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TRANSEXUALIDADE E INFÂNCIA:

buscando um desenvolvimento saudável

Ana Lodi1, Kelly Kotlinski Verdade2

RESUMO

Esse estudo traz reflexão sobre tratamento dado no Sistema Único de Saúde às crianças
transgênero, objetivando contribuir com argumentos neste campo dos estudos de gênero e de
saúde pública, ao mesmo tempo favorecer que esse tópico ganhe visibilidade na academia e
na sociedade. Sustentado em referenciais teóricos, apresenta-se contextualizações sob enfoque
histórico, sociológico, médico, psicológico, pedagógico e jurídico. A metodologia utilizada na
pesquisa foi revisão literária e artigos das áreas de sociologia, história, filosofia e de
especialistas no campo das ciências médicas e sociais via buscas na BVS Brasil, Scielo e
Google Acadêmico, e por artigos com a palavra “transgênero”.

Palavras-chave: Transgêneros Infantis. Identidade de Gênero. Despatologização. Educação de


profissionais de saúde.

ABSTRACT

This study reflects on the treatment given in the Unified Health System to transgender
children, aiming to contribute with arguments in this field of gender and public health studies,
at the same time favoring this topic to gain visibility in academia and society. Based on
theoretical references, contextualizations are presented under historical, sociological, medical,
psychological, pedagogical and legal approaches. The methodology used in the research was a
literature review and articles from the areas of sociology, history, philosophy and specialists
in the field of medical and social sciences via searches in the VHL Brazil, Scielo and Google
Scholar, and by articles with the word "transgender."

Key-words: Transgender children. Gender Identity. Depathologization. Education of health


professionals.

1
Especialista em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos pelo Departamento de Gênero, Direitos Humanos,
Saúde e Diversidade Cultural da Escola Nacional de Saúde Pública (GEDIHS/ENSP) da FIOCRUZ (2017).
Certificada em Management Studies por Oxford Brookes University(1999). Pós-Graduada em Metodologia de
Ensino para Educação Superior pela Universidade Anhembi Morumbi (2015). lodi@semeardiversidade.net

2 Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil (2013)
Coordenadora Executiva do Fundo Social ELAS , Brasil. kaka@fundosicislelas.org
1. INTRODUÇÃO

O tema deste trabalho é o tratamento dado no Sistema Único de Saúde às crianças trans. O
objetivo do trabalho é contribuir com as reflexões produzidas neste assunto no campo dos
estudos de gênero e de saúde pública, e ao mesmo tempo contribuir para que esse tópico
ganhe mais visibilidade na academia e na sociedade em geral.

Portanto, por meio de revisão bibliográfica nacional e internacional, apresentaremos


conceitos, abordagens, metodologias, tratamentos e críticas dos campos da saúde e dos
estudos de gênero.

Na conclusão do trabalho apresentamos sugestões e possibilidades de aprimoramento do


serviço público de saúde ao tratar com crianças e adolescentes trans.

No Brasil, o Ministério da Saúde oferece atenção às pessoas nesse processo de


transexualização por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) desde a publicação da Portaria
Nº 457, de agosto de 2008. Para obter atendimento pelo SUS, as pessoas transgêneras devem
atender requisitos como: maioridade, acompanhamento psicoterápico por pelo menos dois
anos, laudo psicológico/psiquiátrico favorável e diagnóstico de transexualidade3. Nada é dito
sobre crianças.

Como diz Berenice Bento:


A aproximação com a transexualidade e travestilidade4 é reveladora das convenções
sociais sobre a masculinidade e a feminilidade. Diariamente profissionais da saúde,
juízes/as, advogados/as, professores/as, parlamentares, amigos/as e familiares são
instados a se posicionar e encontrar sentidos para as demandas de pessoas que
reivindicam o pertencimento ao gênero distinto daquele que lhes foi imposto.
(BENTO, 2011, p.549)

Não percebemos no dia a dia como repetimos sem pensar comportamentos arraigados, até
sermos confrontados e exigidos a tomar posicionamentos que o convívio, ainda que
profissional, com as transidentidades nos obriga.

3
Portal Brasil 2016. Cirurgias de mudança de sexo são realizadas pelo SUS desde 2008. Ministério da Saúde.
Disponível em: http://www.brasil.gov.br/precária
-e-justica/2015/03/cirurgias-de-mudanca-de-sexo-sao-realizadas-pelo-sus-desde-2008. Acesso em 21 de Outubro
de 2016.
4
Para discussão sobre as identidades travesti e transexual, ver Berenice BENTO, 2008.
Deste modo se perpetuam os jogos de poder que dominam os corpos, sem que se note que tais
jogos ocorrem. Se não notamos é como se estes não ocorressem. Assim, se aparentemente não
ocorrem por não serem percebidos, não podem ser negados, portanto, de certa forma, não são
entendidos como reais.

A partir dessa falta de conexão com a realidade forçada pelas convenções sociais, existem
aquelas pessoas que, como argumunta Lanz (2014, p.66), mesmo tendo que enfrentar todos os
mecanismos de pressão do grupo social para a conformidade e com a permanente vigilância e
repressão institucional:
[...] mesmo que sujeitas a sanções, interdições, proibições e punições que as
obriguem a viver à margem da sociedade, mesmo que tenham que arriscar tudo –
status, emprego, família e reputação – muitas pessoas ‘deixam seus armários’ e se
arriscam a transpor as muralhas do gênero, tornando-se assim ‘transgressores de
gênero’.
Ao transpor essas fronteiras, os seres que transgrediram são rejeitados e rechaçados
socialmente. Sem acesso a educação formal, à empregabilidade e a oportunidades de sustento,
são forçadas pela própria sociedade a se prostituir, e por isso julgadas por seu comportamento
considerado promíscuo pela mesma sociedade que as coloca nessa situação de
vulnerabilidade, e rotuladas como seres abjetos, não merecedores de respeito, alguém que não
cumpriu as expectativas do projeto que a sociedade tinha para si.

Mesmo antes de nascer uma criança já carrega toda uma carga profunda de expectativas no
espaço público sobre como ser masculino ou feminina que lhe será atribuída no parto em
função de ter um pênis ou uma vagina. Ou seja, a partir disso, desempenhos serão esperados e
subentendidos como nexo causal precedente (BENTO, 2012, p.275). Aqueles que não
cumprem com o “programado” rompem o “pacto” e são excluídos, ficando à margem da
sociedade.

“Os brinquedos continuam o trabalho do/a médico/a que proferiu as palavras mágicas:
produzem o feminino e o masculino. Funcionam como próteses identitárias.” (BENTO, op.
cit.). Reforçam os papéis socialmente predestinados e os comportamentos esperados. Até que
uma identidade transgênera aparece para desorganizar tudo aquilo que aprendemos a acreditar
como verdade absoluta e inquestionável:
As experiências de trânsito entre os gêneros demonstram que não somos
predestinados a cumprir os desejos de nossas estruturas corpóreas. O sistema não
consegue a unidade desejada. Há corpos que escapam ao processo de produção dos
gêneros inteligíveis e, ao fazê-lo, se põem em risco porque desobedeceram às
normas de gênero, ao mesmo tempo revelam as possibilidades de transformação
dessas mesmas normas. Esse processo de fuga do cárcere dos corpos-sexuados é
marcado por dores, conflitos e medos. As dúvidas “por que eu não gosto dessas
roupas? Por que odeio tudo que é de menina? Por que tenho esse corpo?” levam os
sujeitos que vivem em conflito com as normas de gênero a localizar em si a
explicação para suas dores, a sentir-se uma aberração, uma coisa impossível de
existir. (BENTO, op. cit.).
As identidades trans são expressões legítimas do ser, dentro de um largo espectro de
possibilidades, conforme explicam várias estudiosas do campo – Bento (2006, 2008, 2011,
2012 e 2016), Jesus (2012), Lanz (2014), e Olson (2011) e Pelúcio (2012). Deste
entendimento deriva-se a opinião de que designar tais identidades como patologias e a
exigência de Estados, inclusive do Estado brasileiro, em patologizar a transexualidade para
tratá-la, rebaixa a pessoa na sua condição de sujeito e cidadão, ao impor que este se
autodeclare doente para receber tratamento. Opinião com a qual concordam duas importantes
iniciativas internacionais que envolvem diversos especialistas do campo do Direito e da
Saúde, assim como da sociedade civil, e que buscam a 'despatologização' da transexualidade,
são eles os Princípios de Yogyakarta5 e a campanha internacional Stop Trans
Pathologization6.

Os Princípios de Yogyakarta tratam da aplicação da legislação internacional de direitos


humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero, do qual o Brasil foi
signatário em novembro de 2006, em Yogyakarta, Indonésia, onde foi realizada conferência
organizada por uma coalizão de organismos internacionais coordenada pela Comissão
Internacional de Juristas e o Serviço Internacional de Direitos Humanos. Tal reunião, que
contou com especialistas de 29 países, teve por objetivo de desenvolver um conjunto de
princípios jurídicos internacionais sobre a aplicação da legislação internacional às violações
de direitos humanos baseadas na orientação sexual e identidade de gênero, com intuito de dar
mais clareza e coerência às obrigações de direitos humanos dos Estados no tocante a essa
temática. Ao fim dessa conferência, foi aprovada uma carta de princípios sobre a aplicação da

5
PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA. Observatório de Sexualidade e Política (Sexuality Policy Watch).
2007. Disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/gays/principios_de_yogyakarta.pdf.
6
Manifesto da Campanha Internacional Stop Trans Pathologization. Disponível em:
http://www.stp2012.info/old/pt.
legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de
gênero, os chamados Princípios de Yogyakarta.

Já a Campanha Stop Trans Pathologization, ou STP, tem como objetivos principais a retirada
da classificação dos processos de transição entre gêneros como transtorno mental nos
catálogos diagnósticos (o DSM, da Associação Psiquiátrica Estadunidense, e o CID, da
Organização Mundial de Saúde), o acesso a uma atenção sanitária transespecífica7 que seja
pública e gratuita, a mudança do paradigma de atenção sanitária transespecífica de um modelo
de avaliação a um enfoque de consentimento informado, o reconhecimento legal de gênero
sem requisitos médicos, a despatologização da diversidade de gênero na infância, e a proteção
contra a transfobia.

Voltando aos estudos de gênero, encontramos também autores que se apresentam pró-
patologização, e que corroboram esse arquétipo estigmatizante, ainda que com nobre
intenção, como por exemplo, Vieira, em sua obra coletiva com Paiva (2009, p. 186) através
do discurso medicalizante ao afirmar que a cirurgia de adequação de sexo possui natureza
terapêutica, devendo, portanto, receber do Direito, da Medicina e da Psicologia contribuições
para a diminuição do sofrimento dos transexuais.

Quem adota a perspectiva de não tratar como doença a identidade trans é a psicóloga e
doutora em saúde coletiva Luciana Vieira que estuda o tema da transexualidade desde 1997.
Vieira, que é professora do departamento de psicologia da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) e consultora do Espaço de Acolhimento e Cuidado para pessoas Trans
do Hospital das Clínicas de Pernambuco, concedeu uma entrevista em 2015 ao Diário de
Pernambuco8 onde propôs a reflexão sobre a problemática em rotular homens e mulheres
transexuais como doentes e destacou que a capacitação de profissionais é o desafio principal
do poder público, para que esses profissionais não tratem como patologia as identidades trans.

7
Prespassada por várias disciplinas específicas integradas para o atendimento adequado.
8
Diário de Pernambuco. Publicado em: 09 de abril de 2015. Atualizado em: 10 de abril de 2015.
Disponível em: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-
urbana/2015/04/09/interna_vidaurbana,570586/transexualidade-nao-e-transtorno-se-ha-uma-doenca-e-da-
nossa-sociedade-diz-psicologa.shtml. Acesso em 26 de outubro de 2016.
Acredita a doutora que a capacitação de profissionais da saúde no tema de identidades de
gênero e transexualidade poderia contribuir para uma ampliação da visão desses profissionais
que contemple não apenas o aspecto médico, biologizante e patologizante, mas também os
componentes sociais e emocionais.

A patologização e psiquiatrização das identidades trans geram uma série de discursos e


práticas que acabam por deslegitimar a autonomia das pessoas trans sobre suas identidades e
corpos. Por sustentar que há uma linearidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, a
patologização é um problema do ponto de vista conceitual. Diz-se abjeta a sexualidade onde
essa linearidade é embaralhada, ou seja, se, por exemplo, um corpo com o aparato anátomo-
biológico de mulher não corresponde à feminilidade, passividade e heterossexualidade há algo
de anormal. (VIEIRA, 2015, op. cit.).

Se, por outro lado, a sociedade optasse pela não patologização das identidades trans,
permitindo a autodeterminação da identidade de gênero, esse linearidade seria desconstruída,
portanto, não haveria mais que se falar em normalidade ou anormalidade. Desta forma,
atendimentos de saúde desde seus momentos primários, bem como todo o desenrolar social,
como desenvolvimento acadêmico, mudança de documentos, e demais aspectos legais ligados
à cidadania plena, independente de desejo de cirurgia, não seriam atrelados a protocolos
longos, demorados, palologizantes, que rebaixam a pessoa ao desumano e a obrigam ao
tratamento psicoterápico:
O estigma de ser doente, louco, degenerado é muito forte. Não precisamos do
carimbo de doente para ter acesso à saúde. Ela é um direito de todos e todas. Uma
gravidez é doença? Não é e a grávida tem acesso à saúde pública mesmo não sendo
doente. (VIEIRA, 2015, op. cit.).
Para tanto, é necessário capacitar o profissional de saúde para ter esse olhar diferente
socialização majoritária. O risco de não fazê-lo é justo o de não estarem preparados a orientar
adequadamente as famílias das crianças e jovens transgêneros que chegam aos centros de
atendimentos cheios de dúvidas e inseguranças por terem, eles próprios, uma visão
estigmatizante da questão.

Ainda que haja consenso, no que concerne à rede pública, conforme demonstra a bibliografia
e o estudo de casos desta pesquisa, a terapia hormonal tende a ser restrita apenas àqueles que
atingiram a maioridade. Ademais, a obrigatoriedade de atingir a maioridade para começar
algum tipo de tratamento, pelo SUS, mesmo os sem hormônios, condena a criança transgênera
a muitos outros problemas como bullying, agressões, evasão escolar, alta taxa de suicídio,
entre outros aspectos que trataremos adiante.

1.1 PROBLEMATIZAÇÃO

As famílias têm um papel fundamental na vida de transgêneros jovens. As famílias que


apoiam, protegem os jovens transgêneros, evitando, assim, os resultados negativos e ajudam a
promover a saúde positiva e bem-estar; enquanto que, as famílias que rejeitam os jovens
transgêneros afetam-os negativamente e contribuem para aumentar os seus problemas de
saúde e os seus estados de saúde mental. E não são apenas as crianças que passam pelo
processo de adequação à identidade transgênera quando percebem a não adequação. Toda a
família também passa por seus próprios processos, e, “[...] normalmente, atravessam os
seguintes estágios: Negação / choque, raiva / medo, tristeza, autodescoberta, aceitação e por
fim orgulho.” (OLSON, FORBES, BELZER, 2011, p. 5) Por essa razão, tanto a criança
quanto sua família, precisam ser bem acolhidas e bem orientadas pelas equipes de
atendimento primário de saúde9, para que essas fases se desenvolvam da maneira menos
traumática o possível para a criança e seu saudável desenvolvimento. Uma vez que se dê a
correta orientação à família o caminho para a aceitação e orgulho tanto da família pela
criança, substituindo a rejeição, quando da criança por si mesma, tornam-se mais viáveis.
Imperativo se faz, então, definir o gênero de uma forma emancipadora, menos patologizada,
mais diversa e dentro da variedade das subjetividades humanas, independente do sexo genital.

Como ampliar o olhar dos profissionais de saúde para transgêneros desde a infância de
maneira que possam atender essas pessoas com eficácia nos serviços, fora da ideia

9
Internacionalmente tem-se apresentado 'Atenção Primária à Saúde' (APS) como uma estratégia de
organização da atenção à saúde voltada para responder de forma regionalizada, contínua e sistematizada à
maior parte das necessidades de saúde de uma população, integrando ações preventivas e curativas, bem como
a atenção a indivíduos e comunidades. Esse enunciado procura sintetizar as diversas concepções e
denominações das propostas e experiências que se convencionaram chamar internacionalmente de APS.
No Brasil, a APS incorpora os princípios da Reforma Sanitária, levando o Sistema Único de Saúde
(SUS) a adotar a designação Atenção Básica à Saúde (ABS) para enfatizar a reorientação do modelo
assistencial, a partir de um sistema universal e integrado de atenção à saúde. Ver Dicionário de Educação
Profissional em Saúde. Disponível em http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/ateprisau.html
hegemônica de heterocisnormatividade10 de nossa sociedade, para que estes venham a se
desenvolver desde cedo em todo o seu potencial?

