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1043
S914A S tre ck , L e n io L u iz
T rib u n n l d o júri: s í m b o l o s e ritu a is / L en io I
St re ck : ' ’ c r n ovrn-
d ,— P orto A le g re: Li
rni cio A l ■ 001.
i y3 j > 1 ’i .
íbH 0-3
1. T rib u n a l d o Júri. I. T ít u lo
C D U 3 4 3 .1 9 5
ín d i c e a lfa b é t ic o
T r i b u n a l do j ú r i
(B ib lio tecária re s p o n s á v e l : M a r ta R o b e r t o , C R B - 1 0 / 6 5 2 )
LENIO LUIZ STRECK
Tribunal do Júri
SÍMBOLOS & RITUAIS
Q U A R T A E D IÇ Ã O
r e v is t a e m o d i f i c a d a
liv ra ria //
DO A D V O G A D O
/ editora
R e v is ã o de
R osar .e M a r q u e s Borb a
P rojeto g rá f ic o e d i a g r a m n ç ã o de
Liv raria d o A d v o g a d o E d ito ra
G r a v u r a da capa
H o n o r é D a u m i e r : Q u erem os B arrab ás
N i l o Bat ista
A p r e s e n t a ç ã o ......................................................................................................................................... 13
N o ta s i n t r o d u t ó r i a s ........................................................................................................................... 17
1. O J ú r i , o P ro ce s so P e n a ! e o D i r e i t o P e n a l n a p e r s p e c t i v a do E stad o
D e m o c r á t i c o de D i r e i t o . D a u t i l i d a d e de u m a a n á l i s e g a r a n t i s t a .
P e r s p e c t i v a s ( d e s ) c r i i n i n a l i z a d o i a s : o v e r s o e o r e v e r s o da t u t e l a p e n a l . . 21
2. A (crise da) d o g m á tica j u r í d i c a , o e n s i n o j u r í d i c o e a i d e o l o g i a : um
u n i v e r s o do s i l ê n c i o .................................................................................................................... 31
2.1. f ; ) e i d e o l o g i a ......................................................................................................... ' 31
2.2. A ica jurídica c a crise tio p a r a d i g m a ..................................................................... 34
2.3. C co m u m teórico d o s ju r i s t a s o a c r e n ç a a o Um.-ítu c o m o uni
" s is t e m a logico" e " r a c i o n a l " ........................................................................................... 40
2.4. D o g m á tica e en sin o jurí dico: a i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o de u m u n iv e rso
do s í i ê n c i o .................................................................................................................................. 42
2.5. O form alis m o d o p e n s a m e n t o d o g m á t i c o do D i r e i t o e a d if i c u l d a d e
para a c o m p r e e n s ã o da c o m p l e x i d a d e d o s f e n ô m e n o s s o c i a i s .................. 45
3. V i d a e m o r t e n o C ó d i g o P e n a l. A d o g m á t i c a j u r í d i c a e o b e m j u r í d i c o
s o b a p ro teçã o da l e i .................................................................................................................... 53
3.1. Vida e m orte nos C ó d ig o s e os c ó d i g o s da vid a e da m o rt e ...................... 53
3.2. A teoria do bem ju ríd ico e a " m i s s ã o s e c r e t a " d o D ire it o P en a l ou de
c o m o "Ln iexj es com o In sc r p iciü e; so lo p ica a los t lesa ilz o s" ............................. 56
3.3. A no v a missão (ga ra ntista ) do D i r e i t o P e nal e d o P r o c e s s o P e n a l e m
face d o Estado D e m o c r á t ic o d e D i r e i t o .............. r " ' . ........................................... 60
3.3.1. A perda da v a lid a d e (não r e c e p ç ã o ) de tip os p e n a i s .................................... 62
3.3.2. A (necessária) a p lica çã o d o s p r in c íp io s da p r o p o r c i o n a li d a d e e da
ra zoabilid ade no D ireit o P enal . ............................................................................. 64
3.3.3. A inco nstitucion alic la d e da r e i n c i d ê n c i a ? .......................................................... 71
3.3.4. A (r e)discu ssão do a lca nce da p r i s ã o c a u t e l a r n o E s t a d o D e m o c r á t i c o
de D i r e i t o .............................................................................................................................. 72
4. O T r i b u n a l do Júri - o r ig e m , c o m p o s i ç ã o e c r í t i c a s ............................................... 75
4.1. A o r ig e m do júri e o d ireito a l i e n í g e n a ..................................................................... 75
4.1.1. O jú ri e a com m on hm> - In g la te rr a e E s ta d o s U n i d o s ................................... 75
4.1.2. O jú ri na França .............................................................................................................. 79
4.1.3. O júri em P o r t u g a l ........................................................................................................... 81
4.1.4. O júri na E s p a n h a ........................................................................................................... 84
4.2. O jú ri no B r a s i l ..................................................................................................................... 86
^ 4.3. T ribu nal P o p u la r n o Brasil: p r ó s c c o n t r a s - p o lê m i c a s e m i t o s ................ 90
4.3.1. O s m it os da v e r d a d e re al e da n e u t r a l id a d e j u d i c i a l ............... ...... 92
y 4,3.2. A d is c rim in a ç ã o d o j ú r i .................................................................................................. 95
„<• 4.4. A c o m p o s i ç ã o d o T r i b u n a l do Júri ........................................................................ ... 97
4.5. O s j u ra d o s e a rep re se n ta ti v i d a d e s o c i a l ................................................................. 98
4.6. O corpo de ju ra dos e o e stab ele c im ento de um " p a d rã o de n o r m a l id a d e " 100
T R IB U N A L D O JÚRI 1 3
rais-globalizantes colocam em xeque a perspectiva intervencionis-
ta-promoved ora-transform adora do Estado D e m o crático de Direito.
Nesse sentido, é im portante que qualquer análise que se faça sobre
o Direito e a dogmática jurídica passe pelo crivo desse novo modelo
de Direito, que põe à disposição do cam po jurídico os m ecanism os
necessários para o resgate das promessas da m od ern id ad e e dos
direitos sociais e fundam entais do. Estado Social que não se realizou
em nosso país. Dito de outro modo: no Brasil, a m od ern idade é
tardia e arcaica, onde o Estado Social, invenção capitalista para
am algam ar a crise do Estado Liberal, foi (e continua sendo) um
simulacro.
Isto faz com que o Direito passe a ser visto com o um im portan
te fator de transformação social. Há que se ab andonar a perspectiva
liobbcsim ia do direito penal e processual penal. Ou seja, o direito
penal não deve colocar o jurista em uma en cru zilh ad a, na qual
tenha que optar entre civilização e barbárie. Por isso, o Direito deve
ser visto com o um sistema de garantias. F,m nosso país, em face da
crise de paradigma vivíeb p d a dogmática ju ríd ica, ou seja, do
esgotam ento do modelo 1 ndivídualista cte Direito, 6 in dis
pensável uma ampla íill (constitucional) das n orm as cio
sistema. A partir da Constituição, que estabelece um novo modelo
de produção de direito, deve ser feita a readeq u ação das normas
pertencentes ao velho modelo. Quantas n orm as penais perderam
sua validade (Ferrajoli) com o advento do Estado D em ocrático de
Direito? Qual a conseqüência da secularização do Direito, prod uzi
do por esse novo modelo de Direito, no âm bito do direito penal e
processual penal? E as norm as processuais? P rod u zid as há mais de
cinqüenta anos, estarão elas em consonância com os princípios
constitucionais? Estarão elas sendo (devidam ente) interpretadas em
conform ktade com a Constituição? Estas são algum as questões que
se apresentam para o debate no desenvolvim ento destas reflexões.
A par de todas essas discussões afetas à crise do Direito em
seus mais diversos aspectos - como, por exem plo, a questão do
ensino jurídico, a crise da teoria do bem ju rídico, a m issão secreta
do direito penal, a antigarantista teoria acerca da responsabilidade
do indivíduo, a ritualística do júri com o recu peração/ instituição da
"sociedade-perm itid a", o problema da representatividade social no
júri traduzido na expressão "m atem -se entre vós que nós os ju lgare
mos entre n ós" - e às condições de possibilidade de uma ruptura do
paradigma liberal-norma ti vista, segue-se a preocupação com as
(necessárias) mudanças mvestrutura jurídico-form al do Tribunal do
O A utor,
T RIBU N A L D O JÚ RI 1 5
Notas introdutórias
TRIBUNAL DO JÚRI 1 7
Assim, destas reflexões cabe ressaltar alguns pontos:
1. Entendendo que o discurso n orm a tiv o do ju risdicism o se
apóia em um conju nto de enu nciad os lingüísticos, logicamente
elaborados, os primeiros passos se en ca m in h am para a elucidação
de termos tais como propriedade versus vida, a teoria do bem
jurídico, a inserção da questão da crise do listado, do Direito e da
dogmática jurídica, etc., no interior do sistema jurídico. Tal procedi
mento busca a com preensão de tais in d icadores no interior das
práticas judiciais e que corro boram / en gen d ram o sentido com um
teórico dos juristas.
2. Nessa linha, procura-se tratar, em segu im en to, em vista da
necessidade da separação da clássica dicotornia m undo sistêm ico
versus m undo da vidn, das relações entre o C ód igo Penal e a
sociedade civil, a partir de uma visão de totalidade, em que emerge
a questão crucial da responsabilidade do indivíduo com o detentor
do "livre arbítrio", diante do bem e do mal. Essa problemática
engloba, im plicitam ente, à evidência, uma critica à idéia cie um
legislador5 como instância de neutralidade e de racionalidade.
3. A seguir, é traçado um perfil dogm ático, histórico e com p a
rado do Tribunal cio júri, caracterizando-o no Brasil com o (uma)
instância legitimadora das formas de tratamento de processos
sociais, tais como o privilégio da propriedade em confronto com a
vida; a "cria çã o" do direito penal do autor em d etrim ento cio direito
penal do fato e os discursos dos atores ju ríd icos que nele atuam.
Nesse sentido, a abordagem situa o Tribunal do Júri dentro da
tradição antropológica que define os rituais com o expressão funda
mental da ordem social em que em ergem , através da contribuição
de Victor Turner. São fundam entais, por outro lado, para a com
preensão dessa análise simbólica do júri e das relações sociais, os
estudos de Cornelius Castoriaclis.
5 Q u a n d o me refiro à figura do " l e g is la d o r " , estou cien te da p ro b lem á tica
re lacio n a d a ao " m ito do leg is la d o r r a c io n a l" e su a s " t r e z e c a r a c te r ís t i c a s " , m uito
b e m en fo ca d a s e iro n iz a d a s - p o r S a n t ia g o N in o e F erraz Jr. T r a t a -s e , c o n f o rm e
F erraz Jr, " de uma c o n s t ru ç ã o d o g m á t i c a qu e não se c o n fu n d e co m o l eg is la d or
n o rm a tiv o (o ato j u rid ic a m e n te c o m p e t e n te c o n f o r m e o o r d e n a m e n t o ) ne m co m
leg islador real (a vo n tad e que de fato po sitiva n o rm a s) . E um a fig u ra in term éd ia ,
qu e funciona co m o u m terceiro m e ta lin g ü ístico em face da língua n o r m a ti v a (LN)
e da lín g u a-reatid a de (LR). A eie a h e r m e n ê u t ic a se re p o rt a q u a n d o fala qu e "o
leg is la d or p re te n d e qu e ..." , "a i n ten ç ão do l e g is la d o r é q u e . . ." ou m esm o "a m ens
leg is nos diz qu e..." . C o n s u lta r , para ta nto, Ferraz Jr., T é rcío S a m p a i o . In trod u ção no
estu d o do d ireito . São P a ulo, Atlas, 1989, p. 254/5,
I
II
4, Busca-se, desse modo, d ep reen d er, tanto n o plano das
práticas profissionais - leia-se juizes, p ro to m o res, advogados, etc, -,
com o no plano dos agentes sociais n ão a tin gid o s d iretam en te por
esse com plexo de significações (Castoriadis), que o universo discur
sivo obtido limita-se a avaliar as d im en sões m e ra m e n te sintom áti
cas, 011 seja, do que aparece (M arilena Chauí). Tal perspectiva
obrigatoriamente remete o trabalho à d iscussão da categoria "rep re
sentações", que são entendidas com o con stitu in tes do real, uma vez
que seria trair a objetividade c on sid erar os agen tes sociais com o não
tendo representações, pois os agentes sociais têm um "v iv id o " que
não constitui a verdade com pleta daquilo que eles fazem, mas que,
no entanto, faz parte da verdade de sua prática (Pierre Bourdieu).
Em vista disso, o esforço d esenvolvid o nestas reflexões se dirige à
produção de parâmetros alternativos para a av aliação de determ i
n ados fatos sociais, que são, via de regra, ap oia d os em estereótipos
produzidos no interior da ideologia das classes d om inan tes, no qual
os não-detenlores do saber/pod er/lei síío su btraíd os em sua p ossibili-
dnsle de co}i’,j'i'i,p"cFio í!uc •■Tirfis rires en tre as instituições e
os agentes , Í n í i »> •• » assim , ■ ; ' v a din âm ica da estrutura
ideológico h » *. ;quc >o que ela • - t. ■ c iaim en te determ inada e
que, para exphca-la, e indispensável chegar até seus determ inantes,
procurando, porém, não perder os m ecan ism o s pelos quais ela
recebe e responde a sua própria d eterm in a ção (M iriam Limoeiro
Cardoso).
5. Nessa linha, o im aginário p ro d u z id o pelo Tribu n al do Júri,
buscando estabelecer (os) padrões de c o m p o rta m en to da sociedade,
oculta a gênese de sua ação interessada, ob stacu liz an d o, com isso, a
instituição de uma razão com unicativa (H aberm as), pela qual seria
possível elucidar os efeitos cia prática ju rídica (em sua interação)
com o m undo das ações cotidianas.
Enfim, a opção por uma trajetória interd isciplinar significa
uma alternativa teórica conseqü ente, para não correr o risco da
unidade positivista e de um ecletism o n ão -co n seq ü en te , que supõe
abordagens diferenciadas, sem, no entanto, a d eq u ar-se a uma racio
nalidade elucidativa do cotidiano cio sentido c o m u m teórico dos
juristas.
T R IB U N A L DO JÚRI 1 9
1 . O Júri, o Processo Penal e o Direito Penal
na perspectiva do Estado D em ocrático
de Direito. Da utilidade de uma análise
garaniista. Perspectivas
(des)criminalizadoras: o verso e o
reverso da tutela penal.
TRIBUNAL DO JÚRI 2 1
perceberam bem essa problem ática. Com efeito, e n te n d e ele que o
papel de garantia do Direito tornou-se hoje possível pela específica
com plexidade de sua estrutura form al, que é m arca d a, nos ordena
mentos de constituição rígida, por um a dupla artificialid ade: não só
pelo caráter positivei das norm as produzidas, que é a característica
específica do positivismo jurídico, mas tam bém pela sua sujeição ao
Direito, que é a característica específica do Estado C on stitucion al de
Direito, onde a própria produção jurídica é d isciplin ad a por nor
mas, já não apenas formais, com o tam bém su bstan ciais, de Direito
positivo. São, em suma, os próprios m odelos axio ló g ico s do Direito
Positivo, e não só os seus conteúdos contingentes - o seu "d ever ser",
e não apenas o seu "ser" - que no Estado Constitucional de Direito são
incorporados no ordenamento, como Direito sobre o Direito, sob a
forma de limites e vínculos jurídicos de produção ju rídica.
Assim, graças a esta dupla artificialidade - do seu " s e r " e do
seu "dever se r" - a legalidade positiva ou form al .do E stad o C onsti
tucional de Direito mudou de natureza: já não é só condicionante,
mas também é eia própria condicionada por v ín c u lo s ju rídicos não
só formais, corno tam bém substanciais. Para Ferrajoü, podemos
cham ar "m o d e lo " ou "sistem a garan íisia", em op o sição ao paleo-
juspositivismo, a esse sistema de legalidade, a q u e esta dupla
artificialidade confere u m papel de garantia relativam en te ao Direi
to ilegítimo7. Graças a ele, o Direito co n tem p orân eo não programa
P aulo. C u rso d e D ireito C o n stitu cion al. S ã o P aulo, M allieiro s, 1996, p, 435. G u erra
Filho, W illis Sa n tia g o . D ireito s f u n d a m e n t a is , p r o c e s s o e p rin cíp io da p r o p o r c i o
n a lida d e. In: D os d ireito s hu m n iw s nos d ire ito s fu n d a m e n ta is . W i ll i s S a n t i a g o G uerra
F ilh o (org). Porto A legre , Livraria do A d v o g a d o , 1 9 9 7; V i e i r a , O s c a r Vilheno.
N e o lib e ra lis m o e E stad o de D ireito. In: R ev ista B rasileira d e C iê n c ia s C rim in a is n. 14
- a b r-ju n /9 6 . São P aulo, Ed. R evis ta dos T rib u n a is, 1996, 2 0 1 - 2 1 4 ; C a d e m a rlo ri,
Sérg io . E stad o d e D ireito e L eg itim id ad e: um a a b o rd a g em g a r a n tis ta . P o r t o A leg re,
Liv raria do A d v o g a d o , 1999; C a r v a lh o , Saio. P en a e G a ra n tia s: um a leitu ra do
g a ra n tism o d e L u ig i F errajoli no B r a s il R io de Ja n eiro , L u m e n Ju ris, 2 00 1 .
' N esse s en tid o é im p o rta n te que se c o lo q u e um a a d v e r t ê n c i a : o g a r a n ti s m o é
visto, n o s lim ite s desta a b o r d a g e m , c o m o um a m a n e i r a d e fa z e r d e m o c ra c i a
d e n tro do D ire ito e a partir do Direito. C om o "tipo ideal", o g a r a n tis m o reforça a
resp o n sa b ilid a d e ética do op era d o r do D ireito. É e v i d e n t e q u e o g a r a n t i s m o n ã o se
c o nstitu í e m uma p an acéia para a cura d os " m a l e s " d e c o r r e n t e s de u m E stado
S o c ia l qu e n ã o h o u v e no Brasil, cujos re flexos a r r a z a d o r e s d c v e (r ia )m i n d ig n a r os
lid ad o res do Direito. O q u e o co rre é q u e, em fa c e da a g u d a c ris e d o p ositiv ism o
ju ríd ic o -n o rm a tiv ista , não se pode desp rez a r um co n trib u to p a ra a o p e r a c io n a lid a d e do
D ireito do p o r te do g a ran tism o, q u e p reg a , en tre ou tras co isa s, q u e a C o n s titu iç ã o (em sua
totalid ad e) d ev e ser o p arad ig m a h erm en êu tico de d efin iç ã o do q u e seja um a n orm a válida
ou in v álid a, p ro p icia n d o toda u m a filtrag em dns n orm as in fra c o n s titu c io n a is q u e , em bora
v ig en tes, p erd em sua v alid ad e em f a c e da L ei M aior. D ito de o u t r o m o d o , o g a ra n tis m o
n ão significa um retorno a um " E s t a d o b o m " que já h o u v e . N o s p a ís e s a v a n ç a d o s
TR IB U N A L DO JÚRI 2 3
restrições de liberdade do cidadão e à correi ativa extensão dos limites
impostos à atividade repressiva; Estado e Direito m áxim o na esfera
social, graças à maximização das expectativas materiais dos cidadãos
e à correia tiva expansão das obrigações publicas de satisfazê-las.
A evidência, Ferrajoli trabalha com a idéia de que a legitim ação
do Direito e do Estado pro v êm de fora ou d esd e a bajo, entendida
com o a soma heterogênea de pessoas, de forças e de classes sociais.
Ou seja, com o con trapon to às teorias au lo p oiética s do D ireito, que
visam, mediante um direito do tipo "re ile x iv o ", a não adaptar o
Direito aos anseios da sociedade, mas, sim, aos lim ites do estnb-
Jislinierii-, reduzindo, com isto, a com plexidad e social, Ferrajoli parte
de uma perspectiva heteropoiética, ó dizer, d esd e um pon to de vista
externo, que significa sobretudo dar prim azia axiológica à pessoa, e,
portanto, de todas as suas específicas e diversas identidades, assim
com o da variedade e pluralidade de pontos de vista externos
expressos por ela.
É relativamente fácil, alerta o professor italiano, delinear um
m od elo garantista em abstrato e traduzir seus p rincípios em normas
constitucionais dotadas de claridade e capazes de d eslegitim ar, com
relativa certeza, as norm as inferiores que se apartem dele. Difícil,
porem , é m odelar as Dcnicas legislativas e ju diciais a deq u adas para
assegurar efetividade aos princípios constitucionais e os Direitos
Fundam entais consagrados por eles. Por isso, faz uma forte crítica à
ciência penalista que teoriza sobre o m on opólio penal e ju dicial da
violência institucional, que esquece as práticas au toritárias e as
ilegalidades da polícia, confunde a im agem n orm ativa do Direito
Penal como técnica de tutela de Direitos Fundamentais e de minimiza-
ção da violência: o sistema jurídico por si só não pode garantir
absolutamente nada; as garantias não podem estar sustentadas apenas
em norm as; nenhum Direito fundam ental p o d e sobrev iver concre-
tamente sem o apoio da luta-pela realização por parte de quem é seu
titular e da solidariedade da força política e social, conclui.
Essa idéia tem com o suporte a relevante circunstância de que
cabe à Constituição fornecer o fundam ento último do ordenam ento
m ais seve ra. P or isso, en q u a n to no âm b ito dos d ireito s socinis e eco n ô m ico s se v iv e hoje
um p eríod o d e reflu xo, no D ireito P en al a silu n çn o é o p o s ta . O q u e aí se tem é a
d efin ição de n o v o s tipos p e n a is , a erim in alização de n o v a s a t iv i d a d e s e m i n ú m e
ros seto r es na vida so cial, o e n f r a q u e c im e n t o d os p rin cíp io s da l e g a li d a d e e da
tip ic id ade por m eio d o re c u rs o a reg r a s sem c o n c e it o s p r e c is o s , o e n c u r t a m e n t o
d as fases d e i n v e s tig a ç ã o crim in a l e i n s tr u çã o p r o c e s s u a l e i n v e r s ã o d o ô n u s da
p ro v a " . Cfe. Fari a, J o s é E d u a r d o . G l o b a l i z a ç ã o e d ir e it o s h u m a n o s . In: E spnço
A berto. O E sta d o d e S ã o P aulo, p. A -2, 11 out 97. (grifei)
TRIBUNAL DO J0«J 2 5
das normas infraconstitucionais, deve ficar claro que as garantias
penais e processuais não podem ser m ais que um sistema de
proibições inderrogáveis:12 proibições de castigar, de privar a liber
dade, de registrar, de censurar ou de sancionar de algum a ou outra
forma, se não concorrerem as cond ições estabelecidas pela lei em
garantia do cidadão frente aos abusos de poder. A lém de in d errogá
veis ou invioláveis, estes Direitos são indisponíveis ou inalienáveis.
Má que se referir, por outro lado, que, se de um lado há um
limite claramente garantísta proveniente do m o d ern o Estado D e
mocrático de Direito, que não pod e ser ultrapassado, há tam bém uma
áren reservada à coerção est nhü no qual o Estndo uno pode renunciar.
N ecessário lembrar, com Ferreira da C unha, que aC onstituição -
entendida no seu sentido com prom issárío, dirigente e social - não
deve ser vista sim plesm ente de forma unilateral, preocupada ape
nas com a defesa do indivíduo potencial crim inoso (ou acusado de
tal), mas também com as potenciais vítim as e com a defesa de toda
a sociedade. Assim como teria legitim idade para conter o poder
p rim e iro grau que co n d e n a ra doír n i i O' u > i >
roubo qu.iKlicndo. O a có rd ã o fico
D efeso c, ao ju iz, tom ar j<or co n fesso ré
condição, por si só, mio d e s in a u u b e t r .... .......
acerca da au toria e da m aterialid a d e d o s fa to s qu e p reten d a in v estig a r, e p elo s qu ais
p reten d a resp o n sab ilizar crim inalm cnte o cidadão". Rei. Nevvton Bra sil de L e ão. Na
m e sm a linha, a có rd ã o s n. 2 9 7 0 1 5 9 6 8 , rei. A lfr e d o F orster, e 11 . 2 9 7 0 1 6 7 3 5 , rei.
T u p i n a m b á Pinto de A ze v ed o .
12 Para se ter uma idéia da n ecessid ad e d essa filtr a g e m d as n orm as in fracon stitu cion n is,
a d e q u a n d o -s e -a s ao m o d e lo de d ir eito pró prio d o E s t a d o D e m o crá tico de D ireito,
b a s ta que se dê uma ex a m i n a d a na E x p o s iç ã o d e M o t iv o s do C ó d i g o d e P ro ces so
Penal em vigor: " A R E F O R M A D O P R O C E S S O P E N A L V I G E N T E - D e p a r co m a
n e c e s s id a d e de c o o r d e n a ç ã o sistem á tica das re g r a s d o p r o c e s s o p e n a l n u m C ó d i
go ú n ico para todo o Brasil, im p u n h a o seu a ju s ta m e n t o ao o b je ti v o de m a io r
efic iência e en ergia da ação rep ressiv a do Estndo co ntra os q u e d elin q ü em . A s
n ossas v ig en tes leis de p ro cesso p en a l a sseg u ram nos réus, ain da q u e c o lh id o s cm flagrante
ou con fu n d id os peia ev id ên cia das p ro v a s, um tão c x le n s o catálog o d e g a r a n tia s e fa v o r e s ,
que a rep ressão se tonta, n ecessariam en te, d efeitu o sa e retard atária , d ec o rr en d o d a í um
in d ireto estím u lo à ex p a n são da crim in alid ad e. U rg e qu e seja ab olid a a inju s tificá vel
prim az ia do in ieresse do i n d iv íd u o s o b r e 0 da tutela so cial. Não se pode co n tin u a r a
con tem p orizar ruiu p scu d od /rcitos in d iv id u a is em p reju íz o do bem com u m . O ind iv íd u o,
p r in cip a lm en te q u a n d o vem se m o stra r reb el de à d is cip lin a ju rí d i c o - p e n a l da vida
em so cied ad e, não p o de invoca r, em face do E st a d o , ou tras f ra n q u ia s ou im u nida-
des além d aqu ela s q u e o a ss e g u re m co ntra o e x e r cício do p o d e r p ú b l i c o fora da
m edida recla m ada pelo in teresse social. Este o critério qu e p re sidiu à e la b o ra ç ã o
d o p re se n te p ro je to de Có dig o, N o seu texto, n ão sã o rep ro d u z id a s as fórm u las
trad icion ais de um m al av isad o fn v o re cim cn to legal nos c r im in o s o s.( ...)" .( E x p o s iç ã o de
M o tiv o s do C ó d ig o de Pro cesso P ena l, p u b licad a no D iário O fic ia l da U n i ã o de 13
de o u tu b r o de 1941, que resultou no D ec reto -L ei n. 3.689, d e 3 -1 0 -1 9 4 1 ) . (grifei)
2 6 LBNIO LU ÍZSTRECK
crim inalizador, autorizando-o ap en a s à tutela de objetos legítimos,
teria tam bém legitimidade para lhe im p o r um m ínim o irrenunciá-
vel de tutela. Só esta con cepção estaria em sintonia com a atual
função da Constituição. As críticas às im po siçõ es de cru ninalízação
radicam ainda numa herança da visão liberal pura das relações
entre Sociedade e Estado e da C on stitu ição co m o mera garantidora
de om issões estaduais, visão que se d ev e considerar, hoje, m anifes
tamente insuficiente.13
Na mesma linha, Costa A n d ra d e14 assevera que "a C onstitui
ção não é apenas matriz cie linhas de força no sentido da descrimi-
nalização. Os m esm os p rin cípios con stitu cion ais e as m esm as categorias
político-dositrinnis têm o seu reverso que a p on ta no sen tido contrário. Há
bens jurídicos de relevo social tão in eq u ív oco e a gressões tão
intoleráveis que o Estado não pode deixar de as pôr a coberto do
direito criminal, sob pena, com o acentua M u ller-D ietz, de frustrar
as suas obrigações no dom ínio da D asein sv orsorg e" .
