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Hackers, monopólios e
instituições panópticas:
elementos para uma teoria da cidadania digital*
alega que a Lei USA Patriot, aprovada no fim usada para tentar impedir o uso não autoriza-
de 2001, permite a espionagem de pessoas, do, denominado “pirata”, de softwares, games,
sem consulta ao Judiciário, uma vez que isso vídeos, filmes e músicas, está permitindo que,
seria indispensável para um combate ágil e em nome da defesa do copyright, seja destruí-
eficaz ao terrorismo. do o direito à intimidade e à privacidade.
Em maio de 2006, o site de buscas Goo- Além disso, o caráter transnacional da rede
gle recusou-se a entregar ao Departamento de de comunicação, mediada por computador,
Justiça dos Estados Unidos uma lista conten- levanta o problema da definição das regras
do palavras e sites pesquisados por todos os básicas de operação dessa mesma rede, defini-
usuários durante uma determinada semana. das por protocolos de comunicação, padrões e
O governo já vinha utilizando as bibliotecas pela estrutura dos nomes de domínios. Emer-
para captar informações sobre o que as pesso- ge a questão da governança da Internet, que
as consultam2. A Lei USA Patriot permite tais envolve a disputa entre cinco grandes interes-
ações de rastreamento. É notável que, antes ses, não necessariamente contrapostos: dos
mesmo dos ataques de 11 de setembro, o FBI comitês técnicos que definiram até agora os
(polícia federal norte-americana) já escane- protocolos da Internet; dos Estados nacionais;
ava e-mails que transitavam pelos backbones das corporações de Tecnologia de Informa-
(redes de alta velocidade) e seus roteadores ção; da sociedade civil mundial e das várias
instalados nos Estados Unidos. Essa prática comunidades hacker; e o interesse do Estado
de vigilância ocorria a partir de um sistema norte-americano. Várias decisões aparente-
chamado Carnivore, que permitia ler todos mente técnicas que afetarão a privacidade
os e-mails e copiar aqueles que continham e o anonimato dos internautas estão sendo
determinadas frases e palavras-chave. É im- debatidas e poderão ser adotadas, sem que os
portante ressaltar que, mesmo denunciado cidadãos do planeta, que utilizam a Internet,
no parlamento por organizações da sociedade tenham a mínima possibilidade de debatê-las
civil, tais como a EFF (Eletronic Frontier Foun- ou mesmo de recusá-las. Se for definido que
dation) e EPIC (Eletronic Privacy Information o protocolo de comunicação básico entre as
Center), o Carnivore violou e-mails de cida- milhares de redes deverá ter como o padrão o
dãos americanos e também de estrangeiros. fim do anonimato na comunicação, isso afe-
Todas as mensagens “suspeitas” que tiveram o tará completamente a forma como conhece-
território norte-americano como rota de pas- mos a Internet hoje.
sagem foram violadas3. Esses exemplos reforçam a necessidade
Talvez muito mais do que os Estados, algu- de observarmos mais atentamente a relação
mas poucas corporações estão buscando legi- entre comunicação, tecnologia e mudança
timar a alteração no imaginário social sobre o social. Também indicam que a comunica-
espaço da privacidade em um mundo insegu- ção mediada por computador, por seu cará-
ro. Empresas que controlam algoritmos em- ter transnacional, afeta a cidadania e exige a
barcados nos códigos de programação com- reconfiguração dos direitos para uma vida
putacional, amplamente empregados como coletiva no ciberespaço. Sem dúvida, a rede
intermediários da comunicação contemporâ- mundial de computadores tem servido às for-
nea, tais como sistemas operacionais, realizam ças democratizantes para compartilhar não
intrusões em computadores pessoais, sem que somente mensagens e bens simbólicos, mas
nenhuma reação de revolta seja noticiada. A também conhecimentos tecnológicos que es-
tecnologia DRM (Digital Rights Management) tão gerando as possibilidades distributivas de
riqueza e poder extremamente promissoras.
