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partilha’te

WWW.PARTILHATE.COM

2009
2009, Projecto Partilha‘te
E-mail: partilhate@partilhate.com

www.partilhate.com

Título: Partilha‘te
Coordenação do Projecto: Maria Costa, Carlos Mendes,
Joana Fernandes, Tiago Cristóvão, Ricardo Lapão
Prefácio: Daniel Sampaio
Ilustrações e Capa: Leonardo Varella-Cid
Revisão: Ana Parreira, Ana Moura, Carolina Torres,
Joana Fernandes, Lígia Rogado, Maria Costa,
Patrícia Gonçalves, Rodrigo Dias, Tiago Cristóvão

1.ª Edição: Junho de 2009

Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons


Atribuição-Uso Não-Comercial-Partilha nos termos da mesma Licença
2.5 Portugal. Para ver uma cópia desta licença, visite
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/pt/ ou envie uma
carta para Creative Commons, 559 Nathan Abbott Way, Stanford,
California 94305, USA.

As histórias que constam no presente livro


foram livremente submetidas pelos seus autores
e recebidas através do site www.partilhate.com
para a presente publicação entre
15 de Abril de 11 de Maio de 2009
A publicação das histórias teve a autorização
expressa de todos os seus autores.

-4-
Os nomes dos autores foram designados pelos próprios, sendo muitos deles
pseudónimos dos autores ou nomes fictícios.

Autores: A. & C., A. Barros, A. S., Alexandra Marta, Alexandre Inácio,


Alice "Freak" Sampaio, Álvaro Lopes, Ana, Ana Correia, Ana Parreira,
Anabela, André, André Abel Aaires, António Freitas, António Frazão,
Artur, Bathory, Bárbara Baptista, Bárbara Ramires, Beatriz, Beatriz da
Costa ou não, Bruno, Carla, Carla Pinheiro, Carlos, Carlos Mendes,
Christa Desmet, Cláudia, Colaço, Cristiano Marques, Cristina Maria,
Daniela Coutinho, Dantins, Dany_Neko, D. C. Silva, Diogo, Duarte
Flor, Ela*, Ele*, Ermelindo Lopes, Eu, F. Oliveira, Filipa Oliveira,
Filipe, Free Soul, Francisco Eduardo Belard, G. Miguel Damas, Gionelo,
Gonçalo R., Helena Margarida V. Teixeira Lopes, Helena Rijo,
Humberto Alves AKA X-bear, Inês, Inês Bernardo, Inês Lopes, Isabel
Faia, J. Frias, J. V., Joana do Vale, João Basto, José F., Jorge M., Jorge T.
Santos, Katia, L. T., Lady L, Laranja Lima, Leonardo Nascimento, Lígia
Rogado, Lívia Maat, Livre-Mente, Luís Rhodes Baião, Luna, Margarida,
Maria, Maria Costa, Maria Oliveira, Mário, Marta, Mateus, Miguel,
Miguel Costa, Nicole P., Nita Morgado, Nuno, Nuno A., Paulo
Alexandre, Paulo Jesus, Pedro Lérias, Pequena Lés, Pinguim, Raim, Ray,
Ricardo Lapão, Ricardo M. Santos, Ricardo Sousa, Rita Evangelista, Rita
Guedes, Rita Paulos, Rita Teixeira, Rodrigo Andrade, Rodrigo Camelo,
Rodrigo Dias, Rui Cláudio Dias, S. J., S. M., Sara Oliveira, Sissy, Skarita
Montiel, Sol, Sofia Castro, Sofia Faia, Tânia Santos, Teresa I. F. Lopes,
Vanessa Castro, Vasco

* Nomes atribuídos aos autores anónimos.

-5-
INDICE
Prefácio .............................................................................................. 13

Testemunhos .................................................................................... 15

MEDO E DOR ........................................................................... 17


A melhor pessoa do mundo ........................................................... 19
16 de Outubro .................................................................................. 20
Consultório ....................................................................................... 24
Cores Proibidas* .............................................................................. 28
Cumprimentos de Pena................................................................... 32
Página Arrancada ............................................................................. 35

DESCOBERTA ........................................................................... 37
Já não é um problema... .................................................................. 39
Primeiro Amor ................................................................................. 41
Because you loved me ..................................................................... 42
Confusão? Não me parece.............................................................. 44
A menina... ........................................................................................ 45
Foi numa daquelas tardes ............................................................... 49
O Erro… e a Redenção .................................................................. 52
Remar contra a maré ....................................................................... 55
O resumo da minha vida ................................................................ 57
A minha Liberdade, sou eu que a faço! ....................................... 61
Em busca da felicidade.................................................................... 64
-7-
A descoberta ...................................................................................... 66
O outro, ela e eu... ............................................................................ 68
Caixa-de-óculos................................................................................. 70
As saudades são infinitas ................................................................. 73
Foi assim... ......................................................................................... 78
Rio por entre leitos ........................................................................... 81
Três dias e um beijo ......................................................................... 83
Porque não sais da "gayola"? .......................................................... 85
Perdido em Lisboa ........................................................................... 88

E AGORA? ................................................................................. 93
Reacção fantástica ............................................................................ 95
Verdadeiro Eu ................................................................................... 97
Mais uma história ........................................................................... 100
We always have...AVR ................................................................... 103

COMING OUT ......................................................................... 105


My story…my life… ...................................................................... 107
O meu Nariz.................................................................................... 110
Respirar ............................................................................................ 111
―Vais ser feliz à minha maneira‖ .................................................. 113
Não menos feliz .............................................................................. 117
Coming Out..................................................................................... 119
Parece Impossível ........................................................................... 121
Não faças barulho .......................................................................... 127
Partilha.............................................................................................. 129
O peso da família ............................................................................ 133
Uma vida depois de outra vida ..................................................... 138
Rodeada de Solidão ........................................................................ 141

ESCOLA .................................................................................. 143


Escola ............................................................................................... 145
O armário é apertado ..................................................................... 147
O Professor ..................................................................................... 152

FAMILIA.................................................................................. 157
Nova Realidade ............................................................................... 159
Desejo de Fuga ............................................................................... 161
O último a sair que feche o armário ............................................ 163
O que Somos ................................................................................... 169
-8-
Este sou eu ...................................................................................... 170
O meu sair do armário .................................................................. 173
Não te quero perder ...................................................................... 175
O meu comin'out ........................................................................... 177
Não deixes para hoje o que podias ter feito ontem ................. 179
Os meus irmãos .............................................................................. 192
Os meus pais ................................................................................... 194
Tenho 72 virgens à minha espera no Paraíso! ........................... 196
Uma Família às Direitas ................................................................ 197
Verdadeiramente ele ...................................................................... 199
As Guerras e Conquistas da Minha Vida .................................. 204
Como não contei à minha mãe .................................................... 207
Adoro-te mãe!... .............................................................................. 209
Uma historia sobre homossexualismo????? ............................... 211
"Contar aos pais" ........................................................................... 213

AMIGOS ...................................................................................215
Basta um "empurrãozinho" .......................................................... 217
Poucos mas bons ........................................................................... 219
O Meu Melhor Amigo .................................................................. 221
O meu início... ................................................................................ 225
Só somos diferentes ....................................................................... 228
Uma história simples ..................................................................... 233
O Pedro não sabe que eu sei ........................................................ 236
"Partilha-te" na amizade................................................................ 238
A homossexualidade de um ―heterossexual‖ ............................ 241
E eu até recebo aqueles e-mails com frases bonitas... ............. 245
O dia em que não mudou nada ................................................... 247
Olá! Eu sou o Carlos... .................................................................. 248
Frustração ........................................................................................ 251
Uma simples partilha ..................................................................... 253
L de leiam... ..................................................................................... 255
Confissão ......................................................................................... 258
Todos procuramos... um amor assim! ........................................ 261
Uma nota de esperança… ............................................................ 263
Partilhar............................................................................................ 268
Balneário .......................................................................................... 270
Trabalho de grupo ......................................................................... 275
História na Terceira Pessoa .......................................................... 277

-9-
TRABALHO ............................................................................. 281
Fui "apanhada"................................................................................ 283
Olhos Castanhos............................................................................. 286
Partilha-te no Estúdio .................................................................... 293

AMOR ..................................................................................... 295


Leilão ................................................................................................ 297
Inexplicável ...................................................................................... 300
Num Clarão ..................................................................................... 302
A minha história de amor ............................................................. 305
Desculpa mas eu sou assim!.......................................................... 307
Saudades ........................................................................................... 336
Replied Love ................................................................................... 338
Gostava tanto de te dizer, mas é-me impossível ....................... 340
Sorrisos ............................................................................................. 342
Simplesmente eu ............................................................................. 346
E o meu coração explodiu... ......................................................... 351
All I ask of you................................................................................ 367
Carta para um amor que não aconteceu ..................................... 370
Há cheiros no ar ............................................................................. 374
Toi, moi et ton toucher ................................................................. 377
Gostava... ......................................................................................... 380
Valeu a pena! ................................................................................... 383
Paciência........................................................................................... 386
Uma história vulgar... ...ou talvez não ......................................... 388
A nossa história............................................................................... 390
Assim já sei o quanto gosto de ti ................................................ 393
A procura do beijo ......................................................................... 399

RELACIONAMENTOS ............................................................... 401


Cicatrizes .......................................................................................... 403
As Recordações da Rita ................................................................. 405
Testemunho..................................................................................... 410
A descoberta de Paulo ................................................................... 413
Traição .............................................................................................. 415
Para ti, pai. ....................................................................................... 417
Conselhos Inesperados .................................................................. 421
Sex and the city aka my life ........................................................... 423
Beatriz, um outro amor ................................................................. 427

- 10 -
VIAGENS ................................................................................ 433
Em coiso e tal ................................................................................. 435
A viagem da minha vida................................................................ 443
Ich liebe dich................................................................................... 450

SOCIEDADE ............................................................................ 453


Aceitação ......................................................................................... 455
Bicha = Tudo.................................................................................. 456
O irmão da minha melhor Amiga ............................................... 462
O Sonho ou Não............................................................................ 466
Why Eden........................................................................................ 468

RELIGIOSIDADE ......................................................................471
Fantasmas Religiosos..................................................................... 473

NOITE ................................................................................... 477


Primeira ida a um bar com temática LGBT .............................. 479
A Borboleta ..................................................................................... 481

OPINIAO ................................................................................ 483


Sê feliz à tua maneira ..................................................................... 485
Adopção – Uma oportunidade para as crianças! ...................... 486
Autenticidade contigo mesmo ..................................................... 490
Não sou Diferente! ........................................................................ 491
A minha ignorância........................................................................ 492

ACTIVISMOS E MOVIMENTOS.................................................. 493


O que é a homofobia? ................................................................... 495
Fórum MadeiraGay........................................................................ 498
O teu lugar ao Sol .......................................................................... 500
Como nasceu a rede ex aequo? .................................................... 502

APOIOS.................................................................................... 511

- 11 -
Prefácio
O projecto Partilha'te nasceu da vontade de um amigo que inspira o
mundo com a sua ousadia.
―Durante muito tempo achei que tinha uma doença da qual não
podia falar com mais ninguém. Várias vezes pensei que estava
condenado e vivia aterrorizado com o que aconteceria se os meus pais
descobrissem. Hoje sonho com o dia em que ninguém poderá pensar tal
coisa apenas por se sentir atraída por uma pessoa do mesmo sexo‖.1
Deste sonho nasceu este projecto que foi desenvolvido por um
grupo de amigos.
Um livro criado através da partilha de pessoas reais. Histórias reais,
simples ou complexas, tristes ou alegres, grandes ou pequenas, de
rejeição ou aceitação, de amor ou de ódio, individuais ou de grupo, mas
histórias que partilham fragmentos de vida.
O nosso objectivo é contribuir para a banalização da temática da
homossexualidade no sentido em que seja possível que todos a possam
ver como algo normal.
Foi espantoso o que se conquistou em apenas um mês. Poder
aceder a histórias que partilham o mais íntimo de cada um, os seus
sentimentos e percursos. Tem sido um privilégio memorável.

1 FRANCISCO, Ricardo (2007) Terás coragem de Me Partilhar. Lisboa: Lulu.com


- 13 -
Tudo isto não seria possível sem o contributo de tantas pessoas que
acreditaram seriamente e de coração neste projecto. Por isso e pela
possibilidade de concretizar este nosso sonho, os nossos sinceros
agradecimentos.

A Coordenação do Projecto Partilha’te

- 14 -
Testemunhos
O projecto ―Partilha‘te‖ é uma lição de vida e um importante libelo
contra a homofobia.
Lição de vida porque nos traz, em linguagem simples mas muito
sensível, o sofrimento psicológico daqueles que se sentem diferentes e
que a sociedade não cessa de marginalizar. Este livro mostra-nos os
testemunhos de pessoas com dificuldades de afirmação da sua
orientação sexual, porque a sociedade onde se inserem lhes negou o
direito à afirmação da sua identidade. Nas páginas que acabaram de ler,
puderam encontrar percursos difíceis, onde a humilhação, a
incompreensão e a discriminação transformaram o quotidiano de muitos
jovens em momentos de mal-estar psíquico e de isolamento. Deste
modo, somos transportados para as dificuldades de afirmação da
homossexualidade no campo da família, assistimos à ida ao psicólogo,
participamos nos relatos de humilhação e de provocação (―bullying‖) no
ambiente escolar, ou somos confrontados com violação do direito à
privacidade no contexto de um estabelecimento prisional: em todos os
casos relatados predominam os sentimentos de mal-estar e de
incompreensão face àqueles que não seguem o comportamento sexual
maioritário e que todos os dias sentem na pele as vicissitudes desse
percurso. Podemos ainda dar conta de situações de fuga ou de

- 15 -
isolamento, de descoberta ou de revolta, perante um corpo que se
transforma e que busca a sua identidade, numa sociedade erotizada mas
sempre pronta a condenar quem ousa ser diferente.
Libelo contra a homofobia porque chama a atenção para a
necessidade de estarmos atentos aos pedidos de ajuda que estes
testemunhos exigem. Não para ―curar‖ a homossexualidade, ou para
―reenquadrar‖ a orientação sexual, como alguns técnicos portugueses
ainda defendem, mas noutra perspectiva: considerar que esse sofrimento
não é resultante da orientação sexual, antes é determinado por um
contexto social discriminatório que leva à interiorização de mensagens
sociais negativas, caracterizadas por preconceitos e falsas crenças face à
homossexualidade.
A leitura deste livro, escrito com o coração mas também com a
razão dos argumentos, contribuirá para o debate urgente que este tema
exige.

Daniel Sampaio
Professor Catedrático de Psiquiatria e Saúde Mental
da Faculdade de Medicina de Lisboa

- 16 -
MEDO E DOR

- 17 -
A melhor pessoa do mundo
É a melhor pessoa do mundo, é a ―minha pessoa‖, o meu lado
masculino, o meu melhor amigo que quer matar-se por ser um gay
infeliz e não aceite pela sociedade.

Ela
20 Anos
#94

- 19 -
16 de Outubro
Hoje sento-me mais uma vez aqui, tentando exprimir algo que sinto
dentro de mim. Por incrível que pareça, mais uma vez, me deparo com
os mesmos sentimentos, os mesmos problemas. As questões que maior
mágoa me trazem rondam sempre os mesmos aspectos. Assustando-me
um bocado, não compreendendo por onde começar, o que fazer, o que
sentir, para onde fugir.
Mais uma vez sinto-me rejeitado, olhado, negado, por alguém que
não me deveria olhar assim… A maior parte desse olhar provém da
minha própria pessoa, que se olha ao espelho e rejeita a imagem, como
um corpo rejeita um órgão transplantado e acaba por morrer, assim sem
mais nem menos, na pureza da biologia.
Olho-me ao espelho e não reconheço quem lá está, tenho medo do
que possam olhar, do que o outro possa dizer, tenho que treinar
expressões, roupas, atitudes, poses, pensares, para que não seja colocado
em causa, para que não seja intitulado de algo que, de alguma forma, me
possa vir a magoar. Sei que me magoa, muita coisa me magoa, um olhar,
um comentário, uma atitude, um simples gesto que denuncia algo
penoso para mim.
Mais uma vez olho-me e sinto que verdadeiramente tenho de
aprender a aceitar-me como sou, sem medos, sem receio do que o outro,

- 20 -
que lida diariamente comigo, possa pensar ou que juízos de valor possa
vir a efectuar.
Tenho medo de estar a entrar num buraco, num ciclo vicioso de
medo e começar a prender-me, a limitar-me como já faço demasiado.
Não sair com alguém que à partida não conheço, porque não sei o que
vou dizer, como me sentir, como agir, o que beber, o que não beber, que
piadas serão boas, que temas de conversa… e assim divaga a mente, a
alma, a dor aperta o coração fica pequenino e o receio aumenta e aí
acontece o mesmo de sempre, eu acabo por desistir e volto para o
conforto do meu mundo, onde a mágoa é só minha e não é partilhada,
onde sinto que ninguém me consegue ajudar, porque não sou merecedor
dessa ajuda. Sento-me aqui e choro, e penso, e fujo, mais uma vez, de
todos os problemas, considerando que um dia, tudo, milagrosamente,
será diferente.
Por vezes sinto que a exigência do mundo exterior é maior do que
aquela à qual eu posso responder e estar a um nível em que possa dar
uma resposta de qualidade. Cresci numa família onde os problemas se
―esquecem‖ facilmente, onde hoje se discute e amanhã se finge que nada
aconteceu e assim, de dia para dia, se colocam os problemas para trás
das costas até ao próximo dia de descompensação extrema, onde todos
se ofendem, onde todos se magoam com palavras que poderiam ter sido
evitadas se no passado tivessem resolvido tudo.
Uma família que, claramente, não percebe onde errou, que jamais
admitirá qualquer tipo de falha e que sonha, de forma constante, em
atingir a perfeição, a família da televisão, que jamais alcançará, por
razões que a própria razão desconhece. Assim, de dia para dia, temos um
grupo de pessoas que se encontra num determinado espaço,
habitualmente chamado de cozinha, onde passa cerca de 20 a 30
minutos juntos, até ao momento em que cada um se refugia no seu
quarto, não permitindo qualquer tipo de contacto, interacção ou diálogo.
Para além de todos os problemas que envolvem este agregado
familiar, falamos de traição, desconfiança, engano, mentira, negação,
não-aceitação, desmotivação, desinteresse, entre tantos outros. Por assim
dizer que a Mãe trabalha mais de 15 horas por dia de forma a evitar o
contacto com o agregado familiar que não lhe proporciona alegrias,
- 21 -
somente tristezas; o Pai trabalha o mínimo possível, preferindo ocupar o
seu tempo a jogar jogos de aviões e a dialogar com raparigas novas que
de alguma forma lhe levantem o seu ego de adulto inferior; o Filho Mais
Velho (Eu) refugia-se no seu quarto, não permitindo qualquer contacto
por não se sentir aceite, sentir que é alguém invisível e incompreensível
na família; o Mais Novo fecha-se no quarto curtindo o som da sua
guitarra eléctrica ou então anda no popó dos papas com os amigos e
amigas a curtir a vida, porque a vida é para aproveitar.
Constantemente sinto que não faço parte desta família, que me
excluem, que o agregado passa pelo pai, mãe e o filho, colocando-me, de
forma constante, de lado como se fosse algo menos bom, não tão
positivo e não tão esperançoso como o outro filho. Até porque a
homossexualidade deve ser a causa de muitas mortes prematuras, não
sei, digo eu.
O filho homossexual é alguém cujo presente e o futuro é algo
incerto, basicamente deverá ser seu desejo tornar-se mulher, deverá
andar em discotecas ou parques nocturnos procurando homens mais
velhos que usem o seu corpo em troca de dinheiro, que estão
impossibilitados de trazer uma nora e muito mais de proporcionarem a
alegria de trazer netos para casa. Sendo assim, para que servem estes
filhos? Basicamente são uma fonte de desgosto, de algo que não se
percebe ―onde é que eu errei?‖.
Diariamente homens e mulheres sentem-se excluídos, magoados,
negados, olhados, desprezados por aqueles que, por serem uma
maioridade, se consideram o grupo normal, apesar de muitos terem
patologias muito mais graves, até porque, falando popularmente, mais
vale roubar do que ser gay.
Diariamente temos crianças a crescer e a descobrir que são algo que
a sociedade e os seus próprios pais odeiam, crescem no seio de uma
sociedade homofóbica, uma escola homofóbica, onde, por não serem
aceites e não terem o apoio familiar, muitas vezes, não conseguem
suportar a pressão, a dor e a angústia causada pela crueldade da infância
e juventude, decorrendo daí demasiados suicídios. Tenho medo de me
olhar diariamente ao espelho, tenho medo de não agradar, de não
conseguir ser feliz, de não conseguir ultrapassar todos os meus medos,
- 22 -
de não ser forte o suficiente para andar uma vida inteira com este peso
nos ombros.
Por minha livre vontade, se fosse tudo uma questão de escolha ou
opção, hoje, neste preciso momento, diria sou Heterossexual e assim
parte do meu sofrimento terminaria, porque me integraria num grupo
maioritário e, supostamente, o sofrimento seria diferente, porque, ao
menos, teria o benefício de ter demonstrações públicas de amor, de
afecto, de compreensão, sem ser olhado como o animal do jardim
zoológico que todos acham piada, mas que deverá permanecer, para
sempre, dentro da sua jaula, não incomodando os bons costumes da
nossa sociedade.

Miguel Costa
24 Anos
#34

- 23 -
Consultório
Filipe encontrava-se na sua primeira consulta com um psicólogo.
Estava um pouco nervoso e não sabia o que dizer, pois não sabia ao
certo qual era o seu problema, sabia dos seus problemas mas não
percebia porque lhe faziam sofrer tanto.
O psicólogo cumprimentou Filipe com um aperto de mão quando
este entrou no consultório. Convidou o Filipe a sentar-se, e após Filipe
ter entrado, o psicólogo fecha a porta e senta-se no outro lado da
secretária.
-Então… Como te chamas? – Perguntou o psicólogo.
-Hum… Filipe.
-E o que te trás por cá?
Filipe manteve-se calado, até que se lembrou que podia mostrar um
dos seus problemas.
-Hum… – Disse Filipe enquanto punha os braços em cima da
secretária.
Filipe arregaça as mangas e mostra ao psicólogo os seus cortes,
evitando o olhar do psicólogo.
-Esta é a tua primeira consulta, certo?
-É.
-Então, e porque fazes isso?

- 24 -
-Porque…
-Porque a dor física te faz abstrair a atenção da tua dor emocional,
mesmo a dor física sendo menor do que a dor emocional, certo?
-Sim…
No resto da consulta o psicólogo tentou compreender Filipe ao
fazer-lhe perguntas às quais Filipe apenas respondia o essencial.
Filipe foi a outra consulta uma semana depois com o mesmo
psicólogo e estava ligeiramente mais à vontade. Na primeira parte da
consulta foi só falar, o psicólogo ainda tentava compreender melhor o
seu paciente. Perguntou ao paciente se não havia alguém de quem ele
gostava, a resposta foi negativa. Depois mandou-o desenhar várias
coisas, por exemplo, a sua família, ele próprio e algo à sua vontade.
Filipe desenhou a sua família, a sua mãe, o seu irmão e a sua irmã,
coloridos. Desenhou-se a si próprio de preto. Por fim desenhou a sua
gata, no tema livre.
-Hum… Está muito bonito. – Comentou o psicólogo ao ver o
desenho da gata.
-Obrigado. Então, está tudo bem?
-Hum, ainda tenho que os analisar bem em casa, mas parece-me que
sim. Agora vais te deitar ali. – Apontou para a marquesa.
Filipe foi deitar-se na marquesa.
-Agora vais fechar os olhos, vais te por numa posição confortável e
vais respirar fundo.
O estado de consciência de Filipe alterou-se, permitindo-lhe uma
melhor meditação sobre aquilo que o psicólogo falava.
-Conseguiste acompanhar-me?
-Consegui.
-E o que sentiste?
-Senti-me… Bem?
-Óptimo! Podes fazer o mesmo em casa. E deves.
Na terceira consulta, Filipe estava mais à vontade ainda, no início foi
conversa, lá mais para o final foi de novo na marquesa a praticar o
mesmo exercício da sessão anterior. Depois disso ambos se voltaram a
sentar e falar mais um pouco.

- 25 -
-Tens que sair mais vezes de casa, combinar uma saída com amigos,
alguém que gostes. Podias ir às piscinas, fazia-te bem. Ou ao cinema.
-Pois. Vou ver o que posso fazer.
-Não tens uma namorada? Alguém assim que gostes?
-Hum… Não tenho uma namorada.
-Mas não gostas de ninguém?
-Gosto.
-Então tenta combinar alguma coisa com essa rapariga. Com essa
pessoa.
-Hum… – Filipe hesitou – É um rapaz.
-Tudo bem, eu tinha desconfiado.
-Isso quer dizer que transpareço?! – Filipe ficou alarmado.
-Não, não, está descansado, apenas vi segundo alguns padrões.
-Ah… Pensei que pudesse transparecer…
-Não, não te preocupes. Então podes tentar combinar alguma coisa
com esse rapaz.
-Pois, mas só falo com ele por MSN e por SMS, já o tentei convidar
mas ele recusou sempre.
-Ele sabe que…?
-Sim, ele também é.
-Então tenta avançar para um nível mais concreto. Insiste numa
saída.
-Vou tentar.
-Então e a tua mãe sabe disso?
-Não, e não penso contar-lhe.
-Achas que ia reagir mal?
-Acho.
-Mas é a tua mãe, ela ama-te. Normalmente é só mais o primeiro
impacto, depois as pessoas vão aceitando.
-Mesmo assim. Não vou contar-lhe.
-Então pronto, para a semana traz-me avanços. Não te esqueças.
Mesmo com um psicólogo Filipe demorou a contar-lhe essa parte.
Ainda existiam muitas pessoas a quem Filipe não tinha contado.
Hoje em dia Filipe ultrapassou o que sentia por esse rapaz, pois não
havia feedback e não considera ninguém amigo sem partilhar essa sua
- 26 -
parte. Levou imenso tempo a massacrar-se por esconder isso da sua
mãe, que não mostrava tolerância em relação a algum dos seus filhos ser
homossexual, mas um dia contou-lhe e já não sente esse peso nos
ombros, já não sente que está a mentir à pessoa que o sustenta e que lhe
dá um tecto.
Quanto à auto-mutilação, infelizmente, Filipe ainda a pratica,
embora aconteça com muito menor frequência.

Filipe
18 Anos
#67

- 27 -
Cores Proibidas*
―Que sejas como Alexandre, o Grande! Forte e corajoso, para
enfrentar o mundo, e as suas diferenças.‖
Esta foi a dedicatória que um jovem professor meu, de Educação
Visual, escreveu quando eu tinha apenas 15 anos.
Pequeno, e sem conhecimento da vida, naquela altura não percebi a
amplitude da mensagem oculta.
Eu era, então, vítima de ―bullying‖. Vítima silenciosa. Professores
não intervinham, e da única vez em que arranjei coragem para contar à
mãe, o problema foi ignorado. Pai sempre distante.
Muito tímido, por natureza, muito pequeno, de estatura, e com
sensibilidade visível, eu era um alvo perfeito para rapazes em busca de
presa. Felizmente, não sofri mazela física. Mas a psicológica é como um
cancro corrosivo da alma. No meu caso, acabaria por comprometer toda
a existência.
E se a universidade prometia um alívio da tortura, as praxes
agudizaram o sofrimento. Instalou-se uma fobia… o medo puro de viver
em sociedade. Isolei-me e escondi o problema da família. O curso
entrou em descalabro. Inventei desculpas. Mudei de curso, para uma
faculdade de psicologia, da mesma cidade. O ambiente era acolhedor,
familiar, a experiência muito gratificante.

- 28 -
Mas a angústia continuava. A solidão era tremenda. No meio da
multidão, a sensação de desterro jamais se desfazia. Tinha poucos
amigos. E pouco profundos.
O curso foi abandonado. Era escape que não preenchia. Uma farsa,
entre outras.
Regressei à terra, em estado puro de apatia. Três anos de
psicoterapia não tinham resolvido a sucessão de estados depressivos.
Passei quase um ano – qual coma profundo – sentado num sofá,
sem qualquer reacção à vida. Fui encaminhado para a psiquiatria. Mas
rebelei-me contra a droga prescrita e não voltei ao profissional de saúde,
que nem conversa estabelecia.
Surgiu uma solução, que era obrigação. Um contrato de trabalho
para servente de pedreiro, na construção civil. O pai era patrão. E eu já
tinha experiência.
Ainda que doloroso, para a mente letrada e para o corpo fraco, o
trabalho duro trouxe uma robustez física, e emocional, inesperada.
Logo no início, e com dinheiro na mão, compro computador e
adquiro ligação ao mundo. Pela pesquisa de um filme, sobre um jovem
gay norte-americano, Matthew Wayne Shepard, espancado até à morte
amarrado a uma sebe, entrei na blogosfera de autores gay.
Travei conhecimento próximo com um deles. ―Cristoph‖ vive com o
companheiro em Lisboa. O conteúdo do seu blog, pela vida partilhada e
pela informação esclarecida, era-me inspirador.
Estabelecemos contacto por MSN. Tenho a oportunidade de
conhecer, de perto, a vida de um casal homossexual.
Há poucos meses, revelo a minha ―orientação‖ aos amigos ainda
restantes e aos primos da cidade. Reacção tranquila, fruto de prévias
suspeitas, algum alívio. Alguns permanecem homofóbicos. Há coisas
que, para já, não mudarão.
Para a família próxima e comunidade rural, onde ainda vivo, não faz
sentido fazer qualquer revelação. Não sem uma relação. Contudo, a
verdade está diante dos olhos. É possível que a temam. Continuo
omitindo-a para nos salvaguardar de aborrecimentos (sobretudo a mim,
e a meu pai, cujo trabalho podia sofrer algum prejuízo).

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Entretanto, tomei conhecimento de um site, para encontrar outros
como eu. Uma espécie de ―radar‖ on-line. Com bom senso e alguma
inteligência, tenho conhecido, através dele, alguns gays interessantes com
quem tenho trocado impressões, histórias de vida, gostos pessoais, e
diferentes formas de ver o mundo. Lugar de engate para muitos, tem
sido sobretudo uma experiência de auto-conhecimento que me tem
proporcionado crescimento e abertura de espírito. Espero, em breve,
conhecer pessoalmente alguns deles. Afinal, eu não sou o único. E são
tantos.
Mais ou menos expostos, mais ou menos anónimos, são tantos os
sentires diferentes, e são tão diferentes as homossexualidades. Alguns
recusam rótulos, outros os exibem, alguns vivem escondidos, outros sem
medo.
E, contudo, algo unindo-nos. As mesmas cores proibidas.
Hoje, há distância de 15 anos, relembro o meu professor e a
dedicatória que me escreveu. Minha memória associa-lhe, agora, e com
nitidez, pela primeira vez, os gestos, as expressões, os diálogos, as
aulas… Ocorre-me, espontaneamente, uma certeza: também ele era gay.
Não deixa de ser uma forte possibilidade.
Há um ano, recuperei a auto-estima perdida, ou nunca antes
germinada. Desde então, tudo flui com mais facilidade. Vou
recuperando os sentidos, apaziguando as memórias, aprendendo a cuidar
de mim. É como voltar a nascer, e aprender tudo de novo. Estou
pensando em dedicar-me a terapias alternativas e de bem-estar para a
melhoria de vida e auto-estima de outros.
Esta é a minha estória. Uma estória de recomeço, de segundas
oportunidades. E esta é a minha mensagem: a mudança começa na nossa
cabeça. Sejam livres! Sejam felizes!

*Forbidden Colours (Cores Proibidas) é o título de uma música (1983),


composição do japonês Ryuichi Sakamoto, letra e interpretação do britânico David
Sylvian, trilha principal do filme, do mesmo ano, "Merry Christmas, Mr. Lawrence",
do realizador Nagisa Oshima. A letra descreve o sofrimento e contrariedades
resultantes do peso das mentalidades a respeito da homossexualidade. A luta

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interior contra si próprio, sintetizada na expressão do refrão "my love wears
forbidden colours..."

Alexandre Inácio
28 Anos
#39

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Cumprimentos de Pena
“Cumprimentos de pena” é uma história de ficção baseada em vários episódios reais
passados num estabelecimento prisional feminino português.

São 09,30h e o ânimo é o de todas as segundas-feiras de cada


semana…
Hoje estou como em todas as segundas-feiras, com muito mais
genica para as motivar. Entro na zona oficinal e a primeira sala que
visito é a da equipa de 35 colaboradoras de uma oficina.
Os rostos de segunda-feira são carregados, ora de mágoa e revolta,
ora de soluçar de infortúnios e de carências afectivas.
-―Bons dias…o fim de semana… como foi? Todas tiveram
visitas?....‖
Um som lá do fundo ecoa pela sala…: -―Acabou o sossego (risos).
Pensávamos que já não vinha. Já temos tudo adiantado. Quando há mais
obra?‖
―A ver vamos se ainda hoje temos mais obra.‖
Preparo a mesa de trabalho e a supervisora de oficina vem ao meu
encontro.
-―Temos que falar!‖ (em tom desesperado e num quase lacrimejar).

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-―Volto em 2 minutos‖, disse eu, afastando-me com Rosa Parideira
para o corredor da zona oficinal.
-―Que cara é essa mulher…que se passa?‖
-―Estou com medo….não me sinto segura em lado nenhum….você
tem-me dado muita força, sem o saber. Por isso decidi contar-lhe o que
está a acontecer. Guarde sigilo e depois desta conversa observe as
pessoas de quem lhe vou falar. Não me julgue. E esqueça que alguma
vez ouviu isto de mim! Se em algum momento for chamada a justificar-
me pelo que lhe vou contar, saberei quem deu com a língua nos dentes.
Aí negarei tudo e como já sabe, neste assunto, palavra de reclusa vale
mais do que palavra de Papa.‖
-―Então hoje estamos com sorte…. O gabinete está vazio. Vamos
entrar e falamos lá com a porta semiaberta. Esta conversa nunca existiu!
Este é o nosso acordo. Se concordar, entramos. Se não concordar,
guarde para si ou para alguém em quem confie, o assunto de que me
quer falar.‖
-―Concordo!‖
Entramos e seguimos até à secretária que ficava ao fundo da sala e,
como combinado, a porta ficou semiaberta. Mesmo em tom normal,
nada se conseguia ouvir do gabinete para o exterior. A princípio julguei
que iria ouvir mais uma das centenas de histórias das visitas de fim-de-
semana; Peripécias da vida real, umas com menos preocupações que
outras, mas todas a levitar sobre temas relacionados com os familiares
no exterior da cadeia.
-―Esta noite, durante a ronda, uma das guardas entrou na minha cela
– acordou-me, deu-me um beijo na boca e apalpou-me as mamas.
Depois voltou a beijar-me e antes de sair disse-me que se masturbava a
pensar em mim… estou aterrorizada…não sei que fazer…sinto-me
desorientada, culpada, perseguida…‖
Naquele momento fiquei sem respiração. O que circulava à boca
pequena era de facto real e a homossexualidade feminina coexistia
paredes-meias com o cumprimento de pena, sob a forma de violação.
Mal podia crer que tal tivesse sucedido e fiquei ainda algum tempo a
pensar no assunto. O que aconteceu foi uma violação com abuso de
poder. Nessa matéria tinha de agir. O que estava em causa não era a
- 33 -
orientação sexual mas a violação humana, de alguém que
meticulosamente estudou o perfil da ―candidata‖ e que planeou a sua
emboscada detalhadamente.
Esta e outras histórias semelhantes de violação de reclusas,
protagonizadas por guardas prisionais, ainda hoje são tema aceso nos
serviços prisionais, que ora se levantam com a passagem da brisa no
assunto, ora se evaporam no ar.

Carla Pinheiro
32 Anos
#62

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Página Arrancada
Todos sabemos que a vida não são rosas, que a vida não é fácil e
nunca estamos satisfeitos com aquilo que temos, mas somos meros
humanos...
Os humanos são todos diferentes, mas nenhum deles é perfeito,
tudo depende da definição de "perfeição" que cada um tem. Enfim, diz-
se muito que somos todos iguais, mas isso está longe de ser verdade,
pelo menos segundo algumas interpretações. Há quem tenha mais
problemas do que outros, há quem viva de uma maneira e outros de
outra, enfim, como podemos ser todos iguais tendo em conta todas estas
diferenças? Não podemos. Mas é aí que está a nossa igualdade: É o facto
de sermos todos diferentes uns dos outros que nos torna todos iguais.
Temos problemas quando estamos presos a alguém que gostamos
ou até por dependência e esse alguém é de tal maneira diferente que,
admitindo que existe uma falta de comunicação, é incapaz de nos
compreender. E ainda dizem que nos conhecem...
Tornando a mensagem mais pessoal: tu pensas que me conheces.
Eu vejo isso quando falas sobre mim a alguém ou quando críticas a
minha maneira de ser. Tens a tua própria interpretação de mim.
Mãe, eu não sei o que fazer pois talvez o meu grande problema
esteja na nossa distância, distância essa que nem um, nem outro
consegue quebrar. No meio dos meus dois irmãos nunca me senti

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especial num bom sentido. Especial, como já me disseste que eu sou. Se
achas que sou especial, então onde está a atenção que preciso? Porque é
que só gostas de falar com os meus irmãos? Porque é que me fazes
sentir como alguém que simplesmente vive na tua casa? Fogo... Parece
que só estás comigo porque és obrigada a isso, ou melhor, para parecer
bem, porque já tenho idade para me pores na rua.
Estou aqui a desperdiçar este caderno que convenientemente não
foi necessário para a disciplina como diário simplesmente para deixar
ditas as palavras que nunca foram ditas. Sabe-se lá porquê. E não, não é
mais fácil ir ao pé de ti e falar. A distância física não tem qualquer
comparação com a distância emocional, mas estaremos sempre presos
um ao outro por estes laços de sangue, é isso que torna tudo tão
doloroso. Talvez um dia leias este caderno, nem eu sei se quero que isso
aconteça, mas como não tenho amigos escrevo. Os meus amigos
desapareceram todos quando me apercebi que nasci sozinho, cresci
sozinho e estou aqui sozinho. Morrerei sozinho quando tiver essa sorte,
já que nem força para um ponto final tenho. Limito-me a viver morto,
uma vez que não consigo morrer (literalmente). Comigo todas as
histórias ficam a meio, nunca há um final definitivo, simplesmente fica
tudo em suspenso.
Não me consigo relacionar decentemente com alguém pois não sei o
que é ser-se próximo e afectuoso com alguém porque tudo o que
aprendi foi a manter uma distância, ser frio e a esconder tudo aquilo que
penso e tudo aquilo que sou, porque assim o tem de ser. Tanto tempo
sem ―ser‖ que já nem sei ―ser‖, por isso talvez um novo começo não iria
resolver o meu problema de identidade. Estou farto deste dilema do ser
ou não ser. Posso ser isto, não posso ser aquilo, sou isto mas tenho que
ser aquilo... Que grande confusão! Tantas regras, que já nem sei o que
reside em mim. Estas palavras são tudo o que tenho. São tudo o que me
pode fazer sentir que existo, que não sou apenas um corpo sem alma
jogado ao mundo.

Filipe
18 Anos
#103
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DESCOBERTA

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Já não é um problema...
Sinto-me uma rapariga feliz, no entanto todos nós temos problemas.
Sempre fui uma pessoa "normal" e sempre tive muitos amigos. No
entanto à medida que fui crescendo, mais precisamente aos 9 anos de
idade, comecei a sentir o que não havia sentido antes. Senti atracção por
uma colega da primária. Na altura não dei muita importância,
desconhecia por completo os rótulos que a sociedade tem em relação à
sexualidade. Não liguei, era forte o que sentia por ela mas hoje sei que
não era amor, isso veio depois.
Quando fui para o ciclo. Aí sim. Foi amor o que senti. E mais uma
vez era uma rapariga, andava na minha escola. Era bom o que estava a
sentir, afinal o 1º amor é aquele que não se esquece. Mas nem tudo era
um mar de rosas. Quando pensei contar a alguém, como os amigos
fazem e desabafam uns com os outros, vi que comigo era diferente...na
rua não via duas meninas de mãos dadas, nem dois rapazes...comecei a
ficar muito baralhada. O sentimento ia aumentando assim como a
necessidade de partilhá-lo. Lembro-me que nessa altura guardei tudo
para mim. Limitei-me a amar. A olhar – sem poder falar. E foi assim até
por volta dos meus 14 anos quando voltei a me apaixonar. De novo por
uma rapariga.

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Foi aí que comecei a organizar ideias...nos primeiros tempos andava
aterrorizada...sentia um aperto no peito, pensava que estava só, que era a
única com aquele problema. Não podia continuar assim...tentei pesquisar
e na internet descobri muitas coisas que me ajudaram a perceber que não
estou sozinha...não sou a única que gosta do mesmo sexo. Fiz amigos
num dos fóruns através da internet, comecei a partilhar experiências,
tornou-se tudo mais fácil...e já não estava sozinha, tinha gente que me
compreendia e passava pelo mesmo que eu. Algo que me fez sentir mais
compreendida foi descobrir que a minha irmã também era homossexual.
Tinha descoberto por ocasião o diário dela onde falava duma rapariga...a
de quem ela gostava! Fui falar com ela e disse que era lésbica, ela no
momento não acreditava. Era coincidência a mais...mas depois percebeu
e hoje somos muito ligadas, só ela sabe que gosto de mulheres e só eu
sei que ela também gosta. Entre os 14 e os 16 anos tive dois namorados,
nunca senti mais que amizade, mas estava a tentar mudar o que
realmente não muda...a nossa orientação sexual! Hoje já não tenho
dúvidas. Sou lésbica e tenho orgulho no que sou!
Continuo a ser a mesma pessoa que era, sempre pronta a ajudar o
próximo. Hoje sei que as mentalidades já não são tão limitadas, as
pessoas têm vindo a aceitar a diferença. Amor é amor! E é isso que
importa! Sentimento mais puro não há. Para os pais ou amigos que
lidam com um homossexual...tentem pôr-se no nosso lugar. Não fomos
nós que escolhemos...assim como não foram vocês que escolheram
nascer heterossexuais. Todos diferentes, todos iguais!
Mais uma coisa...uma das necessidades que tenho é dar a conhecer
que sou homossexual, mas levo as coisas com passividade, neste
momento não estou apaixonada mas quando isso voltar a acontecer não
vou fazer como das outras vezes. Vou partilhar o que sinto! E estou
prestes a contar aos amigos e família, já me aceitei e isso é o mais
importante! Agora, vou continuar a procurar ser feliz e viver a minha
vida como uma pessoa normal, porque é isso que sou!

Sissy
16 Anos
#17
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Primeiro Amor
O ano passado estive num fim-de-semana de reflexão com várias
pessoas da minha escola. Encontrei uma rapariga, Ana (nome fictício),
nunca a tinha visto antes.
Ela sentou-se mesmo ao meu lado no caminho para o sítio onde
íamos dormir.
O primeiro dia correu normalmente, quando chegou ao final da
tarde ficámos em grupos e ela ficou no meu. O objectivo era fazer uma
peça de teatro romântica e, ela beijou-me, inocentemente no pescoço.
Não sei o que me deu mas nessa noite sonhei com ela.
Ela conheceu um rapaz nesse mesmo fim-de-semana e pouco
depois começaram a namorar, para minha grande infelicidade, só
descobri que gostava dela a sério cerca dois meses depois. Andei um
tempo chocada, comigo mesma, uma vez que era 100% Heterossexual e
os Homossexuais eram uns anormais. Consegui aceitar-me e fiz a grande
estupidez de me confessar a ela. Simplesmente disse-me para eu a
esquecer.
Pouco tempo depois esta história veio-se a saber.
E eu tive que sair do armário.
Agora já consegui fazer o que ela me pediu.
Esqueci-a depois de muitos meses.

Beatriz
16 Anos
#135

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Because you loved me
Vivo numa daquelas terrinhas pequenas onde toda a gente sabe tudo
sobre toda a gente: quem nasce, quem morre, quem casa, quem se
separa, quem dá, quem tira, quem chega, quem parte… uma daquelas
terrinhas de fim de estrada onde não se pode sequer espirrar que toda a
gente fica a saber que se está constipado. É uma aldeia realmente
minúscula, apenas com 3 ou 4 pequenas ruas em que todos se conhecem
pois todos são, de alguma forma que nunca consegui compreender,
parentes uns dos outros.
Se primeiro era motivo de falatório por ser a mais sossegada, a que
não brincava com os outros, por outro eram as comparações familiares:
com 15 primos mais velhos, todos esperavam que conseguisse seguir o
exemplo de alguns e ignorar o de outros, dizendo sempre que me
achavam parecida com este ou aquele, aconselhando e impondo metas
ou objectivos que nem sempre eram os que nós queríamos. Agora, que
quase todos os meus primos mais velhos já estão casados ou de
casamento marcado, sou eu o alvo das perguntas ―Então e a menina,
quando nos apresenta o namorado?‖.
Nunca tinha pensado na diferença nem no preconceito até os ter
vivido, até a ter conhecido. Tinha noção de que, de alguma forma não

- 42 -
era igual, mas simplesmente não pensava nisso. Não tinha porque o
fazer.
Depois, conhecia-a. Pertencia-mos ao mesmo grupo de amigos,
estávamos muitas vezes juntas e apaixonei-me. Nunca ninguém desse
grupo chegou a saber. No entanto, por vezes perguntavam e chegaram
mesmo a dizer-nos que nós mais parecíamos namoradas.
Os outros, que nos conheciam menos, perguntavam antes se nós
éramos irmãs, visto que estávamos sempre juntas e éramos, de facto,
bastante parecidas.
Não me importei com a opinião dos outros quando me apercebi que
estava apaixonada por uma rapariga, não tive medo, não queria saber,
estava com ela e era só ela que me importava. Mas ela tinha medo.
Mais tarde, separamo-nos. E aí sim, cai na realidade que durante
tantos meses me tinha limitado a ignorar, como se não me fosse também
afectar a mim.
Estava sozinha, tinha a sensação de não conhecer mais ninguém que
estivesse a passar pelo mesmo e não queria ser a única, pensei na reacção
das pessoas, sobretudo dos meus amigos e da minha família e tentei
convencer-me de que aquilo não ia voltar a acontecer, que tinha sido só
uma fase. Mas não era e eu sabia. Isolei-me e fui ao fundo, até chegar a
um ponto em que percebi que de facto não podia continuar assim.
Então, fui falar com uma amiga, fiquei a conhecer a rede ex aequo, fui-me
apercebendo que não estava sozinha, assumindo e, apesar das
dificuldades, acabei por perceber que me sentia melhor assim. Se por um
lado, há pessoas que se afastam, por outro acabamos por perceber quem
são os verdadeiros amigos.

Ana
17 Anos
#70

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Confusão? Não me parece
Durante muito tempo escondi a minha sexualidade. Não gosto de
dizer que sou homossexual porque assim estaria a excluir o sexo
feminino e não é que eu não goste delas, apenas sei que não sou
heterossexual. Custa-me dizer que sou bissexual porque há muita gente
que pensa que isto é tudo uma brincadeira, mas a verdade é que eu me
sinto atraído física e emocionalmente por pessoas dos dois sexos. Não
ao mesmo tempo, estou longe de ser promíscuo.
Ainda sou novo e por isso não ignoro o facto de mais tarde esta
dualidade deixar de existir, mas ao olhar para toda a minha vida vejo que
ela sempre esteve presente, por isso, porque haveria de desaparecer?
Muitos me disseram que isto era uma confusão da minha cabeça ou
me tentaram fazer ver que só gostava de um dos sexos, por vezes
deixavam-me confuso, mas agora sei que não importa o que sou ou de
quem gosto. Importa a essência de quem amo.

André
18 Anos
#13

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A menina...
Um dia quando acordei, percebi que existia uma realidade para além
daquela que eu me limitava a ver, ao princípio tentei fechar os olhos, e
abrir de novo, para ver se aquela nova sensação saía do meu
pensamento, mas não saiu, durante toda a manhã pensei que não poderia
ser assim que eu não queria entrar naquela outra realidade por mim
descoberta, fugi dela, como se ela me fizesse mal, escondi-me...
Limitei-me a mim, à minha pessoa, reflecti naquilo, que eu fui,
naquilo que sou, e naquilo que um dia gostaria de vir a ser, e cheguei a
uma conclusão, que deveria enfrentar os obstáculos que se opusessem à
minha escolha, porque no fim de contas ao depararmo-nos com duas
situações, temos de escolher uma, e viver com essa nossa escolha para
toda a nossa vida, e apesar de por vezes pensarmos que essa escolha não
é a mais sensata, nem a mais correcta, seguimos em frente tentando
enfrentar o destino que nós próprios criámos.
A minha história é algo normal, se bem que para muitos pode ser
chamada de ―anormal‖, a minha história pode não ser das mais
interessantes, mas para mim teve grande importância, a minha história
tem princípio, meio e fim e começa assim:
Era uma vez uma menina que vivia numa pequena aldeia, um meio
muito fechado, com mentalidades retrógradas, cheia de velhos e velhas

- 45 -
que se contentam a comentar a vida dos outros, de novos que dizem
mal, e de crianças que inventam. Apesar de tudo, essa menina era feliz,
não era pobre, tinha tudo o que queria, tinha o afecto dos pais, e a
atenção dos demais, essa menina era do tipo Maria rapaz, futebol era o
seu desporto favorito, passava a maior parte do tempo com os rapazes; a
menina foi crescendo mudando valores e atitudes, ponderando
comportamentos, uma vida normal.
Essa menina era eu.
Beatriz pode ser o meu nome falso, pode ser, não pode? Sei que
vocês não se importam, e pensando bem até que é um nome bem
querido, não vos minto na idade tenho 18 anos, sou novinha não sou?
Digam lá que sim, é a verdade. Não posso dizer que tenha grandes
experiências pois sei que ainda tenho muito para viver, acho eu. Não me
defino como homo, bissexual, ou heterossexual, pois detesto rótulos,
apenas vos posso dizer que gosto de pessoas. Através destes excertos
que vos escrevo, vão entrar no meu mundo, obvio que só tem a
oportunidade de conhecer uma pequena parte dele; já chega de
pormenores, não chega?
Continuando, conheci alguém com o nome, tonificado pelas azuis
águas do mar, e posso dizer que foi o meu primeiro grande amor, apesar
de ser apenas uma amizade, havia algo em mim que a queria consumir,
que a desejava, fiz possíveis e impossíveis por ela, mas nunca lhe contei
que o amo-te que lhe dizia era de facto aquilo que sentia; eis que surge
um dia nessa aldeia, por entre o bronzeado do sol, e a suavidade da
frescura, uma outra menina que me abriu os olhos, e que me fez
descobrir uma nova realidade, realidade essa que nunca tinha pensado
até ai, foi essa menina que me fez descobrir que eu havia realmente
amado a outra.
Essa menina veio mexer com os meus sentimentos poderia antes
dizer brincar com eles, veio tornar real algo que eu pensava ser pecado,
eu abri os olhos antes de pecar, por vezes arrependo-me de ter metido
um ponto final, penso como teria sido se naquela altura ela não namora-
se, resumindo: deu-me hipóteses nulas brancas, que eu pensava serem
reais, guardei-as mas foram em vão, ao menos uma coisa aprendi, uma
coisa disse, e aquilo que escondia ou não dizia, admiti; mas seja como
- 46 -
for nunca me esquecerei dela, pois a partir daí comecei a olhar o mundo
de outra forma.
E a partir daqui a minha vida muda de rumo, o meu pensamento
expande-se, os prós e contras desabam sobre mim, começo uma
pesquisa que me leva a procurar aquilo que realmente me satisfaz, desejo
e me faz feliz. Começo a ter medo, um certo receio, se deva falar, a
quem posso ou não contar ou simplesmente desabafar, tenho a sorte de
ter pessoas excelentes na minha vida que me apoiaram.
Nessa minha pesquisa encontrei muita coisa, muita gente falsa,
muitas pessoas hipócritas, que se fazem passar pelo que não são, meio
virtual é o que dá, há que se ter muito cuidadinho, mas foi através desse
meio que conheci alguém, por quem me vim a apaixonar, apaixono-me
facilmente tenho dito.
Ela foi a primeira, e com todas as certezas não foi uma qualquer,
com ela tive dos momentos mais intensos que até aqui senti, ela era de
longe, mas não foi isso que me fez desistir, fui ter com ela, e apesar de
terem sido apenas três dias, foram dias muito bem passados; depois, oh,
depois eu estraguei o resto. Confundi-me com os sentimentos, não tive
culpa, apareceu alguém para além dela, alguém que habita a outra parte
do meu passado, e apesar de eu não ter escolhido, alguém escolheu por
mim.
Ela foi decerto muito, houve tempos em que ainda quis que o
voltasse a ser, ela foi o realizar de um desejo, foi um sorriso na minha
cara, uma expressão quente da minha mão, mesmo que nunca mais a
volte a ver, mesmo que tenha deixado a maior parte de nós partir, vai ter
sempre o seu lugar em mim, e por determinadas razões nunca
esquecerei, a semente que deixou em mim, a sua flor.
Existiram outros amores, mas esses não têm grande importância,
foram fiascos, não chegaram a ser, esses não interessam porque não me
marcaram em nenhum sentido, existiram fortes pancadas, umas
concretizadas outras nem por perto, esses ficam só para enfeitar a minha
vida
Entre preconceitos, e mesquinhices eu arranjei uma forma de ser
feliz, tenho pena que a maioria das pessoas prefira tapar os olhos do que
olhar para a realidade; eu penso que se a vida nos concedeu várias
- 47 -
escolhas, vários caminhos, várias metas a atingir, foi por alguma razão,
pois se ela quisesse que fossemos todos iguais só teria traçado uma
hipótese de escolha.
E depois se ela nos concedeu essa tal palavra designada por:
liberdade foi por alguma razão, foi porque talvez quisesse que cada um
seguisse a sua, que cada um construísse o seu caminho da maneira que
achava melhor, que cada um construísse a sua vida, a sua liberdade.
Concluindo, a vida muda, muda-mos com ela, e a maior parte das
vezes, somos nós que a levamos a mudar; em mim as pessoas entram e
saem, cruzam-se, trocam olhares, ficam, dentro de mim as portas estão
sempre abertas, para quem quiser entrar, para quem desejar partir, e a
cada dia que passa, a cada minuto que se soma, aparece alguém que
desaparece.
Já não amo quem amei, já não os quero com a mesma intensidade,
outros porém continuo a querer, hoje tenho certezas, e agradeço por as
ter tido antes de algum erro ser cometido, mas uma coisa não muda,
pois continuo a amar cada alguém que me aparece, todos de forma
diferente.
Há um amor que não tenho dúvida, que vai morrer comigo na cova,
e quem nem lá me abandonará, um amor de cão, que nem os cães sabem
ter, um amor que eu vou querer sempre ter, um amor de uma amizade
tão profunda que é a tua, deixa-me amar-te, da minha maneira, como o
tenho feito ate aqui, dá-me um pouco do teu amor, como tens feito até
agora. Amo-te Lídia.

Beatriz da Costa ou não


18 Anos
#16

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Foi numa daquelas tardes
Era mais uma daquelas tardes de que ainda hoje tenho saudades:
calor, escola, desporto, amigos, diversão... e apenas 13 aninhos. Foi no
fim dessa tarde que o mundo "das pessoas que gostam de pessoas do
mesmo sexo" se tornou real para mim. Até lá essa realidade era apenas
um mito, uma sombra... até lá nunca antes tinha falado com "uma
pessoa dessas" (ou pelo menos que eu soubesse).
Ela chamou-me à parte, no fim de todos se terem ido embora, e
disse-me: "Inês, tenho uma coisa para te contar: no ano passado conheci
uma rapariga e apaixonei-me por ela." Pufff! Estava a espera de tudo
menos daquilo. Tentei agir o mais naturalmente possível, pois não queria
que ela se sentisse dalgum modo constrangida ou arrependida, e fui a
correr para casa com uma excitação que não compreendia muito bem.
Não sabia se era "achar piada", "não compreender muito bem o que se
passava", "curiosidade", "preocupação", "viver de perto algo fora do
comum"... o certo é que aquela novidade não me saía da cabeça e, junto
com ela, a preocupação de não melindrar a minha colega e ao mesmo
tempo querer saber tudo para poder perceber o que é "ser assim" e
como a ajudar (não a deixar de ser assim, mas ajudar no que ela
precisasse).

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Foi assim que tudo começou. Vieram os problemas relacionados
com a família da minha colega, a qual sempre apoiei da melhor forma
que sabia, enquanto tentava cada vez mais perceber e conhecer aquele
seu "mundo" e o ―mundo‖ de outras pessoas como ela; depois veio a
normalidade, tudo já era normal: nem ela nem outras pessoas como ela
me faziam algum tipo de "confusão"; veio então o "bichinho da luta
contra a discriminação", ajudar as pessoas (ou melhor, os meus colegas
de 14 anos) a perceber que ter amigos ou conhecidos, conhecer pessoas
homossexuais e conviver com elas não tem qualquer mal; surge a ideia
de fazer um filme sobre a temática, e com ele levanta-se a polémica entre
os pais dos meus colegas, entre os meus colegas, entre conhecidos,
entre... os meus pais, estes que diziam: "Não! Somos muito liberais, cada
um sabe de si, não há problema em haver pessoas homossexuais, mas...
mas talvez fosse melhor não se falar muito do assunto lá fora e não se
saber isso da tua colega, sabes filha? É um assunto complicado, e... e tu,
vê lá! Não confundas também tu as coisas!".
Aos 15 anos alguém se apaixonou por mim e, imaginem... era uma
rapariga! Eu, considerando-me heterossexual e não querendo deixar de o
ser só para "ir na onda"; só por agora não conhecer uma, mas 5 pessoas
homossexuais; só pelo facto das minhas melhores amigas se terem
descoberto há muito pouco tempo... rejeitei. Disse: só se gostar dela é
que me permito a me ―deixar ir‖ nesta ―aventura lésbica‖ (era assim um
pouco como via as coisas na altura)! Ora, e não é que podes mandar na
cabeça, mas naquele órgão que está sempre a bater, não!? E pois é, lá
estava eu, uma pobre recente adolescente a beijar uma rapariga que não
me saía da cabeça há já 3 meses... a partir de então a Homossexualidade
começou a fazer parte intrínseca de mim, como se sempre aqui estivesse
e nunca ninguém me tivesse deixado descobri-la com a calma que era
necessária e com o tempo que era preciso para perceber que de errado
não tem nada e que nela existe uma beleza particular que não está ao
alcance de todas as mentes.
Sim, claro! Claro que tive dúvidas, claro que primeiro pensei que
fosse só com aquela pessoa, mas que não era a minha primeira
tendência, claro que depois pensei que talvez pudesse ser bissexual,
claro, claro, claro ―isso tudo‖ pelo qual cada um de nós passa, e claro
- 50 -
que depois percebi que é o tempo que me dará a confirmação daquilo
que realmente acho que sou. E com essa maturação da minha
consciência e orientação sexual virão os primeiros passos para o ―coming
out‖, para a luta pelos direitos iguais para homossexuais, para a luta
contra a homofobia, para o projecto de uma família e trabalho, para uma
vida que poderia ser aquela que sonhei sendo ―antes‖ heterossexual.
Esse dia vai chegar. Posso até nem estar presente para o vivenciar,
mas outros saberão fazê-lo por mim… assim como eu o soube quando
me deram a oportunidade de usufruir daquilo por que muitos morreram
lutando.

Inês Lopes
18 Anos
#56

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O Erro… e a Redenção
Era uma vez um rapazinho pequenino e franzino que sempre fora
mal compreendido pelos seus parentes. O rapaz queria voar, sonhar,
viver, e os seus pais queriam que ele seguisse as pegadas da família, ou a
trabalhar por conta própria ou a jogar futebol. Mas o rapazinho queria
ser mais do que uma daquelas pessoas infelizes que não gostavam do
que faziam, e muito mais do que um dos vinte e dois loucos que corriam
num relvado feitos cães atrás de uma bola.
Quando chegou à escola, para espanto de todos, tornou-se
imediatamente o melhor aluno da turma. E assim foi durante 6 anos, até
que para a sua turma entrou um novo aluno. Esse seu novo colega
sentou-se ao seu lado, e imediatamente ficaram amigos, tão facilmente
como seria para outros dois rapazes da sua idade.
O rapazinho gostava muito do seu amigo, e começou a achar que
gostava mais dele do que ele de si. Olhava para ele a todo o momento,
brincava com ele sempre que tinha oportunidade, passava tardes com ele
a jogar consola porque apreciava aqueles momentos em que os dois se
deitavam apertados numa cama individual... até olhava para ele nos
duches depois das aulas de Educação Física.

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O rapazinho, na altura com 12 anos, não deu muita importância ao
assunto: tinha feito o seu primeiro amigo a sério, e se era assim que se
tinha um amigo, então ele sentia-se bem.
O tempo foi passando, os outros colegas foram chumbando de ano
ou mudando de turma, e os dois rapazes sempre ficaram ao lado um do
outro, sempre amigos. Aos 14 anos de idade, foram separados do resto
da sua turma e colocados numa turma completamente nova, onde não
conheciam ninguém. Aquilo só serviu para os unir ainda mais: já
passavam noites em casa um do outro, apoiavam-se mutuamente em
tudo, pareciam quase irmãos. Até descobriram o sexo juntos, na
Internet, e masturbaram-se juntos pela primeira vez. A partir daí, as suas
brincadeiras foram-se tornando mais sérias, dormindo juntos
completamente nus, acordando abraçados como dois autênticos irmãos.
O apogeu da sua amizade tinha sido atingido.
Quando chegaram aos 15 anos, o colega do rapazinho fez novos
amigos, dos quais o rapazinho não gostava nada. Fumavam, eram feios e
mal-educados e gozavam com ele constantemente. No entanto, o seu
colega, que tinha aparentemente conseguido manter a sua capacidade de
fazer amigos facilmente, começou a dar-se cada vez mais com eles, e
cada vez menos com o rapazinho.
Um dia, o rapazinho foi dar uma caminhada no recinto escolar
durante um intervalo, e cruzou-se com o seu colega a fumar com os
amigos. Trocaram um olhar, eles os dois, e os amigos do colega do
rapazinho aproximaram-se deste segundo e começaram a gozar,
oferecendo-lhe cigarros e uma pedra estranha que ele nunca tinha visto.
O rapazinho recusou tudo e afastou-se. Após dar seis ou sete passos, o
seu colega surgiu-lhe à frente, pedindo desculpa pelo comportamento
dos outros. O rapazinho disse simplesmente que ele estava a fazer coisas
erradas, que nunca imaginava que ele se tornasse uma pessoa assim, e
que tinha pena dele, porque nunca iria voltar a ser o mesmo, a menos
que deixasse de se dar com os outros. O seu colega calou-se, fechou os
olhos, e disse:
- Desculpa por tudo, mas é àquele mundo que eu pertenço agora.
E voltou as costas e afastou-se.

- 53 -
O rapazinho ficou calado, quieto, ouvindo apenas o vento a soprar e
o barulho dos outros alunos felizes a correrem pela escola. Oh, como ele
queria ser outra pessoa... que não sentisse aquele arrependimento, aquela
dor... aquela traição.
Os anos passaram, e o rapazinho perdeu o sufixo. Aprendeu a viver
com a dor, e transformou-a em boas acções. Aprendeu a fazer mais
pelos outros, independentemente de si próprio. Para quê receber, se se
pode dar? Para quê ser igual, se se pode ser diferente? Para quê odiar, se
se pode amar?
Este lema de vida seguiu-o, e para sempre o seguirá. Pois para ele o
bem-estar do mundo vem primeiro, e só depois o seu.

Leonardo Nascimento
18 Anos
#63

- 54 -
Remar contra a maré
Não há coisa mais dolorosa que lutarmos contra nós mesmos. Digo
isto por experiência própria, por ter passado quase cinco anos a negar
aquilo que sou. Tudo porque achava que não era normal, porque sentia
medo, porque não tinha ninguém a quem pudesse confessar o meu
segredo.
Sou bissexual e desde os treze anos que o sei. Da mesma forma que
comecei a sentir-me atraída por rapazes, sentia-me também por
raparigas. Sempre quis acreditar que era uma fase, que era uma estupidez
da minha cabeça. Tinha receio do que os meus pais diriam se soubessem
que também gostava de mulheres. E ainda hoje o tenho...
Ao fim de cinco anos de enorme sofrimento, onde fui namorando
com rapazes e tentando negar qualquer sentimento que nutrisse por
mulheres, decidi que a minha atitude tinha de mudar. Felizmente tive a
sorte de me cruzar na vida com pessoas que tal como eu sabiam o que
era estar nesta situação. Foram eles que me ajudaram a ser quem sou
hoje, a aceitar a minha sexualidade e acima de tudo a não ter vergonha
do que sou.
O meu próximo passo será assumir-me perante a minha família.
Para já sei que não o posso fazer pois não iria ser nada bem aceite e iria
correr muito mal para mim. Mas não deixo de sonhar com o dia em que

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finalmente vou poder ser verdadeira com todos. O armário é demasiado
sombrio para estar-mos lá escondidos. É o local ideal para arrumar-mos
as nossas roupas, mas não para fugir-mos ao que somos. Portanto o meu
apelo é: Deixem o armário, não é ao esconderem-se do Mundo que vão
ser felizes. Lutem pelo que são, lutem por um Mundo sem discriminação
onde todos somos livres de amar quem queremos.
"Todos diferentes, todos iguais."

Bathory
18 Anos
#81

- 56 -
O resumo da minha vida
Pelo que dizem, tenho jeito para criar contos cheios de felicidade e
de perfeição, mas desta vez, vou contar-vos a minha história, que, sendo
realidade, coloca a perfeição de lado. A felicidade lá aparece de vez em
quando, mas vamos ao que interessa:
Sou uma jovem de 19 anos, da ilha da Madeira, lésbica, que vos quer
dizer que ser homossexual, não tem (de todo), de ser a vossa pior
característica.
Deixo-vos, resumidamente, o que se passou comigo: tendo em
conta que o meu nível de auto-estima, rasava o chão, era preciso muito
pouco para me apaixonar por alguém. Iludia-me com facilidade. Era
magoada ainda mais facilmente. Os subtis elogios, os olhares, os
sorrisos; tudo servia para me prender. Os namorados foram poucos.
Simpáticos, atenciosos, queridos, eram capazes de tudo por mim, mas
por muito que tentasse não conseguia retribuir tal amor. Até um simples
afecto em público, e sentia-me a encolher na multidão. Uma coisa é ser
tímida, outra é sentir-me extremamente incomodada por ter um homem
a acariciar-me a face ou a pedir um beijo. Quando as dúvidas em relação
à minha sexualidade começaram a surgir, o facto dos rapazes com quem
tinha namorado serem sempre o que tinha procurado, ajudou a baralhar-
me ainda mais. Gostava do carinho, da atenção, mas passadas poucas

- 57 -
semanas desaparecia tudo (pelo menos da minha parte) e não conseguia
perceber o que se passava comigo, por estar a desprezar pessoas que
gostavam realmente de mim.
Até que, por volta dos 13/14 anos, a famosa paixão pela melhor
amiga, veio abalar o meu pequeno mundinho. Éramos colegas de turma
e o facto de ficarmos lado a lado só me ajudava a desconcentrar da
matéria em si. Físico-química. Nunca gostei muito da disciplina em si,
mas o facto de a ter ali tão perto, de sentir o seu perfume e não a poder
tocar… a química ―deu cabo do meu físico‖. Numa questão de dias, dei
por mim a auto mutilar-me, porque quando ela sabia, dava-me atenção,
preocupava-se comigo. Sim, nesse momento acho que a auto-estima já
tinha furado o chão.
O tempo foi passando e a atracção era cada vez maior, mas não
havia nada a fazer, ela era heterossexual. Fomos para escolas diferentes e
conheci outras pessoas. Para não variar, apaixonei-me por outra rapariga
(heterossexual também), e foi nessa altura que bati mesmo no fundo do
poço. Os dias deixaram de ter sentido, as noites pareciam infinitas. Ela
envolveu-se com um rapaz só para me afastar e para ajudar disse a todos
os supostos ―amigos‖ que eu gostava dela. Não foi preciso muito para
chegar aos ouvidos da minha mãe e ver-me sem chão novamente.
Os meses seguintes foram complicados, muito complicados. A
minha mãe queria levar-me a um psicólogo, na tentativa de me mudar ou
de querer acreditar que isto não passava de uma fase. Para fazer com que
tirasse essa ideia da cabeça, fiz uma das coisas mais estúpidas: voltei a
envolver-me com um rapaz. Sim, só para a minha mãe não me obrigar a
visitar um psicólogo. O problema era que a atracção sentida pelas
raparigas não desaparecera. Podia sentir-me atraída pela parte
‗emocional‘ dos rapazes, mas a física nunca existira. Com as raparigas,
constatava naquele momento, que existiam ambas. Enganar-me mais?
Para quê?
Milagrosamente, numa pesquisa no Google, encontrei o site da rede
ex-aequo (que apoia este projecto), e encontrei-me a mim também.
Nunca me esquecerei da data em que comecei a fazer parte desta grande
comunidade: 11 de Agosto de 2006. Porque uma das melhores maneiras
de conhecermos pessoas que estão a passar pelo mesmo que nós e que
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na maior parte das vezes, não se sentem à vontade para dar a cara: é a
Internet. Conheci pessoas que continuam a fazer parte da minha vida,
umas como meras conhecidas, mas várias como grandes amigas e até
―irmãs‖, que já tive o prazer de conhecer pessoalmente.
Enquanto o 11 de Setembro de 2001 ficou marcado pela queda das
torres gémeas, o mesmo dia, 5 anos depois, ficou marcado para mim por
ter dado o meu primeiro beijo a alguém do mesmo sexo. (Uma espécie
de prenda pelo 17º aniversário, 3 dias atrasada) Estúpido ou não, não me
consigo lembrar do primeiro beijo que dei a um rapaz. Como me têm
dito, se calhar a ideia era não me lembrar mesmo e ser especial quando
fosse dado a uma rapariga. E foi. Como se um misto de sentimentos se
libertasse naquele momento, como se pudesse ser eu, pela primeira vez.
Sem preconceitos, sem medos, sem rodeios. A primeira namorada
apareceu alguns meses depois, a primeira desilusão também. O primeiro
contacto a outro nível, chegou alguns meses depois e foi
simultaneamente estranho e proveitoso. A tal sensação de que somos só
nós, o resto do mundo desaparecera.
Desde aí, já magoei e fui magoada. Aprendi com alguns erros, voltei
a fazer asneira noutras situações. Dei segundas oportunidades. Quando
as pedi, não as obtive. Mas não me arrependo. Tudo o que fiz/me
fizeram, até agora, só me ajudou a tornar na pessoa que sou agora, que,
mesmo com defeitos, e apesar dos momentos de ―recaída‖, gosta de si e
se sente orgulhosa de não precisar de se esconder do mundo.
Ainda a recuperar de um relacionamento de 9 meses (que mais
pareceram anos, pelo que vivi e cresci), onde aprendi a amar, a respeitar,
a ouvir e a aceitar a outra pessoa, tal como ela é se quero ser aceite, onde
me entreguei de corpo e alma, acreditando ―estupidamente‖ que os
contos de fada existem e que iríamos viver felizes para sempre, um
relacionamento que deixou grandes e profundas marcas/cicatrizes,
como todos os primeiros grandes amores devem deixar. Mas há que
―ouvir‖ o destino, e se o nosso não era ficarmos juntas, não há nada a
fazer. Seguir em frente é a palavra de ordem.
Sei que tive muita sorte, porque tenho as melhores amigas possíveis
(que por acaso, são heterossexuais e sempre me estenderam a mão,
quando o fundo do poço se ia aproximando), mais sorte ainda por ter a
- 59 -
minha mãe, sempre a meu lado. Querendo sempre saber o que me vai na
mente e no coração, conhecendo as minhas ex-namoradas e
interessando-se sempre por querer saber mais, por querer fazer parte da
vida da filha. O meu pai nunca foi muito interessado na minha vida
sentimental, dai nunca ter surgido o momento do ―coming out‖, mas quem
sabe um dia…
Se estão naquele tipo de situação em que vivem com os pais (sendo
dependente deles) e têm namorado (ou mesmo não tendo), acima de
tudo, sejam vocês mesmos. Não façam a asneira de estar com alguém do
sexo oposto, simplesmente porque é o que a sociedade ―manda‖. Pode
(ainda) não estar preparada para nós, mas vai estar nalgum dia e é
exactamente o vosso apoio e coragem, que pedimos.
Porque daqui a uns anos, as pessoas que dão a cara agora, vão sair
do reino dos vivos e as que ficaram (vocês), precisam de ter coragem e
força suficientes para continuar com esta luta.
O arco-íris existe por alguma razão: para mim, vejo-o como o misto
de todas as pessoas, de todos os gostos, características e personalidades.
Se todos gostassem de azul, o que aconteceria às outras cores?
A nossa sociedade precisa de mais cor. Ajuda-nos a pintá-la e deixar
a nossa marca.
Porque somos todos diferentes mas, ao mesmo tempo, todos iguais.

Lady L
19 Anos
#54

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A minha Liberdade,
sou eu que a faço!
Quantas vezes dei por mim a dizer que a minha vida dava um livro?
Tantas vezes. Não dá propriamente um livro inteiro, mas aqui fica um
prefácio do que seria. Não sou de forma alguma egoísta ao ponto de
afirmar que apenas a minha vida daria um livro, até porque quando
falamos de homossexualidade, bissexualidade e afins, muitos de nós se
viram e vêem, em situações dignas de serem registadas ou, para alguns,
esquecidas.
A minha visão sobre tudo isto sempre se fez de forma bem simples
e objectiva. Não procuro tentar perceber o porquê. Não quero saber se é
genético, se está meramente relacionado com o fenótipo, se é uma
mistura dos dois, não quero! Quero saber sim que estou vivo e que
posso ser feliz. A felicidade não depende de ninguém, depende sim de
mim próprio e eu sei disso. Não precisamos gritar aos sete ventos quem
somos, o que somos, se não nos sentirmos confortáveis para o fazer,
precisamos sim, é de admitir para nós próprios o que somos e não fugir
constantemente como tanta gente o faz. Sempre partilhei o que sou com
quem quis, quem não sabe e tem dúvidas sobre mim, para sempre ficará
com elas!

- 61 -
Embora não tenha contado á minha mãe, ela encarregou-se de o
investigar. Mexeu no que era meu e leu coisas que nunca deveria ter lido,
contudo, não fui eu que a obriguei, por isso ela só sabe o que procurou
saber. São coisas de mãe, e provavelmente se algum dia for pai, talvez
faça o mesmo. Confrontou-me com tudo e foi um drama na altura.
Chorámos, abraçámo-nos, e durante um tempo foi tudo muito estranho.
Como não falamos mais do assunto acha que mudei, como se fosse
apenas uma mera decisão minha, enfim. Nunca lhe disse que tinha
mudado até porque o assunto morreu e ainda bem. Sinto que é algo meu
e que não tem de aceitar, embora a respeite e por isso mesmo na minha
opinião, prefiro que tudo esteja como está.
Os anos passam e não só vamos ficando mais velhos como
aprendemos coisas novas. Nos últimos meses conheci duas amigas que
acabariam por revelar-se bissexuais e para mim, foi um verdadeiro
"piadão". Já mais imaginaria que o fossem e divirto-me imenso com isso
porque também elas agem com naturalidade. Conversamos sobre o
assunto e tento perceber esse lado que para mim é totalmente novo.
Hoje em dia, há sem dúvida nenhuma uma maior abertura sobre estes
assuntos, não há tanto pudor e medo o que é extremamente positivo.
Também nestes últimos meses conheci um rapaz pelo qual senti
atracção desde a primeira vez que o vi e nem uma palavra troquei com
ele. Nos dias que se seguiram, até hoje, é tudo muito confuso. Faz tudo
para falar comigo. Inventa qualquer coisa para se meter comigo, desde o
meu cabelo, á minha idade, tudo! Trocamos olhares e, ás vezes, penso
como é possível ele dizer-me tanta coisa sem dizer uma palavra, mas
mesmo assim, continuo sem certezas se ele é ou não o que me deixa
confuso e provavelmente vou ficar com esta dúvida para sempre, mas
querem saber? Aqui está a piada toda! O descobrir, o procurar, o
arriscar, o fazer coisas que nos arrependemos, o imaginar, faz Tudo
parte, e se um dia nada der certo, é com essa lembrança positiva que vou
ficar.
Um dia alguém me disse uma coisa que nunca me vou esquecer, essa
pessoa não faz a menor ideia do que se passa comigo mas mesmo assim
as palavras que me disse acompanham-me até hoje. Ela disse que se uma
aranha, que é uma simples aranha é livre, porque é que nós não
- 62 -
podemos ser? Disse ainda, que a partir do momento que não sabemos
quando iremos morrer, o que pode acontecer a qualquer momento,
ninguém, mas ninguém mesmo, tem o direito de decidir a nossa vida!
Ninguém te pode dizer o que tens ou não de fazer, e ninguém te pode
condicionar! És tu, e um dia vais deixar de ser pois a vida é demasiado
curta, por isso, aproveita! É preciso que os seres Humanos passem a dar
mais valor ao que realmente é importante. Essa palavra, que faz tanta
confusão a tanta gente, é a Liberdade!

Colaço
19 Anos
#136

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Em busca da felicidade
Desde muito cedo senti atracção por pessoas do mesmo sexo que eu
embora continuasse a namorar com rapazes. Porque tinha medo de
assumir durante muito tempo escondi a minha orientação sexual.
Mas, era muito difícil viver como se nada fosse, porque estava a
minha felicidade em jogo. Então, um dia liguei para uma psicóloga com
quem me dou muito bem, desabafei e acabei por contar que era
homossexual.
Nessa altura estava a viver na Madeira. Essa psicóloga, que é uma
grande amiga minha, deu-me um grande apoio e incentivou-me a
assumir a minha sexualidade. Embora eu tivesse muito medo da reacção
da minha família, amigos e professores, segui em frente com o conselho
dela e acabei com os demónios que me seguiam.
Eu sempre tive um estilo mais masculino que feminino. Então as
pessoas abordam-me muito. Até quando estou na escola perguntam-me
se sou rapaz ou rapariga. Por vezes sinto-me mal por ser assim e por ser
tão olhada na rua mas tento perceber que é uma característica minha.
Sempre neguei que era homossexual, mas apaixonei-me pela namorada
do meu irmão e foi aí que achei que deveria dar importância aos meus
sentimentos, porque o que sentia por essa rapariga era muito forte.

- 64 -
Não correu bem, porque me custou muito a contar o que estava a
sentir e quando a via com o meu irmão sentia-me como se estivesse a
morrer. Inconscientemente tentei o suicídio, estava completamente
triste, não sabia a quem recorrer, pois afinal, ela era namorada do meu
irmão. Aquilo para mim era a pior experiência da minha vida, só queria
acabar com aquela tortura!
Tive muitas dificuldades para me aproximar dela, pois era o meu
primeiro amor, nunca tinha sentido nada assim tão forte. E quando
estava tudo a encaminhar-se, a mãe dela, apercebeu-se das minhas
intenções e afastou-nos. Custou-me muito a separação de uma pessoa de
quem gostava tanto. Mas sabia que tinha de seguir em frente.
Voltei para Leiria, cidade onde nasci, para ultrapassar o que estava a
sentir, e procurar uma nova vida. Comecei tudo de novo e tudo estava a
correr bem, comecei por me assumir aos meus amigos que me deram
um enorme apoio, e me aceitaram muito bem. Conheci pessoas novas,
mas novamente tive dificuldades em mostrar a minha verdadeira
orientação sexual.
Estive internada 3 semanas na parte psiquiátrica, com uma
depressão, porque como tenho um distúrbio bipolar, todas estas
mudanças afectaram um pouco o meu sistema. Mas quando saí, estava
pronta para que tudo corresse bem, e realmente tudo ia bem. Conheci
uma rapariga bissexual, com quem aprendi a deixar de ter vergonha do
que as pessoas pensam.
Hoje, namoro com uma rapariga da Madeira que conheci quando lá
voltei de férias, e estou muito feliz. Sinto-me muito feliz em ser
homossexual! Consegui vencer alguns demónios, e conquistar a
felicidade!

Nita Morgado
20 Anos
#15

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A descoberta
Apaixonei-me pela primeira vez na primária, pela professora da sala
ao lado. Achava inacreditavelmente lindo quando ela, distraída, prendia
os cabelos num coque com um lápis. Muitos anos mais tarde, era uma
amiga do colégio quem roubava toda a minha atenção. O meu fascínio
por ela durou o tempo do meu primeiro namoro (aproximadamente
cinco anos, com um rapaz), para arrefecer somente depois de alguns
anos sem nos vermos. Embora eu não espere que esta confissão seja
confortável para ele, faço-a sem remorso, pois sei bem que a culpa disto
ter ocorrido não é propriamente minha.
Jamais houve indício algum de que eu pudesse sentir-me
minimamente atraída por homens, mas, no entanto, fui de certa forma
forçada a negá-lo. Eis porque me vi a namorar com um rapaz na mesma
época em que as cobranças sociais de namoro começavam. Só me dei
conta que nunca seria capaz de me interessar por eles alguns anos
depois, já na universidade.
Devo esta descoberta à Vanessa e ao seu vestido. Não me lembro
do dia, nem do mês, mas jamais me esquecerei do momento em que ela
passou por mim e se baixou para apanhar um papel do chão, deixando à
mostra a perna pela fenda do vestido. A contemplação desta cena levou-
me a rever, em poucos segundos, mas que pareceram anos, inúmeros
episódios da minha vida que não tinha sido capaz de compreender até
então. Quando voltei a mim e consegui colocar a boca no lugar, corri

- 66 -
para a casa-de-banho e chorei. Não chorava de medo ou de desgosto.
Era de felicidade, de enfim entender tanta coisa que antes não fazia
sentido. Chorava por finalmente estar livre para ser quem eu sou.
Nesta altura já há alguns meses que estava sozinha; o namoro havia
terminado por motivos diversos. Decidi então ver se valeria a pena
tentar recuperar o tempo perdido com a Vanessa, que no meu entender
havia dado sinais de que talvez pudesse estar interessada. Depois de
algumas tentativas desastradas em sondá-la, percebi que me tinha
apaixonado. Mas era um pouco tarde para isso, porque ela estava a
terminar o curso e iria embora em breve. Quando de facto foi, vi-me
chorando pela segunda vez por sua causa.
Resolvi escrevi-lhe uma carta. Foi a segunda carta de amor da minha
vida e a primeira para uma mulher. A sua doce explicação de que me via
somente como amiga me reconfortou. Por isso, quando ela voltou e me
segredou que uma outra amiga, também chamada Lívia, lhe tinha escrito
uma carta romântica, não pude entender o que pretendia.
Desconfortável com o que me pareceu uma brincadeira de muito mau
gosto, questionei o motivo de estar a falar assim, se sabia muito bem que
a remetente era eu. Ao ver seu rosto surpreso e levemente pálido mudar
para um inesperado e adorável sorriso, perguntei-lhe onde gostaria de ir
naquela noite.
Foi neste mesmo dia que tivemos nossa primeira experiência lésbica.
Eu já não estava tão apaixonada, mas não foi menos memorável por
isso. E, se naquele momento eu ainda tinha esperanças de que talvez um
dia me pudesse sentir atraída por um homem, ela desfez-se num ápice.
Ainda somos amigas, embora desde aquele dia nos tenhamos visto
poucas vezes. Ela namora com um rapaz, e eu estou com a minha
Verônica há três anos, com muitos mais pela frente, espero. Não sei se
ela compreende a importância que teve no meu processo de descoberta.
Se sim ou se não, gostaria de ver aquele sorriso de novo, ao ler a minha
versão da história.

Lívia Maat
25 Anos
#22
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O outro, ela e eu...
Namorávamos há acerca de 2 anos quando o conheci.
Foi na tropa e a passos largos tornámo-nos os melhores amigos
naquele círculo de homens, sim homens, porque na altura as mulheres
na tropa ainda eram quase um mito.
Amizade que se preze tem a partilha de quase tudo e assim foi... um
dia acabamos por partilhar o nosso corpo, assim com a timidez à flor da
pele, os tremelicos de jovens que a moral de vida nos impedia de fazer
aquilo, mas que o corpo e a mente não rejeitavam e pediam mais e
mais…
Não muito mais aconteceu porque a vida militar separou-nos e
voltei eu à estaca zero, mas não ―zero‖ na sua totalidade, pois já tinha
tido o prazer de sentir um corpo igual ao meu, sentir sensações que
apenas eu eventualmente sentia no meu quarto, sozinho… senti com
outro alguém que por natureza, não sei, partilhava os mesmos gostos
que eu.
A minha namorada seguia o seu caminho a meu lado, e eu seguia o
meu caminho ao lado dela, não da mesma forma, para mim claro, mas
fazendo os possíveis embora com muita dificuldade, para que assim o
fosse, agia com naturalidade, enfim… era o mesmo eu, mas com a
cabeça baralhada, dividida.

- 68 -
Mais tarde – talvez uns dois anos; reencontrei o meu ex-
companheiro de armas, a minha primeira e grande amizade de foro mais
íntimo! Que sensação magnífica, que saudade que batia no meu peito, as
lembranças, a vontade, o desejo de o ter novamente, de o sentir junto a
mim, nu, suado, nervoso...
Após um café e longa conversa, era evidente a nossa cumplicidade, e
o desejo de voltarmos a estar juntos como outrora estivemos, e assim
foi, mas foi melhor, foi diferente, com mais vontade, com mais
voracidade, desejo...
Tínhamos que continuar – dissemos um ao outro, – ainda deitados e
exaustos. Tínhamos que viver juntos esta vida plena de felicidade, de
prazer, de amor, que já nos consumia há muito, era inadiável que assim
fosse, e assim foi.
Depois de uma longa e árdua conversa com a minha namorada,
depois de muitas lágrimas por ambos derramadas, passei a viver a minha
vida ao lado de quem realmente amava, de quem realmente me
completava e não tinha que pensar em mais ninguém quando estávamos
juntos, ao contrário do que acontecia quando estava com ela.
A vida dá tantas voltas e nem sempre corre da melhor forma e/ou
maneira que planeamos, por isso hoje em dia estamos separados, porque
a vida dele tomou outros contornos e a minha idem. Mas apesar disso,
guardamos a boas recordações de todo aquele tempo em que estivemos
juntos e aproveitamo-lo ao máximo. Hoje em dia brincamos com a
situação e recordamos os tempos em que na nossa opinião fomos
realmente felizes.
Em breves palavras, cá fica a história do outro, ela e eu....

António Freitas
27 Anos
#42

- 69 -
Caixa-de-óculos
1.
Lembro-me de ser miúdo. Devia andar aí no sexto ano. Lembro-me
da Edite. Não era cachopa recomendável sobretudo por ter entrado na
turma a meio do ano. De certeza que era a mãe que lhe vestia camisas de
golas bordadas com cerejas que assentavam sobre o casaquinho de
malha salmão já borbotado. Não lhe bastava ser rechonchuda e ter mau
feitio, também tinha jeito para os números e letras. Rapidamente ganhou
o primeiro lugar no coração dos professores e nos intestinos dos demais
colegas.
Sentada a comer uma carcaça de fiambre, foi abordada pelo chico-
esperto que num tom vingativo lhe recitava impropérios, sulcando
navalhadas nos aparentes pontos fracos da Edite. Num arranque ela
esbofeteou-o com um: ―Gordura é formosura por isso cala-te ó caixa de
óculos!‖. Ele de boca aberta e o recreio imóvel e em silêncio. Edite foi
incisiva e retirou-se numa atitude soberba abanando a caneca como via
fazer as dondocas das novelas brasileiras. Nem um pingo de vergonha.
Aquela Edite do recreio tornou-se no exemplo para todos de que as
palavras só têm a carga que lhes damos. De resto a Edite cresceu para se
tornar numa arrogante insuportável.

- 70 -
2.
A intelectualização pode ser um modo de nos aturdirmos.
Estudamos para não sentir. Decoramos outras pequenas lógicas na
busca de uma lógica maior que ponha a nossa vida em sentido. De
silogismo em silogismo procuramos um fio condutor que tudo ligue e
que no fim, por interpolação, nos permita posicionar no meio. Eu estou
aqui. Eu sou este.
Neste processo ficam as emoções de parte. Atrasam-se os afectos.
Solitários os intelectuais até se deixarem ceder às sensações. Depois dos
enganos as confirmações. O paradigma científico manda que a
experimentação possa confirmar a hipótese. Os registos confirmam,
revistos, uma e outra vez, testados por diferentes prismas, ensaiadas
diversas lentes, empilhadas caixas de óculos. Tudo aponta para uma
conclusão. É pá, és rabeta!
Lavado em lágrimas, mais de insegurança que de vergonha, lá disse à
Marta. Não ia dar mais. Que o problema não era dela, era meu. Mas aos
20 anos parece desculpa de mau pagador. Mesmo depois de lhe explicar
tintim por tintim não acreditou. Que não podia ser, que eu que não
parecia nada. Mas era… e tinha o dossier analítico para o provar. Não
sei se ela alguma vez o percebeu. Facto é que foi a última.

3.
Tive sempre uma coisa como certa; Se ia ser assim não ia mudar
grande coisa na minha vida. A grelha de valores católica pode ter
defeitos mas a cristandade que a sustém permite uma base férrea. Só tive
de adaptar um pouco e improvisar. O percurso de vida, os ideais de
relações humanas, a estrutura social, os objectivos profissionais, tudo se
manteve. Só que agora já não me importava que quem dormisse na
minha cama tivesse pelos.
As palavras só têm a carga que lhes dermos. Ecoava esta frase na
minha cabeça pensando que nunca queria estar nas botas ortopédicas do
caixa-de-óculos. Se rirmos de nós próprios desarma qualquer outro que
nos queira comprimir a espontaneidade, então eu havia de gargalhar.
Maricas, Rabeta, Picolho, Paneleiro, Bicha, Pandulo, Abafa-palhinhas,

- 71 -
Empurra-cócós. De tanto os repetir, dizer e ouvir esvaziaram-se de
impacto.
Na realidade, nunca tive um armário que considerasse estar dentro
ou fora. Algumas pessoas entram no círculo a quem eu pergunto se não
se importam que eu leve o Luís, o Vasco, o Pedro ou seja lá qual for o
nome do gajo. Há-de ser sempre com naturalidade que estes amigos me
ouvirão dizer que não os suporto, que não me sinto bem, que vamos ao
Paredes de Coura, que este é que é.
Nem há um ano fui forçado a usar óculos. Os meus primeiros, uma
desilusão. Não pela obrigação de os usar mas por ninguém reparar que
eu agora sou um caixa-de-óculos.