É nesse sentido que C an o tilh o e V ital M o reira vão d izer que a
Constituição parece apontar para uma ob rigação estadual (isto é,
legislativa) de detesa penal de valores econ ôm icos even tualm ente
ainda não defendidos, tendo particu larm en te em aten ção que as
novas formações econôm icas con tid as na C on stitu ição exigirão
naturalmente novas form as de proteção penal ou afim . C ontinuo,
pois, convencido de que o texto constitucional, ao c o m a n d a r (ordem
de legislar) a atividade do le g islad or,15 traz im plícita - por exem plo,
no cam po do direito penal - a necessária h ierarqu iza ção que deve
13 Cfe. F e rreir a da Cu nh a, M a r ia da C o n c e i ç ã o . C o n s titu iç ã o c C rim e. U m a p e r s p e c ti
va da c rim in aiização c da descrim in alizn çn o. P orto, U n i v e r s i d a d e C a t ó lic a P o rt u g u e s a ,
19 95, P . 30 6
14 Cfe. C o sta A nd ra d e, M a n u e l da. O N o v o C ó d i g o P ena l e a M o d e r n a C rim in o lo -
gia, In: O N ovo C ódigo P ena! P ortu g u ês c L eg isla çã o C o m p le m en ta r, fo r n a d a s d e D ireito
C rim in al, C en tro d e E studos C rim in a is, L isb o a, P etro n y , 1 9 8 3 , p. 118 - g r i f e i
15 E n t e n d o que o d ir eito, no E sta do D e m o c r á t ic o d e D ireito , te m um a fu n ção
tran sfo rm ad ora, sen do, p o is , u m p lu s n o r m a t i v o e m re l a ç ã o ao E s t a d o S o c ia l e ao
E sta d o Liberal. A C o n stitu ição e s t a b e le c e as d ir e tr iz e s e .co n ô m ico -p o lítie a s para o
d e s e n v o l v i m e n t o do E stad o. C o m o b e m ressalta C a n o t i lh o (em su a p rim eira fase),
o p rin cíp io da d em o cra cia e c o n ô m ic a e so cial c o n stitu i u m a a u to riz a ç ã o c o n s t itu
cional no sen tid o de o l e g is la d o r d e m o c r á t i c o e os o u t r o s ó r g ã o s e n c a rre g a d o s da
co n c re tiz a ç ã o p olííico -con stiiu cio n al a d o ta r em as m ed id as n ece ss á ria s vara a ev o lu çã o
da ordem con stitu cion al sob a ótica de u m a "ju stiça con stitu cío n n t" n as v es tes de um a
"ju stiç a social" . O p rin cíp io da d e m o c r a c i a e c o n ô m i c a e so ci al im p õ e tarefas ao
E stad o e justific a que elas .sejam tarefas de c o n f o r m a ç ã o , t r a n s f o r m a ç ã o e m o d e r
n iza çã o d a s es tru tu ra s e co n ô m ica s e so cia is , de form a a p r o m o v e r a i g u a ld a d e
real en tre os cidadãos. Cfe. C an o tilh o , J. j . G o m e s . D ire ito C o n s tit u c io n a l. C o im b ra,
A h n e d i n a , 1996, p, 468.
T R IB U N A L DO JÚ RI 27
ser feita na distribuição dos crim es e das penas. N esse sentido, vem
a magistral lição de Palazzo, para quem , en quan to as indicações
constitucionais de fundo (que atuam no sentido da descrim inaliza-
ção) são, ainda, expressão de um quadro constitucional característi
co cio Estado Liberal de Direito, pressu pon d o, outrossim , uma
implícita relação de "te n s ã o " entre política criminal e direito penal,
as vertentes orientadas no sen tido da criiuinnliznção traduzem a expressão
de unia visão bem diversa do papel da C on stitu ição no sistem a penal: as
obrigações de tutela penal no confronto de determinados bens jurídi
cos, não infreqüentemente característicos do novo quadro de valores
constitucionais e, seja como for, sempre de relevância constitucional,
contribuem para oferecer a imagem de um Estado em penhado e ativo
(inclusive penalm ente) na persecução de maior núm ero de metas
propiciadoras de transform ação social e da tutela de interesses de
dim ensões ultraindividual e coletivas, exaltando, continuada mente,
o papel instrum ental do direito pen al com respeito à política crim inal,
ainda quando sob os auspícios - por assim dizer - da C on stituição.16
O jurista italiano afirma, ainda, que juntes às ex pressas cláu su
las de penalização (registre-se que, no Brasil, há o com an d o ex p re s
so de penalizar com rigor os crimes hediondos, da tortura, do
racismo, etc.) existem onirns que, tacitaiuente, obrigam o legislador a
estabelecer penaiizações. Isto porque o que se acha no bojo da ordem
constitucional e im põe a proteção penalística d o s valores, m esm o
não sendo objeto de uma cláusula expressa de penalização, há, de
qu alqu er modo, de ser en ten d id o com o p arte in tegran te do que fo i
expressam en te afirm ado pelo co n stitu in te.17
Dito de outro m odo, não há dúvida, pois, que as baterias do
Direito Penal do Estado D em ocrático de Direito devem ser d irecion a
das p referen tem en te para o c o mim te dos crim es que im pedem a realização
dos objetivos con stitucion ais do Estado. Ou seja, no Estado D em o cráti
co de Direito - instituído no art. 1° da C F/88 - devem ser com batidos
os crimes q u e fom en tam a in ju stiça social, o que significa afirmar que
o direito penal deve ser reforçado naquilo que diz respeito aos
crimes que prom ovem e/ou su sten tam as d esiguald ades sociais.
Nessa linha, nada m elhor que a lição do próprio Ferrajoii18
quando trata da eleição dos novos bens ju ríd ico s fu n dam en tais no
Estado Democrático de Direito, afirm an do que um program a de
T R IB U N A L DO JÚ RI 2 9
ção (erradicação da pobreza, red u ção das d esigu ald ad es sociais e
regionais, direito à saúde, etc.), os delitos que devem ser penaliza
dos com (mais) rigor são ju stam ente os que, de uma m aneira ou
outra, ob staculizam /dificultam /im pedem a concretização dos obje
tivos do Estado Social e Democrático.
3 0 LENIO LU1ZSTRECK
2 . A (crise da) dogmática jurídica, o ensino
jurídico e a ideologia: 11111 universo ‘
do silêncio
TRIBUNAL DO JÚRI 3 1
medida em que colocam em perigo os interesses das classes que
dom inam as relações sociais. Assim , na m edid a em que se fizer essa
correlação, evidenciar-se-á a tomada de p osição ideológica de cada
dispositivo do Código (com o deste num todo), frente aos diversos
setores conflitantes.
Daí que, com lucidez, Cirino dos S a n to s23 vai denunciar que
"os objetivos aparentes do Direito Penal, expressos na proteção dos
interesses e necessidades essenciais para a existência do indivíduo e
da sociedade, têm certos pressupostos, co m o as noções de unidade
(e não de divisão) social, de identidade (e não de contradição) de
classes, de igualdade (e não de d esiguald ad e real) entre os c o m p o
nentes das classes sociais e de liberdade (e não de opressão indivi
dual). Definitivamente, é inegável qu e num a sociedade-dividida o bem
ju ríd ico tem caráter de classe. Tal con statação perm ite o apio\ ei la
m en to crítico de conceito de bem ju rídico, no am p lo espectro de
funções que, como visto, lhe correspon d e".
Isso nos leva, conseqü entem ente, à d iscussão (para m im sem
pre atual) cio papel da ideologia na so cied ad e e, principalm ente, no
Direito. A ideologia "não é apenas a rep resen tação imaginária do
real para servir ao exercício da dom in açã o en r uma sociedade
fundada na luta de classes, com o não é apen as a inversão im aginá
ria do processo histórico na qual as idéias ocu p ariam o lu gar dos
agentes históricos reais. /I ideologia, fo rm a específica do im aginário
social m oderno, é a m aneira necessária pela qu al os agen tes sociftis
representam para si mesm os o ap arecer social, econômico-e-■político-;- de tal
sorte que essa-ap arên cia (que não devem os sim p lesm en te tom ar como
sinônim os de ilusão ou fa lsid a d e), p or ser o m odo im ediato e abstrato de
m anifestação do processe hi^ iónco, é o o c iü ta m e n to o u a d is s itiiiila ç ã o do
real. [...] Universalizando o particu lar pelo a p a g a m en to das diferen
ças e contradições, a ideologia ganha coerência e força porque é um
discurso lacunar que não pod e ser p r e e n c h id o " 24.
Dito de outro m odo, as contradições do Direito e da dogmática
jurídica que o instrumentaliza não " a p a r e c e m " aos olhos do jurista,
uma vez que há um processo de ju stificação/ fu n d am en ta ção da
"coerên cia" tio seu próprio discurso. E sse p ro cesso de ju stificaçã o não
23 Ver S a n t o s , Ju a re z C irin o dos. C rh u in olog in ra d ical. R io de J a n e i r o , Forense.
t r i b u n a l d o jú r i 3 3
interdição, há um cu rador que se su bstitu i ao discu rso. Esse atravessa
m ento/atalho, ou seja, essa interdição (de sentido) institui uma
espécie de narcisism o discu rsivo, no interior do qual o discurso
ideológico/alienado/a licn ante é narcísico, co m o por exem plo a
frase veja você (a realidade!) coiu seus olhos, co m o bem exem plifica o
m esm o Zizek. O simbólico esta colonizado por um d iscurso ideoló
gico que não permite a possibilidade de o sujeito dar-se conta do
mundo.
Pode-se dizer, a partir disso, que_a ideologia tem eficácia na
medida em que não a percebem os. Por isso não su rpreend e o fato -
e essa questão será analisada mais am iúde no subtítulo 3.1. adiante
- de o jurista manusear o C ódigo Penal durante anos a fio, sem se
dar conta de algumas "o b v ied a d es" (nem tão " ó b v ia s " assim!),
com o a de que o ato de furtar uma galinha recebe uma apenação
expressivam ente mais gravosa (1 a 4 anos de reclusão) do que o
abandono de um recém -nascido, com resultado de m orte (6 meses a
2 anos de detenção). Na mesma linha, vale ressaltar que, recente
mente, foi editada a Lei n° 9.426/96, que agravou sobrem od o as
penas para os delitos de fu rto e recep tação de autom óvel. Observe-se
que, pela nova lei, furtar um autom óvel e levá-lo para outra
unidade da Federação submeterá o agente à pena de 3 a 8 anos de
reclusão. Ao mesmo tempo, o ato de causar d olosam en te uma lesão
grave da qual resulte d eform idade perm an en te, en ferm idade incu
rável, perda de membro ou aborto, ocasiona uma pena de 2 a 8 anos
de reclusão. O problema não está som ente na d esp roporção das
penas. Como já dito, a com inação da pena de reclu são é bem mais
gravosa, em todos os sentidos, que a de dctençãol E essa, dentre
outras, que Batista designa com o m issão secreta do direito penal,
acentuando que, numa sociedade com contrastes sociais tão profun
dos , o d n eito penal estará protegen do relações escolhidos pela classe que
dom ina tais relações sociais, ainda que aparen tem certa un iversal idade27.
TRIBUNAL DO JÚRI 3 5
Isto é efeito ou causa? O certo c que, con form e lembra Faria31,
"preparado para resolver questões i n t e r i n d i v i d u a s -.nunca,as
eolelivrs, o direito oficial não alcança os se to res m ais desfavoreci
dos, e ii marginulÍ7açâo jurídica a que foram con d en ad os esses
setores nada mais do que o su bp roduto de sua m arginalização
social e econôm ica". Ou seja, os setores d esfav orecid os som ente são
alcançados pelo (longo) braço do Direito Penal. D aí que, com p le
m enta C am pilongo32, existem m udanças sociais, políticas e econ ô
m icas que, processadas em ritmo acelerado, tornam obsoletos os
stan dards estruturais das abordagens formalistas.
Lidamos, pois, ainda, com um (modelo) m odo de produção de
D ireito33 de cunho liberabn orm ativista-in dividua lista, forjado para
resolver disputas/conflitos interindividuais, ou, co m o diriam os
manuais de D ireito/disputas entre C a io e Tício ou onde Caio é o
TRIBU N A L DO JÚRI 3 7
sua atuação e as necessidades sociais, con sid eran d o-se totalmente
insuficiente a afirmação formal da existência de determ inados
direitos, uma vez que o ‘-c ' c h i n i 1 >\'ste<nia a partii de uma
agencio coativa disposta a n p’n i ^ 't>rma> nu ’, a , Não sui pieemle,
pois, que institutos jurídicos im portantes co m o o m andado de
injunção e n substituição processual, previstos na nova Constitui
ção, tenham sido redefinidos e tornados ineficazes pelos estab-
lishm enl jitrídico-dogmático.
Para que se alcance a efetivação do Direito (e dos direitos) e se
faça a devida filtragem das n orm as iníracon stítu cion ais tomando
por base a Constituição Federal, n ecessitam os, prim eiro, superar
esse paradigma que se baseia no m odo liberal-individualista-nor-
mativista de produção de Direito. Ou seja, no âm bito do campo
ju ríd ico 36 trabalha-se ainda com a perspectiva de que, embora o
Estado tenha mudado de feição, o Direito perfaz um cam inho a
latere, à revelia das transform ações advindas de um Estado inter-
vencionista-prom ovedor37.
Esse cam p o ju rídico s e co n stitu i e m u m corijt " a d o s os p e r s o n a g e n s que
t azem, interp retam e apl i cam a lei, tran sm item ne n i o s j ur í di c os i> so ciali
zam j og ador es que se e n co n tram no j og o dc no in terio r d o qual os
con flitos d ã o-lh e d in am ism o , ma s tam b ém i n, c o m o . uni ca m p o : os
jo g a d o r e s em c o m p etiçã o é que d is p u t a m en tr e si, m a s n ã o o c a m p o e m si m esm o ;
p o rt a n lo , a d is p u ta r e a f ir m a e a ind a forta lece o c a m p o . T o d o s os j o g a d o r e s num
c a m p o ju ríd ico têm d e te r m i n a d o c o n j u n t o d e d is p o s iç õ e s q u e o r ie n t a m suas
açõ es. Tais d isposiç õ es são tra ça d a s a t r a v é s cie d is p u t a s do c a m p o co m ou tros
c a m p o s so ciais e de co nflitos in tern o s , o q u e c o n stitu i o h ab itu s d e s s e c a m p o .C o n -
su lta r Bourdieu, Pierre. T he force o f lh e L aw : toum rd a S o cio lo g y o f lh e ju rid ic a l field .
T a m b é m D elazaí, Y v cs e T rub ek, Davi d M. A re e s t r u t u r a ç ã o g lo b a l e o D ireito, In
D ireito e G lobalização econ ôm ica. J o s é E d u a r d o Faria (org ). São P a ulo, M a lh eiros ,
1996, p. 34 e segs.
37 Para uma m elh or c o m p r e e n s ã o d o p r o b l e m a , é i m p o r t a n t e re ferir que cada
s o cied a d e tem um cam po ju ríd ico qu e o e n g e n d r a . P o r c o n s e g u in t e , este cam po
ju ríd ic o , a exem p lo do que W a r a t d e n o m i n a d e s e n t id o c o m u m teórico dos
juri sta s, será o corpits que s u s t e n t a rá o m o d o l ib e ra l- in d iv id u a lis ta - n o rm a t iv ist a
de p ro d u çã o do Direito, so ld an d o eis fiss u ra s d eco rren tes do ab ism o q u e c x isle en tre o
d iscu rso ju ríd ic o e a (d eficitária) es tru tu ra so cial. E diz er , o b a b d u s nã o fica ad strito ao
cam p o ju ríd ic o ; penetra por to d as as fresta s do m odo d c p ro d u çã o d o direito. C o m o
d ecorrên cia, a dogm ática ju ríd ica terá o seu p a p e l d e fin id o no p ro ce ss o de
e fe tiv a çã o (ou não) dos d ir eit os e m c o n f o r m i d a d e c o m o m odo d e p ro d u çã o do
Dire ito vigen te em noss a so c ie d a d e , qu e, p o r sua v ez , será in stru m en taliza
d o /s u s te n ta d o pelo re s p e ctiv o cam p o ju r íd ic o , que r e s p o n d e pela a r t ic u la ç ã o de
in stituições e prática s no co n t e x t o d a s q u ais oc o rr e o p ro ce ss o de f o r m u l a ç ã o da
lei, e m um p rim eiro m om ento, da p r o d u ç ã o d o se n tid o d essa m e s m a lei, em um
s e g u n d o m o m en to , e, em m om errto s su b s e q ü e n t e s , de su a aplica,ção co tidiana
pelos tribu nais. Consulta r, para ta nto, Streck , Len io Luiz, H erm en êu tica ju ríd ica
E (m ) Crise. 2- ed. Porto A legre, Liv raria do A d v o g a d o E dito ra, 2000.
TRIBU N A L DO JÚ R I 39
situações normativas hipotéticas, ao agir de m o d o " té c n ic o " , isto é,
se m preferências valorativas e im une às paixões políticas, o juiz não
se limita a atuar tendo em vista apenas a c on secu ção das garantias
formais, da certeza jurídica e do im pério da lei, postu lad os funda
mentais do modelo/paradigma liberal-burguês do Estado de Direito;
ele também desempenha o papel de um profissional "co m p eten te"
na integração dos atores con sid erad os "d isfu n c io n a is " na vida
social41.
Dito de outro modo, parece que a dogmática-ju rídica - en q u a n
to encarregada de instrum entalizar o Direito - não se im porta com o
fato de que •seus significados perdem , dia a dia, a necessária
densidade semântica42 (sócio-histórica). C om m uita propriedade,
Zuleta Puceiro nos auxilia na busca de respostas, acen tuan d o que o
que de/ine a Ciência do Direito ê sua prim azia h egem ôn ica no
sistema de regras e definições estipulativas a partir das quais se-
podem pensar as realidades sociais. Isto explica a preten são exclu si
vista do paradigm a dogm ático e suas resistências aos processos de
m udanças internas e extern as43.
TRIBU N A L DO JÚRI 4 1
2.4. D ogm ática e ensino ju ríd ico : a in s titu c io n a liz a ç ã o de um
universo do silêncio
i / Ramos Filho ch am a a at en ção para o fato de cjue boa p a rte da magistr atura
brasileira ainda d efen d e que, a pen as n p iica n do o q u e diz a lei, o Ju iz " n ã o teria
re sp o n sa b ilid a d e " , "n ão teria cu lp a ", co m tod as as i m p lica çõ e s psica n a líticas que
tal e xp ressão possa possuir. Boa part e das elites r e tró g ra d a s b r a sile ir a s ainda tem
ne st e parad ig m a de juiz "lib era l" (n ão por sua po stu ra po lítica, m as po rqu e
co eren te co m o ca pitalism o de corte liberal) seu ideal, até p o r q u e estan do o
p a rla m e n to d o m in a d o pelas classes d o m in a n t e s , há q u e se im p o r regras rígidas
aos m ag is tr a d o s fixando-os o m ais possív el à lite r a lid a d e d as leis. S etores dessas
ch ies , ain da não sa tisfeitas, estão d efen d en d o qu e e s sú m u la s d os T rib u n ais S u periores
sejnin "vinciiJnntcs" das decisões dos in feriores g ra u s de. ju risd ição, com 0 m esm o objetivo
d e con trolar a h erm en êu tica, sem pre n 0 in teresse da m an u ten ção do s ta tu f epio, ou sejn, dc
acord o com os in teresses das cnuindus dominantes. C fe. R a m o s Filh o, W ilson. Direito
p ó s - m o d e m o : caos criativo e neolib eralism o. tn: D ireito e n eolib eralism o. Fdemeutos
p ara 1imn leitu ra interdiscíplinm -. M arqu e s Filho, A g o s ti n h o R a m a l h o ei nlli. C u riti
ba, Edibej, 1996.
TRIBUN AL DO JÚRI 4 5
disposição da comunidade jurídica uma coletânea d e "prcts-à-porter
significativos", representados por citações de resum os de ementas,
normalmente uma a favor e outra contra d eterm inad a tese. Assim,
por exemplo, sobre'se ligação direta para faz er mu veículo funcionar
c o n s t it u i- s e nu não em fu rto qualificado (art, 155, § 4<}, III) podem ser
encontradas duas posições: uma no sentido de que o fu rto será
sim ples, e a outra no sentido de que será qualificado,.. Para aferição do
conceito de mulher honesta de que trata o artigo 217 do Código
Penal, discute-se, no âmbito da dogmática penal, se m oça de dezessete
anos que trabalha fora é ou não ingênua. Para tanto, são "colo cad as" à
disposição do usuário duas posições: um a no sentido de que a moça é
ingênua (RT 524/338) e outra de que não é ingênua... (RJTJSP 50/365).
A jurisprudência, porém, já decidiu que a vítim a que freq ü en ta bailes
e dorm e fo r a de casa não é ingênua c inexperiente (E TJM T , out, 1986, p.
254), e que, para a configuração do crime de sedução, a vítima deve
ser virgem e casta (RT 543/350). Descobre-se, tam bém , que chave fa lsa
é um instrum ento, sob a form a de chave ou não, que se destina a abrir
fech ad u ras. Aliás, sobre esse tema - chave falsa - arm ou-se na
doutrina e na jim ; .i íênoia uma discussão tão ferrenha, que o
Supremo Tríbun; -al teve que intervir, decidindo que a chave
verdadeira, reíirad le estava guardada ou escondida, n ã o pode ser
considerada chave falsa...
Com um pouco de atenção e acuidade, pode«-.se*.per.ceber~que
grande parte das sentenças, pareceres, petições e acórdãõs são
resolvidos através de citações cio tipo "Nessa linha, a jurisprudência é
pacífica (e seguem-se várias citações padronizadas de núm eros de
RTs, RTJs etc.), ou ]á decidiu o Tribunal tal que legítim a defesa não se
m ede nnlim etricam ente (RT 604/327), ou ainda que abraço configura o
crim e de atentado violento ao pudor, cuja pena - ressalte-se, varia de seis
a dez anos de reclusão (RT 567/293; R j J J S P 81/351) (sic). São citados,
no mais das vezes, tão-somente os ementários, produtos, em expres
sivo número, de outros ementários. Desse.-.modo, a dogmática
jurídica, enquanto reprodutora de uma cultura estandardizada,
torna-se refém de um pensam ento m etafísico, esqu ecend o-se de um dos
teoremas fundamentais da hermenêutica, que é a diferença ontoló-
gica55. ■ ..H
Com esse._iipo de procedimento, são ignorados o contexto
histórico e social no qual estão inseridos os atores ju rídicos (acusa
do, vítima, juiz, promotor, advogado, etc.), bem com o não se indaga
55 So b r e a diferen ça on tológica e as co n se q ü ê n cia s d e sse " e s q u e c i m e n t o " , ver
S tre ck , Hcrmenêuiicn Jurídica, op, cit., e m especia l o p o sfácio .
TRIBU N A L D O JÚRI 47
seu prestígio. Desde antigamente, continua o autor, os ju ristas têm
considerado a autoridade dos estudiosos (quer dizer, deles p ró
prios) como um elem ento fundamental para conhecer o direito, até
o ponto que é comum considerar a doutrina dos autores com o
"fontes do direito", junto à lei e à jurisprudência, N os países de
direito codificado, a doutrina já não tem, com o fonte, a importância
que teve em outras épocas, porém igualm ente as alusões a tal ou
qual autor são com uns, tanto nos textos dos advogados, com o nas
sentenças judiciais58. Isto permite, na arguta observação de Alf
Ross59 que os autores de textos ju ríd icas fa ça m política ju ríd ica encoberta,
no apresentar como m eras descrições do direito positivo suas interpretações
pessoais baseadas em valorações. Tais interpretações, com plem enta,
são usadas logo por advogados, juizes e prom otores com o argu
mentos retóricos em favor da solução jurídica para o caso em que
atuam. Nesse sentido, alerta Guibourg, asign ar dem asiada ím portau -
cia a la autoridad en m atéria cien tífica o filo só fica engendra esiancarnienio
y term ina m atando al conocim iento.
É relevante frisar, destarte, que toda esta problemática se forja
no interior do que se pode chamar de estnblishm eni ju rídico, que
atua de forma difusa, b uscan d o uma espécie de "un iform ização de
sentido'-', que, segundo Bonrdieu e Passcron60 tem uma relação
direta com um fator norm ativo de poder, o potler de violência
sim bólica. Trata-se do pod er capaz de im por significações com o
legítimas, dissim ulando as relações de força que estão no funda
mento da própria força. Não nos en gan em os quanto ao sentido
deste poder, alerta Ferraz Jr. Segundo ele, não se trata de coação,
pois pelo poder de violên cia sim bólica o em issor não co-age, isto é, não se
su bstitu í ao outro. Q uem age é o receptor. Poder aqui é controle. Para
que haja controle, é preciso que o receptor conserve as suas
possibilidades de ação, mas aja conform e o sentido, isto é , o
esquema de ação do em issor. Por isso, ao controlar, o em issor não
elimina as alternativas de ação do receptor, mas as neutraliza.
Assim, conclui o ju sfilósofo paulista, controlar é neutralizar, fa z e r com
que, em bora conservadas com o possíveis, certas alternativas não sejam
levadas em con sideração61.
Cfe. G u ib o u r g , R icard o A. ei nlti. tntroáucción rã co n o cim ien to ju ríd ico. B uenos
Aires, Ed. A strea, 1984, p. 147.
-’9 Cfe. Ross, Alf, S obre el d erech o y ln ju stic ia . B u en o s A ires, E u d e b a , 1963, p. 45.
60 Bourdieu , P ie rre e P assero n , Jean C la u d e. A rep ro d u çã o: elem en tos pnrn u m a teoria
do sistem a de en sin o. São P a u lo , E d. F ra n cisco A lv es, 1 9 75 , p . 1 9 -2 4 .
61 Cfe. F erraz Jr, In trod u ção a o es tu d o d o D ireito, op. cit., p. 251.
TRIBUNAL DO JÚRI 4 9
termos: aprendido o abc do Processo e do Direito Civil, já está
habilitado a viver de inventários e cobranças sem m aio r indagação.
