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Marx: naturalismo e história
O que pode ser preservado do marxismo hoje? Marx é realmente um filósofo?
Em que sentido ele nos libertou de Hegel e nos aproximou de uma posição
naturalista? Por que, para Marx, não há um sentido na história? Marcel Conche,
professor emérito na Sorbonne, nos convida a entender a posição do Marx
filósofo, não a do historiador nem a do economista. E o modo como Marx lê a
tradição filosófica que lhe era contemporânea fortemente marcada pelo legado
hegeliano, retomando nos pré‐socráticos as fontes teóricas para a sua crítica da
finalidade na história.
Marcel Conche ‐ Le Nouvel Observateur
Data: 04/01/2010
Em outubro de 2003, a revista francesa Le Nouvel Observateur dedicou um número especial à obra de
Karl Marx. Cinco anos antes da hecatombe econômica mundial de 2008, a publicação perguntava: Marx
pode ser o pensador do terceiro milênio? Como escapar da mercantilização do mundo? Com a eclosão
da crise que abalou o sistema financeiro internacional, Marx “voltou à moda”. Um retorno positivo, pois
traz de volta ao cenário intelectual um gigante do pensamento humano, mas que precisa enfrentar uma
série de clichês, mitos e deformações teóricas que se construíram em torno e invariavelmente contra as
idéias do autor de “O Capital”. Um dos méritos da publicação francesa é apontar algumas idéias e
metodologias investigativas de Marx que podem nos ajudar a entender (e transformar) o mundo neste
início de século XXI.
No artigo intitulado “Marx philosophe: matérialiste, hélas!”, Marcel Conche, professor emérito da
Sorbonne, propõe‐se a responder ou, ao menos, a indicar o caminho de resposta para algumas
perguntas importantes sobre a obra de Marx: O que pode ser preservado do marxismo hoje? Marx é
realmente um filósofo? Qual era a paixão de Marx? Em que sentido ele nos libertou de Hegel e nos
aproximou de uma posição naturalista? Por que, para Marx, não há um sentido na história? Para
Conche, o materialismo de Marx está preso a um inimigo do passado (o idealismo) e, neste sentido, olha
para trás. Por outro lado, ao nos libertar de algumas idéias de Hegel deixa um legado para pensarmos
uma filosofia da Natureza e da finitude, uma “filosofia para o amanhã”.
Mais do que defender a atualidade de Marx, ou antes de fazê‐lo, Conche nos convida a entender uma
posição, a de Marx filósofo, não a de historiador nem a de economista. E o modo como Marx lê a
tradição filosófica que lhe era contemporânea ‐ e fortemente marcada pelo legado hegeliano ‐,
retomando nos clássicos pré‐socráticos as fontes teóricas para a sua crítica da finalidade na história.
Essa crítica é, vale dizer, uma grande desconhecida do ambiente de debate público que foi consolidado
há pouco mais de 30 anos, no mundo. No período que se seguiu aos ditames financistas dominantes, a
mercantilização avançou sobre a informação e a consumiu, inclusive com a carapaça de que o marxismo
defendia um fim na história, com base em aberrações teóricas autoritárias datadas e obviamente na má‐
fé que precificou a informação, especialmente a brasileira, ao longo das últimas décadas.
O texto de Marcel Conche não traz qualquer novidade, nem uma leitura peculiarmente interessante da
obra de Marx. Ele traz Marx, enquanto filósofo, inclusive da história. Só isso e tudo isso. A Carta Maior
seguirá oferecendo os seus leitores outras contribuições que julgarmos válidas para esclarecer, informar
e contribuir, na pequena parte que nos cabe, a formar um ambiente não‐mercantil de informação no
país. Segue o artigo:
Marx, filósofo: materialista, hélas! (Marcel Conche)
Publicado originalmente no Le Nouvel Observateur – Hors‐Série, edição outubro/novembro de 2003
Há alguns anos, em “Viver e Filosofar” (“Vivre et Philosopher”, PUF, 1992), respondi às questões de
Lucille Laveggi. Uma delas era esta: “O que hoje em dia você preserva do marxismo?”. A resposta foi
esta: “Entendendo por marxismo unicamente o conjunto das idéias de Karl Marx, preservo delas alguma
coisa? Parece‐me que sim, mas num domínio, o da economia política, que eu ao mesmo tempo
abandono como dele. Não tenho nada a dizer nesse domínio, o da economia política, mas a repartição
desigual e injusta dos bens materiais é um fato que é preciso explicar, e ele o explicou. Isso quer dizer
que sou marxista? Não, não mais do que sou newtoniano por admitir a lei universal da gravidade. 'Eu
não sou marxista', diria o próprio Marx, querendo com isso dizer que ele não tinha a mais para se dizer
marxista do que o tinha Newton para se dizer newtoniano” (p. 151). É que se trata de ciência, que é
impessoal: é o espaço que é euclidiano, não o geômetra.