Luís Rhodes Baião


29 Anos
#112

- 72 -
As saudades são infinitas
As férias de Verão na aldeia sabiam sempre bem. Era uma maneira
de descomprimir do stress das aulas e dos professores, de todas as
responsabilidades que uma cidade nos põe nos ombros. Lá, na aldeia, o
tempo não corre. Os vales verdejantes aconchegam-nos o coração e a
alma. Os vales verdejantes e os teus cabelos ruivos. Um contraste quase
outonal. Ainda hoje os teus cabelos ruivos e a tua tez levemente sardenta
me atormentam o espírito. Éramos unha com carne.
Reparei em ti quando devíamos ter para aí doze anos. Na altura
éramos putos rebeldes e divertíamo-nos a jogar playstation nas tardes
soalheiras em tua casa. O sol era imenso e não dava para brincar cá fora.
Só saíamos à tardinha, quando começava a soprar o vento fresco de
norte. Já nessa altura eu gostava quando os teus braços roçavam ao de
leve nos meus, enquanto nos aconchegávamos no sofá estreito, em
frente à televisão, a ver o Jet Set Radio no seu skate maldito.
E os anos passaram. Um, dois, três, quatro. A nossa amizade foi
crescendo. Éramos melhores amigos naquela aldeia. Os outros rapazes
gostavam de ir para o rio ver as moças, jogar à bola e andar de mota. A
nós nada disso nos apelava e punham-nos de lado. Passávamos o tempo
a falar de jogos, de tecnologia, de música, de livros. E fomos crescendo,
lado a lado, solitários. No fim do Verão eu regressava sempre à urbe, ao

- 73 -
bulício, à confusão. E tu por lá ficavas resignado, cada vez mais só, na
tua aldeia. Soube que ultimamente os outros rapazes gozavam contigo e
eu não gostava disso. Chamavam-te ―cenoura‖, ―cagado das moscas‖ e
coisas assim. E tu fazias orelhas moucas a eles todos. Era uma alegria
sempre que me vias e vinhas logo para o pé de mim a correr. Íamos para
o miradouro, longe de tudo e todos, olhar o rio. Lá, abraçavas-me, e
agarravas-te a mim. Preguiçoso como eras, deitavas-te no meu colo e
deixavas que eu te fizesse festas, devagarinho, no cabelo. Enquanto
fechavas os olhos e dizias coisas muito baixinho e lentamente. E eu
olhava-te de cima e só desejava que o tempo nunca mais passasse.
Estava a ficar completamente apanhado e não havia retorno.
Neste último ano a tua mãe dera-te um telemóvel. Passaste o ano a
melgar-me com mensagens, às quais, eu respondia sempre, presto e com
carinho. Queixavas-te de um Inverno rigoroso e solitário que nunca
mais passava. De tardes e noites enfiado em casa só a jogar e a ler
porque não tinhas mais nada para fazer nem ninguém com quem falar. E
uma solidão que te começava a enlouquecer. Eu, na cidade, rodeado de
gente e facilidades. Mas cada vez mais só, também. Não me revia em
nenhum dos meus colegas que só se pareciam interessar por futilidades.
E sempre que pensava em amor não era uma moça que me vinha à ideia.
Eras tu. Tu, quem me aparecia sempre nos sonhos. Sonhava contigo no
meu colo, no miradouro, e em como, devagarinho, me baixava e tu
deixavas que os meus lábios tocassem nos teus. Ao pôr-do-sol. Era um
cenário perfeito. Era uma fantasia perfeita. E sobrevivi mais um ano
inteiro na cidade à custa dela.
Quando chegou a Julho reunimo-nos de novo. O Julho dos nossos
dezasseis anos iria ser mágico, pensei. Não podia ser de outra forma.
Tinhas crescido e criado alguma barriguinha. Nada que te afectasse. Era
mais qualquer coisa para apalpar e com a qual eu me podia meter. Tu
afastavas-te a rir e a dizer ―Pá, pára lá com isso‖, mas sem levar a mal.
No entanto estavas mais frio, mais distante. Apenas um pouco, mas
notava-se. Os anos iam tendo peso em ti. E a descoberta de ti mesmo
também. O que era natural, também me vinha descobrindo a mim
próprio. E nesta altura já não tinha dúvidas. Do que eu era, de quem eu
era, do que sentia. Mas o tempo ia passando e não havia novidades. As
- 74 -
mesmas brincadeiras de sempre, as mesmas conversas, era tudo bom,
mas sentia falta de qualquer coisa. Sentia falta de mais. De um passo, do
nosso beijo, do beijo que tanto imaginei. E de tudo o que se poderia
seguir. Mas tu não tomavas iniciativas e fechavas-te em copas. Uma vez,
em tua casa, quando jogávamos playstation, fui atrás de ti, espreitar-te, à
casa de banho. Não fiz por mal, tinha muita curiosidade. Tu reparaste.
Mas nada disseste. Baixaste apenas a cabeça e ficaste calado. Pareceste
ficar um pouco incomodado. Já te conhecia bem demais. Quando os
outros rapazes gozavam contigo era isso que fazias. Baixavas a cabeça e
fechavas-te em copas.
Outro dia, quando passeávamos na estrada, pus-te a mão no ombro
e comecei a apertá-lo ao de leve. Nada que não tivesse feito antes, que
não fosse natural entre nós. E tu nada disseste. Mas quando a dona
Arminda se aproximou, ao fundo da curva, mal te apercebeste da sua
presença, retiraste-me a mão. Foi um pequeno gesto. Muito subtil, que
ninguém notaria. Mas que eu notei e me deixou triste. Nessa noite tive
vontade de chorar. Parecia que te estava a perder aos poucos. Comecei a
entrar em turbilhão na minha cabeça. Não podia ser. A imagem do beijo
encorajava-me. De ti no meu colo. No dia seguinte levei-te ao
miradouro.
Mas não te deitaste no meu colo. Ficaste apenas calado com a
cabeça a olhar o longe. Coloquei as minhas mãos nas tuas costas e fiz-te
umas leves massagens. Mas tu não rolaste nem deste patinha. Não te
derreteste como era costume. Ficaste como uma estátua. Pus a mão no
teu cabelinho e afaguei-o. Virei a tua cara para a minha e disse apenas:
- Tenho algo muito importante para te dizer.
Os teus olhos cruzaram os meus e piscaram. Quase um esgar de
dor. Pareceram minutos infindáveis os segundos que me contemplaste a
tentar ler a minha alma. E quando acabaste de o fazer só fechaste os
olhos, a medo, retorquindo:
- Não sei se quero ouvir isto...
Mas já era tarde. Eu já ia embalado. Ou era agora ou nunca. Eu não
te podia perder.
- Acho que estou apaixonado por ti. Eu gosto de ti.

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Ficaste parado, sem reacção. Olhaste para o rio. Desviaste o olhar
de mim. Eu desinchei como um balão, mas quase tremia expectante.
Temi uma fúria desmedida. Pensei muito nisso quando antecipava este
momento. Podias ficar furioso. Mas eu tinha de arriscar. Porque ainda
acreditava que, no fundo, te irias render e eu iria ter o meu beijo.
Mas não. Nem ficaste furioso, nem eu tive o meu beijo. Limitaste-te
a levantar, baixar a cabeça e em silêncio desaparecer.
- Tenho de ir jantar...
Disseste com voz sumida.
E eu fiquei prostrado a olhar o vazio. Uma lágrima veio por mim
abaixo. Suspirei muito. ―Já está!‖ Pensei. ―Agora não há volta a dar‖.
Durante a semana toda não vieste à rua. Não apareceste. Não
respondeste a nenhuma mensagem. Nada. Um silêncio dilacerante. E eu
não tinha coragem sequer de te ir bater à porta. Passei a semana a comer
mal, a dormir mal. A minha avó achou que eu estava doente e resolveu
mandar-me de volta para casa, para a cidade. E eu concordei. Já não
estava ali a fazer nada. O meu paraíso estava um inferno. A minha
mente andava a mil à hora e não percebia, não conseguia compreender o
que se passava. Como tudo tinha mudado. E como tudo tinha ficado tão
difícil. No dia seguinte partiria. Antes porém passei por tua casa, tinha
mesmo de te ver. Com toda a coragem do mundo bati à porta. Abriu-a a
tua mãe. Sorriu-me como sempre, nela nada houvera mudado e disse-me
para entrar e avisou que eu estava ali. Entrei a medo e fui até à sala.
Estavas a jogar, como sempre, e nem viraste a cara para mim. Disse-te
apenas:
- Amanhã vou embora. Volto para casa.
Continuaste a jogar como se nada fosse. Nem estremeceste. Fiquei
impávido e chamei o teu nome baixinho. Acabei por murmurar.
- Desculpa...
Não sei porque o disse. Mas disse-o. Vacilaste. Senti uma pequena
reacção, uma palavra que finalmente penetrou a tua muralha silenciosa.
Muito baixinho murmuraste a custo e muito devagarinho, sempre sem
virar a cara.
- A minha boca é um túmulo... Faz boa viagem... E que tenhas
muita sorte na vida...
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Virei-me e parti com o coração destroçado. Mas ao mesmo tempo
aliviado. Se não me tivesse declarado ficaria para sempre a pensar no que
poderia ter acontecido. Assim, o assunto morreu ali. Nunca soube o que
realmente se passou. O que realmente iria na tua cabeça, se tinhas medo.
Porque antes nunca mostraras medo. Se gostavas de alguém. Como iria
o teu coração. Porque nunca te ouvira falar em raparigas. Nunca te
ouvira falar em ninguém. Ainda hoje conservo no meu telemóvel a
mensagem enviada meses antes.
- Quando vens para a aldeia? Já estou a ficar doido de estar aqui
sozinho. As saudades são infinitas...

André Abel Aaires


22 Anos
#9

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Foi assim...
Hoje e não ontem nem amanhã, porque ou seria tarde demais ou
prematuro falar disso, conto o que me fez viver intensamente o este dia.
Sou aquela de quem se pode dizer, alguém com uma vida normal (se
é que isso existe), que vive um dia-a-dia dentro das regras sociais...Uma
vida de casal! Um filho! Uma profissão de "valor"! Um grupo de amigos!
Uma família!
Era e sou agora essa mesma pessoa, apenas mudou uma coisa, agora
sou mais feliz e mais realizada...
Vivi durante os últimos 7 anos com um homem que me fez feliz,
dentro do que eu conhecia como felicidade e que me fez ver coisas que
não conhecia; com quem aprendi coisas, com quem partilhei muita coisa,
inclusive a vontade de ter um filho... Ao fim destes 7 setes anos achei
que algo não corria exactamente como queria…, não sabia bem o que
faltava mas a realidade é que algo não me preenchia, alguma coisa faltava
para activar a chama do amor, da vida, da força para continuar a viver...
e se houve tempos em que achei que a felicidade era aquilo agora já não
era assim... parti e fui...
Descobri entretanto que amor podia ter outro sexo...Não direi que
não foi estranho, porque estaria a mentir! O amor até então tinha o

- 78 -
rosto, o corpo e o desejo de homem e agora despertava em mim o
desejo por um sexo que era o meu... uma mulher!!!
Conhecia-a em situação adversa, com tantos entraves para a
possibilidade… e sem saber como, o que fazer, ou o que pensar, já
estava envolvida em tamanhos abraços e beijos... presa a um amor
impossível!!! Gostei, amei e pela primeira vez tive ciúmes da sombra que
lhe tocasse...O impossível revelou-se cada vez mais impossível.
E se muita coisa tinha mudado, uma não…, minha maneira real e
cuidada de ver o mundo e as relações...Vi, senti e sobrevivi a algo que
me consumiu e me fez sofrer...E depois disto o que há? Pensava eu...que
faço? Procuro um novo amor? Retiro-me do amor e faço a minha vida
celibatária?
Sinceramente não sabia...mas sabia que tinha de viver e assim não
conseguiria dar passo que sustentasse o peso do meu corpo.
Entre passos de descoberta do meu amor passado de prazo, ainda
na ilusão cega de uma possibilidade impossibilitada pela fraqueza de
espírito, conheci uma luz!
Uma luz que iluminava ainda muito pouco, e me mostrava, nada
mais que um túnel, tal amblíope!
Por entre sombras e desfocagens a minha imagem foi-se tornando
mais clara e mais forte, de cores realçadas e vi...vi uma mulher diferente
de mim, de pele mais branca, olhos grandes, cabelo escuro e olhar meio
retraído que me encantava. Que me fazia falar, sorrir e ser eu...Ser aquela
que desejava ser sem ter de fingir ser outra pessoa, que me deixava ousar
e pousar, que me deixava refilar e acalmar, que me deixava gritar e
chorar, que me deixava viver o dia-a-dia....
Conheci o amor verdadeiro e correspondido...que partilha e cresce
comigo a cada dia, que me fala, que me chateia mas me apazigua a alma,
que me faz sentir mulher e amada...
Aprendi tanto de mim...
Sempre defendi a causa da igualdade e dos direitos de todos, como
se de um ninho de cucos se tratasse...
Agora que me toca a mim, sinto-me com outra força, por ter mesmo
de ser assim e não aceitar ser de outro modo! Sou o que tenho de ser,
sou o que quero ser, sou assim com quem amo seja uma mulher ou um
- 79 -
homem e isso não muda o que sinto, apenas muda o que os outros
sentem quando vêem ou sentem e isso não me muda na minha posição...
Eu amo esta mulher e é com ela que quero partilhar os meus dias, os
meus direitos, as minhas oportunidades...
Se sou diferente é só porque os olhos que me vêem são diferentes
consoante o que vêem, porque eu já fui tão igual que ninguém reparava
em mim… e agora, serei assim tão diferente? Não...Não serei...de
todo...serei tão igual como num ninho de cucos: os que lá vivem serão
irmãos embora tão distintos uns dos outros!!!

Bárbara Ramires
30 Anos
#121

- 80 -
Rio por entre leitos
Descobri a vida numa relação homossexual, tarde mas em boa hora!
Ver a vida de um modo sagaz
como um tiro que nos entra pela culatra
que nos trai os argumentos
nos perturba a visão
social de uma vida de casal hetero...
Numa vida que se diz normal
numa coerência de vivências
de redor tal como o mundo era redondo para Galileu
e eu?
Não sou galileu...
Sou apenas eu
e tenho de andar e passar pelas atrocidades
de conjurado por ser assim
o tal ser diferente
e igual a tantos outros!
Sou apenas um rego que já não escoa
pelo menos num sentido de rio para mar
porque os rios nascem para correr de norte para sul
nem todos ...

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e não é por isso que deixam de se chamar rios
e eu?
serei menos humana por ser lésbica?
serei menos capaz de educar?
serei menos capaz de viver?
Por correr de sul para norte
Só porque é menos comum?
Não Rio é tanto o Tejo...que corre de norte para sul...
como o Sado que corre de sul para norte..
Sou um rio apenas...

Free Soul
31 Anos
#122

- 82 -
Três dias e um beijo
Três dias demorei a deixar-me ser beijado.
Ao primeiro, ao entardecer de um longo dia de Julho, brisa quente,
falámos. Falámos sobre tudo e sobre nada, uma dança que me era
estranha e ao mesmo tempo tão familiar, as nossas palavras lidas
directamente dos lábios, outras vezes entendidas nos olhos, nos
momentos, poucos, que tive coragem de o olhar directamente nos olhos.
Ao segundo, as palavras, um pouco mais familiares, deram lugar a
alguns silêncios, sem que no entanto deixássemos de falar. Mas quando
eu, inseguro, me recolhia já na minha carapaça, ele agarrou-me uma mão
e apertou-a na dele e mil anos de solidão morreram ali. E com esse
toque ganhei novo alento, as palavras, agora mudas, comunicadas entre
mãos, os meus medos, a minha excitação, a minha vergonha e o meu
consolo, num toque omnipresente, cálido, revigorante. Assustador. E
tão desejado. Demorou uma eternidade, aquele bailado de mãos, uma
eternidade que não queria que acabasse. E que, enquanto durou, mais de
uma hora – duas, três? – Me fez sentir pessoa. (Ainda hoje, ao lembrar-
me, toda a minha pele se arrepia e tremo, como tremi naqueles dias.)
Ao terceiro – que angústia esperar pelo terceiro! – As mãos e as
palavras falavam em uníssono, eu atrevia-me a sentir-me feliz, satisfeito
com aqueles momentos, sem sonhar com mais nada, eu não conhecia

- 83 -
mais nada. E foi, então, que ele me pediu – nunca palavras me foram tão
estranhas – se me podia beijar.
Aquele beijo mudou a minha vida. O toque de outro homem – de
outro rapaz, éramos pouco mais do que isso! – Mudou a minha vida.
Hoje, vivo com o meu companheiro, partilhamos casa e a nossa
vida, e todos os dias nos tocamos e acarinhamos. Completamo-nos.
Mas naquele Verão senti, pela primeira vez, que não tinha de ser só
metade. E ganhei coragem e força para tentar ser feliz.

Pedro Lérias
34 Anos
#40

- 84 -
Porque não sais da "gayola"?
Foi cedo que comecei a notar uma ―diferença‖ significativa em mim.
Tinha doze anos, apenas. Nesta idade as minhas amigas começaram a
sair do ―armário‖ delas, mas eu continuava fechada à chave no meu.
Começaram a surgir, por parte das minhas amigas, frases como ―que
gajo tão bom‖, ―não é lindo?‖, etc. Eu não ligava grande coisa a isso mas
concordava só para não desconfiarem que me sentia atraída por
raparigas. Vivia num teatro doentio todos os dias com tudo e todos à
minha volta e quando estava sozinha achava-me uma aberração. Não
gostava de mim assim e achava que ia perder o carinho e respeito de
todos aqueles de quem gostava. Pensava muitas vezes ―isto passa‖ como
se de uma doença se tratasse.
Os anos foram passando e eu cada vez gostava mais de raparigas do
que gostava de rapazes. Os anos passaram, sim, mas o sofrimento
silencioso persistia a toda a hora. Entretanto, em 2002 (tinha eu catorze
anos) soube da existência da rede ex-aequo – associação de jovens
lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros e simpatizantes - mas não tive
coragem de me inscrever e continuava com a ideia de que esta ―doença‖
talvez passasse um dia. Não passou.
Aos quinze anos senti necessidade de falar com alguém com a
mesma ―doença‖ que eu. Finalmente inscrevi-me no fórum da rede ex-

- 85 -
aequo. Precisava de desabafar e de aprender a lidar com esta situação
pois estava farta de viver para dentro. Mas a ―mania da perseguição‖
persistia e eu no mundo real continuava a dizer coisas que não sentia só
para disfarçar. Na rede ―conheci‖ virtualmente pessoas que me deram a
conhecer outros pontos de vista. Afinal percebi que há muitas pessoas
como eu e que não sou um erro à face da Terra. Percebi que se calhar
podia ser como sou.
Mais tarde fiz a revelação a um ente querido que me conseguiu
deitar abaixo. A mim, a tudo aquilo que eu era e a todo o meu ―pouco
orgulho‖. Não me apoiou. Senti-me mal, senti-me outra vez uma
aberração. Revoltei-me, também, por ter de ser alguém que não era.
Contudo, pude contar com o apoio das pessoas virtuais que me disseram
que esta primeira reacção e esta negação são normais mas que depois
tudo vai mudando aos poucos. Foram estas pessoas que me ajudaram a
dar um longo passo na minha vida… e eu não as conhecia de lado
nenhum.
Inicialmente foi esta rede virtual, depois foram os contactos nas
reuniões - que não são reuniões de ―engate‖ nem nada que se pareça,
mas que são reuniões onde cada um expressa a sua opinião sobre um
determinado tema que tem, geralmente, a ver com homossexualidade e
onde se aprende imenso – que me ajudaram a querer dar o saltinho para
fora do armário.
Depois de cambalear mais um pouco dos dezasseis aos dezoito anos
pude finalmente crescer. Crescer como pessoa e como homossexual.
Isto deu-se quando saí da ―santa terra‖ para estudar em Coimbra. Já a
minha psicóloga me dizia que aquela terra me sufocava e era verdade.
Sufocava e sufoca cada vez que lá vou, porque lá os teatros continuam –
embora ligeiramente. Aqui comecei a acordar e a perceber que a vida é
demasiado curta para ser vivida em função dos outros. A vida tem de ser
vivida sem teatros, porque se fazemos teatros em volta daquilo que
somos nunca chegaremos a lado algum, pois sem gostarmos de nós não
teremos confiança para fazer o que quer que seja. Hoje sei que a pior
coisa que fiz foi ter sido rejeitada por mim própria. Ser rejeitada pelos
outros aguenta-se bem, mas por nós mesmos?

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Actualmente tenho vinte anos e lido bastante bem com a minha
homossexualidade – até brinco com esta questão e ―gozo‖ comigo
mesma. Sou aceite por muitas pessoas, essencialmente pelos meus
amigos e amigas. Afinal de contas gosto de pessoas…e isso não é
anormal!
Houve quem tivesse achado a minha homossexualidade uma fase,
quando eu tinha a certeza daquilo que queria e gostava. Quando há
pouca informação as pessoas tendem a achar estas coisas (e coisas muito
mais estúpidas, como todos sabemos). Eu estou consciente de que é
assim que devo ser – livre – porque é aquilo que sou sem inventar.

Daniela Coutinho
20 Anos
#14

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Perdido em Lisboa
Eram quase horas de jantar e tudo se apressava para que o dia
terminasse da mesma maneira de sempre. O Tiago engolia a comida com
alguma pressa para estar sempre na mesma hora lá no bar da terra onde
se podia encontrar sempre com os amigos do costume. Estava tão farto
daquela vida de dar a entender aos outros que era heterossexual que se
tornava já um dia a dia enfadonho, triste, frustrante. As perguntas de
quando é que arranjava uma namorada eram repetitivas e as desculpas,
essas, eram cada vez mais desesperadas. Tudo acabava com o regresso a
casa a pensar nos amigos ―homens‖ que cada vez mais lhe mexiam com
o seu eu interior. E no outro dia o mesmo, e assim por diante ao longo
de dias, meses e mesmo até alguns anos. Os encontros da internet,
marcados em terriolas próximas, eram o que o satisfazia, eram esses os
momentos que lhe davam aquele prazer escondido e que parecia ser um
segredo que jamais poderia vir a ser descoberto. Mas o cansaço de uma
vida escondida e falsa levou a que numas férias em Lisboa e depois de
pesquisar na Internet que o mundo na cidade seria bem melhor e mais
fácil de sustentar a nível de exposição como homossexual que era, levou-
o a tentar ficar na capital. Duas semanas de férias em casa de um familiar
passaram a ser uma correria à procura de um trabalho que lhe servisse de
pretexto para não voltar à terra. Estava desempregado, e porque não

- 88 -
ficar na grande cidade se ali poderia ter um trabalho e um ―ganha-
pão‖… Uma desculpa mais que válida para poder entrar neste mundo
bem mais aberto que era o mundo gay em Lisboa. Tantos bares, tantos
locais onde conhecer pessoas, tantos olhares trocados pelas ruas, tantos
toques propositados nas discotecas, tudo e tanto que alegrava os olhos
de alguém que até então estava habituado a esconder, chorar, e guardar
as mágoas para si de uma forma sufocadora e persistente. Quando
pensava estar sozinho, quando pensava vir a passar os seus dias numa
vida escondida, dentro do tal armário escuro e onde nada poderia vir a
ser bom, uma luz apareceu na sua vida. Uma entrevista numa loja de
música foi a oportunidade que surgiu de ficar e poder conhecer este
novo mundo que lhe estava a surgir pela frente. Alguns telefonemas,
uma ida á terra para trazer roupas, combinar com a família de Lisboa de
ficar em casa da mesma até arranjar um cantinho só seu e tudo estava
pronto para começar desde o ponto zero. Uma nova vida pela frente,
uma nova caminhada parecia estar a surgir. Dia a dia a procura e a
exploração foram cada vez mais intensas. Todos os sítios foram
pesquisados ao pormenor. A chegada à cidade era tão recente que tudo
era novidade, tudo era um desejo imenso de conhecer todos os cantos
que poderiam ser frequentados por homossexuais… Meu Deus e se eles
eram tantos! Lá na terra ninguém iria dizer se ele contasse uma coisa
destas, que existiam bares virados mesmo para os gays e para todas estas
culturas que não seriam aceites por ninguém que o conhecesse na
terrinha de onde provinha. Se os havia na sua terra, e porque ele sabia
que isso lá existia e bastante, tudo se escondia de tudo e de todos como
se de um pecado se tratasse, mas na cidade era tudo tão diferente…
Estava contente de ter ganho coragem e de ter ficado. Umas simples
férias de uma ou duas semanas na capital deram com ele á procura de
trabalho em Lisboa para ficar. Os velhos tempos em que ainda tentou
meter na cabeça que gostava de uma rapariga lá da vila mas em vão,
tinham ficado para trás. Era tudo parte do passado… Não passava de
simples gostos momentâneos. De pretextos para esconder o seu
verdadeiro desejo. Coisa estranha olhar para uma rapariga e tentar meter
na cabeça que aquela sim é a mulher da sua vida e depois olhar para o
rapaz do lado e entender que aquela personagem é que mexia como um
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certo ―bichinho‖ dentro do seu corpo, que era dali que vinha um desejo
imenso de poder explorar aquilo que até então era tão proibido e
escondido. Não isso não era decerto a vida que ele desejava e merecia.
Os dias foram passando e as idas à terra foram cada vez menores,
embora também a solidão se abatesse dentro dele por estar ao mesmo
tempo dentro de um mundo com tanta gente que era a cidade e o
mundo gay de Lisboa, mas também tão só sem poder falar com pessoas
amigas, sem conhecer ninguém, sem ter ninguém dentro das suas 4
paredes. As pessoas eram reservadas, falavam pouco, falavam num dia e
no outro pareciam não o conhecerem… Agora á noite os amigos do bar
lá da vila já não estavam presentes, eram parte do passado. Enfim,
também era um passado para não recordar no futuro. Agora eram outras
pessoas que ele tinha de conhecer. A internet e os perfis para encontros
foram o ponto de princípio para arranjar um círculo de amigos virtuais
que pudessem satisfazer as suas necessidades e que pudessem de alguma
forma ser as suas companhias quer pessoalmente ou não. Tudo em
pouco tempo foi descoberto, tudo em pouco tempo passou a ser feito,
muitas vezes até ―sem cabeça‖, mas foi assim mesmo que foi feito. A
vontade de recuperar aquilo que se perdera em vários anos de vida era
maior e bem maior que tudo. Não existia sentimentos, não existia
preocupações com nada, mas apenas o desejo imenso de poder viver
cada dia como se fosse o último. Mas com o passar do tempo a
necessidade de ter alguém a seu lado para uma vida mais definida e com
cabeça, passou a ser também um ponto importante para si. A falta de
alguém nos seus braços de modo a partilhar todos os momentos, os
bons e os maus como se diz no típico casamento heterossexual, eram
uma necessidade cada vez mais marcada. Lutou para ter o que era seu e
já numa casa alugada e com a pouca mobília que tinha comprado com o
mísero ordenado que ganhava na tal loja do centro comercial com algum
esforço, começou a frequentar os locais dito homossexuais, não á
procura de sexo ou de divertimento, mas sim de uma pessoa para amar,
de uma pessoa para partilhar tudo o que de bom a vida tem.
Desesperadamente os dias foram passando, passando, e ao final de um
ano e pouco de procura, de sentimentos tristes e alegres, de vontades
carnais e não só, de momentos quentes e frios, conheceu um rapaz num
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bar de Lisboa através de um amigo comum aos dois. Nada parecia ser
mais do que aquilo, nada parecia ser mais do que uma conversa de bar,
mas no final e quando já se preparavam para regressar todos a casa
combinaram um café no dia seguinte no chiado e convidaram-no para
estar presente. Feliz, disse que sim e no dia seguinte e à hora marcada lá
estavam todos conforme combinado. Era uma mesa de cinco pessoas,
uma alegre conversa que se foi desmoronando pelo afastamento de
quase todos os elementos do grupo. Um porque avistou um amigo e
decidiu ir com ele a outro local, outro porque estava com pressa, outro
porque estava cansado e que tinha de ir para casa e ali ficou o Tiago mais
um rapaz apenas… O Paulo. Tinha-o conhecido no dia anterior e por
sinal não tinha tirado os olhos de cima da sua pessoa. Dali, já sozinhos
os dois partiram para um cinema, combinação inesperada no momento e
onde estranhou ficar a sós com um elemento do grupo e onde deveria
acontecer um cafezinho de cinco jovens e não de dois. Mais tarde
apercebeu-se que tudo tinha sido propositado. O afastamento dos
outros três recentes conhecidos foi combinado para que Paulo ficasse a
sós com ele e pelos vistos com sucesso garantido. Quando o filme
terminou e em conversa de despedida descobrem que vivem os dois
bem perto um do outro. O Tiago numa casa alugada segura pela ajuda
do subsídio de governo aos jovens e o Paulo na casa dos pais. No dia
seguinte voltaram a ver-se. O desejo imenso de ter um namorado e o
favorecido interesse demonstrado por Paulo levou a que Tiago o pedisse
em namoro. Um acto rápido e sem muitos ―porquês‖ O pedido foi
aceite e começou uma história diferente, uma vida dupla que ele bem
ansiava. Os dias foram passando e o desejo de virem a morar juntos
tornou um pouco as coisas mais difíceis. Aquilo que era o seu maior
desejo era agora um grande problema a resolver. A família de Tiago que
de vez em quando vinha da vila era um impedimento para que mais
alguém tivesse a morar lá na casa alugada. Forçosamente foi provocado
pela parte de Tiago um afastamento dos familiares para que a sua vida
não voltasse a ser um tédio e um controlo total das passadas que dava.
O condenar de uma saída até tarde, o controlar de todas as atitudes e
mais grave que tudo o não poder olhar para um rapaz sem ter que
esconder a ninguém para quem estava a olhar, não iria ser mais uma
- 91 -
proibição. Foi o perder de uma família aos poucos que hoje em dia
quase não passam de uns simples conhecidos… Uma tristeza, mas uma
realidade na vida de um rapaz que para ser feliz ao lado da pessoa que
ama teve de se afastar dos que o criaram, dos que o trouxeram á vida, de
duas pessoas que lhe deram momentos doces e ao mesmo tempo tão
amargos que foram os avós… Mas uma família não é igual a todas as
outras e Paulo ao contrário de Tiago tinha um mundo de volta dele.
Pais, irmãos, tios, primos uma família que o aceitava como era, e que
veio substituir a família do namorado da qual teve de abdicar para poder
ser feliz. Já passam sete anos desta união simples e maravilhosa que tirou
a vida familiar de certo modo a um dos elementos que perdeu duas
pessoas retrógradas e que hoje lhe dói de dizer que são a sua família e
passou a ter uma outra de inúmera gente que o apoia e lhe dizem que
gostam dele por que ele é diferente. É bom para ele ouvir isto, é bom
para ele saber que o facto de amar alguém do mesmo sexo não é
impedimento para que um mundo de gente o acolha e lhe dê aquilo que
a própria família lhe deveria ter dado… Tinha agora o apoio, a liberdade
para sair do armário e respirar ar puro e não o mofo de uma vida
insegura e escondida. Perdeu duas pessoas, vieram dezenas… Foi-se a
tristeza, nasceu a alegria… Que bom foi ter o armário do seu coração
aberto…

[Esta história é verdadeira. Esta é a historia de Tiago (pseudónimo), que


lutou para ser feliz. Perdeu dois familiares que o criaram e ganhou um batalhão
de gente que o ama como ele é. Tem uma relação de vários anos e é feliz. O
nome é fictício para proteger a sua privacidade.]

Rui Cláudio Dias


33 Anos
#86

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E AGORA?

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Reacção fantástica
Descobri a minha verdadeira orientação sexual há cerca de 2 anos.
Sempre a vivi sem a partilhar com os meus amigos mais íntimos, pois
esses eram os que tinha receio que se afastassem ou que reagissem mal.
A Ana é aquela amiga, como que irmã mas velha, com mais 8 anos
que eu, a quem sempre contei tudo, com quem desabafava e que sempre
me ajudava em tudo. Mas este meu "segredo" não tinha coragem de lhe
contar pois tinha medo que ela reagisse mal e contasse à minha família,
ou que a sua forma de agir perante a minha pessoa mudasse.
Mas a cada dia que passava a necessidade de lhe contar aumentava,
pois precisava de alguém verdadeiramente amigo para desabafar sobre
esta nova etapa da minha vida, sobre as pessoas com quem estava. Mas
na hora faltava a coragem.
Durante cerca de um ano vivi na "amargura" de viver esta nova
etapa sozinho, sem ninguém verdadeiramente amigo para falar, para me
aconselhar, uma opinião de alguém mais velho Confesso que foram dias
muito complicados, beijar um rapaz pela primeira vez, envolver-me
sexualmente com uma pessoa do mesmo sexo, perceber que de facto era
homossexual tudo isto que nunca esperava ter, tive que viver sem ter
alguém a quem contar. Necessitava de apoio e não tinha. Tudo isto

- 95 -
porque a sociedade ainda não tem uma mente aberta o suficiente para
estas situações e então receava as reacções das pessoas que mais gostava.
Cerca de um ano depois de descobrir a minha verdadeira
sexualidade, fui de fim-de-semana a casa e a Ana também estava na
"terrinha" Fomos beber café depois de jantar, pedi-lhe para irmos à
beira-rio e quando chegámos comecei a ouvir o barulho da água a bater
nas pedras e ganhei coragem, tudo saiu naturalmente. "Tenho uma coisa
para te contar, descobri que sou gay e ando envolvido com um rapaz já
há algum tempo". Depois de deixar estas palavras fluírem fiquei com
receio do que ela iria dizer, mas qual não foi o meu espanto quando vejo
que a resposta a esta confissão foi "Ai é? Está bem, és o meu mano na
mesma, é preciso é ter juízo". Foi um peso que saiu de cima de mim,
senti-me uma pessoa completamente nova Finalmente tinha alguém de
confiança com quem falar.
De seguida claro que me bombardeou com perguntas, tais como:
"Como é o rapaz?", "Como o conheceste?", "Já foste para a cama
com ele?", "Usam sempre protecção?" etc.… Coisas de alguém que nos
quer bem.
A partir daí tudo mudou, sempre que preciso de falar sobre este
ainda meu "segredo", já tenho a quem recorrer. Quando preciso de um
fim-de-semana diferente lá vou eu ter com a Ana para rirmos, sairmos e
matarmos saudades. Já é tudo tão normal para ela que até já vai comigo
para locais Gays.

Dany_Neko
17 Anos
#20

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Verdadeiro Eu
Os sinais da adolescência tornavam-se cada vez mais evidentes. O
espelho revelava um eu que desconhecia, não porque estivesse diferente
do que sempre fui, mas porque tomava consciência de mim próprio.
Faltava-me antes a maturidade necessária para compreender, agora
que racionalizava o que sentia, evitava questionar tudo. Talvez não
quisesse saber ou descobrir algo que me causasse dor.
Mas há revelações que não se detêm, os dias não param, e a minha
adolescência foi mesmo isso, o início da capacidade dos meus
pensamentos se começarem a aproximar do meu verdadeiro eu. Talvez o
início da construção das condições para a minha felicidade.
Feitas descobertas inevitáveis, deparei-me com a decisão consciente
de enfrentar a verdade ou ignorá-la. Mas não há como esquecer quem
sou, isso é absoluto e constante, é mais do que próximo a mim, sou eu.
Já notaste que quando alguém te fala de amor te conta como é
natural, íntimo e simples?
Quando se tornou inegável para mim que era homossexual, tive de
enfrentar sozinho as afirmações negativas que tinha ouvido ao longo da
minha vida. Seria natural o que sentia? Todos à minha volta afirmavam
que não. O primeiro passo para um amor, e para me amar, mostrava-se
um degrau que precisava de enorme crescimento da minha parte, para
ter a altura necessária para o subir. Não que pretendesse estar mais alto
que alguém, apenas queria estar ao mesmo nível e não me sentir tão em
baixo.

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Com o passar dos dias, procurei por alguém que me mostrasse que
não era o único, que não estava doente, que era possível amar da minha
forma, porque sabia ser impossível para mim amar como todos diziam
que devia. Foi um longo caminho até perceber que o que sinto é natural.
Se lutamos tanto para mudar uma característica nossa e nunca
conseguimos, é porque naturalmente faz parte de nós. O amor é natural
em mim.
O próximo passo foi procurar intimidade conhecendo pessoas
como tu, com qualquer orientação sexual, que me compreendam ou que
pelo menos oiçam e respeitem. Não foi simples, o medo de que pessoas
próximas a mim ficassem a saber a verdade era mortificador. Apenas a
Internet me permitiu o contacto anónimo: pessoas que me conheciam
há meses, sabiam agora mais sobre os meus anseios e sobre quem sou
do que aqueles que mais amo. Era triste. E a exteriorização da tristeza
originou isolamento. Comecei a afastar-me dos meus pais, dos meus
amigos, da vida. Refugiei-me na escrita, na música, e nas conversas com
pessoas que mostravam empatia com aquilo que partilhava.
Enquanto não me aproximasse novamente dos que eram
importantes para mim, não conseguiria amar.
Uma noite, peguei no martelo para partir a parede construída.
Esperavam-me escombros.
Decidi contar aos meus pais o que vinha sabendo ser verdade há
anos. Sabia que os ia desiludir, que ia sofrer retaliações, que uma simples
revelação, um acrescento àquilo que sabem que sou, ia pôr em causa
tudo. O que eu era, quem eles eram.
(O momento da verdade foi insuportável, proferi as palavras
caladas, que ditas, tinham destruído tudo). Uma destruição com efeitos
devastadores, em mim e nos meus pais que diziam não mais me
conhecer.
"Se quiseres podes mudar, eu sei que estás confuso, mas basta
quereres...".
Tentei dizer-lhes que já tinha ultrapassado a minha confusão, que já
tinha tentado mudar com todas as minhas forças. Eles não ouviam,
estavam cegos de desgosto, raiva e preconceito.

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As retaliações passaram com o tempo a silêncio. Se no início me
queria aproximar, agora sentia-me tão ferido que desejava novo
afastamento. Estava cansado de anos de sofrimento passados comigo
próprio, já não me sentia preparado para suportar o sofrimento dos
outros.
Não devemos ter de fazer escolhas assim: somos felizes, ou são os
que amamos? Como escolher se eles fazem parte da nossa própria
felicidade?
Estamos condenados a nunca ser felizes? Hoje sei que não.
O afastamento, apesar de conturbado, mostrou-se importante. Os
meus pais começaram a compreender que o preconceito poderia levar a
um abandono definitivo. Isso fê-los repensar a importância dos seus
actos e informarem-se. Será que o preconceito é assim tão sólido e
importante que justifique o fim da relação com a vida deles? Foi muito
difícil para mim e para eles voltar a sentir orgulho, voltar a confiar,
perceber que tinha crescido mas que continuava a ser o filho que
educaram com todo o seu amor, e da melhor forma que souberam.
Não quero ir contra a sua felicidade, apenas construir a minha.
Durante os últimos anos tenho-o tentado fazer. A fase de
afastamento terminou, a relação com os meus pais voltou ao normal, os
amigos que fui conhecendo em diferentes circunstâncias convivem agora
juntos, amo e sou amado. Estou finalmente de bem comigo próprio.
Progressivamente tudo se tem tornado mais simples, como o amor deve
ser.
Só o mundo à minha volta continua a complicar o simples, a tentar
separações e a construir muros que não existem. Portanto, meu amigo,
falo-te na segunda pessoa do singular porque quero que não consideres
que pertenço a uma realidade afastada da tua, ou que te pode ser
indiferente. Procuro o mesmo que tu, ser feliz, nisso, e em muitas outras
coisas, somos iguais.

Eu
21 Anos
#80

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Mais uma história
Não, esta história não é sobre a vida de uma amiga minha que
namorava com mulheres, é a minha história mesmo e acho que começa
na escola primária…
Na altura era apaixonada por uma telenovela brasileira que tinha
como personagem a Simone. Eu andava na quarta classe e, no recreio,
havia uma rapariga da terceira igualzinha à personagem interpretada pela
Fernanda Torres. Ainda hoje não sei o nome da Simone que marcou a
minha infância e que com este nome ficou gravada na minha memória.
Só me lembro que quando brincávamos às ―caçadinhas‖, como se diz
aqui no Norte, deixava-a ganhar sempre fingindo que não a via até ela
me apanhar…
Entretanto, depois de cómicos episódios em que assinava com o
meu nome em versão masculina e incessantes tentativas de ir à casa de
banho de pé como o meu irmão, chegou a adolescência e tive uma
montanha de namorados. Era muito popular na escola e, às vezes, até
namorava com vários rapazes ao mesmo tempo. Não fazia, por isso,
ideia dos motivos que levavam as minhas amigas a sofrer tanto por causa
dos namorados, até que, um par de anos mais tarde, me apaixonei.
Passava os dias a pensar nela e as noites acordada para lhe telefonar de

- 100 -
madrugada sem que ninguém em casa ouvisse e como vivia ansiosa pela
sua chamada e vivíamos na era pré-telemóvel, contei à minha irmã mais
nova para que prestasse atenção ao telefone lá de casa e me desse todos
os recados. Foi nessa altura que lhe perguntei se se importava por ela ser
uma mulher e a minha irmã, com os seus doze anitos, respondeu com o
seu bom-senso habitual, que não fazia mal nenhum, desde que os
amigos da escola dela não soubessem.
Claro que este primeiro louco amor acabou e seguiram-se outras
paixões avassaladoras… incontornavelmente por mulheres. Foi aí que a
restante e enorme família soube e, afortunadamente, nunca reagiu, pelo
menos, muito mal. Alguns atritos iniciais deram lugar, e desculpem-me a
redundância, à naturalidade face ao meu natural comportamento. A boa
receptividade de todas as pessoas que passaram pela minha vida
manteve-se até hoje, que tenho vinte e nove anos e vivo há quatro com a
minha namorada perto da minha mãe que a adora e que está sempre cá
em casa, junto de toda a família que faz parte da minha vida por
completo e rodeada de amigos que convivem descontraidamente com o
casal de amigas.
Não posso, com certeza, dizer que a minha história foi difícil e que
sofri. A minha história foi tão difícil e sofri tanto como qualquer outra
pessoa, heterossexual, bissexual ou homossexual. Apesar de ter vivido
alguns obstáculos extra, ter algumas vezes desejado gostar de um
homem e poder viver tranquilamente e sem sobressaltos, presentemente
não consigo imaginar a minha vida de outra maneira e não sinto falta de
nada que um casamento mais ―tradicional‖ me pudesse trazer.
Obviamente sei que as pessoas do meu trabalho me acham
estranhíssima por ter quase trinta anos e não me conhecerem um
namorado, obviamente sei que não posso ―massacrar‖ o meu avô
contando-lhe que estou ―casada‖ com uma mulher, obviamente sei que
não posso agir da forma a que tenho direito em todo o lado … e muitos
outros ―obviamente‖. Contudo, não faço disso o centro da minha luta,
aceito o que sei que não deveria ser aceitável, mas não sinto que isso me
torne infeliz ou me impeça do que quer que seja e é essa a mensagem
que queria gritar a um megafone para todos ouvirem, que vivam o seu

- 101 -
amor com naturalidade porque afinal é isso mesmo que o amor é, uma
maravilhosa e natural parte da nossa vida! Viva o amor, abaixo o ódio!

Marta
29 Anos
#18

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We always have...AVR
A minha história começa com uma mudança de curso, uma
mudança de cidade. Enfim, uma mudança devida. A mudança de curso
trouxe-me novas amizades e algumas dificuldades que tinha que provar,
para mim própria, que conseguia ultrapassar. Nunca, até então, me tinha
passado pela cabeça gostar de outras raparigas ou cogitar sentir-me
atraída por pessoas do mesmo sexo.
Até que conheci a K. Fez-me questionar tudo, a vida, as relações, até
as minhas convicções, os meus desejos, as minhas vontades.
Da grande amizade que tínhamos foi surgindo algo que se estava
descontrolar. Mas eu não consegui lidar com situação. Pus um pé no
travão e disse-lhe: ―Não vamos falar no problema, nem lhe vamos dar
um nome, senão ele começa mesmo a existir! E depois?‖
Todos os dias, eu questionava-a:
―Mas como é possível? Mas não somos só amigas? Mas não achas
que parece mais do que uma amizade?‖…
Todas as noites, eu rebolava na cama e me debatia com o
pensamento fugaz de querer abraçá-la, de querer estar sempre junto dela,
de querer apenas olhá-la... E por outro lado as vozes:
―Isso não está certo! Que andas a fazer? Estás louca?‖.

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O abafar de sentimentos perante os outros doía… Doía de tal forma
que só queria sentir o seu abraço, o seu olhar cúmplice e o seu afago…
Até que não deu mais para resistir porque percebi que estava lutar
contra a minha vontade, o meu coração, o meu destino...
Nunca fui capaz de me assumir perante ninguém, e mesmo hoje, as
pessoas que o sabem, sabem por razões infelizes. Mas não posso dizer
que tenha tido más reacções. Tive um amigo que reagiu de maneira
fantástica. E a minha querida irmã, só tem feito senão apoiar-me.
Entretanto vivemos aquele amor, escondido de alguns, mantivemos
uma vida dupla até há bem pouco tempo... Tempo esse que se esgotou
para nós, que deixámos de existir como tal... Foi ela que me fez
descobrir sentimentos que não sonhava sequer ter... Foi ela que me fez
conhecer-me a mim própria... Não sei se um dia alguém será capaz de
fazer algo igual por mim... A ela devo-lhe tudo... até a minha vida...
Não sei se serve de ajuda a alguém, até porque de ―sair do armário‖
a história tem pouco... A única coisa que posso acrescentar é que o facto
de ter dito a algumas pessoas me ajudou. Penso que o facto de
contarmos quem realmente somos nos ajuda e encarar tudo de uma
forma mais positiva e não tão fechada. Embora esteja consciente da
crueldade que ainda existe...
Penso que o que mais pode minar uma relação é o estarmos
―fechados no armário‖… O não podermos agir de forma igual em todo
lado, é o medo das reacções, dos olhares. Não sei…

Luna
30 Anos
#46

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COMING OUT

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My story…my life…
Bom começando mais ou menos do início e sem grandes
introduções da minha história, ficaria qualquer coisa assim do género:
Desde que iniciei a minha vida sexual (por volta dos 14 anos), que
nunca me senti satisfeita com as minhas relações…sentia necessidade de
mais, um vazio imenso apesar de gostar da pessoa ou de sentir uma
grande atracção…aprendi mais tarde que o amor não era aquilo…
A minha primeira experiência com alguém do mesmo sexo foi algo
muito estranho…muito bizarro…muito inesperado…
A meio de uma festa de aldeia em que eu estava sozinha numa rua,
pois tinha-me chateado com uma grande amiga, uma rapariga abordou-
me e pediu para me fazer companhia. Não me importei e até precisava
de ter alguém ao lado naquele momento…mesmo não a
conhecendo…fomos para um sítio sentar…passados uns minutos de
conversa meio embriagada, envolvemo-nos…nunca chegando a ter
mesmo uma relação sexual nessa altura. Sai de lá meio "à toa" e só
depois me apercebi de que tinha estado com alguém do mesmo sexo que
eu!!! Na altura realmente fez-me imensa confusão na minha
cabeça...nunca tinha tido nada contra homossexuais e tinha vários
amig@s meus que o eram. Mas quando nos toca a nos é sempre
diferente…andei "doente"…depressiva e sempre com raiva de mim

- 107 -
mesma…apesar disso, no fundo no fundo adorei a sensação…até
porque já tinha dito antes em conversas de amigos que gostaria de ter a
experiência de estar com outra rapariga.
Passados alguns dias decidi pesquisar apoio pela internet e encontrei
o site da rede ex aequo na qual encontrei pessoas que me apoiaram
imenso e me deram muita informação.
Deixei a coisa rolar por si ate ter o meu primeiro relacionamento
lésbico sério…
Nunca na vida me tinha sentido tão realizada a todos os níveis!
…até ter sido descoberto…
Foi o drama na família…
O choro da minha mãe…
…a indiferença (inapropriada e não habitual) do meu pai…
as bocas…
a insistência em psicólogos
as proibições…
enfim… a parte negra… a tempestade…
Mas dizem sempre que depois da tempestade vem a bonança não é?
E assim foi… Passados alguns meses (ainda levou bem o seu tempo
como normal…), acabaram por aceitar melhor a ideia… não tocam
muito no assunto... mas pelo menos quando tocam já não é com aquela
amargura, aquele repúdio ou raiva…
Já é um pouquinho de nada mais natural…mais compreensivo…
Afinal foi só isso que eu pedi…um pouco de aceitação ou de
compreensão…
Hoje em dia tenho um relacionamento estável de 9 meses… o meu
segundo relacionamento lésbico sério!
Nunca fui tão feliz na vida! Nunca senti tanta coisa ao mesmo
tempo! Nunca estive tão apaixonada! Nunca estive tão cheia de tudo
como agora…
Vivemos juntas, mas apesar de tanto os meus pais como os dela
saberem de nos, não sabem da nossa relação…
Por vezes dói pensar que será impossível ou muitíssimo difícil
termos por exemplo aquelas épocas especiais em família (nunca dei
grande importância a isso, mas só agora comecei a sentir essa
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melancolia)…dói termos de nos esconder da própria família para que
não nos arruínem o nosso projecto de vida… não poder tirar aquelas
merecidas ferias a meio do Verão de forma descontraída por
completo…ter sempre medo de desconfianças…dói sim…mas tudo é
compensado…vivo em Lisboa e lá tenho a liberdade que
quero…mesmo na rua!!! Nunca fui, nem sou, pessoa de mostrar grandes
afectos em espaços públicos…mas hoje em dia mesmo num
relacionamento gay, já não sinto aquele constrangimento que
sentia…sinto que há uma maior aceitação…um pouco mais de
liberdade! E ainda bem…
Resumindo a minha vida: Sintoma uma pessoa Apaixonada, Amada,
Livre, Cheia de Vida, Com objectivos e um grande futuro a minha
espera com certeza…
Todos temos as nossas dificuldades…mas todos as podemos
superar!!!
Força a todos!

Katia
19 Anos
#68

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O meu Nariz
Gosto do meu nariz. O meu nariz é grande mas direito, e que eu
saiba sempre esteve cá.
No princípio, nem eu sabia bem que tinha nariz. Vivia a minha vida
normalmente, sem a ideia sequer me ocorrer. Mas, a pouco e pouco, as
minhas acções esporádicas — como cheirar, e espirrar — foram
transformando-se em provas, até que um dia olhei para mim no espelho,
e tomei consciência do que sou: uma pessoa com nariz. Foi uma boa
decisão, porque me permitiu fazer coisas com o meu nariz que não fazia
quando não sabia que o tinha, como: tirar macacos.
Acho que se toda a gente tivesse olhado bem para mim, teriam
percebido que tenho nariz. Ou talvez não, há quem não goste de narizes,
e as pessoas não gostam de reconhecer aquilo que desaprovam.
A primeira pessoa a quem contei do nariz foi uma rapariga de quem
nem era próximo, mas sabia que ela não ia contar. Depois contei aos
meus melhores amigos, e a pouco e pouco agora já toda a gente olha
para mim e vê uma pessoa com nariz. Só os meus pais não ligam ao meu
nariz. Acham-me perfeito assim como é, nem reparam nisso.
Mas aceitei-me, assim, como uma pessoa com nariz. Não um nariz
apenas, mas sim uma pessoa com nariz.
E isso deixa-me feliz.

Francisco Eduardo Belard


19 Anos
#137

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Respirar
Se há algo que aprendi nestes 19 anos de vida é que não podemos
viver segundo os outros.
É verdade que durante algum tempo conseguimos. Vestimos a pele
de uma personagem e passamos a encarar a vida deste modo. Mas chega
um dia em que o ―eu‖ já não suporta o que criou e o que se está criando
à sua volta. E então o inevitável acontece. A mentira desaparece, o medo
enfraquece e a respiração restaura-se. A nossa história começa.
―Olá. Sou a/o tenho x de idade, sou lésbica/gay. Sou igual a ti.
Amo, sofro, rio, choro, enfrento os desafios, conquisto, sou humana/o.
Tenho direitos!‖
Com 16 anos, ela apareceu na minha vida por acaso, mas quando o
meu olhar cruzou o dela soube o que eu lutava para esconder era em
vão.
Os rapazes não me despertavam o sentimento de ―Amo-te e quero
ficar contigo‖, que ela me despertou. Já não estamos juntas, mas se não
fosse ela, talvez hoje em dia ainda usava uma máscara.
Assumi-me à minha mãe, com receio no início porque apesar de eu
saber que ela sempre teve uma mente muita aberta, tive medo da
rejeição, mas mais uma vez ela mostrou que merece o meu carinho e
respeito, valendo por mãe e também por pai, pois este causou muito

- 111 -
sofrimento e nem o nome de pai merece; os amigos verdadeiros ainda
permanecem ao meu lado e os intriguistas não merecem a minha
atenção.
Posso afirmar que agora encontrei me finalmente. O caminho que
me levou ao meu encontro não foi fácil, nada fácil, as cicatrizes internas
permanecem, a depressão e o medo também mas sinto-me livre. Já não
carrego, sozinha, o peso do mundo nas minhas costas e aconselho que
também o façam pois, apesar de tudo o que nós possam dizer/fazer, nós
não estamos sozinhos.

Vanessa Castro
19 Anos
#141

- 112 -
“Vais ser feliz à minha
maneira”
Foi com esta frase que a minha mãe tornou a homossexualidade um
assunto tabu dentro das quatro paredes a que sempre chamei casa. É
cruel acabar assim uma conversa entre choros e soluços, mas é a
verdade. A mãezinha de outros tempos, a quem contava toda a verdade,
que sarava todas as feridas, abriu a maior delas todas. Passou a ser das
poucas pessoas na minha vida a não saber nada do que nela se passa.
Sou gay. Sempre fui, acho. Nunca tive namorada, nem senti
qualquer necessidade de ter uma, sempre achei mais engraçados os
meninos da minha turma. Lembro-me de beijar uma vez uma rapariga,
mas aquele beijo só soube a experiência. E abriu portas à minha
curiosidade juvenil. Portanto iniciei um mundo de descobertas com os
meus 12 anitos, sensivelmente. Foi com essa idade que descobri que
realmente era gay. Primeiros beijos, toques, relações, sentimentos,
emoções. Era como passear por uma cidade enorme e desconhecida e
tudo nos parecer tão familiar.
Não contei a ninguém durante muito tempo. Era só meu aquele
segredo. Aquela descoberta. Aquele ―passeio‖.

- 113 -
Com a entrada no secundário, as coisas mudaram e muito. Novas
pessoas, novas mentalidades, novos rapazes. Senti-me enclausurado. Ao
mesmo tempo que queria contar ao mundo o que sentia, toda uma
tensão dentro de mim dizia que não podia fazê-lo. E se os teus pais
descobrem? E se te gozam? Que me iria acontecer? Tinha que contar a
alguém. Uma rapariga, claro. São muito mais compreensivas. Escolhi-a a
dedo, mesmo. Tinha de me certificar que não contava a ninguém, nem
mesmo às amigas dela. Um dia tivemos ―A Conversa‖. Embrulhei-me
tanto que ela perguntou: ―Mas que se passa? És casado? Tens um filho?
És gay? Sabes que podes confiar em mim!‖ Ela nem acreditou quando
lhe disse que não era casado nem tinha filhos. Ficou boquiaberta. Não
tinha trejeitos. Nem era ―diferente‖. Estava finalmente, liberto. Durante
todo o meu secundário, foi quem me ouviu. Partilhámos experiências,
segredos, amores e desamores, comentários, tristezas e alegrias. É hoje
amiga de paixão.
Mas não foi só até acabar o 12º, que senti a necessidade de contar a
mais pessoas. De fazer novas amizades e conhecer o mundo gay.
Descobri então que não estava sozinho na minha turma, que havia mais
gente a jogar na minha equipa. Dois deles são hoje o que de mais
importante e precioso alguém pode ter. Nenhum amor pode, alguma
vez, sobrepor-se à nossa amizade. Hoje em dia, somos ―manas‖. Cada
um segue a sua vida, mas nunca esquecemos os laços que criámos e
mantemos até hoje.
Com estas amizades, já nada me podia impedir de viver a vida. Se
algum dia tropeçasse e caísse nos caminhos que trilhava, os meus amigos
estariam lá para me ajudar a levantar. Comecei a ser eu próprio.
Prossegui os estudos. Encarava a vida de forma diferente e, numa
nova turma, encontrei confiança suficiente para falar de mim a mais
pessoas. Dei um grande passo neste primeiro ano. Contei a um rapaz
―hetero‖. Foi um grande passo, porque só veio reforçar a nossa amizade
e desmistificar a minha ideia de que os ―heteros‖ nunca poderiam saber.
No final desse ano, já me sentia muito à vontade.
Quando parti para estágio, deparei-me com o pior dos cenários: um
local onde 75% das pessoas pensavam que a homossexualidade era uma
doença. Iriam ser 4 meses muito difíceis. Mas não. Criei uma amizade
- 114 -
grande com o rapaz que ficou responsável por todo o meu estágio e tive
que lhe contar o que eu realmente era. Não lhe podia, nem conseguia,
mentir. Aceitou-me sem qualquer problema. Fiquei muito feliz.
A partir daí, e com mais um ano escolar a aproximar-se, decidi
rodear-me dos meus amigos. Reforçar as minhas amizades. Só eles me
poderiam ajudar quando eu precisasse. E foi com este apoio que decidi
ser eu mesmo daí em diante. Não esconder qualquer tipo de
maneirismos ou comentários, não ter medo de falar de
homossexualidade, não ter medo de partilhar experiências, de falar, ser
eu mesmo. E eu sou gay. E quem gostasse de mim, aceitar-me-ia.
Ainda hoje assim é. Ainda a acabar o meu primeiro ano, sinto-me
orgulhoso de mim mesmo. Estou numa turma perfeitamente à vontade
com quem sou e ninguém encontra problema nenhum nisso. Não há
mais tabus entre nós, nem segredos pelos cantos. Fico tão feliz por isso.
Sou feliz. Todos sabem que tenho orgulho no que sou e que não
encontro problema nenhum em partilhar o que já passei.
Daí a razão de estar a escrever esta pequena história de vida. Queria
fazê-lo por duas razões.
A primeira das quais, porque todos nós sabemos o quão difíceis
podem ser os tempos de escola. Temos sempre medo de represálias, de
ser ―gozados‖ e ―cochichados‖ pelos corredores e muitas vezes sem
vermos uma mão amiga, sem ter um ombro, uma voz, um conselho.
Partilhei-a, porque também eu já estive nessa mesma situação. Mas
gostava que esta história mostrasse que os tempos que se avizinham, são
de esperança.
A segunda razão porque… SOU FELIZ À MINHA MANEIRA.
Caminhei por caminhos sinuosos, difíceis, escuros, lamacentos,
ventosos mas mesmo contra todas as adversidades, fui e sou feliz. Não
da maneira que a minha mãe quis. Ela pode só querer o meu bem, mas
eu quero ser feliz como sou! Não é fácil dizê-lo mas, ela só continua a
enganar-se a ela própria. Talvez um dia venha a compreender. Talvez
um dia ela me veja feliz.
Esta história serve também como desabafo. Como um alívio. Gosto
de a partilhar e agora surgiu a oportunidade de a partilhar com mais
pessoas que poderão estar a passar o que já passei. Gostava que
- 115 -
sentissem a esperança desta mensagem. Que sentissem orgulho no que
são e que sentissem que não estão sozinhas, como muitas vezes me
senti.
Podia contar grandes aventuras no mundo gay. Ou aventuras
sexuais. E rio-me só de me lembrar de grande parte delas. Outras,
rapidamente os risos se transformam em lágrimas. Mas quis partilhar um
pouco da minha felicidade, da minha esperança.
Sou o Mateus, tenho 21 anos e sou feliz.

Mateus
21 Anos
#106

- 116 -
Não menos feliz
Nem todas as histórias homossexuais têm que ter um final triste. De
facto, posso considerar a minha história feliz, apesar de estar longe de
acabar.
Tenho 22 anos e resido no Porto, e comecei desde cedo neste
mundo. Com 16 anos, assumi-me a mim próprio como homossexual,
que penso que é o grande passo e, talvez, o mais doloroso... Assumirmo-
nos para nós mesmos!
Nunca me senti desiludido ou envergonhado pela minha
sexualidade. Porém, nunca soube como contar aos meus pais. Sabia que
seria uma grande decepção para eles.
Aos 16 anos, tive também a minha primeira relação homossexual.
Não foi longa, mas foi suficiente para me mostrar quem realmente sou e
o que devia mudar.
Aprendi que o mundo gay é também complexo, com muitas
barreiras a quebrar... Mas se faz parte de nós, porque não lutar por isso?
Após algumas experiências, umas melhores que outras, e durante
um outro relacionamento, fui pela primeira vez confrontado pela minha
mãe, que considero a minha melhor amiga. Perguntou-me directamente
se eu namorava, e com quem... Se esse alguém era uma ―ela‖ ou um
―ele‖. Fiquei sem reacção. Não me tinha preparado para aquele

- 117 -
momento, mas estava na hora! Respondi a verdade à minha mãe, e a
reacção foi totalmente inesperada. Começou a rir-se, a afirmar que já
desconfiava, dizendo que poderia ter-lhe confiado tal ―segredo‖. Como
resultado, terminámos os dois a rir... Hoje em dia, continua a mesma
para comigo, e continua a ser a minha melhor amiga, e aquela que está
sempre presente nos bons e maus momentos.
As relações nunca são fáceis, e considero que são ainda mais difíceis
no mundo homossexual. São mais instáveis, mais complexas e muitas
vezes dolorosas... Contudo, posso dizer que até aí tive sorte! Após as
tentativas ―frustradas‖, encontrei a minha ―alma gémea‖... Quando
menos esperava, quando mais acreditava que era impossível existir uma
relação homossexual estável, após 5 anos de luta... Encontrei a minha
cara-metade.
Daqui para a frente, tudo pode mudar... Ainda muita coisa pode
acontecer, a vida dá voltas e mais voltas... Contudo, morreria feliz neste
momento, por ter tudo o que sempre quis. O apoio da minha mãe, e um
namorado para todo sempre.
Sou apenas um Ser, que gosta de outro Ser, independentemente da
nossa sexualidade... Deveremos ser julgados por isso?
―Todos diferentes, todos iguais.‖

A. Barros
22 Anos
#47

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Coming Out
Tinha 18 anos quando surgiram as primeiras dúvidas acerca da
minha orientação sexual. Lembro-me de sempre ter olhado para as
mulheres de uma forma diferente, achava que era uma forma de
identificação. Afinal, eu era hetero, só admirava algumas mulheres por
querer ser como elas...
Enfim, aos 18 apaixonei-me por uma rapariga mais velha. Falei com
algumas pessoas, sempre demasiado assustada e como se o mundo fosse
acabar. A paixão durou 7 meses, durante os quais sempre achei que era
uma fase.
Lembro-me de consultar uma psicóloga e de não conseguir acabar a
frase ―Tenho medo de gostar de...‖, lembro-me de chorar muito, de
tentar olhar para os rapazes. Tive medo, muito medo.
Entretanto a minha vida foi mudando, até aos 21 anos continuei a
achar que era hetero, só estava confusa. Até que chegou o dia em que
parei de fingir. Tinha estado no estrangeiro e, já em Portugal, comecei a
ver a L Word. Acho que ambas as situações, de maneiras diferentes, me
ajudaram. Passei a ver a vida de outra forma e percebi que a
personalidade das pessoas nada tem a ver com o facto de serem hetero
ou homo.

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Tudo se tornou tão mais simples quando me assumi e aceitei, depois
vieram os outros. Sinto-me uma sortuda porque só tive reacções
positivas e porque tenho uns pais fantásticos!
Cresci muito, especialmente devido às fantásticas pessoas que fui
conhecendo na rede ex aequo e às reuniões a que assisti. Hoje sinto que
os meus medos foram sempre fruto da minha ignorância.
Que mais dizer?!... Sou feliz!

Inês
24 Anos
#143

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Parece Impossível
Foram muitas as vezes em que olhei para a frente na minha vida e
pensei ―Isto nunca vai acontecer, é impossível‖. Hoje se me
perguntassem se estava certo, sei que em grande parte estava errado. No
entanto, na altura não conseguia ver isso. Sei também que o que me
permitiu transformar o impossível em possível foi algo muito simples:
fazer coisas. Muitas vezes nem importa as coisas que fiz, mas tê-las feito.
Esta história é sobre mim, sobre essas coisas e sobre a minha vida.
Lembro-me de vagos episódios que se passaram na minha infância
que me fazem acreditar que a atracção por pessoas do mesmo sexo
esteve sempre presente na minha vida. Todos eles episódios e
experiências que precediam qualquer noção de sexualidade, hetero ou
homo, mas que foram criando em mim um sensação de diferença. Eu
lidava com essa sensação, como, alias, lidava com todas as outras
sensações que me podiam causar desconforto, com a minha capacidade
de transformar a realidade num mundo de fantasia, em que eu era o
legítimo criador da história, das personagens, das interpretações e até
dos cenários.
Lembro-me de quando estávamos no recreio da escola, na pré-
primária… todos os rapazes se juntavam com rapazes e todas as
raparigas se juntavam com raparigas. Toda a gente sabia que eu
costumava estar mais com as raparigas, mas ninguém sabia que eu estava
na realidade a aumentar as possibilidades na minha vida através da

- 121 -
obtenção de informações privilegiadas no campo do, na altura, inimigo.
Ricardo, ―o estratega‖, estava sempre um passo mais à frente. É curioso
pensar hoje que esta sensação de ter que ter sempre tudo sob controlo
remonta a esta idade.
Era como se tudo se tratasse de uma grande peça de teatro em que
eu tinha que estar constantemente preocupado que cada uma das
personagens e das pessoas sentadas na plateia percebessem exactamente
aquilo que era suposto elas perceberem. Isto valia-me os frequentes
comentários – O Ricardo é muito curioso. Está sempre a fazer
perguntas. E como ele gosta de ouvir as conversas dos adultos - que
eram um incentivo importante para a continuação da minha obra prima.
Na realidade um duplo incentivo. Incentivo porque na minha história
esses comentários eram elogios e faziam sentir-me um bom
argumentista e actor. E incentivos porque cedo percebi que o meu
trabalho era de facto necessário! Muitas vezes as pessoas não percebiam
o que era suposto elas perceberem e eu tinha que agir! Podia usar dois
poderes que tinha: um era o de argumentar e ir introduzindo dados que
eles não conheciam (e eu também não, até ser preciso) que os faziam
perceber que tinham realmente percebido mal, ou o meu segundo poder,
mais poderoso, o da invisibilidade. Ficava imóvel como se apenas
estivesse ali o meu corpo inanimado até que a interpretação errada fosse
desconsiderada por esquecimento dado que o alvo tinha desaparecido e
deixara de ser relevante. Este poder era especialmente necessário quando
fazia asneiras, a sua expressão máxima era ir dormir. Aí as personagens
maus morriam todas.
Nesta altura para mim era impossível estar triste, era algo que
simplesmente não conseguia conceber na minha vida. Tinha sido
beneficiado com poderes que me permitiam transformar tristezas em
alegrias.
Uns aninhos mais tarde a minha realidade, mais uma vez, alterou-se.
Durante a semana passei a estar longe da minha família porque estava
num colégio interno. Lembro-me de na altura não conseguir perceber
porque é que alguns andavam tristes e choravam, segundo diziam, com
saudades de casa. Mais tarde suspeitei que eles não tinham os meus
poderes, ou se calhar não sabiam que os tinham. Foi por estes anos que
- 122 -
aprendi pela primeira vez o que era a homossexualidade, e que era um
conceito que estava relacionado com outros que eu já conhecia como
maricas ou paneleiro. Claro está que os meus conceitos eram bastante
ingénuos, ora vejamos, maricas eram aqueles que choravam quando se
aleijavam – eu era muito forte, pelo menos na minha história, por isso
aquela coisa da homossexualidade não era para mim. Simplesmente não
tinha nada a ver comigo. Temos pena, fica para a próxima. Posso
afirmar com alguma certeza que na altura era para mim impossível
conceber que eu era homossexual. No entanto já na altura tinha tido
experiência com rapazes do meu sexo. Não me perguntem como é que
eu nunca liguei as coisas… Paixões por rapazes essas já tinha tido
imensas. Era bastante bom ao nível das paixões platónicas, das primeiras
que me lembro foi com um dos queijinhos frescos da Ana Maria,
lembram-se? Depois vieram os mini stars e os Onda Choc. Acho que se
pode dizer que eram o s Morangos com Açúcar do meu tempo. Aliás
não vejo outra razão que explique porque é que eu adorava ver o Natal
dos Hospitais.
Hoje, quando olho para trás, acho fascinante esta minha capacidade
de transformar a realidade num filme altamente sensacionalista, em que
os próprios factos são completamente adulterados e por vezes mesmo
rejeitados sob o pretexto de não serem relevantes (o alimento da alma
do manipulador é arranjar uma boa justificação).
Prosseguir com a minha vida num colégio só de homens para
alguém que não sabia que era homossexual, mas é, foi uma experiência
no mínimo interessante. Segui os primeiros anos continuando a fazer
uso dos meus poderes mágicos. Nesses anos ―homossexual‖ passou a
ser mais uma palavra a juntar a outros adjectivos pouco honrosos a
utilizar contra aqueles que se cruzassem no nosso caminho de forma
persistente. A par desta realidade ia continuando com as minhas paixões
platónicas. Mas eu não devia ser destrambelhado de todo porque alguma
coisa sempre me travou de fazer algo consistente com essas paixões,
mesmo nunca me vendo como homossexual. Para mim, aquelas eram
sensações que eram minhas e não eram para ser partilhadas. Na
realidade, também não estava certo se elas eram reais ou apenas fruto da

- 123 -
minha imaginação e apenas verdadeiras na minha peça de teatro. Para
mim era impossível falar delas com mais alguém.
Ao entrar na adolescência percebi o que já tinha ouvido dizer, de
que há de facto muita coisa que começa a mudar. Estávamos na ―idade
do armário‖ – percebi mais tarde que ia ficar nele bastante mais tempo
do que o que seria de esperar e o custo que isso ia ter para alguém que
tinha como missão reescrever a história de todos os acontecimentos…
era grande. Ainda assim, o que sentia é que muita coisa mudava nos
outros. Não percebi que também haviam coisas a mudar em mim, além
das visíveis. Foi a partir desta idade que percebi que era possível ficar
triste e que às vezes os meus poderes não eram suficientes. As pessoas à
minha volta mudavam de conversas, de interesses e de comportamentos.
Eu, que tinha ouvido tantas conversas não estava preparado para aquilo.
Era como se as personagens da minha obra se tivessem começado a
revoltar contra o autor e de repente tornou-se muito mais difícil
controlá-las. A uniformidade de pensamento que nos caracterizava até
ali começava a desaparecer e eu sentia-me sozinho a lutar contra isso.
Algo em mim me dizia que aquela mudança não ia ser boa para mim…
Apesar desta confusão de sentimentos continuava fiel ao meu
entendimento da homossexualidade, que agora se alicerçava em teorias e
dogmas que me iam sendo oferecidos, qual presente envenenado. Eu
provei e gostei tanto do veneno que passei a acreditar que além de eu
não o ser era algo que estava fora do meu universo, como as notícias que
vemos no telejornal das pessoas que passam fome. Se não deixarmos
aquela informação entrar nas nossas vidas é como se ela não fosse
mesmo real. Era impossível vir a contactar com tal realidade.
Mas a vida é muito boa a mostrar-nos quão estamos errados, e a
minha não é excepção. Com o avançar na adolescência, crescia o desejo
e vontade de explorar o feminino à minha volta. Eu como não tinha um,
criei-o. Nada de especial para um mestre da criação como eu. Aliás este
era particularmente fácil. Eu não tinha desejo, mas tinha curiosidade, era
uma questão desenvolver essa curiosidade e aos olhos dos outros seria
igual.
Depois percebi que esse desejo não era assim tão generalizado como
se poderia pensar. Eu estava profundamente convencido da história que
- 124 -
tinha criado, e à parte das minha paixões homossexuais conviverem
pacificamente com a minha curiosidade sobre a sexualidade, entendia o
meu desejo pela homossexualidade como uma grande amizade. Quando
chamamos açúcar à canela não existe realmente um problema dado que
a fartura sabe bem na mesma. O que eu não sabia é que havia mais
pessoas que como eu tinham o desejo trocado e que ao contrário de
mim se empreenderam na exploração do mesmo. Resultado, foram
apanhados, gozados, humilhados, estranhados, descriminados e
finalmente expulsos, como se dizia na altura, saíram pela porta pequena.
Embora não muito claro, senti que algo ali não batia certo, uma
sensação semelhante à que tinha sentido na infância, de diferença. Na
altura chamei-lhe pena. Pena que tudo aquilo estivesse a acontecer.
Afinal eu estava, mais uma vez, enganado. Era possível. Eu conhecia
pessoas a quem se atribuía o adjectivo de homossexual.
Pelo sim pelo não, movido por aquela sensação estranha, passei a
jogar pelo seguro e rejeitei da minha vida tudo o que, segundo a recolha
de informação que tinha disponível, poderia eventualmente estar
relacionado com o termo. Dança, teatro, … Claro que esta decisão
entrava em conflito com a minha vontade e necessidade de escrever uma
história que fosse especial, diferente de qualquer outra que alguém
alguma vez tivesse escrito. Às vezes ganhava uma, outras vezes outra.
E porque o tempo não pára e a natureza também não, chegou altura
em que o meu poder de transformar a realidade perdeu para a realidade,
e tornou-se claro que todos aqueles episódios, experiências e sensações
não eram apenas uma coincidência. Aí foi o terror. Passei a ser
perseguido pela minha própria sombra. Qualquer movimento podia ser
suspeito. Todo o cuidado era pouco. Quando descobri o que era, a
minha homofobia já estava internalizada. Da impossibilidade de eu ser
homossexual passei para a impossibilidade de o poder viver. A lição que
mais uma vez não aprendi: afinal não era impossível...
Este terror desapareceu porque ao crescer, ao contrário do que
esperava, os meus poderes também cresceram. Passei a viver
completamente em negação. A diferença é que agora eu sabia o que era e
sabia o que era aquilo que sentia.

- 125 -
Claro que vender a alma ao diabo tem um preço, e com os meus
poderes também cresceu um muro à minha volta que fazia que ninguém
conseguisse chegar perto de mim e eu fui-me acostumando à sensação
de estar só na multidão.
A partir daqui a minha história foi-se repetindo. Achava que era
impossível vivê-lo quando um dia me apaixonei por um rapaz. Já andava
na faculdade, e ele me mostrou que o facto de não aceitar aquilo que eu
era tinha um impacto grande nele, mas para mim era impossível contar a
alguém.
Preso pelo meu muro, qualquer relação estava condenada à partida.
Apaixonar-me era apenas o prenúncio de uma morte anunciada, e eu
sabia-o. Se íamos ao cinema ou jantar fora o terror de encontrar alguém
conhecido fazia-me esquecer o que era amar. Não era possível.
Um dia em desespero e sem saber o que fazer, já com 24 anos,
partilhei com os meus amigos como me sentia e foi como se um peso
enorme me saísse de cima. As reacções superaram tudo o que eu podia
esperar. No entanto, sentia que me faltava um passo que, mais uma vez
me parecia impossível, contar à minha família. Até que um dia me enchi
de coragem e partilhei com eles. Foi duro? Sim. Foi difícil? Sim. Valeu a
pena? Sim.
Com o revelar da minha homossexualidade, fui vendo um muro a
desaparecer, fui vendo a possibilidade de ser verdadeiramente feliz a
nascer, e foi aí que fui buscar forças. Percebi que sabia muito pouco
sobre o que era. Percebi que as pessoas à minha volta sabiam ainda
menos. Percebi que tinha feito muitas asneiras e tinha tomado muitas
decisões erradas. Percebi que há muito mais coisas que são possíveis do
que aquelas que eu consigo imaginar. Isso permitiu-me querer mais viver
a minha história e querer menos ser o seu contador. Cada passo para a
frente foi como o quebrar de uma corrente que me mantinha cativo num
sítio que mais tarde percebi que era ―O armário‖. Esse, que é muito
escuro para se viver. Eu sei-o.

Ricardo Lapão
27 Anos
#74
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Não faças barulho
Nunca tinha reflectido a sério sobre a minha saída do armário antes
de escrever estas linhas. Pensei que tinha sido fácil, que não me tinha
custado nada…
Tinha 14 anos. Numa quarta-feira de Janeiro de 1995 decidi ir ao
cinema ver um filme pornográfico. Como sempre lidei mal com o meu
corpo, queria ver como seria daí a uns anos. A meio do filme estava
excitado… e com um rapaz um pouco mais velho ao meu lado. Pouco a
pouco a mão dele começou a tocar-me… como não ofereci resistência,
não tardou muito até algo mais se ter passado.
Saí do cinema com ódio de mim mesmo. Não sabia o que fazer.
Não queria que isto tivesse acontecido assim. Guardei esta história até
hoje, nunca a tinha partilhado com mais ninguém. Por vergonha ou por
inveja das histórias dos outros.
A segunda etapa veio uns anos depois, tinha 18. Um dia disse que ia
beber uns copos e que chegava a casa as duas da manhã. Na verdade ia
ter com o Tiago, que tinha conhecido umas semanas antes, através do
IRC. Atrasei-me meia hora. Quando abri a porta de casa, a minha mãe
estava à minha espera. Ao fim do terceiro clássico ―Onde estiveste?‖,
achei que nada daquilo fazia sentido. Por que raio tinha que esconder o

- 127 -
que fazia? A minha irmã não escondia que ia ter com o namorado
dela…. Achei que tinha que fazer o mesmo.
- Vim de casa do Tiago, o meu namorado.
Seguiu-se um ―Eu já sabia‖ e algum choro. E a promessa que não ia
contar nada ao meu pai.
Os anos foram passando e tive dois namorados, ambos
olimpicamente ignorados por todas. Ninguém fazia perguntas, não
queriam saber quem era. Mas sempre que pedia dinheiro para ir para
algum lado com um dos dois, recebia um extra do meu pai…
Aos 25 anos estava a sufocar em Portugal. Saí.
Um dia telefono a dizer que ia passar uma semana a Portugal, com o
Demis. E que não era preciso cama extra. O meu pai foi-me buscar ao
aeroporto e quando me deixou em casa só me disse ―Não faças muito
barulho de noite, as paredes são fracas e ouve-se tudo‖.
Hoje penso que tudo isto levou muito tempo… 11 anos, quase 12.
Tudo isto para evitar embates, choros, crises… Como diz o ditado, para
a próxima será pior.

Gonçalo R.
27 Anos
#85

- 128 -
Partilha
Recebi um pedido de um amigo meu para escrever a minha
experiência… Decidi aceitar, até porque a minha história de partilha
sobre a homossexualidade pode contribuir para ajudar a desmistificar os
preconceitos que existem na nossa sociedade. E tentar ajudar, para mim
basta. Mas surgiu-me um problema. Como começar? A minha história
de vida que parecia tão rica, de repente tudo se tinha evaporado em
pequenos instantes o que me fez pensar que nada teria para contar.
Então surgiu-me a pergunta: ―Porque?‖ Sim esta foi a pergunta que
nunca saía da minha cabeça… Eu era uma daquelas pessoas ditas
―normais‖ (que péssima definição, eu prefiro dizer: sou especial). Mas
sim, eu namorava com uma rapariga linda. Fazíamos um casal perfeito, e
tudo parecia estar a dar certo... Tínhamos planos para o futuro, e parecia
que nada nem ninguém nos iria parar, porque a felicidade passava por
nós os dois... Namorávamos há dois anos até que começaram a surgir as
minhas dúvidas… eu, basicamente, até então, fazia como a maioria das
pessoas que vive de acordo com um padrão de coisas que se podem ou
não fazer, em vez de fazer simplesmente aquilo que as faz sentir bem.
Senti-me perdido no mundo, até porque julgava que vivesse num mundo
à parte de todos... cheguei a pensar que era anormal (mas hoje sei o
quanto foi estúpido pensar assim). É que hoje é difícil lidar com as
diferenças, quaisquer que sejam elas. O ser humano convive muito
melhor com aquilo que converge com os seus pensamentos, o seu modo

- 129 -
de vida, a sua forma de ver o mundo, do que com as coisas que lhe
fogem ao controle ou que para ele não fazem sentido. Essa é a natureza
do ser humano. Alguns convivem melhor com isso e outros nem tanto.
Muitos, simplesmente, ignoram que as diferenças existem e devem ser
respeitadas, por maior que sejam; e esse é um dos grandes problemas da
sociedade actualmente, a INTOLERÂNCIA.
E sofri... muito mesmo... Pensei que o mundo ia desabar, parecia
que tudo estava contra mim e que ninguém me compreendia... precisava
de ajuda, pois não ia aguentar tanta dor e sofrimento durante mais
tempo. ERREI! Sim errei tanto... fiz coisas de que hoje me poderia
arrepender e de que me poderia vir a envergonhar. Mas não. Hoje que
penso e reflicto sei que fez parte do meu processo de aceitação. Errar é
aprender. Perdi muitos amigos por fugir e não pedir ajuda, mas... ganhei
experiência de vida. O importante é levantar a cabeça e pedir ajuda...
sim, porque os nossos amigos não servem apenas para beber um copo
connosco ou para emprestar o tal filme que tanto queríamos ver...
servem para nos apoiar nestes momentos em que tanto precisamos de
ajuda… mas eu sou sincero, não fui capaz de pedir ajuda. Hoje
arrependo-me todos os dias de não o ter feito. Perdi pessoas que sempre
pensei que iam ser minhas amigas para sempre, só porque eu fugi dos
meus problemas, só porque não tive coragem de enfrentar os meus
medos, só porque me isolei de tudo e todos em vez de pedir ajuda.
Não, o meu problema não foi admitir que era gay!!!! O meu
problema era a vergonha da sociedade. Era não acreditar que tudo isto
estava a passar-se comigo!! e porquê comigo?!? Eu era um bom aluno,
bom filho, bom irmão, bom amigo, bom namorado, e… tudo desabou!!
Comecei por ter necessidade de estar com um homem. Sentia-me
que apenas assim eu ia estar completo. E a partir daí foi um processo de
sofrimento, de aprendizagem, da construção de um novo ―eu‖! O
primeiro passo foi terminar tudo com a minha namorada. A Susana era
fantástica, era especial... eu tinha sido o primeiro homem da vida dela,
tinha descoberto a vida sexual comigo. Não sabia como ia reagir, mas
tive que acabar. Como a coragem que eu tinha era escassa disse-lhe ―já
não gosto mais de ti‖ mas era mentira. As palavras que eu tinha referido
davam a entender que já não gostava mais daquela rapariga... mas o
- 130 -
problema não era não gostar daquela rapariga mas sim de raparigas! As
lágrimas que me corriam pelo rosto e a minha voz trémula dava para
perceber que cada palavra que eu dissera era pura mentira. Ela não
percebia como é que uma relação de dois anos, em que eu sempre me
mostrei feliz, e me sentia completo, da noite para o dia já não era nada...
pois é mentira. Ainda hoje em dia ela é a mulher que eu admiro, a minha
heroína. Mas até hoje ainda não tive coragem de dizer a verdade: gosto
de homens! A culpa como é óbvio não é dela, e ela foi apenas uma
vítima do meu processo...
Mas e agora? Tinha o caminho livre, supostamente tudo ia tornar-se
mais simples... mas não... claro que não!!! Como posso ser eu tão
hipócrita e pensar assim? Como dizer aos meus pais? Como dizer aos
meus amigos? Estava tão perdido que só me apetecia desaparecer… eu
estava a sofrer, mas o pior para mim foi ter feito sofrer a pessoa que
mais tinha amado: a Susana. E isso não me perdoava, alias, ainda hoje
não me perdoo. É uma mágoa que me acompanha até aos dias de hoje.
Precisava de ajuda! URGENTE! Mas a quem ia eu recorrer? Não
conhecia ninguém na minha situação. No meu núcleo de amigos
(pensava eu) era o único homossexual. Não conhecia mais nenhum caso
próximo Comecei a desesperar! Já nada me fazia sentido. No meio do
meu desespero só pensei que precisava de ajuda de profissionais. E se
bem me lembro, tudo começou há cerca de dois anos, quando a
psicóloga da faculdade onde eu ando me disse que devia contar ao meu
grupo de amigos mais próximos que era homossexual. Segundo ela era
uma forma de aceitar e de me sentir mais à vontade. O que ela nunca me
perguntou foi se eu tinha algum problema com isso. Sim porque falar é
fácil mas... e fazê-lo??? Eu só pensava ―pois ela não é homossexual... não
sabe o que custa!!! Falar é fácil! Mas eu é que estou nesta situação‖. E o
pior disto tudo é que o meu núcleo de amigos em qual em mais confiava
não estava em Lisboa. Sendo eu natural de Coimbra, a maioria dos meus
amigos ficou por lá a estudar. E eu vim para a capital sozinho e este era
mais um motivo para eu me sentir desprotegido e desapoiado. Com os
meus amigos de sempre em Coimbra, sem poder contar com os meus
pais e sem o apoio da minha ex-namorada, senti-me à beira de um
abismo.
- 131 -
O meu semestre na faculdade começou a correr mal... o caminho
para subir a Alameda, parecia não ter fim, e estava sem forças para lá
chegar. Sem vontade de enfrentar os meus amigos no Técnico, comecei
a deixar de ter vontade de ir à faculdade. O aluno que sempre se tinha
safado começou então a decair. Já não me reconhecia. Eu era uma
pessoa alegre, bem disposta, com uma alegria de viver sem igual e tudo
isso se tinha evaporado. Não tinha vontade sequer de estar com os meus
pais. Andava triste. E todos notavam isso mas ninguém percebia o
porquê!!! Ninguém me podia ajudar... eu próprio não deixava!!! Fechava-
me sobre mim, e não contava a verdadeira razão por andar sem rumo na
minha vida. Mentiras atrás de mentiras, desculpas atrás de desculpas, em
que as pessoas aos poucos deixavam de acreditar em mim. Mas isto não
podia continuar...
Comecei a pesquisar na internet, a descobrir informação e comecei-
me a aperceber de grupos de pessoas (inclusive da minha idade) que
estavam a passar pelo mesmo que eu... ou pelo menos já tinham
passado!!! Afinal... não era o único naquela situação. Outro aliado meu
foi o tempo... fui-me aceitando tal e qual como era e deixando de me
preocupar com aquilo que a sociedade julgava. Contei a uma amiga
acerca da minha orientação sexual e vi que a psicóloga tinha razão.
Desabafar com uma amiga é essencial. Dá-nos uma liberdade infinita.
Não é fácil contar, sem dúvida, mas hoje em dia as pessoas
(principalmente a nova geração) tem a mente aberta e percebe que todos
somos diferentes. Ter contacto com outros homossexuais foi também
importante... perceber que posso ter uma vida tal como um
heterossexual é importante. Hoje em dia sinto-me bem. Apesar de ainda
não ter feito o meu come out para os meus pais e para alguns amigos,
sinto-me completo e sem problemas. As coisas vão acontecendo e não
tenho que me preocupar. Orgulho-me do que sou hoje e voltei a ser o
mesmo de sempre... mas em vez de ter uma namorada poderei vir a ter
um namorado.

Cristiano Marques
27 Anos
#107
- 132 -
O peso da família
Chamo-me Jorge, tenho 37 anos, sou profissional de saúde e tenho
uma relação há 7 anos, com quem estou ―casado‖
Sou filho mais velho de uma família tradicional portuguesa, de
origem rural e emigrada num país tropical, onde vivi até o início da
minha adolescência, altura em que regressámos a Portugal.
Regressado do estrangeiro, fui interno num colégio em Coimbra,
onde se dá a descoberta da minha sexualidade por volta dos 12/13 anos.
Esta é a altura em que o jovem ser humano assume um papel sexual
outrora definido no seu desenvolvimento.
A descoberta de ser gay foi um choque terrível, pois eu era diferente
de todos os outros 39 rapazes com quem partilhava a camarata do
colégio. Havia um que particularmente me fazia olhar de forma
diferente, pela sua beleza. Mas aquilo era ao mesmo tempo
entusiasmante e atroz. Eu não era ―normal‖. Não era como os outros.
Aquilo não podia estar a acontecer comigo.
Ao mesmo tempo que fazia tudo para me cruzar com ele no
balneário da camarata ou do ginásio ou de me encontrar com ele a sós
na biblioteca (ao acaso), não queria fazê-lo, pois achava que estava a
potenciar aquela anormalidade que crescia dentro de mim.

- 133 -
Noites tive em que muito chorava, as lágrimas invadiam-me, pois
não queria ser diferente dos meus amigos. Todos eles andavam atrás das
meninas e eu tinha de o fazer para parecer igual a eles. Nunca ninguém
poderia saber que eu era diferente. Que eu era anormal.
No meu seio familiar consideravam-se os toxicodependentes, as
prostitutas e os homossexuais, todos anormais e não merecedores de
estarem vivos, pois eram aberrações da natureza.
Querendo ou não isto pesava muito na minha cabeça.
Os anos foram passando e eu sempre a viver a mentira das mentiras.
Era um verdadeiro heterossexual. Andava atrás das miúdas, namorava
com elas, por pouco tempo que fosse e segui o meu percurso académico
até ter ido para Lisboa para a universidade.
Chegado a Lisboa o mundo foi posto a meus pés. Estava sozinho.
Era crescido, tinha 18 anos. Podia ter feito tudo o que queria. Mas o
peso da família vivia dentro de mim e quanto mais crescido estava, mais
pesada se tornava a ideia de ser anormal.
O meu percurso académico fez-se com bom sucesso. Sempre
envolvido em todas as actividades extracurriculares que podia e sempre
muito ocupado para que não sobrasse tempo para mais anda.
Nos tempos de lazer, com os amigos, falava-se de mulheres e de
quantas cada um já tinha tido e com quem tinha andado e com quem
gostava de andar. Obviamente que eu tinha de saber aqueles pormenores
e tinha de partilhar as minhas ―experiências‖, por mais falsas que
fossem, com eles.
Quando iniciei a minha vida profissional, esta foi também com o
sucesso devido e acrescentada de actividades extra-profissionais, como
cantar num coro, que me ocupava grande parte das noites da semana,
assim como os fins-de-semana, como pretexto para não poder namorar.
Os anos que se seguiram e até aos 28 foram sempre vividos em
pleno para a profissão e para as outras actividades em que me envolvia.
Chegados os 28 anos, algo de errado se passava com a minha vida.
Pois nos últimos meses, sempre que havia uma festa com amigos e eu
bebia demais, acabava a noite sempre a chorar e lamentando-me que ―a
minha vida não prestava, que não sabia o que estava ali a fazer…‖

- 134 -
Nesse ano resolvi experimentar pela primeira vez o que era fazer
sexo com outro homem. O que até ali tinha acontecido com mulheres,
com muito pouca frequência e prazer.
Aconteceu num sábado à noite, depois de umas bebidas e foi muito
gratificante. A partir daí percebi que de facto era aquilo mesmo que eu
gostava, que me dava prazer, que me deixava feliz.
Uma nova etapa começava para mim: eu tinha feito o meu coming
out, mas era apenas para mim. Iniciei uma vida dupla. De dia era o
profissional, o amigo e familiar que todos conheciam e, pela calada da
noite, era um gay que fazia encontros fortuitos com outros homens para
satisfação dos desejos carnais. Estava decidido que nunca iria contar a
ninguém, muito menos à minha família. Teria sido terrível e doloroso
para todos.
Vários homens passaram pela minha vida, uns apenas de cariz
sexual, outros com relações afectivas significativas. Mas sempre vivendo
uma vida dupla e repleta de secretismo e mentiras, quer à família, quer
aos amigos mais íntimos. A minha vida pessoal e íntima era um teatro,
no verdadeiro sentido da palavra, pois sempre que se falava de algo deste
campo eu tinha de mentir… para não dizer a verdade: ou que ia passar o
fim-de-semana com o namorado ou que ele ia jantar lá a casa, etc.
Com o passar do tempo e como a ―mentira tem perna curta‖
facilmente comecei a ser confrontado pelos amigos, com alguns
episódios, e percebi que talvez fosse melhor contar-lhes a verdade, uma
vez que cada episódio/confronto me fazia criar outra mentira.
Novo turbilhão surge nos meus pensamentos e nas minhas emoções
―e se eles deixam de gostar de mim? Se afastam de mim?...‖ Como
poderia eu contar-lhes que era gay? Eles nunca me iriam aceitar. Mas a
necessidade de contar tornava-se soberana. Até porque começava a estar
cansado de mentir, de não poder partilhar as minhas alegrias com eles
como eles faziam comigo.
Decidi então fazê-lo de uma forma gradual e individualmente.
Comecei por contar àquela amiga que parecia ser a mais imatura e
menos crítica de todos. A conversa foi muito longa, cheia de rodeios e
contornos, dizendo as frases que todos conhecemos e usamos: ―tenho
uma coisa para te contar… espero que não deixes de me falar nem te
- 135 -
afastes de mim… não queria nada que deixasses de gostar de mim… isto
custa-me tanto… tenho medo que mudes a tua opinião acerca de mim…
eu não vou deixar de gostar de mim… eu vou ser sempre a mesma
pessoa que fui até aqui…‖ A reacção foi a mais espantosa de sempre e
de todas até hoje: ―Uau! Tenho um amigo gay!‖ E começou um
bombardeamento de questões acerca da minha homossexualidade, pois
afinal ela nunca tinha conhecido nenhum gay ao vivo.
Pedi-lhe um grande secretismo, pois tinha medo que os outros se
afastassem. Principalmente porque eram pessoas de grande importância
afectiva para mim. Mantive o segredo com ela por bastante tempo.
Demais talvez. Pois ela começou a ser cúmplice de algumas mentiras e
pareceu-me injusto.
Rapidamente e sempre individualmente fui contando a cada amigo.
E as reacções foram todas muito boas. Cada um reagiu de acordo com a
sua personalidade. Foi engraçado perceber que para quase todos eles não
era uma novidade, mas apenas confirmei uma suspeita de longa data.
Chegado a esta altura de equilíbrio, estava decidido que à família
nunca contaria. E assim foi até ter descoberto o que era amar alguém
verdadeiramente.
Quando conheci o que actualmente é o meu companheiro de vida,
sem grandes hesitações e pensamentos decidi que teria de contar aos
meus pais. Agora sim fazia questão de não viver mais na mentira; de ter
uma vida clara como a de todos os que me rodeavam. Como por
exemplo o meu irmão, que tinha uma namorada com quem vivia e toda
a gente sabia, como sabe qualquer heterossexual.
Estava decidido que a partir daquele momento a minha vida seria
vivida sem me esconder do mundo nem de ninguém, como qualquer
outro ser humano.
Um domingo, durante um almoço e após ser confrontado com mais
um episódio da minha vida resolvi desmentir o dito episódio e revelar
que tinha mentido porque estava com um homem. Contei-lhes então
que o filho era gay.
Como diz o ditado ―caiu o Carmo e a Trindade‖. A reacção foi a
esperada: fui posto fora de casa (onde eu não residia, pois tinha casa

- 136 -
própria) e onde me pediram para não mais voltar, pois a partir daquele
momento só tinham um filho.
Várias tentativas de aproximação foram feitas por alguns familiares
nos quatro anos seguintes. Todas insucessos. Em vários telefonemas fui
verbalmente agredido e ofendido. Até que as tentativas terminaram e
cada um seguiu o seu caminho.
A minha vida tornou-se bastante mais feliz, pois nunca mais tive de
mentir a ninguém e a minha relação com a pessoa que amava, estava
cada vez mais sólida.
Após quatro anos e sem intencionalidade alguma dava-se um
reencontro no meu local de trabalho. Os meus pais demonstravam uma
alegria de quem tinha visto o renascimento de um filho. A partir dali
começa uma reaproximação e o reinventar de uma nova relação entre
pais e filho. Desta vez com mais um elemento, o meu companheiro.
Até hoje as relações mantêm-se de vento em popa, com tudo aquilo
a que tem direito uma relação, os afectos bons e os maus, as diferenças
que nos fazem desencontrar, como em qualquer família.
Mas o mais importante foi a redescoberta de um filho, que
surpreendentemente os fez reformular a forma de estar que tinham e
com quem têm vindo a construir uma relação mais sólida e segura que
antes. Esse filho afinal não era um anormal nem deficiente como eles
imaginavam. Esse filho afinal tinha uma vida igual à de tantos outros
seres humanos, com todos os sabores e dissabores que a vida
proporciona.