1.2 JUSTIFICATIVA

Nossa sociedade possui, então, uma concepção binária e sexualizada, onde gênero é
desempenho no espaço público. Essa concepção binária dos gêneros reproduz o pensamento
moderno de sujeitos universais, atribuindo-lhes determinadas características que, supõe-se,
sejam compartilhadas por todos. “O corpo aqui é pensado como naturalmente dimórfico,
como uma folha em branco esperando o carimbo da cultura que, por meio de uma série de
significados culturais, assume o gênero” (BENTO, 2006, p. 71), ou seja, presumidamente sem
nenhum conceito do que é ser masculino ou feminino ao nascer, irá aprender com a interação
cultural:
Após o nascimento da criança, os investimentos discursivos dirigem-se para a
preparação do corpo, a fim de que este desempenhe com êxito os papéis de gênero;
bonecas, saias e vestidos para as meninas; bolas, calças, revólveres para os meninos.
Parece que nada escapa à "panóptica dos gêneros” 11. O mundo infantil se constrói
sobre proibições e afirmações. (BENTO, Ibid.).
Bento (Ibid.) diz “Essa pedagogia dos gêneros tem como objetivo preparar aquele sujeito para
a vida referenciada na heterossexualidade, construída a partir da ideologia da
complementaridade dos sexos”. É interessante notar que esse discurso é atualmente utilizado
em um jogo de palavras invertido pelos políticos conservadores para “acusar” de querer impor
uma “ideologia de gênero” todo aquele que confronta a vida referenciada na
heterossexualidade construída a partir desta ideologia da complementaridade dos sexos.
Confronto esse que tanto perturba essa referenciada heterosexualidade, pedagogicamente

10
Heterocisnormatividade é essa relação absoluta, linear e direta, existente na nossa sociedade entre
sexo, gênero e orientação sexual. Um dispositivo totalitário e hegemônico resultante da aplicação compulsória
das normas binárias de conduta de gênero a todas as relações estabelecidas entre as pessoas na nossa
sociedade. (LANZ, 2014, p.40).
11
A concepção de "poder disciplinar" de Foucault (1993) nos auxilia a compreender os
processos de construção dos corpos-sexuados e da incorporação de uma estilística corporal, uma vez que são
produzidos a partir de um conjunto de estratégias discursivas e não discursivas, fundamentadas na vigilância
das condutas apropriadas. Daí a referência à "panóptica dos gêneros", em uma alusão a uma das características
do poder disciplinar foucaultiano. (Nota da Autora).
ensinada às crianças através de premiações ou reprimendas. A noção de que educação para o
respeito não é doutrinação possivelmente tenha uma importância primordial, uma vez que
esses valores sociais são muito arraigados e fundamentais, e precisam ser descontruídos. “É
como se as "confusões" nos papéis provocassem, direta e imediatamente, "perturbações" na
orientação sexual.” (BENTO, Ibid.). Essas confusões são apenas no âmbito da orientação
sexual. Quando falamos em performances de gênero, a confusão se agrava, pois os conceitos
forjados desde a infância são mais fortes justamente no que tange as performances de gênero
hegemônicas:
A infância é o momento em que os enunciados performativos são interiorizados e
em que se produz a estilização dos gêneros: "Homem não chora", "Sente-se como
uma menina", "Isto não é coisa de uma menina". Esses enunciados performativos
têm a função de criar corpos que reproduzam as performances de gênero
hegemônicas. Conforme sugeriu Butler, são evocações ritualizadas da lei
heterossexual. (BENTO, 2006, Ibid.).
E assim atrofiam-se sentimentos e comportamentos espontâneos, substituindo-os por
performances no espaço público, e em alguns casos, até mesmo no espaço familiar.

Para Bento (2006, p. 105), “a patologização das experiências de gênero que estão às margens
da norma justifica a produção permanente de um saber que institui e posiciona o/a transexual
como um enfermo, um transtornado”.

A pesquisadora sugere uma possibilidade de percepção das performances de gênero que


desfaça “os limites e as fronteiras que separam o natural do antinatural, o real do irreal, a
verdade da mentira, o humano do não humano”, evitando assim a patologização e a
vulnerabilidade da população de transgêneros pela negação de oportunidades. Dessa forma,
poderíamos oferecer o tratamento promotor de saúde adequado aos jovens transgêneros desde
a infância, e produzir mais saber sobre o tema no Brasil.

Saber como promover saúde para transgêneros desde a infância é de extrema necessidade se
levarmos em consideração o quanto crianças não estão emocionalmente equipadas para lidar
com a pressão do grupo social para corresponder à conformidade e com a permanente
vigilância e repressão institucional a desvios das performances de gênero hegemônicas. Em
uma de suas entrevistas Breno Rosostolato (2016)12, afirma que:
No caso de crianças transgêneras, a discriminação e o preconceito fazem com que
esta, que não possui recursos e defesas construtivas, retraia-se e isole-se. Ela acaba
se sentindo diferente, como um ser doente e anormal. Ela vai definhando e perdendo
sua autoestima. Assim, fica vulnerável emocionalmente e propensa à depressão. O
afeto vai se embotando e a criança fica sem referências positivas.
Ou seja, podemos inferir que a falta de atenção primária no atendimento às questões de
socialização e a não aceitação por parte da sociedade que não está preparada para entender
e/ou aceitar a criança trans como ela é, compõe justamente o sofrimento mental que gera nas
crianças trans os quadros psicológicos ou psiquiátricos descritos como patologia.

Reforçando essa ideia, temos ainda a entrevista da Dra. Lucia Vieira, Psicóloga e Doutora em
Saúde Coletiva, ao Diário de Pernambuco13:
Só podemos pensar essa forma de subjetivação como transtorno, se nos basearmos
no campo da psiquiatria. Esse campo de saber patologiza as experiências trans, pois
toma como modo de passabilidade as concepções naturalizadas do sistema sexo-
gênero, que servem de sustentação para o modelo heterocisnormativo. Nesse
sentido, qualquer corpo que fuja da linearidade entre sexo, gênero, prática sexual e
desejo será patologizado. (VIEIRA, 2015, op. cit.).
De acordo com Bento e Pelúcio, em Despatologização do gênero: A politização das
identidades abjetas (2012), não há em nenhuma pesquisa a testabilidade e verificabilidade
necessárias para afirmar que transexualidade é doença, dado que não é da ordem do
verificável, sendo do campo das subjetividades:
Os princípios científicos de testabilidade e verificabilidade reivindicados por
documentos como o DSM-IV podem ser questionados em cada uma das
classificações ali apresentadas. No caso da transexualidade ou nos chamados
“transtornos de identidade de gênero”, a pretensão de cientificidade não se sustenta.
Basta que analisemos um excerto referente a “Achados laboratoriais associados”,
constante do referido manual. Nele se lê que não existe qualquer teste diagnóstico
específico para o Transtorno da Identidade de Gênero. Na presença de um exame
físico normal, geralmente não se indica o cariótipo de cromossomas sexuais e
avaliações de hormônios sexuais. A testagem psicológica pode revelar identificação
ou padrões de comportamento do gênero oposto. [...] O SOC14 também reconhece

12
Breno ROSOSTOLATO é Psicólogo Clínico e Professor de Psicologia da Faculdades Santa Marcelina. Tem
experiência na área de Psicologia, com ênfase em clínica, atuando principalmente no segmento de sexualidade, e
faz atendimentos a crianças, adolescentes, adultos e casais. Foi entrevistado por Fernanda Oliveira para MBPress
em 5 de janeiro de 2016. Ver referências bibliográficas.
13
Por Maira Baracho - publicada on-line em 09/04/2015 - ver referências bibliográficas.
14
A Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association (HBIGDA), publica e revisa regularmente o
Standards of Care (SOC). O propósito principal deste documento é articular um consenso profissional
internacional acerca do manejo psiquiátrico, psicológico, médico e cirúrgico das “Desordens da Identidade de
limitações de um conhecimento cientificamente comprovado por testes laboratoriais
para produção do diagnóstico de “disforia de gênero”, mas alimenta a esperança de
que as incertezas clínicas possam resolver-se no futuro por meio da investigação
científica. Afirmação risível, não fossem suas consequências graves nas vidas de
inúmeras pessoas. (Idem, p. 578).
É exatamente nesse ponto que a sociologia entra em atrito com a ciência médica. Uma grande
quantidade de médicos ainda insiste na patologização, mantendo o tema agregado dentro de
aspectos controlados pela medicina como transtornos da sexualidade, e, dessa forma, o
controle sobre os corpos, quando a sociologia tende a encarar o assunto simplesmente como
mais uma variável do comportamento sexual humano, não um transtorno.

Encontramos algumas tendências científicas que entendem “que a vivência de um gênero


(social, cultural) discordante com o que se esperaria de alguém de um determinado sexo
(biológico) é uma questão de identidade e não um transtorno.” (JESUS, 2012, p. 9).

Alguns médicos apresentam sensibilidade para a matéria, apesar de não se afastarem da


abordagem biomédica. O Protocolo Olson, Forbes, Belzer, Gestão do Adolescente
Transgênero (2011, p. 1), já em seu resumo justifica a necessidade de capacitar os
profissionais da área de saúde sobre a questão para que estejam aptos a lidar com ela:
Médicos da Atenção Básica estão em uma posição única e poderosa para promover a
saúde e obter resultados positivos para transgêneros jovens. Embora nem todos os
adolescentes transexuais desejem a transição fenotípica para coincidir com seu
gênero e corpo físico, a maioria o faz. O processo de transição é complexo e requer
o envolvimento multidisciplinar, um terapeuta de saúde mental especializado em
gênero, uma equipe médica que envolva clínicos, psiquiatras, psicólogos,
urologistas, ginecologistas e endocrinologistas. Encontrar serviços especializados de
saúde médica e mental é extremamente difícil para estes jovens, que estão em grave
situação de risco para vários problemas psicossociais, incluindo familiares e rejeição
dos colegas, assédios, traumas, abusos, habitação inadequada, problemas legais, falta
de apoio financeiro e problemas educacionais.
Ainda nesse sentido, Dra. Olson et al. insistem nessa orientação em outro artigo, “Research
Priorities for Gender Nonconforming/Transgender Youth: Gender Identity Development and
Biopsychosocial Outcomes”, em 2016, mencionando que um número cada vez maior de
jovens transgêneros está se apresentando para atendimento. Eles sugerem que sejam
reconfiguradas as ferramentas existentes para entender a identidade de gênero, quantificar a

Gênero”. Ao mesmo tempo objetiva orientar os profissionais no entendimento dos “parâmetros dentro dos
quais podem oferecer assistência às pessoas com este tipo de problema”. WPATH, 2012. Para uma leitura do
Standards of Care (sétima versão), consultar <www.wpath.org>.
disforia de gênero e estudar uma estratégia de análise mais diversificada de indivíduos
transgêneros, em particular nas crianças, uma vez que os dados que examinam o impacto da
transição social e intervenções médicas são escassos. “E faltam informações clinicamente
úteis para prever as vias individuais de desenvolvimento psicossexual, colocando os jovens
transgêneros em alto risco de desenvolver consequências médicas e psicossociais ruins.”
(OLSON-KENNEDY et al., 2016, p. 172. Nossa tradução).

E assim ela se mostra mais inclinada a preocupar-se com os fatores sociais que causam a
desestabilização emocional, esses sim que geram a necessidade de atendimento psicoterápico,
do que com fatores biologizante:
Cada vez mais, dados biomédicos estão começando a mudar a trajetória da
investigação científica. É necessária uma extensa pesquisa para melhorar a
compreensão da disforia de gênero e da experiência dos transgêneros,
particularmente entre os jovens. As recomendações incluem a identificação de
previsores de persistência da disforia de gênero desde a infância até a adolescência e
uma investigação aprofundada sobre o impacto das intervenções para jovens
transgêneros. Finalmente, a análise dos ambientes sociais da juventude transexual é
fundamental para o desenvolvimento de intervenções apropriadas necessárias para
melhorar a vida das pessoas trans. (OLSON-KENNEDY et al., 2016, p. 172. Nossa
tradução).
Primordial é que essas pesquisas existam e seus resultados venham a ser aplicados, pois há
altas taxas de suicídio entre os jovens transgêneros. Olson estima que, entre os jovens
transgêneros da Divisão de Medicina para Adolescentes do Children’s Hospital de Los
Angeles, cerca de 50% já tentaram suicídio. (OLSON, 2015 apud GROSSMANN, 2016.
Nossa tradução).

Outro estudo do Hospital da Criança de Cincinnati publicado no periódico Suicide and Life-
Threatening Behaviour mostra que 30% dos jovens transgêneros relatam ter tentado suicídio
pelo menos uma vez, e 42% têm histórico de automutilação. Os pesquisadores avaliaram os
registros médicos de 96 pacientes de 12 a 22 anos que passaram pela instituição. Desde que
foi inaugurada, em 2013, a clínica, que é especializada em crianças e adolescentes
transgêneros, já atendeu cerca de quinhentos indivíduos. Os autores também ressaltam que
quase 63% dos jovens sofreram bullying, 23% foram suspensos ou expulsos da escola, 19%
tiveram envolvimento em brigas e 17% repetiram o ano na escola.
Os resultados chamam a atenção para a importância do suporte psicológico a essa parcela da
população (BOUER15, 2016).

Não foi encontrado nenhum registro de estudo acadêmico sobre suicídio de transgêneros
infantis no Brasil, em três das principais plataformas virtuais de pesquisa acadêmica, Scielo16,
BVS17, Google Acadêmico18, com as palavras transgênero ou transexual associada a criança,
infância ou infantil até 30 de agosto de 2016, sugerindo uma total invisibilidade do tema. Um
artigo de Djalma Thürler e Mayana Rocha Soares aborda a evasão escolar por
constrangimento, humilhações e rejeições, com dados da UNESCO, em que 39% dos jovens
estudantes brasileiros abandonam a escola por serem alvo de homofobia19, trazendo como
consequências futuras má qualificação profissional, ocupações de menor prestígio social e
menor poder aquisitivo, e marginalização social. (THÜRLER e SOARES, 2011, p. 57).

Apesar de, por algum tempo, termos tido alguns anos de uma “política das diversidades”,
através de políticas públicas educacionais, as quais previam uma abordagem educacional
contra a prática homofóbica e de valorização da diversidade sexual e de gênero, sempre
existiram resistências em adotar tais políticas. Contudo, o cenário se complicou ainda mais
com líderes religiosos fundamentalistas ocupando cargos públicos de destaque, e utilizando
suas concepções conservadoras da religião cristã para legislar. O cenário político se agravou
com a chegada ao poder de um novo grupo que, em vários aspectos, demonstrou desprezo
pela democracia e pela diversidade, apresentando um Ministério que reforçou antigos
conceitos do patriarcado, fechando várias pastas que sustentavam políticas de direitos
humanos e diversidade, e ampliavam o escopo de cidadania às populações marginalizadas
fosse por raça, gênero ou socioeconomicamente, incluindo a população trans. A Procuradoria

15
Jairo Bouer é médico formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com residência em
psiquiatria no Instituto de Psiquiatria da USP. A partir do seu trabalho no Projeto Sexualidade do Hospital das
Clínicas da USP (Prosex), passou a focar seu trabalho no estudo da sexualidade humana. Hoje é referência no
Brasil, para o grande público, quando o assunto é saúde e comportamento jovem, atendendo a dúvidas através de
diferentes meios de comunicação.
16
Site: http://www.scielo.org/php/index.php
17
Site: http://brasil.bvs.br
18
Site: https://scholar.google.com.br
19
Abrimos a possibilidade de que esse dado possa trazer embaralhado tanto a homofobia como a lesbofobia e a
transfobia abarcadas por um só termo.
Federal dos Direitos do Cidadão divulgou uma nota técnica20 no dia 17 de março de 2017
declarando inconstitucional a notificação que proibia professores de discutir gênero em sala
de aula.

