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gênero”
Moisés Sbardelotto
“No que concerne ao espírito, este não tem sexo, como também não há distinções de
caráter cultural, social, ambiental: ele é universal. Mas, durante séculos, a instituição
eclesiástica suspeitou das mulheres que assumiam um papel magisterial”, comenta
Marco Vannini
Para se entender a mística, é preciso partir da antropologia clássica e cristã: “Não
bipartida em corpo e alma, mas tripartida: corpo, alma, espírito”. Só assim podemos
entendê-la como “experiência, experiência do espírito”, como “uma contínua e
constante realidade de vida espiritual, que não consiste em ‘eventos’ particulares”. Por
isso, defende Marco Vannini, um dos maiores estudiosos italianos de mística
especulativa, embora haja “modos de se relacionar com o divino psicologicamente
diferente por parte de uma mulher com relação aos de um homem”, no que concerne ao
espírito, não há diferença de sexo, “como também não há distinções de caráter cultural,
social, ambiental: ele é universal”. E brinca: “Falar de mística feminina tem tanto
sentido como falar de matemática feminina”. Contudo, explica, “devemos às mulheres
uma contribuição essencial à história da espiritualidade, da mística, muito mais
significativo para aqueles séculos passados em que as mulheres, normalmente, não
tinham acesso à instrução”. Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line,
Vannini comenta as experiências místicas de Angela de Foligno e de Marguerite Porete,
cujas palavras, afirma, “falam não como palavras de mulheres, mas como palavras
magistrais de espiritualidade”.
Marco Vannini (1948) é um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa.
Editou as obras de grandes místicos: Eckhart, Angelus Silesius, Sebastian Frank,
Valentin Weigel, Marguerite Porete, Jean Gerson, François de Fénelon etc. Publicou
inúmeros estudos, tais como: La morte dell’anima. Dalla mística alla psicologia (Ed. Le
Lettere, 2004); Storia della mistica occidentale (Ed. Mondadori, 2005); Mistica e
filosofia (Ed. Le Lettere, 2007); La mística delle grande religioni (Ed. Le Lettere,
2010); Prego Dio che mi liberi da Dio (Ed. Bompiani, 2010), dentre outras. Em
português, foi traduzida a sua Introdução à mística (Edições Loyola, 2005).
IHU On-Line – Podemos falar de uma “mística feminina”? Quais seriam as suas
contribuições à experiência mística em geral?
Marco Vannini – A meu ver, pode-se falar de mística feminina somente em um sentido
redutivo, não essencial. Explico: enquanto corpo e psique da mulher são diversos – pelo
menos em parte – dos do homem, é evidente que há modos de se relacionar com o
divino psicologicamente diferentes por parte de uma mulher com relação aos de um
homem. Mas, no que concerne ao espírito, ele não tem sexo – em Cristo, não há homem
nem mulher, escreve o Apóstolo em Gálatas 3, 28 –, como também não há distinções de
caráter cultural, social, ambiental: isso é universal. Falar de mística feminina é,
portanto, um fruto do nosso tempo, no qual a emancipação feminina, o feminismo, a
historiografia de “gênero”, de um campo no qual é legítima, transbordou para fora dos
limites. Falar de mística feminina tem tanto sentido como falar de matemática feminina.
Por isso a mística de todos os tempos e de todas as culturas – de Plotino aos nossos
dias, de Eckhart a Sankara etc. – é quase idêntica e, por isso, as obras das grandes
mulheres místicas não têm características “femininas”. Precisamente o caso do Espelho
das almas simples, de Marguerite Porete, é emblemático: antes que Romana Guarnieri
descobrisse a autora, pensou-se durante séculos que fosse obra de um homem, e como
tal foi publicada em inglês e foi lida, por exemplo, por Simone Weil .
Quando se vai ao específico “feminino”, o espiritual recai no psicológico, e então temos
os exemplos das mulheres que acreditavam estar grávidas de Jesus, sonhavam em aleitar
Jesus menino etc., onde o místico recai no patológico e pode aparecer – como talvez o
seja, de fato, nesses casos – como o substituto de uma vida plenamente vivida. Não por
acaso aqueles homens – mas, sobretudo, aqueles mulheres, porque quase sempre é delas
que se trata – que tiveram experiência de matrimônio (por exemplo, santa Catarina de
Gênova ou Madame Guyon , mas também Angela de Foligno), quase nunca utilizam o
simbolismo e os termos “esponsais” da mística chamada “nupcial”, para não misturar
corpo e alma com espírito, que, como ensina ainda o Apóstolo, é o seu oposto.
