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O HERDEIRO
01-Série Família Reid
(Titulo original El Heredero)
DDiissppoonniibbiilliizzaaççããoo:: Soryu
TTrraadduuççããoo ee PPrréé--R Reevviissããoo:: Paty H.
EEqquuiippee ddee R Reevviissããoo:: Kris, Rayssa, Flor,
Iluska, Lucimar
Reevviissããoo FFiinnaall:: Iluska
R
LLeeiittuurraa FFiinnaall:: Leniria
FFoorrm maattaaççããoo:: Serenah
Informação da série
01 – O Herdeiro – Distribuído
Existem duas palavras que exprimem com exatidão esse livro, emoção e ternura.
As emoções são variadas, ódio, inveja, esnobismo, futilidade, raiva, fúria e por ai vai.
Já a ternura é um sentimento único que só pessoas especiais que são capazes de amar
sabem ter.
Ao traduzir esse livro foram esses sentimentos que consegui captar através da
mensagem da historia. Como sempre Johanna Lindsey consegue com exatidão falar de
sentimentos humanos com maestria. E com certeza numa linha diferenciada dos outros
livros por ser uma regência não medieval.
Espero que leiam o livro e gostem o mesmo tanto que eu, a historia é maravilhosa, os
protagonistas são envolventes e com certeza essa foi a protagonista que mais gostei de
todos os livros que li. Sente em um sofá com uma xícara de chocolate quente e se
emocione e se divirta com essa história.
Capítulo 01
Sabrina Lambert estava nervosa sim, mas por consideração às suas tias tentava
dissimular o melhor que podia. Sua apresentação estava planejada já fazia um ano, o
que tinha provocado várias viagens a Manchester para aumentar seu vestuário. E sabia
que suas tias estavam muito iludidas. Por isso estava nervosa. Não desejava decepcioná-
las, tinham posto muito empenho em sua estréia.
Não obstante, Sabrina era realista, apesar de suas tias não serem. Não esperava
encontrar um marido em Londres. As pessoas da cidade eram muito sofisticadas e ela
não era mais que uma simples moça de campo. Estava habituada a conversar sobre
colheitas, arrendatários ou o clima, enquanto nos círculos de Londres as pessoas se
dedicavam a divulgar rumores mal intencionados sobre outros. E havia dúzias de
senhoritas como ela que acudiam a Londres com o mesmo propósito, posto que os
pais considerem o lugar ideal para encontrar marido.
Sabrina começou a relaxar à medida que transcorria a tarde. Tranqüilizava-a
contar com a amizade de Ophelia, que era imensamente popular. Não era de estranhar.
Ophelia tinha nascido e crescido ali. Conhecia todo mundo, sabias dos rumores e
inclusive colaborava na divulgação da fofoca mais recente, mesmo que versasse sobre
sua pessoa. Tinha Londres no sangue. E seu début tinha coincidido com o início da
temporada social, fazia três semanas.
De todas as formas, ter comparecido ao primeiro baile da temporada não teria
mudado muito as coisas, pois Ophelia estava destinada a ser o êxito do ano; tal era sua
formosura. E, ironicamente, nem sequer procurava marido: já estava comprometida,
embora ainda não o conhecesse.
Seu début tinha sido um mero trâmite; ao menos assim acreditou Sabrina até
descobrir que Ophelia não estava precisamente contente com o marido que seus pais
tinham procurado para ela e que tinha intenção de achar um melhor.
Sabrina achava de péssimo gosto a forma em que se propunha a consegui-lo:
pretendia difamar e ridicularizar seu prometido assim que surgisse a oportunidade e
acima de tudo àquele que desse atenção a ela. Mas, pelo que tinha podido observar, era
assim que se desfazia de um prometido não desejado em Londres.
Sabrina poderia ter sentido pena pelo homem em questão, que aparentemente
nem sequer se achava na Inglaterra para pôr fim aos rumores que Ophelia estava
difundindo sobre ele, mas não correspondia a ela sair em sua defesa. Depois de tudo,
podiam ser verdade. Como ia saber?
Por outra parte, a mãe de Ophelia era sua anfitriã e uma boa amiga de tia Hilary.
