo, não há dúvida, pois, que as baterias do
Direito Penal do Estado D em ocrático de Direito devem ser d irecion a­
das p referen tem en te para o c o mim te dos crim es que im pedem a realização
dos objetivos con stitucion ais do Estado. Ou seja, no Estado D em o cráti­
co de Direito - instituído no art. 1° da C F/88 - devem ser com batidos
os crimes q u e fom en tam a in ju stiça social, o que significa afirmar que
o direito penal deve ser reforçado naquilo que diz respeito aos
crimes que prom ovem e/ou su sten tam as d esiguald ades sociais.
Nessa linha, nada m elhor que a lição do próprio Ferrajoii18
quando trata da eleição dos novos bens ju ríd ico s fu n dam en tais no
Estado Democrático de Direito, afirm an do que um program a de

28 LEN IO LUIZ STRECK


direito pena] mínimo deve apon tar para uma m assiva deflação dos
bens penais e das proibições legais, com o condição de sua legitimida­
de política e jurídica. Alerta, entretanto, que é possível, também, que
nesta reelnboração seja n ecessário, no cam po da tutela de bens fu n d a m en ­
tais, de uma m aior pen alização d e com p ortam en tos hoje não adequ adam en ­
te proibidos e castigados, com o por exem plo, a introdução do delito
específico de tortura ou a criação de novos delitos ambientais.
Dito de outro m odo, na esteira de Baratta, trata-se de dirigir os
m ecanism os da reação in stitu cion al para a crim in alidade econôm ica, para
os desvios crim inais dos organ ism os estatais e para o crim e org an izado.19
Para reforçar a tese, A raú jo -Jr.20 diz que a sanção penal deve ser
reservada para g aran tir a consecu ção dos objetivos do Estado de realizar
a ju stiça social: tais são os limites dentro dos quais deverá atuar o
legislador penal, ou seja, "a repressão à crim in alidade econôm ica deverá
ser instrum entalizada no sen tido de, regu lando o m ercado e protegendo os
m enos fa v o recid o s pela fo rtu n a , p rom ov er o desen volvim en to nacional e a
ju stiça social/'.
Não há dúvida, pois, que o legislador está umbilicalm ente
obrigado a legislar de acordo com a C onstituição, entendida no seu
todo principiológico (seu con teúd o material), send o os Princípios a
condição de , -ossibilidade do sentido da Constituição (não se olvide
que princípios são n orm as e, portanto, vinculam !). N enhuma lei
pode ser editada se qualquer de seus d is p o sitiv o s'confrontar um
princípio da Lei Maior.
No campo do direito p en al,21 em face dos objetivos do Estado
Democrático de Direito estabelecidos expressam ente na Constitui­
19 Cfe. Baratta, A lessan d ro. C rim ln o lo g ia crítica e. crítica do d ire ito p en al. Trad. de
Ju a r e z C i rin o dos Sa n to s. R io d e J a n e i r o , R ev a n , 1 99 6 , p .20 2; t a m b é m C as tilh o , Ela
W. de. O con trole p en al nos crim es con tra o sistem a fin a n ceir o n acion al. Belo H o r i z o n ­
te, Del R ey, 1998, p. 75.
20 Cfe. A ra ú jo Jr, J o ã o M a r c e lo & S a n t o s , M a r in o B a rbed o. A reform a p en al: ilícitos
■'jmnais eco n ôm icos. Rio de J a n e i ro , F o r e n se , 1987, p. 80.
21 C o n co rd o co m Mareia Dom e li la de Carvalh o (F u n dam en tação con stitu cion al do direito
penal. Porto Alegre, Se rgio Fabris, 1996, p. 44 e 45) q u a n d o diz qu e, no lado de uma
política d e despennliznção, deve haver itm processo de pen alização, deven do ser tipificado todo
fato qu e fom en te a injustiça social, que a C on stitu ição p reten de elim inar. Por ou tro lado - e a
advertência é de Baratta - d evem o s tom ar cu id a do pnra não cair na arm adilha de tnnn
política reform ista e ao m esm o tem po "pnnpcnalista". Para tanto, o cr im inólo go fala de
dois perfis que derivam de um a critica do direito penal c o m o d ir eito desig ual, O
prim eiro deles é ju s ta m e n t e o q u e trnta d e d irig ir os m eca n ism os da reação in stitu cio­
n al p ara o con fro n to da crim in a lid a d e eco n ô m ica , d os g ra n d e s d esv io s crim in ais dos
órg ãos e d o corp o do E stado, da g ra n d e crin u u n lid ad e org a n iz a d a . T ra t a -s e , ao m e s m o
tem po , a cen tu a o m estre , d e a s s e g u ra r um a m a io r re p r e s e n ta ç ã o pro cess u a l em
fa v o r d os intere sse s coletivos. C o n s u l ta r , n e sse s e n t id o , B a ra tta , op. cit, p. 202.

T R IB U N A L DO JÚ RI 2 9
ção (erradicação da pobreza, red u ção das d esigu ald ad es sociais e
regionais, direito à saúde, etc.), os delitos que devem ser penaliza­
dos com (mais) rigor são ju stam ente os que, de uma m aneira ou
outra, ob staculizam /dificultam /im pedem a concretização dos obje­
tivos do Estado Social e Democrático.

3 0 LENIO LU1ZSTRECK
2 . A (crise da) dogmática jurídica, o ensino
jurídico e a ideologia: 11111 universo ‘
do silêncio

2.1. D ogm ática e id e o lo g ia

O Ministério Público, órg ã o q u e p ro m o v e p riva tiv a m en te a


ação penal pública, pauta seus d iscursos, em especial, no Tribunal
tio Júri - a^p lo que m ais interessa nos lim ites d e s ta análise -
principal r > e no sentido de que, na qu alid ad e de d efen sor da
sociedade, an c\,tá para afirm ar e reafirm ar que o m aio r bem que a
hom em possui é a vida e, com o gu a rd iã o que é da aplicação, da lei,
esta deve ser cumprida.
Isto leva à pergunta: afinal, co m o o C ód ig o Penal trata desse
bem m aior do ser hum ano? Para tanto, é necessário fazer um a análise
comparativa dos dispositivos do C ód ig o Penal c o m outros do
m esm o texto legal, bem com o os d em ais títulos e capítulos do
diploma repressivo. Existem d iferen tes g aran tias, as quais têm a
mesma hierarquia normativa. N esse sentido, v er-se-á que esse bem
m aior - -a :vida~e, por que não, a integridade corp o ra l - tem m enor
proteção que a propriedade privada.
De início, cabe referir-que os tipos penais têm u m a -re lação
direta com os bens jurídicos que as c a m a d a s dom in an tes da socieda­
de pretendem preservar, C om o bem assinala Baratta22, "as m alhas
dos tipos (penais) são em geral, m ais sutis no caso dos d elitos das classes
sociais mais baixas do que os casos dos delitos de 'colarinho branco"'.
Estes delitos, também do ponto de vista da p revisão abstrata, têm
uma maior possibilidade de p erm an ecerem im u n e s". Por isso, os
conflitos sociais aparecerão nos con teúd o s da lei penal na exata
22 Cfe. B aratta, A lessan d ro, C riw iiiolog in c rítica e crítica do d ire ito pcn n l. T rad . de
Ju a re z C irino dos Santos, Rio d c J a n e i r o , R e v a n , 1997, p. 176,

TRIBUNAL DO JÚRI 3 1
medida em que colocam em perigo os interesses das classes que
dom inam as relações sociais. Assim , na m edid a em que se fizer essa
correlação, evidenciar-se-á a tomada de p osição ideológica de cada
dispositivo do Código (com o deste num todo), frente aos diversos
setores conflitantes.
Daí que, com lucidez, Cirino dos S a n to s23 vai denunciar que
"os objetivos aparentes do Direito Penal, expressos na proteção dos
interesses e necessidades essenciais para a existência do indivíduo e
da sociedade, têm certos pressupostos, co m o as noções de unidade
(e não de divisão) social, de identidade (e não de contradição) de
classes, de igualdade (e não de d esiguald ad e real) entre os c o m p o ­
nentes das classes sociais e de liberdade (e não de opressão indivi­
dual). Definitivamente, é inegável qu e num a sociedade-dividida o bem
ju ríd ico tem caráter de classe. Tal con statação perm ite o apio\ ei la­
m en to crítico de conceito de bem ju rídico, no am p lo espectro de
funções que, como visto, lhe correspon d e".
Isso nos leva, conseqü entem ente, à d iscussão (para m im sem ­
pre atual) cio papel da ideologia na so cied ad e e, principalm ente, no
Direito. A ideologia "não é apenas a rep resen tação imaginária do
real para servir ao exercício da dom in açã o en r uma sociedade
fundada na luta de classes, com o não é apen as a inversão im aginá­
ria do processo histórico na qual as idéias ocu p ariam o lu gar dos
agentes históricos reais. /I ideologia, fo rm a específica do im aginário
social m oderno, é a m aneira necessária pela qu al os agen tes sociftis
representam para si mesm os o ap arecer social, econômico-e-■político-;- de tal
sorte que essa-ap arên cia (que não devem os sim p lesm en te tom ar como
sinônim os de ilusão ou fa lsid a d e), p or ser o m odo im ediato e abstrato de
m anifestação do processe hi^ iónco, é o o c iü ta m e n to o u a d is s itiiiila ç ã o do
real. [...] Universalizando o particu lar pelo a p a g a m en to das diferen­
ças e contradições, a ideologia ganha coerência e força porque é um
discurso lacunar que não pod e ser p r e e n c h id o " 24.
Dito de outro m odo, as contradições do Direito e da dogmática
jurídica que o instrumentaliza não " a p a r e c e m " aos olhos do jurista,
uma vez que há um processo de ju stificação/ fu n d am en ta ção da
"coerên cia" tio seu próprio discurso. E sse p ro cesso de ju stificaçã o não
23 Ver S a n t o s , Ju a re z C irin o dos. C rh u in olog in ra d ical. R io de J a n e i r o , Forense.

C h a u í, M arilen a de S o u z a . C u ltu ra c. d e m o c ra c ia : o d isc u r so c om p eten te c


ou trn s fitlas. 3- ed. São P a ulo, M o d e r n a , 1982, p. 2 e 3. S o b r e o a s s u n to , co nsu lta r
ta m b é m : M észáros, Jstván. O p o d e r da id eo lo g ia . T r a d , M a g d a L op es. S ã o Paulo,
E nsaio , 1996; Zizek , Sfavoj. Um m ap a da id eo lo g ia . Z i z e k , S la v o j (o rg ). T rad . Vera
R ib eiro. Rio d e ja n e i r o , C o n t r a p o n t o , 1996.

3 2 LENIO LUIZ STRECK


prescin de, para sua elucidação, do en ten d im en to acerca do fu n cion am en to
da ideologia. Isto porque, com o ensina Zízek, a eficácia de uma
ideolQ gia-pode-seF-spreendida p elos-m ecan ism os da identificação
imaginária e da id en tifiea çã o-sim bólica. E à prim eira vista se
poderia dizer que o que é pertinente num a análise da ideologia é
som ente a maneira pela qual ela funciona c o m o discurso, em suma,
pela maneira com o os m ecanism os d iscursivos constituem o campo
da significação ideológica. N o entanto, o d errad eiro suporte do
efeito ideológico (ou seja, n m aneim ^ eom o urna-r-eáe iáeológica-~nos
."prende") é o núcleo fora de sentido, pré-id eológieo-d o .gozo. Na
ideologia "nem tudo é ideologia (isto é, sentido id e o ló g ico )", mas é
precisam ente esse excesso que constitui o derradeiro esteio da
id eolog ia".25
O ideológico não pode ser sim bolizad o en quan to ideológico,
ou seja, usando as palavras de Zízek, o iridivídiio-subm etido a, ideologia
nunca p ode dizer~por si m esm o "estou -na-ideologia". Esse não-poder-di-
zer é decorrente do fato de que o discurso do outro o aliena dessa
possibilidade simbolizante. E possível dizer assim que o discurso
ideológico enquanto tal não é realidade para o indivíduo submefi-
clo/assujeitado. Se sim bolizar é tratar pela linguagem e se o incons­
ciente é estruturado com o linguagem, o d iscurso ideológico só pode
vir à tona no sujeito se este não tiver as condições de possibilidade
de dizê-lo, de nom eá-lo, isto é, estabelecer a surgição de que fala
Lacan no Sem inário II. N esse sentido, é possível fazer uma analogia
do discurso ideológico com o discurso do mito. A ideologia -
ta/entendida segu ndo os p arâm etros aqu i estabelecidos - perm ite que se
di^a que o mito só é m ito p ara quem não sabe qu e é m ito, ou seja, o m ito só
tito para quem nele acredita. O d esv elar do m ito é a in stitu ição de uma
/ ruptura, através de um sim bólico não atrav essado/sitiado pelo discurso
m itológico. O simbólico dos registros do Real, Im aginário e Sim bóli­
co não deve ser entendido (aqui) com o simbólico/ideologizado,--'
Se é verdade o que disse Lacan 26 que n unca se sabe o que pode
acon tecer com uma realidade até o m om ento em qu e se a reduziu
definitivam ente a in screver-se num a linguagem , então o espectro ideo­
lógico da sociedade sofre um atravessam ento, isto é, um atalho que
impede que a realidade - não-ídeológica - se inscreva numa
linguagem, é dizer, que possa ser sim bolizada. Isto porqu e há um
atalho na sim bolização; uma ce(n)su ra significativa. Logo, onde há uma
25 Cfe. Z íz e k , Slavoj. E les não sabem o q u e fa z e m . O su b lim e o b jeto d a id eo lo g ia . Rio de
Janeiro , Z a h a r, 19.92, p. 122.
26 Cfe. L a ca n, J a cq u es. O S em in ário. L iv r o 2. R io de J a n e i ro , Z a h a r, 1 9 95 , p. 118.

t r i b u n a l d o jú r i 3 3
interdição, há um cu rador que se su bstitu i ao discu rso. Esse atravessa­
m ento/atalho, ou seja, essa interdição (de sentido) institui uma
espécie de narcisism o discu rsivo, no interior do qual o discurso
ideológico/alienado/a licn ante é narcísico, co m o por exem plo a
frase veja você (a realidade!) coiu seus olhos, co m o bem exem plifica o
m esm o Zizek. O simbólico esta colonizado por um d iscurso ideoló­
gico que não permite a possibilidade de o sujeito dar-se conta do
mundo.
Pode-se dizer, a partir disso, que_a ideologia tem eficácia na
medida em que não a percebem os. Por isso não su rpreend e o fato -
e essa questão será analisada mais am iúde no subtítulo 3.1. adiante
- de o jurista manusear o C ódigo Penal durante anos a fio, sem se
dar conta de algumas "o b v ied a d es" (nem tão " ó b v ia s " assim!),
com o a de que o ato de furtar uma galinha recebe uma apenação
expressivam ente mais gravosa (1 a 4 anos de reclusão) do que o
abandono de um recém -nascido, com resultado de m orte (6 meses a
2 anos de detenção). Na mesma linha, vale ressaltar que, recente­
mente, foi editada a Lei n° 9.426/96, que agravou sobrem od o as
penas para os delitos de fu rto e recep tação de autom óvel. Observe-se
que, pela nova lei, furtar um autom óvel e levá-lo para outra
unidade da Federação submeterá o agente à pena de 3 a 8 anos de
reclusão. Ao mesmo tempo, o ato de causar d olosam en te uma lesão
grave da qual resulte d eform idade perm an en te, en ferm idade incu­
rável, perda de membro ou aborto, ocasiona uma pena de 2 a 8 anos
de reclusão. O problema não está som ente na d esp roporção das
penas. Como já dito, a com inação da pena de reclu são é bem mais
gravosa, em todos os sentidos, que a de dctençãol E essa, dentre
outras, que Batista designa com o m issão secreta do direito penal,
acentuando que, numa sociedade com contrastes sociais tão profun­
dos , o d n eito penal estará protegen do relações escolhidos pela classe que
dom ina tais relações sociais, ainda que aparen tem certa un iversal idade27.

2.2. A dogmática ju ríd ic a e a crise de parad igm a(s)

A instrumentalização do Direito ocorre através da dogmática


jurídica, que, à evidência, na lúcida visão de W arat, não deixa de
experimentar o s efeitos do sentido com um teórico. Desse modo,,a
dagmatica juiídica, ao servir de instrum ento para a interpreta­
ção /sistema tização/aplicação do Direito, vai a p are ce r-c o m o -irm
2/ Batista, op. cít,, p, 116.

3 4 LENIO LUIZ STRECK


conju nto d e,.técnicas de "fa'2er crer" com as quais^oS^jxmstas
conseguem produzir a-linguagem olicin] do Direito que se integra
com significados tranqüilizadores, rep resen tações q u e têm com o
efeito o de ímpedlr-~uma -problem atização ,.e- uma reflexão mais
aprofundada sobre--nossa- realid ade -soei©política28.
Is tu nos traz inquietações, na m edida em que, des^e modo,-o
' h ieik ) acaba por (re)[’roduzir as relações sociais c.e u u u sociedade
tão díspar como a nossa. Salta aos olhos, pois, que a dogm ática
ju iídiea, mergulhada na crise de paradigm a, é co-ín stituinte da crise
social e, por decorrência, para ficar na especificid ade do tema em
discussão, do discurso ju ríd ico-penal-p rocessual.
C om o ocorre essa crise de paradigm a? Em p rim eiro lugar,
partindo da premissa de que um paradigm a im plica uma teoria
fundamental reconhecida pela com u n id ad e científica c o m o delim i-
tadora de campos de investigação pertinentes a d eterm in a d a disci­
plina (KuhnS. é possível dizer que o que fom e. e o statu s c ie n b fr o
de um ». ia vai depender não tanto d a s í r s , s defendidas , - e l us
mamia,,., ui.m íficos, m as sim do consenso tia ''o m u n íd a d e c ie i.L h c a
ei • rno-dessas-teses, con form e m uito bem w m,. C elso C am p ilo n -

A gregue-se a isso o dizer de Zuleta Puceiro, para quem a


dogmática jurídica define e controla a ciência ju rídica, indicando,
com o poder que o consenso da com u nidad e científica lhe confere,
não só as soluções para seus p ro blem as tradicionais, m as, princip al­
mente, os tipos de p roblem as que devem fazer p arte de suas
investigações. Daí que a dogm ática jurídica é um nítido ex em p lo de
paradigma. Diz mais o mestre argentino, que a crise da c iê n c i a -do
Direito é um eapítulo-d-a-crise ma-is ampla da ra cio n alid a d e política
que oeorremas sociedades av ançad as30.
28 Ver, para tanto, W a ra t, L uís A lb e rt o . In trod u ção g er a l ao D ireito 11, P o rt o A leg re,
Fabris , 1995, p. 37 e sgs.
29 Ver C a m p ilo n g o , Cel so . R e p r e s e n t a ç ã o po lí tica e o r d e m ju r í d i c a : os d il e m a s da
‘ d e m o c ra c ia liberal. São P aulo, U SP , 1 98 2, p. 11 e segs.
30 Ver P uceiro, P nrique Z u leta . T eo r ia ju rí dica y crisis d e le g it im a e íó n . In A n u n rio
d e F ilosofia ju ríd ic a i/ S ocial. B ueno s A i r e s , A b e l e d o - P e r r o t , 1982, p . 28 9 . A g r e g u e - s e
a im p o rt a n t e co ntribu iç ão de A d e o d a to , para q u e m há c e r t a m e n t e cris e n o D ire ito
em vig o r na periferia do ca p i t a li s m o o c id e n t a l , n o d it o m u n d o s u b d e s e n v o l v i d o ,
cri se n itid a m en te e x em p lificad a pela sit u a ç ã o b ra sileir a. Para o j u s íil ó f o s o p e r ­
n a m b u c a n o n u o m a s fu n d am en tai1' d o s s i s t e m a s - ju i íd i e o s nas s o c m d a d e s d e s e n ­
v o lv id a s nau tf-m -a p l i c a b i l i d a d e g e n e r a l iz a d a ern n o s s o p a ís , l.n-, c o m o a
h i e i a n ju i a norm ativa qu e c u lm m a n o - p r i n c í p i o cia s u p r e m a d a - c o n - m t u e i n n a l , o
p r i m a d o da lei, a iso n om ia ou a n e u t r a l id a d e da d e c is ã o ju d ic ia i. Is to p o r q u e - n o
BniMl há um a con^tanti ti nca de f a v o t e s e o -c o rp o ra tiv ism o , en tr e o u t r a s q u e s t õ e s

TRIBUNAL DO JÚRI 3 5
Isto é efeito ou causa? O certo c que, con form e lembra Faria31,
"preparado para resolver questões i n t e r i n d i v i d u a s -.nunca,as
eolelivrs, o direito oficial não alcança os se to res m ais desfavoreci­
dos, e ii marginulÍ7açâo jurídica a que foram con d en ad os esses
setores nada mais do que o su bp roduto de sua m arginalização
social e econôm ica". Ou seja, os setores d esfav orecid os som ente são
alcançados pelo (longo) braço do Direito Penal. D aí que, com p le­
m enta C am pilongo32, existem m udanças sociais, políticas e econ ô­
m icas que, processadas em ritmo acelerado, tornam obsoletos os
stan dards estruturais das abordagens formalistas.
Lidamos, pois, ainda, com um (modelo) m odo de produção de
D ireito33 de cunho liberabn orm ativista-in dividua lista, forjado para
resolver disputas/conflitos interindividuais, ou, co m o diriam os
manuais de D ireito/disputas entre C a io e Tício ou onde Caio é o

q u e i-mpeclem a aplicação•d«*nw de]e»juirfdico d e Estado- -M o d ern o , e u r o ce n tra d o .


T u d o isso tia n sp a r e c e , acre scen ta o a uto r, da s i m p l e s o b s e r v a ç ã o d os co nflitos
ju ríd ico s no Di isi 1, o n d e irem os p e r c e b e r o d e s c o m p a s s o e n tr e m o d e lo s i m p o st o s
pelo E st ado e p r o c e d im e n t o s de so lu ção de co n flito s efe tiv a m e n te esta b e lec id os .
A s s im , acre scen ta , sen d o a d og m ática ju ríd ic a n fo r m a p re p o n d e r a n te qu e assu m e o
d ire ito uo m od ern o E stado d es en v o lv id o , qu e ex ig e u m a so c ied a d e co m p lex o pu n i su rg ir,
cisai niii npttraio b u rocrático es tá v el e ou tras c a r a c te rís tic a s es p e c ífic o s , e sen d o o d ireito
d o g m á tic o en ten d id o com o um d ire ito leg a lm e n te o r g a n iz a d o qu e tom a p o r bnsc n
p reten sã o , p o r p a r te d o E stado, d e m o n o p ó lio nn p ro d u çã o e/o u leg itim a çã o dns norm as
ju r íd ic a s , d en tro de d eterm in ad a c ircu n s criçã o territo ria l, a c rise resid e no fa t o d e q u e é
este d ire ito d og m ático d iferen ciad o q u e n ão se c o n se g u e fir m a r no B rn sil, V er, p ara tanto,
A d e o d a t o , J o ã o M a u ríc io . D ireito: C ris e e C r ític a . In : D ireito e D em ocracia. K atie
A rg ü e llo en tr evis ta . F loria n óp o lis, L e tr a s C o n te m p o râ n e a s, 1 996, p. 148-150.
31 C f e . Faria, J o s é E d u a rd o . D ire ito e eco n o m ia na d e m o c ra tiz a ç ã o brasileira. São
P a u l o , M alh eir os, 1993, p. 52.
32 Cfe. C a m p ilo n g o , op. cit., p. 12 e seg s.
j3 C o m o m o d o de p r o d u ç ã o d e D ireito e n t e n d e - s e a p o lítica e c o n ô m ic a de
re g u la m e n ta ç ã o , p ro t e ç ã o e l e g it i m a ç ã o n u m d a d o e s p a ç o n a c io n a l , n u m m o m e n ­
to e sp ecíf ic o , q u e inclui: a) o m o d o co m q u e a p r o f is s ã o ju r í d i c a e a p re st a ç ã o de
s e u s ser v iço s s ã o o r g a n iz a d o s; b) a lo c a l i z a ç ã o d e p a p é i s en tr e a s v árias p o siçõ es
n o carnpo ju ríd ic o ( p ra tic an te s, a p l i c a d o r e s d a lei, g u a r d i ã e s da d o u t rin a , a c a d ê m i ­
cos, etc.); c) o m o d o c o m q u e o c a m p o p r o d u z o h a b itu s , i n c l u in d o v a ria çõ e s na
e d u c a ç ã o e a i m p o rtâ n c ia das v a n t a g e n s s o c i a is ( a n t e c e d e n t e s e re la ç õ e s pessoa is)
piara o re c ru ta m e n to no ca m p o ) ; d) as m o d a li d a d e s para a a r t i c u l a ç ã o da d outrina
p r e p o n d e r a n t e e os m o d o s co m q u e esta s i n c i d e m e m r e l a ç õ e s en tr e jo g a d o r e s e
p o s i ç õ e s ; e) o p a p el qu e os a d v o g a d o s , ju n t a m e n t e c o m o s p r o t a g o n i s t a s g lo b a is e
r e g i m e s tran s n a cio n a is r e p r e s e n ta m n u m d a d o cam p o ju r íd ic o : f) a re la ç ã o entre
re g u la m e n ta ç ã o e p ro te çã o ; e, g) o m o d o d o m i n a n t e d e le g it im a ç ã o . Cfe. Yves
D e z a la y e D avid M. Trubek. A r e e s t r u t u r a ç ã o g lobal e o Direito. In: D ireito e
g lo b a liz a ç ã o eco n ô m ica - im p licações e. p er sp e ctiv a s. J o sé E d u a r d o Faria (org). São
P a u l o , M a lh e ir o s , 1996, que se b a se ia m , d e ce r to m o d o , no c o n c e i t o de m odo de
p ro d u ç ã o de d ir eit o fo r m u l a d o p o r B o a v e n tu r a d e So u za Sa n to s.

3 6 LEN IO LUIZ STRECK


agente e Tício, a vítima. A ssim , se Caio (sic) invadir a propriedade
de Tício (sic), ou Caio (sic) furtar um b o tijão de gás ou o automóvel
de Tício (sic), é fácil para o o p erad or do Direito resolver o problem a.
N o primeiro caso, é esbulho, passível de im ediata reintegração de
posse; no segundo caso, é furto. N estes casos, pois, a dogm ática
jurídica coloca à disposição desse op e rad o r respostas rápidas (e
seguras). Porém, quando Caio e m ilhares de pessoas sem terra ou
sem teto invadem a pro pried ad e de Tício, ou quando C aio participa
de uma quebradeira de bancos, causando desfalques de bilhões de
dólares (corno no caso do Banco Nacional, Bam erindu s, Econômico,
Coroa Brastel, etc.), os juristas só co n seg u em " p e n s a r " o p roblem a a
partir da ótica Iiberal-individualista.
C om o respondem os ju ristas a esses problem as, produtos de
uma sociedade com plexa, em que os conflitos têm um cunho
transindividual? Na primeira hipótese, se a ju stiça tratar da invasão
de terras do m esmo m odo que trata os conflitos d e vizinhança, as
conseqüências são gravíssimas (e de todos conhecidas...!) Na segun­
da hipótese (crimes do colarinho branco), basta exam inar a pesquisa
da Procuradora da República Ela de C astilho, para perceber como
tais delitos são tratados pelas instâncias de administração d ’ < t,. i.
Com efeito, os dados coletados dão conta de que, de 1. ->(-> * 1 ,
somente 5-dos 682' supostos-erimes financeiros apurados pelo tianco
Centra] resultaram em condenações em primeira instância na Justiça
Federal. A pesquisa revela, ainda, que 9 dos 682 casos apurados pelo
Baneo Central também sofreram condenações nos tribunais supe­
riores. P orém - e isso é de extrem a relevância - nenhum dos 19 réus
condenados por-crime., do -m lam ú io. branco f o i p a m .a-ea d eial A pesquisa
ressalta também que o número de 682 casos apurados é extremamente
pífio, em face dos milhares de casos de crimes do colarinho branco que
ocorrem a todo ano no país3*. E os crim es contra o meio am biente, com o são
tratados? Como fu ncion a o Direito nas jx la ç õ e s de consum o, mormente
quando se percebe cjue a televisão, que devpria ser um veículo para transmitir
cultura (art. 221 da CF), transform ou-se num bingo pós-m oderno?
Estamos, pois, em face de um sério problem a: de um lado,
temos uma sociedade carente de realização de direitos e, de outro,
uma Constituição Federal que garante estes direitos da forma mais
ampla possível. Este é o con traponto. Daí o acerto de Ribas Vieira35
em dizer que "a crise do ju d iciá rio deriva do descom passo existen te entre
34 C o n s u l ta r Cas tilho, Ela V o lk m e r. O co n tro le p en a l d as crim es con tra o sistem a
fin a n c e ir o n acion al. Belo H o riz o n t e , Del R ey, 19 98
3 5 Cfe. R ib a s Viera, José . T eoria do Estndo, Rio de J a n e iro , L um en Ju ris, 1995.

TRIBU N A L DO JÚRI 3 7
sua atuação e as necessidades sociais, con sid eran d o-se totalmente
insuficiente a afirmação formal da existência de determ inados
direitos, uma vez que o ‘-c ' c h i n i 1 >\'ste<nia a partii de uma
agencio coativa disposta a n p’n i ^ 't>rma> nu ’, a , Não sui pieemle,
pois, que institutos jurídicos im portantes co m o o m andado de
injunção e n substituição processual, previstos na nova Constitui­
ção, tenham sido redefinidos e tornados ineficazes pelos estab-
lishm enl jitrídico-dogmático.
Para que se alcance a efetivação do Direito (e dos direitos) e se
faça a devida filtragem das n orm as iníracon stítu cion ais tomando
por base a Constituição Federal, n ecessitam os, prim eiro, superar
esse paradigma que se baseia no m odo liberal-individualista-nor-
mativista de produção de Direito. Ou seja, no âm bito do campo
ju ríd ico 36 trabalha-se ainda com a perspectiva de que, embora o
Estado tenha mudado de feição, o Direito perfaz um cam inho a
latere, à revelia das transform ações advindas de um Estado inter-
vencionista-prom ovedor37.
Esse cam p o ju rídico s e co n stitu i e m u m corijt " a d o s os p e r s o n a g e n s que
t azem, interp retam e apl i cam a lei, tran sm item ne n i o s j ur í di c os i> so ciali­
zam j og ador es que se e n co n tram no j og o dc no in terio r d o qual os
con flitos d ã o-lh e d in am ism o , ma s tam b ém i n, c o m o . uni ca m p o : os
jo g a d o r e s em c o m p etiçã o é que d is p u t a m en tr e si, m a s n ã o o c a m p o e m si m esm o ;
p o rt a n lo , a d is p u ta r e a f ir m a e a ind a forta lece o c a m p o . T o d o s os j o g a d o r e s num
c a m p o ju ríd ico têm d e te r m i n a d o c o n j u n t o d e d is p o s iç õ e s q u e o r ie n t a m suas
açõ es. Tais d isposiç õ es são tra ça d a s a t r a v é s cie d is p u t a s do c a m p o co m ou tros
c a m p o s so ciais e de co nflitos in tern o s , o q u e c o n stitu i o h ab itu s d e s s e c a m p o .C o n -
su lta r Bourdieu, Pierre. T he force o f lh e L aw : toum rd a S o cio lo g y o f lh e ju rid ic a l field .
T a m b é m D elazaí, Y v cs e T rub ek, Davi d M. A re e s t r u t u r a ç ã o g lo b a l e o D ireito, In
D ireito e G lobalização econ ôm ica. J o s é E d u a r d o Faria (org ). São P a ulo, M a lh eiros ,
1996, p. 34 e segs.
37 Para uma m elh or c o m p r e e n s ã o d o p r o b l e m a , é i m p o r t a n t e re ferir que cada
s o cied a d e tem um cam po ju ríd ico qu e o e n g e n d r a . P o r c o n s e g u in t e , este cam po
ju ríd ic o , a exem p lo do que W a r a t d e n o m i n a d e s e n t id o c o m u m teórico dos
juri sta s, será o corpits que s u s t e n t a rá o m o d o l ib e ra l- in d iv id u a lis ta - n o rm a t iv ist a
de p ro d u çã o do Direito, so ld an d o eis fiss u ra s d eco rren tes do ab ism o q u e c x isle en tre o
d iscu rso ju ríd ic o e a (d eficitária) es tru tu ra so cial. E diz er , o b a b d u s nã o fica ad strito ao
cam p o ju ríd ic o ; penetra por to d as as fresta s do m odo d c p ro d u çã o d o direito. C o m o
d ecorrên cia, a dogm ática ju ríd ica terá o seu p a p e l d e fin id o no p ro ce ss o de
e fe tiv a çã o (ou não) dos d ir eit os e m c o n f o r m i d a d e c o m o m odo d e p ro d u çã o do
Dire ito vigen te em noss a so c ie d a d e , qu e, p o r sua v ez , será in stru m en taliza­
d o /s u s te n ta d o pelo re s p e ctiv o cam p o ju r íd ic o , que r e s p o n d e pela a r t ic u la ç ã o de
in stituições e prática s no co n t e x t o d a s q u ais oc o rr e o p ro ce ss o de f o r m u l a ç ã o da
lei, e m um p rim eiro m om ento, da p r o d u ç ã o d o se n tid o d essa m e s m a lei, em um
s e g u n d o m o m en to , e, em m om errto s su b s e q ü e n t e s , de su a aplica,ção co tidiana
pelos tribu nais. Consulta r, para ta nto, Streck , Len io Luiz, H erm en êu tica ju ríd ica
E (m ) Crise. 2- ed. Porto A legre, Liv raria do A d v o g a d o E dito ra, 2000.

3 8 LENIO LUIZ STRECK


Com efeito, do Estado Liberal, em que o D ireito, de cunho
ordenador, protege o indivíd uo contra a interferência do Estado,
garante a proteção da p ro p ried a d e privada e visa a assegurar a
regulação espontânea da so ciedad e, já p assam os - form alm en te -
por um Estudo Social, em que o Direito tem uma feição prornovedo-
ra/regutadora, interferindo na '=ocied,ide para dim inu ir as d is tâ n ­
cias sociais decorrentes do IM ad u 1 :hei il, b tisl n ,1 o uMÍiMr uma
"versão social do Direito"(m7o renUznda 1 1 0 Brasil) e-’8, a partir de
1988, passamos a ter uma C on stitu ição que instituiu o Estado
Democrático de Direito, cuja n ov id ad e "n ão está em uma revolução
das estruturas sociais, mas dev e-se perceber que esta nova c o n ju g a ­
ção incorpora características novas ao m odelo tradicional. A o lado
do núcleo liberal agregado à questão social, tem -se com este novo
m odelo a incorporação efetiva da qu estão da igu aldade com o um conteúdo
próprio n ser buscado g aran tir atrav és do assegu ram en to ju ríd ico de
coudi^oe^ i n,ma^ no cidadão e a LO!’i<mtdadt " l)
1 .te 1 o i'u { J a ( i i ' . ' d . ‘ p tie d ,o !n d 1 poi-, («tá iunçao
de^-tin ida i I K e it o pefo 1 Ma L' ' V u~uh laUt ( d > Diurn,, tião está
sei.d, i n „ .k l ’ r Ta \ i t. 1 i i i'l í 'í i’ , , 1 1 1 1 ,* concebida
coi * , 1 h1 i n i1- i " ■' ,i i i i. . i u h .,!»1ida corno
'neutra , 'imparcial e 'objetiva licand o o in terp reie/ ap lica d or
convertido num m ero técnico do direito positivo. C o m o o que
importa não é a explicação, a co m p re en são e a orientação dos,
com portam entos jurídicos, e sim a tipificação e sistem atização de
38 Para Ferr-ajoli, a d if eren ça en tre a s g a ra n tia s lib era is n e g a t i v a s e a s g a r a n ti a s
so ciais p o sitiva s expressa a d ife re n ça e n t r e o E s t a d o L ib era l e o E s t a d o So cial. O
E s t a d o Lib era l lim itad o p o r n o r m a s s e c u n d á r i a s n e g a t i v a s , p o r p r o i b i ç õ e s d ir ig i ­
das aos seu s órg ãos de p o d e r ; e o E s t a d o So cia l p o r m a n d a t o s d ir ig i d o s a o p o d er
pú blico. As g aran tias lib erais s e r v e m p ara d e f e n d e r ou c o n s e r v a r as c o n d iç õ e s
n a t u ra is ou p ré-p o líticas de e x istê n cia ; a s g a r a n ti a s s o c ia is ou p o s itiv a s p erm item
a a qu isiçã o de coffdições so cia is de v id a. As g a r a n ti a s l ib e ra is re q u e re m d o E s t a d o
p re s t a ç õ e s n egativas c o n sist e n te s em u m n ã o fa z er, e n q u a n t o a s g a r a n ti a s s õ í i a i s
ex i g e m d o-E stad o p restações p o s i tn a > C f e .F e r r a jo li , op, cit, p, 851 e segs.
39 Cfe, M o rais, José Lu is B olza n de. U o D ireito S ocial nos Interesses T ra n sin d w id u n is.
P orto A leg re , Livraria do A d v o g a d o , 1 9 9 6 , p. 67, (grifei)
411 Na p re se n te obra, a a b o r d a g e m se fixa na a s s im d e n o m i n a d a crise d o p a r a d i g ­
ma lib cral-in d ivid u alista de p r o d u ç ã o de d ir e ito , a g r e g a d a à crise d o E sta d o.
Porta nto , não se está a falar da (ou de u m a ) c ris e d e p a r a d i g m a s lato sen sti. N esse
se n tid o , co nsu lte -se A rr u d a Jr, para q u e m é n e c e s s á r io s i t u a r " l o s c â m b i o s que
afecta n a las instítuciones ju ríd ic a s d e n t r o cie la p ro b lem atizacíó n m á s g e n e r a l e s -
la crisis globalizada y n o r ed u ctib le a mera 'c ris is de p a r a d i g m a s '" . A r r u d a Jr,
E d m u n d o L im a. G lobaliza ción n e o lib e ra l y d e re ch o : las t r a m p a s d c la cris is de
p a r a d i g m a s , hi: Travcsins. U n i v e r s íd a d In te r n a c i o n a l d e A n d a l u c i a . F t in d a c i ó n El
M o n te. A n o 1, n ,l - ju l i o - d i c i e m b r e 1 9 9 6 , p. 113 e segs.

TRIBU N A L DO JÚ R I 39
situações normativas hipotéticas, ao agir de m o d o " té c n ic o " , isto é,
se m preferências valorativas e im une às paixões políticas, o juiz não
se limita a atuar tendo em vista apenas a c on secu ção das garantias
formais, da certeza jurídica e do im pério da lei, postu lad os funda­
mentais do modelo/paradigma liberal-burguês do Estado de Direito;
ele também desempenha o papel de um profissional "co m p eten te"
na integração dos atores con sid erad os "d isfu n c io n a is " na vida
social41.
Dito de outro modo, parece que a dogmática-ju rídica - en q u a n ­
to encarregada de instrum entalizar o Direito - não se im porta com o
fato de que •seus significados perdem , dia a dia, a necessária
densidade semântica42 (sócio-histórica). C om m uita propriedade,
Zuleta Puceiro nos auxilia na busca de respostas, acen tuan d o que o
que de/ine a Ciência do Direito ê sua prim azia h egem ôn ica no
sistema de regras e definições estipulativas a partir das quais se-
podem pensar as realidades sociais. Isto explica a preten são exclu si­
vista do paradigm a dogm ático e suas resistências aos processos de
m udanças internas e extern as43.

2,3. O sentido com um teórico dos ju ris ta s e a crença no


D ireito como um " s is te m a ló g ic o " e " r a c io n a l "

Com o fazer com que a socied ad e acredite que o bem mais


protegido é a vida, se no interior do C ódigo P enal isto não está
consubstanciado? Para realizar essa tarefa, faz-se crer à sociedade
que o Direito é um sistema lógico, no qual os ideais contraditórios
aparecem como naturais. Essa " c re n ç a " é obtida no cam po da
dogmática jurídica graças ao que W arat cham a de sentido com um
teórico dos juristas.
Sem qualquer dúvida, foi W arat quem , além de cunhar a
expressão sentido (ou senso) com um teórico dos ju ristas44, melhor
trabalhou essa relação dos ju ristas - inseridos n um a espécie de
cor pus de icpu"-cntações - com suas práticas cotidianas. O sentido
60.m«m--tcoi ico dos juristas-é, assim , o con ju n to de cren ças, valores e
41 Cfe. Faria, Jo s é E duardo . O P od er ju d ic iá r io n o B rasil: p a r a d o x o s , d esa fio s, a lter n a ti­
vas. Brasília, C o n s e lh o de Ju stiça F e d e r a l , 1 9 9 5, p. 29 e 30.
42 A e x p r e ss ã o é re tira d a de S e r c o v ic h , A. El d iscu rso , ei psiquism ó y el registro
im n gin ario. B u en o s Aires, N u e v a V isio n , 1977.
43 V e r P uce iro , op. cit, p. 297.
44 E m a lg u m a s obras, W a ra t us a a e x p r e s s ã o " s e n t i d o co m u m t e ó r i c o " e m v ez de
" s e n s o c o m u m teórico ".

40 LEN IO LUIZ STRECK


ju stificativ as por m eio de disciplin as especificas, legitim adas m ediante
discu rsos p rodu zidos p elo órgãos in stitu cion ais, tais com o os parlam en tos,
os tribunais, as escolas de direito, as associações profission ais e a adm in is­
tração pública. Tal conceito traduz um co m p lex o de saberes a cu m u ­
lados, apresen tados pelas práticas ju ríd icas institucionais,
expressando, destarte, um conjunto de representações funcionais
provenientes d e-conhecim entos m orais, teológicos, m etafísicos, es­
téticos, políticos, tecnológicos, científicos, epistem ológicos, profis­
sionais e familiares, que os ju ristas aceitam em suas atividades por
intermédio da dogmática jurídica. D ifu sam en te,-é o con hecim en to que
se encontra na base de todos os d iscu rsos cien tíficos e epistem ológicos do
D ireito. Pode ser entendido, ainda, com o um a racionalid ad e su bja­
cente, que opera sobre os discursos de verdade das ciências h u m a ­
nas. Tal racionalidade aparece de vários m od os e m aneiras e
configura a instância de pré-cornpreensão do con teúdo e os efeitos
dos discursos de verdade do Direito, assim com o tam bém incide
sobre a pré-com preensão que regula a atuação dos produtores e
usuários dos discursos do e sobre o Direito45.
A partir de tais premissas, é possível a firm ar46 que a realidade
do cotidiano dos juristas - a sua relação com a lei e o Direito e destes
com a sociedade no qual ele, jurista, está inserido - por si só não é
significativa. Porém, ela se apresenta dessa maneira graças ao senso
com um teórico no ato de conhecer. O que determ ina a significação
dessa realidade é toda a faculdade cognoscitiva, institucionalm ente
conform ada com todos os seus elem entos fáticos, lógicos, científi­
cos, epistem ológicos, éticos e de qualquer outra índole ou espécie.
A significação dada ou construída via senso com um teórico contém
um conhecim ento axiológico que reproduz os valores, sem, porém,
explicá-los. C onseqüentem ente, essa reprod ução dos valores con­
duz a uma cspéeie de confoi m ismo dos operadores jurídicos. Por
isso, não é difícil ou tem etório dizer que osvparadoxos->oxigiijários
da, sociedade repleta de conflitos e contradições acabam sendo,
exatam ente, diluídos no interior desse cot pus d en om in ad o de sentido
com um teórico do salm eju ríd ico,

45 C o n f o r m e W a r a t , L uis A lbert o, in tr o d u çã o g er a l ao D ireito í. P orto A l e g r e , Fabris,


1994, p. 14 e 15; In tr o d u çã o g era i a o D ireito II, 1995, p. 71 e M a n ifesto do
S u rrealism o Ju r íd ic o . S ã o P a u lo , A c a d ê m i c a , 1988, p. 39.
46 A d a p t a ç ã o d e u m a a n á lise d e W a r a t , M a n ifes to , op. eit, p. 38, so b r e a re a lid a d e
so cial e o s e n so c o m u m .

TRIBU N A L DO JÚRI 4 1
2.4. D ogm ática e ensino ju ríd ico : a in s titu c io n a liz a ç ã o de um
universo do silêncio

Que tipo de visão têm os operadores ju ríd icos - mergulhados


na imensidão do sentido comum teórico - sobre a aplicação e a
eficácia das leis existentes no Brasil?47 Por exem plo, um funcionário
público de alto escalão engaveta um processo (administrativo 011
judicial) durante 3 011 4 anos. Dentro dos cân on es estabelecidos pela
dogmática jurídica, para processá-lo pelo crim e de prevaricação é
muito difícil, pois exige-se o dolo, uma vez que o "leg islad or" não
previu a hipótese cie prevaricação culposa. Desse modo, se o
acusado alegar, em sua-defesa, que " 0 p rocesso ficou parado tanto
tempo" porque foi preguiçoso, desleixado ou até m esm o negligente, fatal­
mente será absolvido (se denunciado for e a denúncia for recebida).
Tudo porque a preguiça, a negligência ou o desleixo são considera­
das causas (sic) que excluem o dolo (aliás, com o se diria na
dogmática tradicional, "nesse sentido n ju risp ru d ên cia é mansa e
pacífica": RT 451/414; 486/356; 565/344; 543/342...). Exige-se, ao que
parece, uma espécie cie "dolo de en gav ctam ento". Corno contrapon­
to, veja-se o caso de um indivíduo que íurta uma galinha e a leva
para sua casa. Neste caso, basta que com ela (com a res fu rtiv a) fique
alguns minutos, para que, em sendo preso, esteja caracterizado o
crime de furto (cuja pena, aliás, é várias vezes m aior 3o que a da
prevaricação). Isto porque, " nessa linha existe copiosa jurisprudência'',
dando conta de que " 0 fu ft o atinge a con sum ação no m om ento em que 0
objeto m aterial é retirado da esfera de posse e dispon ibilidade do sujeito

i / Ramos Filho ch am a a at en ção para o fato de cjue boa p a rte da magistr atura
brasileira ainda d efen d e que, a pen as n p iica n do o q u e diz a lei, o Ju iz " n ã o teria
re sp o n sa b ilid a d e " , "n ão teria cu lp a ", co m tod as as i m p lica çõ e s psica n a líticas que
tal e xp ressão possa possuir. Boa part e das elites r e tró g ra d a s b r a sile ir a s ainda tem
ne st e parad ig m a de juiz "lib era l" (n ão por sua po stu ra po lítica, m as po rqu e
co eren te co m o ca pitalism o de corte liberal) seu ideal, até p o r q u e estan do o
p a rla m e n to d o m in a d o pelas classes d o m in a n t e s , há q u e se im p o r regras rígidas
aos m ag is tr a d o s fixando-os o m ais possív el à lite r a lid a d e d as leis. S etores dessas
ch ies , ain da não sa tisfeitas, estão d efen d en d o qu e e s sú m u la s d os T rib u n ais S u periores
sejnin "vinciiJnntcs" das decisões dos in feriores g ra u s de. ju risd ição, com 0 m esm o objetivo
d e con trolar a h erm en êu tica, sem pre n 0 in teresse da m an u ten ção do s ta tu f epio, ou sejn, dc
acord o com os in teresses das cnuindus dominantes. C fe. R a m o s Filh o, W ilson. Direito
p ó s - m o d e m o : caos criativo e neolib eralism o. tn: D ireito e n eolib eralism o. Fdemeutos
p ara 1imn leitu ra interdiscíplinm -. M arqu e s Filho, A g o s ti n h o R a m a l h o ei nlli. C u riti­
ba, Edibej, 1996.

4 2 LENIO LUIZ STRECK


p a s s iv o , ingressando na liv re disp on ibilid ad e do autor, a in d a qu e este não
obtenha a posse tranqüila.48
Paradoxos como estes deveriam colocar em xeq u e a dogmática
jurídica, chamando a aten ção dos ju ristas para a crise. Porém,
envolvidos no interior cio sentido com u m teórico, não dão conta
dos paradoxos, até porque, com o um mil o que só o é p â u i q >" nt nele
acredita - também o p aradoxo só é " ç a r a d o x , p a r a quem íe<, to (o<« 1 1 -
prcen sã 0 --de sua ^xistêncitú E evidente que a form ação desse sentido
com um teórico tem uma relação direta com o processo de aprendiza­
gem nas escolas de Direito. C om o está o ensino jurídico no país? O
relatório do Conselho N acional de Desenvolvim ento Científico e
Tecnológico-CNPq, do já lo ngínquo ano de 1986, citado por Paria,
acentuava que as faculdades de Direito funcionam com o meros
centros de transmissão do con h ecim en to jurídico oficial, e não
propriamente como centros de p rodução do con h ecim en to científi­
co. Neste sentido, a pesquisa nas faculdades de Direito está condi­
cionada a reproduzir a /'sabedoria" codificada e a conviver
"respeitosam ente" com as instituições que aplicam (e interpretam)
o Direito positivo, O ala de códigos, e o aluno aprendo
(quando aprende) em ista razão, somada ao despreparo
m etodológico dos doc . .... , rnhecim ento ju ríd ico tradicional ó
um conhecimento dogm ático, e suas referências de verdade são
ideológicas, e não m etodológicas), explica porque a pesquisa ju rídi­
ca nas faculdades de Direito, na grad u ação e na pós-graduação, é
exclusivamente bibliográfica, com o exclusivam ente bibliográfica e
legalista é a jurisprudência de nossos próprios tribunais. Os juizes
mais citam a doutrina consagrada que a sua própria jurisprudência
(existem tribunais que em Direito A dm inistrativo trabalham com
um único doutrinador e em Direito Com ercial, por exem plo, avali-
sam suas decisões em autores, dois ou três) que, de m odo predom i­
nante, escreveram seus trabalhos logo após a Segunda Guerra
Mundial. E os professores falam m ais de sua prática forense do que
em doutrinas e da jurisprudência dos tribunais. O casuísm o didáti­
co é a regra do expediente das salas do aula dos cursos de Direito, e
o pragmatismo positivista, o carim bo do cotidiano das decisões. Os-
juizes decidem eOm o s que doutrinam; os professores falam de sua
convivência casuística c o m os que, decidem; os que doutrinam não
reconhecem as decisões. Este é o trágico e paradoxal-círculo vicioso
da "pesquisa" jurídica tradicional: alienada dos processos l e g i s l a ti­
4S C o n s u lta r J T A C rim S P 7p/ 423 c 8 1 / 3 4 8 , tipud J E S U S , D a m á s i o b . de. C ódigo
P em d Anotada. São Paulo, S a r a iv a , 1993, p. 462.

TRIBU N A L DC) JÚRI 43


vos (debates parlamentares, quando hou ve, a outra tragédia do
autoritarismo), desconhece o fundam ento de interesse das leis;
alienada das decisões continuadas dos tribunais, desconhece os
resíduos dos problem as e do desespero forense do h om em ; alienada
da verificação empírica, desconhece as inclinações e tendências da
sociedade brasileira m oderna49. Será que, de tá para cá, ocorreram
m udanças sign ificativ as?
Leonel Severo da R och a50 chama a atenção para outros aspec­
tos relevantes da crise do ensino jurídico: "A s faculdades-de Direito,
por sua parte, estão duplamente- em crise: por um lado, devido ao
fato de não produzirem uma dogmática jurídica dotada de uma
técnica atualizada perante as novas dem andas do capitalism o tar­
dio; de outro , por não terem., uma efetiva funçâo social, notadam en-
te-em relação aos segm entos -marginalizados da população. Deste
modo, muito mais do que uma crise da "ciência do D ireito", há crise
na reprodução legítima da dogmática jurídica que não consegue
justificar a sua ideologia de "bem co m u m " d evido à ausência de
críticas mais efetivas à racionalidade ju rídicos e à form ação dos
juristas".
Não surpreende, portanto, que-^té há poucos anos, alguns
Tribunais, avalizados por renornados penalistas pátrios, ainda sus­
tentavam, por exem plo, que o marido não podia ser sujeito ativo de
estupro cometido contra a esposa, por "lhe caber o exercício regular
de um direito...". Seguindo essa linha, alguns tribunais b rin d avam a
comunidade jurídica com decisões do tipo "A cópula intra m atrim o-
nium é dever recíproco dos cônjuges e aquele que usa de força física
contra o outro, a quem não socorre recusa razoável (verbi g r a tia,
moléstia, inclusive venérea, ou cópula contra a n atureza), tem p or si
a excludente da crim inalidade prevista no C ódigo Penal - exercício
regular de um direito" (RT 461-444).
Julgados como esse se em basavam em doutrina d ores como
Nelson H ungria51, para quem "o marido violentador, salvo excesso
inescusável, ficará isento até m esm o da pena correspondente à
violência física em si m esm a". Não se olvide que o assim d en o m in a­
do "direito" à conjunção carnal é eu fem isticam ente referido pelo
Código Civil, na medida em que, no artigo 231, II, aponta como
49 Ver, para tanto, Faria, J o s é E d u a r d o . /I reform a do en sin o ju ríd ic o . P o rt o A legre ,
Fabris, 1987, p. 34.
50 Cfe. R o ch a, Leonel Se vero. E p istem olog ia ju ríd ic a e D em ocracia. S ã o L eo p o ld o ,
U N1SIN OS, 1999.
51 Hu ngria, Nelson. C om en tários ao C ódigo Penal. Rio de Ja neiro , Forense, 1959, p. 126.

44 LENIO LUIZ STRECK


dever dos cônjuges a "vida em com u m , no dom icílio conjugal". É
nesse dever que se "encontra in clu íd o", con soan te Sílvio Rodri­
gues52, o de m anter relacionam ento carnal. Tal tese civílista pode ter
levado Dam ásio de Jesu s53, expoente da doutrina penal, a um
equívoco, eis que, ao com entar o artigo 213 do C ód igo Penal, assim
se pronuncia: "(A mulher) não perde o direito de dispor de seu
corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato, desd e que tal negativa não
se revista d e caráter m esquinho. Assim , sem pre que a m ulher não
consentir na conjunção carnal e o m arido a obrigar ao ato, com
violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime
de estupro, desde qu e ela tenha justa causa para a negativa". Deve-se
frisar que, aiualm ente, os tribunais e a própria doutrina já assim ila­
ram conceitos mais m odernos a respeito do tem a, entendendo que,
em verdade, o marido que força a esposa à prática sexual não está
exercitando um direito, e sim, abusando de um direito...

2.5. O form alism o do p e jjsa m e n to d ogm á tico do D ireito e a


d ificu ld ad e para a com p reen são da co m p lex id a d e dos
fen ô m en o s sociais

Os exem plos anteriormente citados servem para ilustrar a


histórica dificuldade da dogmática jurídica em lidar com os fenô­
menos sociais. Vários fatores tiveram e têm influência nessa proble­
mática. C om o muito bem diz Ferraz Jr., "é preciso reconhecer que,
nos dias atuais, quando se fala em Ciência do Direito, no sentido do
estudo que se processa nas Faculdades de Direito, há uma tendência
em identificá-la com um tipo de produção técnica, destinada apenas
a atender às necessidades do profissional (o juiz, o promotor, o
advogado) no desem penho imediato de suas funções. Nri verdade,
nos últim os cem anos, o jurista tefinco, pela sua fo rm a çã o universitária, fo i
sen d trco n d tm d o ^ es s» tipo de especialização, fech a d a e formalista'"^4.
N esse sentido, é possível dizer que se estabeleceu-no país uma
/"cultura" jurídica stan dard, dentro da qual o jurista lato seiisu vai
/ trabalhar no seu dia-a-día com soluções e conceitos lexicográfícos,
| ' recheando, desse modo, suas petições, pareceres e sentenças com
| ementas jurisprudenciais que são citadas, no mais das vezes, de
^ forma descontextualizada. Para tanto, os manuais jurídicos põem à
52 y er R o d r ig u e s , Sílvio. D ireito C ivil. São P a ulo, S araiv a, 1979, p. 126.
53 Cfe. Jesu s, D am á sio E. de. C ó d ig o Pennl C om en tado, op. cit., p. 605. (grifei)
54 Cfe. F erraz Jr. In trod u ção no estu d o do d ire ito , op. cit, p. 49.

TRIBUN AL DO JÚRI 4 5
disposição da comunidade jurídica uma coletânea d e "prcts-à-porter
significativos", representados por citações de resum os de ementas,
normalmente uma a favor e outra contra d eterm inad a tese. Assim,
por exemplo, sobre'se ligação direta para faz er mu veículo funcionar
c o n s t it u i- s e nu não em fu rto qualificado (art, 155, § 4<}, III) podem ser
encontradas duas posições: uma no sentido de que o fu rto será
sim ples, e a outra no sentido de que será qualificado,.. Para aferição do
conceito de mulher honesta de que trata o artigo 217 do Código
Penal, discute-se, no âmbito da dogmática penal, se m oça de dezessete
anos que trabalha fora é ou não ingênua. Para tanto, são "colo cad as" à
disposição do usuário duas posições: um a no sentido de que a moça é
ingênua (RT 524/338) e outra de que não é ingênua... (RJTJSP 50/365).
A jurisprudência, porém, já decidiu que a vítim a que freq ü en ta bailes
e dorm e fo r a de casa não é ingênua c inexperiente (E TJM T , out, 1986, p.
254), e que, para a configuração do crime de sedução, a vítima deve
ser virgem e casta (RT 543/350). Descobre-se, tam bém , que chave fa lsa
é um instrum ento, sob a form a de chave ou não, que se destina a abrir
fech ad u ras. Aliás, sobre esse tema - chave falsa - arm ou-se na
doutrina e na jim ; .i íênoia uma discussão tão ferrenha, que o
Supremo Tríbun; -al teve que intervir, decidindo que a chave
verdadeira, reíirad le estava guardada ou escondida, n ã o pode ser
considerada chave falsa...
Com um pouco de atenção e acuidade, pode«-.se*.per.ceber~que
grande parte das sentenças, pareceres, petições e acórdãõs são
resolvidos através de citações cio tipo "Nessa linha, a jurisprudência é
pacífica (e seguem-se várias citações padronizadas de núm eros de
RTs, RTJs etc.), ou ]á decidiu o Tribunal tal que legítim a defesa não se
m ede nnlim etricam ente (RT 604/327), ou ainda que abraço configura o
crim e de atentado violento ao pudor, cuja pena - ressalte-se, varia de seis
a dez anos de reclusão (RT 567/293; R j J J S P 81/351) (sic). São citados,
no mais das vezes, tão-somente os ementários, produtos, em expres­
sivo número, de outros ementários. Desse.-.modo, a dogmática
jurídica, enquanto reprodutora de uma cultura estandardizada,
torna-se refém de um pensam ento m etafísico, esqu ecend o-se de um dos
teoremas fundamentais da hermenêutica, que é a diferença ontoló-
gica55. ■ ..H
Com esse._iipo de procedimento, são ignorados o contexto
histórico e social no qual estão inseridos os atores ju rídicos (acusa­
do, vítima, juiz, promotor, advogado, etc.), bem com o não se indaga
55 So b r e a diferen ça on tológica e as co n se q ü ê n cia s d e sse " e s q u e c i m e n t o " , ver
S tre ck , Hcrmenêuiicn Jurídica, op, cit., e m especia l o p o sfácio .