Marco Vannini – Angela de Foligno foi uma mulher que viveu intensamente a
experiência da separação, do despojamento interior – do qual esse exterior, a nudez, é
manifestação sensível – e da perda do eu, até a identificação com o Tu divino, na
específica forma do Cristo: “Tu és eu, e eu sou tu”, escreve ela, de fato, no Memorial. O
central da sua mística me parece ser a consciência alcançada de que “tudo está bem”, até
à paradoxal afirmação de que Deus está presente “em toda criatura, em qualquer coisa
que exista, seja diabo, seja anjo bom, seja no inferno ou no paraíso, seja no adultério e
no homicídio, seja nas obras virtuosas, em qualquer coisa provida de ser, mesmo que
seja bela ou se é torpe”.
IHU On-Line – Que imagem de Deus ou do Mistério Angela de Foligno nos deixou
em seu Liber?
Marco Vannini – Deixou-nos a imagem de Deus como Nada – ou seja, um Todo que
não é possível compreender senão negativamente, como Nada justamente. Isso explica
por que Angela, exatamente como Marguerite Porete, fala do não amor como o próprio
cumprimento do amor. De fato, o amor sempre se dirige a algo determinado, finito, e
depende dos laços do próprio eu, enquanto o amor mais puro não tem objeto, é “sem
porquê” (uma expressão que já encontramos na poesia do seu contemporâneo úmbrio, o
franciscano Jacopone de Todi) e deve cessar precisamente enquanto amor, desejo,
vínculo, em perfeita correspondência com o extinguir-se do próprio eu.
IHU On-Line – Que relação há entre Angela e Francisco de Assis? Em que sentido
a mística de Angela – que nasceu pouco mais de 20 anos após a morte do santo de
Assis – foi uma mística “franciscana”?
Marco Vannini – Diria que ela foi franciscana sobretudo pelo lugar e pela época,
aquela Úmbria mística da Idade Média que sequer se pode conceber sem a presença do
espírito franciscano. Também sublinhamos que, naquela época, houve um florescer
extraordinário de experiências místicas femininas. Margherita de Cortona, Vanna de
Orvieto, Chiara de Montefalco, todas coetâneas de Angela e operantes a poucos
quilômetros de distância. Para todas elas, o espírito franciscano se manifesta, em
primeiro lugar, na pietas voltada à Paixão de Cristo, ao Cristo crucificado, literalmente
“co-sofrido” [com-patito], ou seja, compartilhado na sua Paixão.
Específica de Angela, mas ainda de cunho franciscano, é a prática ascética,
verdadeiramente intensa; a escolha voluntária da pobreza, fora de conventos ou
instituições; a caridade operante, voltada aos pobres e aos doentes. Muito significativo
nesse sentido também é o relativo distanciamento que Angela mostra com relação à
função intermediária do clero, da cultura teológica e religiosa, em benefício de um saber
totalmente interior, dado pelo livre colóquio da alma com Deus. “Aqueles que leem a
Escritura entendem pouco; aqueles que sentem algo de mim entendem bem mais”,
escreve por isso Angela.
IHU On-Line – E o que mais é possível falar sobre Marguerite Porete? Que outros
aspectos é possível ressaltar sobre a experiência mística dessa mulher francesa?
Marco Vannini – Não sabemos com precisão quem foi Marguerite Porete, já que as
únicas notícias certas que temos sobre ela são aquelas deduzidas das atas do processo
que a condenou à morte como herege, na Paris de Felipe, o Belo. No entanto, ela devia
ser uma mulher de cultura, provavelmente de origem aristocrática, como fica evidente
no livro, no qual cortesia e nobreza desempenham um papel essencial.
Como já disse, creio que os pontos centrais da verdadeira mística são sempre os
mesmos, ou muito de perto correspondentes. Em Marguerite, no entanto, a via do
distanciamento, a via do nada é percorrida verdadeiramente até o extremo limite, com
uma coerência, uma determinação e uma radicalidade impressionantes, que se lança ao
distanciamento até de Deus. Limito-me a citar esta extraordinária passagem, do capítulo
135 do Espelho:
“Para a alma tudo é uma só coisa, sem porquê, e ela é nada em tal Uno. Então não sabe
mais o que fazer com Deus, nem Deus com ela. Por quê? Porque ele é, e ela não é. Ela
não retém mais nada para si, no seu próprio nada, já que lhe basta isso, ou seja, que ele
é, e ela não é. Então, é nada de todas as coisas, já que é sem ser, e lá onde era antes de
ser. Por isso ela tem de Deus aquilo que tem; e é aquilo que Deus mesmo é, por
transformação de amor”.
IHU On-Line – O que foi o movimento beguinal, do qual Marguerite fez parte? E
qual foi a novidade trazida pelas beguinas à mística?
Marco Vannini – O movimento das beguinas foi um movimento extraordinário, sem
origem, sem fundadora, sem regra. De fato, as beguinas eram mulheres, não casadas e
não Irmãs, que, por cerca de oito séculos, mas, sobretudo, em plena Idade Média e no
vale do Reno, viveram em pequenos grupos do seu próprio trabalho ou na mendicância,
em uma extraordinária síntese de comunhão e de liberdade, de aprofundamento
espiritual e de empenho caritativo – basta pensar que foram, de fato, as primeiras
enfermeiras da história europeia. Pelo seu caráter de independência da autoridade
masculina, o movimento beguinal poderia ser considerado o primeiro movimento
feminista, mas seria verdadeiramente desviante inscrevê-lo nas categorias redutivas do
feminismo – sem contar, depois, o fato de que ele também teve um correspondente
masculino, o dos beguinos, ou begardos.
