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Sumário
1. Introdução. 2. Estado da natureza e esta-
do de guerra. 3. Origem, natureza, limites e fins
da propriedade. 4. Governo civil: limites e fun-
ções. 5. A insuficiência da perspectiva individua-
lista da propriedade.
1. Introdução
Na realidade capitalista dos dias atuais,
o sistema de produção e circulação de ri-
quezas vem sofrendo grandes transforma-
ções em sua estrutura, procurando adequar
o modo de produção que hoje domina a mai-
oria das nações, quebrando e deixando de
lado processos ultrapassados pela tecnolo-
gia, de modo a pôr em seu lugar métodos
mais informatizados e eficientes de produ-
ção, circulação e acumulação de riqueza.
Contudo, a essência do sistema capita-
lista tem-se mantido similar, acreditamos,
ao momento quando foram lançadas as pri-
meiras sementes do Estado Liberal, próxi-
mo do apagar das luzes do absolutismo e
do mercantilismo.
Não é preciso muito para se identificar,
na era da globalização, a manutenção da
separação entre as classes sociais, basica-
mente, entre os proprietários dos meios de
produção e os proprietários estritos da for-
ça de trabalho. Embora se possa constatar a
Vladimir da Rocha França é Mestre em
presença de outras classes e grupos sociais
Direito Público pela Faculdade de Direito do como a “classe média” e o maior acesso do
Recife (UFPE) e Doutorando em Direito do proletariado aos bens de consumo, vitrine
Estado pela PUC/SP. do sistema capitalista, a propriedade como
Brasília a. 37 n. 148 out./dez. 2000 183
elemento indicador de status social e influ- cas: a ciência formal do direito, a ciência
ência junto aos seus semelhantes se man- social do direito e a ciência filosófica do di-
tém intacta, ao nosso ver. reito.
Para compreender a propriedade priva- Cabe à ciência formal do direito, mais
da, essência do sistema capitalista, é preci- conhecida por dogmática jurídica, determi-
so partir daqueles que indicaram os primei- nar as diretrizes formais da concretização
ros preceitos filosóficos e políticos do Esta- judicial ou administrativa de normas jurí-
do Liberal. Entre os pensadores que se des- dicas preexistentes e que compõem um or-
tacam entre os “fundadores” do liberalis- denamento jurídico sistematizado e coeren-
mo econômico, temos John Locke. te, oferecendo solução para todos os confli-
John Locke é considerado como um dos tos levados à apreciação do Estado ou ou-
primeiros construtores do pensamento libe- tras instâncias reconhecidas pelo ordena-
ral, que ainda possui forte influência na so- mento jurídico (cf. Souto, 1992, p. 10-11 e
ciedade. O “Segundo Tratado do Governo Adeodato, 1995, p. 44).
Civil”, de 1690, representa um dos marcos A ciência social do direito “é aquela que
do pensamento político moderno, como “a investiga através de métodos e técnicas de
primeira e mais completa formulação do Es- pesquisa empírica (isto é, pesquisa baseada
tado liberal”(Bobbio, 1992, p.37). na observação controlada dos fatos) o fenô-
Entre as questões tratadas pelo filósofo meno social jurídico em correlação com a
inglês, destaca-se a propriedade, entendida realidade social” (Souto, 1992, p. 11).
por ele como um dos próprios fundamentos Lembra Cláudio Souto (1992, p. 12), que
da existência do Estado. No presente traba- cabe à ciência filosófica do direito o apro-
lho, centraremos nossa análise da relação fundamento dos estudos sobre o fenômeno
do Estado com a propriedade segundo os sócio-jurídico, a partir do conhecimento ci-
postulados construídos por Locke, para ten- entífico-empírico e científico-formal, pois,
tar compreender a perspectiva individualis- “no ponto onde a ciência empírica do direi-
ta da propriedade, e, no momento seguinte, to encerra as suas explicações por não po-
confrontar a visão liberal da propriedade com der ir mais longe – se inicia o trabalho que
as exigências da interdependência social. vai além do investigado, agora em vôos mais
Mas antes de entrarmos na análise das largos, soltos, vôos nem comprovados, nem
idéias de Locke, é preciso fazer algumas ad- comprováveis, por métodos e técnicas de
vertências para a compreensão do presente ciência empírica”.