Jorge M.
37 Anos
#120

- 137 -
Uma vida depois de outra vida
É uma história banal, mas que para mim fez toda a diferença. Desde
criança que me sentia ―diferente‖ mas não entendia essa diferença.
Encaixava mal na polaridade de géneros. Gostava de jogar à bola, ao
berlinde, às guerras e às histórias de aventuras. Preferia a companhia dos
rapazes e reagia mal à excessiva intimidade que as raparigas tinham umas
com as outras. O seu toque deixava-me ―gelada‖, pouco à vontade. Mas
não me sentia ―do outro género‖, apenas não assumia os dados sociais
de ―ser menina‖ ou ―ser mulher‖. Namorei e fiz grandes amizades,
continuava a sentir-me ―one of the guys‖ quando estava num grupo
misto.
Depois quis ter uma família. Casei com o rapaz que gostava de
crianças como eu e que queria uma casa, alguns filhos, um lar. Tentámos
ser felizes, tivemos duas lindas crianças e o casamento foi morrendo, de
morte natural. Sem grandes animosidades, apenas porque o tempo não
pára, nem perdoa, e a amizade não foi suficientemente forte para nos
prender. Ao fim de dez anos a agir sem reflectir muito, senti-me livre e
com vontade de recomeçar. Percebi que o gosto por ―olhar para as
mulheres‖ não tinha passado com a idade, antes se mantinha intacto e
começava finalmente a fazer sentido.

- 138 -
Foi ao mesmo tempo épico e doloroso. Tinha 36 anos e sentia-me
ridícula. Todos os meus amigos e amigas homossexuais o eram desde
que os conhecia, identificavam-se como tal desde, pelo menos, a
adolescência. Será que eu estava enganada? Aos poucos fui percebendo
que não. Se engano havia, tinha sido na minha vida ―anterior‖. Ou talvez
não. Essa vida foi parte do meu percurso, sem ela não seria quem sou. E
teve momentos felizes e dois frutos maravilhosos. Mas confesso que
tinha alguma vergonha de mim. Senti-me mais acompanhada quando
uma amiga lésbica me contou que a namorada, um pouco mais velha, já
na casa dos 50, conhecia várias pessoas com um percurso semelhante ao
meu. Respirei fundo: afinal não era a única a não reconhecer/ aceitar os
sinais que agora consigo encontrar no passado, mas que na altura não
me mostraram a verdade. Isto foi muito importante, saber que não era a
única, nem era ridícula, apenas me tinha limitado a fazer o que a
sociedade esperava que eu fizesse, aquilo para o que tinha sido educada e
que não contestava: ser heterossexual.
Passei a ser uma pessoa mais inteira, mais em paz comigo mesma.
Aos poucos fui comunicando às pessoas que importavam, apresentando
a namorada à minha mãe, aos meus filhos, aos amigos mais chegados,
aos colegas de trabalho. As reacções foram sempre de aceitação (e não
concebia que assim não fosse, por isso eram pessoas importantes para
mim) apesar de não isentas de estranheza e questionamento. Entretanto
vivia uma história de amor da era das tecnologias mas perfeitamente
―tradicional‖.
Descobrimo-nos através de um site lésbico, curiosamente não se
tratava de um local de encontros mas de um sítio para troca de ideias e
opiniões. Iniciámos uma troca de e-mails, meses depois uma troca
(diária!) de sms e, finalmente, após um encontro para tomar um café, um
namoro como penso que será qualquer namoro independentemente da
orientação sexual. Conhecer, gostar do que se conhece, ir vivendo etapas
de descobrimento e enamoramento. Até que resolvemos viver juntas, ser
uma família. Com as alegrias e dificuldades de qualquer casal, creio. O
caminho se vai fazendo à medida que nele andamos, com a consciência
de que não queremos ser diferentes mas apenas iguais na diversidade.
Apenas sonho com o dia em que nos permitam a indiferença para fazer
- 139 -
os pequenos gestos que, neste momento não me permito, para não
perturbar a hipocrisia vigente. Se tod@s @s meus amig@s se despedem
d@s companheir@s com um beijo nos lábios porque é que eu tenho de
fazê-lo com um fraterno beijo na face?

S. M.
42 Anos
#3

- 140 -
Rodeada de Solidão
Não posso dizer a partir de que momento soube que gostava de
pessoas do mesmo sexo. Revivendo memórias penso para mim mesma
que deveria ter sido mais do que evidente. Mas, quando toda a nossa
vida se ouve dizer que temos que comer gelado de baunilha e que o
gelado de chocolate está apenas lá para enfeitar, obviamente vamos
procurar o melhor gelado de baunilha que encontrar-mos, na esperança
até de agradar a nós próprios.
O dia em que me aceitei como homossexual foi bastante difícil para
mim, não queria acreditar que tinha entrado num mundo que não
conhecia à força. Felizmente fui corajosa o suficiente para o encarar com
coragem e decidi, como primeiro passo, entrar num grupo de Apoio a
LGBT. Foi das melhores decisões da minha vida porque a solidão é algo
comparável a estar rodeada de bolos de baunilha quando só queremos
um bolo de chocolate.

Alice "Freak" Sampaio


20 Anos
#12

- 141 -
ESCOLA

- 143 -
Escola
Escola, o lugar que mais gostava, onde podia estar com os meus
amigos, aqueles com quem me refugiava e me sentia outro, porem um
dos sítios mais temidos, onde cada olhar e sorriso de gozo me fazia
andar de cabeça baixa, com a confiança bem no fundo, e ainda as
palavras que me derrubavam e faziam querer fugir dali e esperar que
tudo fosse apenas um pesadelo.
Eu, um rapaz simples, de roupa discreta, tímido e introvertido,
nunca chamaria muita atenção, porém baixo e magro, aspecto
inofensivo, incapaz de ripostar qualquer comentário. Tudo começou no
secundário, no início, provavelmente quando "saí do armário".
Continuava a ser o mesmo rapazito mas, mais alegre, feliz e confiante
por me poder expressar com alguém, os meus amigos. De alguma forma
tornei-me um alvo, nada de específico, apenas se metiam comigo para se
divertirem, deviam achar graça ao gozo. A dada altura conheci um rapaz
mais novo do 7º ano, seria bom ter um amigo que pensasse como eu,
mas não foi isso que aconteceu, apesar de novo, este já tinha "saído do
armário" há muito tempo, mas ainda muito imaturo, e não muito
diferente daqueles que eu mais temia. Não conseguimos ser amigos, este
insistiu que não gostava de mim, não me fez diferença.
Os dias e meses foram passando, o medo não, e os ataques
continuavam, mas algo evoluiu para pior, alguns já sabiam; fiquei

- 145 -
aterrorizado com o que pudesse acontecer se todos soubessem. O apoio
dos amigos tornou-se mais forte também, sempre comigo prontos a
defender-me, sentia-me mais protegido, mas muito mais frágil sem eles.
Prestava atenção quando alguém me dirigia a palavra e deparei-me com
uma infeliz descoberta, eram miúdos do 7º ano, da turma do rapaz. Só o
facto de serem mais novos, os tornava mais perigosos. Sem nada que
pudesse fazer, tive de passar o secundário a resistir, e a permanecer no
escuro quanto ao assunto.
Perto do final, sem nenhuma ocasião nem motivo especial, meti
conversa com uma rapariga, ex aluna daquela turma que conheci na
altura. Uma conversa comum, vida, aulas, tempo, essas coisas, entretanto
o assunto mudou, e voltou atrás no tempo, em que falámos de um
determinado rapaz. Eu nem tive de fazer nenhum comentário, ela falou
por si mesma, e não muito bem dele, falou no seu mau génio,
imaturidade, e esta sabendo que eu era gay tinha coisas para me contar, a
mais grave, foi ele quem espalhou a palavra, não sendo nada diferente de
mim. Para piorar, ele não era um rapaz que simplesmente escondia o
assunto, mas que o camuflava com algo totalmente o contrário, segundo
ela, para os olhos de toda a gente ele era um rapaz gozão, heterossexual
e homofóbico, totalmente contra "essas tendências". Não sabia que
dizer, por um lado não me espantei, depois de tudo pelo que tinha
passado, por outro não fazia ideia como era possível existir alguém
assim tão cínico e cruel.
Acabou o secundário, passou a ser mais fácil andar por aí, poder
olhar em frente sem me sentir em perigo. Continuo a ser discreto e as
pessoas, a maioria sem saber de nada, mas isso não me impede de ser
quem sou e feliz com as pessoas de quem gosto e gostam de mim.
Esperando que um dia já não seja preciso escondermo-nos.
Não tentes ser tu a tempo inteiro, não resulta, mas sê o mais
genuíno que conseguires, sempre que puderes, para aquelas pessoas do
teu coração!

José F.
20 Anos
#110
- 146 -
O armário é apertado
Tinha 13 anos.
Andava num colégio privado desde os meus 6. Conhecia toda a
gente, desde professores, empregados, directores, até aos alunos.
Aquelas pessoas eram uma segunda família, era bom ir para a escola,
tinha sempre alguém com quem falar.
Como qualquer miúda de 13 anos tinha uma melhor amiga.
Chamava-se Mónica, o apelido é irrelevante. A Mónica namorava com
um rapaz de 19, que era serralheiro e trabalhava na minha rua. Então
depois das aulas ela vinha comigo até minha casa, esperar que ele saísse
do trabalho, e depois iam os dois à vidinha deles. Nunca teci nenhum
tipo de comentário, e na minha inocência, para mim era tudo normal.
Até que um dia chego à escola e a Mónica simplesmente não fala
comigo, e a maioria das pessoas olha para mim de lado. Não sei o que se
passa, não fiz nada a ninguém, sempre me dei bem com toda a gente.
Nos intervalos toda a gente fala baixinho e aponta para mim, mas
ninguém fala directamente comigo. Se me sento mais perto de alguém
ouço sempre comentários que não percebo.
Afinal o que é uma fufa? E uma sapatona? E bem, lamber carpetes
não me parece assim tão apelativo sinceramente.

- 147 -
Hoje só quero mesmo sair daqui, afinal o colégio não é assim tão
bom hoje.
Hoje vou sozinha. A Mónica não fala comigo, e nem vale a pena
esperar por ela.
Fufa – (calão ofensivo) homossexual feminino, lésbica
Sapatona – feminino de sapatão, (calão, pejorativo) homossexual
feminino
Lésbica? É isso que eles me estavam a chamar? Mas, eu não gosto
de raparigas, não nesse sentido... Pois não? Quer dizer, nunca senti nada
de especial por nenhum rapaz, mas também nunca senti nada por
nenhuma rapariga, pois não? Ai, mas o que é que eu fiz para de repente
começar isto? E porque é que a Mónica não me fala?
No dia seguinte continua a mesma história.
Nas aulas em si, corre tudo normal. Nos intervalos ninguém me fala,
mas os sussurros são mais óbvios e directos ainda. E continua assim
durante mais uns dias.
Finalmente alguém fala comigo. A Mónica acabou com o namorado.
Diz que a culpa foi minha, que me andei a fazer a ela. Eu nunca fiz nada.
Nunca lhe toquei sequer, nem para dizer olá ou adeus. Mas porquê?
Passam uns meses, o ano está a acabar. Algumas pessoas já falam
comigo, o assunto acabou por morrer para eles. Para mim continua a ser
uma luta diária. Será que ela tem razão e eu sou lésbica? Não, não posso
ser. Eu sou como todas as outras miúdas, certo?
O novo ano começa e o Pedro convidou-me para sair. Vou com ele,
eu não sou lésbica. Ai, ele quer-me beijar. Não, por favor não. Pára, por
favor. Namorar contigo? Mas, mas eu não gosto de ti, não assim. Dá-me
uns dias para pensar. Porque é que não o deixei beijar-me? Ele não é o
rapaz mais giro da escola, mas é fofo e querido, e até gostamos das
mesmas coisas. Mas, beijá-lo? Não... Isso não...
Desculpa Pedro, não és tu, sou eu. Simplesmente não gosto de ti
assim. Não! Claro que não sou lésbica! Simplesmente gosto de outra
pessoa. Não interessa quem, não te vou dizer porque não interessa. Não,
não é a Zélia nem a Daniela, estás parvo? Ok, é o Zé, estás feliz?

- 148 -
Ai, porque é que lhe menti? Amanhã já toda a gente vai saber que
foi isso que lhe disse e ficar a achar que eu gosto do Zé... mas não gosto.
Também não gosto da Zélia nem da Daniela, mas o Zé é só meu amigo.
Antes adorava estar aqui, agora só quero mudar de escola. Vá Sara,
no final do 9º ano vais para outro lado. De vez em quando ainda há o
comentário da fufa isto, camiona aquilo. Já nem entro no balneário das
raparigas de Educação Física, troco de roupa na casa de banho, tomo
banho em casa. Cansei-me de ter as miúdas a fugirem só porque eu
entrei.
É bom saber que vou para o Porto estudar. Ao menos lá ninguém
me conhece, e ninguém me vai chatear. Dois anos desta tortura são
suficientes, e afinal, eu não sou lésbica, portanto é injusto. Ainda bem
que o psicólogo me ajudou a convencer a minha mãe, ficar em
Ermesinde ia ser o terror.
O Porto é grande, gosto disto.
A minha turma é porreira, ninguém me trata mal, e ao menos não
me chamam de fufa dia sim, dia não. Ok, Educação Física, e agora? Aqui
não tenho desculpa para trocar de roupa na casa de banho, portanto vou
para o balneário com elas.
*Gulp* será que é normal não conseguir olhar para elas enquanto
mudam de roupa? Estão tão descontraídas, será que sou só eu que sinto
isto? Vá, Sara, é normal, tem lá calma. Vá, descontrai miúda, é normal
olhares e comparares o teu corpo com o delas… Sim, é isso, estou só a
comparar. É isso. Ok, não é. Mas, eu não posso ser lésbica. Quer
dizer… Isso é uma perversão certo? Eu sou só uma miúda de 16 anos
perfeitamente normal, porque é que isto me está a acontecer a mim?
A Internet, claro! Vou à Internet procurar ajuda, não devo ser a
única pessoa assim. Hum, afinal não é uma perversão, é só outra forma
de viver a sexualidade. Nah, não é assim tão simples de certeza. Vá,
concentra-te é em rapazes que isso passa.
Olha, filmes LGBT. Vamos lá ver alguns. Isto não era suposto fazer
sentido, certo? Ai Sara, pára de lutar contra as evidências. Tens 16 anos,
nunca gostaste de rapazes, no entanto já fizeste das tripas coração por
amigas. Esquece miúda, és lésbica...

- 149 -
Pronto, ok. Vamos lá ver mais uns filmes. Ok, isto faz mesmo
demasiado sentido...
Na faculdade não era suposto as pessoas serem mais open-minded? Já
paravam com as piadas, a sério. A rapariga nem bi é, só não põe de parte
a possibilidade de se apaixonar por uma mulher, larguem o assunto…
ok, pessoal, é assim, ela põe a possibilidade, eu sou mesmo. Sim, sou
lésbica, gosto de gajas! Não te preocupes Carina, eu mudo de sítio,
escusas de estar no colo do Miguel.
Idiotas...
Tiago. Tenho uma coisa para te contar. Não, não é nada de grave,
não te preocupes. Olha, sou lésbica. E... Nada, só achei que te devia
contar, és o meu melhor amigo... Como é que sabias? Conheces-me
melhor que eu mesma. Ok, ok, partilhamos o quarto na mesma casa em
Faro.
Olha, eu hoje vou sair com uma amiga de cá ok? Depois peço ao
senhor da portaria para me deixar entrar, escusas de esperar acordado.
Olá C. Sim, vamos ao teatro então. Oh my god, oh my god, oh my
god ela é tão normal. Vamos então a um bar agora com as tuas amigas.
Não, não bebo, obrigada. Show? Drag? Isto até é giro. Este pessoal é tão
normal. Obrigada C, foi uma noite mesmo gira. E sim, prometo que vou
começar a ir ao CNP e conhecer pessoas. Obrigada por tudo, tu e o Alex
são uns lifesavers, e não, o dito mundo gay não é nenhum antro.
Obrigada.
―Sou só eu Tiago, volta a dormir.‖
Faro é giro, mas gostava de perceber o que é que eu fiz para
ninguém querer saber de mim hoje. Porque fui sair com ela ontem e não
fiquei no hotel com vocês? Estás a gozar não estás? *suspiro* não
aconteceu nada entre nós Tiago, ela é só minha amiga. Ah bom,
portanto estão bem com a minha homossexualidade enquanto conceito.
Caso se torne algo mais real, já não é bem assim. Tu também pensas
assim? Vá, ao menos isso.
Não Alex, não falam comigo quase. Tenho ido ao CNP e fico por lá
a estudar. Oh, não vens cá de propósito para isso. No sábado? Mas, não
sei se posso. Ah ok, pronto, eu vou ter contigo.

- 150 -
Olha, conheço aquelas raparigas do CNP, e aqueles rapazes
também. São pessoas tão normais. Não era suposto serem estranhos?
Afinal os filmes não são assim tão fantasiosos. Sim Alex, vou voltar a
mais reuniões da ex aequo, prometo. A sério, juro-te que venho, só se
estiver a chover, afinal é Inverno pah!
Véspera de S. João e eu venho aqui outra vez… Conhecer umas
miúdas da ex aequo. Já não vou lá há meses. Obrigada por vires comigo
Zé, a sério, até tenho medo do que vou encontrar. Oh God, quem és tu?
Sim sabemos inglês, porquê? I don’t even think straight! Sim, tem piada! Oh
God, não olhes tanto para ela.
Ok, vamos para outro lado.
Ela tem os lábios tão suaves, está certo.
É isto. Eu sou lésbica.

Sara Oliveira
24 Anos
#4

- 151 -
O Professor
Esta é uma história simples, sobre o meu processo de aceitação da
diferença...
Estava no fim da minha adolescência, estava naquela fase do meu
desenvolvimento intelectual, em que o "Grupo" é a coisa mais
importante da minha vida. É através dele que nos revelamos. É com a
ajuda dele que nos descolamos da família e que começamos de facto
construir uma identidade própria. Como qualquer um, eu queria
pertencer a um grupo, ao melhor grupo. Nesta altura tudo o que não é o
"Grupo", pode ser alvo de desdém, por ser diferente, porque é pior,
porque é mais feio, mais fraco, o importante é que é diferente, e isso faz-
nos sentir mais unidos.
A sexualidade está numa fase de rápido desenvolvimento e
descoberta. A homossexualidade, é encarada como uma das diferenças
mais difíceis de aceitar e nem se tenta perceber, pelo contrário, condena-
se à partida, não vá alguém achar que eu também sou gay. É uma
fraqueza! É uma das formas mais frequentes, para gozar dentro do
próprio grupo, para dizer que alguém é mais fraco. É um insulto.

- 152 -
Este "Grupo", teve um dia que lidar um dia com um Professor de
Português, estagiário, gay, cheio de "tiques", e tinha um namorado que o
ia buscar à escola.
Era o alvo perfeito, para o "Grupo". Era algo de novo, era o mais
diferente possível, daquilo que queríamos ser e mostrar ao mundo.
Na aula de apresentação, uma troca de olhares entre nós a dizer,
"estás a ver o que estou, mas o que é isto? nunca pensei, um stôr
maricas...". Logo depois, os burburinhos entre os pares, e o Professor
calmo e sereno, com um tom de voz tranquilo ao apresentar-se.
Os comentários intensificam-se, são cada vez mais evidentes, até
que, o Professor aponta para mim, e dizendo o meu primeiro e último
nome, pergunta-me se eu estou com algum problema que queira
comunicar. Eu engulo em seco...e penso "estou lixado!" Mas o Professor
não descansou e perguntou ao meu colega do lado, pela irmã que
também estudava na escola e nem era aluna dele. Esta reacção
propagou-se a vários elementos do "Grupo", revelando um
conhecimento de cada um de nós como individuo, o que nos deixou
muito assustados. "Mas como é que ele já sabe isto tudo sobre nós?
estou marcado!".
Quando a aula terminou, o tema de conversa do "Grupo" estava
longe de ser a apenas a homossexualidade do Professor. Era
principalmente o nosso medo do resto do ano, e deste gajo que já sabe
tanto sobre nós...
Na aula seguinte na aula, éramos nós que evitávamos dar nas vistas.
Isto deu um avanço fundamental ao Professor. Começámos a ouvir o
que ele dizia, primeiro por medo, depois por uma questão de interesse.
Ele tinha uma perspectiva do ensino completamente diferente do que
conhecíamos. Não estudávamos gramática, não aplicávamos regras aos
textos. Interpretávamos e éramos incentivados a partilhar o que
sentíamos, não havia certo nem errado, só o que sentimos. Fazíamos
debates de ideias, falávamos da morte, eutanásia, drogas, de sexo e
sexualidade, filosofia, fazia-nos pensar e falar sobre isso, e escrever sobre
o que pensávamos. Ele cantava opera na aula, até a auxiliar vir pedir para
fazermos menos barulho porque alguém se queixou, assim que ela saía,

- 153 -
ele parava, mas só no fim da música. Quebrávamos a rotina,
quebrávamos as regras. O Professor passou a ser o João.
Lembro-me que fizemos pelo menos 5 visitas de estudo, oficiais.
Fomos ao cinema, ver filmes, de terror, eróticos, escrevemos um guião
de um filme, fizemos um vídeo, fomos para a Gulbenkian ouvir opera,
ouvir falar de música, fomos ao teatro, fomos ao bairro alto, bebemos,
fumámos, fomos para a Régua passar 3 dias, fomos a todo o lado. Ele
responsabilizou-nos pelos nossos actos. A cada lugar onde íamos havia
sempre uma ligação ao plano curricular, pelo menos o João fazia
acreditar toda a gente da direcção da escola, que era assim. Depois de lá
estarmos, motivados e surpreendidos, todos ouvíamos o que ele tinha
para dizer e aprendíamos Português.
Português era a nossa disciplina favorita.
O João era o maior.
O ano acabou. Os exames correram bem, quase toda a gente teve
melhores resultados a Português do que nos anos anteriores, e não me
lembro de fazer uma análise da gramática de um texto. Mas sei que fiz.
No fim do ano, o João era admirado pelo "Grupo", era um dos
nossos.
A sexualidade dele...e o que é que isso interessa?
Já não era problema, era só uma diferença.
Dois anos depois ligou-nos para saber se tínhamos entrado na
faculdade, e enviou um postal a cada um de nós no dia de aniversário.
Para nós, passarmos a admirar alguém que à partida tinha um
problema, que era inaceitável, teve um grande impacto. Se calhar isto de
ser gay, não é assim tão grave, caso contrário eu não o admirava tanto.
Para estes 20 ou 30 adolescentes, foi um ano brutal, e sem
percebermos, tínhamos crescido muito com o João e ainda aprendemos
Português.
Temos instintivamente a tendência de nos agruparmos para nos
sentirmos seguros e socialmente fui sempre incitado a achar a
homossexualidade como algo inaceitável. Vivi esta experiência que
descrevi, e aprendi a ver as coisas de outra forma, mas os instintos ainda
cá estão, e luto contra eles todos os dias.
É um processo demorado, inacabado, que tenciono levar até ao fim.
- 154 -
A todos os que já sofreram por causa deste "Grupo" grande que é a
sociedade e que precisa de amadurecer, peço-vos coragem.
Tenham paciência, nós chegamos lá!
Grande Obrigado ao João.

Paulo Jesus
29 Anos
#97

- 155 -
FAMILIA

- 157 -
Nova Realidade
Olá, eu hoje tenho um pai homossexual, antes também poderia ser
assim mas eu não vivia essa realidade.
Tudo começou quando um dia ele resolveu contar-me, surpreendeu-
se pois eu reagi muito bem à situação, eu fui a primeira pessoa a saber
no momento senti-me estranha, pois eu já suspeitava mas quando nos
confrontam directamente com a situação é diferente. Eu tinha a perfeita
noção de que com isto o meu pai iria deixar a minha mãe e viver com a
pessoa de quem gosta (que hoje é o meu "pai nº2"), essa foi a parte
complicada, como eu fiquei um bocadinho calada, o meu pai só
perguntou "e então o que é que achas?" e a única coisa que eu disse foi "
Segue o coração e sê feliz ". Mais tarde as pessoas do sitio onde vivo
descobriram, tive e ainda tenho que lidar com certos olhares, algumas
pessoas já não me falam quando vou na rua, bem é dificil, mas com o
tempo vai-se ultrapassando.
Hoje em dia o meu pai vive com o meu "pai nº2" e são felizes, e
divirto-me muito quando estou com eles, o meu pai vive mais ou menos
a 130\140 Km de mim mas só de pensar que ele está feliz, eu também
estou, para além de que me orgulho muito do meu pai, pois assumir uma
relação a tanta gente, só os que passam por isto é que sabem o que essa
pessoa sofre, o quanto chora, o quanto se afasta para poder pensar no

- 159 -
que se esta a passar na sua vida, bom são momentos agitados que depois
valem a pena.
Com este texto o meu objectivo é dar apoio aos pais que estejam
nesta situação, e a esses pais digo o mesmo que disse ao meu " Sigam o
vosso coração e sejam felizes".

Ela
16 Anos
#77

- 160 -
Desejo de Fuga
Eu sou um adolescente a caminho dos 18, vivo em Coimbra e sou
homossexual. Assim como muitos outros, sou filho de pais
homofóbicos. A minha mãe considera que é algo anti-natura e o meu pai
é quase literalmente alérgico visto que não pode ter sequer contacto
visual (nem por televisão) com qualquer tipo de homossexualidade que
se sente revoltado, nervoso, repugnado. Tenho irmãos mais velhos e,
por estranho que pareça, não faço ideia qual a sua opinião por ele não a
manifestar. Da minha família ninguém sabe da minha homossexualidade,
apenas parte dos meus amigos, a parte que acredita (para mim os meus
amigos são a minha família).
Porque me julgo diferente o suficiente para querer partilhar os meus
planos e os meus sonhos? Por uma razão que, digo desde já, pode não
ser a atitude mais correcta para se ter, mas eu não consigo procurar a
aceitação dos meus pais. Eu não me imagino a trancar-me com os meus
pais e a tentar explicar-lhes o eu que eles não conhecem. Eu não me
importo de viver uma mentira enquanto estou em casa (embora tenha,
por vezes, vontade de lhes dizer), eu apenas quero ser feliz longe daqui,
numa outra sociedade, quero recomeçar a minha vida, criar uma nova
família, uma ―nova etapa‖ na árvore genealógica, uma que conheça os
valores da igualdade e da aceitação, é esse o meu sonho.

- 161 -
Os meus pais tiveram-me e como tal vão-me sustentar até eu ter
condições para, e por tal lhes estou grato, trato-os como qualquer outro
filho e eles têm orgulho em mim, mas não consigo nem quero tirar a
necessidade de fuga dentro de mim. Uma vez acabado o curso pretendo
ir viver o mais cedo possível para outro país, noutro continente. Quero
ter alguém como eu, quero ter filhos, quero começar a viver a minha
vida o mais depressa possível visto que ela é bastante curta.
Gostava também de falar da minha ideia de homofobia. A
homofobia (enquanto moderada) não é necessariamente aquele bicho-
de-sete-cabeças. Eu pergunto-me inúmeras vezes, se não houvesse
homofobia, se houvesse realmente igualdade, haveria algum desejo de
luta, de revolta, de se impor perante a sociedade? Haveria uma Bandeira
do Orgulho Gay? Haveriam Paradas do Orgulho Gay? Os
heterossexuais também não lutam pelos seus direitos, não têm uma
bandeira, nem sequer sabem o que é ter orgulho na sua orientação sexual
visto que são apenas mais um no meio da ―norma‖ por assim dizer. Por
muito que nos possa fazer sofrer nas mais diversas situações, nós
conseguimos sempre dar-lhe a volta e trazer algo de bom do buraco
negro que é a homofobia.

Vasco
17 Anos
#21

- 162 -
O último a sair que feche o
armário
O testemunho que envio foi escrito por mim, há um ano atrás,
numa altura em que o meu coming out às pessoas que mais amo tinha
sido recente. Como tal, decidi preservar o testemunho e enviá-lo tal
como foi escrito. Se tivesse alguma coisa a mudar seria mesmo apenas
acrescentar mais um ano à relação com a minha namorada.
Ouço muitas vezes dizer que os pais sabem tudo sobre os filhos.
São os pais que estão presentes desde o momento da concepção. São
quem desejou tanto o seu bebé e quem já, precocemente, criou uma
relação de vinculação com ele. Esta relação é construída e reforçada
pelas fantasias da mãe, e hoje é possível ver uma participação mais activa
do pai face ao bebé. Nesta altura, a vida de um ser humano é
completamente idealizada. Os estereótipos entram em acção ainda a
criança não nasceu. Desencadeia-se um conjunto de suposições sobre o
sexo do bebé (está clara a sua importância, qual é o pai que compraria
roupinha azul para uma menina ou de outra cor sem ser esta para um
rapaz?!), com quem será parecido, como se comportará. Indispensáveis
são os projectos que os pais fazem relativamente à criança, que vão
desde os simples passeios ao seu futuro mais sério e remoto. Estas

- 163 -
fantasias servem de suporte para uma educação apelidada como
socialmente aceite e dentro da normalidade, desprovida de quaisquer
devaneios, entenda-se, desvios à normatividade. As expectativas e o
vínculo que os pais criam em relação a um bebé imaginário que se
ajustará, após o nascimento, a um bebé real, quebram-se imediatamente
quando algo nesse fruto de expectação e capricho não vai de encontro
ao propósito, anseio, dos pais em relação ao seu filho. E numa sociedade
heterossexista, essa aspiração dos pais é de certeza antónimo de
homossexualidade.
A percepção da homossexualidade pode dar-se na tenra idade e isso,
de facto, está presente em mim desde os tempos do ensino primário.
Hoje pergunto a mim mesma como é que pais que dizem conhecer tão
bem os filhos, reparam na sua homossexualidade e fazem a coisa mais
cruel e alucinada que é ir contra a sua natureza e quase levá-los à
loucura? É sabido que, por mais que as famílias se manifestem
destituídas de preconceito, encarar a realidade de um filho é mais duro
do que encarar a realidade de filhos de outros, desconhecidos. No
entanto, muitos pais teimam não ver a realidade, inconscientes do mal
que isso pode causar a um filho homossexual.
No meu caso, fez-me ver a vida noutra perspectiva...em todos os
sentidos!
Namoro há cerca de três anos, com uma rapariga fantástica que,
embora seja o meu oposto, completa-me. Desde miúda que sinto
atracção por raparigas e muitas vezes, talvez num ímpeto de
imaturidade, dizia ―Não me chateiem com os rapazes, eu gosto é de
raparigas!‖. Algo que das duas uma, ou não foi levado a sério pelos meus
pais, ou então taparam os ouvidos e fingiram que não ouviram. Mas para
o início duma relação incerta, que começou aos quinze anos essa
necessidade de coming out nunca veio ao de cima. Uma relação que
começou por acaso e que só passado mais de um mês me parou e fez
pensar qual seria então a minha orientação sexual. Sem hesitações
descobri-me a mim mesma e sei que sou homossexual. Mas a agonia de
ter de enfrentar uns pais que vêem ou dizem ver a homossexualidade
como uma doença (sim, dizem ver, pois no íntimo são cultos suficientes
para saberem que não, mas razoavelmente manipuladores para me
- 164 -
fazerem crer o contrário), fez-me viver quase três anos de mentira. E
embora pareça que não, era uma mentira construída todos os dias e que
condicionava grande parte da minha vida: era muito estranho para eles
porque é que eu falava tanto ao telemóvel, porque é que eu vivia tanto
os problemas da Rita, porque é que era assim tão mau ir passar férias a
um sítio sem rede móvel, porque é que afinal em certas ocasiões e
contextos eu ficava tão inquietada... O medo foi-se apoderando de mim,
mas hoje acredito que isso também se deveu à minha personalidade e
imaturidade, pois eu noto que com o passar dos anos pareço ter dado
um grande pulo e tornei-me mais convicta, segura e autónoma.
Numa mera pesquisa, encontrei a rede ex aequo e foi, sem dúvida
alguma, esta associação admirável que me abriu caminho para ser quem
sou e me esclareceu imensas dúvidas. Talvez me tivesse provocado um
pouco de tormento quando eu ansiava ir a uma reunião, mas tinha uns
pais que me faziam um inquérito e me ligavam a cada passo que dava e,
portanto, nunca podia aparecer. Assim sendo, achava que estava na hora
de contar a verdade aos meus pais, até porque eles mereciam sabê-la. O
problema é que eu não conseguia fazê-lo vindo do nada, mas na
sequência de uma conversa. Essa conversa aconteceu quando a minha
mãe decidiu dar-me um raspanete, ao almoço, com a família à mesa,
porque eu tinha dito à minha irmã de onze anos que a homossexualidade
não era nada de anormal, era normal depararmo-nos com muitas
pessoas homossexuais, e disse-lho uma vez que os colegas já lhe estavam
a preencher a cabeça de preconceito e ela, inocente, não percebia
porquê. E como é que a minha mãe o soube? Quando na noite anterior,
em que fui jantar com a minha tia e fazer-lhe o meu coming out, a
minha irmã teve a decência, embora no contexto errado, de dizer à
minha mãe que não via mal na homossexualidade, enquanto esta estava a
observar um anúncio pornográfico de lésbicas que passou
repentinamente na televisão, ao que ela comentou ―Estou farta de gente
anormal!‖. Imediatamente corei quando ela falou disso à frente do meu
pai, mas vi aí uma oportunidade para lhes explicar a minha condição e
desmistificar algumas ideias. O meu pai fixou-me o olhar de tal maneira
que até engoli em seco, falando-me de ―normas e desvios‖ e deitando-
me abaixo, mas de uma forma estratégica, ofensiva de um ponto
- 165 -
emocional, como se me gritasse ―burra, imatura, não dás para cursos de
ciências sociais!‖. Tentei explicar-lhe que a rapariga é criança e eu queria
que ela entendesse como ―normal‖ pessoas iguais às outras, mas ele
insistiu que o que eu queria dizer ao referir-me a ―normal‖ era que a
maioria das pessoas era homossexual e, por isso, que ela podia e devia
ser homossexual. Entendi isso como um medo deles de ter alguma filha
homossexual, fiquei revoltada, chorei, não consegui dizer nada e a minha
namorada assistiu a tudo (porque afinal, para eles, mais para a minha
mãe, ela não passava de uma amiga!). A minha namorada que até então
foi muito bem tratada pelos meus pais, como uma filha. E eu penso, será
que eles gostam mesmo dela e são tão leigos que não viram que somos
mais do que amigas ou sabiam-no e não queriam dizer, mas fizeram-no
por mim? Depois da minha revolta e da do meu pai, ele foi ao meu
quarto, abraçou-me e disse ―Desculpa filha, pronto eu já percebi!‖. E
então fiquei animada, porque pensei que ele fosse abrir o jogo. Mas não,
saiu, foi dar uma volta e quando voltou já não tocou mais no assunto.
Esta inquietação impedia-me de estudar, eu não pensava noutra coisa.
Decidi que contaria dentro de uma semana, na passagem de ano. O
problema é que a alegria irradiava-lhes os olhos, e como eu já sabia que
o meu relato lhes causava sofrimento, adiei mais uma vez a conversa.
Foi então na primeira semana de 2008 que pura e simplesmente a
conversa surgiu com a minha mãe. Ela abriu jogo (também porque eu
fui chamando a conversa), e na sua milésima tentativa de me arranjar
namorados, eu saí da sala e disse que não estava interessada em falar
com ela, ao que ela pergunta ―Sê sincera, és lésbica?‖ e a resposta saiu-
me com uma naturalidade que nunca esperei, sem dramas, sem choros,
nada...sorri: ―Sim, sou!‖. Ao fim de um minuto de conversa a segunda
pergunta deixou-me uma felicidade mais uma vez inesperada - ―Se
namoras, é bom que seja com a Rita porque ela é uma rapariga decente e
como ela não há nenhuma. É com ela?‖. Felicidade no ponto máximo.
Claro, continuei a não conseguir estudar! Mas desta vez porque estava
em euforia. Não quis acreditar que os meus pais fossem reagir assim.
Não quis acreditar que não houvesse dramas. Passei a ver tudo tão
positivamente e bonito. No entanto, fui alertada para que isso podia não
ser bem assim. E quase que me caiu o mundo aos pés. A minha mãe
- 166 -
teve uma fase estranha, falava com a Rita, mas pouco. Esforcei-me
imenso para a informar. Imprimi artigos, publicações da rede ex aequo
como forma de apoio. Mas ela disse que estava a estranhar e que
precisava apenas de tempo. Eu simplesmente não quis interferir e, de
facto, com o tempo ela habitou-se. Pensei que fosse evitar falar disso
com as amigas, por desorgulho, vergonha, desonra, mas falou. Confesso
que as amigas dela não foram grande ajuda tanto para ela como para
mim, porque sentiram hostilidade. Faltava falar com o meu pai. Dele eu
tinha bastante receio, ele é muito observador e parece que me acede ao
pensamento. Contei-lhe numa noite, com a ajuda da minha mãe para
iniciar a conversa. Ele apenas me ouviu falar e falar e falar. Disse apenas
que não ia deixar de gostar de mim pela minha orientação sexual, mas
que não entendia (e continua a não entender por mais que me esforce)
porque é que eu tenho gosto em pertencer a uma associação de jovens
gays, lésbicas, bissexuais, transgéneros e simpatizantes. Foi-se informar
quanto à associação, pois receava ser uma associação de ―engate‖.
Talvez pense assim pois para além dos preconceitos sociais, confronta-
se com os estereótipos associados a este grupo. Ainda este mês faço três
anos que namoro e este é só um episódio que eu e a minha namorada
tivemos de ultrapassar. Muitas vezes olho para trás e lembro das
inúmeras vezes que eu parava para pensar – ―Quando e como será o
meu coming out aos meus pais?‖-, e dou por mim a rir, a pensar que tive
muita sorte com os pais que tive, mas também, tal como muitas outras
pessoas LGBT, tive muita força para enfrentar as adversidades
associadas a este estigma que uma sociedade inculta e descivilizada nos
causa. Esta é só uma. E se me perguntarem porque é que me faz tanta
falta a associação eu volto a frisar o que já disse uma vez: faz-me muita
falta todo este conjunto de ligações, relações e interacções particulares
entre todos nós. É um lugar onde posso buscar apoio e recursos e onde
os disponibilizo, tornando também cada um de nós prestador de apoio,
de uma forma directa ou indirecta, e sobretudo um apoio afectivo! Tudo
isto cria um impacto positivo na redução de determinados problemas e
situações a determinados níveis, nomeadamente fornecer modelos de
relações menos problemáticas entre os membros das famílias, podem

- 167 -
providenciar também contextos onde novas soluções para os problemas
ou onde novas alternativas de adaptação possam emergir.
Esta associação ainda me faz reflectir sobre o meu comportamento;
comparo-o com o dos outros e ajo sobre eles, apercebendo-me das suas
reacções de aprovação ou reprovação face aos meus comportamentos, e
ainda interpreto a minha posição e a dos outros e crio sentidos para
essas mesmas interacções e relações que se estabelecem! Por isso em
tudo tenho a agradecer à rede ex aequo em geral!
Parabéns à associação, parabéns a todos a quem olho como ídolos e
dia após dia me fazem crescer!

Cláudia
19 Anos
#38

- 168 -
O que Somos
Podia perfeitamente contar aqui a minha história, ou a de amigos, e
até de alguns parentes, mas decidi-me pela história do meu tio.
Desde muito cedo que as histórias que os meus pais me contavam
não eram propriamente pudicas, adoravam relembrar os seus 20 e 30
anos, super-sociais em que frequentavam toda a noite que existia, a mais
alternativa, especialmente. E com eles ia o meu tio, que sendo afeminado
dava a entender logo que era homossexual. Mas ninguém protestava. Ia
tendo umas namoradas para acalmar a mãe, que nunca soube do seu
filho. Quando morreu, o meu tio pôde finalmente afirmar-se como é, e
há 25 anos que está com o seu companheiro, meu tio também.
Graças a esta aceitação, tanto eu como outros membros da família
tivemos facilidade em afirmar a nossa sexualidade, e acredito que deva
ser assim, aceitar o próximo com apoio e amor. Afinal de contas, isto é o
mesmo drama que ser heterossexual!

Skarita Montiel
21 Anos
#27

- 169 -
Este sou eu
Lembro-me de ser muito miúdo e nem sequer ter consciência do
que me estava a acontecer… a consciência veio uns anos mais tarde!
Não me lembro exactamente de quando ou qual foi a primeira vez,
mas era recorrente acordar com o meu irmão a tocar-me…
Tem mais dois anos que eu e sempre fomos muito próximos. Dois
rapazes, dois anos de diferença, irmãos, partilhava-mos o quarto, íamos
sempre juntos para todo o lado! Mas quase todas as noites acontecia…
Queria gritar, mas a almofada que me era colocada na cara, por vezes
sufocando-me, abafava o som que me saía… Não sei durante quanto
tempo aconteceu… não sei quantas vezes foram… não sei porquê, mas
nunca parava…
Aquilo começou a afectar o meu dia-a-dia, a escola, a interacção
com os outros… Ninguém percebia o que se passava repetidamente
comigo. Provavelmente era o medo que me mantinha calado… ou a
vergonha… ou até mesmo o receio de ninguém acreditar. Certo é que
aquilo continuava e eu calava!
Durante algum tempo foi assim.
Um dia nada aconteceu… no dia seguinte, nada. Nem no outro! Já
só era uma vez de quando em quando… já só era! Senti falta daquilo…

- 170 -
MERDA! Sentia mesmo falta… tanto que era já eu que provocava
situações para que voltasse a acontecer… e ia acontecendo!
Mas como seria de esperar, aquilo começou a deteriorar a relação de
irmãos que seria normal… comecei a ter consciência do que aquilo era!
Era simplesmente nojento! Era repudiante! O ódio pelo meu irmão
começava a aflorar e sufocar-me. Tudo nele me irritava, simplesmente
tudo. A sua presença deixava-me inquieto, não era suportável nem
tolerável. As brigas eram constantes, as lutas diárias. O ódio crescia…
A minha mãe nunca percebeu nada do que se tinha passado, do que
se passava… apenas nos via sempre em guerra, sofrendo por perceber
que não eram apenas as normais lutas de irmão! Eram mais fortes,
pesadas, violentas. Eu só queria que ele desaparecesse, fugisse,
morresse… algo que o tirasse da minha vida!
Mesmo depois de eu conseguir reformular a organização espacial da
casa onde todos vivíamos e conseguir um espaço só meu, todos aqueles
conflitos mantiveram-se, apesar de aquilo não ter voltado a acontecer…
Eram apenas mais fortes pois ambos tínhamos crescido! Houve uma
vez, em que os meus pais tinham ido de férias, que tamanha fúria o meu
irmão quis libertar na porta do meu quarto, que esta se deslocou da
ombreira ficando presa, tendo sido apenas possível sair do quarto com o
auxílio dos bombeiros que a custo retiraram a porta da ombreira!
Nunca conseguimos ser amigos… por nada… eu não queria… nem
quero!
Aquele fui eu…
Decidi que a minha vida não iria ser destruída por ele. Tentei a sorte
com uma rapariga por quem me apaixonei… estivemos juntos quase um
ano! Fui estudar para fora, com a desculpa das médias de entrada para
fugir ao convívio diário com o meu irmão. O namoro não resultava…
não pela distância mas por eu ser gay…
Eu sou GAY!? Sim, mas foi difícil esta conclusão. Pensava que tudo
aquilo era passado e que não me iria afectar! Se calhar nem foi por aquilo
que hoje sou gay… mas nunca vou saber! Sei que o sou…
Tirei o curso e cresci o pouco que me faltava.
Hoje posso dizer que sou feliz… tive namorados… amores e
desamores, ilusões e desilusões… Contei aos meus pais que era gay
- 171 -
numa oportunidade que tive e aceitaram a minha felicidade. Nunca
sonharam aquilo que se passava lá em casa nem nunca vão saber! A
única coisa que vão continuar a ver, é a indiferença que criei à presença
do meu irmão. Odiava ver a minha mãe a sofrer por não nos darmos
bem. Isso magoava-me bem fundo. Contar-lhe toda a verdade
provavelmente seria um desastre de sentimentos e desgostos… foi assim
que para proteger a minha mãe e até a mim que consegui que ele me
fosse indiferente. Não sinto saudades, não me preocupo com ele, não
me lembro sequer dele... Cruzamo-nos poucas vezes e quando acontece
sinto que estou na presença de um desconhecido. Sei pouco da vida
dele, se namora, se esta bem no trabalho, se vai de férias… é-me
indiferente. Só não evito estar com ele mais vezes por respeito aos meus
pais, principalmente à minha mãe, que dá muito valor à família unida e
que a deixa tão feliz… Mal sabe que aquela pessoa, para mim, é tudo
menos família.
Hoje, este sou eu!

Artur
27 Anos
#146

- 172 -
O meu sair do armário
Sou uma rapariga com 25 anos, mas desde cedo soube as minhas
preferências sexuais, sou lésbica.
Os meus pais desde cedo desconfiaram da minha orientação sexual
e sempre se demonstraram disponíveis para a ―tal conversa‖… que eu
sempre evitei e antes de falar, me assumir, de enfrentar os meus medos,
sempre me escondi e menti aos meus pais e amigos (Heterossexuais), até
que um dia, tinha eu 19 anos não aguentei mais andar triste, aborrecida
por andar sempre a mentir… e finalmente me assumi, falei abertamente
com os meus pais sobre esta situação, e apesar de todos os meus medos
os meus pais foram as pessoas mais queridas do mundo, disseram-me
uma grande verdade, ―não tem mal amar-mos, independentemente do
sexo (…) pois o amor é assim mesmo (…) nós acima de tudo devemos
amar pessoas (…) Xana o preconceito esta dentro de ti, tens de te
assumir a ti própria e aceitares-te como és e és sempre a nossa filhota"
isto é amor de pais, aceitam-me como eu sou, apoiam-me e acima de
tudo não me julgam.
Devo dizer que não sou filha única tenho um mano mais velho e
uma mana mais nova e que me dão todo o apoio que preciso.

- 173 -
Hoje em dia namoro, sou assumida aos meus amigos e à minha
família mais próxima, todos me aceitam como sou e isso é sem duvida o
mais importante para mim.
Posso dizer que sou uma pessoa cheia de sorte e que tenho uma
família e amigos 5 estrelas.
Sei que nem todos têm esta sorte, mas temos de ser fortes e acima
de todo de gostar muito de nós e saber-mos que não temos nenhuma
doença mortal (isso sim é grave), nós simplesmente ama-mos... Têm o
mesmo sexo que nós e então?
Desejo a todos que sejam felizes e que não escondam o que são…
Amar não é Pecado.
Aproveito para agradecer à minha família, amigos e companheira.

Alexandra Marta
25 Anos
#35

- 174 -
Não te quero perder
Não te quero perder, não te quero perder, não te quero perder, não
quero perder os teus primeiros passos, não quero perder a tua primeira
palavra, o teu primeiro sorriso, não quero perder.
Não te quero perder, não te quero perder, não te quero perder, não
te posso perder, preciso de te sentir, de te ver, de ouvir os teus
conselhos. Não te quero perder.
Já perdi tanto na vida e quando olho para a fotografia onde estamos
todos já só penso que não te quero perder.
Não te quero perder, não te posso perder, preciso de ver, somos do
mesmo sangue. Não te quero perder, não te posso perder.
Não quero ficar louco por não parar de pensar que não te posso
perder.
Não te posso perder, não te posso perder, não te posso perder, não
te posso perder de vista, não te posso perder o rastro, não te posso
perder.
Não te posso perder, não te posso perder, não te posso perder, não
te posso perder, não te posso perder, não te posso perder, o que é que
mudou? Ainda és o meu filho, ainda és o meu menino, aquele pequenino
que brincava na rua. Ainda te vejo assim e para mim sempre serás assim.
Precisamente por isso não te posso perder.

- 175 -
Não te posso perder. Não te quero perder, e não te vou perder. Vou
fazer para que estejas perto de mim, seja qual for a tua profissão, a tua
religião, a tua orientação sexual, os teus amigos, seja o que for, nada vai
superar o amor que sinto por ti, meu filho.
(Este é o que gostava de ouvir no dia em que contar em casa que
sou assim.)

J. Frias
25 Anos
#76

- 176 -
O meu comin'out
A minha história como homossexual assumido, vem desde os meus
18 anos, altura em que minha família descobriu que eu era homossexual,
aquando da minha primeira relação amorosa, aquela que me fazia vibrar,
aquela pela qual eu acreditava que devia fazer tudo por tudo, pois seria a
única!...
Seria tudo bom, se a família não se tivesse oposto de uma forma que
nunca julguei ser possível e fui "convidado" a sair de casa e com muito
custo assim o fiz!... Saí de casa com os objectos que tinha na altura,
deixando para trás a família, os amigos, a cidade natal, os estudos do
ensino superior e fui país a fora com o meu companheiro! Os tempos
que se sucederam foram carregados de chantagens emocionais, ameaças
de amigos, família, chamadas telefónicas constantes, para me torturarem
como se fosse uma terapia de choque!...
Passou muito tempo até voltar a ver a minha família de novo, a ter
coragem para pisar a minha terra natal, sabendo eu do novelo de intrigas
em que eu estava a ser enrolado sem ter pedido, ou sem serem verdade
os nós com que me teceram a vida. Falei com a minha mãe
pessoalmente, pela primeira vez de tudo (o meu pai, até hoje não toca no
assunto e reage com indiferença, sabe que o sou, mas não se fala nisso!)
e a relação foi sendo reconquistada pouco a pouco! Provei que era a

- 177 -
mesma pessoa, o mesmo filho, tinha os mesmos sonhos, projectos, que
nada em mim mudou, pedindo-lhe que aceitasse o meu amor por
Homens, e ela, foi aceitando todo o novo mundo que a rodeava,
tentando a custo (muitas vezes) entender o que eu sentia, como vivia
tudo.
Hoje somos grandes amigos, mais do que éramos antes e até aceitou
o meu actual namorado (a primeira relação durou três anos e a minha
mãe nunca o aceitou) em casa, apresentando-o como genro a toda a
família e amigos!
Em relação aos amigos, a vida foi -me oferecendo os verdadeiros
amigos, substituindo os outros que ocuparam o tempo necessário na
minha vida! A vida encarregou-se de me ajudar a criar uma boa cadeia de
relações de amizade puras e verdadeiras.
No campo profissional, trabalho na área da saúde, num hospital da
capital! As minhas colegas, a minha chefe, sabem que sou homossexual e
até à data nunca sofri qualquer tipo de discriminação fosse de que tipo
fosse! Sabem a pessoa que sou, o profissional que sou e nada alterou
essa concepção que têm de mim, como ser humano.
O meu comin'out foi há 9 anos... Anos esses em que passei por
episódios discriminatórios, mas que me fizeram valorizar mais ainda
quem eu sou, como sou, pois perdoando quem nos discrimina, faz com
que nos sintamos bem connosco mesmos e com os outros, provando
que somos todos iguais, todos diferentes!

Ricardo Sousa
26 Anos
#8

- 178 -
Não deixes para hoje o que
podias ter feito ontem
Não deixes para hoje o que podias ter feito ontem.
Um mês e meio depois de eu completar os meus 16 anos, a minha
mãe saltou do alto do nosso prédio.
Quando alguém decide morrer assim, não falta quem se sinta
culpado. Culpa por não lhe ter dado mais atenção, culpa de não ter visto
o que se passava, culpa de não a ter ouvido melhor, de não conseguir ler
nas entrelinhas...e a culpa que se sente, é fácil de atribuir aos outros.
Face à morte da minha mãe, não faltou quem dissesse que um dos
motivos foi a minha homossexualidade. Eu perdi a minha mãe aos meus
frescos 16 anos e do fundo da minha revolta, não atribuí culpas a
ninguém, fruto de maturidade precoce ou capacidade de reflexão sobre
os verdadeiros porquês do que aconteceu. O meu sentimento de culpa
segue ao fim de 11 anos, culpa de não ter apanhado aquele primeiro
autocarro que me levaria a estar em casa a tempo e evitar...Ao fim de
anos de remoer o assunto, sei que se não fosse esse dia, seria outro...mas
também penso que se não fosse nesse dia, talvez eu tivesse uma
oportunidade de tornar tudo melhor, e fazer com que ela ainda estivesse
aqui hoje. Sentimento de culpa de não lhe ter dito mais vezes o quanto a

- 179 -
amo, e o quanto me orgulho dela, e o quão bonita ela era, e assegurar-lhe
que um dia as coisas iam melhorar. Esses sentimentos de culpa seguem,
todavia leves e aliviados a custo de litros de lágrimas e de algumas
sessões terapêuticas. Há um sentimento de culpa que, felizmente nunca
cheguei a ter. Não senti a culpa de me ter assumido gay antes da morte
dela. Senti ao contrário um alívio de lhe ter contado quando ela ainda me
podia reagir, talvez bater, chorar, gritar ou abraçar e dizer que me ama.
Nos meses que se seguiram à morte da minha mãe, a minha vida até aí
bastante curta e pouco significativa, transformou-se. Por todas as razões
que eu menos quis, tornei-me para muitos um miúdo especial. Ou será
que sempre fui um miúdo especial, e só mo deram a entender nesse
momento? Porque as pessoas às vezes só te dão a entender que te
amam, e que te querem e te dizem que és especial, quando já é tarde…
Nos meses que se seguiram ouvi muitas histórias, dolorosas e
surpreendentes…sobre a minha mãe, sobre o meu pai, sobre
mim…sobre a nossa pequena família. Da voz da minha madrasta ouvi
que a minha professora da escola primária havia dito aos meus pais, aos
meus 9 anos, que eu era ou que me tornaria gay. Hoje pensando nesse
momento, sentados num café no centro comercial das Amoreiras, creio
que nunca cheguei a perguntar muito sobre o assunto. Soltei um
pequeno riso, que era misto de surpresa com uma certa ironia. Não me
ocorreu sequer perguntar o porquê de a Professora Leonor lhes ter
contado isso. Em primeiro lugar porque aos meus 16 anos não me fazia
muita diferença o que a professora Leonor lhes tinha dito. Depois
porque eu sabia bem, melhor do que ela, do que é que eu gostava aos 9
anos.
O meu nome é João e aos 15 anos saí do armário. Esta é a minha
história: de amores, corações partidos, e muita vontade de ser feliz.

O inicio da minha vida amorosa...


A minha vida amorosa começou cedo. Aos 10 anos entrei para os
escuteiros, e embora nunca fosse muito de me dar com rapazes, sempre
dormi com eles na tenda. Nunca me queixei e sempre tive a sorte de
dormir na tenda dos rapazes certos. Nem sempre aconteceu algo, mas
uma espreitadela aqui e ali sempre alimentou as minhas fantasias. Um
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pouco cliché, não? Um rapaz que experienciou e desenvolveu a sua
homossexualidade nos escuteiros. Cliché ou não, os escuteiros foram um
grande passo na minha vida.
Aos 13 anos apaixonei-me pelo Pedro. Bom, Pedro não era bem o
nome dele, mas vamos tentar deixá-lo fora do assunto no caso de ele,
por algum motivo, meter mão a esta história!!. O Pedro foi o meu
primeiro amor, e o meu primeiro homem. Tínhamos um ano de
diferença, ele era mais velho. Estávamos no mesmo grupo dos
escuteiros, passávamos muito tempo juntos, e um dia ao jogar ao
―Verdade ou consequência‖, as consequências tornaram-se mais íntimas.
Na verdade, aos 13 anos só se joga ao ―verdade ou consequência‖, para
se ser consequente. E depois desse momento, tornámo-nos
consequentes assiduamente. E consequentemente, eu apaixonei-me.
Trazia-lhe gomas depois das aulas, um gelado depois do jantar..., uma
vez até fugi de casa, só para estar com ele. O meu pai pôs-me de castigo
por ter maus resultados na escola. Às vezes, durante a semana, ia lá a
casa uma menina passar a ferro. Ela queria era passar as nossas
roupinhas a ferro e receber o dela e ir para casa, eu queria ir ter com o
Pedro. Não é que tivéssemos interesses comuns, mas eu disse-lhe que ia
sair, mas que voltava rápido. E que se alguém ligasse, que ela dissesse
que eu estava a dormir, ou que estava com uma valente crise de diarreia
na casa de banho. Claro está que deu barraca! Os meus pais voltaram
mais cedo a casa, e depois de uns telefonemas (porque na altura não
havia telemóveis), o meu pai apanhou-me, e levei uns valentes açoites à
pala da paixão. Ah pois, o amor dói, e começa cedo, mas essa não foi a
maior das minhas dores!
Eu e o Pedro continuámos a ver-nos. E eu continuei a ter castigos
assiduamente. Passávamos fins de semana juntos, quando os meus pais
autorizavam... íamos acampar com os pais dele, andar de bicicleta na
praia, e eu continuei a trazer-lhe gomas, gelados, e uma vez até um
preservativo com sabor a tutti-frutti!!
Foi o tempo que me ensinou que eu é que era o gay... e ele, ele
estava só a passar um bom momento. Juntos, ainda partilhámos uns
meses largos de bons momentos, sobretudo na cama. Por circunstâncias
da vida afastámo-nos. Eu saí dos escuteiros, e um ano mais tarde voltei a
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falar com ele, e quando me confessei apaixonado, ele demonstrou o
maior repúdio possível. Um repúdio que eu não conseguia entender.
Afinal de contas, se ele tinha sido o meu primeiro, se tínhamos passado
todos aqueles momentos, eu não podia ser o único gay nesta história. E
assim voltámos a afastar-nos, ele heterossexual, e eu homossexual como
se pode ser aos 14 anos. Uns anos mais tarde voltei aos escuteiros de
visita, já homossexual assumido, e perguntei por ele. Alguém tinha
ouvido que se mudara de Lisboa e se casara.
Eu era um menino de Lisboa, mas aos meus 14, numa altura em
que a internet era quase inexistente, não havia muito onde buscar
informação. À minha volta não havia muito onde recorrer. Não me
passava pela cabeça contar aos meus amigos, e muito menos aos meus
pais. Quando eu e o Pedro parámos com as ―consequências assíduas‖, o
meu coração partiu-se pela primeira vez. E não tive por onde fugir ou
com quem partilhar. Além do mais, eu era muito maduro para a minha
idade...e sabia que ainda que alguém aceitasse que eu era gay, quem iria
aceitar que o meu coração estava partido aos 14 anos? Quem, no seu
normal juízo, alguma vez me levaria a sério? Vendo as coisas com os
olhos de 27 anos, as minhas prioridades andavam mesmo muito
invertidas.
A minha vida continuou, sem gomas, gelados e consequências, e aos
15 anos obcequei-me pelo filme ―Filadélfia‖, que vi e revi até me cansar.
Chorei tudo o que havia que chorar. Vendo a obsessão com os olhos
que tenho hoje, penso que as lágrimas eram não só pelo drama do filme
em si, mas pelo drama que eu estava a viver, e pela incapacidade de lhe
dar um rumo. A dado momento, também a minha mãe se cansou de ver
o dito filme. E alguma campainha tocou aos ouvidos dela, quando
decidiu ligar a uma das minhas tias e contar-lhe que essa minha obsessão
deveria ter outro significado que não a admiração pelo filme. Só soube
disto depois dela morrer.
E anos mais tarde ouvi também a expressão ―As mães sabem
sempre.‖

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As mães sabem sempre...
Até aos meus 16 anos, eu e o meu pai não nos entendemos lá muito
bem. Nunca fui exactamente menino da mamã, mas houve sempre uma
grande cumplicidade entre nós. Ela deu-me sempre a entender que eu
era tudo para ela, e que não havia nada que eu pudesse fazer que a
fizesse gostar menos de mim. Por anos de experiência de vida familiar,
depressa me apercebi que eu estava entre os dois. Eu não era bem um
elo de ligação entre os dois, mas um ponto de discórdia. Na minha
família, de resto, dava-me muito bem com a minha tia preferida, e mais
nova. Dávamo-nos muito bem, mas nem a ela me ocorreu contar. Ela
trabalhava nas Amoreiras, e aí passava eu a maior parte dos meus fins-
de-semana. De loja em loja, a sonhar acordado, a subir e descer escadas,
e quando havia uns trocos, ou mesada...lá comprava qualquer coisa na
―Body Shop‖. Foi a subir e descer escadas, nas visitas assíduas à minha
tia que, num dia quente de Março, conheci o meu futuro namorado. Eu
tinha 15 anos, ele tinha quase 29. Nas semanas e meses que se seguiram
mantivemos uma relação. Uma relação proibida. Esta era mesmo uma
relação, porque eu tratei de confirmar que ambos éramos gays. Eu queria
muito um namorado, um reconhecimento de que era gay, e alguém em
quem pudesse encontrar o mesmo que eu sentia e buscava. A diferença
de idades era um problema adicional numa relação que estava condenada
aos olhares de todos. Para ser sincero, ainda tentei dar-lhe a entender
que nós não íamos resultar, porque até eu completar os meus 18 anos
faltava ainda um ano...ah pois sim, menti-lhe! E esse ano seria difícil,
porque eu vivia com os meus pais e tinha uma vida bastante
condicionada. Mas ele não ouviu. E isso tornou o meu segredo ainda
mais secreto. Agora tinha segredos para toda a gente.
Nunca fui grande mentiroso. Mentia muito, mas muito mal. Mas
mentia, porque pensava que se tinha começado, tinha que levar adiante e
mentir até a coisa estar resolvida.
A dada noite, em que o meu pai me autorizou a estar em casa as
00.00, marquei encontro com ele nas docas e juntei as moedinhas todas
para poder beber um Vodka Laranja. Bebi, e saquei do bilhete de
identidade, para lhe dizer que tinha afinal 15 anos. O bilhete de
identidade era só mesmo para ele ter a certeza que eu não estava a
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mentir. Eu preparei um grande discurso, e já me estava a ver a ser
mandado as urtigas! Mas ele já sabia, porque claro está que um rapaz de
17 anos que ainda estava no 10 ano, ou não era muito bom na
matemática e no português...ou algo estava a esconder. Bom, na verdade
a matemática nunca foi o meu forte, mas neste caso, eu estava mesmo a
mentir!
E nos meses que se seguiram mentiras não faltaram...Não menti
mais ao Frederico, mas menti aos meus pais. Menti, menti muito.
Inventei um amigo da escola, que ia aos escuteiros, com quem me dava
muito bem, mas de quem ninguém nunca ouviu falar, que apareceu do
nada. Lembram-se de quando disse há algumas linhas atrás que nunca
fui grande mentiroso...? Pois aí têm!

Apalpanços na escola
Na escola sempre fui alvo de chacota. Se conseguem imaginar que a
minha professora primária assumiu aos meus 9 anos que eu era ou seria
gay...
Mas na escola primária não foi nada...a chacota tornou-se séria já na
escola secundária, onde os rapazes mais velhos me perseguiam, me
chamavam de tudo, me apalpavam e me faziam propostas
indecentes...até ao dia, em que eu, descontraído e já fora do armário, lhes
dei a resposta que eles nunca sonharam ter. A partir desse dia, garanti o
meu sossego na escola. Na cantina da escola, um desses rapazes veio
sentar-se na minha mesa, e propôs-me um encontro a dois, em casa
dele... Estava com um sorriso malicioso na cara, olhando para os outros
rapazes e raparigas que se sentaram com ele na mesa. Eu respirei fundo
e disse-lhe:
-Sim, parece-me bem, mas com uma condição: tu levas a vaselina e
um amigo teu...porque isto a dois já se tornou aborrecido!
Na verdade, eu tremia por dentro, porque só me atrevi a dizer tal
coisa porque já me tinha assumido, e estava muito cansado de andar a
esconder-me na escola. Para além disso, a chacota tinha-se tornado
constante e eu envergonhava-me de cada vez que estava no pátio da
escola. E pensei: ―tens que fazer algo, porque isto nunca vai acabar‖.

- 184 -
Resultou! A humilhação na escola acabou. Ganhei inclusivamente um
certo respeito!
Mas com isto saltei um passo importante que foi...eu ainda não
contei como é que saí do armário...

Quero ver a luz...


Ao fim de uns tempos, o Ricardo como eu me referia a ele em casa,
era trocado por um Frederico, quase como se eu estivesse bêbado e não
tivesse controlo sobre o que me sai da boca. Aí depressa os meus pais se
aperceberam que alguma coisa não fazia sentido. Além do Ricardo, ou
Frederico, apareceram outras pessoas na minha rotina, e também eu me
tornei um pouco crescido, com conhecimentos musicais e outros que
tais, não muito comuns de um rapaz de 15 anos. Vinha para casa com
presentes, e muito alegre, saía para ir telefonar ao bar da esquina, e
tornou-se claro que algum segredo eu andava a esconder.
No meio de tudo isto, ao fim de quase 20 anos de casados, os meus
pais decidiram separar-se. Nos meses entre Outubro e Janeiro a minha
vida mudou. Quando me apercebi que as mentiras andavam muito
coxas, que me faltava luz, claridade e liberdade, que as portas do armário
não me deixavam ver, decidi dar um passo em frente.
Chovia a cântaros, num dia de semana, um dia de Dezembro. O
meu pai já não vivia connosco. E eu disse à minha mãe que tínhamos
que falar. Por algum motivo, pareceu-me que ela já sabia do que eu
queria falar. Respondeu-me:
- Cá para mim, é melhor ligares ao teu pai. É capaz de ser melhor
falares com ele.
E isso era tudo o que eu mais detestava: conversas com o meu pai.
Eu e ele nunca fomos muito de conversas. Mas era tempo de sentar à
mesa e, desse por onde desse, eu ia dar o passo. Meti-me num táxi e fui
ter com ele ao seu trabalho. Encontrámo-nos na cantina, e ele disse-me:
-Então, querias falar comigo?
Se alguém sabia fazer perguntas, sabia dar a volta aos entrevistados,
era ele. O meu pai era jornalista. Face à minha dificuldade em expressar
o que queria, em dar um começo à minha história...ele ajudou.

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Como se sai do armário? Como se conta aos pais, à família que se é
gay? Que a família não vai crescer, que não vai haver casamento, como,
como, como? Segui o meu coração. Tinha um namorado, e isso ajudava.
Mas tinha medo do que me pudessem fazer por ser menor. Tinha medo
que me dissessem que não sabia o que queria da vida, que era novo
demais para saber o que era ser gay. Passou-me de tudo pela cabeça.
E então o meu pai disse-me:
-Facilita se eu te fizer perguntas?
-Sim, ajuda.
E assim foi. Começou por me perguntar algo muito banal, e logo
em seguida perguntou-me se eu gostava de raparigas. ―Straight to the
point!‖ Claro que ao fazer uma pergunta dessas, implícita que coloca a
questão de eu gostar de rapazes. Eu respondi que não. Ele nem franziu
as sobrancelhas. Continuou nas suas perguntas, como se estivéssemos a
ser filmados e eu fosse um dos seus entrevistados, como se não pudesse
dar a entender o que estava a pensar ou sentir. Eu tremia, mas ao
mesmo tempo senti naquele momento uma intimidade como nunca
tinha sentido com ele, uma certa ternura nos olhos dele, como se me
desse a entender pela primeira vez, que me aceitava, que éramos sangue
do mesmo sangue, e que não lhe interessava com quem eu me deitava
na cama. E as perguntas seguiram-se. Perguntou-me se já tinha tido
experiências com rapazes e com raparigas. Ao que eu respondi que sim.
E perguntou-me se tinha namorado. Ao que eu respondi
afirmativamente. Deixei em branco que ele era uns anos mais velho.
Perguntou-me se eu era passivo ou activo, porque se preocupava com a
facilidade de se apanhar determinado tipo de infecções. E esta foi uma
das perguntas iniciais, o que me chocou bastante, devo confessar.
Depois disse-me que tinha muitos colegas que eram gays, e que estava
familiarizado com a temática. Que ele não sabia, se calhar, o suficiente,
mas que podia providenciar que eu falasse com alguém que me ajudasse,
não no sentido de me curar, mas de me elucidar. E assim foi.
Saímos para jantar. Tornou-se um acontecimento, porque eu e o
meu pai raramente estávamos sozinhos, e porque finalmente as cartas
estavam na mesa. A festa do armário!

- 186 -
Rumo a S. Bento, encontrámo-nos com uma colega dele com quem
fomos jantar. Ela era uma daquelas mulheres que conhecia meio mundo
gay. O mais engraçado é que tudo se desenrolou muito naturalmente. A
minha sobremesa foi um amigo gay da colega do meu pai. Para dizer a
verdade, no fim dessa noite tudo me parecia tão surreal, que nem me
lembro bem do que falámos. O meu pai deixou-me em casa. Á porta de
casa, parou o carro e disse-me:
- Agora vais falar com a mãe.
- hummm...
Despedimo-nos e eu subi as escadas...tremendo. Alguma coisa me
dizia que os papeis estavam invertidos, e que o difícil estava a caminho.
A vida consegue ser tão irónica! Eu e a minha mãe tínhamos uma
intimidade, que nem sempre era explícita, mas que era sempre muito
cúmplice. Com o meu pai a relação sempre tinha sido muito tensa, tudo
mudou nesse dia.
Eu meti as chaves na fechadura, entrei e ela dormia relaxadamente
no sofá. Acordei-a e disse-lhe que precisava falar com ela. Ela disse-me
que já imaginava o que lhe queria contar. E eu contei, sem rodeios, sobre
a minha homossexualidade. Ela teve a ultima reacção que eu esperava.
Fantasiamos sobre esse momento, tudo e mais alguma coisa: que nos
vão virar as costas, que nos vão mandar ao médico, que nos vão dar uma
grande chapada na cara, ou simplesmente gritar, chorar...mas não
esperamos que nos ignorem. A minha mãe virou-me as costas e foi
dormir.
Anos mais tarde percebi o porquê desta reacção. Eu era muito
maduro, com uma relação e experiências não muito comuns para um
rapaz de 15 anos há 12 anos atrás, mas eu era ainda egoísta e impulsivo,
uma característica tipicamente adolescente. Não consegui dissociar a
reacção dela, do porquê da mesma. Senti e vivi como um adolescente,
decepcionado e revoltado pela atitude dela. Nos dias que se seguiram o
contacto era frio entre nós, e no dia em que ela me disse que eu não era
normal, eu explodi em lágrimas de raiva e disse-lhe que ela não era
normal, por me falar assim. Como podia dizer ao seu próprio filho que
ele não era normal?! Quando a minha mãe morreu, aprendi a fazer todas

- 187 -
essas dissociações. E dos meus 16 anos fresquinhos, acabadinhos de
cumprir, transformei a minha vida para chegar onde cheguei agora.
A segunda etapa de sair do armário foi falar do meu namorado, o
que tinha uns anos a mais do que eu...Comecei por contar aos meus pais
que ele tinha 20...o que não foi muito bem aceite...e o que me levou a
adiar a verdade: que ele na verdade tinha 29. Como disse há umas linhas
atrás, não sei mentir. E claro que depois de uns dias, a verdade me saiu
da boca...Essa foi a gota de água para o meu pai. O eu ser gay, não havia
muito a fazer, e ele nunca o atacou ou questionou, nunca. O eu ter uma
relação com um homem que era tão mais velho do que eu...isso sim ele
questionou. O que é normal...Uma noite decidiram os meus pais que
tínhamos que ter uma conversa a 3. E assim foi, sem eu esperar, ou
poder preparar-me. Lá estavam os dois em frente a mim, para ter a
conversa que eu nunca quis ter. ―A‖ segunda conversa do sair do
armário, mas aí pela relação em si. Em curtas palavras, o meu pai
encostou-me contra a parede. Ficas com ele, mas não ficas aqui. Ou ficas
aqui, mas sem ele.
O mais interessante de tudo, é que eu no momento não o vi como
um ataque, mas vi-o como uma oferta de liberdade. Nem hesitei.
- Fico com ele!
Liguei ao Frederico e ele respondeu:
- Mete-te num táxi e vem cá ter. Vai correr tudo bem.
Correu tudo bem, mas eu nunca cheguei a ir ter com ele...
Os ânimos acalmaram, e tudo mudou, no dia 19 de Janeiro de 1997
quando eu entrei na rua, e umas quantas pessoas se tinham juntado à
porta da nossa casa. Nesse dia, pela primeira vez o meu pai conheceu o
meu namorado. Face a morte da minha mãe, eu precisava daquele
abraço, aquele abraço que só o Frederico me poderia dar nesse
momento. A minha vida foi vivida a turbo nos meses que se seguiram,
com decisões importantes a tomar e escolhas que tiveram que ser feitas.
Órfão aos 16 anos, menor e gay com uma relação com um homem de 29
anos, fui privilegiado ao poder escolher por ir viver com o Fred.

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8 anos e um coração colado
Aos meus 16 anos fomos viver juntos. Ficámos juntos pelos 8 anos
que se seguiram. Durante esses 8 anos, o contacto entre o Frederico e o
meu pai foi positivo. E eu tive a oportunidade de crescer na minha
homossexualidade e fazer dela uma parte inerente, indissociável da
minha vida. Uma parte que influenciaria escolhas futuras, mas que se
tornou normal e aceite por muitos. Por vezes sinto-me discriminado,
mas consegui desenvolver as ferramentas para o combater e não me
deixar meter no armário uma vez mais.
Ao fim desses 8 anos, o meu pai morreu. Ao fim de 8 anos, o amor
ficou, mas também a nossa relação morreu.
E foi entre uma relação que acabou à pressa, e pela segunda vez
mudanças grandes na minha vida, que me apaixonei perdidamente pelo
Simão, um ano mais novo que eu, e que ainda estava no armário. Por ele
apaixonei-me com tudo o que aprendi em 8 anos. Fiz todas as loucuras,
aquelas que fazes quando estás louco de paixão e quando o mundo só
gira em torno dessas duas pessoas. Mas o que tinha aprendido não tinha
sido suficiente para manter essa relação, porque ela se tornou frágil. Ou
melhor dizendo, ela nunca foi muito forte.
E o Simão partiu-me o coração. De coração partido, órfão de pai e
mãe, sentindo-me a pessoa mais sozinha do mundo, fui ao fundo do
poço. E do fundo do poço nadei com a força de que mais fundo não
podia estar, e que a partir daí era sempre a subir, devagar ou
depressa...mas sempre a subir.
Ao Simão, que me partiu o coração, dei meses mais tarde o coração
de volta. E de coração colado, frágil que estava, voltou a partir-se e a
colar-se umas quantas vezes, ao longo de quase dois anos. Uma história
que começa em caos, vive no caos, e termina, muito frequentemente em
caos.
Quando nos vemos, hoje em dia a química é muito forte, e há
sentimentos muito dúbios, sentimentos gerados por uma história muito
mal acabada, mas o caos, esse segue. E o coração que ele partiu, está
colado, e aparentemente mais forte...As marcas de cola ficaram, e são
transparentes, são claras no medo da entrega, no medo da rejeição, no

- 189 -
medo de que tudo acabe sem que tenhas qualquer controle sobre a
situação.

Adeus
De diploma na mão, sem emprego, com algum dinheiro de muitas
noites de trabalho freelancer atrás do computador, reservei o meu voo
de saída de Portugal. Iria para Madrid, de Madrid para a Bruxelas, e de
Bruxelas para Amesterdão, onde um dia me senti livre, feliz e aceite.
Na estação de comboios de Santarém fazia frio, um frio de
Dezembro...e as lágrimas caíram-me cara abaixo quando disse alto para
mim mesmo...‖Adeus‖.Entrei nesse comboio, e só voltei a Portugal de
férias.
Na Holanda descobri a liberdade que jamais tive em 10 anos de
relações...e aprendi a tomar conta de mim. A minha história com o
Simão seguiu, muito atribulada, mas o caos tomou conta de acabar com
a mesma.
Um ano e meio mais tarde fiz pazes com o amor, conheci um
homem holandês, por quem me apaixonei, com quem vivo experiências
de um amor adulto e estável, e casei-me com ele.
Em determinados momentos dessa caminhada, pensei que ser
homossexual foi um castigo, circunstância da minha vida, que jamais
conseguiria mudar, mas que me trazia, por vezes, muito sofrimento pelo
qual os heterossexuais não tinham que passar. Tudo isso foi ilusão do
meu pensamento. Amor é amor, gay ou heterossexual, em Lisboa ou em
Amesterdão, e é difícil e custa a todos.
Ser aceite também é difícil, e começa por nós mesmos. No
momento em que me aceitei, em 1997, ou em 2005 quando entrei em
Amesterdão, tornei a minha vida mais fácil. Para dizer a verdade, as
memórias de sair do armário dão-me energia e fazem sentir-me
orgulhoso. Porque o fiz sozinho. Porque não pedi ajuda a ninguém,
porque segui o coração e fui em frente. A fase de sair do armário está
encerrada na minha vida. Quando volto a Lisboa, sinto-me forte e não
tenho vergonha de me assumir. Tenho receio da violência, mas não
tenho receio de ser chamado de seja o que for, porque penso que sou
capaz de os confrontar. Hoje valorizo a liberdade que tenho e que criei
- 190 -
para mim mesmo, ao sair tão cedo do armário. Valorizo o ter dado o
passo, e posso ocupar-me de tantas outras coisas...posso ocupar-me de
amor, e como ele funciona...e essa, essa é outra história!

João Basto
27 Anos
#65

- 191 -
Os meus irmãos
Durante muitos anos ouvi histórias de pessoas que tinham tido
problemas em contar à família por isso sempre achei que eu não seria
diferente. Mas chega uma altura da nossa vida em que não podemos
continuar a fugir à realidade e a minha altura tinha chegado. Decidi
então, no início do ano, contar aos meus irmãos. Cabia-me agora decidir
se contar a todos ao mesmo tempo ou em separado. Por muitos
conselhos que possamos pedir, no final de contas somos sempre nós a
decidir. Numa manhã em que estava a trabalhar fui invadido por uma
onda de coragem e enviei uma mensagem aos meus irmãos a combinar
um encontro pois precisava de falar com eles.
Começaram então chover as mensagens de resposta a perguntar se
estava tudo bem e o que se passava. Foram dois ou três dias em que me
preparei para todos os cenários possíveis menos para o cenário com que
fui confrontado. Preparei também montes de coisas que queira dizer
mas no momento da verdade nada desta preparação serviu. Nada correu
como eu planeei e não usei nenhum dos discursos que tinha preparado.
No fim depois de alguma conversa de circunstância acabamos por nos
sentar, eu de frente para eles e foi então que, estranhamente, fui
invadido por uma calma enorme e lhes contei o maior segredo da minha
vida.

- 192 -
As palavras que saíram da minha boca "sou homossexual"
provocaram diferentes reacções nos meus irmãos. No momento em que
acabei de dizer a frase deu para ver as caras deles mudarem, mas o que
aconteceu a seguir não era nada do que eu esperava. Reagiram muito
bem, melhor do que qualquer dos cenários que eu tinha criado na minha
mente, sendo que a única reacção "negativa" foi que eu já devia ter
contado há mais tempo.
Algo que me espantou também na reacção deles foi terem tentado
perceber o quanto eu devo ter sofrido ao esconder durante tantos anos
(17 para ser mais preciso) a minha verdadeira orientação sexual. No
momento em que lhes contei a verdade pareceu que o tempo parou e
tive tempo de observar cada uma das reacções que eles tiveram e decidi
então perguntar o que pensaram no momento em que contei.
As minhas irmãs disseram-me algo que eu já desconfiava, ou seja
que já "sabiam" mas só esperavam por confirmação e o meu irmão que
não imaginava e que sempre pensou que eu fosse tímido com as
raparigas, mas que me apoiava a 100% e que só tinham pena que eu
tivesse demorado tanto tempo para contar.
No final da conversa senti-me livre, mas nos dias que se seguiram
andei completamente perdido com uma confusão de sentimentos
enorme. Tudo isso acabou por passar com o tempo e os meus irmãos
têm-me dado muito apoio o que é muito importante pois mais à frente
iria precisar do apoio deles para contar aos meus pais.

Ricardo M. Santos
27 Anos
#108

- 193 -
Os meus pais
Acho que o maior receio de quem é homossexual, é o contar aos
pais. Este não é um passo obrigatório mas parte de cada um de nós
saber se considera importante partilhar esta parte tão importante da
nossa vida com eles ou não.
Apesar de este ser um passo muito complicado no meu caso tornou-
se bastante mais fácil pois aproximadamente um mês antes tinha
contado aos meus irmãos que aceitaram muito bem e que se
prontificaram a ajudar-me em tudo o que fosse preciso quando decidisse
contar aos meus pais. Quando decidi contar, perguntei aos meus irmãos
se estariam lá comigo quando isso acontecesse e ainda bem que o fiz
porque a ajuda deles foi essencial.
Decidi então marcar um jantar em casa dos meus pais em que lhes
disse que tinha algo para lhes contar mas que não ia revelar mais nada
até ao dia do "fatídico" jantar. A minha mãe começou então a ligar para
as minhas irmãs para ver se descobria do que se tratava mas elas
conseguiram manter o segredo. Uma das vezes que falou com a minha
irmã disse-lhe que já sabia do que se tratava e que se todos os problemas
fossem assim estava ela bem. Isto foi a forma da minha mãe me dizer
(indirectamente através da minha irmã) que já estava preparada.

- 194 -
Chegou então o dia do jantar em que iria finalmente contar algo que
escondi durante 17 anos da minha vida. Jantámos, falámos de tudo e de
nada, rimos e tudo corria bem. Esperei pelo fim do jantar e sentei-me
então à frente dos meus pais e dos meus irmãos e tentei não rodear
muito o assunto e ser directo Quando acabei de revelar a minha
orientação sexual aos meus pais a sala ficou em silêncio durante uns
segundos, que para mim pareceram uma eternidade.
A minha mãe disse-me então que já desconfiava e que por ela estava
tudo bem e desde que eu fosse feliz ela estava bem. O meu pai não disse
quase nada mas aceitou bem. Estranhamente nos dias que se seguiram
eles continuaram a tratar-me como sempre tinham feito mas eu não
conseguia estar com eles. Este processo apanhou-me de surpresa pois
pensei que seriam eles a precisar de tempo para se adaptar mas na
realidade fui eu que precisei de tempo para me poder sentir à vontade
com eles novamente.
Já passaram cerca de dois meses desde que contei e posso dizer que
não houve qualquer alteração na maneira como a minha família me trata.
O amor por um filho ou irmão não desaparece só por causa da nossa
orientação sexual. Infelizmente demorei algum tempo a perceber isso
mas como se costuma dizer: "mais vale tarde que nunca"

Ricardo M. Santos
27 Anos
#109

- 195 -
Tenho 72 virgens à minha
espera no Paraíso!
Vivo em Lisboa, sou homossexual, muçulmano e aos 17 anos os
meus pais, depois de verem que eu tinha umas brochuras da ILGA,
perguntaram-me da forma directa como encaram a vida:
- És gay?
- Sim sou - respondi da forma directa com que eles me ensinaram
- Isso daqui a uns tempos passa... - disse o meu pai
Fiz um ar de quem não estava a perceber, e a minha mãe já
angustiada remata
- Não queres ter uma família?
-...pensei que já tivesse uma. - Respondi
Depois desta resposta mantém-se o silêncio sobre este assunto até
hoje.
O resto continua igual.

Raim
28 Anos
#58

- 196 -
Uma Família às Direitas
Tenho a melhor família do Mundo!
Ok, sei que muitos já o devem ter dito e que muitos o devem ter
desejado...
Pois bem, o meu caso não será excepcional mas o meu desejo seria
que fosse igual ao de todos os homossexuais deste Mundo.
Desde muito cedo percebi que era HOMOSSEXUAL, penso que
desde meus 6 anos de idade, altura em que não me fascinavam nada as
raparigas mas sim os homens, não os rapazes da minha idade, mas os
homens... dava por mim a admirar seus corpos, os aspectos masculinos,
os pêlos no peito e nos braços e isso fascinava-me... Fui crescendo e
sempre com a mesma fixação, ou seja, por homens. Lá em casa nunca
existiram tabus, sempre se falou abertamente acerca de tudo, lembro-me
perfeitamente de uma ocasião em que eu e a minha irmã questionamos
os nossos pais acerca do tempo de gestação da minha irmã e o facto de
ter demorado menos tempo do que os 9 meses...
Os meus pais cedo perceberam que eu, um miúdo educado, rebelde
e nada feminino, era também especial pois não viam em mim interesse
por raparigas, mas em momento algum me pressionaram ou
questionaram, digamos que a minha descoberta foi gradual tal como foi
para eles e chegado à adolescência, se dúvidas houvessem elas acabaram

- 197 -
por desaparecer, pois a companhia quase sempre de rapazes e homens
mais velhos acabou por definitivamente mostrar aos meus pais que o
filho era HOMOSSEXUAL, apesar de tudo, nunca senti rejeição, nunca
fui pressionado...
Hoje em dia vivo com meu companheiro há cerca de 6 anos, sendo
ele mais um membro da família, é tratado com filho, como irmão e
como tio.
Meu desejo era que todos pudessem ter uma história assim como eu,
em que o facto de ser HOMOSSEXUAL não influenciasse nada, em
que as pessoas fossem aceites tal como são.

Humberto Alves AKA X-bear


30 Anos
#131

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Verdadeiramente ele
Estavam os dois parados em frente do 2ºD.
João tinha acabado de tocar à campainha, e o ao ouvir aquele som, o
corpo de Nuno ficou estático. Quase que jurava ouvir as batidas
aceleradas do seu coração ecoar pelas escadas do prédio. Agora, não
havia volta a dar. Iria mesmo conhecer os melhores amigos do seu
companheiro. Pela primeira vez em 29 anos iria assumir-se a alguém
heterossexual.
-―Amo-te muito!‖ sussurrou João instantes antes da porta se abrir e
de Guida mostrar aquele grande sorriso pelo qual é conhecida.
-―Olá João! Estás tão giro.‖ Disse sem nunca perder o sorriso que,
de tão aberto, era impossível ser-lhe indiferente. – ―Guida, este é o
Nuno, o meu namorado‖ O coração de Nuno ao ouvir estas palavras
quase parou. ―Olá. Que prazer conhecer-te finalmente. Tudo bem
contigo?‖ e antes de lhe poder responder, já Nuno tinha levado com
dois beijos, ―Vá entrem. O Fernando já esta na cozinha a terminar o
jantar.‖
Antes que conseguisse dizer o que quer que fosse, Nuno já estava na
sala. O seu namorado conversava com a Guida, como duas comadres
que não se viam há muito tempo. Nem parecia que trabalhavam juntos.
Os sons das gargalhadas dos dois, a pouco e pouco, iam-no acalmando.