Não há dúvida de que entre as beguinas houve personalidades eminentes na história da
mística – Beatrijs de Nazareth, Hadewijch de Antuérpia, a própria Marguerite Porete, se
é que foi beguina – mas sobre o movimento beguino pesou frequentemente a suspeita de
heresia, voltada por diversas vezes a essas mulheres por parte das autoridades
eclesiásticas, talvez temerosas, acima de tudo, de perder o controle da sociedade. Nesse
caso, mais uma vez, a “liberdade do espírito”, do qual a mística é composta, foi
advertida como perigosa para o dogma, para a doutrina, para a instituição religiosa
constituída. Não resta dúvida, entretanto, que a mística beguinal – Minnenmystik,
“mística do amor cortês” por excelência – alimentou com a sua riqueza alguns dos
maiores místicos medievais, como Ruusbroec e Eckhart.
IHU On-Line – Em que sentido a mística de Angela e de Marguerite nos é
contemporânea?
Marco Vanini – Ela nos é contemporânea no sentido de que, como dizia no início, a
experiência do espírito é quase idêntica em todos as épocas e em todos os lugares, e vai
muito além das distinções espaço-temporais, além daquelas, como eu dizia, de gênero.
Para mim, homem, as palavras de Angela ou de Marguerite falam não como palavras de
mulheres, mas como palavras magistrais de espiritualidade.
Distantes quatro séculos um do outro, Teresa de Ávila e Thomas Merton unem-se pela
experiência mística, como explica Marco Vannini
IHU On-Line - Por que razão a mística desassossega e incomoda tanto o poder
eclesial?
Marco Vannini - O misticismo seguidamente atrapalha o poder eclesiástico, acima de
tudo porque é convicto de que o relacionamento entre a alma e Deus acontece sem
mediações, sem nada que se interponha, sendo tanto Deus como a alma uma única
coisa. Por isso é convicta de que o relacionamento entre a alma e Deus não aconteça em
espaços externos, em formas litúrgicas determinadas de qualquer maneira, mas, ao
invés, seja somente no profundo da alma, em um relacionamento “do só x só”, como
falou Plotino . O místico adverte sempre a primazia deste relacionamento pessoal com
Deus em relação a todas as formas comunitárias, e isso o coloca também em possível
contraste com a autoridade religiosa.
Isso, porém, não significa que o místico esteja errado ou contra a Igreja. Pensemos por
exemplo em São João da Cruz , de quem ninguém pode negar a fidelidade à sua Ordem
e à Igreja, mas que em toda a sua obra não gasta uma palavra sobre os sacramentos. Do
contrário, é preciso perceber que essa liberdade, essa autonomia do místico o tornou
muitas vezes capaz de criticar nos confrontos da própria Igreja com resultados de
reforma religiosa destinados a dar frutos duradouros no tempo.
IHU On-Line - Em que aspectos a mística resiste como uma “via mestra do
filosofar, que é o distanciamento, o platônico exercitar-se a morrer”?
Marco Vannini - Apesar da derrota sofrida pelo misticismo há três séculos (como dito
anteriormente), o misticismo não está mais escondido, e não pode se esconder, a partir
do momento que responde às mais profundas exigências e expectativas do homem.
Permanece, por assim dizer, subterrâneo, excluído dos canais acadêmicos e dos círculos
de poder, eclesiástico e civil, mas este eclipse tem também um aspecto positivo, porque
assim o misticismo ganha novamente a própria universalidade, liberando-se de toda a
confusão dogmática. Exatamente porque colocado à margem das autoridades religiosas,
o misticismo recuperou o seu sentido original, aquele de ser “exercício de morte”,
separado de tudo — mesmo das formas religiosas onde qualquer místico nasce e cresce
— para ser o caminho do só para o só, um caminho realizado “in interiore homine”, sem
nenhuma mediação. Então, no momento em que as confissões religiosas acusam a culpa
da criatura contemporânea, que fragmentou as velhas teologias e dogmas, se redescobre
essa via mestre de pensamento e de vida, que atravessa qualquer mutação cultural sem
nem a tocar.
IHU On-Line - Quais são as tensões que se dão a partir do diálogo entre a filosofia
e a mística?