[...] É claro que este operário anônim o do Direito é necessário, mas
por que deve ser inconsciente? [,..] Sua atividade passa a ser
meramente formai, sem- influência no processo cie tom ada de
decisão e no planejamento. O jurista farin ado par escolas, convém
lem brar, não será apenas advogado: será tam bém o ju iz qu e fará parte,
afinal de contas, de um dos poderes políticos do estado. A alienação do
jurista,.deste modo, colabora também na supressão das garantias de-
direitos, E que o centro de equilíbrio social (ou de legitimação) é
colocado na eficiência, não no bem do hom em . C om eça-se a falar
num bem comum que só existe nas estatísticas dos planejadores,
mas que a pobreza dos centros urbanos desm ente. E, em nome
desse bem comum, alcançável pela eficiência, sacrificam -se alguns
valores que talvez não fosse inútil p re serv a r"65. Repito a pergunta
feita anteriormente: o que m udou de lá para cã?
Apesar de tudo isso, o Direito, instrum entalizado p elo discurso
dogrnálico/merafísico/objetifjcante, consegue (ainda) aparecer, aos
olhos do usuário/operador do Direito, como, ao m esm o tempo,
seguro, justo, abrangente, sem fissuras, e, acima de tudo, técnico e
funcional. Em contrapartida, o preço que se paga é alto, uma vez
que ingressamos, assim "num universo de silêncio: um universo do
texto, do texto que sabe tudo, que diz tudo, que faz as perguntas e
dá as respostas. Nestes termos, conclui Legendre, os juristas fazem
um trabalho doutorai no sentido escolástico da palavra. Em outras
palavras, fazendo seu trabalho, eles não fa z em o D ireito; apenas
eniretêm o m istério divino do D ireito, ou seja, o prin cípio de uma
autoridade eterna fo r a do tempo e m istificante, con form e as exigências dos
m ecanism os de controle burocrático num. contexto cen tralista"66.
C om o estas reflexões têm o fito de fazer uma crítica ao
imaginário gnosiológico dos juristas, que está perm eado pelo pen
samento dogmático do Direito, Ferraz jr. foi tão feliz na abordagem
dessa questão, que é imprescindível transcrevê-lo:
a Dogmática é um pensam ento tecnológico e que, nestes
termos, está às voltas com a questão da decidibilidade. No entanto,
isto não quer dizer que o verdadeiro esteja daí totalm ente excluído.
O que tentamos demonstrar é que o discurso d ogm ático não é um
discurso meramente informativo, no sentido de que o emissor
limita-se a comunicar uma informação sem se p reocu p ar com o
65 C o nsultar Faria, J o sé E d u a r d o . /I reforma do en sin o ju ríd ico , op. cit, p. 37,
66 Cfe. F erraz Jr., F u n ção Socinl da D ogin áiica ju ríd ica , op. cit, p. 178.
S/ Id em , p. 182.
68 Cfe. W a ra t, Lu is Alberto. El j ardin de los s e n d e r o s q u e se b ifu rcan . In R evista
C on trn d og m áticas 4/5. F IS C /A L M E D , v . 2, 1985, p. 75.
TRIBU N A L DO JÚRI 5 1
3 . Vida e morte no Direito Penal. A dogmática
jurídica e o bem jurídico sob a proteção da lei
TRIBUNAL DO JÚRI 53
que nenhum dos dois crimes é da com petência do Tribunal do Júri.
E mais: enquanto o seqüestro é considerado crim e hediondo, o
homicídio (simples) não o é.
Os crimes que são da com petência do Tribunal do Júri são os
constantes no Título "dos crimes contra a pessoa", mnis especifica
mente no Capítulo "dos crimes contra a vida". Nesse Capítulo, uma
das subdivisões do Título I, estão inseridos: o hom icídio simples,
com penas que variam entre seis e vinte anos; o hom icídio qualifica
do, com penas entre doze e trinta anos; induzim ento, instigação ou
auxílio ao suicídio, com penas entre dois e seis anos; o infantioídio,
sancionado entre dois e seis anos; os vários tipos de aborto; e a
tentativa de homicídio.
Existem duas maneiras de com eter um delito: de torrnn dolosa
(querer ou assumir o risco de produzir o resultado) e de forma
culposa (praticar o delito por im prudência, negligência ou imperí-
cia). Assim, somente irão a julgamento pelo Tribunal do júri os
autores dos crimes citados anteriormente se foram com etidos dolo
samente. Ao comparar a natureza dos crimes com as respectivas
penas, vè-se - corno ia referido anteriormente - que a quof.tão ene
exsurge é a certe/n r!e que o Código Penai sanciona com mais rigor
os delitos que lerem o direito de propriedade/0 chegando cm
po n tu a l tom a có digo colcha de ret alhos, In: F olha d c S ão P au lo, 2 6 .0 7.97 , .3-2,
VVnlter Cen eviva auxilia na d iscu ssão , ao d iz er q u e a d o sa g e m p u n itiv a d o C ó dig o
Penal é parad oxal. D epois de elenca r os p a ra d o x o s resu ltan tes de vá rio s tipos
penais e as res pectivas pen as, co m e n ta o art. 33, p elo qu al a p en a de reclu sã o
p o d e ser em regim e fechado, qu e é o b rig a tó rio para c o n d e n a ç õ e s su p e r i o r e s a oito
a a o s , e a pena de d eten ção é c u m p r id a em regim e a b e rto ou s e m i - a b e r l o (em
colônia agrícola, casa de alb e r g ad o ou ou tro e s t a b e le c im e n t o a d e q u a d o , con form e
o caso). Assim, "se os rapaz e s que m a tar a m o ín dio (p a ta x ó ) fo re m p u n i d o s com
pena en tre q u atro e oito anos, p o d erão , d esde o prin cíp io, çu m p ri-la e m regim e
sem i-a bert o. A [ítulo de c u rio sid a d e c o m p a r a tiv a , co m p leto ; a big am ia é a penada
com reclu são de dois a seis an os, e o ro u b o , m ed ia n te o u so de a rm a de fog o, mas
sem cau sar d ano à vítima, resulta em rec lu sã o de q u atro a dez a n o s " . S arrem ata o
professor paulista: "O s e x e m p lo s d e m o n st ra m a im p o rtâ n c ia de re p e n sa r a dosi-
metria pena! br asileira". In: L im ites da ileg alid ad e. Folha de S ão P au lo , 6 .9 .9 7 , p. 3-2.
/0 A p aríe do C ódigo Penal B rasileiro que regu la os d iv erso s crim es e as
respectiv as penas vigora d esde 1941. D o e x a m e dos d iv e r so s tipos pen ais, pode-se
perceber n itid am en te a g ra nde p re o cu p a çã o d o legislad o r em p ro te g e r m ais a
p ro p ried a d e p rivad a do que a sa ú d e e a in teg rid ad e física d o cid ad ão . Esse d ad o
se torna relevante na m edida em que v iv em o s em uma s o c i e d a d e e m que a
pre ocu p a çã o com a p ro p ried ad e pri vada a s s u m e p ro p o r ç õ e s sig n ificativ as. Ass im,
por exem p lo, o ato de a lg ué m furtar um a bo lsa, um reló gio ou uma cam is a , será
a p en ad o , de acord o com o d is posto no art igo 155 do C ó d ig o P enai, com unia pena
que varia de um a qu atr o anos de re c lu são e m ulia. P a ra d o x a l m e n t e , se o furto de
um b e m móvel rec ebe do listado uma p u n ição tão d rástica, o m esm o não se pode
TRIBU N A L DO JÚKt 5 5
homicídio, ou, ainda, entre o furto de autom óveis, agora agravado
se o veículo for levado a outro Estado (pena de 3 a 8 anos) e a lesão
dolosa grave que cause, p, ex., perda ou inutilização de m embro
(pena de 2 a 8 anos).
Tudo isso é relevante dem onstrar, na m edida em que - repita-
se - não se pode ignorar o tipo de sociedade em que vige o Código
Penal, e o (modelo) modo de produção de Direito prevaleceu te,
questões que terão significativos desdo bram en tos em termos de
julgam ento pelo Tribunal do Júri, nos quais o pap el das classes sociais,
em bora preponderante, fica r á subsitm ido nas brum as dos sím bolos e dos
rituais produzidos pelos diferentes ag en tes em litígio.
TRIBUNAL DO JÚRI 5 7
Como dito, essa classificação em títulos e capítulos não provém
de uma neutralidade do legislador e m uito m enos de sua (pretensa)
racionalidade. Esse trabalho de classificação em títulos e capítulos é
seletivo, é dizer, optar por castigar/ apenar com m aior ou menor
rigor determinados delitos é 1 1111 trabalho que refletirá o lipo de
sociedade desejada velo "legislador-eu carrcgado-de-fazer-a-lei"71, Alguns
exemplos demonstram isso muito claram ente, com o é o caso do
crime de sonegação fiscal, olhado com extrema benevolência pelo
eslablishm eutl Chega às raias do absurdo saber que, em um país em
que os tributos deveriam ser usados com o meio de distribuição de
riqueza e fator de justiça social, as 460 pessoas mais ricas do Brasil
detêm, juntas, um patrimônio de 26,7 bilhões de dólares, maior que a
soma dos PíBs do Uruguai, do Paraguai e da Bolívia. Ou 6% cio PIB
brasileiro. Selecionando-se os 50 mais ricos deste grupo, descobre-
se que seus patrimônios som am 12 bilhões de dólares. Estes 50 ricos
pagam de imposto de renda apenas 32,5 milhões de dólares. Dados da
Receita dão coala de que, enquanto a classe média paga 7 real de imposto para
cada 10 reais de patrimônio, o clube dos 4f,0 rccollv' w » i ’>üe 1 real para cada
821. 0m> d Os 460 coníribi m * < , . • dem por
apenas" >tal arrecadado 1 <1 > ; u. , ’’ então? O
74 P or q u e certa fo r m a çã o lú stórico -soch il con sid era d ete rm in a d o fa t o com o "crim e"?
G iz le n e N e d er tenta r es p o n d er a es sa q u estã o , d iz e n d o qu e, se não é co rret o
su p o r que a resposta a esta pergunta resolve todas as qu estões relativas à criminali
dade, não 6 m enos correto afirmar qu e a sua colocação encerra um conjunto de
indicadores e variáveis que permitem u m en fo que mais abrangente e hu manista da
questão. Acrescenta que é a partir da análise dos pro cess os históricos de formações
sociais particulares que po deremos d esen v olv er urna interpretação sobre a questão
criminal e o Direito num enfoque his tórico-so ciológico capaz de d ar conta da
dinâmica social que "m ov im en ta" o Direito. Este enfo que não deve trilhar os
caminhos da busca das "causas socioecon ôm icas" da criminalidade. Seu conteúdo
sociológico não é dado por esta busca, m as pela ca pacidade de se tornar transparente
a luta cie classes. Portanto, antes de procurar os condirfhamentos so cia is e e c o n ô m i
co s da cr im inalid ad e, é p reciso p o litiz a r a d iscu ssão, no sen tid o de qu e esies con d icion a
m en tos funAnm na an álise da estru tu ração d e umn dada so cied ad e com n id en tificação dos
d iferen tes ag en tes histú rico-socinis que com p õem sua arq u itetu ra c dn co rrela çã o de forças
so ciais e p olíticas h istoricam en te p resen tes. Por isto, con clu i, é ne cessá r io pensa r o
D ireito não s o m en te com o D ire ito esta ta l; situá-lo c o m o co n ju n to de práticas
po lí ticos-s ociaís e ideológicas; e, s o b r e tu d o , re lacion á -lo à luta de class es, interce
d en d o e sen do interced ido na e pe la d in â m ica h istó rico -so cial, co lo ca -n o s diante
de um a visão do D ireito e do E stad o c o m o su jeit os a c o n d io n a m e n t o s históricos
q u e são firmados por ag entes em m o v i m e n t o d e n tro de um a f o rm a çã o social
ciada. In: D iscurso ju ríd ico e ordem b u rg u esa. P orto A le g re, F a b r is , 1995, p. 156 e 157.
/3 D a d os da Revista Veja, edição n 8 1.365, de 9.11.94, p. 106 e segs. Para uma visão
mais abrangente e crítica acerca da crim inalid ad e tributária ver, Pinto, Emerson de
Lima, A C rim in alidade E con flm ico-T ribu tária. Porto A leg re, Liv. do A d v o g a d o , 2001.
T R IB U N A L D O JÚRÍ 5 9
diminuição na pena (art. 16 CP). Por que isto? P orque no Brasil têm
leis que são feita s para os que aparecem na R evista C aras e leis que são
feita s para os que aparecem no N otícias Populares...
Vê-se, pois, para quem (e contra quem ) funciona o sistema. O
sistema penal (re)age dc forma seletiva em face da conílituosidade
social. Zaííaroni nos diz que ninguém com pra um apartam ento
impressionado por uma bela m aquete apresentada por uma em pre
sa notoriamente insolvente. No entanto, concluí o m estre, com p ra
mos a suposta segurança que o sistema penal nos vende, que c a
em presa de mais notória insolvência estrutural em nossa civiliza
ção78.De ressaltar que, embora o processo de form ação de uma lei
ou de um código seja, via de regra, bem estudado pelas classes
dominantes/dirigentes, objetivando que a lei apareça aos usuários
com o neutra e coerente, há casos em que esse processo é menos
sutil. Foi o caso da lei que enquadrou o seqüestro com o crime
hediondo, logo após o seqüestro do em presário carioca Rubens
M edína, no ano de 1990. Do processo de om issão no atacado em
relação às extremas injustiças sociais do país, as elites dirigentes
passaram, ao processo de indignação no varejo, uma vez que um de
seus pares foi duramente atingido pela onda de crimes, e exigiram,
im ediatamente, uma lei que m elhor as protegesse. Foram, de
pronto, atendidas. Ivlesmo raciocínio se aplica à transform ação do
hom icídio qualificado em crime hediondo, que ocorreu em virtude
do crime que vitimou a atriz Daniela Perez.
TRIBUN AL DO JÚRI 6 1
substancial das normas produzidas e ex p rim em , ao m esm o tempo,
os fins para que está orientado esse m od ern o artifício que é o Estado
Constitucional de Direito,"
A partir desta ótica garantista, explica Ferrajoii, o juiz está
sujeito somente à lei enquanto válida, isto é, coerente com a Consti
tuição: "A interpretação judicial da lei é sem p re um juízo sobre a
própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever e a responsabili
dade de escolher somente os significados válidos, ou seja (os
significados que são) com patíveis com as norm as su bstan ciais e com os
direitos fundam entais por ela estabelecidos". Fazer isto, segundo o
mestre italiano, c fazer uma interpretação da lei conform e à C onstitui
ção, e quando n contradição é insanável, é dever do juiz (ou do Tribunal)
declará-la inconstitucional. Portanto, conclui, já não é uma sujeição à
lei de tipo acrítico e incondicional, mas sim sujeição, antes de mais
nada, à Constituição, que im põe aos tribunais e aos juizes a crítica
das leis inválidas por m eio da sua rein terpretação em sen tido con stitu cio
nal (interpretação conforme) ou a sua denúncia por ínconstituciona-
lidade (invalidade total).
TRIBU N A L DO JÚRI 6 3
os artigos 18, 20, 21, 22, 23, 26, 28, 29, 30, 31, 3 2 , 3 4 , 35, 36, 37, 38, 39,
40 a 49, 61 a 67, e 70. Mais ainda, C opetti salienta, com acerto, a
irrelevância pena] das contravenções, p or con stitu írem indevida
ingerência estatal nos mais diversos setores da vida privad a, v iolan
do o princípio da secularização do direito. C hama atenção, ainda, para
a falta de ofensividade dos delitos abarcados pela Lei 9.099 / 9 5.86
3.3.2. ,4 (necessária) apíicnção dos p rin cípios cia p rop orcion alid ad e
e da razoabilidadc no D ireito Penal
Há que se ter claro, assim , qite é a C on stitu ição, com sua
característica v a 1o ra ti v a - vi ncu 1a t iv a, que deve m oldar a in terpretação
das leis já existen tes e a elaboração das n ovas.'[Não é possível, por
exem plo, que o simples tato de um furto ser com etid o por duas
p essoas tenha o condão de duplicar a pena desse delitõjj com o
com patibilizar esse paradoxo com os p rin cípios da p rop orcion alidade, da
r azo ab ilida de e. da isonom ia, todos com assen to na C on stitu ição da
R epública? N esse sentido, acatando parecer de m inha lavra, a 5a
Câmara Crim inal do TJRS decidiu que a d up licaçã o da p en a na
hipótese de concurso çle pessoas no crim e cie furto fere os princípios
da proporcionalidade, da raz oabilidade e da i s o n o m i a :
'T U R T O Q U A L IF IC A D O P E Í.O C O N C U R S O .
A g r i d e a o s p r in c íp io s da p r o p o r c i o n a li d a d e e da i s o n o m i a . A f ix a ç ã o de
a u m e n t o m a io r a o furto em c o n c u r s o d o qu e a o r o u b o e m i g u a l co n d içã o .
A p lic a -s e o p e r c e n t u a l d e a u m e n t o d e s t e à q u ele. A t e n u a n t e p o d e d e ix a r a
p e n a a q u é m d o m ín i m o . D e r a m p arc ia l p r o v i m e n t o a o s a p e lo s .
A p e l a ç ã o - C r i m e n° 7 0 0 0 0 2 8 4 4 5 5 - T a p e s / R S
VOTO
Des. A M I L T O N B U E N O D E C A R V A L H O - R e l a t o r - O j u í z o d e r e p r o v a ç ã o
e m e r g e n t e d o a to c o n d e n a t ó r io si n g u l a r m e r e c e c o n f i r m a ç ã o . A r e f o r m a
a lca n ç a u n i c a m e n t e o m o m e n t o da q u alificad o ra .
D ú v i d a inex is te: o s a p e la n t e s p r a t ic a ra m o d elito d e s c r i t o na peça in a u g u ra l.
(...) ^
A s s im , inex is te d ú v i d a p r o c e s s u a l - h o u v e p rática d e f u r t o e m c o n c u r s o .
R e s t a a p r e c ia r a te se le v a n t a d a p e lo P r o c u r a d o r d e J u s t i ç a L E N I O L UIZ
S T R E C K : o sistem a a d m i t e a q u a l if i c a d o r a d o c o n c u r s o e m d e lit o s de furt o?
O P r o c u r a d o r de J u s t i ç a L E N I O S T R E C K - b r il h a n t e m e n t e c o m o d e c o s t u m e
- e n te n d e q u e o r e c o n h e c i m e n t o da q u a l if i c a d o r a e m p a u t a ( q u e d u p lica a
p e n a do furt o simplesjjrtgnrfe o p rin c ip io dn proporcion alidade em co n fro n to com a
m ajoração d o roubo (a m b a s i d ê n tica s no c o n c u r s o ) qu e a lter a a pena d e 1/3 até
m e ta d e . E m tal c o n t e x t o o a u m e n t o - e m analo g ia e c o r r i g i n d o a i r r a c i o n a l i
d a d e le g is la tiva - n o fu rto , d e v e ser igual ao r o u b o f j
6 4 LEN IO LU IZ STRECK
E is a liç ã o d e L E N IO q u e é ad o ta d a :
'D o a c r é s c i m o da p e n a d e c o r r e n t e da q u a l if i c a d o r a do fu rto (c o n c u r so de
p es soa s )
C o m efeito, e n q u a n t o no m érito a s e n t e n ç a está c o rre ta , no qu e tang e a
e n te n d i m e n t o acerca da q u a l if i c a d o r a d o c r i m e d e furto o p r o c e s s o m ere ce
um a re f l e x ã o m ais a p ro f u n d a d a .
N es te ca so , uma q u e s t ã o d e e x t r e m a re lev ân cia ju ríd ica d e v e ser posta à tona.
T ra t a -s e da fla g rante v io la ç ã o d o p ri n c íp i o d a p r o p o r c i o n a li d a d e re p re
sen ta d a pela d u p lic a çã o tia p en a jia h i p ó te s e de c o n c u r s o de p e s s o a s n o crim e
de furto.
T e n h o , po is , q u e fere a C o n s t i t u i ç ã o - e n te n d id a e m su a pri n cip io lo g ia
(m a te ria lid a d e ) - a p r e v is ã o legal d o C ó d i g o P e n a l q u e d e te r m i n a a d u p l i c a
çã o d a pena toda v ez que o furt o for co m e tid o p o r d u a s o u m ais p esso as, o
q u e , a liá s , acarreta u m p a r a d o x o e m n o s s o sis t e m a p en a l. E n t r e tantas
d is to rçõ e s qu e ex iste m n o C ó d i g o P e n a l (e nas l e is e s p a r s a s ), e s te é um p on to
q u e tem sid o d eix ad o de lado -ms d isc u s sõ e s d a q u ilo q u e h o je d en o m in a d o s de
'n ecessária con stitu cio n a liza çãn do d ire ito pen al'. V a l e fri sa r, n e sse sen tid o , que
n o re c en te C o n g r e s s o d c D ireito P enal e P r o c e s s u a l P e n a i o c o r r id o em
C u ritib a n o s d ia s 1, 2 e 3 de s e t e m b r o d e 1 .9 99, a q u e s t ã o a tin e n í e à
d is cre p â n cia en tr e as d iv e r sa s q u a l if i c a d o r a s d o C ó d i g o P e n a l veio à ba ila,
e m d e b a t e p r o m o v i d o en tr e A m ilto n B u en o d e C a r v a l h o , Saio de C a r v a lh o ,
A f r a n i o j a r d i m , J a m e s T tibenclilak e o P ro c u ra d o r d e J u s t i ç a sig natá rio . A
c o n c l u s ã o a p o n t o u para a [urg en te - e n e c e ssá r ia - re leiiu ra dns m ajorações de
p eita d ec o rren tes dns q u a lifica d o ra s c d a s c a u s a s cie a u m e n to d e p e n a , ten d o por
b a s e o p rin cíp io da p r o p o r c i o n a li d a d e J
C o m e fe íio , ess e p a r a d o x o d e c o rre do fato d e q u e, en q u a n to no fu rto a
q u alificad o ra d o c o n c u r s o d e p e s s o a s tem o c o n d ã o de d u p l i c a r a p en a , no
r o u b o a m a jo r a n te (cau sa d e a u m e n t o d e p e n a ) , n e s t e c a s o d e c o n c u r s o de
a g e n t e , é de (a p e n a s - s/c) 1/ 3, p o d e n d o ir a o m á x i m o até a m eta d e.
A t e n t e m o - n o s p a ra a d is c r e p â n c i a : tan to na f u r t o com o no rou b o, o con cu rso de~'
l a g en tes q u a lific a ; n o p rim eiro , a p e n a d o b ra ; no seg u n d o , a. p en a f i c a acrescid a de 1/3.
I O ra, no f u r t o a p re se n ça d e m ais de u m a p esso a n ão co lo ca em risco a in teg rid ad e
f í s ic a d a v ítim a, e, sim fa c ilit a o a g ir su b tra e n te ; já no rou b o, a p re se n ç a d e m ais
p esso a s colocam em risco so b rem o d o a in te g rid a d e f ís ic a da v ítim a. N ão o b sta n te isto,
o C ó d ig o P en al v aloriza m ais a coisa (p ro p r ied a d e p r iv a d a ) q u e a v id a /in teg rid a d e
física.
‘P o r isto, é n e c e s s á r io fa z er um a (re )le itu r a c o n s t i tu c i o n a l d o t i p o p en a l do
furto q u a lif ica d o (p or c o n c u r s o de a g e n t e s) à luz d o p r i n c íp i o da p r o p o r c i o
n a lid a d e , q u e é incito e i m a n e n t e à C o n s ti t u i ç ã o Federal. P ara tanto, m edian te
um a interpretação conforme à Constituição, e levando cm con ta o prin cípio da isonom ia
con stitucional, há qu e se redefin ir a n orm a do art. 155, § 4-, inc. IV , do C ódigo Penal.
Necessária ob servação: ente ndo, a partir da doutrina de Friedrich Mülíer, Bros
R ober to Grau e H. G. G a da m er, que/ã N O R M A é s e m p r e o r e s u lt a d o da
in t e rp r e ta ç ã o d e um. T E X T O ju ríd ic o j-n e s s e s e n t id o , m e u l iv ro H erm en êu tica
Ju r íd ic a e(m ) C rise, L iv raria do A d v o g a d o , 1999.
N ã o se está a p r o p o r aqu i - e até seria d e s p i c i e n d o a le rt a r p a ra este fato - que
o Ju d iciá rio v en h a a le g is la r, m o d i f i c a n d o o teo r do d is p o s it i v o do C ó d ig o
Penal q u e e s t a b e le c e a d u p l i c a ç ã o da p e n a n o s ca so s de f u r t o q u a lif ica d o por
c o n c u rs o d e p es so as , N a v e r d a d e , tra ta-se , nad a m a is n a d a m e n o s , do que
e l a b o r a r um a re leitu ra da lei so b os p a r â m e t r o s da d e v id a p r o p o r c i o n a li d a d e
p re vis ta na C onstituição Federa l. O m e c a n i s m o a p t o p a ra tal é o da in terpre-
TRIBUNAL DO JÚRI 6 7
p rin c íp io da iso n o m ia g a r a n t e o c i d a d ã o con tra o a r b ítr io d o s g o v e r n a n te s (o
p ri n c íp i o c o m o lim ite ao le g is la d o r ); (b) não há a g r e s s ã o a o p r i n c í p i o q u a n d o
há fu n d am en tos reais, ra cion ais e lãg icos p a ra o d iscrím e n ; (c) é in v o c á v e l em todos
o s casos em q u e n ão h a ja ig u a l tra ta m en to d ia n te da lei.
A terriss o ; há q u e b r a d o p rin c íp io da iso n o m ia n o a u m e n t o d e p e n a , pelo
c o n c u r s o de a g e n te s, no d e lito d e furt o e m co n f r o n t o c o m o r o u b o m a jo r a d o ?
S ã o tra tado s d e s i g u a l m e n t e ig uais? H á f u n d a m e n t o ló g ico , ra cio n a i, v isiv e l
m en te ju stific á v el, para o d is c r ím e n ?
A q u e st ã o p rim eira : são de tal form a p a r e c id o s ou q u a s e i d ê n t i c o s os tipos?
E m nível de c a p a t , a ú n ica m arcn d if e r e n c i a d o r a é q u e n o r o u b o se exig e
v io lên c ia , ou grave, a m ea ça , p o r q u e as d e m a i s p a l a v r a s s ã o i d ê n tic a s : su b tra ir,
v ara si on p ara o u trem , co isa a lh e ia m óvel. R o u b o , e n tã o , é u m " p lu s " ao furto:
s u b t r a ç ã o mais vio lên cia à pesso a . E p o r isso (a g r e s s ã o à p e s s o a ) a pen a é
su b s ta n c i a lm e n t e d if e re n c ia d a ( d e 1 a 4 a n o s e 4 a n o s a 1 0 anos).
M a s a p r o x i m i d a d e en tr e el es é e sp eta cu la r: s ã o c r i m e s co n t ra o p a trim ô n io -
f a z e m parte do m e s m o Título - e estão, g eog raficam en te, lad o à lado. Não
irm ãos, m as prim os, tanto que ad m itid os co m o delitos da m e s m a esp écie para
acolhim ento da co ntin uid ade en tr e eíes. Aliás, so b r e o tem a há p re ce d e n te deste
T rib u n al, acó rd ão n° 69 84 65 0 28 , da lavra do ilustre co le g a S YLV IO B A P T IS T A :
'C O N T I N U A D O . F U R T O E R O U B O . P O S S I B I L I D A D E . O c o n c e i t o d e m esm o,
p re v is to n o art. 71 d o C P , n ã o se restr in g e só à idéia de id e n t i d a d e . A b r a n g e ,
a i n d a , a d e s e m e lh a n ç a ou p n rece n ça . Desta f o r m a , é « c o n v i r q u e , en tr e as
e sp écie s e x iste n te s d e n tro d o g ê n e r o p a trim ô n io , as q u e m a is se a s s e m e l h a m
s ã o ex a ta m e n te o furto e o ro u b o . O c o r r e qu e o n ú cleo d o s d ois tip os pen ais
é e x p r e s s a d o pelo verb o s u b tra ir e peln o b je to m aterial da co is a alh eia m ó v el.