4 6 LENIO LUIZ STRECK


(e tampouco se pesquisa) a circunstância da qual em ergiu a ementa,
jurisprudencial utilizada. Afinal de contas, se "a ju rispru dên cia
torrencialm ente vem decidin do qu e...", ou "a dou trin a pacificam en te
entende que...", o que resta fazer?
Conseqüência disso é que o processo cfe interpretação da l u
pas^a a ;,s:r um jogo de ca ifa s mnu a tia . \mda se acredita na lu <
da eornade do le^ish.dor. do e.p íri. ' , o /« rís/ dor, da vontade da 1 < ;
Aliás, de que "legislador" talam os com entadores? Santiago Nino,
citado por Ferraz Jr., ironiza as "p ro p ried a d es que caracterizam o
legislador racional", uma vez q u e " e le " é uma figu ra sin gu lar, não
obstante os colegiados, etc.; é p erm an en te, pois não desaparece com
a passagem do tempo; é ú n ico, com o se todo o ordenam ento
obedecesse a uma única vontade; é con scien te, porque conhece todas
as normas que emana; é fin alista, pois tem sempre uma intenção; é
oniscien te, pois nada lhe escapa, sejam eventos passad os, futuros ou
presentes; é onipotente, porque suas n orm as v igem até que ele
m esm o as substitua; é ju sto , p ois jam ais quer uma injustiça; é
coerente, ainda que se contradiga na prática; é oníconiprecnsivo, pois o
ordenamento tudo regula, explícita ou implicitamente; é econôm ico, ou
seja, nunca é redundante; é operativo, pois todas as normas íêm
aplicabilidade, não havendo n orm as nem palavras inúteis;- e, por
último, o legislador é preciso, p ois apesar de se valer de palavras da
linguagem natural, vagas e am bígu as, sem pre lhes confere um
sentido rigorosamente técnico...56 É de sé perguntar: pode alguém , ainda,
acreditar em tais "propriedades" ou "características" do "legislador"?
Lamentavelmente, parece que a resposta é afirmativa. Há, na
verdade, um conjunto de cren ças e práticas que, m ascaradas e
ocultadas pela communis opinio d ocioru m , propiciam que os juristas
conheçam de modo confortável e acrítico o significado das palavras,
das categorias e das próprias atividades jurídicas - o que faz do~
exercício de sua profissão, co m o muito bem diz Pierre Bourdieu,
um mero habitus, ou seja, um modo rotinizado, banalizado e
trivializado de compreender, ju lg a r e agir com relação aos proWe-
mas jurídicos, e converte o seu saber profissional numa espécie de
"capital simbólico", isto é, num a "riq u e z a " reprodutiva a partir de
uma intrincada combinatória entre conhecim ento, prestígio, reputa­
ção, autoridade e graus acad êm ico s57.
Assim , pode-se dizer, com G u ib ou rg, que o Direito é a discipli­
na, na qual a autoridade ainda conserva uma parte substancial de
56 Cfe. F erraz Jr. Introdução ao E stu d o do D ireito, op . d t . , p. 254 e 255.
57 V er F aria, José Eduardo. Ju stiça e. c o n flito , op. d t ., p. 91.

TRIBU N A L D O JÚRI 47
seu prestígio. Desde antigamente, continua o autor, os ju ristas têm
considerado a autoridade dos estudiosos (quer dizer, deles p ró ­
prios) como um elem ento fundamental para conhecer o direito, até
o ponto que é comum considerar a doutrina dos autores com o
"fontes do direito", junto à lei e à jurisprudência, N os países de
direito codificado, a doutrina já não tem, com o fonte, a importância
que teve em outras épocas, porém igualm ente as alusões a tal ou
qual autor são com uns, tanto nos textos dos advogados, com o nas
sentenças judiciais58. Isto permite, na arguta observação de Alf
Ross59 que os autores de textos ju ríd icas fa ça m política ju ríd ica encoberta,
no apresentar como m eras descrições do direito positivo suas interpretações
pessoais baseadas em valorações. Tais interpretações, com plem enta,
são usadas logo por advogados, juizes e prom otores com o argu ­
mentos retóricos em favor da solução jurídica para o caso em que
atuam. Nesse sentido, alerta Guibourg, asign ar dem asiada ím portau -
cia a la autoridad en m atéria cien tífica o filo só fica engendra esiancarnienio
y term ina m atando al conocim iento.
É relevante frisar, destarte, que toda esta problemática se forja
no interior do que se pode chamar de estnblishm eni ju rídico, que
atua de forma difusa, b uscan d o uma espécie de "un iform ização de
sentido'-', que, segundo Bonrdieu e Passcron60 tem uma relação
direta com um fator norm ativo de poder, o potler de violência
sim bólica. Trata-se do pod er capaz de im por significações com o
legítimas, dissim ulando as relações de força que estão no funda­
mento da própria força. Não nos en gan em os quanto ao sentido
deste poder, alerta Ferraz Jr. Segundo ele, não se trata de coação,
pois pelo poder de violên cia sim bólica o em issor não co-age, isto é, não se
su bstitu í ao outro. Q uem age é o receptor. Poder aqui é controle. Para
que haja controle, é preciso que o receptor conserve as suas
possibilidades de ação, mas aja conform e o sentido, isto é , o
esquema de ação do em issor. Por isso, ao controlar, o em issor não
elimina as alternativas de ação do receptor, mas as neutraliza.
Assim, conclui o ju sfilósofo paulista, controlar é neutralizar, fa z e r com
que, em bora conservadas com o possíveis, certas alternativas não sejam
levadas em con sideração61.
Cfe. G u ib o u r g , R icard o A. ei nlti. tntroáucción rã co n o cim ien to ju ríd ico. B uenos
Aires, Ed. A strea, 1984, p. 147.
-’9 Cfe. Ross, Alf, S obre el d erech o y ln ju stic ia . B u en o s A ires, E u d e b a , 1963, p. 45.
60 Bourdieu , P ie rre e P assero n , Jean C la u d e. A rep ro d u çã o: elem en tos pnrn u m a teoria
do sistem a de en sin o. São P a u lo , E d. F ra n cisco A lv es, 1 9 75 , p . 1 9 -2 4 .
61 Cfe. F erraz Jr, In trod u ção a o es tu d o d o D ireito, op. cit., p. 251.

48 LENIO LUIZ STRBCK


O resultado é o aparecim ento de um arbitrário juridicam ente
p revalecen fe62, traduzido através da busca do "c o rre to e fiel sentido
da lei". Daí a força das assim d enom inad as "jurisprud ên cias dom i­
nantes" e as famosas "correntes doutrinárias m a n a n c io sa s "63. Desse
m odo, toda vez que surge uma nova lei, os o p era d ores do Direito,
inseridos nesse habitus tão bem definido por Bourdieu - se tornam
órfãos científicos64, esperando que o processo herm enêutico-dog-
m áiico lhes aponte o (correto) cam inho, dizendo para eles o que é que
11 lei diz (ou "quis dizer") ...
D e um trabalho de um aluno de p ós-grad u ação na Faculdade
de Direito da USP, do lo ngínquo ano de 1981, extrai-se a seguinte
denúncia: "O ensino do Direito com o está posto favorece o im obilis­
mo de alunos e professores, N o esforço de ren ov ação, uns atingem
o grau de doutrinadores e o prestígio da cadeira universitária. Os
outros, além do mítico título de 'doutor', ob têm a habilitação
profissional que lhes perm ite viver de um trabalho não-braçal
(w hite collar). A tarefa do ensino para o aluno é cum prida nestes
62 E x p res sã o a d a p ta d a de F erraz Jr, op. c it, qu e fala na f o r m a ç ã o de u m arb itrário
socín 1m e n te pre va 1e c e n te .
63 So b r e o a ssun to , co n su lta r S tre ck , Len io Luiz, S ú im ü n s no iiirrito brasileiro:
eficácia, poticr e fu n ção. 2 “ ed. Porto A leg re, Liv rari a d o A d v o g a d o , 1998, on de é
den unci ado o caráter autoritário das sú m u las e das assim c h a m a d a s "jurisprudências
dom inantes", co nsideradas co mo típicas manife staçõ es d e discu rs os m onológ icos
que, e n q u a n t o co n stru çõ es da d o g m á t i c a j u r í d i c a , v i s a m a estab iliz ar/ co n tro -
ia r/ (re)d e íin ir os co nflitos q u e c h e g a m a té o j u d ic iá r io .
64 N o interior d e sse h ab itu s, e n g e n d r a -s e um a e s p é c ie d e " s í n d r o m e de A b d u la",
que faz co m q u e a e xpressiv a m aio ri a d os ju ris ta s não se d ê co n ta d e su a força e
de seu p apel no pro cess o de c o n s t r u ç ã o do d is c u rs o ju r í d i c o . M e ta fo rica m e n te ,
essa " s í n d r o m e " p o d e ser explicad a a partir d e u m c o n t o d e fta lo Calvino
(re tirado d a ob ra de Carlo s C árcova , D ireito, p o lític a e m a g istr a tu r a . S ã o P a ulo, LTr,
1986), Pela histó ri a, Alá d itava o C o r ã o para M a o p í C q u e , p o r su a vez, ditava para
A bd u la, o escrivão. E m u m d e te r m i n a d o m o m e n t o , M a o m é d eix o u um a frase
in terrom p id a . In stin tiv am en te , o e s c r i v ã o A b d u la s u g e r i u - l h e a co n clu s ão. Dis­
traído, M a o m é aceitou co m o p a la vra d iv in a o que d is sera A b d u la . Este fato
e scand a lizou o esc ri vão, q u e a b a n d o n o u o p ro feta e p e r d e u a fé. A b d u la nã o era
d igno de falar em n o m e de Alá. N ã o há e x a g e r o em fa z e r u m a a nalo g ia desta
história co m o qu e ocorre no co ti d i a n o d as prá tica s ju ríd ica s. A ssim co m o o
p e r so n a g e m A b d u la nã o tinha c o n sc iê n cia de seu p o d e r (e d e seu papel), os
o p e rad o res ju ríd icos t a m b é m n ã o s a b e m d e su a força. E m su a im en sa m aioria,
p rision eiros das arm ad ilh a s e d os g rilh õ e s en g en d ra d o s p elo ca m p o ju ríd ic o , sofrem dessa
"sín drom e d e A bd u la". C o n s id e ra m q u e sua m is s ã o e seu l a b o r é o de - apen a s -
re p rod uzir os s en tid o s p re v ia m e n t e d a d o s /a d ju d ic a d o s /a trib u íd o s p o r aq u eles
que têm o sk ep tron , é diz er , a fala a u to riz a d a . Nãa se co n sid era m d ig n os-d e-d izcr-o-
verbo. P erd e ra m a fé em si m e sm o s. R e s i g n a d o s , e s p e ra m q u e o p ro ce ss o h e r m e ­
nêutico lhes a p o n te o c a m in h o -d a - v e rd a d e , ou seja, a " c o r r e t a interpreta ção da
lei"! E nfim , e sp e ra m a fala -fala da, a re v e la çã o -d a -v e rd a d e !

TRIBUNAL DO JÚRI 4 9
termos: aprendido o abc do Processo e do Direito Civil, já está
habilitado a viver de inventários e cobranças sem m aio r indagação.
[...] É claro que este operário anônim o do Direito é necessário, mas
por que deve ser inconsciente? [,..] Sua atividade passa a ser
meramente formai, sem- influência no processo cie tom ada de
decisão e no planejamento. O jurista farin ado par escolas, convém
lem brar, não será apenas advogado: será tam bém o ju iz qu e fará parte,
afinal de contas, de um dos poderes políticos do estado. A alienação do
jurista,.deste modo, colabora também na supressão das garantias de-
direitos, E que o centro de equilíbrio social (ou de legitimação) é
colocado na eficiência, não no bem do hom em . C om eça-se a falar
num bem comum que só existe nas estatísticas dos planejadores,
mas que a pobreza dos centros urbanos desm ente. E, em nome
desse bem comum, alcançável pela eficiência, sacrificam -se alguns
valores que talvez não fosse inútil p re serv a r"65. Repito a pergunta
feita anteriormente: o que m udou de lá para cã?
Apesar de tudo isso, o Direito, instrum entalizado p elo discurso
dogrnálico/merafísico/objetifjcante, consegue (ainda) aparecer, aos
olhos do usuário/operador do Direito, como, ao m esm o tempo,
seguro, justo, abrangente, sem fissuras, e, acima de tudo, técnico e
funcional. Em contrapartida, o preço que se paga é alto, uma vez
que ingressamos, assim "num universo de silêncio: um universo do
texto, do texto que sabe tudo, que diz tudo, que faz as perguntas e
dá as respostas. Nestes termos, conclui Legendre, os juristas fazem
um trabalho doutorai no sentido escolástico da palavra. Em outras
palavras, fazendo seu trabalho, eles não fa z em o D ireito; apenas
eniretêm o m istério divino do D ireito, ou seja, o prin cípio de uma
autoridade eterna fo r a do tempo e m istificante, con form e as exigências dos
m ecanism os de controle burocrático num. contexto cen tralista"66.
C om o estas reflexões têm o fito de fazer uma crítica ao
imaginário gnosiológico dos juristas, que está perm eado pelo pen­
samento dogmático do Direito, Ferraz jr. foi tão feliz na abordagem
dessa questão, que é imprescindível transcrevê-lo:
a Dogmática é um pensam ento tecnológico e que, nestes
termos, está às voltas com a questão da decidibilidade. No entanto,
isto não quer dizer que o verdadeiro esteja daí totalm ente excluído.
O que tentamos demonstrar é que o discurso d ogm ático não é um
discurso meramente informativo, no sentido de que o emissor
limita-se a comunicar uma informação sem se p reocu p ar com o
65 C o nsultar Faria, J o sé E d u a r d o . /I reforma do en sin o ju ríd ico , op. cit, p. 37,
66 Cfe. F erraz Jr., F u n ção Socinl da D ogin áiica ju ríd ica , op. cit, p. 178.

5 0 LENIO LUIZ STRECK


receptor, mas sim um discurso em in en tem en te persuasivo, no
sentido de que o emissor pretende que sua in form ação seja acredi­
tada pelo receptor. Visa, pois, a d esp erta r uma atitude de crença.
Trata-se, então, de um discurso que intenta m otivar condutas,
embora não se confunda com discursos prescritivos, onde, aí sim, os
qualificativos verdadeiro e falso c arecem totalmente de sentido. A
verdade entra no discurso persuasivo com o um instrum ento de
m otivação e não como pura inform ação. Mas, ao pôr-se a serviço da
motivação, ela corre o risco de en co b rim en to ideológico, que passa,
então, a dom iná-la"67.
As discrepâncias entre os m eca n ism o s legais de proteção da
vida, da propriedade privada e de ou tros bens já foram sucintam en­
te esboçadas. Adiante, ver-se-á com o a D o gm ática Jurídica trata da
vida e da morte e como, através da con stru ção de uma espécie de
"consenso com unicativo", consegue d em on stra r persuasi vãmente à
sociedade que o Direito, mediante m ecan ism o s de conteúdo abstra­
to e universaUzante (fórmulas do tipo todos silo iguais perante a lei,
princípio da im parcialidade, da n eu tralid ad e, etc.), "rep re sen ta " o con­
senso social.
Afinal, é na lei e no saber do Direito que en con tram os o mito de
uma sociedade sem fraturas, na feliz o b serv açã o de W arat68, E desse
m odo que se simboliza a petrifieação das relações sociais e a
dissolução jurisdicista dos conflitos. O m ito de uma sociedade coesa
permite, através do Direito, na acepção do jusfilósofo brasileiro-ar-
gentino, a supressão simbólica de au tonom ia dos sujeitos.

S/ Id em , p. 182.
68 Cfe. W a ra t, Lu is Alberto. El j ardin de los s e n d e r o s q u e se b ifu rcan . In R evista
C on trn d og m áticas 4/5. F IS C /A L M E D , v . 2, 1985, p. 75.

TRIBU N A L DO JÚRI 5 1
3 . Vida e morte no Direito Penal. A dogmática
jurídica e o bem jurídico sob a proteção da lei

3.1. Vida e morte nos C ód igos e os có d ig o s da vida e da morte

Pode parecer estranho, mas nem todo o ato de tirar a vida de


alguém estã inserido no Título "dos crimes contra a pessoa". O
crime de latrocínio, previsto no artigo 157 do C ódigo Penal, ocorre
quando o autor do roubo, ao em pregar violência contra a vítima,
vem a matá-la. A sanção, prevista no parágrafo terceiro do artigo 157,
varia de quinze a trinta anos, sem prejuízo cia multa. Este delito, ao
lado da extorsão mediante seqüestro com morte (artigo 159, parágrafo
terceiro), cuja pena varia de vinte a trinta anos e multa, também
previstos no Título "dos crimes contra o p a trim ô n io", constituem os
delitos que recebem a maior apenação em nosso Código.
Percebe-se, então, que, não obstante am bos os delitos - latrocí­
nio e seqüestro - tratarem da morte (ou da vida), são colocados pelo
legislador como sendo delitos praticados contra o patrimônio. Ou
seja, para a dogmática jurídica, o bem ju ríd ico ofendido de forma
preponderante , nesses casos, é o patrim ônio...69 D e frisar, ainda,
1,9 A lg u n s e x e m p lo s m o stra m b e m os p a r a d o x o s do " t r a t a m e n t o " que o C ó d ig o
Penal dá aos " b e n s j u ríd ic o s " : A d u ltera r n ú m ero de ch a ssi é c rim e p u n id o com 3 a 6
an os d e reclu são e m ulta, p en a m ín im a m aior q u e a d e , p o r ex em p lo: a) lesão corp oral
g rav e em qu e a vítim a p erd e, p o r exem plo, um d os olhos. N es te caso a p u n içã o é d e 1 a 5
an os d e reclu são; b) in stig ação ao su icíd io, se v ier a o correr a m orte. N es te caso, a pen a é
de 2 a 6 an os d e reclu são; c) in fn n ticídio é ca stig a d o com 2 a 6 an os d e d eten ção. M ais:
H om icídio d oloso sim ples t p u n id o d e 6 a 20 a n o s d e reclu são, p en a m ín im a in ferior a de,
por ex em p lo: a) roubo com lesão corp oral g ra v e cu lp osa , em q u e a p en a é d e 7 a 15 an os de
reclu são; b) ex torsão m edian te seq ü estro sim p les, em q u e a p en a é a d e 8 a 15 an os de
reclusão. Se este crim e d u rar m ais de 24 horns, a p en a su b ir á p ara 12 a 20 an os de
reclusão, ig u al à do hom icídio q u alifica d o (co n sid era d o h ed io n d o ). A in d a: H om icídio
sim ples con tra crian ça tem pen a m ín im a de 8 an os e m áxim a d e 26 artos e 6 m eses de
p risão. E ssa p en a m ínim a é in ferior â do a ten ta d o v iolen to ao p u d o r c o n tra cria n ça , q u e é
d e 9 an os d e reclu são. A qu i, a pen a m áxim a é d e 15 anos. Cfe. N u n e s , E u nice. R e fo rm a

TRIBUNAL DO JÚRI 53
que nenhum dos dois crimes é da com petência do Tribunal do Júri.
E mais: enquanto o seqüestro é considerado crim e hediondo, o
homicídio (simples) não o é.
Os crimes que são da com petência do Tribunal do Júri são os
constantes no Título "dos crimes contra a pessoa", mnis especifica­
mente no Capítulo "dos crimes contra a vida". Nesse Capítulo, uma
das subdivisões do Título I, estão inseridos: o hom icídio simples,
com penas que variam entre seis e vinte anos; o hom icídio qualifica­
do, com penas entre doze e trinta anos; induzim ento, instigação ou
auxílio ao suicídio, com penas entre dois e seis anos; o infantioídio,
sancionado entre dois e seis anos; os vários tipos de aborto; e a
tentativa de homicídio.
Existem duas maneiras de com eter um delito: de torrnn dolosa
(querer ou assumir o risco de produzir o resultado) e de forma
culposa (praticar o delito por im prudência, negligência ou imperí-
cia). Assim, somente irão a julgamento pelo Tribunal do júri os
autores dos crimes citados anteriormente se foram com etidos dolo­
samente. Ao comparar a natureza dos crimes com as respectivas
penas, vè-se - corno ia referido anteriormente - que a quof.tão ene
exsurge é a certe/n r!e que o Código Penai sanciona com mais rigor
os delitos que lerem o direito de propriedade/0 chegando cm
po n tu a l tom a có digo colcha de ret alhos, In: F olha d c S ão P au lo, 2 6 .0 7.97 , .3-2,
VVnlter Cen eviva auxilia na d iscu ssão , ao d iz er q u e a d o sa g e m p u n itiv a d o C ó dig o
Penal é parad oxal. D epois de elenca r os p a ra d o x o s resu ltan tes de vá rio s tipos
penais e as res pectivas pen as, co m e n ta o art. 33, p elo qu al a p en a de reclu sã o
p o d e ser em regim e fechado, qu e é o b rig a tó rio para c o n d e n a ç õ e s su p e r i o r e s a oito
a a o s , e a pena de d eten ção é c u m p r id a em regim e a b e rto ou s e m i - a b e r l o (em
colônia agrícola, casa de alb e r g ad o ou ou tro e s t a b e le c im e n t o a d e q u a d o , con form e
o caso). Assim, "se os rapaz e s que m a tar a m o ín dio (p a ta x ó ) fo re m p u n i d o s com
pena en tre q u atro e oito anos, p o d erão , d esde o prin cíp io, çu m p ri-la e m regim e
sem i-a bert o. A [ítulo de c u rio sid a d e c o m p a r a tiv a , co m p leto ; a big am ia é a penada
com reclu são de dois a seis an os, e o ro u b o , m ed ia n te o u so de a rm a de fog o, mas
sem cau sar d ano à vítima, resulta em rec lu sã o de q u atro a dez a n o s " . S arrem ata o
professor paulista: "O s e x e m p lo s d e m o n st ra m a im p o rtâ n c ia de re p e n sa r a dosi-
metria pena! br asileira". In: L im ites da ileg alid ad e. Folha de S ão P au lo , 6 .9 .9 7 , p. 3-2.
/0 A p aríe do C ódigo Penal B rasileiro que regu la os d iv erso s crim es e as
respectiv as penas vigora d esde 1941. D o e x a m e dos d iv e r so s tipos pen ais, pode-se
perceber n itid am en te a g ra nde p re o cu p a çã o d o legislad o r em p ro te g e r m ais a
p ro p ried a d e p rivad a do que a sa ú d e e a in teg rid ad e física d o cid ad ão . Esse d ad o
se torna relevante na m edida em que v iv em o s em uma s o c i e d a d e e m que a
pre ocu p a çã o com a p ro p ried ad e pri vada a s s u m e p ro p o r ç õ e s sig n ificativ as. Ass im,
por exem p lo, o ato de a lg ué m furtar um a bo lsa, um reló gio ou uma cam is a , será
a p en ad o , de acord o com o d is posto no art igo 155 do C ó d ig o P enai, com unia pena
que varia de um a qu atr o anos de re c lu são e m ulia. P a ra d o x a l m e n t e , se o furto de
um b e m móvel rec ebe do listado uma p u n ição tão d rástica, o m esm o não se pode

5 4 LENIO LUIZ STRECK


alguns dispositivos a verdadeiros extrem os, co m o os exem plos já
citados (omissão de socorro à pessoa inválida versu s em issão de
cheques sem fundos), n n própria com paração entre o latrocínio e o

d iz e r no tocan te à in teg rid ad e física d o cid a d ã o , C o m efeito , a o fen sa à in teg rid a­


de corp oral c sa n cion a d a pelo C ó d i g o Penal co m a pena d e Irés m e s e s a um ano
de d ete n çã o, a qual, na prática, d in c i lm e n te u ltrap as sa a seis m e s e s , resultando,
m nte, em su bstituição por m ulia, e m geral não m a is d o q u e a lg um as
d. e reais. Já o ab and on o de nraa crian ça re c é m -n a sc id a , tip if ica d o no
ai do C ód igo Penal, sujeita o in frato r a u m a p e n a q u e v a ria d e seis m eses
a dois ano;.. D esse m odo, a sim p les su b tração de um reló g io é castig a d >
d ob ro do rie,or do que o a b a n d o n o de u m infantes O u tra c o m p a ra ç ã o iní
resulta do co n fro n to do con teú do d o artigo 135, que se e n c o n tr a n o títu k
à "p ericlita ç ã o da vida e da s a ú d e " , co m o d is p o s to no a r t i g o 171, local >
título " d o s crim es contra o p a trim ô n io ". C o m efeito, qu ar d e pre star
ass istê nci a a uma criança a b a n d o n a d a ou e x t ra v ia d a ou i invá lida ou
ferida, será p u n id o com uma pena q ue varia de um a seis rn ieten ção . P.sta
com inação é a u m e n ta d a da m e ta d e se da o m i s s ã o r e s u l t a r ie sa o co rp o r al de
na tu reza g rave e triplicada se resultar a m o rt e da v itim a . P o r o u t r o lado , obter,
para si OU para O l d ......................... : i í . . : í -------------------------- -------------......................................................n .......... m.

ou em itir um clieq ^: t 1 n ' e’ '


rig or oso, unia vea
r e e í m ã o e muita í'P
dc a Pai te pspecial
pois, se for exam inai < ” i i 1 >i í o i o i
Nacional, ver-se-á qui a g t l li n m > i ' o í d u J i m n ! I n 11 d i q m < u uj m
sociedade que as cla^scs diugr i ' i s cli.gi.iain p a ia o Bi isil. C etn l Í l i I o , no u k iJid o
anteprojeto, um roubo qualificado (artigo 167, § 3~) tem a pena m ín im a de seis anos
de reclusão, igual à de um hom icídio doloso (artigo 121). Im agiiic-se um exem plo
concreto trazido por Mnrin Lucin Knran: c agente qu e, du ran te n noite, sim u la estar arm ado,
colocando a m ão por dentro da cam isa, am eaça algu ém e su b trai seu relógio. Para os
claboradores do anteprojeto da Parte Especial do C ódigo P enal, essa con du ta tem o mesmo
d csvalor da conduta de apuem lira a rida dc seu sem elhan te). Vê- se en tã o qu e, se da omissão
de socorro (artigo 135) resulta a morte de um inválido, por e xe m p lo , a pena máxima
será de um ano e oito meses de detenção ou m ulta. Já a em is são de um ch eque sem
fundos poderá ser penalizada com uma sanção de até cinco anos de reclu são e multa.
N ote-se, ainda, nessa linha, a questão atinente ao tipo de tra tam en to que o legislador
deu à multa: enquanto nos delitos inseridos nos títulos relativos à pro teção da vida e
da integridade corporal a m ulta é opcional/ nos títulos relativos à proteção da
propriedade, a pena de multa c aditiva, ou seja, além da pena corporal, o juiz
aplicará, também , a sanção pecu niária.Cab e ressaltar, aind a, q u e a p en a dc m iu sfío ,
com iuada aos delitos contra a propriedade, c bem m ais g ra v e q u e n de d ete n çã o , com in ada
aos crim es con tra a in teg ridade corp oral an terio rm en te a lin h a d o s. Fica b a s ta n t e clara a
intenção do le gis la d or em p r o t e g e r be m m a is a p r o p r i e d a d e p riv a d a cio que a
integ rida d e física dos ci dad ãos, n ã o só no q u e tang e às p e n a s, m a s ta m b é m no
que se relaciona ao tipo de re gim e de c u m p r im e n t o d estas s a n ç õ e s n o s estab eleci­
m en tos carc erários. O b serv e-se , ad e m a is, qu e não é g r a t u i t o o falo de, por
e xem p lo , o crim e de estup ro estar no título d os c rim e s co n t ra os c o s t u m e s , e não
no título dos crim es contra a pessoa, ass im c o m o o l a tr o cín io e s t a r classificado
co m o um d elito contra o p a t rim ô n io , e não co ntra a vida!

TRIBU N A L DO JÚKt 5 5
homicídio, ou, ainda, entre o furto de autom óveis, agora agravado
se o veículo for levado a outro Estado (pena de 3 a 8 anos) e a lesão
dolosa grave que cause, p, ex., perda ou inutilização de m embro
(pena de 2 a 8 anos).
Tudo isso é relevante dem onstrar, na m edida em que - repita-
se - não se pode ignorar o tipo de sociedade em que vige o Código
Penal, e o (modelo) modo de produção de Direito prevaleceu te,
questões que terão significativos desdo bram en tos em termos de
julgam ento pelo Tribunal do Júri, nos quais o pap el das classes sociais,
em bora preponderante, fica r á subsitm ido nas brum as dos sím bolos e dos
rituais produzidos pelos diferentes ag en tes em litígio.

3.2. A teoria do b em ju ríd ic o e a "m is s ã o s e c r e ta " do D ireito


Penal ou de com o "La le y es com o la s e r p i e n te ;
so lo pica a lo s descalzos"

Para entender a problem ática discutida anteriorm ente, é preci­


so entender os mecanismos inform adores e conforinad ores do
conceito material do delito no Direito Penal dogm ático, que, funda­
mentalmente, é refletido pela assim denom inada teoria do bem
jurídico. Para a expressiva maioria dos penalistas pátrios, o fim do
Direito Penal é a defesa dos bens jurídicos (Heleno Fragoso, Aníbal
Bruno, Damásío de Jesus, Magalhães Noronha, entre ou tros). Segundo
Batista71, alguns colocam a defesa de bens ju rídicos com o o meio
em pregado para a defesa da sociedade (Aníbal Bruno e Heleno
Fragoso), entendida eventualmente como combate ao crime (Mirabe-
te); outros autores procuram enfatizar a defesa dos valores sociais que
subjazem nos bens jurídicos (Brito Alves) ou, ainda, o robusteci-
mento na consciência social desses valores (D am ásio de Jesus).
O conceito de bem jurídico seria, assim, a categoria jurídica
utilizada para explicitar os valores sociais protegidos pelo Direito
Penal. O delito passa a ser entendido, então, como a ofensa ou ameaça
a um daqueles valores sociais, ou seja, a ofensa ou a ameaça a um bem
jurídico penalmente tutelado. Resumidamente, bem jurídico, no senti­
do atribuído pela dogmática penal7*, é tudo aquilo que satisfaz uma
71 Ver, a resp eito , Batista, N ilo. In trod u ção crítica no d ire ito p e n a l b rasileiro. R io de
Janeiro , R e v a n , 1990, p. 116.
/2 So bre o a ss u n to , c o n su lta r J esu s , D a m á s i o E. de. D ireito Pe.iwl. S ã o P aulo,
S a r a iv a , 1 99 4 ; F ra g o s o , H e len o . L ições d e D ireito P en al. R io d e J a n e iro , Forense,
1985; H u ng ria , N elso n. C om en tários no C ó d ig o P en al. Rio de J a n e i r o , F o r en se , 1958;
M irab ete, J ulio Fab b rini. M an u al de D ireito P en al. S ã o P a u lo , A tlas , 1 98 0; N o ro n h a ,

56 LENIO LUIZ STRECK


necessidade do hom em, seja esta de natureza material ou imaterial.
O bem ou interesse jurídico constitui o objeto da proteção outorgada
pela norma pena). Necessário frisar, desse modo, que o reconhecimen­
to normativo pela dogmática jurídico-penal é usado por esta como
critério classificador de relevante importância, tanto na esfera legisla­
tiva, como nas esferas doutrinárias e jurísprudenciais.
Em decorrência, "num a sociedade dividida em classes, o Direi­
to Penal estará protegendo relações sociais (ou interesses, ou esta­
dos sociais, ou valores) escolhidos pela classe dom inante, ainda
que, graças ao processo ideológico, aparentem certa universalidade
e contribuindo dessa maneira para a reprodução dessas relações
sociais. 'Efeitos sociais não declarados dn pena (não se olvide que a
ideologia age através de um discurso lacunnr) tam bém configuram , nessas
sociedades, uma espécie de 'm issão secreta' do D ireito Penal."73
No Direito Penal brasileiro, a sistemática da parte especial do
Código Penal está fundam entada na consideração dos b en s ju rídi­
cos, nos quais as distintas figuras penais são distribuídas em
conformidade com o bem ju ríd ico protegido, destacado em cada
título. Cada título corresponderá à proteção de um b e m jurídico.
Assim, por exemplo, o Título I do nosso Código Penal refere-se aos
"crim es contra a pessoa", no qual estão incluídos homicídio, inínn-
ticídio, lesão corporal, abo rio, honra, domicílio etc. O Título II, por
outro lado, refere-se aos "crim es contra o p atrim ô nio", em que estão
localizados furto, roubo, latrocínio, dano etc.
E. M agalhães. D ireito P enal. S ã o P aulo, S a r a i v a , 1985. Bitencourt, C e s a r R. Lições de
D ireito P en ai. Porto A legre , Liv rari a d o A d v o g a d o , 1996.
73 Cfe. Batista, op. cit., p, 116. in te r e s s a n t e n o t a r que a s o c i e d a d e e o Estado,
p rin cip alm en te em país e s co m o o Brasil, c ria m as co n d içõ es para o su r g i m e n to de
pobres, m iseráveis, in d ig en tes e m e n d ig o s . C o m o o E sta d o e a p ró p ria so cied a d e
n ã o p o d em a d m itir que são r e s p o n s á v e i s p e lo a p a re c im e n to , por e x e m p l o , dos
m endig os, o legislador criou um a f ó rm u la m á g ic a para re s o lv e r esse p ro b le m a ,
estabele cend o que a m end ic ância é c o n t r a v e n ç ã o pen al, pass ív el de pena de
prisão que varia en tr e 15 dias a 3 mes-és, q u e p o d e r á ser a u m e n ta d a até um terço
se a mendicância for feita de " m o d o v e x a t ó r io , a m e a ç a d o r ou f r a u d u l e n t o " (artigo
6 0 da Lei das C o n trav e n çõ es Penais). P o r o u t r o la do, situa çã o s e m e l h a n te , em bora
invertida, ocorre n o Direito Civil, no q u e se r efere à figura d o p ró d i g o . Só para
referir, o pró digo, até hoje cu r a t e la d o pelo D ireito (art ig os 459 , 4 6 0 e 461 do
Có dig o Civil), é o louco típico d o m e r c a n t i l is m o (a e x p r e ss ã o é d e R ober to
Aguiar) ou seja, a lg u ém que n ã o c o n s e g u e f a ze r seu p a t rim ô n io ter lucro. Isso só
p o d e ser anorm al para o c a p ita lis m o , cuja ideo lo g ia d o m in a n t e se f u n d a no
en te n d im e n to de que seria a c ircu la ç ã o de m e rc a d o ria s co m o fito d e lucro a
origem da riqueza. Pode-se d izer, assim , qu e há u m a relação en tre o m en digo e o
pród ig o: en qu an to o m en d ig o d en u n cia o sistem a (e, p o r isso, é ap en a d o crim in alm en te), o
pród ig o d ecepcion a o sistem a (e, p o r isso, é su je ito à in terd ição - curatela, sen d o im pedido
de g erir os seu s bens). O p ró d ig o vem a ser, assim , o iuntpen da b u rg u esia...

TRIBUNAL DO JÚRI 5 7
Como dito, essa classificação em títulos e capítulos não provém
de uma neutralidade do legislador e m uito m enos de sua (pretensa)
racionalidade. Esse trabalho de classificação em títulos e capítulos é
seletivo, é dizer, optar por castigar/ apenar com m aior ou menor
rigor determinados delitos é 1 1111 trabalho que refletirá o lipo de
sociedade desejada velo "legislador-eu carrcgado-de-fazer-a-lei"71, Alguns
exemplos demonstram isso muito claram ente, com o é o caso do
crime de sonegação fiscal, olhado com extrema benevolência pelo
eslablishm eutl Chega às raias do absurdo saber que, em um país em
que os tributos deveriam ser usados com o meio de distribuição de
riqueza e fator de justiça social, as 460 pessoas mais ricas do Brasil
detêm, juntas, um patrimônio de 26,7 bilhões de dólares, maior que a
soma dos PíBs do Uruguai, do Paraguai e da Bolívia. Ou 6% cio PIB
brasileiro. Selecionando-se os 50 mais ricos deste grupo, descobre-
se que seus patrimônios som am 12 bilhões de dólares. Estes 50 ricos
pagam de imposto de renda apenas 32,5 milhões de dólares. Dados da
Receita dão coala de que, enquanto a classe média paga 7 real de imposto para
cada 10 reais de patrimônio, o clube dos 4f,0 rccollv' w » i ’>üe 1 real para cada
821. 0m> d Os 460 coníribi m * < , . • dem por
apenas" >tal arrecadado 1 <1 > ; u. , ’’ então? O
74 P or q u e certa fo r m a çã o lú stórico -soch il con sid era d ete rm in a d o fa t o com o "crim e"?
G iz le n e N e d er tenta r es p o n d er a es sa q u estã o , d iz e n d o qu e, se não é co rret o
su p o r que a resposta a esta pergunta resolve todas as qu estões relativas à criminali­
dade, não 6 m enos correto afirmar qu e a sua colocação encerra um conjunto de
indicadores e variáveis que permitem u m en fo que mais abrangente e hu manista da
questão. Acrescenta que é a partir da análise dos pro cess os históricos de formações
sociais particulares que po deremos d esen v olv er urna interpretação sobre a questão
criminal e o Direito num enfoque his tórico-so ciológico capaz de d ar conta da
dinâmica social que "m ov im en ta" o Direito. Este enfo que não deve trilhar os
caminhos da busca das "causas socioecon ôm icas" da criminalidade. Seu conteúdo
sociológico não é dado por esta busca, m as pela ca pacidade de se tornar transparente
a luta cie classes. Portanto, antes de procurar os condirfhamentos so cia is e e c o n ô m i­
co s da cr im inalid ad e, é p reciso p o litiz a r a d iscu ssão, no sen tid o de qu e esies con d icion a­
m en tos funAnm na an álise da estru tu ração d e umn dada so cied ad e com n id en tificação dos
d iferen tes ag en tes histú rico-socinis que com p õem sua arq u itetu ra c dn co rrela çã o de forças
so ciais e p olíticas h istoricam en te p resen tes. Por isto, con clu i, é ne cessá r io pensa r o
D ireito não s o m en te com o D ire ito esta ta l; situá-lo c o m o co n ju n to de práticas
po lí ticos-s ociaís e ideológicas; e, s o b r e tu d o , re lacion á -lo à luta de class es, interce­
d en d o e sen do interced ido na e pe la d in â m ica h istó rico -so cial, co lo ca -n o s diante
de um a visão do D ireito e do E stad o c o m o su jeit os a c o n d io n a m e n t o s históricos
q u e são firmados por ag entes em m o v i m e n t o d e n tro de um a f o rm a çã o social
ciada. In: D iscurso ju ríd ico e ordem b u rg u esa. P orto A le g re, F a b r is , 1995, p. 156 e 157.
/3 D a d os da Revista Veja, edição n 8 1.365, de 9.11.94, p. 106 e segs. Para uma visão
mais abrangente e crítica acerca da crim inalid ad e tributária ver, Pinto, Emerson de
Lima, A C rim in alidade E con flm ico-T ribu tária. Porto A leg re, Liv. do A d v o g a d o , 2001.

5 8 LENIO LUIZ STRECK


que dizer sobre isso? O que dizer sobre a descoberta feita no âmbito
de uma CPI do Congresso N acional de que a sonegação de im postos
chega ao montante de 82 bilhões de d ólares? Mais ainda: Estudo
sigiloso (sic) da Receita Federal, obtido pelo jornal O Estado de São
Paulo76, indica que cerca de US$ 490 bilhões - aproxim adam ente 30% do
montante qu e, circula anualmente no m ercado fin an ceiro brasileiro - escapam
da tributação. Esse valor eqüivale a 60% do PIB do País... O valor é
decorrente do contrabando, tráfico de drogas, sonegação de impostos,
caixas dois e corrupção! Parte desse dinheiro é rem etida para
paraísos fiscais, onde é "la v ad a" para retornar legalizada ao Brasil!
Qual a resposta do eslablishin en t para toda essa problemática
(sonegação, etc.)? Resposta pronta, sim p les e "efica z", através da
concessão de um regalo natalino. Explicando: no dia 26 de dezem bro
de 1995, foi sancionada a Lei n° 9.246, pela qual, con soan te o
disposto no art. 34, o pagam ento do tributo ou da contribuição
social, objeto do crime de sonegação, antes do receb im en to da
denúncia, extingue a punibilidade... Vê-se, pois, com o é (bem)
tratado o sonegador e com o é (mal) tratado, p. ex., um ladrão de
bicicleta ou de galinha, para o qual, se devolvida ep on te sua a res,
antes do recebimento da denúncia77, restará, tão-som ente, uma
lb Cie.. O Eslndo dc Sn o Paulo cie 2 1 .0 7 .9 6 , p. A l , A 8 e A9.
" C o m o co n tra p o n to , em d ecis ã o inédita n o s T r i b u n a i s b r a s i l e ir o s , a 2 a C âm a ra
C rim ina l do T rib u n al de A lça da do RS, por m a io ria d e vo to s, j u n t o à q u a l atuo
co m o P r o c u ra d o r de Justiça, a ca to u na ín te g r a p a r e c e r de m in h a a u t o ria , a p lic a n ­
do, de form a garantista, o art. 3 4 da Lei 9 . 2 4 9 e m u m c r i m e d e furt o. N o c a so em
tela, u m jov em foi preso em fla g ran te p o r ter fu r t a d o um a b icicle ta . O fato ocorr eu
na cid a d e de Alvora da. O J u i z de D ireito , C la d e m ir M i s s a g ia , extin g u iu o
p ro cesso, co m b a s e no art. 5 o da C o n s ti t u i ç ã o F e d e r a l e no art. 34 da Lei 9 .2 49. O
M in is tério P úblico interpô s rec u rs o e m s e n t id o e s t r i t o ao T r i b u n a l d e Alçada,
b u s c a n d o a reforma da decisão. A d e c is ã o fic ou a ssim e m e n t a d a : "Proc. n.
2 9 6 0 2 6 7 5 0 - A lv orad a, RS. R E C U R S O EM S E N T ID O E S T R IT O . E X T IN Ç Ã O DA
P U N IB IL ID A D E . T E N T A T IV A DE F U R T O . D ecretad a a ex tin çã o d a p u n ib ilid a d e do
réu com base no art. 5 S, capu t, da C o n stitu içã o F ed eral d e 1 9 8 8 , c a r tig o 34 da L ei 9.249,
dc 26.1 2 .9 5 , por analogia. P rin cíp io da ig u a ld a d e, in sc u lp id o n o art. 5~, ca p u t, da
C o n stitu ição Federal, corretam en te ap lica d o na esp écie. Rei. A lfred o F o e r s tc r. "
Em ou tra decisão, a m esm a 2 a C â m a r a C r im in a l, d e sía vez p o r u n a n im id a d e ,
tendo co m o relator o Juiz A m í il o n B u e n o d e C a r v a lh o , a p lic o u o art. 34 da Lei
9.249 a um caso de estelionato , f ic a n d o o a c ó r d ã o a s s im e m e n t a d o : "E ST E L IO N A ­
TO. Ô N U S DA PRO VA. N o estelion ato, m esm o q u e b ásico, o p a g a m e n to do d an o, antes
do receb im en to da den ú n cia, in ibe a a çã o p en al. O órgão a c u sa d o r d ev e tom ar todas ns
p ro v id ên cias p ossív eis para esp an car as d ú v id a s que. explodnm no d eb a te ju d ic ia l, p en a de.
uno vingar c on d en ação (M agistério d e A frn n io S ilv a Ja rd im ). Lição de Lei lio Luiz Streck:
os b en efícios con ced id os pela L ei P en al nas d elin q ü en tes tributários ( Lei 9 .2 4 9 /9 5 , art. 34)
a lcan çam os d elitos p atrim on iais em q u e n ão ocorra p re ju íz o n em -violência, tudo em
aten ção no p rin cíp io da isonom ia. R ecu rso p ro v id o para ab so lv er o n p elan te."

T R IB U N A L D O JÚRÍ 5 9
diminuição na pena (art. 16 CP). Por que isto? P orque no Brasil têm
leis que são feita s para os que aparecem na R evista C aras e leis que são
feita s para os que aparecem no N otícias Populares...
Vê-se, pois, para quem (e contra quem ) funciona o sistema. O
sistema penal (re)age dc forma seletiva em face da conílituosidade
social. Zaííaroni nos diz que ninguém com pra um apartam ento
impressionado por uma bela m aquete apresentada por uma em pre­
sa notoriamente insolvente. No entanto, concluí o m estre, com p ra­
mos a suposta segurança que o sistema penal nos vende, que c a
em presa de mais notória insolvência estrutural em nossa civiliza­
ção78.De ressaltar que, embora o processo de form ação de uma lei
ou de um código seja, via de regra, bem estudado pelas classes
dominantes/dirigentes, objetivando que a lei apareça aos usuários
com o neutra e coerente, há casos em que esse processo é menos
sutil. Foi o caso da lei que enquadrou o seqüestro com o crime
hediondo, logo após o seqüestro do em presário carioca Rubens
M edína, no ano de 1990. Do processo de om issão no atacado em
relação às extremas injustiças sociais do país, as elites dirigentes
passaram, ao processo de indignação no varejo, uma vez que um de
seus pares foi duramente atingido pela onda de crimes, e exigiram,
im ediatamente, uma lei que m elhor as protegesse. Foram, de
pronto, atendidas. Ivlesmo raciocínio se aplica à transform ação do
hom icídio qualificado em crime hediondo, que ocorreu em virtude
do crime que vitimou a atriz Daniela Perez.

3.3. A nova m issão (garantista) do D ire ito Penal e do Processo


Penal em face do Estado D e m o crá tico de D ireito

Essa "missão secreta" do Direito Penal (e, acrescento, do


Processo Penal), tão bem denunciada por N ilo Batista, não pode,
p orém , ser entendida como inexorável, até porqu e o Direito hoje -
em face da instituição do Estado D em ocrático de Direito em nossa
Constituição - não pode (mais) ser visto, com o já referido anterior­
mente, como uma mera racionalidade instrum ental. Para tanto, há
que se perqu irír os critérios que fu n d am en tam o estabelecim en to dos bens
ju ríd icos tutelados pelo D ireito P enal, isto porqu e não ê livre o "legisla­
d o r ” para estabelecer tipos e pumas e "das exigên cias fu n dam en tais
inseridas na Constituição, inferem -se os lim ites traçados, por ela, para o
78 Z a ffa ro n i, E u g ê n io Rau l. F u n ç ã o da crim in o lo g ia n a s s o c i e d a d e s d em o crátic as.
h i P nscículos de C iên cias P en ais, v.2, n . l l , p. 171 e segs.

6 0 LEN IO LUIZ STRECK


Direito Penal. Não se pode olvidar que este, m orm ente em um
Estado promocional, é, por natureza, um dos seus instrumentos
mais eficazes"79.
O Direito Processual Penal deve ser interpretado, assim , não
mais sob a ótica de um m odo liberal-individua lista-norma ti vista de
produção de Direito, com sua faceta hobbesiana-ordenndora, mas,
sim, sob a ótica de um Estado Social e D em ocrático de Direito, de
cunho m tervencionista-prom ovcdor-transfonnador. Por isso, a p a r ­
te especial do Código Penal deve ser revista, "repesando-se os seus
bens ju rídicos, a vista da m atriz constitucional. Só a infiltração, a
concretização dos valores preconizados pela Constituição, na futura
Parte Espedal do Direito Penal, propiciará a alm ejada justiça social.
(...) Só a infiltração desses valores maiores (constitucionais) no
próprio cerne do bem jurídico, objeto da tutela penal, e não,
somente, sobre .os aspectos formais e estruturais modificará, quiçá,
o drama do Direito Penal de hoje, no Brasil, on de a dogm ática jurídica
impecável esm aga uma realidade social violen fa"m.
Tudo isto significa dizer, u m iatis niitlaniis, como b em assevera
Dornetila C arvalho81, que a superioridade normativa do Direito
Consti 1 delimita o que deve ser considerado delito pelo
Direiíc e, mais ainda, que na tipificação delítual o acento
deve ser dirigido para a proteção do valor constitucional maior, ou
seja, para a justiça social. Significa, também, continua a autora, a
obrigação da legislação, administração e ju risdição, de criação de
institutos apropriados para a realização dessa justiça social e,
conseqüentemente, interpretação e aplicação de normas de acordo
com esse princípio.
Para tanto, há que se fa z e r toda uma filtra g em das norm as anteriores
à C onstituição, para com patibilizá-las com a nova ordem constitucional.
Isto porque, como bem ilustra Luigi Ferrajoli82, em uma perspectiva
"garantisteOdo Direito, "todos os direitos fundam entais - e não só
os direitos sociais e os deveres positivos por eles im postos ao
Estado, mas também os direitos de liberdade e as correspondentes
proibições negativas que limitam a intervenção daquele - eqüivalem
a vínculos de substância e não de fo rm a , que condicionam a validade
79 Cfe, C a r v alh o , M árcia Dornetila Lima de. F u n d am en tação con stitu cio n a l do d ireito
venal. P orto A legre , Fabr is, 1992, p. 44.
'80 Id em , p. 46. (grifei)
81 Fbidern, p. 47,
82 Cfe. Ferrajoli, Luigi. O D ire ito c o m o sistem a de g a ra n tia s. ín O novo em D ireito e
P olítica, op. cit, p. 9 7 . (grifei)

TRIBUN AL DO JÚRI 6 1
substancial das normas produzidas e ex p rim em , ao m esm o tempo,
os fins para que está orientado esse m od ern o artifício que é o Estado
Constitucional de Direito,"
A partir desta ótica garantista, explica Ferrajoii, o juiz está
sujeito somente à lei enquanto válida, isto é, coerente com a Consti­
tuição: "A interpretação judicial da lei é sem p re um juízo sobre a
própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever e a responsabili­
dade de escolher somente os significados válidos, ou seja (os
significados que são) com patíveis com as norm as su bstan ciais e com os
direitos fundam entais por ela estabelecidos". Fazer isto, segundo o
mestre italiano, c fazer uma interpretação da lei conform e à C onstitui­
ção, e quando n contradição é insanável, é dever do juiz (ou do Tribunal)
declará-la inconstitucional. Portanto, conclui, já não é uma sujeição à
lei de tipo acrítico e incondicional, mas sim sujeição, antes de mais
nada, à Constituição, que im põe aos tribunais e aos juizes a crítica
das leis inválidas por m eio da sua rein terpretação em sen tido con stitu cio­
nal (interpretação conforme) ou a sua denúncia por ínconstituciona-
lidade (invalidade total).

3.3.1. A perda da vai idade (não recepção) de tipos penais


Sob esse prisma, parte dos tipos penais cia parte especial do
Código Penal e de leis' esparças perderam a v alid ade83. Tipos
penais, vigentes e válidos no contexto de u m m od o liberal-indivi-
dualista de produção de Direito, não resistem ao exam e de sua
validade (no sentido de Ferrajoii) no (novo) m odelo de Direito
vigente no Estado Democrático de Direito. Além disso, o Estado
Democrático de Direito produziu a secularização do Direito Penal.
Com isso, por exemplo, delitos ligados à moral e aos costum es não
são mais compatíveis com a nova ordem jurídico-política84. Como
83 A filtra g em das n o rm as a nterio res à C o n s ti t u i ç ã o é de t a m a n h a re levân cia que
Jim en ez de A súa ch eg a a d izer qu e, em h a v e n d o um no va C o n s ti t u i ç ã o , d eve­
ria m -se fazer no vos Códigos.
84 Dom etila de C a r v a lh o , op. cit., ass ev era qu e, ao la d o d o p r o c e s s o de d espen ali-
zação, d eve haver u m p ro cesso de p en aliza çã o , d e v e n d o - s e tip ificar todo fato
g ra ve, fo m en ta d o r da in ju stiça soem!, que a C o n s ti t u i ç ã o p r e te n d e e lim in a r , ganhan­
do força os p ertin en tes n defesn dn ordem eco n ô m ico -so cia t, cu ltu ra l e a m b ien ta l, hierar­
q u ic a m e n t e su periores, pela C o n s titu içã o , aos clá ss ico s c rim e s contra o
patrim ô n io , por exem plo. A au tora ta m b ém colo ca em x e q u e o s critérios utiliza­
dos pelo " le g is la d o r " para dizer o qu e é e o que não é c r i m e h e d io n d o , uma vez
q u e crim es he d ion d o s são f o rço sam en te ta m b é m o c r i m e e c o n ô m i c o , o crim e
am bienta l, q u a n d o de co nseq ü ên cias g raves, v erb i g ra tia , q u a n d o a m e a ç a d o r e s dos
p rin cíp ios co nstitu cionais, voltados ao d e s e n v o l v i m e n t o da ju s tiça social, do
eq u ilí brio am biental. N es se co ntexto, co m o alerta de que não se caia na a rm adi-

6 2 LENIO LUIZ STRECK


b em assinala Ferrajoli, o principio axio lógico de "sep a ração entre o
Direito e a M o ra l" veta a proibição de com portam en tos m eram ente
imorais ou de Estados de ânim o pervertidos, hostis ou, inclusive,
perigosos. E impõe a tolerância jurídica de toda atitude ou com p o r­
tamento não-lesivo para terceiros85. N esse sentido, observe-se deci­
são da 6a Câmara Criminal do Tj do RS, que acatando parecer de
minha lavra, entendeu não recepcion ado pela C on stitu ição o crim e de
casa de prostituição (art. 229 do C ódigo Penai). No caso específico, duas
m ulheres haviam sido condenadas a 3 anos de reclusão, cada uma,
por manterem casa de prostituição em urna pequena cidade. Por
unanimidade, a Câmara deixou assentado que tipos penais com o o
do art. 229 não são condizentes com o princípio da secularização do
direito própria do Estado D em ocrático de Direito introduzido pela
Constituição de 1988 (Ac. 698383932 - rei. Des. N ew ton Brasil de
Leão). Na mesma linha, o acórdão n. 699160826.
Agregue-se a necessidade da descrim inalização dos delitos que
atualmente são punidos com pena de multa, que se constituem , na
lúcida visão de André C oppeti, em uma metástase desnecessária do
sistema penal. Para o autor, tendo em vista o caráti tá ri o
do direito penal, pelo qual este se destina som ente a re as
condutas consideradas mais graves, resulta íh c o c ic m e ^ue seja
mantida dentro da esfera da pu n ição penal esta espécie de con d u ­
tas, citando, para tanto, Ferrajoli, para quem o direito penal so m en ­
te deve preocupar-se com infrações relativam ente graves, em face
do que nenhuma sanção pecuniária p od e ser considerada suficiente
para sancioná-la de maneira adequada. N esse sentido, corretam en ­
te, Coppetti sustenta a invalidade (não recepção) de todas as
1normas incriminadoras do Código Penal e da Lei das Contravenções
Penais que cominem pena de multa isolada ou alternativam ente, a
saber: do CP, os artigos 135, 136, Í3 7 , 140, 147, 150, 151, 153, 154,
1 5 6 ,1 6 3 ,1 6 4 , 166,169, 175, 176, 179, 180, § 3°, 184 233, 234, 246, 247,
248, 259, par. único, 175, 276, 280, 286, 287, 292, 315, 317, § 2Ç, 320,
323, 324, 325, 331, 335, 336, 340, 341, 345, 351, § 4 e, 358, 359- da LCP,
lha de um a po lítica reformista e ao m e s m o te m p o " p a n p e n a l i s t a " , B aratta fala de
dois perfis que derivam de um a crítica d o d ir e it o p en al c o m o d ir eito d esig ua l. O
p rim eiro deies c ju stam en te o qu e trntn de d ir ig ir os m eca n ism os dn reação in stilu ciu n n l
p ara o con fron to dn crim in alidade eco n ô m ica , d os g ra n d es d es v io s c rim in a is d os órg ãos c
d o corpo tio E stado, da g ra n d e crim in atidn de org an izad a. T ra ta -s e , ao m e s m o tem po ,
a cen tu a o autor, de ass eg ura r um a m a io r r e p r e s e n ta ç ã o p ro c e ss u a l e m f a v o r cios
interesses co letivos. Cons ultar, ne sse s e n t id o , Bara tta, C riin in olog ia crítica , op. cit.,
p. 202.
^ Cfe. Ferrajoli, D erecho y Raztin, op. cit.

TRIBU N A L DO JÚRI 6 3
os artigos 18, 20, 21, 22, 23, 26, 28, 29, 30, 31, 3 2 , 3 4 , 35, 36, 37, 38, 39,
40 a 49, 61 a 67, e 70. Mais ainda, C opetti salienta, com acerto, a
irrelevância pena] das contravenções, p or con stitu írem indevida
ingerência estatal nos mais diversos setores da vida privad a, v iolan­
do o princípio da secularização do direito. C hama atenção, ainda, para
a falta de ofensividade dos delitos abarcados pela Lei 9.099 / 9 5.86

3.3.2. ,4 (necessária) apíicnção dos p rin cípios cia p rop orcion alid ad e
e da razoabilidadc no D ireito Penal
Há que se ter claro, assim , qite é a C on stitu ição, com sua
característica v a 1o ra ti v a - vi ncu 1a t iv a, que deve m oldar a in terpretação
das leis já existen tes e a elaboração das n ovas.'[Não é possível, por
exem plo, que o simples tato de um furto ser com etid o por duas
p essoas tenha o condão de duplicar a pena desse delitõjj com o
com patibilizar esse paradoxo com os p rin cípios da p rop orcion alidade, da
r azo ab ilida de e. da isonom ia, todos com assen to na C on stitu ição da
R epública? N esse sentido, acatando parecer de m inha lavra, a 5a
Câmara Crim inal do TJRS decidiu que a d up licaçã o da p en a na
hipótese de concurso çle pessoas no crim e cie furto fere os princípios
da proporcionalidade, da raz oabilidade e da i s o n o m i a :

'T U R T O Q U A L IF IC A D O P E Í.O C O N C U R S O .
A g r i d e a o s p r in c íp io s da p r o p o r c i o n a li d a d e e da i s o n o m i a . A f ix a ç ã o de
a u m e n t o m a io r a o furto em c o n c u r s o d o qu e a o r o u b o e m i g u a l co n d içã o .
A p lic a -s e o p e r c e n t u a l d e a u m e n t o d e s t e à q u ele. A t e n u a n t e p o d e d e ix a r a
p e n a a q u é m d o m ín i m o . D e r a m p arc ia l p r o v i m e n t o a o s a p e lo s .
A p e l a ç ã o - C r i m e n° 7 0 0 0 0 2 8 4 4 5 5 - T a p e s / R S
VOTO
Des. A M I L T O N B U E N O D E C A R V A L H O - R e l a t o r - O j u í z o d e r e p r o v a ç ã o
e m e r g e n t e d o a to c o n d e n a t ó r io si n g u l a r m e r e c e c o n f i r m a ç ã o . A r e f o r m a
a lca n ç a u n i c a m e n t e o m o m e n t o da q u alificad o ra .
D ú v i d a inex is te: o s a p e la n t e s p r a t ic a ra m o d elito d e s c r i t o na peça in a u g u ra l.
(...) ^
A s s im , inex is te d ú v i d a p r o c e s s u a l - h o u v e p rática d e f u r t o e m c o n c u r s o .
R e s t a a p r e c ia r a te se le v a n t a d a p e lo P r o c u r a d o r d e J u s t i ç a L E N I O L UIZ
S T R E C K : o sistem a a d m i t e a q u a l if i c a d o r a d o c o n c u r s o e m d e lit o s de furt o?
O P r o c u r a d o r de J u s t i ç a L E N I O S T R E C K - b r il h a n t e m e n t e c o m o d e c o s t u m e
- e n te n d e q u e o r e c o n h e c i m e n t o da q u a l if i c a d o r a e m p a u t a ( q u e d u p lica a
p e n a do furt o simplesjjrtgnrfe o p rin c ip io dn proporcion alidade em co n fro n to com a
m ajoração d o roubo (a m b a s i d ê n tica s no c o n c u r s o ) qu e a lter a a pena d e 1/3 até
m e ta d e . E m tal c o n t e x t o o a u m e n t o - e m analo g ia e c o r r i g i n d o a i r r a c i o n a l i ­
d a d e le g is la tiva - n o fu rto , d e v e ser igual ao r o u b o f j

86 Cfe. C o p e t ti, A n d ré . D ireito P en ai e E stado D em o crá tico d e D ire ito . P o r t o A le g re,


Livraria d o A d v o g a d o , 2 0 0 0 , p. 188 e seg s.