Marco Vannini - A meu ver, o misticismo é, como se diz, platonicamente o verdadeiro
filosofar e, com isso, por si só as tensões entre o misticismo e a filosofia não devem
subsistir. Se existem — como certamente existiram e ainda existem — é porque a
filosofia não é mais um gênero de vida, não é mais aquela que foi na sua origem na
Grécia, mas se transformou em uma atividade unicamente intelectual, que se explica em
gênero, somente com uma produção literária — é um escrever livros sobre outros livros
— sem nenhuma incidência na vida, ou sem que se tenha mais algo a fazer com a
sensatez, a sabedoria (a sophia grega). Não é por acaso que o já falecido professor
Pierre Hadot sustentava que a filosofia clássica não teve como seguidores nem as
universidades medievais, onde o clero era colocado nas instituições eclesiásticas, nem
na universidade moderna, onde os docentes são funcionários públicos, mas teve como
único seguidor o misticismo. De fato o misticismo somente manteve a liberdade de
inteligência, não submetida a nenhuma autoridade e, junto, ficou o caminho de toda a
vida e não somente as atividades culturais.
Quando essas tensões existem é um sinal — a meu ver — de que o misticismo ou a
filosofia, ou ambos, não são aquilo que devem ser, ou seja, não são verdadeiramente
filosofia e misticismo. Habitualmente, acontece quando alguns filósofos que são além
de acadêmicos não reconhecem o valor especulativo do misticismo e com isso o
consideram somente como uma forma de sentimento bizarra, nos limites do patológico,
e portanto não influente para a cultura filosófica. Era esta a atitude típica do velho
positivismo, porém muito difuso também nos nossos tempos, todas vezes que se pensa
na esfera religiosa somente como uma esfera de sentimento, e não também de
racionalidade. Por outro lado, também alguns místicos não reconhecem o valor da
filosofia que, ao invés, durante o caminho da inteligência para a verdade, é feita “em
honra a Deus”, como dizia Wittgenstein. Neste caso, porém, devo dizer que a meu ver
não se trata de misticismo no sentido original, clássico, do próprio termo, e infelizmente
é uma atitude deste gênero, muito difusa, que contribui para desacreditar o misticismo e
o colocar em contraste com a filosofia.
Na essência mais verdadeira, concluindo, misticismo e filosofia são a mesma coisa. Não
por acaso nos dias atuais muitos estudiosos tendem a considerar essencialmente um
filósofo, Mestre Eckhart, o qual se definia tradicionalmente um místico.
Marco Vannini, um dos principais nomes sobre o tema no mundo, não considera que a
mística seja uma experiência do mistério. “O assim chamado mistério é colocado por
nós, e a nós são dadas as respostas. Certamente, há coisas que ignoramos, e a realidade
de Deus é uma delas, pelo que podemos falar sempre e em qualquer caso somente da
nossa experiência, evitando como a peste a tentação de dizer que ela é a ‘experiência de
Deus’”, sustenta Vannini em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “A experiência do
espírito é o conhecimento da nossa mais real essência, que é a essência humana, além de
cada distinção acidental de cultura, religiões, modos de vida, todos relacionados com a
contingência espaço-temporal, e também além da diferença de gênero, que subsiste em
nível corpóreo e, em certa medida, também em nível psíquico, mas é inexistente no
nível espiritual”, complementa.
Na avaliação de Marco Vannini, a experiência da ausência é, na realidade, a mesma do
“nada”. “A experiência do nada não é somente negativa, trágica, mas pode ser sim
extremamente frutífera, como purificadora de todos os ídolos, de toda a pretensa
certeza”, considera. Para o pensador, vivemos em momento histórico em que a história e
a ciência erodiram a crença que a fé proporcionava. “‘O deserto cresce’, Nietzsche já
advertia há um século e meio que cada parte é responsável pela a ausência de propósito,
o nada no seu sentido mais trágico”, sustenta. “Quando várias correntes místicas
compreendem cada uma o específico da outra, entendem que são gotas do mesmo mar”,
avalia o entrevistado.
Marco Vannini é um dos maiores estudiosos italianos da mística especulativa. Além de
ter editado Mestre Eckhart e muitos outros místicos, ele é autor de La morte dell’anima.
Dalla mistica alla psicologia (Ed. Le Lettere, 2004); Storia della mistica occidentale
(Ed. Mondadori, 2005); Mistica e filosofia (Ed. Le Lettere, 2007); La mistica delle
grande religioni (Ed. Le Lettere, 2010); Prego Dio che mi liberi da Dio (Ed. Bompiani,
2010), dentre outros. Em português, foi traduzida a suaIntrodução à mística (Edições
Loyola, 2005).
Neste ano Marco Vannini publicou os seguintes livros: Lessico Místico. Le parole della
saggezza (Le Lettere: Firenze, 2013), Oltre il Cristianesimo. Da Eckhart a Le Saux
(Bompiani: Milão, 2013) e, juntamente com Corrado Augias, Inchiesta su Maria. La
storia vera della fanciulla che divenne mito (Rizzoli: Milão, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as palavras fundamentais, o léxico que pode descrever a
mística?