trabalho. Adverte João Maurício Adeodato (1995,
Partimos de um conceito de direito que p. 39, cf. Souto, 1992, p. 12-13), que a filoso-
procura privilegiar a coesão e a interdepen- fia do direito não deve ser limitada ao cien-
dência social como finalidades básicas do tífico-empírico, mas também pode (e deve)
controle social exercido pelo direito, para a partir de perspectivas mais complexas,
conservação da espécie (mesmo correndo o como a ética.
risco de sermos acusados de jusnaturalis- O jusfilósofo pernambucano aponta três
tas). Se é certo que o direito tem a função de campos de atuação da filosofia do direito:
distribuir a violência legítima e neutralizar “A filosofia do direito envolve pelo
os conflitos, bem como a de fornecer a base menos três lados:primeiramente o cien-
argumentativa para as decisões jurídicas do tífico, na falta de melhor nome, isto é, a
poder (cf. Adeodato, 1995, p. 45), pode toda descriçãodefenômenos,objetos,fatos,re-
a Jurisprudência existir apenas em razão lações,comosequeirachamaramultipli-
dessa tarefa? cidadedepercepções,incluindooproces-
Consoante as lições de Cláudio Souto sodeestabelecerlaçosconceituaisentreos
(1992, p. 9), há três ciências jurídicas bási- objetos observados dentro de uma teoria
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emcertamedidacoerente,sistematizável, ria e ilimitada. Os homens são regidos por
transmissível, como dito. Em segundo direitos naturais, informados pelas leis da
lugar a filosofia vezes cuida do lado natureza e da razão, que delimitam e atri-
ético, pode-se até dizer existencial, com buem a cada um o poder de controlar a con-
o objetivo pragmático de nortear o ser duta de seus semelhantes em prol da huma-
humano para viver o mais adequada- nidade:
mente possível, segundo parâmetros “(...) o homem desfruta de uma liber-
que ele próprio elege, em suas intera- dade total de dispor de si mesmo ou
ções com seus semelhantes, auxilian- de seus bens, mas não de destruir sua
do a decidir conflitos, a agir no mun- própria pessoa, nem qualquer criatu-
do. E, finalmente, uma perspectiva que ra que se encontre sob sua posse, sal-
podemos denominarmetafísica, no pla- vo se assim o exigisse um objetivo mais
no das ‘idéias’ de que falava Kant, a nobre que a sua própria conservação”
filosofia ocupa-se daquelas questões (Locke, 1994, p. 83).
que o filósofo sabe não poder respon- Rege-se o estado da natureza
der definitivamente mas que, inobs- “(...) por um direito natural que se im-
tante, inquietam um bom número de põe a todos, e com respeito à razão,
seres humanos” (Adeodato, 1995, p. que é este direito, toda a humanidade
39, grifo do autor). aprende que, sendo todos iguais e in-
Procuramos, aqui, permanecer no primei- dependentes, ninguém deve lesar o
ro campo de atuação da filosofia indicado, outro em sua vida, sua saúde, sua li-
na busca da compreensão do proprietaris- berdade ou seus bens; todos os homens
mo, ou seja, a fé na propriedade privada, e a são obra de um único Criador todo-
sua relação com o Estado, a partir das idéi- poderoso e infinitamente sábio, todos
as de John Locke1. servindo a um único senhor sobera-
no, enviados ao mundo por sua ordem
2. Estado da natureza e estado de guerra e a seu serviço; são portanto sua pro-
priedade, daquele que os fez e que os
Consoante John Locke, antes do surgi-
destinou a durar segundo sua vontade
mento do poder político, os homens viviam
em plena liberdade e igualdade, regidos e de mais ninguém” (Locke, 1994, p. 83).
pelas leis da natureza e da razão. Estes, na- Locke (1994, p. 84) nega a existência de
tureza e razão, como concessões de Deus à uma hierarquia entre os homens, que auto-
sua criatura. rizasse a destruição mútua e a instrumenta-
Na condição natural do homem, há ab- lização de um homem por outro homem, tal
soluta liberdade para decisão e disposição como se faz com os animais.