É exatamente nesse contexto que um con-
2
Idem.
3
Documentos sobre o Carnivore podem ser obtidos em http://
junto de mega-corporações atua para manter
www.epic.org/privacy/carnivore/foia_documents.html e ampliar, em uma sociedade informacional,
das mensagens. Pois bem, se for definido que dict Anderson mostrou, retrospectivamente,
o padrão de comunicação entre redes será a a importância do capitalismo literário para a
identificação criptográfica de todos os pacotes, criação de uma comunidade imaginada que
então, a Internet terá suprimido o anonimato evoluiria para tornar-se uma nação”, o “ca-
na comunicação. Suponhamos que boa parte pitalismo eletrônico-informático” seja visto
ou a maioria dos cidadãos dos vários países como “o ambiente necessário para o desen-
do mundo seja contra o fim do anonimato na volvimento de uma transnação”.
Internet. Como influenciarão essa decisão? A A emergência de uma “comunidade
quem recorrer? Qual o fórum de decisão? Ou transnacionalmente imaginada”, nos dizeres
continuaremos a acreditar que essas decisões de Ribeiro, exige o aparecimento de lealda-
são meramente técnicas? des superiores às dos Estados Nacionais, for-
Guarinello (2003:46) coloca-nos um pon- jadas a partir do ciberespaço. Nesse contexto,
to extremamente relevante: Poster (2003:329) vê a possibilidade de sur-
gimento de uma espécie de cidadão planetá-
Há, certamente, na história, comunidades rio: “O net-cidadão pode ser a figura forma-
sem cidadania, mas só há cidadania efetiva tiva num novo tipo de relação política, que
no seio de uma comunidade concreta, que
partilha a lealdade à nação com a lealdade à
pode ser definida de diferentes maneiras,
mas que é sempre um espaço privilegiado Internet e aos espaços políticos planetários
para a ação coletiva e para a construção de que ela inaugura”.
projetos para o futuro.
apropriação da riqueza produzida, e esse do- sões de quem as criou. Muitas delas podem
mínio econômico gerou mais poder sobre a ser reconfiguradas, outras têm o uso ambí-
sociedade. Os capitalistas não poderiam im- guo, como a Internet, mas nunca são criadas
por suas relações de produção, se não incor- sem objetivos, de modo neutro. É exatamente
porassem a forma mais produtiva e avançada esta a questão que aqui discuto. Decisões so-
de geração de bens materiais. bre a arquitetura das redes e seus protocolos
Wolton vê, nas promessas em torno das estão sendo tomadas por engenheiros, mas
tecnologias da informação, as mesmas ilusões têm grande impacto social e podem limitar
que geraram prognósticos otimistas para os ou ampliar a liberdade da comunicação entre
impactos da TV, do rádio, do satélite ou do as pessoas. São decisões de grande impacto
cabo sobre o convívio humano. O teórico público e, portanto, adquirem relevância po-
francês não percebeu que a TV e todas as for- lítica, mesmo que tenham sido tomadas por
mas do paradigma de difusão não têm relação comitês técnicos.