Marco Vannini - No meu Léxico Místico, publicado este ano, descrevi umas sessenta
palavras importantes para a mística, mas também poderíamos acrescentar outras. Elas
são todas importantes, pelo menos no sentido de que a realidade é uma só, pelo que
todas as palavras e os conceitos estão indissoluvelmente ligados uns aos outros, e não é
possível isolá-los, por assim dizer, e descrevê-los isoladamente, sem, em conjunto,
referirem-se também às outras. Se eu devo fazer uma hierarquia, direi que algumas das
principais palavras-chave são: amor, desapego, humildade, Uno, vazio.
IHU On-Line - Por que é preciso partir da antropologia clássica para compreender
a mística?
Marco Vannini - Porque a antropologia clássica — bem como a cristã que dela se
deriva — tem a experiência do ser humano como corpo, alma, espírito, enquanto aquela
que prevalece em nossos tempos ignora simplesmente a realidade espiritual, e
permanece no dualismo corpo-alma, de fato, corpo-psique. Assim o espírito, em vez de
ser o que é, ou seja, o constituinte essencial do homem, desaparece em meio à névoa da
indeterminação — também em nível teológico (o Espírito Santo). É necessário,
portanto, primeiro ter uma experiência do espírito, e isso somente é possível ao se
recuperar a conexão entre filosofia e misticismo, sem o que essa se perde no
sentimentalismo.
IHU On-Line - Como tais experiências místicas podem inspirar e dar sentido à
existência em nosso tempo?
Marco Vannini - Também essa pergunta conecta-se às duas precedentes, e a resposta é
similar. Estamos realmente em um momento em que a história e a ciência erodiram a
crença de que a fé proporcionava até ontem. “O deserto cresce”, Nietzsche já advertia
há um século e meio que cada parte é responsável pela a ausência de propósito, o nada
no seu sentido mais trágico. Eis então que um testemunho como o de Etty, que descobre
a presença de Deus no meio do campo de concentração nazista onde ela mesma está
trancada por ajudar os seus compatriotas, e naquele horror foi capaz de pensar e
escrever que estava bem assim, que tudo estava bem, assume um relevo
verdadeiramente extraordinário, muito mais autêntico e convincente do que tanta
teologia, para não falar das psicologias.
IHU On-Line - Qual é a principal peculiaridade sobre a mística de Maria, mãe de
Jesus ?
Marco Vannini - Maria é mesmo o arquétipo da mística pelos traços que lhe
caracterizam a figura — a única testemunhada nos Evangelhos — ou seja, humildade e
desapego. São esses os elementos que compõem o vazio na alma, ou seja, matam o
amor a si próprio e deixam o espaço à graça de Deus. Não é coincidência que ela é,
desde o princípio, chamada de “cheia de graça”. Os grandes místicos de todos os
tempos, de Orígenes a Meister Eckhart a Angelus Silesius , compreenderam muitíssimo
bem como o nascimento do Filho, do Logos, não estava somente uma vez no ventre de
Maria, mas em todo o tempo, em cada instante, em cada alma humilde e distante, que
criou o vazio em si própria.
IHU On-Line - Que aproximações poderiam ser tecidas entre a mística cristã, a
brahmane e a budista? Nesse sentido, quais são as sutilezas da mística de Mestre
Eckhart e Herni Le Saux ?
Marco Vannini - Diria que, se for verdade, como é verdade, a mística é sempre
substancialmente igual a si mesma, de modo que os grandes místicos de todos os
tempos assemelham-se “desde quase a identidade”, como dizia Simone Weil; por outro
lado, é também verdade que os vários místicos colocam ênfase em diferentes aspectos
da experiência única. Reconhecer a realidade do espírito, matar o egoísmo de
apropriação, extinguir o desejo, tornar vazio a si próprio são elementos presentes em
cada mística, porém desenvolvidos e enfatizados em alguns mais que em outros. Sob
esse aspecto diria que o cristianismo, o bramanismo e o budismo são complementares.
Coloquei De Eckhart a Le Saux como subtítulo do meu último livro Oltre il
cristianesimo (Milano: Editora Bompiani, 2013) para evidenciar como, da Idade Média
até hoje, a experiência de um “eu sou” no fundo da alma, é completamente idêntica a
das palavras de Jesus: “Antes que Abraão existisse, eu sou”, constituía o núcleo
essencial do cristianismo — “mais além” o cristianismo como teologia ligada aos
tempos e lugares. A importância de Le Saux não é maior que a de Eckhart, mas, para
nós, talvez, a mais significativa, uma vez que se trata de um nosso contemporâneo, com
uma imagem de mundo que certamente não é medieval, e então passada por intermédio
da cultura e da espiritualidade da Índia, que foi a que revelou o verdadeiro significado
do cristianismo.
Quando várias correntes místicas compreendem cada uma o específico da outra,
entendem que são gotas do mesmo mar.