A capacitação profissional de operadores da saúde como psicólogos, enfermeiros, médicos e


afins, a partir da perspectiva de não tratar como patologia a identidade trans e a possibilidade
de refletir sobre a problemática em rotular meninos e meninas transexuais como doentes, é o
principal desafio do poder público para dar a essas crianças e jovens um projeto de
humanidade que não apague as diferenças, e sim ensine estes profissionais a dar o
atendimento que respeite a alteridade e as diferenças.

Aprender a olhar o mundo de maneira não normalizadora exige mais do que pensar em
famílias diversas ou em inclusão. É preciso questionar a própria pressuposição de que é
necessário reproduzir o existente quando podemos começar a transformá-lo.

1.3 OBJETIVOS

Fazer uma análise introdutória acerca das crianças transgêneras que possa contribuir para
aumentar a consciência dos profissionais da área de Saúde sobre as demandas clínicas,
direitos e necessidades dos transgêneros infantis.

1.4 METODOLOGIA

Este estudo foi realizado a partir de uma revisão da literatura e artigos de alguns dos
principais autores clássicos das áreas de sociologia, história e filosofia bibliográfica da
segunda metade do séc. XX em particular as últimas décadas – BEAUVOIR (1970),
BUTLER (1997), FOUCAULT (1988, 2005 e 2008), até os atuais especialistas nacionais e
estrangeiros no campo das ciências sociais, como BENTO (2006, 2008, 2011, 2012 e 2016),
LANZ (2014 e 2016), LOURO (1997 e 2000), PELÚCIO (2012), PRECIADO (2011),

20
http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/informativos/edicoes-2017/marco/170317-2
RIBEIRO e SANTOS (2011), através de buscas na base de dados da BVS Brasil21, Scielo22 e
Google Acadêmico23, por artigos que trouxessem a palavra “transgênero”.

A mesma metodologia foi utilizada para as áreas de saúde, jurídica, e educação. Entre as
publicações brasileiras estão: SILVA e et al. (2016) para Enfermagem, FERRARI e
CAPELARI (2014), GRANT (2012), VIEIRA e PAIVA (2009) para Direito; THURLER e
SOARES (2011) para Pedagogia; e BOUER (2016), JESUS (2012), PRETTO e LAGO
(2013), ROSOSTOLATO (2016) e VIEIRA (2015) na Psicologia. Entre as internacionais
estão: ROSENTHAL (2014), SARASWAT (2015), WEINAND e SAFER (2015) para
Medicina (EUA).

Através do cruzamento das palavras “transgênero” ou “transexual” e “criança”, “infância” ou


“infantil” chegou-se aos relatos médicos de COHEN-KETTENIS e GOOREN (1999),
GROSSMAN, PARK e RUSSELL (2007), OLSON (2011, 2014 e 2016), ROSENTHAL
(2014), nos EUA, ZUCKER (2009 e 2016) no Canadá, AITKEN, VANDERLAAN e
ZUCKER (2003) em parceria Holanda/Canadá, e SAADEH (2004 e 2012) no Brasil.

Foram também utilizados os Manuais DSM IV e V. Pesquisas complementares foram feitas


na internet em busca de legislação específica e de portarias, bem como de matérias
jornalísticas embasadas em pesquisas após a verificação das fontes da pesquisa.

Foram analisados 165 textos, desses foram utilizados 46%, sendo 36% de autores estrangeiros
e 64% de autores nacionais. No Brasil, não se observou muitos artigos relacionados ao tema
criança transgênera. A maioria dos artigos brasileiros retrata a realidade dos adultos
transgêneros, demonstrando a escassez de dados sobre o assunto. Os dados mais precisos
sobre o tema vêm de pesquisas americanas, canadenses, e holandesas.

1.5 HIPÓTESE

21
Site: http://brasil.bvs.br
22
Site: http://www.scielo.org/php/index.php
23
Site: https://scholar.google.com.br
Faz-se necessário aumentar a quantidade e a qualidade de pesquisa científica sobre o tema no
Brasil para melhorar a compreensão da disforia de gênero e da experiência dos transgêneros,
particularmente dos jovens, já que muito pouco se estuda sobre transgêneros infantis. Isso
possibilita a despatologização e a análise dos ambientes sociais da juventude transexual que
são fundamentais para o desenvolvimento das intervenções apropriadas necessárias, visando
melhorar a vida das crianças e jovens trans. Dessa forma, é possível encarar as práticas
médicas (endocrinológicas / neurológicas) e sociológicas não como antagônicas, mas como
complementares, uma vez que a transexualidade não é doença, e sim mais uma das variações
de existência humana, uma vez que os provedores médicos se beneficiam com a compreensão
das intervenções para ajudar as crianças e os jovens em não-conformidade de gênero a
prosperar.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1. O QUE É SER CRIANÇA?

No dicionário Aurélio, ao verbete criança corresponde as seguintes definições: “menino ou


menina no período da infância; pessoa estouvada, pouco séria, de pouco juízo; cria”.

Segundo a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que criou o ECA - Estatuto da Criança e do
Adolescente, em seu Art. 2º: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até
doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”.

E pelo Art. 227 da mesma lei é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar com
prioridade seu direito à saúde, à dignidade, ao respeito, à liberdade, a salvo de qualquer
negligência, discriminação e opressão:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (L.8.069/90
– Art. 227)
Estamos, portanto nos referindo a um ser que faz jus a proteção de todos, da família própria,
ao Estado, passando pela sociedade, seja nos microcosmos de convivência social ou na
sociedade como um todo. Todos com a obrigação legal da dar o máximo de proteção e
cuidado a esse ser, mantendo-o a salvo de qualquer forma de negligência.

O fato de durante a infância a pessoa demandar toda essa proteção e orientação da família, da
sociedade e do Estado não a faz um ser sem sentimentos próprios em relação a si mesma, ao
seu corpo e sobre como quer se expressar no mundo.

Segundo Pretto e Lago (2013, p. 56), apesar dos avanços trazidos pelo ECA, há ainda muito
que se entender sobre a criança como um ser social plural, permeado por distinções de classe,
gêneros, e raças, e separação de gerações, etnias e geografia, que traz em si as características
de uma sociedade multifacetada, controversa, desencontrada, e universal: “Julgamos que a
infância é atravessada pelas questões de gênero e que essas são, igualmente, fundadas em
determinadas concepções e práticas fundadas nas vidas das crianças.”. Não há uma criança
universal.

Durante essa pesquisa não foram encontrados no Brasil dados sobre transgêneros infantis
passíveis de serem cruzados com classe e raça. Um artigo de Grossmann, Russell e Park
(2007, p.7), referente a uma pesquisa envolvendo transgêneros infantis na sociedade
americana, menciona que os participantes auto identificados como “multirracial” e “de outra
raça” indicaram maiores taxas de tentativas de suicídio (57,1% e 60,0%, respectivamente) do
que caucasianos, afro-americanos e latinos / latinas (23,0%, 25,0% e 28,6% respectivamente).

Interlocuções entre gênero e raça e a produção das diferenças e das desigualdades sexuais e de
gênero, em suas articulações com outros "marcadores sociais", como classe, em adultos no
Brasil foram abordados por inúmeros autores. Se utilizarmos percentuais como análise, em
estudo realizado em 2016 sobre Situações de violência contra travestis e transexuais em um
município do nordeste brasileiro: “Observou-se que quanto à cor, 62,5% (n=10) declararam-
se pardas e 31,25% (n=05) negras, de acordo seu sentimento de pertença.” (SILVA e et al.,
2016, p.3). Se preferirmos uma abordagem mais subjetiva, Louro (1997) em Gênero,
Sexualidade e Educação, diz que não há uma identidade universal, pois estas estão
continuamente se construindo e se transformando:
Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos, símbolos,
representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como masculinos ou
femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas disposições, suas
formas de ser e de estar no mundo. Essas construções e esses arranjos são sempre
transitórios, transformando-se não apenas ao longo do tempo, historicamente, como
também transformando-se na articulação com as histórias pessoais, as identidades
sexuais, étnicas, de raça, de classe ... (HALL, 1992, apud LOURO, 1997, p. 7).
Desta maneira, podemos inferir que diversas desigualdades sobrepõem-se umas às outras e se
agravam. O opositor é um só – o homem, branco e heterossexual - o sujeito político por
excelência – o cidadão “de bem”! E todo um universo de cidadãos e cidadãs diferentes, de
segunda categoria desvalorizado, resta à margem de um mundo que o tem como modelo de
sujeito universal. Não é estratégico dividir os debates em agendas políticas entre os demais,
sob o risco de enfraquecimento. Ainda que necessário escutar cada individualidade para
compreendê-la e acolhê-la, é indispensável discuti-las em conjunto para ação em comum. É
essa união que validará o discurso de que são os brancos/homens/heterocisnormativos os
grandes propagadores-responsáveis e usufrutuários de todos os mecanismos alcançados pelo
racismo, pela misoginia e pela heterocisnormatividade, não interessando a estes que nada
disso deixe de existir.

2.1. CONCEITOS DE GÊNERO

Segundo Berenice Bento (2006, p. 13), gênero tem um caráter polissêmico e, conforme
determinadas correntes teóricas, iremos interpretar masculinidade e feminilidade de forma
diferente. A concepção hegemônica de gênero que genitaliza as identidades de gênero é uma
das concepções e diz que para ser homem ou para ser mulher precisa-se de um corpo sexual
que estabilize essa identidade de gênero.
A norma de gênero repete que somos o que nossas genitálias informam. Esse
sistema, fundamentado na diferença sexual, nos faz acreditar que deve haver uma
concordância entre gênero, sexualidade e corpo. Vagina-mulher – emoção –
maternidade – procriação – heterossexualidade; pênis-homem - racionalidade
paternidade – procriação - heterossexualidade. As instituições estão aí,
normatizando, policiando, vigiando os possíveis deslizes, os deslocamentos. Mas os
deslocamentos existem. Apresentam-se. (BENTO, op. cit.).
Assim também vê Breno Rosostolato (2016), que gênero é um comportamento imposto
socialmente:
[...] o gênero, masculino ou feminino, erroneamente, é um eufemismo para sexo. O
sexo está ligado ao órgão genital, pênis ou vagina. O gênero é o comportamento,
postura e atitude que a sociedade espera e que é, portanto, imposto socialmente.
Gênero, então, é o sistema de representações e práticas sociais e culturais, ancorado na
constituição anatômica, a partir do referencial biológico (genital), que estabelece distinções
entre feminino e masculino, organizando tais distinções em desigualdades e hierarquias:
Os estereótipos são uma maneira de “biologizar” as características de um grupo, isto
é, considerá-las como fruto exclusivo da biologia, da anatomia. O processo de
naturalização ou biologização das diferenças étnico-raciais, de gênero ou de
orientação sexual, que marcou os séculos XIX e XX, vinculou-se à restrição da
cidadania a negros, mulheres e homossexuais.
Uma das justificativas até o início do século XX para a não extensão às mulheres do
direito de voto baseava-se na ideia de que possuíam um cérebro menor e menos
desenvolvido que o dos homens. A homossexualidade, por sua vez, era tida como
uma espécie de anomalia da natureza. Nas democracias modernas, apenas
desigualdades naturais podiam justificar o não acesso pleno à cidadania. (Gênero e
Diversidade na Escola24, 2009, p. 25).
Quando Beauvoir diz que ninguém nasce mulher, torna-se mulher, ela questiona a categoria
“mulher” e propõe que ‘mulher’ seja uma construção social e histórica e não natural. A
naturalização das mulheres implica acreditar em características inatas e imutáveis que servem
para reforçar argumentos em torno da fragilidade, vulnerabilidade, docilidade, passividade
dentre outras que as excluem de domínios que exigem força e competitividade. (Beauvoir,
1970).

As representações que nascem a partir das diferenças anatômicas naturalizam o gênero e se


referem a relações de poder, percepções de prestígio, reconhecimento, divisão sexual do
trabalho, divisão dos trabalhos domésticos, criando estereótipos.

Essa construção cultural cria uma dimensão relacional desde a infância via brincadeiras com
fortes marcadores de gênero e representações esquemáticas do que pertence ao masculino
(pênis, músculo, força, atividade, razão, objetividade, sujeito, segurança, etc.) e o que
pertence ao feminino (vagina, gordura, fraqueza, passividade, emoção, subjetividade, objeto,
vulnerabilidade, etc.).

Quase como uma forma de retroalimentação, os estereótipos reforçam a maneira de


“biologizar” as características de um grupo, isto é, considerá-las como fruto exclusivo da

24
Grifo dos autores.
biologia e da anatomia. O processo de “naturalização” ou “biologização” das diferenças de
gênero ou de orientação sexual, que marcou os séculos XIX e XX, vinculou-se à restrição a
homossexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexos.

As pessoas trans denunciam e refutam as estratégias reguladoras das categorias sexuais que
são embasadas no binarismo. Elas materializam em seus corpos a possibilidade de resistência
à norma, proporcionando a desnaturalização da heteronormatividade idealizada e
compulsória.

Para Butler, o gênero é fluído, uma complexidade que permite uma multiplicidade de
possibilidades sexuais. A perspectiva binária das identidades homem/mulher é problematizada
e questionada, pondo em xeque a efetividade dos “gêneros inteligíveis”:
[...] aqueles que mantêm coerência entre sexo, gênero, desejo e prática sexual
(homem, masculino, deseja mulheres e se relaciona sexualmente com mulheres; ou
mulher, feminino, deseja homens e se relaciona sexualmente com homens),
vinculação não restrita apenas ao âmbito sexual, ao contrário, perpassa todo o
sistema simbólico e social em que as pessoas estão inseridas. (BUTLER, 2003 apud
THÜRLER e SOARES, 2011, p. 59).

2.2. IDENTIDADES DE GÊNERO, TRANSEXUALIDADE E DISFORIA DE GÊNERO

A transexualidade é identificada pelo saber médico como Transexualismo e descrita pelo


Conselho Federal de Medicina como:
[...] desvio psicológico permanente de identidade sexual e já objeto de três
Resoluções (RES CFM nº. 1.482/1997; RES CFM nº. 1.652/2002; RES CFM nº.
1.955/2010) – de acordo com as quais obedece aos critérios de: desconforto com o
sexo anatômico natural; desejo expresso de eliminar os genitais, perder as
características do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; permanência desses
distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; e ausência de
outros transtornos mentais.
Bento se entrega ao processo de desconstrução do transexual universal, desenvolvendo uma
rica reflexão sobre gênero e sexualidade. E deixa claro que na sua visão:
A transexualidade é uma experiência que está localizada no gênero. As cirurgias de
transgenitalização e as outras mudanças que acompanham o processo
transexualizador nada revelam sobre a orientação sexual do sujeito. A reivindicação
dos/as transexuais é, sobretudo, o reconhecimento como membro do gênero com o
qual se identifica, o qual estaria em discordância com suas genitálias. (BENTO,
2006, Ibid.).
A Dra. Olson é uma das poucas médicas a ter uma não-patologizante do tema. Segundo
Olson, Forbes, e Belzer (2011, p. 1):
A identidade e o comportamento transexual dos indivíduos transgêneros, são
socialmente e “medicamente” estigmatizados, resultando em uma população
notadamente carente, de alto risco para a morbidade e mortalidade significativas.
As pacientes transexuais são frequentemente atribuídos um diagnóstico psiquiátrico
de transtorno de identidade de gênero (TIG), quando eles estão enfrentando
dissonância entre o seu sexo de nascimento e sua identidade de gênero.
Contudo, mesmo Olson não foge a visão biologizante. Segundo o Protocolo de Olson, Forbes,
e Belzer sobre a Gestão do Adolescente Transgênero, os fatores etiológicos associados com o
Transtorno de Identidade de Gênero - TIG - são extremamente complexos e muito pouco
conhecidos. O Protocolo de Olson, Forbes, e Belzer sugere que a exposição intrauterina a
hormônios antagônicos, infância e fatores psicológicos (geralmente com base em interações
entre pais e filhos), as diferenças anatômicas na estrutura e ativação de estruturas cerebrais, e
variações genéticas sutis façam parte desses fatores. Ao se comparar se o TIG é uma condição
psiquiátrica ou uma variação natural, ou hormônio induzida ou ainda em um estágio anterior,
sobre a biologia da diferenciação psicossexual humana25, é muito provável que a origem do
TIG seja multifatorial (OLSON, FORBES, E BELZER, 2011, Ibid.).