sobre as suas ações, pessoas e bens, delimi- A violação dos direitos alheios é impedi-
tada por um “direito natural”, independen- da pelo poder concedido a cada um de nós
te do arbítrio de outro homem (cf. Locke, de aplicar a lei da natureza, de “punir aque-
1994, p. 83). les que a transgridem com penas suficientes
Junto à liberdade, existe também um es- para punir as violações” (Locke, 1994, p. 85).
tado de igualdade, determinado pela reci- Não se trata de um poder arbitrário ou
procidade e pela equiparação entre os ho- absoluto, mas sim de uma prerrogativa con-
mens no uso e gozo das faculdades e vanta- cedida ao homem para preservar a comuni-
gens concedidas pela natureza (Locke, 1994, dade natural, exercendo-a na proporção do
p. 83). necessário para reparar ou prevenir a viola-
Mas o estado de natureza não constitui ção da lei da natureza:
um “estado de permissividade”, em que o “(...) Tratando-se de uma violação
poder dos homens se faz de forma arbitrá- dos direitos de toda a espécie, de sua
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truído de suas funções, deveres e prerroga- estado de guerra, haja ou não um juiz
tivas dentro do corpo social (cf. França, 1997, comum”.
p. 464-465). Justamente na prevenção do estado de
Voltemos à Locke (1994, p. 83): guerra, “que exclui todo apelo exceto ao céu,
“E temos aqui a clara diferença e onde até a menor diferença corre o risco de
entre o estado de natureza e o estado chegar, por não haver autoridade para deci-
de guerra, que, embora alguns homens dir entre os contendores”, Locke (1994, p.
confundam, são tão distintos um do 94), explica uma das razões mais importan-
outro quanto um estado de paz, boa tes para o abandono do estado da natureza
vontade, assistência mútua e preser- e a reunião do ser humano em sociedade,
vação, de um estado de inimizade, constituindo uma autoridade terrena para
maldade, violência e destruição mú- assegurar a prevenção e a reparação causa-
tua. Homens vivendo juntos segundo da pelo homem aos seus semelhantes.
a razão, sem um ser superior na terra
com autoridade para julgar entre eles, 3. Origem, natureza, limites e
eis efetivamente o estado da nature- fins da propriedade
za. Mas a força, ou uma intenção de-
Desde o momento do nascimento do ho-
clarada de força, sobre a pessoa de
mem, este teria o direito a sua preservação.
outro, onde não há superior comum
Deus concedeu o mundo aos homens em
na terra para chamar por socorro, é
comum, bem como a razão, para que possa
estado de guerra: e é a inexistência de
subtrair da terra “o maior benefício de sua
um recurso deste gênero que dá ao
vida e de suas conveniências” (Locke, 1994,
homem o direito de guerra ao agres-
p. 97). Os bens se apresentam originariamen-
sor, mesmo que ele viva em sociedade
te em seu estado natural, necessitando sua
e se trate de um concidadão. Assim,
apropriação de um meio que os tornem pro-
este ladrão, a quem não posso fazer
veitosos.
nenhum mal, exceto apelar para a lei,
Para o filósofo inglês, é por meio do tra-
se ele me roubar tudo o que possuo,
balho que pode haver a apropriação dos
seja meu cavalo ou meu casaco, eu bens da natureza, convertendo-os em parti-
posso matá-lo para me defender quan- culares (Locke, 1994, p. 98):
do ele me ataca à mão armada; por- “Ainda que a terra e todas as cria-
que a lei, estabelecida para garantir turas inferiores pertençam em comum
minha preservação contra os atos de a todos os homens, cada um guarda a
violência, quando não pode agir de propriedade de sua própria pessoa;
imediato para proteger minha vida, sobre esta ninguém tem qualquer di-
cuja perda é irreparável, me dá o di- reito, exceto ela. Podemos dizer que o
reito de me defender e assim o direito trabalho de seu corpo e a obra produ-
de guerra, ou seja, a liberdade de ma- zida por suas mãos são propriedade
tar o agressor; porque este não me dei- sua. Sempre que ele tira um objeto do
xa tempo para apelar para nosso juiz estado em que a natureza o colocou e
comum e torna impossível qualquer deixou, mistura nisso o seu trabalho e
decisão que permita uma solução le- a isso acrescenta algo que lhe perten-
gal para remediar um caso em que o ce, por isso o tornando sua proprie-
mal pode ser irreparável. A vontade dade. Ao remover este objeto do esta-
de se ter um juiz comum com autori- do comum em que a natureza o colo-
dade coloca todos os homens em um cou, através do seu trabalho adicio-
estado de natureza; o uso da força sem na-lhe algo que excluiu o direito co-
direito sobre um homem provoca um mum dos outros homens. Sendo este
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O trabalho constitui o elemento que atri- é mais do que a humanidade utiliza.