Depois de ler a mais recente empreitada de Marco Vannini, Contro Lutero e il falso
evangelo (Contra Lutero e o falso evangelho, em tradução livre, Lorenzo de Médici
Press, p. 174, 12 €) chega-se à conclusão que o profundo e documentado conhecedor da
mística e dos místicos não parece estar atacando Lutero e a reforma protestante,
tornando-se uma voz solitária dissonante neste momento em que celebramos os
quinhentos anos do seu advento, mas o próprio cristianismo e sua fé, bem como as suas
raízes judaicas.
O comentário é de Giuseppe Lorizio, professor de Teologia Fundamental na Pontifícia
Universidade Lateranense, Roma, em artigo publicado por Avvenire, 27-05-2017. A
tradução é de Luisa Rabolini.
Se esta leitura está correta, então é provável que nenhum cristão possa compartilhar os
pressupostos do autor, e muito menos um católico, por isso vai ser impossível submeter
a hermenêutica que Vannini oferece de Lutero e de sua em jornada a eventuais posições
críticas, que não podem faltar entre os crentes em Cristo Jesus que não concordam com
sua mensagem. Em primeiro lugar (não só nas páginas dedicadas especificamente ao
assunto, mas ao longo de todo o ensaio) percebe-se um radical posicionamento
distanciado da dimensão de alteridade entre Deus e o homem, a transcendência e a
imanência, o Eterno e o tempo.
O autor abomina a alteridade e a nega, adotando uma perspectiva profundamente
holística, chegando a considerar a ideia de um Deus criador "uma forma ingênua de
cosmologia", mas, sobretudo, "uma fantasia devida ao sofrimento de nossa psique", de
forma que o relato bíblico é definido (em suas duas versões) como uma "bagunça".
Se for possível certamente acreditar que Lutero radicalize a alteridade, interpretando-a
em termos de oposição, no entanto, também não podemos esquecer que é um dos pilares
da revelação bíblica (judaico-cristã), da qual o crente não pode prescindir.
Avançando na leitura, vai se descobrindo que o autor assume a polêmica anticristã
de Plotino e Porfírio, contrapondo a razão às verdades da fé acerca da encarnação e,
principalmente, a ressurreição, interpretada ‘plotinianamente’ como "despertar da
alma... não junto ao corpo, mas do corpo".
Vannini acredita que a batalha desses grandes filósofos antigos seja conduzida "em
nome da luz da verdade (...) que é o objeto da boa nova, aliás, propriamente a boa
nova". Em especial, o kerygma da ressurreição teria origens paulinas, como o
cristianismo em geral, esquecendo que no texto mais antigo em que tal anúncio é
apresentado, Paulo afirma claramente que está transmitindo o que recebeu (tradição). O
autor não esconde a própria simpatia pelas conhecidas teses nietzschianas, que faz
questão de reproduzir.
A aspiração do autor, então, seria a de um cristianismo sem redenção historicamente
implementada e uma metempsicose (transmigração) da alma, que precisa libertar-se do
corpo, a fim de se fundir com o Todo. Não parece marginal a acusação, dirigida
a Lutero, de manipular as Escrituras, considerando-as palavra de Deus, enquanto é
simples palavra humana, chegando a afirmar que a Bíblia seria o "papa de papel"
do protestantismo.
Em última análise, assistimos aqui à recusa de qualquer religião positiva ou revelada, e
não parece ser desprezível o fato de que, reportando-se a Bornkamm, "o sentido
histórico de Lutero nunca tenha sido um sentido histórico, mas conjuntamente
teológico e histórico". Não pode ser diversamente, na verdade, para ninguém, enquanto
nunca vai haver um sentido histórico em estado puro, mas o entrelaçamento entre
história/fé é constitutivo de toda hermenêutica aplicada aos livros em que a revelação é
atestada. Vannini não perdoa ao reformador ter abandonado a atenção para a mística,
em especial da Teologia alemã, livreto que Lutero atribuía injustamente a Tauler, mas
no qual é expressa a perspectiva do misticismo renano.
Sobre esse argumento está se desenvolvendo um amplo debate. Aqui interessa notar
como a opção básica, que anima não só esse texto, mas toda a produção de Vannini (a
quem só podemos ser gratos pela quantidade de trabalho executado na recuperação e na
interpretação de textos místicos), seja aquela orientada a um misticismo especulativo,
que o conduz a valorizar, é claro, nem sempre de forma errônea, o pensamento grego e
humanístico, do qual não podemos prescindir nem mesmo enquanto crentes. As
recorrentes referências a Hegel impedem ao autor focalizar a problemática de quanto
luteranismo existisse em seu pensamento, que hoje justamente pode ser interpretada
como uma imensa estaurologia (filosofia da Cruz), bem como a contraposição
entre Kierkegaard e Lutero, determinada pela degradação da Igreja dinamarquesa, em
que se viveria um cristianismo já mundanizado, esquecendo o elemento ou o fio
condutor comum entre o iniciador da reforma e o sombrio teólogo, "pessimista e
humorista" de Copenhague, ou seja, a "lógica do paradoxo”.