O e lem e n to, qu e a fa sta ria a i d e n tid a d e en tre as d u a s c o n d u t a s c rim in o s a s ,
p e r m i t in d o c o n c e i t u á - la s c o m o d ua s e sp é c ie s a u t ô n o m a s , a v io lê n c ia na
e x e c u ç ã o , n ã o se tra d u z n u m traço e x c lu siv o de u m a d e la s . Esta violência
tanto ex iste n o r o u b o , q u a n t o n o furt o, q u a n d o , p o r e x e m p le , há r o m p i m e n t o
d e o b st á c u lo à s u b t r a ç ã o da co is a . O ca rá ter p e s s o a l o u re al d e s s a violê n cia
i m p e d e q u e as d u a s f ig u r a s s e j a m id ên tica s , m a s n ã o n e g a a s e m e l h a n ç a que
as vincu la e a u t o riz a i n d ic á -l a s c o m o crim es d a m e s m a e s p é c i e . '
V ê-se, po is , q u e se está f ren te, em nó vel de c a p u t a d e li t o s a b s o l u t a m e n t e
p r ó x i m o s . A g o ra v e j a m o s o fato o n d e ex iste ig u a ld a d e a b s o lu ta - ca u sa de
a u m e n to :
A rt. 155... A r t 1 57 .. .
§ 4 e - A p e n a é de r e c lu s ã o d e 2 (dois ) a § 2 9 - A p è n a a u m e n t a - s e de
8 (oito ) ano s, e m u lta , se o c r i m e é co m e t id o : u m te rç o a té m e ta d e :
IV - m e d ia n t e c o n c u r s o d e d u a s II - se há o c o n c u r s o d e d ua s
ou m a is p es so as . o u m a is p e s s o a s .
D if e re n ç a ? N e n h u m a . T u d o id ê n tico : no q u a lifica r, n o f u r t o , e n o m a jo ra r, no
ro u b o , " c o n c u r s o de d u a s ou m a i s p e s s o a s " .
Q u a l o d is c u rs o p a ra o a u m e n t o cie p e n a , p e l o c o n c u r s o ? A fa c i li t a ç ã o do
d elito, i m p e d ir c o li g a ç ã o de forças, há m a io r p e r ig o s i d a d e .
M a s a i d e n tid a d e é de tal fo rm a e s p e ta c u l a r q u e os d o u t r í n a d o r e s , co m o
r eg ra, c o m e n t a m a h i p ó t e s e d o § 4 9, IV, d o a r t .155, e n o m o m e n t o da análise
do § 2- , d o art. 157, s im p le sm e n te r e m e t e m o leito r p a r a l e itu ra d o que
d is se ra m a cerca d o furto q u a l if i c a d o ou se rep e te m .
TRIBU N A L DO J ÚRI 6 9
continuidade na aplicação de um dispositivo vigente desde a
década de 40 e o texto constitucional de 1988, que agasalha os
aludidos princípios. Interpretações construtivas com o a presente
por certo sofrerão críticas, com o sofreu o Tribunal C onstitucional
da Alemanha, na decisão de 25 de fevereiro de 1975, que declarou
nula uma lei de 1974, relativam ente à p u n ibilid ade da interrupção
da gravidez (BVerfCE 39,1). O bserve-se, por outro lado, que o
"Tribunal Constitucional Federal e os Tribu n ais C onstitucionais
estaduais alemães, em casos em que a violação da C onstituição por
uma lei considerada tão grave que nem m esm o a continuação
temporária da sua vigência pareceu possível, declararam nula a lei,
' estabelecendo, sim ultaneam ente, eles próprios, unia regu lam en tação tran
sitória, para vigorar até a em issão de nm a novo lei, con form e a C onstitui
ção, ninando, desse modo, corno uma esp écie de su cedân eo do legislador.^
O acórdão em tela pode ser en q uad rado n aquilo que Lafuente
Baile denomina de sentença aditivas, pelas quais o Tribunal dá
provimento ao recurso e adiciona ao conteúdo n orm ativo da d ispo
sição impugnada uma regulação que faltava para assegurar sua
conformidade com a Constituição. Com esse tipo de decisão, o texto
da disposição legal impugnada perm anece inalterado. O Tribunal
çria uma norma e ‘ a adiciona ao texto da disposição. ,4 decisão
declarará que esta nova norm a se infere do conteúdo da C onstituição, e que
sua adição ã disposição recorrida resulta d eterm in an te para assegu rar a
constitiicion alidade d e s t a f9
Inúmeros outros exem plos cie textos ju rídico-pen ais que care
cem da devida filtragem constitucional p od eriam ser elencados.
Assim, por exemplo, não se afigura razoável que para os delitos de
furto, apropriação indébita, estelionato, som ente para citar alguns,
a ação penal seja pública incondicionada e, para os delitos de
trânsito (lesões corporais), a ação seja^de índole con d icion ad a90. Ou
seja, para os delitos contra o patrim ônio, o E stado, spon te su a, efetua
88 Ver, p a ra tanto, BvcrfG E 39 , 1; S ta n ts g m c h ts h o f do B ad ert-W ü rtten b erg ,
ESV G H , 26, 1 29, in: Baehof, O tto . E stndo d e D ireito c P od er P olítico. Boletim da
F a cu ld a d e d e D ireito d e C o im b ra, vol. LVt.
89 Cfe. L afu ente Baile, José M a ria . Lu jiidicinH zncióu Ac hi iiilerp rein ció n c o n stitu c io
nal. M ad rid, C o le x, 2000, p. 136. A g r e g u e - s e q u e há um a fro n te ir a m u ito tênu e
en tre se n ten ças aditivas, m a n i p u l a t i v a s e co n s t ru ti v a s , p o d e n d o o A c ó r d ã o em
tela, ta m b ém ser classificado na ca t e g o ria das s e n t e n ç a s m a n ip u la t iv a s .
J0 R essalte-s e, p o r re levante , n o sso e n t e n d i m e n t o de qu e, na re a lid a d e , tanto em
u m c o m o no o u tro caso, o E s t a d o n ã o d e v e a brir m ã o da t it u la r id a d e e xclu siva da
a ção penal, para não en se jar a v in g a n ça p riva d a, além d o in e r o x á v e l p ro b le m a de
a cesso à justiça qu e terão as ca m a d a s p o b re s da so cied a d e .
T R IB U N A L DO JÚ R I 7 1
"el registro de la condena una vez cumplida y su relevancia
potencial futura colocan al condenado que cum plió su condena en
inferioridad de condiciones frente al resto de la población, tanto
jurídica como fácticamente. La agravación de la pena dei segundo
delito es dificilmente explicable en términos rncionales, y la estigmati-
zación que sufre la persona perjudica su incorporación a la vida
libre". Por essa razão, o mestre argentino considera recom endável:
(1) U m a séria reflexão acerca da com p atib ilid ad e da reincidên
cia com os direitos hum anos e o rechaço de q u alq u er conseqüência
legal estigmatizante;
(2) O rechaço de conceitos ju rídicos co m o o da habitualidade e
profissionalidade genéricos (fazer do delito um m eio de vida, como
nos códigos penais da Bolívia, Costa Rica, Panam á e El Salvador);
(3)A redução de qualquer conseqüência de um delito que não se
encontre em relação razoável com a entidade do m esm o;
(i) A regulação estrita de registros de c o n d en a ç õ es e penas e a
elim inarão de qualquer anotação sobre as co n d en açõ es ou penas
q jam extintas;
O estabelecim ento de penas e s an ções ad m in istrativas para o
servidor público que forneça inform ações sobre as con d en ações e as
penas já cum pridas e extintas.
Vale registrar que a argu m en tação aqui ex p c n d íd a foi adotada
em inédita sentença proferida pelo juiz de Direito M a u ro Borba, da
Com arca de Erexim, deixando de aplicar o d ispositiv o penal que
estabelece a reincidência por entendê-la in con stitu cion al (não re
cepcionado pela Constituição), decisão que foi co n firm a d a pela 5a
Câm ara Crim inal do TJRS, que ficou assim em en tada:
"Furto. Circunstância agravante. Reincidência - Inconstitucio
nalidade por representar bis in idern. Voto v en cid o. N eg a ram provi
m ento ao apelo da acusação por m aioria." A córd ã o 699291050. Rei.
Des. Am ílton Bueno de Carvalho. No m esm o sentid o os Acórdãos
70000786228 e 70000754226.94
TRIBU N A L DO JÚ RI 7 3
4 . O Tribunal do Júri -
origem, composição e críticas
T R IB U N A L DO JÚRI 7 5
nos E stados U n id o s ." Na Inglaterra, on de su rg e a idéia do jú ri com
doze jurados, o júri ainda é figura central, m u ito em b ora seu uso na
atualidade se restrinja a m enos de 5% dos ju lg a m en to s criminais
(são passíveis de ju lgam en to pelo júri crim es de h om icídio e o
estupro, além de outros crim es co n sid era d o s graves, cabendo ao
ju iz togado decidir se envia ou não o processo ao tribunal popular).
Até o ano de 1933 existia o Grnnd ju n /, que era com p o sto por 12 a 24
pessoas e decidia por maioria de 12. A tu alm en te só existe o Petit
ju n /, que apresenta o veredicto de g u ilty or rwt gu ilty.
De registrar que, na Inglaterra, não são n ecessá rios veredictos
u nânim es, admitindo-se maioria de 10-2 ou 11-1, pelo m enos. Com
efeito, o artigo 17 da Lei d e . 1974 {ju jics A ct) habilita o juiz de
prim eira instância a aceitar um veredicto p or m aioria, depois de
pelo m enos duas horas de deliberações infru tíferas do júri. Este
veredicto é efetivo se obtiver adesão de dez ju ra d o s em um júri de
onze ou mais, ou de nove em um júri de dez. Se o corp o de jurados
n ão chegar a um acordo, unân im e ou por m aioria, o juiz pode
d esonerá-los de sua função. Ta! circunstância não significa que o
acusado tenha sido absolvido. No novo ju lg a m en to, em não haven
do a cord o outra vez, a acusação fica sem co n d içõ e s do ser provada.
N o que concerne aos recursos, em bora ad m itidos, são de difícil
consecu ção, em razão do fato de as d ecisões se rem im otivadas. São
as razões formais (nulidades) que acabam se n d o o fun dam en to da
m aioria das invalidações de ju lg a m en to s.100
7 6 LEN IO LU IZ STRECK
Já nos Estados U nidos, o jú ri tem guarida constitucional,'101
lendo-se no art. 3Q, seção II, item 3, que "o ju lg a m en to de todos os
crimes de responsabilidade será feito por júri e esse ju lgam en to
realizar-se-á no Estado em que os crim es tiverem sido com etidos;
mas, quando não sejam com etid o s em nen h um dos Estados, o
julgamento ocorrerá na localid ad e ou localid ad es que o Congresso
designar por lei." Já a 6 a Em enda acrescentou que "em todos os
processos crim inais, o acusado tem direito a ser ju lgad o por um júri
imparcial do local onde o crim e foi c o m e tid o ".102 Na m edida em que
não havia disposição legal que estabelecesse a form a de organ iza
ção do júri, foi a ju risp rudên cia que desenvolveu a fórmula do
funcionamento da instituição, com doze ju rados (com o na Inglater
ra) e a presidência de um juiz togado. O jú ri federal deverá
obrigatoriamente ser com posto de d oze m em bros, obrigação que
não se estende ao fu n cion am en to do jú ri nos Estados, exem plo do
qual é o Estado da Flórida. N o júri federal, o resultado necessaria
mente deve ser unânim e; nos jú ris estaduais têm sido possíveis, em
alguns listados, decisões por m aioria de votos, desde que não se
trate de crimes graves ou punidos com a pena cie morte. Nesse
sentido, o raso Apociaea v. O regon, 406, US 404, 1972, onde uma
condenação sem veredicto unânim e foi julgada constitucional pela
Suprem e C ourt, sob o argu m ento de que a 6ê Em enda estabeleceu o
direito ao júri imparcial, m as não obrigou a u nanim id ad e nas
decisões. Há uma diferença entre o g ran d ju ry e o petit ju n j. O
judicium accu sationis, espécie de juízo de pronúncia brasileiro, é
feito p e l o g ran d ju ry. Na ju risdição federal, é obrigatória a existência
do gran d ju ry para todos os delitos consid erad os graves. A co m p o si
ção do gran d ju ry varia de Estado para Estado, e seu núm ero vai de
16 a 23 m em bros. Já o p eq u en o é o jú ri p ropriam en te dito, a quem
compete julgar se o réu é inocente ou culpado, cabend o ainda aos
jurados fazer a recom endação da pena a ser aplicada ao reú .103
De registrar que nas cortes federais é perm itido ao réu abrir
mão do seu direito ao ju lg a m en to pelo júri, incluindo casos puní-
101 S e g u n d o in fo r m a N u c c i, op . c i t , c i t a n d o d a d o s c o le t a d o s p o r N á d i a de A r a ú jo
e R ic a r d o A l m e id a , são r e a liz a d o s cer ca de 1 2 0.0 0 0 j ú r i s p o r a n o n o s E sta dos
U nidos, o q u e c o r r e s p o n d e a m a is de 9 0 % d os ju l g a m e n t o s e f e ti v a d o s no m u n d o
todo.
102 A 7- E m e n d a da C o n s ti t u i ç ã o A m e r i c a n a e s t a b e le c e u o d ir eito no júri em
causas cíveis, d e ix a n d o a s s e n t a d o q u e " n e n h u m ca so j u l g a d o p o r u m júri p o d e rá
ser revisto p o r q u a l q u e r tribu nal d o s E s t a d o s U n id o s, s e n ã o e m c o n f o r m i d a d e
com as regras do d ir eit o c o m u m " .
503 Id em , ibidem.
JBmr*mf
T R I B U N A L D O JÚ R I / /
veis com a pena capital, desde que esteja d ev id am en te aconselhado
por um advogado e o faça con scientem ente, além de ser necessário
contar com a concordância do prom otor e do juiz. Em cortes
estaduais ocorre o m esmo, em bora com d iferen tes lim itações: al
guns Estados não permitem afastar o ju lg a m e n to pelo júri em casos
puníveis com pena de morte; outros, nos casos de crim es graves,
etc. Deve ser lembrado que os Estados U nidos p o ssu em um sistema
de adm inistração de justiça b em diferente da Europa continental, de
onde o Brasil herdou a m aior parte dos seus institutos jurídicos.
Não é de se espantar, pois, que possa o a cu sad o evitar o julgam ento
pelo júri, inclusive admitindo d iretam ente sua culpa, caso em que
pode ser im ediatamente sentenciado. Além disso, um dos princí
pios básicos do direito processual am ericano é a "particip ação dos
leigos", donde se vislumbra a im portância que possui o Tribunal do
Júri, mas permitindo, inclusive, que o ju iz togado, n om eado ou
eleito, conform e o caso, possa não ser bacharel em Direito. Embora
seja a minoria, já vários exem plos de juizes sem form a ção jurídica
exercendo a judicatura. Os con den ad os têm se m p re o direito de
recorrer, especialmente quando sentenciados a penas de prisão.
Estatísticas demonstram que som ente 10 a 20% dos apelos são
providos pelos tribunais togados. O fato é que, nos Estados Unidos,
o júri é, realmente, uma garantia’' funda m ental do cidadão, prevista
na Constituição, e que precisa ser respeitada por todas as cortes
(federais e estaduais). N um sistema onde os juizes e pro m o to res são
eleitos ou nom eados pelo Poder Executivo, in existin d o concurso
público de admissão, onde prevalece o sistem a do direito costum ei
ro, mais frágil que o principio de reserva legal recom endada, bem
com o onde se privilegia a participação do cid ad ão leigo na adm inis
tração de justiça, o júri é uma garantia que o réu tem contra a
opressão eventualmente assacada contra sua pessoa p or um acusa
dor parcial, em campanha eleitoral, b u sca n d o destacar-se na mídia,
ou contra o juiz, igualmente em cam panha, preten den do mostrar
aos seus eleitores que é severo no com bate ao crime. Sentindo-se,
pois, pressionado pela máquina estatal, pod e invocar, com o garan
tia, o julgam ento pelo júri, conseguindo que seus pares decidam seu
destino. Entretanto, apesar de nítida garantia, o júri am ericano não
tem a mesma força que o tribunal popular au feriu na C onstituição
brasileira, pois o réu tem possibilidade de refu tar esse direito,
enquanto, em nosso caso, a regra constitucional é irren u n ciáv el.104
T RIBU N A L D O JÚRI 79
p o r sorteio, são extraídos os nove nom es que com po rão a lista de
ju rad os (leigos) que participação da sessão de ju lg a m e n to .105
O Code de P rocêdure Pénnle, no L ivre D eitxièm e, na parte d estina
da à ju rid iction s de Ju g em en t, regula o fu n cion a m e n to da Cour
dnssises, que é composta pela Corte p ro p ria m en te dita e o Ju ry. A
C our é composta pelo m agistrado presidente e por dois assessores.
Este presidente é oriundo cie uma C âm ara ou de uma Corte de
Apelação. O jury striclo setisu é com posto por nov e ju rad os p o p u la
res, que, somados aos três m em bros da m agistratura, c o m p õ em a
C ou r d'nssises, que funciona, desse m od o, com o escabin ato, exem plo
seguido por Portugal.
O acusado não pode recusar mais do que cinco ju rados, e o
Ministério Público, mais do que quatro. O s ju rad o s prestam c o m
prom isso, a exem plo do que ocorre no Brasil, após a exortação que
lhes faz o juiz-presidente: "V ous ju rez et pron iotez dexatniner avcc
Inttention ln plus scru pu leu se lês chnrges que seron t portées contra X ...”,
respondendo "Je le ju re".
Não com parecendo o defensor do acusado, o presidente lhe
nomeara defensor de ofício. Ei da a acusação (larrêt de renvoi), o
acusado será interrogado. Durante a instrução, juizes e jurados
podem , de forma ampla, interrogar acusado, testem u nhas e outras
pessoas que ju lgarem conveniente.
Finda a produção da prova e os debates, o p resid en te exporá à
C our d'A ssises, reunida em sala secreta, p o n to a ponto as questões
discutidas, seguindo o seguinte m odelo: "Laccusé est-il coupable
davoír conim is tel f a i t ?" Uma questão é posta sobre cada fato,
conform e constou na acusação (larrêt de ren voi). De igual m odo,
cada circunstância agravante será objeto de uma questão distinta.
Se resultar dos debates fatos que c o m p o rta re m outra qualifica
ção legal não constante na acusação do M inistério Público, o
presid ente da C our d'A ssises pod erá propor ou tros "q u es ito s" (sub
sidiários). Cada m agistrado e cada jurado responderá a cada ques
tão, com eçan do com a expressão "sur mon h o u n eu r et tua conscience,
ma ãéffarn tion es t...”. Secretam en te, respond erá sim. ou não, entre
gando o voto ao presidente, que a depositará em uma urna.
O presidente abrirá cada voto na presença de todos os m em
bros da Corte. Os votos nulos e os brancos são con tados em favor da
lcb Cfe. S te fa n i, C e v a s s e u r e B ou loc. P ro cêd u re P én n le, P a ris , 1980; T o u lem o n ,
A ndré. Ln q u estíon du Ju r y . Pari s, Ed. L ib r a i r i e R e c u e i ! S i r e y , 1930; C h a p a r , F. La
C our d'A ssises. Paris, 1 980; M o ra i s , A n t o n i o M a n u e l . O j ú r i no trib u n a l. Lisboa,
H ugin, 2 000.
TRIBU N A L DO JÚRI 8 1
impõe-se com o princípio da ordem dem ocrática instaurada pelo
MFA. Na verdade, som ente os regim es totalitários poderão ter
receio da intervenção dos rep resen tan tes d os cidadãos, base de toda
a ordem democrática, para julgar os réus. Esta é a realidade dos
países democráticos já conhecida pela legislação penal portuguesa e
afastada na prática em 1927. As críticas que são feitas norm alm ente
ao Júri podem afastar-se se, tal com o sucede em França, o jú ri for
formado por Juizes de Direito e por ju rad os populares. O Júri
iníervirá somente quando a acusação ou a defesa assim o requei
ram, deixando-se às partes a respon sab ilid ad e de o ju lgam en to ser
efetuado pelo tribuna! coletivo, ficando a sua intervenção limitada
aos julgamentos de matéria de processo penal. Na m ed id a em que o
pronunciam ento visa à existência de indícios suficientes, não se vê
razãô - e assim concluia o preâm b u lo do M FA - para que a sentença
da Segunda Instânia que o aprecie se possa recorrer perante o
Supremo Tribunal de Justiça, som ente d estinado por natureza a
apreciação do direito.
Curn a reforma do C ód igo de Processo Penal, h o u v e modifica
ções no Tribunal do Júri. O art. 5 foi alterado pela Lei n’’
38/87, de 23 de dezem bro (Lei dos Tribu n ais judiciais),
alterando, entre outros, o art. 82 , retcrem e ao 'Tribunal do Júri, com
o que passou a competir ao Tribunal do Júri julgar os processos
relativos a crimes previstos no título II e no capítulo V do livro II do
C ódigo Penal e os que respeitem a crimes a que seja abstratam ente
aplicável a pena de prisão su perior a oito anos, quand o não devam
ser julgados pelo tribunal, e a intervenção do Júri tenha sido
requerida nos termos da lei do processo. M ais tarde, adveio a Lei na
24/90, alterando o nQ1 do m esm o artigo, passando a estabelecer que
compete ao Júri julgar os processos a que se refere o artigo 13 do
C ódigo Penal, salvo se tiverenppor objeto crim es de terrorismo.
O Júri português é com po sto pior três juizes, que constituem o
tribunal coletivo, por quatro ju rad os efetivos e por quatro suplen
tes. O tribunal é presidido pelo presid en te do tribunal coletivo.
Importante notar que, a exem plo do que já constava das idéias dos
revolucionários de 1974, com pete ao tribunal do júri julgar os
processos cuja intervenção do júri tiver sido requerida pelo M inisté
rio Público, pelo assistente ou pelo argüido. Portanto, regra geral ó
que o acusado não seja ju lg ad o pelo jú ri. Entretanto, uma vez feito o
pedido para julgam ento pelo júri, é vedada a retratação.
O júri intervém na decisão das questões da culpabilidade e da
determinação da sanção. Preparado o processo para julgam ento,
TRIBU N A L DO JÚ R I 83
coletivo, o qual será constituído por um juiz d ese m b arg a d o r, que
presidirá, e por dois ju izes do círculo ju d icial a que pertença a
com arca onde o processo se d esenrolou.
Releva registrar, finalm ente, que, em face de o ju lg a m en to pelo
Júri ser facultativo, som ente ocorrendo, portan to, se as partes o
requererem, raros são os ju lg am en to s populares na República
'Portuguesa.
4.1.4. O jú ri na Espimha
Historicamente, o júri tem tido guarida constitucional na Espa
nha. Com efeito, cada período de liberdade tem significado a consa
gração constitucional do júri: na Constituição de Cádiz de 1812 e nas
Constituições de 1837, 1869 e 1931, sendo que, a cada período de
retrocesso democrático das liberdades públicas, a participação popu
lar nos julgamentos tem sido restringida ou até m esm o eliminada.
Atualmente, o artigo 125 da C on stituição do Reino da Espanha
estabelece que os cidadãos p od erão participar da ad m inistração da
ju stiça mediante a instituição do júri, na forma em que a lei
determinar. O texto constitucional, a exem plo do que ocorre no
Brasil, alça o júri na categoria dos direitos fun dam en tais (art. 23.1),
garantindo a participação dos cidadãos nos assuntos públicos.
O júri espanhol, regulado pela Lei orgânica n ‘! 5/95, tem
com petência para o ju lgam en to dos crim es contra as pessoas, os
crim es cometidos por funcionários públicos no exercício do cargo,
crim es contra a honra, contra a liberdade e a segurança e os crimes
de incêndio. Ficam excluídos ex p ressa m en te os crim es que devam
ficar sob o crivo da Audiência Nacional.
Sua com posição é de nove ju ra d o s e um m agistrado, integrante
da Audiência Provincial, que o presidirá. Os ju rad os em itirão
veredicto declarando provado ou n ão p rovado o fato que o magis-
trado-presidente tenha colocado sob ju lgam en to, assim com o aq u e
les outros fatos que decidam incluir n o veredicto e que não
im pliquem variação substancial do fato principal. A função de
ju rad o é remunerada. N o dia e hora design ado para o ju lgam en to,
na presença das partes, é feito o sorteio dos ju rados, d evendo estar
presentes no mínimo vinte. Os ju ra d os são interrogados, p e rg u n
tando-lhes acerca de im pedim en tos e incapacidades. As partes
tam bém podem interrogar os ju rad os sobre as causas de im p e d i
m entos, incapacidades e escusas.
Abertos os trabalhos, o presid en te abrirá às partes o p o rtu n id a
de para que exponham aos ju rados as alegações que julgarem
TRIBU N A L D O JÚ R I 85
Na fase seguinte, os ju rados são retirados da sala cie ju lg am en
to, para deliberarem secretam ente. O prim eiro ju ra d o sorteado será
o porta-voz do corpo de ju rad os. M esm o que haja n ecessid ade de
descanso, não poderá haver quebra da incornunicabilidade dos
jurados com o m undo exterior. Os ju rad os pod erão requerer que o
m agistrado-presidente aclare d eterm in ad as q uestões, que as fará
acom panhado das partes. Transcorridos dois dias desde o início da
deliberação cios jurados em sala secreta, sem q u e haja um veredicto,
o m agistrado-presidente poderá con v ocá-los para esclarecim entos.
A votação dos jurados será nom inal, em voz alta e por ordem
alfabética, votando por último o porta-voz. N en h u m jurado poderá
abster-se de votar. O jurado que desejar abster-se será m ultado em
setenta e cinco mil pesetas, além da possibilidade de ser processado
criminalmente. De qualquer sorte, se o ju rad o insistir, a abstenção
será contada em favor do acusado.
O porta-voz submeterá à votação, um a um, os quesitos, assim
corno propostos pelo m agistrado-presidente. V otarão s e conside-
n n p" r r V s ou não os fatos. Para declaração cie " p ro v a d o ", serão
ete votos, e, para a declaração "n ão p ro va d o", serão
elo m enos cinco votos. Im portante referir que se não
necessária maioria, poderá ser su b m e tid o à votação
p.i no v jii nova redação, até ser atingida a n ecessária maioria. A
m odificação não poderá deixar de su bm eter à v ota ção a parte do
fato proposta pelo m agistrado-presidente. O que pod e ser feita é a
inclusão de um novo quesito, sendo vedada alteração que prejudi
que o acusado. Os jurados também deliberam so bre os benefícios
como liberdade condicional e perdão judicial, sendo necessários
para tanto cinco votos.