6 4 LEN IO LU IZ STRECK
E is a liç ã o d e L E N IO q u e é ad o ta d a :
'D o a c r é s c i m o da p e n a d e c o r r e n t e da q u a l if i c a d o r a do fu rto (c o n c u r so de
p es soa s )
C o m efeito, e n q u a n t o no m érito a s e n t e n ç a está c o rre ta , no qu e tang e a
e n te n d i m e n t o acerca da q u a l if i c a d o r a d o c r i m e d e furto o p r o c e s s o m ere ce
um a re f l e x ã o m ais a p ro f u n d a d a .
N es te ca so , uma q u e s t ã o d e e x t r e m a re lev ân cia ju ríd ica d e v e ser posta à tona.
T ra t a -s e da fla g rante v io la ç ã o d o p ri n c íp i o d a p r o p o r c i o n a li d a d e re p re ­
sen ta d a pela d u p lic a çã o tia p en a jia h i p ó te s e de c o n c u r s o de p e s s o a s n o crim e
de furto.
T e n h o , po is , q u e fere a C o n s t i t u i ç ã o - e n te n d id a e m su a pri n cip io lo g ia
(m a te ria lid a d e ) - a p r e v is ã o legal d o C ó d i g o P e n a l q u e d e te r m i n a a d u p l i c a ­
çã o d a pena toda v ez que o furt o for co m e tid o p o r d u a s o u m ais p esso as, o
q u e , a liá s , acarreta u m p a r a d o x o e m n o s s o sis t e m a p en a l. E n t r e tantas
d is to rçõ e s qu e ex iste m n o C ó d i g o P e n a l (e nas l e is e s p a r s a s ), e s te é um p on to
q u e tem sid o d eix ad o de lado -ms d isc u s sõ e s d a q u ilo q u e h o je d en o m in a d o s de
'n ecessária con stitu cio n a liza çãn do d ire ito pen al'. V a l e fri sa r, n e sse sen tid o , que
n o re c en te C o n g r e s s o d c D ireito P enal e P r o c e s s u a l P e n a i o c o r r id o em
C u ritib a n o s d ia s 1, 2 e 3 de s e t e m b r o d e 1 .9 99, a q u e s t ã o a tin e n í e à
d is cre p â n cia en tr e as d iv e r sa s q u a l if i c a d o r a s d o C ó d i g o P e n a l veio à ba ila,
e m d e b a t e p r o m o v i d o en tr e A m ilto n B u en o d e C a r v a l h o , Saio de C a r v a lh o ,
A f r a n i o j a r d i m , J a m e s T tibenclilak e o P ro c u ra d o r d e J u s t i ç a sig natá rio . A
c o n c l u s ã o a p o n t o u para a [urg en te - e n e c e ssá r ia - re leiiu ra dns m ajorações de
p eita d ec o rren tes dns q u a lifica d o ra s c d a s c a u s a s cie a u m e n to d e p e n a , ten d o por
b a s e o p rin cíp io da p r o p o r c i o n a li d a d e J
C o m e fe íio , ess e p a r a d o x o d e c o rre do fato d e q u e, en q u a n to no fu rto a
q u alificad o ra d o c o n c u r s o d e p e s s o a s tem o c o n d ã o de d u p l i c a r a p en a , no
r o u b o a m a jo r a n te (cau sa d e a u m e n t o d e p e n a ) , n e s t e c a s o d e c o n c u r s o de
a g e n t e , é de (a p e n a s - s/c) 1/ 3, p o d e n d o ir a o m á x i m o até a m eta d e.
A t e n t e m o - n o s p a ra a d is c r e p â n c i a : tan to na f u r t o com o no rou b o, o con cu rso de~'
l a g en tes q u a lific a ; n o p rim eiro , a p e n a d o b ra ; no seg u n d o , a. p en a f i c a acrescid a de 1/3.
I O ra, no f u r t o a p re se n ça d e m ais de u m a p esso a n ão co lo ca em risco a in teg rid ad e
f í s ic a d a v ítim a, e, sim fa c ilit a o a g ir su b tra e n te ; já no rou b o, a p re se n ç a d e m ais
p esso a s colocam em risco so b rem o d o a in te g rid a d e f ís ic a da v ítim a. N ão o b sta n te isto,
o C ó d ig o P en al v aloriza m ais a coisa (p ro p r ied a d e p r iv a d a ) q u e a v id a /in teg rid a d e
física.
‘P o r isto, é n e c e s s á r io fa z er um a (re )le itu r a c o n s t i tu c i o n a l d o t i p o p en a l do
furto q u a lif ica d o (p or c o n c u r s o de a g e n t e s) à luz d o p r i n c íp i o da p r o p o r c i o ­
n a lid a d e , q u e é incito e i m a n e n t e à C o n s ti t u i ç ã o Federal. P ara tanto, m edian te
um a interpretação conforme à Constituição, e levando cm con ta o prin cípio da isonom ia
con stitucional, há qu e se redefin ir a n orm a do art. 155, § 4-, inc. IV , do C ódigo Penal.
Necessária ob servação: ente ndo, a partir da doutrina de Friedrich Mülíer, Bros
R ober to Grau e H. G. G a da m er, que/ã N O R M A é s e m p r e o r e s u lt a d o da
in t e rp r e ta ç ã o d e um. T E X T O ju ríd ic o j-n e s s e s e n t id o , m e u l iv ro H erm en êu tica
Ju r íd ic a e(m ) C rise, L iv raria do A d v o g a d o , 1999.
N ã o se está a p r o p o r aqu i - e até seria d e s p i c i e n d o a le rt a r p a ra este fato - que
o Ju d iciá rio v en h a a le g is la r, m o d i f i c a n d o o teo r do d is p o s it i v o do C ó d ig o
Penal q u e e s t a b e le c e a d u p l i c a ç ã o da p e n a n o s ca so s de f u r t o q u a lif ica d o por
c o n c u rs o d e p es so as , N a v e r d a d e , tra ta-se , nad a m a is n a d a m e n o s , do que
e l a b o r a r um a re leitu ra da lei so b os p a r â m e t r o s da d e v id a p r o p o r c i o n a li d a d e
p re vis ta na C onstituição Federa l. O m e c a n i s m o a p t o p a ra tal é o da in terpre-

T RIB líN A LDOjtJR I 6 5


tnçilo con form e a co n stitu içã o , q u e se o r ig in o u da A l e m a n h a , q u e v e m sen d o
u tiliz a d o pelo S u p r e m o T r ib u n a l F ed e ra l já h á m a i s d e 10 a no s.
Ou seja, o texto da Lei (CP) p e r m a n e c e c o m su a lit e r a li d a d e ; e n tr e ta n to , a
no rm a, fruto da in terp retaç ã o, 6 q u e ex s u rg irá re d e f in i d a e m c o n f o r m i d a d e
c o m a C o nstitu ição, Desse modo, nnnlogienmenlc, o a u m en to d c pcnn áccorrente do
c on cu rso d c p essoas (circu n sta n cia esp ecia l de. aum enta d e p en a ) d o ro u b o (art. 157,
§ 2-, inc. II), que é d e 1/3 a lé n m etad e, torna-se a p lic á v e l no fu rto q u a lifica d o p or
concurso de agen tes.
F n ão se diga que o co n cu rso d c p es so a s n a s d u a s h ip ó teses nã o tem a m esm a
n a tu rez a jurídica. O qu e m ud a é tã o - s o m e n te a d e n o m i n a ç ã o : no caso d o fu r to ,
0 con cu rso de pessoas é ch am ad a d e q n ed ificad ora; no c a s o do ro u b o, a p a r tic ip a ç ã o de
m ais d c d u a s p esso a s é ch am ad a d e cau sa de num enlo d e pe.ua... N ã o se o lv id e qire,
a u m a, a m b o s os tip os p en ais p r e l e n s a m e n t e p ro te g e m o m e s m o b em ju ríd ico
(o p a trim ô n io ), e, a d u a s, m u ito e m b o ra o r o u b o seja um c r i m e b e m mais
g ra ve, p a r a d o x a lm e n te o n o sso sistem a alça a p a r t i c i p a ç ã o d e m a is de um a
pessoa à co n d ição de q u a lifica d o ra c o m o u m a m a jo r a ç ã o d e pen a bem
m enor...
De m aneira b e m m a is sim p les, p o d e - s e d iz e r q u e, p a ra o " i e g is ia d o r "
br a sileir o , c o m e t e r um furt o m e d i a n t e p a r t i c i p a ç ã o d e m a is de u m a p essoa é
circu n stân cia m ais g ra v o sa d o q ue c o m e t e r u m r o u b o e m circ u n s tâ n c i a s
sem elh an tes!!! E p arece ób v io qu e o moderno d ireito p en a l e o c o n tem p o r â n eo d ireito
con siiiu c io in d não p odem c o m p a ctu a r com tais a n o m a lia s. D es n ece ss á rio referir que
um a norma tem dois âm b itos: vigência e validade (F erra jo li). P o d e ela ser v ig en te e
n ão ser váliiia. Pio caso d os a u tos, o d isp o sitiv o ieg a i (tex to) em q u estão , que
estabelece a d u p licação da pena, é v ig en te; entretanto, su a v alid a d e d ev e se r aferida
mi c o n fro n tação com o p rin cip io da p ro p o rc io n a lid a d e e o dn isou om ia.
D ito de ou tro m o d o , n o caso so b e x a m e , a teoria g a r a n ti s t a de F erra jo li po d e
o fere c er um im p o rt a n t e e fu n d a m e n t a l c o n t r i b u to para o d e s l in d e da c o n t r o ­
vérs ia. C o m efeito, em tend o os textos ju r í d i c o s s e m p r e d o i s â m b i t o s -
vig ência e validad e, um a n o r m a so m e n t e será v á l i d a se seu c o n t e ú d o estiver
em c o n f o r m i d a d e c o m a C o n s tit u iç ã o , e n t e n d i d a e m su a m a te r ia l i d a d e e
s u b s tan cialid ad e. O ra, o leg is la d o r (o rd in á rio ) n ã o é l iv re p ara e st a b e le c e r
leis e tip os pen ais. O g ra n d e p r o b l e m a é q u e , m e s m o c o m o a d v e n t o d e uma
no v a C o n s titu içã o , m ilh a res de leis c o n t in u a m em v ig o r no sis t e m a . Isto
o c o rr e p o rq u e, de form a p o sitivista , o ju rista t r a d ic io n a l c o n f u n d e vi gênci a
co m valid a d e. P or isto, as co rren tes crítica s do D ireito a p o n t a m p a ra a n e c e s s á ­
ria filtra g e m h e r m e n ê u t i c o - c o n s l i t u c i o n a l do sistem a ju r í d i c o , f a z e n d o co m
qu e todo o o r d e n a m e n t o fiq ue c o n t a m i n a d o p e l o " v í r u s " c o n s t itu c io n a l. A
q u e st ã o é tão g ra ve q u e o g r a n d e ju rista J í m é n e s de A z ú a c h e g o u a p ro p o r
qu e, q u a n d o da p r o m u l g a ç ã o de uma nova C o n s ti t u i ç ã o , t o d o s os C ó d i g o s
d e v e ria m se r refeito s, para e v i t a r o mau v e z o d e se c o n t i n u a r a a p lica r leis
n ã o r ec ep cio n a d a s ou r e c e p c io n a d a s a p e n a s e m p a rte pelo n o v o topos de
validad e, que é o texto co nstitu cion a l.
No caso e m tela - e para ta n to estou a c o m p a n h a d o da m o d e r n a teoria
co nstitu cio n al (C a n o tilh o , H esse, M ü lle r, B o n a v id e s, R ib a s , V ieira, G u erra
Filh o, Bandeira de M e llo , C l è m e r s o n C lè v e , L, R. B a rro so , S o u t o M a io r
B org e s, s o m en te para citar a lg u n s) -,jc/iqu an to o p od er encarregado dc fazer as leis
não elaborar as necessárias readaptações leg islativ as, c a b e ao P o d e r Ju d ic i á r i o , em
su a f u n çã o ín teg ra d o ra e t ra n s fo rm a d o ra , típ ica d o E st a d o D e m o c r á t ic o de
D ireito, efetu a r as correções (ad ap tações) das leis, u t i l iz a n d o -s e para tal d os
m o d e r n o s m e c a n is m o s h e r m e n ê u t i c o s ! co m o a i n t e r p r e ta ç ã o c o n f o r m e à

6 6 LEN IO LUIZ STRECK


C o n s ti t u i ç ã o (V erfasssu n skon form c A u slc g tín g ), a n u l i d a d e p a rc ia l sem r e d u ­
ç ã o de texto ( T eiln ich tig erkliiru n g o lm e N o r m íc x t r e d u z ie n m g ) e a d e c la r a ç ã o da
in co nstitucion al id a d e d a s leis i n c o m p a t í v e i s c o m a C o n s t i t u i ç ã o , para cita r
a lg u n s. É o caso d os a u to s: o texto da le i (art. 1 5 5 , § 4 S, IV , d o C P ) c o n tin u a v ig en te;
su a validade., porém , é q u e iv.ni confortada p o r u m a in te r p r e ta ç ã o co n stitu c io n a l,
m ed ian te o uso analógico - p a ra os c a s o s d e fu rto q u a lific a d o p o r co n cu rs o d e ag en tes
- do p ercen tu al de a créscim o d e c o r r e n te dn majoração d o concurso d e p esso a s no
rou bo. A lém de o b e d e c e r o p r i n c í p i o dn is o n o m i a , e s t a r- s e - á f a z e n d o a
re a d e q u a ç ã o da n o rm a ,~o p ri n c íp i o cia p ro p o rc io n a lid a d e .'
C o n tin u ação do v oto do D es. A M IL T O N B U E N O D E C A R V A L H O : C o n t r i b u o
co m o debate a g re g a n d o aos a r g u m e n t o s de L E N I O o q u a n t o seg u e: a
d u p lic a ç ã o da pena e m fu rt o q u a l i f i c a d o p e l o c o n c u r s o , a g rid e e s p e t a c u l a r ­
m e n t e o princípio da iso n o m ia - a q u i c e n t r a l i z o a d is c u s s ã o .
D e logo e co m o su b s tr a to te ó rico , e n t e n d o c o m o L E N I O : há que se constitu-
cio n aiiza r o direito pen al; tod a a n á l i s e p en a l d e v e ser b a n h a d a , a t r a v e s s a d a ,
p elo viés c o n stitu cio n aliza n te. A s s i m , ao c o n t r á r i o d o q u e a l g u n s p o d e r ã o
p en sa r, não se está v io la n d o leis m a s sim c o l o c a n d o - a n o q u a d r o m aio r: o do
d ir eito. E o p i i n c í p i o da iso n o m ia e s t á inserto n a C o n s t i t u i ç ã o , lo g o há , até no
d is cu rso Kelseniano, o b e d iê n c ia ao sistem a .
N o particular, e n te n d o q u e a " i s o n o m i a " s e q u e r n e ce ssá r ia su a in s e rç ã o no
te xto "iíú .it", p orq u an to c o m o p r i n c íp i o q u e é está i m p l í c i t o em to d o sistem a
d em o c rá t ic o e m e s m o q u e n ã o e s t i v e s s e , é n o r m a acim a d a C o n s tit u iç ã o .
ineíp io s são o lim ite ao i n t é rp r e te , ao ju i z é t a m b é m ao leg is la d o r -
a lm en te a e s t e i j
:a parte (e ta m b é m como b a s e teórica) s e g u e -s e F erra jo li ao d iz er que
ser g ara n lista iu clu yc la critica a la id eo lo g ia m c a m is c is ta d c la aplícacióu de la ley.
En efe lc o , p u esto qu e en n in g ú n sistem a el ju e z es u n a m áq u in a au to m á tica ,
c on ceh irlo com o tal sig n ifica h a cer d e êl una m áq u in a cieg a , p re sa d e la estu p id ez o,
p eo r, d e los intereses y los c o n d ic io n a m ien to s de p o d e r m ás o m en os ocu lto s y, en todo
caso, fa v o r e c e r su irresp on sab ilid n d politica y m oral (D ere c h o y Razcm , Ed. T ro ta ,
M a d r i d , 1995, p. 175).
C o m o por todos é sab id o ison om ia é f o r m a d a de 'isos' - ig u a l, e 'nom os' - lei:
q u e r d izer ig ua ldad e p e r a n t e a J e L
C e lso Antônio Bandeira de M e llo , e m d ois textos, (a) 'P rin cíp io da Isonom ia:
d esiq u ip a rações pro ibid as e d e s iq u ip a r a ç õ e s p er m itid a s " , R e v is ta T r i m e s tr a l de
D ireito Público, n® 1, 7 9 / 83 , e (b) C o n teú d o Jurídico do P r in c íp io da Ig u a ld a d e, 3-
ed ição , 4 a tirag em , M a l h e ir o s E d i to r e s , a q u e l e e n s i n a , e m viés aristotélico,
q u e iso nom ia d esem boca na assertiva seg u n d o n q u al a ig u a ld a d e c o n sis te em tratar
ig u alm en te os igiuiis e d es ig u a lm e n te os d esig u a is, na m ed id a d a s resp ectiv a s
d esig u a ld a d es.
Seu c o n teú d o éjhnpedir d ete rm in a d a s d isc r im in a ç õ es , fa v o r itis n w s ou perseguições?^
O b star ag rav os in ju stifica d o s'.
Q u a n d o um a n o rm a a t e n d e a i g u a l d a d e ? C e l s o d iz q u e há se o tratam en to
d iv erso ou torg ad o a uns p o r ju s t ific á v e l, p o r e x is tir u m a c o r re la ç ã o ló g ica en tre o
fa t o r d e discríiuen... e o reg ra m cn lo q u e se lh e d eu , s e i n e x ístir , ao c o n t rá rio , a
con g ru ên cia lógica ou se nem ao m en os h o u v es se um fator d e discrím en id en tificá v el
há a g res sã o ao princípio.
A s d iscrim in a çõe s - leia -se t r a t a m e n t o d i f e r e n c i a d o - d e v e m se r lógicas,
ra cion ais, v isiv elm en te ju s tific á v eis . ' ■
E v aristo de M orais Filho, in cu rs o de D ireito C o n s titu c io n a l d o T rab alh o,
C a p ítu lo O Princípio d e Ison om ia, s e g u e n l in h a de C e l s o , a c r e s c e n ta n d o : (a) o

TRIBUNAL DO JÚRI 6 7
p rin c íp io da iso n o m ia g a r a n t e o c i d a d ã o con tra o a r b ítr io d o s g o v e r n a n te s (o
p ri n c íp i o c o m o lim ite ao le g is la d o r ); (b) não há a g r e s s ã o a o p r i n c í p i o q u a n d o
há fu n d am en tos reais, ra cion ais e lãg icos p a ra o d iscrím e n ; (c) é in v o c á v e l em todos
o s casos em q u e n ão h a ja ig u a l tra ta m en to d ia n te da lei.
A terriss o ; há q u e b r a d o p rin c íp io da iso n o m ia n o a u m e n t o d e p e n a , pelo
c o n c u r s o de a g e n te s, no d e lito d e furt o e m co n f r o n t o c o m o r o u b o m a jo r a d o ?
S ã o tra tado s d e s i g u a l m e n t e ig uais? H á f u n d a m e n t o ló g ico , ra cio n a i, v isiv e l­
m en te ju stific á v el, para o d is c r ím e n ?
A q u e st ã o p rim eira : são de tal form a p a r e c id o s ou q u a s e i d ê n t i c o s os tipos?
E m nível de c a p a t , a ú n ica m arcn d if e r e n c i a d o r a é q u e n o r o u b o se exig e
v io lên c ia , ou grave, a m ea ça , p o r q u e as d e m a i s p a l a v r a s s ã o i d ê n tic a s : su b tra ir,
v ara si on p ara o u trem , co isa a lh e ia m óvel. R o u b o , e n tã o , é u m " p lu s " ao furto:
s u b t r a ç ã o mais vio lên cia à pesso a . E p o r isso (a g r e s s ã o à p e s s o a ) a pen a é
su b s ta n c i a lm e n t e d if e re n c ia d a ( d e 1 a 4 a n o s e 4 a n o s a 1 0 anos).
M a s a p r o x i m i d a d e en tr e el es é e sp eta cu la r: s ã o c r i m e s co n t ra o p a trim ô n io -
f a z e m parte do m e s m o Título - e estão, g eog raficam en te, lad o à lado. Não
irm ãos, m as prim os, tanto que ad m itid os co m o delitos da m e s m a esp écie para
acolhim ento da co ntin uid ade en tr e eíes. Aliás, so b r e o tem a há p re ce d e n te deste
T rib u n al, acó rd ão n° 69 84 65 0 28 , da lavra do ilustre co le g a S YLV IO B A P T IS T A :
'C O N T I N U A D O . F U R T O E R O U B O . P O S S I B I L I D A D E . O c o n c e i t o d e m esm o,
p re v is to n o art. 71 d o C P , n ã o se restr in g e só à idéia de id e n t i d a d e . A b r a n g e ,
a i n d a , a d e s e m e lh a n ç a ou p n rece n ça . Desta f o r m a , é « c o n v i r q u e , en tr e as
e sp écie s e x iste n te s d e n tro d o g ê n e r o p a trim ô n io , as q u e m a is se a s s e m e l h a m
s ã o ex a ta m e n te o furto e o ro u b o . O c o r r e qu e o n ú cleo d o s d ois tip os pen ais
é e x p r e s s a d o pelo verb o s u b tra ir e peln o b je to m aterial da co is a alh eia m ó v el.
O e lem e n to, qu e a fa sta ria a i d e n tid a d e en tre as d u a s c o n d u t a s c rim in o s a s ,
p e r m i t in d o c o n c e i t u á - la s c o m o d ua s e sp é c ie s a u t ô n o m a s , a v io lê n c ia na
e x e c u ç ã o , n ã o se tra d u z n u m traço e x c lu siv o de u m a d e la s . Esta violência
tanto ex iste n o r o u b o , q u a n t o n o furt o, q u a n d o , p o r e x e m p le , há r o m p i m e n t o
d e o b st á c u lo à s u b t r a ç ã o da co is a . O ca rá ter p e s s o a l o u re al d e s s a violê n cia
i m p e d e q u e as d u a s f ig u r a s s e j a m id ên tica s , m a s n ã o n e g a a s e m e l h a n ç a que
as vincu la e a u t o riz a i n d ic á -l a s c o m o crim es d a m e s m a e s p é c i e . '
V ê-se, po is , q u e se está f ren te, em nó vel de c a p u t a d e li t o s a b s o l u t a m e n t e
p r ó x i m o s . A g o ra v e j a m o s o fato o n d e ex iste ig u a ld a d e a b s o lu ta - ca u sa de
a u m e n to :
A rt. 155... A r t 1 57 .. .
§ 4 e - A p e n a é de r e c lu s ã o d e 2 (dois ) a § 2 9 - A p è n a a u m e n t a - s e de
8 (oito ) ano s, e m u lta , se o c r i m e é co m e t id o : u m te rç o a té m e ta d e :

IV - m e d ia n t e c o n c u r s o d e d u a s II - se há o c o n c u r s o d e d ua s
ou m a is p es so as . o u m a is p e s s o a s .

D if e re n ç a ? N e n h u m a . T u d o id ê n tico : no q u a lifica r, n o f u r t o , e n o m a jo ra r, no
ro u b o , " c o n c u r s o de d u a s ou m a i s p e s s o a s " .
Q u a l o d is c u rs o p a ra o a u m e n t o cie p e n a , p e l o c o n c u r s o ? A fa c i li t a ç ã o do
d elito, i m p e d ir c o li g a ç ã o de forças, há m a io r p e r ig o s i d a d e .
M a s a i d e n tid a d e é de tal fo rm a e s p e ta c u l a r q u e os d o u t r í n a d o r e s , co m o
r eg ra, c o m e n t a m a h i p ó t e s e d o § 4 9, IV, d o a r t .155, e n o m o m e n t o da análise
do § 2- , d o art. 157, s im p le sm e n te r e m e t e m o leito r p a r a l e itu ra d o que
d is se ra m a cerca d o furto q u a l if i c a d o ou se rep e te m .

6 8 LENIO LUIZ STRECK


A s s i m estão: a) W iliam W an d crlei J o r g e , C u r so d e D ire ito P en al, vo l. II, 6 a ed .,
F o r e n s e , 1989, p. 4 0 7 e 4 3 2 ; b) M irab ete, M n n u al d e D ire ito P ennl, v o l, 2, A tlas,
1 9 9 8 , p. 228 e 239; c) D a m ã s i o , D i r e i t o P e n a l , 2? v o l. S a r a i v a , 1 9 97 , p, 3 2 5 e
3 4 2 ; d) F r a g o s o , L ições de D ireito P en n l, v o l. I, F o r e n s e , 1 9 88 , p. 3 3 0 e 351 ; e)
H u n g r ia , C o m en tá rios a o C ó d ig o P en n l, v ol. VII, F o r e n s e , 1967, p. 4 6 e 58; f)
M a g a l h ã e s N o r o n h a , C ó d ig o P en n l B ra sileiro C o m e n ta d o , S a r a i v a , 1 9 4 8 , 5 ° v o l.,
p. 133 e 18 3 ; g) P a u lo J o s é da C o s i a J ú n io r , e m d o is m o m e n t o s ; g,1) -
C o m en tá rios no C ódigo P ennl, S a r a i v a , 5 8 ed ., 1997, p. 4 9 2 e 47 8 ; e g.2 ) C u rso de
D ireito P en al, vol. 2, Sa ra iva, 1 99 1, p. 79 e 83.
fV c -sc , p c rim ito , q u e u cau sa de a w iie u to iem p a la v r a s ig u a is, n bsvlu ta id en tid a d e
[d ou trin á i ’<i e a bnse teórica qu e ju s t ific a su a e d iç ã o é ex a ta m e n te n m csm n.
S ã o tratados, p o rém , ig u a lm e n t e o s ig ua is?
Pelo c o n c u rso o furt o d o b ra a p e n a , e n q u a n t o n o r o u b o o a u m e n t o é d e um
t erço à m e ta d e.
O s ig uais sã o tra tados, pois, d e s i g u a l m e n te !
Q u e stão seguinte: há fun dam ento racional, lógico, justificador da dis criminação?
N o m eu sen tir , nad a está a j u s ti f ic a r q u e o fu rto m e d i a n t e c o n c u r s o tenha
a p e n a m e n t o m a io r d o q u e r o u b o e m id ê n tic a c o n d iç ã o . A iiá s , estari a até
ju s ti f ic a d o se oc o rr esse o in v er so : r o u b o d e li t o m a is s é r io ao a g r e d ir v i o l e n ta ­
m e n t e a p e s so a , m ere ce r ia (esta ria ju s ti f ic a d o , leia-s e) até p e r c e n t u a l m a io r
(le ia-se pena m a is forte) do q u e furto.
O n d e o racional, o lógico? D iscrim ina çã o injustificada, logo a g ressor à isonomia.
A liá s, c o rre ta m e n te (leia-se o b e d i e n te ao p rin cíp io ) an d o u o leg is la d or ao
co nced er m esm o aum ento d o rou bo à extorsão (art. 158, § 1-, CP) -
p ró xim o s, ou em fixar per centual d e a pen as uma quarta parte em w 1
sexuais, delitos distantes (não estaria esíes a m e r e c e r m a io r p e r c e n íu
v iolên cia à p e s soa que se reveste?').
F errajo ii até diz que m u ito p io r d o q u e c o n c e d e r p e n a s (= c a u sa d e a u m e n to )
ig u ais a d e lito s d e g r a v i d a d e d if e r e n te é f ix a r m a is e l e v a d a s a o d e lit o m e n o s
g r a v e (p. 402).
A ss im , p ro cu r a -s e , r e s p e i to s a m e n t e , 'r a c io n a l i z a r ' o s i s t e m a , f a z e n d o p r e s e n ­
te o princípio da isonomia. A form a de su p era r é o uso da anal ogia, para
beneficiar, co m aplicação ao furto q u alificado pelo co n cu rso do m e s m o percen­
tual incidente no roubo m ajorado, ou seja, de um terço a m e ta d e .(...) A pena
(pois), vai recalculada. (...) Pelo co n cu rso o a u m en to é d e u m t erço ,(...)"87

Poder-se-á dizer que, no caso em exam e, a 5 a C âm ara do TJ-RS,


ao acatar o parecer, fez ipais do que um a interpretação conform e,
"construindo" uma nova "n o rm a "(te x to ). N ão se desconhece os
limites da técnica da interpretação con form e a Constituição. Entre­
tanto, em face da prevalência do p rincípio cia isonom ia constitucio­
nal e da possibilidade de se fazer analogia in bonam partem no
Direito Penal, não se afigurava possível a con tin uid ade da aplicação
stríeto sensu de uma norma jurídica (texto) que, frontalm ente, feria a
devida proporcionalidade e a razoabilid ad e que devem ter as
interpretações. Nesse caso, o T ribu n al teve que optar entre a
87 N esse sen tid o ta m b é m foi o v o to d o Des. P a u l o M o a c i r de A g u i a r Vieira, tendo
sido v e n c id o o Des. A ram is Nnss if m e d i a n t e d e c la r a ç ã o d e vo to .

TRIBU N A L DO J ÚRI 6 9
continuidade na aplicação de um dispositivo vigente desde a
década de 40 e o texto constitucional de 1988, que agasalha os
aludidos princípios. Interpretações construtivas com o a presente
por certo sofrerão críticas, com o sofreu o Tribunal C onstitucional
da Alemanha, na decisão de 25 de fevereiro de 1975, que declarou
nula uma lei de 1974, relativam ente à p u n ibilid ade da interrupção
da gravidez (BVerfCE 39,1). O bserve-se, por outro lado, que o
"Tribunal Constitucional Federal e os Tribu n ais C onstitucionais
estaduais alemães, em casos em que a violação da C onstituição por
uma lei considerada tão grave que nem m esm o a continuação
temporária da sua vigência pareceu possível, declararam nula a lei,
' estabelecendo, sim ultaneam ente, eles próprios, unia regu lam en tação tran ­
sitória, para vigorar até a em issão de nm a novo lei, con form e a C onstitui­
ção, ninando, desse modo, corno uma esp écie de su cedân eo do legislador.^
O acórdão em tela pode ser en q uad rado n aquilo que Lafuente
Baile denomina de sentença aditivas, pelas quais o Tribunal dá
provimento ao recurso e adiciona ao conteúdo n orm ativo da d ispo­
sição impugnada uma regulação que faltava para assegurar sua
conformidade com a Constituição. Com esse tipo de decisão, o texto
da disposição legal impugnada perm anece inalterado. O Tribunal
çria uma norma e ‘ a adiciona ao texto da disposição. ,4 decisão
declarará que esta nova norm a se infere do conteúdo da C onstituição, e que
sua adição ã disposição recorrida resulta d eterm in an te para assegu rar a
constitiicion alidade d e s t a f9
Inúmeros outros exem plos cie textos ju rídico-pen ais que care­
cem da devida filtragem constitucional p od eriam ser elencados.
Assim, por exemplo, não se afigura razoável que para os delitos de
furto, apropriação indébita, estelionato, som ente para citar alguns,
a ação penal seja pública incondicionada e, para os delitos de
trânsito (lesões corporais), a ação seja^de índole con d icion ad a90. Ou
seja, para os delitos contra o patrim ônio, o E stado, spon te su a, efetua
88 Ver, p a ra tanto, BvcrfG E 39 , 1; S ta n ts g m c h ts h o f do B ad ert-W ü rtten b erg ,
ESV G H , 26, 1 29, in: Baehof, O tto . E stndo d e D ireito c P od er P olítico. Boletim da
F a cu ld a d e d e D ireito d e C o im b ra, vol. LVt.
89 Cfe. L afu ente Baile, José M a ria . Lu jiidicinH zncióu Ac hi iiilerp rein ció n c o n stitu c io ­
nal. M ad rid, C o le x, 2000, p. 136. A g r e g u e - s e q u e há um a fro n te ir a m u ito tênu e
en tre se n ten ças aditivas, m a n i p u l a t i v a s e co n s t ru ti v a s , p o d e n d o o A c ó r d ã o em
tela, ta m b ém ser classificado na ca t e g o ria das s e n t e n ç a s m a n ip u la t iv a s .
J0 R essalte-s e, p o r re levante , n o sso e n t e n d i m e n t o de qu e, na re a lid a d e , tanto em
u m c o m o no o u tro caso, o E s t a d o n ã o d e v e a brir m ã o da t it u la r id a d e e xclu siva da
a ção penal, para não en se jar a v in g a n ça p riva d a, além d o in e r o x á v e l p ro b le m a de
a cesso à justiça qu e terão as ca m a d a s p o b re s da so cied a d e .

70 LEN IO LUIZ STRECK


a p ersecu tio crim inis; para os crim es de lesões graves culposos
com etidos 110 trânsito e para as ag re s sõ e s físicas (lesões leves), o
Estado somente inicia a in v estig a çã o se h o u v e r rep resen tação por
parte da vítima, o que d em on stra, à e v id ên cia, que o Estado está
mais preocupado e atento ern persegu ir aqueles que colocam em
risco o patrim ônio das pessoas, do q u e a q u eles que a ten tam contra
a vida e a integridade corporal destas!

3.3.3, A iuconsütucionaU dade da rein cid ên cia


No nosso Código Penal, a reincidência, a lém de agravar a pena
do (novo) delito, constitui-se em fator ob sta cu liza n te de uma série
de benefícios legais, tais com o a su sp e n s ã o con d icion al da pena, o
alongam ento do prazo para o d eferim en to da liberdad e con dicio­
nal, a concessão do privilégio do furto de p e q u en o valor, só para
citar alguns. Esse duplo g rav am e da reincid ên cia é antigarantísta,
sendo, à evidência, incom patível c o m o E stad o D em ocrático de
Direito, m orm ente pelo seu c o m p o n e n te estigm a tizan te, que divide
os indivíduos em ii^ rs-qu e-apren dcrn iu -a-con viver-ein -socicdade" e
"aqudes-que-não-a) iM -e-in sisten i-cm -carü in tiar-delin qü in do". A
pergunta, diz Zaí , sobre se "se p od e aplicar uma pena mais
grave do que a cu, ^ ^ u i i d e n t e n t e à classe cie d elito de que se é
culpável; se infligir a alguém que co m eteu u m p rim eiro delito pelo
qual foi apenado uma nova pena p or esse crim e não seria violar
abertam ente o 1 1 0 1 1 bis in idein, que é u m a das b a se s fu n d am en tais de
toda a legislação em m atéria c rim in a l" (C arno t) vem send o repetida
e respondida negativam ente, há d u zen tos an os, pelos defen so res de
um estrito direito penal liberal ou de g a ra n tia s."
Zaffaroni, na esteira de Ferrajoli. adv oga a ab olição da reinci­
dência no Direito Penal: j”Q u an d o o d iscu rso ju r íd í ^ q p è T i!f l^ r e t e r ^
'"de legitimãxlTsãnção a ó h o m e m pelo qu e é e não pelo que fe z , quebra
um princípio fundamental do direito penal e garan tias, que é a
intangibilidade da consciência moral da p essoa, susten tada com a
mesma ênfase através de argu m en to s racionais e religiosos: trata-se
de uma regra laica fundam ental do m o d ern o Estado de Direito e, ao
mesmo tempo, da proibição ética de julgar evangélica (Mateus, VII, 1;
Paulo, Epístola XIV, 4) (Ferrajoli)y2. Por tudo isso, concluí Zaffaroni93,
91 Z a ffa ro n i, Raul Eugênio, R e in c id ê n c ia : u m c o n c e i t o d o d ir e it o p e n a l a uto ritá rio .
In: Livro d e E sta d o s Ju ríd icos n. 3. RJ, IE J, 1 9 9 1 , p. 55 e 56.
92 Cfe. Z a ffa ron i, op. cit., p. 57.
93 Id em . S istciiiíis pennlcs y d er ec h c s h u m a n o s en A m ér ic a L a tin a (In fo r m e fin n l do
p ro g ra m a de in v estig ação do In stitu to ín tern m cric a n o d e D ire ito s H u m a n o s, 1 9 8 2 -1 9 8 6 ).
B u e n o s Aires: D ep alm a , 1986, p. 89.

T R IB U N A L DO JÚ R I 7 1
"el registro de la condena una vez cumplida y su relevancia
potencial futura colocan al condenado que cum plió su condena en
inferioridad de condiciones frente al resto de la población, tanto
jurídica como fácticamente. La agravación de la pena dei segundo
delito es dificilmente explicable en términos rncionales, y la estigmati-
zación que sufre la persona perjudica su incorporación a la vida
libre". Por essa razão, o mestre argentino considera recom endável:
(1) U m a séria reflexão acerca da com p atib ilid ad e da reincidên­
cia com os direitos hum anos e o rechaço de q u alq u er conseqüência
legal estigmatizante;
(2) O rechaço de conceitos ju rídicos co m o o da habitualidade e
profissionalidade genéricos (fazer do delito um m eio de vida, como
nos códigos penais da Bolívia, Costa Rica, Panam á e El Salvador);
(3)A redução de qualquer conseqüência de um delito que não se
encontre em relação razoável com a entidade do m esm o;
(i) A regulação estrita de registros de c o n d en a ç õ es e penas e a
elim inarão de qualquer anotação sobre as co n d en açõ es ou penas
q jam extintas;
O estabelecim ento de penas e s an ções ad m in istrativas para o
servidor público que forneça inform ações sobre as con d en ações e as
penas já cum pridas e extintas.
Vale registrar que a argu m en tação aqui ex p c n d íd a foi adotada
em inédita sentença proferida pelo juiz de Direito M a u ro Borba, da
Com arca de Erexim, deixando de aplicar o d ispositiv o penal que
estabelece a reincidência por entendê-la in con stitu cion al (não re­
cepcionado pela Constituição), decisão que foi co n firm a d a pela 5a
Câm ara Crim inal do TJRS, que ficou assim em en tada:
"Furto. Circunstância agravante. Reincidência - Inconstitucio­
nalidade por representar bis in idern. Voto v en cid o. N eg a ram provi­
m ento ao apelo da acusação por m aioria." A córd ã o 699291050. Rei.
Des. Am ílton Bueno de Carvalho. No m esm o sentid o os Acórdãos
70000786228 e 70000754226.94

3 .3 ,4 . A (re)discu ssão do alcan ce da prisão ca u tela r no


Estado D em ocrático de D ireito
Outra questão que m erece a devida filtra g em diz respeito ao
alcance da prisão preventiva. Parece claro que não é m ais cabível a
94 S o b r e 0 a ss u n to , v e r ta m b é m C a r v a lh o , Sa io de. “R e in c i d ê n c i a e a n t e c e d e n t e s
crim ina is: a b o r d a g e m crítica d e s d e o m a r c o g a r a n t i s t a " . In : S e p a r a ta do B oletim do
ITE C . A n o 1, n, 3, o u t / n o v / d e z 1999.

7 2 LEN IO LUIZ STKECK


prisão preventiva para os crim es co n sid erad o s pelo Estado com o de
menor potencial ofensivo, por exem plo, lato sen su , os delitos susce­
tíveis dos benefícios da Lei 9.099/95. Dito de outro m od o ,[se é
possível suspender o processo de crimes com o estelionato, furto,
apropriação indébita, punidos c o m pena mínima de 1 ano, parece
lógico que tais delitos devem ser retirados da órbita dos crimes
passíveis de prisão preventiva. Seria absolutam en te paradoxal, por
exemplo, que o Estado, em um delito de furto, prim eiro recolhesse
o autor do delito, para, logo após, oferecer-lhe íp suspensão do
processo m ediante condições, p elo prazo de 3 anoiípJ.. Desse modo,
além da necessária releitura d os critérios legais exigidos para o
decreto da custc>dia preventiva, com o, por exem plo, o conceito de
indícios - que devem ser redefinidos em con form idad e com a
mudança do modo de p ro d u ção do direito -, tam bém [o elen co dos
crim es su scetíveis de prisão p reven tiict necessita ser reelaborado, expun-
g in do-se àqueles para os quais o E stado adm ite a su spen são do processàífB
Esta perspectiva acerca da necessária releitura das condições
de possibilidades da custódia p reventiva cam inha em direção
daquilo que Ferrajoii cham a de fórmula sum ária que representa o
ordenamento corno Estado liberal m ínim o e Estado social máximo,
é dizer, Estado e Direito m ínim o na esfera penal, graças à minimiza-
ção das restrições de liberdade do cidadão e a correia t iva extensão
dos limites im postos à atividade repressiva; Estado e Direito m áxi­
mo na esfera social, graças à m a x im iz ação das expectativas m ate­
riais dos cidadãos e a correia ti va expan são das obrigações públicas
de satisfazê-las97.

95 N ão se d e v e ig norar o a d v e n t o da Lei 9 .7 1 4 / 9 8 , q u e a m p lio u m ais a in d a o leque


de p o ssib ilid a d e s de su b s tit u iç ã o de p e n a s , o q u e reforça a tese do cu id a d o que
d evem ter os o p e ra d o re s q u a n d o d o e x a m e d e p r i s ã o c a u te la r.jO u se ja, d eve o
o p e ra d o r fixar os olh os n o p r o v á v e l q u n n tw n da pena q u e será fix ada a c a s o ven ha
a ser c o n d e n a d o . Seria u m d e s p r o p ó s i t o d e c r e t a r p ris ão p r e v e n t i v a em um
pro cesso cuja pen a, a toda e v i d ê n c i a , n ã o u lt ra p a s sa rá o p a t a m a r d e 4 a n o s ^ U m
alerta, en tr eta n to , d eve ser feito a ce rca da (in )c o n s t it u c i o n a l i d a d e d e p a rte do
inciso 1 d o art. 44, a lte r a d o pe la Lei 9 .7 1 4 / 9 8 . N em todos os d elito s p u n id o s com
reclu são e com etid os sem violên cia ou g ra v e am eaça, cu ja p en a con creta n ão u ltrap asse 4
anos, p od em receb er os fa v o r e s da su b s titu içã o . N e s s e se n tid o , ver S tre ck , Len io Luiz.
"A s (no vas) p en a s a lter n ativ as à luz da p ri n c i p io l o g i a do E s t a d o D e m o c r á t ic o de
Direito e d o C o n tro le de C o n s t i t u c ío n a l i d a d e " . In: /I so cied ad e, a v iolên cia e o d ireito
pen al. Nei Fayet Jr. O rg. P orto A leg re, Liv raria do A d v o g a d o , 2 0 0 0, p. 121 e segs.
96 N e s s e sen tid o, A có r d ã o n. 7 0 0 0 0 5 0 5 5 6 0 - Rei. Des. P a u lo M o a c i r A g u i a r Viei ra ,
da 5 a C â m a ra C rim inal d o T JR S , s u f r a g a n d o o e n t e n d i m e n t o aqu i esp o sa d o .
97 Cfe. Ferrajo ii, D crecho y Knzóti, op. cit.

TRIBU N A L DO JÚ RI 7 3
4 . O Tribunal do Júri -
origem, composição e críticas

Um dos modos de tratar a m orte no C ódigo Penal é o Tribunal


do Júri, regulado pelo C ódigo de P rocesso Penal nos artigos 406 e
seguintes. Pela sua relevância, serão m ostrad os os d iv erso s aspectos
de seu funcionamento cm diversos países que o ad otam , sua origem
na sociedade brasileira, sua co m p o siç ã o e sua ínstru m en la 1iz aÇcão .

4.1. A origem do jú ri e o d ire ito a lie n íg e n a

4.1.1. O jú ri e a com m on law - Inglaterrn e Estados Unidos


Muito embora se possa falar da existência do júri na a n tig u id a­
de,98 é na Magna Carta inglesa que ele aparece com m ais especifici­
dade, servindo de m odelo para o m und o. T alvez p or isso o júri se
mantenha com mais prestígio nos países da coim non Inw, m orm ente
98 C o n fo r m e infor ma E d m u n d o O l iv e ir a , c i t a n d o J a m e s , A. In cia rd i, in C rim in al
Ju s íic c , os an tig os gre gos t iv e ra m a s a b e d o r i a d e cria r o p r i n c í p i o da Justiça
P o p u la r que flo resceu e se c o n s o l id o u n o s s i s t e m a s -Wgais a t r a v é s das g e ra çõ e s. A
título de ilu stra ção, é o p o r t u n o le m b ra r q u e a l l e l i é i a , de 2501 a 2 0 1 , foi o
T rib u n a l P opu la r da Grécia A ntig a q u e in s p ir o u a fó rm u la in g l e s a d o T r i b u n a l do
J úri, in tro d u z id o na Com m ún L aw a parti/ d e 10 66 p e lo rei G u ilh e rm e , o c o n q u i s t a ­
dor n o rm an d o . Durante a lle lié ia , D e m ó s t e n e s se c o n s a g r o u c o m o T r i b u n o ,
m e r e c e n d o d e sta q u e ta m b é m a A p o l o g ia de S ó c r a t e s feita p o r P la t ã o , q u e se
revolto u co ntra a c o n d e n a ç ã o d o seu M e s t r e S ó c r a t e s pela H e liéia . A p a rt ir de
1215, o 4- C o n cilio de L atr ão p ro v o c o u sig n if ic a tiv a re v ira v o lta no T r i b u n a l do
Júri na In glaterra, época do p e r ío d o E u glish L iberty. O tíill o f R ig h is, r e d i g i d o por
Ja m e s M a d iso n , trouxe a co n q u ista cio W ril o f H nbcas C o rp u s, m o d e l o ing lês que
se rviu de in s p ira çã o aos p aís es d o m u n d o todo. Cfe. O l i v e i r a , E d m u n d o . " O
T r ib u n a l do Júri na A d m in is t ra ç ã o da J u s t i ç a nos E s t a d o s U n i d o s " . In: T rib u n a l do
Jú r i - E studo sobre a m ais d em o crá tica in stitu iç ã o ju ríd ica b ra sileira . S ã o P a u lo , RT,
1999, p. 103.

T R IB U N A L DO JÚRI 7 5
nos E stados U n id o s ." Na Inglaterra, on de su rg e a idéia do jú ri com
doze jurados, o júri ainda é figura central, m u ito em b ora seu uso na
atualidade se restrinja a m enos de 5% dos ju lg a m en to s criminais
(são passíveis de ju lgam en to pelo júri crim es de h om icídio e o
estupro, além de outros crim es co n sid era d o s graves, cabendo ao
ju iz togado decidir se envia ou não o processo ao tribunal popular).
Até o ano de 1933 existia o Grnnd ju n /, que era com p o sto por 12 a 24
pessoas e decidia por maioria de 12. A tu alm en te só existe o Petit
ju n /, que apresenta o veredicto de g u ilty or rwt gu ilty.
De registrar que, na Inglaterra, não são n ecessá rios veredictos
u nânim es, admitindo-se maioria de 10-2 ou 11-1, pelo m enos. Com
efeito, o artigo 17 da Lei d e . 1974 {ju jics A ct) habilita o juiz de
prim eira instância a aceitar um veredicto p or m aioria, depois de
pelo m enos duas horas de deliberações infru tíferas do júri. Este
veredicto é efetivo se obtiver adesão de dez ju ra d o s em um júri de
onze ou mais, ou de nove em um júri de dez. Se o corp o de jurados
n ão chegar a um acordo, unân im e ou por m aioria, o juiz pode
d esonerá-los de sua função. Ta! circunstância não significa que o
acusado tenha sido absolvido. No novo ju lg a m en to, em não haven­
do a cord o outra vez, a acusação fica sem co n d içõ e s do ser provada.
N o que concerne aos recursos, em bora ad m itidos, são de difícil
consecu ção, em razão do fato de as d ecisões se rem im otivadas. São
as razões formais (nulidades) que acabam se n d o o fun dam en to da
m aioria das invalidações de ju lg a m en to s.100

99 M a r q u e s , J o s é F red erico, op. cit., p . 35, i n f o r m a q u e , e n q u a n t o o jú ri, sa lv o nos


p a ís es d e lín g u a inglesa, é instituição e m d e c a d ê n c i a , o e s c a b i n a t o se e n c o n tr a em
franc a a s c e n s ã o . Na França, d esd e a Lei de 25 d e n o v e m b r o d e 1 9 4 ] , e m e n d a d a
pe la ord on n n n ce de 20 de abril de 1 9 45 , m a g i s t r a d o s e j u i z e s le i g o s (a q u e le s em
n ú m e r o de três e estes em sete) d e li b e r a m c o n j u n t a m e n t e s o b r e o crim e e a
a p l i c a ç ã o da p en a. Na A l e m a n h a d e m o c r á t ic a d e W e i m a r , a r e f o r m a de 1924
t r a n s f o r m o u em e sc a b in a to o T r i b u n a l do Júri (S c h w u r g er ic h t), q u e a ss im passou a
fu n cio n a r , co m e sse caráter, en tre os tribu n a is da m e s m a e s p é c ie (S ch o ffen g e ric h t)
já e x iste n te s . Da Suíça, eis o q u e d iz B o u r g k n e e h í : " V e r i f i c a m o s q u e g ra n de
n ú m e r o de c a n tõ e s ignora a C ou r cVAssises ( p a r t i c u l a r m e n t e os d e S c h w y s , Lucer-
ne, B â le -V ille , S c h a h o u s e , S. Gall, G r i s o n s , V a ia is), O u t r o s in t r o d u z ir a m o s tribu­
na is de e s c a b i n o s (entre el es B erne, T ic in o , V a u d , N e u c h â t e l ) , ou t e n t a r a m criá-los
(Z uric h). O u t r o s , en fim , p r o c u r a m g u i a r o Júri na o r i e n t a ç ã o d e su a tarefa
(G e n e b ra ). R a r o s s ã o assim os que terão c o n s e r v a d o o J ú r i d e l i b e r a n d o só " .
100 Cfe. N u cci, G u i l h e r m e de S o u z a. jú ri. P rin cíp io s C o n s titu c io n a is. S ã o Paulo,
J u a r e z d e O liv eira Editora, 1999, p. 63 e segs. T a m b é m M o r a i s , A n t ô n i o M a n u e l, O
jú r i no trtbnnni. L is boa , H u g in, 2 00 0

7 6 LEN IO LU IZ STRECK
Já nos Estados U nidos, o jú ri tem guarida constitucional,'101
lendo-se no art. 3Q, seção II, item 3, que "o ju lg a m en to de todos os
crimes de responsabilidade será feito por júri e esse ju lgam en to
realizar-se-á no Estado em que os crim es tiverem sido com etidos;
mas, quando não sejam com etid o s em nen h um dos Estados, o
julgamento ocorrerá na localid ad e ou localid ad es que o Congresso
designar por lei." Já a 6 a Em enda acrescentou que "em todos os
processos crim inais, o acusado tem direito a ser ju lgad o por um júri
imparcial do local onde o crim e foi c o m e tid o ".102 Na m edida em que
não havia disposição legal que estabelecesse a form a de organ iza­
ção do júri, foi a ju risp rudên cia que desenvolveu a fórmula do
funcionamento da instituição, com doze ju rados (com o na Inglater­
ra) e a presidência de um juiz togado. O jú ri federal deverá
obrigatoriamente ser com posto de d oze m em bros, obrigação que
não se estende ao fu n cion am en to do jú ri nos Estados, exem plo do
qual é o Estado da Flórida. N o júri federal, o resultado necessaria­
mente deve ser unânim e; nos jú ris estaduais têm sido possíveis, em
alguns listados, decisões por m aioria de votos, desde que não se
trate de crimes graves ou punidos com a pena cie morte. Nesse
sentido, o raso Apociaea v. O regon, 406, US 404, 1972, onde uma
condenação sem veredicto unânim e foi julgada constitucional pela
Suprem e C ourt, sob o argu m ento de que a 6ê Em enda estabeleceu o
direito ao júri imparcial, m as não obrigou a u nanim id ad e nas
decisões. Há uma diferença entre o g ran d ju ry e o petit ju n j. O
judicium accu sationis, espécie de juízo de pronúncia brasileiro, é
feito p e l o g ran d ju ry. Na ju risdição federal, é obrigatória a existência
do gran d ju ry para todos os delitos consid erad os graves. A co m p o si­
ção do gran d ju ry varia de Estado para Estado, e seu núm ero vai de
16 a 23 m em bros. Já o p eq u en o é o jú ri p ropriam en te dito, a quem
compete julgar se o réu é inocente ou culpado, cabend o ainda aos
jurados fazer a recom endação da pena a ser aplicada ao reú .103
De registrar que nas cortes federais é perm itido ao réu abrir
mão do seu direito ao ju lg a m en to pelo júri, incluindo casos puní-
101 S e g u n d o in fo r m a N u c c i, op . c i t , c i t a n d o d a d o s c o le t a d o s p o r N á d i a de A r a ú jo
e R ic a r d o A l m e id a , são r e a liz a d o s cer ca de 1 2 0.0 0 0 j ú r i s p o r a n o n o s E sta dos
U nidos, o q u e c o r r e s p o n d e a m a is de 9 0 % d os ju l g a m e n t o s e f e ti v a d o s no m u n d o
todo.
102 A 7- E m e n d a da C o n s ti t u i ç ã o A m e r i c a n a e s t a b e le c e u o d ir eito no júri em
causas cíveis, d e ix a n d o a s s e n t a d o q u e " n e n h u m ca so j u l g a d o p o r u m júri p o d e rá
ser revisto p o r q u a l q u e r tribu nal d o s E s t a d o s U n id o s, s e n ã o e m c o n f o r m i d a d e
com as regras do d ir eit o c o m u m " .
503 Id em , ibidem.

JBmr*mf
T R I B U N A L D O JÚ R I / /
veis com a pena capital, desde que esteja d ev id am en te aconselhado
por um advogado e o faça con scientem ente, além de ser necessário
contar com a concordância do prom otor e do juiz. Em cortes
estaduais ocorre o m esmo, em bora com d iferen tes lim itações: al­
guns Estados não permitem afastar o ju lg a m e n to pelo júri em casos
puníveis com pena de morte; outros, nos casos de crim es graves,
etc. Deve ser lembrado que os Estados U nidos p o ssu em um sistema
de adm inistração de justiça b em diferente da Europa continental, de
onde o Brasil herdou a m aior parte dos seus institutos jurídicos.
Não é de se espantar, pois, que possa o a cu sad o evitar o julgam ento
pelo júri, inclusive admitindo d iretam ente sua culpa, caso em que
pode ser im ediatamente sentenciado. Além disso, um dos princí­
pios básicos do direito processual am ericano é a "particip ação dos
leigos", donde se vislumbra a im portância que possui o Tribunal do
Júri, mas permitindo, inclusive, que o ju iz togado, n om eado ou
eleito, conform e o caso, possa não ser bacharel em Direito. Embora
seja a minoria, já vários exem plos de juizes sem form a ção jurídica
exercendo a judicatura. Os con den ad os têm se m p re o direito de
recorrer, especialmente quando sentenciados a penas de prisão.
Estatísticas demonstram que som ente 10 a 20% dos apelos são
providos pelos tribunais togados. O fato é que, nos Estados Unidos,
o júri é, realmente, uma garantia’' funda m ental do cidadão, prevista
na Constituição, e que precisa ser respeitada por todas as cortes
(federais e estaduais). N um sistema onde os juizes e pro m o to res são
eleitos ou nom eados pelo Poder Executivo, in existin d o concurso
público de admissão, onde prevalece o sistem a do direito costum ei­
ro, mais frágil que o principio de reserva legal recom endada, bem
com o onde se privilegia a participação do cid ad ão leigo na adm inis­
tração de justiça, o júri é uma garantia que o réu tem contra a
opressão eventualmente assacada contra sua pessoa p or um acusa­
dor parcial, em campanha eleitoral, b u sca n d o destacar-se na mídia,
ou contra o juiz, igualmente em cam panha, preten den do mostrar
aos seus eleitores que é severo no com bate ao crime. Sentindo-se,
pois, pressionado pela máquina estatal, pod e invocar, com o garan­
tia, o julgam ento pelo júri, conseguindo que seus pares decidam seu
destino. Entretanto, apesar de nítida garantia, o júri am ericano não
tem a mesma força que o tribunal popular au feriu na C onstituição
brasileira, pois o réu tem possibilidade de refu tar esse direito,
enquanto, em nosso caso, a regra constitucional é irren u n ciáv el.104

ltM Cfe. Nucci, op, cit.

7 8 LEN IO LUIZ STRECK


4.1.2, O jú r i na França
O júri foi introduzido na França pela R ev olu ção Francesa,
visando a retirar da m agistratu ra o p o d e r de ju lg ar e rep assá-lo ao
povo, detentor da soberania e da legitim idade. N esse sentido, são
expressivas as palavras de Siei/ès, ao expo r seu projeto de Júri
C onstitucional, justificando a ex clu são do ju iz ord inário do exercí­
cio das funções àquele órgão en co m en d a d as. A falta de fé nos juizes
baseava-se no trabalho que estes haviam realizado em favor do
m onarca absoluto, trabalho esse caracterizad o pelo c o n fo rm ism o e
pela docilidade, conform e b em resum ido por T o cqu eville: "N ã o se
pode esquecer jamais que, se por um lado, o P od er Ju d ic iá rio no
Antigo Regime se estendia sem cessar além da esfera n atu ral de sua
autoridade, por outro, nunca a com pletava por inteiro ", Desde
então fomentou-se uma tradição na França que se esten d e até
nossos dias. Releva notar que essa desconfiança para c o m os juizes
teve com o reflexo a exclusão dos tribunais da tarefa de garantir a
Constituição, exclusão que m arca o sistema francês e que tem
influído o pensam ento europeu sobre essa matéria.
O júri popular foi criado pelo Decreto de 30 de abril de 1790,
sendo convalidado pela C on stituição de 1793. A Lei de O rg an iz ação
Judiciária de 1791 regulou o fun cion am ento do júri sob a form a de
júri de acusação e de sentença. O jú ri de acusação (G rau d Ju ry),
extinto em 1808, era co m p o sto de oito m em bros, que decidia por
m aioria de votos. O T ribu n al do Júri iniciou com o n ú m e r o de dez
m em bros. Em 1808 entrou em v ig o r o C ódigo de Instrução C rim i­
nal, passando o Júri a ser com p o sto por oito m em b ros através das
leis de 4 de março de 1831 e de 28 de abril de 1832.
Depois de várias m od ifica ções, o Júri firm ou-se co m o escabina-
to,.(3 magistrados, e 9 ju rados). Na realidade, o júri é u m a parte da
Cour d'A ssises. A Lei de 28 de ju lh o de 1978 iniciou o chamacio
período do Júri Democrático. A escolha dos jurados passa por um
amplo filtro, com a participação de deputados locais e a O rd em dos
Advogados. A lista anual e a especial são enviadas pelo P residente
dn Com issão ao Prefeito, que a faz chegar ao P resid en te de cada
Câmara. Pelo m enos trinta dias de antecedência em relação à
abertura das sessões da C ou r d'as$ises, os seus p resid en tes fazem o
sorteio em audiência pública sobre a lista anual, retirando os nom es
de trinta e cinco jurados que irão form ar a lista da sessão e os dez
ju rados suplentes, com uma antecedência de quinze dias, pelo
m enos, sobre o dia da abertura da sessão. Na presença do acusado e

T RIBU N A L D O JÚRI 79
p o r sorteio, são extraídos os nove nom es que com po rão a lista de
ju rad os (leigos) que participação da sessão de ju lg a m e n to .105
O Code de P rocêdure Pénnle, no L ivre D eitxièm e, na parte d estina­
da à ju rid iction s de Ju g em en t, regula o fu n cion a m e n to da Cour
dnssises, que é composta pela Corte p ro p ria m en te dita e o Ju ry. A
C our é composta pelo m agistrado presidente e por dois assessores.
Este presidente é oriundo cie uma C âm ara ou de uma Corte de
Apelação. O jury striclo setisu é com posto por nov e ju rad os p o p u la­
res, que, somados aos três m em bros da m agistratura, c o m p õ em a
C ou r d'nssises, que funciona, desse m od o, com o escabin ato, exem plo
seguido por Portugal.
O acusado não pode recusar mais do que cinco ju rados, e o
Ministério Público, mais do que quatro. O s ju rad o s prestam c o m ­
prom isso, a exem plo do que ocorre no Brasil, após a exortação que
lhes faz o juiz-presidente: "V ous ju rez et pron iotez dexatniner avcc
Inttention ln plus scru pu leu se lês chnrges que seron t portées contra X ...”,
respondendo "Je le ju re".
Não com parecendo o defensor do acusado, o presidente lhe
nomeara defensor de ofício. Ei da a acusação (larrêt de renvoi), o
acusado será interrogado. Durante a instrução, juizes e jurados
podem , de forma ampla, interrogar acusado, testem u nhas e outras
pessoas que ju lgarem conveniente.
Finda a produção da prova e os debates, o p resid en te exporá à
C our d'A ssises, reunida em sala secreta, p o n to a ponto as questões
discutidas, seguindo o seguinte m odelo: "Laccusé est-il coupable
davoír conim is tel f a i t ?" Uma questão é posta sobre cada fato,
conform e constou na acusação (larrêt de ren voi). De igual m odo,
cada circunstância agravante será objeto de uma questão distinta.
Se resultar dos debates fatos que c o m p o rta re m outra qualifica­
ção legal não constante na acusação do M inistério Público, o
presid ente da C our d'A ssises pod erá propor ou tros "q u es ito s" (sub­
sidiários). Cada m agistrado e cada jurado responderá a cada ques­
tão, com eçan do com a expressão "sur mon h o u n eu r et tua conscience,
ma ãéffarn tion es t...”. Secretam en te, respond erá sim. ou não, entre­
gando o voto ao presidente, que a depositará em uma urna.
O presidente abrirá cada voto na presença de todos os m em ­
bros da Corte. Os votos nulos e os brancos são con tados em favor da
lcb Cfe. S te fa n i, C e v a s s e u r e B ou loc. P ro cêd u re P én n le, P a ris , 1980; T o u lem o n ,
A ndré. Ln q u estíon du Ju r y . Pari s, Ed. L ib r a i r i e R e c u e i ! S i r e y , 1930; C h a p a r , F. La
C our d'A ssises. Paris, 1 980; M o ra i s , A n t o n i o M a n u e l . O j ú r i no trib u n a l. Lisboa,
H ugin, 2 000.