Deixando de lado a análise da exploração capitalista, que hoje em dia teria somente de ser atualizada –
mas seria necessário para tanto um novo Marx – e, portanto, deixando de lado o Marx sábio, eu me
volto ao Marx filósofo. Mas ele é realmente um filósofo? “Os filósofos dedicaram‐se somente a
interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é transformá‐lo”, diz a tese XI das “Teses
sobre Feuerbach”. Que seja preciso transformar o mundo, a injustiça e a desigualdade que nele reinam,
tudo bem. Mas desde quando isso é o papel do filósofo? A filosofia se define como busca da verdade –
não dessa ou daquela, mas da realidade em seu conjunto: o que, dessas verdades, é o Todo da
realidade? É nesse sentido que o filósofo tem a paixão da verdade. E é essa a paixão de Marx? De modo
algum – pois ele não pode esquecer os homens. A paixão de Marx é a paixão moral. Observem o que
Hans Jonas escreveu: “É impossível imaginar Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo sem um grau supremo de
paixão – a paixão do bem que era objeto de suas visões: eles eram naturezas morais, voltadas a um fim
trans‐pessoal” (“O Princípio Responsabilidade”), Cerf, 1992, p. 162). Isso vale do mesmo modo para
Marx. Pacifista, se eu mesmo sou uma “natureza moral” o sou antes no sentido kantiano. O pacifista
“tem as mãos puras, mas não tem mãos”, dizia Péguy. Falso dilema, pois a escolha é: ter as mãos puras
ou sangrentas. Eu recuso a violência, mesmo visando ao bem. Para falar como Sartre, os capitalistas são
“sujos”. Que seja! Mas os filhos dos capitalistas são inocentes.
Em vista do bem é preciso “revolucionar o mundo existente.” Para tanto, é preciso primeiro conhecer
esse mundo. Daí vem a ciência do “Capital” ‐ ciência comparável, diz Marx, não à física, mas à biologia.
Contudo, o método são poderia ser experimental, a la Claude Bernard. É necessário um método que
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permita pensar um mundo, quer dizer, uma totalidade. É exatamente isso o que o método dialético de
Hegel permite. É suficiente despojá‐lo de sua carapaça mística, de distinguir nele seu fundo racional.
Althusser erra ao querer caracterizar a especificidade da dialética com a ajuda de conceitos
emprestados à psicanálise, onde eles designam mecanismos de elaboração do sonho. Mas ele tem razão
quando diz que a dialética com que Marx opera “não retém essencialmente quaisquer dos conceitos
hegelianos, nem a negatividade, nem a negação, nem a cisão, nem a negação da negação, nem a
alienação, nem a superação” (“Pour Marx”, Maspero, 1966, p.223, nota 52). Decerto a contradição é “a
fonte de toda dialética” (“O Capital”, Editions Sociales, T. III, p. 37, nota 2); mas por contradição aqui é
preciso entender simplesmente a unidade dos contrários e, no “Capital” Marx pensa em termos de
unidade de contrários: não em termos hegelianos, mas heraclitianos. Marx nos libertou de Hegel: sem
ele, Nietzsche, Bergson teriam sido possíveis?
O que significa passar de Hegel a Heráclito, do idealismo especulativo ao naturalismo? Significa cessar
de usar a dialética para escamotear o tempo. Porque o tempo não é superável: não se o escamoteia. O
movimento do pensamento não deve ser absolutizado, como em Hegel, onde ele se torna “o demiurgo
da realidade”: ele não é, em sua realidade, senão a “reflexão do movimento real”. Por movimento real é
preciso entender: movimento que implica o tempo – um tempo histórico. Em Hegel, o movimento real
não ocorre na Enciclopédia, mas com a “História Universal”. Assim, o movimento real não é essencial à
dialética. É somente na história universal que a dialética se entronca com o movimento real. Mas, não
sendo a história universal senão um momento, é superada. E nisso reside a diferença radical com Marx:
em Hegel, a História é justificada e superada; em Marx, não há superação da História. Isso quer dizer
que não há “um sentido na história” já encerrado na Idéia eterna.