Se o veredicto for pela inculpabilidnd, o m agistrado-presiden te
ditará im ediatamente a sentença absolutória. Se, ao contrário, o
veredicto for pela cu lpabilidad, o presidente con cederá a palavra ao
Prom otor de justiça e à defesa para que, pela o rd em , opin em acerca
da pena ou medidas que devam ser impostas ao acusado, bem como
sobre a responsabilidade civil.
4.2. O jú ri no Brasil
T R IB U N A L DO JÚRI 87
contra a lg u ém ?" Passava-se, em seguida, ao jú ri de ju lg a m e n to ou
sentença, O júri de então funcionava do seguinte m odo, con form e
informa M en des de Alm eida: "n o dia do Júri de a cusação, eram
sorteados sessenta juizes de fato. O ju iz de paz do distrito da sede
apresentava os processos de todos os distritos do term o, rem etidos
pelos dem ais juizes de p az e, p reenchidas certas form alidades
legais, o juiz de direito, dirigindo a sessão, en cam in h ava os ju rados,
com os autos, para a sala secreta, onde procediam a c o n firm a çã o ou
revogação das pronúncias ou im pronúncias. C on stitu íam os ju ra
dos, assim, o conselho de acusação. Sé) d epois de sua decisão
podiam os réus ser acusados perante o c o n selh o de sentença.
Form avam este segundo Júri doze jurados tirados à sorte: à medida
que o nome cio sorteado fosse sendo lido pelo ju iz de direito,
podiam acusador e acusado ou acusados fazer recu sações im otiva-
das, em núm ero de doze, fora os im p e d id o s ".109
O júri de acusação foi extinto em 1841, p a ss a n d o a instrução
criminal para a respon sabilidad e da polícia. Ou seja, foi extinto júri
de acusação, sendo a form ação da culpa e a sentença de pronúncia
atribuídas às autoridades policiais e aos juizes m u n icipais, d ep en
d endo a pronúncia dos d elegados e su bd elegad o s de confirm ação
dos juizes municipais. A lista de jurados passou a ser organizada
pelos delegados de polícia, que as rem etiam aos juizes de direito,
com petindo a uma ju nta, c o m p o s t a p e lo juiz, pelo p ro m o to r e pelo
presidente da Câm ara M unicipal conhecer das rec la m a çõ es e fazer
a lista geral de jurados. A exigência da u n an im id ad e de votos
constante no C ódigo de Processo Penal para a ap licação da p en a de
morte foi m odificada pelo art. 66 da Lei n° 261, que d eterm in ou
fosse a decisão do júri vencida por duas terças partes dos votos; as
dem ais decisões deveriam ser tomadas p or m aioria absoluta. A
aplicação da pena cabia ao juiz, no grau m áx im o, m éd io ou m ínim o,
de acordo com a m anifestação dos jurados. A lei 562, de 2 de ju lho
de 1850, subtraiu da com petência do júri os crim es de m oed a falsa,
■roubo, hom icídio nos m unicípios de fronteira do Im p ério , resistên
cia e retirada de presos, além da b ancarro ta.110
A reforma processual de 1871 trouxe sensív eis m od ificações no
júri. Com efeito, a Lei n° 2.033 de 20 de setem b ro de 1871, m anteve
a divisão territorial em distritos de Relação, co m a rca s, term os e
distritos de paz, classificando as com arcas em gerais e especiais,
estas com preen did as com o as que estivessem na sede dos Tribunais
109 í d e m , ib id e m , p. 41.
110 í d e m , ib id e m , p. 4 3 e 44.
TRIBUNAL DO JÚW 8 9
Perdendo sua soberania em 1937, o júri rec u p ero u -a com a
Constituição de 1946, quando foi recolocado no C ap ítu lo "D os
Direitos e Garantias Individuais", com com petên cia específica para
o julgam ento dos crimes dolosos contra a vida.
Tal dispositivo foi m antido pela C on stituição de 1967 e pela
Emenda de 1969, a qual, entretanto, não fez m en çã o à soberania do
júri, reabrindo, por conseqüência, a discussão sobre a sua relevância
em nossa sociedade, C om o advento da C on stituição de 1988, o
Tribunal do Júri voltou a ter statu s de garantia dos d ireitos indivi
duais e coletivos, recuperando, inclusive, sua soberania,
Desde sua criação, o júri cau so u polêm ica n o que tange à sua
representatividadc e principalm ente quanto n cap-acidade dos ju ra
dos para decidir questões consideradas pelos juristas com o de "alta
relevância técnica", que os juizes de fato ou leigos não tinham
capacidade cie alcançar. A discussão sobre a justeza dos veredictos
emanados dos ju lgam entos do Tribunal do Júri su rg em ã tona
principalm ente quando é julgado um crim e que tenha repercussão
social. Conform e Evandro Lins e Silv a113, não faltam críticos e
censores a o .jú ri, alguns por ignorância, outros p o r interesse ou
má-fé, e muitos - a maioria - ma Lin forma dos sobre os critérios
orientadores das decisões dos jurados e o m ecan ism o de fun cion a
mento da instituição ou por um conhecim ento in com pleto do fato,
de seus antecedentes, de sua m otivação, de suas circunstâncias, de
seus protagonistas. Sem pre foi assim , continua Lins e Silva, em
todas as épocas, aqui e no resto do m undo, em especial nos
processos em que há larga publicidade de seu an d a m en to e dos
incidentes que mais podem provocar a excitação da opinião públi
ca . Se o crim e teve, direta ou indiretam ente, uma con otação política,
se foi com etido em desafronta subitânea e aparentem ente excessiva
a brios morais ofendidos e, sobrem odo, se teve origem ou motivo
essencial em uma paixão amorosa, logo se form am correntes de
opinião, influenciadas e conduzidas pelo noticiário. Para arrematar,
assevera que tudo isso vem de tempos im em oriáveis, desd e antes
de existir o Tribunal do júri. Até hoje se discute a ju stiça ou a
injustiça da condenação cie Sócrates,
113 Silva, E v a n d ro Lin s e. A defesa tem a palavra. Rio de Jan eiro : A id e , 1 9 8 0 , p. 63.
TR IB U N A L D O JÚRI 9 1
seres hermenêuticos. Interpretam os a partir do tradição. O sentido
já vem antecipado pela com preensão, donde se con clu i que o
intérprete (juiz ou ju rado) não contempla o m u n d o , para depois lhe
dar um sentido. Intérprete e texto, intérprete e fen ô m en o , estão,
desde sempre, jogados na m esm a lingüisticídade.
e sim ila re s, até os m o d elo s fascist as t> sta lin istas. In D crech o 1/ K n zôn, op. cit., p. 851
c seg s. S o b r e au to p o iese, c o n su lta r o im p ortar)te e s í u d o d e VViSlís S an tiag o G uerra
Filho. A u to p o iese d o D ireito nu 'iocicdm le í ’ós-M o d ern a - In tro d u çã o a mini teoria social
sistêm ica. Porto A leg re, Livraria do A d v o g a d o , 1997. T a m b é m N e v e s, M a r c e lo . A
C o n stitu cion alização S im bó lica , S ã o P a u lo , A c a d ê m i c a , 1 9 9 4 , e N ic o la , D aniela R ib e i
ro M e n d e s . E stru tu ra e f u n çã o do D ire it o n a teoria da so c i e d a d e . In P arad ox os dn
a u to-o b serv acão: p ercu rsos da teoria ju r íd ic a co n tem p o r â n ea . C u r i ti b a , J M Editora,
1997.
118 C F e. W a ra t c C u n h a , op. cit., p. 45.
119 N e s s e sentido, ver M irabete, Julio F. P rocesso Penal. São P aulo, Atlas, 1991, p. 247.
120 P ara um a crítica às c o n c e p ç õ e s v i g o r a n t e s na d o g m á t i c a ju r í d i c a c o n s u lta r
Stre ck , L en io Luiz. H erm en êu tica ju r íd ic a P Jm ) C rise, op . cit., em e sp e cia l, p. 224 e
segs.
12í Is to p o rq u e, no Sm bito da d o g m á t i c a ju r í d i c a , a c o n c e p ç ã o (a in d a ) vig o ran te
c o n ced e um p a p e f s e c u n d á rio à l i n g u a g e m , a o c o n t r á r i o d o q u e se e n te n d e a
partir da v ira g e m lin güística da filosofia (lirtgu istic turn ) o c o r r i d a 'n o séc u lo X X -
em qu e p a s s a m o s a uma m e d i a ç ã o total d a l in g u a g e m . C o n s e q ü e n t e m e n t e , é
ne cessá r io que se (re)tire p ro v e ito d essa v i r a g e m l in g i iístico -filo só fica e d esse giro
o n t o ló g ic o p ro p ic ia d o pela h e r m e n ê u t i c a , q u e é j u s ta m e n t e a ru p tu ra co m as
co n c e p ç õ e s m eta física s a tra v és da m e d i a ç ã o da l in g u a g e m : "o fa to de n ós não
term os sim p lesm en te o acesso nos o b jeto s via sig n ifica d o , m as v ia s ig n ific a d o num m undo
h istórico d eterm in ad o, num a cu ltu ra d eterm in a d a , faz com q u e a es tru tu ra lógica nunca
dê con ta in teira d o con h ecim en to, de. q u e n ão p o d em o s d a r co n ta p ela a n á lise lógica d e todo
o p ro c esso de con h ec im en to" . Cfe. S te in , E rn ild o . D ialé tica e H e r m e n ê u t i c a : uma
co ntrov érsia so bre m é to d o em filosofia, lu H a b e r m a s , jfürgen. D ialética e h erm en êu
tica. Parn uma c rítica dn h erm en êu tica d e G adm n er. P orto A l e g r e , L & P M , 1987, p, 103.
(grifei)
TRIBUNAL DO JÚRI 93
Ora, a verdade dita "m a te ria l" não se diferencia da assim
chamada "verdade form al". N esse sentido, a contribuição da her
menêutica é de fundamental im p o rtâ n cia , a partir da idéia de que "a
verd ad e" no campo jurídico é uma v e r d a d e - h e r m e m ê i i t i c a , é dizer, a
experiência de verdade a que se atém a herm enêutica é essencial
m ente retórica, com profundos coloridos p ragm ático s, com o se
pode retirar das lições de Vaitimo. li tam bém neste sentido que
deve entender-se a tese heideggeriana pela qual a ciência não
pensa. T a m b é m n e s s a l i n h a p o d e - s e d i z e r q u e a p r ó p r i a n o ç ã o d e p a r a d i g
m a d e K u h ti é u m a c o n c e p ç ã o h e r m e n ê u t i c a , a t é p o r q u e o fa t o d e q u e s e
a f i r m e tini p a r a d i g m a n ã o é, a o s e u t u r n o , u m f a t o q u e p o s s a d e s c r e v e r - s e
s e g u n d o c o n c e i t o s c i e n t í f i c o s d e a u o n s t r á v e i s . Kuhn deixa su bstancial
mente aberto o problema de com o deve con ceb er-se o evento
histórico do câmbio dos paradigm as. Por isso a h erm enêu tica pode
contribuir de maneira significativa para resolvê-lo e para pensar
este problema fora de uma con cepção da história com o puro jo g o de
forças ou, por outro lado, com o progresso no co n h ecim en to objetivo
de uma realidade dada e estável. As bases cie uma teoria são aceitas,
assim, a partir de uma persuasão, de tipo retórico, com o qual de
fato se insta ura’21.
Assim, conform e W arat e C unha, a afirm ação de que o juiz
pode desvendar e reproduzir no plano do con h ecim en to a verdade
inscrita na realidade123 implica duas teses: a prim eira insistiria em
122 C o n s u l ta r Vnttim o, G iann i. El fin d e !a m o d ern id a d - n ih ilism o y hern ten cu ticn eu Ia
cultura posmodcrnn. M éx ic o, G cd isa, 1 985, p. 1 99-121. Já H a b e r m a s , f a z e n d o a so ma
da h e rm e n ê u t ic a co m a analít ica da filosofia da lin g u a g e m , n ã o acredita em
c o n h e c im e n to v e rd a d e ir o , sen ã o em c o n h e c i m e n t o válido. Em v ez d e se p e r g u n ta r
pelo c o n h e c im e n to puro , d e v e -s e p e r g u n t a r a p e n a s pela v a l i d a d e d o c o n h e c i m e n
to. Is so é er ig ir o co n h e c im e n to a um m é to d o , ou s eja, uma a ç ã o m e d ia n te
p rin cíp ios p ro ced im en tais. A p r o c e d im e n t a l i z a ç ã o atua c o m o g a ra n tia da " v e r d a
de d is cu rs iv a " , o n d e a te n s ã o e n tré efic ácia social e v ig ência é p ra tica m e n te
ven cida, pois a p ráxis da a u t o c o m p r e e n s ã o so ci al e da a u t o d e t e r m in a ç ã o dos
" c o n s o r c i a d o s " se dn na h istó ria. C o n s u l ta r E n c a rn a ç ã o , Jo ã o R osco da. F ilosofia do
direito em Hnhermns: a hermenêutica. Ta u ba té, C a b ral E d ito ra, 1997, p. 170 e segs.
12"’ R ichard R orty ch a m a a a ten ção p a ra o fato d e q u e a idéia de q u e a ve rd a d e , tal
c o m o o m u n d o , está dia nte de nós é um a h e ra n ça d e uma ép o ca e m q u e o m u n d o
era visto co m o cria çã o de u m ser q u e tinha a su a p ró p ria lin g u a g e m . A v erd ad e
não p o d e estar d ia n te de nós - nã o po d e existir in d ep en d en tem en te da m en te
hu m an a - p o rq u e as fra se s não p o d e m exist ir d essa m a n e ira ou estar d ia n te de
nós d essa m aneira. O mundo está d ia n te de nós, m as as d es criçõ es do m undo não. Só as
d escriçõ es d o m u n d o p o d e m ser v e rd a d e ir a s ou fa ls as; o m u n d o p o r si p ró p rio - sem
a u x ílio dns ativ id ad es d escritiv as d os seres h u m an os - nãn pode. In: C o n tin g ên cia , ironin e
solid a ried a d e. Tra d. de N u n o Ferreira da Cost a. Lis boa, E d ito rial P re se n ç a , 1994, p.
25.
TRIBUNAL, IX ) JÚ R I 9 5
m uito íntima com o que se pode cham ar de c ien tificism o, ou seja,
usar a ciência ou colocar algo com o científico para dar stotus de
verdadeiro e digno. O ju lgam ento proferid o p elo s ju ra d o s não teria
esse s t a f u s de pu reza, de cientificidade. A fin al, se g u n d o uma
expressiva parcela da dogm ática jurídica, os ju ra d o s, se n d o leigos,
ju lga m segundo seu senso com um , além cie se d eixarem influenciar
pela "fácil retórica"... Vale referir, para isso, o alerta de Rubem
Afves, segundo o qual, "q uan do um cientista se refere ao senso
com u m , ele estã, obviam ente, p en san d o n as pesso a s que não passa
ram por um treinamento c ie n tífico "125.
C om o se viu, argum entos com o "a in flu ên cia exercid a pela
fácil retórica" e "a incapacidade dos jurados de ap re cia rem questões
de alta relevância ju ríd ic a " servem com o forte su sten tá cu lo retórico
para a descaracteriza Cio do Tribunal do Júri. D estarte, se um juiz
com ete uma injusliça em um ju lga m en to sing ular, o sistem a não
entrará em crise, em face do que Luhm ann ch am a de "pron tid ão
generalizada para a aceitação das d ecisõ es", b asta n d o "q u e se
contorne a incerteza -4'- -4ecisão ocorrerá pela certeza de que
uma decisão ocorren im á-la"'26. Já com relação às decisões
tio Tribunal do jú ri, r ; estarem, lambem, "legitim adas pelo
procedimento", estas icas que visam a descaracterizar o júri
enquanto instituição pu n a o democrática, sob argum entos como a
"ausência de rigor técnico nos veredictos."
Percebe-se, pois, com o a ciência, deten tora do discurso da
verdade, passa a ter a função de legitim ar, id e o lo g icam en te , o
ju d iciário togado, colocand o o Tribunal do Júri c o m o "não-cien tífi-
co-desviante". M ariza Correa traz im portante con trib u ição, aludin
do que os argum entos favoráveis ou contrários à m a n u ten ção do
júri ou à sua representatividade popular são sem p re argum entos
políticos ou ideológicos, ou seja, levantados a partir dos interesses
dos envolvidos na discussão - seja em termos de sua função e
atuação no júri ou fofa dele - e argum entos fu n d a d o s na visão de
m u n d o dos debatedores, A própria definição do D ireito Penal
brasileiro com o con trad itório implica que sem p re seja possível en
contrar um con tra-argum ento para qualquer argu m en tação . É i m
p o r ta n te fr is a r q u e não h á q u a lq u er le v a n ta m e n to q u e c o m p r o v e , por
e x e m p l o , q u e o T r i b u n a l d o J ú r i , no B r a s i l , a b s o l v e m ais d o q u e o f a z e m os
j u i z e s s i n g u l a r e s e m s e u s j u l g a m e n t o s . N o e n t a n t o , e s t a ê urna a f i r m a ç ã o
l2-’ Cfe, A lv e s , R u b e m . F ilosofia tln C iên cia. S ã o Paulo, B r a s i l ie n s e , 1 9 8 4, p. 13.
126 y er L u h m a n n , N ick la s. L eg iíin ia çã o pulo p ro ced im en to , T r a d . d e M ar ia da
C o n c e iç ã o C o rte-R ea l. Brasília, ÍJ N B , 1980, p. 29 c 91.
9 6 LEN IO LU IZ STRECK
f r e q ü e n t e , ã s v e z e s d o s q u e d e f e n d e m a m a n u t e n ç ã o d o júri, à s v e z e s d o s
que sã o c o n t r á r i o s a e l e ; à s v e z e s p e l o s q u e o c o n d e n a m p o r s e r p o u c o
té cn ico , à s v e z e s p e l o s q u e o e l o g i a m p o r s u a q u a l i d a d e d e m o c r á t i c a ,
d e p e n d e n d o da s i t u a ç ã o e m q u e s e e n c o n t r e m 127. Para aqueles, verbi
g r a t i a , que atacam o Tribunal do Júri, dizendo que ele é o paraíso
das absolvições, cabe lem brar que, no Rio G ran d e do Sul, conform e
relatório da Corregedoria-G eral do M inistério Público, entre os
anos de 1,991. e 1996, o jú ri con d en ou 6.791 réus, contra 5.777
absolviçõe -. Enquanto isso, no m esm o período, o juízo singular
absolveu 85.228 réus, contra 83.414 condenações.
TRIBU N A L DO JÚRI 97
De frisar, por outro lado, que a função de ju rad o traz um a série
de vantagens, com o a "presun ção de ido neid ade m o ra l", assegu ran
do, ainda, prisão especial em caso de crime com u m . O ju ra d o tem,
de igual modo, preferência, em igualdade de con d içõe s, nas c on cor
rências pú blicas128, conform e acentua o artigo 437 do C ód igo de
Processo Penal.
A definição-atribuição-dc-sen lido do que seja um cida-dão
notoriamente idôneo é responsabilidade do ju iz-p resid en te do júri,
que é o encarregado de alistar os candidatos a jurados. O m agistra
do recebe sugestões de prom otores, escrivães e ad v ogad os, princi
palm ente daqueles bacharéis com m aior circu lação nos foruns. Que
os jurados historicam ente têm pertencido às cam ad a s d om inantes é
afirmação que, ainda hoje, pode ser feita com certa tra n q ü ilid a d e129.
Nesse sentido, basta ver a crítica que Frederico M a rq u e s 130 - que
tem conhecida posição contrária à instituição do Júri - faz à
com posição do corpo de jurados, " e s c o l h i d o s p e l a s o r t e , m u n a lista
o n d e os n o m e s são l a n ç a d o s s e g u n d o o c r i t é r i o do m agistrado p r o f i s s i o n a l
incum bido dessa fu n ção , o ju rad o não é r e p r e s e n t a n t e d o n o v o n e m r e c e b e
incum bência a l g u m a da s o c i e d a d e p a r a o e x e r c í c i o d e s u a m i s s ã o . E por
isso tpie n ã o s e d e v e m i n v o c a r os. p e s ! a l a d o s d a ilcm ocrncia p a r a j u s t i f i c a r
a i n s l i t u f ç ã o do júri".
128 E sse d isp o sitiv o é d e d is cu tív el c o n st itu c io n n lid a d e , em face d o p rin cíp io da
isonom ia pre vis to na C o n stitu ição Fed eral.
129 Ver, ne sse sen tid o, M a r iz a C o rrê a , que a firm a q u e, d e s d e a cr i a ç ã o d o júri,
seu s m e m b ro s fora m sem p re , e xp licitam en te, p e s s o a s p e r t e n c e n t e s às cl ass es
d o m in a n t e s. Ver, para ta nto, O s crim es dn p a ix ã o , op. cit., p. 32.
130 M a r q u e s, José F red erico. A instituição do jú ri. S ã o P aulo, B o o k s e lle r, 1 99 7, n,
183. (grifei)
TRIBUNAL DO JÚRI 9 9
O m esmo Warat ilustra m elhor ainda a situação, falando da
incerteza significativa (vagueza) da palavra " c a lv o " , em que se
pode detectar indivíduos que, sem dúvida n en h um a, devem ser
excluídos da denotação do term o (Lady G od íva); outros, sem
d úvida, devem ser incluídos (Kojak); en tretanto, existe, tam bém ,
uma terceira situação na qual podem se a p resen tar sérias dúvidas
quan to à correção da aplicação denotativa do termo. Não existe um
calvôm etro apto para decidir quantos cabelos d eve um h om em
perder para ser chamado calvo.
Transportando essa assertiva para o problem a da definição dt>— •
que seja um "cidadão de notória id o n e id a d e", pod e-se dizer que
não existe um "íd o n e id ô m etro " que possa servir de h o l d i n g ou
paradigm a para o juiz se basear no ato da escolha dos jurados,
assim com o não há um s e n t i d o - c m - s i - m c s m o - d c - c i d a d ã o - d c - n o t ó r i n - i d o -
n e i d n d e . O que ocorre é uma atribuição de sentido ( S ü i n g d m n g ) que
será feita pelo juiz-intérprete.
N o âm bito do Tribunal do Júri, a n oção de "cid ad ão de notória '
id o n e id a d e" pode ser vista com o uma definição persuasiva, que
expressa as ■,renças valorativas e ideológicas do magistrado (e
q u “ m ■' ""jvqia/influi) sobre o rnodo de escolha dos jurados. A
de; om eação do que seja um cid ad ão de notória id o neid a
de ' ,vrm.eada pelo poder de violência simbólica que se
estabeiece. U resultado desse p ro cesso é a form ação/in trojeção no
im aginário social de um padrão de n o rm a lid a d e acerca do que seja
"notória idoneidade". C onstrói-se, desse m od o, aquilo que Ferraz
J r .133 cham a de "arbitrário socialm ente p re v alecen te ".
P ode-se acrescentar, ainda, que, assim corno o padrão de
n orm alid ade vigente na sociedade tem en orm e influência na d esig
nação de quem possui as características que p erm itam o encaixe de
alguém no conceito de "notória id o n e id a d e", tal "p a d rã o de n o rm a
lid a d e" terá efeito no âmbito da apreciação dos ju rad os sobre o
acusado no m om ento do ju lgam en to pelo júri. O u seja, a p a r t i r dn
com p osição d o corpo de ju r a d o s d elin eia-se o p a d rã o d e com p ortam en to
s o c i a l a s e r e x i g i d o d o " r e s ta n te d a s o c i e d a d e " .
TRIBUNAL DO JÚRI 1 0 1
5 . O Tribunal do Júri: o ritual, os afores
é os discursos
TR IB U N A L D O JÚRI 1 0 3
co e são im possíveis fora de um sim bólico em segu n d o grau, con stitu in
do, cada qual, sua rede sim bólica. Uma organ iza çã o dada da
econom ia, um sistema de direito, existem so cialm en te com o siste
mas simbólicos sancionados. As sentenças de um tribunal são
sim bólicas, e suas conseqüências o são quase que in tegralm en te, até
o gesto do carrasco que, real por excelência, é im ediatam ente
tam bém simbólico em outro nível, conclui.
A instituição, aduz Castariadis, será, desse modo, uma rede
sim bólica, socialmente sancionada. As sign ificações im aginárias
sociais não denotam nada e con otam mais ou m en os tudo. Por isso,
as significações imaginárias sociais são freq ü en tem ente con fu n d i
das com seus símbolos, não so m ente pelos p ov os que as utilizam,
mas pelos cientistas que as analisam e que ch eg a m , por isso, a
con sid erar que seus significantes significam por si m esm o s - uma
vez q u e não ré metem a nenhum relacionai -, e a atribuir a esses
significantes com o tais, ao sim bolism o tom ado em si m esm o, um
papel e uma eficácia infinitam ente su periores às que certam ente
tê m 137.
Dessa forma, o m un d o social c con stitu ído em função de um
sistem a de signifk ' Fais sign ificações existem na form a de um
im aginário efetivo , t "rv a m e n te a essas sign ificações im aginárias,
é que se pode com preender a escolh a que cada so cied ad e faz de seu
sim bolism o. Fora da categoria do im aginário, é im possível com
preen der a história humana. A in stitu ição da so cied ad e é a instituição
d e um m undo de significações. A in stitu ição social histórica ê aquilo em
que e p or que se m anifesta e é o im agin ário social. Esta instituição é a
instituição de um m agm a de significações, as sign ificações im agin á
rias sociais. A relação en tre a sig n ificação e seus su portes - im agens ou
fig u ra s - é o único sentido p reciso que se pode a tribu ir ao term o
sim bó lico ,38. _ -
Pode-se concluir, então, ainda com C astoriad is, que, na socie
dade, as coisas sociais são o que elas são através das significações
que elas figuram, mediata ou im ediatam ente, direta ou indireta
mente. A instituição da so cied ade existe en q u an to m aterialização
desse m agm a de significações im agin árias sociais, traduzível por
meio do simbólico. A relação dos agentes sociais com a realidade
(que aparece) é intermediada por um m undo de sig n ific a ç õ e s139.
137 Cfe. C a s to ria d is, op . c i t , p. 173.
138 Id e m , p. 277.
Ibidem .
TRIBU N A L DO JÚ R I 1 0 5
perceptível por todo o corpus social que dele participa. O s rituais
são, ao m esm o tempo, seqüências estru turad as e estruturantes, no
duplo sentido em que expressam a ordem das coisas e im plicam a
percepção de como o m undo e as coisas dev em ser en ten d id o s143.