8 0 LENIO LUIZ STRECK


acusação, sendo que, para a c o n d en a ção se rão n ecessários oito
votos, bastando apenas cinco para a absolvição do acusado. Ressal­
te-se que, a exemplo do que ocorre em P ortugal, a C our d'A ssises
também delibera sobre a pena a ser aplicada ao acusado. Para
aplicação da pena m áxim a, exige-se o m ínim o de oito votos. Não
alcançando esse mínim o, o m áxim o da pena ficará limitada a trinta
anos. A decisão sobre a pena, lato sen su , exige m aioria absoluta.,
sendo que serão feitos tantos turnos quan tos n ecessários para
alcançar o quorum . Ou seja, se após o p rim eiro turno não for
atingido o quorum de maioria absoluta acerca da pena proposta,
será feito um segunde) tu rn o, s e n d o que a pena, que anteriorm ente
não atingiu o quorum , deverá ser descartada na rod a d a seguinte. Se,
após o segundo escrutínio, a pena proposta não atingir novam ente
o quorum de maioria absoluta, será feito um terceiro escrutínio,
descartando-se a pena m aior anteriorm ente proposta. Do mesmo
modo, será feito um quarto escrutínio e assim p or diante, sempre
descartando a pena maior, até atingir o quorum necessário para a
fixação da pena. A Corte tam bém deliberará so bre as penas acessó­
rias ou compltf men tares, assim com o em relação ao sursis.

4.1.3. (3 júri em P ortugal


Vigente sob várias m odalidad es desde o século XIX, importa
informar que o Tribunal do Júri no século XX, até a Revolução dos
Cravos, muito embora regulado pelo C ódigo de Processo Penal de
1929, não foi aplicado na prática, uma vez que a Lei de Recru tam en ­
to dos Jurados nunca chegou a ser decretada. M ais ainda, o
Decreto-Lei n° 35.044, de 20 cie ou tubro de 1945, correspon d en te ao
Estatuto Judiciário, não previa o Tribu n al do Júri, o que faz com que
se possa afirmar que o júri estava abolido desde aquela data.
Com a Revolução, dirigida pelo M FA - M o vim en to das Forças
Armadas, Portugal retornou à dem ocracia. Nesse contexto de retor­
no ao Estado Dem ocrático de Direito, o D ecreto-Lei ne 605/75, de 3
de novem bro, informava no seu p reâm bu lo q u e o Program a do
MFA determ ina, nas m edidas a curto prazo, a dignificação do
processo pena) em todas as suas fases, tendo o M inistério da Justiça,
no seu Plano de Acção, aprovado em C on selho de M inistros a 20 de
setembro de 1974, com o prioritária, em ordem ao cum prim ento
daquela norma, a simplificação e celeridade do processo penal, a
fusão num só dos processos correcionais e de polícia correcional,
assim como a instituição do Júri para julgar os crim es mais graves.
No nB 4 do citado P reâm bulo, constou que a instituição do Júri

TRIBU N A L DO JÚRI 8 1
impõe-se com o princípio da ordem dem ocrática instaurada pelo
MFA. Na verdade, som ente os regim es totalitários poderão ter
receio da intervenção dos rep resen tan tes d os cidadãos, base de toda
a ordem democrática, para julgar os réus. Esta é a realidade dos
países democráticos já conhecida pela legislação penal portuguesa e
afastada na prática em 1927. As críticas que são feitas norm alm ente
ao Júri podem afastar-se se, tal com o sucede em França, o jú ri for
formado por Juizes de Direito e por ju rad os populares. O Júri
iníervirá somente quando a acusação ou a defesa assim o requei­
ram, deixando-se às partes a respon sab ilid ad e de o ju lgam en to ser
efetuado pelo tribuna! coletivo, ficando a sua intervenção limitada
aos julgamentos de matéria de processo penal. Na m ed id a em que o
pronunciam ento visa à existência de indícios suficientes, não se vê
razãô - e assim concluia o preâm b u lo do M FA - para que a sentença
da Segunda Instânia que o aprecie se possa recorrer perante o
Supremo Tribunal de Justiça, som ente d estinado por natureza a
apreciação do direito.
Curn a reforma do C ód igo de Processo Penal, h o u v e modifica­
ções no Tribunal do Júri. O art. 5 foi alterado pela Lei n’’
38/87, de 23 de dezem bro (Lei dos Tribu n ais judiciais),
alterando, entre outros, o art. 82 , retcrem e ao 'Tribunal do Júri, com
o que passou a competir ao Tribunal do Júri julgar os processos
relativos a crimes previstos no título II e no capítulo V do livro II do
C ódigo Penal e os que respeitem a crimes a que seja abstratam ente
aplicável a pena de prisão su perior a oito anos, quand o não devam
ser julgados pelo tribunal, e a intervenção do Júri tenha sido
requerida nos termos da lei do processo. M ais tarde, adveio a Lei na
24/90, alterando o nQ1 do m esm o artigo, passando a estabelecer que
compete ao Júri julgar os processos a que se refere o artigo 13 do
C ódigo Penal, salvo se tiverenppor objeto crim es de terrorismo.
O Júri português é com po sto pior três juizes, que constituem o
tribunal coletivo, por quatro ju rad os efetivos e por quatro suplen­
tes. O tribunal é presidido pelo presid en te do tribunal coletivo.
Importante notar que, a exem plo do que já constava das idéias dos
revolucionários de 1974, com pete ao tribunal do júri julgar os
processos cuja intervenção do júri tiver sido requerida pelo M inisté­
rio Público, pelo assistente ou pelo argüido. Portanto, regra geral ó
que o acusado não seja ju lg ad o pelo jú ri. Entretanto, uma vez feito o
pedido para julgam ento pelo júri, é vedada a retratação.
O júri intervém na decisão das questões da culpabilidade e da
determinação da sanção. Preparado o processo para julgam ento,

8 2 LENIO LUIZ STRECK


será designado o dia e a hora para a sua realização dentro dos trinta
dias seguintes, devendo as p artes, p eritos, testem u nh as e outras
pessoas relacionadas ao ju lg am en to, ser con v ocad as para compare-
cimento. O sorteio dos ju rad os é feito cinco dias antes cio ju lg am en ­
to, cujos nom es não poderão ser revelados.
Depois dos debates orais, o ju iz-p resid en te perguntará ao
acusado se tem mais alguma coisa a -legar em sua defesa. Após,
lavrará os quesitos, que serão su b m e tid o s ao conselho de sentença.
Os ju izes que compõem o T ribu n al do Júri (m agistrad os e jurados
leigos) poderão, oficiosam ente ou a req u erim e n to cia acusação ou
da defesa, propor quesitos sobre fatos que resultem da d is c u ss ã o da
causa e que possam excluir a resp on sab ilid ad e crim inal do acusado
ou dim inu ir a gravidade da pena. O m agistrado do Ministério
P ú b lic o ,106 bem como o defensor, poderão requ erer a inclusão de
outros quesitos, que serão d eferid os, ou não, pelo conselho de
ju rados. A deliberação dos ju rad os será em sala secreta.
Na sala secreta, o ju iz-p resid en te fará a leitura dos quesitos,
explicando-os, sem fazer, no en tanto, q u alq u er resumo dos debates
ou sobre as provas prod uzid as em plenário. Os ju rados poderão
pedir esclarecimentos ao ju iz-presid eníe. Os votos serão proferidos
oralm ente, em ordem crescente por idade, votando prim eiro os
ju rados (leigos), para depois v otarem os juizes togados, votando
por últim o o presidente. O júri poderá dar com o p ro vad o qualquer
fato, m esm o que não esteja co m p re e n d id o nos quesitos, desde que
seja para beneficiar o acusado. Importante, reg istrar que a pena é fixada
pelo tribunal coletivo. As d ecisões são tom ad as por m aio ria simples.
Cada juiz e cada jurado d ev e en u n cia r as razões da sua opinião,
indicando, sem pre que p ossível, os m eios de prova que serviram para
fornm r n sua convicção. N ão é perm itida abstenção. Nem os juizes que
constituem o Tribunal coletivo n em q ualq uer dos ju ra d o s poderão
revelar o que se tenha passado d urante a d eliberação e que se
relacione com a causa, nem ex p rim ir a sua opinião sobre o veredicto
do Júri depois de proferido.
A sentença proferida pelo Tribunal do Júri, ainda que absolutó-
ria, poderá condenar o acusado (argúido) em indenização civil,
sem pre que o pedido vier a revelar-se fundado.
Da decisão do Júri caberá recu rso para o Su p rem o Tribunal de
Justiça. De ressaltar que, quando for d eterm in ad o novo ju lgam ento,
este terá lugar perante outros ju ra d o s e com um n ov o tribunal
106 O b s e r v e - s e que, a e x e m p l o do sis t e m a fra n c ês, o s m e m b ro s d o M in is tér io
P ú b lic o e m Portugal são d e n o m i n a d o s dc m a g i s t r a d o s

TRIBU N A L DO JÚ R I 83
coletivo, o qual será constituído por um juiz d ese m b arg a d o r, que
presidirá, e por dois ju izes do círculo ju d icial a que pertença a
com arca onde o processo se d esenrolou.
Releva registrar, finalm ente, que, em face de o ju lg a m en to pelo
Júri ser facultativo, som ente ocorrendo, portan to, se as partes o
requererem, raros são os ju lg am en to s populares na República
'Portuguesa.

4.1.4. O jú ri na Espimha
Historicamente, o júri tem tido guarida constitucional na Espa­
nha. Com efeito, cada período de liberdade tem significado a consa­
gração constitucional do júri: na Constituição de Cádiz de 1812 e nas
Constituições de 1837, 1869 e 1931, sendo que, a cada período de
retrocesso democrático das liberdades públicas, a participação popu­
lar nos julgamentos tem sido restringida ou até m esm o eliminada.
Atualmente, o artigo 125 da C on stituição do Reino da Espanha
estabelece que os cidadãos p od erão participar da ad m inistração da
ju stiça mediante a instituição do júri, na forma em que a lei
determinar. O texto constitucional, a exem plo do que ocorre no
Brasil, alça o júri na categoria dos direitos fun dam en tais (art. 23.1),
garantindo a participação dos cidadãos nos assuntos públicos.
O júri espanhol, regulado pela Lei orgânica n ‘! 5/95, tem
com petência para o ju lgam en to dos crim es contra as pessoas, os
crim es cometidos por funcionários públicos no exercício do cargo,
crim es contra a honra, contra a liberdade e a segurança e os crimes
de incêndio. Ficam excluídos ex p ressa m en te os crim es que devam
ficar sob o crivo da Audiência Nacional.
Sua com posição é de nove ju ra d o s e um m agistrado, integrante
da Audiência Provincial, que o presidirá. Os ju rad os em itirão
veredicto declarando provado ou n ão p rovado o fato que o magis-
trado-presidente tenha colocado sob ju lgam en to, assim com o aq u e­
les outros fatos que decidam incluir n o veredicto e que não
im pliquem variação substancial do fato principal. A função de
ju rad o é remunerada. N o dia e hora design ado para o ju lgam en to,
na presença das partes, é feito o sorteio dos ju rados, d evendo estar
presentes no mínimo vinte. Os ju ra d os são interrogados, p e rg u n ­
tando-lhes acerca de im pedim en tos e incapacidades. As partes
tam bém podem interrogar os ju rad os sobre as causas de im p e d i­
m entos, incapacidades e escusas.
Abertos os trabalhos, o presid en te abrirá às partes o p o rtu n id a­
de para que exponham aos ju rados as alegações que julgarem

8 4 LEN IO LUIZ STRECK


convenientes, especialm ente acerca da prova objeto cio processo,
ocasião em que poderão propor a produção de n ov a s provas. Os
jurados poderão, por escrito, fazer perguntas às testem u nh as, aos
peritos e ao acusado, tendo acesso a todo o processad o.
O M inistério Público e a defesa pod erão in terrogar acusado,
testemunhas e peritos sobre as contradições que considerem relevan­
tes, acen i cio que foi declarado no juízo oral e na fase de instrução.
Concluído o procedim ento cie prod ução da pro va, as partes
poderão m odificar as suas conclusões prelim inares, feitas por oca­
sião da abertura da sessão. U m a vez conclu ídas as alegações da
acusação, a defesa pod e solicitar ao presidente a dissolução do júri,
se considerar que do processado não resultaram provas suficientes
para a condenação. Se a inexistência de prova som ente afeta a alguns
fatos, o magistra do~presid en te poderá excluí-los do rol acusatório.
Importante notar que o júri pode ser dissolvido se as partes
assim concordarem. N esse caso, o m agistrado -p resid en te ditará
sentença que corresponda, atendidos os fatos ad m itid o s por esse
"acordo",. Se, entretanto, entender que existem m otiv os suficientes
para concluir que o fato objeto da denúncia não ocorreu conform e o
narrado ou que não tenha sido o acusado, não dissolverá o con se­
lho, determ inando o seguim ento do ju lgam ento. Por outro lacio,
quando o Ministério Público, em suas alegações finais, ou em
qualquer m om en to anterior, desistir do pedido de con den ação, o
júri será dissolvido pelo presidente, com a con seq ü en te p ro m u lg a ­
ção da sentença absolutória, o que dem onstra o grau de autonomia
do M inistério Público em m atéria criminal. Ou seja, o pedido de
absolvição do M inistério Público prescinde da m an ifestação do júri
e do próprio m agistrado-presidente.
Concluída a fase oral do ju lgam en to (alegações iniciais, produ­
ção de prova e alegações finais), o presidente subm eterá ao jurados,
por escrito, as perguntas necessárias para o alcance do veredicto:
especificará, um a um, os fatos alegados pelas partes, e que o júri
deve declarar provado ou não; em seguida, apresentará os fatos
alegados que possam determ inar a existência de causa excludente;
ao depois, narrará o fato que d eterm ina o grau de execução do
crime, a participação ou circunstância que altere a respon sabilid a­
de; finalm ente, especificará o fato delituoso pelo qual o acusado
deverá ser declarado culpado ou não culpado. A ntes de os jurados
serem ouvidos acerca dos quesitos, as partes p od erão m anifestar-se
acerca da inclusão ou exclusão de fatos, circunstâncias ou outras
causas que julgarem convenientes.

TRIBU N A L D O JÚ R I 85
Na fase seguinte, os ju rados são retirados da sala cie ju lg am en ­
to, para deliberarem secretam ente. O prim eiro ju ra d o sorteado será
o porta-voz do corpo de ju rad os. M esm o que haja n ecessid ade de
descanso, não poderá haver quebra da incornunicabilidade dos
jurados com o m undo exterior. Os ju rad os pod erão requerer que o
m agistrado-presidente aclare d eterm in ad as q uestões, que as fará
acom panhado das partes. Transcorridos dois dias desde o início da
deliberação cios jurados em sala secreta, sem q u e haja um veredicto,
o m agistrado-presidente poderá con v ocá-los para esclarecim entos.
A votação dos jurados será nom inal, em voz alta e por ordem
alfabética, votando por último o porta-voz. N en h u m jurado poderá
abster-se de votar. O jurado que desejar abster-se será m ultado em
setenta e cinco mil pesetas, além da possibilidade de ser processado
criminalmente. De qualquer sorte, se o ju rad o insistir, a abstenção
será contada em favor do acusado.
O porta-voz submeterá à votação, um a um, os quesitos, assim
corno propostos pelo m agistrado-presidente. V otarão s e conside-
n n p" r r V s ou não os fatos. Para declaração cie " p ro v a d o ", serão
ete votos, e, para a declaração "n ão p ro va d o", serão
elo m enos cinco votos. Im portante referir que se não
necessária maioria, poderá ser su b m e tid o à votação
p.i no v jii nova redação, até ser atingida a n ecessária maioria. A
m odificação não poderá deixar de su bm eter à v ota ção a parte do
fato proposta pelo m agistrado-presidente. O que pod e ser feita é a
inclusão de um novo quesito, sendo vedada alteração que prejudi­
que o acusado. Os jurados também deliberam so bre os benefícios
como liberdade condicional e perdão judicial, sendo necessários
para tanto cinco votos.
Se o veredicto for pela inculpabilidnd, o m agistrado-presiden te
ditará im ediatamente a sentença absolutória. Se, ao contrário, o
veredicto for pela cu lpabilidad, o presidente con cederá a palavra ao
Prom otor de justiça e à defesa para que, pela o rd em , opin em acerca
da pena ou medidas que devam ser impostas ao acusado, bem como
sobre a responsabilidade civil.

4.2. O jú ri no Brasil

Assim como o direito constitucional nos prim órd io s do Brasil


independente esteve baseado nos ideais da rev olução francesa
(ausência de controle jurisdicional de constitucional, pod er m ode­

8 6 LENIO LUIZ STRECK


rador, etc.), a instituição do júri em nosso direito ta m b ém deitou
raízes no direito francês. C om o um an tep aro aos ju iz es do antigo
regime, originários da aristocracia, a França im p o rto u da Inglaterra
o m odelo de julgam ento popular, o que se pode p erceber pela
instituição do júri criminal já no ano seguinte ao da Revolução.
Por mais estranho que possa parecer, o jú ri surgiu no Brasil
não parn ju lgar delitos graves contra a vida, mas, sim, para julgar os
crim es de imprensa, o que ficou estab elecido pela Lei de 18 de julho
de 182.2.11,7 Esse júri era com po sto por vinte e q uatro membros,
recrutados dentre "os hom ens bons, h on rad os, inteligentes e patrio­
tas". Já então seu caráter de representa ti v idade passou a ser ques­
tionado, na medida em que, numa so ciedad e escravocrata,, só
podiam ser jurados os cidadãos que p od iam ser eleitos, ou seja, os
cham ados "hom ens b on s", que d etiv essem uma determ in ad a renda
e pertencentes, por conseqüência, às cam ad a s dom inan tes, já na
égide da Constituição do Império, surgiu a Lei de 20 de setem bro de
1830, através da qual foi instituído o júri de acu sa çã o e o júri de
julgação (s/c), o primeiro com posto por vinte e três m em b ros, e o
segundo, por doze.
já o Código de Processo Penal de 1832, " im ita n d o as leis
inglesas, norte-americanas e francesas, deu ao júri atribuições
am plíssim as, superiores ao grau de d ese n v o lv im en to da nação que
se constituía, esquecendo-se, assim, o legislador de que as institui­
ções judiciárias, segundo observa M itterm ayer, para que tenham
bom êxito, tam bém exigem cultura, terreno e clim a a p ro p ria d o s " 108,
estabeleceu duas formas de processo: su m ário e ord inário. O pro­
cesso sumário cuidava dos crimes cie com p etên cia do ju iz de paz, o
que incluía a formação das queixas, Já o processo ordinário era da
com petência do Conselho de Jurad os, tanto na fase da denúncia
(aceitação"6u não da queixa) quanto na de ju lgam en to. O Conselho
de Jurados era presidido por um ju iz de direito. O conselho de
pronúncia (júri de acusação) devia respon d er à seguinte pergunta:
"H á neste processo suficiente esclarecim ento sobre o crim e e seu
autor para proceder a acusação?" Caso n egativo, pro ced id a a uma
instrução perante o conselho, que então deveria " r a t ific a r" o proces­
so e responder a uma segunda pergunta: "P ro c ed e a acusação
ll" S o b r e o histó rico do T rib u n a l do Jú ri, v e r M a r q u e s , J o s é F r e d e r i c o , op. cit.
T a m b é m B onfim , Edilson M o u g en o t. Jú r i - do in q u é rito no p le n á r io . S ã o P aulo,
S a r a iv a , 1994.
108 ç f o . M a r q u e s , José Frederico . A ín stiln içrío do Jú ri, S ã o P a u lo , B o o k s e tle r, 1997,
p. 39, cita n d o C â n d id o de O liveir a Filho.

T R IB U N A L DO JÚRI 87
contra a lg u ém ?" Passava-se, em seguida, ao jú ri de ju lg a m e n to ou
sentença, O júri de então funcionava do seguinte m odo, con form e
informa M en des de Alm eida: "n o dia do Júri de a cusação, eram
sorteados sessenta juizes de fato. O ju iz de paz do distrito da sede
apresentava os processos de todos os distritos do term o, rem etidos
pelos dem ais juizes de p az e, p reenchidas certas form alidades
legais, o juiz de direito, dirigindo a sessão, en cam in h ava os ju rados,
com os autos, para a sala secreta, onde procediam a c o n firm a çã o ou
revogação das pronúncias ou im pronúncias. C on stitu íam os ju ra ­
dos, assim, o conselho de acusação. Sé) d epois de sua decisão
podiam os réus ser acusados perante o c o n selh o de sentença.
Form avam este segundo Júri doze jurados tirados à sorte: à medida
que o nome cio sorteado fosse sendo lido pelo ju iz de direito,
podiam acusador e acusado ou acusados fazer recu sações im otiva-
das, em núm ero de doze, fora os im p e d id o s ".109
O júri de acusação foi extinto em 1841, p a ss a n d o a instrução
criminal para a respon sabilidad e da polícia. Ou seja, foi extinto júri
de acusação, sendo a form ação da culpa e a sentença de pronúncia
atribuídas às autoridades policiais e aos juizes m u n icipais, d ep en ­
d endo a pronúncia dos d elegados e su bd elegad o s de confirm ação
dos juizes municipais. A lista de jurados passou a ser organizada
pelos delegados de polícia, que as rem etiam aos juizes de direito,
com petindo a uma ju nta, c o m p o s t a p e lo juiz, pelo p ro m o to r e pelo
presidente da Câm ara M unicipal conhecer das rec la m a çõ es e fazer
a lista geral de jurados. A exigência da u n an im id ad e de votos
constante no C ódigo de Processo Penal para a ap licação da p en a de
morte foi m odificada pelo art. 66 da Lei n° 261, que d eterm in ou
fosse a decisão do júri vencida por duas terças partes dos votos; as
dem ais decisões deveriam ser tomadas p or m aioria absoluta. A
aplicação da pena cabia ao juiz, no grau m áx im o, m éd io ou m ínim o,
de acordo com a m anifestação dos jurados. A lei 562, de 2 de ju lho
de 1850, subtraiu da com petência do júri os crim es de m oed a falsa,
■roubo, hom icídio nos m unicípios de fronteira do Im p ério , resistên­
cia e retirada de presos, além da b ancarro ta.110
A reforma processual de 1871 trouxe sensív eis m od ificações no
júri. Com efeito, a Lei n° 2.033 de 20 de setem b ro de 1871, m anteve
a divisão territorial em distritos de Relação, co m a rca s, term os e
distritos de paz, classificando as com arcas em gerais e especiais,
estas com preen did as com o as que estivessem na sede dos Tribunais
109 í d e m , ib id e m , p. 41.
110 í d e m , ib id e m , p. 4 3 e 44.

88 LENIO LUIZ STRECK


de Relação, ou as que fossem com postas de urn só termo, desde que
fosse possível ir e voltar da sede da Relação em um só dia. Foi
também restabelecida a com petência do júri para os crim es que a lei
n9 562 havia atribuído aos juizes. De registrar a extinção das
atribuições dos chefes de polícia, d elegad os e su bdelegad os para a
formação da culpa e pronúncia nos crim es com u ns, passando as
pronúncias para a com petência dos ju izes de direito nas com arcas
especiais, com recurso voluntário para a Relação, e dos juizes
municipais, com recurso ex o fficio para o ju iz de direito, nas
comarcas gerais111.
Com a proclam ação da Rep ública, o júri foi m antido, tendo o
Decreto 848., de 11 de outubro de 1890, criad o o júri federal,
composto de doze ju rad os, sorteados dentre trinta e seis cidadãos
do corpo de jurado estadual da C om arca, A expressão "é mantida a
instituição do jú ri" gerou intenso debate. De u m lado, autores como
Rui Barbosa, Duarte de A zev ed o e Pedro Lessa sustentavam a tese
de que a m anutenção pela C on stituição significava que a essência
do jú ri deveria ser mantida pelas leis posteriores, sendo que
alterações que im plicassem a alteração do n úcleo político do júri
implicava a sua não-m an uten ção e, portanto, na violação da C onsti­
tuição. Ern sentido contrário, C arlos M axim iliano sustentava o
contrário, ou seja, de que a m a n u ten çã o explicitada pela C onstitui­
ção não significava a im posição do s t a t u s lju o anterior. Em 7 de
outubro de 1899, o Su prem o Tribunal assim d ec id iu 512.
A Constituição do Estado N ov o, de 1937, não assinala sua
existência, sendo que somente no ano seguinte foi regulamentado.
N aquele período, o Decreto 167 regu lam en tou o júri, alterando-lhe
profundamente a substância. C om efeito, uma das alterações consis­
tiu na retirada da soberania dos veredictos, m ediante a possibilida­
de de apelação sobre o m érito, q uan d o h ou vesse "injustiça da
decisão, por sua completa divergência com a provas existentes nos
autos ou produzidas em plenário"' (art. 92, b), o que o aproxim ava
do sistema de recursos que vigora atualm ente. A diferença é que, ao
contrário de d evolver os autos à C om arca, o Decreto 167 estabele­
ceu que o Tribunal de A pelação estabeleceria a nova pena ou
absolveria o acusado (art. 96). De salientar, ainda, que, em 1934, o
Tribunal do Júri já tinha passado d o C apítu lo "D o s Direitos e
Garantias Ind ivid uais" para o que tratava "D o Poder Jud iciário"
saindo, assim, da esfera da cidadania para a órbita do Estado.
111 íd e m , ibid e m , p. 45 e 46.
112 í d e m , ibid e m , p. 4 8 e 49,

TRIBUNAL DO JÚW 8 9
Perdendo sua soberania em 1937, o júri rec u p ero u -a com a
Constituição de 1946, quando foi recolocado no C ap ítu lo "D os
Direitos e Garantias Individuais", com com petên cia específica para
o julgam ento dos crimes dolosos contra a vida.
Tal dispositivo foi m antido pela C on stituição de 1967 e pela
Emenda de 1969, a qual, entretanto, não fez m en çã o à soberania do
júri, reabrindo, por conseqüência, a discussão sobre a sua relevância
em nossa sociedade, C om o advento da C on stituição de 1988, o
Tribunal do Júri voltou a ter statu s de garantia dos d ireitos indivi­
duais e coletivos, recuperando, inclusive, sua soberania,

4.3. T rib u n a l P op u lar no Brasil: prós e contras - p o lê m ic a s


e m itos

Desde sua criação, o júri cau so u polêm ica n o que tange à sua
representatividadc e principalm ente quanto n cap-acidade dos ju ra ­
dos para decidir questões consideradas pelos juristas com o de "alta
relevância técnica", que os juizes de fato ou leigos não tinham
capacidade cie alcançar. A discussão sobre a justeza dos veredictos
emanados dos ju lgam entos do Tribunal do Júri su rg em ã tona
principalm ente quando é julgado um crim e que tenha repercussão
social. Conform e Evandro Lins e Silv a113, não faltam críticos e
censores a o .jú ri, alguns por ignorância, outros p o r interesse ou
má-fé, e muitos - a maioria - ma Lin forma dos sobre os critérios
orientadores das decisões dos jurados e o m ecan ism o de fun cion a­
mento da instituição ou por um conhecim ento in com pleto do fato,
de seus antecedentes, de sua m otivação, de suas circunstâncias, de
seus protagonistas. Sem pre foi assim , continua Lins e Silva, em
todas as épocas, aqui e no resto do m undo, em especial nos
processos em que há larga publicidade de seu an d a m en to e dos
incidentes que mais podem provocar a excitação da opinião públi­
ca . Se o crim e teve, direta ou indiretam ente, uma con otação política,
se foi com etido em desafronta subitânea e aparentem ente excessiva
a brios morais ofendidos e, sobrem odo, se teve origem ou motivo
essencial em uma paixão amorosa, logo se form am correntes de
opinião, influenciadas e conduzidas pelo noticiário. Para arrematar,
assevera que tudo isso vem de tempos im em oriáveis, desd e antes
de existir o Tribunal do júri. Até hoje se discute a ju stiça ou a
injustiça da condenação cie Sócrates,
113 Silva, E v a n d ro Lin s e. A defesa tem a palavra. Rio de Jan eiro : A id e , 1 9 8 0 , p. 63.

90 LENIO LUIZ STRECK


Esse famoso advogado que atuou no ru m o ro so caso Doca
Street mostra, em diversas obras, seu p o s ic io n a m e n to favorável ao
Tribunal do Júri e sua m anutenção c o m o m elh o r forma de aplicação
da lei nos casos de crimes dolosos contra a vida. C itan d o Casa-
mayor, Lins e Silva diz que "o júri é a im a g e m mais fiel, é o sím bolo
da solidariedade humana, A indulgência não é defeito, é virtude, e
a consciência caminha, de preferencia, no sentido do perdão, como
a história caminha no sentido da aten uação da p en a ".
Já o jurista gaúcho W alter C o elh o faz urna v eem en te crítica à
instituição do júri. Para ele, o júri é unia institu ição superada e
deslocada no tempo, que Hungria já d en o m in o u de "o sso de
m egatério a pedir m useu". Segundo C o e lh o 114, o T ribu n al do Júri
continuará ju lgando mais pelo instinto do que pela lógica ou pela
razão, pouco ligando para o que diga o C ó d ig o rep ressivo ou a
m oderna dogmática penal. E scu d ad o na soberania de seus vered ic­
tos e no ju ízo íntimo de convicção, suscetível de in flu ên cias m o m en ­
tâneas as mais diversas, prosseguirá clau d ican d o em sua missão,
ora absolvendo os culpados e, o que* é grave, tam bém con den an do
os inocentes, conclui.
A questão que transparece cia análise cio jurista referido é que
som ente nos ju lgam entos do Tribunal do Júri ocorrem erros. Critica
o júri tam bém porque os ju rad os ju lgam p or íntima con v icção e que
são suscetíveis de influências m o m e n tâ n e a s ...(sic). O ra, nesse caso
cabe uma indagação: o ju iz singular, no ju lg a m en to de processos
que não são da competência do júri, con seg u e ser neutro, abstrain-
do-se de sua ideologia de classe, sua form ação acad êm ica e de suas
derivações axiológicas? Faz-se mister, destarte, av an çar um pouco
na discussão. Os críticos do Júri ad uzem que os ju rad os não têm
form ação técnico-jurídica. Nessa linha, C o elh o (ibidem ) é duríssi­
mo, asseverando que "o júri pou co está ligando para as altas
questões jurídico-doutrinárias, mas com ov e-se, facilm ente, c o m a
retórica fácil e a oratória retu m bante e vazia
E necessário ter claro que, tanto no ju íz o sing ular com o no júri
popular a situação é idêntica: juiz e ju ra d o s estão inseridos no
m un do com e pela linguagem. Juiz e ju rad os são seres-n o-m un d o,
condenados inexoravelm ente a interpretar os fen ô m en o s do m u n ­
do. E para interpretar, é necessário com p re en d er, se n d o que, para
com preender, é im prescindível a p ré -co m p reen são . So m os, pois,
1,4 Cfe. C o e lh o , W nlter M. E rro de tipo e e rr o de p r o i b i ç ã o n o n o v o C ó d i g o Penal.
In: G iacom uzz.i, W la d im ir ío rg .) O D ireito Pennl e o n ov o C ó d ig o P en n l B rasileiro.
P orto A legre : Fabris , 1985, p. 82.

TR IB U N A L D O JÚRI 9 1
seres hermenêuticos. Interpretam os a partir do tradição. O sentido
já vem antecipado pela com preensão, donde se con clu i que o
intérprete (juiz ou ju rado) não contempla o m u n d o , para depois lhe
dar um sentido. Intérprete e texto, intérprete e fen ô m en o , estão,
desde sempre, jogados na m esm a lingüisticídade.

4.3.1. Os m itos da verdade real e da n eu tralidade ju d icial


Segundo a dogm ática jurídica, o juiz singular, ao prolatar uma
sentença, está fazendo um trabalho técnico, é dizer, técnico-cien tífi-
co. Nesse sentido, torna-se im prescindível que se en foq u e a questão
envolvendo dois m itos que circulam no im aginário dos ju ristas: o
mito da verdade real e o m ito da n eu tralidade do ju iz . C o m o se sabe, no
Processo Penal, existem prescrições d efínitórias, tais com o " n in ­
guém pode ser privado da liberdade sem o devido pro ce sso legal",
"n in guém pode ser preso sem ordem judicial, a não ser e m flagrante
delito'' e tantos outros, cuja função (retórica) é de fu n d a m en tar as
decisões ju diciais.Ao lado de tais princípios, co n c o rre m regras
relativas à atuação do acusado, do prom otor, do ad v o g a d o e do juiz,
à marcha ritual do pro cedim en to, à constituição da prova válida e
ns formas sacram entais de explicitação dos interesses perseguidos.
Mais especificam ente, cabe aqui discutir uma regra referente ao tipo
de prova que o juiz deve acolher no processo penal, b e m com o os
jurados (estes com dificuldade, na medida em que as pro vas lhes
são relatadas pelos atores em luta no plenário): o ch a m a d o principio
da verdade m aterial1'15.
Na dogm ática ju rídica tradicional trabalha-se c o m a idéia de
que o juiz não pode aceitar particulares espécies de p ro v a s d eterm i­
nadas por critérios de con ven iên cia ou opo rtun id ade, ou m esm o,
sobreditados pelas v alorações do am biente em que v iv e 116. Para
tanto, consciente ou inconscien temente, partem os juristas da perspec­
tiva de que o sistema jurídico é autopoiético, e não heteropoiético117.
115 Cfe. W a r a t , Lu is A l b e r t o e C a r d o s o C u n h a , R o sa M a r ia . E n sin o e. s a b e r ju ríd ico.
R io de Ja n eiro , E ld o r a d o T iju ea , 1 97 7, p. 45.
116 íd em .
117 N a c o n c e p ç ã o d e F e rr ajo li, p o d e m c o n s i d e r a r - s e h etcropoiéS icn s t o d a s as d o u t r i ­
n a s s e g u n d o as q u a is a le g it i m a ç ã o p o lític a do D ire it o e d o E s t a d o p r o v ê m de fora
o u " d e s d e a h a j o " , i.e., da socír.dnde, e n te n d id a c o m o s o m a h e t e r o g ê n e a d e p e s so a s ,
dê fo rça s e de c la ss e s so cia is . E n c o n t r a m -s e e n t r e esta s as d i v e r s a s filosofias
polí tica s utilitarist as, c o m e ç a n d o p e l a s e l a b o r a d a s p e lo iu sn n tu rn lísm o Inico e rncio-
nalistns da épo ca da ilu st ra ç ã o . S ã o a u lo p o ié tic a s as d o u t r i n a s d e le g it i m a ç ã o
"d e sd e a r r ib a " , c o m e ç a n d o p e la s pré -rrto der nas, q u e f u n d a m e n t a m a s o b e r a n i a do
E sta d o e m en ti d a d e s m e ta f ís i c a s ou m e ta - h i s tó r i c a s c o n io D eu s, r e l i g iã o , n a tu re z a

9 2 LENIO LUIZ STRECK


Haveria o juiz, assim, que se c on form a r, resignada e acriticam ente,
à cam isa-de-força imposta pelas p rem o nições d ogm áticas: en q uan ­
to o procedim ento civil valorizaria os interesses das partes, isto é, a
verdade disposta pelas m esm as - a v erdad e form al -, reivindicaria o
processo penal uma verdade real, material, perquiricla pelo juiz
com autonomia, no curso de uma in v estig ação onde ele, juiz,
elabora as bases de sua d e c is ã o 118. Essa verd ad e, no âmbito da
dogmática processual-penal, surge quand o "a idéia q u e (o juiz)
forma em sua m ente se ajusta perfeitam en te com a realidade dos
fatos." liy
Pode-se dizer, então, que a verdade, assim com o é trabalhada
pela dogmática jurídica no âm bito do processo penal, p. ex., é uma
verdade ontológica (no sentido clássico) e, portanto, m etafísica120. A
verdade seria decorrência da captação de uma "ess ê n cia " das
coisas. Existiria, assim, itm -m undo-em -sí, cuja estrutura o jurista (no
caso o juiz) pode apreen d er/ con h ecer através da razão e depois
com unicar aos outros pela linguagem , via sentença ju d ic ia l121.

e sim ila re s, até os m o d elo s fascist as t> sta lin istas. In D crech o 1/ K n zôn, op. cit., p. 851
c seg s. S o b r e au to p o iese, c o n su lta r o im p ortar)te e s í u d o d e VViSlís S an tiag o G uerra
Filho. A u to p o iese d o D ireito nu 'iocicdm le í ’ós-M o d ern a - In tro d u çã o a mini teoria social
sistêm ica. Porto A leg re, Livraria do A d v o g a d o , 1997. T a m b é m N e v e s, M a r c e lo . A
C o n stitu cion alização S im bó lica , S ã o P a u lo , A c a d ê m i c a , 1 9 9 4 , e N ic o la , D aniela R ib e i­
ro M e n d e s . E stru tu ra e f u n çã o do D ire it o n a teoria da so c i e d a d e . In P arad ox os dn
a u to-o b serv acão: p ercu rsos da teoria ju r íd ic a co n tem p o r â n ea . C u r i ti b a , J M Editora,
1997.
118 C F e. W a ra t c C u n h a , op. cit., p. 45.
119 N e s s e sentido, ver M irabete, Julio F. P rocesso Penal. São P aulo, Atlas, 1991, p. 247.
120 P ara um a crítica às c o n c e p ç õ e s v i g o r a n t e s na d o g m á t i c a ju r í d i c a c o n s u lta r
Stre ck , L en io Luiz. H erm en êu tica ju r íd ic a P Jm ) C rise, op . cit., em e sp e cia l, p. 224 e
segs.
12í Is to p o rq u e, no Sm bito da d o g m á t i c a ju r í d i c a , a c o n c e p ç ã o (a in d a ) vig o ran te
c o n ced e um p a p e f s e c u n d á rio à l i n g u a g e m , a o c o n t r á r i o d o q u e se e n te n d e a
partir da v ira g e m lin güística da filosofia (lirtgu istic turn ) o c o r r i d a 'n o séc u lo X X -
em qu e p a s s a m o s a uma m e d i a ç ã o total d a l in g u a g e m . C o n s e q ü e n t e m e n t e , é
ne cessá r io que se (re)tire p ro v e ito d essa v i r a g e m l in g i iístico -filo só fica e d esse giro
o n t o ló g ic o p ro p ic ia d o pela h e r m e n ê u t i c a , q u e é j u s ta m e n t e a ru p tu ra co m as
co n c e p ç õ e s m eta física s a tra v és da m e d i a ç ã o da l in g u a g e m : "o fa to de n ós não
term os sim p lesm en te o acesso nos o b jeto s via sig n ifica d o , m as v ia s ig n ific a d o num m undo
h istórico d eterm in ad o, num a cu ltu ra d eterm in a d a , faz com q u e a es tru tu ra lógica nunca
dê con ta in teira d o con h ecim en to, de. q u e n ão p o d em o s d a r co n ta p ela a n á lise lógica d e todo
o p ro c esso de con h ec im en to" . Cfe. S te in , E rn ild o . D ialé tica e H e r m e n ê u t i c a : uma
co ntrov érsia so bre m é to d o em filosofia, lu H a b e r m a s , jfürgen. D ialética e h erm en êu ­
tica. Parn uma c rítica dn h erm en êu tica d e G adm n er. P orto A l e g r e , L & P M , 1987, p, 103.
(grifei)

TRIBUNAL DO JÚRI 93
Ora, a verdade dita "m a te ria l" não se diferencia da assim
chamada "verdade form al". N esse sentido, a contribuição da her­
menêutica é de fundamental im p o rtâ n cia , a partir da idéia de que "a
verd ad e" no campo jurídico é uma v e r d a d e - h e r m e m ê i i t i c a , é dizer, a
experiência de verdade a que se atém a herm enêutica é essencial­
m ente retórica, com profundos coloridos p ragm ático s, com o se
pode retirar das lições de Vaitimo. li tam bém neste sentido que
deve entender-se a tese heideggeriana pela qual a ciência não
pensa. T a m b é m n e s s a l i n h a p o d e - s e d i z e r q u e a p r ó p r i a n o ç ã o d e p a r a d i g ­
m a d e K u h ti é u m a c o n c e p ç ã o h e r m e n ê u t i c a , a t é p o r q u e o fa t o d e q u e s e
a f i r m e tini p a r a d i g m a n ã o é, a o s e u t u r n o , u m f a t o q u e p o s s a d e s c r e v e r - s e
s e g u n d o c o n c e i t o s c i e n t í f i c o s d e a u o n s t r á v e i s . Kuhn deixa su bstancial­
mente aberto o problema de com o deve con ceb er-se o evento
histórico do câmbio dos paradigm as. Por isso a h erm enêu tica pode
contribuir de maneira significativa para resolvê-lo e para pensar
este problema fora de uma con cepção da história com o puro jo g o de
forças ou, por outro lado, com o progresso no co n h ecim en to objetivo
de uma realidade dada e estável. As bases cie uma teoria são aceitas,
assim, a partir de uma persuasão, de tipo retórico, com o qual de
fato se insta ura’21.
Assim, conform e W arat e C unha, a afirm ação de que o juiz
pode desvendar e reproduzir no plano do con h ecim en to a verdade
inscrita na realidade123 implica duas teses: a prim eira insistiria em
122 C o n s u l ta r Vnttim o, G iann i. El fin d e !a m o d ern id a d - n ih ilism o y hern ten cu ticn eu Ia
cultura posmodcrnn. M éx ic o, G cd isa, 1 985, p. 1 99-121. Já H a b e r m a s , f a z e n d o a so ma
da h e rm e n ê u t ic a co m a analít ica da filosofia da lin g u a g e m , n ã o acredita em
c o n h e c im e n to v e rd a d e ir o , sen ã o em c o n h e c i m e n t o válido. Em v ez d e se p e r g u n ta r
pelo c o n h e c im e n to puro , d e v e -s e p e r g u n t a r a p e n a s pela v a l i d a d e d o c o n h e c i m e n ­
to. Is so é er ig ir o co n h e c im e n to a um m é to d o , ou s eja, uma a ç ã o m e d ia n te
p rin cíp ios p ro ced im en tais. A p r o c e d im e n t a l i z a ç ã o atua c o m o g a ra n tia da " v e r d a ­
de d is cu rs iv a " , o n d e a te n s ã o e n tré efic ácia social e v ig ência é p ra tica m e n te
ven cida, pois a p ráxis da a u t o c o m p r e e n s ã o so ci al e da a u t o d e t e r m in a ç ã o dos
" c o n s o r c i a d o s " se dn na h istó ria. C o n s u l ta r E n c a rn a ç ã o , Jo ã o R osco da. F ilosofia do
direito em Hnhermns: a hermenêutica. Ta u ba té, C a b ral E d ito ra, 1997, p. 170 e segs.
12"’ R ichard R orty ch a m a a a ten ção p a ra o fato d e q u e a idéia de q u e a ve rd a d e , tal
c o m o o m u n d o , está dia nte de nós é um a h e ra n ça d e uma ép o ca e m q u e o m u n d o
era visto co m o cria çã o de u m ser q u e tinha a su a p ró p ria lin g u a g e m . A v erd ad e
não p o d e estar d ia n te de nós - nã o po d e existir in d ep en d en tem en te da m en te
hu m an a - p o rq u e as fra se s não p o d e m exist ir d essa m a n e ira ou estar d ia n te de
nós d essa m aneira. O mundo está d ia n te de nós, m as as d es criçõ es do m undo não. Só as
d escriçõ es d o m u n d o p o d e m ser v e rd a d e ir a s ou fa ls as; o m u n d o p o r si p ró p rio - sem
a u x ílio dns ativ id ad es d escritiv as d os seres h u m an os - nãn pode. In: C o n tin g ên cia , ironin e
solid a ried a d e. Tra d. de N u n o Ferreira da Cost a. Lis boa, E d ito rial P re se n ç a , 1994, p.
25.

94 LEN IO LUIZ STRECK


que a verdade que proclama é dado e x tra íd o da realid a d e, purgado
dos elem entos de distorção que o en v o lv e m , c o n te m p la d o pelo juiz
e reproduzido na forma de um con ceito; a segu n d a afirm aria que
não sendo esta verdade urn con ceito p ro d u z id o sobre a realidade,
mas, fundam entalm ente, a revelação da essência de determ inadas
situações materiais, tal revelação con sistiria na própria reprodução
do real. Assim , a "declaração " do real {en fim , da v erd a d e material)
não estaria contam inada, cond icionad a pelo in stru m en tal analítico
do juiz, por sua formação teórica e pela p a rticu lar situ ação histórica
em que está imerso. Ora, c o m p lem en ta m W a ra t e C u n h a , con h eci­
m ento não é idêntico à matéria ou ao co n c reto q u e é o seis objeto!
Porém, sustentar tal identidade de in stân cias é fu n d am en tal para a
própria sobrevivência da dogm ática jurídica. A ssim , se para o senso
com u m teórico dos ju ristas conceito e realid a d e p od em ter (3 mesmo
estatuto, se são exatamente a m esm a coisa, se o ju iz atua inspirado
em um interesse im pessoal, se o juiz, e s q u e c id o de si mesmo,
m ediador despojado de sua ideologia-, pro clam a a v erd ad e material,
então essa verdade d esco m prom etid a, desin teressa d a, inqu estioná­
vel, há de ser aceita por todos os h om en s do boa vontade... No
tundo, o princípio da verdade real é um estereótip o , que sugere
mais do que uma aceitação teórica e reivindica práticas de solidarie­
dade e submissão que não se co n fo rm a m ex a ta m en te à função de
um princípio científico124.
Vê-se, assim, que a concepção de v erd ad e v ig o ra n te no campo
da dogmática jurídica tradicional, que abarca os m itos da verdade
real e da neutralidade judicial, guarda p ro fu n d o s coloridos m etafí­
sicos. O pensamento dogm ático do Direito continua refém da
filosofia da consciência, onde a lin guagem é apen as uma terceira
coisa que se interpõe entre sujeito e objeto. C on tin ua buscando,
assim, o ente como o ente, ign orando aquilo que H eid e g g er den om i­
nou de diferença antológica,

4.3.2. A discrim inação do Júri


Além de todos estes aspectos, cabe frisar, ainda, que a d iscrim i­
nação do júri e, por conseqüência, dos ju ra d o s, tem uma relação
^ Cfe, W a ra t e C u n h a , op . cit., p. 4 6 e seg s. A c r e s c e n t e - s e o d iz e r de A d au to
S u a n n e s , s e g u n d o o qual " n e n h u m a d e cisã o ju d ic ial é o p o n í v e i ergn autues e x a t a ­
m e n t e p orq u e cia não c o n t e m p la uma v e rd a d e rea l, m a s t ã o - s o m e n t e uma v e r d a ­
de p ro ce ss u a l, de nat ureza e m i n e n t e m e n t e fo rm a i ("a co is a j u i g a d a faz d o b r a n c o
p re to e do re d o n d o q u a d r a d o " , d izia-se n o s b a n c o s e s c o l a r e s ) , ln : E co m o fica a
C o n s tit u iç ã o ? Hnlclím IB C C rím n.57 - a g o s t o / 9 7, p. 9.

TRIBUNAL, IX ) JÚ R I 9 5
m uito íntima com o que se pode cham ar de c ien tificism o, ou seja,
usar a ciência ou colocar algo com o científico para dar stotus de
verdadeiro e digno. O ju lgam ento proferid o p elo s ju ra d o s não teria
esse s t a f u s de pu reza, de cientificidade. A fin al, se g u n d o uma
expressiva parcela da dogm ática jurídica, os ju ra d o s, se n d o leigos,
ju lga m segundo seu senso com um , além cie se d eixarem influenciar
pela "fácil retórica"... Vale referir, para isso, o alerta de Rubem
Afves, segundo o qual, "q uan do um cientista se refere ao senso
com u m , ele estã, obviam ente, p en san d o n as pesso a s que não passa­
ram por um treinamento c ie n tífico "125.
C om o se viu, argum entos com o "a in flu ên cia exercid a pela
fácil retórica" e "a incapacidade dos jurados de ap re cia rem questões
de alta relevância ju ríd ic a " servem com o forte su sten tá cu lo retórico
para a descaracteriza Cio do Tribunal do Júri. D estarte, se um juiz
com ete uma injusliça em um ju lga m en to sing ular, o sistem a não
entrará em crise, em face do que Luhm ann ch am a de "pron tid ão
generalizada para a aceitação das d ecisõ es", b asta n d o "q u e se
contorne a incerteza -4'- -4ecisão ocorrerá pela certeza de que
uma decisão ocorren im á-la"'26. Já com relação às decisões
tio Tribunal do jú ri, r ; estarem, lambem, "legitim adas pelo
procedimento", estas icas que visam a descaracterizar o júri
enquanto instituição pu n a o democrática, sob argum entos como a
"ausência de rigor técnico nos veredictos."
Percebe-se, pois, com o a ciência, deten tora do discurso da
verdade, passa a ter a função de legitim ar, id e o lo g icam en te , o
ju d iciário togado, colocand o o Tribunal do Júri c o m o "não-cien tífi-
co-desviante". M ariza Correa traz im portante con trib u ição, aludin­
do que os argum entos favoráveis ou contrários à m a n u ten ção do
júri ou à sua representatividade popular são sem p re argum entos
políticos ou ideológicos, ou seja, levantados a partir dos interesses
dos envolvidos na discussão - seja em termos de sua função e
atuação no júri ou fofa dele - e argum entos fu n d a d o s na visão de
m u n d o dos debatedores, A própria definição do D ireito Penal
brasileiro com o con trad itório implica que sem p re seja possível en­
contrar um con tra-argum ento para qualquer argu m en tação . É i m ­
p o r ta n te fr is a r q u e não h á q u a lq u er le v a n ta m e n to q u e c o m p r o v e , por
e x e m p l o , q u e o T r i b u n a l d o J ú r i , no B r a s i l , a b s o l v e m ais d o q u e o f a z e m os
j u i z e s s i n g u l a r e s e m s e u s j u l g a m e n t o s . N o e n t a n t o , e s t a ê urna a f i r m a ç ã o
l2-’ Cfe, A lv e s , R u b e m . F ilosofia tln C iên cia. S ã o Paulo, B r a s i l ie n s e , 1 9 8 4, p. 13.
126 y er L u h m a n n , N ick la s. L eg iíin ia çã o pulo p ro ced im en to , T r a d . d e M ar ia da
C o n c e iç ã o C o rte-R ea l. Brasília, ÍJ N B , 1980, p. 29 c 91.

9 6 LEN IO LU IZ STRECK
f r e q ü e n t e , ã s v e z e s d o s q u e d e f e n d e m a m a n u t e n ç ã o d o júri, à s v e z e s d o s
que sã o c o n t r á r i o s a e l e ; à s v e z e s p e l o s q u e o c o n d e n a m p o r s e r p o u c o
té cn ico , à s v e z e s p e l o s q u e o e l o g i a m p o r s u a q u a l i d a d e d e m o c r á t i c a ,
d e p e n d e n d o da s i t u a ç ã o e m q u e s e e n c o n t r e m 127. Para aqueles, verbi
g r a t i a , que atacam o Tribunal do Júri, dizendo que ele é o paraíso
das absolvições, cabe lem brar que, no Rio G ran d e do Sul, conform e
relatório da Corregedoria-G eral do M inistério Público, entre os
anos de 1,991. e 1996, o jú ri con d en ou 6.791 réus, contra 5.777
absolviçõe -. Enquanto isso, no m esm o período, o juízo singular
absolveu 85.228 réus, contra 83.414 condenações.

4.4. A com posição do T r ib u n a l do Júri

Conform e o C ódigo de Processo Penal, o Tribunal do Júri


compõe-se de um juiz de Direito, que é o seu presidente, e vinte e
um jurados, sorteados dentre os alistados, sete dos quais constitui­
rão o conselho de sentença em cada sessão de julgam ento.
O serviço do júri é obrigatório e sem rem u n era ção para o
cidadão. Nesse sentido, é im portante notar que a recusa ao serviço
do júri, motivada por convicção religiosa ou política, importa na
perda dos direitos políticos do infrator.
Os jurados são escolhidos d entre c i d a d ã o s d e n o t ó r i a i d o n e i d a d e ,
consoante o artigo 436 do C ódigo de Processo Penal, estando isentas
do serviço do júri as seguintes pessoas: o Presidente da República,
os Ministros de Estado, os G o vernad o res, os deputados federais e
estaduais, o prefeito m unicipal, os m agistrados e m em bros do
Ministério Público, funcionários da polícia, m ilitares da ativa e,
importante, as "m ulheres que não exerçam função pública e provem
que, em virtude de ocupações dom ésticas, o serviço do júri lhes é
particularmente difícil", exceção esta prevista no artigo 342 do
citado Código. Percebe-se, destarte, o papel que o "legislador"
adjetivo penal reservou à m ulher no Tribunal do Júri... Talvez por
isso, para "evitar c o n trate m p os" para quem se dedica às prendas
domésticas, o corpo de jurados de muitas cidades brasileiras so­
mente a partir da década de 80 com eçou a adm itir a participação de
mulheres em sua com posição, send o que, em sua expressiva m aio­
ria, o núm ero de m ulheres é inferior ao de homens.
127 Ver, pnra ta nto, C o rre a , M aria . Os crim cs dn p a ix ã o . S ã o P a u lo , B ra silie n se , 1981,
p. 34 e 35.

TRIBU N A L DO JÚRI 97
De frisar, por outro lado, que a função de ju rad o traz um a série
de vantagens, com o a "presun ção de ido neid ade m o ra l", assegu ran ­
do, ainda, prisão especial em caso de crime com u m . O ju ra d o tem,
de igual modo, preferência, em igualdade de con d içõe s, nas c on cor­
rências pú blicas128, conform e acentua o artigo 437 do C ód igo de
Processo Penal.
A definição-atribuição-dc-sen lido do que seja um cida-dão
notoriamente idôneo é responsabilidade do ju iz-p resid en te do júri,
que é o encarregado de alistar os candidatos a jurados. O m agistra­
do recebe sugestões de prom otores, escrivães e ad v ogad os, princi­
palm ente daqueles bacharéis com m aior circu lação nos foruns. Que
os jurados historicam ente têm pertencido às cam ad a s d om inantes é
afirmação que, ainda hoje, pode ser feita com certa tra n q ü ilid a d e129.
Nesse sentido, basta ver a crítica que Frederico M a rq u e s 130 - que
tem conhecida posição contrária à instituição do Júri - faz à
com posição do corpo de jurados, " e s c o l h i d o s p e l a s o r t e , m u n a lista
o n d e os n o m e s são l a n ç a d o s s e g u n d o o c r i t é r i o do m agistrado p r o f i s s i o n a l
incum bido dessa fu n ção , o ju rad o não é r e p r e s e n t a n t e d o n o v o n e m r e c e b e
incum bência a l g u m a da s o c i e d a d e p a r a o e x e r c í c i o d e s u a m i s s ã o . E por
isso tpie n ã o s e d e v e m i n v o c a r os. p e s ! a l a d o s d a ilcm ocrncia p a r a j u s t i f i c a r
a i n s l i t u f ç ã o do júri".

4.5. Os ju rados e a re p resen ía tiv id ad e social

O Código de P rocesso Penal, com o se viu, "e s p e c ific a " quem


pode e quem não pode ser jurado. A linha norteadora é a de que os
ju rados devam ser c i d a d ã o s d e n o t ó r i a i d o n e i d a d e . M as o que são
cidadãos de notória idoneidade? C om o na maioria das palavras da
lei, está-se diante do que se chama de vagueza a m bigü id ade. Um
termo é vago nos casos onde não existe uma regra definida quanto
a sua aplicação. Na prática, não é possível d ecidir os limites
precisos para a sua denotação. Por isso, a decisão d e inclusão ou não
de determ inadas situações, objetos ou subclasses de term os dentro

128 E sse d isp o sitiv o é d e d is cu tív el c o n st itu c io n n lid a d e , em face d o p rin cíp io da
isonom ia pre vis to na C o n stitu ição Fed eral.
129 Ver, ne sse sen tid o, M a r iz a C o rrê a , que a firm a q u e, d e s d e a cr i a ç ã o d o júri,
seu s m e m b ro s fora m sem p re , e xp licitam en te, p e s s o a s p e r t e n c e n t e s às cl ass es
d o m in a n t e s. Ver, para ta nto, O s crim es dn p a ix ã o , op. cit., p. 32.
130 M a r q u e s, José F red erico. A instituição do jú ri. S ã o P aulo, B o o k s e lle r, 1 99 7, n,
183. (grifei)

9 8 LEN IO LUIZ STRECK


da denotação é do u su á rio 131. Q u a is as co n d içõ e s de possibilidades
que tem o intérprete para dizer, então, que um d eterm in a d o rótulo
verbal se aplica a um d eterm in ad o caso ou n ão? No C ó d ig o Penal,
os exem plos são fartos, com o as expressões " m u lh e r h on esta",
"justificável confiança", "legítim a d efesa", "lo g o ap ós seguida à
injusta provocação", "m otiv o torpe", "recu rso que dificulte ou fom e
impossível a defesa do o fen d id o ", "m otiv o de relev ante v alor social
ou m oral", etc., podendo-se d izer que em tod os os tipos penais
existirá, em maior ou m enor grau, algum tipo de textura aberta (H.
Hart), que Warat chama de "in certezas sig n ific ativ as". Tal im preci­
são - que Kelsen já--dctectara de há muito, ao d izer que as palavras
da lei são plurívocas132 - ocorre na fronteira entre a vagueza e
am bigüidade. Assim, para W arat, a v agueza deve ser vista como
um problem a predom inante denotativo. Já a a m b ig ü id ad e, que é
um caso particular de incerteza designativa, que ocorre quando
uma palavra (ou expressão) possui mais de um co n ju n to de p ro p rie­
dades designativas, é visto c o m o um problem a essen cialm ente
itivo.
1 ( n Vnraf, Luís A. c sun <.« >’ Porto ' ' i m s, 1984, p. 76.
N ão c te m e rá rio di„ i dogi a i t. :a s o i u ' < imn >1 1 va
lógica d a a p a rê n cia d > M los, q k i j e i e u m i o um i spi i u d e j 1 i cie
o b te n çã o , em form a rt l ' ue í ■ a d e um i ^ m l i c u l o q u e já im lei i i Ui -.na
p r o m u lg a ç ã o . Cfe. W a r a t , Lu is A l b e r t o . P or q iiien ca n ta n l a j m ,.n s .
U n o e s c / C P G D - U F S C , 1996. A c r e d i ta - s e ain d a no l e g i s l a d o r c o m o s e n d o uma
esp écie d e o n o m a t u r g o p l a t ô n i c o ou q u e o D ireito p e r m i t e v e r d a d e s a p o fâ n tica s .
Há um a c o n s t a n te bu sca d o " c o r r e t o " s e n t id o , u m s e n t id o " d a d o " , um " se n tid o -
e m -s i" , e n fim , u m a e s p é c ie de "se n tid o -p rim e v o ". P o r isto é p r e c i s o c h a m a r a
a t e n ç ã o (do s jurista s) para o fato de q u e "n ó s n ã o t e m o s m a is u m sig n ifican tc
p rim eiro , q u e se b u s c a v a tanto e m A ristó teles c o m o na Id a d e M é d i a , c o m o aind a
em K a n t; sig nificante p r i m e i r o q u e nos d aria a g a r a n ti a d e q u e os c o n c e i t o s em
g eral r e m e t e m a um ú n ico s i g n i f i c a d o . " S te in , E rlin d o . R a c io n a lid a d e e E xistên cia.
P orto A leg re, L & P M E d ito res, 1988, p. 39. (grifei) D aí p o r q u e um ro m p im en to com
cssn trad ição d o p en sam en to ju r íd ic o -ú o g m á tic o é d ifícil e n ão s e fa z sem ra n h u ras: " A
recusa de um a c o n ce p ç ã o m etafís ica d o D ire ito n ão se faz s e m p r o b l e m a s . O
m e s m o o c orre , aliás, co m a a f ir m a ç ã o d e s s a c o n c e p ç ã o . C r e r q u e há u m a ess ên ci a
v erd a d e ira em si m esm a do D ire ito - c o m o que à e s p e r a de s e r c a p t a d a e m sua
intei reza p e lo sujeito d o c o n h e c im e n to , seja m e d i a n t e u m tra b a lh o e s t r i t a m e n t e
racional de ín do le d ed u tiv a , em que as n o r m a s d o D ire it o ra c i o n a l , isto é, as
c h a m a d a s leis da n a tu re z a , seriam a p r e e n d id a s c o m o a u t ê n t i c o s c o r o l á r i o s a que
se aced eria pelo raciocín io a partir de p rin cíp io s a u t o - e v i d e n t e s e s t a b e le c id o s n
p r io r i; seja c a p t a n d o essa essência na d in â m i c a da vida so cial, a t r a v é s da inv es ti­
g ação so cio ló g ica do f e n ô m e n o ju ríd ico ; seja b u s c a n d o - a na e x e g e s e d o s textos
legais cre r nisso, n ã o deixa de ser c o n f o r t á v e l . " M a r q u e s N e t o , A g o s ti n h o
R am alh o. S u b s íd i o s para p e n s a r a p o s s ib ilid a d e de a r t i c u l a r d ir e it o e p sican ális e.
In : D ireito e n eolib eralism o. E lem en tos p ara uw n leitu ra in terd is cip lin n r . M a r q u e s N eto,
A g o s tin h o R a m a l h o et alli. C u ritib a , Edibej, 19 96, p, 28.