- 199 -
―Como é menino?! Não ajudaste na preparação do jantar, estás
lixado que vais arrumar tudo depois!‖ Brincou Fernando ao entrar na
sala, com um avental amarelo e trazendo dois pratos na mão.
Depois de os largar na mesa, deu um abraço ao João, e a Nuno um
belo aperto de mão. – ―Então és o famoso Nuno! Estás bem? Já
andávamos fartos de chatear o João para te trazer cá a casa. Já
começávamos a pensar que ele tinha vergonha de nós e que não te
queria cá trazer. Queres uma cerveja?‖
A simplicidade e sinceridade do aperto de mão e desta frase
deixaram Nuno de boca aberta.
Nunca lhe havia passado pela cabeça o facto de alguém o querer
conhecer apenas por ser namorado do seu amigo. A maneira como o
estavam a receber e a tratar em nada diferia das vezes em que conhecia
outros casais usando a sua ―máscara de heterossexual.‖
―Como é? Vamos ao jantar? Estou cheia de larica.‖ Perguntou a
Guida já a andar para a mesa.
Nuno, a pouco e pouco, ia-se soltando. Ainda que nervoso, já
conseguia ir falando e acompanhando a conversa. João sentado a seu
lado na mesa, de vez em quando passava-lhe a mão na perna, num acto
de carinho que sabia muito bem.
A conversa ao jantar esteve sempre animada. Tal e qual dois casais
amigos que se sentam para conviver. Ali à mesa, se alguém olhasse, não
via um casal heterossexual e um casal gay, mas sim quatro pessoas que
em alegria se juntavam.
De todas as vezes que Nuno havia imaginado este momento, nunca
pensou que seria tão fácil e natural. Sempre imaginara uma situação
stressante, desconfortável e cheia de momentos de silêncios esquisitos.
Pelo que lhe contara João, a Guida e o Fernando eram amigos de
verdade. Já os conhecia fazia muitos anos. Sempre o apoiaram e o facto
de ser gay era um pormenor que não fazia qualquer diferença. Sempre
insistiram com João para que este lhes apresentasse os namorados, mas
nunca até este dia o fizera. Nuno era o primeiro companheiro que lhe
conheciam.
O jantar correu muito bem. Não tanto pelo delicioso bacalhau com
natas, mas pela maneira como aquele casal fantástico fazia Nuno sentir-
- 200 -
se. Queria que aquele fosse apenas o primeiro de muitos jantares e
encontros com o Fernando e com a Guida.
As histórias de como outros amigos se haviam assumido havia feito
Nuno temer este tipo de situações.
Muitos deles nem o tinham feito por escolha, mas sim por terem
sido confrontados com isso. Nisto havia tido sorte, pensara. Fora ele a
escolher a quem e quando o faria. Ali estava ele com o homem que
amava, e com dois amigos recentes para os quais não fazia qualquer
diferença ou importância a sua orientação sexual.
Já muito depois do jantar ter acabado, deitado na cama e ainda
abraçado a João que já adormecera, Nuno ainda pensava.
Pensava no que fizera hoje, e no orgulho que sentia em fazer essa
escolha.
Olhando para trás, percebia como havia sido tolo em recusar
inúmeras vezes o pedido de João para conhecer este casal. ―Não tenho
que ter vergonha de mim.‖ disse em surdina. ―Quem estava a
discriminar era eu!‖. Foi esta a conclusão a que chegou. Até ali Nuno
nunca dera a possibilidade a ninguém de provar o que pensava era falso.
Para ele, e até aquela noite, todos os que soubessem que ele era gay
certamente não o iam respeitar nem tratar de modo igual. Conhecer
aquele casal mudou-lhe essa certeza.
―Muita coisa irá mudar. Mas para melhor‖. Foi o seu último
pensamento antes de adormecer.
Algumas semanas depois, Nuno encontrava-se muito mais solto e
seguro de si próprio. O ter-se assumido àquele casal, ajudou a aceitar-se
melhor a ele próprio. De tal maneira que já pensava em assumir-se
também ao seu irmão. Sentia que lhe faltava alguém para além do
namorado para poder falar e desabafar. Queria poder estar à vontade
com o seu irmão, sem máscaras nem falsidades. Era da sua família e não
merecia que lhe ocultasse esta faceta da sua vida. Tinha a sensação que
quando estava com o irmão não era verdadeiramente ele.
Já havia falado com o João acerca disto e embora pudesse contar
com todo o apoio do seu amado, este não iria tomar por ele essa
decisão. ―Lindo, tu é que tens que saber se estás preparado, e quando for
a altura certa saberás.‖ Era tudo o que João lhe dizia.
- 201 -
Pouco tempo depois desta conversa, num fim-de-semana em que foi
com o irmão e a cunhada até à discoteca, Nuno embebedou-se. Já no
final da noite na conversa com a cunhada sobre um dos amigos dela que
é gay assumido, o álcool soltou a língua a Nuno:
-―Sabes Sofia... eu e o teu amigo temos muitos gostos em comum!‖
-―Sim, eu e o teu irmão já desconfiávamos...‖
-―Ah???!!!!‖
Sofia respondeu apenas com um levantar de sobrancelhas e um
sorriso.
- ―Achas que deva falar com o mano sobre isso?‖
-―Acho! E sei que não te vais arrepender‖ disse ela, e rodopiou ao
som da música para ir ter com o marido que estava junto ao bar.
A noite acabou e Nuno acabou por dormir na casa deles. Não iria
conduzir naquele estado.
Acordou já depois da hora do almoço. levantou-se já o irmão falava
com Sofia na sala.
-―Bom dia alegria!!‖ Disse-lhe sorridente a cunhada.
-―Ontem é que foi, anh!!‖ Gozou o irmão!
-―Ehhh! Nem me digas nada‖ disse Nuno, apertando a cabeça e
sentando-se no sofá.
Após um breve momento de silêncio o irmão sentou-se a seu lado e
pergunta-lhe:
-―Não tens nada para me dizer?‖
-―Preciso de um café‖ brincou Nuno.
-―Deixa-te lá de coisas. A Sofia disse-me que tinhas algo para me
contar....‖
-―Pois...... Olha...... Sou gay!‖ disse sem pestanejar.
-―Ok. E depois?‖
-―E depois diz-me tu.....‖
O irmão pondo-lhe o braço por cima dos seus ombros confortando
Nuno, apenas lhe respondeu.
-―Depois.... continuas a ser o Nuno. O meu mano mais velho. E
isso não irá mudar. Sabes bem que podes contar sempre comigo. E
então? Tens namorado? Quando é que ele vem cá jantar?‖

- 202 -
Nuno sentia-se liberto de um grande peso. Estava feliz. Finalmente
poderia ser verdadeiramente ele.

Ray
31 anos
#61

- 203 -
As Guerras e Conquistas
da Minha Vida
Eu talvez ache a minha vida como homossexual bastante
interessante, pois passei por várias etapas, em todos os campos; social,
pessoal, emocional e familiar.
A minha história começa então por volta dos meus 15 anos de
idade, quando me apercebi que alguma coisa em mim era diferente e
defini-me assim como bissexual. Achava estranho excitar-me com
homens em vez de mulheres, e todos esses ―sintomas‖ pelos quais
qualquer homossexual passa. Tive uma fase de stress, depressão,
confusão, e claro a típica negação, ―Não, não pode, não é natural um
homem gostar de outro homem‖, mas felizmente passou depressa e
cheguei à conclusão que não iria guardar isso para mim, porque seria
bem pior, e foi por isso que procurei a minha melhor amiga. Contei-lhe
por mensagens, porque não tinha coragem de lhe dizer na cara, e a sua
reacção positiva levou-me a assumir ao resto dos meus amigos, os quais
felizmente reagiram todos bem, ao ponto de uma amiga minha também
dizer que era bissexual (o mesmo que eu achava que seria na altura).
Comecei a dar-me mais com essa minha amiga, passávamos dias no
Chiado, que para nós era uma coisa ―Uau isto é tão gay‖.

- 204 -
Simultaneamente a estes acontecimentos, e confesso que com a ajuda
dos mesmos, passei o que para mim foi a grande fase negra da minha
vida: comecei a encontrar-me com outros homens, isto já eu tinha 16
anos. Claro que estes encontros não passavam de um café, mas também
não chegavam ao sexo em si, excepto uma ou duas vezes.
Em várias conversas com a tal minha amiga, decidimos em conjunto
contar à nossa família. Com ela correu tudo bem, tinha os pais separados
e a mãe dela aceitou. A seguir foi a minha vez, escrevi uma carta muito
bem escrita e meti no meio da papelada da mala de trabalho da minha
mãe. No primeiro dia ela não reparou, só reparou no dia seguinte. Como
primeira resposta, obtive uma mensagem que dizia ―quando chegar a
casa, falamos‖, não me lembro se fiquei aliviado ou ainda mais nervoso,
pois esta mensagem tanto podia ser positiva como negativa. Esperei, ela
chegou a casa, vinha com ar de estar zangada, preocupada, chateada;
levou-me para a cozinha e perguntou-me com lágrimas nos olhos ―onde
é que eu errei?‖ e esta foi a frase que deu início a uma ―guerra civil‖ na
minha família: pai, mãe e irmãos contra mim, ―não é natural, não pode
ser, vais ter que mudar porque isso é só uma fase, não quero ser
conhecido como o familiar de um gay‖. Nesta guerra, marcou-me e
chocou-me uma frase dita pelo meu pai ―não quero ter um filho
paneleiro, és a vergonha desta família‖. Apesar de estar nessa altura
lavado em lágrimas, continuaram a ―atacar-me‖, sem dó nem piedade,
até que me fartei e disse que ia mudar, mesmo sabendo perfeitamente
que não ia. Foram 6 meses a ter que lidar com o meu pai e a minha mãe
a não falarem comigo, ou quando falavam era para refilar. Não me
esqueço de uma cena que a minha mãe fez por eu ter deixado um copo
na sala, ―porque é que deixaste o copo na sala?! És um irresponsável,
não sabes o que fazes!‖. Até hoje, eu já com 18 anos, a minha família
acha que mudei, tudo porque ainda não tive coragem para reatar esta
conversa inacabada.
Voltando ao capítulo da vida social, juntamente com a minha amiga,
decidimos ir ao Trumps, famosa catedral da noite gay em Lisboa, ia eu
todo contente por lá ir, onde poderia estar com imenso rapazes na
mesma noite, seria mais um passo na minha afirmação enquanto gay. E
nessa mesma noite, conheci um rapaz lindo, um sorriso lindo, um cara
- 205 -
linda, ―enrolámo-nos‖, eu sempre a achar que ia ser mais um.
Encontrámo-nos várias vezes depois disso, vivíamos relativamente perto
um do outro e ele tinha um ―micro-car‖ o que nos facilitava muito a
vida. Demo-nos tão bem que decidimos dar o passo para iniciarmos um
namoro. No início, confesso que achava que não iria resultar, porque ia
estar agarrado ao meu passado que tantas marcas me deixou, mas estava
totalmente enganado. Isto porque passados dois anos e alguns meses,
continuamos juntos, cada dia melhor, ele é a minha vida, e sem ele não
sei mesmo viver, às vezes pensamos na nossa vida futura, casa, filhos,
profissões.
Assim foi a minha breve, mas grande vida homossexual. Com este
meu testemunho espero abrir os olhos a muita gente, porque a vida é
curta e não há nada melhor do que amar, o engate permanente ao lado
do amor não é nada.
Queria também mostrar às pessoas que acham que somos diferentes
do ―normal‖ (heterossexualidade), que se enganam, pois como vêem, é
mesmo possível amar alguém do mesmo sexo.

Rodrigo Andrade
18 anos
#23

- 206 -
Como não contei à minha mãe
Tudo tinha acabado, tanto tempo a partilhar a minha vida com
alguém para acabar assim, era difícil de acreditar.
Estava sentada no chão a chorar quando a minha mãe entrou no
meu quarto e sentou-se do meu lado sem nada dizer, esperava que eu lhe
dissesse o que se estaria a passar.
- Eu ainda não estou pronta, eu não consigo contar-te. - Lamentava
a minha falta de coragem, afinal ela era a única pessoa que receava que
me rejeitasse.
- Mas eu já sei, querida.
- Já sabes? Como assim?
- Tu e a tua namorada acabaram.
Não fui capaz de dizer mais nada, encostei a minha cabeça no seu
ombro e deixei que dos meus olhos corressem todas as lágrimas que
teriam de cair, não valia a pena sequer secá-las, logo a seguir viriam
muitas mais, tinha acabado de libertar-me do meu maior medo.
Passaram vários minutos, talvez horas, ou talvez, nas melhores das
hipóteses, o tempo tinha mesmo acabado de parar e a minha Mãe
acabou por falar:

- 207 -
- És a minha filha e eu amo-te acima de tudo, eu sempre te disse que
a única coisa importante para alcançar nesta vida era a felicidade, não
foi?
Consenti e ela continuou:
- E eu só quero que sejas feliz, independentemente dos caminhos
que escolhas, orgulho-me tanto de ti e basta olhares em teu redor, tantos
homossexuais que se assumem e conseguem ser felizes. Tu não serás
diferente, és a minha pequena lutadora e conseguirás tudo aquilo que
quiseres. Sempre que falhares e caíres, eu estarei aqui para te apoiar,
sempre.
Não foram poucas as vezes que tentei falar, mas as palavras de pura
gratidão que brotavam do meu coração, acabaram todas por morrer nos
meus lábios, depois de ouvir da pessoa que mais amo, que me aceita tal
como sou, o que haveria ainda por dizer?
Isto que vos conto não é ficção, é somente a verdade, tenho imensa
sorte, mesmo sem nunca ter dito fosse o que fosse sobre o facto de ser
lésbica, a minha mãe sabia-o melhor do que ninguém.
Muito me escondi e repugnei tudo o que era natural em mim, o
Amor é um sentimento e pertence a todos, sejam quais forem as suas
características!
Aberração? A quem me chama isso só tenho uma coisa a dizer: "O
monstro que vês em mim não passa de um reflexo teu!"
Vivam, amem, sejam felizes que isso, na realidade das coisas, é a
única coisa que realmente interessa.

Bárbara Baptista
16 Anos
#28

- 208 -
Adoro-te mãe!...
Fui educada segundo as ―regras‖ cristãs. Tive uma infância e
adolescência normal, feliz como tanta gente. A noção que tinha da
homossexualidade era como se fosse uma doença, todos os casos
falados na terra onde vivi eram vistos e comentados como algo anormal.
Talvez por isso, sempre afastei a possibilidade de o ser.
Durante este período, sempre admirei mulheres. Mulheres mais
velhas, fortes, bonitas, inteligentes, enfim mulheres especiais que eu via
de uma forma especial.
Fui namoriscando com rapazes durante a minha adolescência. Até
que um dia, aos 17 anos me apaixonei por um rapaz com o qual vim a
casar anos mais tarde e tive dois filhos.
Estivemos juntos 19 anos dos quais 15 foram de muita felicidade.
Durante estes anos de felicidade continuei a admirar as minhas queridas
mulheres, mas tal como antes sem saber o motivo ou o porquê.
Foi a partir dos meus 30 anos que comecei a ter dúvidas, sentia-me
baralhada, não entendia o que estava a acontecer talvez porque nunca
antes tivesse parado para pensar. Tentei afastar estes pensamentos
durante anos.
Quando tinha 36 anos o meu casamento acabou e divorciei-me. Foi
um período da minha vida muito complicado, foi como o desmoronar
que uma vida. Confesso que passei um mau bocado. Entretanto li
imensos livros sobre a temática homossexual numa tentativa de obter

- 209 -
respostas, mas não era suficiente. Foi nessa altura que recorri a um
psicólogo pois sozinha não estava a conseguir gerir não só os recentes
acontecimentos, mas também todas as minhas dúvidas que cada vez
mais me atormentavam.
Esta ajuda foi fundamental, deu-me força, tranquilidade e coragem.
Nessa altura decidi arriscar e tive a minha primeira experiência
homossexual, foi mesmo arriscar pois não estava apaixonada por ela
nem ela por mim.
Passado algum tempo conheci alguém muito especial. Tive um
relacionamento com ela cerca de dois anos, apaixonei-me e vivi algo
único.
Hoje não tenho dúvidas quanto há minha orientação sexual mas…e
o resto? O que tenho de mais importante na vida são os meus filhos.
Eles são os meus entes queridos nos quais incluo a minha família e
amigos.
Como lhes contar? Tenho que lhes dizer! Pensava eu pois é algo de
muito importante na minha vida e quero partilhar com eles…
À minha mãe e irmãos não foi difícil dizê-lo, embora esteja a ser
difícil para alguns deles aceitarem, mas conto com o apoio de todos e
isso é o mais importante.
Quanto aos meus filhos está a ser mais difícil… não tinha coragem,
ou melhor, tenho medo por não saber se estão preparados para isso.
Mais uma vez recorri à ajuda de um profissional para saber como e
quando deveria dizer-lhes. Eles estão na pré-adolescência e embora
sempre os tenha educado de forma a respeitarem todas as minorias
quando essa minoria é a própria mãe as coisas talvez se compliquem.
Ao meu filho mais novo, e sem tê-lo previsto, falei ontem sobre o
assunto. Foi uma longa conversa que me encheu de felicidade, pediu-me
para contar também ao irmão, o que farei logo que a oportunidade
surgir e antes de nos irmos deitar, exaustos, abraçou-me e disse –
―Adoro-te mãe!...‖

Sol
41 Anos
#145
- 210 -
Uma historia sobre
homossexualismo?????
Um bom filho, de repente fica super agressivo e fechado com seus
familiares.
Vai a festas, tem inúmeras amigas… É bem sucedido na vida… Mas
continua sendo muito arredio, às aproximações familiares… A mãe
inquieta, resolve consultar uma psicóloga que a aconselha a ter uma
conversa franca com o filho de 24 anos. A mãe, escolhe um lugar bem
agradável para ir com o filho, para ter esta conversa… Decide convidá-
lo a passar uns 2 ou 3 dias na montanha.
Começa a falar do nascimento dele, de como o pai sempre foi
ausente, conta-lhe detalhes de sua vida de casal para justificar a ausência
de uma figura masculina, etc.… Enfim prepara todo o terreno para que
o filho se possa abrir… Embora ela já estivesse com o coração
apertado… O filho ouve tudo com atenção, e, a mãe lhe diz: ―meu filho,
não importa qual seja a sua maneira de ser, saiba que lhe amo, e vou
estar sempre ao seu lado e o que importa para mim é que você seja feliz
com suas escolhas, e que você possa falar comigo tudo que lhe
acontece…!

- 211 -
O rapaz pega a mão da mãe, vai caminhando em frente,
silenciosamente, e depois de um bom tempo diz: "mãe, minha vida
pessoal eu gosto de falar é com meus amigos e amigas, e com eles eu
converso sobre tudo!!! eu nunca lhe perguntei como foi, ou é a sua vida
sexual com meu pai ou com outros homens, (ou mulheres,) nem de que
maneira você sentia prazer ou não… Isto é uma questão individual, não
é uma escolha: "cada um segue sua natureza… Assim como você seguiu
a sua‖. E lhe dá um beijo na testa… Provavelmente, ele segue sua
natureza, homossexual, mas acima de tudo é agora alguém que poderá
mais facilmente viver seus sentimentos sem precisar se afastar e se
esconder dos que o cercam… É o primeiro passo… segue sua natureza
homossexual ou não, não importa...

Cristina Maria
64 Anos
#79

- 212 -
"Contar aos pais"
A dúvida é constante... é geral! Mas certo é que os nossos pais
conhecem-nos melhor que ninguém... principalmente as mães com a
característica sensibilidade para os sentimentos dos filhos... (salvo as não
pouco comuns excepções!)
Desde que me descobri como homossexual que tentei esconder de
tudo e todos... Mas fui crescendo, crescendo... Felizmente os meus pais
sempre me ensinaram a aceitar o diferente como sendo diferente o
normal! Mas será que se a diferença fosse em casa seria a mesma coisa!?
Pois, felizmente foi!
Quando me aceitei, o que demorou um pouco, deixei de me
esconder... não que andasse aí com uma bandeira ou uma T-shirt
explícita, mas simplesmente deixei de me esconder... isto fez com que as
conversas do "com quem vais sair?" levassem sempre a mesma resposta:
"Vou com o Chico!", "Vou dormir a casa do Chico", "Cinema com o
Chico"... Depois tomei uma decisão simples de uma breve conclusão:
Se a minha mãe me perguntar se sou gay, então está preparada para
ouvir qualquer das respostas!
Não foi simples a conversa... Chorámos, rimos... foi num dia em que
a minha mãe me convidou para jantar... só os dois! Claro que percebi

- 213 -
que seria precisamente naquele dia que tudo seria revelado!!! Começou
com uma pergunta simples e uma resposta à altura:
- Quem é o Chico para ti!?
- É o meu namorado...
Depois deste início deixámo-nos viajar num oceano de
sentimentos… e uma frase que já esperava, mas tinha esperanças de não
a ouvir: "Gostava tanto de ter netos teus!!!", – "Pois mãe, mas isso não
vai acontecer!"
Isto foi há uns 7 anos! Hoje posso dizer que estou totalmente à
vontade com a minha homossexualidade, pelo menos dentro de casa! O
meu namorado passa algum tempo em minha casa... janta, dorme,
acorda, toma o pequeno-almoço, conversa, oferece presentes de
aniversário e Natal... Simplesmente como seria se de uma namorada se
tratasse!
Isto deixa-me FELIZ!

Artur
27 Anos
#105

- 214 -
AMIGOS

- 215 -
Basta um "empurrãozinho"
Aos quinze anos de idade, eu, J., assumi-me a mim mesmo como
bissexual. Longos foram os anos em que eu me debati contra mim
mesmo e contra a sociedade, e com medo de ambos. Levei pouco tempo
a assumir-me a alguns amigos (o número aumentou exponencialmente
com o passar do tempo), incluindo a um grupo de 3 amigos com os
quais tinha travado amizade, há relativamente pouco tempo. No entanto,
para esses 3, não foi uma saída totalmente inesperada. Um deles já sabia
(ao falar com ele no MSN, acidentalmente enviei-lhe o link de um fórum
onde era certo e sabido que eu era bissexual), e as outras duas
suspeitavam, talvez devido ao meu comportamento. Ok, era mesmo o
meu comportamento.
O rapaz com quem eu me "descuidei", A., imediatamente me disse
que não era nada contra, e que respeitava, com um caloroso bem-estar
do qual nunca desconfiei. Pouco tempo depois, era ele quem se assumia
a mim como bissexual, e a minha reacção foi um misto de queixo-caído
com alívio. Mais tarde, vim a confirmar as minhas suspeitas, ligeiramente
egocêntricas, de que eu tinha tido um papel importante no coming out
dele. Ele contou-me, a meu pedido, que me tinha achado corajoso e que
"se eu podia ser eu próprio, porque não ele também?". E foi assim que a
primeira pessoa a quem fiz o meu coming out fez o seu próprio coming
out.

- 217 -
Mais tarde, em passeio com outro amigo meu que conheço quase
desde que nasci (crescemos juntos, essencialmente, embora agora
vivamos em cidades diferentes, a 100 kms de distância), assumi-me
como bissexual, ao que ele, após uma pausa prolongada e incomodativa,
continuou com o assunto sobre o qual tínhamos estado a falar
anteriormente. Mas eu insisti:
- Então e sobre eu ser bi, não tens nada a dizer?
- Duh, J.! Eu também sou!
- A sério?
- Ya.
Nessa mesma noite, conversámos durante horas a fio sobre a vida
dele, o porquê de as pessoas que o rodeavam, principalmente a ex-
namorada, não compreenderem que ele não tinha desejos sexuais como
os da maior parte dos rapazes. Ele acabou por me agradecer, abraçou-
me, dizendo que nunca um amigo tinha feito uma coisa tão boa por ele
como eu. É claro que achei um exagero, afinal, um amigo deve ajudar o
outro em tudo o que puder. Desde esse dia que ele nunca mais foi o
mesmo: a insanidade que lhe era característica tornou-se mais amena,
mais pausada, ele próprio começou a ponderar mais as coisas, a fazer
mais perguntas. Cresceu. Tornou-se ele próprio. Mais tarde, descobriu
que o melhor amigo era homossexual.
Estas são as duas histórias que eu escolhi partilhar. No entanto,
existem muitas outras, não envolvendo estudantes, mas o jovem pastor
transmontano, o menino rico cujo dinheiro não compra felicidade, a
filha mais nova de uma família de acrobatas circences. São histórias que
demonstram que o nosso coming out não só nos ajuda a nós próprios
como também pode inspirar quem precisa de inspiração. São histórias
que têm personagens diferentes, espaços e tempos diferentes. Mas no
final, têm ambas a mesma moral: às vezes, tudo o que é preciso para a
felicidade interior é um empurrãozinho exterior.

Leonardo Nascimento
18 Anos
#10

- 218 -
Poucos mas bons
Nunca pensei que a Internet, me pudesse interligar a tantas pessoas
e muito menos a pessoas que viriam a trazer (muito) sentido á minha
vida.
Conheci a minha actual melhor amiga, á praticamente 6 anos,
através deste mesmo meio e desde então, nunca nos separámos. A
revelação sobre a minha orientação chegou, e uma proximidade entre
nós também. Não a nível amoroso, já que a mesma é heterossexual, mas
acho que ambas sentimos que a nossa amizade está mais forte, tem bases
mais sólidas. Se calhar, porque a mentira e os segredos acabaram; posso
finalmente ser eu mesma. Orgulho-me de dizer que a minha ―irmã mais
nova‖, me aceita como sou e são muitas das vezes as palavras e
conselhos dela, que me ajudam a levantar de manhã.
Conheci várias pessoas através do fórum da rede ex-aequo e
felizmente ainda mantenho contacto com algumas delas. Não tive
oportunidade de estar pessoalmente com todas, mas as poucas com
quem já tive, têm sido autênticas irmãs (as que nunca tive, já que sou
filha única).
Posso precisar de uma viagem de quase 2 horas de avião, para estar
com elas, mas todos os momentos são inesquecíveis. Gargalhadas.
Brincadeiras. Conversas sérias. Conselhos. Lágrimas. Abraços. Incrível

- 219 -
como conseguimos partilhar tanto, com pessoas que conhecemos
através de um simples computador.
Isto para dizer que a minha definição de amizade (verdadeira) é
diferente da, de muita gente; ou seja, enquanto que muitos consideram
aquelas pessoas que encontram ocasionalmente na rua, de amigos; a
minha definição é levada a outro grau. Aquele em que temos um nível de
confiança muito mais elevado, em que confiamos de olhos fechados e
sabemos que não nos vão deixar bater com a cabeça na parede (e
mesmo que batamos, estarão lá para nos beijar a testa e dizer que tudo
vai correr bem).
Felizmente tenho um grupo de pessoas assim (em que prefiro contá-
los pelos dedos e não me desiludir, do que precisar de listas para
enumerá-los e ser desapontada todos os dias) e orgulho-me imenso
disso. De me aceitarem tal e qual, como sou; de me aconselharem, de
terem paciência para todas as minhas fases e recaídas, de amarem o meu
verdadeiro eu.
Amo-vos (sabem quem são); porque, como diz uma grande amiga
minha: ―Amizade é Amor, mas sem sexo‖

Lady L
19 Anos
#91

- 220 -
O Meu Melhor Amigo
Estava no ensino básico, muito tímido e reservado, tinha receio de
falar com quem pouco ou nada conhecia, nem que fosse para pedir algo
na secretaria.
Uns 3 anos passaram e, nesse tempo conheci e criei uma relação
sólida com um grupo de 4 amigos fantásticos, sem maldade alguma no
seu coração, apesar de tudo, o "tal" assunto permanecia apenas comigo,
se eu mal conseguia perguntar uma dúvida a um professor quanto mais
conseguir falar sobre o que sentia a quem quer que fosse. Era novo mas
já não tinha dúvida nenhuma sobre aquilo que sentia. Estava perdido,
por mais que lutasse, a minha introversão não me deixava viver, como
pensava que devia, tinha medo...
Não fazia distinção entre os meus amigos, mas um destacava-se, era
para casa dele, ali mesmo ao lado da escola, que os meus pais me
levavam por não me poderem levar à hora certa, era o meu oposto,
extrovertido, falador e sempre muito animado e disposto para a
brincadeira, sem gostar menos dos outros ele era possivelmente 'O Meu
Melhor Amigo'. Era ele, ele era o tal a quem eu durante o 8º ano
fantasiei de todas as formas, momentos e feitios contar que era gay, na
esperança que ele simplesmente me desse um sorriso e umas palavras de
apoio. Mas não, sem nunca ter conseguido livrar-me da timidez nunca

- 221 -
fui capaz, até que um dia, mulherengo como era começou a namorar
uma rapariga. Foi tudo por água abaixo, quem seria o rapaz que namora
uma rapariga, aceitaria algo assim, pensava eu.
O tempo passou, e eu fechado permanecia...
Finalmente no secundário, pessoas novas, novos medos, grupo de
amigos na mesma escola mas eu, noutra área de estudos acabei por me
afastar. Agora havia outros perigos, jovens com mentalidades mais
fechadas e menos tolerantes ao assunto e capazes de aterrorizar. Algo
pelo que passei também. Por sorte recuperei uma linda amizade que,
outrora no ensino básico tinha arrefecido (coisas de miúdos), esta,
particularmente especial, já estávamos juntos na escola e turma desde os
2 aninhos quase como irmãos.
Instintivamente, tornei-me observador e curioso, sempre muito
reservado. Não sei como e sorte, criei com mais duas meninas, novos
laços, tornámo-nos bons amigos. O meu acto de observação deu frutos
sem me aperceber, com novos temas de conversa, reparei que a Cátia
(nome fictício) era contra a discriminação fosse de qualquer forma,
incluindo, as tais palavras mágicas, a orientação sexual. Uma chama
acendeu-se em mim, senti-me em êxtase mas depois, pensei, será
possível? Pois é, um dia, ainda a meio do ano lectivo, não sei como, a
frase, não literal: "-Cátia tenho algo sério para te contar..." saiu-me, não
podia voltar atrás, não sabia que sentir, medo, felicidade...quase
gaguejava, ela apenas sorriu com um olhar meigo, feliz e com uma festa
na cara e depois um abraço, e disse: -"Ooh! Tão querido, obrigado por
me contares isso.‖ Nunca tinha sentido algo assim, tanto amor.
Incrivelmente, um dia, a caminho de casa com a Rute (nome fictício),
numa conversa, como quem pensa em algo difícil de obter diz num tom
alegre: ―-Oh pah! Gostava de ter um amigo gay.‖ Ri-me e não me
pronunciei, mas por dentro quase explodia, estava tudo ao contrário do
que antes vivia. Não conseguindo esperar, com a ansiedade contei-lhe
no próprio dia não pessoalmente, ela quase não acreditou, outro grande
momento! Posteriormente, combinado com elas as duas decidimos
contar à Raquel (nome fictício), com um feitio especial, por vezes
impulsiva, mas sempre muito sincera. Apenas esperámos um momento
normal em que estaríamos apenas os 4. A reacção dela foi diferente,
- 222 -
menina de poucas demonstrações de afecto apenas disse: ―-Sério? Que
fixe.‖, e sorriu. Os laços ficaram mais fortes e tornámo-nos muito
unidos. O conselho da Cátia, ganhei coragem para conhecer alguém
como eu, num chat, procurando sempre alguém para conversar e fazer
alguns amigos. O tempo passou, passei a ser eu mesmo, embora apenas
só com elas.
Finalmente comecei a viver, passaram-se alguns meses e já tinha tido
algumas alegrias e tristezas. Conheci um amigo de longe a cerca de
120km de distância, com quem me identificava bastante, falávamos de
tudo. Um dia ele disse-me que conheceu alguém do mesmo sítio onde
eu morava, fiquei intrigado, e ele já sabia mais que eu, estava em pulgas,
pois nunca tinha tido oportunidade de conhecer alguém daqui. Conversa
daqui e dali, ele começou a saber mais coisas e a contar-me, parece que o
rapaz me conhecia, fiquei com o coração nas mãos, não poderia
imaginar quem fosse, depois, logo me disse que andou e andava na
mesma escola que eu, meu Deus, cada informação me deixava mais
empolgado, e cansado de tal arritmia, pior ainda, também de seguida me
conseguiu dizer que foi da minha turma…quase morri ali sentado (não
literalmente), estava próximo de saber, e já não aguentava mais, quem
poderia ser? Foi então que ele me disse o nome dele…fiquei pasmado a
olhar para aquele nome, não pude acreditar, era ele! Era ―O Meu Melhor
Amigo‖ de até à 2 anos atrás. Pensei para mim, como teria sido lhe
tivesse contado, acabámos por conversar e contar coisas de outros
tempos. Nada mudou, no entanto, a amizade não se perdeu, e apesar de
raramente nos vermos e falar, quando isso acontece, sente-se realmente
que verdadeiros amigos duram para sempre, não importa o tempo que
passe nem a distância.
Sou muito sonhador, e essa sempre foi e ainda é, a minha motivação
para, e vontade de ser eu mesmo, conhecer novas coisas, construir o
meu futuro com as pessoas de quem gosto e ser feliz. Hoje, posso dizer
que me sinto tal, pelas pessoas que conheci e que adoro, mas
principalmente, por mim, por ter conseguido ganhar a batalha contra
mim mesmo, me ter conseguido superar, e libertar daquela prisão que
são os nossos medos. Apesar de estes serem momentos felizes, houve
outros pelo meio muito difíceis e desesperantes, os quais sozinho não
- 223 -
teria sido capaz. Desejo força e dedico esta experiência àqueles que se
sintam perdidos, com medo ou que simplesmente necessitem de alguma
inspiração para lutar por si e por aqueles de quem gostam. Não estão
sozinhos, haverá sempre alguém ao vosso lado.

Nuno A.
20 Anos
#71

- 224 -
O meu início...
Bem, não poderemos chamar propriamente uma história, pois o
meu percurso no meio LGBT ainda é muito curto. Nem sequer sou
muito bom nisto, mas cá vai: Tenho 20 anos e só acerca de ano e meio é
que decidi explorar as dúvidas que tinha até então. Foi nos inícios da
adolescência que me apercebi da minha orientação sexual. Sempre achei
que era algo passageiro e que com o tempo passava. Julgava ser pouco
comum e que poderia ser mudado. Mas claro que não. Já com 18 anos
achei que era altura de arrebatar essas minhas dúvidas e procurar aquilo
que queria. Foi aí que conheci novas pessoas, cujas mesmas hesitações já
eram do passado. Alguns, já amigos, ajudaram-me a perceber a
homossexualidade e de que não existe nada de errado com isso. No
entanto, é preciso saber lidar com ela e procurar estruturar uma vida
futura, tendo por base algumas condicionantes. Não é um meio 100%
agradável.
Depois de ter a certeza de que de facto, fazia parte da minha
personalidade e que não quero de modo algum viver vidas paralelas em
que encubro uma característica tão importante em mim, que decidi abrir-
me aos meus amigos, que sempre me conheceram como heterossexual.
E aí sim, pude ver os verdadeiros amigos que tenho. À medida que ia
contando, ia ficando cada vez mais surpreendido com as reacções que

- 225 -
despertavam. Foram experiências muito gratificantes que me davam
força para continuar a abrir-me. Diziam-me aquilo que eu mais gostava
de ouvir: -―Continuará tudo na mesma! Nada se altera.‖. Curiosamente,
sabem mais amigos, do sexo masculino do que amigas e até o meu tutor
de estágio profissional, que hoje é um grande amigo, sabe.
Com este coming out, tornei-me numa pessoa muito mais feliz, com
ideais mais vincados, com uma vida social mais activa e mais confiante
para construir um futuro com base nesta nova característica. Comecei a
acompanhar blogues, notícias, opiniões, debates e achei que também é
minha responsabilidade ajudar a acabar com o preconceito e lutar pela
igualdade e equidade.
Ainda não sei como será o meu futuro, mas talvez queira casar, ter
filhos … e para isso ainda à muito a fazer. Mas acho que estamos cada
vez menos distantes disso. Amigos meus gays mais velhos, que já
passaram por isto, dizem que tenho muita sorte por hoje em dia poder
partilhar a minha homossexualidade abertamente. Há 10 anos atrás, as
coisas teriam sido bem diferentes, e não para melhor.
A Igreja, por exemplo, tem sido uma grande oposição. Mas será que
eles não percebem que, lá por não aceitarem o casamento homossexual,
se vai salvar a continuação da humanidade? Esta atitude não me vai fazer
casar com uma mulher e ter filhos.
Sinceramente, não sei que conselhos eu poderei dar a quem ainda
venha integrar o meio LGBT… apenas acho importante conhecer
pessoas mais velhas ou que tenham mais experiência, e não se negarem a
vocês próprios E acreditem que conhecem muitos não-heterossexuais na
vossa vida. Fiquei surpreendido, tanto com as pessoas que já conhecia e
que não sabia que tinham a mesma orientação sexual que eu, como com
os diversificados estilos de pessoas que podemos encontrar neste meio:
diferentes raças, idades, estatutos sociais, profissões, … Isso só mostra
que não é uma escolha, mas sim algo inato. Para os restantes, que
poderão um dia mais tarde ter de lidar com a revelação de um amigo ou
familiar, peço a compreensão e cooperação para com os mesmos, pois
uma atitude de solidariedade faz toda a diferença. E uma pequena piada
é o melhor de tudo!!!

- 226 -
Para terminar, gostaria apenas de dedicar o último paragrafo como
forma de agradecimento aos meus amigos, que me têm ajudado nesta
nova descoberta de mim mesmo e é graças a eles que existe a vontade de
continuar a lutar por um futuro melhor, para mim e para os meus
semelhantes.

Nuno
20 Anos
#83

- 227 -
Só somos diferentes
Nunca é tarde pra saber
Que não há nada errado em sermos diferentes
(Só somos diferentes)
Zélia Duncan

- Pedro, Pedro, está a passar a tua entrevista! Olha!


- Que horror!
- O que é?! ‗Tá a correr muita bem!
- Já viste? Pareço um Gay!
O meu coração gelou...
Pareço um Gay!? Mas este gajo ainda não sabe que é gay??? O que é
que ele está à espera que eu diga? Que não? Que é uma estupidez e que
ele parece um macho latino?!
- Oh!, tás parvo? Até parece que não sabes que a nossa voz e a
nossa imagem se alteram completamente quando são gravadas. Bolas, já
fazemos isto há tempo e ainda não te habituaste?
- Pois, tens razão. Deve ser isso...
A cara pouco convencida do Pedro fez-me pensar que não me tinha
mostrado suficientemente convicta das minhas palavras. Continuou um
pouco perturbado até acabar a entrevista.

- 228 -
A aula em que nos encontrávamos era mais ou menos uma festa.
Éramos finalistas de Comunicação Social e estávamos a visionar as
entrevistas que tínhamos gravado na semana anterior. Como sempre,
toda a gente estranhou a sua cara, o seu corpo, a sua performance. É
sempre assim. A primeira vez que vemos a nossa imagem gravada é uma
experiência estranha. Mas aquela aula foi uma festa. Era a aula em que
todos comparavam todos com os mais estranhos pivots de televisão! Foi
a loucura total.
Ao mesmo tempo, acho que foi também a aula em que o Pedro se
viu forçado a aceitar uma série de sentimentos que até ali rejeitava. Teve
que se confrontar com o facto de que era homossexual!
Aquele instante ficou marcado na minha memória. Nas minhas
memórias de faculdade e nas minhas memórias de vida.
Cruzava-me com o Pedro todos os dias (éramos da mesma turma e
do mesmo grupo de amigos) e nunca consegui dizer-lhe ―Meu, podes
falar comigo. Tranquilo. Não se passa nada. Sei que estás num
emaranhado de emoções e dúvidas mas eu estou aqui.‖
Levou algum tempo até que o Pedro sentisse que eu era terreno
seguro. Nesse dia, fomos ao Bairro Alto e foi lá ter um ―amigo‖ do
Pedro que ele nos queria apresentar. Era o Isaac. Recebemo-lo como a
qualquer novo elemento. Com festa, copos e piadas!
Nessa mesma noite, o Pedro entusiasmou-se e baixou as defesas. A
meio da noite cometeu a primeira ―gaffe‖:
- Já viram o mais giro?! É que nós temos os dois nomes bíblicos!
Ups! Isto não correu bem. Foi demasiado indiscreto!
À saída do ―bairro‖, estávamos a andar lado a lado e as mãos do
Pedro e do Isaac quase se tocaram, por várias vezes. Mas era tão
depressa e tão levemente, que facilmente qualquer pessoa se convenceria
de que estava a ver mal.
Dois dias depois, à porta da biblioteca, fiquei sozinha com o Pedro e
perguntei-lhe, com o ar mais natural que consegui fazer:
- Como está o Isaac?
A cara de pânico do Pedro fez-me pensar que tinha ido longe
demais...
- Tu sabes?!
- 229 -
- Mas sei o quê?! Que tu e o Isaac namoram? Sim, desde o primeiro
momento em que vos vi juntos.
A cada palavra que eu dizia, o pânico do Pedro aumentava.
- Calma, não acho que tu dês muito nas vistas. Sei porque te
conheço e porque senti nos sinais mais discretos que vocês fizeram. Está
tudo bem. Agora já podes falar sobre isso.
Naquele instante, recebi um dos melhores abraços da minha vida.
- Ainda bem que sabes. Que bom poder falar contigo...
A partir dali, tudo mudou. O Pedro passou a discutir comigo as suas
relações, passámos a discutir entre os dois se os ―gajos‖ era ou não giros,
e sobretudo, partilhávamos dúvidas e certezas sobre a sexualidade, o
amor e o futuro.
O processo de coming out do Pedro estava a desenrolar-se a passos
largos. O passo seguinte foi contar ao irmão, à mãe e ao resto do nosso
grupo.
- Então e o teu pai?
- És louca? Nem sequer penso nisso!
- Porquê?
- Porque... não. Ele nunca iria aceitar.
- Como é que sabes?
- Porque sei. Conheço-o. Não vai aceitar nunca.
Os olhos do Pedro tinham voltado a transformar-se num espelho e
as lágrimas estiveram por pouco.
Não me conseguia conformar com aquele sofrimento estúpido. Não
conseguia suportar a ideia. Simplesmente não podia. Porque é que as
outras pessoas todas não lidavam com a homossexualidade com a
mesma naturalidade com que eu conseguia lidar. Era tão mais fácil.
A semana seguinte foi a mais difícil que passámos juntos. O Pedro
tinha faltado dois dias às aulas, o que, apesar de ele não ser propriamente
um exemplo de assiduidade, não era muito comum. Não tardei muito a
saber o motivo. Tinha tido uma relação desprotegida e o namorado
tinha descoberto depois disso que estava contaminado pelo vírus da
SIDA. Gelei... Os poucos conhecimentos que tinha, fruto de algumas
conversas com a minha mãe sobre os doentes dela, foram suficientes
para ver o filme todo do princípio ao fim. Nessa altura aprendi mais uma
- 230 -
coisa. Teríamos que aguardar um mês (a partir do dia em que fora
consumada a relação) até que o Pedro pudesse fazer os exames.
Os dias seguintes foram de angústia. Ao mesmo tempo, o Pedro não
se conseguia revoltar contra o namorado. Foi impressionante a força que
ele demonstrou nessa altura, mas durou pouco. Antes de termos ainda
resultados concretos, achou que não valia a pena sofrer mais e iniciou
uma fase de desprendimento total em que já nada lhe interessava.
Começou a faltar muito às aulas na recta final do curso e transformou
um namoro que era estável numa relação estranha e conturbada.
Passou algumas semanas assim. Eu vivia com o coração nas mãos,
cheia de medo que lhe acontecesse alguma coisa e a ver à frente dos
meus olhos as consequências de ninguém falar sobre a
homossexualidade. Os tabus resultam nestes comportamentos estranhos
e desviantes. As pessoas refugiam-se em si próprias porque acham que
não podem pedir ajuda e muitas vezes não aguentam a pressão.
Felizmente, a boa notícia chegou. O teste tinha sido negativo e a
pressão daquelas semanas começou a ser diluída na boa disposição que
voltou ao seio do grupo. A calma regressou e quando o Pedro e o Isaac
terminaram a relação, os motivos já não tinham nada a ver com este
assunto.
Já lá vão dois anos desde que acabámos o curso. Há uns meses falei
com o Pedro. Estava bem, apaixonado e feliz. O novo namorado já
tinha ido uma série de vezes jantar lá a casa. O irmão e a mãe gostavam
muito dele.
- E o teu pai?
- Não sabe. Acha que é meu amigo.
- Ainda não resolveste isso?
- Não. Mas tenho tempo. Um dia ele vai ter que saber.
- Sim. Tens tempo.
- Obrigada por tudo. Foi muito bom contar contigo naquela fase.
Era tão mais fácil se toda a gente falasse do assunto como tu falas...
- Um dia vão falar. Vais ver. Acredito que se algum dos meus filhos
for homossexual não vai ter que passar pelo que passaste.
- O melhor que pode acontecer a um adolescente que descobre que
é homossexual é ter-te a ti como mãe.
- 231 -
- Não digas isso. O melhor que pode acontecer a um adolescente é
encontrar a sua estrela e faze-la brilhar. Gosto muito de ti.

Joana do Vale
25 Anos
#82

- 232 -
Uma história simples
Ainda me lembro do dia em que conheci a Mafalda. Era amiga do
Miguel, e foi assim que a conheci. Sei que na altura a achei simpática;
mais tarde descobri a sinceridade e as outras características que levaram
a que a amizade viesse com o tempo.
Também recordo o dia em que no mesmo café onde a conheci, ela
nos contou um ‗segredo‘. Confesso que apenas hoje, ao pensar nisto,
dou conta do que colocou em risco, por se ter decidido a contar,
desconhecendo qual a reacção que ia ter. Tento agora recordar a cara
dela e descobrir nela algum receio, que não notei na altura. Não consigo,
mas presumo que lá estivesse. Não sabia como iríamos reagir, se no dia
seguinte ia ser igual, mas contou. Ainda me lembro da reacção do
Miguel, tal como da minha porque foi a mesma e em simultâneo.
Politicamente incorrecta, talvez, como apenas nós os três
compreendemos e aceitamos, mas uma reacção ‗normal‘. Não havia ali
nada de grave, de mau, de estranho, pelo menos para nós, que nos
levasse a reagir mal. E lembro-me, agora sim, da expressão dela, um
pouco surpreendida por termos achado que era algo normal, sem
grandes rodeios, sem necessidade de algum tempo para pensar no
assunto.

- 233 -
Recordo muitos outros cafés posteriores, especialmente um que ela
marcou comigo, tempos mais tarde, dizendo que compreendia caso eu
não quisesse ir, porque era num café 'gay friendly'. Mas eu até já era
frequentador (desconhecendo que era ‗gay friendly‘ ou mesmo que o
termo existia) e nunca tinha reparado (ou nunca quis reparar) se os
clientes eram ‗diferentes‘ de mim. Lembro-me de outros cafés nesse sítio
e noutros, com pessoal hetero e gay à mistura e não consigo ver nada de
mau nisso. Lembro-me de na semana passada ter ido com ela e com
uma amiga a outro espaço 'gay friendly'. Estava cheio, e concordámos
que eu devia ser o único hetero ali, mas isso também não me causou
confusão alguma.
Também me lembro que um dia ao ver um debate ou reportagem na
TV acerca da homossexualidade, em conversa, eu disse à minha mãe que
tinha uma amiga lésbica. Ela, do alto dos seus sessenta e tal anos, não
encontrou nada anormal nisso.
O que acho confuso é ainda existirem pessoas (e quantas delas
muito mais novas que a minha mãe) que não pensam assim. E são
muitas. A meu ver, erradas; por vezes injustas ou pior, cruéis. Por isso,
desta pequena história, apenas realço não a minha atitude, ou a do
Miguel, mas a tua coragem. Falo para ti, agora. Porque não foi fácil,
presumo. Dois amigos, que poderiam ter deixado de o ser a partir
daquele momento. Porque a verdade é que ainda há pessoas que não
aceitam isto, que não acham normal, ou que até nem se importam desde
que não seja com eles ou com os seus amigos ou familiares. De certa
forma tiveste ‗sorte‘, não houve preconceito da nossa parte, mas a tua
coragem esteve lá antes, só ela te permitiu descobrir a nossa reacção. O
passo de coragem foi teu.
Mesmo nessa altura, não imaginava que a nossa amizade viesse a
chegar onde chegou. És uma boa amiga. Que por acaso se sente atraída
pelo mesmo sexo. E depois? Onde está para muitos o problema, eu vejo
um pormenor, uma característica, uma faceta. Uma coisa tão simples e
normal como gostares de Coldplay. Que não faz de ti pior ou melhor
pessoa. Que apenas faz de ti a pessoa fantástica que és...

- 234 -
Esta história pode parecer muita coisa, desde uma simples história
de aceitação a uma história sem grande interesse. Eu apenas espero que
um dia seja uma história banal.

Bruno
25 Anos
#117

- 235 -
O Pedro não sabe que eu sei
Conheço o Pedro da faculdade, fomos colegas de turma durante 5
anos. Apesar de me lembrar dele desde o 1.º ano, só no último nos
tornámos mais próximos. Gosto de pensar que somos amigos.
Eu sei que o Pedro é homossexual, mas ele não sabe que eu sei.
Nos tempos de faculdade, o Pedro namorou com uma colega da
nossa turma durante uns tempos. O namoro do Pedro com a Joana – ou
o seu fim – nunca me fizeram perder um segundo sobre a orientação
sexual do Pedro: era-me e é totalmente indiferente.
Já no fim do curso, nos últimos meses do último semestre, comecei
a ouvir rumores e as pessoas vinham comentar comigo. Perguntavam
expressamente se o Pedro era gay. Contavam-me que o tinham visto
com outros homens ou rapazes. Acho que, a isto, a minha resposta era
sempre: ―E se for, que diferença faz?‖ Mas devo confessar que todas
essas conversas me levaram a pensar um pouco mais sobre o assunto, e
a dúvida foi crescendo. Nunca partilhei as minhas dúvidas com
ninguém, nem com o Pedro nem com amigos em comum. Vivia bem
com elas e com qualquer que fosse a resposta. O Pedro seria sempre
aquele amigo que está sempre a sorrir e bem disposto, que adora música
e dançar, que canta do nada e cuja presença impõe sempre, sem
excepção, a boa disposição dos outros!

- 236 -
Há já algum tempo veio a certeza e a confirmação: o Pedro é
homossexual e tem um namorado. Não me surpreendeu. Mas se a
certeza fosse no sentido inverso, também não teria ficado surpreendida.
Não me canso de dizer, é-me indiferente, sempre foi e sempre será.
Quem me contou pediu-me segredo, pelo Pedro. Ele ainda não estava
confortável para nos contar, àquele grupo de amigos onde eu me insiro.
E eu respeitei e ainda respeito. Terá de ser uma decisão dele, acho eu.
Já sei com toda a certeza há cerca de dois anos, e até hoje nem eu
nem ele falámos sobre o assunto. O Pedro nunca perdeu o seu medo,
pelo menos em relação a nós, àqueles amigos. Nunca deu sinais de
querer abrir o jogo, de modo mais directo ou mais discreto. E eu nunca
tive coragem de lhe abrir essa porta, de lhe dar a entender que podia
abrir-se comigo e partilhar.
Sei que já o fez com outros, mas connosco ainda não. Não sei se
algum dia o fará. Eu espero que sim, para o bem dele.
Pedro, só quero dizer-te uma coisa: eu gosto muito de ti e sou TUA
amiga. Não do Pedro heterossexual, homossexual, transgénero ou
bissexual. Eu gosto de ti. Ponto.

Rita Teixeira
26 anos
#101

- 237 -
"Partilha-te" na amizade
A definição de quem somos, da nossa personalidade, da forma
como interagimos está em constante mudança. Somos influenciados por
quem nos rodeia, por aqueles que posicionamos como exemplos e
sobretudo pelas nossas vivências. Acredito nesta forma de definir o que
sou e porque sou. A forma como olho, interpreto, a homossexualidade
foi também mudando ao longo dos meus 26 anos. Primeiro foi definida
pela formação que tive (o tal ambiente que nos rodeia), depois sujeita às
evidências das experiências da vida e ao valor da amizade.
Tive uma formação radical sobre a homossexualidade. Comecei por
encará-la como um tabu, sinónimo de rejeição automática e de repúdio
para com os homossexuais. Na faculdade lembro-me de exprimir estes
sentimentos e de os defender como se fosse algo óbvio, natural e
evidente. Felizmente a faculdade foi muito mais que aulas e ensino
universitário, foi uma realidade nova e que teve grande influência
naquilo em que me tornei. Um mundo de vivências académicas,
associativas e desportivas, novos colegas e amigos apresentaram-me
novas realidades e evidências. Uma destas evidências foi a naturalidade
de descobrir que alguns dos meus amigos, daqueles com quem
trabalhava na associação de estudantes e admirava, eram homossexuais.
A inocência e o desconhecido deram-me a oportunidade de ter amigos

- 238 -
homossexuais, sendo que a certeza dessa realidade surgiu já depois de ter
construído a amizade. A homossexualidade deixou de ser sinónimo de
rejeição e passei a encará-la como uma opção de cada um, como uma
liberdade individual.
Recordo o ―eu‖ do passado e reconheço a ignorância e o
preconceito. A faculdade desfez o tabu, as vivências fizeram a mudança!
Nunca perdi tempo a racionalizar estas mudanças. Ocorreram
naturalmente, fizeram parte do meu crescimento/amadurecimento e
alteraram a minha visão sobre a orientação sexual de cada um. No fundo
de sermos nós próprios e deixarmos que os sentimentos falem por si e
não os preconceitos.
A racionalização e o pensar na mudança só ocorreu mais tarde,
quando um amigo de infância, daqueles de quem pensamos que sabemos
tudo, me deu a conhecer o seu segredo – era homossexual. Seria
hipócrita se dissesse que aquilo que tinha amadurecido sobre o tema me
fez reagir com a maior naturalidade do mundo. O amigo de infância
tinha um segredo, um segredo que o torturava e por medo não o
partilhara. Achei aquele cenário ridículo e apercebi-me que esse cenário
existia por responsabilidade minha. Porque simplesmente ele tinha medo
que eu o recusasse. Como se os sentimentos e as relações fossem
condicionados por aquela nova realidade, como se aquilo que se constrói
com anos de partilha e amizade pudesse ser esmagado por uma
diferença sem diferença num mundo que se valoriza pelas diferenças.
Mas apesar deste raciocínio evidente, a verdade é que aquela partilha me
tinha chocado e marcou um ponto de mudança e reflexão!
Recordo o ―eu‖ do passado e já não consigo entender a rejeição
automática e o repúdio perante a homossexualidade. As experiências que
vivi definiram uma nova realidade para mim, em que o carimbo
predefinido em cima dos indivíduos, heterossexual ou homossexual, deu
lugar a um carimbo único de igualdade. Uma igualdade que nos permite
ver uns aos outros com verdade, sem ocultos, sem receios de partilhar o
que somos, permitindo viver as amizades como elas devem ser vividas,
sem barreiras artificiais que não fazem sentido e nos afastam!
Esta história não é sobre a homossexualidade, mas sobre o que a
amizade nos ensina! Esta história não é sobre diferenças, mas sobre a
- 239 -
capacidade da amizade nos fazer crescer e amadurecer, fazendo com que
olhemos para o Mundo de uma forma pura e não condicionados por
aquilo que a sociedade tem por correcto ou incorrecto. Somos nós que
temos de definir os nossos valores, o que é correcto ou não. No fundo
ver como igual a opção sexual de cada um, não é discutir como
encaramos a homossexualidade, mas sim viver a vida com autenticidade,
com sinceridade, disponíveis para o ―partilha-te‖ do dia a dia.

A. S.
26 Anos
#114

- 240 -
A homossexualidade de um
“heterossexual”
Durante a maior parte da minha vida vivi num meio
predominantemente solidário, consciente e fundamentado em tudo
excepto num ponto, a sexualidade.
Tenho 26 anos, sou Católico, sou cientista em formação académica
avançada, casado há cerca de dois anos e pai de uma filha ainda bebé.
Durante a minha educação, as questões de sexualidade sempre foram
um tabu, que me levou crescer isoladamente e sem muitos recursos
nesta dimensão humana. Pode dizer-se, sem grande exagero que até aos
18/19 anos os meus conhecimentos nesta área se resumiam a cuidados
higiénico/sanitários como lavar-me ou a prevenção doenças
sexualmente transmissíveis e gravidez.
Não nego que profundamente ligada a este espírito, esteja a minha
formação Cristã, que também se encontra fortemente embebida nas
atitudes da nossa sociedade, mas também tenho de reconhecer que foi o
facto de continuar esta formação Cristã já na idade adulta, que me abriu
as portas para minha dimensão sexual e dentro desta, de uma forma
mais abrangente, as minhas relações homossexuais e heterossexuais.

- 241 -
A minha partilha começa nos meus 16 anos, jovem católico
praticante e muito activo. A vida era feita de mochila às costas com
encontros espirituais, campos de férias e passeios pelo país. Um dos
meus grandes amigos nessa altura, o Jaime acompanhava-me sempre
nestas andanças. Admirava a sua dedicação e capacidade de estar sempre
presente a dinamizar grupos de amigos e amigas com uma energia
diferente do habitual. Era o meu melhor amigo. De adolescentes fomos
passando a adultos e nesta altura 18/19 a relação já não era a mesma,
deteriorava-se por razões que eu não percebia: dizia mal do Vítor um
amigo comum e outras pessoas, vivemos desencontros e choques de
feitio. O Jaime andava diferente, mais obsessivo e intolerante e pouco a
pouco desenvolveu uma doença mental, de que só mais tarde me
apercebi.
Entretanto, neste grupo de amigos também fui aprofundando uma
amizade forte com esse outro amigo o Vítor. Crescemos muito juntos
num pequeno e comum grupo de amigos estudantes. Acompanhávamos
as vidas uns dos outros, amigos, namoradas, projectos, estudos, etc…
Um dia o Vítor convidou-me para tomar café com ele, era uma noite fria
perto do Natal. Encontrámo-nos no Saldanha e pusemo-nos a andar
avenida a baixo. Pelo caminho ele foi-me contando a história da sua
vida, desde o divórcio litigioso dos pais, aos abusos sexuais de um
familiar. A história foi-se desenrolando, e as frases saiam-lhe da boca
com um conjunto de várias peças soltas que iam ganhando uma forma
que eu não sabia digerir. ―Lembras-te daquelas férias na praia com o
Jaime?‖ - ― Na verdade acho que nunca me senti completo com uma
mulher‖ - ―Nessa altura curtimos.‖ – ― E depois continuámos mais
umas vezes‖ – ―Se soubesses quantos mais?...‖ – ―Esse também é‖
Quando chegámos a meio da Av. da Liberdade apenas tinha duas
certezas: a nossa amizade era mais forte que isto, e tinha de fazer
qualquer coisa para que este amigo não ficasse como o outro. No
regresso fomos falando da nossa amizade e da forma como ele podia ou
não contar o seu segredo aos restantes amigos.
Depois de nos despedirmos, revivi toda a conversa vezes sem conta.
Revivi os momentos que tínhamos vivido juntos, as intimidades, as
confidências, as piadinhas de balneário e confesso que durante bastante
- 242 -
tempo tive de fazer muito esforço para não deixar que uma forte
sensação de traição me dominasse. A amizade tinha de ser mais forte e
sobretudo isto não passava de uma doença causada pelos abusos que ele
sofrera. Pensava eu…
Fui acompanhando o Vítor na sua luta, tentava sobretudo não
deixar que ele se perdesse em circuitos amorosos de curta duração ou
relações ocasionais que a meu ver lhe baixavam a auto-estima e o faziam
sofrer ainda mais. Nesta fase o tema saía-me por todos os lados, em
quase todas as conversas. Numa dessas conversas no café da faculdade,
após puxar o assunto, partilhei em forma de desabafo a minha
perspectiva da homossexualidade, uma doença num grupo social
promíscuo de relações fáceis, superficiais e abusivas ―Só no dia em que
vir uma relação homossexual séria e de verdadeiro amor é que vou
acreditar nisto?‖. Mal sabia eu que naquela mesa de café estava alguém
que viria três anos mais tarde a mudar por completo esta minha
perspectiva.
Passados esses três anos, estava em casa a ultimar os preparativos
para um serão entre amigos. A certa altura a minha mulher chama-me e
diz ―O Joaquim mandou um e-mail, parece que anda com questões de
vocação. Está a partilhar corajosamente com os amigos, Anda cá ler.‖
Ansiosamente debrucei-me sobre o texto, contava a história da sua vida
de uma forma bastante abrangente, amizades, fé, educação e sexualidade.
Falava com uma maturidade de quem estava a dar a volta por cima de
um grande sofrimento e a integrá-lo nas suas relações de namoro,
amizade, sociais e família, numa forma de vida tão ou mais saudável que
a minha. Falava com fundamento e humildade, pedia ajuda aos amigos e
confiava nas nossas frágeis mãos e ignorância. Sofria, andou deprimido
mas soube lidar com as suas questões, estava ciente de quem era e do
que queria. Não andava a saltar de relação em relação e era homossexual.
E agora?
Sinto que tenho crescido muito com estes três testemunhos.
Interessei-me pelo tema, informei-me dentro e fora da igreja e fiz o meu
próprio discernimento. Formei-me sexualmente com um curso intensivo
de sexualidade dado por um especialista sexólogo. Descobri que ainda
vivo mal a minha sexualidade na sua abrangência (diferente de
- 243 -
orientação sexual), porque vivi mais de 25 anos de ignorância sexual.
Descobri que o mais importante na sexualidade é a relação e a
comunicação. Descobri que socialmente vivo imensas relações
homossexuais e heterossexuais, ou seja, sou amigo e cultivo relações
com pessoas do mesmo género e do género oposto. Descobri todo um
mundo que me tinha sido fechado pelo tabu social.
Nesta fase acredito que a reflexão pessoal (e oração no meu caso)
tem sido essenciais na minha análise da homossexualidade, pois só esta
reflexão me permite soltar, nem que seja por instantes, dos estigmas e
preconceitos que quer eu queira quer não, a sociedade foi colocando em
mim ao longo da minha história (talvez por isso não acredite em
revoluções de fora para dentro). Neste momento tenho vergonha
quando detecto em mim um ou outro preconceito, mas ao mesmo
tempo já sinto o sabor da vitória ao perceber que sou capaz de detectar e
esses preconceitos. Duvido que alguma vez consiga ultrapassar
emocionalmente o preconceito, mas tudo faço para racionalmente o ir
trabalhando a pouco e pouco.
Vivo também a certeza que estes preconceitos sociais levam as
comunidades gay a colocarem-se à margem, a viver em subgrupos e por
vezes numa semi-clandestinidade que dificulta o essencial: a construção
de relações de amor.
Nesse dia em que recebi o e-mail do Joaquim, convidei-o à última da
hora para ir ter a minha casa e mesmo assim foi o primeiro a chegar. O
máximo que consegui fazer foi dar-lhe um sentido abraço. Este texto
pretende ser a continuação deste abraço, que significa que mesmo
limitado, tenho tentado crescer e acompanhar estes amigos, ou como o
Joaquim me dizia uma vez ―Apenas preciso que estejas‖.

Álvaro Lopes
27 Anos
#124

- 244 -
E eu até recebo aqueles e-mails
com frases bonitas...
A minha curta existência é uma grande mistura de celebrações,
aventuras, alegrias e tristezas. Trago no estojo do coração muitas
recordações de momentos que me souberam a único e a especial. O ano
em que fui graduado no Colégio Militar, a primeira vez que subi a palco
para tocar pandeireta, a minha vida em Itália durante o Erasmus, a
minha viagem de lobo solitário pelo Chile, o campo de férias de Pegadas
pelo Gerês, o meu casamento, o nascimento do meu primeiro filho.
Estes e outros momentos trouxeram-me ensinamentos para a vida,
transformaram-me e convidaram-me a explorar novos percursos e novas
ideias.
Esta partilha é sobre um desses momentos.
Passou-se numa noite que tinha tudo para ser banal. Era noite,
estava escuro e as avenidas novas de Lisboa estavam desertas. Saímos
para ir beber um copo em jeito de celebração de um aniversário de um
grande amigo. Sentámo-nos num café que por alguma razão, muito
razoável, já não existe. Inesperadamente, em vez de um bolo de anos, o
Ricardo apresentou-nos um manuscrito e pediu-nos para o ler. Eu com a
minha capacidade enorme de tentar ter piada perguntei se ele ia ter um
filho. Ele voltou a insistir para que lêssemos. Estava nervoso!

- 245 -
O manuscrito foi a partilha mais corajosa e genuína que li até hoje.
E, olhem que eu recebo aqueles e-mails com frases bonitas e com filmes
inspiradores do YouTube, sou animador da Candeia e conheço a Maria
Costa. Quando terminei de ler o manuscrito, levantei-me e abracei-o.
Disse-lhe ―Gosto muito de ti. És uma pessoa muito especial!‖. Ele
tremia do peso do medo da nossa reacção, da nossa descoberta. O
Ricardo é homossexual.
Admito que a descoberta foi um choque! Ali estava um dos meus
melhores amigos, com quem eu passo tanto tempo e eu sabia tão pouco
sobre ele. Não fiquei chocado por ele ser homossexual, fiquei chocado
com a minha ignorância e com o meu preconceito.
Às vezes sinto que o mundo estremece e que algumas das estacas
que sustentam o meu mundo caiem por terra, normalmente substituo-as
por pilares. Ler aquele manuscrito teve esse efeito.
Um dos meus preconceitos era achar que a homossexualidade é uma
escolha. O que me levava a pensar ―Eu respeito as escolhas de cada
um.‖. Com o Ricardo descobri que ele escolheu tanto ser homossexual,
como eu escolhi ser heterossexual. Agora deixei de tecer julgamentos em
relação à homossexualidade, é só mais uma das formas com que o Amor
se apresenta.
Depois de ter descoberto a história do Ricardo fui ler mais sobre o
tema. Apercebi-me que os pais têm muita dificuldade em aceitar os
filhos homossexuais. Hoje sou pai de um rapaz de quinze meses e de
uma rapariga que está prestes a nascer. Como todos os pais, desejo
muito que eles sejam felizes. Tenho a certeza que aquela noite que esteve
para ser banal, me transformou numa pessoa mais consciente e num
melhor pai.
Um ano mais tarde, a Carla convidou o Ricardo para ser padrinho
do nosso filho mais velho. Espero que o Leonardo aprenda com a
coragem do padrinho.

Rodrigo Dias
29 Anos
#88

- 246 -
O dia em que não mudou nada
Num dia de felicidade, estava com os meus amigos a planear a nossa
viagem pelo Sul de Espanha em Auto-caravana. Eu e os meus amigos só
para mim! Que privilégio, que alegria!
Estávamos a combinar a data de partida, e, o Ricardo disse que tinha
um compromisso que iria atrasar a viagem 2 dias...
Eu disse (a brincar, mas com muita convicção): se vamos juntos de
férias durante 7 dias tens de me dizer que compromisso é esse!
- É o aniversário do meu namorado.
Maria pensa rápido e diz qualquer coisa, mas mostra-lhe que não
achas nada sobre a notícia. Porque é que ele me está a contar isto tão
depressa? Ele está a partilhar um bocadinho daquela parte que fica lá
muito longe e que eu nunca soube nada. Uau! Somos mesmo amigos de
verdade e ele gosta de mim, mais do que antes.
Nesse dia não mudou nada, continuei a amar-te.

Maria Costa
30 Anos
#51

- 247 -
Olá! Eu sou o Carlos...
Olá, eu sou o Carlos. Tenho 30 anos e durante o mês de Abril estive
responsável pelo site do Partilha‘te.
Quando pedi a algumas pessoas que contribuíssem para o projecto
(com histórias), uma das perguntas recorrentes que me fizeram foi
"porque é que tu estás envolvido?". Hoje decidi partilhar um bocadinho
de mim tentando responder a esta questão.
Tenho que ser íntegro: a homossexualidade não preenche muito
tempo da minha vida. Não é algo que me preocupe activamente ou que
me faça sofrer. Para mim é algo como o racismo ou a xenofobia - 99%
do tempo não existem. Como não os "conheço", não os "sinto".
Felizmente não me sinto discriminado pela sociedade. Mas isto não quer
dizer que possa ignorar estes problemas (até porque sou um bocadinho
mais que uma pedra com olhos). Por natureza, sou incapaz de ficar
indiferente ao sofrimento dos outros e como tal é-me impossível ignorar
estas disfunções da sociedade.
O Ricardo, que criou este projecto, é um dos meus melhores amigos
e uma das pessoas que mais estimo e admiro. Partilhamos o nosso dia-a-
dia há alguns anos: na escola, no trabalho e na nossa amizade. Durante
muito tempo, eu não fazia a ideia de que existia algo que o fazia sofrer

- 248 -
(para além das vicissitudes do dia-a-dia). Durante muito tempo eu não
podia perceber que havia algo que o tornava triste ou infeliz.
Quem o conhece sabe que ele é (e transparece ser) uma pessoa
especialmente feliz! É uma pessoa feliz porque tem muitos amigos. É
uma pessoa feliz porque dedica uma parte de si aos outros. É uma
pessoa feliz porque consegue sempre estar disponível para ajudar quem
precisa.
Não foi assim há tanto tempo que teve coragem de se "partilhar"
comigo. Um dia, a seguir a um almoço atribulado, deu-me (a mim e mais
dois amigos) umas "folhas para ler". Não me lembro das palavras
exactas que disse mas foi algo como "isto pode pôr a nossa relação em
causa... mas leiam".
O Ricardo era homossexual.
Desde então para mim não mudou (quase) nada. Não mudou nada
porque para mim ele é a mesma pessoa. Não mudou nada porque eu
tenho de respeitar os outros do mesmo modo que pretendo que me
respeitem a mim e à minha vida. Não mudou (quase) nada porque não
havia nada para mudar.
Mas o quase, apesar de subtil, é especialmente relevante. As folhas
que li naquele dia transformaram-se num livro. Esse livro tornou-se
numa ajuda para outras pessoas – muitas mais do que eu ou mesmo ele
podemos imaginar. O Ricardo conseguiu ajudar outras pessoas no seu
processo de coming out. Agora, e com este projecto, de certeza que está
a conseguir, e vai ajudar muitas mais. Como tal, alguma coisa mudou:
alguém com quem convivo diariamente tem sido capaz de se desafiar
continuamente e lutar contra os seus próprios medos.
A mim também me conseguiu mudar. Quando penso em tudo isto
retrospectivamente fico chocado. Nunca seria capaz de imaginar que é
possível alguém sofrer tanto por (ter de) se sentir diferente. Nunca seria
capaz de imaginar que alguém com quem convivo diariamente pudesse
carregar um "peso" tão grande.
Até há poucos anos, mesmo nas bibliotecas, a homossexualidade era
tratada como pertencendo ao mundo dos "Desvios Comportamentais".
Acredito que a discriminação é cada vez menor. No entanto ainda há um

- 249 -
longo caminho a fazer para que ninguém tenha de sofrer por se sentir
diferente.
O que me levou a participar no projecto foi a minha amizade com o
Ricardo. Quando penso nisto a fundo, continuo chocado por perceber
que alguém que pensava conhecer tão bem vivia ao meu lado, mas ao
mesmo tempo "noutro mundo". Um mundo paralelo de sofrimento
devido a algo que não pode (nem tem de) mudar.
O Partilha‘te enche-me as medidas! Acima de tudo ilustra bem
como é possível fazer muito com muito pouco. Espelha bem a energia
que se consegue criar quando se junta um grupo de amigos.
Um bocadinho a cada um não custa nada e faz por certo toda a
diferença! De certeza que pode haver quem viva ao teu lado e esteja a
sofrer.
Como tal reitero-te o desafio: partilha‘te. A tua história vai fazer
toda a diferença!

Carlos Mendes
30 Anos
#116

- 250 -
Frustração
A homossexualidade é numa palavra: frustrante.
Em tempos tive um amigo que era homossexual mas que não queria
admiti-lo nem para si próprio.
Casou, porque a sociedade assim o ―obriga‖ e foi, inevitavelmente,
infeliz.
Nos tempos de escola lembro-me do esforço que ele fazia para falar
de raparigas e mostrar-se interessado, o esforço que ele fazia para não
olhar atentamente para os rapazes, quando era essa a sua vontade.
Tenho pena… tenho pena que assim seja, tenho pena que ele tenha
desperdiçado os melhores anos da sua juventude tentando enganar-se a
ele próprio, para agradar os outros.
Tenho pena que agora tenha que namorado tiver, já não vai ser
aquele louco que em tempos conheci, porque com a idade todos
mudamos e o louco adolescente foi desperdiçado em raparigas pelas
quais ele só sentia uma pura e bela amizade.
Tenho pena que uma mulher tenha sofrido ao casar com ele
pensando que era amada e respeitada e no fim de contas perceber que
tinha casado com um amigo.
Tenho pena que mesmo depois de todos estes anos e depois de
tanto encobrimento, ele assumiu-se perante a família e tenha sido…

- 251 -
rejeitado. E talvez por isso continue sem se assumir perante o resto da
sociedade – os amigos, os vizinhos, os colegas de trabalho. Deve ser
realmente difícil convencer-se alguém a assumir os seus próprios
sentimentos quando nem a sua própria família os aceita.
Minha gente, a homossexualidade são apenas duas pessoas que se
amam, como qualquer um de ―nós‖ (heterossexuais), e precisam de ser
amadas, respeitadas. Precisam de tudo o que um Ser Humano precisa no
seu dia-a-dia para sobreviver feliz, simplesmente são duas pessoas do
mesmo sexo. Qual é o mal disso?!

Sofia Faia
24 Anos
#99

- 252 -
Uma simples partilha
Já reescrevi este texto várias vezes, até que decidi que ele seria o que
quer que fosse.
Eu considero-me uma pessoa livre de preconceitos, talvez tenha
alguns escondidos, mas sinceramente não os consigo identificar.
Conheci o Ricardo há uns anos, estava a pensar colocar quantos
foram, mas números não são o meu forte, e isso interessa?
Ele é das pessoas com quem mais me sinto à vontade, um amigo
que todos nós queremos ter por perto, mesmo quando tem os seus
ataques de ―centralismo‖, traduzindo para português – quando está tão
sensível que qualquer observação que a gente faça ele acha que é
direccionada para ele. Eu divirto-me com isso.
Um dia o Ricardo partilhou-me que era homossexual, o que mais
me mexeu comigo não foi o facto de ele ser gay, mas sim todo o
sofrimento e o peso que ele carregava. O que ele passou para tentar ser
‖normal‖, nem eu sei o que é ser ―normal‖. Eu não me considero uma
pessoa normal, tenho o meu jeito de ver o mundo, assim como tu tens o
teu. Apesar de sentir o mesmo que toda a gente: amor, rejeição, inveja,
paixão… uma infindável lista de sentimentos que todos nós carregamos.
Eu tenho um filho neste momento, que por acaso é afilhado do
Ricardo e tenho outra a caminho. Há pouco dias fiz um exercício com o

- 253 -
meu marido sobre quais eram os valores que queríamos passar na
educação dos nosso filhos. Nós não vamos escolher quem eles vão ser,
mas podemos ajudá-los a encontrar o seu caminho com mais segurança
e independência. Ao pensar um bocadinho mais sobre o assunto, vejo
que por vezes o estou a comparar com outras crianças, que começaram a
andar mais cedo, que começaram a falar mais cedo, que são mais altas,
que são mais rápidas. Isso interessa? O meu filho é fantástico.
Comunica. Come. Cresce. Sorri a toda a hora. Porque estou eu a
compará-lo?
Todos nós fazemos isso, mesmo sem darmos conta. E para quê?
Acho bom termos pessoas que admirámos, e que queremos aprender
com elas, mas isso a ter a vida delas é um passo muito grande.
O que há de mal em se ser homossexual? O que existe quando um
homem ama outro homem? Quando uma mulher ama outra mulher?
Existe amor. E não é isso que nós queremos da vida? Amor? Um amor
que seja ridículo, apaixonante, daqueles que não se consegue viver sem o
outro. Amor não é algo bom? Seja com pessoas do mesmo sexo ou não,
não basta para nós que se amem? Porquê que as queremos moldar? E
apontar o dedo? Quem nós somos? Exemplos de vida perfeitos? Isso
existe??? Não será a perfeição o ser-se imperfeito?
Eu acredito que quando desejamos muito uma coisa, o universo se
molda para a conseguirmos.
O que se pretende com este livro é que a homossexualidade deixe de
ser um tabu, que as pessoas consigam ser verdadeiras em todos os
momentos.
Sei que estamos a construir um caminho para lá chegar.
Se eu me mostrar para ti como eu realmente sou, vais deixar de ver
uma imagem fictícia minha, mas o meu eu. E não ganhamos todos com
isso? Porque é que temos medo?

Carla
31 Anos
#90

- 254 -
L de leiam...
Escrevo, por ironia do destino, no dia Nacional da Liberdade, mas
este L podia ser de Luciana, de Linda… Lapão, Lembrança, Livre
arbítrio, Lágrima, Labirinto, Luz, Loucura, ou de Lição.
Que seja simplesmente aquilo que o vosso coração escolher…
Estávamos no 10º ano de uma escola Secundária daquelas cheias de
grafittis, mesas autografadas e tabelas de basket destruídas, numa dessas
localidades onde há uma mercearia, um Rossio, uma peixaria, o café do
Zé, a vizinha Maria e o senhor dos jornais.
No meio de tantos adolescentes cheios de hormonas e necessidade
de atenção, a Luciana passava quase despercebida com o seu sorriso
singelo e a sua serenidade já adulta, apesar dos seus 16 anos.
L era uma aluna dedicada, uma amiga atenta, uma filha responsável,
uma alma generosa e, muitas vezes, surpreendente.
Dois anos passados e pouco antes de os pais terem decidido
regressar ao Brasil com ela e com a sua irmã mais nova, L surpreendeu-
nos ao som da sua viola com uma letra lindíssima sobre a Amizade, uma
prenda muito especial que ficou para sempre no coração daquela turma
de adolescentes.

- 255 -
L seguiu então para o Continente longínquo e cada um de nós
seguiu também a sua própria viagem, com novidades e aprendizagens ao
virar de cada esquina.
Como ―ainda sou do tempo‖ em que as pessoas escreviam cartas,
nos anos que se seguiram ficava eternamente grata ao carteiro que me
trazia os envelopes amarelos e verdes, carregados de aventuras e
segredos de adolescentes.
Trocávamos autênticos diários, típicos de quem começava a
descobrir o mundo e a essência da sua Vida. L tornou-se professora de
Inglês, compositora de música, desportista convicta, e muito mais…
No meio de várias partilhas e descobertas, e após vários namoros
que nunca duravam muito, L ficou verdadeiramente apaixonada.
Não me dava tantos pormenores quanto era habitual, nem me dizia
o nome do felizardo, mas também não era importante.
A minha alegria era perceber pelas suas palavras o quanto ela estava
finalmente feliz.
Depois de muitas perguntas minhas e muitas respostas subtis, L
acabou por me confessar que o namorado era uma ELA.
Ficou surpreendida com a naturalidade da minha reacção, e eu
também.
Até então eu associava a homossexualidade à excentricidade e a
histórias polémicas da TV. Percebi finalmente e graças a ela, que podia
ser vivida por aquela amiga pacata igual a tantas amigas e que a alegria de
ver alguém tão feliz e tão completa era muito superior ao nome e ao
sexo da pessoa responsável por isso.
Eu percebi, mas a família da Luciana não.
As cartas seguintes retratavam a evolução feliz da nova vida a duas,
mas também a incompreensão dos pais, as críticas, o afastamento da
família e as suas tentativas – sem sucesso – de reaproximação.
As sensações confundiam-se: medo, tristeza, saudade, dor, revolta,
frustração, mais medo, mais dor, mais frustração…
Inevitavelmente e ao fim de uns anos a confusão mental e
emocional de L começou a reflectir-se na relação com a sua
companheira.

- 256 -
Nos seus picos de cansaço e frustração, L partilhava comigo que
chegava a pensar em desistir. Desistir da luta, desistir de uma possível
aceitação, desistir da reconstrução, desistir da Vida.
Eu respondia sempre com o coração.
Enviava-lhe listas de motivos para ela se sentir grata pela vida, pelo
Amor que tinha encontrado, pelos pequenos-grandes sucessos que já
tinha conquistado, acreditando que tudo o resto seria ultrapassado e
vencido pelo tempo e pela maturidade de todos os que a amavam.
Na verdade eu tentava animá-la para voltar a vê-la feliz, não porque
acreditasse que as ameaças tinham alguma razão de ser – eu já tinha visto
muitos amigos dramatizarem desgostos de amor, amor por si, pelos
namorados, pelos pais…
No final o drama esvanecia-se e o amor retomava o seu lugar.
Infelizmente não foi esse o final da Luciana. Ao fim de várias cartas
de desespero, porque os pais tinham-na abandonado, a irmã estava
proibida de a ver, a namorada já não aguentava o ambiente de tristeza e
dor constante, L deixou de me escrever.
A amiga que há anos partilhava comigo o seu crescimento desistiu
da vida, quando esta apenas tinha começado.
Não é minha intenção criticar estes pais, comentar a decisão de L ou
reavivar memórias tristes.
Quero apenas com este testemunho real, deixar viva a memória de
uma Amiga com quem aprendi muito, sensibilizar pais, amigos e toda
uma sociedade a repensarem e agirem de acordo com os seus valores
mais puros, e contribuir com uma pequena gota para o Oceano da
liberdade, do amor e da Humanidade.

Isabel Faia
32 Anos
#98

- 257 -
Confissão
Pediste-me para ler o teu livro. Basicamente "devorei-o" em dois
dias.
Como te conheço parecia que te tinha à minha frente a contar a
história, parecia que te estava a ouvir.
Felizmente desta vez não pudeste ser interrompido por mim porque
fiquei sem fala, e isso só por si é raro.
As perguntas são próprias de uma mente inquieta que procura
respostas constantemente e fazem de ti uma pessoa curiosa e como tal
capaz de evoluir, questionar a sociedade e o mais importante: gerar
mudança. E mais importante: capaz de ouvir. Aprender.
Eu sou pouco curiosa, já mo disseram várias vezes. Eu falo mesmo
demais...tenho que aprender a ser curiosa. Ensinas-me?
Também te quero dizer que nunca mais digo que vocês são sete.
Vou no entanto continuar a dizer que não é fácil ser-se Ricardo
Francisco. Porque não é! Já é suficientemente difícil ser-se homossexual,
mas ser-se o inquiridor do mundo e querer compreender donde vem
tudo e mais um frasco, é dose!
O processo de auto-descoberta feito duas vezes (no mínimo!)
durante a vida exige muito de uma pessoa. Tu tentaste descobrir-te até
aos 24. Descobriste-te. Talvez não quem tu desejavas ou ansiavas

- 258 -
descobrir, mas apareceu um novo Ricardo e voltaste ao início do
processo de auto-descoberta.
A grande diferença é que desta vez não estás sozinho! Somos muitos
ao teu lado. Mão na Mão.
Eu sou sincera: prefiro a "segunda versão" do Ricardo Francisco.
Tem mais calor humano, menos sofrimento, mais alegria, mais
disponibilidade para amar e principalmente: disponibilidade para ser
amado.
Tenho mais duas coisas para te confessar/partilhar:
A primeira é que quando me contaste que eras homossexual o meu
queixo subiu e desceu 3 vezes de surpresa e eu sei que tu deste por ela.
Disseste-me: Sofia, podes fechar a boca agora. Mas eu não queria que tu
sentisses a minha surpresa como rejeição e disse: não, não, ―tá-se‖ bem!
Eu sei que tu sabes, mas tinha de te confessar isto. O certo é que
apanhei uma surpresa do caraças! Sabes quando abrimos muito os olhos
e as sobrancelhas quase se colam ao cimo da testa e o queixo cai e abre?
Se na altura eu me sentisse mais confortável, se sentisse que era mais tua
amiga (agora sei que é o teu muro e não tu que me estava a rejeitar), que
tínhamos mais intimidade, eu teria dito uma das minhas brutalidades
boca fora: estás a gozar?!?!
E tu terias mandado uma gargalhada, e como meu amigo e
habituado à minha total capacidade de meter a pata na poça e dizer a
coisa errada na hora errada, terias dito: Ó Sofia!? Tens cada uma. Eh pá,
esta gaja é sempre a mesma coisa! Claro que estou a falar sério.
E eu teria descido as sobrancelhas, fechado a boca, ter-me-ia
levantado e ter-te-ia dado um abraço muito apertado e agradecido.
Era assim que eu gostava que tivesse sido. Teria sido mais
verdadeiro que teres tido à tua frente uma pseudo-amiga que não
conseguiu exprimir a surpresa dela e que tentou tudo parecesse
absolutamente normal e natural, correndo o risco de parecer fria,
distante, estouvada, aluada e principalmente muito egoísta.
Desculpa. Do fundo do meu coração: desculpa.
A segunda coisa que te quero dizer é que houve várias partes que
me marcaram no teu livro. Senti-me passar ao teu lado qual fantasma

- 259 -
que te leva ao passado. Arrepiei-me, o meu estômago contorceu-se,
fiquei sem voz (a sério).
Tu escreveste algures no livro o seguinte: Já pensaste que se tu te
aceitasses exactamente como és e fosses completamente verdadeiro
contigo próprio conseguias transformar quem está à tua volta com o teu
amor. Se não és verdadeiro contigo, como é que podes ser com os
outros? E se não és com os outros como é que podes sentir que o amor
deles é para ti? Nunca é! É para alguém que não és tu! Que tu inventaste!
Foi neste momento que as sete personagens desapareceram. Espero
nunca mais as ver.
O meu desejo é que esta sensação de ter conhecido um único
Ricardo permaneça. Que continues a ser capaz de ser verdadeiro
contigo, que sejas amado e que te sintas amado pelos teus Pais, por nós
teus Amigos, e por um ser humano (que se for metade do especial que
tu és, já é um espectáculo de pessoa!) que te mereça. Que sintas que o
nosso amor é para ti e que saibas e sintas o quanto nos transformaste.
Gosto muito de ti.
A tua (agora sim!) Amiga

Sofia Castro
32 Anos
#123

- 260 -
Todos procuramos... um amor
assim!
Carinhosamente chama-me Madrinha ou sininho porque fui a
primeira pessoa que conheceu quando entrou para a empresa.
...para mim será sempre o meu afilhado, o Concha,
de um simples café surgiu uma intensa amizade.
Por vezes mãe, irmã...outra simplesmente amiga.
Passei por um divórcio à 1 e 5 meses foi ele o meu pilar, o meu
confidente o meu ombro amigo em momentos de desespero.
Fui a primeira a saber na empresa que era gay, na altura ainda não
tinha saído completamente do armário. No entanto o processo de
escolha do seu par, foi demorado.
A amizade é um amor imenso e intenso, desde que a pessoa
queiram, todos nós precisamos de ancoras, de pessoas verdadeiras e
simples que nos ajudem a caminhar e por vezes até que nos levem ao
colo...mas também é necessário que nos chamem à realidade.
A realidade encontrei-a quando um dia ele decidiu apresentar-me o
namorado... considero um privilégio estar naquele dia àquela hora, à
porta do Técnico e ver dois seres que desafiaram o mundo ao beijarem-
se de forma tão pura e intensa.

- 261 -
Naquele momento nasceu um rio nos meus olhos...uma emoção
uma felicidade imensa.
E uma tristeza...
As minhas palavras:
-Desculpa Concha...estou muito feliz por ti...
-Vês, agora. Percebes o que eu sonho para mim?...é um amor
assim... puro e verdadeiro. Que nos cega e nos faz ver o que os outros
não conseguem.
Quando dei por mim estávamos os três abraçados...
Limpamos as lágrimas e seguimos para a cafetaria...
Não existiram palavras suficientes para definir o momento...apenas
o silêncio parecia encaixar naquele lugar.
A emoção do amor ultrapassa sexo, credo, religiões, politica.
Afinal somos todos iguais, afinal todos procuramos... um amor
assim!

Margarida
34 Anos
#87

- 262 -
Uma nota de esperança…
Penso que a maneira como a vida nos permite certas experiências é
determinante na forma como nos desenvolvemos, como nos
encontramos como pessoas, como construímos o nosso mundo interior
e as pontes que nos permitem a relação com os outros.
Olhando para trás, parece-me que tenho sido em muitos aspectos,
privilegiada:
Duma forma geral, o diferente, só por sê-lo, nunca me assustou e
desde cedo o senti como algo a descobrir, provavelmente a respeitar…
possivelmente a integrar…, eventualmente a proteger… ou pelo
contrário a descartar, mas seguramente a conhecer…
Esta forma de sentir foi com certeza determinante nas minhas
opções ao longo da vida: afectivas, profissionais, familiares, culturais… e
não foi por acaso que os meus grupos de pertença, foram os que foram
e são os que são e não outros…
Em todos os aspectos da vida, os valores que construímos e
definimos como nossos, determinam o que somos capazes de dar de
nós, e o que damos de nós aos outros, define-nos como indivíduos.
Focalizando-me um pouco mais no que me levou a estas reflexões,
diria que o meu primeiro contacto próximo com a realidade do amor
homossexual, é o exemplo de tudo o que disse para trás.

- 263 -
Foi no verão de 1970, durante as férias em Olhos d‘Água. Eu tinha
então 13 anos e estava com os meus primos, um casal jovem de quem
gostava imenso e que nessa idade determinante, elegi como modelos de
vida em todos os aspectos…definitivamente eu queria ser como eles
quando crescesse…
Uma tarde foi-me dito da forma mais casual possível:
-Amanhã chega o Daniel. Vai ficar connosco uma semana.
O Daniel era alguém que eu já conhecia e de quem gostava (hoje à
distância de quase 40 anos, diria que ele tinha uma paciência de Job para
mim e fazia sempre que eu me sentisse uma pessoa importante… como
poderia não gostar?). Assim preparava-me para fazer uma festa, mas
percebi que a conversa não tinha acabado…
-Ouve com atenção. Nós achamos que já tens idade para perceber
isto e para guardar segredo: com o Daniel vem o Carlos, que ainda não
conheces. O Carlos e o Daniel são namorados…
É preciso ter cuidado, porque, por mais simples que isto seja, não
pode ser dito aos pais nem às pessoas lá fora. Há muita gente que não
entende e isso só poderia trazer-lhes problemas.
Repara que não estamos a dizer que não podes falar deste assunto…
podes sempre… mas em casa, connosco e com eles… Pergunta o que
quiseres, diz o que sentires…está completamente à vontade, mas a porta
é a fronteira…fora dela só com quem nós dissermos…
Nesse dia, devo confessar que o secretismo de alguma forma me
agradou… garota que era, seduziu-me a confiança depositada em mim,
senti-me verdadeiramente importante e sabia que nem sob tortura eu
alguma vez revelaria o segredo que me fora confiado…
No dia seguinte chegaram… O Daniel apresentou-me o Carlos.
Olhou para mim daquela forma carinhosa, intensa e atenta que eu
conhecia, deu-me um grande abraço e perguntou-me:
-Estamos bem, ou precisamos de conversar os dois?
-Tudo bem, está descansado…
No entanto, não foi assim tão simples…
No decurso da semana, ao observar a diferença de comportamentos
dentro e fora de casa, comecei a sentir o peso do segredo e a

- 264 -
responsabilidade de ao guardá-lo, preservar a felicidade e a segurança de
alguém…
Comecei a perceber o que representa, em cada momento, pensar
antes de sentir… ou como isto não é possível, porque o sentimento é
muito mais imediato e espontâneo que o raciocínio, ter que se viver
sistematicamente, a sentir… pensar… avaliar o contexto… e só depois
falar ou agir…
Comecei eu própria a sentir o peso de viver desta forma e a recear
errar, por eles…rapidamente a sedução inicial associada à confiança, foi
sendo substituída por sentimentos de injustiça e incompreensão…
Porquê? O que havia de facto ali, naquela relação, na partilha de
sentimentos, que precisasse de ser escondido? Rigorosamente nada…
Como é que o facto de duas pessoas se amarem poderia de algum
modo não ser entendido como algo bom? Para mim constituía um
mistério…
Como era possível? No entanto, se eles próprios o afirmavam, eu
tinha que acreditar, que a existência desse sentimento, gerasse em
alguém agressividade?
Se isso era tão evidente para mim, porque não o seria para as
pessoas em geral?
É claro que rapidamente fui construindo as minhas próprias
respostas e todas elas continham sentimentos de sinal negativo…
Lembro-me que a minha insistência começou a deixar antever um
espírito de cruzada… Nesta idade todas as causas que abraçamos são
determinantes e tem-se a profunda convicção de ser capaz de mudar o
mundo…
Ao mesmo tempo, fui-me apercebendo que o entusiasmo dos meus
13 anos, estava a gerar alguma intranquilidade precisamente nas pessoas
que eu mais queria proteger, e assim a vontade sentida nesse verão, de
fazer algo de visível pelo direito desses amigos a serem eles próprios, foi
ficando por aí…
A vida prosseguiu, o 25 de Abril aconteceu e com ele surgiram
novas oportunidades de trazer para a luz realidades que viviam
injustamente escondidas,,. Muitas e importantes coisas foram feitas neste

- 265 -
sentido, embora, pessoalmente não me tenha envolvido em nenhuma de
forma pública.
Penso hoje como pensava naquela altura, o que me dá algum
prazer. Daí a afirmação feita, no início desta reflexão, que o modo e o
tempo em que os contactos com a vida acontecem, em que tomamos
conhecimento com cada realidade, é determinante para a definição dos
nossos valores…
Hoje as coisas estão muito estão diferentes, mas longe vem o dia
em que ninguém sentirá necessidade de esconder a sua orientação
emocional e sexual e em que estas não constituirão mais factores de
sofrimento e dor.
É claramente um trabalho que pertence a todos e uma obrigação
dos que conviveram ou convivem com esta realidade.
A minha intervenção pessoal, ficou-se pelos meus contactos
directos, que têm sido muitos, na minha profissão e vida pessoal.
Trabalho na área da Saúde, onde ao longo destes muitos anos, se
tem seguramente notado a evolução do comportamento dos
profissionais.
Sendo, em geral, atenta a esta questão, inúmeras foram as ocasiões
em que me deparei com situações de discriminação, desrespeito ou
mesmo agressividade (por vezes disfarçada de humor…), dirigidas tanto
a doentes como a colegas homossexuais. Inúmeras foram as situações
em que intervenções foram necessárias. Umas vezes mais pedagógicas,
outras mais disciplinadoras.
Felizmente a mentalidade das pessoas em geral tem evoluído no
bom sentido, assim como a exigência, relativamente ao direito de
igualdade de tratamento, dentro das instituições de Saúde. O número de
profissionais com comportamentos desadequados e discriminatórios, é
hoje incomparavelmente mais pequeno, que há 30 anos…, que há 20
anos…, que há10 anos… e quando estes ainda acontecem, não é uma
voz que se manifesta indignada, mas um coro de vozes que se tem
tornado cada vez maior e mais capaz de se fazer ouvir.
Acredito absolutamente que vamos no bom caminho e vamos lá
chegar.