O Tribunal do jú ri, na medida em que é um ritual por
excelência, é uma insíituição que (re)artícula m en sa g e n s diretam en
te relacionadas c o m a sociedade a qual representa. No seu interior,
os atores (re)produzen, em considerável m ed id a, a própria socied a
de. Por isto, o júri é visto, no âm bito (e n os limites) desta obra, como
um m om ento extraordinário que (re)articula e (re)organiza de uma
maneira diferente os m om entos ordinários da rotina cotidiana da
sociedade e, à parte de torná-la passível de ser lida/entendida,
institui uma outra rotina, pela qual os agen tes sociais venham a
"p erceb er/ enten d er" que as diferenças sociais são " n o rm a is ", e que
a hierarquia da sociedade deve ser preservad a e que a lei tem a
função de, além de "co n ced er" chances iguais para todos, "prote-
■— " •' ‘'•'‘ ■'lidade da sociedade, sem distinções de classes sociais,
assim , a ilusão de que uivem os eu/ inu corpo social sem
TR IB U N A L DC) JÚRI 1 0 7
espetáculo: o advogado espera que o juiz profira as palavras
regulamentares; os jurados se dirigem em ordem para seus lugares,
ocupando a mesma cadeira toda vez que voltam à sala após uma
interrupção, enquanto o réu fica quase sempre com a cabeça baixa
entre as mãos ou chorando, O réu, cuia trajetória no processo
rítnalísüco do júri será analisada mais adiante, não obstante ser o
protagonista principal do julgamento, é a figura mais obscura, só
pa rticipando do interrogatório!4S.
Em conseqüência, "a relação vertical aparente nessa ordenação
do espaço será transform ada, dentro do âm bito da d iscussão, em
urna relação horizontal, que obscurece a existência de 'd esigu ais'
com o p arceiros no processo em ju lgam ento, Essa h o riz o n talid ad e se
estabelece na criação de uma aparência de igu ald ad e no debate,
acusado e vítima rep resen tados pela defesa e a cu sa çã o , am bos
com petindo pela decisão do Júri Popular. A d iscu ssão pública
valida, legitima o processo e o ignora, ign orand o sua construção
passo a passo. O debate, m áscara ao m esm o fem po que realidade,
está anteriorm ente limitado pelas condições de sua produção. Os
atores jurídicos, ao servirem de m ediadores de uma realidad e que
não é a sua, perdem de vista o sentido de opressão inscrito no
trabalho que realizam, passando a aluar corno-se, de tato, todos
fossem ig u a is ." 149
Ressalte-se, ainda, que "o processam ento tam bém transcorre
com o se todos os casos fo s s e m a m esm a história, um só caso, contado
diversas vezes e de d iversas m aneiras. É com o se todos os atos
envolvidos na quebra da regra legal fossem eq u iv a len tes d esde que
possíveis de serem en q u ad ra d o s dentro do m esm o artigo do C ód igo
Penal, todos sujeitos, portanto, à mesma trajetória legal. M as é a
partir de limites p reviam ente traçados para cada um que se estabe
lecerá a discussão interna do processo, levando-se a p ú b lico apenas
as respostas, suscitadas por perguntas nunca exp licita d as, que
serão, apesar disso, aceitas im plicitam ente com o v á lid a s ," 150
Vale frisar, por último, que, nos júris sim ulados realizad os nas
Faculdades de Direito, h á , na maioria delas, uma rep rod u çã o do
ritual, tanto no plano do sim bólico como no da h ierarq u iz açã o de
forças, poderes e distribuição dos espaços. G eralm en te, os júris
sim ulados são presididos pelo juiz-presidente do Tribu n al do Júri
local, que é, geralm ente, nas cidades do interior, tam bém professor
1-1s V e r C o rre a , op. cit., p. 81 e segs.
149 íd e m , p. 82.
lo° fbidem .
TRIBU N A L D O jÚ R i 1 0 9
"Art. 408. Se o juiz se convencer da existência do crim e e de
indícios de que o réu seja o seu autor, p ro n u n ciá -lo -á , dando os
m otivos do seu convencim ento.
§ l 9 Na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositivo
legal em cuja sanção julgar incurso o réu, m a n d ará lançar-lhe o
nome no rol dos culpados, recom endá-lo-á na prisão em que se
achar, ou expedirá as ordens necessárias para sua captura.
§ 2e Se o réu for primário e de bons a n teced en tes, poderá o juiz
deixar de decretar-lhe a prisão ou revogá-la, caso já se encontre
preso.''
T R IB U N A L D O JÚRI 1 1 1
será julgado pelo juiz singular, na m edida em que neste caso seu
n om e somente irá para o rol dos culpados após sua efetiva con d en a
ção, Há que se frisar que, com o advento da C o n stitu içã o Federal de
1988, o lançam ento do nome do réu no rol dos cu lp ad os tornou-se
inconstitucional, na esteira do artigo 5C, inciso LVII, pelo qual
"ninguém será considerado culpado até o trânsito em ju lg a d o de
sentença penal con d en aió ría". Já antes da nova C onstituição, Dama-
sio de Je s u s 153 considerava "u m absurdo o lançam ento do n om e do
réu no rol dos culpados". A ju risp rud ên cia, p o rém , asseverava a
validade do dispositivo da lei processual penal (RT 534/400).
O tratamento diferenciado dispensad o ao acu sad o cie crime
objeto de ju lgam ento pelo jú ri, através da fase processual d en o m i
nada sentença de pronúncia pode ser explicada dentro do contexto
dos ritos de passagem - a separação. C om efeito, T u r n e r 154, apoiado
em Gennep, acentua que essa primeira fase - a sep aração - abrange
" o com portam ento sim bólico que significa o a fastam en to do indiví
duo ou de um grupo, quer de um p on to fixo a n terior na estrutura
social, quer de um conjunto de condições culturais (um estudo) ou
ainda de am bos".
A sentença de pronúncia afasta o indivíduo do gru po "n o rm a l"
da sociedade, ou seja, o grupo dos "n ào-p ron u n cia clos", "dos-que-
nad a - d e v e m - à -j u s t iç a " ou "d o s que nao têm seu n om e lançado no
rol dos culpados". Está, pois, concluída a p rim eira fase do ritual.
A fase, porém , que mais interessa nesta análise é a que vem
logo a seguir, qual seja, a da m argem ou da lim in aridade. É a fase que
vai desde a sentença de pronúncia, que rem ete o acu sa d o a ju lg a
m ento pelo Tribunal do Júri, até o veredicto final. T u rn e r155 caracte
riza a liminaridade com m uita p ro p ried a d e , d iz e n d o que "os
atributos de lim inaridade [...] são n ecessaria m en te am bígu os, uma
vez que esta condição e estas pessoas (lim inares) furtam -se ou
escapam à rede de classificações que n o rm a lm e n te d eterm inam a
localização de estados e posições num espaço cultural. A s entidades
lim inares não se situam nem aqu i nem lá: estão no m eio e en tre posições
atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costu m es, p elas con ven ções e pelo
cerim onial. [...] As entidades liminares [...] p od em ser representadas
com o se nada possu íssem , [...J como seres não p o s su e m status [...]
nada que as possa d istinguir de seus colegas neófitos ou em
153 Je su s , D a m á s i o E. de. C ó d íq o d e P rocesso P en n l C o m en ta d o . S ã o P a u lo , Sa ra iva,
1 986, p. 253.
154 Cfe. Turner, op. c i t , p. 116.
15a Id em , p. 117. (grife i)
TRIBU N A L DO JÚRI 1 1 3
que perdeu seus atributos sociais. Tal situação é perm an en te e
poderia ser definida com o uma institucionalização da lintinaridade:
ele esfn sujeito, n qualquer m om ento, a ser ju lg a d o através dc uma
linguagem que em prega con ceitos e norm as que ele não dom ina, utilizada
pelos guardiães da estrutura social. E evidente que esta institucionali
zação se manifesta som ente nos casos em que os réus são pessoas
pertencentes às cam adas pobres e é com partilhada por seus c o m p a
nheiros de posição estrutural em outras situações que n ã o apenas a
que o coloca na mira da lei. Um acu sado perten cen te às cam adas
dom inantes, por outro lado, m anterá tam bém sua p osição estrutural,
passando apenas pelas etapas fo rm a is de situ ação lim in ar de ju lg am en
to, mas conservando o pleno dom ínio de seu estado anterior e de
todos os «tributos que lhe pertenciam neste es ta d o 156.
19 94, p. 224.
T R IB U N A L DO JÚ RI 1 1 5
Num a análise mais percuciente, pod e-se constatar que, lato
sen su , am bos, tanto o prom otor de justiça co m o o ad v ogad o de
defesa, usam discursos sem elhantes, d iferen ciad os so m e n te no que
tange à caracterização do réu e à vítima. A ssim , m uito em bora à
primeira vista pareça haver uma (forte) op o siçã o entre o discurso
da acusação e o da defesa, constata-se, na realid ad e, que am bos,
acu sad or e defensor, funcionam com o ag en tes neulralizados/n en trn lizn do-
res, equiU bnulos/equilibrndores dos fatos, h istitu íá o s/in stitu in les de um
dado padrão de " norm alidade social". No ju lg a m en to, os atos são
transformados em autos, remontados a partir do imaginário gnosioló-
gico dos atores jurídicos. Ocorre um deslocamento itíeológico-discur-
sívo, onde os fatos são catapultados para o m undo das abstrações. E o
que Ferraz j r chama de astúcia da razão dogm ática, que se põe a serviço
do en fraqu ecim en to das tensões sociais, na m edida em que neutraliza a
pressão exercida pelos problem as de d istribu ição do poder, de
recursos e de benefícios escassos160. O m o m en to do debate, no
plenário do júri, concentra todos os elem entos da co n stru ção desse
processo, num dado ponto, com o se estivesse c o n g ela d o , preconce
bido. Afinal de contas, como dizem os juristas d ogm áticos, "o que
não eslá nos autos não está no m un d o do Direito".,.
Os discursos no processo do júri produzem, desse modo, uma
mediação que, a exemplo do que ocorre na metáfora do Leito de
Procusfo, (re)adequa/amolda a dimensão dos acontecim entos e des-
politiza as relações entre as pessoas no universo fenomênico, no
interior do qual os conflitos são institucionalizados. As diversidades e
ambigüidades são negadas no momento em que os fatos e relações
passam pelo filtro de uma linguagem formalizada que transforma e
reduz as chances do réu a apenas duas interpretações, ambas, frise-se,
tributárias do m esm o m odelo, pro ven ien tes de um a m esm a holding.
As duas interpretações possíveis serão, ainda um a vez, reduzidas
na decisão que será, além da escolha da ap re sen taçã o m ais coerente
com o m odelo qu e o sfu lg a d o res visualizam para a socied ad e em que vivem ,
também um selo de aprovação dos p ro ce d im en to s esco lh id os por
essa m esm a sociedade na transform ação m e n c io n a d a '61.
TRIBU N A L DO JÚ RI 1 1 7
etc., enfim, se enquadrar segu n d o os p ad rõ es de n orm alid ad e
estabelecidos pela sociedade dom inante, terá m a io res possibilid a
des de ser absolvido do que alguém classificado /rotulad o como
'desviante. Este perfil das "relaçõ es adequ adas, norm ais, entre
1homens e mulheres não é nunca posto em questão nas-discussões
jurídicas: o qtie se tenta fazer é enquadrar hom ens c mulheres concretos
dentro das regras idealizadas e com provar a sua maior ou m enor adesão a elas.
Do sucesso dessa operação é que vai depender, então, a condenação
ou absolvição dos acusados [ante o jíiri, on de o que se p u n e é a
conduta social do acusado e da vítim a, e não o crim e c o m e t i d a '161.
Nessa mesma linha, cabe lem brar as palavras de S o ler165, para
quem "durante larguísim o período Ias penas m ás crueles hah sido
fundadas en la afirmaeión de que un sujeto era brujo o hereje. En
iiueslros propios tiem pos hem os visto fu n d a r las m ás extrem as medidas
sobre la base de la condición óptica de ju d io o de negro".
ÍA institucionalização - m esm o sem previsão legal - da assim
denominada "testemunha abonatória" caracteriza bem a tese do
Direito Penal do autor.] Essa testem unha, não obstante não ter visto
nado \u>- > •> fato criminoso imputado o . 1 o ' juízo
p a r 1 d.1 ” ' . i * uplo, que o réu é um b om su > > , • te pai
de família, trabainador, etc., ou para dizer que o réu e um péssim o
pagador de contas, brigão, etc.
Outro fator indicativo adv ém das m an chetes dividgadas pela
im prensa, que costumam colocar: "Fulan o de Tal será ju lgad o pelo
Tribunal do Juri", ou "Será ju lgad o hoje o m endigo que m atou o
com erciante"... Por isso não se pode perder de vista a lição de
F e m y o h 166, para quem jdelinqüente não é aquela pessoa que, segun
do as circunstâncias, opiniões ou contingentes relações de força,
pode ser etiquetada como im oral, perigosa, infiel ou inimiga, mas a
que é identificada com o responsável p or um d elitoJ
Nesse contexto, não é tem erário afirmar que os op erad o res do
Direito,iao utilizarem a (fácil) retórica do D ireito Penal do autenj}-
m ormente no Tribunal do jú r i - além de escam o tearem o D ireito
Pennl do fa to , jestão, im plicitamente, corroborando/justificando a
desigualdade social, ainda mais se for levada em conta a co m p o si
ção do corpo de jurados, que, historicam ente, é constituído pelas
camadas m édio-superiores (portanto, dom inantes) da sociedadeTj
Assim, levando-se em conta a circunstância de os acusados, em sua
164 Cfe. Correa, M arte em fam ília, p. 303 . (grife i).
16j Cfe. A p u d Coelh o, op, d t . , p. 20. (grifei)
166 Cfe. Ferrajoii, D erecho y R n zóii, o p . cit. (grifei)
5 .5 . O discurso"da acusação
T R IB U N A L D O JÚ RI 1 1 9
tipo "Sei que a com u nid ade é ordeira, próspera e deseja a paz.
Infelizmente, há um alto índice de crim inalidade. Espero que neste
julgam ento ajudem os a d im inu ir e co m b ate r este índ ice..." A seguir,
vem enfatizada a função do Prom otor de ju stiç a : "A c u s a r em nome
da sociedade os que não c u m p rem com as regras estabelecidas".
Quem observar os ju lg am en tos do Tribu n al do Júri (no Rio
Grande do Sul, nos últim os seis anos, foram realizados mais de dez
mil ju lgam entos), perceberá a oposição entre o norm al e o dcsviaiite,
tese essa que, na expressiva maioria dos casos, serve com o sustentá-
culo ao discurso acusatórío. Se o réu tiver (maus) antecedentes,
estes serão enfatizados com v eem ên cia, m ostran d o, por exem plo,
que "n ã o é a primeira vez que transgrediu as regras da sociedade
organizada". Adota-se, m utatis m u taiitis, o que está traduzido, de
forma incisiva, na assertiva d e Roberto L y ra u’9, talvez o mais
fam oso promotor de ju stiça deste país: "P unir é m anter os laços da
coexistência social, equ ilibrar o sistem a de vida coletiva, tran qü ilizar o
m eio, intim idar os pred isp ostos, ev itar a in iqü idade para os sen ten ciados,
proteg er o réu contra o desespero dos que ficaram com o coração em crepe."
Ainda no âmbito da acusação, cabe com en tar a figura do
assistente de acusação, que o C ód ig o de Processo Penal prevê nos
artigos 268 a 273. A dogm ática jurídica vem discutindo há muito
tem po a natureza jurídica do assim ch am ad o assistente de acusação.
N ão é temerário dizer que a assistência ao Ministério Público é um
resquício da privatização do processo penal. Majoritariamente, a
doutrina dogmática se inclina pela opinião de que a função do
assistente repousa na influência decisiva que a sentença penal conde-
natóría exerce no campo cível. A figura do assistente aparece nos casos
em que a família da vítima tem condições para pagar esse trabalho ou ’
quando o caso tem rep ercussões políticas, com o, por exem plo, o
julgam ento dos acusados da morte de Chico M endes. Em decorrência,
os meios de comunicação acabam por obscurecer a função do titular
da acusação, ou seja, o Ministério Público. Q uem se lembra do nome
do promotor de justiça que atuou no caso Chico Mendes? Em
contrapartida, todos sabem que o ad vogad o acusador foi Márcio
Thom as Bastos, ex-presidente da O rd em dos A d v o g a d o s do Brasil.
C om o advento da nova C onstituição, a presen ça do assistente
de acusação começa a ser q u e stio n a d a 170, não só d evid o ao disposto
169 Cfe. Lyra, R ober to. C om o ju lg a r, com o d efen d er, co m o acu sa r. R io d e ja n e i r o ,
C ien tífica Ltda., [s.d,], p. 106.
i?0 y e r L im a , M arceltus Polastri. A a ss is tê n c i a ao M i n is t é r io P ú b l i c o e a C o n s t i t u i
ç ã o de 3988. In: L ivro de E stu dos Ju r íd ic o s , n.3, Rio de J a n e i r o : IEJ, 1991, p. 257. Em
a l e n t a d o tra b alh o , ess e a u t o r s u s t e n t a q u e os a rt ig o s d o C ó d i g o d e P r o c e s s o Penal
TRIBU N A L DO JÚ RI 1 2 1
prostitutas, como Maria Degolada em Porto Alegre, que até altar
possui. E a materialização do ' pod er dos fracos' ". Aliás, que m não
lembra de j ogos de futebol entre times fortes e fracos, c omo o jogo
entre as seleções da Polônia e Cama rões, pela Copa Mundial da
Espanha, em 1982, em que a maioria das pessoas torceu para a
" p ob r e" seleção de Camarões, f en ômen o que se repetiu na Copa de
90, com as seleções do Egito e a mesma Camar ões, q ua ndo enfrenta
ram seleções "mais fortes"... Mais recentemente, quando da final do
campeonato brasileiro de futebol do ano 2000 entre Vasco da Gama
e São Caetano, pesquisa publicada pelos jornais e televisão mostrou
que mais de 80% das pessoas torceram para a "frágil e pequena"
equipe do São Caetano...
Analisando o poder dps fracos, Teixeira (íbidem) chama a
atenção para o fato de quejlais liminares ou sofredores, exatamente
pelo seu poder potencial, só sdo tolerados enquanto não am eaçam a uma
dada ordem estabelecida^ Isso ajuda a explicar desde fa.tos c omo o
tratamento dispensado a C risto, passando pelo dispensado a Poli-
ca rpo Qu a res ma .
Ao • ■i !-a*-’íi p >’ ^o ma t n o i - ' , o ' Purner174
mostra o a nfoi.s' ,a • i-\t c r 1 ' < n «orno "os
mendig <n v. ,r u ,s, i n . - n o üUio, -qi.e • ih i m* - e mplórios,
que arrancam as pretensões dos detentores de categorias e cargos
elevados e reduzem-nos ao nível da h um a ni da de e dos mortais
comuns". Também nos tradicionais filmes de faroeste, " vemos o
misterioso estranho sem lar, sem riqueza ou nome, e que restaura o
equilíbrio legal e ético num gru po local de relações políticas de
poder, eliminando os chefões profanos injustos que oprimem os
pequenos proprietários".
A observação de alguns j ulgament os pelo Tribunal do Júri
deixa bem claro o uso da tese da "força dos fracos" e do "despoja-
mento dos liminares". Com efeito, está absol ut amente introjetada
no imaginário dos juristas - tornando-se l ugar- comum dos discur
sos da defesa - o uso, muitas vezes até exagerado, do "poder dos
fracos". Reproduz-se', de certo m o do (ou de todo modo), o estereóti
po do advogado de defesa imagi nado pelo senso c om um da socie
dade, registrado por Bonfim, em citação de Evaristo de Moraes: "O
advogado aponta para um canto do auditório, dirige-se a uma veneranda
senhora coberta de luto e de pranto, mostra a todos a sua fig u r a desmaiada,
onde uma dor irremediável prospera funereamente. É a mãe do réu.
Ouve-se um grito, uns passos rápidos, mãe e filh o estão abraçados,
1,4 Cfe. T u r n e r, op. cit., p. 135.
T R IB U N A L D O JÚRI 123
cas no campo da resolução j urídico-formal dos conflitos inerentes às
sociedades tradicionais. Resulta disso que, no pl ano do c onheci
ment o jurídico, pode-se extrair, do exposto, o fato de que a separa
ção entre ciência e opinião ( epi steme-doxa) não existe senão no
imaginário gnosiológico dos juristas, de vez que, na prática, muitas
vezes se sobressaí um discurso falacioso, e m lugar do pseudodis-
curso da ciência jurídica. C o m o c impossí vel separar o ser real do
dever ser idealizado proposto pelo discurso jurídico, será vitorioso,
geralmente, o discurso falacioso1-78 idealizado.
Com isso, os conflitos sociais que fa z e m parte da sociedade "real"
acabam sucumbindo à r i l u a l í s i i c a processual, pela qual os fa t o s são
cn hipultados para o plano da retórica. A dialética é reprimida pela
" por or oc a" provocada pelo encont ro dos discursos no plenário.
Aparentemente, tem-se uma tese e uma antítese; na prática, duas
teses que apontam caminhos diferentes, onde, por ém, o ponto de
chegada é o mesmo: uma sociedade "sem rupturas". Isto porque o
espaço de " confrontação" em plenário tem b e m delineados os seus
limites, é dizer, as contradições secundárias p od em ser exploradas à
saciedade, desde que uno se firam as contradições principais.
N o piano das práticas sociais desiguais, sendo o jurídico parte
integrante do monopólio estatal, o Estado - via establíshm cn t -
constrói, ideologicamente, um discurso que tenderá a falar de todos
e apenas defender os interesses de alguns. A partir dessa "constru
ção", as partes destinatárias/consumidoras " tr anqüili za m- se" , con
fortados pela idéia de que estão proteg idas h obb esian am eu te pelo
ordenament o jurídico. Como todo esse trabalho - lembra Faria - só
pode ser cumprido por mei o de pr o ce di me nt o s cerimoniais, a
ideologia jurídico-política é encoberta pelo discurso místico, que
leva os homens a aceitarem os rituais inerentes ao universo jurídico
c omo necessários à realização da idéia de justiça. E m outras pala
vras, tal discurso não se limita a fazer c om que os h omens se
c onformem com sua situação social, mas os estimula a aceitar e
venerar as formas de poder que en ge nd ra ra m essa si tua çã o179.
T R IB U N A L DO JÚRI 1 2 5
O Tribunal do Júri, ritualisticamente, tem o seu papel bem
definido na preservação/reprodução da ordem social. Aliás, insere-
se no contexto das estruturas do Direito. P o r isso, " nã o é de se
estranhar que, aos olhos do cidadão c o m u m e ao nível do conheci
men to vulgar, o Direito se apresente c om o um c o ngl omer ad o de
símbolos e ideais emotivamente importantes, onde os anseios c on
traditórios aparecem c omo coerentes, e os princípios gerais de
Direito induz.am cada cidadão a admitir que todas as aspirações de
todos os segmentos sociais estão legalmente pro teg id os. (...) Como
símbolo, o Direito satisfaz a exigência pop ul ar prof undamente
assentada, no sentido de que as instituições simbolizariam um
harmonioso sonho dentro de cujos limites se destaca uma c onc ep
ção de '"siiça com absoluta independência cie pressões individuais.
No entanto, c omo por trás da aparência desse c onsenso expresso
pelo senso c omum inerente aos princípios gerais do Direito sempre
existe um confronto de interesses, o Direito corre o risco de acabar
reconhecendo somente aqueles ideais que representam o exato
oposto da conduta estabelecida"iai.
N ão é temerário dizer, assim, que o cüm umo que predomina no
âmbito cia aplicação prática do Direito - em ■ \ ecial no Tribunal do
Júri - expressa um emaranhado de símbolos que são manipulados
em f unção do poder. Tais discursos são manifestações concretas do
imaginário gnosiológico dos juristas, resultando, daí, a importância
da persuasão (Warat), traduzida através de falácias (Irving Copy),
que pode m ser encontradas em qual quer manual de Direito. Para
A rn aud 182, há um dilema que deve ser resolvido: "saber se a interpre
tação do Direito tem uma significação jurídica ou política, se o jurista-in-
térprete é um ser inspirado ou um homem realista, um médium ou um
sábio." É difícil responder a essa indagação, O que é possível ciizer é
que o discurso jurídico é emi nent ement e persuasivo, c o mo algo que,
objetiva - via sentido comum teórico - a produç ão de relações de
verossimilhança, buscando construir u m efeito de realidade que
seja crível no interior do imaginário social, no qual estão-inseridos
os atores jurídicos (e, obviamente, os jurados).
Como os objetivos da dogmática jurídica só pode m ser alcança
dos - repita-se - por meio de procediment os cerimoniais e, sendo o
Tribunal do Júri o mais candente e expressivo dos rituais jurídicos, a
complexidade jurídico-política-ideológica é encobert a/amalgama-
m Ib id em ,
182 Cfe. A rn au d , A n d re -Jea n . O D ireito traído p ela Filosofin. T rad . de W a n d a de
L om os C a p e lle r e L ucia no O liveir a. P o rto A legre : Fabris , 1991, p. 186,
TRIBUN AL DO JÚRI 1 2 7
te circunstância de que "el discurso jurídico es el discurso dei ejercicia
dei poder y, por eude, alude e identifica a nquellos qu e p ueden producirlo,
configurando la noción de autoridad u órgano y o rd en a n do las relaciones
recíprocas de los productores de ese discurso dei p o d er entre sí, y de éstos
con el resto de los indivíduos ncfuanies en relación a una determinada
inslitución social, con la mediación dei discurso jurídico. (...) En otras
palabras, ai decidir quiénes pueden decir el discurso jurídico, se
requiere decidir quiénes pueden decir qué cosa dijeron esos sujefos
de la produción dei d i s cur so "’1'67.
Vê-se, pois, que a dogmática (re)produz-se nesse e mar anhado
discursivo, (re)constituindo-se a partir da instituição de uma fala
autorizada (Bourdieu), Sobre um significado de base - que é a lei -
adjudica-se um sentido que conforta o discurso dominante. A
dogmática jurídica atua, assim, c omo i nt ermedi adora, fazendo a
hermenêutica (no sentido de Hermes), j á não se fala da norma, mas
do sentido que a essa norma foi dado pelo intérprete. Alerte-se,
por ém, com Warat 188, que, nesse processo de (inter)medi açâo, pelo
qual a dogmática jurídica produz os discursos de verdade, estes
" nunca são o resultado de um emissor isolado, estando vinculados
a uma prática comunitária > >zada ern torno de uma subjetivida
de específica dominante, f 1 homem pronuncia legitimamente
palavras de verdade se não é filho (reconhecido) de uma c om u ni d a
de 'cientifica', de um monastério dos sábios".
E é justamente desse monastério de sábios que emana a "fala
autorizada" que (re)produz o habitus. Os eleitos, os que pod em
falar/dizer-adei-e-o-direito recebem o cetro (o skep tron da obra de
Homero) de que fala Bourdieu189. Estão, assim, (pl enament e) autori
zados a fazer, inclusive, "extorsões de s ent ido " e " abu sos significa
tivos". E quem se rebelar, q ue m tiver a ousadia de desafiar esse
processo de confinamento discursivo, enfim, q u e m tentar entabolar
u m contradiscurso, responde(rá) pelo (hediondo) crime de "porte
ilegal da fala"...
Esse processo de produç ão da "fàia a u to ri za d a" exige de parte
dos operadores jurídicos uma espécie de c ump li ci da de lingüística.
Isso será possível apenas se e quando o público-alvo (comuni dade
18/ E n telm a n , R ic ardo . La form a ción d e unn e p i s t e m o l o g i n ju r í d i c a . In El d iscu rso
ju ríd ic o . P ersp ectiv a p sicon u n lífica 1/ a tro s ab ord n g es c p istc m o lõ g ic o s . B u e n o s Aires,
Fia ch et te, 19S2, p. 96.