bui o verdadeiro valor do bem apropriado, No início, a maior parte dos homens
desde que aliado à busca das efetivas con- contentava-se com o que a natureza
dições de subsistência do homem: oferecia para as suas necessidades; e
“Tudo isso evidencia que, embora embora depois, em algumas partes do
as coisas da natureza sejam dadas em mundo (onde o aumento do número
comum, o homem, sendo senhor de si de pessoas e das reservas, com o uso
mesmo e proprietário de sua própria do dinheiro, tornaram a terra escassa
pessoa e das ações de seu trabalho, e por isso de algum valor), as várias
tem ainda em si a justificação princi- comunidades tenham estabelecido os
pal da propriedade; e aquilo que com- limites de seus distintos territórios e,
pôs a maior parte do que ele aplicou por leis internas, tenham regulamen-
para o sustento ou o conforto de sua tado as propriedades particulares de
existência, à medida que as invenções sua sociedade, e desta forma, por con-
e as artes aperfeiçoaram as condições venção e acordo, determinado a pro-
de vida, era absolutamente sua pro- priedade iniciada pelo trabalho e pela
priedade, não pertencendo em comum indústria – e os tratados que foram
aos outros” (Locke, 1994, p. 108). feitos entre vários estados e reinados,
Embora, como Karl Marx (1993, p. 183), seja expressa ou tacitamente, renun-
visse no trabalho a essência da proprieda- ciando a toda reivindicação e direito
de, Locke acreditava ser perfeitamente acei- sobre a terra em posse do outro, puse-
tável a apropriação do bem da natureza por ram de lado, por consentimento co-
meio do trabalho alheio, fruto talvez de sua mum, todas as suas pretensões a seu
origem social. Numa época de pré-capita- direito comum natural, que original-
lismo, ainda não se encontravam rijos e in- mente tinham em relação àqueles pa-
contestáveis os alicerces que possibilitari- íses; e assim, por um acordo positivo,
am a ascensão futura e definitiva da bur- estabeleceram em partes e parcelas
guesia no controle dos meios de produção e distintas da terra – embora ainda exis-
do poder político emanado pelo governo ci- tam vastas extensões de terra cujos
vil; assim como não se vislumbravam ainda habitantes não se juntaram ao resto
as transformações e efeitos que a vitória po- da humanidade para concordar com
lítica (Revolução Francesa) e econômica (Re- o uso da moeda comum; elas perma-
volução Industrial) da burguesia traria para necem baldias, e são mais do que as
aqueles que ocupavam os setores mais hu- pessoas que ali habitam utilizam ou
mildes da população. podem utilizar, e assim ainda conti-
Mas de qualquer modo, ao colocar no tra- nuam sendo terra comum; mas isso
balho o valor e a essência da propriedade, o ocorre raramente naquela parte da
filósofo logrou uma afirmação de certa for- humanidade que consentiu no uso do
ma revolucionária para o seu tempo. dinheiro”.