- 266 -
Os comportamentos levam tempo a mudar, mas mudam, o
contrário é impensável. Vamos continuar diariamente a trabalhar, no
espaço em que cada um de nós tem capacidade de intervir, pois estas
mudanças são, apesar de firmes, muito lentas, enquanto o sofrimento e
dor da discriminação, vão deixando continuamente naqueles que os
sofrem, feridas que doem profundamente, e por vezes não cicatrizam
mais.

Lígia Rogado
52 Anos
#138

- 267 -
Partilhar
Não vou fazer história nem tecer considerações sobre a orientação
sexual das pessoas. O ser humano tem uma enorme capacidade de amar,
de se dar, de criar afectos e de estabelecer relações mais ou menos
íntimas que não configuram exclusivamente o sexo.
No mundo circundante em que vivemos criam-se relações entre
pessoas do mesmo ou diferentes sexos que expressas na afectividade,
intimidade, amizade, companheirismo e amor permitem singrar na
estrada tortuosa da vida e são o nosso baluarte para sobrevivermos num
mundo tão marcado pelo egoísmo, egocentrismo, individualismo,
indiferença e superficialidade.
Amar e ser amado, independentemente do sexo, raça, idade ou
religião, é inerente ao ser humano, pois só assim este se pode afirmar na
sua plenitude e cumprir as diferentes metas a que a vida o obriga.
Amar um Amigo é um privilégio, dois são um sonho, muitos não
são fantasia, é a mais doce alegria.
Assim me aconteceu na minha já longa vida, pois a terceira idade já
se antecipou. Num passado algo distante, mas sempre presente e depois
de um profundo desgosto encontrei, para além dos muitos e sinceros
amigos que já faziam parte da minha vida, dois seres excepcionais de
excelentes qualidades humanas, que partilhavam a vida em conjunto e

- 268 -
cuja dedicação mútua me causava tanta admiração, já que não tinha
vivido até essa altura em estreita ligação com uma relação que
inicialmente me parecia ambígua. Ambos eram dois homens bem
posicionados com os seus empregos, respectivas famílias e amigos,
devidamente respeitados, mas que partilhavam a sua vida em comum.
Fui admitida com todo o carinho no círculo das respectivas amizades e
famílias. Partilhámos alegrias, tristezas, doenças, férias, passeios e com
toda a objectividade e ternura me ajudaram a ultrapassar esse período
tão difícil da minha vida.
Os meus meninos e os meus amores como carinhosamente lhes
chamava viviam juntos, amavam-se com a ternura e descrição que na
minha maneira de pensar deve nortear qualquer relação. Eram aceites
por todos desde a família aos amigos e colegas. Nunca os interpelei
sobre aquela relação, que durou cerca de 40 anos, e nunca ouvi da parte
de qualquer membro da família ou de amigos comentários menos
agradáveis. Poderia soar estranha aquela relação para alguns, pois na
nossa faixa etária, hoje sexagenária, não era fácil o diálogo sobre
determinadas situações e os preconceitos eram muitos, mas
educadamente não havia perguntas explícitas. Recordo-me com saudade
de um deles, que infelizmente já partiu, e da forma com alguns amigos a
brincar diziam quando me viam chegar acompanhada com os dois: ―Lá
vem ela com os seus muchachos‖ e todos nos riamos contentes. Eles
amavam-se, amavam-me e eu também os amava com outra forma de
amor. Fui muito feliz com o companheirismo, amor e amizade que
surgiu entre nós. Já passaram vinte e muitos anos, um já nos deixou, o
outro continua a fazer parte da nova vida que construí. Nenhuma destas
recordações se apagará da minha memória.
Que as pessoas respeitem os outros e se respeitem a si próprias e
deixem viver cada um de acordo com as suas convicções e certezas. È
um grande passo para que também sejam respeitadas.

Maria
69 Anos
#37

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Balneário
Era uma sexta-feira como tantas outras. Podia dormir até mais tarde
porque as aulas só começavam às 10:15. Teria aula de Física e Educação
Física, depois iria almoçar rapidamente para ir para a explicação e
aproveitava o resto da tarde para passear um pouco. Acordei, vesti-me,
tomei o pequeno-almoço e apressei-me para a escola para não chegar
tarde. A aula de Física correu normalmente e a de Educação Física
também. Mas nada teria indicado o que iria acontecer a seguir.
Depois da aula, como é costume, rapazes e raparigas separam-se
para ir para os respectivos balneários. E, enquanto se despem e vestem e
tomam banho, há sempre tempo para conversar sobre os mais variados
assuntos: como correu o teste, quem é que ganhou o jogo da véspera,
como é que andam as namoradas, entre muitos outros. Não gosto
particularmente dos últimos dois: futebol e namoradas. Quanto ao
primeiro basta não comentar e estou safo; já o segundo...
Não sei porquê, mas os meus colegas achavam que eu gostava de
uma rapariga da turma. E, quando chegava a altura de falar das
namoradas o assunto vinha inevitavelmente à baila.
"Então Miguel, como é que vai isso com a T?" – começava um
deles.

- 270 -
Não valia a pena negar qualquer envolvimento pois acabava sempre
no mesmo. Mas era o que eu fazia:
"Como é que vai o quê com a T?"
"Oh Miguel, não finjas que não sabes do que estou a falar!"
"Mas eu por acaso tenho alguma coisa a ver com a T?"
"Mas então não gostas dela?"
Já tenho eu respondido vezes sem conta que não...
"Gosto dela como amiga."
Esta afirmação parecia despoletar uma reacção de desconfiança. Mas
o pior nem era esta parte; o pior era o que se seguia. E o que se seguia
era um "interrogatório" sobre os meus gostos. "Então espera lá. O que é
tu gostas numa rapariga?" ou "Mas então de quem é que tu gostas?"
eram algumas das perguntas que surgiam. No entanto quase não tinha de
responder, pois eles pareciam fazer isso por mim. E, enquanto o rol de
sugestões se desenrolava e surgiam outras perguntas eu ia-me limpando
e preparando para sair. Mas teria inevitavelmente de lhes dar uma
resposta.
"Olhem, não sei porque é que isso vos importa assim tanto, mas se
querem que vos diga até nem penso muito nessas coisas. Aliás, nem
estou a pensar arranjar alguém até depois de acabar o curso!"
Mais alguns protestos se seguiam. Às vezes começavam a falar da
importância de ter alguém com quem partilhar a vida, outras vezes mais
perguntas surgiam.
Mas nesse dia surgiu a pergunta à qual eu não pensava responder.
―Então mas tu és gay?‖
Revirei os olhos como quem diz ―Oh Deus… cá vamos nós outra
vez.‖
―Diz lá qual é a tua orientação sexual.‖
Seguiu-se um momento de silêncio. Hesitei. Afinal nunca tinha dito
isto a tanta gente ao mesmo tempo. Já alguns tinham saído, mas revelar
tal informação a 4 pessoas ao mesmo tempo não me parecia o ideal para
mim. No entanto quanto mais depressa dissesse a verdade mais depressa
se teriam de acabar as constantes mentiras e as perguntas desnecessárias.
―Mas e se algum deles conta aos outros? E se a escola inteira ficar a
saber? Olha, menos-mal: é da maneira que não tenho de andar a dizer a
- 271 -
mesma coisa tanta vez‖ pensava eu nos breves segundos que separam a
pergunta da resposta. E assim me decidi.
―Interessa mesmo saber?‖ – perguntei eu retoricamente como que
para aliviar a tensão que se acumulou quase instantaneamente em mim –
―Sou gay.‖
Pronto. Está dito. Mais uns momentos de silêncio se seguiram. Na
minha cabeça flutuavam as mesmas dúvidas de sempre. ―Será que fiz
bem? Será que não devia ter dito?‖. Mas também assentavam algumas
certezas. ―Bem, agora sabem a verdade. E agora posso dizer que estou
um bocado mais fora do armário! Quem quiser fugir que fuja, quem
quiser ficar que fique. O problema é deles; eu estou satisfeito.‖. E, até
àquele momento, sempre vivi com medo da reacção dos meus amigos
quando soubessem. Pois bem, estava prestes a descobrir qual seria.
―Podias ter dito há mais tempo Miguel. Andámos nós para aqui a
fazer perguntas da T… Oh!‖
Só isto? Não podia ser. Tantos anos com medo de rejeição. Tantos
receios. Tanto tempo a guardar isto só para mim… Estava à espera de
mais!
―Mas também não precisavas de ter medo de dizer. Nós não vamos
deixar de ser teus amigos por causa disso‖
Alívio. Aquilo que precisava de ouvir. ―Se calhar devia ter dito mais
cedo‖ era o único pensamento que rondava a minha cabeça naquele
momento.
Estava com certeza com outros pensamentos em cabeça pois pôs-se
logo a perguntar ―Quem é que é gay?!‖. Um deles não tinha ouvido a
conversa. Lá lhe disseram.
―O Miguel‖
―Quem, este Miguel?‖
―Sim, este Miguel‖
―Não…!‖
―Hã?! Terei ouvido bem? Agora duvidam? Só me faltava mais esta‖
pensei eu.
E criou-se um ambiente de desconfiança.
―Oh, tu estás a inventar isso só para nós pararmos com a conversa
da T‖
- 272 -
―Não estou nada‖
―Então porque é que te estás a rir?‖
Estava, de facto, com um sorriso estampado na cara. Depois de
tanto tempo ter uma reacção destas quando esperava o contrário…
―Não é por ser mentira‖ – rematei.
Saímos. O dia continuava solarengo. Parecia-me ainda melhor do
que estava antes de começarem as aulas. Lá segui eu, depois de me
despedir deles, para o almoço.
O fim-de-semana passou assim como a segunda-feira, normalmente.
Na terça, porém, tivemos uma visita de estudo com outras turmas, entre
elas a minha turma do ano anterior. Durante a dita viagem duas das
minhas amigas dessa turma vieram ter comigo e disseram que queriam
falar comigo, mas não ali. Também não disseram porquê. Fiquei
expectante. ―O que seria que queriam falar comigo? Ainda por cima as
duas ao mesmo tempo. Se calhar é sobre a mesma coisa!‖ pensava eu,
tentando antecipar-me à conversa. Foi aí que me ocorreu que queriam
falar sobre mim. Até àquela sexta-feira eram elas duas das poucas
colegas que sabiam a minha orientação. Ora, se queriam falar comigo na
mesma altura logo depois do episódio do balneário, tinha de ser acerca
disso mesmo. ―Mas, como é que elas podiam saber o que se passou lá
dentro? Não pode ser!‖.
Quando cheguei a casa tratei logo de tentar esclarecer o assunto
com ambas. Liguei a internet e falei com elas. Acertei. Era sobre o
famoso episódio. Aparentemente as notícias espalharam-se pela turma
toda durante os cinco dias que passaram. Perguntaram-me se estava tudo
bem comigo e se tinha consciência que a notícia se iria espalhar. Mas eu
já tinha decidido. Respondi-lhes que sim a ambas as questões e agradeci-
lhes a preocupação.
E nesse momento o meu coração batia depressa. Batia porque tinha
voltado o medo das reacções que podia esperar dos meus amigos. E
desta vez sabia que podia esperar algumas reacções más, conhecendo já
aquela turma há dois anos.
Mas depois toda a emoção e ansiedade pararam quase
repentinamente. Passaram cinco dias. Cinco dias desde que todos sabiam

- 273 -
(aparentemente). E ainda ninguém tinha dito nada. E o sorriso voltou. Já
todos sabiam e ninguém parecia saber.
No dia seguinte fui mais atento para a escola. Já sabia que eles
sabiam. Queria saber como iriam reagir hoje.
Encontrei-os no bar durante o primeiro intervalo. Sentei-me e nada
parecia ter mudado. Todos na mesma, como dantes. E senti-me bem,
sentado naquela cadeira, rodeado de amigos, a falar de banalidades.
Encostei-me para trás como que para saborear melhor o momento e
pensei:
―Ora vamos lá continuar a nossa vida.‖
―Está quase a tocar.‖ – Disse-lhes. E fomos para as respectivas
salas.

Miguel
17 Anos
#29

- 274 -
Trabalho de grupo
―Não lhe devia ter dito. Foi para o teste preocupada. Só devia ter
dito depois. E agora estou eu preocupado também porque já estou com
medo do que elas vão dizer. Sim, porque no preciso momento antes de
receber o teste da s‘tôra tinha de dizer às outras duas. E agora estão três
preocupadas comigo. Só porque lhes disse que lhes queria contar uma
coisa. Enfim, agora tenho é de me concentrar nos Maias e no raio da
gramática!‖
Depois de acabarmos o teste fomos para ao pé da cantina, eu e as
minhas três amigas, para fazer os ensaios para a apresentação de
português da semana seguinte. Mas já pelo caminho me vinham
perguntando, com um sorriso na cara, não sei se por curiosidade ou se,
por já saberem, quererem que eu lhes conte, adivinhando o que lhes vou
dizer, o que é que se passava afinal que elas estavam preocupadas. Disse-
lhes que não era nada. E que eram tolas, principalmente a que contou às
outras, porque ficaram todas preocupadas durante o teste e não devem
ter feito nada de jeito (um pouco convencido, eu sei!). Mas durante todo
o ensaio a conversa não foi outra, excepto nos breves momentos em que
se começava a interpretação e alguém se enganava ou começava a rir dos
outros.

- 275 -
Não sei donde surgiu a conversa mas já tinham avançado, com um
pouco de magia talvez, para a pergunta ―És gay?‖. Não queria
responder. Melhor, queria mas não com elas a perguntarem de minuto a
minuto, sem saberem que me enterravam mais fundo a cada tentativa
falhada de me arrancarem a verdade à força. Sou um homem que leva o
seu tempo a dizer as coisas, não me podem pressionar muito! Mas no
meio de tanta insistência e ―Oh‖‘s de ―Caramba, és chato!‖, querendo
acabar com tal sofrimento, lá lhes disse, meio repentinamente meio
atabalhoadamente, que sim, que era gay.
É um facto termos acabado por não ensaiar nada. Mas tirando isso
só me lembro que levei três abraços e a certeza que elas não deixariam
de ser minhas amigas por causa disso e que já sabiam há muito tempo.
Tivemos um bom trabalho!

Miguel
17 Anos
#30

- 276 -
História na Terceira Pessoa
Sobre o tema que nos uniu em torno deste projecto receio ter pouco
para relatar. Acho mesmo que não tenho uma experiência que se possa
revelar especialmente rica face a tantas outras que certamente surgirão.
Relativamente à homossexualidade, persistem ainda muitos tabus,
muitas ideias erradas e muitos preconceitos gerados e alimentados por
uma homofobia cega e irracional. A ignorância é a melhor aliada do
preconceito. As pessoas reagem com medo ao que não conhecem e
parafraseando John Steinbeck: ―um homem que tem medo, é um animal
perigoso.‖ Acho que a sensibilização social pode e deve passar pelas
famílias. Curiosamente, e invertendo as regras normais de educação,
acho que neste caso devem ser os mais novos a educar os mais velhos.
No entanto, admito que o preconceito não é um problema etário, é um
problema de informação (ou falta dela). Socialmente, a discriminação
sente-se nas escolas, nos locais de trabalho, nas relações sociais em geral.
Neste sentido, partilho a minha experiência pessoal. Tive duas
professoras na escola que eram assumidamente lésbicas. Em momento
algum esse facto afectou a sua competência. Eram ambas excelentes
professoras, com uma sensibilidade pedagógica exemplar. No entanto,
quem tem a coragem de assumir publicamente uma orientação sexual
diferente tem de lidar necessariamente com o olhar da desconfiança.

- 277 -
Nem todos têm essa coragem e compreendo quem não o faz. A
exposição é demasiado vil e as suas consequências são sempre
imprevisíveis. Por isso, precisamos todos de mudar. Talvez seja já tempo
de passar das palavras aos actos.
Atrevo-me agora a uma confissão. Posso dizer que tive um contacto
sui generis com o universo da homossexualidade. Confesso que sempre
tive preconceitos como todas as pessoas, seria hipócrita se não o
dissesse e fazia-me muita confusão pensar que alguém se poderia sentir
emocional e sexualmente atraído por alguém do mesmo sexo. No
entanto, nunca tive pensamentos radicais sobre o assunto, simplesmente
achava que era uma realidade à parte, que eu não conhecia bem mas
sobre a qual também não nutria grande curiosidade.
Talvez esse afastamento tenha advindo do facto de nunca ter tido
um amigo ou amiga que me tivesse dito: eu sou homossexual. Nunca
tive de me deparar com uma revelação desse tipo, nunca tive de lidar
com isso. Pelo contrário, a revelação chegou-me por via indirecta. Dois
grandes amigos meus desabafaram comigo, em momentos diferentes,
confessando-me o choque que tiveram quando souberam que amigos
seus (que eu não conhecia) lhes tinham revelado que eram
homossexuais. Partilhei com os meus amigos o espanto e a perplexidade
e dei-lhe conselhos genéricos sobre tolerância e compreensão. O que é
que se deve dizer numa situação assim? Há algo que se deva dizer? É
suposto que se diga alguma coisa? Só sei que em ambos os casos
perguntei-lhes se alguma coisa tinha mudado para eles em relação aos
seus amigos. Ambos me responderam que não, mas que não sabiam
bem como adaptar-se à ideia...Os seres humanos são necessariamente
egoístas, e pensamos: ―como vamos adaptar-nos a esta notícia?‖ E como
se terá sentido o amigo que contou, que teve a coragem de assumir o
que era, que teve a coragem de se ―mostrar‖? Para eles sim, deve ter sido
difícil.
Mais uma vez a frase cliché aplica-se. O tempo é remédio para tudo
(ou quase tudo) e tal como o mar que molda a rocha em função dos seus
humores e da violência ou tranquilidade das suas marés, também o
tempo nos molda e altera a nossa personalidade em função daquilo que
vamos vivendo.
- 278 -
Aquilo que começou por ser o choque da mudança acabou por se
transformar numa realidade rotineira. A estupefacção e incerteza deu
lugar à serenidade e à aceitação. No fundo nada tinha mudado! A
amizade permanecia intacta e incólume. Aliás, a verdadeira amizade
implica sempre aceitação e cedência. Gostar só por gostar, amar só por
amar, sem questionar o que o outro é ou deixa de ser. É nosso amigo,
ponto. No entanto, e ainda que paradoxalmente, criamos sempre
imagens e estereótipos sobre as pessoas que nos rodeiam e se
descobrimos que há alguém que não se encaixa nos nossos modelos não
sabemos bem como reagir.
Ora eu fui uma privilegiada! Beneficiei do efeito do choque indirecto
e isso deu-me uma margem de manobra invulgar. Quando conheci os
amigos dos meus amigos, já sabia sobre a sua orientação sexual.
Confesso que não sabia bem como iria reagir, se iria sentir uma qualquer
espécie de preconceito...Tinha dúvidas!
Nada mais errado. Gostei deles, gostei dos amigos dos meus amigos.
Senti que podiam ser meus amigos também. Fiquei feliz em conhecê-los.
Fiquei feliz por perceber que gostarmos ou não de uma pessoa deve
depender apenas do que ela nos transmite e não dos nossos estereótipos.
Gostar só por gostar, amar só por amar. No fundo, gostar dos outros
pelo que eles são e não por aquilo que esperamos que eles sejam. Quero
lá saber se eles são homossexuais ou não! Para ser sincera nem penso
nisso quando estamos juntos. A verdade é que conheci dois homens
íntegros e corajosos, cheios de projectos e força de vontade. Não pude
deixar de os admirar. Ambos fazem-me rir, ambos vêem o lado bom da
vida de uma forma muito mais nítida do que eu. Invejo-os por isso. Senti
inevitavelmente uma admiração enorme por estes meus dois amigos
(sim, porque eles agora também são meus amigos!). É preciso ter muita
força e determinação para assumir que não se vai para a ―direcção que o
dedo aponta‖. É coisa de homem! E de mulher! É de pessoa...corajosa.
Hoje sinto que eles fazem parte do meu núcleo de amigos, entraram
com a minha permissão na minha vida e, generosamente, deixaram-me
entrar nas suas. Estou-lhe grata pelo que me ensinaram mas acima de
tudo gosto quando nos rimos juntos.

- 279 -
Para todos os que têm a coragem de lutar contra a discriminação,
para os que sofrem em silêncio e especialmente para o Bruno e para o
Ricardo, dedico-lhes o poema Liberdade de Miguel Torga no ―Diário
XII‖.

Ana Parreira
24 Anos
#36

- 280 -
TRABALHO

- 281 -
Fui "apanhada"
Vivo em união de facto com a minha companheira.
A minha namorada é minha ex-colega de trabalho, quando esta
história aconteceu ela tinha deixado de trabalhar comigo há algum
tempo...
Como em qualquer casal era normal e frequente a "Lés Maior" ir
buscar-me ao emprego.
Certo dia num jantar de colegas que frequentam a nossa casa
ficamos a saber que haviam rumores acerca da nossa relação no nosso
local de trabalho e que, ainda por cima, a nossa supervisora teria feito
um comentário do tipo:" - Não é normal... ser apanhada aos beijos com
a outra na porta do trabalho!"
Ora bem... eu nunca escondi que vivia com uma mulher, que
namorava com ela, que dormíamos na mesma cama, etc. Mas a verdade
é que não faz o meu feitio falar da minha vida nem da dos outros, por
esse mesmo motivo não me apercebi da conversa que já durava à algum
tempo.
Nessa noite mal consegui dormir, estava possessa. As conversas
acerca do assunto entre mim e a "Lés maior" também não ajudavam.

- 283 -
Eu sou mais activista, reivindicativa e visível do que ela. Ela é do
género "não me chateiem"! Se eu queria processar, matar e esfolar a "Lés
Maior"preferia pôr uma pedra sobre o assunto e deixar falar.
Chegamos ao meio-termo, e em conjunto, decidimos que o melhor
a fazer seria falar acerca da situação com a supervisora.
No dia seguinte quando cheguei ao trabalho disse-lhe que precisava
falar com ela. A mesma respondeu-me que assim que pudesse já me
dizia algo.
Passou-se toda a manhã e ela nada. Mal cabia em mim de revolta e
quanto mais tempo passava mais me apetecia ir falar com a chefe dela –
a Big Boss. Mesmo antes de sair para almoço ela veio ter comigo e
perguntou-me:
- O que se passa?
Eu de volta questionei se tinha alguma coisa para me dizer. Perante
a resposta negativa dela disse-lhe que teria então que me escutar até ao
fim.
Comecei por lhe perguntar retoricamente o que era normal, se
alguém a podia ―apanhar‖ aos beijos com o marido ou namorado dela,
qual era o problema com o facto de eu ter uma namorada em vez de um
namorado, falei-lhe ainda no artigo 13º da constituição e que não sabia
se não iria para a frente com toda aquela história. A coitada da Sr.ª só
acenava com a cabeça dizendo-me no fim: – Pois… eu não tenho nada
contra, inclusivamente tenho um amigo que… não posso calar as outras
pessoas! A isto apontei-lhe o dedo e chamei-lhe homofóbica disse-lhe
que sim podia calar os outros dentro do trabalho, pelo menos acerca
deste assunto e que mesmo não podendo eu estava a falar com ela na
qualidade de minha superior (a nível laboral) e que pelo menos podia
não ter dado continuidade à conversa como fez.
Sentia-me super leve após esta conversa, sentia-me super livre, super
digna, super super…
No dia seguinte, pouco depois de chegar ao trabalho, a Big Boss
entrou na sala e ladeada pela minha supervisora pediu que nos
juntássemos para que falasse connosco. Em tom ameaçador disse que a
partir daquele momento ninguém tinha vida pessoal dentro daquela sala
e que por isso mesmo não queria ouvir conversas pessoais ali dentro.
- 284 -
Sorri para dentro, a minha supervisora tinha-se adiantado, e
provavelmente com receio de que eu ―fosse para a frente‖ com aquela
história e tinha ido ter com a sua superior contar a sua versão da
história.
A partir desse dia as conversas acerca de mim acabaram,
inclusivamente houveram alguns colegas que me deram os parabéns pela
coragem.
O curioso nesta história é que nunca ninguém me viu a beijar a ―Lés
Maior‖ à porta do emprego, pois como anteriormente disse, a Lés maior
não aprecia demonstrações de afecto fora do ninho. O facto de nós
sermos um casal não poderia ser motivo de conversa pois nós não o
escondemos, então para terem que falar tiveram que apimentar a coisa.
Com esta história aprendi que por muito homófobas que as pessoas
sejam nunca gostam que lho apontem, nem que para isso tenham que
deixar de sê-lo, e que quanto mais visível mais natural será para os
outros e menos conversa haverá em torno disso.

Pequena Lés
26 Anos
#33

- 285 -
Olhos Castanhos
- ―Raios!‖
Brandiu Daniel ao sentir o pé molhado. Tinha chovido naquela
tarde, e com o cair da noite mal se viam as poças de água que se
formaram na travessa que ladeava a casa de banho do mercado
municipal, por onde ia agora em passo apressado sem olhar para trás.
Abriu a porta de casa, e sem se preocupar muito com o rasto de
lama que deixava no corredor enfiou-se num ápice no chuveiro. Queria
fazer desaparecer o mais rapidamente que conseguia aquele cheiro a after-
shave barato que se mantinha no seu pescoço desde o encontro rápido
nos urinóis do mercado.
Já deitado na cama, com o corpo livre do cheiro e fluidos que se
agarravam aos pêlos do corpo deixou a mente divagar.
-―Tão depressa não ponho lá os pés...‖
Disse em voz alta. Para se convencer, talvez. Mas como de todas as
outras vezes que havia dito isto, sabia bem que não estava a dizer a
verdade. Não tinha namorado e quando a vontade apertar como o fez
hoje, rapidamente os pés se encaminhariam para aquele lugar
degradante.
Quando chegou a esta cidade, tentou mudar de hábitos. Durante
algumas semanas conseguiu. Aos 28 anos conseguia ver o submundo

- 286 -
dos engates às escondidas pelo que verdadeiramente é: apenas uma
forma de aliviar a tesão. Nada mais. Após cada uma das vezes que
acabava um destes engates e puxava as calças para cima sentia aquele
mesmo vazio. Ao abandonar o local de todas as vezes o mesmo
pensamento: ―sou mesmo um bruto.‖ Nem mesmo o medo e a
vergonha que iria sentir se fosse apanhado o faziam parar de ir procurar
um engate rápido.
Adormeceu.
Já o sol entrava pelas frestas da persiana mal fechada quando o som
da campainha da porta ao lado o acordou. Levantou-se ainda com os
olhos inchados e podia jurar que o cheiro do after-shave de mau gosto
ainda estava agarrado ao corpo. Abriu a janela, respirou fundo e deixou-
se estar um bom bocado a sentir o sol no seu corpo ainda nu, e absorver
toda a energia de uma bela manhã de primavera.
Pegou na esfregona para limpar o trilho de lama que deixara no
corredor, passou o corpo por água numa chuveirada rápida e quente, e
pegou na roupa que ficara no chão ontem à noite. No escuro de ontem
nem se havia apercebido da mancha que a falta de pontaria do gajo de
ontem lhe deixara no casaco. Pôs tudo na máquina, vestiu-se e seguiu
para a rua.
Depois de repor o nível de cafeína e dar uma espreitadela no jornal,
resolveu ir dar uma volta pela cidade. Estava decidido a aproveitar o
último dia no desemprego a espairecer e arejar as ideias. Nas voltas pela
cidade acabou por se cruzar com o gajo com quem estivera no dia
anterior. Acompanhado pela mulher e pela filha, mal o viu, cravou os
olhos no chão e ao passar por Daniel até a cara virou.
―Olha-me este...‖ pensou, ―ontem até o meu número de telemóvel
querias... se eu fosse sacana agora lixava-te!‖ Mas nada fez ou disse. Já se
tinha habituado a este tipo de situações. Os engates nos WC têm este
tipo de código de honra. O que se faz dentro daquelas paredes, não faz
eco fora dali!
O estômago vazio indicou-lhe a hora de almoço. Decidiu que hoje
seria mesmo fast-food.

- 287 -
Já com o hamburguer e batatas fritas à sua frente, reparou no rapaz
sentado duas mesas à sua direita a olhar insistentemente para ele. Fingiu
que não o via e atacou o almoço.
Entre trincadelas, olhava pelo canto do olho e o seu olhar era
correspondido pelos lindos olhos castanhos do rapaz que também
almoçava sozinho. Daniel começou a gostar do jogo. Entre trocas de
olhares e de sorrisos, sabia bem o que lhe estava a acontecer. O que
acontece a todos os seres humanos. A atracção instantânea por algo de
que se gosta. Mas ser gay torna as coisas mais complicadas, e tudo aquilo
acabou com um rasgado sorriso do rapaz dos olhos castanhos ao passar
por Daniel enquanto se dirigia à porta.
―Que coisa!‖ disse entre dentes. E ficou o resto da tarde a pensar
nisto. Sem certezas não iria fazer nada. ―Quase que aposto que tem os
mesmo gostos que eu. Mas e se eu tiver enganado?! Seria uma
vergonha!‖
Ele foi para casa, cabisbaixo, envolvido nos seus pensamentos.
Depois do vazio de ontem, hoje sentia que perdera uma oportunidade
de conhecer alguém. E apenas porque tinha vergonha de ser exposto na
sociedade. Embora o seu irmão e amigos mais chegados soubessem da
sua verdadeira inclinação, não sentia necessidade de ter um rótulo na
cabeça a dizer ao mundo que era gay. Tudo seria bem mais fácil se
apenas fosse heterossexual.
Ligou a televisão e entreteve-se a ver um filme.
Jantou qualquer coisa rápida, e meteu-se na cama. Amanhã
começaria num novo emprego. Depois de muito procurar, finalmente
havia conseguido um de que gostava. Estava ansioso e nervoso, e isto
afastava o sono. Enquanto tentava não pensar nas expectativas para esta
nova fase da vida, o rapaz dos olhos castanhos veio-lhe à cabeça. Se
alguém o tivesse visto a dormir, não perceberia porque sorria Daniel.
Acordou cedo. Pôs o CD da sua banda favorita a tocar, e foi para o
banho, barba bem-feita, corpo perfumado e bem vestido e saiu para
tomar café antes de entrar na loja onde o esperava o gerente.
- ―Bom dia. Sou o Daniel Martins e aqui estou pronto para
começar.‖ Foi a frase com que se apresentou ao Sr. Gonçalves.

- 288 -
Foi a primeira vez que o viu, todas as entrevistas haviam sido feitas
pelo sub-gerente, e achou o gerente bastante estranho. Já bem nos
quarenta anos, baixo, com uma barriga proeminente e com um olhar
penetrante com o qual olhou lentamente Daniel de alto a baixo antes de
dizer:
-―Seja bem-vindo Sr. Daniel.‖ E sem mais, fez-lhe sinal que o
acompanhasse e deixou-o com um dos colaboradores da loja para que
lhe fossem explicados e mostrados os cantos e as regras da empresa.
O Jorge não era muito bonito, mas tinha um ar de homem
charmoso. Simpático e atencioso com os clientes, e depois do Sr.
Gonçalves sair de junto deles virou-se para o Daniel e exclamou:
-―Um verdadeiro filho da mãe, mas é ele que nos assina o
cheque...‖ e riu-se sozinho.
No final do dia Daniel tinha uma dor de cabeça de tanta
informação que lhe tinha sido passada. Tanta coisa para decorar, tanta
coisa que devia e outras tantas que não podia fazer, que já se sentia
confuso. Foi para casa, e mesmo antes de jantar já estava a dormir no
sofá ainda de camisa e gravata.
Acordou já atrasado e com o corpo todo moído da posição torta
em que havia passado a noite. Arranjou-se num ápice e depois de se
queimar com o café que bebeu a correr consegui chegar ao trabalho
mesmo em cima da hora.
Mais um dia em que andou a seguir o Jorge. Durante várias vezes
nesse dia reparou que o Sr. Gonçalves o observava. Achou normal, e
ainda com mais vontade se esforçava para aprender e impressionar o
Jorge.
Dois dias depois já Daniel se desenrascava sozinho. Estava
orgulhoso dele próprio. O dia estava a correr-lhe muito bem. E para sua
surpresa o rapaz de olhos castanhos que havia visto ao almoço noutro
dia, apareceu na loja. Mais umas trocas de olhares e de sorrisos, e mais
uma oportunidade desperdiçada de se falarem. Os olhos castanhos ainda
o fixaram antes de saírem, mas a Daniel faltou-lhe a coragem.
No final desse dia, a caminho do escritório do Sr. Gonçalves ouviu
a conversa vinda de outro gabinete.

- 289 -
-―O rapaz desenrasca-se bem, Sr. Gonçalves‖ disse o Jorge ―é
simpático com os clientes e até já faz umas boas vendas‖
-―Sim também já tinha visto isso‖ disse o gerente com um tom
baixo.
-―Acho que vai fazer um óptimo funcionário‖ rematou o Jorge.
-―Mas o que eu não gosto são os tiques do gajo. Entendes Jorge?
Não sei se será boa ideia tê-lo como funcionário aqui...‖
-―Oh Sr. Gonçalves! Cada um, é como cada qual. Olhe, eu não
notei nada de errado com o Daniel. Isso é imaginação sua!‖
-―Pois...Talvez...‖
Daniel não queria acreditar no que ouvira. Tinha as pernas a tremer
e o coração acelerado. Antes de se conseguir despedir do Sr. Gonçalves
fechou-se no WC a tentar acalmar-se. Por fim lá conseguiu.
Toda a noite esta conversa rodava na sua mente. Como um disco
riscado, as palavras ―tiques do gajo‖ ecoavam no seu pensamento.
Sempre havia tido cuidado com as suas atitudes. Sempre que se
encontrava em sociedade tentava dar uma de macho, reprimindo e
controlando impulsos, mesmo nas coisas simples como olhar para algum
rapaz mais giro que lhe apanhasse o olhar. Como poderia o Sr.
Gonçalves desconfiar de algo? Mal tinha pegado no sono, e já o
despertador tocava. Hora de enfrentar de novo a realidade.
Daniel foi com receio para o trabalho. Estava a acabar a semana de
experiência na loja, e pela conversa que apanhara ontem sabia que o
poderiam dispensar dali a alguns dias, sem grandes explicações. Mas não
baixou os braços. Trabalhava cada vez com mais afinco. E sempre que
percebia que o gerente estava de olho nele, tentava ainda mais dar uma
de macho.
O dia acabou e nada mais lhe dissera. O Sr. Gonçalves já havia
saído. O filho fazia anos e foi mais cedo para casa.
Daniel jantou fora, e como não tinha sono, resolveu dar uma volta
na cidade, para tentar perceber o que haveria de fazer para não perder
este emprego.
Sem perceber muito bem como, deu por ele a passar em frente da
casa de banho do mercado municipal. ―Que se lixe...‖ pensou Daniel
enquanto entrava pela porta.
- 290 -
Assim que chegou ao urinol e abriu as calças apercebeu-se que num
dos privados que tinha a porta fechada havia movimento. Alguém estava
a dar asas às necessidades sexuais que sentia.
Passados uns largos minutos, e como ninguém entrava, Daniel
decidiu ir para casa. Fechou as calças e assim que se virou a porta atrás
dele abriu-se. Lá de dentro saiu o gajo do after-shave barato que, ao
contrário da última vez que se cruzou com ele, desta vez grunhiu
qualquer coisa que ele interpretou como um ―boa noite‖.
A curiosidade venceu e Daniel teve que olhar em frente!
Aproveitou a porta ainda aberta para ver se conhecia o outro homem
que estava lá dentro.
A surpresa não poderia ser maior.
O homem, ainda com as calças descidas até aos pés e
apressadamente a limpar o resto de fluidos que cobriam o seu corpo, era
o Sr. Gonçalves. Este ainda não tinha visto Daniel, que estava pregado
ao chão sem reacção. Quando o homem olhou para a frente e viu o
Daniel deu um salto, agarrou a porta, e antes de a fechar disse-lhe num
tom grave e ameaçador:
-―Nem uma palavra sobre o que viste!‖
Daniel saiu dali quase a correr. As pernas tremiam-lhe e a cabeça
rodava com milhares de pensamentos.
Mais uma vez nada dormiu. Quando o despertador tocou,
levantou-se mecanicamente e preparou-se. Sem saber ainda o que
pensar, fazer ou dizer, entrou na loja.
Passou o dia sem saber quando é que o Sr. Gonçalves o chamaria
para falar. Não sabia o que lhe diria, mas certamente iria ser chamado.
Nada aconteceu durante todo o dia. O gerente não apareceu. Disseram-
lhe que estava doente.
Quando já estava pronto para sair, o sub-gerente chamou-o. Sem
grandes explicações ou argumentos, disse-lhe apenas que não valeria a
pena voltar no dia seguinte e que não se enquadrava no espírito da
empresa e que não iria ser contratado.
Daniel saiu dali destroçado. Sabia bem porque fora dispensado.
―Aquele filho da mãe... nem coragem teve de ser ele a fazê-lo...‖.
Era o que mais o revoltava!
- 291 -
Tomou um comprimido e dormiu. Nem se lembra do que sonhou.
Levantou-se, tomou um longo banho, vestiu a melhor roupa que tinha e
foi para o café!
Sentia uma enorme raiva dentro dele. Foi despedido apenas por
gostar de homens, e o sacana que o despediu tinha os mesmo gostos que
ele. Isto revoltava-o.
Sem saber o que fazer, pôs-se a ler o jornal. Duas páginas depois,
sentiu alguém a aproximar-se dele. Baixou o jornal, e deu de caras com
um sorriso rasgado na cara de um rapaz que acabara de se sentar na sua
mesa.
-―Olá. Eu sou o Bruno‖ disse o rapaz de olhos castanhos.

Ray
31 anos
#60

- 292 -
Partilha-te no Estúdio
No estúdio onde hoje trabalho, a maioria dos actores em 1992 eram
gays.
Certo dia, um casal que de actores que lá trabalhava o Isidro e o
Sousa, vieram trabalhar mas em alturas diferentes. O Sousa já se
encontrava em Estúdio a gravar, mas o Isidro tinha ficado mais tempo
em casa pois tinha uma visita lá hospedada, uma amiga.
A cada 5 minutos o Sousa saia da cabine de locução e perguntava:
- O Isidro já chegou?
Isto foi acontecendo ao longo da manhã, na altura em que o Isidro
chegou, o Sousa saindo da cabine de locução, gritava em voz alta:
- Isidro! Aqui no estúdio estavam todos preocupados contigo!
Ninguém sabia como tu estavas!!!
Todos aqui gostam muito de ti! Mas eu amo-te! Eu amo-te
Nesta altura um estafeta que tinha ido buscar um cheque, saiu
rapidamente porta fora dizendo:
- Ah, eu passo cá mais tarde ou depois...
Durante anos o trabalho no estúdio com actores era sinónimo de
convívio com gay‘s.
Isso para mim que na altura era apenas um rapaz de 15 anos, foi
sinónimo de conhecer, pessoas fantásticas, hipercriativas, super-

- 293 -
respeitadoras, de um bom gosto e requinte enorme. Tendo sido para
mim perfeitamente natural aceitar que existiam pessoas com outra
orientação sexual
O Estúdio nesta altura representava um porto seguro onde não
existia nenhuma critica por cada um ser com quisesse ser. Mas isso
contrastava (e contrasta) com uma sociedade que era (e é) muito
conservadora.

Ele
31 Anos
#84

- 294 -
AMOR

- 295 -
Leilão
Quem dá mais pelo meu coração?
Pode ser que resulte, que alguém queira comprar
Se ninguém quiser vou ter que aguentar
É usado, com dor incluída
Mas ainda bate, ainda tem vida
Não era assim antigamente
Ele era a própria vida, vivia livremente
Agora já nem consegue parar de chorar
Mas baixinho que é para ninguém reparar
Vi que gostava de ti, nem sei bem porquê
E o resultado é este que aqui se vê

Tu deste-me asas para eu voar


Depois tiraste-me o ar para não respirar
Esqueceste-te que os pássaros livres sem oxigénio
Não valem nada, não têm qualquer mistério
E sem me deixares sequer a tua sombra ver
Fizeste-me amar e ensinaste-me a sofrer
Agora já sou livre da dor que me deste
E sem qualquer surpresa do bem que me quiseste

- 297 -
Mas mesmo sendo eu livre não sou
Senão sombra anónima do ser que me deixou
Pois a liberdade que consta agora em mim
Não devia ser precisa, não devia ser assim
Pois se assim não fosse também tu poderias voar
Ser ave que canta, com licença para amar
Ser livre, sem dor nem sofrer
E sem necessidade de esconder

Dizem que este é um amor que não se tem


Que não pode, que não devia existir
Um amor que quando nasce logo tem de partir
E não e só comigo, com eles é igual
Também o seu amor é tido por amor animal
Amor corrompido, amor de pecado e solidão
Um amor proibido pelos desígnios da religião
E se com eles acontece, com elas tem de acontecer
Também o ser amor ninguém parece entender
Também dizem ser amor infernal
Amor demoníaco, representativo do mal
Mas não me diz isto o meu coração
Afinal se Deus é amor como pode ser maldição?

Voo agora pelos ares, sem pedir licença


Já não temo as pessoas, já não temo a sua presença
Fujo apenas da sombra que vi em ti
Do medo que te corrói, que não devia estar aí
E espero que apesar de todo o sofrer
Também tu sejas um dia livre de viver

Eu agora já nem quero mais saber


Qualquer terra dos monstros é um lugar melhor para viver
Já não me importa o que pensam sobre mim
Não tenho de pedir perdão por amar assim
- 298 -
Por vezes só me apetece partir para outro lugar
Onde ninguém nos conheça, onde ninguém nos tente julgar

Mas sei que no fundo nunca poderei partir


E deixar este lugar, mesmo tendo para onde ir
Pois se há coisa que aprendi e não posso esquecer
É que nada nem ninguém fazem a esperança morrer
E a minha diz-me que também esta terra será um dia
Livre para todos, fonte de igualdade e alegria

Anabela
17 Anos
#89

- 299 -
Inexplicável
Todos temos aqueles dias em que mal abrimos os olhos, sentimos
que vai correr tudo mal, e a vontade de nos levantarmos, pura e
simplesmente, desaparece.
Como o facto das pantufas estarem roídas por causa da cadela; do
cabelo estar espetado num lado só e não querer descer de maneira
nenhuma; de nos esquecermos sempre daquele móvel e de batermos
com alguma parte do corpo, ganhando uma nódoa negra e começando o
dia com um palavrão; do gás acabar quando tomamos banho e
acabarmos por levar com água gelada em cima; do café estar demasiado
amargo/doce, frio/quente; da roupa que queremos levar naquele dia,
estar para lavar/engomar e não termos tempo para resolver o assunto;
do carro não pegar, ou do carro pegar mas do trânsito estar caótico e
acabarmos por chegar atrasados ao emprego, de qualquer das formas; de
no caso de não termos carro, de chegarmos tarde á paragem e
perdermos o autocarro, ou o mesmo chegar atrasado e alterar a nossa
rotina; de encontrarmos uma daquelas pessoas que não queremos; do
patrão estar mal-humorado e descarregar as energias negativas em cima
de nós; devido ao excesso de trabalho, não podermos ir almoçar; de
sairmos mais tarde do que é esperado; de encontrarmos novamente
aquela pessoa; de irmos para casa e um acidente a poucos metros, tornar

- 300 -
uma viagem de 10 minutos, numa de 60; de finalmente chegarmos a casa
e nos lembrarmos que o amigo X faz anos no dia seguinte e que nos
esquecemos de comprar um presente, ou do amigo fazer nesse mesmo
dia e devido ao excesso de trabalho, nos termos esquecido de telefonar a
desejar um feliz aniversário; de fazermos um ficheiro no Word com 20
páginas para um trabalho importantíssimo e o computador, de um
momento para o outro, sem dar tempo de guardá-lo, desligar-se; de
estorricarmos o jantar e acabarmos por comer umas bolachinhas com
um copo de leite; de irmos para a cama e acordarmos a meio da noite
com o telemóvel a tocar e mandarem-nos para a porta de entrada, em
troca, mandarmos a pessoa para um sítio que toda a gente sabe; de
desligarmos o telemóvel porque a pessoa é insistente; de nos
levantarmos, num estado que transcende a raiva, descermos as escadas,
tropeçarmos, mandarmos mais um palavrão ao ar, abrirmos a porta e
vermos uma folha de papel no chão; de agarrarmos na mesma, de a
abrirmos e lermos: ―Só para que saibas, que mesmo com um dia destes,
quero estar a teu lado, até a morte se intrometer no que existe entre nós.
Amo-te mal-humorada!‖; de sorrirmos, olharmos em frente e vermos a
pessoa que amamos de braços abertos na nossa direcção. Esquecemos as
pantufas, o cabelo espetado, a nódoa negra, o banho de água fria, o café
que sabia mal, a roupa que não usamos, o carro, aquela pessoa, o patrão,
a falta do almoço, a perda de tempo, o aniversário, o trabalho perdido, o
jantar estragado. Esquecemos um dia extremamente mau, com um
simples momento bom. Porque se há coisas que não se explicam, o
amor é uma delas…

Lady L
19 Anos
#95

- 301 -
Num Clarão
Confesso que não percebi logo!
Ainda hoje permaneço imóvel.
Porque sei que esse alguém
Que te empurrou, vivia dentro e móvel
E sempre, sempre, perigoso
Aparelho insano de sexo preguiçoso.

Vejo tudo agora num clarão


E vejo a clara lua de uma tarde
Que não tarda, faz a noite parecer tua.
E sei que não desprezaste o fim, cobarde,
No verão em que apagaste teu sonho
E teu viver, subindo para um astro medonho

Onde se vê ao longe o teu corpo magro,


Os ossos nus da face e cavos na pele.
Vejo também a tua altura que estreita
Os prédios da cidade, a génese de teu mel
Onde a loucura enterra o deus

- 302 -
E abraça os que não dizem adeus.

Londres afagou-se num misto


De um Brasil de identidade duvidosa,
Ou ―Paranás‖ com rosto de vitrina
Onde reina a quarta divida briosa.
A última, transformaste em dúvida
E as outras três, numa passagem húmida.

E rompe lençóis e armadilhas,


Vem fantasma, sem misticismo
Mas vem ensinar sem o lume do teu fim,
Recuperando desse eterno cismo.
E eu que estava ignorante da morte
Bebendo desse vinho e testando a sorte!

Voas agora numa cidade qualquer


De segunda a qualquer madrugada,
E espero por ti amigo, espero a saudade.
Conheço-te, enfim, Buenos Aires
Lugar do teu começo, livre dos outros
Onde desnasces e crias um outro

Quem gera este asqueroso mundo,


Gera também as lágrimas que cobrem
Teu rosto. E os olhos validam a dor.
Este ―poema‖ perdeu a rima na denúncia
Mas ganha a forma na tua vida
E assim estamos os dois amigos - na lida.

Basta de intimidade!
É fácil ser próximo para essa premissa
Porque os que te julgam temem a ultima palavra.
E lembra-te, julgar é como preguiça
Dá trabalho aprofundar e entender.
- 303 -
Enterra-te, irmão, para veres nascer.

Vejo agora que: ser como tu não é fácil!


Ser teu corpo também não.
Faz tudo o que é preciso
E o que não é preciso, sem vão…
Não que esperes apreço de quem vive
Na ignorância; mas sim, em quem Lorca vive.

Onde mereces estar?


Onde contornas os automóveis em (Mi),
E o belo da vida em (Dó). Deixa só
A cidade inteira olhando para ti
Porque és mistério, porque és possibilidade.
Porque so(l) assim és de verdade.

Rodrigo Camelo
29 Anos
#6

- 304 -
A minha história de amor
Tudo começou em 2002, andava eu no 7º ano.
Minutos antes de tocar para dentro, ela estava sentada no banco
com a mãe, porque vinha saber qual era a turma onde tinha ficado.
Naquele espaço de tempo em que esperava pelo toque da campainha, o
nosso olhar cruzou-se, não sei como, mas cruzou-se. Nunca eu
imaginaria que ela iria para a minha turma. Assim que entro na sala, lá
estava ela sentada, lembro-me de ter perguntado ao meu melhor amigo
como ela se chamava e ele respondeu-me que o nome dela era Vanessa.
Pensam que tive coragem para meter conversa? Ui esta minha timidez
estraga tudo. Foi graças a minha colega de turma que começámos a falar.
Tornámo-nos as melhores amigas.
Em 2003 ela apanhou varicela e teve de ficar 2 semanas em casa, eu
fui visitá-la (eu podia porque já tinha tido) ainda me lembro era quarta-
feira, dia 14 de Maio de 2004, foi nesse dia que descobri que estava
apaixonada por ela, parece estúpido porque foi no dia que ela estava
cheia de pintas pelo corpo todo, lembro-me de chegar a casa e de
começar a chorar, porque aquilo não poderia estar a acontecer comigo,
não podia ser verdade… mas era.
Até 2005 sofri muito, porque guardei só para mim, sabia que ela era
100 % heterossexual mesmo que nunca a tivesse visto a namorar

- 305 -
ninguém. Ela apaixonou-se pelo meu melhor amigo e isso foi o
suficiente para me deixar de rastos, se eles namorassem eu não iria
conseguir ver, mas não podia fazer nada. Tive sorte porque isso não
chegou a acontecer.
No dia 7 de Janeiro de 2005 ganhei coragem e por desespero meu
por sofrer á tanto tempo por ela contei-lhe que gostava dela, comecei
logo a chorar porque pensei que a iria perder como amiga. Mas enganei-
me, ela disse que me iria apoiar, lembro-me de a abraçar e sentir o
coração dela a bater muito.
No dia 9 ela estava diferente, mas pela positiva, fez-me muitas
perguntas em relação de eu gostar dela e blá blá e eu estava achar aquilo
estranho, tanta pergunta porquê? E depois aquela resposta "…nunca se
sabe…" isso deixou-me ainda mais baralhada.
No dia 10 de Janeiro de 2005 iria ser o melhor dia da minha vida.
Como eu ia para a escola com ela, ela vinha muitas vezes acordar-me
(tocar a campainha) e nesse dia entregou-me um papel, como eu fui a
casa de banho li por alto e lembro-me de ler "…e também estou a sentir
algo por ti..." eu fiquei paralisada a olhar para aquilo e pensar: "Será que
li bem?" mas guardei o papel no bolso.
Só na escola é que o li, fiquei mesmo contente por ter sido
correspondida. Nesse dia à tarde, quando estávamos sozinhas, ela
sentou-se ao meu lado e beijou-me, foi um momento tão mágico, a
partir desse dia até hoje ainda namoro com ela, 4 anos e 3 meses. É com
ela que quero ficar e vou amá-la para sempre, porque o meu coração lhe
pertence.

Tânia Santos
20 Anos
#11

- 306 -
Desculpa mas eu sou assim!
Desculpa, mas eu sou assim!
A nossa sociedade é, por vezes, muito preconceituosa, infamando as
pessoas que são ―diferentes‖, ou que encaram a vida de uma maneira
divergente da que há muitos anos fora estipulada.
Estas pessoas têm vindo a esconder-se do mundo, não por
vergonha, mas por iniciativa das suas próprias famílias ou por medo de
sofrer represálias. Felizmente estas começam a enfrentar a
preconceituosa sociedade, a família, e aqueles que as impedem de viver
felizes, lutando pela felicidade que há muito é merecida.
Esta história não é dedicada a estes corajosos indivíduos, mas sim à
sociedade, porque nunca é tarde para aceitarmos e amarmos os nossos,
por mais diferentes que estes sejam. É também dedicada àqueles que
ainda não ganharam coragem para serem felizes aceitando aquilo que são
e enfrentando esta sociedade.
A todos os que são diferentes, parabéns por não pertencerem a esta
impiedosa sociedade.
O meu nome é Cristina, e só hoje, é que decidi escrever aqui. Isto
não irá ser o meu diário onde, todos os dias, escreverei. Não, estes
pedaços de papéis irão ser os meus ouvintes, irá ser neles onde irei
desabafar e é com eles que descarregarei a minha fúria e ira. Decidi fazê-

- 307 -
lo porque ultimamente me sinto desamparada, sem rumo, e ninguém,
nem mesmo o meu irmão, me ouve. Antigamente tinha a minha mãe e
ela apoiava-me, ouvia-me e sempre que precisava de falar, desabafar ou
chorar ela estava ao meu lado e eu sabia que podia contar com ela para
tudo.
Mas infelizmente eu não nasci para ser feliz e quando tudo parecia
estar a correr bem uma tragédia parou sobre a nossa casa mudando o
rumo da nossa vida para sempre.
A minha infância, ou melhor, a minha não infância foi passada com
agressões diárias. Agressões essas que marcaram não só física como
psicologicamente a minha vida e a de quem vivia naquela casa. O meu
pai era muito bruto e maléfico connosco sem nunca mencionar a razão
de tanta fúria. E quando eu já tinha 14 anos o meu pai, felizmente,
apercebeu-se que estaria melhor ao pé de uma mulher financeiramente
melhor que a minha mãe e decidiu partir. Foi o melhor momento da
minha vida pois a partida dele significaria o final daquele pesadelo que
até à altura era a minha vida, significaria o desfecho do medo e do terror
que pairava em nós.
Mas apenas conseguimos viver felizes uns poucos meses, pois
quando mal os 15 tínhamos, a minha mãe decidiu partir. Na altura não
percebi esta viragem na sua vida pois quando ela poderia ser feliz algo a
levou de nós e foi então que me apercebi que partira para poder
reencontrar-se com a minha avó, sua adorada mãe. Esta situação deixou-
nos de rastos. Nunca pensei que a morte chegaria tão cedo, silenciosa e
dolorosamente, sentia-me injustiçada e começava a duvidar daquilo a
que chamam de Deus. Então eu e o Daniel (meu irmão) tivemos de
reaprender a viver com o meu pai, que, apesar de ter mudado e de já não
ser muito agressivo, continua com essa imagem perante nós. É uma
nova vida que nos deram, é uma vida de medo e dor constante.
Assim, e sem ninguém a quem eu pudesse pedir auxilio decidi
escrever o que me vai na alma! Decidi escrever os meus pensamentos de
maneira a salvaguardá-los de serem ouvidos pelo meu pai, impedindo a
formação de mais uma barreira entre nós.

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Quinta-feira, 13 de Setembro de 2007
Hoje, finalmente, o meu pai descobriu que eu fumo. De há três anos
para cá passo diariamente por ele a cheirar a tabaco e ganzada, e só hoje
é que ele descobriu. Porque é que comecei? Sinceramente não sei mas
certamente que a culpa foi a morte da minha mãe. Ela era a única pessoa
em quem eu confiava e tinha acabado de morrer, eu andava perdida e
sem saber o que fazer da vida. Estava a sufocar interiormente e tinha
que fazer algo para que isso não acontecesse, tinha que fazer algo que
me desse a sensação de liberdade. Também o facto de saber que estava a
fazer algo que o meu pai não concordava ajudou ao meu pecado.
A cada dia que passa ando mais em baixo, tenho saudades da minha
mãe e não tenho qualquer vontade de viver com o meu pai e com a
Mónica. Daria qualquer coisa, até a minha vida se fosse possível, para
estar novamente ao pé da minha mãe. Gostaria que ela me apoiasse
neste momento, que me ajudasse a perceber estes pensamentos e
dúvidas que me atormentam diariamente. Desejava que ela se
encontrasse ao meu lado quando eu soubesse em que universidade tinha
entrado, que estivesse ao meu lado quando eu realizasse o seu maior
sonho. Mas a vida encarregou-se de fazer com que ela nunca mais
estivesse ao meu lado, com que eu nunca mais sentisse um único beijo
dela. Tiraram-lhe o direito de ver os filhos casar, de ver os netos crescer
e de estar presente nos seus bons e maus momentos. Agora tudo o que
os meus filhos terão dos avós será o seu total desconhecimento pois, se
depender de mim, para eles os seus avós terão morrido num acidente de
carro, felizes tal como no dia do seu casamento! Pois nunca permitirei
que eles descubram o que é sentir medo e raiva dos próprios parentes.

Domingo, 23 de Setembro de 2007


Pouco tempo antes daquilo que mudou a minha vida, a minha mãe
dissera-me ―um dia ainda hás de mudar as fraldas àquele puto‖. Claro
que achei que ela estava a passar-se, mas agora olho para trás e vejo que
o que ela me dissera pouco antes de morrer tinha sido verdade. Desde
que vim para esta casa já mudei as fraldas tantas vezes ao Nuno (meu
meio irmão) que já lhes perdi a conta, já fiz o papel de sua mãe mais
vezes do que a sua. Agora olho para o passado e tenho vergonha do que
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fiz, tenho vergonha de nunca lhe ter dito que a amava e principalmente
de não ter passado mais tempo com ela, porque infelizmente estava
errada ao pensar que a minha mãe era imortal. Estava errada ao pensar
que um dia teria tempo para me despedir e dizer-lhe todas aquelas coisas
bonitas que ela sempre sonhou ouvir. Hoje reconforto a minha mente
pensando que ela sabia o quanto a amava, reconforto-a pensando que
quando for para junto dela dir-lhe-ei todas aquelas palavras que nunca
foram ditas nem ouvidas apesar de estas estarem no conhecimento e no
coração de ambas.
À medida que o tempo vai passando os meus pensamentos e
dúvidas perseguem-me através dele e não tenho ninguém com quem
desabafar e que me ajude a entender o que passa comigo. Todos os dias
sou atormentada por isso. Serei Homo? Heterossexual? Ou Bissexual?
Há dois anos que estas dúvidas me perseguem, e estão a tornar-se mais
fortes à medida que os dias passam. Não consigo desabafar com
ninguém pois tenho medo da posterior reacção, tenho medo de desiludir
os meus verdadeiros amigos e de afastá-los de mim. Há pouco tempo
comecei a ver uma série sobre lésbicas e apercebi-me de que ser homo
ou bissexual não é crime e que ninguém morre se tal acontecer, que o
importante é a felicidade mas até que ponto o reconhecimento de tal nos
trará a felicidade? Em que sociedade não serei injuriada caso goste da
pessoa ―errada‖? Aqui ser gay é quase um crime federal, ser gay, aos
olhos da sociedade, é tão mau quanto matar alguém… Sinto estas
dúvidas e pensamentos invadirem-me o corpo e não sei o que fazer para
pará-los, nem sei como contrariar isto. Mas apesar de não saber o que
fazer e o que pensar sobre isto, uma coisa certa é que se o for nunca irei
assumir tal pois sou demasiado parva para o fazer. Sou demasiado
medricas para enfrentar uma sociedade repleta de pecados e pecadores.

Sábado, 29 de Setembro de 2007


Hoje quando estava com as minhas amigas comecei a sentir-me
estranha, e não gostei nada disso. Ao falar com a Joana tive uma enorme
vontade de a beijar, de lhe mostrar o que sinto, apetecia-me dizer-lhe
que é minha e que juntas seremos felizes. Não sei o que se passou
dentro de mim mas o meu cérebro já não mandava no meu corpo, a
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única coisa que eu seguia atentamente era as batidas do coração que a
cada segundo que passava se tornavam mais intensas. Foi então que tive
que me afastar convencendo-me a mim mesma que aquilo tudo não
passava de um ataque hormonal e que não poderia perder uma bela
amizade apenas porque o meu coração estava acelerado. Isto tudo deve
ser porque ando a ver demasiada televisão e isso está a fazer-me mal à
cabeça, tenho que deixar de ver aquela série, eu não sou nem nunca serei
lésbica. E se algum dia o coração me trair negarei esse sentimento,
negarei aquilo que sou e aquilo que sinto para que nunca corra o risco de
desiludir a minha mãe, de desiludir a única pessoa que me amou
incondicionalmente. Sei que se o for irá provocar-lhe um grande
desgosto e isso é a ultima coisa que eu quero fazer-lhe, é a única coisa
que não lhe farei.
Mais uma vez estas dúvidas modificam as minhas acções,
modificam-me perante a Joana e eu começo a ficar farta disto. Gostava
que de uma vez por todas elas acabassem, gostava de uma vez por todas
me definir e parar de me esconder nesta carapaça que me impede de ser
feliz. Queria acreditar que a vida é um mar de rosas e que se fosse
lésbica não seria discriminada por tal, queria acreditar que a minha mãe
não se desiludiria comigo caso eu o fosse mas infelizmente a nossa vida
é comandada pela sociedade em vez de ser por nós, e enquanto assim
for não poderei pôr a hipótese de ser lésbica. Enquanto assim for
admirarei aqueles que tiveram coragem de se pôr em pé e gritar bem alto
aquilo que são, de gritar bem alto que não é a sociedade que manda
neles.

Quinta-feira, 4 de Outubro de 2007


A minha relação com o meu pai anda cada vez pior, ele ainda pensa
que eu tenho quatro anos e que ainda lhe obedeço. Esse tempo já
passou e infelizmente aos meus olhos ele não é o meu pai mas sim
apenas uma pessoa que toma conta de mim até eu ter a minha vida
organizada. Ele anda com a mania que manda em mim, mas esse tempo
já passou. Já passou o tempo em que eu precisava do meu pai ao meu
lado, em que eu precisava de uma figura paterna. Eu não tenho, nem

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nunca tive um verdadeiro pai. E agora é tarde demais para ele interpretar
o papel que sempre se recusou a fazer.
O meu irmão em princípio vai viver para o porto, para casa da
namorada. Ele já não aguenta esta tensão diária. Vai tentar desligar-se
disto para que ele, um dia, possa ser feliz ao lado da sua família, para que
um dia possa esquecer a sua infância e dar uma vida melhor àqueles que
ama. Um dia quero fazer o que o meu irmão está a fazer neste
momento! Quero constituir uma família e dar-lhe tudo aquilo que nunca
recebi, amor e paz. Quero fazer alguém sorrir sempre que eu entrar pela
porta de casa, quero fazer alguém sentir-se amado e desejado.
A minha noite até que foi um tanto interessante. Esta começou num
café aqui da terra, e acabou no largo da igreja com galhofa, cigarros e
droga à mistura. Estivemos lá todos e eu queria ficar um pouco mais
mas quando a Joana foi para casa eu fui acompanhá-la para poder ter
mais vinte segundos com ela. Quando já estava em casa, pronta para
dormir começo a receber mensagens dela (ao início estranhei, mas
depois gostei). Estivemos a falar de tudo um pouco, desde o nosso
relacionamento com o grupo até ao programa que estava a dar na
televisão àquela hora, e quando estávamos a despedir-nos ela manda-me
uma mensagem a dizer ―gosto de ti‖, claro que fiquei radiante quando li
isso, mas só depois é que comecei a raciocinar. O que significaria aquilo?
Em que sentido ela me terá dito aquilo? Não consegui pregar olho toda
a noite. Aquele passo significava muito para mim e só o facto de estar a
acontecer punha-me numa pilha de nervos, mas ao mesmo tempo vinha-
me uma ideia à cabeça, ―eu não posso ser lésbica, não posso dar esse
desgosto à minha mãe!‖. Eu sei que isto significa uma vida infeliz, eu já
sei aquilo que sou e cada vez esse sentimento é mais forte, mas até que
ponto estou pronta para estragar a minha felicidade por uma pessoa que
já não está entre nós? Até que ponto me sacrificarei por uma sociedade
ingrata e injusta? Estou confusa e não sei o que fazer nem pensar. Será
que não nasci mesmo para ser feliz ou um dia chegará a felicidade à
minha porta? Se assim for, só espero que esta não chegue demasiado
tarde, só espero que um dia seja mesmo feliz tanto por fora como por
dentro. Só desejo um dia ter aquilo a que todos nós temos direito desde
que nascemos.
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Quarta-feira, 10 de Outubro de 2007
Não entrei na universidade! Estou desolada e nem a companhia da
Joana consegue ajudar-me. Toda a minha vida sonhei que iria para a
universidade, iria conseguir livrar-me deste pesadelo e poder ser feliz.
Agora que esse sonho me foi negado estou desamparada e não sei o que
fazer no futuro. A única coisa que sei é que era em momentos como este
que precisava da minha mãe ao meu lado para me apoiar mas
infelizmente isso não é possível, agora é nestes momentos que me
passam coisas horríveis pela cabeça. Eu prometo que não irei ceder aos
meus pensamentos, que irei continuar a vida e seguir em frente, porque
isto foi só mais uma chapada entre muitas que a vida me deu. Só que
ultimamente sinto-me presa num túnel que nunca mais acaba. Não
encontro nenhuma solução para sair dele, tudo em meu redor é uma
enorme escuridão, sinto-me cega e a sufocar mas não sei como reagir a
isto. Sei que só aqueles que me amam me ajudarão a sair deste inferno,
mas não sei até que ponto o tempo não me trairá. Nem sempre o tempo
se torna nosso aliado, pois por vezes a ajuda vem demasiado tarde e eu
começo agora uma contagem decrescente. Começo uma contagem
decrescente para a minha felicidade, para a minha luz e para a minha
vida.
À noite aproveitei que o meu pai estava a dormir e fui para um sítio
sozinha encharcar-me em drogas. Eu sei que não devia fazê-lo porque
me faz mal, causa dependência e essas tretas todas mas estava a precisar
de o fazer, tinha que ir desanuviar. Estava a precisar de ficar neste
estado, num estado de indiferença para o mundo e para os problemas
que se vão fazendo sentir na minha cabeça, disfarçados de memórias.
Tinha que ir desanuviar, estar sozinha e fingir que a minha mãe estava ao
meu lado, fingir-nos às duas a falar e a rir juntas.

Quinta-feira, 11 de Outubro de 2007


O pessoal com quem costumo andar achou estranho o facto de eu
ontem não ter saído e hoje decidiram vir-me buscar a casa. Toda a noite
foi um interrogatório sobre o que se passava, ou não, comigo ao qual eu
tinha que responder sempre ―eu estou bem! A sério que sim‖ mas
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quando se aperceberam que eu começava a ficar farta daquele
interrogatório e pronta para me ir embora decidiram parar. Claro que
quem não ficou satisfeita com a terminação da conversa foi a Joana que
me obrigou a acompanhá-la a casa apenas para me perguntar, mais uma
vez, o que se passava comigo. Decidi então desabafar e contar-lhe tudo
o que se tinha passado ontem, e por muito estranho que me tenha
parecido ela ficou chateada comigo porque eu não tinha confiado na sua
amizade. O meu problema de ontem e o facto de eu não ter desabafado
com ela não havia sido por falta de confiança na nossa amizade, mas sim
por desespero próprio. Eu vi o maior sonho da minha mãe destruído
por causa da porcaria de umas milésimas, não foi justo! Neste momento
a minha mãe deve estar a mexer-se no seu túmulo de tanta vergonha que
tem na filha, pois eu nem este sonho fui capaz de realizar. A Joana bem
tentou puxar-me a moral para cima dizendo que o único sonho da
minha mãe era ver-me feliz, independentemente de eu ir ou não para a
universidade, se viesse a ter ou não um curso. Ela também só diz isto
porque já está no último ano de Gestão Empresarial e eu ando aqui a
fazer nem sei eu bem o quê. É fácil falar quando não somos nós que
estamos a sofrer. Sei que é nestes momentos que uma amizade se torna
forte ou acaba por se desmoronar pois a confiança está na base da
amizade, mas não é fácil. Não é fácil ter que admitir que somos uns
falhados, ter que admitir que desiludimos as pessoas em nosso redor,
gostamos de manter essas decepções no anonimato para não ter que ver
as reacções das pessoas quando frustradas. Não quero desiludir mais
ninguém, quero ser amada e não chocalhada pela sociedade. Não quero
pertencer a mais uma estatística sobre os falhados da sociedade, sobre
aqueles que não lutam pelos objectivos e que vivem da ajuda daqueles
que têm pena. Não quero passar na rua e ver pena no olhar das pessoas,
ver tristeza quando olham para mim. Posso não vir a ser o próximo
Nobel da história portuguesa, mas também não serei nenhuma falhada,
não viverei da ajuda de terceiros e lutarei pelo meu direito de dizer ―eu
trabalhei para ter isto!‖ e principalmente lutarei por uma vida completa
de felicidade, paz e amor seguindo os meus ideais e não os de uma
sociedade inquisidora.

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A vida traz-nos coisas boas e coisas más mas, quando o faz, não o
faz aleatoriamente. Ela traz-nos coisas maléficas para que no futuro
estejamos mais fortes e traz-nos coisas boas para a superar as coisas más,
e o que me aconteceu é a prova disso. A vida encarregou-se de fazer
com que eu não entrasse na universidade, mas colocou a Joana ao meu
lado para me apoiar nesta fase. Esta minha tristeza apenas irá fortalecer-
me como pessoa e fortificar a nossa amizade pois nunca me esquecerei
daquilo que me foi dito, nas palavras que ela dissera e que penetraram
directamente no meu corpo e mente. Nunca me esquecerei de quem me
apoiou, de quem me deu um abraço amigo e de quem ralhou ou me
abriu os olhos quando assim foi preciso.

Segunda-feira, 15 de Outubro de 2007


Já descobri o que vou fazer, e apesar de ser contra o que as pessoas
querem de mim, irei acreditar no meu sonho e ser locutora de rádio a
tempo inteiro. Já que estou numa rádio amadora e toda a gente gosta de
me ouvir, irei acreditar que sou realmente boa nisso e seguirei a minha
vida. Claro que o meu pai, querido como ele é, nem quis saber se isso é
bom ou não para o meu futuro e nem sequer me pediu para procurar
outras alternativas. Quem não gostou nada da minha opção foi a Joana,
fogo parece que ela ultimamente decidiu estar do contra e decidiu fazer-
se passar por minha mãe a dar-me grandes sermões como se eu ainda
fosse uma criança! Eu gosto muito dela e não quero perder a sua
amizade mas odeio que ralhem comigo. A única pessoa que o poderia
fazer já morreu e eu não permitirei que ninguém ocupe o seu papel,
principalmente quando toca ao assunto do meu futuro!
Hoje quando estava com uns amigos tive a opção de experimentar
heroína, mas eu achei melhor não o fazer, porque enquanto for pólen eu
posso parar quando quiser, agora heroína, bem, aí o caso muda de
aspecto pois tornamo-nos viciados, e esse passo é muito, mas muito
pequeno.
Quando fui ter com a Joana ela já estava amuada, não por ter de
esperar por mim mas por eu ter dado umas passas. Fogo, eu já o fazia
quando ela me conheceu, eu já fumava ainda ela não sabia o que queria
fazer da vida (ainda não disse, mas ela é só mais velha que eu um ano).
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Eu não queria, mas estou a ver que um dia destes ainda vou ter que me
chatear com ela. Ela não é minha mãe, não é meu pai, não me é nada,
não tem o direito de opinar sobre o que eu devo ou não fazer na minha
vida. Eu sei que quando ela se zanga comigo é por se preocupar comigo,
mas tudo o que é demais enjoa e esta história começa a aborrecer. Não
quero perder a sua a amizade, mas também não quero ganhar uma falsa
mãe, porque mãe há só uma e ela é insubstituível.
Sinto falta da minha mãe, desde que ela morreu que eu me tornei
numa pessoa diferente. Ando numa escuridão diária, sem força para me
erguer e lutar contra os problemas e a cada dia que passa fico com uma
maior revolta dentro de mim contra a vida e contra tudo pois eu não era
assim. Sempre que fecho os olhos reencontro-me com ela na minha
cabeça, faço-lhe inúmeras perguntas, esperando por uma resposta que
nunca obterei. Gostava de a rever, de matar as saudades que devoram o
meu interior. Quero-a nem que seja só por mais um dia, nem que seja só
por um minuto. Eu nunca esquecerei o que sentia quando estava com
ela, o sabor e a doçura das suas palavras que inconscientemente iam
parar ao meu coração, o seu toque e o cheiro e suavidade da sua pele.
Ela faz-me falta tal como qualquer mãe faz falta a um filho e eu já não
sei o que fazer para ignorar a dor que corre nas minhas veias.

Quinta-feira, 1 de Novembro de 2007


Estou de rastos… Tive que me chatear com a Joana, ela já estava a
abusar com aquela cena de andar sempre a opinar sobre a minha vida e
por isso vi-me na obrigação de me chatear com ela. Eu gosto muito dela
e respeito-a mas a minha paciência tem limites e ela ultrapassou-os. Não
sei como vai ser agora quando me cruzar com ela, mas sei que me irá
custar não lhe falar e sobretudo que me irá custar não poder estar junto
dela mas irei ultrapassar isso, não vou chorar por isso e muito menos
deixar de viver porque me chateei com uma grande amiga. A causa desta
zanga deu-se ao facto de eu andar nas curtes com o Miguel, que segundo
a Joana é um rapaz sem objectivos de vida e que me irá prejudicar no
futuro. Tenho pena que ela veja as coisas assim (logo como namoros
sérios) porque isto apenas servirá para contrariar os meus desejos e
pensamentos. Nunca tive nem terei a intenção de subir ao altar da igreja
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com ele! Pessoalmente acho que ela ficou mais chateada por eu não lhe
ter dito que andava com o Miguel do que pela razão que me deu. Ela
deve ter ficado a pensar, mais uma vez, que eu não havia confiado nela
para contar isso, mas a nossa ―curte‖ ainda não é oficial pois só iremos
contar aos nossos amigos para a semana. E eu não posso estar sempre a
contar-lhe tudo o que faço diariamente senão isto deixaria de se chamar
amizade para se chamar ditadura.
Ultimamente ando a ter muitos pesadelos com a morte da minha
mãe e isso está a deixar-me um pouco cansada. Já não consigo dormir
como deve ser e à noite tenho medo de adormecer e sonhar com a sua
morte, está a ser bastante difícil superar isto. Todas as noites a morte a
que assisti e as calúnias que foram ditas quando partiste tornam-se reais
e eu sou obrigada a revivê-las por mais uma vez, sou obrigada a
presenciá-las sem que nada possa fazer para mudar o rumo da história.
Quando acordo eu vejo que tudo aquilo não passou de mais um
pesadelo, que tudo aquilo não passou de mais uma partida da minha
perturbadora mente. Mas só espero que esta fase passe senão daqui a
uns dias pareço um zombie pois não consigo descansar nada de noite.

Sábado, 10 de Novembro de 2007


Já me está a dar pena ver a Joana a chorar. Sempre que passo por
ela, ela começa a chorar e sai de perto de mim, além disso, desde que
nos chateámos o nosso grupo tem estado uma merda. As pessoas andam
divididas, não sabem se ficam ao meu lado, ou ao lado da Joana, mas
como ultimamente sempre que eu entro ela sai, o pessoal tem ficado
comigo. Não consigo estar parada vendo a Joana assim e por isso ainda
este fim-de-semana vou falar com ela, não gosto de a ver assim. Sinto-
me culpada e triste por a ver neste estado pois grande parte da culpa é
apenas minha. Provavelmente fui brava demais com ela, quando a sua
única intenção era ajudar-me e mostrar-me que quando mais ninguém
queria saber de mim ela estava lá para me dar conselhos.
À hora de almoço tive uma discussão com o meu pai e ele ainda
tentou levantar-me a mão, mas eu não lhe dei qualquer tipo de hipótese.
Ele já não me mete tanto medo quanto metia quando era mais pequena,

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hoje já não sou uma criança que não sabe defender-se, hoje não
permitirei voltar a sofrer os abusos que sofri na minha infância.
Estou a pensar arranjar mais um bom part-time para poder alugar
um quarto para mim e com a ajuda do meu irmão daqui a um ano talvez
comprar um T1. Quero dar o próximo passo, quero poder ser livre, sem
as chatices do meu pai, sem as confusões diárias e quero poder ser
finalmente feliz. Quero poder realizar finalmente o meu sonho e ter uma
casa só para mim. Uma casa que não me traga más recordações, que não
desperte em mim medo e insegurança mas sim uma casa que represente
harmonia, paz e amor que é o que todas deveriam representar, mas
infelizmente isso não acontece.

Quinta-feira, 15 de Novembro de 2007


Desde sexta-feira que não consigo ver a Joana, pelo que parece vou
ter de ir a casa dela. Não sei o que se passa mas já não anda com o grupo
e nem nas horas que me ausento com o Miguel ela aparece.
Também se não for eu mais ninguém se preocupa com ela… Que
nojo de gente, bem que a rapariga podia morrer que eles nem ao funeral
dela iam! No sábado irei a casa dela e só espero que não estejam os pais
porque ultimamente (ou melhor, desde que me dediquei à rádio) eles
acham-me uma má companhia para a filha e não gostam de me ver a
falar com ela.
Inacreditavelmente eu já estou a morrer de saudades da rapariga, e
não sei porquê mas não consigo tirá-la da minha cabeça e dos meus
pensamentos, que raiva. Já não consigo enganar o meu cérebro tentando
convencê-lo de que consigo viver bem sem a sua amizade e companhia.
Gostava que a minha mãe cá estivesse, assim saberia porque é que
esta rapariga me desperta um sentimento tão forte e assim ela apoiava-
me no meu projecto da rádio, assim já não fumava esta merda que me
faz tão mal. Se ela estivesse viva sentir-me-ia mais apoiada, não no
sentido das decisões que tomo ou deixo de tomar, mas sentir-me-ia mais
apoiada se alguma vez a vida se desmoronar.

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Domingo, 18 de Novembro de 2007
A conversa correu muito mal, e agora nunca mais quero ver a Joana,
nem pintada de ouro!
Fui falar com ela e expliquei-lhe que não gosto que estejamos
chateadas, pedi-lhe para voltarmos a ser amigas. E depois, assim do nada
ela perguntou-me se eu sentia alguma coisa pelo Miguel (como se ela
não soubesse que eu não me apego a nenhuma pessoa e que de vez em
quando namorisco com alguém apenas para me entreter). Respondi-lhe a
verdade dizendo que não, que não gosto de ninguém, e voltei a pedir-lhe
para voltarmos a ser amigas. Mas mal acabei de falar ela me beijou,
beijou-me como se fôssemos amantes desde que nos conhecemos,
beijou-me com uma enorme intensidade que só depois percebi que fora
amor. Beijou-me por amor. Não consegui reagir, não minto, aquilo era o
meu maior sonho, mas não serei fufa recuso-me a enfrentar meio
mundo sabendo que nunca serei aceite. Assim, quando ganhei coragem,
virei-lhe as costas e saí pois ao continuar naquele compartimento estava
a provocar sofrimento, não só a mim mas também à Joana. Antes de
fechar a porta virei-me para trás e disse-lhe que não contaria a ninguém
o que acabara de acontecer mas ordenei-lhe para se afastar de mim pois,
pensei eu, se ela quer ser aquilo eu quero contrariar aquilo.
Quando saí fui para a arriba fumar um grande canhão a ver o mar e
quando dei por mim estava a pensar no que me tinha acontecido, estava
a pensar na Joana. Comecei a sentir um enorme ardor na minha cara, no
meu coração, e lá estava eu feita parva a chorar por ela, a chorar por ser
uma cobarde com medo de ser feliz e por fazer a minha melhor amiga
sentir-se mal consigo própria. Tenho que esquecê-la ou pelo menos
fazer com que ela se esqueça de mim porque recuso-me a sair à rua
sabendo que serei discriminada e recriminada pela sociedade. Recuso-me
a ser chamada e apelidada de fufa, gay e até mesmo de deficiente.
Recuso-me a decepcionar a minha mãe que um dia ainda sentirá orgulho
na sua filha!

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Sexta-feira, 23 de Novembro de 2007
Hoje faz três anos que a minha mãe morreu, e eu estou de rastos.
Gostava que alguém me apoiasse neste momento difícil, mas já não
posso contar com esse alguém, já não posso contar a Joana.
Conheci-a quando vim morar para aqui e desde que se apercebeu
que eu ainda não tinha conseguido digerir a morte da minha mãe que me
tem vindo a apoiar nesse assunto. Ela tem sido uma ajuda fundamental
nos dias em que estou em baixo, tem puxado a minha moral para cima e,
agora que preciso, ela já não está ao meu lado. Porque é que quando algo
em mim está bem há sempre algo para o destruir? Eu não lhe contava
tudo, nem nunca o farei a ninguém, mas ela era a coisa mais parecida
com uma confidente que eu tinha. E talvez tenha sido por ela me
conhecer melhor que qualquer outra pessoa que se tenha apercebido
daquilo que sou. Mas enganou-se ao pensar que eu iria assumir isso,
estava enganada quando achou que eu iria ser feliz ao seu lado e que iria
ser feliz admitindo o que sou.
Agora ando sozinha pela casa a fazer contas ao passado e ao futuro,
a pensar naquilo que já perdi ao longo destes anos. Ainda falta muito até
conseguir ter a minha independência, até ter uma vida longe do meu pai
e do meu passado sombrio que tento esquecer há anos. Ainda hoje levei
uma enorme sova do meu pai apenas porque lhe apeteceu bater-me, isto
assim não é vida, é um inferno. Quando se fartou, peguei na bicicleta e
comecei a pedalar sem pensar no destino, simplesmente deixei que os
meus pés me levassem, deixei-os conduzir-me. Dolorosamente quem me
conduziu foi o coração e não os pés e quando eu menos esperava dei
por mim parada no meio da estrada a olhar para a casa da Joana. Esta
rapariga é tão forte dentro de mim, é tão importante para mim! Fiquei ali
parada a olhar para a casa pensando nela, no seu sorriso contagiante, no
seu olhar que inevitavelmente penetra o meu coração. Mas mal vi um
ligeiro movimento lá dentro comecei a pedalar, desta vez só parei para
pensar quando estava dentro do mar. Dei um mergulho de água gelada
para ver se as dores, não as físicas, porque essas são menos dolorosas,
mas sim as psicológicas, abrandavam. Deitei-me ali mesmo na areia a
olhar para o céu, acabando por adormecer sob o olhar fixo das estrelas.
Deixei-me adormecer para acalmar o coração que teimava enganar-me e
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quando acordei já era noite cerrada então peguei na bicicleta e decidi
pôr-me a caminho de casa.
Não consegui resistir e parei mais uma vez em frente daquela casa.
Já devia ser muito tarde pois as luzes encontravam-se todas apagadas e o
único som que se ouvia na rua era o do meu coração a querer fugir do
meu corpo. Decidi então sair da bicicleta e fiquei ali estacada em frente
daquela casa a pensar na rapariga que faz arder o meu corpo, no que
tinha acontecido e na falta que ela faz na minha vida, até ser de
madrugada. Quando me preparava para voltar a casa a Joana apareceu,
eu havia esquecido que hoje era o concerto de uma banda qualquer que
ela tanto adorava e por isso ela tinha ido ver. Quando os meus olhos se
direccionaram para ela fiquei sem reacção, não consegui mexer um único
músculo pois o coração mandava-me ficar enquanto a razão me
mandava embora. Enquanto se travava esta luta no meu interior só tinha
uma vontade que era sair da bicicleta e ir a correr em direcção aos seus
braços, dizendo-lhe que a adoro e que é com ela que eu quero ficar,
dizendo-lhe aquilo que me vai na alma. Mas em vez de obedecer ao meu
coração obedeci mais uma vez à razão e comecei a pedalar. Pedalei o
mais rápido que conseguia, pedalei como nunca antes tinha pedalado.

Terça-feira, 27 de Novembro de 2007


Ontem vieram dizer-me que a Joana anda de rastos, que já nem
parece a mesma. Eu sei que me vai custar muito, mas tenho que ir falar
com ela novamente, não vou permitir que ela fique assim, não permitirei
que se vá abaixo apenas porque eu não quero ser feliz. Vou mandar-lhe
uma mensagem e pedir-lhe que sábado passe por minha casa para que
possamos falar, e para que eu possa pedir-lhe para ser feliz já que eu não
o serei.
Gostava que por uma vez na vida eu pensasse no que quero para a
minha felicidade, e menos no que a minha mãe queria para mim.
Gostava de conseguir seguir em frente e acreditar que o mais importante
é a minha felicidade, mas não consigo, ainda não. Se ao menos a minha
mãe estivesse aqui agora poderia dizer-lhe o que sinto pela Joana e dizer-
lhe que é ao lado dela que eu serei feliz, assim veria a sua reacção. Agora
não sei o que a minha mãe quer, não sei se estarei desamparada caso
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tome a decisão de enfrentar sozinha esta sociedade que descrimina os
gays. Mas não irei assumir nada com a Joana, pois apesar de a vontade
carnal ser enorme, a minha fraqueza é ainda maior.
Desde sempre que fui uma pessoa fraca, nunca auxiliei a minha mãe
quando o meu pai lhe batia, nunca me impus ao meu pai apesar dos
diversos apelos da minha mãe enquanto este lhe batia. Desde que nasci
que sou débil e tomo o caminho mais fácil das coisas, fugindo dos meus
problemas, ignorando-os, sem nunca tomar a decisão de me opor. E este
é só mais um problema que eu não enfrentarei e sobre o qual não
tomarei qualquer decisão. Não sei, nem quero fazê-lo porque sei que
assim mais cedo ou mais tarde me conformarei com aquilo que fiz e
aceitarei melhor a minha infelicidade. Pois mesmo que assuma o facto de
eu ser gay continuarei a ser infeliz pois nunca saberei a opinião da única
pessoa que consigo amar, a minha mãe!
A morte da minha mãe irá ser sempre um peso na minha vida
enquanto eu não conseguir admitir que nunca mais a verei e que ela não
me está a vigiar. Mas isso para mim é como aceitar que ela está morta, e
eu não estou pronta psicologicamente para tal, não consigo aceitar isso
sozinha, não agora.

Domingo, 2 de Dezembro de 2007


Sou tão, mas tão parva!
Ontem a Joana veio cá a casa, como havia sido combinado, para
podermos falar um pouco aproveitando o facto de não estar ninguém
em casa. Inicialmente fomos para a sala, mas só passado meia hora de
silêncio é que começámos a falar. A Joana estava de rastos e eu consegui
logo notar isso, ela entrou e sem dizer uma única palavra, dirigiu-se para
o sofá. Sentou-se pesadamente e inclinou logo a cabeça para baixo como
uma criança quando está envergonhada e que tenta esconder a cara.
- Porque é que andas assim, já não te dás com os teus amigos, nunca
sais, já não és a mesma. Até, inclusive, me vieram dizer que as tuas notas
baixaram. O que tens? – Perguntei-lhe enquanto me preparava para
sentar ao lado dela.
- Nada, as frequências correram-me mal.
- Não, as frequências correm-te mal quando tens um 16, não um 12!
- 322 -
- Não interessa.
- A mim interessa, não gosto de te ver assim – mal acabara de falar,
limpei-lhe as lágrimas que começavam a assomar-lhe com o meu bruto
polegar.
- O que estavas a fazer na sexta-feira à porta de minha casa?
Fiquei embaraçada com esta pergunta, não fazia parte do programa
ela aparecer e não tinha nenhuma resposta plausível para tal, fiquei sem
palavras.
– E porque é que quando me viste te foste embora? – Agora estava
sem palavras, nunca me tinha ocorrido o facto de poder ser confrontada
com tal pergunta. Num pulo saltei do sofá e disse a primeira coisa que
me veio à cabeça.
- Não tinhas o direito de me beijar, eu nunca disse que gostava de ti,
e muito menos que era fufa.
- E quem é que tentas enganar? Eu conheço-te melhor do que tu a ti
própria.
Estas palavras caíram-me muito mal e quando dei por mim estava
cara a cara com ela, agora tinha uma mistura de sentimentos cá dentro,
mas o que estava pronto a sair era o sentimento de raiva. Como é que
ela se atrevia a dizer aquilo de mim. Ninguém me conhece, ninguém
sabe aquilo que eu sou.
- Tu estás redondamente enganada. Tu não me conheces, pensaste
que por seres fufa que eu também tinha que ser, mas agora dou-te uma
novidade, eu não o sou, nem nunca o serei.
- Ok, tu não és fufa, mas agora explica-me o que estavas a fazer
àquela hora estacada em frente da minha casa.
- Não tens nada a ver com o que faço eu deixo de fazer! – Tinha que
ser forte, a conversa estava a tomar um rumo que eu não estava a gostar,
o rumo da verdade.
- Então esta é a tua última palavra, não tens mais nada para me
dizer? É que se não tens, vou-me embora.
- Tenho. – Gritei desesperadamente quando a vi levantar-se do sofá
e a dirigir-se para a porta. O meu coração estava a bater tão forte como
nunca antes tinha batido, o meu desejo era consumar ali mesmo, na sala,
aquela vontade mas não podia, algo me impediu de dizer mais alguma
- 323 -
coisa enquanto ela se dirigia para a porta. Quando consegui falar corri
em direcção à porta e falei-lhe em segredo.
- Espero que não voltes a pensar que sou fufa, porque da próxima
não sei qual será a minha reacção, mas garanto-te que boa não será. E
também espero não voltar a ter esta conversa!
Fechei a porta dolorosamente pois tinha acabado de assistir à última
oportunidade de ser feliz, e deitara-a fora como se a felicidade fosse um
acontecimento que ocorre todos os dias como se a felicidade fosse algo
que eu conseguisse arranjar sempre que quisesse. Sentia-me como lixo e,
assim que dei o primeiro passo em direcção ao quarto, comecei
impiedosamente a chorar. Desde que a minha mãe morreu que eu não
chorava assim. Chorei até não ter mais lágrimas para derramar, chorei
até os meus pulmões não conseguirem oxigenar-se. Chorei por mais
uma vez ter magoado a Joana e por ter desperdiçado a minha única
oportunidade de ser feliz, algo com que sempre sonhara.
Ainda não tinha acalmado quando já estava a limpar os olhos para
sair, precisava de ir espairecer, estava a morrer dentro de casa. Peguei no
carro e fui até casa de um amigo, eu sabia que se eu lhe pedisse com
jeitinho ele conseguia arranjar-me heroína, sabia que naquela situação
aquilo seria a única coisa que me acalmaria apesar de representar um
grande risco para a minha saúde.

Quinta-feira, 7 de Dezembro de 2007


Está a ser demasiado doloroso ver a Joana. No outro dia quando fui
aviar umas compras para o meu pai deparei-me com ela na mesma fila
que eu o que se tornou muito doloroso e constrangedor. Apetecia-me
falar com ela, rir-me com ela e ouvir as novidades da universidade. Mas
agora se me quero rir tenho que imaginar o que ela diria em
determinadas circunstâncias e se quero saber como vai a sua
universidade tenho que esperar que a afilhada se descaia comigo. Ao que
parece a nossa zanga foi a melhor coisa que aconteceu porque os pais
dela andam radiantes, nunca os vi tão felizes. Se soubessem o motivo da
nossa zanga, se soubessem que a filha é fufa não andavam assim pela
rua. Se soubessem isso nunca mais punham os pés na rua, como é que
gente assim tem e educa um anjo como a Joana? Infelizmente os pais
- 324 -
dela são só um reflexo da nossa sociedade pois, quer queiramos quer
não, se olharmos para os nossos vizinhos eles são iguais ou piores do
que isto.
Estes últimos tempos têm vindo a ser degradantes para mim no
sentido da droga, e ontem acabei por abusar nos charros que fumei.
Tinha acabado de fumar o último e comecei a sentir-me mal, comecei a
sentir o coração bater muito depressa e de repente muito devagar.
Depois comecei a ver imagens, imagens da minha mãe e da vida que
levei com ela, imagens do meu irmão mas quando as imagens pararam
acordei. Estava deitada no chão e não consegui levantar-me. Esperei que
o ar gélido que se fazia sentir na altura me melhorasse. E quando já
estava melhor levantei-me e fui para o carro. E enquanto esperava que
me sentisse em condições para conduzir comecei a pensar nas coisas que
a vida já me deu e tirou. A realidade é que estou sozinha neste mundo e
que tenho o dom de afastar as pessoas que gostam de mim ou me
querem bem. Nunca consegui proteger a minha mãe do meu pai e da sua
maldade fazendo com que ela morresse de desgosto pela filha que tem.
Ela nem sequer lutou quando estava à beira da morte, ela preferiu não
sofrer mais de desilusão dos filhos. Depois foi o meu cão, adorava-o e
deixei-o ser atropelado, agora a Joana. Deixei-a ir e com ela foi-se a
minha única oportunidade de poder ser feliz, com ela foi-se o sonho de
uma vida. Será que conseguirei realizar os meus sonhos, ou nasci para
sofrer acatando ordens daqueles que só nos vêem como escravos à sua
mercê como um animal enjaulado?