Finalmente, o dardo lançado por Nietzsche no Anticristo contra o monge alemão, que
teria restaurado a Igreja, atacando-a e assim sendo responsável pela sobrevivência da fé
cristã no Ocidente, resultará no final em um reconhecimento, que eu como católico sinto
obrigação de apoiar por considerar-me em sintonia com o que declarava Joseph
Ratzinger, segundo o qual nem mesmo a Igreja Católica seria a mesma sem Lutero, que
- como teve oportunidade de dizer em Erfurt - teve a coragem de colocar no centro das
discussões a questão de Deus e da misericórdia (justificação), em tempos que tendiam a
esquecê-la.
Lutero, a mística e o núcleo d
Lutero, pai da modernidade, visto por Nietzsche
Márcia Junges
Para Marcio Gimenes de Paula, se Lutero é um monge ressentido, como sugerido por
Nietzsche, também é um tipo psicológico interessante e uma personalidade que divide a
história da cristandade ocidental
Uma das críticas mais cáusticas a Lutero foi-lhe endereçada por Friedrich Nietzsche,
sobretudo em O anticristo, obra de 1888 na qual o filósofo chama-o de “monge
ressentido”, acusando-o de abortar a Renascença e promover a Reforma quando o
cristianismo estava prestes a sucumbir. “Lutero não foi capaz de enxergar que o
cristianismo eclesiástico era um sistema que precisa de acordos para manter a sanidade
dos corpos e mentes, por isso Lutero representa, aos olhos de Nietzsche, um passo atrás
num processo que o próprio cristianismo parecia abolir”, refletiu o filósofo Marcio
Gimenes de Paula. Contudo, pondera, “se Lutero é um monge ressentido, tal como
preconizou Nietzsche, ele também é um tipo psicológico profundamente interessante,
alguém que divide a história da cristandade ocidental e sem o qual não haveria a
filosofia alemã”. Em sua opinião, “a crítica nietzschiana ajuda a pensar melhor na
herança humanística do cristianismo isso atinge Lutero e todos os ideais do que depois
se constitui na modernidade”. Entre as críticas a Lutero, o pesquisador aponta para a
centralidade da Bíblia por ele conferida, o que poderia “ter ajudado na quebra de uma
herança humanística importante que a Igreja cultivava” e uma espécie de bibliolatria,
“que não parece menos perniciosa do que o apego ao magistério da Igreja; basta ver o
que fazem os grupos fundamentalistas hoje”. Cabe se questionar, entretanto, se foi o
próprio Lutero o culpado por tais equívocos, “ou se isso é obra dos seus seguidores”. A
entrevista foi concedida por e-mail para a revista IHU On-Line.
Marcio Gimenes de Paula leciona na Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Graduado em Teologia, pelo Seminário Teológico Presbiteriano Independente, e em
Filosofia, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde cursou mestrado e
doutorado em Filosofia. Sua tese intitulou-se A crítica de Kierkegaard à cristandade: o
indivíduo e a comunidade. No XIII Encontro Nacional de Filosofia da Associação
Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), ocorrido de 6 a 10 de outubro em
Canela, apresentou a pesquisa Duas interpretações da importância de Lutero para a
filosofia alemã: Hegel e Heine.
ocidental, mas, como o próprio Nietzsche dizia, o sangue dos teólogos e dos filósofos
está misturado na Alemanha e isso parece ser muito profundo”.
Segundo Gimenes de Paula, “se Nietzsche será um crítico da modernidade, Lutero é o
seu pai. Logo, a crítica nietzschiana deseja atingir o fundamento da modernidade, por
IHU On-Line - Em linhas gerais, como Lutero influenciou a filosofia alemã?
Marcio Gimenes de Paula - Rigorosamente falando, não se pode falar em filosofia
alemã, isto é, pelo menos da filosofia moderna que conhecemos de autores como
Kant, Hegel e tantos outros, sem citar Lutero. A redescoberta do indivíduo e a questão
da interioridade levantadas por ele são centrais para tudo o que vem depois. Por isso,
não é sem propósito que Nietzsche vai dizer que Lutero é o nosso (no caso deles, os
alemães) primeiro filósofo.
IHU On-Line – E, no caso de Hegel e Heine, em específico, qual foi a sua
contribuição para o pensamento desses dois filósofos?
Marcio Gimenes de Paula - Para Hegel, Lutero é um dos pontos centrais da
modernidade alemã. Com ele começa não apenas uma reforma da Igreja, mas uma
reforma das instituições e de todo um modo de pensar que vai mudar a face do
Ocidente. Tal tese pode ser claramente observada quando lemos, na Lições sobre a
História da filosofia universal, o quanto Hegel prezava Lutero, dando-lhe, inclusive, o
status de um dos formadores da mentalidade germânica. Já Heine, célebre romancista e
autor que tanto influencia Nietzsche, irá traçar com clareza tal panorama num livro tão
importante quanto delicioso: Contribuição à história da religião e da filosofia na
Alemanha. Seu estilo irônico e sua prosa leve não deixam de dar a Lutero um
importante lugar no pensamento ocidental. Contudo, ele aponta também críticas ao
reformador, observando que ele, por exemplo, não teria enxergado questões mais
profundas ligadas ao universo eclesiástico católico e ao seu trato com o poder.