188 W a ra t, Luis A lberto . In tro d u çã o g e r a l ao d ire ito 11, op . cit, p. 6 7 e 68,
189 V er Bo u rd ie u , Pierre. A ec o n o m ia d a s trocas liiig ü ísticn s. S P , U SP , 1 9 9 6 , p. 39, 63
e 89.
6.2. As c ont radições sociais ou " rnalem-se entre vós qiie nós
os j u l g a r e m o s entre n ó s "
T R IB Ü N A L D O J Ú R I 1 2 9
riores no júri tem c omo conseqüência um el evado n úmer o de
condenações,
É claro que as decisões dos jurados, na apreci ação dos casos
judiciais e dos acusados que praticaram os delitos que os levaram a
julgamento pelo júri, não correspondem m ec a ni ca me n t e às de seu
estrato social. B muito provável que muitos jurados, per tencentes às
denominadas camadas m édio-iníeríores, passem a ter atitudes de
proteção cie valores da classe superior. N ão se deve subest imar o
papel de íntrojeção de valores, hábitos, c om po r ta me nt o s , etc.,
produzidos pela ideologia. Ou seja, c razoável concluir que há uma
forte relação de causa e efeito entre os resultados dos julgamentos e a
correlação de forças que existe entre as classes/camadas sociais que julgam
e as que são julgadas. Autores do porte cie Al essa nd ro Baratta’1-’4
apontam para essa direção. C o m efeito, ''pesqu isas empí ricas têm
colocado em relevo as diferenças de atitude emotiva e vnlorativa dos
<ii’”L mi 1n i h >ndn nluos pertencentes a diversas cliKses 'sociais. fsto
emente, a tendências de juízos diversifica-
'cinl dos acusados, e relacionados tanto à
ubjerivo do delito (dolo, culpa) quanto ao
Mito em face da per sonali dade (prognose
.................. ._.......... .......... .. o acusado) e, pois, à individunlização e à
mensuração da pena destes pontos de vista. /I distribuição das
definições criminais se ressente, por isso, de modo particular, da diferen
ciação social. Em geral, pode-se afirmar que existe uma tendência por
parte dos juizes de esperar um c ompo rta ment o c onf orme à lei dos
indivíduos pertencentes aos estratos médios e superiores; o inverso
ocorre com os indivíduos provenientes dos estratos inferiores".
A conseqüência da (histórica) elitização dos c orpos de jurados
merece também uma análise à luz da Antropologia. Assim, para
G o f f m a n 1-5, começando com a noção muito geral de um grupo de
indivíduos que compartilham alguns valores e a der em a um con
junto de normas sociais referentes à conduta e a atributos pessoais,
"pode-se chamar destoante a qualquer memb ro individual que não
adere às normas, e denominamos desvio a sua peculi aridade". O
m esmo autor revela que "se deve haver um c ampo de investigação
chamado de 'comportamento desviante' são os seus desviantes
sociais, conforme aqui definidos, que deveriam, presumivelmente,
constituir o seu cerne. As prostitutas, os viciados em drogas, os
delinqüentes [...] seriam incluídos. S/To essas pessoas consideradas
19‘ Cfe. Bara tta, op, cit., p. 177 e 178.
Cfe. G o f f m a n , op. cit, p. 151. (grifei)
T R IB U N A L D O JÚRI 1 3 1
importante) mecanismo de ocultamento dns vicissitudes dessa mesma
sociedade que engendra n p obreza c o contínuo desrespeito aos direitos
lutmanos fundam entais, circunstâncias - embora muitos teimam ainda
ern negá-las - absolutamente relevantes na geração da criminalidade.
TRIBUiMAÍ, DO JÚRI 1 3 3
Registre-se, a propósito, que a discussão acerca.das "caracterís
ticas dos povos", "caracteres é t n i c os " , ' " mo d os próprios de s e r dos
poxoC', presente explicitamente rui opinião o\pi ossada p o r Tr ei n, , é
amiga no Brasil. A obra de P a n i e Moteira f uh* ioi um marco
hsstonco no processo de desmi 'sHi heaçao das not,õcs estereotipa
das dos povos. Entretanto, não to; -uticiente p a . ,1 acabar com essa
(ainda f ort e) mat riz ideológica que -íi» c n c o n u a a nc iã hoje, profun
damente en raizada/in trojetad a/m aterializada no imaginário social
(e no imaginário cios juristas), Com efeito, fvtoreíra Leite acusa a
noção de "caráter nacional" de preconceito, eq u ív oco e obstáculo.
Inf elizment e, não foram suficientes alguns c apítulos de nossa histó
ria passada e recente, desde O até os quebra-qu ebra de trens,
as lutas entre fazendeiros e p >s, as guerrilhas, os assaltos a
cada trinta minutos nas grandes m etrópoles, para que a'n oção de,
por exemplo, "brasileiro cordial, pacífico e a c o m o d a d o " caísse por
terra. Sapato de pelica e sinuca, cordialidade e jeítinho... A realidade
so d a ' J .......... ’ f->nm cnregórica, os ronuintisnios de nossos historiado
res, :■............................. :fores2'-.
!.>• i, * •*, na obra já citada - onde, cie forma magistral,
denunciou o processo ideológico q ue eng'-p-, ’"> •’ ' v ;' e s e - t e - ' - 1'
padas no Brasil faz uma abordagem bis 01 -> > mndo q te a
ideologia do caráter nacional brasileiro ‘-i.gue de pei lo o
esquema das doutrinas européias [...] Na verdade, não e fá c il explicar
porque essas teorias foram aceitas no Brasil. De um lado, c omo sua
aceitação coincide com a abolição da escravatura, poder-se-ia p e n
sar que as teorias racistas constituem a forma de defesa do grupo
branco contra a ascensão dos antigos escravos. De outro lado,
poderia ser apenas a justificativa para a man ut en çã o desses grupos
numa condição de semi-escravidão. E, assim como os europeus justifi-
cavamjseu domínio pela incapacidade dos povos mestiços, as .classes
dominantes justificavam seus privilégios pela incapacidade dos- negros,
índios e mestiços.”
Outro escritor brasileiro, Thaies' de A z ev e do 202, contribui na
crítica, dizendo que "ao que parece, estamos imersos numa realida
de que destoa em muito do que se tem c omo característico da alma
il)l C o n s u lta r Moreira Leite, D an te . O c a r á te r n acion al b r a s ile ir o , T a m b é m Cerqueirn
Filho, Gisálio e N ed er, G iz ten e. B rasil: violência e c o n cilia çã o no d ia -a -d ia . Porto
A legre, Fabris, 1987; M ay r in ck , Geraldo e Piorilio, M aril ia P a ch eco . S e m lenço
n e m d o cu m e n to : m a la n d r a g e m , cordialidade, índole pa cíf ica - os m it os atingidos
j3ela crise. Isto é. São Paulo, n. 354, 1990.
lx~~ A zeved o, T ha ies de. Os b rasileiros: e s t a d o s ele cn rá lcr n n cioim l. S a l v a d o r , C e n tr o
Editorial e D id ático da UN B, 1981, p. 58.
T R IB U N A L DO JÚRI 1 3 5
a ela correspondente, colocam os agentes sociais em condições de
orientarem-se no mundo, de familiarizarem-se c om as coisas e,
assim, manejá-las, mas que, entretanto, não 'proporcionam a com p reen
são das coisas e da realidade. É c om o um claro -escu ro de v erdade e
engano, em que o seu elemento próprio é o dup lo sentido, que
Kosí k chama de mundo dn pseudoconcreticidade2(l4.
Nessa trilha, é necessário ressaltar que a possibilidade de
com p reen são das formas possíveis de m an ifesta çã o 'h> < itu r,
portanto, de sua apreensão/depende, cie forma direta, do uni' •■im
com.pie e m i \ o dos. interlocutores «*in lace do d i s c u w i e v p h c a t u o
destes nn ~ ” <a fenômenos. Ora, se a |>1 od<’çao dos di^t m - o s na o ‘ c
m an il e s. a a paitir de sua gênese, uma vez que esta, n ec ess ar i amen
te, é ocultada, este m esmo discurso-tem a fou r do «u i neí ui al e,
desse modo, típico de u ma - ra ç a, de uma I uln ao u „k nnt íC.
Assim, afirmar-se que determinadas c om u n i d a d e s tpor e x e m
plo, de origem alemã, italiana, polonesa, lusa ou qual quer outra)
são mais ou menos rigorosas, mais ou menos a p eg a d a s ao trabalho,
às leis etc., configura-se. em um a fo rm a típica discu rsiv a, visando à
produção de comportamentos sociais padroni zados, que nada mais
são do que formas sofisticados de controle c omporta mental, criadas
a partir de estereótipos.
limbora uma avaliação empírica possa, de alguma forma,
referendar aquilo que o imaginário social r e p r od uz - e isso é bem
possível de ocorrer - é imprescindível, por isso me sm o, deslocai-a
análise' para outra dim ensão, que n ã o - a .. meramen-te-fática. Tal
pretensão/afirmação leva em couta a circunstância dc que as—pm tieas
oriundas de uma determinada institiiição-socinl - e o T ribun al do J ú r i ó ’
uma delas -, são insuficientes para explicarem -se com o fe n ô m e n o social. O
que se tenta demonstrar nesta abordagem é que as instituições são
regidas em suas práticas cotidianas num sentido teleológico, ou
seja, na direção dos fins de- um dado sistema social. Portanto, a
apreensão da forma de aplicação efetiva de um sistema jurídico
reflete, no plano do sintoma, procediment os mui to mais compl exos
que garantem a hegemonia de uma sociedade h e ter on oma , isto é, de
uma soci edade que tem suas regras estab elecid as enquanto-anterio-
ridade às práticas sociais de.,seus"agenies. A m an ut en çã o d e d a l
hegemoni a deve-se, também, à prá-tiea—cte—©ireito, que cumpre
papel relevante no assentamento das n or ma s c omportamentais.
Dessa forma, é evidente que a prática do Direito - a aplicação efetiva
204 y e r ^ n e sse sen tid o, K osik , Karel. D ialética do c o n c reta . T ra d . d e C élia N e v e s e
A ld e r ic o Toríbio. Rio de J a n e iro , Pnz. e T e r r a , 1976, p. i l .
TRIBUNAL DO JÚRI 1 3 7
im aginário social e o processo social que o en gen drou . Isto porque a
moderna racionalidade, de origem positivista, constitui-se, via de
regra, na elucidação do nexo causai, ou seja, na c om pr o va ç ão das
evidências fáticas, definindo os produtos do imagi nário ml tal
c omo " a pa r e c e m " 2116, Po-' ’«•-<;o uma anab'ce ono pretenda f<«no. >i
e x p ’> «eo< do n nut >n >> u tdo ! i t !< da-k - e de sua-,
-instumçoi •> 'i ' pnss :i p <i i , i i << u v d ’ i >> a mi «e ’ lid.,\'r 1 i >7 l/i,
ijiic’ mio st’ liii.uíe /?s math ln > 1 i en ^ > <u
C o mo n orma lme mc s m snshtui' Cv, (.orno a escola, o Tri bu
nal do júri, a mu-jn, oh , >j . - n ^.'Sa p> 'd ns â n e manufencâo
das norma-- pi o. í mI<u n<- da vond.ií.t ia!, 1 ao estos mesmas
instituições as i í,\.pomu\eis p< !ai mima , uo ' apai e* nr" <ocial que
fundamenta o imaginário dos agentes que vivem naquel e meio
social, Estas instituições asseguram a sua validado efeíi\a e te
impõem à sociedade, segundo Castoriadi s207, de modo superficial, e
apenas em alguns casos, nu lUarde c o e u ã o e ^an< oll Men os super
ficialmente, e de íonn i . u> >1 n u *. a d •> o n >oin
consenso, a legitimida * <• < < i. nhia». ..ii.ilbt', poi
meto e através da n 1 I i u <* u .> de matéria-prima
h u m a n a em indivíciuc > .. t c orporados tanto as
jn^ijup-pne-' com o os " r r - i n - m o s ' de sua perpetuação.
1 \ í, atetta Ca^touadis, "não peigunre c om o é possível que a,
m mon a das pessoas não venha m a roubar, ainda q ue tivessem
fome? Não pergunte nem mesmo como é possível que eles conti
nuem a votar em tal ou qual partido, mesmo após terem sido-
‘enganados repetidamente? Pergunte-se antes: Qual a parcela de
itodo o meu pensamento e de todas as minhas maneiras de ver as'
• coisas e de fazer coisas que não está condici onado e co-determina-'
do, e m grau decisivo, pela estrutura e pelas significações de minha
língua materna, pelas organizações do m un do que essa língua
carrega, pelo primeiro ambiente familiar, pela escola, por todos os
206 C o m o assevera B ir m a n (In t e rp r e ta ç ã o o r e p r e s e n t a ç ã o na s a ú d e co le tiva ), o
p r ó p r i o " f a l o " - o d a d o o b je ti v o que c no ssa m a té r ia - p r i m a - "já c u m recort e
re aliz ado no real m e d ia n te u m a o p e r a ç ã o i n terp r eta tiv a, um a v ez q u e só p o d e m o s
c o n h e c e r os f e n ô m e n o s a tra v és d as teorias e es t a s são c o n s tr u ç õ e s h um anas
h is to ric a m e n t e data das. A in terp reta çã o , ai< im , d efin e o "olhnr p o s sív el" q u e in cide
so b re o d ad o, olhn r es te qu e tem seu s lim ites tw ep iítc m e, inata nqui na p er sp e ctiv a dc
Foucnnlt (A rq u eolo g ia do S ab er). Cfe. Spínk, M ary Jane. D e s v e n d a n d o as teorias
implícitas: um a m eto d o lo g ia de a ná lise das r e p r e s e n ta ç õ e s so ciais . íti: T ex tos em
rep resen ta ções so ciais, Petrópolss, Vozes, 1994, p. 1,41. (grile i)
207 Cfe. C a sto riad is, Co rn e liu s . E n cru zilh ad as do la b irin to II - o d o m ín io cia hom em .
T rad . d e J o s é O s c a r de A lm e id a M a r q u e s . R io de j a n e i r o , Paz e T e rra , 1987, p. 229.
T R I B U N A L DO JÚRI 1 3 9
dado- "padrão de nor mali dade" , os m emb ros da comu ni da d e
apreenderão os fenômenos tie-iu oíd o-com -aqu ü c-qn e-é-ian sid ern d a-
nornial, nisso se incluindo, evident ement e, o tipo de jurado escolhi
do para ivprosrntn-los junto ao Tribunal dn [uri.
, Desta forma, c onforme Castorindis, dissimula-se, através de
um discurso eficaz e competente, a perpet uação de uma forma de
dominação que, antes do passar por questões de etnias ou por
outras explicações que consideram o j urado, o réu, o juiz, o p r o m o
tor de justiça ou o advogado c omo uma mônacia, e não c omo um
componente de uma sociedade atravessada por uma luta de classes
(tornada surda), passa, inexoravelmente, por expl orações sócio-eco-
nômico-político-ideológicas das camadas médio- superiores sobre,
as camadas excluídas da sociedade.
Ressaltasse, por último, que uma vez apresentada toda essa
problemática, é necessário que se previnam mal- ent endidos ou
desagradáveis querelas. Nesse contexto, com ( lodeli er (op cit.) há
um meio de explicai c omo os i n d h í d u o s e os g i up os domi nados
podtin V<>nemn rs;< i.. t hhmok n fo ’ n a s>ia d o m i n a r ã o I ni^t^o
i, w i < '* d ) '/ i i ã 1 ih>' ' > i i <m o i " i s, 1 ’ t > i n í ’h ’ 7 is
dn , i is I V s 1.- p >d< i u c - . l i s n í s f i a s e l e . : m n » e
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j j_ 1 1 ij u | i >! t. i iO qa< 'h u " u 'd< n o -, t <.j c 1 i a i d o s pa i ulb* s 11 a -•
m esma s representações, para que nasça a torça mais forte do poder
ide uns sobre os outros: um con sen tim en to, fu n d a d o no recon hecim en to
dos benefícios e dn legitim idade d esse poder, um consen so fu n dado no
reconhecim ento de sua ueces^iiiade. No fundo, trate-se de um ."consen
so extorquido".
Na medida em que as instituições d e t ém o trinõmio pod e r/ sa
ber/lei, os agentes s o c i a i s - n ot ada men fe a classe m en o s f avoreci
da/domi nada - são, assíirn destituídos de sua condição de
produtores, de detentores e de legítimos destinatários da cultura,
cabendo-lhes, tão-somente, no processo de f ormação do imaginário
social, o papel de meros coadjuvantes/reprodutores.
TRIB UN AL ÜO JÚRI 1 4 1
Desse modo, face aos mecanismos de c oop ta ção e controle
estudados, que se materializam nas instituições e através delas,
mediante formas ritualizadas, pode-se depre en der que tais manif es
tações (inclusive os resultados dos j ulgamentos) constituem uma
realidade possível, e que se realiza em vista da ausência de mecanis
mos de resistência por parte cios agentes a ela submetidos. Por
conseqüência, esta não seria a única forma possível de realidade a
ser desenvolvida, Essa espécie de "d e te rm in is m o " tem sua gênese a
partir de um processo de produção do sentido dos discursos,
produzido pelas camadas m éd io-sup eriores da sociedade, repre
sentadas pelas diversas instituições que, pela sua constituição
histórica, im pedem que os setores dom inados tenham acesso ao controle da
formação social.
Conseqüentemente, uma alteração na compo si çã o do corpo de
jurados no Tribunal do Júri, tornando-o mais representativo dos
sefores populares,212 tanto no que tange aos grupos ocupacionais
c omo aos descendentes das várias etnias que c o m p õ e m a sociedade,
produziria uma outra realidade rio sistema jurídieo-social, no in te
rior do qual a aplicação efetiva da norma jurídica, através tio
Tribunal do |úri, tornaria outro rumo.
Duas advertências aqui se impõem para evitar uma visão
maniqueísta dos fatos: em primeiro lugar, não se está afirm an do qiie it.111
número maior de absolvições torne um determ inado Tribunal do júri
melhor, mais justo, do que outro e vice-versa. Em segu n do lugar, mesma
estando garantida a represeutativídade social no Tribunal do Júri, isso não
significa, autom aticam ente, que a decisão do corpo de ju ra d os reflita ioda a
diversidade social da comunidade, ju stam en te devido ao fen ô m en o dn
projeção social de classe, passível de introjeção por parte das camadas
médio-inferiores, Como já lembrado (Poulantzas), a atuação de inte
grantes de uma dada camada social não é diretamente determinada
pela sua atribuição de classe. Não-há necessariamente uma identi
dade imanente entre a situação de classe e a projeção de classe.
Pós-m arxistas como Ernesto Loclau e ChantaL Mouffé chegam a
afirmar que não há nenhuma conexão lógica entre as idéias de uma
ii2 Em Port ugal, o D ecreto-Lei 6 7 9 / 7 5 e sta b e le c e q u e a id a d e m ín im a para ser
ju ra d o é de 25 anos, o que implica qu e o ju rad o d e v e ter já a l g u m a e x p e riê n cia de
vida. A seleçã o c> feita por sort eio n o s c o n s e l h o s e nas a d m i n i s t r a ç õ e s d e bairr o, O
ex er cício da f un ção de ju ra d o é re m u n e r a d a . O D e c r e t o e n u m e r a u m a série de
i n c o m p a tib ilid a d e s com a f un ção de jurado, e s p e c ia l m e n t e para ev i t a r que inter-
v e n h a m no Júri pessoas qu e, quer pelo se u c o n h e c i m e n t o d o m u n d o foren se, q u e r
pela po sição de a u to rid a d e ou d e s t a q u e que d e s e m p e n h e m na s o c i e d a d e , po ssa m
orig in a r uma reação de- te m o r rev e ren c ia i por parte dos d e m a i s ju ra d o s .
T R I B U N A L DO JÚRI 1 4 3
inclusive analfabetos, porque agora 'ci dadãos' - a duzi ndo que a
sociedade é composta por pessoas de diferentes quilates e matizes
e, por tal, sendo o júri o ' julgamento do h o m e m por seus pares', os
representantes dos diversos s egmentos sociais deveriam, adentrar a
justiça, como jurados".
N a visão de Bonfim, pois, há que se pro p u g ar "pela m elhoria
nos critérios seletivos dos referidos cidadãos. A m aior crítica dos
adversários do júri é justamente o despr epa ro do leigo ao jul
gar'^...). Nesse contexto, " democ ra ti zar " não encontra sinonímía
em "desqualificar". Assim, se por um lado é certo que a rtilio do júri
é a não-exigência de qualificação técnica, do j urado, por outro
também, a ininus valia íntelectiva e de caráter não abona a pretensão
de ver-se incluído na cilada "lisla"... afinal, b em julgar, c onquant o
não seja apanágio egoisticamente tributado s ome nt e ao juiz togado
(...), também não pode ser pressuposto de que m sequer entenda o
processo que se julga e a missão a que se d es t i n a" 217.
No mesmo diapasão, vale registrar a entrevista que um dos
promotores mais antigos do Tribunal do Júri de Porto Alegre
concedei! à Rádio Guaíba, no dia 26 de junho de 1992, p or ocasião
do julgam ento, que durou três dias, de um g ru p o de seis colonos
acusados da morte de um policial militar. P ergu ntado se o corpo de
j urados sorteado para o caso era representativo da sociedade,
respondeu o promotor que sim, na medida em que, p o r exem plo,
para se julgar um vileiro, não precisa haver vileiros no corpo de
jurados, sendo irrelevante para o jú ri a classe, social a qu e perten cem os
ju rad os...
C o mo necessário contraponto, é preciso registrar que os d ef en
sores de tais teses esquecem que os resultados dos j ulgamentos
resultarão da aproximação do discurso das partes c om o " m od elo"
que os jurados vizualizam para a sociedade a qual "representam ",
além de servirem como uma espécie de "certificado de a pr ova çã o"
(ou não) das condutas dos atores envolvitfos no processo. Desse
encontro de interesses, valores e visões de m u n d o , resultará a
estabilidade (ou não) do c or po de jurados de cada comuni dade.
Dito de outro modo, "o que as listas de j ura dos nos dizem, em
última instância, é quem são os principais guardiães da ordem
pública, dos valores estabelecidos, as pessoas respeitáveis, que
detêm o poder de decidir se a quebra de uma regra básica de relacionam ento
entre as pessoas pode ou não ser con siderada legítim a, e em que term os"219.
21' íd em ,
21íl Cfe. C o rrea , op. cit., p. 78. (grifei)
TR IB UN AL DO JÚRI 1 4 5
equilíbrio, cidadãos de fados os segmentos sociais, e a cada ano inteiram en
te renovada. Ousamos proclamar ser esta a pri meira tarefa legislati
va, sem a qual todas as demais r ef or mulaç ões que v e nh am a
emergir, de pouco v-alerão, em benefício do e ng r an de ci me nt o do
Tribunal do Júri na comuni dade brasileira".
Corretíssima a apreciação de T u bench lak . T a m b é m a elabora
ção da lista de jurados deve passar pelo necessário processo garan-
tista de " contaminação constitucional". Dito de on íro modo, manter as
" lista s" como estão ó reduzir/condenar o Tribunal do Júri a um papel de
(mero) instrum ento áe. reprodução social. Ora, na m edida em que o
Direito, no Estado Dem ocrático de Direito, a ssume - rep ita-se - uma
função transform adora-prom ovedora, a transformação do júri em
instrumento de soberania popul ar passa por unia ampla participa
ção popular. Essa participação deve ser en ten dida com o uma participação
que rompa com o superado modelo liberal-in diviáiin lista de direito, que
trabalha cow n perspectiva de um direito ordenador, em que as liberdades
são negai ivas. Por isso, também para que o Júri se transforme nesse
instrumento de soberania popular, deve, n ev id ên cia, sofrer altera
ções, tanto no que tange a sua rítualístiea, c o m o no q u e diz respeito
a sua com petência, que deve ser alargada. De nada üdian!a ser n jú ri
soberano, se ficar tnlsfrilo.no ju lg am en to de conflitos de cu n ho iitlerindivi-
du ais. Direitos cie segunda e terceira geração, q ua n do violados,
t ambém devem ser trazidos à apreciação popular.
Por ultimo, cabe referir que ao longo destas reflexões pôde ser
aventado que, de fato, os estereótipos pr oduzidos de forma si mbó
lica, ritualística e ideologicamente pelas instituições que representam
os setores dominantes da sociedade221, cumprem papel fundamental
na manutenção do status quo, consubstanciando, inclusive no plano
discursivo, a supremacia de alguns indivíduos sobre outros. A isto nos
opomos. Daí a perspectiva crítica destas reflexões!
1 4 6 LENIO LUIZ.STRECK
composição., mediante a maciça part ici pação de t odas as camadas
sociais da sociedade c o con seqü en te áesv iin lician ien to e a deselitização
das listas de jurados, torna-se necessária, t a mbém, uma m ud a n ç a em
sua estrutura jurídico-formal. De s se modo, c m se gui me nt o, algu
mas alterações são sugeridas, visando a d in a mi za r os julgamentos
pelo júri popular.
T R I B U N A L 130 JÚRI 1 4 7
Mai s recentemente, a Comissão de Ref orma do C ód i go de
Processo Penal, composta pelos juristas Ada Pellegrini Grinover,
Petronio Calm on Filho, Antonio Magal hães G o m e s Filho, Antonio
Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Mi guel Real e Jr, Nilzardo
Carneiro Leão, Renê, Ariel Dotti, Rogério Latiria Tucci e Sidnci
Beneti, apresentou anteprojeto sobre o Tribunal do júri. O citado
projeto, a par de avançar em direção a uma celeridade maior do que
a do p ro je!o de lei 1755-B, de 1983, segue trilha se me lha nte ao
projeto da Comissão presidida pelo Ministro Sálv io de Figueiredo.
C o m efeito, no que tange ao rito processual, a C o m is s ão propõe as
seguintes alterações:
a) oferecida a denúncia, o acusado é citado para ofer ecer defesa
prévra, oportunidade em que poderá argüír preliminares, especifi
car provas, juntar d ocumentos e arrolar testemunhas.
b) a audiência será concentrada em um só ato processual, com
a inquirição das testemunhas, interrogatório e alegações orais.