Embora lady Mary sem dúvida gostaria de saber a que se dedicava sua filha para poder
intervir, para Sabrina não parecia bem ser ela quem a pusesse a par. Ophelia tinha
devotado sua amizade a ela, estava lhe apresentando a todas suas amigas. Seria como
traí-la. E, por outra parte, suas tias não gostavam do avô de seu prometido...
Aquilo era o mais estranho de tudo e provavelmente esse era o motivo pelo qual
Sabrina sentisse pena por ele. Curiosamente, era vizinho de Ophelia ou, melhor
dizendo, seu avô era. "Misantropo” 1, assim é como o chamavam suas tias,
"misantropo", e, quando acreditavam que ela não podia ouvi-las, "porco". Sabrina não
o conhecia. Era um verdadeiro misantropo que mal se afastava de suas terras. E para
suas tias tinha sido toda uma surpresa se inteirar de que tinha um neto. Na realidade,
zombaram ao tomarem conhecimento da notícia de que Ophelia estava prometida
àquele até então desconhecido herdeiro. Neto de quem? Não sabia quem era nem
tinham ouvido falar dele jamais.
Não obstante, segundo lady Mary, tinha sido o marquês em pessoa quem entrou
em contato com seu marido e negociado o casamento em nome de seu neto.
Naturalmente, os Reid não tinham desperdiçado a oportunidade de que sua filha se
casasse com um membro de tão nobre família, cujo título herdaria o neto. Tampouco
era um inconveniente que o marquês fosse muito rico e que toda sua fortuna estivesse
destinada também ao seu neto. Só Ophelia estava descontente com aquele casamento.
Bom, Ophelia e seus muitos fervorosos admiradores.
Os tinha em abundância. Os homens jovens formavam redemoinhos a seu redor,
hipnotizados por sua beleza, e aparentemente essa tinha sido a tendência geral de todos
os românticos até hoje. Mas como podia ser de outra forma? Ophelia era loira e tinha
os olhos azuis. Isso já a fazia especial. Mas também possuía belas feições e uma figura
que, a diferença das de sua mãe, era esbelta e proporcionada.
Sabrina, em troca, não podia se vangloriar de nenhum daqueles atraentes
atributos. Era de baixa estatura, pois mal ultrapassava um metro e meio, o qual não
teria sido grave se não tivesse os seios tão generosos nem os quadris tão largos. Em
conjunto, com aquela estreita cintura, sua figura era excessivamente curvilínea.
Mas isso não teria sido um problema se ao menos tivesse tido o cabelo e os olhos
das cores que estavam então na moda. Entretanto, era justo o contrário. Tinha o cabelo
de cor castanha, mas não brilhante, mas sim de um tom apagado. E seus olhos, que
eram sem dúvidas seu traço mais destacável, ao menos era o que ela achava, tinham a
cor lilás, mas estavam debruados de um violeta mais escuro, o qual surpreendia
bastante às pessoas que os olhavam pela primeira vez.
Sabrina se deu conta disso ao comprovar que todas as pessoas que lhe
apresentavam, fossem homens ou mulheres, ficavam olhando seus olhos durante tanto
tempo que a incomodava, como se não acreditassem que fossem daquela cor. E para
cúmulo, suas feições eram comuns: não era absolutamente feia, mas tampouco podia se
considerar bonita. "Comum" era a palavra idônea para descrevê-la.
Na realidade, Sabrina nunca tinha estado descontente com seu aspecto até
conhecer Ophelia e descobrir o que era uma autêntica beleza. Como a noite e o dia,
não havia comparação possível entre elas duas. Provavelmente foi esse o motivo pelo
qual aquela noite Sabrina começasse a relaxar, pouco depois de chegar a seu primeiro
baile, e que esquecesse por completo seu anterior nervosismo. Era bastante realista para
saber que, com Ophelia ali, jamais poderia captar a atenção dos cavalheiros jovens e,
por isso, renunciou a sequer tentar. E, assim que relaxou, pôde ser ela mesma em lugar
da ratinha rígida e tímida que parecia até então.
Sabrina gostava de rir tanto como qualquer pessoa e se esforçava por fazer os
outros rirem. Podia ser muito séria, mas também tinha uma veia divertida. Possuía o
1
Misantropo – aquele que tem tendência mórbida ao isolamento.
dom de animar às pessoas que estavam de pior humor. Com duas tias rabugentas que
passavam a vida brigando, tinha tido muitos anos para aperfeiçoar sua técnica e lhe
custava muito pouco pôr fim a suas disputas quando decidia intervir.