Locke (1994, p. 109) explica desse modo O excedente da produção retirada da na-
a transformação que o direito de proprieda- tureza padecia do risco de que não imedia-
de sofreu no processo de evolução e desen- tamente consumida ou trocada por outra,
volvimento das sociedades humanas: provocou a necessidade da convenção de
“Assim, no começo, por pouco que valor sobre uma mercadoria que, embora em
se servisse dele, o trabalho conferia um si mesma não necessária para a subsistên-
direito de propriedade sobre os bens cia do homem, poderia ser por um longo
comuns, que permaneceram por mui- tempo para que pudesse ser trocada pela
to tempo os mais numerosos, e até hoje mercadoria demandada. A partir daí,
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mará assim o dinheiro todas as mi- Logo no início de seu Segundo Tratado
nhas incapacidades em contrário?”. sobre o Governo Civil, o pensador já adverte
Não há resposta em Locke para essas in- (Locke, 1994, p. 82):
dagações. “Por poder político, então, eu en-
O dinheiro e sua posse, o que pode com- tendo o direito de fazer leis, aplican-
prar, bastam para superar o problema do do a pena de morte, ou por via de con-
desperdício e da exclusão do resto da socie- seqüência, qualquer pena menos se-
dade no acúmulo de propriedade privada vera, a fim de regulamentar e de pre-
para além das necessidades de subsistên- servar a propriedade, assim como de
cia humana? empregar a força da comunidade para
O pensamento de Locke influenciou pro- a execução de tais leis e a defesa da
fundamente a disciplina jurídica das rela- república contra as depredações do
ções jurídicas entre o Estado e a proprieda- estrangeiro, tudo isso tendo em vista
de, principalmente em países de tradição apenas o bem público”.
anglo-saxônica, como os Estados Unidos. Legitimado pela convenção entre os ho-
Tanto que o direito natural de propriedade mens, o governo civil deve construir as leis
faz parte do corpo formal de quase todas positivas em compatibilidade com os direi-
constituições revolucionárias dos estados tos naturais do homem, por meio da tripar-
norte-americanos, por ocasião de sua inde- tição dos poderes de elaborá-las (poder le-
pendência (Cunliffe, 1978, p. 4-5). gislativo), aplicá-las (poder executivo) e ga-
Sob influência de Locke, a palavra pro- rantir a segurança da comunidade civil (po-
priedade passou a designar todos os direi- der federativo). Locke é apontado como um
tos naturais, com um conteúdo valorativo precursor da teoria da separação dos pode-
neutro ou intrinsecamente bom, indicando res investidos no Estado, bem como do con-
os requisitos indispensáveis para uma exis- tratualismo (Bobbio, 1992, p. 37-42 e Adeo-
tência digna (Cunliffe, 1978, p. 5). Dentro dato, 1989, p. 49-51). Não nos aprofundare-
do pensamento liberal vigente naquele tem- mos aqui sobre questões relacionadas com
po, “pouca preocupação havia quanto à im- esse aspecto de sua obra, pois o que nos inte-
plicação de cobiça na palavra propriedade”, ressa aqui é examinar como o pensador in-
parecendo natural “equacionar a indepen- glês tratou as relações entre a propriedade e o
dência nacional e individual com a posse e governo civil, como prefere denominá-lo.
o desenvolvimento da terra pertencente a No estado civil, os homens estabelecem
cada um”, pois somente quem “tivesse al- por meio do consentimento uma sociedade
guma propriedade seria verdadeiramente política, em que superam as instabilidades
senhor de si”. Ou seja: como propriedade e e precariedade do estado da natureza, facil-
personalidade estavam intrinsecamente li- mente convertido em estado de guerra. A
gadas, o homem valia pelo que possuísse sociedade política passa a acumular o po-
der natural de todos os seus membros, tor-
(Cunliffe, 1978, p. 6).
nando-se o árbitro de todas as controvérsi-
as, baseado em regras imparciais cuja exe-
4. Governo civil: limites e funções cução está autorizada a intentar:
O estado de natureza confere aos homens “Aqueles que estão reunidos de
os poderes paterno (família), político (pro- modo a formar um único corpo, com
priedade) e despótico (guerra)3. Para a me- um sistema jurídico e judiciário com
lhor preservação da liberdade prescrita pe- autoridade para decidir controvérsi-
las leis da natureza, os homens renunciam as entre eles e punir os ofensores, es-
tais faculdades naturais em favor do gover- tão em sociedade civil uns com outros;
no civil. mas aqueles que não têm em comum
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e isso, por sua vez, beneficiaria a socie- ação privada dos bens materiais5. Se há o
dade”. aumento da interdependência social, neces-
Os homens renunciam em favor do go- sariamente toma-se o impulso de integrar
verno civil a dois poderes que lhe são ine- todos os homens numa dada sociedade aos
rentes no estado da natureza: ao poder de ditames de um ordenamento jurídico infor-
fazer tudo o que achar conveniente para sua mado por uma maior sensibilidade quanto
própria preservação e a da espécie, subme- às questões sociais. Nas tentativas de que-
tendo-se à disciplina estabelecida pelas leis bra dessa interdependência social, todas as
da sociedade política e à restrição da liber- pretensões nesse sentido tendem a instabi-
dade ditada pela lei da natureza; e, ao de lizar a própria sociedade e tornar insegura
punir pessoalmente e segundo seu arbítrio a preservação da propriedade.