com as tecnologias da informação. Estas são Considerar que determinadas tecnolo-
mais do que formas de comunicação intensa gias guardam potenciais revolucionários
e múltipla: são também tecnologias da inteli- não significa, também, assumir a proposta
gência (Lévy, 1999) que ampliam as possibili- de McLuhan. Mattelart criticou a suprema-
dades de transformar informações em conhe- cia que McLuhan dava ao meio. Sem dúvida,
cimento. São tecnologias que reivindicam um o meio condiciona, mas dificilmente pode-
comportamento interativo e se baseiam na rá determinar os conteúdos. São visíveis os
proliferação da cópia. Permitem fundir sons exageros de McLuhan quando advogou que
a imagens e estas a textos, sendo multidirecio- “o grande abalo que rompeu o corpo da co-
nais e capazes de armazenar bilhões de dígitos municação e a desmembrou teve lugar na
na mesma máquina receptora e transmissora Idade Média. Se a Igreja perdeu posição nes-
de mensagens. sa época, se ela aí perdeu sua unidade mís-
Ao afirmar que “a técnica não é suficien- tica, foi por causa da tecnologia” (Mattelart,
te para mudar a comunicação na sociedade”, 2004:103). Por outro lado, é necessário reco-
Wolton pode estar desconsiderando dois im- nhecer que a invenção de Gutenberg viabili-
portantes elementos: um histórico e outro zava a proposta de doutrinadores da Reforma
teórico. Primeiro, a tecnologia da informa- que queriam romper com os intermediários
ção nasceu no âmbito do cálculo e do pro- entre o homem e Deus, entre a portador da
cessamento de dados. Somente depois é que fé e os escritos sagrados. A impressão de ti-
o computador tornou-se uma ferramenta de pos móveis “baniu o estilo de vida comum
comunicação. De um projeto militar no ce- em favor de uma comunidade massiva onde
nário da Guerra Fria, o paradigma da com- cada indivíduo pode se tornar um leitor e
putação em rede surgiu e foi reconfigurado onde a leitura se torna uma experiência pri-
inúmeras vezes por cientistas, hackers e pensa- vada” (Mattelart, 2004:103).
dores da contracultura californiana (Castells, Em outro texto mais recente, Wolton pa-
2003). Assim surgiu a Internet real, tal como rece reconhecer a magnitude e a complexi-
a conhecemos hoje. É inegável que sua expan- dade da comunicação em rede e aponta um
são está mudando a face das comunicações no problema que indica a necessidade da deli-
planeta. E a comunicação em rede é comple- beração pública sobre os caminhos da co-
tamente distinta do broadcasting. municação mediada por computador, prin-
Segundo, talvez a insistência de Wolton cipalmente a Internet: “É no que o tema da
(2003) em afirmar que a tecnologia não muda sociedade da informação é perverso: ele ho-
a sociedade guarde a concepção de que as tec- mogeneíza tudo e faz desaparecer o homem
nologias são socialmente neutras. Técnicas, por detrás dos fluxos de informação. Numa
quando inventadas, sempre guardam deci- economia do signo, tudo é possível. Cabe en-
tão ao homem inventar seus próprios limi- uma única empresa norte-americana, a Mi-
tes” (Wolton, 2004:155). crosoft. O sistema operacional é o principal
programa de uma máquina de processar in-
formações. Ele define como a máquina deve
Concentração de poder e cultura hacker agir, como deve alocar a memória, que tipos
de programas podem ou não podem ser ins-
Carlos Afonso, um dos pioneiros da Inter- talados nela, entre outras funções. “Por do-
net no Brasil, ao comentar o debate sobre a minar a linguagem básica dos computadores,
governança da Internet, na Cúpula Mundial esta empresa também passou a dominar o
da Sociedade da Informação, ocorrida em mercado de navegadores web (browser), uma
duas fases, Genebra, em 2003, e Túnis, em vez que passou a vender o browser junto com
2005, afirmou: seu sistema operacional, desbancando todos
os outros existentes” (Silveira, 2002:157).