O mesmo Protocolo afirma que:


[...] a identificação de gênero muitas vezes surge na infância precoce. Tradicionais
visões de identidade de gênero têm sido categóricas, afirmando que ou se é um
macho ou fêmea e que isto é imutável ao longo do tempo. No entanto, teorias
recentes e trabalhos empíricos sugerem que os modelos multidimensionais têm mais
a ver com a definição do sexo e numa forma contínua, permitindo assim uma fluidez
ao longo do tempo e do contexto para melhor capturar as complexidades da
identidade de gênero. (OLSON, FORBES, E BELZER, 2011, Ibid).
Rosenthal (2014, p.4382), em 2014 apoia a ideia de que exista algum componente biológico,
porém considera que a identidade de gênero não é unicamente dependente deste fator:
Os resultados dos estudos de identidade de gênero em Distúrbios de
Desenvolvimento Sexual (DDS) hormonais e não hormonais indicam que a
identidade de gênero não é unicamente dependente da exposição de andrógenos pré-
natal e pós-natal; entretanto, a ocorrência de mudança de identidade de gênero (em
comparação com o gênero natal) a uma taxa significativamente maior do que seria
esperado na população geral apoia algum papel dos andrógenos pré-natais e
possivelmente pós-natais no desenvolvimento da identidade de gênero. Deve-se
notar que as possíveis limitações de todos esses estudos baseados em estudos e
questionários para avaliar a identidade de gênero incluem o grau de autoconsciência
de uma pessoa e sua disponibilidade para divulgar essas informações no contexto do
estudo. (Nossa tradução).

25
(GOOREN, 2006 apud OLSON, FORBES, E BELZER, 2011). “A biologia da diferenciação psicossexual
humana”. Horm Behav 2006; 50 (4) 589- 601
O mais comum é que uma acepção psicológica mais completa da identidade de gênero se
manifeste na adolescência. Contudo, atualmente, as mídias sociais e os meios de comunicação
têm possibilitado maior visibilidade aos transgêneros, o que permite aos jovens trans perceber
e nomear suas identidades de gênero cada vez mais cedo. (OLSON, FORBES, E BELZER,
2011, op. cit.).

Para Jaqueline Gomes de Jesus (2012, p. 24), identidade de gênero é “o gênero com o qual
uma pessoa se identifica, pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando
de seu nascimento”. Ela explica ainda que identidade de gênero e orientação sexual não
podem ser confundidas por serem aspectos diferentes das subjetividades:
Chamamos de cisgênero, ou de “cis”, as pessoas que se identificam com o gênero
que lhes foi atribuído quando ao nascimento. Contudo, nem todas as pessoas são
assim, porque, repetindo, há uma diversidade na identificação das pessoas com
algum gênero, e com o que se considera próprio desse gênero. Denominamos as
pessoas não-cisgênero, as que não se identificam com o gênero que lhes foi
determinado, como transgênero, ou trans. (JESUS, 2012, Ibid.).
Todas essas definições e classificações surgidas e desenvolvidas no âmbito dos debates de
movimentos sociais e da academia (ciências sociais) acabam sendo limitadoras, porque dentro
de cada grupo também há uma infinidade de variações que, cada uma por si só, não é capaz de
abarcar todos os sentimentos e as variações da subjetividade humana. Esse fato acaba gerando
algum desconforto e acirra ânimo dentro mesmo do ativismo trans.

Ainda segundo Jesus (2012, Ibid.), em seu livro sobre conceitos e termos, Transgênero é “um
conceito ‘guarda-chuva’ que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam,
em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi
determinado quando de seu nascimento”.

Segundo a socióloga Letícia Lanz (2014, p. 27), entende-se por identidades transgêneras
“aquelas identidades de gênero que se constituem a partir de alguma forma de transgressão,
desvio ou violação das normas de conduta estabelecidas pelo dispositivo binário de gênero
masculino-feminino”:
[...] desvio das normas sociais de conduta de gênero, ressaltando a sua natureza
essencialmente sócio-político-cultural e localizando-o fora do domínio dos saberes
médicos onde continua sendo mantido na condição de perversão e de doença mental,
ainda que de forma mais amenizada. O DSM-V – Diagnostic and Statistical Manual
of Mental Disorders, finalmente publicado pela APA - American Psychiatric
Association em meados de 2013, passou a denominar o antigo GID – Gender
Identity Disorder de GID – Gender Identity Disphoria. (LANZ, 2014, Ibid.).
Ainda seguindo o argumento de LANZ (2014, Ibid.), todas as identidades que, de alguma
forma e em algum grau, descumprem, ferem e/ou afrontam o dispositivo binário de gênero,
são gênero-divergentes e, em razão disso, marginalizadas, excluídas e estigmatizadas pela
sociedade. Não se deve confundir ser transgênero com ser gay (ou lésbica ou bi), dado que
uma coisa é a identidade de gênero e outra a orientação sexual. Igualmente, não deve ser
considerado como doença mental ou comportamento devasso, uma vez que é simplesmente
uma incongruência em relação às imposições sociais sobre comportamento de gênero.

Existem várias possibilidades de transidentidade, uma vez que a mesma:


[...] abrange uma série de situações em que uma pessoa sente o desejo de adotar,
temporariamente ou permanentemente, o comportamento e os atributos sociais de
gênero (masculino ou feminino), em contradição com o sexo genital. Em alguns
casos, este será o travestismo ocasional. Em outros, as pessoas podem viver
alternadamente com duas identidades sociais, masculino e feminino. Ou tomar uma
posição intermediária, o gênero não marcado. Ou viver plenamente no tipo de sexo
oposto. Finalmente, algumas pessoas anseiam por uma modificação do corpo até a
cirurgia de mudança de sexo, aqui estamos falando especificamente de
transexualidade. São consideradas transidentidades a transexualidade, a
travestilidade, a Drag Queen, o Drag King, o Crossdresser, o transformista. (LANZ,
2014, Ibid.).
Em angústia constante e bipartida entre o rompimento com essas regras e o esforço pela
congruência com elas, a pessoa transgênera vive buscando conformidade só que, em geral,
dentro de uma categoria de gênero que é oposta àquela em que a pessoa foi designada ao
nascer. Lanz (2014, op. cit.) aborda este estado de conflito da pessoa transgênera como não
sendo dela com ela mesma, “ou da sua subjetividade com a sua corporalidade, mas a
consequência imediata da sua transgressão das normas sociais de gênero, através de
pensamentos, palavras, atos e omissões”.
Se o dispositivo binário de gênero fosse algo ao menos flexível, se não comportasse
apenas duas e somente duas identidades socialmente legitimadas (masculino e
feminino) não haveria a menor possibilidade de ocorrer qualquer tipo de
transgressão de gênero, nenhuma pessoa seria classificada como transgênera ou
gênero-divergente. (LANZ, 2014, Ibid.).
E assim retornamos ao ponto de atrito da sociologia com a medicina. Existe transtorno quando
todas as variações de identidade são legitimadas socialmente? Segundo a pesquisa de
Berenice Bento (2006) a respeito da visão médica sobre a transexualidade, estudos de casos
concretos e várias teorias geraram um período abundante em publicações que dissertavam
sobre as primícias da transexualidade desde os anos 50, que culminaram com o
enquadramento do “transexualismo” no Código Internacional de Doenças, em 1980,
celebrado pela comunidade científica, uma vez que comprovado que “se tratava de uma
“doença”, os cientistas poderiam celebrar a “cura” de um mal existente em todos os tempos e
culturas”. (Idem, p. 22).

2.3. COMO É SER CRIANÇA TRANSGÊNERA?

Crianças são educadas desde tenra idade a partir de uma concepção de valores hegemônicos
postos através de uma “precariedade de um sistema de gênero e sexualidade assentado no
império do biológico e, consequentemente, na genitalização das relações sociais.” (BENTO,
2011, p. 559).

Contudo, desde muito pequenas também, são capazes de demonstrar quando se sentem em
desacordo com esse sistema linear hegemônico. E quanto mais repressor for o ambiente no
seu entorno, mas provável será que ocorram danos emocionais:
As experiências de trânsito entre os gêneros demonstram que não somos
predestinados a cumprir os desejos de nossas estruturas corpóreas. O sistema não
consegue a unidade desejada. Há corpos que escapam ao processo de produção dos
gêneros inteligíveis e, ao fazê-lo, se põem em risco porque desobedeceram às
normas de gênero, ao mesmo tempo revelam as possibilidades de transformação
dessas mesmas normas. (BENTO, Ibid.).
Um sistema de repreensões e punições passa a existir em todos os lugares de atuação social,
primeiramente no privado, e depois, também no público. Aquela criança que deveria ser
protegida por todos passa a ser oprimida por todos, ou quase todos.

Supervisionadas todo o tempo pelas organizações e entidades sociais como a família, a escola,
a igreja e a mídia, cada vez mais presente em nossas vidas, as crianças, que nasceram com
corpos biologicamente macho ou fêmea, vão aprendendo a desenvolver seus papéis sociais de
homem e mulher. (LANZ, op. cit.).

Tantas pressões sociais e controles desses pequenos corpos, em fase da vida onde ainda não se
tem capacidade cognitiva suficiente para dar conta desse sofrimento com o necessário
entendimento, com frequência levam a desajustes emocionais – não como causa da
transexualidade – como consequência da inabilidade do meio em lidar com a não
conformidade às expectativas sociais em relação às performances binárias de gêneros lineares
atribuídas quando do nascimento dessas crianças:
Esse processo de fuga do cárcere dos corpos-sexuados é marcado por dores,
conflitos e medos. As dúvidas “por que eu não gosto dessas roupas? Por que odeio
tudo que é de menina? Por que tenho esse corpo?” levam os sujeitos que vivem em
conflito com as normas de gênero a localizar em si a explicação para suas dores, a
sentir-se uma aberração, uma coisa impossível de existir. Quais os mecanismos
sociais que produzem nas subjetividades essa sensação de anormalidade? Como as
instituições operam para serem eficazes no seu intento de naturalizar os gêneros?
(BENTO, op. cit.)
É premente que seja feita uma análise que especifique melhor os fatores que produzem a
“evasão escolar” dos transgêneros. Não existem estatísticas oficiais a respeito a evasão
escolar da população LGBT. Contudo, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais – ABGLT, afirma que transexuais e travestis são os que mais sofrem
discriminação no ambiente escolar, estimando-se que aproximadamente 73% dessa população
se evade da escola:
A natureza da violência que leva uma criança a deixar de frequentar a escola porque
tem que trabalhar para ajudar a família não é da mesma ordem daquela que não
consegue se concentrar nos conteúdos transmitidos porque é “diferente”. Daí a
importância de pesquisas (com recortes de gênero e sexualidade) que demonstrem os
encaixes dos indicadores de “sucesso” e “fracasso”, deslocando o olhar dos
conteúdos visíveis para os invisíveis. (BENTO, 2011, Ibid.).
Tão cedo quanto se apresentem diferentes da norma, as crianças transexuais e travestis sofrem
constantes xingamentos impiedosos e agressões cruéis na escola, perdendo, assim, o seu
potencial de desenvolverem intelectual e socialmente via estudo (THÜRLER e SOARES,
2011). Justo o espaço tão importante para a formação de vínculos e para o desenvolvimento
da socialização, revela-se ferino e desumano.

Além disso, muitas vezes são expulsas de casa, não conseguem emprego, são excluídas de
todos os campos sociais.

Na violência que a criança transgênera sofre na escola habita o universo das maiores, pois
esta marcará toda a sua existência, se não tiver o apoio da família para enfrentar a escola
nesse momento. Uma vez que não possa educar-se e abandone os estudos, essa criança
diminuirá enormemente sua capacidade futura de empregabilidade digna.

Jovens transgêneros têm se revelado em idades cada vez mais jovens e estão buscando
atendimento médico, por vezes até antes do início da puberdade. São jovens que estão em alto
risco de depressão, ansiedade, isolamento, autoagressão e suicídio no início de uma puberdade
na qual se sentem mal.

2.4. UMA QUESTÃO POLÍTICA

As concepções científicas vêm utilizando-se da razão como instrumento de normatização. A


história da sexualidade pode ser feita do ponto de vista de uma história dos discursos da
Psiquiatria e Medicina com seus dispositivos de regulação e exercício de poder; da
Sexualidade como questão política como explicou Foucault quando falou em biopoder e
biopolítica (FOUCAULT, 1988 p. 132).

Foucault instaura um paradigma na esfera de um debate que subverteu, modificou e


transformou a relação do saber e a produção de conhecimento sobre a sexualidade, articulada
com as relações de poder na sociedade moderna. Assim, a sexualidade passou a ser percebida
a partir de seus precedentes históricos, através dos quais ela se encontra exposta na sociedade.
Ele explica a explosão discursiva sobre o sexo a partir do século XVIII para a administração
dos corpos, gestão da vida, segregação e hierarquização social, de forma que o referencial da
população passasse a ser uma visão do sexo como questão central para a harmonia da cadeia
produtiva (economia) e o equilíbrio político-administrativo:
O sexo (os órgãos sexuais, a capacidade de reprodução, os papéis sexuais para as
disciplinas modernas...) é correlato ao capital. A sexopolítica não pode ser reduzida
à regulação das condições de reprodução da vida nem aos processos biológicos que
se “referem à população”. O corpo straight26 é o produto de uma divisão do trabalho
da carne, segundo a qual cada órgão é definido por sua função. Uma sexualidade
qualquer implica sempre uma territorialização precisa da boca, da vagina, do ânus. É
assim que o pensamento straight assegura o lugar estrutural entre a produção da
identidade de gênero e a produção de certos órgãos como órgãos sexuais e
reprodutores. Capitalismo sexual e sexo do capitalismo. O sexo do vivente revela ser
uma questão central da política e da governabilidade. (PRECIADO, 2011, p. 12).
Preciado também faz uma análise foucaultiana da sexualidade como sendo muito dependente
de certa ideia de disciplina no século XIX. A autora defende que não havia mais uma base
natural (mulher, gay, etc.) que legitimasse no século XX a intervenção política do Estado
sobre os corpos, dado que intercorrera uma desmistificação das políticas de identidades:

26
Termo em inglês que significa, nesse contexto, heterossexual, no caso plural, heterossexuais.
Wittig27 chegou a descrever a heterossexualidade não como uma prática sexual, mas
como um regime político que faz parte da administração dos corpos e da gestão
calculada da vida no âmbito da biopolítica28. Uma leitura cruzada de Wittig e de
Foucault teria permitido, desde o início dos anos 1980, dar uma definição de
heterossexualidade como tecnologia biopolítica, destinada a produzir corpos
straight. (PRECIADO, 2011, p.12).
Na década de 1950 a gestão disciplinar do sexo sofre uma descontinuidade em relação à
maneira que funcionavam no século XIX, quando as disciplinas biopolíticas funcionaram
como uma máquina de naturalizar o sexo, ainda que não legitimada pela “consciência”. Essa
consciência é gerada pela perspectiva de possíveis modificações cirúrgicas e hormonais na
morfologia sexual das crianças intersexos e das pessoas transexuais, por John Money, que
passa a empregar o conceito de gênero.