Os cavalheiros que a tiraram para dançar aquela noite tinham como único
objetivo fazer perguntas sobre Ophelia e seu prometido. Mas, como ainda não
conhecia muito bem sua amiga, e nada absolutamente de seu prometido, Sabrina mal
pôde lhes responder. Não obstante, os fez rir. Houve quem voltou a tirá-la para dançar
precisamente por isso, porque era divertida. E durante a festa houve inclusive um
momento no que três jovens quiseram dançar com ela ao mesmo tempo.
Infelizmente, Ophelia se deu conta...
Capítulo 03
Ophelia se achava no outro extremo do salão de baile junto a três de suas melhores
amigas. Bom, duas amigas e uma moça que secretamente a desprezava, mas era
resistente a afastar do círculo de sua popularidade. As três eram bonitas a sua maneira,
embora nenhuma podia se comparar com Ophelia. Tampouco a superavam no escalão
social. Ela era a única que ostentava o tratamento de "lady", pois seu pai era conde e os
de suas amigas tinham títulos de menor prestígio. Em qualquer caso, Ophelia não
suportava que nenhuma mulher próxima a ela se destacasse mais.
Ophelia não era consciente do desagrado que Mavis Newbolt sentia por ela.
Talvez não gostasse de alguns dos comentários sarcásticos ou maliciosos de Mavis, mas
jamais os atribuiria ao desagrado. Depois de tudo, como ela iria desagradar a alguém
sendo popular do jeito que era?
E sabia que sempre gozaria daquela popularidade. Ninguém duvidava que seria a
rainha do ano e poderia escolher entre os solteiros mais cobiçados da cidade. Assim
era. Todos a adoravam. Mas do que lhe servia quando seus pais tinham permitido que o
marquês de Birmingdale os enrolasse com seu maldito título?
Odiava ao ancião Neville Thackeray por ter pensado nela. Por que tinha tido que
escolhê-la para seu neto? Só porque em um tempo sua mãe tinha vivido perto dele e,
portanto, tinha a impressão de conhecê-la pessoalmente? Por que não podia ter
escolhido a pouco atraente Sabrina no seu lugar, que, por outra parte, seguia vivendo
perto dele? Naturalmente, Ophelia sabia por que tinha descartado Sabrina como esposa
para o herdeiro de Birmingdale.
Conhecia a história dos Lambert graças a sua mãe. Com toda segurança, aqueles
que tivessem ido a Yorkshire a tinham ouvido em uma ou outra ocasião, embora se
tratasse de um velho rumor e a maioria já tivesse esquecido.
Seus pais eram uns tolos. Ophelia poderia ter aspirado a um duque. As belezas
como ela não eram freqüentes. Mas tinham se conformado com um simples marquês.
Não obstante, ela não ia fazer isso. Estava decidida a impedir seu casamento com o
herdeiro de Birmingdale. Por Deus, nem sequer era inglês; ao menos não o era de todo.
Não a surpreendia que o marquês se acreditasse no dever de escolher esposa para seu
neto, apesar de viver em uma época em que já mal se ouvia falar de casamentos
arrumados. Seu neto foi criado entre brutos!
Estremeceu só de pensar. E se envergonhá-lo não surtia efeito, nem lhe
demonstrar que o único que obteria dela seria seu profundo desprezo, teria que pensar
em alguma outra forma de se desfazer dele. Fosse como fosse, antes que acabasse o
ano teria outro prometido, uma pessoa escolhida por ela. Não tinha a menor dúvida.
Não obstante, precisamente naquele momento, Ophelia estava observando à
convidada mais jovem de sua mãe e a desconcertou durante um segundo ver aqueles
cavalheiros rondando Sabrina, quando deveriam estar esperando a vez para dançar com
ela.
Como naquele momento não havia nenhum homem que pudesse ouvi-la, disse o
que pensava sem se preocupar com o efeito que causaria, e o que estava vendo no
outro extremo do salão a surpreendia o suficiente para fazê-lo.
-Viram? - disse Ophelia, dirigindo a atenção das outras moças para Sabrina e os
três homens que falavam com ela-. O que pode estar dizendo a eles para ter os
deslumbrados?