TRIBUNAL DO JÚRI 9 9
O m esmo Warat ilustra m elhor ainda a situação, falando da
incerteza significativa (vagueza) da palavra " c a lv o " , em que se
pode detectar indivíduos que, sem dúvida n en h um a, devem ser
excluídos da denotação do term o (Lady G od íva); outros, sem
d úvida, devem ser incluídos (Kojak); en tretanto, existe, tam bém ,
uma terceira situação na qual podem se a p resen tar sérias dúvidas
quan to à correção da aplicação denotativa do termo. Não existe um
calvôm etro apto para decidir quantos cabelos d eve um h om em
perder para ser chamado calvo.
Transportando essa assertiva para o problem a da definição dt>— •
que seja um "cidadão de notória id o n e id a d e", pod e-se dizer que
não existe um "íd o n e id ô m etro " que possa servir de h o l d i n g ou
paradigm a para o juiz se basear no ato da escolha dos jurados,
assim com o não há um s e n t i d o - c m - s i - m c s m o - d c - c i d a d ã o - d c - n o t ó r i n - i d o -
n e i d n d e . O que ocorre é uma atribuição de sentido ( S ü i n g d m n g ) que
será feita pelo juiz-intérprete.
N o âm bito do Tribunal do Júri, a n oção de "cid ad ão de notória '
id o n e id a d e" pode ser vista com o uma definição persuasiva, que
expressa as ■,renças valorativas e ideológicas do magistrado (e
q u “ m ■' ""jvqia/influi) sobre o rnodo de escolha dos jurados. A
de; om eação do que seja um cid ad ão de notória id o neid a­
de ' ,vrm.eada pelo poder de violência simbólica que se
estabeiece. U resultado desse p ro cesso é a form ação/in trojeção no
im aginário social de um padrão de n o rm a lid a d e acerca do que seja
"notória idoneidade". C onstrói-se, desse m od o, aquilo que Ferraz
J r .133 cham a de "arbitrário socialm ente p re v alecen te ".
P ode-se acrescentar, ainda, que, assim corno o padrão de
n orm alid ade vigente na sociedade tem en orm e influência na d esig­
nação de quem possui as características que p erm itam o encaixe de
alguém no conceito de "notória id o n e id a d e", tal "p a d rã o de n o rm a ­
lid a d e" terá efeito no âmbito da apreciação dos ju rad os sobre o
acusado no m om ento do ju lgam en to pelo júri. O u seja, a p a r t i r dn
com p osição d o corpo de ju r a d o s d elin eia-se o p a d rã o d e com p ortam en to
s o c i a l a s e r e x i g i d o d o " r e s ta n te d a s o c i e d a d e " .

4.6. O corpo de ju rad os e o e s ta b e le c im e n to de um


"pad rão de n o rm a lid a d e " ,

Os jurados, escolhidos dentre os "cid a d ã o s de notória idonei­


d ad e", fazem parte, assim, de um pad rão de norm alid ad e e um
Cfe. F erraz Jr., In trod u ção no E stu do do D ireito, op . cit., p. 251.

1 0 0 LÉN IO LUIZ STRECK


padrão de aceitação pela sociedade. A n orm alid ad e, então, é uma
norm alidade instituída, onde " n o r m a l" tem a acepção de "n orm ar",
de estabelecer um " d ev er-ser-social-n ão-d esv ian te". E, ao ser instituí­
da, ao m esm o tempo passa a ser in stifu in te.
Os padrões de com po rtam en to tid os/estabelecidos como nor­
mais têm uma relação direta com a estrutura social que os engendra.
Conseqüentem ente, aquilo que se entende com o sendo um-jmdrão-
de-nontw lidade vai depender do d ese n v o lv im en to e das transform a­
ções pelas quais passa a sociedade. Nes.se aspecto, segundo
G o ffm an 134, é possível tom ar com o estabelecido que uma condição
necessária para a vida social é que todos os participantes com parti­
lhem um único conjunto de expectativ as n orm ativas, sendo as
normas sustentadas, em parte, porqu e foram incorporada s/introje-
tadas.
Destarte, as identificações m ínim as introjetodas (entre indiví­
duos e grupos) em uma sociedade - m esm o que tal identidade não
seja perene - podem trazer a lu m e algum as características que
moldam o seu com portam ento, é dizer, o con iportam en lo-tido-com o-
norm al. Desse modo, é razoável afirm ar que o magistrado - que tem
a tarefa legal de selecionar e d izer quem é cidadão-de-nolórin-ido-
netdade além de usar os seus próprios critérios axioíógicos e sua
visão de mundo (instituiute/instituída na e com as identificações
mínimas daquela sociedade, a partir da tradição que o "c o lo ca " no
mundo), estará remetido àqueles p ad rõ es de com portam en to tidos
e havidos como mwmais para aquela sociedade.
Assim, estruturas sociais de diferentes com unidades engendra­
rão corpos de jurados de acordo com os padrões internalizados de
cada uma. Tal circunstância, in du bitavelm en te, trará significativas
conseqüências nos resultados dos julgam en tos, com o se observará
mais adiante.

1M Cfe. G o ffm a n , Erving. E stig m a. Rio d e J a n e i r o , Z a h a r , 1 97 8, p. 138.

TRIBUNAL DO JÚRI 1 0 1
5 . O Tribunal do Júri: o ritual, os afores
é os discursos

5.1. O T rib u n a l do Jú ri co m o ritu al

Para analisar o Tribunal do Júri c o m o u m ritual, é necessário


que se incursione pelo cam po do sim bólico. O term o sim bólico, em
sentido bem abrangente, pode ser utilizado para in dicar todos os
P' ■auismos de interm ediação en tre sujeito e realidade. Por isso,
1 - i-er define o hom em corno a n i m a l s i / n t b o U c u v i C om efeito,
Lendu o hom em urn anim al racional p orq u e se com u nica com seus
semelhantes através de sím bo los, d os quais o mais im p o rtan te é a
linguagem, o conhecim ento da ação h um ana exige (sem pre) a
decifração e a interpretação d estes sím bolos, cuja significação é
quase sempre incerta, às vezes d esco n h ecid a , e apenas possível de
ser reconstruída por conjeturas (N. Bobbio). C om o b em diz Casto-
riadis136, t u d o que se -apresenta n o m un do s o c i a l - h i s t ó r i c o e s t á , d e fo r m a
in d issociáv el, en trelaçad o com o sim b ó lic o , N ã o q u e s e e s g o te n o sim b ólico.
O s a t o s r e a is , i n d i v id u a i s ou c o l e t i v o s - o t r a b a l h o , o c o n s u m o , a g u e r r a , o
a m o r , a n a t a l i d a d e - os J j i u m e r á v e i s p r o d u t o s m a t e r i a i s s e m o s q u a i s
n e n h u m a s o c i e d a d e p o d e r i a v i v e r u m só m o m e n t o , n ã o s ã o , n e m s e m p r e ,
n e m d i r e t a m e n t e , s í m b o l o s . M as, alerta o pen sado r greco-francês, u n s
e o u tr o s s ã o im p o ssív eis for a d e u m a r e d e s i m b ó l ic a . Assim, as instituições
não se reduzem ao sim bólico, mas elas só podem existir no sim b ó li­
i3o y e r ^ p ara ta nto, C asslrer, E rn st, A n tro p o lo g ia filo s ó fic a - E n saio s o b r e o H om em :
In trod u ção a um a filosofia da C u ltu ra H u m an a. S ã o P a u lo , M e s t r e J o u , 1 97 2 , p. 51.
T a m b é m N ev es, M arcelo. A C o n s titu c io n a liz n çã o S im b ó lic a , op. cit, p. 11 e seg s.
136 Cfe. C a s to ria d is, C o rn e liu s . A in stitu iç ã o im a g in á ria da so cied a d e. T ra d . d e G u y
R e y n a u d . Rio de Janeiro , P a z e T e r r a , 1 9 8 2 , p. 142. V er t a m b é m , n e s s e s e n t id o ,
G o d e lie r , M au rice. A p a r te id ea l do real. In: C a r v a lh o , E d g a r d e A s s is (org.)
G od e lie r. São Paulo, Á tíca, 1981, 187, p a r a q u e m " h á ideal p o r tod a p a rte , o qu e
n ã o im plica que tudo seja ideal no real ( s o c ia l ) " .

TR IB U N A L D O JÚRI 1 0 3
co e são im possíveis fora de um sim bólico em segu n d o grau, con stitu in ­
do, cada qual, sua rede sim bólica. Uma organ iza çã o dada da
econom ia, um sistema de direito, existem so cialm en te com o siste­
mas simbólicos sancionados. As sentenças de um tribunal são
sim bólicas, e suas conseqüências o são quase que in tegralm en te, até
o gesto do carrasco que, real por excelência, é im ediatam ente
tam bém simbólico em outro nível, conclui.
A instituição, aduz Castariadis, será, desse modo, uma rede
sim bólica, socialmente sancionada. As sign ificações im aginárias
sociais não denotam nada e con otam mais ou m en os tudo. Por isso,
as significações imaginárias sociais são freq ü en tem ente con fu n d i­
das com seus símbolos, não so m ente pelos p ov os que as utilizam,
mas pelos cientistas que as analisam e que ch eg a m , por isso, a
con sid erar que seus significantes significam por si m esm o s - uma
vez q u e não ré metem a nenhum relacionai -, e a atribuir a esses
significantes com o tais, ao sim bolism o tom ado em si m esm o, um
papel e uma eficácia infinitam ente su periores às que certam ente
tê m 137.
Dessa forma, o m un d o social c con stitu ído em função de um
sistem a de signifk ' Fais sign ificações existem na form a de um
im aginário efetivo , t "rv a m e n te a essas sign ificações im aginárias,
é que se pode com preender a escolh a que cada so cied ad e faz de seu
sim bolism o. Fora da categoria do im aginário, é im possível com ­
preen der a história humana. A in stitu ição da so cied ad e é a instituição
d e um m undo de significações. A in stitu ição social histórica ê aquilo em
que e p or que se m anifesta e é o im agin ário social. Esta instituição é a
instituição de um m agm a de significações, as sign ificações im agin á­
rias sociais. A relação en tre a sig n ificação e seus su portes - im agens ou
fig u ra s - é o único sentido p reciso que se pode a tribu ir ao term o
sim bó lico ,38. _ -
Pode-se concluir, então, ainda com C astoriad is, que, na socie­
dade, as coisas sociais são o que elas são através das significações
que elas figuram, mediata ou im ediatam ente, direta ou indireta­
mente. A instituição da so cied ade existe en q u an to m aterialização
desse m agm a de significações im agin árias sociais, traduzível por
meio do simbólico. A relação dos agentes sociais com a realidade
(que aparece) é intermediada por um m undo de sig n ific a ç õ e s139.
137 Cfe. C a s to ria d is, op . c i t , p. 173.
138 Id e m , p. 277.
Ibidem .

104 LENIO LUIZ STR ECK


É nesse contexto que o T r.b u nal do Júri será exam inado. Por
seu forte com ponente ritual, as representações im aginárias da
sociedade, simbolizadas nos ju lga m en tos, resultam em unia leitura
possível dos com portam entos desejad os e d esejantes da sociedade
ali "represen tad a". Isto porque, com o bem lem bra G onçalves, os
processos simbólicos e míticos assum em im portância fundamental
na exteriorização das práticas sociais ritualizadas, referentes ao
saber e ao saber-fazer de qualquer cultura e sociedade. A s m etáforas
e os sím bolos da transm issão e da p erp etu ação cio pod er, as encenações cio
poder e ns "liturgias políticas" mis socied ad es m odernas, os conteúdos
sim bólicos do processo p olítico nos ritos de soberan ia das sociedades
tradicion ais, os ritos de passagem e os rituais dc iniciação, os rituais
cíclicos da vida individual ou os ritu ais calen darizados e sazonais con sti­
tuem processos essenciais da teaíralização da vida coletiva e rituais por
excelência da com unicação p o líl icti rins sociedades tradicion ais e rurais,
como nas m odernas sociedades tccu olõg icasH0.
Conseqüentem ente, faz-se necessária uma investigação não
apenas no que pertine aos pressu postos mais gerais que regem e
que condicionam o processo de aplicação da lei, com o, de igual
forma, uma análise acerca cios m ecanism os que reg e m / c o n d ic io ­
nam a vida da e na sociedade, en quan to instiíuídn/instituinte nu e
do imaginário social. No dizer de Teixeira, as ocorrências extraord i­
nárias não o são pela freqüência com que se dão, ruas pelo clima que
as envolve, co m o cerim ônias, celebrações, festas, com em orações,
solenidades e tudo o mais que, pelo seu caráter de acontecim ento
especial, se constitua em ritual, dizem algo da socied ad e que as
desenvolve: "D ito de outro m od o, quando uma so cied ade sai do
ordinário de sua rotina para viver, em d eterm in adas épocas, o
extraordinário de eventos ritualizados, é p e r q u e referido evento
tem uma relação com o próprio corpus social141. Constitui-se, então,
conforme A lv es142, um conjunto de m anifestações sim bólicas, "in s­
crito, portanto, na ordem de significação capaz de ser lido, revelado
ou percebido por todos os segm en tos da socied ade em que se
realiza".
O ritual, em seu d esenrolar, (re)articula, assim , os diversos
elementos da sociedade em uma nova gram ática, capaz de ser
,-1{! Cfe. G o n ç a lv e s , A. C u s íó r i o , Q u es tõ e s d e a n tro p o lo g ia so c ia l e cu ltu ral. Porto,
B iblio teca de C iê n c ia s do H o m e m , E d i ç õ e s A f r o n ta m e n to , 1992, p. 169, (grifei)
141 C fe . T eixeira, S é rg io A lves. ,4 dim en sã o ritu a l das fes ta s em to rn o d e p ro d u tos
agrícolas. Porto A l e g r e , U F R G S , 1984, m im e o .
'^2 Cfe. A lves, Is id oro . O ca r n a v a l d ev o to . P e tr ó p o lis, V o z e s , 1 9 8 0 , p. 14.

TRIBU N A L DO JÚ R I 1 0 5
perceptível por todo o corpus social que dele participa. O s rituais
são, ao m esm o tempo, seqüências estru turad as e estruturantes, no
duplo sentido em que expressam a ordem das coisas e im plicam a
percepção de como o m undo e as coisas dev em ser en ten d id o s143.
O Tribunal do jú ri, na medida em que é um ritual por
excelência, é uma insíituição que (re)artícula m en sa g e n s diretam en ­
te relacionadas c o m a sociedade a qual representa. No seu interior,
os atores (re)produzen, em considerável m ed id a, a própria socied a­
de. Por isto, o júri é visto, no âm bito (e n os limites) desta obra, como
um m om ento extraordinário que (re)articula e (re)organiza de uma
maneira diferente os m om entos ordinários da rotina cotidiana da
sociedade e, à parte de torná-la passível de ser lida/entendida,
institui uma outra rotina, pela qual os agen tes sociais venham a
"p erceb er/ enten d er" que as diferenças sociais são " n o rm a is ", e que
a hierarquia da sociedade deve ser preservad a e que a lei tem a
função de, além de "co n ced er" chances iguais para todos, "prote-
■— " •' ‘'•'‘ ■'lidade da sociedade, sem distinções de classes sociais,
assim , a ilusão de que uivem os eu/ inu corpo social sem

Io que isso, corn o bem observa Da Mattn, " c o m o o ritual


> a 1 Io por meio de uma dialética entre o cotid iano e o extraor­
dinário, o rito estando na situação extraordinária, ele se constitui
pela abertura desse m undo especial para a coletividade. Não há
sociedade sem uma idéia de um m un do extraordinário, onde
habitam os deuses e onde, em geral, a vida transcorre num plano de
plenitude, abastança e liberdade. M ontar o ritu al é, pois, abrir-se para
esse m undo, dando-lhe uma realidade, crian do mu espaço para ele e
abrindo as portas da com unicação en tre o 'm undo real' e o m undo especial.
É no ritual, pois, sobretudo no ritual coletivo, que a sociedade pode
ter (e efetivamente tem) uma visão alternativa de si m esm a. Pois é aí
que ela sai de si própria e ganha um terreno a m bígu o, onde não fica
143 Idem.
144 Ver, para tanto, as i m p r e sc in d ív e is co n t r i b u iç õ e s de: T e i x e i r a , op . cit.; A lves,
op. cit., p. 24-25 ; T u r n e r, op. d t. e U m i n a li t y , Pla y, FUna a n d R itu al: O p ln cioiial and
O blign tory F o n a s an d Geaieres, N e w Y o rk , W e n n e r - G r e e n F o u n d a ti o n , 1974; Van
G e n n e p , op. cit.; Da M atta, R oberto , E n saios de a n tro p o lo g ia es tr u tu r a l, P etróp o lis,
V o zes, 1973; Forte s, Meyr, Ritual f e s t i v a i s and Social C o h esio n in the H in terlan d
of the Gol d Co a st, in: A m erican A n tro p o g is l n. 3 8, 1936; L each . E.R . R ep la n la m ien to
d e la A n trop olog ia. Barcel ona, Ed. Seix B a rra i, 1 97 1; L eo p o ld i, j.S . E scola d e S am ba,
R itu al e S ocied ad e. Petrópo lis, Vo zes, .1978; Darei, Y. La re p ro d u c lio n s o c ia le : sy s lèm e
v w a n t i, m v a r ia a c e et ch an g em en t. Paris, A n th ro p o s, 1 973; B erg e r, P. e L u c k m a n , Th.
l h e S ocial C o n stru ction o f R eality. ,4 tre a tis c in the S ocio lo g y a f K n ow led g e. N e w York,
A n c h o r B ook s, 1967.

1 0 6 LENIO LUIZ STRECK


nem com o é norm alm ente, n em c o m o pod eria ser, já que o cerim o­
nial é, por definição, um estacio passageiro. M as esse estado passa­
geiro talvez possa permanecer. (...) H á, assim , n o ritual, a sugestão
de que o m om ento extraordinário p o d e con tin u ar, não mais como
um rito - algo com hora marcada - m as com o um extraordinário de
m aior duração: como uma revolta (contra algu ém ) ou uma revolu­
ção (quando o mundo perm anecerá m o d ifica d o por longo tempo). E
o rito, então, o veículo de perm an ên cia e da m ud an ça. Do retorno à
o rdem e da criação de um a nova ord e m , uma nova a lte rn a tiv a " 145.
Por tudo isso, torna-se relevante d em o n stra r que as con trad i­
ções sociais - próprias de urna so cied ad e na qual é impossível
esconder a forte desigualdade econ ôm ica e cultural - se expressam
até m esm o na distribuição do espaço físico na sala do Tribunal do
jú ri, muito embora os protagonistas do júri disso n ão se dêem
conta. De tal modo, em um nível está o p ú blico, os anônim os, sem
qualquer sím bolo que distinga uns dos ou tros; já em outro nível,
separado do anterior por uma d iv isão - real ou imaginária - se
colocam os advogados, estudantes de Direito e jornalistas. Acima
desses dois níveis, concentranv.se os sím bolos de distinção entre
seus ocupantes e os dos outros n íveis e entre si: b and eiras, crucifi­
xos, tablados, em que se elevam m esas e cadeiras. A m esm a relação
de proxim idade se reproduz aqui, ou seja, assim corno os adv oga­
dos, estudantes de Direito e jorn alistas são os escolhidos para
ficarem mais próximos do cenário das ações, o p ro m o to r de justiça
ocupa a mesa que fica ao lado direito do ju iz-p resid en te do júri. Os
auxiliares do juiz sentam-se à esquerda. O escriv ão só anota o que
lhe for ditado pelo magistrado. A b aix o do tablado, fica a mesa do
ad vogad o defensor do réu, à frente das sete cadeiras reservadas aos
ju rad os. No meio da sala, quase em frente ao juiz, está o lugar
reservado ao réu, ladeado, via de regra, por dois policiais m ilita­
re s146.
Tem -se, então, uma distribuição dos espaços no jú ri que p o d e­
ria ser caracterizada como geopolítica147. Essa segregação cie posições
- que existe em qualquer tribunal, mas que é,-principalmente, estereo­
tipada no júri -, é tomada pelas pessoas, lembra Corrêa, como parte do
, 4 j C fe. Da M a lt a , R oberto. C a rn av ais, m a la n d ro s e h eró is. Rio de Ja n e iro , Z a h a r,
1 9 8 3 , p. 32 e seg s.
146 Esta não é a desc rição dn sala do j ú r i , m a s dc w n a dns salas e m q u e o c o r r e m
ju lg am en to s. E razoável d iz e r, e n tre ta n to , q u e a g r a n d e m a io ria d e la s s e g u e a
d istrib u içã o aqu i delineada. V e r, a esse re s p e ito , a b r i l h a n t e d e s c r i ç ã o d e C o rrea ,
M a r iz a . M orte em fa m ília , op. eit., p. 81.
147 C o n s u l ta r , p ara tanto, F o u c a u it , op. c i t , p. 45.

TR IB U N A L DC) JÚRI 1 0 7
espetáculo: o advogado espera que o juiz profira as palavras
regulamentares; os jurados se dirigem em ordem para seus lugares,
ocupando a mesma cadeira toda vez que voltam à sala após uma
interrupção, enquanto o réu fica quase sempre com a cabeça baixa
entre as mãos ou chorando, O réu, cuia trajetória no processo
rítnalísüco do júri será analisada mais adiante, não obstante ser o
protagonista principal do julgamento, é a figura mais obscura, só
pa rticipando do interrogatório!4S.
Em conseqüência, "a relação vertical aparente nessa ordenação
do espaço será transform ada, dentro do âm bito da d iscussão, em
urna relação horizontal, que obscurece a existência de 'd esigu ais'
com o p arceiros no processo em ju lgam ento, Essa h o riz o n talid ad e se
estabelece na criação de uma aparência de igu ald ad e no debate,
acusado e vítima rep resen tados pela defesa e a cu sa çã o , am bos
com petindo pela decisão do Júri Popular. A d iscu ssão pública
valida, legitima o processo e o ignora, ign orand o sua construção
passo a passo. O debate, m áscara ao m esm o fem po que realidade,
está anteriorm ente limitado pelas condições de sua produção. Os
atores jurídicos, ao servirem de m ediadores de uma realidad e que
não é a sua, perdem de vista o sentido de opressão inscrito no
trabalho que realizam, passando a aluar corno-se, de tato, todos
fossem ig u a is ." 149
Ressalte-se, ainda, que "o processam ento tam bém transcorre
com o se todos os casos fo s s e m a m esm a história, um só caso, contado
diversas vezes e de d iversas m aneiras. É com o se todos os atos
envolvidos na quebra da regra legal fossem eq u iv a len tes d esde que
possíveis de serem en q u ad ra d o s dentro do m esm o artigo do C ód igo
Penal, todos sujeitos, portanto, à mesma trajetória legal. M as é a
partir de limites p reviam ente traçados para cada um que se estabe­
lecerá a discussão interna do processo, levando-se a p ú b lico apenas
as respostas, suscitadas por perguntas nunca exp licita d as, que
serão, apesar disso, aceitas im plicitam ente com o v á lid a s ," 150
Vale frisar, por último, que, nos júris sim ulados realizad os nas
Faculdades de Direito, h á , na maioria delas, uma rep rod u çã o do
ritual, tanto no plano do sim bólico como no da h ierarq u iz açã o de
forças, poderes e distribuição dos espaços. G eralm en te, os júris
sim ulados são presididos pelo juiz-presidente do Tribu n al do Júri
local, que é, geralm ente, nas cidades do interior, tam bém professor
1-1s V e r C o rre a , op. cit., p. 81 e segs.
149 íd e m , p. 82.
lo° fbidem .

108 LEN IO LUIZ STRECK


de Direito Penal ou Processual. Os discursos dos atores jurídicos
igualmente repetem , em tais sim ulações, as m esm as regras que
regem os ju lgam en tos oficiais. Os próprios aca d êm ico s de Direito,
que servem com o jurados, são ch am ad o s de "ex c elê n cia s", sem
contar que, durante todo o ritual, os estu dantes tratam-se por
"excelência" e "dou to r".

5.2. O réu e sua trajetória no processo

Van G enn ep conceitua ritos de passagem com o "ritos que


acom panham toda m udança de lugar, estado, posição social, de
idade, sendo um conceito m ais am plo do que 'slntus' ou 'função'.
Refere-se a qualquer tipo de condição estável ou recorrente, cultu­
ralmente reconhecida. Todos os ritos de pa ssa gem ou de Transição'
caracterizam-se, assim, por três fases: separação, m argem (ou lirnen,
significando 'lim iar' em latim) e a g re g a çã o " 151.
Desse modo, sendo o processo judicial uma forma de instru­
mentalização da "tra n siçã o " de u m a pessoa da cond ição de "não-
processado" para "acu sad o ", sua passagem , no âm bito do Tribunal
do jú ri, p o d e ser explicada tom ando por base os ri tos de passagem
da antropologia. Com efeito, sendo o júri um rito por excelência -
não se olvide que a expressão "rito pro cessu al" foi institucionaliza­
da pelo direito processual lato sensii - a trajetória do réu no processo
é m arcada pela presença dos três m om entos especificados por Van
Gennep: separação, m argem e agregação.
A prim eira fase pela qual passa o acusado de crim e que é
julgado pelo júri é a se p a ra ç ã o 152. Esta fase con figu ra-se com o
acatamento da denúncia do M inistério Público pelo juiz-presidente
- m om ento em que, legalm ente, tem início a ação penal - e a
subseqüente sentença de prontm cijj. O C ódigo de Processo Penal
regula a m atéria atinente à pronúncia assim:

m V ictor VV. T u r n e r, op. cit./ a q ui e s t u d a d o , ba s e ia -s e cm G e n n e p na a b o r d a g e m


dos ritos. Sa lie n te - se , aind a, q u e a trajetó ria ri tualís fica d o réu n o pro cess o
ba s eia-s e t a m b é m nas c o n t r i b u iç õ e s de C o r r e a , M o rte em fa m ília , op. cit.
É po ssív el d iz er q u e, s ír ic to sen sii, a q u e b r a i n i c i a l/ p rim o rd ia l q u e d e se n c a d e ia
o p ro c e s s o ritual é o c o m e t i m e n t o d o crim e. P o ré m , esta q u e b r a so m e n t e se
in stitu cion aliza co m o i m p u l s o estatal (r e c e b im e n to da d e n ú n c i a e o seu co rolário ,
que é a p r o n ú n c i a , q u e " m a n d a r á " o réu a j ú r i p o p u l a r ) , fase q u e, n o s limites
d estas reflex õ e s, é co n s i d e r a d a c o m o a d a sep a r a ç ã o ritu a lística , n a m ed id a em que
in stau ra um a nova rela çã o /situ a çã o d o a cu sa d o itn e com a so cied ad e.

TRIBU N A L D O jÚ R i 1 0 9
"Art. 408. Se o juiz se convencer da existência do crim e e de
indícios de que o réu seja o seu autor, p ro n u n ciá -lo -á , dando os
m otivos do seu convencim ento.
§ l 9 Na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositivo
legal em cuja sanção julgar incurso o réu, m a n d ará lançar-lhe o
nome no rol dos culpados, recom endá-lo-á na prisão em que se
achar, ou expedirá as ordens necessárias para sua captura.
§ 2e Se o réu for primário e de bons a n teced en tes, poderá o juiz
deixar de decretar-lhe a prisão ou revogá-la, caso já se encontre
preso.''

Segundo a doutrina processual-penal, na senten ça de p ro n ú n ­


cia, o juiz emite um juízo de adm issibilidade q u an to à acusação, ou
seja, m andará ou não o réu a ju lgam ento pelo júri. A pronúncia é
considerada pela dogmática como uma peça processu al in d tíbio pro
societate, isto é, havendo razoável prova de que o fato crim inoso
existiu e indícios de que o acusado seja o autor, isto será suficiente
para levá-lo a júri. C om efeito, assim en ten d em os Tribu n ais do
país:
não é necessária a prova incontroversa da existência do
crime para que o acusado seja p ro nu n ciad o; basta que o juiz, se
convença daquela existência [...] no d esp ach o de pronúncia,
sendo m eram ente declaratório, há inversão da regra proced i­
mental do in dubio pro reo para o in dubio pro societate, em razão
do que somente diante de prova inequ ívoca é que deve o réu
ser subtraído de seu juiz natural: o jú r i” (R JT jR G S 80/37).

A discussão acerca da pronúncia e seus critérios/lim ites assu­


me proporções que m erecem uma reflexão m ais aprofun d ad a por
parte da com unidade jurídica no que se refere à h ipótese de o
hom icídio ser qualificado. Isto porque existem d ecisões do Superior
Tribunal de ju stiça que apontam para a im ita ç ã o do p od er do ju iz de
excluir qualificadora constante na denúncia. C om efeito:
"Hcibeas C or pus n. 3.847-GO: E M EN TA : Processual Penal. Ha-
be.as .C orpus. Pronúncia. Exclusão das q ualiíicad oras. 1. Esta
Turm a já se pronunciou no sentido de que 'ao ju iz singular, ao
fa z e r a pron ún cia, é defeso exclu ir qu alificadoras. O ju lg am en to, por
im posição con stitucion al, é do T ribunal do Jú ri (CF, art. 5 S,
X X X V Ill)'. 2. O rdem denegada. Do acórdão, extrai-se que a
doutrina (v.g., Julio Fabbrini Mirabete. C ódigo de Processo
P enal Interpretado, p. 482) e alguma ju risp rudên cia, particular­
m ente dos Tribunais de Santa Catarina (RT 564/ 3 95 e RT

1 1 0 LENIO LUIZ STRECK


656/323) e do Rio G rande do Sul (RJTJRGS 145/55 e 147/108)
indicam a necessidade de a sentença d e p ro n ú n c ia conter, à luz
do art, 408 do C PP, os m otivos de co n v e n cim e n to do m agistra­
do no que se refere à existência do crim e e aos indícios da
autoria, estendendo-se tal m otiv ação às q u alificad o ra s do deli­
to, e não apenas adm iti-las tão-som ente p or con starem na
denúncia. Não m enos ex alo, p orém , é qu e 'as qu alificad oras articu­
ladas na denúncia som en te devem ser afastadas qu an do m anifesta-
m ente e de todo descabidas. M esm o qu an do d u v id osas, devem ser
inclu ídas na pron ú n cia, parn que sobre ela se m an ifeste c decida o
•Jú ri, Ju iz natural nos p rocessos dos crim es con tra a vida'.(R T
647/271).T al entendim ento é perfilh a d o p or esta Tu rm a, con ­
forme adverte acórdão relatado pelo e m in en te M inistro Adhe-
m ar Maciel, segun do o qual 'ao Ju iz sin g u lar, ao fa z er a
p ronú n cia, é defeso ex clu ir qu alificad oras. O ju lg am en to, por
im posição constitucional, é do tribunal do Jú ri (CF, art. 5®,
X X X V fíl) '" (RT 649/393).
n ~le n te que, em urna an álise prelim inar, é p ossível dizer
que ntendimento tem o c on d ão de fortalecer o Tribunal do
Júri a questão assu m e rehroâncin, na m edida em que qualquer
ijiuuijicnaora transform a o crim e de hom icíd io em h edion do, cujas conse­
qüências - gravíssim as - são. a bsolu tam en te d iv ersas das qu e decorrem do
crim e de hom icídio sim ples. O bserve-se que e m n o ss o s Tribunais é
predom inante, como já se d em on strou , a tese de q u e "as qualifica­
doras articuladas na denúncia s o m e n te d ev em ser afastad as quando
m anifestam ente im procedentes e de todo desca b id as. M esm o quando
duvidosas devem ser inclu ídas na p ron ú n cia, para qu e so bre elas se
m anifeste e decidn o Jú ri, ju iz n atu ral nos p rocessos dos crim es contra a
vida", (grifei) Nesse sentido, RT 647/89 e R T 55 9/ 331. Por isso, há
que se fazer uma reflexão m ais ap ro fu n d a d a so bre essa matéria,
colocando-se em xeque não só esse en ten d im en to n o que tange às
qualificadoras - porque tran sform am o h o m ic íd io qualificado em
hediondo - como tam bém no que se relaciona à tese do in dubio pro
societate.
Tem-se, de qualquer sorte, um a situ ação in u sitad a criada pela
lei: o juiz, na pronúncia (que é m e ra m e n te d eclarató ria), m esm o que
pairem dúvidas quanto ao fato de ser ou não o réu o autor do fato
crim inoso, mandá-lo-á a júri. M a s - e isto é relev an te - não obstante
não ter sido julgado ainda, já terá, segu n d o a lei processu al, seu
nom e lançado no rol dos culpados. A situ ação do acu sad o que será
ju lgad o pelo Tribunal do Júri é diferente, desse m od o, daquele que

T R IB U N A L D O JÚRI 1 1 1
será julgado pelo juiz singular, na m edida em que neste caso seu
n om e somente irá para o rol dos culpados após sua efetiva con d en a­
ção, Há que se frisar que, com o advento da C o n stitu içã o Federal de
1988, o lançam ento do nome do réu no rol dos cu lp ad os tornou-se
inconstitucional, na esteira do artigo 5C, inciso LVII, pelo qual
"ninguém será considerado culpado até o trânsito em ju lg a d o de
sentença penal con d en aió ría". Já antes da nova C onstituição, Dama-
sio de Je s u s 153 considerava "u m absurdo o lançam ento do n om e do
réu no rol dos culpados". A ju risp rud ên cia, p o rém , asseverava a
validade do dispositivo da lei processual penal (RT 534/400).
O tratamento diferenciado dispensad o ao acu sad o cie crime
objeto de ju lgam ento pelo jú ri, através da fase processual d en o m i­
nada sentença de pronúncia pode ser explicada dentro do contexto
dos ritos de passagem - a separação. C om efeito, T u r n e r 154, apoiado
em Gennep, acentua que essa primeira fase - a sep aração - abrange
" o com portam ento sim bólico que significa o a fastam en to do indiví­
duo ou de um grupo, quer de um p on to fixo a n terior na estrutura
social, quer de um conjunto de condições culturais (um estudo) ou
ainda de am bos".
A sentença de pronúncia afasta o indivíduo do gru po "n o rm a l"
da sociedade, ou seja, o grupo dos "n ào-p ron u n cia clos", "dos-que-
nad a - d e v e m - à -j u s t iç a " ou "d o s que nao têm seu n om e lançado no
rol dos culpados". Está, pois, concluída a p rim eira fase do ritual.
A fase, porém , que mais interessa nesta análise é a que vem
logo a seguir, qual seja, a da m argem ou da lim in aridade. É a fase que
vai desde a sentença de pronúncia, que rem ete o acu sa d o a ju lg a ­
m ento pelo Tribunal do Júri, até o veredicto final. T u rn e r155 caracte­
riza a liminaridade com m uita p ro p ried a d e , d iz e n d o que "os
atributos de lim inaridade [...] são n ecessaria m en te am bígu os, uma
vez que esta condição e estas pessoas (lim inares) furtam -se ou
escapam à rede de classificações que n o rm a lm e n te d eterm inam a
localização de estados e posições num espaço cultural. A s entidades
lim inares não se situam nem aqu i nem lá: estão no m eio e en tre posições
atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costu m es, p elas con ven ções e pelo
cerim onial. [...] As entidades liminares [...] p od em ser representadas
com o se nada possu íssem , [...J como seres não p o s su e m status [...]
nada que as possa d istinguir de seus colegas neófitos ou em
153 Je su s , D a m á s i o E. de. C ó d íq o d e P rocesso P en n l C o m en ta d o . S ã o P a u lo , Sa ra iva,
1 986, p. 253.
154 Cfe. Turner, op. c i t , p. 116.
15a Id em , p. 117. (grife i)

1 1 2 LENIO LUIZ STRECK


processo de Iniciação. Seu com portam en to é norm alm en te passivo e
hum ilde. Devem , im plicitam ente, ob ed ecer aos instrutores e aceitar
punições arbitrárias, sem queixa. E co m o se fossem reduzidos e
modelados de novo e dotados de outros pod eres, para se capacita­
rem a enfrentar sua nova situação de vida".
Esta é a situação do indivíduo acusado por crim e da c om p etên ­
cia do júri: não obstante não ter sido ju lgad o ainda, leva consigo, em
seu cotidiano, se preso não estiver, o estigma punitivo da humilha­
ção. Na realidade, ele não é nem inocente e n em culpad o está, pois,
na liminaridade. De ressaltar, nesse sentido, p or evidente, que o
acusado, nos dem ais crim es que não são da com petên cia do júri,
também estará nessa situação. Entretanto, no júri, sua situação é
especial, porqu e seu ju lg am en to será fe it o pela com u n idade, o que demanda
sua exposição pública, quan d o n ã o som ente seu crim e stricto sensu
será avaliado pelos seus "p a re s ", com o, tam bém , seu ato servirá
como indicativo do "standard c o rn p orta m en tal" (com portam ento-
tipo) "p erm itid o-d esejad o" por aquela com u nid ad e. N ão se olvide
que tio ju lg am en to pelo T ribu n al do jú ri, uma vez condenado, o destino do
acusado será, no m ais das vezes, n prisão, excetu adas as hipóteses de
condenação em face de desclassificação do crim e doloso para culposo.
C onform e verem os mais adiante, esse desp ojam en to, essa im ­
potência do acusado diante da situ ação que a lei e a sociedade
impõem, tem sua contrapartida, que é o "p o d er dos fracos", que
será desenvolvido na parte destinada aos discursos dos atores
jurídicos no plenário do júri.
Na terceira fase, cham ada p or G ennep, no contexto dos ritos de
passagem, de agregação, estará consu m ada a passagem . O réu volta
a ter estabilidade mais uma v ez e, diante disso, terá direitos e
obrigações frente aos dem ais cidadãos de tipo claram ente definidos
e "estru tu rais", esperando-se dele que se com porte conform e os
ditames da sentença. Se absolvido, seus em baraços serão menores
(porque sem pre perm anece o estigma de q uem foi réu de um.
processo alguma vez). Se condenado a mais cie dois anos de
reclusão, irá para o cárcere. Se for con d en ado a uma pena de até
dois anos e for prim ário, com b on s antecedentes, terá que cumprir
religiosamente as regras do sursis (suspensão con dicion al da pena),
m ediante cláusulas constantes na sentença do Tribunal do Júri.
N ão se pode esquecer, por outro lado, que viv em os em uma
sociedade de classes (bem) diferenciadas. N esse sentido, no ritual
de julgam ento pelo Tribunal do Júri, o acusado não está apenas numa
situação de lim in aridade circu n stan cial - o ju lg a m en to -, m om ento em

TRIBU N A L DO JÚRI 1 1 3
que perdeu seus atributos sociais. Tal situação é perm an en te e
poderia ser definida com o uma institucionalização da lintinaridade:
ele esfn sujeito, n qualquer m om ento, a ser ju lg a d o através dc uma
linguagem que em prega con ceitos e norm as que ele não dom ina, utilizada
pelos guardiães da estrutura social. E evidente que esta institucionali­
zação se manifesta som ente nos casos em que os réus são pessoas
pertencentes às cam adas pobres e é com partilhada por seus c o m p a ­
nheiros de posição estrutural em outras situações que n ã o apenas a
que o coloca na mira da lei. Um acu sado perten cen te às cam adas
dom inantes, por outro lado, m anterá tam bém sua p osição estrutural,
passando apenas pelas etapas fo rm a is de situ ação lim in ar de ju lg am en ­
to, mas conservando o pleno dom ínio de seu estado anterior e de
todos os «tributos que lhe pertenciam neste es ta d o 156.

5.3. O s discursos no T r ib u n a l do Júri

A rifuaíística do júri tem o seu m om ento m aior por ocasião dos


debates. Havendo uma pessoa apenas em ju lgam ento, o tem].:
cie duas horas para cada umas das partes - defesa e acusaçí
hipótese de haver mais de um acusado, o tem po é au m en tad o em
uma hora, in dependentem ente do núm ero de réus. E nos debates
entre acusação e defesa que a sorte do acusado será decidida. Como
ocorre esse embate entre acusação e defesa? Os m ais diferentes
tipos de discursos e recursos retóricos são utilizados no plenário.
Estilos gongóricos, teatrais, "técnicos"... A lguns ju lg a m en to s tor­
nam-se burlescos. Há julgam en tos, com o o que co n d en o u José
Rainha, líder do M ST, a 26 anos de prisão, em que u n i dos
advogados, assistente da acusação, chegou a se ajoelhar e cho­
rar. ..(sic) Enfim, existem tantas form as e m aneiras de atuação em
plenário quanto são os protagonistas do espetáculo. Para B o n fim 157,
entusiasta do Tribunal do Júri, "o júri de hoje, posto entre a cruz e a
espada, sim bolizados aqui pelo espírito (em oção d 'alm a) e a razão,
encontrou o seu medi o statu s virtus. N ão se concebe m ais a dialética
vazia (inania verba), a oratória gongórica, o estilo condoreiro do
diletantismo, patético, ore rotundo, art pour Vart. Esta não encontra
mais assento na sala secreta. Tam bém o form alism o cru, sem a
sensação da crença, sem o flamejar da fé, sem a verdade que faz a
156 N esse sen tid o, ver C o rre a , M orte em famíJin, op. cit., p. 301 e seg s.
1 d 7 B o n f j I T l í E d ilson M o u g c n o t . Jú r i - do in q u érito no p len ário. S ã o P aulo, Saraiva ,

19 94, p. 224.

1 1 4 LENIO LUIZ STRECK


alma trovejante, só faz saltar, ja n ela afora, da sala do Tribunal, a
tese de um orador incrédulo, an êm ico, ch och o ou frou xo. De que
adiantaria a este um processo rep leto de p ro vas, uma instrução bem
feita, se, com sua apatia, acabaria por d esv alorizá-las, d esacred itan ­
do-as? As provas não falam por si, ao con trário do que se propala, é
preciso que se dê a elas, ao m en os, o viço do v erbo, e a este, vida".
Ara mis Nassif158 identifica duas co n tin g ên c ia s de que se valem
os debatedores em plenário, as quais, m esm o se p aráv e is, no mais
das vezes são apresentadas juntas: a) O discurso, co m o m anifesta­
ção oral persuasiva, utilização da retórica, da " c o n v e rsa amiga,
m acia", da contundência ord inária, do apelo em o c ía l, etc.; b) À
interpretação cênica, m ím ica, teatral, irreverente, gesticular. Para
ele, "os réus no Júri são uma m inoria se m rep resen ta tiv íd ad e moral
ou ética eficaz para inform ar seus pares. É de se lh es permitir
com u nicarem suas histórias e que têm seu p ró p rio sentido. E, para
convencer, por meio de seu d efen sor, têm que se v a ler do m esm o
universo de linguagem m etafórica, im agem de q u e se valiam os
antigos helênicos, com a necessária adap tação à realidade contem ­
porânea e situação nada heróica dos h om icidas." E com plementa,
dizend o que isso também vaie para a acu sa ção, nina vez que,
"resp eitad os os limites éticos, se rep ortar à situ a ção que possa ser
vivenciada por qualquer dos in tegran tes do C o n selh o de Sentença,
este tipo de interpretação é recu rso de extrem a v a lid a d e ". Assevera
que, indubitavelm ente, os d eb ates no p len ário p ro v o ca m as mais
d esencontrad as paixões, tanto dos críticos quan to d os defensores
da instituição.
Crítica da instituição do júri, M ariza C o rre a 159 alerta para o fato
de que "toda a argum entação e os c o n tra -a rg u m e n to s d esen v olvi­
dos por advogados e p ro m o to res nos casos q u e debatem não
deveriam obseurecer o fatp de que, para além das versões que
apresentam no júri, estes agentes da lei co m p a rtilh a m um terreno
com u m que lhes permite o en con tro da discussão. Este terreno
c o m u m não se define, apenas, pelas regras legais às quais eles
d ev em se submeter, mas inclui a aceitação de certas n orm as sociais
que eles antes reforçam do que com b atem . H á toda um a série de
refrões do senso com um , freqü en tem en te in corporados na retórica fo ren se,
e que vão delineando o que ê con sid erad o um com p ortam en to adequado
p ara a m u lher e para o hom em em nossa socied ad e
158 C fe . N assif, Arainis. J ú r i - in stru m e n to áe. s o b e ra n ia p p p iiln r. P orto A leg re,
L iv r aria do A d v o g a d o , 1996, p, 121 e segs,
159 C fe . C o r r e a , Os crim es da p a ix ã o , op. cít, p. 68.

T R IB U N A L DO JÚ RI 1 1 5
Num a análise mais percuciente, pod e-se constatar que, lato
sen su , am bos, tanto o prom otor de justiça co m o o ad v ogad o de
defesa, usam discursos sem elhantes, d iferen ciad os so m e n te no que
tange à caracterização do réu e à vítima. A ssim , m uito em bora à
primeira vista pareça haver uma (forte) op o siçã o entre o discurso
da acusação e o da defesa, constata-se, na realid ad e, que am bos,
acu sad or e defensor, funcionam com o ag en tes neulralizados/n en trn lizn do-
res, equiU bnulos/equilibrndores dos fatos, h istitu íá o s/in stitu in les de um
dado padrão de " norm alidade social". No ju lg a m en to, os atos são
transformados em autos, remontados a partir do imaginário gnosioló-
gico dos atores jurídicos. Ocorre um deslocamento itíeológico-discur-
sívo, onde os fatos são catapultados para o m undo das abstrações. E o
que Ferraz j r chama de astúcia da razão dogm ática, que se põe a serviço
do en fraqu ecim en to das tensões sociais, na m edida em que neutraliza a
pressão exercida pelos problem as de d istribu ição do poder, de
recursos e de benefícios escassos160. O m o m en to do debate, no
plenário do júri, concentra todos os elem entos da co n stru ção desse
processo, num dado ponto, com o se estivesse c o n g ela d o , preconce­
bido. Afinal de contas, como dizem os juristas d ogm áticos, "o que
não eslá nos autos não está no m un d o do Direito".,.
Os discursos no processo do júri produzem, desse modo, uma
mediação que, a exemplo do que ocorre na metáfora do Leito de
Procusfo, (re)adequa/amolda a dimensão dos acontecim entos e des-
politiza as relações entre as pessoas no universo fenomênico, no
interior do qual os conflitos são institucionalizados. As diversidades e
ambigüidades são negadas no momento em que os fatos e relações
passam pelo filtro de uma linguagem formalizada que transforma e
reduz as chances do réu a apenas duas interpretações, ambas, frise-se,
tributárias do m esm o m odelo, pro ven ien tes de um a m esm a holding.
As duas interpretações possíveis serão, ainda um a vez, reduzidas
na decisão que será, além da escolha da ap re sen taçã o m ais coerente
com o m odelo qu e o sfu lg a d o res visualizam para a socied ad e em que vivem ,
também um selo de aprovação dos p ro ce d im en to s esco lh id os por
essa m esm a sociedade na transform ação m e n c io n a d a '61.

5.4. O D ire ito Penal do autor v e r s u s o D ire ito P en al do fato

C om o vivem os em uma socied ad e atravessada p o r contrastes


dos m ais variados, do plano cultural ao econ ôm ico, n ão poderia o
160 F e rra z j r , In tro d u çã o no estu d o do D ire ito , op. cit., p. 280,
161 N e s s e s e n t id o , c o n s u lta r C o rre a, M o rte cm fa m ília , op , cit,, p. 301 . (grifei)

1 1 6 LEN IO LUIZ STRECK


"legislador" especificar, no con texto da lei, form alm ente, que, por
exemplo, m atar alguém seria diferente para q uem pertencesse a
uma camada social "m ais e le v a d a " e para quem p erten cesse de uma
camada menos favorecida da socied ad e. Isso seria ilógico, levando-
se em conta o processo ideológico, cuja eficácia d ep end e da exata
medida em que não é percebida a "in ten ção do legislador".
Criou-se, então, no âm bito da dogm ática ju rídica, a distinção
informal entre direito p en al do fa lo e direito pernil do autor. Dessa
forma, acusa-se, defen de-se e ju lga -se o indivíduo tido pelo f i t o
crim inoso que com eteu, mas p elo qu e ele representa, d e fo r m a efetiva, na
tessitura da sociedade na qual está in serido. É o papel social do acusado
que definirá a m aneira corno será tratado/julgado. Registre-se que
essa tese - que é antiga - .surgiu com o alternativa entre a teoria
realística (tradicional e dom inan te) e a teoria sintom ática. Infiltrou-
se no pensam ento ju rídico com o advento do n ad on a l-so cialism o
alemão, chamada então de teoria voluntarista, ou Direito Penal da
vontade ( W illen sstrafrecht), segun d o a qual, o crime seria, antes de
mais nada, a "violação do d ever de fidelidade para com o Estado".
Foi estruturada pelo cham ado g ru p o de Kiei, liderado por Shaffs-
tein e Dahm, penalistas do fatídico regim e nazista, sendo que, para
ele, concorreu, de certa forma, o próprio Callas, embora em posição
m ais mo d e r a d a 162,
O Direito Penal da vontade situa-se, h istoricam ente, com o uma
variante do Direito Penal do autor que, sob diversos rótulos doutri­
nários, em épocas distintas, se con trapôs ao Direito Penal do fato. O
Direito Penal da vontade ou do autor esteve a serviço do arbítrio e
da prepotência do n acion al-socialism o, sendo levado a extrem os
incompatíveis com a liberdade do ser hum ano. O "tipo norm ativo
do au tor" foi uma de suas criações teratológicas, com rude golpe no
sagrado e consagrado princípio da legalidade dos crim es e nem o
grupo de M arburgo, de Z im m erl e Klee, que se dizia fiel à inspira­
ção de von Liszt, logrou escap ar às distorções doutrinárias da nova
ordem social n azista163.
|_Não é difícil p erce b er/ con stata r que nos ju lgam en tos do Tribu ­
nal do Júri prevalecem as teses do Direito Penal do a u to r jE s s e tipo
de procedim ento é exercitado exatam ente|porque o Direito Penal
está inserido em uma so cied ade desigual, em que, se o indivíduo
tiver bons antecedentes, for um b o m pai de família, trabalhador,
162 N e s se sen tid o, c o n s u l t a r o i m p o r t a n t e t ra b a l h o de C o e lh o , W a l t e r Mar ciligil.
Teoria G eral d o C rim e. P o r t o A le g re , F a b r is , 1991,
163 Id em .

TRIBU N A L DO JÚ RI 1 1 7
etc., enfim, se enquadrar segu n d o os p ad rõ es de n orm alid ad e
estabelecidos pela sociedade dom inante, terá m a io res possibilid a­
des de ser absolvido do que alguém classificado /rotulad o como
'desviante. Este perfil das "relaçõ es adequ adas, norm ais, entre
1homens e mulheres não é nunca posto em questão nas-discussões
jurídicas: o qtie se tenta fazer é enquadrar hom ens c mulheres concretos
dentro das regras idealizadas e com provar a sua maior ou m enor adesão a elas.
Do sucesso dessa operação é que vai depender, então, a condenação
ou absolvição dos acusados [ante o jíiri, on de o que se p u n e é a
conduta social do acusado e da vítim a, e não o crim e c o m e t i d a '161.
Nessa mesma linha, cabe lem brar as palavras de S o ler165, para
quem "durante larguísim o período Ias penas m ás crueles hah sido
fundadas en la afirmaeión de que un sujeto era brujo o hereje. En
iiueslros propios tiem pos hem os visto fu n d a r las m ás extrem as medidas
sobre la base de la condición óptica de ju d io o de negro".
ÍA institucionalização - m esm o sem previsão legal - da assim
denominada "testemunha abonatória" caracteriza bem a tese do
Direito Penal do autor.] Essa testem unha, não obstante não ter visto
nado \u>- > •> fato criminoso imputado o . 1 o ' juízo
p a r 1 d.1 ” ' . i * uplo, que o réu é um b om su > > , • te pai
de família, trabainador, etc., ou para dizer que o réu e um péssim o
pagador de contas, brigão, etc.
Outro fator indicativo adv ém das m an chetes dividgadas pela
im prensa, que costumam colocar: "Fulan o de Tal será ju lgad o pelo
Tribunal do Juri", ou "Será ju lgad o hoje o m endigo que m atou o
com erciante"... Por isso não se pode perder de vista a lição de
F e m y o h 166, para quem jdelinqüente não é aquela pessoa que, segun ­
do as circunstâncias, opiniões ou contingentes relações de força,
pode ser etiquetada como im oral, perigosa, infiel ou inimiga, mas a
que é identificada com o responsável p or um d elitoJ
Nesse contexto, não é tem erário afirmar que os op erad o res do
Direito,iao utilizarem a (fácil) retórica do D ireito Penal do autenj}-
m ormente no Tribunal do jú r i - além de escam o tearem o D ireito
Pennl do fa to , jestão, im plicitamente, corroborando/justificando a
desigualdade social, ainda mais se for levada em conta a co m p o si­
ção do corpo de jurados, que, historicam ente, é constituído pelas
camadas m édio-superiores (portanto, dom inantes) da sociedadeTj
Assim, levando-se em conta a circunstância de os acusados, em sua
164 Cfe. Correa, M arte em fam ília, p. 303 . (grife i).
16j Cfe. A p u d Coelh o, op, d t . , p. 20. (grifei)
166 Cfe. Ferrajoii, D erecho y R n zóii, o p . cit. (grifei)

1 1 8 LENIO LUIZ STRECK


am pla m aio ria , serem [provenicníes d as c am ad as p o b res da socieda-
l l g jp o d e - s e concluir q u e . quando levad o s a ju lg a m en to frente a um
corpo de jurados formado b asica m en te pelas cam ad a s m éd io-sup e-
n o res da sociedade|estarão (os acusad os) em taco de tuna verdndei-
la Ima de classes, que, porém , não será explicitada no plenário do
j u r a m e n t o , eis que, sim bólica e rifu a lislicam en ie, s- ,} im algatuada
pelos discursos dos atores jurídicos, que tratarão de c s c o r !er inexorável
relação conflituosa existente en tre réus e ju lgn doresl

5 .5 . O discurso"da acusação

Com o se viu, os discursos dos o p erad ores ju ríd ic o s (acusação e


defesa) no júri estão perm eados, m ajorifariam en te, n ela visão de
que o que m ais importa é o aulor do iato a i m i n o s o e não o p io p rio
fato com etido pelo acusado. A ^ i m , percebe-se que no discurso da
acu> a s ã > csl . í p * • nt e i i c s n d a 11 ‘ p >1 'sabd u la1ie moral, e n f i m , d, i
infahi-iiiditde d a sociedade ^oino u m tuo.o e . p i e ledo* iem a m e - . n i
chance, oi. >i('’ h C is > n, i de ■j n > ' i/o-, i r . r im .- a
lei", '! v ' t ’ * , 1 r> m i te J, , i i r,i i',» -1, , ?>s t m <|l't • > m d í • k L : >
está m se n d o
O reu é \ isto e colocado com o um desviante, isto é, tiazen d o a
questão para o contexto antropológico, é a "p ed ra que os c o n stru to ­
res rejeitam ": "[...] a anomalia, a pedra que os construtores rejeitam, e
removida da ordem estruturada da sociedade e levada a representar a
simples unidade da própria sociedade, conceitualizada como homogênea e
não como um sistema de posições sociais heterogêneas''107.
Na m esm a linha, "pod e-se ch a m a r destoan te a q u alq u er m e m ­
bro individual que não adere às n orm as e d e n o m in a rm o s desvio a
sua pecu lia rid a d e"168.
Essa "pedra que os construtores reje itam ", esse desviante
social, é visto face a um com p o rtam en to tido com o p arad igm ático,
considerado normal no im aginário social instituído. A ênfase ao
discurso do tipo "a -so cied ad e-d á-ch an ce-ig u al-p ara -to d o s" e "al-
g u ns-não-a-aproveitam " faz parte do sentido c o m u m teórico do
discurso da acusação. Depois da sau d ação ao ju iz e ao advogado,
v em o discurso-recado-saudação aos jurados, ocasião em que co m e ­
ça a se esboçar a tese "padrão versus d esv io", c o m u m a peroração do
167 Cfe. T u r n e r , op, cit, p. 67,
168 Cfe. G offtn a n , Irving. E stig m a : notns so b r e a m a n ip u la çã o dn id en tid a d e d eteriorad a.
T rad. de Márcia Bandeiraxle Mello Leite Nu nes. Rio de Janeiro , Z a h a r, 1978, p. 151.