Quando o conceito de gênero trazido por Money passou a naturalizar o sexo, o capitalismo e a
indústria farmacêutica começam a lucrar milhões com hormônios sintéticos e remédios para
transgêneros no processo de medicalização, assim como com os processos cirúrgicos e
próteses:
O “pós-moneísmo” é para o sexo o que o pós-fordismo é para o capital. O Império
dos Normais, desde os anos 1950, depende da produção e da circulação em grande
velocidade do fluxo de silicone, fluxo de hormônio, fluxo textual, fluxo das
representações, fluxo de técnicas cirúrgicas, definitivamente, fluxo dos gêneros.
(PRECIADO, 2011, p. 13)
A transexualidade teve o seu principal dispositivo – no sentido de Foucault (VIEIRA 2009
apud GRANT, 2012, p. 2), de práticas discursivas embasadas, neste caso, em nosologias29,
etiologias30 e protocolos médicos – formulado justamente no curso do século passado,
sobretudo a partir da década de 1950, quando as bases do diagnóstico do verdadeiro
transexual começaram a ser edificadas e difundidas, em versões bastante próximas às ainda
utilizadas, de informações subjetivas dadas pelos pacientes. Às teorizações do
endocrinologista alemão Harry Benjamin juntou-se o psicanalista Robert Stoller e juntos
ousaram criar estratégias e características para se identificar o transexual verdadeiro. Nesse

27
Monique WITTIG, 2001.
28
Biopolítica é o termo utilizado por Foucault para designar a forma na qual o poder tende a se modificar no
final do século XIX e início do século XX. As praticas disciplinares utilizadas antes visavam governar o
indivíduo. A biopolítica tem como alvo o conjunto dos indivíduos, a população.
29
Parte da medicina que se dedica ao estudo e classificação das doenças.
30
Estudo sobre a causa ou a origem de uma determinada doença.
contexto de definições individuais, Bento (2006) caracteriza como emergentes o conceito
“transexual stolleriano” e o “transexual benjaminiano”:

Ambos os autores [Stoller e Benjamin] definirão critérios para se diagnosticar o


verdadeiro transexual. Os critérios foram estabelecidos levando em conta
características inferidas como compartilhadas por todo/a transexual, o que propiciará
dois desdobramentos umbilicalmente ligados: (1) a definição de protocolos e
orientações aceitas internacionalmente para o ‘tratamento’ de pessoas transexuais e
(2) a universalização do/a transexual (BENTO, 2006, p. 133).
A visão conservadora de uma sociedade que faz o controle dos corpos de forma hierarquizada
não aceita o ser transgênero porque este fragiliza a fronteira binária de homem-mulher. E
como política e economia andam juntas, a força do capital, do lucro, das indústrias farmaco-
químicas, que financiam os manuais como o DSM, e que ditam o que é e o que não é doença e
tratável, acabam por dominar esse campo do saber com suas normas, seus protocolos e
manuais preparados por forças tarefas compostas, em sua maioria, de homens, brancos
cisgêneros heterossexuais, que não tem nenhum interesse em mudar o status quo. (BENTO,
2016).

A expressão "transexualismo" só é utilizada no caso de transgêneros adultos. A OMS


qualifica a ocorrência da transexualidade como o desejo, manifesto antes da puberdade, de ser
(ou de insistir que é) do outro sexo.

Segundo Alexandre Saadeh31 (2012):


Não há estatísticas de incidência do fenômeno. Entre pessoas acima de 15 anos,
estima-se que um a cada 625 mil seja transexual. Ele entende que a transexualidade
não é uma opção, como afirmam alguns, e, como psiquiatra, defende o diagnóstico
de transtorno de identidade sexual na infância – embora critique seu uso
estigmatizante, explicando como a medicina caracteriza o problema, à luz das
últimas pesquisas.
Em 2004 Saadeh advogou pela necessidade de amplo estudo histórico sobre o tema, e afirmou
que as pesquisas que visavam atingir resultados conclusivos do ponto de vista biológico
acerca do “transexualismo” prosseguiam, sem, contudo, terem logrado êxito. Já em 2012,
mesmo sem dados conclusivos, refutou a influência do ambiente e cultura, e falou em
evidências hormonais que influenciariam o cérebro no tocante a gênero, independente da
anatomia da genitália, o que explicaria o fenômeno trans:

31
Professor da PUC-SP e coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação
Sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo em entrevista a Rede PSI, 2012 (ver Referências Bibliográficas).
Há evidências de que a diferenciação cerebral intrauterina pode ser influenciada por
níveis de andrógenos [hormônios que desenvolvem as características sexuais
masculinas] circulantes na gestação, o que pode gerar um cérebro masculino ou
feminino, independentemente da anatomia já definida. Apesar da importância do
ambiente e da cultura, não há evidências de como esses fatores se acrescentam aos
fenômenos biológicos. (SAADEH32, 2012).
Para Olson (OLSON-KENNEDY, J. et al., 2016, p. 174), por sua vez, existe uma influência
multifacetada de aspectos e condições biológicas, culturais e ambientais no desenvolvimento
da identidade de gênero:

Estudos que esclarecem os suportes biológicos de identidade de gênero podem


ressaltar o conceito de que, assim como a orientação sexual, identidade de gênero
não é uma escolha, e pode promover uma maior compreensão e aceitação de
indivíduos transgêneros. Com relação à evidência apoiando as bases biológicas de
gênero identidade, os dados são derivados principalmente de três disciplinas
biomédicas: endócrinas, genéticas e neuroanatômicas, recentemente revistas. (Nossa
tradução).
Os estudos33 aos quais Olson se refere são os mesmos que se dizem não conclusivos, como
por exemplo, o de Saraswat, Weinand e Safer:

Embora os mecanismos permaneçam a ser determinados, existe um forte apoio na


literatura para uma base biológica de identidade de gênero.
... Os dados atuais sugerem uma etiologia biológica para as identidades transgêneras.
Estudos de pacientes com distúrbio de desenvolvimento sexual (DDS) e estudos de
neuroanatomia fornecem a evidência mais forte para a base orgânica da identidade
de gênero. Porque os tamanhos de amostra da maioria estudos sobre este assunto
foram pequenos, as conclusões devem ser interpretadas com cautela. É necessária
mais investigação para mecanismos biológicos específicos para a identidade de
gênero. (SARASWAT, WEINAND e SAFER, 2015, p. 199 e 202. Nossa tradução).
No que corrobora Rosenthal (2014, p. 4380) quando discursa sobre sexo e identidade de
gênero da seguinte forma:

Embora o "sexo" de uma pessoa se refira aos atributos físicos que caracterizam a
masculinidade ou a feminilidade biológica (por exemplo, os genitais), a "identidade
de gênero" refere-se ao sentido fundamental e interno do indivíduo como homem ou
mulher (e nem sempre é binário). A literatura médica e de saúde mental contém
amplas referências à "atribuição de gênero” / “sexo natal", por um lado, e "sexo” /
“sexo de nascimento” / “sexo de criação", por outro, conduzindo às vezes a
confusão. A atribuição de gênero (ou gênero natal) é baseada na "atribuição inicial
como homem ou mulher", geralmente no nascimento, que, por sua vez, na ausência
de um distúrbio de desenvolvimento sexual (DDS), é tipicamente baseada no

32
SAADEH em entrevista a RedePsi - Transtorno de identidade sexual na infância divide especialistas em
23 de novembro de 2012. Disponível em http://www.redepsi.com.br/2012/11/23/transtorno-de-identidade-
sexual-na-inf-ncia-divide-especialistas.
33
Rosenthal SM. Approach to the patient: transgender youth: endocrine considerations (2014) e Saraswat A,
Weinand JD, Safer JD. Evidence supporting the biologic nature of gender identity (2015).
aparecimento da genitália externa. Embora o sexo da criação possa ser atribuído no
nascimento, a identidade de gênero só pode ser assumida e não, de fato, conhecida
até que um indivíduo atinja um determinado nível de desenvolvimento psicológico e
autoconsciência. (Nossa tradução).
Como Olson, Rosenthal está mais interessado no aspecto social que no aspecto médico das
implicações das identidades trans, e em como tornar a vida dessas pessoas mais saudável. Ao
invés de patologizar, a preocupação aqui é gerar saúde.

Cohen-Kettenis e Gooren afirmam a impossibilidade de diagnosticar “transexualismo” com


base em critérios objetivos, uma vez que não existem métodos psicométricos ou instrumentos
psicológicos para medi-lo, dependendo de informações subjetivas dadas pelos pacientes.
(COHEN-KETTENIS e GOOREN, 1999, p. 322, nossa tradução).

A partir do DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, elaborado


pela Associação Americana de Psiquiatria) a transexualidade foi colocada no âmbito da
disforia de gênero, anteriormente, qualificada transtorno de identidade de gênero. Não houve,
portanto, uma despatologização efetiva.

O que foi utilizado como achado científico para justificar a desclassificação definitiva é
justamente o cerne da questão. A interpretação da sociologia é que a medicina é
tradicionalmente dominada majoritariamente por homens que formam um grupo fechado de
especialistas orientados pelos preceitos heteronormativos e produtores de códigos
institucionais falaciosos e de identidades abjetas.

O que temos de “científico” é a definição de transtornos de gênero ou disforia de


gênero estabelecendo protocolos universalizantes, definindo a normalidade de
gênero, orientando e autorizando intervenções para, ao fim, se reconhecer
anemicamente que não há confiabilidade em suas afirmações.
Por fim, chegamos ao verdadeiro conteúdo do DSM-IV: é um texto que materializa
uma visão cultural hegemônica e singular de gênero, mas que, contraditoriamente,
consegue seu êxito por apresentar-se como universal porque tem como aliada a
retórica da cientificidade de seus achados. Portanto, a defesa da diferença sexual
como dado primeiro para se definir o gênero é uma construção de gênero. É preciso
reafirmar que o DSM-IV, o CID-10 e o SOC são falaciosos e produtores
institucionais de identidades abjetas. Quem formula esses códigos é um grupo
fechado de especialistas orientados pelos preceitos heteronormativos que, aliás, têm
fundamentado a ciência ocidental moderna. (BENTO e PELÚCIO, 2012, p. 578).
A transgeneridade não causaria nenhum transtorno na vida da pessoa trans, não fosse o fato
(grave) da não aceitação social, caso essa pessoa pudesse contar com um sistema social que
lhe desse suporte emocionalmente qualquer que fosse sua identidade de gênero ou orientação
sexual. Se compararmos com outras condições que necessitam de atenção médica, a
fibromialgia34, por exemplo, cujos sintomas geram enorme transtorno no cotidiano do
portador da Síndrome da Fibromialgia, causando interrupções em sua rotina diária,
provocando problemas laborais, desajustes familiares, isolamento social com significativos e
reiterados esforços de adaptação à nova condição de existência (GONÇALVES, 2009), a
fibromialgia teria bem mais motivos para ter um grande empenho da parte dos médicos e das
forças tarefas que formulam as normas, códigos, protocolos e manuais para ser qualificada no
DSM e obter um CID, uma vez que interfere na vida cotidiana, hábitos sociais e rotina de
trabalho. Contudo, como seu diagnóstico não está baseado em exames laboratoriais ou de
imagem, e sim em anamneses clínicas, e possui sintomas inespecíficos, que frequentemente
são confundidos e negados por surgirem no intercurso de desordens psiquiátricas, como a
transgeneridade, não é aceita como doença em si, sendo vista como variante da depressão.

A normatização médica dos documentos médicos oficiais sobre o “transexualismo” – que


identificam, conceituam e classificam o fenômeno, em suas múltiplas terminologias,
indicando protocolos e tratamentos correspondentes – ocorreu através da formulação da
HBIGDA (The Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association's) acerca da
“disforia de gênero” e o conceito estabelecido no Código Internacional de Doenças - CID.
Berenice Bento identificou o que chamou de desdobramentos micro e macro. Os micro seriam
os ocorridos dentro do mesmo grupo social - como um/a transexual julga outro/a transexual.
Os macros referem-se a como as instituições percebem as pessoas transexuais, principalmente
a justiça e a medicina, que, diante de pleitos de mudança dos documentos e/ou dos corpos,
fazem juízos sobre suas feminilidades/masculinidades. (BENTO, 2006 apud GRANT, 2012).
A área jurídica, outro campo do saber predominantemente dominado por homens brancos
cisheteronormativos fazendo leis para toda uma coletividade diversa de pessoas, acaba por
atuar de maneira similar a medicina.

34
A fibromialgia, fibromialgia reumática ou dor miofascial é uma condição comum caracterizada por
dores crônicas, fadiga, distúrbios do sono, dor miofascial e sensibilização central.
Grant (2012, p. 14), como jurista, contudo, concilia a sociologia com a medicina vendo
complementaridade nas duas abordagens:
[...] as abordagens científica (endocrinológica) e sociológica (identidade/papel de
gênero) dominantes acerca do transexualismo não são contraditórias entre si, mas
complementares. Isto é, se, de um lado, o sexo anatômico representa uma imposição
apriorística ao indivíduo, este pode, vivenciando um gênero psicossocial diverso
daquele correspondente ao seu sexo biológico, pleitear legitimamente uma
adaptação cirúrgico-hormonal, bem como a alteração do registro civil, seguindo
neste sentido as reivindicações da maior parte dos movimentos e grupos transexuais
(não intervenção do Estado na esfera privada do indivíduo – a privacy anglo-
saxônica – conjugada com o discurso de efetivação do direito à saúde deste
seguimento social).
No que parece ter sido acompanhada pelo Ministério da Educação ao expressar opinião sobre
o esforço que se faz para encontrar as causas clínicas da homossexualidade, mas não se
empreende o mesmo esforço para encontrar os fatores que levam a heterosexualidade:
O fato de tais saberes terem se constituído, modernamente, em importantes
parâmetros nas discussões acerca de vários aspectos relativos às condições humanas
não lhes confere a autoridade de pronunciarem a última palavra, especialmente nesse
caso. As verdades da medicina e da clínica, assim como as de qualquer forma de
conhecimento, são produzidas em meio a tensões sociais, históricas, culturais,
políticas, jurídicas etc. Além disso, pesquisas relacionadas à esfera da sexualidade
costumam ser fortemente afetadas pelos padrões morais, religiosos e, de todo modo,
pela heteronormatividade. Não surpreende, portanto, que a obsessiva preocupação
em procurar localizar as causas naturais do desejo homossexual (que já produziu, até
o momento, mais de setenta diferentes teorias) não tenha correspondido a iguais
esforços voltados para descobrir as causas da heterossexualidade. (Gênero e
Diversidade Sexual na Escola: reconhecer diferenças e superar preconceituosas
causas da heterossexualidade – MEC, 2007, p.19)
Há excesso de empenho em achar um fator patologizante para variações do comportamento
humano que são do campo da subjetividade humana, e, portanto, não podem ser verificados
com estabilidade científica.
Manter o diagnóstico de “transtorno de gênero” é um modo de continuar
alimentando a máquina produtora de exclusão. Agora corresponde aos Estados
corrigir e reparar as violações de direitos humanos cometidas pelo establishment
médico. A assistência dos Estados deve ser completa, inclusive no que se refere à
mudança de nome nos documentos de identidade legal, sem condicioná-la à
realização de cirurgias ou outros procedimentos médicos nem a perícias
psicológicas, tanto em casos de intersexualidade como de transexualidade.
(BENTO35, 2011, p.107).

35
No livro Corpo, Gênero e Sexualidade: instâncias e práticas de produção nas políticas da própria vida /
SANTOS, L.H.S. RIBEIRO, P.R.C. (orgs.). – Rio Grande: FURG, 2011. 154 p.: il.. – Texto de Berenice Bento:
Luta globalizada pelo fim do diagnóstico de gênero? - Os abusos aos direitos humanos das pessoas transexuais.
No que diz respeito aos psicólogos, há um antagonismo real de posicionamentos e
divergências conflitantes referentes às formas de tratamento em termos de respostas possíveis
ao enfrentamento do “dilema” da transexualidade. (GRANT, 2012, op. cit.).

O relatório da APA - Associação Americana de Psicologia - sobre identidade de gênero e


variação de gênero insinua que apenas apontar alguém como transexual não indica
necessariamente a existência de problemas de saúde mental. Contudo, devido provavelmente
aos desafios enfrentados pelos jovens e crianças transexuais, esses experimentam problemas
de saúde psicossociais e mentais significativos. As ocorrências de traumas psicossociais com
os transgêneros jovens incluem a rejeição familiar, a rejeição dos colegas, assédio, abusos,
habitação inadequada, problemas legais, falta de apoio financeiro e os problemas
educacionais. Os transgêneros experimentam alarmantes índices de assédio verbal, violência
física e discriminação econômica; e ainda mais, com os mais jovens, o que ocorre
frequentemente em casa e na escola. Para aqueles com expressão de gênero atípicos na
infância a suas vivências tem sido ainda mais conturbadas, com mais experiências de
problemas de abusos e de problemas de saúde mental na infância e adolescência. (OLSON,
FORBES, E BELZER, 2011, Ibid.).