Ainda nessa primeira fase, perante o juízo sing u lar e s ome nt e após
concluída a instrução preliminar é que se dará o juízo de admissibi
lidade da acusação.
c) recebendo a denúncia através de decisão fundam entada,
uma vez convencido da materialidade do fato e da existência de
indícios de autoria ou participaçção, somente então o juiz pr o nun
ciará o acusado.
d) não se convencendo, o juiz impronunciará ou absolverá o réu.
re s tr in g ir -s e à i n d ic a çã o da m a te r ia lid a d e d o fato d e li t u o s o e d e i n d íc io s s u fic ie n
tes de a u t o r i a ou p a r t ic ip a ç ã o , r e m e t e n d o o p r o c e s s o p a ra o júri. 2. O pro jeto
p e r m it ia a r e a liz a ç ã o d o j u l g a m e n t o p o p u l a r sem a p r e s e n ç a d o réu. 3. O lib elo era
s u p r i m id o , fic a nd o os lim ite s da a c u s a ç ã o e x p o s t o s na p r o n ú n c i a . 4. In stitu ía -s e o
p r e p a ro d o p ro ce ss o , v is a n d o à d e li b e r a ç ã o ju d ic ia l s o b r e r e q u e r i m e n t o d e pro va,
ao s a n e a m e n t o de n u l id a d e e a o e s c la r e c i m e n to s o b r e fato re le v a n te . O relatório
seria feit o n e ssa o p o r t u n i d a d e , e não m a is em p l e n á r io , d e v e n d o se r r e m e t id o aos
ju r a d o s j u n t a m e n t e co m o e x p e d i e n t e da c o n v o c a ç ã o . 5. O p r o j e t o tam b ém
a m p li a v a o le q u e de a l is ta m e n to d e ju ra d o s , co m a so l ic i t a ç ã o d e l is ta s forn ecidas
p o r a ss o c i a ç õ e s de b a i r r o s e institu ições de en sin o . 6. O a s s i s t e n t e d e acu sa çã o
po d eria re q u e r e r d e s a f o r a m e n t o , 8. M o d i f ic a ç ã o da i n s tr u ç ã o e m p l e n á r io , através
da in s tit u iç ã o d o cro ss e x a m im t io n . C o m isso, a s p e r g u n t a s p a s s a r i a m a feitas
d ir e t a m e n t e às te s t e m u n h a s e ao p r ó p r i o réu p e lo j u i z - p r e s i d e n t e , p e l a s pa rtes e
p elo s j u r a d o s . 9. M a io r l ib e rd a d e para o j u r a d o f a zer p e r g u n t a s e e x a m i n a r os
a u to s d o p ro ce ss o . 10. S im p l if i c a ç ã o do q u e s t i o n á r i o aos j u r a d o s , a t r a v é s da
f o r m u l a ç ã o de s o m e n t e três .qu esitos: m a te r ia lid a d e , a u t o ria e c o n d e n a ç ã o (ou
a b s o lv içã o ). Se o réu for c o n d e n a d o - co m a a f ir m a ç ã o d o t e rc e iro q u e s i t o o juiz
in d a g a ria so b r e a cau sa de q u a l if i c a ç ã o ou de esp ecia l a u m e n t o d e p e n a co n s t a n
tes da p r o n ú n c i a . O q u esito o b rig a tó rio so bre a t e n u a n t e s s e r ia e li m i n a d o . TL
S u p r e s s ã o d o p ro testo p o r no vo júri.
T R I B U N A L DO JÚRI 1 5 1
seria um contra-senso expungir u m recurso, favorável ao réu, cm
plena vigência cia Constituição mais democrática que este país já
elaborou. Há que se preservar mecanismos processuais que venham ao
encontro de uma visão garantista do processo. Penas que ultrapassem os
vinte anos cie reclusão d ev em ser s ubme ti da s ao duplo crivo da
sociedade. Reconheço que, na prática, muitas penas são- fixadas
abaixo de vinte anos justam en te para im p ed ir esse recurso. De
qualquer sorte, se a sociedade - representada no júri - considera
relevante que se a pene alguém com uma sanç ão acima de vinte
anos, deve fazê-lo com convicção, que, com certeza, não se e s mo re
cerá em um segundo julgamento.
Por último, registre-se que o projeto insiste na m an uten ção do
assistente de acusação, o que contraria a Constitui ção Federal,
consoante já sustentado.
Por derradeiro, releva anotar que, muito embora os avanços e
indiscutíveis méritos do citado anteprojeto, c h a m o a atenção da
comuni dade jurídica para a sugestão apresentada pelo jurista Afrá-
nio Silva Jardim. Conf orme sua proposta,
a) após as alegações preliminares, o ju iz prolata despacho
saneador, examinando as condições da ação e os
processuais, principalmente os da validade dn relação
b) admissível a acusação e estando regul ar o processo (nao
esquecer da justa causa, definida c omo sendo o suport e probatório
m í ni mo da autoria de um crime), o juiz def eri rá e determinará a
realização de eventual prova pericial postulada, desi gnando, desde
logo, data para a sessão de j ulga ment o do Tri bunal do Júri, onde
será produzida a prova oral, seguida de debate s e decisão dos
j u r ad os 225.
7.2.2. O problem a d o s q u e s it o s
Muit os doutrinadores def en dem a simpli fi cação dos quesitos.
Os quesitos, da maneira c omo hoje são r egulados pelo Código de
Processo Penal em vigor,' tornam bastante difícil o trabalho dos
jurados. Tubenc hlak226, embor a defensor da tese da simplificação,
adverte que, por exemplo, o princípio do guilti/or not gu ilty 227 não se
225 C o n s u l t a r Jardim , A fr ânio Silva. D ireito P ro cessu a l P eiu il. 6- ed. R io de laneiro,
S a r a iv a , 1987, p. 335
i2c’ Cfe. T u b e n c h l a k , op. cit., p. 141.
‘ í/ H á um a v e rd a d e ir a - e e q u i v o c a d a - f a s c i n a ç ã o p e l o s i s t e m a a m e r i c a n o do
"g u i l ty o r n o t g u i l ty " . É nessa linha q u e se e n q u a d r a o P L 6 2 9 / 9 7 , de au to ria do
Dep. E n io Bacci, que tramita no C o n g r e s s o N a c i o n a l , t r a t a n d o d a sim p lifica çã o
T RIBUNAL DO JÚRI 1 5 3
absolvição do réu resultará da resposta afirmativa ou negativa à
seguinte pergunta: " O réu foi o autor do fat o?" Por outro lado,
tratando-se de autoria admitida e tese excu ipatória de legítima
defesa, o quesito específico assim seria redigido: O réu ao eliminar
a vida da vítima defendeu-se de agressão a sua pessoa?, dispensan
do-se, como conseqüência, o que consta e m um dos anteprojetos
publicados no DOU de 30 de ju n h o de 1993, se cunda do pelo mais
recente anteprojeto elaborado pel os juristas..,,229 qual seja, a votação
do quesito sobre a condenação ou a absolvição.
Em síntese, para a v ia tese defensiva corresponderia um quesito-
específico a ser votado segundo a ordem de prejudicialidade (primeiro o
da tese que produz a desclassificação, depois o da negativa de
autoria, seguindo-se o da negativa da materialidade e finalizando-
se com os relativos às excludentes de 'antijuricidade e de culpabili
dade).
3. Se houver condenação pel o repúdio de todos os miesifos
i r i c o s de cada tese defensiva, o juiz forn ; u i •• i ^ c i u s
■. 11. I , ,d i i ' s mini.) <o i ‘ ' T ú ad o r as , m,.ji ,md.- ,'g;a~
ii <• i ’i tíes, oh:- i 1 . a, cm, n - l s • . i . as
• • >u, i , , regra m • ■ e. i íe. j ,i , <. h m t d j a
min' i i .r do iioericídio, privilegiado pela violenta emoção, o juiz
deixara, por exemplo, de quesítar a qualiíícadora do motivo fútil,
pois sabidamente há incompatibilidade entre tais circunstâncias.
Tê m razão os membros da Comiss ão, q uando a duz em que as
sugestões não colidem com a regra proibitiva de formulação de
quesito recheado de significação jurídica. A antiga afirmação de que
os jurados só se manifestam sobre matéria fática é completamente
equivocada. Aliás, o que é "a tenuant e" ? " E agressão injusta"? "Uso
moderado dos meios"? Afinal, qual a fronteira entre o que seja
matéria cie fato e o que seja matéria de direito, no â mbi to do júri?
T R IB U N A L DO JÚRI 1 5 5
7.2.5. A necessária abolição do quesito (antigarantista) genérico
da participação "de qualquer modo"
Sob uma ótica cio Estado Democráti co de Direito, pela qual os
princípios processuais devem ser entendidos com o f azendo parte
dos direitos fundamentais, e a bsol ut amente inconcebível a f or mul a
ção do assim denominado "quesito genéri co" da "part icipação de
q ualquer m o do " em um fato delituoso. Com efeito, se a denúncia do
Ministério Público é nula q ua ndo afirm a que o réu participou de um
homicídio, sem descrever a forma dessa participação, também será
nulo, por decorrência lógica, o quesito que imputa conduta genérica
ao réu, do tipo "concorreu de qualquer modo para o crime". Daí que,
-no dizer de Tubenchlak232, o Conselho de Sentença não deve ser
instado a responder a indagações genéricas, sob qualquer pretexto, até
porque não são válidas as imputações genéricas. Tal quesito, diz o
magistrado fluminense, afronta o princípio da ampla defesa, além de
dificultar o entendimento e a compreensão dos jurados.
Desnecessário referir a vagueza da expressão " d e qualquer
m o d o " 233, que pode tanto ser uma p articipação por in stigação, por
apoio material, emocional ou. ainda, ou aiq u er "outra ma nei ra " que
importe alguma í> > p ’ >‘ u > * >cio co~r< * vidência, isso
representa uma \ ' o ' - « • , < consi: i ais da ampla
defesa e do devido m a-a-.s...... -e&a!. p i á ti ca tem cí.^,,,onstrado que,
em mui tos julgamentos, como, v.g., o de José Rainha, líder do MS T
ou cio caso dos colonos sem terra em Porto Alegre, o quesito "de
qualquer m o do " tem servido para enqua dra r os " desvia nt es so
ciais" em delitos de homicídio, m es mo que, em boa part e deles, não
tenha sido suficientemente pro va d o o nexo causai entre a efetiva
participação e o evento morte da(s) vítima(s).
T R IB U N A L D OJÚ E1 1 5 9
Em obra publicada recentemente, A ra mi s N a ssif235 faz coro
conosco, ao dizer: " Certament e, a j urisprudência nacional, ainda,
relutante, saberá expurgar do sistema jurídico brasileiro a fig u r a do
assistente de acusação, eis que seu malefício destaca-se no T ribunal do
júri, onde, até mesmo em constrangedora colisão com o pen sa m en to do
Ministério Público, sua atuação, patrocinada pela família da vítima,
obrig a-o a acusar, num a estranha e triste sim iliínde com o princípio dn
obrigatoriedade defensiva, gerando lamentável per plexi dade no C o n
selho cie Defesa".
TRIB UN AL DO JÚRI 1 6 1
prática, o júri é facilmente desvirtuado: " Entre nós - p o r que não
dizer? - tem sido instrumento p olítico-cap italista. C om m uito poucas
exccções, não há réu que, gozando do bafejo político ou desfrutando de boa
posição social, seja condenado por ele. /...] Freqüentem ente, não é o réu que
se julga, mas o Cel. Fulano, o Prefeito Beltrano, o Dr. Cicrnno etc".
Impõe-se, pois, uma profunda reflexão sobre essa dicotomia
"direito penal do autor" e "direito penal do faro"241, abandonando-sc
a pratica do estereotipado uso dos antecedentes do acusado cm plenário,
bem como, por outro lado, da fácil retórica do "poder dos fracos" ou a
proveitosa exaltação das virtudes do réu, pró prio do discurso
(também, no mais das vezes, estereotipado) discurso da defesa.
T R I B U N A L D O JÚRI 1 6 3
princípio da f undamentação das decisões; se gun do, por que os
jurados, cidadãos leigos que são, dif erenci am- se dos juizes profis
sionais mormente por não estarem atrelados ao c h am a d o livre
c onvencimento ou persuasão racional. O que com an d a seus votos é
a íntima convicção, não havendo razão para se discutir ou examinar
e muito menos cassar o veredicto baseado no sent iment o persona
líssimo, porque íntimo e secreto, gravado e exi gido com todas as
letras na Constituição Federal.
O Supremo Tribunal Federal, ao enfrentar a matéria, logo após
o advento da nova Carta, decidiu pela ma nut e nç ã o do antigo
entendimento, no sentido de q u e ele " n ã o fere a garantia da
soberania dos veredictos do Tribunal do Júri (CF, art. 5Q, XXXVÍ1Í, c) e
o cabimento da apelação contra suas decisões por se mostrarem
manifestamente contrárias às provas dos autos (CPP, art. 593, III, d)"
(RT 664/376).
Diferentemente do que sustentei nas edi ções anteriores,245
penso, hoje, que a apelação das decisões do T ribun al do Júri, tal como
disciplina o art. 593, TU, d, do Código de Processo Civil, mio f e r e a sua
soberania. Com efeito, "se dermos ao dispositivo legal interpretação
restritiva, vedando que o Tribunal de just iça venha a optar por urna
das versões probatórias constantes dos autos para prover o recurso,
e se levarmos em linha de conta que o m e s m o Tri bunal não poderá
reformar a decisão dos jurados, mas t ão- some nt e p ro vo ca r outra
decisão do Tribunal Popular, descab en d o nova apel ação pela mes
ma h ipótese de cabimento, verificamos in existir violação à sobera
nia do júri, mas apenas um m ecanismo de p rov ocar um novo julgam ento
por este mesmo Tribunal do Júri, em busca de m aio r segurança em face
de crimes e penas tão gr av es" 246.
É evidente que a tese acerca da n ão- recor rebi li dade contém
(fortes) atrativos. Tal tese reforça a soberania do júri, ainda que
aparentemente. Porém, em uma perspectiva garan tista do processo penal,
não há como evitar que as decisões, nas hipóteses de serem m anifestam ente
contrárias às provas do au tos247, v en ha m a ser revistas na instância
A tese foi su s t e n t a d a n a s d u a s p ri m e i r a s e d iç õ e s d e s t a ob ra .
Cfe. J a r d i m , op. cit, p. 336.
24' É d e s p i c i e n d o d is s e r t a r acerca da (e x cess iv a ) te x t u r a a b e rta da e x p r e ss ã o
" m a n i f e s t a m e n t e co n trá ria à p ro v a dos a u t o s " . Em t e r m o s de h e rm e n ê u t ic a
jurídica, é ine x orá vel q u e isso oc o rr a . C o m o b e m d iz O r l a n d i , i n t e r p r e ta r é dar
sen tid o, é d e lim ita r d o m ín i o s , é c o n stru ir sítios d e s i g n i f i c â n c ía . Cfe. O r la n d i, Eni
P, O d isc u rso fu n d a d o r . C a m p i n a s , E d ito ra P o n te s , 1993. Para ta n to , " n i n g ú n
in térp r e te p u e d e p r e t e n d e r estar frente al texto n o r m a t i v o lib re d e p r e c o m p r e n -
siones, p u e s ello e q ü iv a le ria a esta r fuera de la h is to ria y a - h a c e r e n m u d e c e r a la
T R IB U N A L D O j Ú R t 1 6 5
eventual, mas a atitude mental do agente e m face de sua possível
superveniência." A caracterização do dolo eventual é ex tr emament e
complexa. Ninguém ignora a dif iculdade para a difer enci ação do
"dolo ev en tu al" da figura da "culpa co n s c ie n te " 249. O q ue é assumir
o risco de produzir o evento? A evidência, assumir o risco não é a
mesma coisa que "arriscar-se" a produzir-um evento: "assumir o risco
é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir
previamente no resultado, caso venha este, realmente, a ocorrer'' -51'.
Isso significa dizer que a figura do dolo eventual não deve ser
utilizada c omo pedagogia ou remédi o contra a violência no trânsito.
O direito penal, como já afirmado anteriormente, não deve ser
aplicado hobbesinnnmerite. Dito de outro mod o, o ope ra dor do
direito, em face dos delitos de trânsito, embora graves, não d eve ser
obrigado a optar entre "civilização", representada pela adoção do
dolo eventual - de onde exsurgirão punições rigorosas -,e a " b a rb á
rie", representada pelos milhares de crimes prat icados cotidiana-
mente. Isto porque é nas crises e nos casos limites que o direito
nenal e a próoria teoria cio delito são colocados em xeque. Os
i , las c ( rdeni, va buscri dc um rcprr^iuisina snnauíor, ophim
!77c/e e mnlerinl251, pela qual nem m esmo os (mínimos)
r .composto,-, u „ ò i..áticos do direito penal são preservados.
249 Para Francisco Assis Toled o, a diferença en tre doio eventu al e cu lp a co nsc ie nte é
que nesta o agente não qu er o resultado ne m a ssum e o risco de produzi -lo, mas,
sabend o-o possível, acredita sincera m ente po der evitá-lo, o que nã o aco n tece p o r erro
de cálculo ou erro de execução, lu P rin cípios básicas do direito penal. S ã o Paulo, Saraiva,
1984, p. 218. Segu nd o Ces ar Rilencourt, "há culpa co nscie n te q u a n d o d agente,
deix ando de ob servar a diligência a q u e estava obrigado, p re v ê um resultado,
previsível, mas confia convietamen te que ele não ocorra. Q u a n d o o agente, em bo ra
p re ven d o o resultado, espera sin cera m ente que este não se verifique, estar-se-á diante
de cu lp a consciente, e não de dolo eventual, No entanto, c o m o bem destaca Juare z
Tavare s, na análise desta esp écie de cu lpa, deve-se agir co m cautela, pois a sim ples
pre vis ão do resultado não significa, p o r si só, que o agen te age co m cu lp a consciente,
posto que, mais que a previsão, o que caracteriza efetivam ente é a consciência acerca
da lesão ao dever de cuid ado", hi; T eoria gera! do delito. S ã o Paulo, RT, 1997, p. 110.
Consultar, também , Tavares, Juarez. Teoria do delito. São Paulo, RT, 198,0.
2“'° Cfe. Bastos Jr, E d m u n d o J o sé de. D o lo ev e n tu al, cu lp a c o n s c ie n t e e c r i m e s de
trânsito . In: Á llc r Á gora. A no II, n.3, o u t / 9 5 , p. 47.
Ajl Sa io de C a r v a lh o alerta para o fato de q u e os a r g u m e n t o s b a s e a d o s em
ra cio n a lid a d e m ate ria l são p e r f e i t a m e n te a d m i t id o s em D ireito P e n a!. De form a
g a ra n tid o ra inclusive. O qu e não se p o d e ad m itir, sob p en a de q u eb ra dos p rin cíp io s
con stitu c io n a is, é a litiliznçno da ra cion alid a d e in alerial in m a ll a m p a r t e m . V e ja - se o
ca so do co stu m e: é im p o ssib ili ta d o d e cri ar d e lito s e a u m e n t a r p e n a s , m as op era
c o m o descrim m alizaciür de fato na in t e r p r e ta ç ã o ju d ic ia l. C o n s u l ta r , para tanto,
C a r v a lh o , Saio de, A p olítica crim in al b rasileira de d ro g as: d o d isc u r so oficial às razões
da d escrim in alização . Rio de Ja n eiro , L u a m , 1996, p. 194-198. (grifei)
T R I B U N A L DO JÚRI 1 6 7
çâo do resultado concomitante. Apesar dessas objeções, é preferível
a teoria da vontade, repete o autor, por que, em última instância,
todo o problema do dolo desemboca a mp la me n t e na demonst ração
do querer o resultado, sendo insuficiente a si mples representação
de sua produção provável. A demonst raç ão desse querer suscita, na
prática, certamente, problemas de prova, mas nem por isso dele se
prescinde, conclui.
O que parece fundam ental, em última análise, é a avaliação do
conteúdo do dolo. Daí a pergunta: com o prescindir da vontade se ela é
a principal característica do agir doloso?
D r. rnesma forma entende Heleno F rag o so253, para quem o dolo
eventual aproxima-se da culpa consciente e dele se distingue
porque nesta o agente, embora p re ven do o resultado c omo possível
ou provável, não o aceita n e m consente. Não basta, portanto, a
dúvida, ou seja, a incerteza a respeito de certo evento, sem i mp li c a
ções de natureza volitíva. O dolo eventual põe-se na perspectiva da
.vontade, e não da representação, pois esta última pode conduzir
também a culpa consciente. Nesse sentido, já decidiu o STF (RTj,
35/282). A rigor, diz Fragoso, a expressão "assu m ir o risco " c imprecisa,
para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve ser interpretada
em consonância ci-a; o teoria do con sen tim en to.
Fragoso considera útil c o m o critério prático para identificar o
dolo eventual o princípio d en omi na do por Frank de teoria positiva
do consentimento. Segundo esse princípio, há dolo eventual q ua n
do o agente diz a si mesmo: "seja assim ou de outra maneira, suceda
isto ou aquilo, em qualquer caso, agirei". Revela-se, assim, a
indiferença do agente em relação ao resultado. Outra teoria criada
por Frank, chamada de teoria hipotética do consentimento, dá conta
de que haveria dolo eventual q ua nd o a previsão do resultado c omo
certo não impedisse a ação. Essa fórmula foi objeto de séria crítica e
nao pode ser aceita sem reservas, alerta o autor. De qualquer sorte,
conclui o saudoso professor, " ela representa, com o a outra, esforço na
fo rm u la çã o de critérios práticos para evidenciar o conteúdo psicológico da
ação. Se subsistir dúvida cm relação ao mesmo, deve-se admitir a hipótese
menos g ra v e de culpa con scien te" . E nisto, talvez, que resida a resposta
à pergunta: qual o posicionam ento mais gnrantista?
7.3. Deve o Júri ser extinto? O j ulga ment o por í nti ma convicção,
sem a necessidade de justificação/fundamentação, é
compatível com uma perspectiva garantista do Di reito?
Aspectos políticrr-ideológicos e fo rm a is-in stru m e n ta is
acerca da controvérsia
T R IB U N A L D O JÚRI. 1 7 1
melhor a tarefa de distribuir a justiça, c omo se estivessem eles -
juizes togados - a salvo da influência de critérios ideológicos ou
mesmo de emoções que circundam os casos. Essa crença faz com
que se pense que, fora dos padrões técnicos, não se faz justiça. Para
exemplificar, lembra que a j urisprudência, c om in e o mu m reitera
ção, tem assinalado que o d epo im en to de policiais é pl enament e
válido e indigno de suspeitas apriorísticas. Mai s do que isso,
prestigiando confissões obtidas na polícia, há vozes que insistem
em afirmar que estas con fissões são válidas não pelo lugar em que
são feitas, mas pela força do seu con ven ci men to e m termos de
verossim ilhança.
No entanto, prossegue, após o caso Bodega, no qual se viu,
para dizer o menos, que em n ome de resultados criaram-se confis
sões, ou mesmo após Diadema, quando, pela enésima vez, const a
tou-se que o Polícia Militar age com violência, o q ue st iona ment o da
validade da confissão produzida na polícia per ant e o h o me m
c omum, que leva em consi der ação a experiência do cotidiano,
ganha sustentação. Assim, trabalhando com dados não n ecessaria
mente técnicos, pode-se c hegar a um b o m j ulgament o perante o júri,
m ais suscetível rt realidade do que os ju iz es togados, que se mpre estarão
a exigir a dificílima prova da tortura.
Por outro lado, acrescenta Toron, há uma trama interpretatíva
em torno das provas, de tal m od o que, e de acordo com a capacida
de argumentativa de promotores e advogados, a aquiescência dos
juizes populares é obtida por mei o da mobil ização de seu ima gi ná
rio. O júri é criticado por isso. Porém, argumenta Toron, t ambém
nos processos desenvolvidos sem a oralidade dos profissionais o
m esmo pode ocorrer - isto é, aquele mais b e m preparado consegue
reunir mais provas, apresenta mais e mel hor es ar gumentos e,
enfim, projeta mais força a sua pretensão.
Afora isso, arremata, o direito c om u m en te apresenta (questões
cuja resolução encontra eco nã o na dogmática, mas na cultura de
uma época. É aí que o povo, no c onsel ho de sentença, oxigena o
Judiciário, ao prestigiar teses inovadoras c omo a inexibilidade de
conduta diversa (pense-se no abortei) ou m es mo para novos contor
nos na legítima defesa, bani ndo a tese da legítima defesa da honra
nos casos dos assim chamados homicí dios passionais. Lembrando,
por fim, a amplitude do júri nort e- ameri cano, sustenta que a partici
pação popular na administração da justiça deve. ser ampliada, corno prevê
a próprio Constituição, quando trata dn criação dos juizados especiais para
ju lg a r delitos de menor potencial lesivo.
TRIB UN AL DO JÚRI 1 7 3
buscando um consenso. De qual quer sorte, parece que algumas
lições poderiam ser tiradas do escabinato francês, c onf orme deli
neado no capítulo específico (item. 4.1.2). Not e- se que a soberania
popular está bem mais presente no modelo francês, onde é o
próprio júri que decide até m esm o a pena e a forrna de seu
cum prim ento. A possibilidade de alteração do júri depende, à
evidência, de emenda à Constituição, em face do obstáculo repre
sentado pela garantia do sigilo das votações. Nilo creio, por outro
indo, que uma emenda constitucional nesse sentido tenha o condão de
violar as cláusulas pétreas. Com efeito, a Constitui ção Federal estabe
lece a vedação de emendas tendentes a abolir garantias. Ora, o que
não pode ser extinto é o Tribunal do Júri e nem,a soberania de seus
vereditos. Observe-se que, na França e em Portugal, nada do que foi
discutido na sala secreta pode ser revelado. Há a garantia do sigilo.
A sala é secreta. Com uma alteração que visasse a modificar o júri.
brasileiro, aproximando-o, com maior ou men or intensidade, de
outros modelos, o sigilo das votações continuaria, a sçr garantido,
de modo que não vejo cláusula constitucional impeditiva nesse
aspecto.
Por lis,' não pode o júri servir (ou continuar a servir) de
leito procus„,.iue o as d emandas judiciais resultantes de uma socie
dade injusta, na qual, lam entavelm ente, a cada dia o cidadão perde,
pouco a pouco, o que resta de sua capacidade de indignação. Deve,
sim, ser mudado, arejado, democratizado. A mitificação sim bólico/ri-
tualística do júri, historicamente, tem c omo resultado a supressão
simbólica da autonomia dos sujeitos/atores jurídicos/sociais, cons
truindo um imaginário coercitivo, no interior do qual os conflitos
são resolvidos através de prêts-à-portcr significativos. Mas, esta é
uma dns realidades possíveis, e não a realidade, eis que esta não existe
em si mesma. O júri, bem como as demais instituições jurídicas, deve ser
examinado no contexto de uma sociedade em crise.
No final de contas, como muito bem diz A r n a ud 261, " podemos
perguntar se, no moment o de ser examinada pelo jurista, a crise real
não se viu substituída por um certo arranjo de signos que transpu
nham a crise em um model o jurídico. [...] O que o Direito do regime
da 'paz burguesa' solicita dos juristas do Oci dente é que o conside
rem como racional ou, caso eles não o aceitem, que o c ombatam em
nome desta mesma racionalidade que o anima". Devemos, sem
dúvida, nos recusar a aceitar essa situação. E nesse contexto que estas
reflexões se dirigem para a busca das condições e possibilidades de
261 Cfe. A rn a u d , op. cit., p. 179 e 180.
T R IB U N A L DO JÚRI 1 7 5
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TRIBUNAL DO JÚRI 1 8 3
O autor conclui este livro insíigante,
polêm ico e, no dizer de Nilo Batista,
iconoclasta, com uma abordagem acer
ca dos aspectos político-ideológicos
que estão por detrás da utilização do
Tribunal do Júri corno instrumento que
institucionaliza e disfarça os conflitos,
arrancando-os da realidade social para
jogá-los no espaço instituído das gene
ralizações ritualizadas do processo. É
um convite para que o leitor reflita sobre
este torm entoso tema, que tantas pai
xões provoca no mundo jurídico, de
estudantes a profissionais do Direito.
Os editores.
Nilo Batista
D1 )G A D O
Utora
Rua Riachuelo, 1338
90010-273 - Porto Alegre - RS
Fone/Fax: 0800-51-7522
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