T R IB U N A L D O JÚ RI 1 1 9
tipo "Sei que a com u nid ade é ordeira, próspera e deseja a paz.
Infelizmente, há um alto índice de crim inalidade. Espero que neste
julgam ento ajudem os a d im inu ir e co m b ate r este índ ice..." A seguir,
vem enfatizada a função do Prom otor de ju stiç a : "A c u s a r em nome
da sociedade os que não c u m p rem com as regras estabelecidas".
Quem observar os ju lg am en tos do Tribu n al do Júri (no Rio
Grande do Sul, nos últim os seis anos, foram realizados mais de dez
mil ju lgam entos), perceberá a oposição entre o norm al e o dcsviaiite,
tese essa que, na expressiva maioria dos casos, serve com o sustentá-
culo ao discurso acusatórío. Se o réu tiver (maus) antecedentes,
estes serão enfatizados com v eem ên cia, m ostran d o, por exem plo,
que "n ã o é a primeira vez que transgrediu as regras da sociedade
organizada". Adota-se, m utatis m u taiitis, o que está traduzido, de
forma incisiva, na assertiva d e Roberto L y ra u’9, talvez o mais
fam oso promotor de ju stiça deste país: "P unir é m anter os laços da
coexistência social, equ ilibrar o sistem a de vida coletiva, tran qü ilizar o
m eio, intim idar os pred isp ostos, ev itar a in iqü idade para os sen ten ciados,
proteg er o réu contra o desespero dos que ficaram com o coração em crepe."
Ainda no âmbito da acusação, cabe com en tar a figura do
assistente de acusação, que o C ód ig o de Processo Penal prevê nos
artigos 268 a 273. A dogm ática jurídica vem discutindo há muito
tem po a natureza jurídica do assim ch am ad o assistente de acusação.
N ão é temerário dizer que a assistência ao Ministério Público é um
resquício da privatização do processo penal. Majoritariamente, a
doutrina dogmática se inclina pela opinião de que a função do
assistente repousa na influência decisiva que a sentença penal conde-
natóría exerce no campo cível. A figura do assistente aparece nos casos
em que a família da vítima tem condições para pagar esse trabalho ou ’
quando o caso tem rep ercussões políticas, com o, por exem plo, o
julgam ento dos acusados da morte de Chico M endes. Em decorrência,
os meios de comunicação acabam por obscurecer a função do titular
da acusação, ou seja, o Ministério Público. Q uem se lembra do nome
do promotor de justiça que atuou no caso Chico Mendes? Em
contrapartida, todos sabem que o ad vogad o acusador foi Márcio
Thom as Bastos, ex-presidente da O rd em dos A d v o g a d o s do Brasil.
C om o advento da nova C onstituição, a presen ça do assistente
de acusação começa a ser q u e stio n a d a 170, não só d evid o ao disposto
169 Cfe. Lyra, R ober to. C om o ju lg a r, com o d efen d er, co m o acu sa r. R io d e ja n e i r o ,
C ien tífica Ltda., [s.d,], p. 106.
i?0 y e r L im a , M arceltus Polastri. A a ss is tê n c i a ao M i n is t é r io P ú b l i c o e a C o n s t i t u i ­
ç ã o de 3988. In: L ivro de E stu dos Ju r íd ic o s , n.3, Rio de J a n e i r o : IEJ, 1991, p. 257. Em
a l e n t a d o tra b alh o , ess e a u t o r s u s t e n t a q u e os a rt ig o s d o C ó d i g o d e P r o c e s s o Penal

120 LEN IO LUIZ STRECK


no artigo 129, inciso I, que diz ser função privativa do M inistério
Público a prom oção da ação penal pública, com o tam bém pela
tendência mais moderna de se ab and onar os resquícios de Direito
Privado existentes no cam po do Direito Público,

5,6. O d iscurso da defesa

Enquanto a acusação explora o tema relacion ado ao "d esv io "


do réu, a defesa, em contrapartida, utiliza o que T u rn er cham a de "o
poder dos fracos", com o objetivo de con trabalancenr/ sup erar o
discurso acusatório.ÍA h um ildad e e a passividade do réu, gera lm en ­
te sentado com a cabeça entre as m ãos e m uitas vezes chorando, é
lugar com um n o s ju lg a m e n t o s populares. O réu não reclam a de
nada (e nem pode|| É obrigad o a ouvir o discurso da acusação de
forma calada. Em m uitos casos, os advogados dão instruções para
que o réu assim se comporte.
C om o já observado, o réu, quando de seu ju lga m en to em
plenário, encontra-se na fase ritualística da lim inaridade. Esse tipo
de humildade do réu, esse seu "d esp o jam en to de atributos sociais"
e essa sua impotência, além de servirem de suporte ao discurso da
defesa, tem sua contrapartida na santidade e na b on dad e que pode
envolver os liminares. A ssim , T u r n e r 171 diz que "O que existe de
interessante em relação aos fen ôm en os liminares [...] é que eles
oferecem uma mistura de su bm issão e santidade, de h o m o g e n e id a ­
de e cam aradagem ".
Dessa maneira, os acusados, que podem tam bém ser aqui
chamados de neófitos, p o d e m ser percebidos com o "co ita d o s",
como "fracos", como "p o b re z in h o s ", ou, em outras palavras, de
certo modoÇsão "santificados pelo so frim en to" q u e o ritu al lhes ímpõeT)
Isso ocorre porque d eterm in adas pessoas, devido a um infortúnio
comum ou a circunstâncias debilitantes, con seg uiram acesso a
poderes terapêuticos relativos a certos bens gerais da hum anid ad e172.
Tal processo, na visão de T eix eira 173, "explicaria fen ôm en os do
tipo 'santificação' de m endigos, com o os hom ens santos da índia e
que reg u lam a assistência ao M i n i s t é r i o P ú b lic o estão d e r r o g a d o s pela C o n s t i t u i ­
ção Fede ra l de 1988, que d eu ao M i n is t é r io P ú b lico a e x c l u s i v i d a d e da p r o m o ç ã o
da a çã o penal pública. E m se n tid o c o n t r á r i o , Boschi, J o s é A n t o n i o P a g a n e lla . A ção
Pennl. D en ú n cia, q u eix a e ad ita m en to . R io d e J a n e iro , A id é, 1997, p. 14 e segs.
171 Cfe. T u rn er, op . cit., p. 1 18.
1/2 fdem , p. 134,
173 Cfe. Teixeira, op. cit., p. 1576.

TRIBU N A L DO JÚ RI 1 2 1
prostitutas, como Maria Degolada em Porto Alegre, que até altar
possui. E a materialização do ' pod er dos fracos' ". Aliás, que m não
lembra de j ogos de futebol entre times fortes e fracos, c omo o jogo
entre as seleções da Polônia e Cama rões, pela Copa Mundial da
Espanha, em 1982, em que a maioria das pessoas torceu para a
" p ob r e" seleção de Camarões, f en ômen o que se repetiu na Copa de
90, com as seleções do Egito e a mesma Camar ões, q ua ndo enfrenta­
ram seleções "mais fortes"... Mais recentemente, quando da final do
campeonato brasileiro de futebol do ano 2000 entre Vasco da Gama
e São Caetano, pesquisa publicada pelos jornais e televisão mostrou
que mais de 80% das pessoas torceram para a "frágil e pequena"
equipe do São Caetano...
Analisando o poder dps fracos, Teixeira (íbidem) chama a
atenção para o fato de quejlais liminares ou sofredores, exatamente
pelo seu poder potencial, só sdo tolerados enquanto não am eaçam a uma
dada ordem estabelecida^ Isso ajuda a explicar desde fa.tos c omo o
tratamento dispensado a C risto, passando pelo dispensado a Poli-
ca rpo Qu a res ma .
Ao • ■i !-a*-’íi p >’ ^o ma t n o i - ' , o ' Purner174
mostra o a nfoi.s' ,a • i-\t c r 1 ' < n «orno "os
mendig <n v. ,r u ,s, i n . - n o üUio, -qi.e • ih i m* - e mplórios,
que arrancam as pretensões dos detentores de categorias e cargos
elevados e reduzem-nos ao nível da h um a ni da de e dos mortais
comuns". Também nos tradicionais filmes de faroeste, " vemos o
misterioso estranho sem lar, sem riqueza ou nome, e que restaura o
equilíbrio legal e ético num gru po local de relações políticas de
poder, eliminando os chefões profanos injustos que oprimem os
pequenos proprietários".
A observação de alguns j ulgament os pelo Tribunal do Júri
deixa bem claro o uso da tese da "força dos fracos" e do "despoja-
mento dos liminares". Com efeito, está absol ut amente introjetada
no imaginário dos juristas - tornando-se l ugar- comum dos discur­
sos da defesa - o uso, muitas vezes até exagerado, do "poder dos
fracos". Reproduz-se', de certo m o do (ou de todo modo), o estereóti­
po do advogado de defesa imagi nado pelo senso c om um da socie­
dade, registrado por Bonfim, em citação de Evaristo de Moraes: "O
advogado aponta para um canto do auditório, dirige-se a uma veneranda
senhora coberta de luto e de pranto, mostra a todos a sua fig u r a desmaiada,
onde uma dor irremediável prospera funereamente. É a mãe do réu.
Ouve-se um grito, uns passos rápidos, mãe e filh o estão abraçados,
1,4 Cfe. T u r n e r, op. cit., p. 135.

122 LENIO LUIZ STRECK


chorando. Senhoras nas tribunas choram , a lguns ju ra d os têm os olhos
molhados e disfarçam a comoção. E a absolvição é fa t a l.,." 175,
De ressaltar, ainda, que exi st em i nú mer os livros que versam
sobre o Tribunal do Júri e que e n s i n a m c o m o tirar provei to da
posição liminar do réu, Vitorino Prata Castelo B r a n c o 176, na obra O
advogado e a defesa oral, ensina aos a dv og ad os que "no final da defesa,
ein:erraudo-a, o advogado poderá recitar ou ler unia p equena poesia sobre a
mãe ou sobre a am or filial, já que a ação do réu f o i provocada pela situação
difícil em que estava a sua m ãe doente". No caso em pauta, o autor
citado procurava traçar as linhas a ser segui das pelo defensor, para
um caso em. que um cidadão matara seu patrão, depois de uma
discussão sobre salários,
O livro No plenário do jú ri, de João Mei rel es C â m a r a 177, é um
bom exempl o disso, m or men te q ua n d o aponta a lgu ma s falas im-
pactantes a serem usadas e m plenário: "Veja, jurado, qual a instrução
que foi dada ao réu. Veja qual a vida qu e levou durante a infância. Veja a
fa m ília que cie teve, se é. que teve algum a. Veja, enfim, qual a mãe que a
sociedade lhe deu. Indague., jurntío, on d e estão os verdadeiros responsáveis
pela ftdda do leite, para alim cntá-lo na a m arga infância".

5.7. O poder dos fracos v e r s u s a pedra q u e os co n stru to res


rej ei t am ou a di al ét ic a re p r i m id a ?

É razoável afirmar que, nos discursos dos oper adores jurídicos


que atuam no Tribunal do Júri, estão per feit amente caracterizadas e
materializadas - em maior o u m e n o r grau - as teses do " p o d e r dos
f racos" e "da pedra que os c onst rutores rejeitam". Desse mod o, do
instituto do Tribunal do Júri p od e -s e d epr eender, analiticamente,
uma dimensão teórica e/ou doutrinária e outra d imens ão prática,
no que tange ao objeto em estudo. A relação entre a teoria e a práxis
é sobretudo idealista, por que estabelece uma relação " pr omí s c ua ",
na medida em que o objeto se determina a partir do método
empre gado pelo jurista.
Resulta dessa relação um n o v o/ v el h o d iscurso, que servirá de
topos conformador de novos/vel ho s discursos e n o v a s / velhas práti­
175 Cfe. B o n fim , op. cit., p. 234.
1/6 y er {5ranc0/ V itorino Prata Castelo. O a d v o g a d o e n d e fe sa ornl. S ã o P aulo,
S u g e s t õ e s Literárias, 1 97 7 p. 91.
1// C o n s u l ta r Câm a ra, J o ã o M eir eles . No p len á r io do jú ri. S ã o P a u l o , S a r a i v a , 1982,
p. 104,

T R IB U N A L D O JÚRI 123
cas no campo da resolução j urídico-formal dos conflitos inerentes às
sociedades tradicionais. Resulta disso que, no pl ano do c onheci­
ment o jurídico, pode-se extrair, do exposto, o fato de que a separa­
ção entre ciência e opinião ( epi steme-doxa) não existe senão no
imaginário gnosiológico dos juristas, de vez que, na prática, muitas
vezes se sobressaí um discurso falacioso, e m lugar do pseudodis-
curso da ciência jurídica. C o m o c impossí vel separar o ser real do
dever ser idealizado proposto pelo discurso jurídico, será vitorioso,
geralmente, o discurso falacioso1-78 idealizado.
Com isso, os conflitos sociais que fa z e m parte da sociedade "real"
acabam sucumbindo à r i l u a l í s i i c a processual, pela qual os fa t o s são
cn hipultados para o plano da retórica. A dialética é reprimida pela
" por or oc a" provocada pelo encont ro dos discursos no plenário.
Aparentemente, tem-se uma tese e uma antítese; na prática, duas
teses que apontam caminhos diferentes, onde, por ém, o ponto de
chegada é o mesmo: uma sociedade "sem rupturas". Isto porque o
espaço de " confrontação" em plenário tem b e m delineados os seus
limites, é dizer, as contradições secundárias p od em ser exploradas à
saciedade, desde que uno se firam as contradições principais.
N o piano das práticas sociais desiguais, sendo o jurídico parte
integrante do monopólio estatal, o Estado - via establíshm cn t -
constrói, ideologicamente, um discurso que tenderá a falar de todos
e apenas defender os interesses de alguns. A partir dessa "constru­
ção", as partes destinatárias/consumidoras " tr anqüili za m- se" , con­
fortados pela idéia de que estão proteg idas h obb esian am eu te pelo
ordenament o jurídico. Como todo esse trabalho - lembra Faria - só
pode ser cumprido por mei o de pr o ce di me nt o s cerimoniais, a
ideologia jurídico-política é encoberta pelo discurso místico, que
leva os homens a aceitarem os rituais inerentes ao universo jurídico
c omo necessários à realização da idéia de justiça. E m outras pala­
vras, tal discurso não se limita a fazer c om que os h omens se
c onformem com sua situação social, mas os estimula a aceitar e
venerar as formas de poder que en ge nd ra ra m essa si tua çã o179.

1,8 Falácia é um a idéia e q u iv o c a d a o u falsa cre n ça . E u m tip o de ra cio cín io


in c o rre t o . S e g u n d o í r v in g Copi, falá cia é u m a fo rm a d e ra c i o c ín i o q u e pare ce
co rreta , m a s q u e, q u a n d o ex a m i n a d a c u i d a d o s a m e n t e , n ã o o é. É p ro v e ito s o
e st u d a r tais ra cio cín io s, p o is a f a m i lia r id a d e c o m el es e se u e n t e n d i m e n t o i m p e d i ­
r ã o qu e s e ja m o s iludid os. E star p r e v e n i d o é e s t a r a r m a d o cie a n t e m ã o .
179 Cfe. Faria, J o s é E d u a r d o . Retórica, política e id eo lo g ia d em o crá tica . R io de Ja n eiro ,
Graa), 1984, p. 2 5 6 e 277.

1 2 4 LENIO LUfZ STRECK


6 . O imaginário discursivo e os resultados
dos julgamentos

6.1. O discurso c omo m a n i t e s t a ç ã o c oncreta do ima gi n ár i o


dos j urist as

O imaginário gnosiológico dos juristas, m ar ca do pela cultura


jurídico-liberal, fruto de um model o liberal-individualista de Direi­
to, tem um sentido marcadamente dogmático, na medida e m que o
discurso que o permeia é, per ma nent ement e, m a r c a d o / atravessado
pela ficção da neutralid ade/im parcialidad e do julgador. No Tribu­
nal do Júri - em que, pela sua acentuada atua li za ção, a sociedade
estipula os padrões de conduta que considera relevantes e não-rele­
vantes - esta questão se torna ainda mais compl ex a, pela forte
presença de um discurso engendrado por categorias pseudoexplica-
tivas, que e n c ob rem/ ma sc ar am as diferenças da sociedade, notada-
mente conflituosa.
Dito de outro modo, não é temerário afirmar que o Tribunal do
Júri se encontra historicamente dependent e das figuras retóricas,
utilizadas para chamar a atenção de todas as classes sociais, visando
a obter sua lealdade. Muito embora a impossibilidade do encobrimen­
to da flagrante desigualdade social, presente, c omo já se viu, até na
distribuição geopolítica dos espaços na sala do Triburra-l, busca-se,
retoricamente, uma homogeneidade dentro da heterogeneidade. Esse
é também o trabalho da dogmática jurídica nos procedimentos
judiciais em geral. Consoant e mostra Fa ri a180, " graças ao seu traba­
lho acrítico, a dogmática jurídica faz com que o discurso retórico
ganhe um colorido analítico, e o interesse ideológico adquira
aparência de legalidade e, c om o diz Lu is Alberto Warat, a adesão
explícita em relação ao ordenament o legal serve, então, como
recurso para esconder a redefinição dos significados normativos".
180 Fa ria , J o s é E d u a r d o . R etórica p o lítica e id eo lo g ia d em o crá tic a . O p . cit., p. 248.

T R IB U N A L DO JÚRI 1 2 5
O Tribunal do Júri, ritualisticamente, tem o seu papel bem
definido na preservação/reprodução da ordem social. Aliás, insere-
se no contexto das estruturas do Direito. P o r isso, " nã o é de se
estranhar que, aos olhos do cidadão c o m u m e ao nível do conheci­
men to vulgar, o Direito se apresente c om o um c o ngl omer ad o de
símbolos e ideais emotivamente importantes, onde os anseios c on­
traditórios aparecem c omo coerentes, e os princípios gerais de
Direito induz.am cada cidadão a admitir que todas as aspirações de
todos os segmentos sociais estão legalmente pro teg id os. (...) Como
símbolo, o Direito satisfaz a exigência pop ul ar prof undamente
assentada, no sentido de que as instituições simbolizariam um
harmonioso sonho dentro de cujos limites se destaca uma c onc ep­
ção de '"siiça com absoluta independência cie pressões individuais.
No entanto, c omo por trás da aparência desse c onsenso expresso
pelo senso c omum inerente aos princípios gerais do Direito sempre
existe um confronto de interesses, o Direito corre o risco de acabar
reconhecendo somente aqueles ideais que representam o exato
oposto da conduta estabelecida"iai.
N ão é temerário dizer, assim, que o cüm umo que predomina no
âmbito cia aplicação prática do Direito - em ■ \ ecial no Tribunal do
Júri - expressa um emaranhado de símbolos que são manipulados
em f unção do poder. Tais discursos são manifestações concretas do
imaginário gnosiológico dos juristas, resultando, daí, a importância
da persuasão (Warat), traduzida através de falácias (Irving Copy),
que pode m ser encontradas em qual quer manual de Direito. Para
A rn aud 182, há um dilema que deve ser resolvido: "saber se a interpre­
tação do Direito tem uma significação jurídica ou política, se o jurista-in-
térprete é um ser inspirado ou um homem realista, um médium ou um
sábio." É difícil responder a essa indagação, O que é possível ciizer é
que o discurso jurídico é emi nent ement e persuasivo, c o mo algo que,
objetiva - via sentido comum teórico - a produç ão de relações de
verossimilhança, buscando construir u m efeito de realidade que
seja crível no interior do imaginário social, no qual estão-inseridos
os atores jurídicos (e, obviamente, os jurados).
Como os objetivos da dogmática jurídica só pode m ser alcança­
dos - repita-se - por meio de procediment os cerimoniais e, sendo o
Tribunal do Júri o mais candente e expressivo dos rituais jurídicos, a
complexidade jurídico-política-ideológica é encobert a/amalgama-
m Ib id em ,
182 Cfe. A rn au d , A n d re -Jea n . O D ireito traído p ela Filosofin. T rad . de W a n d a de
L om os C a p e lle r e L ucia no O liveir a. P o rto A legre : Fabris , 1991, p. 186,

126 LENIO LUIZ STRECK


da pelo discurso mífs)tico, que leva os súditos do Est ado a aceitar os
rituais c omo necessários à realização da idéia de "justiça". Por isso,
os rituais desenvolvem-se na med id a da crescente c ompl exida de
sociopolítica da sociedade, disfarçando os conflitos, arrancando-os
da realidade social para jogá-los no palco do e spa ço instituído das
generalizações, das abstrações, da formal ização d o p r o c e s s o 583.
Form a-se, assim, um conjunto de interações simbólicas que legiti­
m a m o Direito, através dos ritos procedim entais, no interior dos
quais os conflitos são " per mi t i dos " e " i n st i t u ci o na li z ad os "184. C om o
diz W a r a t 185, nesse contexto o discurso a r g u m e n t a tivo surge como
um j ogo de ambigüidades, no q u a i a ideologia torna ausente a
referência informativa e o conflito real - e estes, por sua vez, com
sua presença, distanciam a m en s a ge m ideológica.
Não há dúvida de que os discursos jurídicos cont êm trrrt
sentido que oculta suas razões e o ender eço dos s eus ef ei tos186, A
dogmática jurídica, para atingir esse desiderato, e s co n d e a relevan-
1!'’3 ilha, ;i partir de A n i i l lo n B u e n o de C a r v a lh o , e x p l i c a c o m o os ro n f l íto s
" i . ' ,i( 1 ' ' '
-n s e g u id a , s ã o t r a n s f o r m a d o s
íiiio: ; t ! <i i i 'i i' i i c o m o i g u a is p e r a n t e a lei e
I i i •o pi ^ t < t , i i n s ío r m a n u m c o n f li t o e n tr e os
i i «cios d l ' ' p t<os, e, di i u i i d ' u t u i «, i- " í rida p o r um ju iz " n e u t r o " ) , se
Maii-oorma em u m a d i v e t g e u u a e r t i e o lm > u nai S u p erio r e o ju i z q u e p r i m e i r o
j u l g o u a causa, de tal m o d o q u e, d e p o i s d e a l g u n s a n o s a " s o l u ç ã o " do co n flito
n ã o tenh a m ais im po rtâ ncia para as p e s s o a s qu e p a r t i c i p a r a m d a q u e l a açã o
c o le tiva. C o n s u l ta r R am o s Filh o, W i ls o n . D ireito p ó s - m o d e r n o : c a o s c r i a t i v o e
n e o lib e ra lism o . In D ireito e n eoU hernlism o, op. c i t , p. 100.
184 N esse se n tid o , ver L u h m a n n , p a ra q u e m , n o p r o c e d i m e n t o ju d ic iá r io , a
c o n f r o n t a ç ã o d ir eta entre os c o n í e n d o r e s é r e d u z i d a e e n f r a q u e c i d a . O s c o n t e n d o -
res a s s u m e m pa p éis no d e c o r r e r do p r o c e d i m e n t o : p a p e i d e p a r t e p r o c e s s u a l
d e c o r r e n t e de a u t o r e ré u , etc. L im i ta - s e , d esse m o d o , o c o n f li t o . Lima d a s m ais
s u r p r e e n d e n t e s ca ra cte rís ticas d o s p r o c e s s o s ju d ic ia is é q u e a a ç ã o n e le s é c o n t r a ­
d itória , isto é, qu e neles se " p e r m i t e " um a ação d ir ig id a c o n t r a o s o u t ro s . Há, pois,
um a insti tu cion a liz ação d os conflitos. De n o t a r , e n t r e t a n t o , q u e a f u n ç ã o l e g itim a -
d ora d o p ro c e d im e n t o não está em se p r o d u z i r c o n s e n s o e n tr e as p a r t e s , m a s e m
torn a r i n ev itá v eis e p ro vá ve is d e c e p ç õ e s e m d e c e p ç õ e s d if u s a s : a p e s a r de d e s c o n ­
tentes, as partes aceitam a d ecis ã o . Por tud o isso é q u e, p a ra L u h m a n n , um a
e stru tu ra ju ríd ica é legít im a na m e d i d a em q u e é c a p a z d e pro duz.ir um a p r o n t i ­
d ão g e n er aliza d a para a a c e i t a ç ã o de s u a s d e c is õ e s , ain d a i n d e t e r m i n a d a s q u a n t o
ao seu c o n t e ú d o concre to , d e n t r o de c e r t a m a r g e m d e t o le râ n c ia . Cfe. L u h m a n n ,
N ik la s, le g it im a ç ã o p elo p ro ced im en to . T ra d . de M a r ia da C o n c e i ç ã o C ô r t e -R e a l .
B ra síl ia , Ü N B , 1980. T a m b é m v e r F e r r a z Jr, T é r c i o S a m p a io . A p r e s e n t a ç ã o . In:
L u h m a n n , op. cit. p. 1-5.
lís5 C fe. W a r a t , L u is A lb e rto . M itos e teorias na in te rp r eta ç ã o d a lei. P o rto A leg re,
S ín t e s e , 1979, p. 14 ).
]8° C fe. W arat, Luís Alberto, In trod u ção g e r a l ao d ire ito I, op. cit, p. 20.

TRIBUN AL DO JÚRI 1 2 7
te circunstância de que "el discurso jurídico es el discurso dei ejercicia
dei poder y, por eude, alude e identifica a nquellos qu e p ueden producirlo,
configurando la noción de autoridad u órgano y o rd en a n do las relaciones
recíprocas de los productores de ese discurso dei p o d er entre sí, y de éstos
con el resto de los indivíduos ncfuanies en relación a una determinada
inslitución social, con la mediación dei discurso jurídico. (...) En otras
palabras, ai decidir quiénes pueden decir el discurso jurídico, se
requiere decidir quiénes pueden decir qué cosa dijeron esos sujefos
de la produción dei d i s cur so "’1'67.
Vê-se, pois, que a dogmática (re)produz-se nesse e mar anhado
discursivo, (re)constituindo-se a partir da instituição de uma fala
autorizada (Bourdieu), Sobre um significado de base - que é a lei -
adjudica-se um sentido que conforta o discurso dominante. A
dogmática jurídica atua, assim, c omo i nt ermedi adora, fazendo a
hermenêutica (no sentido de Hermes), j á não se fala da norma, mas
do sentido que a essa norma foi dado pelo intérprete. Alerte-se,
por ém, com Warat 188, que, nesse processo de (inter)medi açâo, pelo
qual a dogmática jurídica produz os discursos de verdade, estes
" nunca são o resultado de um emissor isolado, estando vinculados
a uma prática comunitária > >zada ern torno de uma subjetivida­
de específica dominante, f 1 homem pronuncia legitimamente
palavras de verdade se não é filho (reconhecido) de uma c om u ni d a­
de 'cientifica', de um monastério dos sábios".
E é justamente desse monastério de sábios que emana a "fala
autorizada" que (re)produz o habitus. Os eleitos, os que pod em
falar/dizer-adei-e-o-direito recebem o cetro (o skep tron da obra de
Homero) de que fala Bourdieu189. Estão, assim, (pl enament e) autori­
zados a fazer, inclusive, "extorsões de s ent ido " e " abu sos significa­
tivos". E quem se rebelar, q ue m tiver a ousadia de desafiar esse
processo de confinamento discursivo, enfim, q u e m tentar entabolar
u m contradiscurso, responde(rá) pelo (hediondo) crime de "porte
ilegal da fala"...
Esse processo de produç ão da "fàia a u to ri za d a" exige de parte
dos operadores jurídicos uma espécie de c ump li ci da de lingüística.
Isso será possível apenas se e quando o público-alvo (comuni dade
18/ E n telm a n , R ic ardo . La form a ción d e unn e p i s t e m o l o g i n ju r í d i c a . In El d iscu rso
ju ríd ic o . P ersp ectiv a p sicon u n lífica 1/ a tro s ab ord n g es c p istc m o lõ g ic o s . B u e n o s Aires,
Fia ch et te, 19S2, p. 96.
188 W a ra t, Luis A lberto . In tro d u çã o g e r a l ao d ire ito 11, op . cit, p. 6 7 e 68,
189 V er Bo u rd ie u , Pierre. A ec o n o m ia d a s trocas liiig ü ísticn s. S P , U SP , 1 9 9 6 , p. 39, 63
e 89.

1 2 8 LENIO LUIZ STRECK


jurídica) reconhece quem exerce a eficácia simbólica do discurso
como podendo exercê-la de pl eno direito: "A li nguagem de autori­
dade governa sob a condição de c ontar c om a col aboração daqueles
a quem governa, ou seja, graças n assistência dos mecanismos sociais
capazes dc produzir tal cumplicidade, fundada por sua vez no desco­
nhecimento, que constitui o princípio de toda e qual quer autorida­
de''190. Nas práticas dos operadores jurídicos, isso ocorre de forma
difusa, através de uma (irn)perceptível (e constante) produção de
slan dards significativos, destinados ao consum o da comunidade
jurídica. Desse modo, com a aparência da busca do " re al " sentido da
norma, mediante a utilização de artifícios do tipo a busca da meus
legis, do espírito do legislador, da ratio csscndi do Direito etc., e na
crença da existência de um legislador racional, c onstroem-se, para­
fraseando Umberto Eco, " simulacros de enunc ia çõ es" , que nada
mais são do que o resultado de uma rede de ficções que se põe a
serviço de efeitos de verdade, no interior da qual não está em
questão a validade do enunciado, mas a verdade da enunciação no
qtte'diz respeito a sua cota de v eros simi lhanç a 191.

6.2. As c ont radições sociais ou " rnalem-se entre vós qiie nós
os j u l g a r e m o s entre n ó s "

É razoável afirmar que, no âmbito do Tribunal do Júri, sofrem


maiores condenações aqueles que são apresentados c om o os mais
inadequados ao model o de compo rt amen to social implícito nos
códigos e explicitado na sua apl icação192. Isto por que, há - necessa­
riamente - uma estreita relação entre os resultados dos j ulgamentos
e a composição do corpo de j urados de cada c i d a de /c o mu ni d ad e193.
Pode não ser o fator determinante por si só, mas é elucidativo o fato
de que o el evado grau de participação das c amadas médio-supe-

1911 N e s s e se n tid o , v er Rou rdieu, op. cit., p. 91.


191 Cfe. E co, U m b e rt o , A obra ab erta. S ã o Paulo, P ersp e c tiv a , 1981, p, 188 e segs.
I9Í Cfe, C o rre a , M o r te em fa m ília , op , cit., p. 308,
193 N ã o é d e m a i s l e m b r a r qu e pelo m e n o s cin c o d o s set e j u r a d o s q u e c o n d e n a ra m
josé R a in h a a 26 a n o s de p ris ão t in h a m lig a çõ es afetivas, cu lt u r a is ou e c o n ô m ic a s
com a família do f a z e n d e ir o m o rt o ou co m os p r o p rie t á rio s ru rais da reg ião de
Pedro C a n á rio , in terio r do E sta do do E sp ír it o San lo. Ver, para tanto, m in uciosa
r ep o rtag em de F e rn a n d a da E sc óssia intitu la d a " C o n t r a d i ç õ e s m a r c a m se n tença
de R a i n h a " e ' 'j u r a d o s têm lig açã o c o m d o n o s de terra", h i Falha de S ão P aulo,
2 2,06 .97, Brasil 1-10 e 1-11.

T R IB Ü N A L D O J Ú R I 1 2 9
riores no júri tem c omo conseqüência um el evado n úmer o de
condenações,
É claro que as decisões dos jurados, na apreci ação dos casos
judiciais e dos acusados que praticaram os delitos que os levaram a
julgamento pelo júri, não correspondem m ec a ni ca me n t e às de seu
estrato social. B muito provável que muitos jurados, per tencentes às
denominadas camadas m édio-iníeríores, passem a ter atitudes de
proteção cie valores da classe superior. N ão se deve subest imar o
papel de íntrojeção de valores, hábitos, c om po r ta me nt o s , etc.,
produzidos pela ideologia. Ou seja, c razoável concluir que há uma
forte relação de causa e efeito entre os resultados dos julgamentos e a
correlação de forças que existe entre as classes/camadas sociais que julgam
e as que são julgadas. Autores do porte cie Al essa nd ro Baratta’1-’4
apontam para essa direção. C o m efeito, ''pesqu isas empí ricas têm
colocado em relevo as diferenças de atitude emotiva e vnlorativa dos
<ii’”L mi 1n i h >ndn nluos pertencentes a diversas cliKses 'sociais. fsto
emente, a tendências de juízos diversifica-
'cinl dos acusados, e relacionados tanto à
ubjerivo do delito (dolo, culpa) quanto ao
Mito em face da per sonali dade (prognose
.................. ._.......... .......... .. o acusado) e, pois, à individunlização e à
mensuração da pena destes pontos de vista. /I distribuição das
definições criminais se ressente, por isso, de modo particular, da diferen­
ciação social. Em geral, pode-se afirmar que existe uma tendência por
parte dos juizes de esperar um c ompo rta ment o c onf orme à lei dos
indivíduos pertencentes aos estratos médios e superiores; o inverso
ocorre com os indivíduos provenientes dos estratos inferiores".
A conseqüência da (histórica) elitização dos c orpos de jurados
merece também uma análise à luz da Antropologia. Assim, para
G o f f m a n 1-5, começando com a noção muito geral de um grupo de
indivíduos que compartilham alguns valores e a der em a um con­
junto de normas sociais referentes à conduta e a atributos pessoais,
"pode-se chamar destoante a qualquer memb ro individual que não
adere às normas, e denominamos desvio a sua peculi aridade". O
m esmo autor revela que "se deve haver um c ampo de investigação
chamado de 'comportamento desviante' são os seus desviantes
sociais, conforme aqui definidos, que deveriam, presumivelmente,
constituir o seu cerne. As prostitutas, os viciados em drogas, os
delinqüentes [...] seriam incluídos. S/To essas pessoas consideradas
19‘ Cfe. Bara tta, op, cit., p. 177 e 178.
Cfe. G o f f m a n , op. cit, p. 151. (grifei)

1 3 0 LENIO LUIZ STRECK


engajadas numa espécie de negação coletiva da ordem social. Elas são
percebidas como incapazes de usar as oportunidades disponíveis para o
progresso nos vários caminhos aprovados pela sociedade".
Tal abismo entre a classe social dos jurados e dos acusados
poderia ser retratada em uma frase do tipo "m a te m -s e entre vós,
q u e saberem os julgá-los entre nós...''.19'5 C o m o já referido, n ecessa­
riamente as decisões dos co mp o ne n te s do júri, na apreciação dos
casos judiciais e dos acusados q u e p raticaram tais crim es, não
correspondem, m ecanicam ente, às de seu estrato social. E muito
provável - repita-se - que mui tos jurados, pertencentes às c amadas
m édío-inferi ores, passem a ter atitudes de proteção de valores da
classe superior. Porém, não há dúvi da de que os j ur ad os e x a mi na ­
rão a causa em debate c om os ol hos " de classe", ou seja, " os de sua
classe social". Essa diferenciação - q ue nada mais é do que a
reprodução da estrutura do país - tende a ser reforçada por mei o de
vários mecanismos excludentes e includenfes, tais c o m o o grau de
escolaridade, a ocupação profissional, a projeção política na >ontu-
nidade, a inserção nos gru pos c orporat ivos (medicina, odont
ordem dos advogados, sindicatos de indústrias e de com erei
os clubes de serviços ( Uons, rofan/s, etc.) e as h egemoni as étr
resultado é que, mantendo-se (tantas) d iferen ciações entre . ,
j u l g a m e os que são j ulgados, ter-se-á u m n úm e r o maior de c o n d e­
nações.
Dito de outro modo, as d is paridades sociais inexoravelmente
terão reflexo no resultado dos j u lg a m e n t o s realizados pelo tribunal
do júri. Tal conclusão se afigura c o m o insofismável. Entretanto e ao
lado disso, mais do que reproduzir as discrepâncias, o júri serve para
escondê-las. Nesse contexto a ssume relevância - c om o já explicitado
à saciedade anteriormente - o papel da ideologia e sua s f ormas de
disseminação. É evidente que a s oci edade não pode confessar para
si mesma as suas próprias contradições-'!;, portanto, assumir o
fracasso naquilo que diz respeito à real ização/concret ização das
promessas da modernidade. Ao longo da história const ruímos uma
sociedade cada dia mais injusta.'E quant o mais injusta é a soci eda­
de, mais necessitamos de mecanismos para que a maioria não venha
a ser dar conta dessa especificidade.
Desse modo, e como o júri vai tratar da morte (e da vida) e
como os crimes que são passíveis de julgament os são cometidos
invariavelmente pelas c amadas m en os favorecidas, parece razoável
afirmar que o tribunal do júri tem-se constituído em forte (e
19<' Fra se i n s p ir a d a em C o rrê a , op. cit,, p. 311.

T R IB U N A L D O JÚRI 1 3 1
importante) mecanismo de ocultamento dns vicissitudes dessa mesma
sociedade que engendra n p obreza c o contínuo desrespeito aos direitos
lutmanos fundam entais, circunstâncias - embora muitos teimam ainda
ern negá-las - absolutamente relevantes na geração da criminalidade.

6.3. Júri, mitos e ritos ou de c omo os re s ul ta dos dos


ju l g a m e n t o s são " e x p l i c a d o s " de f orma es t er e ot ipa da

\u i>!eu i d i obra Al iiologins, de Roland Ibnthes, entende-se


qu« ( ó p n o do mito transformar a históiia e m natureza. Assim,
aos uiliüo du c onsumidor de mitos, a intenção, o apel o dirigido ao
h omem concreto, pode per manecer m..nifesto sem no ent ant o pare­
cer interessado: a ca«: ;a que faz com a laia mític.. .>t ja p r o b r i d a
é perfeitamente explícita, mas é imedi at ament e petriiieada numa
natureza. E possível afirmar, também, que o mito utiliza elementos
que fazem sentido em um d eterminado m o m e n t o histórico, c om o se
eles fossem naturais e eternos-e, por-si-mesmo, .>e e x p l k a s s e m ’
De um m od o geral, esse problema deve ser estudado no
contexto do sentido com um teórico, o qual, e n g en d ra n do uma espécie
de habitus (Bourdieu), de alguma maneira encontra refúgio- no
imaginário social, articulando-se através de uma a pre en sã o tipica­
mente empírica dos fatos sociais que surgem c o m o "naturais",
a-históricos, congelados, sem origem definida -e, por conseguinte,
"incontestáveis".
Assim, a problemática relacionada à discrepância - existente na
expressiva maioria das c omuni da des - entre a c o m po s iç ã o (elitiza-
da). d o- corpo de jurados e as pessoas que s ã o ' s u b m e t i d a s ao júri
popular, pobres na expressiva maioria, é explicada das mais variadas
maneiras. O promotor de justiça gaúcho Th ales N-ilo T r e in 198, por
exemplo, não considera relevante para o deslinde dos j ul ga men tos a
19/ V e r Barthes, R o la n d . M ito lo g ia s. T ra d , de Rita Ruongermino e P e d r o d e So uza .
S ã o P aulo, Dífel, 1 9 87 , p, 150. S o b r e a c a r a c te r iz a ç ã o e a i m p o r t â n c ia d o mito, ver,
t a m b é m , Godelier, M a u ric e . A p a r te id ea l do real. In: C a r v a l h o , E d g a r d e A ss is
(org). G o d elier . S ã o P a u lo , Ático, 1981 p. 190, p a ra quem, p o r d e f i n i ç ã o , um m ito
n ão ê um m ito sen ão pnrn a q u eles qu e nno acred ita m n ele, e ós'prim eiros a. a cre d itar
nele. s ã o aou» lt s q u e o in v e n t a m , isto é, p e n s a m - n o e f o r m u l a m - n o c o m o v e rd ad e
fundaiTu ntal que im a g i n a m lhes ser ins p irad a p o r se r e s s o b r e n a t u r a i s , deuse s,
ançeslraj-. i ti P o r t a n t o , se ria s e m p r e para os outros q u e as re p r e s e n ta ç õ e s
id e o ló g ica s apareceriam co m o tais, isto é, i n t e rp r e ta ç õ e s fals as, m a s q u e p e r m a n e ­
cem d e s c o n h e c id a s c o m o tais.
598 Cfe. T re in , T h a l e s N ilo. Jú r i: as lin g u a g en s no p len ário. R io d e Ja n eiro , A ide,
1996, p. 2 28 e segs.

1 3 2 LliN IO LUIZ ST R ECK


questão relacionada à ideologia de classe, Para..ele, a m flnên< ia
maior nas decisões do Júri reside na índole-e na c a r a rt m st i c a das
comuni dades emdktar com-eventos-delituosos e seus-autou s i r e m
tenta explicar, assim, que em c om un id a d es de origem aíemã, m j j m
pobres ou ricas, pode-se facilmente verificar que os j urados, como
os demais cidadãos, c ost umam ser mais rigorosos na cobrança do
cumprimento da lei e das regras morais (s/c). "Todos os profissio­
nais do júr; sabem disso", acrescenta.
Muito embora a grande probabilidade de que a opinião de
Trein seja majoritária no âmbito cio imaginário dos operadores que
lidam c om e no Tribunal do jú ri, é necessário, entretanto, ressal­
tar/lembrar que as explicações que t omam c omo causa estereótipos
dos mais variados tipos!9<i ou questões rnorrádicas, não explim m - com
a necessária suficiência - o que ocorre no universo feiumiÔHu o. alé
porque, na feliz expressão de Rai alta, os e^teieólipos e os preconcei­
tos, somados, às- "teorias de todos os d i a1- ' ('-enso com um), acabam
sencl” , W . Ilu u\n^ aos indiví duos nrovenmr.tes dos estratos in fe­
rio •<s d i j >001 «iai o d

11;WN es se sen tid o, é (uridamen tal a critica de (Üi/Jer , que ch a m a .1 atenção


para o fa lo de que já co nsta va na justiliait iva do rt • ipreseulado pelo Min,
Epd.ício Ressoa, em 1900, para um a sé r ie de 1 q u e p re ten d ia fa zer
referên cia n "índole e edu en ção de //osso p o v o , q u e eu '10 tem 'm u ito in ten so 0
sen tim en to d e resp eito à lei e no p rin c íp io dn au torid ad e' . " D e s c o b r e - s e " um a " ín d o le
do p o v o " em uma estru tu ra so ci al d iv e r s i fi c a d a e contraditória. N o s p r im e iro s
anos da R ep ú b lica , a partir de sua e s t a b il i z a ç ã o , e da c re s c e n te d iv er sifica çã o
social, a c o n stru çã o do nacio nal pa ss a a ter um a re feren cia e xplíc ita a o direciona­
mento d is cip lin a r dos seto r e s s u b a l t e r n o s na s o c i e d a d e b r a sile ir a , sem q u e co m
isto, a re o rg a n iz a ç ã o a d m in ist ra t iv a e ju ríd ica seja de to d o a bo lid a d as preocupa­
ções d os ju rista s. T e m o s , p o rta n to , as g r e v e s e as movimentações p o lí tica s o p e r á ­
rias o c u p a n d o um esp aço r ele v a n te n o s d is c u r s o s d os ju r i s ta s , e m t e rm o s de um a
re o rg a n iz a ç ã o seg u n d o a nova p e n a lo g ia , ao lado d e uma reflexão sistemática
so bre a re g u la m e n ta çã o do tra b alh o , a socialização do m e n o r para o tra b alh o ou a
ass istência a al ie nad os. O " n a c i o n a l " a s s u m e c o n o t a ç õ e s b a s ta n t e p re c is a s q u a n to
à f o r m a ç ã o e pre pa ração de um s u p o s t o " c a r á t e r n a c io n a l " , a feito ao trab a lh o e,
p o rtanto, referid o d ir e ta m e n te ao e n c a m i n h a m e n t o de p rá tica s so ciais , po líticas,
e c o n ô m ic a s e id eo ló g icas no sentido d a r e g u la m e n t a ç ã o e d is cip lin a d o m ercad o
de trabalh o. Constrói-se, ent.no, 0 " caráter n acion al" , um su p o sto "jeito b ra sileiro de ser e
f a z e r coisas" - q u e feu ta a h o m o g e n eiz a çã o d e u m a es tru tu ra s o c ia l tão d iv er sific a d a , com o
ap arecim en to das teses sobre a c o rd ia lid a d e c 0 "jeitiid io" b ra sileiro s p ela d éca d a d e trinta,
jiiu d e-se a isso, acrescen ta n au to ra , q u e p o r ro lta d os an os trin ta, q u an d o 0 su rto
im ig ratório é estan cad o q u ase q u e definilnuim ente, n referên cia do "n acion al" lin h a que
p assar n ecessariam en te peda op o siçã o ao cstraugc.iro. Cfe, N ed er, G iz ien e . D iscu rso
ju ríd ic o e ord em bu rg u esa no B rasil. P orto A le g re , Fab ris, J995, p. 5 0 e 51. (grifei)
2(I(J Cie. Baratta, op. cit, p, 177.

TRIBUiMAÍ, DO JÚRI 1 3 3
Registre-se, a propósito, que a discussão acerca.das "caracterís­
ticas dos povos", "caracteres é t n i c os " , ' " mo d os próprios de s e r dos
poxoC', presente explicitamente rui opinião o\pi ossada p o r Tr ei n, , é
amiga no Brasil. A obra de P a n i e Moteira f uh* ioi um marco
hsstonco no processo de desmi 'sHi heaçao das not,õcs estereotipa­
das dos povos. Entretanto, não to; -uticiente p a . ,1 acabar com essa
(ainda f ort e) mat riz ideológica que -íi» c n c o n u a a nc iã hoje, profun­
damente en raizada/in trojetad a/m aterializada no imaginário social
(e no imaginário cios juristas), Com efeito, fvtoreíra Leite acusa a
noção de "caráter nacional" de preconceito, eq u ív oco e obstáculo.
Inf elizment e, não foram suficientes alguns c apítulos de nossa histó­
ria passada e recente, desde O até os quebra-qu ebra de trens,
as lutas entre fazendeiros e p >s, as guerrilhas, os assaltos a
cada trinta minutos nas grandes m etrópoles, para que a'n oção de,
por exemplo, "brasileiro cordial, pacífico e a c o m o d a d o " caísse por
terra. Sapato de pelica e sinuca, cordialidade e jeítinho... A realidade
so d a ' J .......... ’ f->nm cnregórica, os ronuintisnios de nossos historiado­
res, :■............................. :fores2'-.
!.>• i, * •*, na obra já citada - onde, cie forma magistral,
denunciou o processo ideológico q ue eng'-p-, ’"> •’ ' v ;' e s e - t e - ' - 1'
padas no Brasil faz uma abordagem bis 01 -> > mndo q te a
ideologia do caráter nacional brasileiro ‘-i.gue de pei lo o
esquema das doutrinas européias [...] Na verdade, não e fá c il explicar
porque essas teorias foram aceitas no Brasil. De um lado, c omo sua
aceitação coincide com a abolição da escravatura, poder-se-ia p e n ­
sar que as teorias racistas constituem a forma de defesa do grupo
branco contra a ascensão dos antigos escravos. De outro lado,
poderia ser apenas a justificativa para a man ut en çã o desses grupos
numa condição de semi-escravidão. E, assim como os europeus justifi-
cavamjseu domínio pela incapacidade dos povos mestiços, as .classes
dominantes justificavam seus privilégios pela incapacidade dos- negros,
índios e mestiços.”
Outro escritor brasileiro, Thaies' de A z ev e do 202, contribui na
crítica, dizendo que "ao que parece, estamos imersos numa realida­
de que destoa em muito do que se tem c omo característico da alma
il)l C o n s u lta r Moreira Leite, D an te . O c a r á te r n acion al b r a s ile ir o , T a m b é m Cerqueirn
Filho, Gisálio e N ed er, G iz ten e. B rasil: violência e c o n cilia çã o no d ia -a -d ia . Porto
A legre, Fabris, 1987; M ay r in ck , Geraldo e Piorilio, M aril ia P a ch eco . S e m lenço
n e m d o cu m e n to : m a la n d r a g e m , cordialidade, índole pa cíf ica - os m it os atingidos
j3ela crise. Isto é. São Paulo, n. 354, 1990.
lx~~ A zeved o, T ha ies de. Os b rasileiros: e s t a d o s ele cn rá lcr n n cioim l. S a l v a d o r , C e n tr o
Editorial e D id ático da UN B, 1981, p. 58.

1 3 4 LENtO LUIZ STRECK


nacional. A s pesquisas históricas c sociológicas, as indagações psicológi­
cas, a experiência política, os eventos cotidianos por lodo o país põem em
séria dúvida a tristeza, a cordialidade, o espírito de. conciliação que alguns
analistas c intérpretes da história e da sociedade têm como específicos do
nosso ethos".
Um Io, porém, aparece c o m o f unda ment al : a expressiva
maioria >1’ opiniões que se col ocam ao lado da atribuição de
características regionais c nacionais aos p o v o s - e em especial aos
brasileiros - está baseada nos estereótipos lanç ados no imaginário
social por Gilberto Freire, Sérgio Buar que de H ol an da, Viana Moog,
Oliveira Vianna e tantos outros autores de r e n o m e nacional ou
mei x s conhecidos Os l r . i o s d i ( anUgi) discipima '1 studo do-.
I Tobknui s Rt asi Uuos" - mtiudu/ida nu-, c m u c u l o s judo rogmv
niiht.il - j-judatialai. em muito, na u piod uça»,/mtroj.H ão do nnto
do 'modo de ‘■n’" ou 'caml ei na< >on d" D o - mui.iei is h e to s
consultados <* i e -peito, nenhum es capou do t e n s o c om u m teonco
que segue a linha estereotipada da existência de características
inerentes aos povos, morment e o brasileiro (até p or q ue isso interes­
sa às classes dominantes). De ressaltar que, e m pesquisa realizada
ruir OüçnlíA Oprmií-ira Filho o ( uy.lene Npder21’5. constatou-se aun
ncnfuim droro.,:didátieo procura d esm i!ijicn r a tclein tio■ orasaeiro-- com
diLtei auiu uío . a l n h d o e q islid a .,^ m ei ' ü . n ,, w na i < c ^i . nl > ,
autores, o tema, quando nao a parece de í o i m a estereotipada,
simplesmente não aparece.
De toda sorte, como já frisado, é razoável afirmar que a formação
de estereótipos favoráveis ou desfavoráveis depende, principalmente, da
posição social e cultural dos indivíduos ou dos grupos. Dito de outro modo,
pode-se dizer que, através dos estereótipos, são montados um imagi­
nário e uma lógica de identificação social, com a.função precíptía::de
escamotear/amalgamar os conflitos e camuflar a dominação. A gene­
ralização esteieotipacia - conceito elaborado no varejo - aparece, no
atacado, com o universal, aceito por todo o tecido social.
É claro que - retornando à controvérsia sobre o júri -, .na
medida em que-os-, jura dos, e até- m esmo os ope r ad or es jurídicos,
tomam os estereótipos-como cansas -explicaiivas para os resultados discre-
pantes, há fo ü e probabilidade de que, para eles, la ^ au^a^ wío ,?s >o?/c,
uma oez que as exploram cot idianauiente. conti dniindi' va>a a M/a
manutenção, na medida em que as acham -naturais-e perm anentes. Assim,
ao agirem desse modo, explicitam a sua visão da realidade, decor­
rente de uma práxis utilitária imediata, que, aliada ao senso comum
C fe. C e r q u e ir a Leite, G isá íi o e N e d c r , G i z le n e , op. cit., p. 29.

T R IB U N A L DO JÚRI 1 3 5
a ela correspondente, colocam os agentes sociais em condições de
orientarem-se no mundo, de familiarizarem-se c om as coisas e,
assim, manejá-las, mas que, entretanto, não 'proporcionam a com p reen­
são das coisas e da realidade. É c om o um claro -escu ro de v erdade e
engano, em que o seu elemento próprio é o dup lo sentido, que
Kosí k chama de mundo dn pseudoconcreticidade2(l4.
Nessa trilha, é necessário ressaltar que a possibilidade de
com p reen são das formas possíveis de m an ifesta çã o 'h> < itu r,
portanto, de sua apreensão/depende, cie forma direta, do uni' •■im
com.pie e m i \ o dos. interlocutores «*in lace do d i s c u w i e v p h c a t u o
destes nn ~ ” <a fenômenos. Ora, se a |>1 od<’çao dos di^t m - o s na o ‘ c
m an il e s. a a paitir de sua gênese, uma vez que esta, n ec ess ar i amen ­
te, é ocultada, este m esmo discurso-tem a fou r do «u i neí ui al e,
desse modo, típico de u ma - ra ç a, de uma I uln ao u „k nnt íC.
Assim, afirmar-se que determinadas c om u n i d a d e s tpor e x e m ­
plo, de origem alemã, italiana, polonesa, lusa ou qual quer outra)
são mais ou menos rigorosas, mais ou menos a p eg a d a s ao trabalho,
às leis etc., configura-se. em um a fo rm a típica discu rsiv a, visando à
produção de comportamentos sociais padroni zados, que nada mais
são do que formas sofisticados de controle c omporta mental, criadas
a partir de estereótipos.
limbora uma avaliação empírica possa, de alguma forma,
referendar aquilo que o imaginário social r e p r od uz - e isso é bem
possível de ocorrer - é imprescindível, por isso me sm o, deslocai-a
análise' para outra dim ensão, que n ã o - a .. meramen-te-fática. Tal
pretensão/afirmação leva em couta a circunstância dc que as—pm tieas
oriundas de uma determinada institiiição-socinl - e o T ribun al do J ú r i ó ’
uma delas -, são insuficientes para explicarem -se com o fe n ô m e n o social. O
que se tenta demonstrar nesta abordagem é que as instituições são
regidas em suas práticas cotidianas num sentido teleológico, ou
seja, na direção dos fins de- um dado sistema social. Portanto, a
apreensão da forma de aplicação efetiva de um sistema jurídico
reflete, no plano do sintoma, procediment os mui to mais compl exos
que garantem a hegemonia de uma sociedade h e ter on oma , isto é, de
uma soci edade que tem suas regras estab elecid as enquanto-anterio-
ridade às práticas sociais de.,seus"agenies. A m an ut en çã o d e d a l
hegemoni a deve-se, também, à prá-tiea—cte—©ireito, que cumpre
papel relevante no assentamento das n or ma s c omportamentais.
Dessa forma, é evidente que a prática do Direito - a aplicação efetiva
204 y e r ^ n e sse sen tid o, K osik , Karel. D ialética do c o n c reta . T ra d . d e C élia N e v e s e
A ld e r ic o Toríbio. Rio de J a n e iro , Pnz. e T e r r a , 1976, p. i l .

1 3 6 LENIO LUIZ STRECK


de um sistema jurídico por seus resp o n sáv eis - é in sep aráv el „
consiáeFação-desí-ins-eiesistema-soeial,
Destarte, na medida em que os.,agentes soeiais são privados-da
produção consciente do imaginario-socnd, Inis não se seconhe-
cetn-na^ j'ii,tn p*- du^iin '-uu^ iui i> ntes, ^niflo 1mito >m /(f-^roníiituatlot es
de um a í/i«/í(êe m'»> i ii\i 's i i et gênese. Nada mais evidente do que a
in c ap au d ad “ de t.v-. ' ; , i ' r l ( 1 <le a pr eenderem, critica e reflexiva­
mente, os atos comunicativos que dão a hegemoni a ao sistema
social no qual os mesmos estão inseridos.
Tal.forma'de~alienação lepe-reute nas práticas mais elementares
das ações desses agentes t>>d,. vez que pr ocura m dHi mt p ap e i '
das diversas instituições produtoras da realidade s e i i a 1 1 n s e n h í d
mente, no caso das comu ni da des que mantêm l.i, os eli ncos basi.infe
acentuado-., orodutos-de um processo m n g n t o t i o m o i u d i ’ ha mais
de um 'óculo-, ocorre c om ra zoá v tl ia< i hddde a, inampuLiçeo do
imagmá>io social tios indivíduos; I; so ocoi u> atia\és da supressão
de determinantes históricos - por exempl o, alra\ es cia aculturação -,
favoiceendo o d e s\nt ua me nt o cultural dessas comuni dades, as
quais, < >mpU V i " i * ■ d» s\ u.> ul d.-. l i p i t a a de s o i s niiU p,i i
’i 1 11 > > n s p>‘ ‘ 11 i IS «l i l i ' i n , i> i> d ' n V u i p i h*< ~U) pali>s
*i <■ *■ ■ -- 1 . ia 1, ; h t, i m * d 11 > d» m i_ •. i d a h
i )is *11 i*! d a- ma mm di í , ' . <e i ’<> m
garantem-o status cjno.
Nessa linha de raciocínio, retoma-se, c omo referência teórica, o
conceito cie ideologia-tal c omo é trabalhado por-Ghauí-, que afirirra
ser ela-uma forma específica do imaginário social moderno, c omo a;

Cnaneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si/


nesmos o aparecer social, econ ôm ico e político. Esta aparência, por
se constituir num modo im ediato e abstrato de manifestação do
processo histórico, constitui-se no lugar privilegiado de ocultamen-
to ou m esmo de dissimulação do real. Ora, ainda seguindo na
mesma trajetória, a ideologia constitui um corpo sistemático de
representações e de normas que nos " e n s i n a m " a conhecer e a agir.
Por outro lado, ao se tomar c om o referência teórica o conceito
de ideologia tal como explicitado no âmbito desta obra21®, não é
possível deter a análise numa mera corroboração entre o que aparece no'
20--''W-arati, in In trod u ção g e m i no D ireito III, op. cit, p. 73, -alerta-para o fato de que a
noção de ideologia pode ser in s u íi d c n l e para p o d er fazer, co m ela, referência a todos
os fenômenos micropolfticos co m p r o m e tid o s na form açã o social da subjetividade.
C iente destn probkm n ticn , a opção lige qu e cscotide/censura
adqu ire im portân cia nosuIimi4es~ ra ir-consfrttçno-de-tn.u-
discurso, crítico qu elenhii-crton dãc uiucm íc.

TRIBUNAL DO JÚRI 1 3 7
im aginário social e o processo social que o en gen drou . Isto porque a
moderna racionalidade, de origem positivista, constitui-se, via de
regra, na elucidação do nexo causai, ou seja, na c om pr o va ç ão das
evidências fáticas, definindo os produtos do imagi nário ml tal
c omo " a pa r e c e m " 2116, Po-' ’«•-<;o uma anab'ce ono pretenda f<«no. >i
e x p ’> «eo< do n nut >n >> u tdo ! i t !< da-k - e de sua-,
-instumçoi •> 'i ' pnss :i p <i i , i i << u v d ’ i >> a mi «e ’ lid.,\'r 1 i >7 l/i,
ijiic’ mio st’ liii.uíe /?s math ln > 1 i en ^ > <u
C o mo n orma lme mc s m snshtui' Cv, (.orno a escola, o Tri bu­
nal do júri, a mu-jn, oh , >j . - n ^.'Sa p> 'd ns â n e manufencâo
das norma-- pi o. í mI<u n<- da vond.ií.t ia!, 1 ao estos mesmas
instituições as i í,\.pomu\eis p< !ai mima , uo ' apai e* nr" <ocial que
fundamenta o imaginário dos agentes que vivem naquel e meio
social, Estas instituições asseguram a sua validado efeíi\a e te
impõem à sociedade, segundo Castoriadi s207, de modo superficial, e
apenas em alguns casos, nu lUarde c o e u ã o e ^an< oll Men os super­
ficialmente, e de íonn i . u> >1 n u *. a d •> o n >oin
consenso, a legitimida * <• < < i. nhia». ..ii.ilbt', poi
meto e através da n 1 I i u <* u .> de matéria-prima
h u m a n a em indivíciuc > .. t c orporados tanto as
jn^ijup-pne-' com o os " r r - i n - m o s ' de sua perpetuação.
1 \ í, atetta Ca^touadis, "não peigunre c om o é possível que a,
m mon a das pessoas não venha m a roubar, ainda q ue tivessem
fome? Não pergunte nem mesmo como é possível que eles conti­
nuem a votar em tal ou qual partido, mesmo após terem sido-
‘enganados repetidamente? Pergunte-se antes: Qual a parcela de
itodo o meu pensamento e de todas as minhas maneiras de ver as'
• coisas e de fazer coisas que não está condici onado e co-determina-'
do, e m grau decisivo, pela estrutura e pelas significações de minha
língua materna, pelas organizações do m un do que essa língua
carrega, pelo primeiro ambiente familiar, pela escola, por todos os
206 C o m o assevera B ir m a n (In t e rp r e ta ç ã o o r e p r e s e n t a ç ã o na s a ú d e co le tiva ), o
p r ó p r i o " f a l o " - o d a d o o b je ti v o que c no ssa m a té r ia - p r i m a - "já c u m recort e
re aliz ado no real m e d ia n te u m a o p e r a ç ã o i n terp r eta tiv a, um a v ez q u e só p o d e m o s
c o n h e c e r os f e n ô m e n o s a tra v és d as teorias e es t a s são c o n s tr u ç õ e s h um anas
h is to ric a m e n t e data das. A in terp reta çã o , ai< im , d efin e o "olhnr p o s sív el" q u e in cide
so b re o d ad o, olhn r es te qu e tem seu s lim ites tw ep iítc m e, inata nqui na p er sp e ctiv a dc
Foucnnlt (A rq u eolo g ia do S ab er). Cfe. Spínk, M ary Jane. D e s v e n d a n d o as teorias
implícitas: um a m eto d o lo g ia de a ná lise das r e p r e s e n ta ç õ e s so ciais . íti: T ex tos em
rep resen ta ções so ciais, Petrópolss, Vozes, 1994, p. 1,41. (grile i)
207 Cfe. C a sto riad is, Co rn e liu s . E n cru zilh ad as do la b irin to II - o d o m ín io cia hom em .
T rad . d e J o s é O s c a r de A lm e id a M a r q u e s . R io de j a n e i r o , Paz e T e rra , 1987, p. 229.