-É sua convidada - observou Edith Ward em tom conciliador, se encarregando
do ciúme de sua amiga e tentando apaziguá-lo. As três moças tinham sofrido na própria
carne o ciúme injustificado de Ophelia-. Não cabe dúvida de que só querem falar com
ela sobre você.
Ophelia estava começando a se acalmar quando Mavis disse com pretendida
inocência:
-Parece que você perdeu alguns admiradores, e isso não me surpreende. Ela tem
olhos lindos.
-Esses olhos tão especiais não servem de nada, Mavis, sendo tão comum em todo
o resto - Respondeu Ophelia com brutalidade.
Mas em seguida lamentou a dureza de seu tom. Poderia parecer ciumenta e não
estava, naturalmente.
Assim acrescentou, com o que pensava que era um suspiro sincero, mas que
pareceu mais um grasnido:
-Sinto verdadeira pena por ela, pobrezinha.
-Por quê? Porque não é bonita?
-Não só por isso, mas também porque há sangue ruim em sua família. OH,
querida. Não deveria ter mencionado. Isto deve ficar entre nós. Minha mãe teria um
desmaio. Depois de tudo, lady Hilary Lambert é amiga dela.
Como as três moças sabiam que naquele momento Ophelia estava bastante
desgostada com sua mãe, entenderam que a última parte da frase sobrava. Não lhe
importaria o mínimo que a sua mãe tivesse um desmaio. Embora, bem pensado, a
advertência de que não repetissem o que ia contar também sobrava, pois as outras duas
moças adoravam fofocas, iguais às suas respectivas mães e sem dúvida iriam contar
tudo o que ouvissem. Mavis achava deploráveis as fofocas, mas na alta sociedade não
cabia dúvidas que era o comum a todos.
-Sangue ruim? - perguntou Jane Sanderson com avidez-. Está falando de incesto?
Deu a impressão que Ophelia pensava nisso durante uns instantes, mas descartou
aquele rumor em particular, pois disse:
-Não, pior que isso, na realidade.
-O que pode ser pior...?
-Não, sério. Já disse muito - protestou fracamente.
-Ophelia! - exclamou Edith, a mais velha das quatro-. Não pode nos deixar
curiosas desta forma.
-OH, está bem - lamentou Ophelia, como se estivessem lhe tirando a informação
à força quando, na realidade, nada poderia tê-la dissuadido de contar tudo-. Mas isto
deve ficar entre nós, e unicamente conto a vocês porque são minhas melhores amigas e
confio em que não o divulgarão.
Prosseguiu em um sussurro. As duas moças que eram realmente amigas suas
tinham os olhos abertos de forma desmesurada quando ela terminou seu relato. Mavis
que a conhecia de sobra, não sabia se acreditava ou não. Ela sabia que Ophelia não
tinha melindres na hora de mentir se acreditava que com isso ia conseguir o que
desejava. E o que naquele momento desejava, ao que parecia, era negar a Sabrina
Lambert qualquer oportunidade de encontrar marido em Londres.
Naquela festa, duas pessoas foram postas no pelourinho, e as duas nas mãos da
mesma mulher. Mavis sentiu verdadeira pena pelas duas, pois seu único engano era não
gostar de Ophelia. O herdeiro de Birmingdale poderia sem dúvida contornar o
transtorno. Ela estava convertendo-o no bobo de Londres para que seus pais se
sentissem tão envergonhados que desejassem anular o compromisso de casamento.
Mas, com um título como o seu e o extenso patrimônio que o adornava, não demoraria
em encontrar outra esposa.
Para Sabrina Lambert seria diferente. O sangue mal podia passar a sua
descendência, e que cavalheiro se arriscaria a casar com ela nessas circunstâncias? Era
francamente grave. Mavis gostava da moça de maneira genuína. Era de trato agradável,
uma qualidade simples e inocente. Difícil de encontrar em Londres, e, além disso, era
divertida assim que pegava confiança. E Mavis se sentia parcialmente responsável por
ter contrariado Ophelia ao mencionar a peculiar beleza de seus olhos.