Terça-feira, 18 de Dezembro de 2007


Hoje foi a festa de anos do Fábio e claro que foi uma bebedeira total
tal como manda a nossa tradição.
Estranhei a presença da Joana, já que ela ultimamente não tem saído
por causa dos estudos para as frequências. Foi muito estranho aquilo
que senti ao vê-la entrar na mesma sala que eu, por um lado apetecia-me
ir ter com ela e calar o desejo carnal que tenho desde que por ela me
apaixonei mas por outro a minha vontade era de sair pois sempre que a
vejo sou confrontada com a realidade, sou confrontada pelo meu
coração que insiste em me dizer que sou lésbica. Ela estava linda, estava
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com uns jeans pegados ao corpo e uma blusa azul e, claro, quando
entrou a sala parou para apreciá-la. Mal reparei nesta unânime reacção,
um ardor começou a consumir-me, agora de raiva pelos presentes e
pelas pessoas que a comiam e despiam com o olhar. Passado pouco
tempo deparei-me com ela a falar a uma desconhecida e rapidamente os
ciúmes consumiram-me. Como é que ela se atrevia a fazer jogos de
sedução com outra pessoa comigo na sala, ela não pode ter-me
esquecido assim de repente. Sem pensar nos meus actos peguei no
Fábio, que já andava de olho em mim há diversos dias, e comecei a
beijá-lo. Beijei-o apaixonadamente, pois o meu coração iludido pensava
que era a Joana.
Mal acabei aquela cena olhei para o lugar onde em tempos se
encontrava a Joana e deparei-me com um enorme vazio naquela
multidão, já não se encontrava lá ninguém. Deu-me uma enorme
vontade de chorar, não pelo que fizera mas pelo que a Joana estaria a
pensar de mim naquele momento. Depois, num acto maldoso aproveitei
o facto de a desconhecida estar realmente embriagada e comecei a
questioná-la sobre a Joana. Com nenhuma admiração minha a rapariga
só conseguia dizer-me que lhe doía o estômago e que via tudo às voltas
fazendo com que eu desse meia-volta e partisse. Sem dar qualquer
explicação a ninguém pus-me a caminho de casa com uma única
vontade, vontade de fumar, fumar tanto que desta vez não acordava.
O que estaria a Joana a pensar de mim neste momento? Eu ando
irreconhecível e numa outra ocasião ou com outra pessoa não teria feito
o que fiz hoje. Eu não costumo ser assim, eu quero que a Joana seja feliz
mas assim que a vi naquele jogo transformei-me deixando de reconhecer
a razão e o credível. Sei que não o deveria ter feito, mas na altura até
saboreei aquele gosto da maldade mas agora arrependo-me. Espero não
ter feito algo de muito grave pois sei que se a minha mãe viu esta minha
reacção neste momento está a derramar lágrimas por isso. Sei que ela
odiou a reacção mas, caramba, porque é que ela não está cá para me
apoiar, para me ajudar e diferenciar o bem do mal? Não é fácil ter de
passar por estas transformações todas sabendo que a nossa mãe está a
chorar por ver a realidade da nossa vida, não é fácil ter de pensar todos

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os dias naquilo que ela poderá ou não gostar. Infelizmente a vida nunca
foi nem será fácil.

Terça-feira, 25 de Dezembro de 2007


O natal foi passado normalmente, como se fosse um dia não festivo.
De manhã estive a ajudar a minha madrasta a fazer bolos e à tarde estive
a brincar com o meu meio-irmão pequenino. Felizmente o meu pai
nestes últimos dias não tem embirrado muito comigo porque da última
vez ameacei que chamava a polícia, mas só estou à espera da próxima
vez...
Quem apareceu lá em casa para grande agrado meu foi o meu irmão
Daniel e a namorada. Tivemos a pôr a conversa em dia sem que eu lhe
contasse o que tem acontecido entre mim e a Joana, mas à noite quando
fomos beber um café ele apercebeu-se que eu e a Joana não nos falámos
e perguntou-me a razão. Esperei o melhor momento e, aproveitando o
facto de a namorada dele ter saído de perto de nós para fazer um
telefonema, contei-lhe resumidamente tudo o que se havia passado
nestes longos meses da sua ausência. Para grande espanto meu ele
mandou-me ir atrás dela, mandou-me ser feliz e não pensar em como
reagiria uma pessoa que já morreu, mandou-me não pensar numa
sociedade que nos chama aberrações da natureza.
Sempre tive medo de contar ao meu irmão pois pensava que ele era
só mais uma pessoa que pertencia a esta impiedosa sociedade, pensava
que ele iria chamar-me todos os nomes que lhe viessem à cabeça e que
me diria que o lugar da mulher é sempre, mas sempre ao lado de um
homem tal como o do homem é ao lado da mulher. Mas para grande
espanto meu ele apoia-me e não me acha nenhuma aberração. Se ao
menos as outras pessoas fossem como o meu irmão e pensassem como
ele o mundo seria muito melhor. Antes de acabar a conversa ele
mandou-me ir correr para os braços dela antes que fosse tarde demais
para a nossa felicidade, mas o que ele não sabe é que já é demasiado
tarde, o meu tempo de antena já passou por mim e eu não tive coragem
de o agarrar. Quando acabou de dizer-me isso a minha cunhada chegou
e a conversa teve de acabar, mas não sem que antes ele me obrigasse a

- 327 -
prometer que eu iria tentar ser feliz, sem que antes ele me obrigasse a
prometer que iria falar com a pessoa que amo uma última vez.

Domingo, 30 de Dezembro de 2007


Ontem voltei a decepcionar uma pessoa que me ama e desta vez foi
o meu irmão. Ontem acabei por levar um grande e merecido sermão
dele.
Estava eu no meu sítio preferido a dar umas passas e a pensar no
meu futuro quando de repente ele aparece ao pé de mim. Ainda tentei
esconder aquilo mas já era tarde demais, ele já me tinha apanhado a
fumar. Pegou em mim e na minha bicicleta e levou-me precisamente
para a frente da casa da Joana. Levou-me precisamente para o último
sítio que eu queria.
- Agora quero ver o que ela vai pensar disto. E ai de ti que escondas
essa vergonha. – Disse-me quando reparou que eu me preparava
precisamente para tapar os olhos com os óculos de sol.
Saiu do carro, pegou no meu telemóvel e mandou uma mensagem à
Joana. Passados poucos segundos oiço a porta abrir e aparece a mãe dela
(de imediato pus os óculos na cara) que nos mandou embora pois a filha
não se encontrava presente.
Mal entrara no carro virou-se para mim e perguntou-me a razão
daquilo, a razão que me leva a pegar num charro e fumá-lo. Só consegui
responder àquela pergunta com um encolher de ombros. Eu sei que ele
tinha razão, sei que aquilo não me traz o que perdi, só me traz é chatices
e futuros problemas mas também me traz uma calma interior ao fumar.
Calma essa que pode ser por pouco tempo, mas por enquanto não quero
nem vou prescindir desse pouco tempo. Gostava de poder esquecer
tudo o que se passou na minha vida até hoje, mas isso é impossível, por
isso enquanto estou a fumar charros os meus pensamentos vão
mudando temporariamente de direcção.

Sexta-feira, 4 de Janeiro de 2008


Hoje recebi um telefonema muito estranho, um senhor começou a
falar comigo e ao que parece querem que eu vá na próxima semana fazer
uma entrevista a Lisboa. Parece que o director de uma grande estação de
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rádio nacional estava a ouvir o meu programa quando eu estava a
abordar o tema da nossa preconceituosa sociedade e das pessoas que
não se integram nela, como os deficientes que são vistos como os
aleijadinhos quando muitos são capazes de fazer o que nós fazemos e
como os gays que são considerados aberrações da natureza e merecem
ser exorcizados. Como é óbvio disse logo que ia, a minha sorte pode
estar a mudar e quem sabe se o dia de sair de casa está para chegar,
finalmente tenho a oportunidade de ter um emprego de verdade e não
quero perder essa oportunidade! Estou radiante, está a chegar a altura de
pôr o meu passado para trás das costas e conseguir ser feliz. Mas
infelizmente o meu drama volta a assombrar-me, gostava de poder
partilhar esta felicidade com a Joana, mas não posso. Algo não está certo
na minha vida, mas a culpa também é minha pois não me esforço para a
mudar, pois a única coisa que me assombra verdadeiramente é a
possibilidade da reacção da minha mãe, o que me assombra nos meus
actos é a omnipresença dela na minha vida e no meu pensamento.

Segunda-feira, 14 de Janeiro de 2008


Fui lá a Lisboa como havia sido combinado e, para grande surpresa
mas também satisfação minha, eu consegui o emprego. Ao que parece
eles adoram ouvir-me falar e querem que comece a trabalhar já amanhã
naquela estação. E assim, com este emprego para o próximo mês posso
mudar de casa e livrar-me dos problemas que o passado traz, posso
começar a viver o meu sonho. A única pessoa a quem pude contar isto
foi o meu irmão que ficou super contente comigo, deu-me logo os
parabéns e obrigou-me a prometer que falarei dele na rádio. E claro que
mal cheguei perto de casa invadiu-me uma enorme vontade de contar à
Joana o que me ia na alma, de contar à Joana as novidades mas não o
pude fazer. O meu orgulho não me deixou fazê-lo pois a atitude de pedir
desculpa e reconhecer que fui uma burra é muito forte para mim, não
consegui nem conseguirei fazê-lo.
Como uma vez a minha mãe me disse ―a coisa mais difícil da vida é
reconhecer que estamos errados e pedir desculpa. Poucas pessoas
conseguem‖ e agora vejo que ela estava certa, agora vejo que sou como

- 329 -
ela, que não consigo fazê-lo. Farei de tudo para que ela venha a saber o
que me aconteceu mas terá de ser por terceiros.
O meu orgulho juntamente com a minha cobardia não me permitem
falar com ela, não me permitem tentar recuperar a minha oportunidade
de ser feliz.
Talvez um dia eu ganhe coragem e ponha o orgulho de parte para ir
em busca da felicidade perto da pessoa que amo, mas só espero que
nesse dia não seja tarde demais.
Dia 19 é o aniversário da Joana e apesar de ainda não ter sido
convidada nem saber se tal virá a acontecer eu irei lá apenas para a ver e
acalmar a dor que me invade o peito diariamente.

Domingo, 20 de Janeiro de 2008


Ontem foi o aniversário da Joana e apesar de não ter sido
convidada, como já previa, decidi aparecer por lá pois precisava de um
pretexto para vê-la.
Mal cheguei perto da porta comecei a ouvir a sua melodiosa voz e
decidi então procurá-la. Acabei por encontrá-la num beco perto da sua
casa aos beijos com uma rapariga da sua escola. Nunca acto irreflectido
comecei a correr na sua direcção e separei-as, não consegui raciocinar
nem pensar em mais nada, como é que ela podia estar aos beijos com
outra pessoa. Olhei-a nos olhos e para enorme raiva minha, comecei a
chorar. O meu coração estava partido, nunca me sentira assim. Quando
caí finalmente na razão larguei-as, dei dois passos para trás, e sem aviso
prévio comecei a correr sem pensar nem me preocupar com o rumo.
Estava de rastos com o que acabara de ver e deixara de sentir o coração
pois este encontrava-se agora partido em mil e um bocadinhos.
Cheguei a casa e fui logo pegar no carro para ir contar o que se tinha
passado ao meu irmão e enquanto pisava no acelerador as lágrimas
tapavam-me a visão. Como é que isto poderia estar a acontecer, ela não
pode ter-me esquecido, ela ama-me, fomos destinadas para o resto da
vida. Limpei os olhos e de repente só consegui ver um carro parado à
minha frente.
Na tentativa de evitar a colisão, dei uma guinada no carro mas
acabei por embater num muro de uma casa que se encontrava do outro
- 330 -
lado da faixa. Com a força da colisão perdi os sentidos e só me lembro
de acordar já quando estava numa cama de hospital com o meu irmão
sentado a meu lado. A colisão fez com que eu partisse o pulso e fizesse
um traumatismo craniano, mas a minha única preocupação era a Joana,
ela não podia saber o que me tinha acontecido ela nunca mais poderia
saber o que se passava ou não comigo. Tinha que pedir ao meu irmão
para não lhe contar e quando me preparava para o fazer ela entra pela
porta do meu quarto.
Depressa o meu irmão sai do quarto sem me dar oportunidade para
lhe pedir que fique. Não queria ter que a enfrentar sozinha, não queria
explicar-lhe a minha reacção. Reparei que se encontrava visivelmente
preocupada e sem deixar que houvesse o habitual momento de silêncio
começou logo com o questionário.
- O que te aconteceu?
- Tu sabes perfeitamente que tive um acidente, agora deixa-me
descansar, depois falamos. – Disse-lhe enquanto escondia a cara
virando-a para a cadeira onde há poucos segundos se encontrava o meu
irmão.
- Não, falamos agora. E eu sei que tiveste um acidente, mas não é a
isso que me refiro porque vejo que te encontras mais ou menos bem.
Refiro-me ao ataque que te deu quando eu estava com a Luísa, já….
- … Então é esse o seu nome.
- Não interessa o nome. – A Joana começava a ficar visivelmente
decepcionada comigo pois esperava ouvir outras palavras da minha
boca, esperava que eu admitisse o ataque de ciúmes. – Eu estou à espera
de uma explicação.
- Não gostei, ok? Não gostei de te ver agarrada a ela. De onde a
conheces?
- Mas porquê? Porque é que não me deixas tentar ser feliz, porque é
que tens que te pôr sempre no meu caminho para estragar as coisas,
porquê?
Levantei-me, a conversa estava a ir para um tema muito doloroso
para ambas e pretendia fugir. Ela apercebeu-se da minha intenção e pôs-
se à minha frente, agarrando-me os braços.

- 331 -
- Responde-me. É só isso que te peço. – Começou a olhar-me nos
olhos, pois sabia que eu era uma cobarde que pretendia fugir à conversa
e ela não estava com intenções de me deixar fazê-lo. Quando a olhei nos
olhos reparei que estavam cintilantes, como se estivem prontos para
lacrimejar.
- Eu não me ponho no teu caminho, acontece, está bem? Eu não
desejo ver o que vi hoje, aliás o que vi hoje era tudo o que não queria
ver. Tu é que te pões sempre no meu caminho, tu é que entraste na
minha vida para a estragar. – Comecei a sentir um nó na garganta, o meu
corpo queria atraiçoar-me mas não podia permitir que isso voltasse a
acontecer, não agora.
- Eu não estraguei nada. Tu deixaste as coisas bem claras na nossa
última conversa. Disseste-me que não eras lésbica e eu aceitei isso mas
agora que tento seguir em frente fazes-me estas cenas. Cresce e pensa
bem naquilo que queres da vida…
- Quem te disse que eu não sei o que quero? – Como se atrevia a
fazer insinuações sobre mim, como? Eu não podia permitir que tal
acontecesse.
- Então para que foi aquela cena? É que eu não consigo perceber.
Porque não me deixas seguir a vida em frente, porque não me deixas
estar com outras pessoas?
- Porque ainda não me esqueceste. Eu bem vi que ficaste cheia de
ciúmes quando eu curti com o Fábio…
- Mesmo que isso seja verdade não tens o direito de te intrometer na
minha vida para a estragar.
- Tu não precisas da minha ajuda para isso. – Quando disse isto
senti aos mãos dela a abandonar o meu corpo. Estava a perdê-la para
sempre.
- Ainda bem que pensas assim. Por favor não voltes a fazer aquelas
cenas.
Mal a conversa acabou trocámos uns olhares. Ela transmitia-me uma
mistura de ódio, amor e desilusão. E assim, de repente, começou a
arrastar o corpo em direcção à porta. Porta essa que a vira a entrar, há
minutos, cheia de esperança e preocupação, e agora estava a vê-la sair
cheia de dor. Depois quando chegou perto da porta, disse-me:
- 332 -
- As melhoras…
Mal a vi levantar a mão em direcção à maçaneta apercebi-me que
esta era a minha última oportunidade e tinha que fazer alguma coisa pois
estava a perdê-la como um médico perde o paciente na sala de
operações. Desajeitadamente levantei-me da cama e comecei a correr em
direcção à porta para que ela não fosse embora. Depositei a minha mão
na porta, virei-me para a Joana e comecei a falar.
- Não podes ir embora. – Lembrei-me da promessa que fizera ao
meu irmão e sabia que se ainda houvesse esperança entre nós esta era a
nossa última oportunidade. Se ela saísse por aquela porta não havia mais
nada a fazer.
- A nossa conversa já acabou, deixaste bem claro o que queres.
- Eu não disse o que quero, ainda não disse o que me vai no
coração.
Senti a mão dela a direccionar-me a cara e subitamente estava outra
vez cara a cara com a Joana.
- Não tenho todo o tempo do mundo, tenho assuntos a tratar. Diz-
me o que queres para eu poder ir embora.
Era o agora ou nunca, tinha de lhe dizer o que me enche a alma. E
sem pensar duas vezes no que estava a fazer obedeci ao coração, obedeci
ao desejo que já há muito sentia. Comecei a beijá-la apaixonadamente,
beijei-a como se fosse a última vez que o faria na minha vida.
Quando os nossos lábios se separaram ficámos sem nos falar,
estávamos confusas sobre o significado daquele beijo, significaria o
começo da felicidade, ou significaria a continuação do sofrimento? Não
tive coragem de falar, limitei-me a voltar para a minha cama como uma
criança. Mal me tapei fomos interrompidas pelo meu irmão que entrara
na sala. Quando entrou ficou confuso com as nossas caras e notou que
aquilo ainda não estava resolvido.
- Acho que ainda precisam de falar. – Preparava-se para voltar a sair,
mas algo o fez parar. A Joana já estava a sair, deixando umas lágrimas
para minha futura recordação. Ficámos a vê-la sair, e quando a porta já
estava fechada virou-se para mim.
- Do que estás à espera? Vai…

- 333 -
Saltei da cama e comecei a correr atrás dela. Não a podia perder,
fomos feitas uma para a outra. Encontrei-a já no outro corredor e sem
me preocupar com o que os ali presentes pudessem pensar comecei a
gritar. Gritei pela felicidade e pelo amor que sinto, gritei o nome que
estará para sempre tatuado no meu coração. Então ela pára para que
pudéssemos falar mas continua a olhar para o vazio. Estava visivelmente
decepcionada e aquele beijo não lhe havia significado o começo de nada.
Esperava ouvir da minha boca palavras e juras de amor. Pois um beijo
não significa isso, principalmente vindo de mim. Eu já beijei muita
gente, muitos rapazes, mas nunca significaram juras de amor.
- Espera, não podemos ficar assim. – Desta vez fui eu que comecei,
sabia que tinha de ser eu a fazê-lo. – Não te podes ir já embora. Dá-me
mais uma oportunidade.
- O que me queres? Não achas que já sofri o suficiente?
- Não vais sofrer mais, prometo. Eu não vou deixar que isso
aconteça. Não a partir de hoje, de agora.
- Não fales do que sabes…
- Eu amo-te. – Gritei para que toda a gente soubesse o que sinto. Já
não tinha medo do que pudesse acontecer, nada poderia magoar-me
mais do que a ideia de não a ter ao meu lado. – Não me deixes, eu amo-
te e sempre te amei, apenas tinha medo do que sentia. Pensava que era
crime ser gay, mas agora finalmente vejo que não é. Por favor dá-me
mais uma oportunidade. Peço-te, eu não consigo viver sem ti.
- Para quê? Para que ao primeiro problema digas que não és gay
como o fizeste quando me declarei? Infelizmente para sermos felizes
nesta sociedade temos que enfrentar meio mundo. Ouvimos piadas e
gozos todos os dias, somos discriminadas quase todos os meses. Tu
ainda não estás pronta para sair do armário. Eu enganei-me quando
pensei que sim.
- Não me interessa o que os outros pensam, eu só quero ser feliz ao
lado da pessoa que amo. Por favor…
- Desculpa, já é tarde.
- Não, não é e tu sabes isso. Tu não consegues parar de pensar em
mim nem eu…
- … Pára!
- 334 -
Não lhe dei mais nenhuma oportunidade de falar, meti-me à sua
frente e voltei a beijá-la ali mesmo, em frente da preconceituosa
sociedade. Já não me importava com o que os outros diziam, agora era
eu quem mandava na minha vida.
- Fica comigo, é só o que te peço. – Pedi-lhe pela última vez, não
podia insistir mais, agora era ela que tinha a faca e o queijo na mão.
Fez-se silêncio no corredor. As enfermeiras que ali se encontravam
viraram o olhar para nós, as pessoas levantavam-se e saíam com nojo.
Não conseguiam compreender o que se passava, para uns aquilo era
pecado, para outros a maior nojeira da vida.
A Joana não reagiu, manteve-se estática, não conseguiu reagir e eu
interpretei a reacção como o final. Já não havia mais nada a fazer, tinha
que me conformar. Voltei então a correr e só parei quando já não
aguentava de dor. Parei em frente à casa de banho e decidi entrar. Dirigi-
me a um cubículo e deixei-me cair por lá. Desatei a chorar como se
alguém tivesse morrido. Como é que isto podia estar a acontecer-me? Se
Deus existisse porque é que Ele permitia que eu fosse infeliz para o
resto da vida? Porque é que eu não tinha o direito de ser feliz, porquê?
Ouvi a porta da casa de banho e tentei não fazer barulho. Ninguém
podia saber que eu estava ali, mas algo me despertou a atenção. Era a
Joana que tinha entrado, tinha vindo à minha procura.
- Sai daí. Não me faças ir buscar-te.
Limpei os olhos e obedeci. Estava curiosa sobre o facto que a
trouxera para junto de mim.
- Como é que me descobriste?
- Não sei porquê, mas toda a gente foge para a casa de banho. –
Começou a rir-se. Já há muito tempo que não a via assim. Não disse
nada limitando-me a pensar no que ela tinha dito. – Enfim, não
interessa. Porque é que começaste a correr?

S. J.
20 Anos
#32

- 335 -
Saudades
Todos os dias sinto saudades da nossa história, de certo, uma das
mais românticas e das mais estranhas que alguém já escreveu. Uma
história de amor gay e, ao mesmo tempo, a história que tanto pode ser a
de outros tantos casais homossexuais no nosso país
Saudades de sermos dois jovens que não sabiam o que era o futuro,
como um dia este interesse por ti despertou, da tua vida em geral que
passou a ser partilhada comigo, saudades do nosso namoro, dos nossos
momentos bons e menos bons, das nossas conversas sem pé nem
cabeça, do teu sorriso de quando falavas algo engraçado, das nossas
brincadeiras, da maneira como dizias o meu nome, de tudo que se
realizou e de tudo que não se realizou, da nossa amizade intensa, única e
nada errada, das nossas férias, das nossas manhãs, tardes, noites e
madrugadas, da maneira como eu me preocupava contigo, de sentir o
calor do teu corpo junto ao meu, de ser íntimo contigo, dos nossos
sábados, das vezes que fazíamos amor, de te poder falar, de ti a meu
lado, da tua presença em mim mesmo na tua ausência, de tudo o que
vivemos e do que não conseguimos viver, da minha dependência de ti,
da tua ingenuidade, da tua espontaneidade, dos nossos momentos de
loucura, de como eu desejava muito que por vezes o tempo chegasse a
parar, só para poder ficar mais tempo contigo, do tempo em que

- 336 -
sonhava fugir contigo para bem longe, dos poemas que te escrevi, da
nossa forma de esquecer por minutos o mundo, da nossa maneira
simples de ver a vida e de me sentir feliz quando estavas por perto.
Lembro-me da forma de como eu queria saber tudo sobre ti, de
como partilhavas todos os pormenores da tua vida comigo, da forma
como riamos de quase tudo e todos, da tua forma de pensar, da tua
forma de agir, das palavras que dizias e das que não dizias também, de
como valorizava imenso a tua opinião, de como tentava alcançar a
perfeição em tudo só para te fazer feliz, de como chorei no teu ombro,
das primeiras vezes, de como as nossas mãos encaixaram uma na outra,
do nosso primeiro beijo, da nossa ida ao cinema, da nossa música, do
nosso primeiro passeio que tentava disfarçar para não perceberes o
quanto gostava de ti, de escrever o teu nome no meu caderno, de estar
nas aulas a pensar em ti, da primeira vez que percebi que já não podia
viver sem ti, de quando sofri por não te ter, do teu cheiro que deixava-
me completamente fora de mim, de ver o teu mundo e de mostrar-te o
meu, da tua cara de chateado, até sinto falta dos nossos amuos,
discussões, da maneira como me tentavas mudar para ser alguém
melhor, de acordar a teu lado, do teu orgulho, da tua paciência, os
nossos medos, do receio que te tinha de te perder, das coisas que te
queria contar mas nunca contei, dos planos que fiz para nós, das vezes
que te disse que te amava.
Guardo em mim as fantasias que tive contigo, do quanto
significavas para mim, o que aprendi contigo, as vezes que gritei bem
algo o quanto gostava de ti, das situações em que interagi contigo e da
maneira como te vi como alguém indispensável na minha vida. Tal como
tu cresci e continuei a minha vida ao lado de um outro rapaz e com
quem construi uma nova história, no entanto sei que o primeiro amor
gay não se esquece e marca-nos profundamente e prefiro me lembrar de
ti como algo que marcou positivamente a minha vida. Ontem, hoje,
amanhã e sempre.

Diogo
21 Anos
#75
- 337 -
Replied Love
“Um dia fui expulso de uma discoteca depois de apanhado a fazer algo que não
devia na casa de banho!”
Foi assim que tudo começou. Era mais um vídeo em que contava
pequenas partes de mim ao mundo do YouTube, de entre tantas as
coisas que partilhei essa foi umas das que suscitou o descarrilar de
caracteres do outro lado do oceano:
“Um dia se vieres a Nova Iorque levo-te a uma discoteca!”
Vim a saber mais tarde que era muito lento a usar o teclado e tímido
o suficiente para nunca sequer ter escrito aquela frase, naquele dia achou
que deveria e teria piada. Teve piada dessa vez e em muitas outras, mas
foi assim que acendeu o rastilho.
A primeira vez que o vi foi numa foto, a foto de uns olhos que se
escondiam atrás de um feto, azul e verde, as mais belas das cores e
naturezas misturadas! Nunca na minha vida pensei um dia apaixonar-me
por uns olhos.
O desenvolvimento daquela que seria possivelmente uma bela
amizade e a ironia do destino deram-me tudo o que gosto num homem
e o sussurrar tímido das palavras “I Love You‖.
Quase dois anos depois e muitos ―I Love You‖'s depois, contra
opiniões, teorias, políticas, esperamos pela tão desejada troca de alianças,

- 338 -
a união que fará da ponte que traçamos sobre o Atlântico apenas uma
memória.
Não queremos ou procuramos a felicidade porque achamos sermos
já portadores dela. O toque raro que nos envolve é uma celebração do
Amor e a prova de que move montanhas, traça rios, faz arder o mais
belo do fogo "que arde sem se ver" mas que se respira bem fundo
sempre que podemos.
“Um dia se vieres a Nova Iorque levo-te a uma discoteca!”
Tudo começou com uma mentira. Nunca entrei numa discoteca
Nova Iorquina!
O meu Amor nasceu de uma mentira!

Dedicado ao Arthur, o homem da minha vida, o suscitar da minha


alma.

F. Oliveira
24 Anos
#140

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Gostava tanto de te dizer, mas
é-me impossível
Quando te tenho perto de mim, algo de estranho se passa. Não me
reconheço, não consigo ser a pessoa que sou diariamente. Fico
desnorteado, duma maneira mais ou menos sã. Passo dias e dias a pensar
o que te vou dizer, ensaiando cuidadosamente as palavras em frente ao
espelho, durante horas a fio, mas chegada a altura do frente-a-frente, o
meu corpo atrofia, o meu cérebro pára e os meus nervos bloqueiam-me
o corpo. Parece que tudo em mim sofre uma gigantesca reacção
bioquímica bloqueadora de palavras e gestos.
Gostava de conseguir dizer-te que gosto de ti. Da forma mais clara,
simples e sincera. Mas é tão difícil. Gostava de poder olhar-te nos olhos,
e guardar aquele momento onde o silêncio de segundos dura horas.
Sentir apenas a tua respiração num café cheio de barulhos e ruídos.
Queria ter-te sempre por perto, pois és, eras, serás, (ainda não sei), a
minha segurança. Sentia-me (sinto-me, sentir-me-ei) mais forte, perto de
ti.
Entretanto, estou a olhar para ti, e as palavras não saem. Olhas-me e
perguntas:
-"Está tudo bem? Porque não dizes nada?"

- 340 -
E todas estas inseguranças dentro de mim levam-me a dizer:
-"Sim, está tudo bem. Não se passa nada."

J. Frias
25 Anos
#113

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Sorrisos
―Café com álcool vai fazer-te mal‖ disse eu.
Fazer misturas faz mal.
...a conversa começou assim.
Foi há quase dois anos que simpatizei contigo, apenas por estares
encostada a um balcão a beber um café as 4 da manha.
Não sei se foi simpatizar porque nunca me tinha "metido" com
ninguém sem conhecer ou seja meter conversa.
Entretanto, o grupo com quem tinha ido para lá já tinha saído e eu
fiquei mais um pouco a conversar com ela.
Perguntei o nome, donde era… e, a conversa ficou mais ou menos
por aí naquela noite.
O número de telemóvel veio embrulhado num guardanapo após o
desencadear da conversa.
Conhecemo-nos num sítio GLBS. Eu nem era para ir porque
trabalhava no dia a seguir mas coincidência ou não acabei por te
conhecer.
Foi amor a primeira vista, sem sombra de dúvida! Como trabalhavas
longe, a quilómetros de casa, só vinhas ao fim de semana. Foi aí que
começámos a ver-nos e a trocar mensagens cheias de sorrisos.

- 342 -
Achei os sorrisos tão ternos que continuo apaixonada por sorrisos
desde essa altura.
No fim-de-semana a seguir encontrámo-nos num bar. Depois disso
fomos para a praia de copo na mão. Fizemos isso, dezenas de vezes,
durante o tempo em que me foi dado o privilégio de te ter comigo.
Estava uma noite esplêndida, uma lua que iluminava a praia e os
teus olhos brilhantes. É daqueles momentos que nunca se apaga da
memória, por mais tempo que passe.
Andámos na areia molhada pela beira-mar de copo na mão,
conversámos, rimos e beijei-te! Foi tão especial, tão intenso, tão
romântico, tão…
Fiquei tão mais feliz, tão mais rica depois de te conhecer; depois
daquela noite, daquele beijo, daquele amor que senti logo no início.
Andei nas nuvens durante algum tempo. Andava super feliz.
Talvez, pensava eu, tivesse encontrado aquela pessoa para a vida,
aquela pessoa que pensamos que está guardada para nós. Mas por vezes
os remos não remam todos para o mesmo lado e desta vez tinha-me
calhado a mim.
Depois daquela noite esplêndida mais noites se passaram, tão boas
ou melhores que a primeira.
Percorrias duas centenas de quilómetros para me ver. Ficava feliz
por isso!
Uma noite fiz te uma surpresa: apareci para passar o fim-de-semana
contigo. Foi tão engraçado ver a tua cara ―afinal vieste mesmo!‖.
Entrei num colorido que percebi que não tinha saída. Não querias
assumir namoro. Nunca o assumiste perante ninguém. Só mesmo no teu
coração.
Nunca disse em frente de ninguém que namorávamos. Sempre tive
uma vontade enorme de o dizer porque o sentimento que nutria por ti
era enorme, era do tamanho de um grito, um eco que se ouvia a milhas
de distância.
Fomos, ou fui, caminhando, um fim-de-semana atrás de outro. Fui
andando atrás do que sentia, até me sentir lixo, até sentir que estava a
bater no fundo, até termos as duas força para terminar com aquilo que

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nos unia. Hoje, sendo quem sou, não sei o que nos uniu tanto tempo.
Digo isto porque hoje mal falamos.
Resumi a história em traços largos porque me custa ainda falar de
pormenores. Apesar de ter deixado de te amar, existem coisas que ficam
dentro de nós para sempre.
Hoje, passados 7 meses de termos terminado, olho para trás e digo
que esta história me serviu para a vida. Ela não queria assumir o namoro
e eu, por gostar tanto dela, andei atrás até me sentir suficientemente a
bater no fundo.
E graças a ela, porque talvez por mim nunca tivesse forças para
terminar com os encontros, as noites atrás de noites, os risos, os
sorrisos, a cumplicidade que nos unia, aquilo que ela dizia que era
sempre tão especial, hoje, ao dizer, ao assumir que terminou tudo isso,
vejo-me com outros olhos.
Fui feliz. Tive momentos, muitos felizes, fiz de tudo para dar certo.
Posso dizer que lutei pela pessoa que pensava ser a mulher da minha
vida. Errada ou não ainda não foi dessa vez.
Sinto que precisei de viver aquilo contigo.
Cresci muito como te disse tantas vezes. Aprendi que na tua
inteligência de ver as coisas e na simplicidade com que resolves outras
que tudo tem o seu tempo e o seu sentimento.
Afastam-nos quase à força. Agora a vives a cinco dezenas de
quilómetros de mim (eu sempre disse que virias para a minha cidade). A
vida acabou por te trazer para aqui mas não para seres feliz comigo, mas
sim porque o destino te queria oferecer outro tipo de felicidade.
Lembro como se tivesse sido ontem quando disseste: ―sabes o que
estamos a fazer?‖ E eu respondi ―não!‖ (Estávamos apenas a conversar)
- ― Estamos a namorar!‖
Foi a única vez que a palavra namorar saiu da tua boca e fez tanto
sentido...
Mas no dia a seguir não agias como tal, não sentias como tal. O mais
que te faltava tinha eu de sobra...
E a história de amor que tinha construído no meu coração andava a
morrer aos poucos até terminar definitivamente.

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As coisas começaram a ficar estranhas. Estavas cada vez mais
distante. Disse-te isso passado mais de meio ano de estarmos juntas e
respondeste que estava tudo bem.
Estava preocupada mas o Amor continuava lá. Sentia que talvez
fosses mesmo o grande amor da minha vida.
Culpei me tantas vezes por não sentires o mesmo por mim, mas
quem sou eu para te obrigar a sentir, para te fazer ver que poderíamos
ser felizes, não à minha, não à tua, mas à nossa maneira.
Tive esse sentimento de culpa durante algum tempo.
Tal e qual como este texto, a história teve avanços e recuos, teve
desistências da minha parte, mas acima de tudo era como se nunca
quisesse acreditar e voltava a ir ter contigo, voltava a dizer que te amava
que te queria com todos os coloridos a que na altura tinha direito.
Uma história que teve sequelas para o resto da minha vida porque
foi um amor forte.
Ainda hoje não consigo fazer certas coisas sem me lembrar de ti,
sem me recordar de como as fazia contigo, de como era tão diferente,
tão intenso contigo.
Um amor que colori com as mais belas cores com que se pode
Amar alguém.

Livre-Mente
27 Anos
#50

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Simplesmente eu
Por onde começar? Talvez pelo fim, onde tudo culmina em reflexão.
Sentada na minha cama, de portátil ao colo, fumo um ―cigarro‖ e
revejo na minha memória os sentimentos e vivências mais recentes…
esta noite! Esta noite foi o aniversário da minha amiga Verónica;
jantarada para cinco; álcool e petiscos à mesa; conversa fiada; animação e
boa disposição em torno de uma razão que todas atingíamos, a alegria de
comemorar a amizade partilhada. Amizades recentes, amizades sinceras,
amizades que consomem e me complementam.
Foi numa noite de Inverno que me cruzei de novo com a Rute,
colega de faculdade, num convívio social entre amigas que ela revelou
ter interesses que me eram ocultos:
Rute - Já foste ao Maria?
Eu - Não. Mas tenho curiosidade de conhecer o espaço.
Rute - Tu qualquer dia viras lésbica. - disse ela em tom de
brincadeira.
Eu – Olha, digo-te o mesmo. – e sorri.
Rute – Mas eu nunca te disse o contrário.
Eu – Então, se não disseres a ninguém eu digo-te o mesmo.
Olhámo-nos mutuamente e sorrimos em cumplicidade, cientes que
durante e após quatro anos de companheirismo na faculdade nunca nos

- 346 -
tínhamos partilhado efectivamente. Nesse dia tudo mudou para mim, até
ali nunca tinha tido coragem de revelar com tanta certeza que sentia em
mim um sentimento profundo por mulheres.
Outrora, havia partilhado este meu desejo com a única pessoa que
eu considerara de confiança, o meu namorado, mas não teve o mesmo
impacto pois tinha consciência que apenas o fizera para de alguma forma
me libertar do aperto que sentia e para o preparar para o que poderia
acontecer no futuro – eu me apaixonar por uma mulher. Surpreendeu-
me, devo dizer, namorámos durante sete anos, dos quais todos
intensamente vividos, partilhados, sentidos, e ele nunca me cobrou nada
por isso, aliás sempre me apoiou e compreendeu a minha angústia de
sentir algo que não seria aceite quando expresso aos demais.
Mas não foi igual. O sentimento que tive quando revelei à Rute foi,
simplesmente, de alívio pois senti que não estava sozinha, que existem
outras pessoas como eu e que, tal como eu, não se permitem identificar
pela multidão que observa. A partir daí, e porque necessitava de viver
novas experiências e de conhecer outras realidades, por vias de ter
terminado o namoro, iniciei um processo de criar amizades com pessoas
similares a mim. Encontrei realidades completamente diferentes, mas
aprendi. De cada uma delas retiro hoje um pedaço do que sou e da
confiança que em mim criei. Sinto-me bem! Contudo, entrei por
caminhos que desconhecia, passei a frequentar a noite lisboeta,
explorando os locais propícios a encontros interessantes, experienciei o
álcool, as drogas, tudo o que não me permitira até então, por me sentir
reprimida dentro de mim mesma e anulada por uma relação a dois. E
gostei! Sentia o corpo cansado mas residia em mim uma força de viver
como jamais sentira. Pela primeira vez na vida conseguia dizer:
- Amo mulheres e sinto-me confortável nesse papel.
Agora, após uma noite em festa, sentei-me, abri o portátil e pus-me
a pensar… nas pessoas que magoei para conseguir atingir este estado de
liberdade.
O meu namorado, e agora mais que nunca eterno amigo, que me
apoiou e que me apoia é uma pessoa, desde sempre, pacata, humilde
que, embora algo egocêntrico, nunca me falhou com nada que agora
possa identificar e consiga lamentar. Foi o meu primeiro confidente, a
- 347 -
primeira pessoa a quem eu expus a possibilidade de eu, mulher, me
apaixonar por outras mulheres. A primeira pessoa, cuja reacção foi a de
tentar perceber em vez de condenar. Foi a ele que eu me partilhei e foi
ele que me abriu as portas para que eu me partilhasse hoje em maior
escala, contigo caro leitor.
Guardo-o bem dentro do peito, porque o amo de uma forma que
transcende o amor carnal, amo-o porque o considero uma pessoa pura,
amo-o porque mesmo que já não sejamos um só, continuamos a dividir
uma cumplicidade sem igual. Mas ele continua a desejar-me e eu magoo-
o por não partilhar desse sentimento, por ser egoísta ao não querer
prescindir da sua amizade incondicional, por não me permitir a uma
remota hipótese de o voltar a amar como outrora amei.
Conheci-a pela rede do futuro, a Internet, num programa banal de
encontros online e iniciámo-nos num mundo que ambas
desconhecíamos. Começámos por trocar mensagens online, passamos
aos SMS‘s, surgiu o telefonema. Eram 00:30h do dia 01 de Janeiro de
2009, quando lhe liguei:
Raquel – Oi. – disse muito atrapalhada.
Eu – Olá. Decidi ligar-te para te desejar bom Ano Novo. – atirei
para o ar, tentando disfarçar o meu nervossismo.
Raquel – Obrigada, para ti também. Onde estás?
Eu – Olha estou na estação do metro, prestes a apanhá-lo para ir ter
com um amigo para irmos sair. – havia deixado minhas irmãs e meus
pais no Terreiro do Paço onde presenciáramos juntos, pela primeira vez,
a transição de um ano com espectáculo pirotécnico e muito champanhe.
Raquel – Ok. Eu estou com uns amigos no ―FilRouge‖ a festejar.
A conversa fluiu nessa noite, íamos comunicando gradualmente de
forma a tentarmos conhecer um pouco mais dos mistérios uma da outra.
Tempos depois, já falávamos em sentimentos, esses que baseados
em mera partilha de pensamentos, personalidades e imagens. Não
existira qualquer contacto directo, olhos nos olhos, até então. Mas o que
sentíamos era muito forte, era curiosidade de saber mais para além do
ecrã e do auricular. Combinamos encontrar.
Ela estuda em Vila Real, apanhei o comboio ao sair do trabalho e
parti em busca de sentir aquela pessoa real aos meus olhos, não existiam
- 348 -
expectativas nem intenções, apenas queria compreender o porquê
daquela pessoa me causar tanto impacto. Foi lindo!
Apercebi-me pela sua timidez e sensação de conforto na minha
presença. Compreendi que se sentia na mesma situação que eu, que não
me cobraria nada do que eu não quisesse dar e que apenas daria o que
sentisse, não seria nada estranho, tudo sincero.
Surgiu o beijo, as carícias, o toque, o acto consumado. Não me senti
estranha, não me senti a representar nenhum papel, simplesmente,
deixei-me levar pelo meu corpo e pelo que sentia no momento, e foi
lindo. Apaixonamo-nos! Namoramos durante, sensivelmente, quatro
meses, em que nos consumimos e exploramos tanto quanto era possível.
Contudo, a distancia e a minha actual paz de espírito não permitiram
uma continuação saudável para essa relação, e culminou em
desastre…magoei-a! A certa altura dei por mim a querer viver livre
comigo mesma, o que encontrara nela já não era o suficiente para me
descobrir, precisava de ter outras experiencias, conhecer novas pessoas,
sentir novas sensações, e não me permitia a isso enquanto tivesse uma
pessoa a meu lado. Tomei uma decisão e optei por mim!
Egoísmo, excêntrico, este que magoou duas pessoas que tanto me
fizeram bem, que ainda lutam para me fazer sentir feliz, que ainda me
amam e me dão a mão, apesar de tudo.
Terminou, ela chorou, eu senti e lamentei a minha opção mas não
me arrependi.
Meus pais não sabem. Penso eu que não sabem. A verdade é que
creio que a minha mãe já se apercebeu pois questiona-me sobre assuntos
não banais, dá-me conselhos específicos, mas no entanto, não me
confronta com a situação. Presumo que por ser um assunto delicado, ou
mesmo porque acredita que possa ser apenas uma fase e que mais cedo
ou mais tarde lhe vou aparecer à frente com um novo namorado.
Sinceramente, não consigo decifrar o que lhe vai na cabeça, mas eu
sinto-me a vontade de me expor assim que a outra parte se sentir
confortável em saber, seja a minha mãe, o meu pai ou qualquer uma das
minhas três irmãs.
No entanto, o que dizer quando questionada? Gosto de mulheres!?
Gosto de Homens!? Gosto de ambos!? Parece algo impessoal mas a
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verdade é que nem eu sei. Tenho a certeza que os meus sentimentos
podem fluir tanto por uma mulher como por um homem, pois já
experienciei ambos. Embora que sentidos de formas diferentes, e que a
minha atenção neste momento esteja virada, essencialmente, para o
feminino, eu não me consigo identificar um estatuto. Portanto, como
explicar? Como irei eu expor que efectivamente o corpo masculino não
me é estranho e que ao mesmo tempo a harmonia espacial da mulher me
cativa? Como irei eu condicionar a minha preferência ao sexo masculino,
se os meus sentidos alertam na presença de uma mulher interessante? È
deveras complicado, mas acredito que faz parte do processo de
exploração pelo meu eu. Se eventualmente me apaixonar vou dar-lhe
tudo o que tenho para a fazer sentir bem a meu lado, seja homem ou
mulher. É a única certeza que tenho no momento.
Agora vagueio as ruas com a Verónica, amiga que partilha comigo
uma fase da vida em exploração, conheci muitas pessoas novas, partilho
vivencias, espaços, momentos. Estou a conhecer-me e a permitir que me
conheçam como sou, sem baixar a cabeça e aguardando sempre alguém
que se permita e nem que por um sorriso partilhado, ou uma palavra
proferida, me permita chegar mais além, conhecer-me melhor!
Hoje, sou ser complexo e intrigante mas deixei de ser fechada em
mim mesma.
Expus-me!
Permiti-me á liberdade de ser livre, de ser mais!
Permiti-me ser, simplesmente, eu!

Nicole P.
24 Anos
#147

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E o meu coração explodiu...
A minha história de amor – se é que algum dia eu poderei chamar
de história de amor – começou a 4 de Janeiro de 1996. Já lá vão alguns
anos e de uma forma resumida irei agora tentar contar como é que o
suposto amor bateu um dia à porta do meu coração. Tudo aconteceu no
mesmo ano em que estava fascinado pela novela brasileira Explode
Coração onde o tema principal da novela era o amor proibido entre duas
pessoas. Na novela – que marcou-me imenso e que até hoje lembro-me
perfeitamente – a jovem Dara apaixonou-se pelo Júlio Falcão e durante
toda a novela os dois batalharam imenso para no final ficarem juntos e
viverem felizes para sempre. E porque é que a história deles não foi uma
história fácil? Porque ambos viviam em mundos diferentes. Apesar de
serem duas pessoas, de carne e osso tal como todas as outras pessoas
deste mundo, eles eram completamente diferentes. Ela, a jovem e bela
Dara, era cigana e tinha que sujeitar-se às várias regras da religião cigana.
Estava prometida a um homem cigano e era com esse que teria que
casar. Ele, era um homem simples, um empresário que após vários
relacionamentos fracassados, descobre finalmente o amor ao conhecer a
cigana. E se ambos se apaixonaram, porque é que não puderam logo

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viver felizes para sempre? Porque é que ao longo dos vários capítulos da
novela, houve imenso sofrimento de ambas as partes? Porque é que as
famílias foram contra o amor lindo de eles os dois? Porque?
Simplesmente porque aos olhos de todos, esse amor era proibido. E a 4
de Janeiro de 1996, com apenas 14 anos eu tardiamente entrei na idade
dos ‗porquês‘ e da pior forma possível, percebi o verdadeiro significado
do ‗amor proibido‘.
Foi amor à primeira vista. Assim que o vi o meu coração explodiu.
Senti ele bater tão forte como nunca antes tinha batido. Ao olhar para
ele, para aquele ser único, para aquele que durante três (ou mais) anos
morou no meu coração, eu senti uma enorme explosão de sentimentos
que até então eu desconhecia por completo. Tudo à minha volta deixou
de existir e naquele momento o mundo passou a ser habitado por apenas
duas pessoas. Eu, ele e mais ninguém. E se por um lado aquela estranha
sensação era boa demais, por outro eu estava com medo. Nunca tinha
passado por uma situação daquelas e com tanta emoção junta até tinha
medo de me sentir mal. De cair ao chão por sentir as pernas fracas, de
morrer desidratado por em pleno Inverno transpirar imenso, por sentir
uma estranha febre vinda assim do nada. Eu estava a ficar doente. Uma
gripe chamada Amor atacou-me assim de repente e eu apaixonei-me!
Pela primeira vez na minha vida, ao ver aquele belo rapaz que estava
apenas a uns poucos metros de distância, sem que eu estivesse
preparado para aquilo, o meu coração deixou-se levar por um
sentimento que até então eu não acreditava que existia na vida real.
Sempre pensei que isso apenas seria possível em filmes e em novelas.
Pois aí sim, tudo era possível. Numa questão de segundos eu
simplesmente apaixonei-me e apesar de em nenhum momento ele ter
olhado para mim, naquele dia eu fui para casa com um outro sorriso.
Cheguei a casa ainda com o coração a bater a toda a velocidade. Eu
consegui ouvir os seus batimentos, eu consegui sentir o sangue a correr
por todas as minhas veias, eu consegui sentir coisas estranhas em todo o
meu corpo que me deixaram completamente arrepiado. Eu tremi, mas
não de frio. Tremi sem saber o porque daquilo estar a acontecer e
quando acordei para a realidade, quando percebi que afinal eu não estava

- 352 -
sozinho no mundo com ele, em estado de choque, trancado na casa de
banho, eu olhei para o espelho e disse para mim mesmo:
— Que estúpido que eu sou! Que coisas estranhas ando eu a
pensar? Olha para ti… Tu és homem! Ele é homem… e nada do que
possas pensar pode vir a ser possível.
E chorei. Chorei como há muito não chorava, trancado na casa de
banho e caído no chão. Eu era muito novo, não estava preparado para
aquilo e num só dia tinha passado por momentos que nunca pensei
viver. Num só dia, num espaço de horas, eu apaixonei-me e eu desiludi-
me com esse amor. Pois nesse mesmo dia percebi que o meu amor não
iria ser correspondido. Eu percebi que eu não era nenhuma cigana. Não
era a jovem Dara que estava sempre presente no meu imaginário e ele,
ele não era o jovem e belo empresário. Não éramos os personagens da
novela, mas uma coisa era certa. Numa coisa a minha história e a história
dos dois apaixonados da novela tinha algo em comum. As nossas
histórias eram proibidas. E aos olhos de todas as outras pessoas, o amor
que eu sentia por ele não ia ser bem visto. Mas para quê desistir logo no
início? Para quê começar essa história logo a render-me sem nem
primeiro tentar? Porque? E foi assim que eu cresci. Aos 14 anos deixei
de ser o menino que era. Aos 14 anos eu limpei as lágrimas do meu
rosto, eu levantei-me do chão já a saber que com toda a certeza iria cair
muitas outras vezes, mas esse pensamento não deixou-me fraco. Muito
pelo contrário. Se calhar deu-me até mais forças para não desistir. Aos
14 anos eu entrei numa luta. Numa luta por uma causa talvez impossível
mas lutei. Lutei porque lá bem no fundo, lá bem guardado num recanto
bem escondidinho do meu coração eu tinha esperanças. O amor…
podia afinal não ser proibido.
O seu nome era Frederico mas só ao fim de três meses é que fiquei
a sabê-lo. Desde o primeiro dia em que o vi, comecei a vê-lo com muita
frequência quase todos os dias. Ele estudava na mesma escola que eu e
para ir para casa percorria o mesmo caminho. Por isso, todos os dias eu
tinha a sorte de cruzar-me com ele, de olhar para ele e de aos poucos
ganhar coragem para dizer-lhe aquilo que sentia. Eu já sabia que a minha
história não ia ser fácil. Sabia disso desde o primeiro dia em que o vi mas
isso não me intimidava. Todos os dias acordava cheio de forças para
- 353 -
começar mais um dia e para, quem sabe, chegar ao pé dele e falar com
ele. Na minha perspectiva, eu cheguei a achar que ele até já sabia aquilo
que eu sentia por ele, pois apesar de em nenhum momento eu ter tido a
coragem de falar, sempre que eu me cruzava com ele, ficava
completamente embasbacado a olhar. Os meus olhos brilhavam, o meu
coração batia e se da minha boca não saíam palavras, tudo em mim
demonstrava o amor que eu sentia por ele. Só um cego é que não
percebia isso.
Várias foram as vezes em que estive para chegar ao pé dele e tentar
dizer-lhe aquilo que eu queria que ele soubesse. Em todos os momentos
em que o via, ele sempre pareceu-me uma excelente pessoa. Estava
sempre bem-disposto e estava sempre a sorrir. O seu sorriso era lindo,
os seus olhos, cor-de-mel deixavam-me enfeitiçado e havia uma
esperança, uma ridícula esperança que se eu contasse, ele iria retribuir-
me todo o amor que eu senti por ele. Eu era ingénuo, eu chegava ao
ponto de realmente achar que existia um Pai Natal, apesar de na minha
vida nunca ter havido um Pai Natal. Eu acreditava que se ele soubesse
aquilo que eu sentia por ele, que às escondidas e apenas em palavras
escritas no meu diário que eu o amava, eu acreditava que ele iria ser o
meu príncipe encantado. Eu não estava num mundo de fantasia, a minha
vida não estava rodeada de fadas e duendes, não estava num belo paraíso
e por vezes até cheguei a pensar que estava era no inferno. Mas apesar
de o meu mundo não ser o mundo das belas histórias de encantar, eu
acreditava no príncipe encantado e sabia, que por trás daquele ar de
homem simples, o Frederico era um verdadeiro príncipe. Um príncipe
que no seu cavalo branco iria levar-me para locais que eu nunca pensei
existir. Para locais onde o sofrimento não existia, onde ninguém sabia o
que era a tristeza. Onde a alegria, a paz e o amor reinavam a 100%.
Enfim! Ao apaixonar-me a minha capacidade de inventar histórias
tornou-se bem maior e por causa disso, eu consegui sem qualquer tipo
de material construir um mundo só meu. Um mundo paralelo onde eu
ele vivíamos felizes para sempre. Mas o que é o ‗ser feliz para sempre‘?
Por incrível que pareça, ele foi o primeiro a falar comigo. Sim! Foi
verdade. Não foi fantasia nem uma história inventada por mim. Foi
mesmo ele que um dia, sem que eu estivesse a espera, ele chegou ao pé
- 354 -
de mim e falou comigo. Fez aquilo que eu tanto ansiava fazer e que
nunca arranjava coragem para isso. É certo que ele não chegou a dizer
aquilo que eu queria ouvir, nem mesmo um olá chegou a dizer. Mas que
importância isso tinha? O importante é que por breves momentos ele
dirigiu-me a palavra e fez com que eu me sentisse nas nuvens. É ridículo.
Eu sei! Mas aquele foi mais um dos muitos momentos que eu nunca
esqueci. Foi a 26 de Fevereiro de 1996. Como já era habitual, por volta
das 14h eu estava a caminho da escola e ele fazia o caminho inverso para
ir para casa. Era assim que eu todos os dias o via, cruzava-me sempre
com ele e os meus olhos deixavam-se perder na sua imensa beleza.
Olhava-o dos pés a cabeça e da cabeça aos pés. Não tinha receio de dar
nas vistas, pois lá no fundo, o que eu queria era que ele realmente
reparasse em mim e reparasse que ele era importante para mim. Mas ele
nunca olhava. Estava sempre acompanhado com os seus amigos e
principalmente, pelas amigas. Ele constantemente estava com uma
diferente. Nunca cheguei a perceber se namorou algumas delas, mas a
verdade é que ele estava sempre muito bem acompanhado de belas
raparigas que claro, tal como eu, tenho a certeza que sentiam uma certa
atracção por ele. E não era para menos! Ele era sem dúvida o jovem
mais popular da escola, o mais bonito e por isso era muito fácil qualquer
um apaixonar-se por ele. Mas nesse dia tudo foi diferente. Ao contrário
de todos os outros, nesse dia enquanto passávamos um pelo o outro, ele
chegou bem próximo de mim, parou, olhou para mim e perguntou-me
as horas. Sim! A primeira vez que ele falou comigo foi para me
perguntar as horas. E eu como fiquei num estado de paralisação total
nem consegui falar. Fiz figura de parvo pois ao ver ele falar comigo
fiquei sem qualquer tipo de reacção e muitas foram as cenas que
passaram pela minha cabeça. Por momentos achei que aquele era o
momento ideal para declarar o meu amor. Achei que com isso iria ter a
sorte de poder abraça-lo, toca-lo, beija-lo, enfim, muitos filmes passaram
pela minha cabeça mas nenhum deles se tornou real. Como não tinha
forças nem para falar, mostrei-lhe o meu relógio. Ele próprio viu as
horas e depois terminou o momento por me dizer obrigado e seguiu o
seu caminho. Assim que se afastou eu olhei para trás e belisquei o meu
braço para ter a certeza que não estava a sonhar, que aquilo tinha
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acontecido e só a dor no braço fez com que eu reparasse que aquilo
tinha mesmo acontecido. Ele falou comigo. Eu ouvi a sua voz. Já tinha
tido a oportunidade de ouvir a sua voz mas foi diferente. Ele falou
directamente para mim. E agora, o pensamento que surgiu logo de
seguida era quando é que eu iria ter coragem para falar com ele? Mas
esse momento não demorou a chegar.
No dia em que fez três meses em que o vi pela primeira vez, algo de
extraordinário aconteceu na minha vida fazendo com que ela nunca mais
fosse a mesma. Desde muito pequeno que eu percebi que não era igual
aos outros meninos da minha turma. Sempre percebi que havia em mim
uma grande diferença que sempre fez com que eu afastasse-me dos
meus colegas, por ter medo que eles descobrissem essa minha diferença.
Ao contrário deles, dos outros rapazes da minha turma, eu não me
interessava por nenhuma rapariga. Não sentia qualquer tipo de
sentimento por nenhuma delas, a não ser o da amizade. Já o meu
sentimento por eles, sempre foi diferente. Sempre olhei para eles de uma
forma diferente e sempre sonhei que um dia, eu iria poder andar de
mãos dadas com um deles. Que iria poder beijar um deles e que iria ser
feliz nos braços de um deles. Mas isso nunca passou de sonhos. Desde
que eu me lembro – a partir dos seis anos – eu percebi que era deles que
eu gostava, e aos 14 anos, sem saber o que era na verdade o acto sexual,
eu já tinha a certeza absoluta que era com um homem que eu queria ter
essa minha experiência. Não havia qualquer tipo de dúvidas mas… para
que todos os meus sonhos pudessem um dia acontecer, eu não poderia
permanecer-me em silêncio para toda a vida. E por isso, se estava
perdidamente apaixonado pelo Frederico, eu teria que lhe dizer. Teria
que tentar, pois quem sabe, eu poderia ser surpreendido pela positiva
com essa minha revelação. Se eu não tentasse, eu nunca iria saber se
assim seria.
A 4 de Março de 1996 – mais outra data que esta bem marcada no
meu diário cerebral – eu tive a coragem de falar com ele mas às vezes
questiono a mim mesmo se realmente foi coragem ou loucura. Foi um
pouco dos dois. E como é que tudo aconteceu? No final de um dia de
aulas, o meu destino como já era habitual, foi regressar a casa, trancar-
me no meu quarto, sentar-me na minha cama e pegar no meu diário para
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poder relatar os acontecimentos do dia, que eram quase sempre iguais.
Quase todos os dias eu o via. E sempre que o via, ficava completamente
enfeitiçado e por muito que tivesse vontade de chegar ao pé dele, essa
coragem nunca chegava. E enquanto escrevia essas mesmas situações no
meu diário, de repente tive uma imensa vontade de ir a rua comprar
mais folhas para o meu diário. As folhas nem eram urgente, porque o
meu dossier estava cheio delas, mas como se de uma força sobrenatural
se tratasse, algo dizia que eu naquele momento tinha que ir a rua. Era
obrigatório a minha ida a rua por isso optei por ir à papelaria do centro
comercial para comprar as tais folhas. É claro que depois acabei por não
comprar folha nenhuma, até porque cedo descobri que a minha razão
para sair de casa não era para gastar dinheiro, era sim para voltar a
encontrar-me com ele. Quando eu estava para entrar no centro, o
Frederico estava a sair e ao contrário de todas as outras vezes que o via,
ele naquele momento estava completamente só. Não tinha nenhum
amigo e nem mesmo nenhuma das suas admiradora ao seu lado. Ao vê-
lo só e a caminho não sei da onde, pois para casa ele não ia, eu resolvi
segui-lo. Sabia que aquilo era loucura, mas no momento eu não pensei
em mais nada. Ele estava só e pela primeira vez tinha a oportunidade de
falar com ele e por isso, não podia deixar escapar essa oportunidade.
Segui-o como se tratasse de uma perseguição entre polícia e ladrão. A
distância entre nós não era muita. As vezes, quando o meu coração
demonstrava estar preparado para falar com ele, eu acelerava o meu
passo e tentava chegar mais próximo mas depois percebia que afinal não
estava preparado para aquilo e deixava-me ficar para trás. E assim foi
durante muito tempo e enquanto feito um doido eu seguia-o, tudo
passava pela minha cabeça. O lado bom e o lado mau de toda aquela
situação, passavam vezes sem conta a frente dos meus olhos e por isso,
estava sempre numa grande indecisão. Ele era lindo! Era sem dúvida
alguma o rapaz mais lindo que alguma vez eu tinha visto. Tinha um
corpo fenomenal, cabelos compridos e muito bem arranjados, uma
barba por fazer e vestia-se tão bem. Tudo nele era encantador e deixava-
me completamente desnorteado, sem saber o que fazer. Até então, as
minhas paixões eram paixões irreais. Eu apaixonava-me pelos actores
das novelas, dos filmes. Eu era doido pelo actor Edson Celulari que na
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altura interpretava o Júlio Falcão da novela Explode Coração. Ele era o
meu ídolo e apesar de muito sonhar com ele, de imaginar-me no papel
de Dara ou de Linda Inês da novela Fera Ferida, eu não sofria com isso,
pois sabia que apesar de ele ser de carne e osso, nunca seria na verdade
uma pessoa real, pois eu nunca teria a possibilidade de estar com ele.
Nem com ele, nem com o Tom Cruise ou Brad Pitt. Mas com o
Frederico era completamente diferente. Ele era de carne e osso. Ele era
real e estava sempre tão próximo de mim que seria possível tocá-lo. E a
minha vontade de o tocar, de sentir os seus braços à minha volta era
tanta que eu as vezes avançava para chegar mais próximo dele naquela
de o chamar, de pedir a sua atenção. Mas depois não tinha coragem.
Aquilo que eu pretendia fazer era loucura. Era talvez um acto suicida e
antes de cometer esse acto, tinha que analisar muito bem todas as
consequências até porque eu sabia muito bem, essa minha atitude iria
fazer de mim uma pessoa completamente diferente. Iria fazer com que
eu revelasse ao mundo, que eu não era igual aos outros meninos. Eu era
um homem e aos olhos de todos, o homem deveria apaixonar-se pela
mulher e era pela mulher que deveria sonhar em ter uma vida cheia de
amor e felicidade. Mas eu não conseguia pensar sequer nessa
possibilidade. Eu tinha a noção de que se fosse normal tudo seria mais
simples, que caso apaixonasse-me por uma rapariga, não andava no
grande dilema se devia ou não revelar os meus sentimentos mas… eu
considerava-me na mesma uma pessoa normal só que gostava de
homens. Eu era normal como todos os outros só que gostava dele.
Talvez de uma forma que não deveria gostar mas inevitavelmente eu
gostava e pensava sempre no mesmo. Como é que ele iria reagir a essa
minha revelação? Como é que ele sendo um homem, iria reagir sabendo
que outro homem passava os dias e as noites a sonhar com ele? A
pensar uma vida a dois com ele? Com certeza iria reagir mal, iria
ofender-me, iria bater-me, humilhar-me a frente de todas as pessoas. E
por causa desse pensamento, apesar daquele ser o momento ideal para
falar com ele, a coragem era quase nenhuma. Ou melhor, o medo de ser
rejeitado e humilhado era demasiado grande mas… Depois algo de
muito querido aconteceu e fez com que eu perdesse esse medo e
ganhasse ainda mais coragem. Ao passar por uma paragem de
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autocarros, uma pequena menina, talvez com uns cinco anos, fica
encantada com o Frederico e começa também ela a segui-lo. A mãe vai
atrás da filha que por ele apenas ter sorrido para ela, fez com que a
criança ficasse fascinada. O Frederico teve depois uma atenção tão
grande com aquela menina que era impossível ele chegar ao ponto de
bater, de gozar, de humilhar-me. Com aquela criança, eu percebi que o
Frederico tinha um enorme coração. Ele jamais iria magoar-me e se eu
saísse dessa história magoado, era apenas porque ele não tinha como
corresponder a esse meu amor. E mesmo já ciente disso, eu ganhei
coragem, aproximei-me mais dele e chamei-o.
— Desculpa — disse eu todo atrapalhado, a transpirar, a gaguejar e
ainda sem acreditar naquilo que estava a fazer. — Desculpa eu… não sei
se reparas-te mas eu ando a seguir-te.
— Sim! Eu reparei. — disse ele com um certo afastamento.
Por momentos pensei que ele estava com medo de mim, pois não
era normal uma pessoa andar a seguir outra e depois chegar ao pé dele
para lhe dizer isso. Será que ele achou que eu era um ladrão? Que estava
ali para o assaltar e que talvez por isso ele quis criar ali um certo
afastamento para preparar-se para fugir, ou quem sabe bater-me? Enfim,
eu acho que ele jamais desconfiou aquilo que realmente iria acontecer.
— Eu… eu ando na mesma escola que tu.
E lá tive que dizer-lhe isso para ele não me achar um louco disposto
a fazer-lhe mal. Mas ao dizer isso fui eu que fiquei surpreendido. Ele
disse-me que sim, que sabia que eu andava na escola dele e nesse
momento o meu coração encheu-se de alegria isto porque se havia
momentos em que eu achava que estava a dar demasiado nas vistas
quando ficava a olhar para ele, havia também outros momentos em que
eu achava que era invisível. Que eu não existia para ele e para mais
ninguém. E quando ele confirmou que sabia que eu andava na escola
dele, isso para mim deu-me ainda mais coragem de prosseguir com
aquilo que eu tanto queria dizer-lhe.
— Eu gosto de ti! — disse com as pernas a tremer e com um
enorme receio de ser agredido por ele mas por momentos ele não teve
qualquer reacção. Ficou a olhar para mim como se não tivesse ouvido
aquilo que eu disse, ou talvez como se eu tivesse falado uma outra língua
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que ele não conseguia perceber. Mas eu continuei: — Eu apaixonei-me
por ti!
E aí sim! Ele teve uma reacção. Ele não se riu da minha cara. Mas
sorriu. E não foi um sorriso de gozo, foi mais de surpresa. Aquela
revelação apanhou-lhe assim desprevenido e a sua reacção foi sorrir.
Enquanto que eu, já com os olhos em lágrimas chorei pela primeira vez
a frente dele, a frente de um homem que eu amava e ele ao ver-me
assim, deixou perder o sorriso e ficou com um ar de surpreso mas
também sério. Acho que naquele momento ele tentava perceber se
aquilo era uma brincadeira. Talvez andasse a tentar descobrir as câmaras
de filmar escondidas pela rua, para depois no final eu dizer-lhe: ―Sorri,
porque foste apanhado!‖ Mas nada disso aconteceu. As câmaras não
apareceram e ele não foi apanhado num desses programas de apanhados
da TV Aquilo era real e será que ele conseguia lidar bem com o real?!
— Desculpa dizer-te isso. Eu apaixonei-me por ti logo no primeiro
momento em que te vi.
— Eu já estou atrasado para os treinos. — disse ele, mas não num
tom agressivo. Estava calmo e talvez assustado e eu não sabia fazer
outra coisa se não estar a pedir-lhe desculpas por gostar tanto dele.
— Tudo bem! Não vou atrapalhar-te mais. Eu só queria mesmo era
que soubesses e… eu sei que o meu amor é impossível mas será que
posso ser teu amigo?
Ele pensou muito antes de responder mas acabou por dizer que sim,
que não havia problema. Ele estava mesmo com pressa. Não sei por
estar mesmo atrasado para os treinos ou se ainda estava com medo de
mim. Ou talvez já sentisse nojo de mim por ser um rapaz diferente, por
ser uma aberração. Eu não quis mais estar a incomoda-lo. Claro que a
minha vontade seria agora ficar horas a fio a conversar com ele. Pelos
meus muitos sonhos, esse primeiro momento em que iria falar com ele
era concluído com um abraço, com um beijo, mas claro, era mesmo
sonhar alto. Nem mesmo a um aperto de mão eu tive direito.
— Já agora, eu chamo-me Ermelindo. E eu gostava mesmo muito
de ser teu amigo.
Ele não chegou a apresentar-se mas também já nem era necessário.
Há uns dias atrás, enquanto ele fazia o percurso para ir para casa na
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companhia dos seus amigos, eu ouvi um deles a chama-lo por Fred e por
isso conclui logo que o seu nome era Frederico. Por isso, nem houve a
necessidade de ele apresentar-se, pois apesar de nunca antes ter falado
com ele, já havia muita coisa que eu sabia a seu respeito. Uma vez mais
ele deu sinais de que estava com pressa e por isso, antes de ele ir-se
embora, não pude deixar de dizer seguinte:
— Por favor não digas nada disso que aconteceu agora para
ninguém, pode ser?
— Está descansado. Por mim, ninguém irá saber do que aconteceu
mas agora tenho mesmo que ir.
E deixei-o ir. Sem um abraço, sem um beijo, sem um aperto de mão,
sem um adeus ou um até já. Assim de repente ele virou-me as costas e
afastou-se. Eu ainda quis voltar a segui-lo para voltar a falar com ele e
para ver que aquilo não tinha sido um sonho. Queria ter a certeza que
ele tinha percebido bem aquilo que eu lhe disse mas o meu coração uma
vez mais explodiu. Não sei se de alegria, se de tristeza mas a verdade, é
que ali no meio da rua, onde pessoas e carros passavam, um rio de
lágrimas caiu-me pelos olhos. Eu pela primeira vez em toda a minha
vida, declarei-me a uma pessoa. A gaguejar mas com todas as palavras eu
tinha-lhe dito que estava apaixonado por ele e a reacção não foi nenhum
dos filmes que previamente tinham passado na minha cabeça. Ele não
foi agressivo, não bateu-me mas também não abraçou-me, não deu
resposta as minhas palavras de amor. Simplesmente, incrédulo ouviu o
que eu tinha para dizer e assustado, talvez por um homem estar a falar
dos seus sentimentos de amor por ele, resolveu afastar-se. E agora?!
Como é que seriam os próximos dias, tendo em conta de que ele já sabia
aquilo que eu sentia por ele? Como é que foram? Foram um terror. Um
verdadeiro terror!
Infelizmente, o Frederico nunca chegou a cumprir aquilo que disse
talvez porque aquela novidade era muito estranha para estar apenas em
silêncio entre nós os dois. Ele contou! Contou aos seus amigos que um
maluquinho lá da escola tinha declarado o seu amor a ele. Claro que isso
foi motivo de riso e claro que esses amigos não se contiveram e foram
contar a outros amigos. E esses depois foram contar a outros e quando
dei por mim, quase toda a minha escola já sabia que eu gostava dele.
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Durante três meses, eu amei-o em silêncio. Por muito que gostasse que
ele soubesse dos meus sentimentos, durante três meses eu sofri apenas
porque ele não sabia de nada. Depois, lá cometi a loucura de contar. Fiz
questão que ele soubesse e desde então, não só passei a sofrer porque ele
já sabia e não correspondia de forma alguma a esse meu amor como
também tinha que lidar com os constantes gozos das pessoas lá da
escola. E até hoje, ainda não sei o que é que magoou mais. Se foi ele
ignorar o meu amor, ou se foram todos os outros que diariamente
agrediam-me com os seus olhares e com as palavras feias que me
magoavam? Aos 14 anos eu não percebia porque é que o facto de amar,
era sinónimo de sofrer. Aquilo que eu ouvia dizer era que o amor era
uma coisa linda mas de lindo nada tinha. Como é que o amor poderia ser
uma coisa linda, algo que dá vida e alegria, se tudo em mim chorava de
tristeza todos os dias. Mas o meu pobre (e ridículo) coração, um coração
que precisava de carinho, sempre teve esperança de que as coisas
pudessem mudar e que a minha vida fosse tal e qual a novela Explode
Coração ou tantas outras novelas. À semelhança do que estava a
acontecer com a cigana Dara e o empresário Júlio Falcão, onde o mundo
inteiro parecia estar contra eles, onde a dor e o sofrimento estava bem
vincado na vida de cada um deles, eu sabia que no final, quando surgisse
a palavra fim no último episódio da novela, os dois iriam estar nos
braços um do outro e uma estúpida esperança fazia com que eu
acreditasse que comigo as coisas também iriam ser assim mas nada foi
como numa novela.
O meu amor passou até a ter uma banda sonora, uma música que
constantemente eu ouvia nos meus ouvidos sempre que o via.
Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar
Essa era a mesma música que tocava todas as noites na novela e
representava o amor que o personagem principal tinha pela sua cigana. E
tal como a música esse inesperado amor levou-me mesmo ao desespero.
A partir daquele dia, aproveitei todos os momentos para falar com ele.
Sempre que o via sozinho na rua, ‗atropelava-o‘ e fazia questão de falar
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com ele. De voltar a relembrar-lhe que eu gostava muito dele mas que
apesar do meu sentimento, aquilo que eu apenas queria era a sua
amizade. Apesar de constantemente falar de amor com ele, era a
amizade que eu pedia. Mas a nossa história era diferente e ele sempre
fazia-me questão de relembrar isso. A minha história nada tinha a ver
com o casal da novela. Esses sim, amavam os dois mutuamente
enquanto que todos os outros à sua volta eram contra esse amor. No
meu caso, eu era o único que amava. Ele não nutria qualquer sentimento
por mim. Para ele, falar de amor comigo era uma coisa completamente
descabida até porque ele deixava sempre bem claro que era de mulheres
que gostava. E falar de amizade, seria também algo impensável, pois ele
não estava acostumado a ter um amigo (homem) que olhava para ele
com outros olhos. Que só com um olhar, despia-o por completo e
imaginava cenas que pare ele era algo nojento.
Por diversas vezes, de forma educada e simpática ele deu-me vários
sinais para eu desistir de uma vez por todas desse amor impossível. Eu
percebia que ele até tinha um certo cuidado em não magoar-me mas era
inevitável. Como um bebe chorão, eu sempre que estava ao lado dele eu
não conseguia resistir, as lágrimas estavam sempre nos meus olhos e eu
sem cansar-me, insistia sempre no mesmo. Bati tantas vezes na mesma
tecla até que um dia ele irritou-se e quando ele deixou de ser aquele
jovem com um coração enorme e bondoso, a minha vida tornou-se num
verdadeiro inferno.
O que é o amor? Porque é que a minha vida é assim? Porque é que
ele não é meu amigo? Porque é que ele não gosta de mim? Tantas eram
as perguntas lançadas ao ar na esperança de receber alguma resposta mas
essas nunca chegavam. Sentia completamente só no mundo e esse amor
sufocava-me por completo. Era como se eu tivesse uma corda ao
pescoço e sempre que o via, essa corda era apertada ainda mais. Pior!
Parecia que ele próprio fazia questão de apertar essa corda, pois com o
passar do tempo, depois de tantas insistências, ele próprio, a semelhança
do que fazia os amigos e tantas outras pessoas na escola, ele começou a
gozar comigo. A humilhar-me a frente de todos. Chegou até a cuspir-me
na cara, a atirar-me com pedras. Ameaçou até bater-me com um pau isto
porque eu insistia sempre em andar atrás dele. E eu na verdade estava
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sempre atrás dele. Comecei a estar grande parte do meu tempo na rua, a
espera dele a porta da sua casa, a porta da casa dos amigos. Onde quer
que ele estivesse, eu estava sempre lá para tentar falar com ele. Claro que
hoje, 14 anos depois, eu consigo perceber as suas atitudes e sei que errei.
Um não, é um não e eu devia ter dado importância a esse não e seguido
para outra. Mas não! Da melhor forma possível, ele deixou claro que
nunca haveria nada entre nós, nem uma amizade e muito menos um
amor. Tudo entre nós seria apenas em sonhos e se assim fosse, ele até
nem se importava. Mas eu continuei a insistir. Estupidamente achei que
o meu amor era o suficiente e que um dia, ele ia acordar em si e iria
perceber que ele sim, é que estava a errar e que um dia, seria ele que iria
procurar-me e declarar o seu amor por mim. Mas isso são sonhos.
Nunca passaram de sonhos. E talvez por saber que isso nunca iria
acontecer, tornei-me obcecado por ele. De tal forma obcecado que ele
teve que contar o que estava a acontecer aos seus pais.
Enfim, é como eu disse logo no início. Essa minha história de amor,
não se pode de forma alguma chamar-se de uma história de amor.
Porque é certo, eu apaixonei-me! Mas a verdade é que nunca fiquei a
saber o que era o verdadeiro amor e essa estranha obsessão apenas fez
com que ele sentisse ódio por mim. Ele passou a odiar-me por um dia
ter chegado ao pé dele e ter-lhe declarado o meu amor. Odiou-me ainda
mais por insistir em algo que era impossível. Quando comecei a
persegui-lo por todo o lado onde ele ia, quando descobri o seu número
de telefone e telefonava-lhe para casa ele odiou-me ainda mais. Eu fiz
questão de aparecer na vida dele durante os próximos três anos e por
isso ele nunca deixou de me odiar. Mas o estranho nisso tudo e é tão
estranho que não consigo explicar como, a verdade é que as suas
declarações de ódio me deixavam ainda mais apaixonado. Dizem que o
amor é cego. Sim, ele deixa-nos completamente cego mas deixa-nos
também completamente ignorantes.
Por causa dele, eu desisti dos estudos e isso é algo que eu me
arrependo até hoje. Por causa dele, um dia, o meu irmão chegou a casa e
perguntar-me o que é que se passava comigo e com um tal Frederico?
Pergunta essa que deixou-me completamente surpreso, pois o meu
irmão andava numa escola diferente da minha mas até na escola dele, o
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facto de um rapaz (eu) gostar de outro rapaz e de ter declarado o seu
amor por ele, era comentado nos corredores da escola dele. Claro! Essa
conversa foi parar aos ouvidos do meu irmão e ele veio pedir-me
satisfações. Acho que esse foi o pior dia da minha vida. O dia em que ao
fim de 14 anos, tive que dizer aos meus irmãos que eles não me
conheciam nem um pouco. E dessa forma tive então que dar-lhes a
conhecer o verdadeiro eu. Por causa de um rapaz chamado Frederico eu
fiquei traumatizado para toda a vida. Se já não acreditava no amor,
passei então a ter a certeza que esse sentimento não existia de forma
alguma. Mas tudo isso é passado. Já lá vai no tempo mas até hoje eu
paro para pensar nisso tudo. Será que fiz bem em contar? Será que fiz
bem em insistir? Claro que não mas do que vale agora a pena pensar no
assunto? Tal como a novela, que já chegou ao fim e que felizmente
acabou tudo bem — acabou como todos nós queríamos. Essa minha
novela da vida real também já terminou. Infelizmente, nesse caso já não
terminou como eu queria mas deu para eu abrir os olhos e ver que a
vida, a vida real não e uma novela e nela sim, tudo pode acontecer.
Sempre que o amor bate a nossa porta, há um explode coração que
deixa-nos sem rumo e onde tudo pode acontecer. Aos 14 anos, ele bateu
a minha porta e eu fiquei sem saber o que fazer. Cometi imensos erros e
talvez por isso, nem mesmo uma simples amizade consegui ganhar dessa
experiência. Entretanto, ao longo dos anos, outras foram as vezes em
que o meu coração explodiu por sentir certos sentimentos por alguém
que o meu coração achou ser especial. E dessas outras vezes voltei a
cometer erros. A vida é mesmo assim. Cometem-se erros atrás de erros
mas um dia, quando menos esperarmos, o certo vem ao de cima e o
nosso pequeno coração é reconfortado com o amor de outro coração.
Por isso, apesar de já muito ter chorado e de as vezes achar que até já
estou seco por dentro, apesar de já muitas vezes ter caído ao chão, de
sentir não ter mais forças para me levantar.
A verdade é que eu continuo sempre a levantar-me. Não cruzo os
braços, não me deixo render e deixo-me permanecer na minha
ingenuidade.
Um dia, o príncipe encantado, que pode até chamar-se Frederico,
André, Tiago, Pedro, enfim, pode ter qualquer nome, irá aparecer à
- 365 -
minha porta, irá falar directamente ao meu coração e esse com toda a
certeza irá explodir de tanta emoção que… será que vou aguentar?

Ermelindo Lopes
27 Anos
#72

- 366 -
All I ask of you
Há muito muito tempo, ou nem tanto assim…a história que aqui
deixamos começou há mais ou menos 5 anos atrás, e começou como
tantas outras: duas pessoas, dois destinos, dois olhares que se cruzaram
no mesmo caminho.
Tudo começou com a pequena semente que não crescia no terreno
onde estava plantada. Embora o vento, o sol e a água fossem
genuinamente bons para ela, a semente não conseguia deixar de se sentir
diferente e esse sentimento não a deixava viver.
Até que, por fim, encontrou outra semente e se apaixonou.
Foi a verdade do amor que a fez crescer e juntas desabrocharam em
belas e coloridas flores.
Bastou o primeiro olhar para os seus corações se aproximarem e
baterem em uníssono. O ritmo do seu palpitar aumentava a cada sorriso
e graciosidade.
Sem se aperceberem, os seus destinos estavam unidos e lentamente
o desejo tornara-se maior do que a dúvida, mais forte do que o medo,
mais real do que tudo o que outrora haviam conhecido.
Não mais haveria solidão, não mais haveria vazio. A sensação de
estar incompleta dissolveu-se e a memória de pertença devolveu o alento
nunca antes encontrado.

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A vida começava a fazer sentido, enquanto unas.
Primeiro foram as letras de um teclado, num qualquer programa de
conversação, a conversa levou à curiosidade, a curiosidade à ansiedade
de conhecer aquela com quem tanto já tinha em comum…
A amizade foi nutrindo-se, criando uma ponte entre a distância
física que as separava.
Em poucos meses, a empatia formada por ambas deu lugar a um
sentimento, a que nenhuma saberia reconhecer, pois nunca antes o
tinham encontrado.
Foi só quando os seus olhos se tocaram numa perfeita linha de
sincronia, pela primeira vez, que o sentimento, que foi assolando os seus
corações, teve a sua justa designação.
O amor havia sido descoberto e revelado no bater dos seus peitos e
no brilho dos seus olhos.
O medo é um sentimento tão forte que, muitas das vezes, mesmo
que sejamos fortes, ele acaba por nos controlar. Tão forte que pode
enganar o amor e fechá-lo numa torre tão alta que coisa alguma possa lá
chegar.
Foi assim no início. O amor tomou conta do desejo de viver mas o
medo enfeitiçou a vontade e submeteu-a a um duro teste.
Foi o despertar de uma vida que nenhuma reconhecia como sua. O
presente abria-se como um livro que está desde sempre na prateleira mas
que nunca havia sido lido.
Era difícil enfrentar a sensação de que tudo o que se viveu até então
é falso e só agora se revela a chave do mistério. Mas era assim que as
duas amigas se sentiam.
Nada mais seria como antes. O sangue finalmente fluía numa
corrente de amor e o ar que entrava nos seus pulmões era apenas o
desejado para continuarem a pensar uma na outra. Estavam finamente
vivas e amavam-se. Mas como seriam felizes?
Parecia que tudo se resumia a uma escolha. Não era uma verdadeira
escolha pois não era algo a que se podia renegar, mas ainda assim
pressupunha um passo entre dois caminhos distintos.
Não é possível escolher entre ser quem se é realmente e viver uma
vida plena ou negar os seus verdadeiros sentimentos e viver uma metade
- 368 -
do que se é, numa existência sem sentido de felicidade. A felicidade é um
direito de todos os seres humanos e, para muit@s, encontra-se associada
ao amor correspondido.
Como optar entre ser e não ser, entre viver na discriminação ou
dissimular viver?
Entre o medo de não serem correspondidas, pois nenhuma
manifestara a paixão que ardia na sua alma, e as dúvidas conscientes que
as assolavam, o refúgio tornou-se a sua única e possível escolha.
Durante algum tempo, que pareceu uma eternidade, longe de quem
os seus corações pertenciam, o medo começou a enfraquecer enquanto a
paixão vencia.
Foi ao som de O Fantasma da Ópera que os desejos foram
revelados e os seus corações preenchidos.
O tempo passou, os medos foram dissolvendo-se, por entre a ajuda
e compreensão de amig@s e alguns familiares, e as almas uniram-se. De
pedra em pedra foi sendo construída a ―casa‖ que hoje às duas pertence.
Dura há 5 anos esta história.
Nem sempre os dias são de Sol, mas ele brilha sempre nos seus
corações.

A&C
26 & 30
#104

- 369 -
Carta para um amor que não
aconteceu
O nosso último encontro foi em tua casa.
Levei-te uma rosa branca.
Tinha ouvido dizer que as rosas transmitem vibrações venusianas e
pensei nela a desabrochar, luminosa e pura, junto de ti.
Levei também um copo de gelado para partilharmos os dois: creme
de leite com molho de caramelo, natas e amêndoas crocantes. Tinhas-me
dito que não apreciavas sabores a fruta. Por isso procurei levar-te
camadas de doçura intensa, prontas a serem escavadas, revolvidas e
misturadas.
Cheguei a tua casa nervoso e expectante.
Era a primeira vez que ia a casa de alguém que só vira em pessoa
três vezes antes. No caminho, como não tinha dito a ninguém, cheguei a
mandar um sms a uma conhecida a dizer onde estava. Possivelmente ela
leria a mensagem e acharia que seria engano. Mas os enganos enganam-
nos e, por vezes, confortam-nos.
Durante o percurso para tua casa ia recordando o teu olhar doce, a
forma meiga, firme e intensa com que espontaneamente me seguraste a
mão enquanto caminhávamos pela rua, num dia em que estavas

- 370 -
particularmente triste. Nesse mesmo dia, sentados numa esplanada junto
ao rio, estando eu a responder a uma pergunta tua de uma forma algo
atabalhoada disseste-me: «Acho que estou a gostar muito de ti», os teus
dedos, acariciantes, procurando afastar uma mecha de cabelo que
teimava em cobrir-me os olhos. Para mim era tudo tão novo, tão
inusitado, tão grande que eu não sabia como corresponder-te.
Eu sei que é difícil acreditar, mas existem pessoas castas de corpo e
espírito, tremulando pelo mundo ao sabor do sol, dos ventos e das
tempestades como flores silvestres à espera de serem colhidas. Umas são
arrancadas de forma abrupta, o caule sangrando seiva em jarras frias de
vidro. Outras são espezinhadas sem nunca serem vistas. Outras limitam-
se a viver, secar e morrer de acordo com as estações. Outras ainda (as
mais raras) são cuidadosamente retiradas da terra com a raiz e plantadas
em vasos colocados em terraços luminosos.
A pureza em excesso afasta tanto como o vício mais venal. Temia
revelar-te a minha verdadeira natureza, ao mesmo tempo que ansiava
fundir-me contigo. Mas tu descobriste a minha verdadeira realidade
através da tua calma confiante, da tua ternura persistente e da tua
expectativa inquebrável.
Confiei em ti. Davas-me força. Ensinavas-me a aceitar-me.
Incentivavas-me a viver e a florescer. Disseste-me que eu era uma
madrepérola intacta. Fizeste-me sentir firme, amado e precioso. Abriste-
me um caminho de possibilidades.
Cheguei a tua casa e tu recebeste-me amorosamente. No ar um
cheiro inebriante a incenso. Velas iluminando tenuemente a melancolia
solitária impregnada nos teus móveis, bibelots e vieiras apanhadas em
passeios à beira-mar. Música no ar… Lascia ch‘io pianga…
Tocaste-me, beijaste-me e acariciaste-me de uma forma como nunca
ninguém o fizera. Eu tentava corresponder em tentativas virginais e
desajeitadas, mas procurava apenas sentir… os teus lábios percorrendo o
meu ventre, mamilos, pescoço, lóbulos… os teus dedos seguindo as
linhas do meu rosto e entreabrindo suavemente os meus lábios… as tuas
pernas enlaçadas nas minhas… Disseste-me que eu era uma pessoa
muito bonita…

- 371 -
Nesse dia planeaste passeios comigo pela serra de Sintra,
caminhadas matinais à beira-mar, visitas a casa de amigos teus com os
quais já havias falado de mim. Mostraste-me fotografias tuas e fiquei a
conhecer-te e a amar-te, desde a tua infância até àquilo que és hoje.
Elogiaste uns textos escritos por mim que eu timidamente te tinha
mostrado depois de me teres pedido, a ti que és autor, poeta e
compositor com obra publicada.
Perguntaste-me se eu me estava a envolver. Eu disse que sim e
acrescentei que esperava que a amizade fosse uma constante entre nós,
independentemente de tudo o resto. Temia que para ti eu fosse apenas
mais um amor momentâneo. Tentei, ingenuamente, salvaguardar um
sentimento que pudesse perdurar intacto no tempo.
Deste-me uma caixinha. Retirei o laço e abria-a. Nela estava uma
pedrinha vermelha, uma concha minúscula com o interior revestido a
madrepérola e uma carta pedindo-me namoro. Não quis dar-te logo a
resposta. Queria conhecer-te mais. Estar contigo mais tempo.
Sedimentar a confiança.
Era noite quando regressei a casa. Gentilmente levaste-me no teu
carro. Deste-me a mão durante todo o percurso, largando-a apenas por
causa das mudanças. Despedimo-nos. Repetiste que gostavas de mim.
Eu disse que gostava de ti. Beijei-te a mão. No ar ficou a promessa de
visitares a minha casa e a certeza de combinarmos detalhadamente os
passeios que tínhamos planeado.
Nessa noite dormi pouco, acordando de manhã com uma sensação
de paz e contentamento como nunca havia sentido. O dia foi passado
num estado de leveza até que chegou novamente a noite. Telefonei-te
para combinarmos o fim-de-semana.
O teu tom tinha mudado.
À pergunta sobre os planos que tínhamos feito, respondeste apenas
que não sabias muito bem… que esperavas um comprometimento da
minha parte… que não podias fazer tudo sozinho… que no fundo o que
eu esperava era apenas um amigo que me ouvisse… que eu tinha muitos
macaquinhos na cabeça… que eu não te dava a segurança que
necessitavas e que não conseguias funcionar assim… que eu não tinha
nenhuma preparação para dar o passo que era preciso dar…
- 372 -
Tentei argumentar que eu só te conhecia há uma semana e meia…
que tinha estado contigo apenas três vezes antes do nos encontrarmos
em tua casa… que tudo era novo para mim… contei-te como me tinha
sentido após o nosso último encontro… perguntei-te se tinhas gostado
tanto como eu… tu tiveste a gentileza de não me responder…
Disse-te que te devolveria o presente que me tinhas dado… tu
respondeste que eu poderia ficar com ele… eu respondi poderias
aproveitá-lo para dar a alguém que te desse a tal segurança…
Referi ainda que tinhas acabado tudo no momento em que eu estava
a começar… não sei se compreendeste verdadeiramente o que eu quis
dizer…
Elogiaste formalmente os meus textos («muito bem escritos»)… eu
respondi que a nossa história poderia servir de inspiração para um
deles… tu replicaste que a minha criatividade se alimentava do meu
próprio vazio… eu não acreditei em ti. Desculpa-me…
Voltaste à questão de eu necessitar de amizade e frisaste
laconicamente que estavas ali… eu lembrei-te que, na verdade, já não
estavas…
Não penses que escrevo tudo isto por mágoa. Eu prometi-te que a
nossa história que terminou antes de acontecer serviria para alguma
coisa, por exemplo, para esta carta que te envio e que possivelmente
nunca lerás.
Agradeço-te, no fim de tudo, a generosidade ao teres-me concedido
a ilusão que um dia eu também poderia ter sido uma daquelas flores
raras que são colhidas e plantadas em vasos colocados em terraços
ensolarados…

António Frazão
37 Anos
#125

- 373 -
Há cheiros no ar
Caminhávamos lado a lado: tu no teu passo firme e escorreito, e eu
flutuando ao pé de ti, ao sabor dos teus gestos, tentando acompanhar-te.
Tu falavas de coisas que valiam a pena. Formação e aperfeiçoamento
profissional, exposições de artistas invulgares em locais inimagináveis…
filmes eslavos, cujos nomes pronunciavas na perfeição… livros raros,
cujas edições há muito esgotaram… Eu escutava-te querendo
transformar-me nas tuas palavras, a minha alma amarfanhada por ser tão
tosca e inculta…
Depois havia a Primavera quase à porta…
Lembro-me que passámos junto a um miradouro arborizado. Havia
o sol cintilando por entre as folhas recém-nascidas das árvores e
formando arco-íris fugazes através das gotas de água de um fontanário.
Havia corolas de flores expandindo-se ao sol e depois, lá em baixo, a
cidade espraiando-se sob a luz da manhã.
- Há cheiros no ar… - referi eu, interrompendo-te por instantes.
Os teus olhos verdes olharam-me estremunhados, como que
acordando de um sonho.
- Sim, há cheiros no ar, com esta poluição, o que é que querias?
Pois… até tinhas razão… queria explicar-te que era possível sentir
cheiros pela sugestão das coisas. Havia flores, havia árvores com folhas

- 374 -
novas, mas havia também a expectativa da Primavera. «Mas as
expectativas também têm cheiro? Tens cada uma!» dirias tu se eu
prolongasse a conversa. «Sim» diria eu «as expectativas, os sonhos,
aquilo que há-de vir ganham forma e vida dentro de nós antes de se
manifestarem. Ao ganharem vida, adquirem matizes e aromas que
podemos identificar, porque já os vivemos (ou gostaríamos de os ter
vivido) noutra época… fazem parte de nós…». Mas calei-me a tempo
para te continuar a ouvir e impedir-me de proferir ridicularias...
Descemos a rua, ziguezagueando pelos passeios, por entre os
transeuntes que insistiam em apartar-nos. Quiseste tomar um café e
parámos no local onde um poeta em estátua contempla com ironia as
ironias dos destinos que frente a ele se cruzam. Olhei para ti. Os teus
dedos manejavam com elegância a mortalha e o tabaco, fundindo-os
num cigarro aromático que fumaste com placidez, enquanto os teus
olhos distribuíam vagamente a atenção em diversas direcções, sorrindo
por vezes para mim, indulgentemente, quando eu fazia alguma
observação.
- Há cheiros no ar… - referi eu ao ver alguém a passar com uma
coroa de flores, que me remeteram, por momentos, para pradarias
ensolaradas com malmequeres e papoilas.
Olhaste-me consternadamente e polidamente disseste:
- Sim, este tabaco é de primeira… olha que há muito poucas casas
que o vendem…
Sorri para ti. Agradeci a tua amizade, o teu coração fraterno, o teu
cuidado em não me deixares passar mal nos momentos em que da
minha boca saíam coisas despropositadas. Apeteceu-me abraçar-te como
uma criança… mas tu horrorizar-te-ias se isso acontecesse.
Como nos íamos afastar em breve, sem saber quando nos
reencontraríamos, chamei o garçon para pagar o que tínhamos
consumido. Com uma destreza de águia levantaste-te e deste o dinheiro
e quando dei por mim já estávamos novamente a caminho. Tentei saldar
a minha dívida, mas tu não deixaste… preferiste o papel de credor
adiado ao de devedor vexado. Na verdade, como sempre, achaste que o
papel de credor não me assentaria bem relativamente a ti.