1 3 8 I.ENIO LUiZ STRUCK


i'íaça' ou 'não faça' c om que í n q ü e n f emen te fui assediado, pelos
fmeus amigos, pelas opiniões correntes e assim por diante,,. A
! instituição produz individnos c o n i o n n e suas nor ma s, c estes indiví-
' duos, dada sua construção, não apenas são i n p a d e , ma*- obriga- j
tios a >‘t | todn/ii a imtítui ão. A Tei'produ/ tis 'eleim-nfnsMe tal-
modo que o nicpi tn m m l o r a m e n t o desses 'elonmntos' í ncoipora ej
t ; i" petui a let'.'
( K agt nres cotiai^ u~ ai i, . umprt ni o pap<d ,íc ; ej -hhIuIim es do
apa^xet ' H<cial t >-u' pio e^so -c manifesta através das :epre~
i n t, ! u » s ' u i U !,5 que 'i 01 > 31u->i 1 ■o inundo tal como ele é conhecido,
e as identidades que eh,-, nslení.im garantem ao sujeito um lugar
nesse mundo. A s s i m , a o muj a i n f í r i m l i s a i l i i - , , a s r e p i c ^ c u h i i r c s j a s ^ a m a
e x p r e s s a r a r e ln ç tlo d o s u j e i I o t w u 0 r i w i t l o q u e e l e c o n h e c e c . a o n i e s in o
le r t ip o , e l a s 0 es1-.! dupla opesação ue defina o
s itu a m n e s s e m tn tâ o . E
mundo e localizar um lugar nele que í omeee .V sepie^entações sir i u~
o seu valor simbólico"21®.;Dito de outio modo, tais i epiesentaçoes
sociais vêm a se constmm em ' u n a loima de 1 nnbeumoiito ocial
mente elaborada e paru ’ v 1 1 d -> u-n 1 ’ ' m ' o , nu m m opi ir 1 i,do
o 1 a construção de u> 1 !u> , v nuan a u,n c. viuii* > '-o \ !
í m nodo, a simple: 1 - 'o <■v a ^ , , io . lr
ptodução de tal forma cL lau.^iiL, 10 d n i i m , ■ 1 ” m ed ea 1
apreendam, em seu processo histó' ieo, a sua loi ma die p i o d i \ a . >
Convém salientar, porém, que a c n e u l a n d a d e deste i m a g m a n o
social produzido por suns instituições dotei mi na m a c o n c i e t u d e cias
ações, que normativizam as condut as daqueles q ue v iv em nas
comunidade;.. Desse modo, é " n o r m a l " para os c om po ne n te s de
uma determinada comu ni da de que o Tri bunal do Juri de sua cidade
profira veredictos condenat órios e m bem maior n u me r o do que os
de suas cidade vizinha ou vice- ver sa2411'. Isto porque, a partirde-tvm
208 Cfe, D u v een , G er ard. C r ia n ç a s e n q u a n t o a t o r e s so cia is : ns r e p r e s e n ta ç õ e s
so ciais e m d esen v o lv im e n to , lu : T ex lo s em r e p re se n ta ç õ es so cia is, o p . cit., p. 267.
209 Cfe. Jod ele t, D,, npud G u a r e s c h i, P e d r i n h o A. Sem. d in h e i r o n ã o há sa lvação :
a n c o r a n d o o b e m e o mal en tre n e o p e n t e c o s t a i s . In: T ex to s en/ rep re se n ta ç õ es so ciais,
op. cit., p. 202.
2 ‘° O teorem a cláss ico de W .J . T h o m a s , ci t a d o p o r M inayo, a ju d a a e x p l i c a r esse
p ro cesso, se g u n d o o qual "se o s h om en s d efin em s itu a ç õ e s com o renis, cias são renis c m ;
suns con seq ü ên cias" . Ou se ja, f " o s h o m e n s r e s p o n d e m n ã o a p e n a s a o s aspe cto s'
tyísicos de uma situação, m a s t a m b é m e p o r v e z e s p r i m a r i a m e n t e , a o s e n t i d o que!
èsta situação lem para eles. U m a v ez q u e eles a t r i b u e m a lg u m s e n t id o à situa ção ,
;ü seu com p ortam en to su b seq ü en te e alg u m a s d a s c o n se q ü ên cia s d e s te c o m p o r ta m e n to são<
\dete.rminndas p or este sen tid o a n te r io r m e n te a tr ib u íd o " . Cfe. M i n a y o , M a r ia C ecília de
S o u za . O co nceito de re p r e s e n ta ç õ e s s o c ia is d e n t r o da s o c i o l o g i a clássic a, lu:
T ex lo s em rep resen tações s o c ia is, op , cit., p. 8 9 . (grifei)

T R I B U N A L DO JÚRI 1 3 9
dado- "padrão de nor mali dade" , os m emb ros da comu ni da d e
apreenderão os fenômenos tie-iu oíd o-com -aqu ü c-qn e-é-ian sid ern d a-
nornial, nisso se incluindo, evident ement e, o tipo de jurado escolhi­
do para ivprosrntn-los junto ao Tribunal dn [uri.
, Desta forma, c onforme Castorindis, dissimula-se, através de
um discurso eficaz e competente, a perpet uação de uma forma de
dominação que, antes do passar por questões de etnias ou por
outras explicações que consideram o j urado, o réu, o juiz, o p r o m o ­
tor de justiça ou o advogado c omo uma mônacia, e não c omo um
componente de uma sociedade atravessada por uma luta de classes
(tornada surda), passa, inexoravelmente, por expl orações sócio-eco-
nômico-político-ideológicas das camadas médio- superiores sobre,
as camadas excluídas da sociedade.
Ressaltasse, por último, que uma vez apresentada toda essa
problemática, é necessário que se previnam mal- ent endidos ou
desagradáveis querelas. Nesse contexto, com ( lodeli er (op cit.) há
um meio de explicai c omo os i n d h í d u o s e os g i up os domi nados
podtin V<>nemn rs;< i.. t hhmok n fo ’ n a s>ia d o m i n a r ã o I ni^t^o
i, w i < '* d ) '/ i i ã 1 ih>' ' > i i <m o i " i s, 1 ’ t > i n í ’h ’ 7 is

dn , i is I V s 1.- p >d< i u c - . l i s n í s f i a s e l e . : m n » e
io i
p. , > i i , d a i•i■ O,, s , ■ i ‘ i h i i t >' , 1/ i '1
j j_ 1 1 ij u | i >! t. i iO qa< 'h u " u 'd< n o -, t <.j c 1 i a i d o s pa i ulb* s 11 a -•
m esma s representações, para que nasça a torça mais forte do poder
ide uns sobre os outros: um con sen tim en to, fu n d a d o no recon hecim en to
dos benefícios e dn legitim idade d esse poder, um consen so fu n dado no
reconhecim ento de sua ueces^iiiade. No fundo, trate-se de um ."consen­
so extorquido".
Na medida em que as instituições d e t ém o trinõmio pod e r/ sa ­
ber/lei, os agentes s o c i a i s - n ot ada men fe a classe m en o s f avoreci­
da/domi nada - são, assíirn destituídos de sua condição de
produtores, de detentores e de legítimos destinatários da cultura,
cabendo-lhes, tão-somente, no processo de f ormação do imaginário
social, o papel de meros coadjuvantes/reprodutores.

1 4 0 LENIO LUIZ STRLCK


7. A necessária democratização do
Tribunal do Júri

7,1. Aspectos p o litic o -id e o ló g ic o s

No desenvolvimento destas reflexões, p ro cu ro u -se enfatizar,


por um lado, a profunda crise que assola as instituições e a
dogmática jurídica, além de mostrar c o mo os conflitos sociais são
absorvidos, institucionalizados e (re)trabalhados si mbolicamente
no imaginário dos operadores do Direito e dos agentes sociais
envolvidos nas querelas.
C om o diz Faria, eis de volta a questão da ideologia o, em
especial, a sobreposição cias funções ínformadora e modi a
das normas com a função persuasória, urna vez que a eíí> ai do
discurso jurídico está condicionada a sua capacidade de persuadir
sem contradizer as formas axiológicas predominantes e as valorações
de cada um de seus destinatários. Nesse contexto, é relevante
lembrar a crescente dependência do Direito às figuras retóricas, as
quais per mi tem relativa conciliação das contradições sociais, na
medida em que estas são projetadas numa d imens ão harmoniosa de
essências puras - relações necessárias e es quemas ideais, aos quais
os homens devem, obrigatoriamente, dar sua adesão. Nesta per s­
pectiva, continua o professor paulista, a av aliação ideológica é
rígida e limitada. Consiste, assim, numa meta com u n ica ção que
estimula as estimativas dos agentes sociais destinatários da norma,
valora as valorações dos demais com po nentes-atores jurídicos e
seleciona as seleções, garantindo o consenso daqueles que precisam
manifestar seus valores, assegurando-lhes a possibilidade de ex­
pressão. Por isso, ao m es mo tempo que a avaliação ideológica torna
possível a c o m u n i c a ç ã o dos valores, ela neutraliza as valorações,
retirando-lhes a reflexidade211.
211 Cfe. Paria, R etó rica e p olítica , op. cit, p. 255.

TRIB UN AL ÜO JÚRI 1 4 1
Desse modo, face aos mecanismos de c oop ta ção e controle
estudados, que se materializam nas instituições e através delas,
mediante formas ritualizadas, pode-se depre en der que tais manif es­
tações (inclusive os resultados dos j ulgamentos) constituem uma
realidade possível, e que se realiza em vista da ausência de mecanis­
mos de resistência por parte cios agentes a ela submetidos. Por
conseqüência, esta não seria a única forma possível de realidade a
ser desenvolvida, Essa espécie de "d e te rm in is m o " tem sua gênese a
partir de um processo de produção do sentido dos discursos,
produzido pelas camadas m éd io-sup eriores da sociedade, repre­
sentadas pelas diversas instituições que, pela sua constituição
histórica, im pedem que os setores dom inados tenham acesso ao controle da
formação social.
Conseqüentemente, uma alteração na compo si çã o do corpo de
jurados no Tribunal do Júri, tornando-o mais representativo dos
sefores populares,212 tanto no que tange aos grupos ocupacionais
c omo aos descendentes das várias etnias que c o m p õ e m a sociedade,
produziria uma outra realidade rio sistema jurídieo-social, no in te­
rior do qual a aplicação efetiva da norma jurídica, através tio
Tribunal do |úri, tornaria outro rumo.
Duas advertências aqui se impõem para evitar uma visão
maniqueísta dos fatos: em primeiro lugar, não se está afirm an do qiie it.111
número maior de absolvições torne um determ inado Tribunal do júri
melhor, mais justo, do que outro e vice-versa. Em segu n do lugar, mesma
estando garantida a represeutativídade social no Tribunal do Júri, isso não
significa, autom aticam ente, que a decisão do corpo de ju ra d os reflita ioda a
diversidade social da comunidade, ju stam en te devido ao fen ô m en o dn
projeção social de classe, passível de introjeção por parte das camadas
médio-inferiores, Como já lembrado (Poulantzas), a atuação de inte­
grantes de uma dada camada social não é diretamente determinada
pela sua atribuição de classe. Não-há necessariamente uma identi­
dade imanente entre a situação de classe e a projeção de classe.
Pós-m arxistas como Ernesto Loclau e ChantaL Mouffé chegam a
afirmar que não há nenhuma conexão lógica entre as idéias de uma
ii2 Em Port ugal, o D ecreto-Lei 6 7 9 / 7 5 e sta b e le c e q u e a id a d e m ín im a para ser
ju ra d o é de 25 anos, o que implica qu e o ju rad o d e v e ter já a l g u m a e x p e riê n cia de
vida. A seleçã o c> feita por sort eio n o s c o n s e l h o s e nas a d m i n i s t r a ç õ e s d e bairr o, O
ex er cício da f un ção de ju ra d o é re m u n e r a d a . O D e c r e t o e n u m e r a u m a série de
i n c o m p a tib ilid a d e s com a f un ção de jurado, e s p e c ia l m e n t e para ev i t a r que inter-
v e n h a m no Júri pessoas qu e, quer pelo se u c o n h e c i m e n t o d o m u n d o foren se, q u e r
pela po sição de a u to rid a d e ou d e s t a q u e que d e s e m p e n h e m na s o c i e d a d e , po ssa m
orig in a r uma reação de- te m o r rev e ren c ia i por parte dos d e m a i s ju ra d o s .

1 4 2 LENIO LUIZ STRECK


pessoa e sua posição de classe. C ontudo, marxistas com o Terry
Eagleton a isso respondem de fo r m a irônica: "Isso significa, presu m ivel­
m ente, que é inteiramente acidental qu e todos os capitalistas não sejam
também capitalistas revolucionários". (grifei).213
O problema relacionado à (histórica) hegemoni a das camadas
m édío-superiores na composição d o c orpo de jurados é constatável
pela simples verificação da ori gem social dos c o m po n en t es tio júri.
Ressalte-se que essa hegemonia não en contra muitas vozes discordantes.
Ao contrário, parcela considerável de juristas posiciona-se contra­
riamente à democratização da lista geral de jurados. Para ilustrar
essa questão, é interessante citar a frase de um ju iz de Campinas,
Estado de São Paulo:21-1 " O júri faz parte do J udiciário, pertence ao
Judiciário, são os jurados juizes de fato, só que se m a técnica dos
outros, devem portanto ser h o m e n s de boa f ormação moral, idô­
neos, da classe média para cima. Ntlo podem ser analfabetos e devem ter
um alto nível cultural". ■
Essa mesma tese - que merece a nossa crítica por estar dissocia­
da dos ditames do Estado De moc rá ti co do Direito213 - é defendida
por Bonfim216, que foz con tun den te crítica à c orren te " que pretende
a 'máxima dem ocratização' da lista de jurados, a qual não se inibe
de incluir na referida dista'' os ma is d esp rep arad o s com arq u ea n os -

213 C o n s u l ta r , para tanto, E a g le to n , T e rry . Id eo lo g ia - Uniu in tr o d u çã o . Traci. de Luis


C a r lo s B org es e Silvana Vieira. São P a u l o , Ed. Bontempo-Edusp, 1997. Ver,
t a m b é m , ne sse sen tid o, S t a v e n h a g e n , Rodolfo. E stru tu ra d e c la s ses e es lra tific a ç ã o
so cial. Rio de ja n e i r o , Zahar, 1971,
214 R e fe r id o por Corrêa, op. cit., p. 7 4 .(grife i)
213 O E stad o D em ocrátic o de D ireito é u m p lu s e m rela çã o a o E s t a d o So cia l e ao
E s t a d o Liberal de Direito, isto p o rq u e e s t a b e l e c e no b o jo d a C o n s t i t u i ç ã o - q u e é
d ir ig e n te e vincu lativa - os m e c a n i s m o s (fórm ula) parn o r e s g a te d a s p r o m e s s a s
da m o d e r n i d a d e . Mais do q u e isso, o E s t a d o D e m o c r á t i c o de D ire it o é uma
p ro p o s ta civilizatória, a b o l in d o a pena d e m o rt e , p r o i b i n d o a p ris ã o p e r p é tu a ,
e s t a b e le c e n d o a primazia dos d ir eito s h u m a n o s e f u n d a m e n t a i s , a lé m d e e s t a b e le ­
cer , via C o nstituiçã o, a o b r i g a ç ã o ju rí dica d e o leg is la d o r (e o g o v e r n o a t r a v é s de
p o lític a s p ú blicas) resgatar o s d ir e ito s s o c i a is q u e a té h o je fo ra m s o n e g a d o s à
so c ie d a d e . P o r isso a C o n s tit u iç ã o diz q u e o Brasil é um a R e p ú b li c a q u e se instituí
c o m o Estado D em ocrátic o de D ire ito, c u jo s o b j e t i v o s s ã o a e r r a d i c a ç ã o da pobreza
e as d e sig u a ld a d e s regionais, além de c o l o c a r c o m o p r i n c íp i o s f u n d a m e n t a i s a
bu sca da ig ualdad e e a p re s e rv a ç ã o da d i g n i d a d e da p e s s o a h u m a n a , p ro i b i n d o - s e
q u a l q u e r form a de d is crim in ação so cial, relig io sa ou d e q u a l q u e r o u t r o nível. Por
tud o isso, entendo que o T rib u n a l do Júri, p or ser i n s t r u m e n t o do ju s tiça p o p u la r,
deve ter sua co m p o siçã o r e p re s e n ta d a p e l o s m ais a m p lo s e s p e c t r o s da sociedade,
ou seja, o co rp o de jurad os d eve refletir o c o n j u n t o da s o c i e d a d e , so b pena d e essa
c o m p o s i ç ã o ferir a Constituiçã o...
216 Cfe. B onfim , op, cit,, p, 127,

T R I B U N A L DO JÚRI 1 4 3
inclusive analfabetos, porque agora 'ci dadãos' - a duzi ndo que a
sociedade é composta por pessoas de diferentes quilates e matizes
e, por tal, sendo o júri o ' julgamento do h o m e m por seus pares', os
representantes dos diversos s egmentos sociais deveriam, adentrar a
justiça, como jurados".
N a visão de Bonfim, pois, há que se pro p u g ar "pela m elhoria
nos critérios seletivos dos referidos cidadãos. A m aior crítica dos
adversários do júri é justamente o despr epa ro do leigo ao jul­
gar'^...). Nesse contexto, " democ ra ti zar " não encontra sinonímía
em "desqualificar". Assim, se por um lado é certo que a rtilio do júri
é a não-exigência de qualificação técnica, do j urado, por outro
também, a ininus valia íntelectiva e de caráter não abona a pretensão
de ver-se incluído na cilada "lisla"... afinal, b em julgar, c onquant o
não seja apanágio egoisticamente tributado s ome nt e ao juiz togado
(...), também não pode ser pressuposto de que m sequer entenda o
processo que se julga e a missão a que se d es t i n a" 217.
No mesmo diapasão, vale registrar a entrevista que um dos
promotores mais antigos do Tribunal do Júri de Porto Alegre
concedei! à Rádio Guaíba, no dia 26 de junho de 1992, p or ocasião
do julgam ento, que durou três dias, de um g ru p o de seis colonos
acusados da morte de um policial militar. P ergu ntado se o corpo de
j urados sorteado para o caso era representativo da sociedade,
respondeu o promotor que sim, na medida em que, p o r exem plo,
para se julgar um vileiro, não precisa haver vileiros no corpo de
jurados, sendo irrelevante para o jú ri a classe, social a qu e perten cem os
ju rad os...
C o mo necessário contraponto, é preciso registrar que os d ef en ­
sores de tais teses esquecem que os resultados dos j ulgamentos
resultarão da aproximação do discurso das partes c om o " m od elo"
que os jurados vizualizam para a sociedade a qual "representam ",
além de servirem como uma espécie de "certificado de a pr ova çã o"
(ou não) das condutas dos atores envolvitfos no processo. Desse
encontro de interesses, valores e visões de m u n d o , resultará a
estabilidade (ou não) do c or po de jurados de cada comuni dade.
Dito de outro modo, "o que as listas de j ura dos nos dizem, em
última instância, é quem são os principais guardiães da ordem
pública, dos valores estabelecidos, as pessoas respeitáveis, que
detêm o poder de decidir se a quebra de uma regra básica de relacionam ento
entre as pessoas pode ou não ser con siderada legítim a, e em que term os"219.
21' íd em ,
21íl Cfe. C o rrea , op. cit., p. 78. (grifei)

1 4 4 LENIO LUIZ STRECK


Desnecessário referir que a noção do que seja um cidadão de
notória idoneidade - pressuposto para alguém fazer parte do corpo
de jurados - passa necessariamente por uma definição persuasiva
(Warat), que., sem dúvida, expressa as crenças valorativas e i deoló­
gicas do juiz que escolhe os jurados e da sociedade na qual estão - ele
e os jurados - inseridos. Destarte, da mesma forma c omo o padrão de
normalidade instituído em uma dada sociedade tem enorme influên­
cia na designarão de quem tem as características que permitem o
enquadrament) ■alguém nesse conceito de “notória idoneidade", o
"padrão de nnrnvlaladc" terá conseqüências no âmbito da apreciação dos
jurados sobre o acusado no ju lgam en to pelo T ribunal Popular.
A preocupação, pois, com a democrat ização do Tribunal do
Júri é tarefa que necessita de uma apreciação interdisciplinar. A
própria doutrina penal-processual brasileira dá alguns passos nesse
sentido, através de importantes juristas c om o J a mes T ube ne hl ak 219,
que faz severas críticas ao que c hama de "listas com ju ra d o s vitalí­
cios". Segundo ele, os jurados são o ponto de contato entre o m undo
real e o mundo jurídico; o júri é a pedra angular da democratização
da justiça, informando-a diuturnamente a respeito dos valores que
deseja ser reconhecidos ou repudiados.'220 Desse modo, acentua, "a
norma que mmuramos seja insculpida deverá preconizar uma lista anual
sem qu aisqu er conotações preconceituosas ou discriminatórias, em obe­
diência aos ditames do artigo 3fi da Constituição, englobando, com
219 Cfe. T u b e n c h l a k , J a m e s . T rib u n a l d o J ú r i - co n tra d içõ e s e so lu çõ es. R io d e Ja n eiro ,
F orense , 1991, p. 165.
220 R e g is tre -s e a i n o v a ç ã o co ntid a no m a is recente a n t e p r o j e t o , r e p e t i n d o o qu e já
co nst ava no an t e p r o je t o Salvio F ig u e ire d o , e s t a b e le c e n d o a o b r i g a to r i e d a d e da
rem essa do relatório a n t e c i p a d a m e n t e aos j u r a d o s , o q u e revela a i n t e n ç ã o de
valoriz ar a f u n ç ã o de ju ra d o . N o qu e d iz re s p e ito a o s " n o v o s " (sir) critério s de
r e c ru ta m e n to d e ju r a d o s q u e o p ro jeto e s t a b e le c e , v a le re g istra r q u e a d e m o c r a t i ­
zação cio júri, a t r a v é s da p a r t ic ip a ç ã o d a s m a is a m p la s c a m a d a s p o p u l a r e s , n u n ca
estev e p ro ib id a p elo C ód ig o d e P rocesso Penal. A le rte -s e , a p r o p ó s i to , q u e o T ribu nal
do Jú ri não será nem m a is e n e m m e n o s d e m o c r á t ic o c o m a " i n o v a ç ã o " proposta
pelo pro jeto . Isto p orq u e nno se. p od e olvidar qu e, historicam ente, o jú ri fo i (e con tin u a
sendo) com p osto p ela s cam ad as d om in an tes da so cied ad e. P ara q u e ocorra uma real (e não
apenas form a l-fictn ) m od ificação d esse cen ário, ê n ecessária um a n ova p o stu ra d os atores
ju ríd ic o s e dos ag en tes so ciais - que gravitam cm torn o do jú r i p o p u la r - d ia n te de uma
socied ad e in ju sta e d esig u al com o a n ossa. C o m o já d is c u t i d o a n t e r io r m e n t e , fica a
pergu nta: q u e m d e c id e q u e m serão os " c i d a d ã o s de n o tória i d o n e i d a d e " q u e farão
parte d o júri? Q u a l o critério para tal a f e riç ã o ? O u t r a im p o r t a n t e pro posta
mod ifica a in s tr u çã o em plenário . C o m a n o va re d a çã o , a lém d a s p artes, ta m b ém
os ju ra d o s p o d e r ã o fa zer p e r g u n t a s ao a cu sa d o . E s p e r a - s e , o u t r o s s i m , co m o já
dito a n t e r io r m e n t e , q u e a in o v a ç ã o se esten d a, t a m b é m , a o s p r o c e d im e n t o s
p ro cessuais rela tivos aos d eli tos não-sujeitos ao júri .

TR IB UN AL DO JÚRI 1 4 5
equilíbrio, cidadãos de fados os segmentos sociais, e a cada ano inteiram en­
te renovada. Ousamos proclamar ser esta a pri meira tarefa legislati­
va, sem a qual todas as demais r ef or mulaç ões que v e nh am a
emergir, de pouco v-alerão, em benefício do e ng r an de ci me nt o do
Tribunal do Júri na comuni dade brasileira".
Corretíssima a apreciação de T u bench lak . T a m b é m a elabora­
ção da lista de jurados deve passar pelo necessário processo garan-
tista de " contaminação constitucional". Dito de on íro modo, manter as
" lista s" como estão ó reduzir/condenar o Tribunal do Júri a um papel de
(mero) instrum ento áe. reprodução social. Ora, na m edida em que o
Direito, no Estado Dem ocrático de Direito, a ssume - rep ita-se - uma
função transform adora-prom ovedora, a transformação do júri em
instrumento de soberania popul ar passa por unia ampla participa­
ção popular. Essa participação deve ser en ten dida com o uma participação
que rompa com o superado modelo liberal-in diviáiin lista de direito, que
trabalha cow n perspectiva de um direito ordenador, em que as liberdades
são negai ivas. Por isso, também para que o Júri se transforme nesse
instrumento de soberania popular, deve, n ev id ên cia, sofrer altera­
ções, tanto no que tange a sua rítualístiea, c o m o no q u e diz respeito
a sua com petência, que deve ser alargada. De nada üdian!a ser n jú ri
soberano, se ficar tnlsfrilo.no ju lg am en to de conflitos de cu n ho iitlerindivi-
du ais. Direitos cie segunda e terceira geração, q ua n do violados,
t ambém devem ser trazidos à apreciação popular.
Por ultimo, cabe referir que ao longo destas reflexões pôde ser
aventado que, de fato, os estereótipos pr oduzidos de forma si mbó­
lica, ritualística e ideologicamente pelas instituições que representam
os setores dominantes da sociedade221, cumprem papel fundamental
na manutenção do status quo, consubstanciando, inclusive no plano
discursivo, a supremacia de alguns indivíduos sobre outros. A isto nos
opomos. Daí a perspectiva crítica destas reflexões!

7,2. Aspectos form ais-instrumentais

Assim como ficou amplamente demonst rado q ue é impr escin­


dível a democratização do Tribunal do Júri no que se refere a sua
2i l T ã o forte são os estereótipos, que O sso w ski c h e g a a d iz er q u e "os fntos são
im p oten tes con tra estereó tip o s ap oiad os p o r molivnções em o cio n a is. Um e s q u e m a inte­
lectual que se en ra íz a na co nsciê n cia social pode, d e n t r o de c e r t o s lim ite s, resistir
vitoriosamente à pro va da r e a lid a d e " , C fe. Ossowski, S t n n isla w . E stru tu ra de
classes 11a consciência social. Trad. de Aff onso Blaeheire . 2a ed. Rio dc j a n e i r o ,
Zahar, 1976, p. 51.

1 4 6 LENIO LUIZ.STRECK
composição., mediante a maciça part ici pação de t odas as camadas
sociais da sociedade c o con seqü en te áesv iin lician ien to e a deselitização
das listas de jurados, torna-se necessária, t a mbém, uma m ud a n ç a em
sua estrutura jurídico-formal. De s se modo, c m se gui me nt o, algu­
mas alterações são sugeridas, visando a d in a mi za r os julgamentos
pelo júri popular.

7.2.1. O rito processual: celerid ad e qu e se im põe - os vários


projetos e an teprojetos
De há muito se pretende alterar o rito processual do júri.
Vários projetos já tramitaram e ainda t ramit am n o Congresso
Nacional. Vale registrar que o Projeto de Lei r r 1655-B c hegou a ser
aprovado pela Câmara dos Deput ados em 26 de ju nh o de 1984. Mais
do que alterar o rito do júri, o projeto tratava de um n o v o Código de
Processo Penal. Não prosperou o projeto. De q ua l qu er modo, é
importante registrar que tornava .mais rápi do o procediment o
relativo às causas passíveis de j u l g am en t o popular. C o m efeito, a
previsão era de uma só audiência, onde pra t ic amen te í*<da*- ,
provas deveriam ser produzidas da seguinte i onn a: 1) intc
rio do acusado; 2) esclarecim entos tios peritos; 3.) dedais
ofendido; 4) inquirição das testemunhas de a cu saçã o ; 5) inqun i a >
das testemunhas de defesa; 6) acareações; 7) r e con hec ime nt o de
pessoas ou coisas; 8) outras provas.
As alegações finais, hoje escritas, p as s ar ia m a ser produzidas
oralmente, a não ser que a causa apresentasse quest ões complexas,
caso em que haveria substituição por razões escritas, no prazo de
cinco dias. Importante frisar que a decisão de pr onúnc ia seria feita
em audiência, após as alegações orais. À ac us aç ão e a defesa, uma
vez intimadas da designação da data do j u lga men to, pode riam, no
prazo de cinco dias, requerer diligências, inquirição de testemunhas
e esclarecimento de peritos em plenário.
No dia 16 de março de 1994, o Poder E xe cu ti vo publ icou no
Diário Oficial da União anteprojeto, resultado de C o m is s ã o presidi­
da pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, con ten do uma série
de dezessete projetos de lei desti nados a " real izar o interesse
público na prevenção e repressão da c rimi na l ida de" . 222
222 1. O p ro jeto de 1994 m o d if ic a v a sensivelmente a p r o n ú n c i a . E n q u a n t o o atual
a rtig o 408 do C P P exige, p a ra a p r o n ú n c i a , q u e o ju iz se c o n v e n ç a da existên cia de
crim e e de ind ícios de au to ria , a p r o p o s t a v is a v a a r e d u z i r a i n f lu ê n c ia qu e a
m o t iv a ç ã o da pronúnci a exerce so bre os ju r a d o s , co m a s u p r e s s ã o da e x i g ê n c ia de
o juiz e x p o r os m otiv os de seu c o n v e n c i m e n t o . Para isso, a d e c is ã o d everia

T R I B U N A L 130 JÚRI 1 4 7
Mai s recentemente, a Comissão de Ref orma do C ód i go de
Processo Penal, composta pelos juristas Ada Pellegrini Grinover,
Petronio Calm on Filho, Antonio Magal hães G o m e s Filho, Antonio
Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Mi guel Real e Jr, Nilzardo
Carneiro Leão, Renê, Ariel Dotti, Rogério Latiria Tucci e Sidnci
Beneti, apresentou anteprojeto sobre o Tribunal do júri. O citado
projeto, a par de avançar em direção a uma celeridade maior do que
a do p ro je!o de lei 1755-B, de 1983, segue trilha se me lha nte ao
projeto da Comissão presidida pelo Ministro Sálv io de Figueiredo.
C o m efeito, no que tange ao rito processual, a C o m is s ão propõe as
seguintes alterações:
a) oferecida a denúncia, o acusado é citado para ofer ecer defesa
prévra, oportunidade em que poderá argüír preliminares, especifi­
car provas, juntar d ocumentos e arrolar testemunhas.
b) a audiência será concentrada em um só ato processual, com
a inquirição das testemunhas, interrogatório e alegações orais.
Ainda nessa primeira fase, perante o juízo sing u lar e s ome nt e após
concluída a instrução preliminar é que se dará o juízo de admissibi­
lidade da acusação.
c) recebendo a denúncia através de decisão fundam entada,
uma vez convencido da materialidade do fato e da existência de
indícios de autoria ou participaçção, somente então o juiz pr o nun­
ciará o acusado.
d) não se convencendo, o juiz impronunciará ou absolverá o réu.
re s tr in g ir -s e à i n d ic a çã o da m a te r ia lid a d e d o fato d e li t u o s o e d e i n d íc io s s u fic ie n ­
tes de a u t o r i a ou p a r t ic ip a ç ã o , r e m e t e n d o o p r o c e s s o p a ra o júri. 2. O pro jeto
p e r m it ia a r e a liz a ç ã o d o j u l g a m e n t o p o p u l a r sem a p r e s e n ç a d o réu. 3. O lib elo era
s u p r i m id o , fic a nd o os lim ite s da a c u s a ç ã o e x p o s t o s na p r o n ú n c i a . 4. In stitu ía -s e o
p r e p a ro d o p ro ce ss o , v is a n d o à d e li b e r a ç ã o ju d ic ia l s o b r e r e q u e r i m e n t o d e pro va,
ao s a n e a m e n t o de n u l id a d e e a o e s c la r e c i m e n to s o b r e fato re le v a n te . O relatório
seria feit o n e ssa o p o r t u n i d a d e , e não m a is em p l e n á r io , d e v e n d o se r r e m e t id o aos
ju r a d o s j u n t a m e n t e co m o e x p e d i e n t e da c o n v o c a ç ã o . 5. O p r o j e t o tam b ém
a m p li a v a o le q u e de a l is ta m e n to d e ju ra d o s , co m a so l ic i t a ç ã o d e l is ta s forn ecidas
p o r a ss o c i a ç õ e s de b a i r r o s e institu ições de en sin o . 6. O a s s i s t e n t e d e acu sa çã o
po d eria re q u e r e r d e s a f o r a m e n t o , 8. M o d i f ic a ç ã o da i n s tr u ç ã o e m p l e n á r io , através
da in s tit u iç ã o d o cro ss e x a m im t io n . C o m isso, a s p e r g u n t a s p a s s a r i a m a feitas
d ir e t a m e n t e às te s t e m u n h a s e ao p r ó p r i o réu p e lo j u i z - p r e s i d e n t e , p e l a s pa rtes e
p elo s j u r a d o s . 9. M a io r l ib e rd a d e para o j u r a d o f a zer p e r g u n t a s e e x a m i n a r os
a u to s d o p ro ce ss o . 10. S im p l if i c a ç ã o do q u e s t i o n á r i o aos j u r a d o s , a t r a v é s da
f o r m u l a ç ã o de s o m e n t e três .qu esitos: m a te r ia lid a d e , a u t o ria e c o n d e n a ç ã o (ou
a b s o lv içã o ). Se o réu for c o n d e n a d o - co m a a f ir m a ç ã o d o t e rc e iro q u e s i t o o juiz
in d a g a ria so b r e a cau sa de q u a l if i c a ç ã o ou de esp ecia l a u m e n t o d e p e n a co n s t a n ­
tes da p r o n ú n c i a . O q u esito o b rig a tó rio so bre a t e n u a n t e s s e r ia e li m i n a d o . TL
S u p r e s s ã o d o p ro testo p o r no vo júri.

1 4 8 LENIO LUIZ STRECK


e) pronunciado o acusado, os autos da investigação policial,
com exceção das provas antecipadas ou irrepetíveis, serão desentra­
nhados.
f) elimina-se o libelo acusatório.
g) o relatório do processo não será mais feito em plenário e,
sim, em momento anterior, ocasião em que será remetido aos
jurados, juntamente com a c onvoc aç ão para a sessão.
h) o interrogatório poderá ser registrado por gravação, esteno-
tipia ou. técnica similar.
i) as perguntas serão feitas diretamente às testemunhas e ao
próprio réu pelo Juiz-Presidente, pelas partes e pesos jurados.
j) É permitido o julgament o sem a presença do acusado que, em
liberdade, poderá exercer a f aculdade de não- comparecí ment o.
1) Suprime-se o protesto por n ov o júri.
C o mo se pode perceber, o projeto apresenta avanços significa­
tivos, embora se apresente tím ido em alguns pontos. Assim, é
importante a modificação proposta no que se relaciona à fase
posterior a denúncia, sendo esta soment e recebida após a audiência
na qual será possibilitada ampla defesa ao acusado. A proposta de
que a denúncia deve ser recebida de forma f undamentada vem ao
encontro das teses garantistas. A sim plificação dos requisitos para a
pronuncia fortalece a instituição do júri, o que aumentará a respon­
sabilidade do julgamento em plenário. Observe-se que a nova
redação evita/dificulta o uso retórico, pelas partes em plenário, das
razões de convencimento expostas pelo magistrado na sentença
pronunciante.
A supressão do libelo, antiga reivindicação já constante do
anteprojeto Frederico Ma rq ues e no projeto n° 1655-B, nã o merece
reparo. A alteração não acarreta prejuízo às partes, uma vez que a
oportunidade do requerimento de provas fica resguardada com a
intimação da pronúncia. Além disso, os limites da acusação estarão
fixados na decisão de pronúncia.
Inovação importante, e que merece aplausos, é a remessa do
relatório antecipadamente aos jurados, o que revela a intenção de
valorizar a função de jurado. N o que diz respeito aos " n o v o s " (s/c)
critérios de recrutamento de j ur ados que o projeto estabelece, vale
registrar que a democratização d o júri, através da participação das
mais amplas camadas populares, nuncn estev e proibida pelo C ódigo de
Processo Penal. Alerte-se, a propósito, que o Tribunal do Júri não
será nem mais e nem menos democrático com essa inovação
proposta pelo projeto. Isto p orqu e não se pode olvidar que, historicam en ­

T RIBUNAL DC) JÚRI 1 4 9


te, o júri fo i (e continua sendo) com posto pelas arm adas d om inantes dn
sociedade, Para que ocorra uma real (e não apenas fo rm a l-ficta ) m odifica­
ção desse cenário, ê necessária uma nova postura dos atores juríd icos e dos
agentes sociais - que gravitam em torno do júri popular - diante de uma
sociedade injusta c desigual como a nossa. C om o já discutido anterior­
mente, fica a pergunta: quem decide quem serão os " cidadãos de
notória idoneidade" que farão parte cio júri? Qual o critério para tal
aferição?
Deve ser saudada a possibilidade de o acusado ser inquirido
também pelas partes. Aliás, viceja ainda um arcaico entendimento
de que somente o juiz pode interrogar o acusado. S e gun do Kant de
Lima, isto faz parte do princípio da inquirição - consagrado no
modelo eclesiástico da hiquisitio, pelo qual a confissão obtida,
preferencialmente, durante a inquirição - q ua n do apenas o inquiri­
dor conhece as acusações formuladas - é a rainha das provas, e que é,
também, a única e melhor confirmação de que a "certeza jurídica"
que orientará a formulação- f undament ada da sentença alcançara,
realmente, verdade, liberando a consciência do inquiridor de
qualquer dúvida e remorso. E acrescenta o autor: "o interrogatório
intjuisitorial do réu apenas pelo juiz, pro ced im en to a que advogado
e promotor assisíem, sem direito de participar; (...) a crirninalizaçao
da auto-acusação, em que o réu voluntariamente'confessa um crime
menor para evitar punição provável por um crime de mais gravida­
de; a prisão especial, privilégio assegurado legalmente a certas
'categorias' sociais; a não-transcrição, no processo, dos debates
orais, inclusive os do júri, que i mpedem o ent endiment o das razões
que l evam à condenação ou absolvição; a não-transcrição literal das
declarações de acusados e testemunhas, que são 'interpretadas'
pelo juiz. para registro pelo escrivão; a inexistência de uma hierar­
quia explícita de provas; a competência por privilégio de função,
privilégio de j ulgamento por tribunais superiores colegiados conce­
dido a alguns funcionários públicos, m esmo em crimes c omuns; os
procedimentos judicia rio-a d ministra ti vos do 'inquérito policial',
são alguns dos institutos penais e processuais penais que vigem
hoje, no Brasil, e que estão de acordo com esses princípios da
inquirição."223
Ainda com relação ao interrogatório do acusado, merece
referência também o trabalho do Promotor de justiça de São Paulo
Antonio Milton Barros, para quem: 1. o interrogatório é meio de
prova e de defesa; 2. c omo meio de prova, devem o Ministério
223 Cfe. Kant de L im a, op . cit., p. 170 o 171.

1 5 0 LENIO LUIZ STRECK


Público e a defesa dele participar, p ro p ic ia n d o -se-lh es a f ormulação
de reperguntas; 3. t ambém por isso, a n or ma ç ão do d ef ensor dativo
deve anteceder o interrogatório; 4. as alterações a serenVintroduzi­
das ao Código de Processo Penal, com a realização de audiência
concentrada, incluindo-se na mesma oport un id ad e o interrogatório,
espanta as dúvidas quanto à possibilidade de participação das
partes neste, com a form ulação d c eventuais reperguntas; 5. se,
entretanto, persistir o i mpe di men to de que part ici pem, deve ser
f ormulada proposta legislativa, pr e vendo ex pr e ss am en t e a partici­
pação das partes no interrogatório judicial. 224
À evidência, outra questão relevante que deve ser enfrentada
pelo poder legiferante é a que diz respeito u possibilidade, não só em
plenário, mas também na audiência comum, de as partes inquirirem
diretamente as testemunhas. Como se sabe, isso, hoje, já ocorre no plenário
do júri, mas não no procedim ento com um ou sum ário. Seria um impor­
tante avanço em direção à d emocr at ização dos procediment os
judiciais lato sensu. Ainda c om Ka nt de Lima, é possível dizer que a
manutenção - nos p ro ced im en tos c om u m e sumá rio - do m onopólio
do juiz em fazer as pergun tas, filtrá-las e det ermina r a transcrição,
importa que a construção da verdade p o r essa fór m id a ainda é iuquisitória,
em violação ao princípio do contraditório, supondo a superi oridade do
juiz sobre as partes para c onduzi r a busca da verdade. Essa fó rm u la ,
conclui, concede aos magistrados, e não ao Estado, o privilégio do
saber.Outra importante proposta m odifica a instrução em plenário.
C om a nova redação, além das partes, t ambém os j ura dos poderão
fazer perguntas ao acusado. E spera-se, outrossim, com o já dito an te­
riormente, que a inovação se estenda, também, aos p rocedim en tos p roces­
suais relativos aos delitos não-sujeitos ao júri.
Merece crítica, entretanto, a proposta da comi ssã o no que se
refere à mudança na formulação dos quesitos, traduzida, basica­
mente, na elaboração de três perguntas (materialidade, autoria,
condenação ou absolvição). Melhor seria se o novel projeto tivesse
adotado as sugestões da comissão de juristas do Ministério Público do
Rio Grande do Sul, já detalhada, que, além de se opor à instituição de
quesito do tipo "condenação ou absolvição", p r o p õe quesito especí ­
fico e único para cada tese defensiva, sem desdobrament os .
Preocupa também a extinção do Protesto por N ov o Júri, nas
condenações acima de vinte anos, um novo j ulgament o. C o m efeito,
224 Cfe. Barros, A nton io M ilton. A d e fe s a do a c u s a d o e su a in t e r v e n ç ã o no
in terr ogatório judicial, ln : R rvistn B rasileira de C iên cia s C r im in a is , n. 14 - abr-
ju n / 9 6 , op. cit., p. 131 e segs.

T R I B U N A L DO JÚRI 1 5 1
seria um contra-senso expungir u m recurso, favorável ao réu, cm
plena vigência cia Constituição mais democrática que este país já
elaborou. Há que se preservar mecanismos processuais que venham ao
encontro de uma visão garantista do processo. Penas que ultrapassem os
vinte anos cie reclusão d ev em ser s ubme ti da s ao duplo crivo da
sociedade. Reconheço que, na prática, muitas penas são- fixadas
abaixo de vinte anos justam en te para im p ed ir esse recurso. De
qualquer sorte, se a sociedade - representada no júri - considera
relevante que se a pene alguém com uma sanç ão acima de vinte
anos, deve fazê-lo com convicção, que, com certeza, não se e s mo re­
cerá em um segundo julgamento.
Por último, registre-se que o projeto insiste na m an uten ção do
assistente de acusação, o que contraria a Constitui ção Federal,
consoante já sustentado.
Por derradeiro, releva anotar que, muito embora os avanços e
indiscutíveis méritos do citado anteprojeto, c h a m o a atenção da
comuni dade jurídica para a sugestão apresentada pelo jurista Afrá-
nio Silva Jardim. Conf orme sua proposta,
a) após as alegações preliminares, o ju iz prolata despacho
saneador, examinando as condições da ação e os
processuais, principalmente os da validade dn relação
b) admissível a acusação e estando regul ar o processo (nao
esquecer da justa causa, definida c omo sendo o suport e probatório
m í ni mo da autoria de um crime), o juiz def eri rá e determinará a
realização de eventual prova pericial postulada, desi gnando, desde
logo, data para a sessão de j ulga ment o do Tri bunal do Júri, onde
será produzida a prova oral, seguida de debate s e decisão dos
j u r ad os 225.

7.2.2. O problem a d o s q u e s it o s
Muit os doutrinadores def en dem a simpli fi cação dos quesitos.
Os quesitos, da maneira c omo hoje são r egulados pelo Código de
Processo Penal em vigor,' tornam bastante difícil o trabalho dos
jurados. Tubenc hlak226, embor a defensor da tese da simplificação,
adverte que, por exemplo, o princípio do guilti/or not gu ilty 227 não se
225 C o n s u l t a r Jardim , A fr ânio Silva. D ireito P ro cessu a l P eiu il. 6- ed. R io de laneiro,
S a r a iv a , 1987, p. 335
i2c’ Cfe. T u b e n c h l a k , op. cit., p. 141.
‘ í/ H á um a v e rd a d e ir a - e e q u i v o c a d a - f a s c i n a ç ã o p e l o s i s t e m a a m e r i c a n o do
"g u i l ty o r n o t g u i l ty " . É nessa linha q u e se e n q u a d r a o P L 6 2 9 / 9 7 , de au to ria do
Dep. E n io Bacci, que tramita no C o n g r e s s o N a c i o n a l , t r a t a n d o d a sim p lifica çã o

1 5 2 LENIO LUIZ STRECK


coaduna com os ditames constitucionais, no que respeita ao sigilo
das votações (art. 5o , XXXVI II , b). Se fosse exigido, diante da
proibição da Constituição quanto à comuni cabi lidade dos jurados,
que esses se limitassem, some nt e, a considerar o réu culpado ou
inocente, sem terem antes discut ido entre si, e por completo, os
termos da imputação, ver-se-ia am pliada de maneira in m ilgar a com pe­
tência do juiz togndo, em havendo condenação. Corretíssima, sem
dúvida, a observação do jurista flu m uw n sc. De q ualq uer sorte, urge
que se produzam, alterações nos quesitos. O autor citad o considera,
em todo o caso, que "v e n ce r a resistência doutrinária e ju risp rud ên ­
cia I enraizada por mais de 40 anos no malsinado princípio da
com plexidade dos quesitos, nã o supomos, hoje, tão pen oso; em
favor de nossa posição, c ont amos, sobretudo, com o pro jeto do novo
Código de Processo Penai, ved an do o desdobrament o de quesitos
na indagação das teses defensi vas em geral (art. 612, III)".
Preocupado com os vários projetos que circulam no país sobre
o novo Código de Processo Penal, foi instituída, no âmbi to do
Ministério Público do Rio Gr a n d e do Sul, uma comi ssão228 para
apresentar sugestões ao Cong ress o Nacional e à Comissão de
Juristas encarregada de estu dar a matéria no âmbito federal. Os
trabalhos da Com issão representam, sem dúvida, valiosas contri­
buições ao processo penai brasileiro, mormen te no que diz respeito
aos quesitos do júri. C o m efeito, seguindo a trilha aberta pelo
Projeto de Lei n° 1.655/83, a Co mi ss ã o sugere que a quesitação se
oriente pelos seguintes princípios;
1. Como o réu se defende de acusação explícita de autoria de
crime doloso contra a vida, é desnecessário submeter aos jurados
quesitos sobre materialidade e autoria, quando mio houver qualquer
controvérsia sobre elas.
2. Como conseqüência da proposta de dispensa de quesitos
sobre autoria e materialidade, a decisão condenatória ou absoluto-
ria surgirá como decorrência da resposta dos jurados a quesito
único específico para cada tese defensiva - sem desdobramentos.
Desse modo, v.g., se a defesa negar a autoria, a condenação ou.
d os quesitos. Pelo pro jeto, os q uesito s ser ão re d u z id o s, p e r g u n t a n d o - s e a p e n a s
s o b r e a m aterialid ad e, a leta iíd a d e se for o ca so , ou te n ta tiv a , e p o s t e r i o r m e n te ,
q n e s i t a n d o se o réu d eve ser a b s o l v i d o . A r esposta p o sitiva c o n d u z à a bso lv içã o;
n e g a tiv a , à c o n d en a çã o .
228 a Con iis são foi co m p o sta p elo s P r o c u r a d o r e s de ju s t i ç a J o s é A n t o n i o Paganelki
Boschi (a tu a lm e n te D e s e m b a r g a d o r ) , T a sse l F ra n cisco Se íis tre , P a u lo C l á u d io
T o v o e D e lm a r P acheco da Luz.

T RIBUNAL DO JÚRI 1 5 3
absolvição do réu resultará da resposta afirmativa ou negativa à
seguinte pergunta: " O réu foi o autor do fat o?" Por outro lado,
tratando-se de autoria admitida e tese excu ipatória de legítima
defesa, o quesito específico assim seria redigido: O réu ao eliminar
a vida da vítima defendeu-se de agressão a sua pessoa?, dispensan­
do-se, como conseqüência, o que consta e m um dos anteprojetos
publicados no DOU de 30 de ju n h o de 1993, se cunda do pelo mais
recente anteprojeto elaborado pel os juristas..,,229 qual seja, a votação
do quesito sobre a condenação ou a absolvição.
Em síntese, para a v ia tese defensiva corresponderia um quesito-
específico a ser votado segundo a ordem de prejudicialidade (primeiro o
da tese que produz a desclassificação, depois o da negativa de
autoria, seguindo-se o da negativa da materialidade e finalizando-
se com os relativos às excludentes de 'antijuricidade e de culpabili­
dade).
3. Se houver condenação pel o repúdio de todos os miesifos
i r i c o s de cada tese defensiva, o juiz forn ; u i •• i ^ c i u s
■. 11. I , ,d i i ' s mini.) <o i ‘ ' T ú ad o r as , m,.ji ,md.- ,'g;a~
ii <• i ’i tíes, oh:- i 1 . a, cm, n - l s • . i . as
• • >u, i , , regra m • ■ e. i íe. j ,i , <. h m t d j a
min' i i .r do iioericídio, privilegiado pela violenta emoção, o juiz
deixara, por exemplo, de quesítar a qualiíícadora do motivo fútil,
pois sabidamente há incompatibilidade entre tais circunstâncias.
Tê m razão os membros da Comiss ão, q uando a duz em que as
sugestões não colidem com a regra proibitiva de formulação de
quesito recheado de significação jurídica. A antiga afirmação de que
os jurados só se manifestam sobre matéria fática é completamente
equivocada. Aliás, o que é "a tenuant e" ? " E agressão injusta"? "Uso
moderado dos meios"? Afinal, qual a fronteira entre o que seja
matéria cie fato e o que seja matéria de direito, no â mbi to do júri?

229 C o n f o r m e esse a n t e p r o je t o , os q u esito s são s i m p l if i c a d o s , d e v e n d o ser red igi­


d os em p ro p o s içõ e s a fir m ativas, si m p l e s e d is tin t a s, não se p e r m itin d o sua
f o r m u l a ç ã o co m in d a g a ções ne ga tiv a s. O s q u e sit o s se r ã o so bre: m a te r ia lid a d e do
fato, autoria ou participação e se o a c u s a d o d e v e ser a b s o l v i d o ou c o n d en a d o .
E sse terceiro qu esito (os ju r a d o s a b s o l v e m cm c o n d e n a m o a c u s a d o ) abrang erá
tod as a s teses d efen siva s, de m o d o a a fasta r as fon tes de n u lid a d e s . A ssim,
e s ta b elec id a a co n d e n a çã o p e lo terceiro qu esito, os j u r a d o s d e v e r ã o ser in d ag a d o s
s o b r e se existe causa de d im in u iç ã o a l e g a d a pela d e fe s a ; se e x iste circ u n stâ n cia
q u alificad o ra ou causa de a u m e n to d e pena r e c o n h e c i d a s na p r o n ú n c i a , nessa
or d e m . As in d a g a ções so bre a t e n u a n t e s ou a g r a v a n t e s não m a is serã o feitas aos
j u r a d o s , ca b e n d o ao juíz-presidente a su a v erifica çã o .

1 5 4 LENIO LUIZ STRECK


7.2.3. Q uesito único nas h ip óteses d e p ed id o de absolv ição pelo
M inistério P úblico

Uma importante inovação se esta b eleceu no Tri bunal do júri


d c Porto Alegre-30. Ali, q ua n do o pro mo to r dc justiça pede a
absolvição do réu em plenário, é f ormu la do quesito ú nico, c om o
seguinte teor; deve o réu ser absol vi do? S e nd o a resposta positiva, o
j ulgament o estará encerrado. Na hipótese de os j ura dos resp o n d e­
rem negativamente ao quesito, o juiz formulará os (restantes)
quesitos de praxe.
C o mo se vê, trata-se de l o u v á v e l. inovação processual, que,
além d e facilitar a com preensão dos j urados acerca da decisão a ser
tomada, tem o condão de evitar uma série de c ompl ex os quesitos, de
um residindo sabido de an tem ão. A iniciativa é elogiável, até porque,
sendo o Ministério Público o dom in its litis, ali r epr esent ando o
Estado e a sociedade, em não tendo ele qual quer interesse na
condenação do réu, nada obsta que os jurados r e s ol va m aquele
julgamento de forma m ais sim plificada que os demais.

7.2.4. jídpam eiito sem pre p or m aioria de votos


Sabe-se que os julgament os realizados pelo júri, embor a s e c r e ­
to o escrutínio, têm uma peculiaridade, tal seja, a de cjue, q ua nd o os
resultados são unânimes, fica r ompi do, mat erial mente, o sigilo do
voto de cada jurado. Para solucionar esse probl ema, busca-se
socorro no modelo francês, com a interrupção do escr utíni o toda
vez que a contagem chegar ao quarto voto definidor do julgamento.
Como conseqüência, o j u lg a me nt o ocorrerá sempre por maioria de
votos, resguardando-se os j ur ados que, enquant o c idadãos d e sp ro ­
vidos de quaisquer garantias, d ev em voltar às suas m últiplas
atívidactes após o término de cada jul ga men to popular. A matéria é
de tamanha relevância, que várias propostas nesse s ent ido foram
apresentadas na revisão constitucional.231

2'3U A pra g m á tica in o v a çã o d ecorre d e co n s e n s o e n tr e os j u i z e s Jo ã o  b ilío


C a r v a lh o Rosa c Den ise O liv eira C e s a r , c os p r o m o t o r e s d e ju s ti ç a M a r c e l o
R o b e r to Rib eiro , Tlwles N ilo T rein e C l á u d i o B rito , estão a t u a n d o j u n t o s à 2~ Vara
do Júri dc P orto Alegre, RS.
231 A tose é abraçada, p elos juizes M a u r o B o rb a, da C o m a r c a d c E r e x i m , R S, e
C a r m e n Luízn Rosa C o n s ta n te , da C o m a r c a de L aje a d o ,R S . R e g isír e -s e q u e a 3 a
C â m a r a C r im ina l do T rib u n a l de Ju st iç a do RS, a p r e c i a n d o a p d n ç ã o d e fe n siv a ,
e n ten d eu não existir n ulidnde n o p r o c e d i m e n t o (A p e la ç ã o n. 7 0 0 0 0 0 7 6 5 1 3 -
L a gea d o).

T R IB U N A L DO JÚRI 1 5 5
7.2.5. A necessária abolição do quesito (antigarantista) genérico
da participação "de qualquer modo"
Sob uma ótica cio Estado Democráti co de Direito, pela qual os
princípios processuais devem ser entendidos com o f azendo parte
dos direitos fundamentais, e a bsol ut amente inconcebível a f or mul a­
ção do assim denominado "quesito genéri co" da "part icipação de
q ualquer m o do " em um fato delituoso. Com efeito, se a denúncia do
Ministério Público é nula q ua ndo afirm a que o réu participou de um
homicídio, sem descrever a forma dessa participação, também será
nulo, por decorrência lógica, o quesito que imputa conduta genérica
ao réu, do tipo "concorreu de qualquer modo para o crime". Daí que,
-no dizer de Tubenchlak232, o Conselho de Sentença não deve ser
instado a responder a indagações genéricas, sob qualquer pretexto, até
porque não são válidas as imputações genéricas. Tal quesito, diz o
magistrado fluminense, afronta o princípio da ampla defesa, além de
dificultar o entendimento e a compreensão dos jurados.
Desnecessário referir a vagueza da expressão " d e qualquer
m o d o " 233, que pode tanto ser uma p articipação por in stigação, por
apoio material, emocional ou. ainda, ou aiq u er "outra ma nei ra " que
importe alguma í> > p ’ >‘ u > * >cio co~r< * vidência, isso
representa uma \ ' o ' - « • , < consi: i ais da ampla
defesa e do devido m a-a-.s...... -e&a!. p i á ti ca tem cí.^,,,onstrado que,
em mui tos julgamentos, como, v.g., o de José Rainha, líder do MS T
ou cio caso dos colonos sem terra em Porto Alegre, o quesito "de
qualquer m o do " tem servido para enqua dra r os " desvia nt es so­
ciais" em delitos de homicídio, m es mo que, em boa part e deles, não
tenha sido suficientemente pro va d o o nexo causai entre a efetiva
participação e o evento morte da(s) vítima(s).

7.2.6. A inconstitucionalidadc da necessidade do recurso


ex offício do art. 411 d o CPP
^ O artigo 411, parte final, do Código de Processo Penal, prevê a
obrigatoriedade cie o juiz recorrer de ofício de decisão que absolve
232 Cfe. T u b e n c h l a k , op. cit., p. 141 e. 259.
2j3 O P r o m o t o r d e Ju st iç a C l á u d i o Brito, qu e a t u a v a na 2- Vara d o Júri de P orto
A le g re , a d o t a n d o u m a p o st u ra gr> --autista, já n ã o co lo ca v a no lib e l o - q u e se rvirá
d e p a r a d i g m a para os q u e sit o s - a c irc u n s tâ n c ia d e q u e " o réu t e n h a d e q u a l q u e r
m o d o c o n t r i b u íd o para o c r i m e " . C o m isso , d e s d e log o e st a v a a f a s t a d a a p o s s i b i l i ­
d a d e d e s s e tip o de q u esita çâ o . P a ra o P r o m o t o r , " o leg is la d o r c o lo c o u , n o art. 29 ,
a e x p r e s s ã o q u alq u er m odo p o r q u e n ã o p o d ia - p o r ó b v io - p r e v e r t o d a s as
h i p ó te s e s d e p a r t i c i p a ç ã o e m u m c r i m e . " E c o m p l e m e n t a : " Q u a lq u er m odo é
c ircu n s tâ n cia n e n h u m a . P o r isso, a ile g a lid a d e da q u e s i t a ç â o " .

1 5 6 LENIO LUIZ STRECK


o réu na fase da pronúncia, presentes circunstâncias que excluam o
crime ou isentem de pena o réu. O dispositivo sob comento, à
evidência, coloca em dúvida o con ven ci men to do juiz da causa, uma
vez que sua sentença fica à m e r c ê do assim c h am a d o reexame
necessário. Além. disso, e esta é a parte mais relevante, sendo a
promoção dn ação penal privativa do Ministério Público, não cabe
ao juiz prolator da sentença de pronúncia recorrer de sua própria
decisão à instância superior, em nome da socied ad e (somente assim
se poderia conceber tal recurso), pela sim p les razão de que essa
tarefa foi reservada, de forma exclusiva, pela Constituição Federal,
ao Minisíério Público. N essa linha, é alvissareiro registrar que,
pioneiramente, o magistrado Aram is Nassíf, da 23 Vara do Júri de
Porto Alegre, vem rei teradameníe declar ando a não-recepção, por
parte da Constituição de 1988, da parte final do artigo 411 do
Código de Processo Pennl, valendo citar parte da sentença proferida
no Processo n e 01393087125:
"Alerto que deixo de recorrer de ofício? tal c omo determina o
artigo 411, do CPP, por reconhecer que, assim agindo, estaria
ferindo o princípio da plenitude da defesa garantida constitu­
cionalmente aos acusados de c dolosos contra a vida,
inclusive no tanto que dsferencif .irantia f undamental da
outra, ou seja, ampla defesa, assegurada a todos os cidadãos;
por reconhecer que, recorrendo, estaria col ocando e m dúvida o
meu convencimento e minha capacidade de exercer a jurisdi­
ção; e, finalmente, por entender que, ungido o Ministério
Público de funções constitucionais que dílargaram suas atri­
buições, mormente no que diz respeito à titularidade da ação
penal, não compete ao juiz investir-se deste exercício privativo*
do pnrquet, sob pena de ofender os agora comesinhos princí­
pios da relação processual. Assim, presentes os dispostos nos
artigos 5 e, incisos XXXVIII, a, e XVI, e 129, I, da Constituição
Federal, tenho por presente antinomia c om a regra do artigo
411, in fine, do CPP, o que prostra inconstitucional".
Dito de outro modo, e indo além do específico ponto em
debate, é razoável afirmar que todos os recursos na modal idade ex
officío foram abolidos pela Constituição de 1988. C o m o se sabe, a
Constituição estabeleceu o sistema acusatório c omo corolário da
perseciítío crimínís. Logo, qualquer impulso ex officío feito por Ma gi s ­
trado fere o Estado Democrático de Direito. Mais que isso, é um
capitus d im im iíio para o juiz. Não se deve olvidar que o recurso ex
officío 6 típico instrumento processual pré-moderno, instituído para

TRIB UN AL DC) JÚRI 1 5 7


vigiar o juiz, j á na moderni dade, foi rep ristin ad o pelo C ódigo de
Processo Penal de 1943, estabelecido no n as ce dou ro do modelo
libera 1-individua lista de Direito. A toda evidência, hoje nã o há mais
que se falar em recurso ex officio.