os atentados a sua vida e ao seus bens, con- Se a posse privada de bens materiais não
fiando ao poder executivo da sociedade po- traz tensão e nem compromete a coesão so-
lítica a preservação da integridade de sua cial, o uso, gozo e disposição da proprieda-
pessoa e de seus bens (Locke, 1994, p. 158). de privada não representa um risco para a
sociedade. Pode-se até opor que a própria
5. A insuficiência da perspectiva propriedade privada constitui uma violência
individualista da propriedade ou um fator que afasta os homens dos benefí-
cios da vida coletiva, mas todos a desejam.
A perspectiva individualista da propri-
Com a queda dos regimes que procura-
edade vem sendo contraditada pela força
ram abolir a propriedade privada, acaba-
da interdependência social, acelerada pe-
ram enfrentando uma dura realidade. Ao
los novos e mais ágeis processos de intera-
expropriar os homens dos bens materiais
ção social.
cuja posse, de certo modo, estimulavam-nos
Embora Locke tenha alertado quanto à
a crescer e a produzir para a sociedade, co-
instabilidade social que poderia ser provo-
letivizando tudo o que não for de estrito con-
cada quanto ao desperdício do bem apro-
sumo pessoal, tais nações comprometeram
priado, não levou em consideração o impac-
sua vida econômica produtiva. Os homens
to que sua injusta utilização poderia ter na
não se sentiam mais estimulados para pro-
preservação da espécie humana, mesmo
gredir, pois sabiam que nasceriam e morre-
quando a propriedade se encontra legitima-
riam do mesmo modo, com as mesmas pos-
da pelo “trabalho honesto” e pelas leis do
ses, com o mesmostatussocial.
governo civil; trabalho que hoje encontra
Ao se retirar a propriedade de um ho-
ainda subjugado essencialmente ao conde-
mem, certamente, parte de sua personalida-
nado por Karl Marx (1993, p. 157-172). de fica prejudicada. É a propriedade priva-
Adverte Duguit (1996, p. 16), que consti- da que satisfaz o impulso egoísta do homem
tui uma abstração o e o liberta da inveja, cobiça e da desordem.
“(...) homem natural, que nasce livre e Dá também dignidade, possibilitando o
independente de outros homens, e acesso aos bens culturais e econômicos que
com direitos constituídos por essa são indispensáveis à sua vida.
mesma liberdade e essa mesma inde- Por outro lado, a propriedade pode atra-
pendência”, pois “nascem partícipes ir tensão, conflito e desordem social, sola-
de uma coletividade e sujeitos, assim, pando os alicerces do ordenamento jurídi-
a todas as obrigações que subenten- co, se houver a manutenção da instituição
dem a manutenção e desenvolvimen- da propriedade privada a custo da coesão
to da vida coletiva”. social.
Em si mesma, a perspectiva individua- A propriedade não se justifica em si mes-
lista é insuficiente para justificar a apropri- ma como fazem Locke e os defensores do
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meta a permanência da opção feita pela Bibliografia
maioria do mundo civilizado. Não há nada ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito e
de revolucionário querer aumentar o núme- dogmática jurídica. In: Direito em Debate. Ijuí :
ro de proprietários. [s. n.], a. 5, n. 5, 1995.