Os riscos a que estão expostas essas crianças são reforçados por Rosostolato:
Os casos de crianças que apresentam preferências e comportamentos do gênero
oposto e não correspondem ao comportamento esperado conforme sua anatomia são
comuns e as primeiras evidências surgem ainda na primeira infância.
O "gender non-conforming" são crianças que não se encaixam a classificações
tradicionais de gênero: menino ou menina, e os sinais mais evidentes são revelados
nas brincadeiras, escolhas de brinquedos e roupas. Existe, inclusive, todo um
movimento de dar liberdade para a criança se enquadrar naturalmente ao gênero que
ela desejar, o "gender neutral parenting" (criação de gênero neutro). A
incompatibilidade com o corpo vai se manifestar de forma mais acentuada à medida
que esta criança se desenvolve. Logo, vale definir o que é indivíduo transgênero.
"ele é sustentado pela identidade sexual, ou seja, a maneira como se identifica e se
reconhece. Nem sempre o corpo confirma aquilo que ele pensa. É o homem que se
vê como mulher, mas o corpo não combina com sua identidade e vice-versa. Os
transgêneros são os sexos cerebrais”. (ROSOSTOLATO, 2016).
Existem especialistas que não concordam com a criação de gênero neutro alegando que a
sociedade não iria entender e estaria todo o tempo questionando a criança sobre qual é o seu
gênero, fazendo com que essa criança esteja até mais exposta à questão. Mas não seria
exatamente esta a ideia? Poder criar uma criança que saiba que é mais importante ser o que é
do que ter que corresponder às expectativas alheias. E, como efeito colateral, aproveitar para
educar o entorno social?

Simplesmente ser transexual não se traduz obrigatoriamente na existência de distúrbios de


saúde mental, e sim, provavelmente, em razão dos desrespeitos e afrontas sofridos
cotidianamente, os jovens transgêneros manifestem problemas de saúde psicossociais e
mentais consideráveis. O processo de transição é complicado, exigindo toda uma equipe
multidisciplinar, com um terapeuta de saúde mental especializado em gênero, uma equipe
médica que envolva, clínicos, urologistas, ginecologistas e endocrinologistas. Tais serviços
são extraordinariamente árduos de serem encontrados pelas famílias das crianças em risco
emocional, financeiro, legal, escolar, entre outros. (OLSON, FORBES, E BELZER, 2011,
Ibid.). A dificuldade de se encontrar uma equipe de especialistas em gênero para adultos no
Brasil é grande. Aptas a receber crianças, pode-se inferir que a complexidade seja ainda
maior, dada a fase de desenvolvimento psico-social infantil.

3. DISCUSSÃO

A despeito de termos atualmente uma maior ocupação dos espaços político-sociais,


acadêmicos e em novelas de emissoras de grande difusão, ainda reside no imaginário coletivo
a imagem do transexual como marginal ou criminosa. Assim sendo, politicamente, a maior
demanda coletiva é pela visibilidade nos meios de comunicação que permita o respeito à
condição trans.

As estratégias de desconstrução de conceitos foram trazidas do feminismo:


O conceito de gênero aplicado ao feminismo possibilitou a desconstrução da crença
de que há um modelo universal de mulher, abrindo a possibilidade para a construção
das identidades de gênero (BENTO, 2006 apud JESUS e ALVES, 2012)). A partir
das novas ideias e comportamentos trazidos com o movimento feminista, a
percepção sobre quem são as mulheres se ampliou, deixou de apenas se remeter à
mulher branca, abastada, casada com filhos, e passou a acatar a humanidade e a
feminilidade de mulheres outrora invisíveis: negras, indígenas, pobres, com
necessidades especiais, idosas, lésbicas, bissexuais, solteiras, e mesmo as
transexuais.
Tal quais outros aspectos da ação coletiva da população transgênero brasileira, a
inclusão do feminismo como debate e pauta política é recente, porém cada vez
mais visível, a partir de iniciativas no mundo virtual... (JESUS e ALVES, 2012,
p.12)
O movimento trans se beneficiou do aprendizado das mulheres negras que não se viram
contempladas pelo modelo concebido para considerar as demandas das mulheres brancas de
classe média no último terço do século XX:
A visibilização cada vez maior da população trans se enquadra em um projeto
político de emancipação, relacionado à publicização de suas necessidades
específicas, suas histórias, suas posições sociais, e com isso se nota algo que o
feminismo negro identificou quando de seu surgimento, nos anos 70 do século XX:
ao não levar em conta a intersecção entre raça e gênero, o feminismo tradicional não
levava em conta as particularidades das mulheres negras, ou sequer as reconhecia
como mulheres, cujo modelo idealizado eram as mulheres brancas (COLLINS,
1990). No que se refere às mulheres transexuais e às travestis, é patente que, em
nossa sociedade, elas não recebem o mesmo tratamento dado às mulheres cisgênero,
popularmente tidas como mulheres “de verdade”, tampouco as mesmas
oportunidades, de modo que as mulheres transexuais e as travestis, além de serem
vitimadas pelo machismo, também o são por uma forma de sexismo, de base legal- -
biologizante, que lhes nega o estatuto da feminilidade ou da “mulheridade”. (JESUS
e ALVES, Ibid.).
As mulheres trans começaram a se organizar primeiro, seja pela influência do feminismo, seja
pela herança de um lugar de fala mais agressivo, de um momento de suas existências quando
foram homens cisgêneros, e a sociedade lhes dava essa prerrogativa de, como, então, homens,
protagonizar (em comparação com homens transgêneros). Estes começaram muito depois, e
até hoje são bastante excluídos e invisibilizados pela mídia. Acostumados que foram como
“ex-mulheres cisgêneras” a um lugar secundário em relação aos homens sempre
protagonistas:
A partir da crescente organização política e mobilização dos homens transexuais,
suas demandas particulares têm se visibilizado, tanto quanto as dificuldades
enfrentadas para vivenciar sua identidade como homens. Relatos pessoais como o de
João Nery (2011) são significativos do machismo que homens transexuais sofrem,
ante a representações estereotipadas de masculinidade em nossa sociedade. (JESUS
e ALVES, Ibid.).
Até mesmo no transito de gêneros a marca da herança do aprendizado do patriarcado mostra-
se sutilmente indelével.

Citando Berenice Bento, Carolina Grant (2012) afirma que ao falarmos em transgêneros, duas
grandes vertentes de produção de conhecimento se encontram: as teorias biológicas sobre o
funcionamento endocrinológico do corpo e as teorias sociológicas que ressaltam o papel da
educação na formação das identidades sexuais/de gênero. Embora saberes provenientes de
áreas distintas (naturais e humanas), ambas convergem no reforço às bases anatômicas do
fenômeno, identificado como “problema” a ser devidamente “tratado”, dando
ensejo/reforçando os protocolos oficiais e formas de tratamento difundidos nas “Clínicas de
Identidade de Gênero”.

É o que bem elucida Bento, ao concluir que:


Essas duas concepções produziram explicações distintas para a gênese da
transexualidade e, consequentemente, caminhos próprios para o seu “tratamento”.
No entanto, a disputa de saberes não constituiu impedimento para que uma visão
biologista e outra, aparentemente construtivista, trabalhassem juntas na oficialização
dos protocolos e nos centros de transgenitalização. (BENTO, 2006).
Polêmicas existem a respeito das mudanças ocorridas nos diagnósticos de TIG no último
DSM-5 e os profissionais de saúde não podem se eximir de se posicionar diante delas. O que
a maioria desses profissionais ignora é que a inclusão da transexualidade no DSM e no CID-
10 e a concepção de um diagnóstico diferenciativo foram fundamentadas pelos resultados de
um estudo com dez pessoas transexuais de idade adulta - estudos clínicos que representavam
um grupo diminuto de indivíduos - realizado por Leslie Lothstein (1983). Segundo Sandy
Stone (2003, Apud BENTO, 2011), a ideia fundacional original das clínicas dedicadas à
disforia de gênero ou transtorno de identidade de gênero era estudar uma aberração humana
interessante e potencialmente financiável - uma visão em miniatura da construção de critérios
genéricos:
A psiquiatrização relega às instituições médico-psiquiátricas o controle sobre as
identidades de gênero. A prática oficial de tais instituições, motivada por interesses
estatais, religiosos, econômicos e políticos, trabalha sobre os corpos das pessoas
amparando e reproduzindo o binômio homem e mulher, fazendo com que esta
postura excludente passe por uma realidade natural e “verdadeira”. Tal binômio
pressupõe a existência única de dois corpos (homem ou mulher) e associa um
comportamento específico a cada um deles (masculino ou feminino) ao par que,
tradicionalmente, tem-se considerado a heterossexualidade como a única relação
possível entre eles. Hoje, denunciando este paradigma, que tem utilizado o
argumento da biologia e da natureza como justificativa da ordem social vigente,
evidenciamos seus efeitos sociais para por fim a suas pretensões políticas.
(BENTO36, 2011, p.104).
Nos três documentos (DSM-IV, CID-10 e SOC), as pessoas transexuais são construídas como
portadoras de um conjunto de indicadores comuns que as posicionam como transtornadas,
independentemente das variáveis culturais, sociais e econômicas.

36
No livro Corpo, Gênero e Sexualidade: instâncias e práticas de produção nas políticas da própria vida /
SANTOS, L.H.S. RIBEIRO, P.R.C. (orgs.). – Rio Grande: FURG, 2011. 154 p. : il.. – Texto de Berenice Bento:
Luta globalizada pelo fim do diagnóstico de gênero? - MANIFIESTO - Red Internacional por la
Despatologización Trans.
Os profissionais que defenderam a remoção do TIG do DSM-5 citaram preocupações sobre
danos causados para as pessoas transexuais, devido à estigmatização e aumento do
desconforto e risco; eles veem a identidade de gênero como análoga à homossexualidade, que
já foi removido do DSM em 1973. Aqueles profissionais que eram a favor da manutenção do
diagnóstico do TIG para o DSM-5, afirmavam que ele atendia a critérios de ser um transtorno
mental e que, sem o diagnóstico de TIG, as pessoas transexuais não serão capazes de receber
os tratamentos de saúde geral e de saúde mental necessários para um diagnóstico preciso, e
deixariam de receber o apoio tão necessário durante o processo de transição. Isso envolve
evidentemente as questões relacionadas ao financiamento das ações de saúde necessárias a
esses pacientes (BENTO e PELÚCIO, 2012, p. 572).

Até mesmo entre os ativistas encontram-se divergências. Enquanto muitos transgêneros lutam
a favor do movimento pela despatologização, outros brigam ferozmente pelo não
despatologização. Os transgêneros mais abastados têm acesso à medicalização e processos
cirúrgicos, quando é o caso, na rede privada. Já os menos privilegiados ou mais vulneráveis
dependem do Sistema Único de Saúde (SUS) para receber o atendimento para a adequação
corporal. Argumentam estes que, caso a transexualidade deixe de ser considerada doença, não
poderão mais receber tratamento gratuito pelo SUS.

Os profissionais da saúde insistem em diagnosticar o gênero, apesar de não conseguirem


cientificidade que autorize psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e outras especialidades
que fazem parte das equipes multidisciplinares a avaliarem as pessoas transexuais e travestis
como doentes, dado que não existe nenhum exame clínico que conduza a produção do
diagnóstico para determinar a ocorrência do “transtorno”. Assim sendo, não é possível elencar
quais são e como se devem estabelecer os limites discerníveis entre “os transtornados de
gênero” e “os normais de gênero”. Parte-se, então, não de ciência, mas das subjetividades de
verdades pré-estabelecidas socialmente sobre o que deve ser gênero, e quais as normas e
regras aceitas para o masculino e feminino. Como postula Bento: “um poderoso discurso que
tem como finalidade manter os gêneros e as práticas eróticas prisioneiras à diferença sexual.”
(BENTO37, 2011. p.100).

Se não existem critérios formais que possa distinguir o normal do anormal em termos de
gênero, a patologização só serve para o controle dos corpos. Esse pensamento levou vários
grupos de estudiosos e militantes no mundo todo a se unirem em torno de uma campanha de
despatologização:
A Campanha “Pare a Patologização!” tem um papel histórico de produzir e aglutinar
forças na luta pela desnaturalização do gênero e, certamente, as mobilizações e
iniciativas que aconteceram em diversas partes do mundo produzirão efeitos
múltiplos e rizomáticos. Certamente, a APA terá que se posicionar de forma mais
transparente e contínua sobre os interesses que a fazem continuar operando uma
categoria cultura como categoria nosológica. (BENTO e PELÚCIO, Ibid).
A patologização produz a exclusão das pessoas do mercado de trabalho, das escolas, e dos
serviços de saúde, fazendo com que tenham seus direitos básicos, enquanto cidadãs, negados.

3.1 Questão sócio-política

Os transgêneros formam uma população de cidadania precária, extremamente vulnerável,


desumanizada e a quem é cotidianamente negada uma série de oportunidades, que é tratada
através de uma concepção de não humano, de maneira patologizante que os leva às clínicas e
presídios38.

37
No livro Corpo, Gênero e Sexualidade : instâncias e práticas de produção nas políticas da própria vida /
SANTOS, L.H.S. RIBEIRO, P.R.C. (orgs.). – Rio Grande: FURG, 2011. 154 p. : il.. – Texto de Berenice Bento:
Luta globalizada pelo fim do diagnóstico de gênero? - MANIFESTO – transexualidade não é doença! Pela
retirada da transexualidade do DSM e do CID !

38
Os conceitos de cidadania precária e de desumano como pensados por Berenice Bento - Travestis e
Transexuais: Construção de Identidade. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2Kf7vzRiw0I no
You Tube. Acessado em 15 de outubro de 2016. Conceito de Humano em Berenice discute o que é gênero.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=rpch8gR7tpg no You Tube. Acessado em 15 de outubro de
2016.
Um transgênero no Brasil tem que se sujeitar a uma vida dentro de um hospital, com inúmeras
regras, protocolos e mecanismos, que levam a um diagnóstico que dirá se ocorrerá ou não a
cirurgia, restrita aos hospitais universitários e públicos. (BENTO, 2006, Ibid).

Para muitas pessoas transgêneras o ser transgênero, para além de uma identidade de gênero, é
uma condição sociopolítica de inadequação. Portanto, não tem que ser patologizado pela não-
conformidade com a categoria de gênero em que foi enquadrada ao nascer. O termo opõe-se a
Cisgênero, que é exatamente a condição sociopolítica de adequação e conformidade com a
categoria de gênero em que a pessoa foi classificada ao nascer.

Retirar o estigma da patologização é dizer que a transexualidade é uma questão de gênero e


não de doença e os movimentos contra a patologização defendem o direito de todos se
expressarem a partir dos atributos convencionados como femininos e masculinos que
julgarem convenientes, sem que recebam classificações ou sanções sociais. Defendem ainda,
o direito de todas as pessoas de modificarem seus corpos livremente de modo a adequá-los às
suas necessidades particulares e contingentes. (FERRARI e CAPELARI, 2014).

3.2. Treinamento social para a aceitação

As famílias com uma criança transgênera têm em comum a preocupação do que acontecerá à
criança com a chegada da puberdade, sendo esta apenas uma questão de tempo. Procuram,
então ajuda profissional de psicólogos, endocrinologistas e assistentes sociais que possam
auxiliar as crianças que não se encaixam nas denominações habituais de “menino” e
“menina”.

O diagnóstico oficial da psiquiatria para crianças como essas características era chamado de
“transtorno de identidade de gênero”. Embora adolescentes e adultos transgêneros possam
realizar tratamentos hormonais, a forma predominante de tratamento de crianças pequenas
que não estão satisfeitas com seus gêneros é orientá-las em direção à aceitação de seus sexos
biológicos.
A denominação oficial do diagnóstico dessas crianças também mudou, de “transtorno de
identidade de gênero” para o menos estigmatizante — embora ainda controverso — “disforia
de gênero”:
As famílias têm um papel fundamental na vida dos transgêneros jovens. As famílias
que apoiam, protegem os jovens transgêneros, evitam assim os resultados negativos
e ajudam a promover a saúde positiva e bem-estar; enquanto que, as famílias
abusivas e que rejeitam os jovens transgêneros os afetam negativamente e
contribuem para aumentar os seus problemas de saúde e os resultados de sua saúde
mental. Os membros da família passam, eles mesmos, por seus próprios processos
de adequação à identidade transgênera de uma criança e, normalmente atravessam,
os seguintes estágios: Negação / choque, raiva / medo, tristeza, autodescoberta,
aceitação e por fim orgulho. (OLSON, FORBES, E BELZER, 2011, Ibid).
O acolhimento às famílias que buscam por ajuda precisa ser especializado, possibilitando que
essas famílias sejam bem orientadas pelas equipes de atendimento primário de saúde.
Imperativo se faz que os profissionais envolvidos possam definir o gênero de uma forma
emancipadora, não ancorada no próprio sistema político e jurídico que o normatiza, pois serão
esses profissionais que irão ensinar à família a pensar e teorizar o gênero independentemente
do sexo.