7.2.7, A niconsfítucionníidade do assistente de acusação


A tese da inconstituciomi liciade234 da figura cio assistente de
acusação é defendida pelo jurista Marcellus Polastri Lima (1991, p.
257) e merece unia reflexão. Com efeito, a Constituição Federal de
1988 trouxe profundas modificações na área do processo penal.
Uma delas foi a de que incumbe ao Ministério Público promover,
privativamente, a ação penal pública, na forma da lei (art. 129, 1).
Assim, a Constituição expurgou a cha ma da ação penal pública ex
officio, iniciada por portaria j udicial ou da autoridade policial, bem
c omo através de prisão em flagrante, Mas n ã o é só. Consoante
Polastri Lima, ao dispor a Lei Maior ciuc a pr omo çã o da acão penal
pública é privativa do i i > o Pi bn< > V n o g a d o ( ' ■t ( , j (C1
de Processo Penal no t n • aos -n > i ros a t i n g e ’ . ~,
tênr-;" ■■■'uc.t. A ( 1 . ^m-htuinte toi sábia e 1 ,
cor > i v1 «da maio i > i < o do processo penai * 1 i nd
ao oig-.o < tatal apropriado o v nnpleto monopólio s o b i e a ação
penal publica. O argumento segue o autor, de que deve a parte
privada discutir, na ação puial, o im deben tar, legitimada pelo
interesse patrimonial, não convence, O of endi do terá a oport unida ­
de de executar a ação penal condenatória, pode ndo , se preferir,
discutir o mérito de sua pretensão, ingressar no juízo cível, inclusi­
ve c om maior amplitude, sabido que a culpa cível e bem mais
abrangente do que a penal. É despiciendo e ilógico tal au xílio, pois o
Estado não poderia admitir deficiências em seu próprio instrumento,
deixando o Ministério Público sob a desconfiança de um precário
desempenho na realização da pretensão punitiva, considerando-se
que somente ao Estado pode interessar a aplicação da pena.
A tese não é somente correta pelos argumentos jurídicos, mas
também pelos argumentos sociopolíticos que se impõ em, como o de
Zj4 O t e r m o " i n c o n s ti t u c i o n a i íd a d e " d e v e ser e n t e n d i d o aqu i c o m o n o rm a não
r e c e p c io n a d a pela C o n s titu içã o de 1988. C o m o é s a b id o , o S u p r e m o T rib u n a l
F ed e ral, após o ju lg a m e n t o da A D ln n? 2, fir m o u p o siçã o n o s e n t id o de q u e no rm a
a n ter io r à C o n s titu içã o não po d e s e r in co n s titu cio n a l. Na realid a d e , hav en d o
c onflito e n tr e n o rm a infra co n s titu cío n al anterio r co m o c o n t e ú d o da n o v a C o n s t i ­
tuição - o que na d o n l i i n n se d e n o m i n a de in c o n s t i t u c i o n a i íd a d e s u p e r v e n i e n t e
oc orre o le n ô m e n o da r e v o g a çã o im plíc ita.

1 5 8 LENIO LUIZ STRECK


não se poder admitir, no m om ento em que ^e avi<!".íu mais e mais em
direção ao Direito Público, um retrocesso que sustente aspectos privados
1 1 0 processo penal. A fig u ra do a ssistente de acu sação e condizente com um
modelo de direito liheml-individu/dista, d e cu n h o oi denadcr, dm! tluído em
dado momento histórico. Com o a d ve n t o do Estado 1 Vn i rrático de
Direito, o direito passa a ter um perfil promovedoi. u .>,n\formador.
Por isso, a defesa do direito individual deve d ?r r.< ,e> i defesa
dos direitos sociais e coletivos. O Est ado de\ e a s cm mr a '-na lunção
intervencionista, Por isso, todo instituto jurídico que se amolda ao
Estado mínimo e ao privatismo, co m o a .r-sist m ia à acusação, os
juizados especiais criminais e a arbit ragem, íeforca a feição neolibe-
rai do Estado.
Agregue-se que é antinômica a presença do M inistério Público,
que no júri defende os interesses da ; oeu di d. >, u>in a hgura do
assistente de acusação, que def ende o^ m t e i e w s p n va d o s da
vítima, transparecendo, disso, resquícios de cnn hta Em um dos
julgamentos mais run 0*0 c , h s ai>< ^ V>'< in \'egre -
caso dos coiorv'-" "sp> 1 , 0 1 , 1 <1 u o > m, í <v m ' \ olicial
militar, rea. 1 > ^ ! ’I t di n pb,- 1 i~ .< íicou
bem nítido 1 ; ' i> 1 > > in o J . ■• p • > p traba­
lho mais técnico, preo* p > lo ( 1 . in\,i -m i- site de
acusação calcou-se muito m n i , na t e í o n c a Pode - s p d epi eender , daí,
a clara diferença entre o que se p o d e n a eham.tr de acusação stricto
sensu. - feita pelo Ministério Público e urna a cusação lato sensit,
desenvolvida pelo assistente de acusação, mais p re oc upa d o c om a
pessoalização do caso.
Além disso, a sustentação da tese da não-inconstitucional idade
do assistente de acusação ca mi nh a na esteira de uma acusação
sistemática no júri, coisa já de há m u ito abolida, pois se sabe que o
Ministério Público pode p e d ir ia absolvição, desclassificação e a
retirada de qualificadora em plenário, se assim entender. Não fo s s e 0
suficiente, é de frisar que a m anutenção da fig u ra do assistente de acusação
reforça a tese do direito penal do autor, que deve ser combatida. Numa
palavra, para realçar, cabe repetir as pal avras do Ministro Carlos
Velloso, para quem não pode m " 0 juiz e os doutrinadores aferrarem -se
a conceitos antigos que, para as questões antigas prestaram grande serviço
mas que, agorn, necessitam de fo r m u la çõ es inovadoras. Esperam-se, de
juizes e doutrinadores, posturas e idéias despreconceit uosas, que
possam fazer vingar a Constituição de 1988, a Constituição do povo
brasileiro".

T R IB U N A L D OJÚ E1 1 5 9
Em obra publicada recentemente, A ra mi s N a ssif235 faz coro
conosco, ao dizer: " Certament e, a j urisprudência nacional, ainda,
relutante, saberá expurgar do sistema jurídico brasileiro a fig u r a do
assistente de acusação, eis que seu malefício destaca-se no T ribunal do
júri, onde, até mesmo em constrangedora colisão com o pen sa m en to do
Ministério Público, sua atuação, patrocinada pela família da vítima,
obrig a-o a acusar, num a estranha e triste sim iliínde com o princípio dn
obrigatoriedade defensiva, gerando lamentável per plexi dade no C o n ­
selho cie Defesa".

7.2.8. A lese antigaranlista (e anti-secular) do "direito penal do autor" -


como obstáculo à dem ocratização do T ribunal do jú r i
No Tribunal, do Júri, os jurados julgam - ou d ev eriam julgar - o
fato criminoso imputado ao acusado. At ravés dé quesitos, resp on ­
dem se o réu é ou não responsável pelo crime. E, importante, em
caso de c ondenação, a pena é aplicada pelo ju iz-p resid en te do júri.
Portanto, não deveria ter (tanta) influência, em sede de j ulgamento
popular, a liistória pessoal dos acusados. Os antecedentes do
acusado, assim, deveriam (tão-som ente) servir de b ase qua nd o do
cálculo da pena, consoante o artigo 59 do C ó d ig o Penal.
Na prática, porém, criou-se a distinção informal entre o " direi­
to penal do fato" e o "direito penal do autor", c om predominânci a
deste último, ou seja, acusa-se e defende-se o i ndiví duo não pelo
fato criminoso que cometeu, ma s pelo que ele, ef et ivament e, repre­
senta na tessitura social, conf orme já del ineado no capítulo sexto,
item 6.4. Esse tipo de pr o ce di ment o é exercitado e xa t amen te porque
o Direito Penal e o Processual Penal estão inseridos em uma
sociedade desigual, na qual, se o indivíduo tiver bons antecedentes,
conduta ilibada, etc., enfim, se se enquadrar dentro dos cham ados padrões
de normalidade das camadas dominantes, terá maiores possibilidades ije
ser absolvido do que alguém tido ou classificado com o desviante.
O que se faz é en qua d ra r os acusados dent ro das regras
idealizadas e c ompr ovar sua maior ou menor adesão a elas. Do
sucesso de tal operação vai depender a c on den aç ão ou a absolvição
dos acusados no júri, no qual o que se p u n e é a conduta social do
acusado e da vítima, e não o crime c omet ido236. O resul tado disso se
reflete, de forma acentuada, nos discursos dos atores jurídicos que
atuam no Tribunal do Júri, tema já trabalhado no c ont exto ritualísti-
2 jj Cfe. Nassif, op. cit, p. 101.
C o n s u lta r C o rrê a , op. cit., p. 301.

1 6 0 LENIO LUIZ STRECK


co dos discursos "a pedra que ós construtores r ejeit am" e "o poder
dos fracos", no capítulo sexto. Com isso, ratificam-se as desigualda­
des sociais, principalmente se for levada em conta a elitização
histórica do corpo de jurados em nosso país.
Dito de outro modo, na esteira de Ferrajoli237, os antecedentes
usados contra o réu violam o sistema garantista incorporado ao
ordenamento, pois crim inaliza tipos cie ação, e não tipos cie autor; castiga
pelo que se fa z , não pelo que se é; interessa-se pelos comportament os
danosos, não por seus autores, cuja identidade, diversa e específica,
tutela, ainda que sejam desviados; dirige o processo à prova dos
fatos, não à inquisição sobre as pessoas.
Desse modo, como a maioria dos a cusados é proveni ente das
camadas menos favorecidas da popul ação238, estarão em uma ver­
dadeira oposição em relação aos seus julgadores. É importante
ressaltar, nesse aspecto, que a dinâmica do ritual cio júri propicia a
que a relação do acusado c om o m un do lhe seja tomada, afastada e
transformada pelos agentes legais. Daí que "a sua relação, pessoal e
infinitamente complexa, sofre a interferência de um aparato externo
que servirá de mediador entre seus atos e as nor mas sociais
vigentes, marginalizando-o neste cam in h o, além cie reduzi-lo ao
silêncio, a um silêncio de quem tem os instrum entos necessários
para dirigir seu próprio destino. Se ele for um trabalhador assalaria­
do, c omo o são quase todos os acusados nestes casos, sua alienação
é dupla; além de sofrê-la no m ercado de trabalho, será, também,
"estran h ad o" do controle do seu passado, de sua história, seus
motivos e sua situação, sendo redefinidos a partir de interesses que
não são os se us. "239
N ão é dem ais lembrar, a propósito, o dizer de um dos expoen­
tes da dogmática penal, Magalhães N o r o n h a 240, para quem, na
237 Cfe. Ferrajo li, D erecho y R azân , op . cit.
238 V á ria s p e s q u isa s de â m b ito n a c io n a l têm d e m o n s t r a d o e ss e (seríssim o ) p r o b l e ­
ma, O u t ra p es q u isa , restrita ao E sta d o do R io G r a n d e do Sul, retrata as c a ra c te r ís­
ticas d a s p es so a s p re sa s no E sta do n o s ú lt im o s d e z a n o s, c o n f o r m e o tipo de delito
co m etid o . Com e x ce çã o aos d elitos d e tóxico , p e c u l a t o / c o r r u p ç ã o e estelio n a to , os
d e m a i s (lesões corporais, homicídio, furtos e roubos) têm co m o p ro tagonistas, em sua
expressiva maioria, analfabetos ou prim eiro grau incom ple to, op erários ou d esem pre­
gados, enfim, pobres. A pesquisa mostra, ainda, que 4 5 % dos a p e n a d o s que saem das
cadeias pela porta da frente voltam a deiinqíiir e retornam ao presidio. Ver, para
tanto, Pesquisa "A violência e a C r im i n a l i d a d e n o R io G r a n d e do Su l''. U F K G S e
Secre taria da S e g u ra n ç a Pública RS. T a m b é m Z ero H ora, 8 .9 ,9 7, p. 59.
2-w C fe. Co rrea , op. cit., p. 303,
240 Cfe. N o r o n h a, E. de M a g a lh ã e s. C u rso de D ireito P ro cessu a l P en al. 14 a ed. São
Pau lo, Saraiva , 1982, p. 238.

TRIB UN AL DO JÚRI 1 6 1
prática, o júri é facilmente desvirtuado: " Entre nós - p o r que não
dizer? - tem sido instrumento p olítico-cap italista. C om m uito poucas
exccções, não há réu que, gozando do bafejo político ou desfrutando de boa
posição social, seja condenado por ele. /...] Freqüentem ente, não é o réu que
se julga, mas o Cel. Fulano, o Prefeito Beltrano, o Dr. Cicrnno etc".
Impõe-se, pois, uma profunda reflexão sobre essa dicotomia
"direito penal do autor" e "direito penal do faro"241, abandonando-sc
a pratica do estereotipado uso dos antecedentes do acusado cm plenário,
bem como, por outro lado, da fácil retórica do "poder dos fracos" ou a
proveitosa exaltação das virtudes do réu, pró prio do discurso
(também, no mais das vezes, estereotipado) discurso da defesa.

7.2.9. A soberania dos veredictos e o duplo grau de jurisdição


Com o advento da C onstituição de 1988, reacendeu- se a polê­
mica em torno da possibilidade de recorrer-se ou não dos resulta­
dos do júri popular. A Constituição dê 1.967, emen da da ern 1969,
io capítulo dos "Direitos e Garantias Individuais", a
do júri, com com petência para o iulgam ento dos crimes
níra a vida. Elim inou-se a referencia que constava na
v 1 1 , ti'i s<io Federal de 1946, relativam ente à soberania dos vere­
dictos, que ali se inserira pela vez primeira, inov an do no contexto
das cartas constitucionais republicanas de 1891 e de 1934, que
apenas declaravam que era "m antida a instituição do júri", enquan­
to a de 1937 se fez simplesmente omissa a respeito. Reanim a-se,
destarte, a tese de que, soberano o veredicto dos jurados, torna-se
impossível, em grau de apelação, a sua reapreciação.
241 P or oca sião do assim c h a m a d o júri d os " c o lo n o s s e m - t e r r a " r e a l i z a d o c m junho
de 1992, em P orto A leg re, p ô d e-se p r e c e b e r a p re sença d e s s a t e m á tica . Em 1990,
c en ten as de ag ricu ltores se m -te r ra a c a m p a r a m em f re n t e a o P a lá c i o do G o v e r n o
Estadual. H o u v e co nflito, re s u lta n d o a m orte de u m p o licia l m ilita r. Se is co lo no s
fo ra m a c u s a d o s da m o rte, re s u lta n d o tod os c o n d e n a d o s p e l o júri. O M o v i m e n to
dos S e m -T e rra d iv u lgo u um a no ta res s a l ta n d o qu e n ã o en te n d i a a j u s t i ç a , p o is "o
qu e vim o s no F oro de P orto A leg re não foi o j u l g a m e n t o da m o r t e do so lda d o
Valdeci, m a s o j u lg a m e n t o do p r e c o n c e i to co ntra n ó s. Foi o j u l g a m e n t o da
reform a a g rá ria ." O sin dicalis ta J a ir M e n o g h e li a f ir m o u q u e q u e m estava s e n t a n ­
do n o b a n co d os réus era a luta cios t ra b a lh a d o re s pela r e f o r m a a g rária (Z ero
H o ra de 28.6.92) . De q u a l q u e r so rt e, tanto a a c u s a ç ã o c o m o a d efes a e st e r e o t ip a ­
ra m os fatos. Por e x e m p l o , a a ssis tê n cia da a c u s a ç ã o e m d e t e r m i n a d o m o m e n to ,
de d edo em ris te, p o s t a d o em frente ao principal a c u s a d o , disse: " C o m carinha de
anjinho, de co rdeiro , e lá fora foi um leão, v em m e n t i r para nó s. M e n t ir c o m o se
estivesse fa la n d o co m m o le q u e s, c o m o se e s tiv ess e na praça a m e a ç a n d o os
p o rto -a leg r e n ses co m seu s in s tr u m e n t o s de t r a b a l h o " (Z e ro H o ra d e 27.6 .92) . De
frisar que o so ld a d o foi m o rt o co m um a foice.

1 6 2 LENIO LUIZ STRECK


Os juristas que defendem essa tese s u st e nt a m o debate em
vários aspectos. U m deles p r o vé m do e x a m e dos anais da Ass em­
bléia Nacional Constituinte. C o m efeito, o d epu tad o J osé Egreja
propôs uma emenda, que levou o n~ 29.288, pela qual incluía "a
soberania dos veredictos, salvo q u a n d o a decisão for contrária à
prova dos autos". Tal emenda foi rejeitada, o pt a nd o os constituin­
tes, ípsü fncto, pela soberania total do júri.
T a mb é m é relevante lembrar o dizer de Peu Rosa, citado por
J a mes Tubenchlak242, para que m a Constitui ção de 1988 restabele­
ceu a soberania do júri, dando- lhe o direito de julgar se o réu é ou
não criminoso, só cabendo aos Tri bunais de Ape l aç ã o o direito de
examinar se esse julgamento obedeceu às prescrições legais, ou seja,
se seguiu o rito estabelecido em lei, só p o d e n d o anulá-lo por
questões de Direito. E inconcebível, sustenta Feu Rosa, que, após a
introdução da prerrogativa de soberania pela Carta de 1988, conti­
n u e m valendo as mesmas disposições do C ód igo de Processo Penal,
relativas ao recurso das decisões do júri que valiam na vigência da
Carta de 1967 c Emenda de 1969, que não f alavam em soberania.
Nel son Darby de As s i s243 a u x i li a d i z e n d o q u e a s o b e r a n i a do
júri e de seus veredictos foi se m p re o ideal dos legisladores
constituintes, interpretando a vontade popular. S ó as C on s t i t u i ç õ e s
autoritárias, outorgadas pelos regi mes de exceção, p o d a r a m do júri
sua soberania... Ou, interpretações jur isprudenc iaí s c om o aquelas
havidas no ocaso da vigência da Constitui ção de 1946. Assim, ao
reafirmar a soberania dos veredictos, o constituinte de 1988 enter­
rou de vez os resquícios do Estado Novo, const antes do Código de
Processo Penal, tarefa na qual o constituinte de 1946 não logrou
êxito, dadas as interpretações abusivas. C onc lui ndo, assevera o
autor que "não é soberana a decisão sujeita à revisão. Assim,
revogado está, pela nova Carta, o f un da men to de recurso previsto
no artigo 593, III, d, do Código de Processo Pen al ".
Contrariamente a tudo isso, q ue m ataca a tese se sustenta no
princípio do "duplo grau de jurisdi ção". T u be n c h l a k 244 c om isso não
concorda: primeiro, pela razão de não ser o júri, si mples mente, um
órgão do Poder Judiciário, tanto assim' que nã o se submete ao
242 Cfe. T u b en ch la k , Ja m e s . S o b e r a n i a d o s v e r e d i c t o s do jú ri: i n co n stitu cio n a ü d a-
d e de re c u rs o versand o o m érito . In : L iv ro d e E stu d os Ju r íd ic o s , n.4. R io de Janeiro ,
ÍEJ, 1992, p. 226.
243 Cfe. A ss is, Nelson D arby de. S o b e r a n i a d o j ú r i e d e c is ã o c o n t r á r i a à p ro v a dos
a u to s. In: L iv ro de E studos ju ríd ic o s , n.2. R i o d e Ja n e i r o , 1EJ, 1.991, p. 400.
*M4 Cfe. T u b e n ch la k , op. cit., p. 235.

T R I B U N A L D O JÚRI 1 6 3
princípio da f undamentação das decisões; se gun do, por que os
jurados, cidadãos leigos que são, dif erenci am- se dos juizes profis­
sionais mormente por não estarem atrelados ao c h am a d o livre
c onvencimento ou persuasão racional. O que com an d a seus votos é
a íntima convicção, não havendo razão para se discutir ou examinar
e muito menos cassar o veredicto baseado no sent iment o persona­
líssimo, porque íntimo e secreto, gravado e exi gido com todas as
letras na Constituição Federal.
O Supremo Tribunal Federal, ao enfrentar a matéria, logo após
o advento da nova Carta, decidiu pela ma nut e nç ã o do antigo
entendimento, no sentido de q u e ele " n ã o fere a garantia da
soberania dos veredictos do Tribunal do Júri (CF, art. 5Q, XXXVÍ1Í, c) e
o cabimento da apelação contra suas decisões por se mostrarem
manifestamente contrárias às provas dos autos (CPP, art. 593, III, d)"
(RT 664/376).
Diferentemente do que sustentei nas edi ções anteriores,245
penso, hoje, que a apelação das decisões do T ribun al do Júri, tal como
disciplina o art. 593, TU, d, do Código de Processo Civil, mio f e r e a sua
soberania. Com efeito, "se dermos ao dispositivo legal interpretação
restritiva, vedando que o Tribunal de just iça venha a optar por urna
das versões probatórias constantes dos autos para prover o recurso,
e se levarmos em linha de conta que o m e s m o Tri bunal não poderá
reformar a decisão dos jurados, mas t ão- some nt e p ro vo ca r outra
decisão do Tribunal Popular, descab en d o nova apel ação pela mes­
ma h ipótese de cabimento, verificamos in existir violação à sobera­
nia do júri, mas apenas um m ecanismo de p rov ocar um novo julgam ento
por este mesmo Tribunal do Júri, em busca de m aio r segurança em face
de crimes e penas tão gr av es" 246.
É evidente que a tese acerca da n ão- recor rebi li dade contém
(fortes) atrativos. Tal tese reforça a soberania do júri, ainda que
aparentemente. Porém, em uma perspectiva garan tista do processo penal,
não há como evitar que as decisões, nas hipóteses de serem m anifestam ente
contrárias às provas do au tos247, v en ha m a ser revistas na instância
A tese foi su s t e n t a d a n a s d u a s p ri m e i r a s e d iç õ e s d e s t a ob ra .
Cfe. J a r d i m , op. cit, p. 336.
24' É d e s p i c i e n d o d is s e r t a r acerca da (e x cess iv a ) te x t u r a a b e rta da e x p r e ss ã o
" m a n i f e s t a m e n t e co n trá ria à p ro v a dos a u t o s " . Em t e r m o s de h e rm e n ê u t ic a
jurídica, é ine x orá vel q u e isso oc o rr a . C o m o b e m d iz O r l a n d i , i n t e r p r e ta r é dar
sen tid o, é d e lim ita r d o m ín i o s , é c o n stru ir sítios d e s i g n i f i c â n c ía . Cfe. O r la n d i, Eni
P, O d isc u rso fu n d a d o r . C a m p i n a s , E d ito ra P o n te s , 1993. Para ta n to , " n i n g ú n
in térp r e te p u e d e p r e t e n d e r estar frente al texto n o r m a t i v o lib re d e p r e c o m p r e n -
siones, p u e s ello e q ü iv a le ria a esta r fuera de la h is to ria y a - h a c e r e n m u d e c e r a la

1 6 4 LENIO LUIZ ST RECK


superior. É um direito que assiste as partes en v olv id as, m orm ente ao réu.
Se existe uma garantia constitucional de acesso à ju stiça e duplo grau de
jurisdição, sob qual fu n d a m en to poder-se-ia negá-lo 1 1 0 âm bito dos ju lg a ­
mentos do Júri? O que dizer de julgament os c o m o o de J osé Rainha (o
primeiro), ocorrido no Estado do Espírito Santo?

7.2.10. Crimes de trânsito e 0 Tribunal do Júri


O trânsito mata e mutila mnís que as guerras. Nã o é temerário
afirmar que o trânsito brasileiro virou uma batalha. Dentre os
vários fatores que contribuem para isso, está o da sensação de
i mpunidade que cerca esse tipo de delito. Isto gera reações de
caráter reprissivisfa, mormen te quando ocor rem casos de grande
repercussão.. Como conseqüência, cresce dia-a-dia a tendência em
enquadrar os autores de crimes de trânsito no dolo e vent ua l248.
C o mo é sabido, o Código Penal estipula dois tipos de crimes: o
doloso e o culposo. Assim, quem quer o resultado ou ass ume o risco
de produzi-lo, responde pelo primeiro, sendo que, aquele que age
por negligência, im prudência ou irnperícia, respon d e pelo segundo.
Parece simples a diferenciação. Porém, co m o b em alerta Bastos
Jr., "n ã o é a mera previsão do resultado que configura o dolo
n o r m a " , s e n d o que "ln n orm a cs m uda in ien tras no sea in te rr o g a d a , re cla m a d a xt traída n
un p re se n te esp a c io -tem p o n ü , donde, hn d e m ostrar su s v irh ia lid n d c s . E s en to nees
c u a n d o será e o m p r e n d id a e n 's u ' s e n t i d o " . C fe . F e r n á n d e z - 1 a r g o , A n t o n i o O su n a.
La h erm en êu tica ju ríd ica de H an s-G eorg C n dam er. Vnlladolid, Esp afta , U n iv e r sid a d
de V a tladolid, 1993 p. 88 e 98. D esse m od o, p er g u n ta r a cerca do (v erd a d eiro /co rreto !)
c on ceito d e " m an ifestam en te con trá rio " é. com o p er g u n ta r so b re 0 co n c e ito de legítim a
d efe sa , in ju sta ag ressã o , ju sta cau sa, d em o cra cia , c id a d a n ia ..,É c o m o b u s c a r um s ig n ifi­
ca n te p rim ord ial, fu n d an te, ou a c r e d i ta r e m v e r d a d e s a p o fS n ticn s ... S o b r e o
a s s u n to , ver S tre ck , H e rm e n ê u t i c a Ju rí d i c a E (m ) crise, op.cit.
248 V á ria s d e cis õ e s p o d e m ser a rr o l a d a s , as qu ais, à e v i d ê n c i a , na h i p ó te s e de
re p ro d u ç ã o , n ã o p r e s c i n d e m do c o n t e x t o fá tico do qu al e m e r g i r a m : " H a b e a s
co rpus. A tropelam en to. M orte de dois ciclistas. D en ú n cia por du plo h om icídio doloso.
Habeas co rp us objetivan do rcciassificaçâo da denúnciít p ara o A rtigo 121, § 3 e, do Código
Penal. O paciente realizou a ultra passa gem de cam in h ã o , à noite, em um a curva para
a direita. Fê-lo em local proibido, pois que sinalizado co m faixas a m a rela s contínuas,
paralelas, na pista. C o lh end o e tirando a vida a dois ciclistas, os q u a is s e g u ia m em
sen tid o co n trá rio àqu ele e m qu e ia, a a ç ã o do p a c i e n te e s c a p o u a o s linde s da
culpa e m estri to se ntid o, e s p r a i a n d o - s e para o terren o d o d o lo e v e n tu a l. E essa
co n sta ta çã o p e r m i t e , para fins de d e n ú n c i a e in s tr u çã o , a c a p i t u l a ç ã o dos fatos
c o m o crim es d o lo so s co ntra a vida, vale d iz er, h o m ic í d i o s d o lo s o s . H ab eas C a rp a s
n. 6 8 6 0 5 3 2 5 7 - F red erico W e s t p h a le n , R S " "H om icídio. D olo ev cn h tn i. A d m is s ív e l o
dolo ev en tu a l e m h o m ic íd io ou lesã o co r p o r a l re s u lt a n t e da c o n d u ç ã o de veículo
a u to m o to r. N ã o é insita a o s d elitos p r a t i c a d o s co m v e íc u l o s a cu lp a . Basta para
que se en tr eveja form a d olosa do fato qu e o a g e n t e ten ha a s s u m id o o ri sc o do
r es u ltad o , em b o ra não visad o. [...] R e c u r s o crim e n. 2 7 .26 8 - C a n o a s , R S".

T R IB U N A L D O j Ú R t 1 6 5
eventual, mas a atitude mental do agente e m face de sua possível
superveniência." A caracterização do dolo eventual é ex tr emament e
complexa. Ninguém ignora a dif iculdade para a difer enci ação do
"dolo ev en tu al" da figura da "culpa co n s c ie n te " 249. O q ue é assumir
o risco de produzir o evento? A evidência, assumir o risco não é a
mesma coisa que "arriscar-se" a produzir-um evento: "assumir o risco
é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir
previamente no resultado, caso venha este, realmente, a ocorrer'' -51'.
Isso significa dizer que a figura do dolo eventual não deve ser
utilizada c omo pedagogia ou remédi o contra a violência no trânsito.
O direito penal, como já afirmado anteriormente, não deve ser
aplicado hobbesinnnmerite. Dito de outro mod o, o ope ra dor do
direito, em face dos delitos de trânsito, embora graves, não d eve ser
obrigado a optar entre "civilização", representada pela adoção do
dolo eventual - de onde exsurgirão punições rigorosas -,e a " b a rb á ­
rie", representada pelos milhares de crimes prat icados cotidiana-
mente. Isto porque é nas crises e nos casos limites que o direito
nenal e a próoria teoria cio delito são colocados em xeque. Os
i , las c ( rdeni, va buscri dc um rcprr^iuisina snnauíor, ophim
!77c/e e mnlerinl251, pela qual nem m esmo os (mínimos)
r .composto,-, u „ ò i..áticos do direito penal são preservados.
249 Para Francisco Assis Toled o, a diferença en tre doio eventu al e cu lp a co nsc ie nte é
que nesta o agente não qu er o resultado ne m a ssum e o risco de produzi -lo, mas,
sabend o-o possível, acredita sincera m ente po der evitá-lo, o que nã o aco n tece p o r erro
de cálculo ou erro de execução, lu P rin cípios básicas do direito penal. S ã o Paulo, Saraiva,
1984, p. 218. Segu nd o Ces ar Rilencourt, "há culpa co nscie n te q u a n d o d agente,
deix ando de ob servar a diligência a q u e estava obrigado, p re v ê um resultado,
previsível, mas confia convietamen te que ele não ocorra. Q u a n d o o agente, em bo ra
p re ven d o o resultado, espera sin cera m ente que este não se verifique, estar-se-á diante
de cu lp a consciente, e não de dolo eventual, No entanto, c o m o bem destaca Juare z
Tavare s, na análise desta esp écie de cu lpa, deve-se agir co m cautela, pois a sim ples
pre vis ão do resultado não significa, p o r si só, que o agen te age co m cu lp a consciente,
posto que, mais que a previsão, o que caracteriza efetivam ente é a consciência acerca
da lesão ao dever de cuid ado", hi; T eoria gera! do delito. S ã o Paulo, RT, 1997, p. 110.
Consultar, também , Tavares, Juarez. Teoria do delito. São Paulo, RT, 198,0.
2“'° Cfe. Bastos Jr, E d m u n d o J o sé de. D o lo ev e n tu al, cu lp a c o n s c ie n t e e c r i m e s de
trânsito . In: Á llc r Á gora. A no II, n.3, o u t / 9 5 , p. 47.
Ajl Sa io de C a r v a lh o alerta para o fato de q u e os a r g u m e n t o s b a s e a d o s em
ra cio n a lid a d e m ate ria l são p e r f e i t a m e n te a d m i t id o s em D ireito P e n a!. De form a
g a ra n tid o ra inclusive. O qu e não se p o d e ad m itir, sob p en a de q u eb ra dos p rin cíp io s
con stitu c io n a is, é a litiliznçno da ra cion alid a d e in alerial in m a ll a m p a r t e m . V e ja - se o
ca so do co stu m e: é im p o ssib ili ta d o d e cri ar d e lito s e a u m e n t a r p e n a s , m as op era
c o m o descrim m alizaciür de fato na in t e r p r e ta ç ã o ju d ic ia l. C o n s u l ta r , para tanto,
C a r v a lh o , Saio de, A p olítica crim in al b rasileira de d ro g as: d o d isc u r so oficial às razões
da d escrim in alização . Rio de Ja n eiro , L u a m , 1996, p. 194-198. (grifei)

1 6 6 LENIO LUIZ STRECK


Não se resolverá o problema do trânsito m e di a nt e o "e n q u a ­
d ram en to " dos infratores no dolo eventual, A di scussão do dolo é
uma questão complexa no direito penal, onde d ua s posições são
plenamente defensáveis. A p ergu n ta â: qunl o p osicion am en to mais
garaatistr,? Segundo M u noz Conde, para distinguir o dolo eventual
da negligência foram formuladas pri nci palmente d uas teorias: a
teoria da probabilidade parte do el emento intelectivo do dolo.
Como é difícil demonstrar no dolo eventual o e l emen to volitivo de
querer o resultado, a teoria da probabili dade a dmi te a existência de
dolo eventual quando o autor representa o r esultado c om o de muito
provável produção e, apesar d isso, atua, ad m itin d o ou n ão essa
produção, Se a probabilidade for remota ou mais l ong ínqua, haverá
culpa ou negligência com reprodução (consciente)232.
A teoria da vontade ou do conscent iment o, segue o autor,
atende ao conteúdo da vontade. Para essa teoria n ã o é suficiente
que o autor situe o resultado c om o de produção pro vá v el , mas é
preciso que, além disso, diga: "ainda que fosse certa sua pre
atuari a" (Fórmula de Frank). Há, ao contrário, culpa se o ai
haver representado o resultado c omo de pr oduç ão certa,
deixado do atuar Ç favor desta teoria, Anton Orteca, Jimc
Asua, Del Rosai, Cueilo, C erezo e C obo-Vives).
Contra a teoria da probabilidade, diz o autor es pa nhol , afirma-
se que deixa em valorar uma parte essencial do dolo: o elemento
volitivo e que, por outra parte, n em sempre a alta proba bili da de de
produção de um resultado obriga a imputá-lo a título de dolo
(pense-se nas intervenções cirúrgicas de alto risco).
Assim, Munoz Conde manifesta sua preferência pela teoria da
vontade, porquanto apesar de ter em conta o e l e me n t o volitivo,
delimita com maior nitidez o dolo e a culpa. In o bstan te, também
contra ela se opuserem objeções. Em primeiro lugar, p or q ue presu­
me algo que não ocorre na realidade: que o autor su põe o q ue faria,
caso o resultado fosse de produção certa. E v id en t em en te a teoria da
vontade se ocupa de confrontar o delinqüente c om o resultado,
quando este ainda não se tenha produzido, ima g i n an do -o como
efetivamente acontecido. Em segundo lugar, p or qu e nem sempre se
pode demonstrar um querer efetivo, nem mesmo nos casos em que
o autor imagine u m resultado certo. Inclusive, no dolo direto de
segundo grau se satisfaz com a r epresentação da necessária produ-

252 Cfe, M u n o z Conde, Fran cisco. T eoria G eral do D elito, T r a d . d e J u a r c z T a v a r e s e


Luiz R egis Prado. P orto A leg re, Fabris, 1988, p. 60-61 .

T R I B U N A L DO JÚRI 1 6 7
çâo do resultado concomitante. Apesar dessas objeções, é preferível
a teoria da vontade, repete o autor, por que, em última instância,
todo o problema do dolo desemboca a mp la me n t e na demonst ração
do querer o resultado, sendo insuficiente a si mples representação
de sua produção provável. A demonst raç ão desse querer suscita, na
prática, certamente, problemas de prova, mas nem por isso dele se
prescinde, conclui.
O que parece fundam ental, em última análise, é a avaliação do
conteúdo do dolo. Daí a pergunta: com o prescindir da vontade se ela é
a principal característica do agir doloso?
D r. rnesma forma entende Heleno F rag o so253, para quem o dolo
eventual aproxima-se da culpa consciente e dele se distingue
porque nesta o agente, embora p re ven do o resultado c omo possível
ou provável, não o aceita n e m consente. Não basta, portanto, a
dúvida, ou seja, a incerteza a respeito de certo evento, sem i mp li c a­
ções de natureza volitíva. O dolo eventual põe-se na perspectiva da
.vontade, e não da representação, pois esta última pode conduzir
também a culpa consciente. Nesse sentido, já decidiu o STF (RTj,
35/282). A rigor, diz Fragoso, a expressão "assu m ir o risco " c imprecisa,
para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve ser interpretada
em consonância ci-a; o teoria do con sen tim en to.
Fragoso considera útil c o m o critério prático para identificar o
dolo eventual o princípio d en omi na do por Frank de teoria positiva
do consentimento. Segundo esse princípio, há dolo eventual q ua n ­
do o agente diz a si mesmo: "seja assim ou de outra maneira, suceda
isto ou aquilo, em qualquer caso, agirei". Revela-se, assim, a
indiferença do agente em relação ao resultado. Outra teoria criada
por Frank, chamada de teoria hipotética do consentimento, dá conta
de que haveria dolo eventual q ua nd o a previsão do resultado c omo
certo não impedisse a ação. Essa fórmula foi objeto de séria crítica e
nao pode ser aceita sem reservas, alerta o autor. De qualquer sorte,
conclui o saudoso professor, " ela representa, com o a outra, esforço na
fo rm u la çã o de critérios práticos para evidenciar o conteúdo psicológico da
ação. Se subsistir dúvida cm relação ao mesmo, deve-se admitir a hipótese
menos g ra v e de culpa con scien te" . E nisto, talvez, que resida a resposta
à pergunta: qual o posicionam ento mais gnrantista?

25j Cfe. F ra g o s o , H e le n o C láud io. L içõ es d e D ireito P en al. 1 5a ed. R io de ja n e i r o ,


F o r e n se , 1994, p, 173-174.

1 6 8 I.ENIO LU5Z STRECK


7,2.11. A necessidade do alargam ento da competência do
Tribunal do jú r i
Na medida em que a Constituição Federal incluiu o Tribunal do
Júri no capítulo aíinente aos direitos e garantias individuais e coleti­
vos, não há dúvida de que sua competência pode ser estendida a
outros crimes. Com efeito, quando a Constituição, no artigo 5P, inciso
XXXViíí, diz que "é reconhecida a instituição do júri, com a organização
que ine der a lei, assegurados: [...] d) a competência para o julgamento
dos crimes dolosos contra a vida", está assegurando ao cidadão o
direito de ser julgado por um júri popular, ou seja, dando-lhe a
garantia de que, se cometer urn crime doloso contra a vida, não será
julgado por um juiz singular. Assim, claro está que a Constituição não
limitou o Tribunal do Júri aos crimes dolosos contra a vida.
Desse modo, considerando-se o Tribunal do júri c omo um
importante mecanismo de participação popular - participação essa
que não pode ser merament e retórica - não há qualquer óbice no
sentido de o legislador ordinário incluir, no c ampo cie sua abran­
gência, outros crimes como:
a) cr ime s contra a economia p op u la r, c o n f o r m e já estava
previsto na Lei n u 1 52 1 / 5 1, b e m c o m o os hoj e previstos n o n o vo
C ó d i g o d o Consumidor;
b) crimes de sonegação fiscal e os demais comet idos contra o
erário público, como os de improbi dade administrativa (art. 37, § 4a,
da CF) e os de corrupção.
(Todos sabemos o grau de lesividade desse tipo de crime. Por
que não deixar a população julgar os criminosos do colarinho
branco, que, na maioria das vezes, com uma só ação, prejudicam
milhões de pessoas?).
c) crimes contra o meio ambiente.
(No momento em que esse tema é preocupação de toda a
população, por que, por exemplo, não ver sentado no banco dos réus,
no tribunal popular, o agente responsável pela poluição ambiental?).
d) crimes patrimoniais violentos e com resultado morte -
roubo, extorsão e extorsão mediante seqüestro.
(Ao invés de o criminoso desse quilate ser julgado, solitariamen­
te, por um juiz singular, longe dos olhos da população, poderia ser
julgado pela população, através do júri popular. Aliás, tais crimes, no
plano da teoria do bem jurídico, são tipificados com penas bem mais
elevadas que as dos crimes considerados pelo Código Penal como
crimes contra a vida. Não se concebe, pois, sua exclusão do crivo da
população, através do julgamento pelo Tribunal do Júri).

TRIBUNAL DO JÚRI 169


Não há, pois, repita-se, qual quer óbice de ordem constitucional
que impeça o alargamento da competência do Tri bunal do Júri.
Como muito bem assevera Afrânio Jard im 254, a lei ordinária poderá
ampliar a competência do Tribunal do Júri para outras infrações,
c omo ocorreu em tempos passados. Mais ainda, acrescenta que "isto
se recomenda, inclusive, para aqueles crim es cujo tipo se com ponha
de elementos normativos, de valoração cultural, bem c om o para as
condutas que, de alguma forma, ponham em risco concreto ou
causem dano a bens ou interesses coletivos ou di fu sos ." 155
Por derradeiro, registre-se que, antes m esmo do advento da
Constituição de 1988 e muito embora ferrenho crítico da instituição
do júri, Frederico Marques jã defendia esse alarg ament o da c om pe ­
tência do júri, por exemplo, para os crimes políticos, pois, desvincu­
lado de compromisso c om o governo e c om amplo c ampo para .
julgar segundo a íntima convicção, o juiz pop u lar apreciaria o caso
fora dos padrões legais emai ados daqueles contra quem se rebelou
o d e h r t s ute, /' í. 1) veredicto o , t,< > i a dc reprovação dos
ideai ( ic , npelu v , < 1 ao crim e oii ; P ’ > mçim de que estes
ideai m cs , > ■es p rin cíp i cm vigor, en con ­
tram inci.i' ,, > , que os c e i , * > < c o m o um anelo
de progresso, eu mu im, pu^so à frente no aperfeiçoament o dos
postulados democráticos256.

7.3. Deve o Júri ser extinto? O j ulga ment o por í nti ma convicção,
sem a necessidade de justificação/fundamentação, é
compatível com uma perspectiva garantista do Di reito?
Aspectos políticrr-ideológicos e fo rm a is-in stru m e n ta is
acerca da controvérsia

A polêmica acerca da manut enção ou extinção do júri vem de


longos anos. Seguidamente volta à baila, mor ment e quando algum
Cfe. Jardim , op. cit., p. 334 e 335.
233 Releva ano ta r q u e na E sp a n h a , na E x p o s iç ã o de M o t iv o s da Lei O rg â n ic a Del
T rib u n a l Del ju r a d o , consta qu e, m u ito e m b o r a a c o m p e t ê n c ia d o T r i b u n a l d o Iiirí
esteja fixada no seu artig o I o, o leg is lad or o r d in á r io p o d e rá , no fu tu ro , à vista da
expe riência e da c o n so lid a ç ã o sociai da instituição, e s t a b e le c e r a a m p li a ç ã o p ro ­
g res siv a dos d elitos q u e d e v a m ser o b je to de j u l g a m e n t o p o pular.
43:1 Cfe, M arq u es, F red erico, op, cit., p. 28. R eg is tre -s e q u e, na E sp a n h a , a
c o m p etên cia do T rib u n a l do Júri a b r a n g e os s e g u in te s defitos: d e lito s co ntra as
p es so as , d elitos c o m e t i d o s p o r funcionários p ú b lic o s no ex e r c íc i o d e seu s carg o s,
delitos contra a ho nra, a lib erd a de e a se g u r a n ç a , e d elitos de i n cên d io s

1 7 0 LENIO LUIZ STRECK


julgament o importante está s end o realizado ou q ua n do o resultado
do julgament o popular causa per pl ex id ad e nos mei os políticos e
jornalísticos, Há pouco tempo, em face do jul ga men to do líder do
MST, José Rainha, no Estado do Espírito Santo, a discussão veio
novam ente à tona, em debate pr omo vi do pela Folha de Sã o Paulo257
entre o juiz criminal VValter M a y c ro v itc h e o ad voga do criminalista
Alberto Zacharías T o r o n 2-'’*. Para o primeiro, o Tribunal do Júri
tornou-se arcaico, superado. Paz severas críticas à desnecessi dade
de m otivação dos veredictos populares: "Trata-se, evident ement e,
da consagração do arbítrio, col ocando o Tribunal do Jiirí em
oposição ao regime d emoc rá tic o", acrescenta o ma gis tr ado paulista.
Mais do que isso, relata cnsos de influência direta da i mprensa nos
resultados dos julgamentos: "E fet i vamen te , não é ideal o nosso
sistema. Consagra, por influência da força reacionária e talvez do
fetichísmo, o júri popular soberano. E o sistema acaba ficando
contrastado quando entrega aos juizes especializados compet ência
para julgamentos de crimes outros, inclusive os de irnprensa,
obrigando-os, em total respeito à pessoa e à soci edade, a expor,
minuciosa e publicamente, as razões do seu c o n v en ci m e nt o , " H
encerra citando Frederico .Marques, o qual, depois de frisar que é o
regime democrático, e não o júri, que tutela a liberdade dos
cidadãos, em face da abolição do júri do México, recor dou frase que
ficou famosa, pois para cá t a mb ém valia: "Era un es pectáculo, pero
110 hacia justicia".
C om o contraponto, o criminalista paulista Alberto Zacharias
Toron sustenta que o Tri bunal do Júri deve ser m a nt i do porque,
entre outros benefícios, oxigena a justiça brasileira. Para ele, com
todos os seus defeitos, o júri pop u la r não encontrou outra institui­
ção que o pudesse substituir c om vantagem. Há uma crença, diz o
advogado paulista, fort ement ednspi rada pelo posit ivismo jurídico,
segundo a qual os juizes de carreira, isto é, os que cursaram
faculdades de Direito e se submeter am a concurso público, realizam
25' C o n s u lta r Folhn d e S ão P iu ilo, 3 1 . 0 5 .9 7 , p. 1-3.
À e v id ên cia , existem i n ú m e r o s e s c r i to s i m p o r t a n t e s ac e r c a d a s t e se s " m a n u ­
t e n ç ã o " versu s " e x t i n ç ã o " do júri p o p u l a r . O d e b a t e jo rn a lís t ic o p r o t a g o n i z a d o p o r
T o r o n e M a y e r o v iic h é aqu i r e s u m id o p o r q u e os a r g u m e n t o s p o r e l e s e s g r im i d o s
c o n g re g a m , riiulniis iin ih w d is, as m ais v a r i a d a s o p in i õ e s a ce r ca da p r o b l e m á ti c a .
So bre o a ssun to , vários a u t o r e s m e r e c e m l e m b r a n ç a , c o m o T o u r i n h o F i lh o , F re d e ­
rico M a r q u e s, A ram is N a s sif, J a m e s T u b e n c h l a k , E v a n d r o Lins e Silv a , E d ilson
B o n fim , R o b e r to Lyra, V i t o r i n o C a s t e l o B ra n co , J o ã o M e i r e ll e s C â m a r a , en tre
ou tro s, todos, a favor ou c o n t r a , p r e o c u p a d o s c o m a t em á tica d o s j u l g a m e n t o s
populares.

T R IB U N A L D O JÚRI. 1 7 1
melhor a tarefa de distribuir a justiça, c omo se estivessem eles -
juizes togados - a salvo da influência de critérios ideológicos ou
mesmo de emoções que circundam os casos. Essa crença faz com
que se pense que, fora dos padrões técnicos, não se faz justiça. Para
exemplificar, lembra que a j urisprudência, c om in e o mu m reitera­
ção, tem assinalado que o d epo im en to de policiais é pl enament e
válido e indigno de suspeitas apriorísticas. Mai s do que isso,
prestigiando confissões obtidas na polícia, há vozes que insistem
em afirmar que estas con fissões são válidas não pelo lugar em que
são feitas, mas pela força do seu con ven ci men to e m termos de
verossim ilhança.
No entanto, prossegue, após o caso Bodega, no qual se viu,
para dizer o menos, que em n ome de resultados criaram-se confis­
sões, ou mesmo após Diadema, quando, pela enésima vez, const a­
tou-se que o Polícia Militar age com violência, o q ue st iona ment o da
validade da confissão produzida na polícia per ant e o h o me m
c omum, que leva em consi der ação a experiência do cotidiano,
ganha sustentação. Assim, trabalhando com dados não n ecessaria­
mente técnicos, pode-se c hegar a um b o m j ulgament o perante o júri,
m ais suscetível rt realidade do que os ju iz es togados, que se mpre estarão
a exigir a dificílima prova da tortura.
Por outro lado, acrescenta Toron, há uma trama interpretatíva
em torno das provas, de tal m od o que, e de acordo com a capacida­
de argumentativa de promotores e advogados, a aquiescência dos
juizes populares é obtida por mei o da mobil ização de seu ima gi ná ­
rio. O júri é criticado por isso. Porém, argumenta Toron, t ambém
nos processos desenvolvidos sem a oralidade dos profissionais o
m esmo pode ocorrer - isto é, aquele mais b e m preparado consegue
reunir mais provas, apresenta mais e mel hor es ar gumentos e,
enfim, projeta mais força a sua pretensão.
Afora isso, arremata, o direito c om u m en te apresenta (questões
cuja resolução encontra eco nã o na dogmática, mas na cultura de
uma época. É aí que o povo, no c onsel ho de sentença, oxigena o
Judiciário, ao prestigiar teses inovadoras c omo a inexibilidade de
conduta diversa (pense-se no abortei) ou m es mo para novos contor­
nos na legítima defesa, bani ndo a tese da legítima defesa da honra
nos casos dos assim chamados homicí dios passionais. Lembrando,
por fim, a amplitude do júri nort e- ameri cano, sustenta que a partici­
pação popular na administração da justiça deve. ser ampliada, corno prevê
a próprio Constituição, quando trata dn criação dos juizados especiais para
ju lg a r delitos de menor potencial lesivo.

1 7 2 I.ENJO LUIZ STRECK


Argumentos a favor e contra o júri serão encont rados nos mais
variados setores da dogmática jurídica e dos juristas engajados nas
diversas teorias críticas do Direito. Deve fic a r claro que tudo o que fo i
dito nesta obra parte da prem issa de que a instituição do jú r i pode ser um
caminho para n concretização da participação p opu lar nos mecanismos de
aplicação da lei. Como bem alerta Nassif259, " sim, nós temos um júri
brasileiro que serve de lição para o mundo. Espera-se que os
reformadores não se e squeçam de que é preciso respeitá-lo por isto,
e não mutilá-lo. Apenas aperfeiçoá-lo". Desnecessário referir que,
em face de o júri constituir uma garantia do cidadão, incluído como
cláusula pétrea no capítulo tios direitos e garantias fundament ais na
Constituição brasileira, sua extinção está a bsol ut amente fora de
cogitação.
De todo modo, toda essa discussão não teria sentido sem a necessária
crítica no Tribunal do Júri em seus aspectos político/ideológicos e da
urgente necessidade da alteração nos seus aspectos fonnais-estniturnis,
advertindo-se o leitor para o fato de que a separação entre "aspectos
político-ideológicos" e "formais-estruturais" tem sornente um cará­
ter metodológico. O Direito, visto c omo conjunto de normas disci­
plinado™.' «!•■ relações sociais, pode ser entendido e aplicado pelos
sujeitos relações sociais. O D ireito e sua. aplicação são fatos
b em mais sm.ples do que fazem crer as construções dogmáticas tão
desenvolvidas pelos cultores das ciências jurídicas, construções
quase sempre artificiais, que contribuem para institucionalizar o
saber enquanto instrumento d e domi na ç ã o260.
Nesse sentido, e correndo o risco de pesadas críticas, chamo a
atenção da comunidade jurídica acerca daquilo que po de ser consi­
derado o "calcanhar de Aqui les " do Tribunal do Júri, no confronto
com o garantismo jurídico. Refiro-me ao fato de o ju ra d o decidir por
íntima convicção, sem a necessidade de justificar seu voto. O modelo de
Estado Democrático de Direito, garantista e s ecularizado, dificilmen­
te poderá continuar a conviver com julgam entos nos quais não haja a
devida justificação/fundamentação. Entretanto, trata-se de um proble­
ma de difícil solução, uma vez que a Constituição estabelece a
garantia do "sigilo das votações", o que implica a impossibilidade
imediata de qualquer tentativa de introduzir outros model os de
julgamento popular, como, por exemplo, o escabinato francês ou o
português ou até mesmo uma adaptação das fórmulas tradicionais
do júri americano ou inglês, onde os jurados d seu tem entre si,
2;,'J Cfe. Nassif, op. cit., p. 158.
2Í*U N esse sen tid o, v e r K a ra n , op. cit, p. 113.

TRIB UN AL DO JÚRI 1 7 3
buscando um consenso. De qual quer sorte, parece que algumas
lições poderiam ser tiradas do escabinato francês, c onf orme deli­
neado no capítulo específico (item. 4.1.2). Not e- se que a soberania
popular está bem mais presente no modelo francês, onde é o
próprio júri que decide até m esm o a pena e a forrna de seu
cum prim ento. A possibilidade de alteração do júri depende, à
evidência, de emenda à Constituição, em face do obstáculo repre­
sentado pela garantia do sigilo das votações. Nilo creio, por outro
indo, que uma emenda constitucional nesse sentido tenha o condão de
violar as cláusulas pétreas. Com efeito, a Constitui ção Federal estabe­
lece a vedação de emendas tendentes a abolir garantias. Ora, o que
não pode ser extinto é o Tribunal do Júri e nem,a soberania de seus
vereditos. Observe-se que, na França e em Portugal, nada do que foi
discutido na sala secreta pode ser revelado. Há a garantia do sigilo.
A sala é secreta. Com uma alteração que visasse a modificar o júri.
brasileiro, aproximando-o, com maior ou men or intensidade, de
outros modelos, o sigilo das votações continuaria, a sçr garantido,
de modo que não vejo cláusula constitucional impeditiva nesse
aspecto.
Por lis,' não pode o júri servir (ou continuar a servir) de
leito procus„,.iue o as d emandas judiciais resultantes de uma socie­
dade injusta, na qual, lam entavelm ente, a cada dia o cidadão perde,
pouco a pouco, o que resta de sua capacidade de indignação. Deve,
sim, ser mudado, arejado, democratizado. A mitificação sim bólico/ri-
tualística do júri, historicamente, tem c omo resultado a supressão
simbólica da autonomia dos sujeitos/atores jurídicos/sociais, cons­
truindo um imaginário coercitivo, no interior do qual os conflitos
são resolvidos através de prêts-à-portcr significativos. Mas, esta é
uma dns realidades possíveis, e não a realidade, eis que esta não existe
em si mesma. O júri, bem como as demais instituições jurídicas, deve ser
examinado no contexto de uma sociedade em crise.
No final de contas, como muito bem diz A r n a ud 261, " podemos
perguntar se, no moment o de ser examinada pelo jurista, a crise real
não se viu substituída por um certo arranjo de signos que transpu­
nham a crise em um model o jurídico. [...] O que o Direito do regime
da 'paz burguesa' solicita dos juristas do Oci dente é que o conside­
rem como racional ou, caso eles não o aceitem, que o c ombatam em
nome desta mesma racionalidade que o anima". Devemos, sem
dúvida, nos recusar a aceitar essa situação. E nesse contexto que estas
reflexões se dirigem para a busca das condições e possibilidades de
261 Cfe. A rn a u d , op. cit., p. 179 e 180.

1 7 4 LENIO LUIZ STRECK


uma crítica ao saber in stitu íd o/in stitu in te que mon opo li za o i magi­
nário gnosiológico que per meia a dogmát ica ju rídica. Esta, e n q ua n­
to discurso ideológico, opera a pa ss a ge m do discurso de ao discurso
sobre2*'2. O discurso sobre, em geral, oculta seu c aráter ideológico,
c hamando a si mesmo de Teoria. P rop õ e-se, pois, uma urgente
discussão do Direito, do jú r i e não, s i mpl es men te, sobre o D ireito,
sobre o júri...

262 y er c h a u í , Marilen a de S o u z a. Id eo lo g ia e ed u ca ç ã o . C o r t e z E d i t o r a / C E D E S , n.5,


j a n / 1 9 8 0 , p. 26), Nesse artigo, C h a u í cita C l a u d e L e fo rt , p a ra q u e m um a d a s
o p e ra ç õ e s f un da m entais da ideo lo g ia c o n s i s t e em p a s s a r d o d is c u r s o d e ao
d is cu rs o so b re (assim p o d e m o s q u a s e d e t e c t a r os m o m e n t o s p e l o s q u a is o c o r r e o
s u r g i m e n to de um d is cu rs o i d e o ló g i c o : p o r e x e m p l o , q u a n d o o d is c u r s o da
u n id a d e sociai se torn ou r e a l m e n t e i m p o s s ív e l e m v i r t u d e da d iv is ã o so cial,
su rgiu um discurs o so b r e a u n i d a d e ; q u a n d o o d is c u r s o da l o u c u ra tem q u e ser
s ile n c ia d o , em seu lugar su rg e u m d i s c u r s o s o b r e a l o u c u r a ; o n d e n ã o p o d e hav er
u m d is cu rs o da revoluçã o su rg e um o u t r o s o b r e a r e v o l u ç ã o ; ali o n d e n ã o p o de
h a v e r o d is cu rs o da m u lh e r su rg e u m d i c u r s o s o b r e a m u l h e r etc.). A d is tin ç ã o
e n tr e d u a s form as de d is cu rs o p o d e p e r m i t ir q u e d i s t i n g a m o s a l g o q u e t e n d e m o s
a n ã o d ife ren cia r muito: o c o n h e c i m e n t o e o p e n s a m e n t o . O c o n h e c i m e n t o é a
a p ro p ria çã o intelectual de um cerro c a m p o d e o b je to s m a t e r ia i s ou id ea is co m o
ilndos, isto é, co m o fatos ou c o m o idéins. O p e n s a m e n t o não se a p r o p ria cie n a d a -
é u m tra balho de reflexão que se e sfo r ça p ara e l e v a r u m a e x p e r i ê n c i a (não
im p o rta qual seja) a sua in telig ib ilid a d e, a c o l h e n d o a e x p e r i ê n c i a c o m o i n d e t e r m i ­
nada, co m o n â o -sab er (e n ã o co m o i g n o r â n c i a ) q u e p e d e p a ra s e r d e t e r m i n a d o e
p e n s a d o , isto é, co m p r e e n d id o . P a ra q u e o tr a b a l h o do p e n s a m e n t o se rea liz e è
pre ciso que a exp eriência fale de si p a ra p o d e r v o lt a r - s e s o b r e si m e s m a e
co m p r e e n d e r- se . O co n h e c im e n to t e n d e a c r i s ta l i z a r - s e no d is c u r s o s o b r e ; o
p e n s a m e n t o se esforça para evitar e ss a t e n t a ç ã o a p a z í g u a d o r a , p o i s q u e m sa b e , já
viu e já disse, não pre cisa p e n sa r, v e r c d i z e r e, p o r t a n t o , t a m b é m nad a pre cisa
fazer. A exp eriência é o q u e está, a q u i e a g o r a , p e d in d o p a ra s e r visto, fala d o,
p e n s a d o e feito , conclui a filósofa p a u lis t a .

T R IB U N A L DO JÚRI 1 7 5
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TRIBUNAL DO JÚRI 1 8 3
O autor conclui este livro insíigante,
polêm ico e, no dizer de Nilo Batista,
iconoclasta, com uma abordagem acer­
ca dos aspectos político-ideológicos
que estão por detrás da utilização do
Tribunal do Júri corno instrumento que
institucionaliza e disfarça os conflitos,
arrancando-os da realidade social para
jogá-los no espaço instituído das gene­
ralizações ritualizadas do processo. É
um convite para que o leitor reflita sobre
este torm entoso tema, que tantas pai­
xões provoca no mundo jurídico, de
estudantes a profissionais do Direito.

Os editores.

Lenio Luiz Strcck « Ps .j; ■. r;v.:.;r do


Justiça do Estado do Rio G rande do Sul,
onde atua no Tribunal de Justiça. ' 1
tre e Doutor em Direito da U N IS I'.
RS. É autor dos seguintes livros: ’
dado de Injunção -A nálise crítica; Cons­
tituição - Lim ites e perspectiví
revisão (1a e 2a edições); Hermenêutica
Jurídica e(m) Crise: uma exploração
herm enêutica da construção do Direito
{1a e 2a edições); /ts interceptações
telefônicas e os direitos fundam entais -
. Constituição,- Cidadania e Viol
Súm ulas no Direito B rasileiro - Eficácia, ■
“Neste livro denso e iconoclasta, Lenio Streck convida o
leitor a visitar o Tribunal do Júri, mas proíbe-lhe o roteiro
turístico tradicional: nada de cartões postais, do tipo doze
apóstolos - doze jurados, do qual aliás Lord Devlin dizia, com
humor, implicar um Judas a cada Júri. Antes mesmo de
transpor o átrio do tribunal, vê-se o leitor concitado ao exame
da argamassa que compatibiliza e unifica os múltiplos mate­
riais construtivos: o discurso dogmático.

Quando o visitante chega à sala de audiências, vê-se convo­


cado para uma compreensão geopolítica daqueles espaços e
daqueles assentos, sobre os quais os discursos comple-
mentares (e não antagônicos, como Lenio observa) da acu­
sação e da defesa delimitam as possibilidades do veredito.

Ainda que o contexto seja tão diferente - Foucault está pen­


sando na justiça da revolução, e Lenio, em revolução na
justiça - os dois pensamentos se encontram na insubmissão
aos rituais do poder judicial e na desconfiança dos conteú­
dos que subjazem e organizam essas formas sombrias.”

Nilo Batista

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