Tanto melhor se os mais fortes forem os ADEODATO, João Maurício. O problema da legiti-
mais justos (cf. Bobbio, 1995), e, por conse- midade : no rastro do pensamento de Hanna
Hrendt. Rio de Janeiro : Forense, 1989. p. 49-51.
guinte, mais inteligentes. Do contrário, so- BOBBIO, Norberto. A teoria do ordenamento jurídico.
mos uma espécie condenada à extinção pe- 6. ed. Tradução por Maria Celeste Cordeiro dos
las nossas próprias mãos, algo hoje perfei- Santos. Brasília : Editora UnB, 1995.
tamente viável pela tecnologia atual. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento
de Emanuel Kant. 2. ed. Tradução por Alfredo
Fait. Brasília : Editora UnB, 1992.
CUNLIFFE, Marcus. Liberdade, propriedade e Es-
Notas tado. Tradução por Jorge Arnaldo Fortes. In:
Diálogo. Rio de Janeiro : [s. n.], 11(4), 1978.
1
O termo “proprietarismo” é de Marcus Cunli- DUGUIT, León. Fundamentos do Direito. Tradução
ffe (1978, p. 4), “Na tentativa de indicar a mistura por Mário Pugliesi. São Paulo : Ícone, 1996.
de elementos que compõem a fé americana na pro- DURKEIM, Emile. Divisão do Trabalho social e di-
priedade privada, cunhei a palavra ‘proprietaris- reito. Tradução por Maria Inês Mansinho e
mo’, que para mim tem várias conotações, todas Eduardo Farias. In: FALCÃO, Joaquim; SOU-
intimamente ligadas quais sejam: individualismo, TO, Cláudio (orgs.). Sociologia do direito : leitu-
liberdade pessoal, oportunidade de adquirir pro- ras básicas de sociologia jurídica. São Paulo :
priedade”. Pioneira, 1980.
2
Duguit (1996, p. 23), define a primeira hipóte- FRANÇA, Vladimir da Rocha. Instituição da pro-
se como solidariedade por semelhança e, a segun- priedade e sua função social. In: Revista da Es-
da, solidariedade por divisão de trabalho. Cf. Vla- cola Superior de Magistratura do Estado de Per-
dimir da Rocha França (1997, p. 458-464). nambuco. Recife : ESMEP, v. 2, n. 6, out./dez.
3
“(...) deve-se distinguir o poder de um magis- 1997. p. 458-464.
trado sobre um súdito daquele de um pai sobre HOBBES, Thomas. Elementos do direito natural e
seus filhos, de um patrão sobre seu empregado, de político. Tradução por Fernando Couto. Porto
marido sobre sua esposa e de um senhor sobre seu Alegre : Resjurídica, s./d. p. 102.
escravo. Considerando-se que uma mesma pessoa, LOCKE, John. Segundo Tratado sobre Governo Civil e
levando-se em conta todos os seus relacionamen- outros escritos. Tradução por Magda Lopes e
tos, exercesse simultaneamente todos esses pode- Marisa Lobo da Costa. Petrópolis : Vozes, 1994.
res distintos, isto pode nos ajudar a distinguir uns MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. Tra-
dos outros e mostrar a diferença entre o dirigente dução por Artur Mourão. Lisboa : Edições 70,
de uma sociedade política, um pai de família e o 1993. p. 183.
capitão de uma galera”(John Locke, op. cit., p. 82). SOUTO, Cláudio. Modernidade e pós-modernida-
Sobre a diferença entre os poderes paterno, político de científicas quanto ao Direito. In: Anuário do
e despótico, ver Locke (1994, p. 187-190). Mestrado em Direito. Recife : [s. n.], n. 6, s./d.
4
Cf. Locke, 1994, p. 139-155. “(...) quando a SOUTO, Cláudio. Ciência e ética no Direito : uma
maioria não pode decidir pelo resto, as pessoas não alternativa de modernidade. Porto Alegre :
podem agir como um único corpo e este imediata- SAFE, 1992. p. 9.
mente entra em dissolução” (Locke, 1994, p. 41).
5
Mas pondera Duguit (1996, p. 13): “As nos-
sas leis e códigos inspiram-se, em sua maior parte,
nesta doutrina. A doutrina individualista, embora
não absolutamente exata em seus fundamentos,
prestou imensos serviços e inspirou consideráveis
progressos, levando a conceber, pela primeira vez,
a limitação dos poderes do Estado pelo direito”.