Os médicos que trabalham em clínicas “de afirmação de gênero” dizem que a melhor maneira
de evitar resultados trágicos é permitir que quando ainda crianças vivam suas identidades de
gênero da forma que quiserem — seja como um menino, como uma menina ou algo entre
isso.

Eles dizem que, já que a identidade de gênero está fortemente conectada ao cérebro, crianças
a partir dos três anos já podem começar a manifestá-la. Assim, quanto mais cedo a sociedade
permite que as crianças expressem o gênero que elas acreditam pertencer, mais felizes, menos
ansiosas e mais ajustadas socialmente elas ficam. Quanto ao pequeno subconjunto de crianças
que demonstram acreditar pertencer a um gênero não binário, isso significa deixá-las fazer a
“transição social” vivendo como um menino ou menina em tempo integral.

Enquanto os cientistas conduzem estudos que ainda levarão muitos anos para serem
concluídos, um número crescente de pais tem de tomar decisões sobre os seus filhos agora.
Será que eles devem permitir que suas crianças façam a transição sem terem certeza se eles
vão ter o mesmo sentimento quanto a isso quando crescerem?
Kenneth Zucker39, psicólogo que fundou uma das primeiras clínicas de identidade de gênero
destinada a adolescentes, o Centro de Vícios e Saúde Mental em Toronto, foi um dos
primeiros a adotar o chamado modelo holandês, que recomenda um tratamento para
adolescentes com disforia de gênero a base de drogas para bloquear a puberdade. O motivo
que leva este estudo a concordar com essa abordagem é que esses medicamentos são
reversíveis, portanto, servem essencialmente para ganhar tempo: o adolescente pode decidir
desistir de tomá-los e passar pela puberdade com o gênero que foi atribuído ao nascer; ou,
depois de alguns de anos, ele pode optar por continuar a sua transição, iniciando o tratamento
com estrogênio ou testosterona.

No entanto, Zucker recentemente foi alvo de ataques por sua abordagem com crianças
pequenas. Ele estaria afastando-as de uma nova identidade de gênero e tentando convencê-las
a aceitar os gêneros com os quais nasceram. Alguns dos críticos compararam seus métodos
com a “terapia de conversão”, as tentativas desacreditadas de “desfazer” a homossexualidade.

Há que se destacar um ganho com essa abordagem. A autorização dos procedimentos de


transgenitalização, mesmo para adultos, é muito recente no Brasil. As resoluções do Conselho
Federal de Medicina (resoluções do CFM no 1482/1997, no 1652/2002 e a vigente no
1955/2010) sempre estabeleceram como um dos critérios a maioridade de 21 anos, para que
os/as usuários/as transexuais fossem autorizados a realizar procedimentos hormonais e
cirúrgicos considerados experimentais ou não. Desta forma o Processo Transexualizador foi e
está estruturado para atender exclusivamente a adultos. A utilização de bloqueadores
hormonais na puberdade evita o aparecimento dos caracteres sexuais secundários durante, os
quais seriam bem mais difíceis de fazer desaparecer após a adolescência, até que a criança ou
adolescente tenha idade e maturidade emocional para decidir sobre o Processo
Transexualizador após os 21 anos. Caso desista, basta parar de tomar os bloqueadores
hormonais e seu próprio organismo voltará a produzi-los e retomará seu curso genético.

39
Entrevista concedida ao BuzzFeed News Reporter. Texto de Azeen Ghorayshi. Publicado 27 de outubro de
2016. Disponível em https://www.buzzfeed.com/azeenghorayshi/garota-americana-o-quao-jovem-n-jovem-
demais-para?utm_term=.xabpW0m8oX#.bsEJW8MZY9. Acesso em 16 de setembro de 2016.
Atrasos, no entanto, podem levar a problemas emocionais semelhantes aos que têm sido
associados com atraso constitucional da puberdade. Embora essa abordagem tenha sido pouco
estudada, há os que defendam o uso da idade de dezesseis anos como uma “diretriz a
considerar” como início precoce de utilização de hormônios do gênero oposto em uma base,
caso a caso, após avaliação cuidadosa dos riscos e benefícios potenciais para os jovens e com
consentimento dos seus pais.

Dr. Zucker afirma que ele sente que em muitos casos pais, escolas e grupos de defesa da
comunidade podem aconselhar uma transição muito cedo. Há uma necessidade maior do que
nunca para o curso natural da variância de gênero e disforia ser compreendido. O foco da
clínica está na avaliação intensiva e no tratamento e não incluiu a participação na educação da
comunidade sobre este tópico. Esta é uma oportunidade significativa perdida. Embora a
maioria dos grupos de defesa claramente entendam o curso natural da variância e disforia de
gênero muito precoce, somando a voz de clínicos que defendem a espera vigilante e onde
necessária, uma abordagem eclética centrada na criança melhoraria ainda mais o tratamento
de variantes de gênero disfórico ou questionamento de gênero crianças e adolescentes.

3.3. ADERÊNCIA A TRATAMENTOS MÉDICOS E PSICOLÓGICOS

A AIDS trouxe como benefício para a população trans a procura mais assídua pelos
serviços de saúde. Passados 30 anos da epidemia, essa população já é compreendida como
tendo outras enfermidades além do HIV/AIDS.

Todavia, mesmo com o trânsito mais assíduo no Sistema Único de Saúde, a verdade é que os
profissionais de saúde ainda agem com muito estranhamento, alheios que estão às mudanças
sociais, não compreendem as especificidades dessa parte da população. Até mesmo porque
nunca foram treinados para isso, nem nas fileiras acadêmicas, nem na prática profissional.

Estamos longe de ter um atendimento com qualidade integral, universal e equânime,


ainda que o Processo Transexualizador pelo SUS seja uma antiga reivindicação do grupo.
Mas vale a pena destacar a importância de políticas públicas específicas para a inclusão das
populações mais vulneráveis, como os transgêneros, visando a maior permanência em
espaços, outrora impensáveis, nas dependências do SUS, para que tratem da sua saúde e
mantenham aderência aos tratamentos através da adequação do sistema à demanda.

Em uma palestra ministrada pela Dra. Johanna Olson, ela citou pesquisas feitas desde
os anos 70 que apontam que são infundados os temores a respeito de crianças tão jovens já
serem capaz de afirmar seu gênero:

Pesquisas demonstram que a constância de gênero permanece intacta a partir dos


três ou cinco anos de idade. Ou seja, uma criança de sete anos que afirma que é de
outro gênero sabe muito bem o que está falando – tanto quanto uma criança da
mesma idade que afirma que é cisgênero. (OLSON, 201540, Ibid.).
Na mesma palestra, a médica aborda outro aspecto interessante – o fato de familiares e
amigos duvidarem da identidade de gênero de uma pessoa jovem quando essa espera até
tornar-se adolescente para se expor:

Dizemos para nossos filhos que não há como eles saberem qual é seu gênero aos três
anos de idade. Eles são jovens demais! Mas daí, se eles esperam até se tornarem
adolescentes para nos contar, nós dizemos ‘Por que você esperou tanto para me dizer
que é transgênero? Por que você não me contou quando tinha três anos?’. (OLSON,
op. cit.)
Em relação à realidade das pessoas trans no acesso a atendimento à saúde, nos
diversos níveis de atenção, através dos determinantes que definem essa atenção, Berenice
Bento diz que:

Definir a pessoa transexual como doente é aprisioná-la, fixá-la em uma posição


existencial que encontra no próprio indivíduo a fonte explicativa para os seus
conflitos, perspectiva diferente daqueles que a interpretam como uma experiência
identitária, é um desdobramento inevitável de uma ordem de gênero que estabelece a
inteligibilidade dos gêneros no corpo. (BENTO, 2008, Ibid).
Quão mais completa for a compreensão, por parte dos profissionais da área de saúde, sobre o
universo que cerca a questão da criança transgênera, como ser merecedora de atenção já na
infância, maior será a possibilidade de aderência da família ao atendimento devido, uma vez
que poderão ser mais bem preparados para reconhecer, acolher e cuidar, promovendo, assim,

40
Matéria assinada por Marcio Caparica no site da UOL – Cultura e Cidadania LGBT no dia 20/10/215 que se
refere à palestra dada pela Dra. Olson na 14a. Gender Odyssey Conference. Disponível em
http://ladobi.uol.com.br/2015/10/duvidas-criancas-transgenero. Acesso em 23/09/206. A Gender Odyssey
Conference é uma conferência internacional que discute os interesses de pessoas transgênero e fora da
conformidade de gênero. Em 2015, uma das principais palestrantes da conferência foi a médica Johanna Olson,
diretora do Centro de Desenvolvimento e Saúde da Juventude Trans do Hospital Infantil de Los Angeles, onde
atende quase 500 pessoas transgênero com idades entre 3 e 25 anos.
saúde para minimizar o impacto nos agravos ao seu desenvolvimento e, desta forma,
maximizar positivos futuros prognósticos sociais.

3.4. As altas taxas de suicídio entre jovens transgêneros

Em 2003, Cohen-Kettenis, Owen, Kaijser, Bradley e Zuck realizaram um estudo, que


chamaram de Lista de Verificação do Comportamento da Criança, em inglês, Child Behavior
Checklist (CBCL), que examinou características demográficas, competência social e
problemas comportamentais em crianças com problemas de identidade de gênero em Toronto,
Canadá (N = 358) e Utrecht, Holanda (N = 130) para avaliar o autodano e o suicídio. As
crianças transgêneras — calcula-se que sejam 1,5% do total, nos EUA, — têm de duas a três
vezes mais chances que seus colegas de cometer suicídio ou sofrer de depressão profunda.
(Nossa tradução).

O alto índice de suicídios entre os jovens transgêneros justifica o emprego de todos os


recursos possíveis na despatologização, no treinamento adequado dos operadores da saúde, e
consequente treinamento social para a aceitabilidade das crianças trans como apenas mais
uma variável da subjetividade da expressão do gênero humano.
Quase ninguém percebe que o poder dos seus opressores, reais e imaginários, deriva
exatamente da sua total alienação em decidir e agir por sua própria conta e risco. O
poder dos “ditadores” surge e se reforça cada vez que uma pessoa, oprimida e
molestada, desiste de fazer alguma coisa para se livrar da opressão. Como afirmou
Foucault, o poder não se encontra em "grandes esferas" e altos escalões, mas nas
práticas e nas relações mais elementares das pessoas seu dia-a-dia. (LANZ, 2016) 41.
Mas aqui falamos de crianças. Como podem elas ter instrumentos para lutar com seus
socializadores? Tendo em conta esse processo de estigmatização, que produz atos de violência
contra a população trans, levando-as, com frequência, à morte, não é de estranhar que
problemas de saúde mental, significativos sejam enfrentados pelos transgêneros jovens,
incluindo, abuso de substâncias psicoativas e transtorno de estresse pós-traumático.
Sem a abordagem correta, a criança transgênera não tem poder para enfrentar seus
opressores nessas relações do dia-a-dia. A discriminação e o preconceito fazem a
criança, que não possui recursos e defesas construtivas, retrair e isolar-se. Ela acaba
se sentindo diferente, como um ser doente e anormal. Ela vai definhando e perdendo

41
http://leticialanz.blogspot.com.br/2016/10/de-onde-vem-o-poder-dos-seus-opressores.html
sua autoestima. Assim, fica vulnerável emocionalmente e propensa à depressão, que
pode levar a automutilação e ao suicídio. O afeto vai se embotando e a criança fica
sem referências positivas. (OLSON, op. cit.).

3.5. Construção de valores que permitam a existência da diversidade

Olson não crê que a solução seja criar as crianças em um ambiente sem gênero, como
defendem algumas pessoas para resolver a questão, pois não vivemos em uma ilha. Outras
pessoas ao redor ficam desconfortáveis quando não sabem o gênero de alguém, mesmo antes
dessa pessoa nascer. Isso tornaria criar um filho num ambiente de gênero neutro muito difícil,
se não impossível, a não ser que se more no meio do mato num lugar sem outdoors, sem TV e
sem qualquer interação com outro ser humano. (OLSON, 2015).

Contudo, o dispositivo desumano de divisão, classificação, hierarquização e "normalização


dos corpos" dos indivíduos, e sua consequente repressão e punição se dá pela socialização na
infância. Se pudermos criar nossas crianças a partir do pressuposto da ampla eliminação do
dispositivo binário de gênero, não haverá mais repressão e punição. Cada um poderá ser feliz
sendo o que é. E qualquer adequação corporal necessária será encarada como uma cirurgia
plástica para aumentar os seios ou diminuir o nariz.

Como ainda não temos uma sociedade assim, temos que pensar na possibilidade de não
sexualizar a criança antes do tempo e permitir a ela a dignidade social de uma transição
parcial e gradual, que parece mais sensato. Olson afirma que nunca se registrou um caso em
que uma criança foi prejudicada por ter realizado a transição social e depois voltar atrás. Por
transição social, entenda-se as mudanças que não necessitam de qualquer intervenção médica,
como mudança de nome e de pronomes, mudança de roupas, e apresentar-se em situações
sociais em outro gênero. “Pura questão de logística, não médica”, afirma a doutora. (OLSON,
2015).

Essas mudanças não geram redesignação corporal, mas já permitem a criança se sentir muito
melhor. Como ela ainda não tem características sexuais secundárias, ao se vestir e se
apresentar social como do gênero desejado ela já se sente contemplada na sua identidade de
gênero.
Ainda segundo Olson (2015), não há discussões clínicas sobre os efeitos nocivos dessa
mudança de ideia porque elas vitalmente não existem. Inclusive, alguns jovens disseram: “E,
foi meio constrangedor dizer para meus pais que eu tinha mudado de ideia’, mas nenhum
jamais disse ‘Minha vida foi para o ralo e eu não consegui ir para a faculdade”. (Nossa
tradução). A médica acredita que com o passar dos anos, esse constrangimento será apenas
história de vida. O contrário, forçar uma criança trans a reprimir sua identidade de gênero e
fingir ser quem não é, trará graves consequências ao psiquismo e risco de autodano.

Olson (op. cit.) afirma também que não há qualquer tipo de exame que se possa fazer, para
saber se a criança realmente é transgênero ou apenas não se ajusta aos padrões de gênero:
O garotinho que não tira a fantasia de princesa de sua irmã está apenas
experimentando novas cores e novos estilos? A menininha que quer passar máquina
zero na cabeça igual a seu irmão é uma moleca? Ou eles são transgêneros? Muitos
garotos amam as princesas, e muitas meninas gostam de esporte e cortes de cabelo
sem frescura. Isso não quer dizer necessariamente que eles são trans. As estatísticas
apontam que a maioria deles não é. Como, então, saber quais são trans? (Nossa
tradução).
Olson assegura que as crianças nos oferecem o que ela chama de “preditivos de persistência”,
que seriam como indicativos que irão permanecer ao longo do tempo em suas identidades
como, por exemplo:
Elas dizem que SÃO de outro gênero, ao invés de dizerem que gostariam de ser de
outro gênero...
[...] Elas ficam muito perturbadas por seu gênero de nascimento. Essas são as
crianças que tentam cortar partes do corpo com cortadores de unha, fio dental, ou
tesouras. São as crianças que tomam banho de roupa. Elas sofrem com ferimentos
causados a si mesmas e pensamentos suicidas, porque viver e não se sentir autêntico
é muito, muito ruim para elas.
[...] Roupas de banho e roupas íntimas são uma grande diferença entre as crianças
que só querem se vestir com as roupas de outro gênero e as crianças que nos dizem
que realmente SÃO de outro gênero. É muito comum que crianças transgêneras
peçam para usar roupas íntimas de acordo com o gênero com que se identificam.
[...] Quando se pergunta para essas crianças como elas se enxergam quando
crescerem, a resposta vem num gênero diferente daquele com que nasceram.
(OLSEN, op. cit.). (Nossa tradução).
Outra orientação de Olson é permitir o uso de bloqueadores hormonais para bloquear o início
de uma puberdade indesejada em jovens com disforia de gênero. Esses medicamentos
desligam o eixo hipotálamo-pituitária-gonadal (HPG) e a produção de testosterona ou
estrogênio é temporariamente interrompido. O bloqueio da puberdade permite ao jovem
explorar o gênero e participar mais plenamente do processo de terapia de saúde mental sem
ser consumido pelo medo de um processo de desenvolvimento iminente que resultará na
aquisição de características sexuais secundárias indesejáveis. Os agonistas da GnRH têm sido
usados com segurança por décadas em crianças com outras condições médicas, incluindo a
puberdade precoce central. A supressão da puberdade deve, idealmente, começar nos
primeiros estágios do desenvolvimento puberal e pode ser administrada por meio de injeções
intramusculares ou subcutâneas, ou através de um implante que é inserido no braço. O
monitoramento para assegurar a supressão do eixo HPG deve ocorrer regularmente. Jovens
transgêneros poderão no futuro, caso queiram, continuar o tratamento e receber hormônios
para completar a transição fenotípica de gênero. Agonistas da GnRH mudaram a paisagem da
intervenção médica para jovens com disforia de gênero e estão rapidamente se tornando o
padrão de prática em clínicas particulares e fora do Brasil.