- 375 -
Aceitei. Não adiantava dizer que não haveria dívidas, que era apenas
em sinal de agradecimento pelos momentos em tua companhia (tu que
tens tantos interesses e ocupações)... mas, tal como não acreditavas que
os sonhos e as expectativas pudessem ter cheiros, também não
conseguias aceitar que as emoções se materializassem em gestos…
Aqui seria eu que te deveria ter pedido desculpas, pelo meu mau
jeito, pelo meu espírito rude, pela minha necessidade de concretização…
Despedimo-nos perto de uma florista com violetas em vasinhos
pequenos alinhados à porta.
- Não há dúvida… a Primavera está quase aí… já reparaste que há
cheiros no ar? – Referi eu ainda, apercebendo-me tardiamente que me
estava a repetir (e que tu não gostavas de repetições).
Olhaste-me abrangentemente e disseste criticamente:
- Hoje só andas com a história dos cheiros no ar, que se passa
contigo? Ora levanta lá o sapato…
- O sapato? Para quê? – Perguntei eu sem perceber, mas
obedecendo.
- Pois, bem me parecia… – disseste com um ar britanicamente
detectivesco – pisaste caca de cão… é por isso que tens andado o dia
todo com os «cheiros» no ar…

António Frazão
37 Anos
#126

- 376 -
Toi, moi et ton toucher
A saudade instala-se de forma subliminar como uma presença
invisível que segue cada um dos nossos passos.
A tua sombra acompanha-me sempre com gestos delicados, postura
angelical e voz grave e suave.
Mesmo o teu toque.
Quando quero corrigir a minha postura é como se os teus dedos
tocassem em mim inesperadamente.
Nas tuas aulas, quando em vão tentava harmonizar o corpo através
do esforço físico, parecendo uma flor murcha à tona da água, tu
chegavas e os teus dedos ajustavam o que estava desajustado. Bastava
uma pressão firme e suave nas costas, nos pulsos, no pescoço ou numa
das pernas para que, magneticamente, o meu corpo despertasse de um
sono profundo.
Não te via de frente, nesses momentos.
Circulavas omnipresente e omnisciente pela sala onde treinávamos,
coreograficamente, tonicidade, flexibilidade, respiração. Tantas coisas…
com o único intuito de sabermos que existíamos.
E tu obrigavas-nos a existir.
Sem pressas, nem tiranias.

- 377 -
Apenas através da continuidade luminosa e serena do teu estar no
mundo.
Quando chegavas junto de mim, mal tinha tempo de pressentir a tua
presença. Tudo acontecia em segundos, durante os quais o tempo e o
espaço paravam, e eu me sentia a esvanecer como tinta de aguarela
mergulhada num oceano de papel.
Primeiro, era um calor silencioso.
Depois, uma vibração no ar.
Depois, o toque.
No final, a tua ausência, que ficava impregnada em mim como uma
tinta invisível.
Quando nos tinhas à tua frente os teus olhos aquáticos conseguiam
estabelecer contacto visual com todos. Quando nos davas instruções a
tua presença híbrida de humano e de divino conseguia transmitir-nos a
vontade de atingir a perfeição.
Tu conseguias tudo, tal como a luz solar e a água conseguem suster
a vida e fazê-la brotar dos sítios mais recônditos onde penetram.
Água, terra, fogo e ar: os quatro elementos estavam reunidos em ti.
Foi assim que percebi que para te ter não precisava de te possuir.
Na verdade, não possuo as árvores e as flores dos campos, nem as
nuvens do céu, nem as asas dos pássaros.
Não possuo a essência das coisas, nem a aura encantatória dos
olhares, nem a ausência dos que não estão.
Não possuo a magia dos gestos, nem o âmago da esperança, nem o
devir do inexistente.
Tudo vejo, tudo passa, tudo sinto.
Tudo me acompanha, me preenche, me completa.
Tudo está em mim e eu estou em tudo.
Somos companheiros da mesma viagem, sementes da mesma fonte,
rios de vida que desaguam a cada momento num oceano de expectativa.
Por isso, só me resta fundir-me contigo sendo parte de tudo e ser o
todo eterno na efemeridade dos desejos.
Por isso, posso conviver com a tua sombra como se estivesses
presente e sentir a ausência do teu toque como uma presença que me
energiza nos momentos em que me esqueço de mim.
- 378 -
Por isso, a saudade não é mais do que uma palavra evocatória que
corporiza memórias, impressões sensoriais e presenças insubstituíveis
como a tua.

António Frazão
37 Anos
#127

- 379 -
Gostava...
Gostava de pertencer ao teu mundo mas somos como linhas
paralelas que se avistam ao longe.
Observo-te, vejo-te, contemplo-te.
Os teus gestos, a expressão do teu rosto, o brilho dos teus olhos, o
timbre da tua voz.
A simbologia impregnada em ti, nas tuas roupas, pele e palavras.
Mesmo as tuas cicatrizes.
Tento adivinhar a tua história.
Conhecer-te.
Absorver-te.
Vejo em ti a criança que foste e enterneço-me.
Vejo a pessoa adulta em que te tornaste e encanto-me.
Gostava de saber a tua língua e de falar contigo verdades
metafóricas.
Ora falas baixa, lenta e pausadamente.
Ora alteras a voz e gesticulas amplamente.
Ora sorris e saúdas afectuosamente quem contigo se cruza.
Ora passas silenciosamente como uma sombra absorta na sua
ausência.

- 380 -
Ora falas compenetradamente para uma caixinha colorida que emite
sons polifónicos quando quer a tua atenção.
Tenho inveja dessa caixinha que anda sempre contigo e da qual
nunca te esqueces…
Que cabe íntegra e inquebrantável na tua mão…
Que aspira o som das tuas palavras…
Que roça os teus lábios, rosto, orelhas e cabelos…
Que te liga ao mundo e te provoca sorrisos e crispações…
Que presencia electronicamente a tua própria carnalidade.
Na verdade…
Desculpa-me a minha franqueza…
Gostava de acariciar os teus braços e de te abraçar longa e
profundamente.
Gostava de te dar a mão e de caminharmos sem rumo, sorrindo
interiormente.
Gostava de apreender os teus mais pequenos desejos, medos,
anseios, dores, lágrimas e de transformá-los em vida, beleza e esperança.
Mas não ouso querer mais coisas.
Apenas porque tu existes.
Isso basta.
A expectativa tem de ser destronada em favor da vida como ela é.
E como é a vida contigo?
Mesmo sem te acariciar, sem te dar a mão, sem te conseguir
apreender na totalidade, mesmo cruzando-nos paralelamente em linhas
separadas, a vida contigo ganhou cor, sentimento e deleite.
Não digo que tenha ganho um sentido, porque isso seria uma
afirmação sacrílega. Ganhou sim mais um sentido, a par e passo com
tantos outros que, de forma directa ou indirecta, por vezes, se
interpenetram com o teu estar neste mundo.
Serás tu uma ilusão, uma quimera, um sonho?
Possivelmente.
Mas não importa.
Todos somos sonhos, quimeras e ilusões para quem nos acompanha
existencialmente.

- 381 -
Mudamos, metamorfoseamo-nos e renascemos a cada momento aos
olhos de quem nos observa, perscruta, contempla.
Para o bem e para o mal.
Se a fantasia é uma realidade, a realidade é um fantasiar em
progresso contínuo.
Amo a minha fantasia da tua realidade.
Amo o teu desconhecido.
Amo a possibilidade em aberto de apreender a tua realidade real.
Amo…te.

António Frazão
37 Anos
#128

- 382 -
Valeu a pena!
Para partilhar esta história é preciso primeiro enquadrá-la no tempo
em que tudo começou. Vivia-se o ano de 1990, a televisão ainda era feita
de dois canais, não havia telemóveis, não se acedia à Internet, nem
existiam hi5‘s, não saímos à noite, vivíamos apenas no nosso círculo de
amigos na escola.
Eu tinha 19 anos, era uma rapariga cheia de vida, trabalhava,
estudava, vivia a acelerar e já tinha tido alguns namoros muito imberbes,
sempre com rapazes. Na minha turma havia uma rapariga de 16 anos
com quem não simpatizava muito, quis o destino aproximar-nos como
amigas e ficarmos inseparáveis. Ela era o meu oposto, calada, calma,
reservada, mas tornou-se uma amiga fantástica.
Curiosamente, vivíamos desde sempre na mesma rua, mas não nos
conhecíamos até então. A nossa amizade solidificou-se e
surpreendentemente ela, que odiava levantar-se cedo, começou a fazê-lo
só para vir passar as manhãs comigo, ríamo-nos, brincávamos,
conversávamos imenso… O tempo, quando estávamos juntas, voava e
eu não percebia o porquê, as nossas brincadeiras começaram a envolver
muito carinho, podemos dizer que nos conquistámos uma à outra pelo
pescoço. No dia 19 de Fevereiro, a nossa boca percorreu o caminho que

- 383 -
separava o pescoço dos nossos lábios e selámos o nosso amor num
beijo.
Sinceramente, nunca senti qualquer remorso ou dúvida, as coisas
aconteceram de uma forma tão natural, para mim sentia-me atraída e
desejava uma pessoa, o sexo que tinha não fazia qualquer diferença.
Começámos a namorar e, com a mesma naturalidade, nunca fizemos
disso um segredo. Na escola era sabido, os nossos amigos apoiaram-nos
com a maior das espontaneidades, chegámos mesmo a apresentar um
trabalho na escola sobre a temática da homossexualidade com algumas
colegas. Tínhamos um professor que fazia questão em trocar os nossos
sobrenomes como se dum casal se tratasse.
Tudo corria bem, até ao dia em que a mãe dela descobriu algumas
das cartas que eu escrevia e decidiu intervir, contei imediatamente aos
meus pais que, apesar de não compreenderem, nunca me contrariaram.
Os pais dela resolveram impedir que nos encontrássemos, foram tempos
difíceis em que não nos podíamos ver, as férias eram de enlouquecer,
apesar de afastadas o nosso amor só se solidificava.
Resolvemos que no dia em que ela completasse 18 anos iríamos
viver juntas, tínhamos um calendário onde rasurávamos cada dia que
passava até à desejada data. Até lá trabalhámos e estudámos poupando
para a nossa casa. Com a proximidade da data tudo nos ajudou,
conseguimos encontrar uma casa para alugar, um fiador, comprámos
com as nossas poupanças as coisas mais essenciais e no dia 15 de Junho
de 1991, data em que ela completou 18 anos, mudámo-nos para o que
seria a nossa primeira casa.
Foram tempos complicados, mas maravilhosos. Acordar com a
mulher que amava ao meu lado parecia um sonho, tivemos que abdicar
de muita coisa, mas tudo compensava o estarmos juntas.
Passaram 19 anos e a nossa perseverança e amor permitiu-nos
construir uma vida em comum em que alcançámos os nossos objectivos,
temos a nossa casa, voltámos a estudar e fizemos a faculdade, e hoje
gozamos do melhor que a vida tem. Foi difícil no início, mas a vida
tratou de nos compensar.
Desde o primeiro dia que vivemos sempre a nossa relação às claras e
nunca fomos descriminadas por isso, penso que é uma questão de
- 384 -
atitude, nós trabalhamos na mesma organização e somos tratadas como
casal. Devemos ser nós os primeiros a viver bem e com naturalidade
aquilo que somos, o resto não importa.
Ninguém sabe como acaba esta história, mas valeu a pena!

Dantins
38 Anos
#26

- 385 -
Paciência
Há 25 anos, eu, Belga, fui para a Suíça trabalhar num hotel.
Encontrei lá duas irmãs portuguesas com quem estabeleci amizade.
Gostei muito delas e caí em amor por elas. Como sempre tinha sido
lésbica, isto não era nada de novo nem estranho para mim. Nessa altura
no entanto, em Portugal, lesbianismo era tabu. Lésbicas eram chamadas
―mariconas‖.
As minhas amigas também gostaram muito de mim, mas falavam
em se casar no futuro – com um homem obviamente. Isso frustrava-me.
Uma noite, dormi com uma das irmãs. Nunca conversámos depois
sobre o que tinha acontecido. Depois de ter deixado o país, alguns
meses mais tarde, visitei-as mais uma vez para nunca mais nos vermos
depois. Até agora. Descobri onde elas vivem e fui visitá-las. Uma irmã
ainda vive na Suíça, a outra vive em Portugal. Casadas, com crianças,
mas não muito felizes. A irmã da Suíça falou-me da noite em que
dormimos juntas. Confessou que me amou mas não ousou conversar
sobre isso. Quando fui visitar a irmã em Portugal, ela também me
confessou que sempre teve sentimentos lésbicos. Eu também. As irmãs
são gémeas. Só agora é que elas começam a falar sobre o que tinham
sentido durante todos estes anos.

- 386 -
O que fica agora para mim são sentimentos de compaixão,
memórias que são algo de melancólico, de um amor que nunca foi, mas
que hoje em dia provavelmente podia ser.

Christa Desmet
46 Anos
#118

- 387 -
Uma história vulgar... ...ou
talvez não
Era um casal vulgar. Quando conheci M. e L. andávamos todos pela
casa dos trinta. Estávamos bem lançados nas nossas vidas profissionais,
tínhamos as nossas famílias e, com outros casais, formávamos um grupo
de amigos que se reunia com frequência. Juntos, levando uns os filhos,
outros os sobrinhos, viajavam, fazíamos férias, íamos à praia no verão,
não perdíamos os escassos espectáculos que, na altura, Lisboa oferecia,
criávamos oportunidades, ora em casa de uns ora de outros, para
conviver e desfrutar da companhia.
Estávamos nos anos 70 do século passado.
Este casal era igual a tantos outros. Em casa, era L. quem se
ocupava da gestão doméstica enquanto M. se preocupava por se
manterem actualizados no que dizia respeito à vida cultural: comprava os
bilhetes para a ópera, cinema e teatro, propunha visitas a exposições,
organizava serões musicais ou de leitura de poesia. A mãe de M., viúva,
vivia com eles, era parte integrante daquela família. As famílias de ambos
os lados, de resto, conviviam com frequência e eu própria participava
muitas vezes dessas estadias de fins-de-semana ou de férias na quinta
dos pais de L.

- 388 -
Como acontece com todos os casais, também este viveu momentos
de dúvida, de tensão, de sofrimento. Para M., desafiar os extremos era
irresistível nem que para isso fosse necessário testar limites ou desafiar
consequências imprevisíveis. Sabia que L. estaria sempre presente, por
mais adversas que as circunstâncias pudessem ser. Presença que se
tornaria constante e forte durante os vários períodos em que M. adoeceu
com gravidade. A dádiva era total.
Há um ano, M. partiu, inesperadamente, deixando um vácuo
sufocante, uma presença ausente que dói fundo a quem com ele
conviveu. L. gere hoje essa perda com grande dificuldade, transferindo
parte do sentimento de perda para cumprimento da promessa feita a M.
de que cuidaria da sua mãe se ele morresse.
Fruí de perto a companhia de ambos num entendimento forjado por
uma amizade construída e reforçada ao longo do caminho da vida que se
faz caminhando.
M. e L. viveram quase 40 anos em união de facto. Partilharam tudo.
E tudo, é tudo: sucessos e fracassos, tristezas e alegrias, encontros e
desencontros.
Perante uma união de dois seres que perdurou tanto tempo, a
legislação portuguesa é parca. A Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, ―regula a
situação jurídica de duas pessoas, independentemente do sexo, que
vivam em união de facto há mais de 2 anos‖. Mas não foi ainda
regulamentada. Por isso, com a mãe de M. a seu cargo, para ter direito a
uma pensão de sobrevivência – direito a que acederia automaticamente
se fossem casados – L. teve de intentar uma acção contra o Centro
Nacional de Pensões por cujo desfecho ainda aguarda.
Manuel e Luís foram um casal vulgar. Mas não sei se haverá muitas
histórias iguais a esta.

Maria Oliveira
65 Anos
#53

- 389 -
A nossa história
Porque achei o projecto com interesse, quero partilhar a minha
experiência homossexual com a esperança que ela irá contribuir
positivamente para que a nossa sociedade passe a acreditar que uma
relação ―homo‖ pode ser tão bela e duradoura como uma
―heterossexual‖.
Uma vivência em união de facto ―homo‖ só exige como qualquer
outra uma coisa, a existência desse sentimento, tão velho como o
mundo, a que se chamou ―Amor‖.
A minha relação começa em Outubro de 1967 no desaparecido Café
Monumental com uma simples troca de olhares e de uma atracção física
muito forte. Depois de alguns encontros e apesar de ambos termos
namorados, chegámos à conclusão que algo nos tinha acontecido e
merecia um relacionamento mais estreito.
Ficámos livres e todos os dias surgiam mais indícios de
entendimento, de interesses comuns e de um grande desejo de estarmos
juntos, cada vez com mais frequência e durante mais tempo. Vão
passando os dias até que em 1969 já não temos dúvidas, estamos unidos
e presos por um grande amor. Há que investir nesta relação, fazer dela
uma união familiar em que o meu e o teu passem a ser nosso e assumi-la
se nos fosse perguntado. Com esta decisão deixei a casa dos meus

- 390 -
familiares, alugámos uma casa maior e fui viver com ele e a mãe. Nesta
altura começa outra fase da nossa vida a dois. Tudo é mais partilhado,
desde um quarto só para nós à manutenção da casa, aos projectos para o
futuro, aos problemas maiores e menores que surgiam por se viver em
comunhão total, enfim tudo o que é inerente a uma família. Os anos vão
decorrendo e, apesar de nenhum de nós ser perfeito ultrapassámos as
divergências surgidas com certa facilidade, talvez porque cada vez mais
nos conhecíamos melhor e nos sentíamos unidos por um grande amor,
compreensão e um entendimento sexual muito forte.
Nunca nos sentimos discriminados, nunca foi necessário afirmar
que éramos um casal ―gay‖. Os amigos, colegas de trabalho, familiares e
outros aceitaram-nos sempre sem perguntas ou insinuações. Talvez
houvesse alguns que não estivessem muito de acordo, no entanto nunca
o demonstraram, pois a educação é muito bonita mesmo que isso às
vezes obrigue a engolir algum sapo.
Fomos realizando os nossos sonhos, o apartamento com vista para
o mar que tanto desejámos, viajámos, vimos os grandes espectáculos de
ópera e musicais em Nova Iorque e Europa, tivemos uma vida a dois da
qual não nos pudemos queixar e posso afirmar que vivemos a felicidade,
não a total, porque não existe, mas a possível.
Mas como tudo tem um fim, em Janeiro de 2008, quarenta anos
depois, ele partiu, foi traído pelo coração, esse mesmo coração onde
tantos anos morei, disso tenho a certeza. Amei muito, mas também fui
muito amado.
Foi um grande desgosto, até porque nada fazia prever esta partida
súbita. Valeram-me os amigos e famílias e até alguma ajuda médica.
Fiquei na nossa casa, no nosso quarto que mantenho tal e qual estava,
vivendo com a mãe dele que trato e tratarei o melhor que puder, não só
porque a ela me ligam laços que considero familiares, mas também em
memória dele que a adorava.
Para terminar, afirmo que valeu a pena ter vivido esta união de facto
durante 40 anos com um companheiro com quem partilhei uma paixão e
um grande, muito grande amor.
Hoje vivo com a saudade e as recordações de tantos anos. Sei que
jamais voltarei a sentir algo de parecido. Viverei com a sua imagem, o
- 391 -
seu querer, as suas palavras, poemas e tantas provas de amor que me
deu, até ao dia em que partirei ao seu encontro. Serei novamente feliz!

PS. Recorri ao tribunal para me habilitar ao que a lei confere ao


sobrevivente de uma União de facto. O julgamento já se realizou e
espero a sentença.

Carlos
65 Anos
#52

- 392 -
Assim já sei
o quanto gosto de ti
11º Ano, 2000, ela tinha chumbado e ainda assim, conhecia a sua
nova turma melhor que eu, que já lá andava há 1 ano.
Conhecemo-nos no 1º dia de aulas e a partir daí, sentávamo-nos
sempre juntas, passávamos os intervalos juntas, almoçávamos juntas,
ríamos, chorávamos, divertíamo-nos juntas e mesmo quando não
estávamos juntas (vivíamos em lugares diferentes), era como se
estivéssemos, pois estávamos sempre ou a falar uma com a outra ou
uma da outra.
Uns meses depois, ela começou a namorar com um amigo meu.
Apesar de eu já o conhecer desde pequena e nos darmos muito bem,
não achava grande piada àquele namoro, pensava que ele não a merecia.
Ainda assim, respeitava o namoro deles. Às vezes saíamos todos juntos e
para não variar, divertíamo-nos bastante. A coisa não durou muito, eles
acabaram e para mim, tudo voltou ao normal.
Ela era bonita, simpática, inteligente, divertida e portanto, tinha
sempre pretendentes. Eu achava divertidíssimo ver a P. a ―despachá-los‖
das maneiras mais cómicas e absurdas e concordava sempre que
nenhum deles era suficientemente bom para ela.

- 393 -
Éramos cada vez mais amigas, confidentes e passávamos cada vez
mais tempo juntas. Eu já tinha tido muitos amigos, mas nenhum que se
comparasse com ela. Era tão bom ter alguém de confiança com quem
poder falar, saber que passasse o que se passasse, podia sempre contar
com ela.
A certa altura, começaram-nos a chamar ―fufas‖ na escola. Nós até
achávamos piada e no momento brincávamos com isso, mas quando
estávamos sozinhas, não tocávamos no assunto. Ela voltou a ter
namorado, a acabar com ele, depois disso teve outro que também não
durou muito tempo e no final voltava sempre tudo ao normal.
Juntas fazíamos todas as loucuras de que nos lembrávamos e outras
que nem sequer nos passavam pela cabeça, divertíamo-nos,
passeávamos, conversávamos, éramos felizes e nada nem ninguém nos
podia tirar isso. Quando estava com ela, não precisava de mais nada.
Quando não estava, pensava. E pensava tanto ou tão pouco que um dia
me imaginei a namorar com ela. Foi aí que me apercebi do que se estava
a passar. Eu estava apaixonada pela minha melhor amiga! Não me
lembro muito bem do momento em que tive noção de que era
homossexual, se é que alguma vez existiu esse momento. Aliás, acho que
nunca tive necessidade de me rotular, pois nunca me vi como fora do
comum. O meu problema era o estar apaixonada.
Descobrir que amava, amava mesmo, a minha melhor amiga foi
uma descoberta que me assustou muito. Parece que de repente, tudo
ficou mais claro e portanto, muito mais assustador. Nunca me tinha
sentido assim, tinha vergonha, medo, terror que ela descobrisse! Estava
tão confusa, só queria dormir e acordar bem longe!
A minha vida deu a volta, deixei de fazer tudo o que, agora, não me
sentia à vontade para fazer e comecei a evitar ao máximo as situações
que me pudessem perturbar ou denunciar. Tinha medo de lhe fazer
elogios, portanto deixei de os fazer, tinha medo de lhe tocar, então
adoptei uma distância de segurança, tinha medo de falar com ela, então
deixei de estar disponível para conversar. Passámos a sentar-nos com
outras pessoas nas aulas, comecei a arranjar outras coisas para fazer e
outras pessoas com quem estar nos intervalos e tinha sempre uma

- 394 -
desculpa pronta para quando ela vinha falar comigo. Pouco tempo
depois, já mal falávamos por mensagens.
A P. procurava-me na escola, mas eu nunca tinha tempo para falar
com ela e ia-me embora assim que podia, ela ligava-me e eu não atendia.
Os nossos amigos perguntavam o que se passava connosco e eu
respondia ―nada‖. E assim, ao tentar esconder o que sentia por ela,
acabava por criar cada vez mais curiosos me falavam no assunto noite e
dia quando eu só pensava em poder fugir de tudo aquilo.
Comecei-me então a fechar em casa. Passava os dias ao computador
ou a dormir, enquanto dormia não sentia. Deixei de estar com as
pessoas com quem ela estava, de ir onde ela ia, e ao mesmo tempo, só
conseguia pensar nela e isso fazia-me sofrer. Faltava-me qualquer coisa,
coisa essa que não podia nem ia alguma vez ter. Ela era inatingível,
estava a anos-luz de mim! E eu sofria. Sentia-me sozinha e
incompreendida, não podia confiar em ninguém, não queria que
ninguém soubesse. Os meus amigos eram agora pessoas aleatórias da
Internet, com quem podia falar sem ter que me preocupar em encará-
los. Hoje uma pessoa, amanha outra qualquer, não interessava. Tudo me
fazia lembrar a P. e lembrar-me dela fazia-me querê-la ainda mais.
Sonhava com o seu toque, sonhava com que ela me dissesse alguma
coisa, me mandasse uma mensagem, que me aparecesse em casa de
surpresa, qualquer coisa. Ao mesmo tempo, não estava disposta a fazer
nada para a ter, só queria fugir, tinha medo.
A relação com os meus pais nunca tinha sido boa, mas era agora mil
vezes pior, tudo servia para começar uma discussão. Era horrível estar
em casa, sentia-me controlada. Era ainda pior estar fora, sentia-me
sozinha. E tinha cada vez mais vontade de voltar a estar com ela, só ela
me percebia, era o meu porto seguro. E divertir-me, conversar, estarmos
juntas… Mas eu já me tinha afastado tanto que agora ela podia não
querer voltar a falar comigo.
O medo da rejeição conseguia ainda superar todos os outros que já
se amontoavam em mim. O sentimento era tão meu e tão íntimo!
Porque haveria eu de o querer contar a alguém? Dizer-lhe que a amava
era dar-lhe o meu coração, uma parte importantíssima de quem eu sou.
Eu ficaria completamente vulnerável a ela, era um risco fatal que eu não
- 395 -
estava disposta a correr. E se ela me dissesse ―não‖? Eu morria! Nesta
altura qualquer pormenor era para mim um problema impossível de
resolver, portanto, mais valia não fazer nada e continuar a dormir.
Via-a todos os dias na escola e por muito que eu quisesse estar
perto, fazia o que podia para estar longe. Longe mas onde a pudesse ver.
Olhar para ela era o ponto alto do meu dia. Quando estava com alguém
e ela se juntava ao grupo, sentia uma pressão limitadora que me obrigava
a calar-me e a nunca me deixar ficar exactamente ao lado dela ou a ir
embora. Ainda assim, passava o tempo todo a olhar para ela, tudo o que
ela dizia ou fazia era admirável.
Quando a escola acabou, deixei a ver e fiquei bastante mais aliviada.
Mesmo assim, quanto mais tempo passava, mais eu sofria. E sofrer em
silêncio é sofrer ao quadrado, era uma dor tão forte que só me dava
espaço pensar e chorar. Passei da fase em que chorava todo o dia, para a
fase em que não conseguia chorar de todo. Era como se se tivesse
acabado o stock de lágrimas. Tinha o coração apertado, conseguia senti-
lo!
O mundo era cinzento, nada me interessava minimamente e a única
coisa que eu gostava e queria, fazia-me sofrer tanto... Não esperava por
nada no futuro que me fizesse querer viver aquele presente. Tudo me
custava, toda a gente era injusta comigo, ninguém me percebia, ninguém
sabia o que eu sofria, e se mo perguntassem eu não dizia, ninguém tinha
nada a ver com a minha vida!
Pensei então em matar-me. Era tipo reset, perfeito! Passei dias e dias
a pensar nisso, não sabia se ia ter coragem mas achei que valia a pena
tentar.
Decidi então escrever uma carta para deixar ―tudo em pratos
limpos‖ com toda a gente. Enquanto a escrevia, cheguei à conclusão que
o problema não estava no mundo vazio e nas pessoas que viviam para
me chatear, mas sim em mim e na minha maneira de ver as coisas. Senti-
me estúpida, guardei a carta e por mais uma noite, dediquei-me ao
pensamento. Vendo bem, ninguém me tinha feito mal. Nem os meus
pais, com quem discutia sempre que falávamos, nem os professores, que
de repente se tinham lembrado de me baixar bastante as notas e me
marcar faltas, nem os meus amigos, com quem já quase nem falava, e
- 396 -
muito menos a P. que pelo contrário, sempre me tinha apoiado e
ouvido!
Era eu quem se tinha metido num buraco e era eu quem tinha que
sair dele.
Bastou-me ter noção do problema para o conseguir ultrapassar
quase instantaneamente. Voltei a falar com os meus amigos, a atender as
chamadas e a dizer ―sim‖ aos convites, fiz um esforço para conseguir
voltar a falar normalmente com os meus pais, voltei a falar com pessoas
de carne e osso e deixei de culpar toda a gente pelo meu sofrimento. Em
questão de dias voltei a sentir-me uma pessoa normal, voltei a ter
vontade de combinar coisas, de ir à praia, de sair, de tirar fotos, de viver!
Quanto à P., ainda não estava preparada para falar com ela, mas lidaria
com isso quando achasse que estava. Agora, queria voltar a viver.
Uma amiga fez anos, era verão, a P. não devia ir, pois não havia
transportes à noite e desde que eu me afastei, ela não tinha onde ficar.
Apareci já depois do jantar, estavam todos na praia e a maioria já tinha
bebido. Procurei a aniversariante e apontaram-ma lá ao fundo, vinha
com mais três raparigas que com o escuro, só consegui ver quem eram
quando já estavam bem perto. Uma delas era a P., ela estava lá! Assim
que a vi, o meu coração começou a bater mais forte, estava linda! Já não
a via desde que tinha acabado a escola, há uns dois meses.
Cumprimentei-as e depois alguém as chamou. A P. ficou comigo.
Perguntou-me como estava e o que era feito de mim, que já não me via
há ―bué‖. Estar ali a falar com ela era tão irreal como falar com um
fantasma e parecia que o meu coração ia morrer de cansaço de tanto
bater. Não me lembro de alguma vez ter estado tão nervosa antes.
Cansada de ouvir monossílabos, ela voltou para o grupo e eu também.
Com o passar do tempo, toda a gente foi embora ou adormeceu por
ali menos eu e ela. Ao fundo ouviam-se várias músicas diferentes, dos
bares da praia e do outro lado, o mar. Um amigo que estava sentado
comigo um pouco mais à frente do grupo, acabou também por
adormecer, então eu levantei-me e fui para mais perto da água. Minutos
depois, sinto alguém a sentar-se ao meu lado e percebi que era ela.
Beijou-me.

- 397 -
Não deve ser possível morrer de adrenalina, senão eu tinha morrido
naquele momento. Durante mais de meia hora, ficámos ali as duas sem
dizer nada, num abraço tão apertado que até deve ter deixado marcas. Se
por acaso abrisse os olhos e não a encontrasse, não me surpreenderia,
aquela noite parecia um sonho. O sonho mais incrível que eu já alguma
vez tinha tido.
Foi ela quem quebrou o silêncio:
―Tive tantas saudades tuas…‖
―Eu também.‖
―Porque é que te afastaste de mim?‖
―Não sei… estava confusa.‖
(…)
―Olha, sabes que mais? Ainda bem que te afastaste.‖
―Então?‖
―Assim já sei o quanto gosto de ti.‖

L. T.
23 Anos
#25

- 398 -
A procura do beijo
Caminhei incansavelmente até ao local onde tínhamos estado no dia
anterior, voltei e tornei a voltar para ver se te encontrava embora em
vão. Não sabia de ti, não sabia onde poderias estar naquela hora e
agoniava de fazer isso parte do meu desconhecido. Aqueles beijos
embora tão rápidos e tão poucos foram marcantes, foram fundos e
penetrantes, mas tu logo a seguir partiste. Ainda te procurei mas perdi-te
do meu campo de visão no meio de tantas pessoas e de tanta confusão
que me rodeava. Era um sítio proibido, um local onde não poderíamos
estar, um local onde me apetecia levar avante o que tínhamos começado
mas sabia que ali não poderia durar mais que simples minutos perdidos
no tempo. Quem disse que o amor não surge assim? Quem disse que a
paixão não pode saltar de dentro de nós ao mais pequeno momento de
carinho e atenção por parte de alguém? Não falemos sem saber porque
poderemos estar a errar. Só Deus sabe o que nos vai na mente, mesmo
ele pode por vezes sentir-se baralhado e não compreender
completamente as sensações que estamos a sentir. Estranho tudo isto
vindo de alguém que ama alguém, estranho tudo isto vir de uma pessoa
que supostamente não deveria procurar um beijo desconhecido e
conquistado num qualquer sitio como aquele. Tudo isto é estranho.
Sonho contigo, penso em ti como se te conhecesse à anos. Tudo isto

- 399 -
porque quero reencontrar-te, tudo isto porque quero sonhar e acabar na
realidade de estar junto a ti, colado a ti e pelo menos quem sabe dar-te
aqueles beijos que tanto tenho procurado. Não me vou esquecer da
ternura que és, daquilo que foste tão importante num momento de
fracasso meu, num momento em que me deixei ir e encantar-me nos
teus braços e perdidamente nos beijos dos teus lábios. Estou á procura
do teu beijo. Sim porque eu sou homem e amo também, embora ame
outro homem, embora ame alguém igual, alguém do mesmo sexo,
procuro-te a ti… Tenho direito a ser feliz, tenho direito a ser como
todas as pessoas que podem amar… Tenho direito a ser eu sem
descriminações…

Rui Cláudio Dias


33 Anos
#129

- 400 -
RELACIONAMENTOS

- 401 -
Cicatrizes
Existem aqueles pequenos arranhões, aquelas feridas superficiais,
que álcool, mercúrio e um penso rápido, conseguem resolver. Horas
depois o penso é retirado. Dias depois, o corte é esquecido. E depois
existem as feridas profundas. Aquelas que precisam de levar pontos.
Aquelas que ficam para sempre nos nossos corpos. Aquelas que
precisam de pensos e de estar protegidas por plásticos para a água não
molhar o penso e consequentemente infectar a ferida. Aquelas que
inicialmente, precisam de imenso cuidado, nada de água, nada de sol,
nada de movimentos bruscos e pegar em coisas muito pesadas. Aquelas
que com o passar dos dias, precisa de ar e de tempo para sarar. A
protecção é retirada e a pouco e pouco, a vida retorna á normalidade. A
diferença é que por muitos dias, meses e anos que venham a passar, a
marca ficará para sempre lá. Podemos chorar, podemos ter dores,
podemos revoltar-nos pelo que aconteceu, mas aquela cicatriz, manter-
se-á até respirarmos pela última vez. Até depois disso…
Comparo-as a relações amorosas. Quando alguém nos parte o
coração, a recuperação processa-se da mesma maneira. Inicialmente,
tudo nos faz lembrar a pessoa. Os sítios, as músicas, os cheiros. A dor é
tão grande, as lágrimas são tantas. Refiro-me aquele tipo de
relacionamento que nos fez olhar para tudo de uma maneira diferente,

- 403 -
que nos ensinou, que nos fez bater com a cabeça na parede e parar para
pensar. Na altura em que nos agachamos para pegarmos as peças
restantes do nosso coração, o medo começa a se entranhar nos
pequenos pedaços. Com o passar do tempo, atenção e cuidado
começamos a juntá-los novamente. O medo, esse, ficou onde não devia
e infelizmente, passou a impedir as outras pessoas de se aproximarem,
sob o risco de o voltarem a partir. Mas tal como a ferida precisa de ar
para sarar, nós precisamos de deixar o nosso coração aberto, sem arames
farpados nem caixas de aço, para outra pessoa ter a capacidade de olhá-
lo, agarrá-lo e cuidar dele de uma melhor maneira. Pelo menos é essa a
ideia que temos quando uma nova pessoa se aproxima. Claro que as
memórias permanecem, tal como a cicatriz, mas da mesma maneira que
não conseguimos retirar, naturalmente, a cicatriz do nosso corpo, as
recordações hão de ficar sempre na nossa mente. Mas seja para melhor
ou para pior, não podemos permanecer com o coração ―fechado‖. Não
podemos pensar que todas as pessoas são iguais. Caso fosse, eu não
estaria aqui…

Lady L
19 Anos
#93

- 404 -
As Recordações da Rita
O meu nome é Rita, tenho 20 anos e vivo no Porto. Comecei a
desconfiar da minha diferente sexualidade desde nova, quando brincava
no recreio e reparava nas raparigas e gostava de lhes fazer festinhas e
que me fizessem a mim.
Fui crescendo e gostando de rapazes, atracções, paixonetas, tudo
não correspondido à excepção do meu namorado da primária, o Zé,
loirinho e amoroso. Enfim, coisas de infância na verdade.
Cresci, numa vida em muito dedicada aos livros, aos de estudo, e
aos de literatura. Também sempre gostei de escrever, dai a minha escrita
ter sido fulcral no meu coming out, na minha maneira de me revelar ao
mundo, fossem os meus sentimentos, os meus desabafos, a minha raiva
de deter em mim o maior dos sentimentos, o Amor, e esse Amor ser no
fundo tão condenado.
Durante a minha adolescência namorei um rapaz, durante vários
meses. Amei-o apesar da minha tenra idade de 15/16 anos. Quando nos
separámos doeu-me imenso. Essa relação fazia-me feliz, colocava-me
nas nuvens. Ai de quem me dissesse um dia que ela acabaria mas
entretanto acabou.
Sou uma pessoa de sarar as feridas no fim de uma relação. O que
muito me caracteriza é o meu luto. Preciso de tempo para remoer a

- 405 -
mágoa, esquecer os bons momentos, não permitir que as lágrimas me
estalem sobre as córneas e me induzam num estado depressivo. Preciso
de ter tempo para esquecer e fecho o meu coração ao mundo à volta,
aos sentimentos, fecho o coração ao coração e às recordações.
Incrivelmente, passaram 2 anos. Tinha eu 17 e num Verão,
enquanto esperava pelas colocações do ensino superior, conheci um
rapaz, com quem hoje já não falo tanto mas a quem lhe agradeço o que
fez por mim. Ele abriu-me os olhos e mostrou-me que eu realmente
também gostava de mulheres. As minhas atracções no Secundário não
eram uma fase.
Para mim tudo sempre se assemelhou confuso. Eu não conhecia
uma orientação sexual intermédia, a Bissexualidade. E como os rapazes
sempre me atraíram eu pensava que as atracções por raparigas, o saber
verdadeiramente apreciá-las, o cheirar-lhes os cabelos discretamente e os
mimos que escondia por trás de uma amizade eram simplesmente uma
fase, um devaneio, uma qualquer coisa que passaria com o tempo
porque eu não podia ser homossexual.
Então esse tal rapaz, disse-me que segundo o que lhe havia contado,
eu seria bissexual. Aconselhou-me a Rede Ex-Aequo no Verão de 2006 e
o fórum acolheu-me de braços abertos, os internautas prontos a
aconselhar-me, ouvir-me, acalmar-me.
Confesso que os primeiros tempos não foram fáceis. A pergunta
não me saía da cabeça "Serei ou não serei bi?". Sentia-me terrível, sentia-
me doente, castigada, anormal. Uma coisa qualquer mesmo má que me
fazia encostar-me a um canto a chorar e a não querer ser quem sou.
Miraculosamente, passei da fase de negação para uma aceitação
branda. Algo que só eu sabia e que me fazia sentir mesmo bem. Eu era
assim, eu gostava de ser assim, eu gosto de gostar de mulheres, porque
acho uma mulher simplesmente fascinante. E mais ninguém sabia.
Sentia-me detentora do maior dos segredos, algo que a sociedade não
poderia condenar já que a sociedade condena tudo o que foge a
determinados cânones de felicidade, ser e estar e como sempre odiei a
sociedade, nesse momento eu ganhava-lhe e lembro-me de ir apanhar o
autocarro com o vento a levar-me os cabelos, as primeiras gotas de

- 406 -
chuva a molhar-me o rosto e eu a sorrir para as tenebrosas nuvens
pensando, sou bissexual e sou feliz.
Entretanto, conheci uma rapariga no fórum da Rede Ex-Aequo que
me marcou para sempre. Marcará para sempre. Desde o primeiro dia
que tivemos uma empatia enorme, uma empatia que nos fazia pensar
que já nos conhecíamos, que até já teríamos sido qualquer coisa noutra
vida qualquer. O nome dela é Luísa, e quando leres isto, vais saber que
és tu porque sabes que ambas passamos por isso. Sempre tivemos uma
cumplicidade fantástica. Quando uma estava mal a outra enviava logo
uma sms a saber se estava tudo bem e de facto não estava. Algumas
vezes considerámo-nos almas gémeas.
Uns dias após conhecer a Luísa, decidi assumir-me à minha mãe, já
que a nossa cumplicidade era enorme e sentia que não estava a ser
verdadeira com ela. Na verdade, fui ingénua pois ao contar ela disse-me
que fui o maior desgosto da vida dela, que não tinha gerado uma filha
assim, que só podia ser uma fase, que nem queria falar disso comigo.
Hoje diz que me aceita porque tem de aceitar, que não gosta
propriamente que eu seja assim, que o seu maior medo é a rejeição pela
sociedade, a perda do emprego e que me prefere com um homem. Eu
continuo a dizer que a vida é minha. O meu pai não sabe de mim nem
pretendo que saiba pois é um homofóbico terrível e o seu primeiro
passo seria colocar-me no psiquiatra.
Mas voltando à Luísa, não houve apenas amizade entre nós, o
interesse era mútuo e crescia a olhos vistos. A primeira vez que nos
vimos foi interessante, fui até S. Bento, já que ambas adoramos a estação
e esperei-a numa esplanada em frente. Almoçámos juntas, falando de
tudo, eu irritando-me com o facto de uma miúda atirar pão às pombas e
lançar-lhes o pão sobre a cabeça. Demos um passeio pela ponte D. Luís,
chegámos a Gaia, ao início da Avenida até que eu perguntei "Para onde
estamos a ir? e ela disse " não sei". Eu também não sabia tal que
voltámos para trás. A Luísa amou-me verdadeiramente durante quase
dois anos. Nunca me foi indiferente nem nunca será mas sempre tive
por ela um sentimento que não consigo explicar, de tão transcendente
que é. Mas devido à distância, não ficámos juntas, alimentámos apenas
uma pura amizade que a meu ver, se esfumou um pouco pelo tempo e
- 407 -
pela distância. Mas que te conserva no meu coração porque tu e eu
seremos sempre tu e eu. E tu sabes disso.
Tinha já eu 18 anos, e a Luísa era a pessoa mais importante e
especial que eu tinha. Apesar de não termos uma relação amorosa,
éramos especiais uma para a outra, e as nossas conversas sempre foram
intermináveis e sempre deixando saudade.
Mas nesse ano, e nesse Verão, conheci alguém que me desconcertou
os sentidos e conseguiu que após 2 anos de luto, o mais imprevisível me
acontecesse. Apaixonei-me e apaixonei-me pela Sara. Ás vezes ainda a
recordo, com nostalgia dos bons momentos que tivemos.
Lembro-me do nosso primeiro encontro. E lembrarei essa tarde
como se fosse hoje. O primeiro cumprimento. Um sorriso que me
derreteu completamente. O facto de eu ter levado os óculos e me ter
dito que me davam um ar engraçado de intelectual. As voltas que demos
ao Shopping. Sempre a rir e a brincar entre olhares tímidos. Lembro-me
que reparou numa ferida minha e tocou-me a primeira vez. Continuo a
lembrar-me das suas mãos. Delicadas e finas.
Quando fui embora, não parti, efectivamente. O meu coração ficou
com ela. Apenas mantive um sorriso nos lábios, completamente parvo.
Recordo sentar-me no último lugar do autocarro e tocar o vidro
enquanto a via distanciar-se.
Ela costumava dizer-me que se perdia no meu olhar e eu perdia-me
em tudo o que era dela.
As conversas no MSN estendiam-se até tarde, cada uma não
conseguia largar a outra e conversávamos por sms até as 5 da manhã. ela
costumava adormecer antes de mim e eu enviava-lhe uma mensagem
carinhosa de boa noite e adormecia eu enquanto o galo cantava. Foram
dias, ou melhor noites seguidas. Os meus pais diziam que eu tinha um ar
cansado e eu desmentia, lembrando-me das conversas que tínhamos. A
mãe dela também a apanhava a pé às vezes na cozinha e perguntava se
ainda não tinha adormecido. Ela desculpava-se com uma súbita fome de
madrugada. Falávamos do mundo e de nós. Eu achava-a perfeita na sua
imperfeição e cada vez mais me apaixonava.
Enfim, recordo muito dela, muito que me marcou e que foi bem
além de um beijo dado repentinamente e num local discreto. Mas a
- 408 -
relação não deu em nada, aliás eu terminei-a pelas nossas imensas
discussões e disparidades de ser e estar na vida. Além de que descobri
que ela era uma pessoa que não valia os meus sentimentos por muitas
humilhações que me fez passar.
Sinto que gostei mais dela que ela de mim. Eu amei-a e ela não me
amou a mim. Mas acho que é assim a vida, after all.
Quando havia decidido fechar o meu coração para sempre, não dar
margens a ninguém, não querer ninguém, apaixonei-me pelo melhor
rapaz do mundo. Tive muito que lutar por ele, mas sinto que valeu a
pena. Assumi-me a ele, arriscando perdê-lo porque sentia que ele
merecia saber quem eu sou. Ele aceitou muito bem, adora falar comigo
dos assuntos da temática LGBT, é muito compreensivo, com sentido de
justiça e até costuma frequentar comigo alguns espaços LGBT.
Logo, para ti Paulo, fica este parágrafo, que reitera o quanto te Amo
e agradeço por seres como és, por me aceitares e apoiares a ser como
sou.
Lembrem-se, não importa se o Sol nasce mais cedo ou mais tarde
em cada um de nós. O que importa é que nasça pois é nessa luz que
reside a Felicidade.

Rita Guedes
20 Anos
#43

- 409 -
Testemunho
Sim, sou homossexual! E daí? Qual é o problema de eu ser
homossexual, de gostar de pessoas do mesmo sexo? É crime? NÃO! É
ofensa para alguém? NÃO (apesar de algumas pessoas pensarem o
contrário)! É uma doença? NÃO! Sou um rapaz de 20 anos, apesar de
muitas pessoas com quem convivo no meu dia-a-dia e algumas com
quem começo a falar, me dizerem que sou uma pessoa madura, com
objectivos na vida e com mentalidade de uma pessoa mais velha!
Sou como sou e sou feliz (dentro dos possíveis)! Afirmo que perdi a
minha virgindade com uma rapariga, mas a minha primeira vez com um
homem foi inesquecível! Lembro-me como se fosse hoje!
Tenho os meus amigos ―normais‖ que sabem que sou homossexual
e que não põem qualquer ―entrave‖. Tenho os meus ―inimigos‖, que me
apontam o dedo, que me criticam, que me gozam… recordo-me de uma
situação que mexeu comigo… Certo dia, ia eu num dos meus passeios e
em certo momento vejo ao longe alguns dos meus ―inimigos‖ que ao
passarem por mim começaram a cantar ―Mister Gay já não sou uma
criança, Mister Gay lá lá lá lá…‖. Foi uma situação constrangedora mas
hoje, ao recordá-la dá-me um certo gozo! Em relação à minha família,
são poucas as pessoas que sabem da minha homossexualidade. A
primeira pessoa com quem desabafei foi a minha irmã, que na altura

- 410 -
tinha os seus 20 e poucos anos e que me tratou da pior maneira possível.
Foi desumana para comigo… Lembro-me das suas palavras ―Se é isso
que queres da vida, não contes com a minha ajuda! Que vergonha ter um
irmão ―panasca‖! O que é que as pessoas vão dizer? Toda a gente nos
vai apontar o dedo, vamos passar imensas vergonhas!‖ A minha resposta
foi calma e natural: ―temos pena da MERDA dessas pessoas! Sou como
sou e não vou mudar! Tenho apenas 14 anos e sei que é de homens que
gosto‖ E já lá vão 6 anos em que me assumo como homossexual. Agora,
com os meus 20 anos, moro sozinho, ando a tirar a carta de condução e
ando no primeiro ano da Faculdade. Tenho os meus amigos, os meus
VERDADEIROS AMIGOS, tenho saúde, enfim… tenho tudo para ser
FELIZ!
Já passei por algumas relações complicadas, duas, mesmo muito
complicadas, mas que sozinho consegui ultrapassar, Como diz um tio
meu ―É com as cabeçadas que damos ao longo da vida que
aprendemos‖, e não é que ele tem razão?!?! A minha última relação foi
com um rapaz militar que ao longo de três meses me magoou! Ao longo
desta relação, tudo o que este meu tio me dizia (sem nunca o conhecer),
bateu certo! Eu por vezes não ligava ao que ele dizia mas como já disse e
volto a repetir… BATEU TUDO CERTO! Bem hajas tio J! Por vezes,
quando gostamos de alguém, não levamos a sério o que os nossos
verdadeiros amigos nos dizem. Isso aconteceu comigo nesta última
relação! Muitas pessoas falavam mal do meu ex :‖ Tem cuidado, ele é
Puta Fina‖, ―olha que ele não é uma pessoa em quem se possa confiar‖,
―olha que ele usa as pessoas‖ e no fim de contas não é que tudo isto era
verdade?!?! Mas como diz a música do André Sardet ―eu não sei o que
me aconteceu, foi feitiço o que é que me deu, para gostar tanto assim de
alguém como tu…‖. Era assim que eu estava, apesar de todos os meus
amigos me dizerem para ter cuidado. Mas é sempre bom falar, quando
não se sabe o que o nosso coração nos diz.
Ainda voltando atrás, a uma das relações complicadas porque
passei… Num desses casos foi de extremos! Conheci um rapaz que ao
início era simpático, carinhoso, amável, responsável, mas ao longo da
nossa relação, tudo isso foi desaparecendo… Tornou-se numa pessoa
insensível, fria, má… Cheguei a um ponto que sempre que eu me mexia,
- 411 -
tinha que lhe contar: não podia sair com os meus amigos, não podia ter
amigos, só podia sair com ele e, agravando mais a situação, cheguei a ser
ameaçado por ele! Sim fui ameaçado. Como já disse foi muito
complicado e eu comecei a ter medo, muito medo… Começaram as
mentiras até que uma delas, ele… descobriu! Foram momentos muito
maus! Na altura eu decidi por um ponto final na relação mas… não
consegui! Fui sempre lutando até que consegui mas… (existe sempre um
mas)… quando eu decidi acabar com ele, ele decidiu ligar para casa dos
meus pais e dizer-lhes que eu era homossexual… Foi horrível e ainda
hoje, ao recordar essa situação me arrepio. Os meus pais confrontaram-
me e eu desmenti sempre. As palavras deles na altura foram: ―A porta de
entrada é a serventia da casa‖. Eu sabia e tinha a noção de que se lhes
dissesse que era homossexual o pior poderia acontecer. Apesar dos meus
pais ainda serem jovens (Pai – 53 anos, Mãe – 50 anos), a mentalidade
deles ainda é do século passado e aceitarem um filho ―Gay‖ é bastante
complicado! A minha vontade era de poder desabafar tudo de uma só
vez, mas visto que só tinha 50% da minha independência não podia
―pôr tudo em pratos limpos‖. Um dia mais tarde quando tiver a minha
independência… Aí as coisas irão ser bastante diferentes e só haverá
dois caminhos: ou aceitam ou não aceitam. Se aceitarem tudo muito
bem, se não aceitarem irei continuar a ser o filho que tenho sido até
hoje.
Para finalizar, quero apenas deixar um conselho a muitos rapazes
que são ―Gays‖: Saiam do armário! Assumam-se! Não tenham medo.
Cada um é como é! E é nessas ocasiões que realmente sabemos em
quem podemos contar! Fala a voz da experiência.
Hoje sei em quem posso confiar e a todas essas pessoas… BEM
HAJAM!

Duarte Flor
20 Anos
#115

- 412 -
A descoberta de Paulo
Eu sou o Paulo e vivo no Porto.
Vou escrever isto tipo carta direccionada a ti meu Amor.
Ao querer contribuir para este projecto faz-me lembrar da altura em
que soube da tua orientação sexual. Na altura eu não percebia o que se
estava a passar. Notava-te triste, em baixo, como se houvesse algo que
um dia iria saber e acabasse tudo, creio ter pensado que fosse algo
referente a mim, na altura nem sabia o que pensar, muita coisa me
passou pela cabeça e nada que eu fizesse te faria animar.
Via a minha vida num fio e tinha medo que houvesse algo que nos
pudesse distanciar e acabar com o que tínhamos. Sei que foi uma das
alturas mais difíceis para ti e ainda por cima toda a gente te dizia para
não me contares nada porque me irias perder e que eu era homofóbico e
tudo mais. Mesmo assim fizeste o que o coração mandou e só mostra a
fantástica pessoa que és. Mesmo sabendo que me podias perder por não
prever a minha reacção e com toda a gente a dizer o contrário tu foste
em frente e contaste. De manhã trocamos as coisas que tínhamos um do
outro como se fosse um adeus e deste me a carta onde eu iria ler uns
minutos depois no carro toda a razão da tua tristeza. Como te disse não
contava com o que li. Fiquei a compreender melhor certas situações
passadas com a Sara e que não compreendia e tudo fez sentido. Quis ir

- 413 -
ter contigo o mais rápido que pude e como me tinhas pedido um abraço
a noite anterior porque pensavas ser o último momento em que me
poderias abraçar disse-te que havia algo que tinha ficado por fazer e
abracei-te muito. É natural ser assim e não muda os meus sentimentos
por ti. Eu Amo-te.
E quero dizer-te que não é qualquer pessoa que nessa situação
contaria sobre a sua orientação, sei que foi difícil para ti mas creio que
ficaste mais aliviada, e sabes que podes falar comigo sobre tudo. Creio
que se falarmos do que nos preocupa e de tudo o resto nos sentimos
melhor e temos o apoio um do outro. Quero muito que nada disso
mude, que possamos sempre contar um com o outro para tudo e que a
nossa amizade, união, paixão e Amor continue assim e sejamos felizes
juntos para sempre.
Beijinhos meu Amor.

Paulo Alexandre
23 Anos
#44

- 414 -
Traição
Há algum tempo atrás conheci um jovem rapaz pelo qual me
apaixonei intensamente. Conhecemo-nos através de um chat. Trocámos
de número. Desde aí começámos a falar muito até que marcámos um
encontro. Fui ao encontro dele! Fiquei nervoso, ao chegar ao destino o
meu coração começou a bater com mais força e com receio de estar com
ele. Parei e ele entrou no meu carro. Levei-o a uma praia, numa zona
deserta de pessoas. Ficámos num local mais alto onde se via o mar todo
e a pequena lagoa. Falámos durante algum tempo, estava babado, no
sentido de pensar que tinha achado ―o tal‖ da minha vida. Pouco depois
surgiu um beijo entre nós! Um toque suave entre lábios como se
tivéssemos medo de danificar alguma parte dos lábios, foi maravilhoso.
Mas por fim fui levá-lo a casa. O tempo foi passando e passámos
momentos muito bons pelo menos da minha parte, trocávamos alguns
presentes. Começámos a namorar. Mas as coisas aí começaram a ficar
tremidas, talvez porque fui o culpado mas também porque ambos
começámos a ter pouco tempo disponível. Queria que ele me apoiasse
no meu projecto. No qual ele não quis por motivos familiares, abalou
me um bocado. Entretanto um amigo dele quis participar no meu
projecto fiquei contente, precisava de muita pessoas para concretizar
esse projecto.

- 415 -
Cada vez via menos o meu namorado, o trabalho, os estudos e o
projecto ocupavam-me muito tempo. Até que um amigo dele quis se
encontrar comigo para falarmos sobre o meu projecto, fomos até à praia
e falámos durante algum tempo. Estava fascinado por ele perceber tudo
aquilo que queria fazer.
Mas... foi aí que tudo começou, ele agarrou-me e beijou-me. Fiquei
sem reacção. Não esperava nada que ele me beijasse até que me deixei
envolver com ele ao ponto de fazermos amor. Depois disso caí em mim
e senti-me muito mal com o que tinha feito. Não tinha sido correcto. À
noite pensei no que tinha feito e estava a tomar coragem para contar ao
meu namorado, quando ele me ligou a dizer que já sabia o que tinha
feito e acabou comigo. Comecei a imaginar tudo e a juntar as peças
todas o amigo dele estava apaixonado pelo meu namorado. Daí ter feito
tudo para ele acabar comigo. Foi uma desilusão assumi tudo o que fiz...
hoje ainda penso nele e devido ao que aconteceu queria estar ao lado
dele mas nunca mais o vi nem sei nada sobre ele desapareceu da minha
vida como se eu tivesse carregado delete...
Sempre no meu coração!

Mário
23 Anos
#133

- 416 -
Para ti, pai.
Nasci em Luanda e depois de passar os primeiros 3 anos de vida
com muita felicidade, dei por mim no meio de uma guerra que não
entendia... Hoje já percebo. Com o 25 de Abril em Portugal fomos
"abandonados"...
Viemos, eu e os meus pais, para Portugal em 1975. Ficámos no
Hotel Palace. Deve ter sido para nos compensarem de tudo o que
perdemos, mas nunca o governo português irá compensar o que
passámos. A única alegria que tinha naquela altura era um pianista que
me deixava tocar com ele. Obrigada, estejas onde estiveres....
Depois, o meu querido pai foi lutar pela vida, para provar qual era a
sua profissão em Angola e teve que fazer uma formação em Santarém,
enquanto ficámos na casa da minha avó, em Porto Santo. Aí, conheci a
família e amigos, que não conhecia a não ser de ouvir falar, das cartas e
fotos. Depois viemos para Lisboa morar num quarto alugado, em
Entrecampos, onde só um senhor de idade era simpático connosco.
O meu pai ia trabalhar na PSP e a minha mãe nas limpezas
juntamente com a minha "tia". Eu ficava com o meu "tio" que era
porteiro. Durante 7 anos molestou-me física e psicologicamente, até aos
meus 12 anos de idade. Contei à minha mãe, que achou que eram coisas
de crianças... mas nessa altura, ele afastou-se.

- 417 -
Vivia então em Caxias, com os meus pais, numa casa muito velhinha
mas que eu adorava e que foi a primeira a que chamei lar desde que
cheguei de Angola. O meu pai, um grande homem, era guarda prisional,
e a minha mãe trabalhava a dias, como se dizia na época. Uma mulher
lutadora, linda e tão honesta como o meu pai. Mais tarde passou a
trabalhar para o estado.
Entretanto tive um namorado que me respeitava, dava amor e
carinho. Tivemos a primeira relação sexual quando eu tinha 15 anos e foi
muito bom.
Nesse mesmo ano, em Agosto, fomos ao Porto Santo, visitar a
família, mas como a casa da minha avó era pequena fiquei a dormir em
casa da afilhada da minha mãe. Uma noite, ela abraçou-me e eu não
reagi. De manhã ela saiu para ir trabalhar e eu fui para a praia. À noite
fui sair com os meus primos e quando cheguei a casa fiquei algum
tempo sentada no muro a fumar, entregue aos meus pensamentos.
Quando me deitei, a afilhada da minha mãe, que era mais velha que eu 7
anos, abraçou-me e beijou-me. Naturalmente as coisas aconteceram e
nessa noite tive a minha primeira relação sexual com uma mulher.
Amámo-nos durante alguns anos, mas quando quis viver com ela,
desapareceu. Hoje é casada com uma alemão simpático, alcoólico, meio
louco mas com muito dinheiro.
Depois tive a minha fase bissexual dos 15 aos 18. Aí apaixonei-me
por uma miúda linda de Sesimbra, com quem vivi 6 anos. 4
maravilhosos e 2 anos de tormentos, pancada e maus tratos. Ela estava
envolvida em drogas duras e desfez a relação à pancada! Acabou
finalmente quando ela se juntou com um alemão de idade, mas um
homem maravilhoso que não sabia o que estar a levar para casa...
Entretanto, amei novamente outra mulher, linda! Uma princesa!
Durou 2 anos, mas ela era casada e as coisas terminaram quando me
enganou, não com o marido mas com outro homem.
Estive sozinha uns tempos, para curar a dor de a perder. Tive umas
curte, até que comecei a andar com uma moça surda, que eu pensava ser
fiel à nossa relação, que durou 6 anos. Vim a descobrir que vivia comigo,
andava com um homem e com a ex namorada.

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Não me arrependo desta relação porque através dela conheci a
mulher da minha vida, com quem estou há 7 anos e 4 meses. É uma
mulher com M grande. Amiga, honesta, trabalhadora, fiel, simpática,
linda, companheira, e a cumplicidade entre nos é fantástica.
Sim é difícil a vida. É difícil encontrar o amor da nossa vida, é difícil
encontrar a nossa cara metade, mas vale a pena lutar. Ela é a minha
felicidade. Ama-me eu amo-a, respeitamos a nossa relação, e gostávamos
de viver (se Deus quiser) juntas ate termos as duas os cabelinhos
brancos e sermos velhinhas e andarmos a passear à beira mar de
bengalinhas londrinas.
A todos os que passaram por guerras, foram molestados, amaram e
desamaram, sofreram, foram vítimas de maus tratos, foram enganados e
enganaram, incluindo eu... (porque não sou santa) uma coisa vos digo:
para chegar a ter a felicidade que eu tenho hoje, vale a pena.
Os meus pais não aceitaram nem compreenderam na altura, mas
com o tempo o meu pai, que faleceu há 5 anos e 3 meses, disse-me que
só queria que eu fosse feliz, não interessava com quem. Homem ou
mulher, a escolha era minha. A minha mãe trata muito bem a minha
esposa, mas como amiga, não aceita outra palavra para a nossa relação.
Mas como ela já sofreu tanto na vida, eu deixo que assim seja.
Tenho uma família maravilhosa, um mano que vai fazer 30 aninhos
este mês, que ficou triste e revoltado quando eu saí de casa em 1998/99,
mas que com o tempo e algumas conversas, hoje aceita a minha relação.
Sabe e somos muito amigos outra vez. É um rapaz impecável,
trabalhador e sai ao pai em muitas das qualidades. Eu saio mais à minha
mãe, amiga dos seus amigos, refilona, mas com bom coração e
princípios, graças a minha educação em casa, na igreja católica e na
escola.
Tenho um afilhado maravilhoso, um "sobrinho" espectacular, bons
amigos e amigas... grupo restrito porque quantidade não é qualidade.
Estou desempregada, neste momento, sem qualquer apoio do
estado, por motivos de doença crónica: fibromialgia, cansaço e
reumatismo crónico. Fiz 2 operacões no espaco de um ano: redução do
peito e da barriga, por causa das dores na coluna. Emagreci 20kg. Tinha
90kg o que para 1,55m era demais. Quero chegar aos 60kg. E continuo a
- 419 -
lutar para criar a minha micro empresa e se Deus e Nossa Senhora de
Fátima quiserem vai correr tudo bem.
Não desistam de lutar para ser felizes. A vida é dura, mas
recompensa-nos sempre das lutas que travamos. Um abraço de amizade,
um beijo de esperança para todos. Não desistam de se assumir. A
felicidade está sempre à espreita para nos apanhar e surpreender de
forma positiva.

Ana Correia
38 Anos
#144

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Conselhos Inesperados
Num período menos bom da minha vida em 2007 fui passar o fim-
de-semana a casa de uma grande amiga e de longa data. A casa dela,
mesmo na altura em que vivia com a mãe, era sempre animada e rica em
partilhas e repleta de pessoas interessantes.
Nesse dia, mesmo sem soirée marcada, outras duas amigas aparecem
para um copo de vinho e os vizinhos do andar de baixo juntam-se a nós,
num ritual que me pareceu habitual.
Eram dois homens que partilhavam a vida conjunta, tinham uma
relação homossexual. Lindíssimos os dois, ao ponto de eu ter aquele
pensamento "os mais giros são sempre gays"!
A conversa fluiu como sempre pela noite adentro, 4 mulheres e dois
homens a falarem de livros, cinema, o que cada um faz e o que goza
disso. E inevitavelmente num universo de gente jovem madura
acabamos por nos encaminhar para o universo das relações.
As 4 mulheres estavam um pouco decepcionadas com a esfera
amorosa da vida: relações sem futuro, divórcios, namorados imaturos –
eram as descrições.
Os dois homens estavam felizes e serenos e acabaram por partilhar
connosco os seus truques para uma relação dar certo, o que não fazer, o
que não esperar, o que interpretar.

- 421 -
Os conselhos inesperados foram a maior aprendizagem dessa noite.
Uma vez mais a vida me ensinou: Todos diferentes, todos iguais.

Laranja Lima
30 Anos
#100

- 422 -
Sex and the city aka my life
A evolução social e abertura de mentalidades é sempre positiva,
principalmente no que toca a tolerância sexual, mas quando ocorre
forçadamente e não de uma forma natural é como dar rebuçados a uma
criança.
Apesar de a homossexualidade ainda não ser totalmente tolerada,
nos últimos anos multiplicaram-se os espaços de convívio e engate,
físico e virtual, onde o sexo fácil prolifera criando um ciclo vicioso e
decadente. Eu ainda sou do tempo em que bares gay só mesmo em
Lisboa ou Porto, e o assunto simplesmente não se falava, o
desconhecimento era total, as primeiras pessoas que conheci foi por
anúncio de jornal, o que chega a ser cómico e me remete para anúncios
como: ―Senhor de 65 anos, viúvo, reformado e bem na vida procura
senhora ou menina de bem, que saiba cuidar da casa, para futuro
casamento religioso…‖, ou mesmo o titulo do celebre e fantástico livro
―Mulher procura homem impotente para relacionamento sério‖.
No meu tempo o simples facto de conhecer alguém, ter alguém do
nosso lado, alguém com quem pudéssemos falar livremente era algo
valioso e que estimávamos, porque era difícil conhecer alguém

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principalmente em meios pequenos longe das metrópoles, eu tive a sorte
de conhecer pessoas na mesma situação que eu e juntos descobrimos
um novo mundo, e embora a curiosidade da juventude nos levasse a
tentar descobrir mais coisas e fazer as loucuras próprias da idade
existiam valores mais fortes que não encontro hoje.
Não entendo se de facto o problema será mesmo meu ou se os
tempos modernos criaram um mundo à parte que não entendo, uma
nova espécie, exceptuando os sexualmente promíscuos de natureza, sei
que no fundo o que todos procuramos é alguém para amar, um
companheiro, embora por vezes o esforço para que isso aconteça seja
mínimo. E depois das inúmeras desilusões acaba por acontecer o
inevitável caindo todos no mesmo ciclo vicioso de promiscuidade e sexo
fácil, mas quem poderemos culpar senão nós mesmos, que com tanta
falta de valores e sinceridade tornamos qualquer Romeu num Casanova,
predador sexual à força.
Talvez uma forma de vingança doentia contra quem nos desiludiu,
nos fez sofrer, onde cada desilusão nos impele para a cama de outro
numa tentativa desesperada de esquecer a nossa desilusão e solidão,
fazendo de nós autênticos animais sem sentimentos impelidos pelos
impulsos sexuais libidinosos, sem o mínimo esforço de os tentar
controlar, para não cairmos em desespero mas ao mesmo tempo
mutilando-nos mentalmente, numa espécie de alivio momentâneo que
nos enterra cada vez mais num vazio sem fim.
Sempre tentei ser sincero, verdadeiro, nunca quis magoar ninguém,
por isso não entendo o que leva alguém a viver e criar ilusões, a dizer o
que não sente, a mentirem, a criar situações para a qual não estão
preparados, para depressa fugir cobardemente sem qualquer explicação
lógica, magoar alguém que não pediu para ser magoado, que se calhar
não merecia ser magoado, quando bastava apenas ser sincero. Será que o
entusiasmo inicial da descoberta deixa as pessoas letárgicas impedindo-as
de pensar no que estão a fazer, que estão a lidar com os sentimentos dos
outros.
E afinal o que procuram estas pessoas? Dizem que procuram
alguém para amar e serem amadas, mas no entanto fazem precisamente
o contrário, no seu anseio de ter algo mais, não se contentando apenas
- 424 -
com uma pessoa só, por não valorizarem o que têm, porque não dão
valor ao simples facto de terem alguém que os ama incondicionalmente,
acabando por ficar sozinhos e culpando os outros pela sua solidão e
carência afectiva, pelo seu vazio profundo, acabando por entrarem mais
cedo ou mais tarde no ciclo vicioso do sexo fácil, do prazer instantâneo,
porque simplesmente desistem, vitimas deles próprios porque julgam ter
o controlo, mesmo quando se deixam ser abusados, física e
psicologicamente.
Mas será que podemos culpar e julgar quem desistiu e prefere andar
a saltar de cama em cama, evitando a todo o custo envolver-se, tentando
sobreviver da melhor forma a esta espiral de degradação e tristeza,
quando de certa forma todos nos contribuímos um pouco para isso.
A promiscuidade masculina é inata por natureza e mesmo em
sociedades que evoluíram de forma natural a promiscuidade existe mas
as regras são diferentes, é uma opção de vida, não são impelidos para
esta forma de vida como único escape possível à solidão, simplesmente
porque são constantemente magoados e iludidos.
Eu sei o que procuro, também sei que já o encontrei e perdi, em
parte por culpa minha porque era jovem e embora tenha sido sempre
sincero poderei não ter sabido resolver as coisas da melhor forma, mas
principalmente porque não fui amado o suficiente. Também já desisti
muitas vezes, também eu já caí no ciclo vicioso, mas sempre fui sincero
e nunca iludi ninguém, nunca enganei ninguém, nunca criei algo
impossível de acontecer nem criei falsas expectativas, não tenho
necessidade disso por mais magoado que me sinta, existem valores que
se sobrepõem, respeito-me e respeito os outros.
As relações cada vez duram menos, não há entrega,
companheirismo, compreensão, tolerância e respeito, nunca estamos
contentes com o que temos e queremos sempre mais, mesmo que isso
seja impossível, conhecer um casal que estejam juntos há anos, que
tenham uma vida em comum, e sejam felizes e fieis é algo surreal, eu
apenas conheço um…
Gostava de poder entender o que afinal procuram as pessoas que
vou conhecendo, com quem me envolvo, o porquê de dizerem uma

- 425 -
coisa e fazerem exactamente o oposto, o que os leva a trocar o certo
pelo incerto, o porquê de continuar a acreditar e a tentar.
Será que estamos a ser sinceros e correctos com nós próprios?

G. Miguel Damas
31 Anos
#5

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Beatriz, um outro amor
Sete anos...namorava há quase sete anos com o Bernardo. Era muito
feliz com ele. Nunca em altura alguma senti que o nosso namoro
pudesse terminar. Sentia que, juntos, éramos mais que um simples casal.
Éramos companheiros de vida. Juntos, vivemos a nossa adolescência.
Partilhávamos tanta coisa… certamente, depois de tanto tempo juntos, o
futuro apenas poderia ser o casamento e a construção de uma família,
com filhos lindos… e seríamos muito felizes porque o merecíamos.
Chamo-me Joana, tenho 24 anos, conheci o Bernardo quando tinha
14 anos e ele 13, através de amigos em comum. De início não houve
qualquer tipo de ―química‖, mas com o passar do tempo e com o
conhecimento que fomos tendo um do outro acabámos por começar a
namorar, um namoro simples, um ―deixa rolar‖ que se tornou sério.
Durante toda a minha infância e início de adolescência nunca pus
em causa a minha sexualidade, a dita orientação. Nunca pensei nisso
nem reflecti sobre ela, estava mais que certo que tinha nascido
heterossexual. Nunca tinha tido qualquer tipo de atracção física ou
sentimento para além de amizade com nenhuma rapariga, antes do
Bernardo tinha conhecido outros rapazes e senti-me atraída por alguns.
O ―mundo gay‖ nunca me fez qualquer tipo de confusão, via em
filmes e achava piada ver os meninos a beijarem-se, ver raparigas a
beijarem-se. Era diferente...diferente no sentido em que nem achava
piada nem me fazia confusão. Era como ver um casal heterossexual a
beijar-se. Certamente devido à educação que tive em casa, assim como

- 427 -
na rua, ―o errado é dois meninos a beijarem-se, duas meninas ainda se
aceita‖.
Quis o destino, porque eu acredito que na vida nada acontece por
acaso, que travasse conhecimento com a Rita. A Rita era uma menina
especial, eu sentia que ela era especial, diferente das outras, mas nunca
percebi muito bem o porquê. Tornámo-nos amigas, que hoje ainda
somos, muito chegadas e com uma cumplicidade enorme. Com o tempo
a Rita disse-me que era lésbica, facto que recebi como se ela me estivesse
a dizer que era do Benfica ou que gostava muito de chocolates. Não
fiquei surpresa, lembro-me apenas de ter pensado que pela primeira vez
na minha vida estava a ter contacto directo com alguém homossexual.
Nada afectou a nossa a amizade e nem sequer penso que ela é lésbica
quando estou com ela. Agradeço profundamente pelo facto de ter
conhecido a Rita. Sem ela não sei como teria sido muita coisa que viria
depois na minha vida.
Pratico desporto federado, já estive em vários clubes e é normal que
todos os anos conheça gente nova, colegas de equipa novas. Em 2007
assinei contracto com uma equipa nova, uma equipa onde conhecia
pouca gente, quase tudo me era novo. Os treinos começaram e
facilmente ganhei confiança com a minha nova equipa. De entre as
minhas novas colegas conheci a Beatriz, que também era nova por lá. A
Beatriz é uma pessoa reservada, que não deixa que a sua vida seja
exposta seja de que modo for. É uma pessoa um pouco distante e fria à
primeira vista. Uma pessoa com quem tive grandes dificuldades em
ganhar confiança e em me aproximar.
Os treinos continuavam, o meu namoro com o Bernardo
continuava e, estranhamente, dava muitas vezes por mim a pensar na
Beatriz, dava por mim a divagar na página de internet dela...a ver as
fotos dela, depois como que acordada pensava ―Que ando eu aqui a
fazer?‖ e tentava não pensar muito no assunto. Vezes sem conta
sonhava com a Beatriz e comecei a perceber que de todas vezes que nos
treinos ela olhava para mim e pior quando falava comigo, o meu coração
disparava, sentia o suor a escorrer nas minhas costas, a garganta seca e o
rosto a ficar quente. Comecei a ir para os treinos com um pânico
enorme de ela perceber que eu me sentia assim na presença dela.
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Entrava de mansinho e saía com a cabeça baixa, tentando dar o menos
nas vistas possível. Hoje sei que tudo isto fez com que ela reparasse mais
em mim.
Mas o que me estaria a acontecer? A comida não descia quando a
Beatriz me vinha ao pensamento, sentia o coração a subir até à boca
quando ela entrava no Messenger. Às vezes até a bloqueava para não
correr o risco de ela vir falar comigo. E assim andei durante uns três
meses. Tentava não pensar no assunto, agarrava-me ao Bernardo com
todas as forças, pedia-lhe com o olhar que ele me levasse aquele
sentimento estranho que estava a sentir, o Bernardo não entendeu.
Entendeu que algo se passava mas não o quê. Perguntava-me e eu
negava, dizia que não era nada, que andava apenas cansada...
Sentia-me a afundar numa depressão, não sabia como contar isto a
alguém...‖Mas porquê que ela não me sai da cabeça? Porquê?‖...a
pergunta estava mal feita, devia-me questionar o porquê de ela não me
sair do coração e assim eu saberia logo a resposta: estava apaixonada por
ela. Sem dúvida nenhuma – aquilo, era Amor.
Como que uma criança na idade dos porquês começo a questionar
tudo. Ainda bem que tinha a Rita como amiga, ela seria uma boa pessoa
para me ajudar, pensei eu...e com razão. Enchi a Rita de perguntas,
perguntas que hoje sei que não tinham cabimento. Perguntei à Rita
como era gostar de uma mulher, como era beijar uma mulher, tocar
numa mulher, amar uma mulher. Hoje sei que o Amor sente-se da
mesma maneira e faz-se da mesma maneira. A Rita incrédula ia-me
respondendo mas eu via nos olhos dela o espanto e ao mesmo tempo o
entendimento que estava a sentir do porquê de tudo aquilo. Por fim
perguntou-me ―Tu gostas de uma mulher?‖. Se antes tinha dúvidas do
que estava a sentir, aquela pergunta feita em voz alta fez cair por terra
qualquer dúvida que tinha. Respondi lavada em lágrimas ―Sim gosto,
muito, e está-me a doer tanto‖. A Rita abraça-me e fico a soluçar nos
braços dela. Finalmente toda a tensão acumulada ao fim de tantos meses
saía cá para fora.
Foi um passo muito importante para mim entender o que estava a
sentir, o segundo passo teria de ser falar com o Bernardo. Tinha que lhe
contar o que estava a acontecer. Acima de tudo o Bernardo era o meu
- 429 -
melhor amigo, sabia que ele ia entender, mas ao mesmo tempo tinha um
medo enorme de o magoar, de ferir a sua masculinidade. O Bernardo
não me falhou como homem, sempre foi um bom amigo, um bom
companheiro. Eu amei o Bernardo de verdade, aprendi muito com ele e
acredito que ele também aprendeu comigo. Quando contei ao Bernardo
ele não acreditou, até se riu. Éramos o casal perfeito aos olhos de
muitos, aquilo não podia estar a acontecer com ele...connosco. Mas
estava… e quando ele me olhou nos olhos caiu em si, que era verdade e
que sim, o mundo que tínhamos construído ao longo do tempo, estava
de certo modo a ser encerrado. Como que apelando à razão e deixando
o sentimento de lado, ele olha para mim e diz-me ―Certamente que te
falhei como namorado, mas nunca te irei falhar como amigo, estou aqui
para tudo‖. Não esperava outra reacção dele, sabia que seria assim, eu
sabia que conhecia a pessoa com quem namorei sete anos da minha vida.
Senti-me completamente leve, depois de assumir, para mim mesma,
o que estava a acontecer, saber aceitar o que somos é algo que sempre
defendi e eu aceitei e recebi este sentimento de braços abertos. O
problema passou a ser o de contar ou não contar à Beatriz o que sentia
por ela. Parte de mim queria muito contar, sem medos, mas outra parte
não queria. Tinha que ter em conta tanta coisa...e se a Beatriz não fosse
lésbica? Pior, se a Beatriz fosse homofóbica e não entendesse o meu
sentimento? Numa noite, porque à noite a nossa emoção sobrepõe-se à
razão, escrevo um e-mail à Beatriz, um e-mail onde abro o meu coração,
onde lhe conto todo o meu sentimento, todos os meus medos, todo o
meu respeito. Não obtive uma resposta escrita ao meu e-mail, na semana
seguinte depois de mais um treino, quando vou a sair ela estava na rua à
minha espera.
―Podemos conversar?‖ disse-me ela. A tremer que nem ―varas
verdes‖ digo-lhe que sim, preparando-me para tudo e mais alguma coisa,
para o bem e para o mal… e ali estávamos as duas sentadas no passeio
na esperança que uma de nós começasse a falar. Ela começou... disse-me
que sabia o que eu estava a sentir, que não devia ter medo deste
sentimento, que já tinha passado pelo mesmo, que não gostava de
rótulos mas que sim, que era lésbica. Não consigo descrever o alívio e a
alegria que senti naquele momento.
- 430 -
Começámos a nos conhecermos melhor e algum tempo depois
começámos a namorar. Em momento algum me passou pela cabeça
esconder este namoro. A Beatriz não estava habituada a mostrar afecto
em público, mas teve que aprender e sei que fez um grande esforço, mas
também sei que se tornou numa pessoa mais feliz por isso. Assumimos,
sem medos, ao nosso pequenino mundo que nos amávamos.
Namorei com a Beatriz sete meses. Terminámos porque temos todo
o direito de terminar namoros como qualquer outro casal. Ter
conhecido a Beatriz da maneira como a conheci mudou em muito a
minha vida, o modo como passei a vivê-la. Inevitavelmente passei a
conhecer mais gays, lésbicas e bissexuais e cada vez mais me identifico
com este mundo colorido que conheci e onde sou feliz. Nunca contei
aos meus pais sobre a Beatriz nem sobre as outras mulheres que vieram
depois, não sinto qualquer necessidade de contar, não tenho medo da
reacção. Tenho a certeza que com o tempo eles acabariam por aceitar a
ideia, pois acredito que o amor que eles sentem por mim vai além de
tudo.
Sou extremamente feliz por ser quem sou, como sou. Nunca fui
vítima de homofobia, nunca me senti discriminada, não me perco
pensamentos para perceber porque sou assim ou o que serei na
realidade, lésbica? Bissexual? Não me importa a teoria, importa-me a
prática, importa-me aquilo que sinto, acima de tudo o que me faz feliz.
Tanto a Rita, como a Beatriz, como o Bernardo são presenças
constantes na minha vida. O Bernardo cumpriu o que prometeu, está
sempre comigo quando preciso e sei que sofreu com o meu coming out
mais do que qualquer outra pessoa, a Rita continua a amiga de sempre,
onde basta apenas um olhar para me entender, a Beatriz seguiu a sua
vida tal como eu, continuamos a jogar juntas e irei estar para sempre
grata por ela ter acordado em mim este sentimento de ser capaz de amar
para além do outro amor.

J. V.
25 Anos
#49

- 431 -
VIAGENS

- 433 -
Em coiso e tal
Desde miúdo que sempre soube o que era e nunca tive problemas
em assumi-lo a mim próprio. Era tão natural como a terra girar em
torno do sol ou um homem gostar de uma mulher. Olhava para os
rapazes e eram eles que me atraíam. Lembro-me de em criança certa vez
estar a olhar para uma revista e ver uma passagem de modelos
masculinos de fato banho e ficar completamente impressionado com
aquilo e lembro-me de o meu pai se aperceber disso e vir com uma
conversa sobre paneleiragem. Foi provavelmente o primeiro momento
em que me senti pressionado a esconder aquilo que sentia.
Cresci e com isso aprendi que o que eu sentia era errado,
incompreendido e devia ser ocultado e corrigido. Não era normal. Os
rapazes não gostam de rapazes. Gostam de miúdas, de falar do tamanho
das mamas e da dimensão do rabo. Falar sobre as voltas que davam com
elas se pudessem. Sobre mostrar-lhe o que é ―bom‖. Proferirem umas
quantas interjeições cheias de masculinidade para mostrar quem é o
macho dominante. E eu…preferia ficar calado. Nunca fui de mostrar
aquilo que era mas também nunca fingi o que não era. Preferi esperar.
Sabia que daí a alguns anos abandonaria a velha e limitada escola e daria
um passo em frente para fora da pequena vila em direcção a Lisboa,
aquela grande Sodoma portuguesa. E foi então que conheci pessoas

- 435 -
como eu, que tinham escondido durante grande parte da sua vida aquilo
que sentiam. O verdadeiro admirável mundo novo.
Foi assim que pouco depois conheci a primeira pessoa que mexeu
comigo. E, por mais que posteriormente, quando já não existam os
sentimentos de paixão nem aquela intensidade avassaladora com que se
fazem as coisas no início, nunca nos esquecemos de quem foi o
primeiro. E se agora olho para trás e penso que foi uma tolice, no quão
inocente e ingénuo era, naquela altura tudo era misterioso, mágico até. A
ansiedade palpitante no peito, o nervoso miudinho de conhecer alguém,
o medo de ser descoberto, a excitação, um turbilhão de ideias movendo-
se a velocidades supersónicas na minha cabeça, e a voz do medo a ecoar
bem fundo: ―NÃO DEVES FAZER ISSO‖. Imagens do juízo final, do
fogo eterno. Um ―Dies Irae‖ de Verdi ou de Dvorak como pano de
fundo. Mas como poderia ser essa a minha recompensa se eu não estava
a fazer nada de mal? Gostar de alguém é errado? Até que num dado
momento tudo desapareceu, tudo deixou de ter importância. As vozes
calaram-se, o tempo parou. O coração batia aceleradamente, o corpo
ardia. Foi o meu primeiro beijo. Como poderia haver vozes de
julgamento quando o que eu sentia era tão bom, tão puro? Como é que
eu merecia o inferno se me sentia a subir ao céu? E o ―dies irae‖
transforma-se num ―in paradisium‖ de Fauré. Uma paleta de novas
sensações foi descoberta, de novas aventuras por explorar.
Mas o tempo não pára, não fica congelado, por mais que
quiséssemos. Ele avança impetuosamente, segundo após segundo, numa
cadência sem fim, implacável. E o primeiro amor passa, e vem um
segundo. E passa e vem um terceiro. E cada um deles algo novo e
sempre com uma esperança. Uma esperança de que será uma nova
primeira vez. Uns são apenas bons momentos, outras paixonetas, outras
paixões. Há alguns, muito raros, que se confundem com qualquer coisa
bem mais séria, incerta ao sujeito inexperiente. Há os que ficam para
amizade, há aqueles que vemos mais tarde numa esquina do Bairro Alto
com um copo na mão e há também aqueles que nunca mais voltamos a
ver. Há muitas formas e combinações possíveis de relacionamentos, de
durações, de proximidades, de empatias.