Em Hegel, o movimento é superado, pois a Causa do movimento é, como em Aristóteles, a Idéia eterna.
Em Marx, não há outras causas que não as contradições inerentes às formas existentes e o movimento
não é superado. Como o movimento está ligado à contradição, isso quer dizer que esta não é superável.
Todas as contradições particulares são superáveis, mas a contradição como tal não o é. Como em
Heráclito, onde o devir não é superável, sempre houve e haverá movimento, e nada mais: aparecimento
e desaparecimento perpétuos das formas. Só resta à dialética as coisas finitas: só há finitos – e essa é a
essência do materialismo, segundo Hegel.
A dialética significa, em Marx, a auto‐supressão daquilo que é. Daí que não há nada de absoluto, nada
que seja imune à instabilidade e que não venha a desaparecer. Em particular, o modo de produção
capitalista não poderia ser considerado, a exemplo de Ricardo, como um absoluto. A lei da queda
tendencial da taxa de lucro o mostra, criando seu próprio limite. Essa limitação testemunha “o caráter
limitado e puramente histórico, transitório, do sistema de produção capitalista” (“O Capital”, Editions
Sociales, T. VI, p.255). O modo de produção capitalista suprime a si mesmo, cria ele mesmo as condições
de um modo de produção “superior” (p. 271). A substituição de um certo modo de produção por um
outro, esse é o sentido aproximado da história que vivemos. E não há outro sentido senão o
aproximado. A história não é finalista, ela não tem um sentido geral definido anteriormente, pois
dedução alguma pode substituir a história real. A dialética vai do abstrato ao concreto, mas o concreto é
“o verdadeiro ponto de partida”: ela portanto não teria nada a ver com o concreto que será mas ainda
não o é. Ela nos dá a inteligência da história em sua necessidade, mas [a necessidade] da história real,
efetivada, não da história que ainda não é real. Ela não permite absolutamente a antecipação. Antecipar
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seria ainda um modo de escamotear o tempo. Ora, a dialética só tem sentido como reflexão do
movimento real, o qual supõe a absoluta realidade do tempo.
Não há disso tudo nada que não me pareça justo. Seria o caso de me chamar materialista? Não me sinto
inclinado a tanto. Naturalista, sim; materialista, não. Pois eu filosofo a partir do que se mostra, do que
se oferece a mim. Ora, o que se oferece a mim é a Natureza, não a matéria. A Natureza é um dado, não
um conceito: a matéria é um conceito, não um dado. A Natureza está aí tanto como um Todo infinito.
Isso é claro para aqueles que, a exemplo de Pascal ou de Spinoza, sabem chegar, aquém das evidências
comuns, a uma evidência primeira, mais imediata. E o naturalismo espontâneo se confirma pela
reflexão. Nele não pode haver senão finitos (seres finitos). O finito pressupõe o infinito... Mas eu não
posso me engajar aqui na querela do infinito atual.
O que me deixa reservado e distante do nível materialista é ainda isto. O materialismo marxista é uma
filosofia reativa e uma filosofia de combate. Por isso mesmo, resta numa dependência daquilo a que se
opõe. Marx filósofo gasta muita energia criticando os outros – Hegel, Feuerbach, Bruno Bauer, Max
Stirner, etc. Por que ele não se dedica às coisas mesmas, em vez de deixá‐las nos livros? É isso o que ele
faz na Economia, onde se trata, é verdade, de ciência, não de interpretação. Por sua dependência do seu
passado e de seu inimigo, o idealismo, o materialismo de Marx é uma filosofia que olha para trás. Qual a
filosofia para o amanhã? Porque a Natureza é unicamente o que se oferece a todos os homens, seria
uma filosofia da Natureza. Marx a tornou possível ao nos libertar de Hegel (para quem a filosofia “da
Natureza” só existe no título).
Marcel Conche é professor emérito da Sorbonne.
Tradução: Katarina Peixoto
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