Ao invés disto, essas crianças estão sendo forçadas a aprender algo que o íntimo delas diz que
está errado, mas ninguém acredita. E por vezes são punidas por isso. Na idade que ela tem que
“aprender” o mundo, esse mundo se apresenta com conceitos toscos limitantes, que não as
deixam viver livres para ser o que são, forçando-as dentro das caixinhas do binarismo
homem-mulher.

A médica enfatiza que esses são apenas indícios e não há um manual de regras para se
identificar uma criança transgênera. O melhor a se fazer, insiste, é simplesmente escutá-las:
“Ninguém melhor do que você mesmo sabe qual é seu gênero, e o mesmo vale para as
crianças. Às vezes pergunto para elas: ‘qual é seu gênero quando você está sonhando?”.
(OLSEN, op. cit.). (Nossa tradução).

4. CONCLUSÃO

Apesar de hoje grande parte da sociedade ainda confundir os conceitos, ou talvez ter pouco
acesso aos debates recentes no âmbito das ciências sociais sobre sexo, gênero, orientação
sexual e expressão de gênero, de alguma forma, já sabemos que são coisas distintas.

O biológico em nós exerce bem pouca influência na deliberação das nossas atitudes sociais,
dado que a espécie humana é predominantemente vinculada à socialização. Apesar disso, é
erroneamente entendido como consensual que os atos de humanos, machos e fêmeas, têm
procedência biológica instintiva.

Gênero é um dispositivo de construção cultural, social e politicamente formulado em códigos


de conduta, utilizado para classificar e hierarquizar pessoas com o propósito de exercer
controle social compulsório através de normas muito rígidas e não resultado de determinantes
biológicos que levariam machos e fêmeas a agir socialmente de maneira altamente específica
e diferenciada. Assim sendo, não há motivos para se entender como verdade absoluta alguma
norma de comportamento pré-estabelecida como imutável. Portanto, muito menos razão há
para tratar os desviantes da mesma, como marginais, doentes e abjetos, com preconceito e
discriminação, ou medicalizando suas condições. Se há algo a ser reavaliado pela sociedade,
por sua vez, são aqueles que medicalizam / patologizam para lucrar com a imensa indústria
farmacológica fazendo dinheiro com a patologização e medicalização de corpos.

No Brasil, como em vários outros lugares do mundo, qualquer coisa que fuja ao binarismo de
gênero é tratado com preconceito e discriminação. Como os transgêneros rompem com os
paradigmas do que foi classificado como masculino e feminino, são colocados à margem da
sociedade. Contudo, expressar a própria sexualidade é uma parte fundamental do
desenvolvimento psicológico saudável de qualquer pessoa.

Os transgêneros se encontram à margem das identificações possíveis, a partir das normas que
regulam e ditam o que é normal e o que não o é, quais são possíveis e quais não são. Ou seja,
os corpos das pessoas trans são abjetos, numa noção buttleriana, visto que são corpos que não
possuem vida, não possuem existência, não há a possibilidade de existirem, mas existem. E
isso incomoda as pessoas, pois somos produzidos a partir de um discurso heteronormativo.

Nos últimos anos, verificou-se uma mudança substancial no modo como as crianças que
desafiam as normas de gênero são consideradas pelas suas famílias e pelo público em geral.
Patologizada e tratada durante décadas como uma doença mental, a não conformidade de
gênero na infância parece estar imbuída de novo significado, como evidenciado por um
número crescente de vozes públicas que alegam a variância de gênero como parte da
diversidade humana. Chame isso de mudança de paradigma: da desordem à diversidade, do
tratamento à afirmação, da patologia ao orgulho, da cura à comunidade.
Contudo, o mesmo não pode se dizer dos mais variados profissionais chamados a lidar com a
questão: advogados, professores, assistentes sociais; mas especialmente, os profissionais da
área de saúde – médicos, enfermeiros, e psicólogos, que são os primeiros envolvidos na
atenção à criança transgênera.

Pessoas trans são tratadas de maneira desrespeitosa e encaram a discriminação e o abuso não
unicamente na sociedade, como também, e de forma mais contundente, onde precisam receber
mais cuidados - no atendimento dos serviços de saúde, este que deveria ser universal e de
qualidade para todos, sem distinção de raça, credo, gênero, religião, ou orientação sexual.

Em toda esta discussão, em nenhum momento se trata da identidade de gênero como sendo
um processo que se desenvolve desde a infância, o que atrasa a atenção à saúde física e
emocional da criança.

Os profissionais de saúde com frequência não se apresentam aptos a reconhecer, acolher e


cuidar de uma pessoa que tenha o gênero destoante, uma vez que desconhecem as mudanças
recentes na linguagem, mudanças nas variações de identidade e mudanças no foco de
intervenção com crianças não conformes de gênero.

Uma parte indescritível dos operadores da saúde segue lidando com a condição transgênera
como transtorno mental apoiada em estudos efêmeros, com pequenas amostragens, sem os
princípios científicos de testabilidade e verificabilidade, referendando protocolos e manuais
como DSM, CID e SOC, que podem ser questionados em cada uma das classificações ali
apresentadas. Se questionados, os achados laboratoriais associados não sustentam o
diagnóstico, pois não existe qualquer teste para o “transtorno” de gênero.

Com amostragens tão ínfimas, onde todos os pesquisadores afirmam que mais estudos são
necessários, não faz sentido insistir em biologizar a transexualidade. Por que seguir apoiando
marcações sociais profundas em bases biológicas frágeis, que explicam a condição
transgênera como "descargas" hormonais anormais durante a gravidez, sem quaisquer dados
com bases incontestáveis.

Essas “verdades” científicas em forma de protocolos e manuais médicos chegam ao público -


aos médicos, enfermeiros, psicólogos, e demais profissionais de saúde, bem como a outros
profissionais que decidiram fatos primordiais sobre a vida e a existência das pessoas trans,
como os operadores da justiça - como se fossem inquestionáveis, condenando toda uma
parcela da população com rótulo de doente, de aberração, que somado a outros componentes
sociais, religiosos e interesses políticos e financeiros, acabam por ser demasiadamente
perigosos e penosos – custam vidas, quando não literalmente, matam socialmente pessoas
desde crianças. Retiram-lhes a possibilidade de se desenvolver, estudar, trabalhar, ter uma
vida comum.

Ser destro, canhoto ou ambidestro tem base biológica e nenhum dos casos é considerado
patologia. Anualmente vários bebês nascem com polidactilia42, que exige atenção médica para
uma adequação corporal e nem por isso são dados como seres abjetos, necessitados de
tratamento para saúde mental.

Ainda que um dia seja possível contemplar uma base biológica para a identidade de gênero,
esta nada mais será que uma variação humana, que por vezes possa necessitar de atenção
médica para adequação corporal, mas que se não fosse o treinamento social para a
heterocisnormatividade, não geraria nenhum desconforto psicoemocional nas crianças trans e
que jamais seria encarada e classificada medicamente como distúrbio, transtorno ou patologia.

Evitaríamos assim também as demais questões jurídicas e sociais associadas ao tema, sendo
todos os seres tratados com o devido respeito à dignidade da pessoa humana.

Modificar a formação dos profissionais de saúde com uma formação mais especializada fará
com que esses estejam aptos a tratar pessoas transgêneras desde a infância fora da ideia
hegemônica de heterocisnormatividade; despatologizando a identidade trans.

Este trabalho apoia a intervenção médica oportuna, para atingir congruência de gênero/corpo
combinada com terapia de saúde mental afirmativa, com uma abordagem apropriada para
minimizar os resultados negativos para a saúde e maximizar resultados futuros positivos para
crianças transexuais.

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Anomalia causada pela manifestação de um alelo autossômico variável, dominante com expressividade
consistindo na alteração quantitativa anormal dos dedos da mão (quirodáctilos) ou dos dedos do pé
(pododáctilos).
Através desta explanação esperamos ter contribuído para a discussão sobre a retirada do termo
patologizante “transtorno de identidade de gênero” do CID-11 e DSM-V, pois se faz
necessária não apenas para a retificação dos documentos das pessoas transgêneras, mas
também para a supressão da heterocisnormatividade nos tratamentos das pessoas intersexo e,
como dito por FERRARI e CAPELARI (2014) em “A Despatologização do Transtorno de
Identidade de Gênero: Breves Considerações em Defesa do Direito à Identidade Sexual,
Intimidade e Saúde dos Indivíduos Trans”: ao livre acesso aos tratamentos hormonais e às
cirurgias sem a tutela psiquiátrica, à luta contra a transfobia, propiciando a educação, inserção
social e laboral das pessoas trans. Ainda que exista a preocupação concreta que, após a
despatologização, os direitos adquiridos como, por exemplo, a garantia de acesso gratuito ao
processo transexualizador pelo Sistema Único de Saúde (portaria GM nº 1707 de 18 de
Agosto de 2008) seja revogada o que, claramente, constituiria um óbice financeiro à grande
maioria dos indivíduos trans.

As consequências de não afirmar a identidade de gênero de uma criança podem ser graves e
podem interferir com sua capacidade de desenvolver e manter relacionamentos interpessoais
saudáveis. No contexto escolar, essa angústia também impedirá o foco do aluno transgênero
na aula e comprometerá sua capacidade de aprender. Quanto mais tempo um jovem
transgênero não for afirmado, mais significativas e duradouras as consequências negativas
podem se tornar, incluindo perda de interesse na escola, aumento do risco de uso de álcool e
drogas, má saúde mental e suicídio.

Falar sobre gênero nas escolas terá o efeito de remover grande parte da pressão que os alunos
enfrentam para se enquadrar em expectativas estreitamente definidas de que poucos, se é que
alguém, pode realmente se enquadrar.

Pais e profissionais devem ajudar a criança a vivenciar a experiência trans. A avaliação


psicológica adequada é necessária. E sendo confirmado que se trata de uma criança
transgênera, fornecer o apoio necessário para que essa criança possa vivenciá-la de maneira
integral, sem censura. Como dito por Saadeh, não é fácil para nenhum pai ou mãe se adaptar a
essa transformação, mas quando se pensa em respeito e aceitação pela diferença e por quem é
de verdade o filho ou filha, fica mais fácil.
No Brasil, a cirurgia só pode ser feita após os 21 anos, mas o uso dos hormônios pode
começar a partir dos 18. Identificado que não resta dúvida sobre a transexualidade da
criança/adolescente, é possível tentar autorização junto ao Conselho Federal de Medicina para
começar o tratamento hormonal antes.

Com base na pesquisa existente e no discurso público, considera-se urgentemente necessário


que tais profissionais tenham em suas grades acadêmicas matérias que versem sobre o campo
da sexualidade humana. Modificar a formação dos profissionais de saúde fará com que esses
estejam aptos a tratar pessoas transgêneras desde a infância fora da ideia hegemônica de
heterocisnormatividade; despatologizando a identidade trans; não seguindo o DSM-V; e
desvinculando a ideia de identidade de gênero da cirurgia, passando essa a ser autodeclarável.

Pelo relatório dos pais, as crianças com disforia de gênero mostram uma taxa aumentada de
automutilação / suicídio à medida que envelhecem. Este risco não foi simplesmente um
artefato da presença de problemas comportamentais e emocionais, embora estes problemas
fossem correlatos significativos de autoagressão / tentativas de suicídio.

Para aumentar a consciência dos profissionais da área de saúde sobre as demandas, direitos e
necessidades da população de transgêneros, particularmente dos infantis, é indispensável,
mais do que uma rápida palestra sobre o tema, um programa completo de treinamento que
desconstrua estereótipos, e os qualifique e instrumentalize para a empreitada de ajudar as
famílias a entenderem e cuidarem de suas crianças.

Desta maneira, embasado no que foi estudado através das pesquisas de Bento, Olson, Saadeh,
e Lanz, entre os demais estudiosos, entendemos que os serviços de saúde às pessoas trans não
são adequados, são falhos e podem ser aprimorados. Com o objetivo de prevenir ou aliviar a
angústia que os jovens transgêneros muitas vezes vivenciam, com base nos argumentos de
Bento, de Olson e nos manifestos internacionais a favor da despatologização, propomos
algumas medidas que podem contribuir para ampliar o conhecimento e, desta forma,
qualificar melhor a atenção à saúde das pessoas trans e intersexo, em particular da criança
transgênera, objetivando atingir congruência de gênero/corpo combinada com saúde mental,
através de abordagem apropriada e assim enfrentar o estigma causado pela falta de
informação neste tema, minimizando o impacto nos agravos ao seu desenvolvimento
saudável, e maximizando prognósticos sociais futuros positivos:

1. Preparação de profissionais das diversas áreas de especialidade (medicina,


psicologia e afins) para compreensão, aceitação e acolhimento das pessoas
transgêneras desde a infância através de produção de módulos teóricos que
conceituem gênero e identidades de gênero; desconstruindo estereótipos
relacionados às identidades trans dentro das grades acadêmicas da formação dos
profissionais de saúde.
2. A retirada da transexualidade como patologia dos manuais de diagnóstico.
3. O financiamento pelo Estado ao processo transexualizador para as pessoas
adultas que assim o decidam autonomamente, via autodeterminação, evitando assim
que essas venham a ficar emocionalmente doentes pela incongruência corporal.
4. Educar gestores do SUS e dos demais servidores da saúde para que
reconheçam, com sensibilidade, na população trans – adultos e crianças – atores que
necessitam desse serviço, e devem ser respeitados em suas demandas e
necessidades.
5. O fim das cirurgias genitais em meninos e meninas intersexuais e que se
estabeleçam protocolos médico-legais internacionais que protejam seus direitos.
6. Os profissionais da área de saúde devem rotineiramente pesquisar a presença
de pensamentos e comportamentos suicidas em crianças com disforia de gênero,
particularmente durante a segunda metade da infância;
7. Distanciar-se das exigências e imposições sociais ou religiosas para poder
acolher a criança.
8. Sustentar a diferença, compreender a situação, manter o diálogo e ajudar a
criança no que for necessário.
9. Educação e apoio às famílias de crianças transgêneras para compreensão,
aceitação e acolhimento dos seus membros transgêneros.
10. Orientar os pais para que permitam à criança "socialmente em transição" a
viver de forma consistente com a sua identidade de gênero. Isso inclui vestir-se,
interagir com colegas e usar nomes e pronomes de uma maneira consistente com o
seu gênero identificado. Para a maioria dos jovens transgêneros, a transição social
fornece alívio tremendo e imediato, permitindo-lhes florescer social, emocional e
academicamente, sem medicalização precoce.
11. Passar segurança para a criança, que pode acontecer, concomitantemente, com
o diálogo e as explicações que os pais podem fornecer. Com isso, é possível abordar
a sensação e os sentimentos que ela possui sobre si mesma, procurando esclarecer
que esta diferença não interfere na relação dela com os amigos e que não há nada de
errado.
12. Orientar os pais quanto a amenizar eventuais discriminações na escola
conversando com a diretoria e professores. A conversa e o apoio dos pais fortalecem
o filho que inevitavelmente experimentará o sofrimento causado pelo preconceito.
Mas proteger não é esconder ou enclausurar a criança num mundo fechado. Ela
precisa ser encorajada a se relacionar com as outras crianças e não se sentir
envergonhada. Isso facilita a aceitação.
13. Proibição total de práticas pseudoterapêuticas, de natureza clínica ou religiosa,
visando a “recuperação” de crianças e jovens transgêneros.
14. Campanhas sistemáticas de informação ao grande público para promoção de
saúde sobre o que é a condição transgênera, separando a questão de gênero da
questão de orientação sexual e combatendo sistematicamente a transfobia.
15. Permitir o uso de bloqueadores hormonais para bloquear o início de uma
puberdade indesejada em jovens com disforia de gênero.

São necessários estudos mais profundos para realmente capturar as populações “ocultas” e a
falta de acesso aos cuidados médicos formais.

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