- 436 -
E até que cheguei ao dia de hoje, ao dia em que escrevo isto, que
supostamente deveria ser uma história, mas que não passa de uma
deambulação sobre o que penso e vivo. E enquanto aqui escrevo,
lembrei-me de repente de uma carta que guardei, e que tinha escrito
quando tinha dezoito anos, ao meu primeiro ― namorado‖. Ao lê-la tive
uma enorme vontade de rir e apaga-la, tal era a idiotice e ingenuidade
com que a escrevi. Estão lá todas as componentes para um verdadeiro
drama pucciniano. Está escrita quase em forma de poesia lírica. Está lá a
ironia mascarada, os sentimentos à flor da pele. O triste fim, como o do
terceiro acto da La Boheme, e uma conclusão em tom de esperança.
Ainda pensei nem sequer falar nele, mas acho que até seria pertinente
transcrevê-lo na íntegra. Creio ser um exercício interessante observar a
mesma coisa com duas perspectivas temporais completamente
diferentes, em circunstâncias opostas. Uma completamente apaixonada,
outra de indiferença, quiçá de remorso por não ter feito as coisas de
outra maneira. Mas as coisas acontecem da forma que acontecem, da
forma que nos parece mais correcto no momento, impulsionados por
um instinto, uma necessidade, uma vontade e não tanto pela
racionalidade fria e calculista. E para não fazer demorar mais os meus
leitores, abaixo segue a dita carta:
“Ainda me lembro quando de repente tu, naquela noite em que tanto falámos,
decidiste aventurar-te para vir ter comigo. Foi numa sexta-feira, igual a tantas
outras, não fosse o que aconteceu depois marca-la para o resto da minha vida.
Era de noite. Não conhecias esta minha terra, mas mesmo assim não receaste.
O combinado era na estação. À última da hora eu tinha inventado uma desculpa
para poder ir ter contigo (nem acredito que tenha conseguido!) mas lá estava eu à tua
espera (e como tu te atrasaste!) de súbito vi um carro chegar, com as descrições que
tinhas dado. Lentamente movi-me (tive medo) e arranjei maneira de ver a tua
matrícula (BF de “boyfriend” disseste tu. Seria um presságio? Lol).
Entrei no carro. Aperto de mão. Confesso que te achei com alguns tiques e ao
início parecias meio “despassarado” (oh como desejo voltar a viver isso tudo de novo!).
Fomos para a Alhandra, encheste o depósito do carro e fomos para junto do rio.
Falámos das nossas bandas, de maestros, de música e de músicas…colocaste k7’s…o
carro estava voltado para o Tejo, a noite estava limpa, a lua e as estrelas cintilavam
lá no alto.
- 437 -
De repente comecei a sentir a tua mão a tocar a minha (que vergonha! Ainda
não entendi o que te levou a fazer aquilo!) corei e levei a mão atrás. Nunca ninguém
me tinha feito uma coisa dessas e eu não gostei desses avanços (no íntimo adorei). De
novo agarras e eu deixo (nunca tinha tido ninguém interessado em mim) e daí foi um
pulo até estarmos aos abraços. Ensinaste-me os significados dos beijos e começaste a
investir (foi tão estranho! Enquanto escrevo isto até estou a corar e a sentir cá uns
calores!) nariz toca nariz…querias mais mas eu desviei. De novo insististe e eu não
resisti. Foi o meu primeiro beijo. Só por isso ficarás marcado para sempre. Foi lindo,
mágico. Naquele pequeno momento o tempo pareceu que parou e todo o mundo e
felicidade reduziam-se àquilo. Aquele sonho duraria para sempre…
Perto de onde estávamos começou a haver movimento fomos para perto da minha
antiga escola. De lá de cima via-mos a lua a brilhar no rio e a cidade a dormir.
Naquele calor de novos apaixonados beijávamo-nos e acariciávamo-nos e tudo era
perfeito. Mas o tempo existe e ele voava…
Voltei para casa. Os telefonemas não cessavam. Ai! Como eu passava o tempo
à espera de ouvir a tua voz. Bem sei que falhei por não te ter telefonado mais (e
lamento por agora quase nunca te ouvir…)
Combinámos um novo encontro em Lisboa. Passámos a tarde toda juntos,
naquela loucura que eu nunca pensei viver (ainda me ponho a rir sozinho quando me
lembro). Não sei como pudemos nós fazer tal coisa, mas não me importava de repetir.
Mais tarde, estivemos juntos de novo. Também na minha terra. Em frente ao
rio. Do outro lado via-mos a cidade a iluminar a água juntamente com a clara luz.
Na rua estava frio e no teu carro o fogo ardia. Naquela noite em que te provei o que
sentia…em que nos tocámos...em que eu pensava que tudo duraria para
sempre….mas assim não foi…
Os dias passavam e não nos encontrávamos. Também as coisas a nível familiar
não corriam da melhor maneira…e tudo e tudo combinado…levou…por fim…à
conversa fatal…ai como chorei…ai quanta vontade de desistir de tudo. Quando um
sonho se torna em pesadelo, o mundo parece acabar. Ligaste-me uma última vez….A
última vez…os dias passavam placidamente…sempre iguais…o riso e sorrisos que
mostrava quando estava com outras pessoas eram nada mais que máscaras gregas que
ocultavam a verdadeira tragédia. Do teu lado também sentia dor…e o pior de
tudo…o silêncio…tive tantas dúvidas, tantas questões…todas elas sem
fundamento…nessa fase sei que também fui cruel...que te disse coisas frias e más das
quais ainda hoje me arrependo…foi uma fase cheia de reticências e pontos de
- 438 -
interrogação…ainda nos encontrámos uma vez no Vasco da Gama, estivemos juntos
frente a frente 10 minutos e foste-te embora….saí dali logo a seguir a ti, corri para a
estação com as lágrimas quase a caírem…apanhei o comboio….cheguei a casa, deitei-
me na cama…e o meu leito ficou molhado…
Os dias passaram e começámos a conversar mais. Até que naquele dia eu te
perguntei se querias vir ter comigo a Lisboa para estarmos juntos à tarde. Pergunta
essa à qual respondeste perguntando se eu não queria antes ir ter contigo à tua terra.
Não pensei duas vezes (que loucura!) e fui. Apanhei o comboio e ala que se fazia
tarde! Estivemos juntos, conheci os teus amigos e depois, bem perto do final, um
momento verdadeiramente a sós. Abraçámo-nos e beijámo-nos. Oh! Que coisa!
Quanta alegria senti! Ainda sentias algo por mim. Quanta esperança me encheu.
Ainda te fui ver ao fórum onde cantaste e dançaste. Gostei muito, a peça era muito
gira. Contudo nesse dia pouco falámos. Estavas cansado. Eu entendi. Depois de três
espectáculos quem não estaria?
Agora, que escrevo isto tudo, reflicto e penso, que apesar das lágrimas que verti e
que ainda de vez em quando verto, valeu a pena ter vivido o que vivi. Valeu a pena
ter sentido o que senti, valeu a pena ter-te conhecido.
A ti só tenho a agradecer e nada mais… Continuarás para sempre na minha
memória e nas minhas orações. Muito obrigado por tudo.
Gosto muito de ti…
Teu amigo”
Pausa para risos. Gargalhadas, eu sei. Até eu ri que nem um perdido.
Mas, com esta carta, pude apreciar varias coisas. O quanto eu mudei
(evoluí?), a forma mais distante com que aprendi a lidar com os meus
sentimentos, menos despretensiosa e dedicada, e a forma como abordo
as questões, mais nitidamente. Se antes era sempre loucamente
apaixonado, agora reduzi esses delírios aos compassos musicais da
ópera. Outra coisa que pude constatar é a forma como olhamos para o
assunto. Se naquela altura aquela pessoa era tudo para mim, hoje não
passa de um mero conhecido com quem, eventualmente, aqui ou acolá,
acabo por me cruzar. Não possuo qualquer tipo de sentimentos por ele
além da indiferença e no entanto partilhei com ele um momento
importante da minha vida. Importante porquê? Primeiro beijo,
virgindade…que tem isso de tão importante? Porque lhe atribuímos uma
carga dramática tão grande? Será que também faz parte de uma dessas
- 439 -
ideias estabelecidas pelo ideal de família e vida ideal concebido pelos
americanos no pós segunda guerra? Ou uma consequência de séculos de
tradição cristã? Em qualquer das formas, para mim possui sempre uma
importância, nem que seja por ser das memórias que mais nos irão
acompanhar até ao fim. Quer queiramos, quer não, de tempos a tempos
aquela memória que parecia tão distante e perdida assalta-nos, resultante
de um estímulo qualquer que tenhamos recebido. E eu, apesar de
actualmente ter uma ideia completamente diferente sobre aquilo que fiz,
prefiro continuar a guardar a imagem algo tosca e infantil que escrevi
naquela carta.
Bem, mas nem só de melancolia é feita a vida. Nem de histórias
idílicas e dramáticas. Há episódios bem caricatos, excitantes e até
completamente estranhos e inesperados. E é um desses que quero agora
relatar.
Aqui há coisa de dois meses, (em Fevereiro de 2009 para que quem
lê esta história daqui a um século se possa situar temporalmente), fui de
férias para o estrangeiro, mais concretamente Dublin. E lá, apercebi-me
que as pessoas não são tão abertas como em Lisboa, ou pelo menos as
coisas não são tão visíveis. Não digo que Lisboa seja um centro de
aceitação de gays, porque sabemos que existem bastantes zonas que é
preferível nem arriscar, mas, de forma geral, as pessoas olham e podem
comentar com o amigo ou franzir ligeiramente o cenho, mas reagem
com naturalidade. ―Sinais dos tempos‖ pensarão. E eu nunca me senti
nem descriminado pelos meus amigos, nem me senti observado, quando
uma vez ou outra faço uma demonstração de afecto em público. Em
todo o caso, tudo isto para falar de Dublin. Se cá achamos que Portugal
é um país bastante católico, a Irlanda nisso deve ganhar-nos muitos
pontos. Em Dublin as igrejas abundam e são bastante frequentadas,
católicas, protestantes, anglicanas, etc. Há pequenos altares no meio da
rua. Recordo-me de ver na rua principal, e considerada a mais larga rua
da Europa, uma estatueta de Cristo com velas acesas e não se vê aquilo a
que nós chamamos de ―bichas‖ – provavelmente deslocam-se todos
para Londres, tal como acontece no médio oriente onde todos se
deslocam para Telaviv. Mas focando-me no assunto para não me perder,
como a comunidade gay era pouco visível e eu estava em casa de amigos
- 440 -
que desconheciam a minha orientação sexual, não me aventurei muito
nesse aspecto da vida dublinense. Acontece que, num dos dias, fomos
todos jantar fora e depois sair para uns bares no Bairro Alto do sítio,
conhecido como Temple Bar, e nisto, estava eu já em estado ligeiro de
alegria, a dançar com uma rapariga que tinha conhecido nessa semana,
gira por sinal, quando ela me agarra a mão e puxa-me. Vou com ela até
ao balcão para pedir bebidas, mas como álcool lá é uma coisa rara,
acabámos por tentar roubar cervejas a quem as tinha acabado de pedir.
O plano era o seguinte: ela metia conversa com um tipo que lá estivesse
encostado a beber, e enquanto ele olhava para ela distraído e conversava,
eu sorrateiramente retirava a caneca de cerveja. Para terem uma noção,
um shot simples lá custava cerca de cinco euros. Portanto, embriagar-se
por terras celtas não sai propriamente barato. Ora, acontece que, a certa
altura, eu e ela estávamos a dançar junto a um balcão no andar de cima e
parámos para conversar e foi então que senti uma coisa que nunca tinha
sentido. Ela olhava para mim intensamente e eu, a começar a ficar
nervoso, olhava para ela. Percebi o que se estava a passar. Ela estava
bastante próxima de mim e eu a pensar ― mas que raio se passa aqui? E
porque quero eu experimentar? Sou gay pah! Panilas! Só curto gajos,
como é?!‖ e senti-me incrivelmente excitado com tudo aquilo e com
uma enorme vontade de a beijar e sabe-se lá fazer mais o quê. O que
depois aconteceu não vou narrar. Foi a minha primeira experiência
heterossexual e pensar nisto até dá vontade de rir porque passei a alta
velocidade por todas as dúvidas e receios que um heterossexual passa
quando experimenta o oposto. O estranho, o inesperado. O como será
possível? O quebrar de barreiras porque afinal eu gosto é de pessoas e
não tanto de um género. Ou então talvez apenas a curiosidade de
experimentar qualquer coisa absolutamente nova. Não que isso vá alterar
toda a minha orientação sexual, ou a minha forma de encarar a vida e os
meus objectivos. Foi apenas uma experiência, como qualquer outra, que
poderá eventualmente repetir-se ou não, tal como acontece com muitos
heterossexuais que experimentam uma vez e não o repetem. No entanto,
o que quero apenas salientar é como eu, sendo gay, pude pela primeira
vez percepcionar um pouco de forma real o que passa na cabeça de um
heterossexual que experimenta um contacto homo pela primeira vez e
- 441 -
foi interessante, ao mesmo tempo, comparar isso com opiniões que
tinha formado com o tempo e que partilho com outras pessoas. O
simples facto de experimentar e ter ficado excitado não implica que eu
no fundo goste e só não o admita. Tendemos a generalizar as situações,
abarcando todos os casos na mesma situação, analisando-a de uma
perspectiva que nos seja mais familiar e favorável, em última instância,
mas a verdade é que continuo a não sentir atracção por qualquer tipo de
mulher, salvo muito raras excepções quando Vénus parece ter encarnado
na terra. Mas do meu ponto de vista antigo, eu no fundo era
heterossexual mas não o queria admitir. E agora surge a pergunta? Mas
com que lógica se isso fosse verdadeiro a minha vida seria infinitamente
mais simples?
Enfim…pediram-me para contar uma história e acabei a contar
pequenas histórias e grandes deambulações pseudo-psicológicas mas
creio ser também interessante de observar o que os outros
experimentam e pensam sobre o que experimentam.

D. C. Silva
24 Anos
#1

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A viagem da minha vida
Não me lembro bem quando tudo começou, mas aconteceu quando
eu ainda era uma criança. Acho que tive a infância que todas as crianças
deveriam ter e a adolescência pela qual ninguém merece passar.
Em miúdo, era feliz, tinha atenção dos meus pais, mas
especialmente da minha mãe. Os meus dias eram agitados e preenchidos
com brincadeiras, desenhos e lições a aprender. Apesar de ir brincar
muitas vezes para a rua com as outras crianças, preferia passar o meu
tempo sozinho em casa, e inventar os meus próprios jogos e estórias.
Gostava de fazer isto, porque já sabia que era diferente e não gostava de
brincar às mesmas coisas que os miúdos da rua. Nunca gostei de jogar à
bola, e ainda hoje não vejo futebol por várias razões. Primeiro não
percebo absolutamente nada e depois porque não me identifico nem
com o desporto nem com a cultura associada. Voltando à minha
história, desde miúdo que sentia que havia algo diferente ou estranho
comigo.
A minha mãe era e sempre foi, desde que me lembre, a minha
confidente. Contava-lhe tudo o que se passava na escola, quem eram os
meus amigos, quem tinha dito o quê a quem e as reacções emocionais
que essas pessoas tinham tido. E ela sempre me ouvia com atenção, dava
conselhos e apoiava incondicionalmente. Hoje, olho para a fotografia

- 443 -
dela que tenho no quarto, e fico feliz por a ter conhecido, e por tudo o
que ela me ensinou ao longo dos anos que passámos juntos. Falo assim,
porque quando tinha 14 anos perdi a minha mãe, a única pessoa que
verdadeiramente me conhecia. Fiquei sozinho e desamparado, cheio de
dúvidas, com poucas certezas, mas julgava saber pelo menos uma coisa
com certeza, era um rapaz que gostava de rapazes.
Recuando um pouco no tempo, à fase da escola primária, lembro-
me do recreio. Também me lembro de ser o último ou nem ser
escolhido para jogar à bola. Nada disso me importava porque podia ficar
no muro da escola a olhar para os meus colegas enquanto eles ficavam a
correr, campo acima e campo abaixo, durante os dez minutos do recreio.
Mudei de escola, e os meus olhos continuavam a seguir os rapazes, nas
salas de aula, nos balneários, onde quer que fosse.
Com 14 anos voltei a mudar de escola, para uma cidade onde não
conhecia ninguém. Viva num meio pequeno, e fui para uma cidade não
muito maior no interior do país. Não conhecia ninguém mas
praticamente todos me conheciam, através do obituário do jornal local,
pois o meu apelido correspondia ao apelido que aparecia por baixo da
fotografia da minha mãe. Foi um tempo muito difícil, onde tive de
superar muitas provas, onde me tive de conhecer e ser forte. Apesar de a
minha família ser unida, a minha mãe era o meu pilar, e quando este
faltou, isolei-me. Nunca lhe cheguei a contar que os rapazes me atraíam.
Gostava de ter podido contar mais uma vez com os seus sábios
conselhos, mas não foi possível. Estive isolado cerca de um ano,
custava-me falar com quem quer que fosse, e apenas precisava de estar
sozinho. Após esse ano difícil, decidi que não podia ficar para sempre
apático, e que tinha de seguir o meu caminho e mudar o Mundo (ou
pelo menos mudar o meu Mundo).
Essa fase má passou, e cheguei a Lisboa, onde vim para a
Universidade. Aqui ainda me enganei durante uns anos. Tive uma curta
relação com uma rapariga, que acabou por se fartar de mim. E eu
compreendo-a, eu também me fartaria se estivesse no lugar dela.
Comecei a ter dúvidas, comecei a pensar que não fazia sentido enganar-
me e enganá-la. Ela também notava que havia algo de diferente comigo,
ou fora do comum dos outros rapazes e das relações dos nossos amigos.
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Enquanto estivemos juntos não tivemos relações sexuais, por eu achar
que não fazia sentido. Eu não tinha vontade e não queria ter um nível de
intimidade com alguém que viria a sofrer no futuro por causa da minha
atitude estúpida. Acima de tudo nunca a quis magoar, e acho que ela não
percebeu isso.
Não podia enganar-me nem mentir a mais ninguém. Era
homossexual e tinha de o assumir. Mas como? E como iriam ser as
reacções? O receio foi crescendo aos poucos dentro de mim.
Sensivelmente na mesma altura, um amigo meu deu-me uma brochura
de relatos e experiências duma associação homossexual de Lisboa. Li o
pequeno livro, que continha testemunhos positivos e negativos de várias
pessoas. Os positivos fascinavam-me, mas por outro lado tinha bastante
medo que os negativos viessem a fazer parte da minha vida, ao contar a
alguém. Até porque o meu amigo que me deu o livro, tinha sofrido
bastante por ter dito em casa que era bissexual, pois a reacção não foi
nada boa. Olhei-me ao espelho e lembro-me de pensar que ia ser feliz,
porque não ia ter más reacções, e mesmo que as tivesse elas não me
iriam afectar. Foquei-me nos relatos positivos, que lia diariamente.
Um acumular gigantesco de problemas familiares, de identificação
sexual, e questões académicas, fez com que eu saísse do país por uns
meses, para continuar os estudos no centro da Europa, no programa
Erasmus. Antes de ir, enchi-me de coragem e contei a verdade acerca de
mim àqueles que me eram mais próximos. Disse um por um a todos,
com excepção da minha família. Todos os meus amigos me acolheram
de braços abertos, e na minha família a única pessoa que sabe também
me deu força para continuar e ser feliz. Com esta força, entrei no avião e
ao chegar adaptei-me aos poucos, à minha nova vida, que nada tinha de
novo senão estar num local diferente. Sabia pela primeira vez o que era.
Não havia mais diferenças com os verbos ―ser‖ e ―estar‖. Dizia sempre:
―Sou rapaz, estou a estudar aqui na universidade, estou a viver na
residência, estou com 22 anos‖, e se mo perguntassem, dizia
calmamente: ―Sou homossexual‖.
Uma história curiosa que se passou no meu Erasmus, aconteceu
quando um dia fui com a minha turma a um parque no centro da cidade,
e uma rapariga me puxou aparte do grupo para me dizer que gostava
- 445 -
muito de rapazes como eu, com um cabelo como o meu e uns olhos
como os meus. Em vez de entrar em pânico, ou stressar, disse
calmamente: ―A sério? É que eu também gosto de rapazes assim!‖.
Acabamos por ficar amigos por causa desta situação, pois ela achou
imensa graça à minha calma.
Talvez tenha tido sorte, mas a maioria das pessoas que se cruzaram
na minha vida não me discriminam, nem o fizeram no passado. Pelo
menos nunca me senti vítima de algo desse género por parte dos meus
amigos e das pessoas que fui conhecendo. Acho que na minha vida
inteira apenas me senti duas vezes discriminado; uma vez na rua, e outra
vez numa festa da universidade. Antigamente quando pensava nisto
ficava irado, agora tento perceber os problemas de falta de confiança,
amor-próprio e insegurança que essas pessoas têm. Hoje, acolho todos
de braços abertos, aqueles que gostam de mim, aqueles que me odeiam,
e aqueles para os quais sou indiferente. No fundo, acho que ninguém é
indiferente a ninguém, apenas não têm as informações correctas, nem
sabem o sofrimento que alguns homossexuais têm de suportar em casa,
no trabalho, na rua, e ―os sapos‖ que têm de engolir da sociedade e das
suas piadas machistas e homofóbicas.
Regressando novamente à história, conheci o meu primeiro
namorado em Erasmus. Lembro me sempre dele com carinho, por ter
sido a pessoa a quem dei o meu primeiro beijo realmente apaixonado.
Lembro-me de todos os pormenores dos primeiros beijos, que
trocámos, as viagens, os sons, como estava o céu, as pessoas
desconhecidas que estavam à nossa volta, tudo. Vivi momentos muito
importantes com ele. Hoje não comunicamos muito porque vivemos a
milhares de quilómetros de distância e porque sinto que deixei de o
conhecer, apesar de ainda trocar e-mails esporadicamente.
O meu período Erasmus chegou ao fim e tive de regressar a casa,
onde fui novamente acolhido com os braços abertos por todos. Tive um
enorme choque cultural ao regressar, pois parecia me que eu tinha
evoluído muito, mas por aqui pouco (ou nada) tinha acontecido em seis
meses. Continuo a atribuir a culpa ao clima, que nos faz viver sempre
desta forma ―leve leve‖, do ―deixa para amanhã o que podes fazer hoje‖.

- 446 -
Já de volta a Portugal, tive uma outra curta relação. Tal como a
primeira, lembro-me de todos os pormenores do primeiro beijo, dos
olhares, de lhe tocar no cabelo enquanto víamos um filme na televisão.
O comum a qualquer outro casal no Mundo inteiro. Lembro-me do
tempo que passámos juntos, e como era feliz por ter aquela pessoa ao
meu lado. Hoje ainda mantenho o contacto com ele e fico contente por
ele ter uma relação séria que dura já dois anos, e por os sonhos dele aos
poucos se estarem a realizar. Tal como o meu primeiro namorado,
também a distância de milhares de quilómetros fez com que nos
afastássemos.
O choque cultural continuava a perturbar-me. Tentei (e tento) lutar
todos os dias para que as coisas melhorem. Gostava de ter direitos iguais
aos dos heterossexuais portugueses, mas caso não seja possível gostava
simplesmente nesta primeira fase poder usufruir de dias de luto caso o
meu companheiro morra. Acho inadmissível que um casal homossexual
não tenha direito sequer a um dia de luto nos seus empregos caso uma
situação extrema como a morte do seu companheir@ ocorra. De
qualquer maneira luto para ter direitos iguais, porque não me considero
português de segunda.
Gostava que os homossexuais portugueses tivessem também
mentalidades mais abertas. Noto, pelo menos em Lisboa um preconceito
enorme dentro da comunidade homossexual. A questão que me coloco é
―Porquê?‖. Deveríamos unirmo-nos e não mal tratarmo-nos uns aos
outros. Depois também me preocupa a promiscuidade. Esta é a principal
razão pela qual não frequento discotecas ―do ambiente‖. Ainda acredito
no amor, e espero encontrar alguém que partilhe os mesmos valores que
eu, e que pretenda uma relação duradoura, e não um ―queima-cartucho
para inglês ver‖. Conheço exemplos de casais homossexuais que têm
relações há pelo menos quatro anos, que invejo secretamente.
Quando estive fora do país, tentei aprender como funcionavam os
movimentos gays no centro da Europa, especialmente no país onde
estudei (Holanda), mas também nos seus vizinhos (Bélgica e Alemanha).
Fiquei fascinado com o clima experimentado nos cafés, livrarias e lojas
homossexuais. Também notei diferenças enormes nos clubes gay
nocturnos, em todos os gays e lésbicas que conheci na minha viagem.
- 447 -
Claro que também havia promiscuidade, mas não como cá. Também
lutavam pelos seus direitos, mas respeitavam-se uns aos outros. Em
Portugal, sinto que o ambiente do Porto é melhor que o de Lisboa, mas
ainda precisamos de nos unir mais e não ter medos, nem pensar que
tudo é mau ou que não vamos conseguir mudar nada no país. Já fizemos
muito e iremos continuar a fazer para os homossexuais da nova geração
não sofram o que nós sofremos.
O choque cultural que tive também se fez sentir com a primeira
relação que tive em Portugal, com um rapaz português. As relações que
tive antes foram sempre com rapazes de outras nacionalidades. O meu
namorado era extremamente mainstream e se toda a gente fizesse algo,
mesmo que ele não gostasse ou concordasse fazia o mesmo para
pertencer ao grupo. Talvez seja demasiado radical mas raramente fiz isso
na minha vida, pois parei sempre para pensar bem nos prós e contras
antes de tomar decisões e agir. E se não concordo com algo não o faço
ou não vou onde todos vão. Nem sempre é fácil sofrer as consequências
deste tipo de decisões e atitudes, porque a sociedade já não está
habituada a quem pensa, e muito menos a quem tem valores como
honra, dignidade e individualidade. Mas o problema é global, por isso é
que antes de assistimos a uma crise enorme de valores, camuflada pelos
interesses económicos, a que os meios de comunicação social chamam
crise económica.
Gosto muito do meu país e de todas as pessoas que se cruzam
diariamente na minha vida. Espero encontrar aqui o amor verdadeiro,
sem precisar de sair novamente do país. Hoje digo sem medos, sou Gay,
ou seja, sou feliz duas vezes. Feliz porque a minha vida corre bem,
porque julgo ser um motivo de orgulho para a minha mãe, por estar em
paz comigo mesmo, e feliz também porque esse é o significado de Gay.
Agora, quando por vezes tenho de dizer a alguém que sou
homossexual gosto muito das reacções que as pessoas têm.
Normalmente ficam surpreendidas ou estupefactas, e dizem-me que era
algo que não estavam à espera. Tenho pena que o preconceito esteja tão
enraizado na sociedade, pois existe uma ideia (errada) automaticamente
associada ao homossexual, e sempre que aparece alguém que não se
encaixe nesse estereótipo a reacção é de surpresa.
- 448 -
Apesar de todos os pontos altos e baixos comuns no dia-a-dia, sou
muito feliz por ter a total responsabilidade da minha vida, e ter essa
consciência faz-me sentir extremamente bem. Respeito muito os outros
e apenas peço o mesmo para mim, respeito. Também costumo pensar o
quão feliz sou por viver em Portugal, que apesar de atrasado não tem a
mesma realidade de países do Médio Oriente ou a alguns países
africanos, onde os homossexuais são maltratados ou mortos, pela sua
orientação sexual.
No fundo, sou uma pessoa das pessoas e pelas pessoas. Gostava de
conseguir transmitir uma imagem de calma e de paz, do que pode ser a
nossa vida. Mesmo as más situações e más experiências são importantes
porque nos ensinam tanto. Acima de tudo ensinam-nos a levantar mais
depressa após termos caído no mesmo problema, ou na mesma situação.
Espero que o meu testemunho influencie nem que seja apenas uma
pessoa a ter coragem de lutar pela sua felicidade e pelos seus direitos.
Hoje faço 25 anos e sei que ainda tenho muitas batalhas a travar, mas
espero ter muit@s aliad@s ao meu lado nesta luta diária.

J. Frias
25 Anos
#45

- 449 -
Ich liebe dich
Todos os dias tinha de apanhar o mesmo autocarro. A vista era bela,
por estar num local diferente. Aos poucos passou a ser rotineira, tal
como naquele dia. Ao fim de dois meses a vista continua bela. Apesar da
chuva e do frio lá fora, que ainda se torna mais real pelos vidros
embaciados, continuo a gostar muito de aqui estar. Ainda faltam cinco
paragens para chegar à bicicleta, mas penso já em todas as coisas que
tenho para fazer. Tento ter a minha vida planeada ao máximo, sei que
quando sair do autocarro, apanho a bicicleta, conduzo até casa, apanho o
correio, e tomo um banho quente. A chuva e o frio neerlandeses
entranham-se no meu corpo, e já só penso no banho quente.
A minha paragem chega, e sigo o ritual planeado no autocarro. O
caminho até casa é normal, tenho de passar por todos os bairros
paquistaneses até chegar à minha casa. Estaciono a bicicleta, tiro as
calças da chuva, e abro o correio. Lá dentro encontro algo inesperado,
um convite de uma amiga para a sua exposição de fotografia na
Alemanha. Pouso tudo em cima da cama, e tomo o banho quente,
enquanto penso na minha amiga, que já não vejo há algum tempo.
Depois do banho, saio e confirmo a data, telefono-lhe a ela e a
todos os amigos de Düsseldorf. Ja, es ist richtig. Ich gehe nach

- 450 -
Düsseldorf für Katrin Vernissage. (Sim, é verdade. Vou a Düsseldorf
para a vernissage da Katrin).
Combino tudo e começo a fazer a mala, porque na sexta-feira vou
viajar. Porque é que hoje ainda só é terça? Já tenho saudades dos meus
amigos. Vou voltar a vê-los, a sair aos clubes de rock‘n‘roll, a tirar fotos
parvas na rua, a beber Weissbier, tantas coisas que o meu cérebro nem
se consegue concentrar mais no trabalho que ainda tenho de fazer esta
semana.
Sexta chega. São agora 17 horas e a Vernissage é às 19:15, ainda
tenho tempo de pousar as malas e ver alguns amigos. Revejo a minha
―irmã‖ e o meu ―irmão‖ alemães, aqueles dois irmãos que nunca tive,
mas que tenho agora. Com ela, falo de assuntos do coração, dos rapazes
giros e acabamos sempre a fazer planos de negócios que vamos ter no
futuro. Com ele, embebedo-me, arranjo esquemas para ele conhecer
mais miúdas nos bares. As conversas passam pela estranheza de sermos
mesmo irmãos já que somos tão diferentes (um moreno e o outro loiro),
e também por ser fixe nos visitarmos várias vezes, já que vivemos em
países diferentes, e o mais velho levar o mais novo a clubes de rock. Ele
consegue sempre ficar com os números das miúdas e eu junto-me à
minha irmã, para conseguirmos números de telefones de rapazes. No dia
seguinte, rimo-nos sempre que nem parvos, enquanto a minha ―irmã‖
nos repreende por andarmos bêbedos a cantar na rua. Agora que estou
com eles o tempo parece não passar, entre estórias, sorrisos, festas, mas
ao olhar para o relógio, este acusa já 19 horas, e temos de sair para ir
com a Katrin. Lembro-me de correr para apanhar o eléctrico, e
chegamos à livraria onde é a exposição.
Temos de esperar na rua um bocado que as pessoas entrem. Não é
assim tanta gente porque é uma exposição mais caseira, apenas entre
amigos. E é lá que o conheço.
Assim que entrei, o meu olhar ficou parado nele, e o dele no meu.
- Quem é aquele rapaz? – pergunto logo ao meu ―irmão‖
-É o rapaz que vive na mesma casa da Katrin, acho que se chama
Matthias. – responde-me o meu ―irmão‖.
Vejo a exposição, vou ter com a Katrin, dou-lhe os parabéns e
contamos as nossas histórias desde a última vez que nos vimos. De vez
- 451 -
em quando vou olhando para o rapaz mistério, e os nossos olhares não
se desligam. Que estranha fixação era aquela?
Hoje, anos passados sei que foi amor à primeira vista. Sim, tão
piroso como nos filmes podres que passam nos cinemas comerciais, mas
tal e qual.
Quando a livraria fechou tivemos de levar a festa para outro lugar,
que acabou por ser a casa da Katrin. Lá conheci verdadeiramente o
Matthi, não só naquele dia, como no mês inteiro que acabei por viver lá,
a minha primeira história de amor.
O fim-de-semana acabou e tive de voltar para a Holanda, apesar de
não querer nem por nada voltar para a Universidade ou para o trabalho.
Ele leva-me de bicicleta até à estação de comboios, e eu, aperto-me a ele
como se não o quisesse perder nunca.
E ali, frente a frente, esperamos com o comboio a chegar, olhos nos
olhos, pelo momento ideal, que não teria lugar nesse dia, porque assim
não estava escrito.
Uma semana depois, combinamos em encontrarmo-nos a meio
caminho entre as cidades onde vivíamos. Nunca me vou esquecer de
Venlo, pois foi aí que dei o meu primeiro beijo apaixonado ao homem
que simbolizou tanto para mim, naquela altura.
Por vezes ainda me lembro de pensar estar na cama dele, e acordar
com ele a trazer-me o pequeno-almoço, e a sussurrar-me ao ouvido:
―Ich liebe dich.‖ (Eu amo-te). Ao qual eu respondia sempre: ‖ Ich liebe
auch dich.‖ (Eu também te amo). Aprendi muito com ele, pelas boas e
más razões. Mas nunca me vou esquecer que ele foi a primeira pessoa
que beijei apaixonadamente, e que me fazia sempre que o via ter
borboletas no estômago.
Após estes anos todos, vou voltar a encontrar o Matthi e mal posso
esperar por o abraçar novamente e por saber tudo sobre a sua vida.
Saber o que tem feito, conhecer o namorado dele, saber como estão os
nossos amigos, voltar a trás no tempo, com um sorriso em mente.

J. Frias
25 Anos
#73
- 452 -
SOCIEDADE

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Aceitação
Há uns tempos atrás, quando frequentava o 12.º ano, surgiu a
disciplina "Área de Projecto", e os meus colegas de grupo e eu
decidimos realizar um trabalho relativo à homossexualidade, em que,
através de inquéritos realizados à população da área de Lisboa,
concluiríamos o grau e os principais tipos de discriminação actuais.
Foi um projecto bastante interessante, principalmente porque me
levou a avaliar os meus valores e aquilo que sinto em relação aos outros.
Sempre aceitei a homossexualidade, tal como outras orientações
sexuais, de forma natural. Porém, a meio deste trabalho, dei comigo a
perguntar a mim mesma: ―Ok, aceito realmente a homossexualidade!
Mas qual seria a minha reacção se, daqui a uns anos, um dos meus filhos
me revelasse ser homossexual?‖… Foi nesse preciso momento que
entendi que o que é verdadeiramente importante é as pessoas
conseguirem ser felizes com as suas escolhas.
Até hoje não consigo entender a razão pela qual diversas pessoas
constroem um "bicho-de-sete-cabeças" em torno da problemática da
"homossexualidade"... As nossas orientações sexuais em nada
influenciam o mundo que nos rodeia...

Inês Bernardo
19 Anos
#119

- 455 -
Bicha = Tudo
No dia 1 de Novembro de 2005 reservei o meu voo para a Holanda.
Na noite depois de reservar o meu voo, fiquei com apendicite. Pior, com
peritonite que, pelo que entendo, significa que o apêndice explode e
alastra e que, consequentemente podes morrer. No primeiro momento
que tive com a médica depois da operação, disse-lhe:
- Quanto tempo é que a recuperação vai durar? É que eu vou viver
para Amesterdão...e o meu voo está marcado, e eu não tenho como
mudar os meus planos!
- Um mês, aproximadamente.
Quando a minha vida já não fazia muito sentido em Portugal, meti
tudo numa mala, e decidi ir para Amesterdão. Não me despedi bem dos
meus amigos. Não me despedi de ninguém. Disse que ia embora, e que
se calhar voltava, mas que provavelmente não. Que se tudo corresse
bem, ficaria. Mas não me despedi, porque não tinha a certeza se tudo ia
correr pelo melhor, depois porque não estava para ouvir os possíveis
obstáculos que todos me iriam apresentar. Ao dia 21 de Dezembro disse
―Adeus‖ em voz alta, e saí de Portugal.
Quando cheguei a Amesterdão fui trabalhar para a KLM. O
trabalho era cansativo, mas a atmosfera internacional, e os dias passavam

- 456 -
rápido porque falávamos em Português. Falávamos muito. E do nada
apareceu o hino ao gay: ―Bicha é Tudo‖! ―Bicha é tudo‖, dizíamos
frequentemente, como quem deseja bom dia, ou pede para lhe trazeres
um café se fores ao coffee corner. ―Bicha é tudo‖ era um dos refrães de
uma canção que cantávamos frequentemente e tornou-se uma expressão
muito utilizada entre os ―Tugas‖.
Ao fim de quase 3 anos na Holanda, o amor voltou à minha vida, e
a determinado momento decidimos casar-nos. Informei-me da papelada
que necessitava para apresentar na Câmara Municipal. Um dos papéis
era uma declaração em como era solteiro de forma a evitar bigamia. Foi
na busca desse papel que, pela primeira vez na Holanda, fui
discriminado por ser homossexual. E sabem o que é curioso? Na
Holanda, fui vítima de discriminação por cidadãos portugueses,
residentes na Holanda.
Um simples papel, minha senhora!
Depois de vários telefonemas para a conservatória em Lisboa, para
o consulado, e em que informei os ditos funcionários com que falei que
se tratava de um casamento entre dois homens, pediram-me que me
deslocasse a Roterdão para ir buscar um papel em que cita o estado civil
do cidadão X. Entrar no dito Consulado, é entrar numa qualquer
instituição pública em Portugal. Parece que agarraram num espaço
português, o meteram num barco e o desembarcaram no Porto de
Roterdão. Na verdade os senhores lá tiveram a sorte de ter uma
localização perfeita, à beira do rio, com uma vista bestial para a ponte.
No centro da cidade.
O que eles não têm ainda é uma mentalidade mais aberta, ou pelo
menos uma tolerância que é um dos valores base no país em que tudo se
pode, desde que haja respeito pelo próximo.
Estavam ao serviço três funcionários. Dois senhores e uma senhora.
Estes funcionários escaparam provavelmente algumas das aulas do
ensino básico onde se trabalharam as competências básicas da Língua
Portuguesa. ―Eles falarem um português assim prontos, pá!‖
Ao meu lado estava um senhor que tinha vindo renovar o seu
passaporte. A sua esposa não era Portuguesa, e o seu filho acabadinho
de nascer tinha que ser registado. Por motivos que me são alheios, a
- 457 -
senhora do senhor tinha que fazer um exame de Língua Portuguesa. O
senhor dava, ele também, umas quantas patadas na Língua do Senhor
Camões. E nisto diz o funcionário, num tom mais baixo, como quem
diz 'isto off record', que a senhora podia ir lá ao consulado e que lhe
faziam meia dúzia de perguntas para provar que ela até consegue falar
um bocadinho português.
- ―Mas olhe, lá em Portugal tinha que fazer um exame formal', diz-
lhe ainda.
Enfim, lá se dá um jeitinho à sua senhora, e a coisa passa. Jeitinho
por jeitinho, lá se vai escolhendo a quem se faz os jeitinhos, não é?!
A minha conversa na dita instituição demorou bastante, e teve
umas quantas pausas. Fui atendido por uma senhora. Senhora esta, que
não podia ser nem mais parcial possível nem mais incompetente.
Como eu já tinha explicado a história e o contexto do matrimónio
ao telefone, não me dei ao trabalho de o explicar outra vez. Resumi-me a
solicitar o papel.
A mim não calhava dar o tal ―jeitinho‖, e então começaram as
intermináveis perguntas:
- Quando vai casar?
- Ah, mas a sua noiva tem que vir ao consulado.
- E temos que afixar um documento para saber se alguém tem uma
objecção...
Ao fim de lhe tentar explicar que isto nunca me havia sido
comunicado, e que eu havia falado com diversas pessoas,
nomeadamente no consulado e em Portugal, comecei a cansar-me das
constantes referências à minha ―noiva‖, e disse-lhe:
- Noivo, ele é meu noivo, eu vou casar-me com um cidadão
holandês!
Resposta imediata, acompanhada de um choque facial:
-Você não vai poder casar!!!
- Perdão?
- Não, não vai poder casar. Esse tipo de casamento não é
reconhecido em Portugal.
- Minha senhora, nós não estamos em Portugal, estamos na
Holanda.
- 458 -
- Sim, mas você é cidadão português.
- A casar com um holandês, pelas leis holandesas[i].
- Mas você precisa mesmo casar? É assim tão importante? Pode ir
viver junto. pode ir a um notário...
Em primeiro lugar, senhora funcionária, ou me trata pelo meu
nome, ou por outra coisa. Não por ―você‖. ―Você‖ dizem as pessoas nas
telenovelas brasileiras, que são transmitidas lá na terrinha, umas seis
vezes por dia.
Em segundo lugar, eu pedi-lhe simplesmente um comprovativo de
estado civil. Pelo que sei, no Consulado de Portugal os funcionários são
supostos assistir os cidadãos. Não emitir opiniões. Não lhe compete
igualmente formular questões de carácter pessoal e íntimo.
Quando eu lhe expliquei que não necessitava de reconhecimento
português continuou como se de repente tivesse tido um ataque de
surdez.
- Cara senhora, eu não necessito de reconhecimento. Eu necessito
de um papel!
Por último, não me dê informação errada. Se não sabe, pode mesmo
é não dizer nada!
Enfim, tudo isto custou-me um dia livre, ganhei uns cabelos brancos
e chorei pelas ruas de Roterdão, telefonando ao meu noivo, à Câmara
Municipal...e vendo o sonho que se estava a tornar realidade e que estava
a ser brutalmente apagado por uma funcionária incompetente! Ao fim de
uns telefonemas, dei-me conta que as minhas lágrimas eram, até ai
desnecessárias, porque a lei estava do meu lado. Pelo menos a
Holandesa.
Voltei ao Consulado, disse-lhe que queria o papel, desse por onde
desse, e que ela não tinha o direito de o negar ou tão pouco podia exigir
saber para que fim era. O papel tinha um preço, que eu iria pagar, e
queria recebê-lo com eficiência, e de preferência educamente e de sorriso
na cara, como deve ser na função pública, ou nem por isso, mas como
deve ser se se oferece algo pelo qual o cliente tem que pagar. Claro que
um papelito de 5 linhas, escrito em 1 minuto, me ia custar algum
dinheirinho.

- 459 -
Fui levantar dinheiro, porque pagar com Multibanco, só nos dias em
que a máquina funciona.
Quando entro na sala principal, aberta ao público, oiço uma
conversa entre os dois funcionários que já havia visto e mais um que se
juntou à festa a comentar a minha situação. Estavam nomeadamente
outras pessoas na sala. Numa risota interminável e comentários
ignorantes...só pararam no momento em que se defrontaram com a
minha cara.
A senhora lá me deu o papel, que tem cinco linhas e me custou
muita paciência, alguma irritação e 20 euros. Tratou ainda de escrever
em letras a negrito e sublinhado que o papel que me dava não era válido
para fins de casamento. Ou seja, uma tentativa frustrada de anular o
efeito do papel, pelo que me fez pagar 20 euros. Eu disse Bom dia e
abandonei o estabelecimento, prometendo a mim mesmo que escreveria
uma carta ao Cônsul e a quem mais fosse necessário, e que esta história
não ficava em branco.
Senhores funcionários públicos do Consulado Geral de Portugal em
Roterdão:
Santa ignorância!!!! Os senhores vão primeiro de volta à escola
primária: aprender a falar e a escrever. Depois comecem a ler o Jornal.
Não a secção de esfaqueamentos e violações do Jornal 'O crime'. Outra
coisa com um pouco mais de qualidade e abertura. E sobretudo, abram
essas cabecinhas para mais do que a realidade de emissão de passaportes
e outras que tais administrações.
Oiçam um disco da Mariza… a senhora bem diz ―ACORDA
PORTUGAL‖!!! Os senhores estão a dormir...E eu, eu casei! E não
ilegalmente!
Com muita desilusão minha, para o consulado de Portugal, Bicha
não é tudo!

[i] Ps: Para que fique claro, nem sequer é muito difícil encontrar esta informação na
internet:
"The rules about nationality and residence are the same as for any other marriage
in the Netherlands: at least one partner must either have Dutch nationality or reside in
the country. There is no guarantee that a same-sex marriage will be recognized in other

- 460 -
countries. It's likely that they may only be accepted in countries that recognize civil
unions for same-sex couples." (...)
in http://en.wikipedia.org/wiki/Same-sex_marriage_in_the_Netherlands

João Basto
27 Anos
#102

- 461 -
O irmão da minha melhor
Amiga
Tinha 14 anos quando conheci a Susana e o João. Ela tinha 12, ele
10.
Ela sempre foi muito mais madura (ou avançada que eu, se
preferirem) e aos 12 falava e pensava como se tivesse 15. Tornamo-nos
inseparáveis durante anos.
Dos 14 aos 18 procurávamos estar juntas pelo menos uma vez por
semana. Tomávamos café e jogávamos bilhar com a semanada que
arrancávamos aos nossos pais. Falávamos de rapazes e partilhávamos
todas as nossas histórias.
O João era um miúdo tímido, muito bonito. Sempre achei que ele
era muito doce, demasiado naïf para uma cidade como a nossa onde a
língua viperina circula muito solta, tal como em todas as cidades
pequenas. Via-o poucas vezes.
Passaram-se anos. Fui para Coimbra tirar o curso, e as minhas
visitas à Susana espaçaram-se, víamo-nos então de seis em seis meses.
Quando acabei o curso voltei uma temporada à minha cidade e num dos
nossos eternos cafés perguntei pelo irmão. Ele já tem namorada?

- 462 -
Com a maior das naturalidades a resposta foi: namorado. O meu
irmão tem um namorado.
Não sei bem porquê, mas não me espantou a resposta. Sempre
soube. Pertencendo a uma cidade muito curta de vista onde os
homossexuais não se deixavam ver, percebi desde o dia em que nos
conhecemos que ele era diferente, só não entendia bem como, e o facto
do João ser gay nunca me passou pela cabeça. Mas não me surpreendeu.
Durante os seis meses em que estive de volta acompanhei a ―saída
do armário‖ dele através da irmã. Ele tinha 18 anos, sabia há muito que
gostava de homens, não se rejeitou nem repudiou a si mesmo. Mas não
contou à família. Tinha um Pai que tinha sido educado num colégio
muito rígido e que era muito exigente com os filhos. Dizer ao Pai o que
se passava estava fora de cogitação. A Mãe suspeitava, mas não estava
propriamente radiante, muito pelo contrário. No entanto, procurava
aceitar e entender. A irmã era o ser mais próximo.
Na altura já havia chats e páginas gay, e foi por lá que o João
encontrou um namorado com 32 anos. O namorado oferecia tudo ao
João, um telemóvel, roupa, jantares, e era muito possessivo. Ele era
novo e nunca tinha tido uma relação homossexual até então. Procurava
desabafar com a irmã. Ela sempre aceitou, mas foi muito sincera e
honesta quando lhe disse que percebia, que o aconselharia como podia,
que gostava dele como sempre, mas que não ia conseguir falar com ele
sobre sexo e sobre as imensas dúvidas que o inundavam.
Eu fui trabalhar para Lisboa passado pouco tempo. Um ano mais
tarde recebi um telefonema da Susana que me disse que o João estava na
Escola de Dança de Lisboa. Combinei um café com ele no Chiado. O
João estava completamente diferente. Tinha-se assumido decididamente.
Confesso que fiquei chocada. Não estava à espera de encontrá-lo assim,
e muito menos do tipo de conversa que tivemos. Na minha santa
ignorância e querendo parecer aberta e compreensiva, perguntei-lhe pela
vida sentimental. Recebi um chorrilho de informação que me deixou de
cara à banda. Senti-me mal. Senti-me muito mal. Porque não fui capaz
de entender na altura como é que uma relação entre dois homens se
pode aproximar tanto de uma relação entre um homem e uma mulher.
Afinal, passados quase dez anos, ainda não estava preparada. A
- 463 -
possessão latente nas relações dele era para mim incompreensíveis. A
insegurança também. A imagem que tinha dele mesmo e que os
companheiros dele tinham deles próprios ainda mais. Fiquei muito
confusa e afastei-me.
Por acasos do destino, o João fez uma lesão permanente num
músculo e foi impedido de seguir o sonho dele: ser bailarino.
Deixou de poder frequentar a Escola de Dança e voltou com muito
desagrado para a nossa cidade.
A ―aterragem forçada‖ correu bastante mal. Depois de um ano de
liberdade completa e de se ter sentido aceite e integrado, voltou à
mentalidade pequena, conservadora e castradora.
Não sei bem como é que o Pai passou a saber, ou melhor, a aceitar.
Sei que ele entrou numa depressão profunda e que começou a ser
acompanhado por médicos e psicólogos. Tentou-se suicidar mais que
uma vez.
Numa das visitas quinzenais à minha família encontrei-o em frente à
minha casa, estava à espera da Mãe. Trazia umas calças muito justas,
uma T-shirt alternativa e justa, e no braço esquerdo uma colecção de
pulseiras fininhas verdes, soltas, que faziam imenso barulho. Trabalhava
numa loja de roupa.
Depois dos dois beijos da praxe a minha reacção foi no mínimo
triste: ouve lá, mas tu estás maluco? Isto não é Lisboa, a tua Mãe merece
respeito, isto é Braga, não podes andar assim vestido! Tira pelo menos as
pulseiras!
Ele ficou triste, mas não me ligou nenhuma, e como a Mãe dele
demorou, depois de uma (muito) breve resenha das nossas vidas, fui-me
embora em busca da minha Mãe que nunca mais aparecia.
Nunca mais o vi desde então.
Passados uns tempos ouvi a minha Mãe a dizer que a Dona Amélia
andava muito triste por causa do João. Ele tinha conhecido um tipo num
bar, saíram de lá juntos e entraram no carro dele em direcção ao Bom
Jesus. Quando lá chegaram, segundo o que me lembro e entendi da
história, o João terá entendido que ele era homossexual e quando se
dispunha a dar-lhe um beijo o outro tipo enfiou-lhe um murro. Pegou
no João, meteu-o na mala do carro e pôs-se a caminho entre o Bom
- 464 -
Jesus e sabe-se lá onde. Por sorte a polícia ouviu os gritos e os murros
do João dentro da mala do carro e mandou-os parar. O tipo foi preso
por uns dias, mas nem sei como acabou a história. Só sei que a notícia
saiu em letras grandes e gordas no Jornal. Os que não sabiam, ficaram a
saber. Deixou de ser segredo. Mas continua a ser tabu.
Da última vez que estive com a Susana a resposta foi
invariavelmente igual a todas as outras respostas que obtive ao longo dos
últimos anos: o meu irmão lá está. Está a trabalhar numa loja (vai
mudando o nome consoante), e continua a ser acompanhado pelo
psicólogo e a tomar pastilhas. Não me parece que vá melhorar...
Quanto a mim...depois de ver e acompanhar outros dois grandes
amigos que também saíram do armário e que comigo partilharam a
façanha e o seu maior segredo, vim parar a Amesterdão onde a
homossexualidade é encarada de modo tal natural como o ar que se
respira. Um dos meus amigos nesta terra estranha é gay, assumidamente
gay desde os 14. Tem 38. Já viveu 11 anos com um companheiro. Ao
responder-me com clareza às minhas perguntas (demasiado directas)
ajudou-me a entender melhor, a aceitar e a retroceder e analisar e
envergonhar-me das minhas reacções anteriores. Gosto muito dele, é um
dos melhores amigos que fiz nos últimos anos. E eu sou agora muito
melhor pessoa e mulher.

Sofia Castro
31 Anos
#2

- 465 -
O Sonho ou Não
De olhos bem abertos observo toda a multidão que sobe esta rua.
Indiferentes, correm e alternam-se entre trajectórias que evoluem
sem se encontrarem, embora se obriguem a desvios para nunca se
tocarem. De olhos nos olhos reparam-se e reagem sem sentir. Sem sentir
comunicam, sem comunicar, sentem. As incertezas levam a percorrer
uma via de sentido único, sem desvios se não fora a falta de amor aquele
malfadado sentimento a obrigar às aproximações com o outro. Se não
fosse o olhar-te nos olhos o despertar daquela emoção, até poderia ser
uma pessoa normal, se não fora a estúpida necessidade de praticar amor,
ou se não fora eu assim diferente. Olhar-te de olhos nos olhos teria sido
tão mais fácil se fosse insensível, ou se não me fosse permitido sentir.
Mas por te olhar, sentir e sentir-me, abri um precedente a uma
convivência desprotegidamente associal.
Abro os olhos assustado com os meus pensamentos e com um
comentário aos meus ouvidos,....desculpe...o seu café...aqui está...
Ah... sim, obrigado!
Que sorte afinal estava só me imaginando mais um de entre a
multidão.

- 466 -
Afinal não foi o fulano que se cruzou comigo na vida que me fez
entristecer a família com uma relação anormal e anti-social.
Simplesmente sonhava...ou desejava sonhando.

Gionelo
40 Anos
#139

- 467 -
Why Eden
I come from the AIDS epidemic of the 80s.
I survived, transfixed, undying, loveless.

I am one of those that paraphrase Satan‘s words of wisdom.


I came in a sunset of age,
a manifesto of gashes, dots, itchy rashes.
I am the enigma of the 80s, the fluid sexual identity.

I am immune to all infections.


I follow the open blinds of my demise
And accept my destruction,
My rootlessness.

I am one of the nurses


One of the politicians
One of the love objects
One of the latecomers
One of the psychoanalysts
That closed me up in a gaol
Next to Oscar Wilde.

- 468 -
I come from the fields in Eden
From a landscape of ruin
Where gods drink the blood of the HIV children.

I was one of the rapists


One the fundamentalists
One of the drug dealers
One of the spreaders of disease
One of the ill scapegoats
That killed Mathew Sheppard
And left him to rot with the beasts.

I come from the AIDS epidemic of the 80s


And I erased that decade from the history books
So that I could be the unjustly punished child of the 21st century.

Filipa Oliveira
23 Anos
#130

- 469 -
RELIGIOSIDADE

- 471 -
Fantasmas Religiosos
Não me recordo de nenhum momento na minha vida em que eu
não soubesse que era homossexual. É verdade que tive, sei lá bem
porque razão, uma namorada quando andava na escola primária, mas a
coisa durou poucos dias. Uns anos mais tarde, quando fui pela primeira
vez ao Brick e não me identifiquei com nenhum dos presentes,
questionei-me durante umas horas sobre a minha sexualidade, mas não
havia qualquer dúvida. Era por membros do meu sexo que sempre me
senti atraído.
Olhando para trás, percebo perfeitamente que poderia ser um gay
completamente desajustado e cheio de problemas de consciência. Mas
por razões que desconheço, consegui dar a volta por cima e ser quem
sou hoje.
Quando tinha cerca de 4 anos de idade, os meus pais tornaram-se
Testemunhas de Jeová, e permaneceram nessa religião durante mais de
10 anos, sendo eu obrigado a segui-los. Lembro-me de no início essa
religião ser proibida (situação que só se alterou após a revolução do 25
de Abril) e as reuniões serem feitas ―às escondidas‖ em casa dos
diversos membros. Mas o que mais me recordo desses primeiros anos,
era o facto de não poder festejar o Natal, nem fazer festas de
aniversário.

- 473 -
Durante todos os anos em que fiz parte dessa religião, foi-me
sempre incutido o sentimento do pecado e o receio do castigo de Deus
se eu pecasse. Para uma criança que começa a despertar para o sexo, a
ideia de pecado pode ser uma coisa aterradora, mas também muito
excitante. Claro que temia sempre o possível castigo divino, mas isso
não impedia de, ainda na escola primária, entrar nos deliciosos jogos do
―mostra-me a tua que eu mostro-te a minha‖. Ou melhor ainda, ―se
mexeres na minha eu mexo na tua‖.
Acho que posso afirmar que era um rebelde bem comportado, que
tinha descoberto que sexo com outros meninos, apesar de ser um
pecado mortal, era algo demasiado excitante para desperdiçar. O que eu
não sabia então, é que a minha paixão pelo cinema no geral e pelo
musical em particular, bem como o fascínio que tinha por Barbra
Streisand e Julie Andrews, eram fortes indícios da minha emergente
homossexualidade.
Voltando à religião, conforme ia crescendo tinha cada vez menos
paciência para as aborrecidas reuniões e senti-me cada vez mais
revoltado pelo facto de quase tudo ser pecado. Foi então que aconteceu
algo que viria a ajudar-me a mudar os meus sentimentos sobre tudo isto.
Como não tinha paciência para os longos discursos com que éramos
prendados durante as reuniões, entretinha-me a ler a Bíblia e, aos poucos
e poucos, fui-me apercebendo que, como qualquer outro livro, a mesma
estava aberta a várias interpretações. Assim comecei a pôr em causa, não
a existência de Deus, mas a religião em si, ao mesmo tempo que
continuava com as minhas brincadeiras sexuais com outros rapazes.
Uma coisa eu sabia, não era o único gay na zona.
Acredito que, como eu, houvessem outros homossexuais entre os
membros da religião, mas nunca abordei nenhum deles, nem tive
relações com eles. Para mim, sexo e religião não se misturavam. O
melhor era manter essa minha faceta afastada dos outros membros.
Por razões que nada tiveram a ver comigo, os meus pais afastaram-
se da religião quando eu tinha 14 anos e no dia do meu 15º aniversário
festejei a minha primeira festa de anos. Sentia-me liberto de toda aquela
opressão religiosa, mas no fundo do meu consciente uma vozinha

- 474 -
continuava a dizer-me que ser homossexual era um pecado mortal,
condenado pela Bíblia.
A fim de enfrentar os meus fantasmas, alimentados por anos de
religião, decidi voltar às Testemunhas de Jeová uns anos depois. Desta
vez estava preparado; até tinha encontrado uma relação gay na Bíblia,
entre o rei David e seu amigo Jonatã (1º Samuel 18.1 a 4 e 2º Samuel
1.26). Não queria um estudo bíblico de como o mundo tinha começado
e como ia ser bom sobreviver ao armagedão (o fim da nossa civilização
às mãos de Deus) e viver para sempre num novo paraíso. Tinha diversas
perguntas e necessitava de resposta às mesmas. Exigia que essas
respostas me fossem dadas por textos na Bíblia e não por livros escritos
por homens que a tinham interpretado ao seu modo, tendo em conta os
seus interesses. Tal como calculava, muitas das minhas perguntas não
tinham resposta e abandonei uma vez mais a religião, mas já sem
fantasmas.
Uma coisa aprendi lá. A fim de sermos aceites por Deus e pelos
outros, temos primeiro que nos aceitarmos a nós próprios. Só podemos
estar bem com Deus se estivermos bem connosco. Só assim poderemos
encontrar a felicidade e viver uma vida sem receio.
Vivi os meus anos de engate com gozo. Tive relações que não
funcionaram. Mas há cerca de 20 anos atrás, tive a felicidade de
encontrar o companheiro certo e temos a sorte de ter o apoio das nossas
famílias e amigos.
Curiosamente, nunca deixei de acreditar em Deus como uma
entidade sobrenatural e, ainda hoje, começo sempre o dia com uma
oração. Velhos hábitos são difíceis de perder e confesso que ainda
encontro conforto nestas minhas orações diárias.

Jorge T. Santos
44 Anos
#69

- 475 -
NOITE

- 477 -
Primeira ida a um bar com
temática LGBT
Sempre que me falavam em bares gay, a curiosidade rasava o limite.
Tendo em conta que onde vivo (Madeira) esse tipo de espaços é pouco
ou nenhum e nos poucos que existem, as pessoas são sempre as
mesmas, era difícil ter acesso aos mesmos. Mas, este ano, numa viagem a
Lisboa para passar uns dias com umas amigas, tive a oportunidade de
visitar um e…a experiência foi maravilhosa. E logo eu, que nem gosto
de discotecas, dei por mim maravilhada com aquele espaço. Talvez por
ver um pouco da nossa comunidade sendo ela mesma, pela primeira vez.
Sem preconceitos, sem receios, sem olhares de soslaio.
Aproveitando para fazer publicidade, foi no ―Maria Lisboa‖, em
Março passado. No momento em que passei da porta, parecia que tinha
deixado cair a máscara que me protegia a alma desta inculta sociedade.
Como se, finalmente, pudesse deixar de ser julgada. Senti-me bem.
Passamos a noite praticamente toda lá e apesar do meu forte não ser (de
todo) dançar, diverti-me imenso. Tive pena de não ter ninguém comigo,
romanticamente falando, para partilhar tal sensação e liberdade, mas o
dia há-de chegar.

- 479 -
Estando habituada a conviver com casais heterossexuais desde
sempre, ter acesso a um tão variado leque de casais homossexuais fez-
me ver que a nossa sociedade precisa de crescer, e muito. Desde jovens
até aos mais maduros, vi de tudo um pouco. Comentei com uma amiga
minha que um dos meus sonhos, seria abrir um espaço daqueles, porque
em muitas zonas do país é difícil ser homossexual sem ter acesso ou
contacto com outras pessoas que estejam a passar pelo mesmo.
Foi diferente, engraçado até, estar num sítio onde podia olhar para
todo o lado e sentir que tinha acabado de entrar em contacto com uma
grande família. Sim, sei que parece exagero, mas se calhar é por não ter
acesso ao mesmo com tanta facilidade/regularidade.
Espero voltar a Lisboa em breve e visitar novamente esse espaço,
que me marcou de forma positiva e me ajudou a ter uma percepção
diferente da realidade.
Resumindo: uma experiência a repetir e que aconselho a todos.

Lady L
19 Anos
#59

- 480 -
A Borboleta
Foi numa sauna já desaparecida desta Lisboa que o vi. Era lindo,
sedutor, diferente. A sauna estava cheia, a fauna habitual, que ao ver
"sangue novo", se excita e se prepara para atacar a presa. O homem,
trintão, ar estrangeirado, ia deambulando pelos espaços, e um bando de
vampiros o seguia, sequioso. Deixei-me ficar, observando a cena, mas
tão excitado como os demais. Alguns minutos mais tarde, o homem,
visivelmente agastado, dirigiu-se ao sítio dos cacifos, para se vestir e sair.
Fui mais rápido, agi prontamente e saí primeiro. Não o esperei cá fora;
uma estranha intuição me dizia que seria de uma companhia de aviação,
e provavelmente estaria hospedado no Sheraton (intuição de puta,
dirão...). Para lá me dirigi e não tive que esperar muito tempo para ver
parar um táxi que o trazia. Sorri-lhe, sorriu-me, entrámos, subimos ao
seu quarto sem uma palavra e pude ver tatuada na sua nádega direita
uma pequeníssima e bela borboleta. Não sei do que mais gostei, se da
borboleta, se do seu habitat. Era manhã, quando deixei a borboleta voar.

Pinguim
63 Anos
#132

- 481 -
OPINIAO

- 483 -
Sê feliz à tua maneira
A minha maturidade chegou antes do tempo. Talvez nunca seja
cedo demais. Talvez o cedo seja muito relativo. Percebi bem cedo que
gostava de pessoas do mesmo sexo. Era nítido. Incontrolável. Devo
dizer que, por mais estranho que pareça, nunca, e nem uma só vez, me
senti perturbado com isso. Bem sei que não é normal, mas a ideia
sempre foi tão clara na minha cabeça que isso nunca constituiu um
problema. O problema? O problema são os outros. A sociedade, a
"moral", os "bons costumes". Pensei bastante no assunto e, por mais
que pensasse a minha orientação assim o era – uma orientação, e não
uma mera opção. Mais tarde descobri que o sexo oposto até me atraía,
ficando pendente entre algo como a homossexualidade e a
bissexualidade. Ainda assim, é mais do que suficiente para ser
"diferente". E eu digo: por mais normais que tentemos ser, ninguém é
igual a ninguém. Ser diferente é ser normal. Para quem está trancado no
escuro do armário pode soar suspeito... Mas a verdade é que a vida é
demasiado curta para nos preocuparmos tanto com o que os outros
pensam. Sê feliz à tua maneira.
Ele
#134

- 485 -
Adopção – Uma oportunidade
para as crianças!
Vivemos numa Sociedade que tem cerca de 15 mil crianças a viver
em Instituições, crianças que foram retiradas às respectivas famílias
biológicas por uma multicausalidade de situações (negligência, carência
socioeconómica, maus tratos, abuso sexual, abandono, entre muitas
outras). Colocamos crianças, entenda-se até aos 18 anos, a viver em
Instituições, de cariz pouco ou nada familiar, durante tempo indefinido,
atribuindo assim um valor de protecção um pouco esquecido, na medida
em que são retiradas de famílias e colocadas em Instituições que pouca
capacidade para lhes proporcionar um acompanhamento individualizado
têm.
Considera-se que se deve fazer prevalecer o Princípio do superior
interesse da criança, que se deve ter em conta que mais vale uma família
a uma Instituição de acolhimento, que devemos trabalhar ao máximo
para que o tempo de acolhimento seja o menor possível, de modo a não
ser contraproducente para o bem-estar bio-psico-social da criança e do
jovem.
Considera-se na Convenção Sobre os Direitos da Criança que esta
deve ser respeitada, que esta deve ter acesso a saúde, educação, tempo

- 486 -
livre e a uma família. Contudo, continuamos a deixar crianças a viver de
forma pouco digna em famílias de uma total disfuncionalidade que se
torna prejudicial seu ao desenvolvimento.
Como se não bastasse termos casais, considerados pela Lei
Portuguesa como Heterossexuais, a esperar durante anos e algumas
vezes décadas para conseguir adoptar uma criança, de modo a
proporcionar um ambiente mais contentor e harmonioso a quem dele
precise, ainda temos um Estado que considera que uma União entre
pessoas do mesmo sexo não permite que uma criança cresça de uma
forma saudável e harmoniosa.
Não se compreende como pode o nosso Estado proclamar os
Direitos das Crianças e a necessidade de Protecção das mesmas, criando
para isso Instituições de acolhimento, quando mais tarde se esquece que
não basta apenas retirá-las da família, mas sim proporcionar-lhes
condições e oportunidades para que possam ter acesso, quem sabe, a
outra família.
Continuaremos a ter situações de crianças que são vítimas de abusos
sexuais constantes, vítimas de maus-tratos profundos que levam, muitas
vezes, à sua morte, porque, mais uma vez, continuamos a ter um Estado
que prefere não apostar nas Leis de Adopção, no reforço de Equipas
que viabilizem a Adopção de forma rápida e Eficaz. Continuamos a ter
um Estado que não promove a adopção de crianças a partir dos 5/6
anos de idade, de crianças com deficiências, entre outras crianças que
vêem as suas hipóteses e oportunidades postas de lado.
Crianças que em nada podem ser culpadas por ter nascido em
famílias disfuncionais, em famílias sem condições, em famílias
maltratantes, em famílias negligentes, por outras palavras, poderemos
dizer também, em famílias que só por serem Heterossexuais não
possuem as condições para o saudável e harmonioso crescimento de
uma criança.
Estará na altura de pensar que somos todos iguais, que todos
merecemos oportunidades e estará na hora de parar de apontar o dedo à
diferença, pois é esta que nos torna ricos, é a diversidade de pessoas, de
estilos de vida, de culturas, de pensamentos, que torna o nosso Mundo
complexo e rico na sua própria natureza humana.
- 487 -
Estará na hora, meus caros, de reflectir sobre as novas famílias, nas
famílias monoparentais, nas famílias reconstruídas, nas famílias
homossexuais, uma vez que todos nós temos direito à livre escolha,
todos nós temos direito a ser felizes.
Não é de modo algum minha intenção afirmar que todas as famílias
homossexuais devem ter o direito de adoptar, mas é minha intenção
afirmar que estas famílias deverão ter as mesmas oportunidades, os
mesmos direitos, os mesmos deveres para construírem a sua família, em
busca da felicidade e do bem-estar.
A Homossexualidade não pode, de modo algum, ser olhada como
―algo contra-natura‖, como uma escolha, como uma opção, como um
estilo de vida, pois posso afirmar com toda a convicção que o não é. Se
fosse uma escolha, acreditem que não haveria pessoas a escolher algo
que leva ao sofrimento e ao medo constante. Não faz sentido continuar
a pensar que as pessoas cuja orientação sexual é homossexual não têm
condições para dar amor, carinho, um lar, harmonia, educação e saúde a
uma criança.
Não podemos esquecer que são poucos os homossexuais que
nascem de famílias homossexuais, sendo que, é evidente, os
homossexuais são filhos de casais heterossexuais, tendo, deste modo,
acesso a valores, a princípios que são comuns a muitos heterossexuais.
Paremos de generalizar que os Homossexuais são promíscuos, são
seropositivos, são contra-natura. Comecemos a pensar que tantos os
Homossexuais como os Heterossexuais são pessoas, não grupos.
Reforço que é preciso pensar nas crianças que necessitam,
urgentemente, de um Lar onde possam crescer de forma harmoniosa, de
modo a ser possível quebrar o ciclo vicioso dos processos de
institucionalização. Não vamos querer que os filhos de Adultos que
foram crianças acolhidas em instituições sigam o mesmo caminho.
Vamos desejar que as crianças não precisem de permanecer em
Lares de Infância e Juventude durante anos, esperando que as suas
famílias biológicas se movimentem no sentido de conseguirem ter as
condições necessárias para as poderem voltar a acolher.

- 488 -
Não vamos querer crianças que cresçam vazias, mas sim crianças
que se sintam amadas na igualdade e na diferença, na simplicidade e na
complexidade.

Miguel Costa
24 Anos
#19

- 489 -
Autenticidade contigo mesmo
Tenho vários amigos e amigas gays. Bissexuais também. Tenho
outros que são monógamos, bígamos, polígamos, outros solitários,
emancipados ou simplesmente castos. E em todos eles admiro o mesmo.
É a honestidade de cada um consigo.
Por outro lado, nestes mesmos arquétipos, o que menos prezo é o
preconceito. Não o suposto preconceito da sociedade, mas aquele que o
tem perante si mesmo.
Sejamos como formos – gays, bi, heteros, polígamos, monógamos,
ou o que quer que seja – só encontramos paz quando o assumimos. O
sublime encontra-se quando a aceitação acontece. E tudo está bem.

Teresa I.F. Lopes


29 Anos
#111

- 490 -
Não sou Diferente!
Sempre achei que não era diferente…
Mas na adolescência senti-me diferente, não respondia a perguntas,
tens namorado? Gosta de alguém? Não é que interessa-se alguém mas a
certeza tinha que não interessava por rapazes, eram bons amigos e mais
nada. Então cresci a não interessar por ninguém para namorar, esta
minha atitude acabou por afastar até de algumas pessoas pois ao
contrário das miúdas da minha idade, eu não falava de rapazes, falava de
política e animais.
Um dia por estar mais adulta gostei verdadeiramente de uma mulher
e percebi não sou diferente, tenho sentimentos como todos os humanos.
Mas apesar de não sentir diferente comigo própria, a família achava-
me diferente e um dia perguntaram-me porque que nunca contaste a
verdade, respondi-lhes, não contei porque não havia nada para contar, o
meu irmão teve que dizer que era heterossexual? Teve? Então porque eu
e muitos mais como eu temos que informar que são homossexuais ou
bissexuais?
Não somos diferentes e começa por nós acharmos que não somos
diferentes.
Acreditem que são iguais, e vão encontrar a felicidade.

Helena Margarida V. Teixeira Lopes


35 Anos
#78

- 491 -
A minha ignorância
Olá! Sou a Helena, vivo no porto e tenho 25 anos.
Quando me pediram para escrever acerca da homossexualidade,
fiquei sem saber o que dizer. A informação é muita, mas a convivência
muito pouca, embora tenha conhecimento de alguns casos.
Recentemente, presenciei duas situações mais evidentes de troca pública
de carinhos. Não fiquei chocada, nem me senti a mais.
Não considero a homossexualidade um problema e muito menos
um tabu. Na minha opinião, independentemente de ser um casal de
heterossexuais ou de homossexuais, o que importa é as pessoas
sentirem-se bem com as suas escolhas e consigo próprias.
Quanto aos outros, o que pensam ou deixam de pensar é o que
menos importância tem... mais tarde ou mais cedo acabam por respeitar
e aceitar a escolha.

Helena Rijo
25 Anos
#55

- 492 -
ACTIVISMOS E MOVIMENTOS

- 493 -
O que é a homofobia?
Como costumo dizer: a homofobia para os homossexuais, é como o
racismo para os negros.
É o acto de não respeitar os outros pelo simples facto de se
sentirem física e emocionalmente atraídos por alguém do mesmo sexo.
Dos homens homossexuais serem todos rotulados de "bichas" e de
serem obrigatoriamente excêntricos e extremamente femininos. Das
mulheres homossexuais, serem vistas pela sociedade como "mulheres
que se vestem e agem como homens e que têm o cabelo curto". A nossa
sociedade segue os estereótipos, é verdade, mas por quantos homens e
mulheres homossexuais passamos todos os dias, e por não fazerem parte
dos estereótipos, ninguém reconhece?
Um homem que jogue futebol, que vá ao ginásio, que beba cerveja,
que se sente de pernas abertas e que arrote, segundo a sociedade é
heterossexual, mas quantos homossexuais fazem isso sem serem
rotulados de tal? Uma mulher que tenha cabelo comprido, que use roupa
feminina, que se maquilhe é rotulada pela sociedade como heterossexual,
mas quantas mulheres homossexuais, fazem isso? O problema da
sociedade é ir atrás de ideias preconcebidas.
Quantos homens heterossexuais, quando pensam em gays (mulheres
ou homens), pensam logo em questões sexuais?

- 495 -
Quando pensam em mulheres, são sempre muito bonitas e é tudo
muito provocante (se bem que, pequeno pormenor, se são lésbicas,
precisam deles para quê? Mas adiante...), mas quando pensam em
homens, é algo muito sujo e inaceitável.
Ser gay não é só ter relações sexuais com alguém do mesmo sexo.
Ser gay é lutar pelos direitos que os heterossexuais têm e desperdiçam
sem dar valor.
Ora vejamos: Portugal queixa-se de que os jovens estão a sair daqui
para ir estudar para outros países e que, em muitos casos, já não voltam.
Porque é que isso acontece? Será porque em alguns casos, os jovens são
homossexuais e por saberem que aqui não têm qualquer futuro, ficam
mesmo pela nossa vizinha Espanha e mesmo que contassem apenas
com o ordenado mínimo (muito superior ao nosso), vivem com a/o
companheira/o, casam e, se quiserem adoptam uma criança ou vão a
uma clínica e através de um processo de fertilização, conseguem ter
filhos sem serem julgadas/os?
É por essas e por outras, que tenho vergonha de dizer que sou
Portuguesa.
Em entrevistas, em conversas, em qualquer sítio onde a palavra
homossexual apareça, as pessoas fazem logo "cara feia". Porquê? Porque
ser homossexual, actualmente, ainda é ser estranho, é inaceitável.
Já me passou pela cabeça a ideia de casar com um homem e de ter
filhos, mas para quê? Para anos mais tarde me arrepender do que fiz e
fazer os meus filhos e marido sofrerem? Para a sociedade achar muito
bonito e aceitável? Não me parece. Somos como somos e não há nada a
fazer!
Claro que doía, quando queria andar na rua de mão dada com a
minha namorada e não podia porque alguém conhecido podia ver-nos e
contar versões muito distorcidas da realidade às nossas famílias. Dói ver
certos casamentos serem realizados quando ambos os "protagonistas",
não dão a mínima importância ao acto em si, enquanto nós temos de
lutar todos os dias por direitos que em Portugal, se calhar, nunca nos
vão ser atribuídos.
Ser homossexual é amar alguém do mesmo sexo, sem fazer mal aos
outros. É estar no seu canto e querer ser feliz.
- 496 -
Ser homofóbico é julgar os outros e ser feliz com a infelicidade dos
mesmos.
Agora digam lá, sinceramente, onde está a "doença"? No
homossexual ou no homofóbico?

Lady L
19 Anos
#48

- 497 -
Fórum MadeiraGay
Não sei se algum dos administradores/ outros moderadores já
escreveu algo sobre o nosso fórum, mas como nunca é demais ―passar a
palavra‖ em relação a este tema, vou falar-vos do nosso ―cantinho‖.
O MadeiraGay, é um fórum LGBT, onde qualquer pessoa se pode
inscrever. O nosso principal objectivo (acho que falando por todos), é
de proporcionar á nossa comunidade, um espaço em que possamos ser
nós mesmos. Não queremos de maneira nenhuma, ―roubar‖
protagonismo a outros fóruns, mas achamos que a Madeira estava a
precisar de um espaço só dela. Não há restrições de idades, sexos,
orientações. Têm dúvidas? Estão disponíveis para dar conselhos?
Querem encontrar-se connosco? Se sim, visitem o nosso site (encontram
o link, no final deste texto) e participem!
Sou apenas uma das moderadoras, e apesar de não ser um trabalho a
tempo inteiro, é um ―part-time‖, que me dá prazer, já que sempre desejei
fazer parte de algo dentro deste género. Já tivemos a possibilidade de
organizar 2 convívios e espero que o número vá aumentando, tanto
como o número de membros.
O nosso espaço irá comemorar o seu primeiro aniversário, no
próximo dia 20 de Julho. Começado ―na brincadeira‖ por um jovem, a
pouco e pouco, se foi transformando num espaço de diálogo, alguma

- 498 -
brincadeira, e como é claro, com um espaço para os temas sérios. Além
das típicas mensagens pessoais, todos os membros têm acesso a um
chat, ―teclando‖ em tempo real.
Mesmo sem se registarem, podem ver os tópicos e ter uma noção
do que vos reserva, depois do momento do registo.
Espero que este possa vir a ser um pequeno (grande) passo para
nós, já que o bem-estar de toda a população LGBT, é uma prioridade.
Visitem-nos!

Lady L
19 Anos
#92

- 499 -
O teu lugar ao Sol
Eu não tenho nenhuma história concreta apenas disseram-me para
vir aqui porque conheço apenas o tema de perto, tenho muitos amigos,
colegas, clientes, chefes de trabalho gays, e vivemos todos bem uns com
os outros.... Eu não sou gay, mas sou gayfriendly. Pelas experiências que
conheço, acho que cada um, como qualquer pessoa neste mundo, deve
encontrar o seu lugar ao sol, e lutar até ao final por isso... quer sejas,
preto, amarelo, índio, gay, bi, hetero, jovem, velho, com sida... pensar
que às vezes és tu, que para seres feliz, tens de ensinar aos outros que
para serem felizes, não têm de depender das tuas escolhas, ISSO
TRATA-SE DE AMOR... e para saíres adiante, temos de saber perder e
deixar algumas coisa pelo caminho, se recuperarás não sei, pode ser que
sim... mas de certeza que podes ganhar outras melhores....
Talvez, porque vivo numa cidade, preparada emocionalmente,
fisicamente, psicologicamente, com uma sociedade praticamente que
leva o tema com uma certa naturalidade, com muitas campanhas, com
muitos eventos, festas, com muitos locais próprios, hotéis, bares, lojas,
quase porta sim porta sim... eu mesmo frequento, porque tenho amigos,
com quem gosto de sair, divertir-me com as minhas amizades sem
nenhum tipo de preconceitos....

- 500 -
Muitos deles não tiveram qualquer tipo de problemas com as suas
famílias, mas muitos tiveram... mas hoje são pessoas que lutaram, e
conseguiram, e são felizes, com o trabalho que querem, com os seus
amigos, com os mesmo de toda a vida, ou outros, alguns casados, outros
vão casar, outros divorciaram-se com filhos e têm o seu actual relação
com alguém do mm sexo, e são aceites pelos próprios filhos e família...
mas hoje em dia quem não tem de lutar para ter algo que deseja? Acho
que o pior é" ficar a bater no ceguinho", e parar de lamentar-se, faz algo
pela tua vida. Corre, grita... e tem orgulho de ti mesmo, e de quem és!

Rita Evangelista
30 Anos
#66

- 501 -
Como nasceu a rede ex aequo?
Apresento esta história a pedido de terceiros. Não julgo que tenha a
utilidade, a riqueza ou a força das histórias individuais, mas existindo
quem ache que vale a pena mais pessoas conhecerem-na, ei-la, com o
manifesto que esse interesse é recebido com muito apreço. A história
que apresento não é absolutamente exaustiva e não fala em detalhe de
algumas das premissas fundadoras da rede ex aequo – e de como foram
aplicadas – que se baseiam em valores de cooperação, diálogo, partilha,
democracia, paridade, integração, pluralidade, respeito, participação
activa dos jovens no desenvolvimento do trabalho da associação e uma
procura basilar de adequar os seus recursos às necessidades e
sensibilidades dos jovens que são lésbicas, gays, bissexuais e/ou
transgéneros (LGBT) ou com dúvidas, mas apresenta pelo menos os
seus objectivos principais e o trabalho que efectuou, ou seja, o que
aconteceu em termos práticos desde a sua fundação.
A rede ex aequo é o resultado do Projecto Descentrar, um projecto
que durou 2 anos, tal como previsto, e terminou no fim de 2003. O
projecto foi delineado em 2000 durante uma Study Session da IGLYO
(International Gay, Lesbian, Bissexual, Transgender Youth and Student
Organisation) no Centro Europeu da Juventude em Budapeste como
uma tentativa de resposta à falta de apoio que existia para a população

- 502 -
LGBT, em particular os jovens, fora da capital do país. O mesmo obteve
o apoio financeiro do Instituto Português da Juventude (IPJ) e foi
desenvolvido no seio da Associação ILGA Portugal. Através dele
procurou-se fundar o máximo de grupos de jovens LGBT em Portugal,
integrados numa rede de grupos de jovens, a rede ex aequo, conferindo
aos seus coordenadores o apoio, os conhecimentos e as competências
necessárias para poderem desenvolver o seu trabalho de forma
sustentável e responsável. A edição de um manual para coordenadores e
a organização de formações eram as ferramentas base do projecto. O
nome rede ex aequo transmite os conceitos fundadores da iniciativa: a
promoção não só de redes de cooperação, de partilha de informação e
experiências entre os jovens a quem a associação se dirige, mas também
entre os voluntários da associação, independentemente da sua
localização geográfica, fomentando sinergias e o alargamento de boas
práticas para outros pontos do país (rede); todos os jovens em todas as
partes do país e todos os jovens independentemente da sua orientação
sexual e/ou identidade de género são jovens ―com igual mérito‖ (ex
aequo) e são merecedores de igualdade de tratamento (nome em letras
pequenas sem capitais).
A rede ex aequo – associação de jovens lésbicas, gays, bissexuais,
transgéneros e simpatizantes é criada quando se compreende que para
dar continuidade aos objectivos e resultados do projecto seria necessário
criar uma associação juvenil, com entidade jurídica própria e com total
autonomia e independência. O mesmo aconteceu a 5 de Abril de 2003.
Nos seus estatutos foram traçados os principais objectivos da
associação: dar apoio à juventude LGBT e educar as mentalidades nas
questões relacionadas com a orientação sexual e identidade de género.
O fórum online da rede ex aequo foi implementado a 2 de Fevereiro
de 2002, sendo um dos primeiros objectivos concretizados do Projecto
Descentrar. O site oficial que hoje conhecemos com a morada
www.rea.pt surgiu em Janeiro de 2002 - altura em que o Projecto
Descentrar arrancou - e pretendia oferecer informações sobre os grupos
de jovens da rede ex aequo e outra informação/documentação relevante
para jovens LGBT, pais, amigos e familiares. Hoje em dia o fórum

- 503 -
continua a ser um dos recursos mais populares da associação e uma base
de dados imensa de informação, opiniões e testemunhos.
O projecto começou por fazer divulgação por várias vias, inclusive
internet, mas principalmente com cartazes que começaram a ser afixados
por várias cidades do país - desde Guarda, Viseu, Bragança, Évora, Beja,
Faro, Portimão, Santarém, Castelo Branco, Viana do Castelo a Covilhã,
etc. - para apelar a voluntários que desejassem criar um grupo de jovens
LGBT na sua cidade.
A primeira sessão de formação de coordenadores do Projecto
Descentrar ocorreu a 27 de Abril de 2002, ao qual se seguiram outras,
ainda durante o período de dois anos de implementação do projecto, na
própria cidade onde se iria fundar o grupo ou em Lisboa com
voluntários de partes diferentes do país. Hoje em dia a rede ex aequo
organiza duas sessões de formação por ano, geralmente em pontos
diferentes do país, e continua a basear-se no Manual de Coordenadores
que se encontra já na sua 3ª edição (revista e aumentada) como
ferramenta de apoio e orientação primordial para os voluntários que
implementam o seu trabalho local.
A fundação dos grupos de jovens, alguns dos quais já não existem,
até ao término do Projecto Descentrar em Dezembro de 2003, foi na
seguinte ordem: Leiria (10 de Maio de 2002), Évora (21 de Junho 2002),
Coimbra (12 de Novembro de 2002), Setúbal (12 de Novembro de
2002), Porto (25 de Janeiro de 2003), Aveiro (8 de Março de 2003),
Lisboa (10 de Maio de 2003), Braga (22 de Novembro de 2003), Castelo
Branco (11 de Janeiro de 2004), Covilhã (10 de Janeiro de 2004). A
associação já teve ou tem ainda também grupos locais nas seguintes
cidades: Beja, Bragança, Vila Real e Viseu.
Algumas pessoas perguntam por que razão o grupo de jovens em
Lisboa não foi o primeiro ou dos primeiros a serem criados. A resposta
é muito simples: até perto da data de Maio de 2003 a Associação ILGA
Portugal tinha um grupo de jovens próprio que estava em actividade e
achou-se que não seria adequado nem faria sentido a criação de um
grupo análogo da rede ex aequo. Só quando a própria Associação ILGA
Portugal decidiu extinguir o seu grupo de jovens é que então se avançou
para fundar o grupo em Lisboa.
- 504 -
Em resumo, os resultados pretendidos pelo Projecto Descentrar
eram:
▪ A diminuição do isolamento da juventude LGBT em Portugal e
dos efeitos da discriminação, entre os quais a baixa auto-estima, a
solidão, a depressão e a ideação e tentativa de suicídio, factos verificados
por estudos em várias partes do mundo e posteriormente pelos próprios
dados de campo da rede ex aequo em Portugal;
▪ A criação de espaços de convívio seguro e saudável para a
promoção de amizades e apoio mútuo;
▪ A elaboração de projectos que visavam informar e
consciencializar os cidadãos, jovens e adultos, em relação aos temas da
homo e bissexualidade e do transgenerismo, destruir preconceitos e
alertar para os perigos e resultados da homofobia e transfobia.

Outra das questões que colocam sobre a história da rede ex aequo é


a demora que se verificou na legalização da mesma enquanto associação,
algo que ocorreu exclusivamente relacionado com processos
burocráticos: a partir de 2003 o processo constituição de associações
juvenis passara a ser tratado pelo próprio IPJ, mediante a entrega dos
documentos necessários, e não como acontecia antes e como acontecia
até recentemente com associações não juvenis que necessitavam de ir ao
notário – hoje em dia já temos o Associação na Hora. Como o processo
era novo houve alguma confusão dos responsáveis do IPJ, que não
estavam totalmente inteirados de como seria o procedimento. A
associação foi legalizada em Setembro pelo Ministério Público (MP) que
arquivou a acta/estatutos que recebera. Contudo, o IPJ afirmava que
não poderia avançar para o passo seguinte porque o MP não lhes
entregava a acta de volta, acta essa que era necessário enviar para a
Imprensa Nacional Casa da Moeda para serem publicados os estatutos
da associação em Diário da República (DR). Depois de falarmos com
alguém do MP e um jurista ficámos a saber que a acta nunca seria
devolvida pelo MP, porque faz parte do procedimento de legalização
arquivá-la e têm de ficar com a cópia. Assim comunicámos ao IPJ que
teria de pedir duas cópias da acta a todas as associações que se
constituíssem via o IPJ, uma para o MP e outra para a Imprensa
- 505 -
Nacional Casa da Moeda. Enviámos uma segunda acta autenticada e a
situação foi desbloqueada – passando isso a acontecer igualmente para
todas as outras associações juvenis que se encontravam penduradas no
processo pelas mesmas razões.
A segunda fase do processo, que levou à demora da publicação em
DR da versão mais recente, tem uma história particular: na primeira
versão dos estatutos publicados no DR, a 9 de Fevereiro de 2004, dizia
só rede ex aequo e não rede ex aequo - associação de jovens lésbicas,
gays, bissexuais, transgéneros e simpatizantes. Este facto criou um
impedimento na altura do pedido de cartão com o Número de
Identificação de Pessoa Colectiva (NIPC). Como o nome registado no
Registo Nacional de Pessoas Colectivas (RNPC) era o nome extenso da
associação, nos estatutos no DR o nome também teria de aparecer todo.
O passo seguinte foi então ir até à Impressa Nacional Casa da Moeda
pedir que publicassem uma correcção a dizer que onde se lia "rede ex
aequo" deveria constar "rede ex aequo - associação de jovens lésbicas,
gays, bissexuais, transgéneros e simpatizantes". Falámos com uma
senhora que telefonou para alguém responsável dentro do edifício e
munidas do DR em papel juntamente com o envelope - ou melhor dito,
o plástico que serve de invólucro postal ao DR em papel - onde
constava a morada para a qual a edição publicada fora enviada, ou seja, a
sede da rede ex aequo, e o nome do destinatário, onde apresentava o
nome completo da associação dissemos: ―Basta corrigir e colocar o
nome que utilizaram para destinatário quando nos enviaram a edição do
DR que tem os nossos estatutos publicados‖. A senhora começou a
repetir o que dissemos, para a outra senhora ao telefone, e a ler o
destinatário no envelope que mostráramos: "rede ex aequo - associação
‗das‘ jovens lésbicas" e pára ali atrapalhada. Nós insistimos: "É o nome
todo que consta aí. Indique por favor que é para usarem o nome do
destinatário que têm associado à nossa associação e que utilizaram para
nos enviar o DR‖. A senhora repetiu também para a senhora do outro
lado do telefone. Quando sai finalmente a versão corrigida e a
recebemos por correio, ainda no mesmo mês e pouco tempo depois do
nosso pedido de correcção, caímos todos para o lado quando vimos que

- 506 -
a correcção era de ―rede ex aequo‖ para ―rede ex aequo - associação das
jovens lésbicas‖.
A decisão seguinte foi convocar imediatamente uma Assembleia
Geral Extraordinária da associação - que ocorreu a 22 de Fevereiro de
2004 - para alterar e completar o nome que constava nos estatutos,
aproveitando-se para retirar do Artigo 2º, alínea c) dos estatutos, a parte
final que dizia "dos 16 aos 26 anos" para ficar só:
c) Criar e fomentar o desenvolvimento de grupos locais de convívio,
de apoio e de trabalho para jovens LGBT e simpatizantes.
Assim finalmente tivemos a versão final dos estatutos publicados
em Diário da República a 25 de Maio de 2004.
Todos os projectos e actividades que ocorreram a partir do
momento em que a rede ex aequo se tornou associação estão
documentados nos relatórios de actividades disponíveis no site da
associação, mas deixo uma curta resenha:
Acampamento de Verão: acampamento organizado todos os anos
desde 2003 que proporciona durante uma semana actividades
relacionadas com temas como assumir-se, o nosso primeiro amor, a
nossa rede de apoio, a homo/transfobia, através de jogos, oficinas e
debates e idas à praia, passeios, desporto, peddy papers, jogos de cultura
geral, teatro, espaços musicais e de poesia.
Brochura Sermos Nós Próprios: brochura informativa para
jovens lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros ou com dúvidas, publicada
pela primeira vez em 2005. Esta brochura inclui adicionalmente um
capítulo exclusivamente dedicado aos pais e familiares.
Campanha Digital Contra o Preconceito: campanha iniciada em
2003 com banners e postais virtuais que contêm frases que pretendem
levar o cibernauta a pensar sobre as mesmas e a reflectir sobre o
preconceito existente para com as pessoas LGBT.
Ciclos de Cinema LGBT: sessões de cinema organizadas desde
2004 com o objectivo de sensibilizar os jovens e adultos para questões
relacionadas com a homossexualidade, bissexualidade e transgenerismo,
especialmente no que diz respeito à fase do "assumir-se para si próprio".
Grupos de Jovens Locais: grupos cujo trabalho primordial é a
organização de reuniões duas vezes por mês em que, por regra, através
- 507 -
de dinâmicas de grupo/exercícios pedagógicos divertidos se promove a
partilha e o debate de temas variados, que estão de algum modo total ou
parcialmente ligados à temática LGBT.
Observatório de Educação LGBT: projecto que fornece um
formulário online para reportar todas as situações de discriminação, de
qualquer cariz, respeitantes ao tema da orientação sexual e identidade de
género que tenham ocorrido em estabelecimentos escolares em Portugal.
Foram já publicados dois relatórios desde 2006.
Prémios Média: evento que homenageia desde 2005 as figuras da
comunicação social, artes e espectáculo, que através do seu trabalho dão
visibilidade de modo correcto e positivo a questões LGBT.
Projecto Educação LGBT: projecto iniciado em 2005 que
organiza debates nas escolas com alunos e efectua sessões com pais,
professores ou profissionais que trabalhem com jovens e que publicou
duas brochuras com fins educativos: "Perguntas e Respostas Sobre
Orientação Sexual e Identidade de Género" [2ª Edição] e "Educar para a
Diversidade: Um Guia para Professores sobre Orientação Sexual e
Identidade de Género".
Os novos projectos com arranque ainda no ano em que este texto é
escrito são o Projecto Grupos Itinerantes, que pretende a organização
de reuniões pontuais para jovens nas cidades do país onde não existem
grupos de jovens da associação, o Projecto Inclusão que prevê uma
campanha contra o bullying homofóbico nas escolas e noutros espaços
de socialização e o Projecto Grupo de Pais, que pretende a
dinamização de reuniões de apoio e informação organizadas por pais de
jovens LGBT para outros pais de jovens LGBT.
É um orgulho poder dizer que a rede ex aequo, através das centenas
de voluntários com quem pôde contar ao longo destes anos, conseguiu
até hoje ter presença, seja regular ou pontual, via as suas actividades, em
quase todos os distritos do país. A excepção principal é as ilhas, algo que
se deseja que deixe de ser verdade o mais brevemente possível.
É na riqueza da nossa partilha, seja das nossas histórias, das nossas
dúvidas, das nossas preocupações, das nossas ideias, das nossas
experiências no seio dos espaços criados pela rede ex aequo, assim como
na força da partilha do nosso voluntariado, conhecimentos e vontade de
- 508 -
mudar para melhor o ambiente e a vida de todas as pessoas LGBT que a
rede ex aequo é o que é e espero que continue sempre a sê-lo.
Rita Paulos
#7

- 509 -
APOIOS

- 511 -
O projecto Partilha'te é uma iniciativa pessoal de um grupo de
amigos que se juntou porque é fixe fazer coisas e esta é uma coisa fixe
para se fazer :)
Este projecto não está ligado a nenhum movimento civil ou político,
a nenhuma associação, movimento ou organização. Não representa
nenhuma agenda, nenhum programa de intenções nem nenhuma causa
em particular. Trata-se apenas de criar a possibilidade de partilha, amor e
comunicação nas nossas vidas.
No entanto, este projecto só foi possível graças ao apoio de muitos,
para quem vão os nossos sinceros agradecimentos.

ASSOCIAÇÕES

Associação Ilga Portugal Associação ILGA Portugal –


Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero. – Fundada em
1995, a Associação ILGA Portugal é uma Instituição Particular de Solidariedade
Social, sob a forma de Associação de Solidariedade Social – e é a maior e mais
antiga associação de defesa dos direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero
(LGBT) em Portugal.

Não te Prives Não Te Prives – Somos um grupo composto por mulheres


e homens muito diferentes entre si. Une-nos a mesma vontade: combater a
discriminação baseada na sexualidade e no género.

OpusGay – A Associação Opus Gay é uma organização cívica de carácter


social criada para promover a solidariedade entre todos os membros da comunidade
- 513 -
LGBT (gay, lésbica, bissexual e transgender) portuguesa, ultrapassando fronteiras
políticas, geográficas, sociais ou etárias.

rede ex aequo – A rede ex aequo é uma associação de jovens lésbicas, gays,


bissexuais, transgéneros e simpatizantes com idades compreendidas entre os 16 e os
30 anos em Portugal. A rede ex aequo tem como objectivo trabalhar no apoio à
juventude lésbica, gay, bissexual ou transgénera e na mudança das mentalidades em
relação às questões da orientação sexual e identidade de género.

BLOGS

a_les_de_mim.blogs.sapo.pt | abraco-te.blogspot.com
afundasao.blogspot.com | afundasoft.blogspot.com
alguemounao.blogspot.com | andmyman.blogspot.com
andorinhaquevoa.blogspot.com | anti-homophobia.forums-free.com
apurriar.blogspot.com | aquintadoscanarios.blogspot.com
asminhasfacesocultas.blogspot.com | beyourselfblog.blogspot.com
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madeiragay.org | newrgay.blogs.sapo.pt ninolgbt.blogspot.com
pedro-efe.livejournal.com | quotidianogay.blogs.sapo.pt
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themyotherside.blogspot.com umsonhochamadomatilde.blogspot.com

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SITE
weListen Business Solutions, Lda

VÍDEO DE DIVULGAÇÃO DO PROJECTO


Nuno Félix

COMUNICAÇÃO SOCIAL
Antena 3
Rádio Clube Português
Vidas Alternativas

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