IHU On-Line - Quais eram as principais críticas que Nietzsche endereçou a
Lutero?
Marcio Gimenes de Paula – Lutero, para Nietzsche, é um tipo psicológico, mas é
também um monge ressentido. O que temos que, talvez, pensar é que se Nietzsche será
um crítico da modernidade, Lutero é o seu pai. Logo, a crítica nietzschiana deseja
atingir o fundamento da modernidade, por isso atinge Lutero e todos os ideais do que
depois se constitui na modernidade. Se pensarmos que a principal crítica está na
genealogia da modernidade, estamos na pista correta.
IHU On-Line - Qual é a atualidade dessas críticas?
Marcio Gimenes de Paula - Acho que elas são profundamente atuais e, inclusive,
ajudaram tanto cristãos como não-cristãos a pensar melhor acerca de suas posições. Se
Lutero é um monge ressentido, tal como preconizou Nietzsche, ele também é um tipo
psicológico profundamente interessante, alguém que divide a história da cristandade
ocidental e sem o qual não haveria a filosofia alemã. Acho que a crítica nietzschiana
ajuda a pensar melhor na herança humanística do cristianismo ocidental, mas, como o
próprio Nietzsche dizia, o sangue dos teólogos e dos filósofos está misturado na
Alemanha, e isso parece ser muito profundo. Tal coisa merece boas investigações.
IHU On-Line - Poderia comentar, em específico, a afirmação de Nietzsche de que
Lutero perdeu a grande chance de evitar a decadência alemã quando impediu a
Renascença?
Marcio Gimenes de Paula - Há uma curiosa passagem do Anticristo, na qual Nietzsche
afirma que o reformador alemão era um monge ressentido e que, com todos os instintos
de um monge ressentido, chega em Roma e se depara com as belas construções
promovidas pelos papas. O que isso significa? Para Nietzsche, significa que o
Renascimento venceu e o que o cristianismo foi superado na sua própria sede. O que
deveria Lutero fazer no entender nietzschiano? Agradecer a Deus por tal coisa.
Contudo, o que ele faz? Volta para a Alemanha e ajuda a promover a Reforma. Note
que, por detrás de toda a ironia, há uma crítica aguda: Lutero não foi capaz de enxergar
que o cristianismo eclesiástico era um sistema que precisa de acordos para manter a
sanidade dos corpos e mentes. Por isso, ele representa, aos olhos de Nietzsche, um
passo atrás num processo que o próprio cristianismo parecia abolir.
IHU On-Line - Até que ponto a crítica nietzschiana ao luteranismo está baseada no
ambiente familiar com o qual conviveu?
Marcio Gimenes de Paula - Sempre tenho um certo receio com essas questões
biográficas. Acho que a biografia não pode ser riscada da vida de um pensador, mas não
acredito que ela deva ser valorizada como fator único ou imprescindível. É certo que
muito do que Nietzsche fez se deveu ao fato dele ser proveniente de um lar luterano.
Contudo, penso que essa seja uma característica de vários dos pensadores pós-
hegelianos, isto é, eles começam na teologia, transitam pela literatura e acabam na
política. Nietzsche não acaba na política, muito pelo contrário, mas tem toda a
característica do tipo pós-hegeliano da época, tal como gosta de enfatizar Karl Löwith.
Por isso, acho que o mais prudente aqui é tentar entender o contexto integral e não
apenas se deixar levar pela explicação mais simples de que tudo que Nietzsche fez se
deve ao fato dele ter vindo de uma família luterana.
IHU On-Line - Em seu ponto de vista, quais seriam as suas críticas a Lutero?
Marcio Gimenes de Paula - A primeira coisa que precisamos separar seria Lutero e
luteranismo. Não estou muito convencido de que hoje eles estão tão separados assim.
Feito isso, penso que Lutero, enquanto indivíduo e tipo psicológico, representa o
símbolo de toda uma nação. Contudo, acredito que dois pontos fracos talvez podem ser
apontados. O primeiro: ao apontar para a centralidade da Bíblia, Lutero pode ter
ajudado na quebra de uma herança humanística importante que a Igreja cultivava. O
segundo ponto fraco seria: ao colocar a Bíblia como central, Lutero pode ter contribuído
para uma espécie de bibliolatria, que não parece menos perniciosa do que o apego ao
magistério da Igreja; basta ver o que fazem os grupos fundamentalistas hoje. Contudo,
não sei se Lutero foi, ele próprio, o culpado de tais equívocos, ou se isso é obra dos seus
seguidores.