Os equívocos de alguns participantes do
debate global vão desde acreditar que o
tráfego de conteúdo passa pelo sistema de
servidores-raiz até pensar que as funções A Internet venceu tenta-
de governança da Internet como um todo
deveriam estar sob a alçada da UIT (União tivas de apropriação
Internacional das Telecomunicações). A privada de seus
ICANN também costuma ser apresenta- elementos principais
da como uma organização global, o que
é verdade apenas numa pequena parte e, exatamente pela forte
em termos legais, não o é de forma algu- influência dos hackers
ma. A ICANN está sujeita às leis federais
dos Estados Unidos e às leis do estado da
em seus processos vitais
Califórnia, e o seu poder de governança da
Internet está limitado por vários contratos
e por um Memorando de Entendimento
Poster (2003:322) alerta-nos que a saída
(ou MoU, na sigla em inglês) envolvendo
o governo dos EUA, a ICANN e a principal para a democratização da sociedade informa-
operadora do sistema global de nomes de cional está “na construção de novas estruturas
domínio, uma empresa privada chamada políticas fora do Estado-nação em colabora-
Verisign (Afonso, 2005:11). ção com as máquinas”. Seria necessária a for-
mação de um movimento de opinião pública
O que mais chama a atenção na crítica de planetário, transnacional, no ciberespaço, a
Afonso não é a ignorância de alguns partici- partir da comunicação mediada por compu-
pantes, mas o grande poder do governo nor- tadores, pois sem tal articulação não há como
te-americano sobre um dos órgãos técnicos criar processos decisórios mundiais. Poster
que definem regras da comunicação em rede. acredita que “a nova ‘comunidade’ não será
Por outro lado, esse poder não está apenas no uma réplica de uma ágora, mas será mediada
contexto da governança da Internet, pois uma por máquinas de informação. Portanto, o exi-
sociedade em rede ou informacional exige um gido é uma doutrina dos direitos da interface
conjunto de intermediários e de decisões téc- homem/máquina” (2003:322).
nicas de enorme impacto sócio-planetário. Para construirmos a idéia de novos di-
A concentração de poder comunicacional reitos de caráter planetário, será fundamen-
na sociedade da informação poderá ser muito tal observarmos a cultura hacker, que este-
maior do que a ocorrida com a mídia de mas- ve presente desde o nascimento e em toda a
sas na sociedade industrial. No ano de 2002, expansão da comunicação baseada nas redes
mais de 90% dos computadores pessoais do informacionais. A Internet evoluiu aberta,
mundo utilizavam o sistema operacional de vencendo tentativas de apropriação privada
de seus elementos principais, exatamente pela passividade frente à procura pela paixão
forte influência dos hackers em seus processos individual. Cuidar significa aqui a preocu-
vitais. A cultura hacker também está escre- pação com o próximo como um fim em si
mesmo e um desejo de libertar a sociedade
vendo uma das mais contundentes críticas à virtual da mentalidade da sobrevivência
opacidade dos códigos e ao bloqueio do fluxo que tão facilmente resulta de sua lógica.
de conhecimento tecnológico na sociedade
da informação. Dela nasceram movimentos Os hackers do movimento de software
como o do software livre e fenômenos como a livre estão enfrentando as companhias que
maior enciclopédia do mundo, a wikipedia. buscam monopolizar no planeta o controle
Ao estudar a cultura hacker, o filósofo fin- dos intermediários da comunicação (sof-
landês Pekka Himanen (2001:126) escreveu: twares, códigos e protocolos da comunica-
ção em rede). Essas companhias alegam que
seus direitos de propriedade estão acima de
A ética de trabalho dos hackers consiste em
todos os demais direitos, inclusive da liber-
combinar paixão com liberdade, e foi essa
a parte da ética dos hackers cuja influên- dade de conhecer, do uso justo de uma obra
cia foi sentida com maior intensidade. (...) protegida pelo copyright, do direito à priva-
um terceiro e crucial aspecto da ética dos cidade, à segurança e ao anonimato. Enfim,
hackers é a atitude dos hackers em relação estamos em um novo terreno. Dele emana a
às redes, ou seja, é a sua ética da rede, que reivindicação de novos direitos, direitos de
é definida pelos valores da atividade e do
comunicação, de liberdade de expressão e
cuidar. Atividade, nesse contexto, envolve a
completa liberdade de expressão em ação, da possibilidade democrática de tomar de-
privacidade para proteger a criação de um cisões em uma sociedade em rede, virtual
estilo de vida individual, e desprezo pela ou ciberespacial. O debate mal começou.
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