Desgostada, Mavis negou com a cabeça. Teria que encontrar outro círculo de
amigas, disso não tinha dúvida. Ser amiga de Ophelia Reid era muito nocivo para seu
bem-estar. Cadela malévola e superficial. Mavis desejava, desejava de verdade, que
Ophelia tivesse que acabar se casando com o herdeiro de Birmingdale. Seria bem
merecido ter por esposo um homem que, por sua culpa, era o foco de todas as
brincadeiras de Londres.
Capítulo 04
Não era uma noite para viajar ao estrangeiro; era possivelmente a pior noite do ano:
o vento levantava a neve, que formava redemoinhos e impedia a visão, inclusive
sustentando o farol no alto. E fazia muito frio. Sir Henry Myron nunca tinha
experimentado um frio tão gelado em toda sua vida.
Na Inglaterra, o tempo não teria sido tão extremo; sem dúvida um pouco de neve
não o teria contrariado. Mas tão ao norte, nas Terras Altas escocesas, já lhe custava
bastante esforço não congelar, e a neve piorava ainda mais as coisas. Para sir Henry,
que tinha a missão de se deslocar até ali, era um mistério que alguém pudesse viver em
um clima tão duro e ainda mais que pudesse gostar dele.
Já tinha superado a pior parte do caminho, um estreito atalho que subia por uma
montanha de pouca altura. Henry não a teria chamado montanha. Parecia mais uma
gigantesca rocha que se sobressaía da terra, sem árvores nem erva, uma grande pedra de
granito, colocada no meio do caminho, que teria que superar. E a única forma de seguir
adiante era subir por ela a pé ou a cavalo.
Sir Henry tinha tido que deixar sua carruagem em uma igreja próxima. Seu guia já
o tinha advertido que teria que fazê-lo e, por esse motivo, tinha alugado umas
montarias para a última etapa do trajeto, que era de estreitos caminhos.
Deveria ter passado a noite naquela igreja. O capelão tinha oferecido proteção.
Mas estavam tão próximos do final da viagem, só faltava uma hora, que Henry tinha
insistido em seguir adiante. Então ainda não nevava. A neve tinha vindo do outro lado
daquela imensa rocha, ou montanha, de escassa altura, torpedeando-os sem piedade
assim que alcançaram o topo.
Henry estava começando a temer que pudesse se perder e morrer congelado. Que
seu corpo não fosse descoberto até o degelo da próxima primavera. Era impossível ver
inclusive a meio metro de distância e, não obstante, o guia não se detinha, como se ele
pudesse ver o atalho, agora coberto de neve, como se soubesse exatamente aonde ia. E
sabia...
A grande casa senhorial de pedra apareceu na escuridão salpicada de branco com
tal brutalidade que sir Henry não se inteirou de que tinham chegado a seu destino até
que esteve na própria porta. O guia começou a esmurrá-la. Henry mal ouvia algo, tão
forte era o uivo do vento. Mas a porta se abriu, deixando sair o calor do interior, e os
dois foram levados até um grande fogo crepitante.
Henry estava angustiado. A princípio, começou a descongelar e, justo depois,
ficou tremendo. Uma mulher, levando as mãos à cabeça, brigou com eles por terem
sido tão tolos para vir com aquele tempo; ao menos, isso era o que ele acreditava
entender.
Não estava muito seguro, porque a mulher falava com um fechado acento escocês.
Mas lhe pôs várias mantas de lã sobre os ombros e um copo de uísque quente entre as
intumescidas mãos, e ficou ali para se assegurar que bebia até a última gota, o que ele
fez de muito boa vontade.
Pouco depois, Henry começou a pensar que, depois de tudo, talvez ele e os dedos
congelados de seus pés fossem sobreviver; um doloroso descobrimento, embora grato
apesar de tudo, quando as extremidades começaram a recuperar a sensibilidade. Por fim
pôde se fixar no que o rodeava.
Surpreendeu-se. Não estava seguro do que esperava encontrar no lar de um rico
lorde escocês, em um que, além disso, estivesse tão isolado como este. Para falar a
verdade, esperava um pouco de ar medieval, uma velha fortaleza decrépita talvez, ou
simplesmente uma grande casa ou um solar. No fim da contas, os MacTavish eram
pastores, ou tinham lhe dito isso.
Mas o que estava vendo era algo completamente diferente: embora não se parecia
com as casas senhoriais que abundavam nos condados da Inglaterra, a estrutura era a
mesma. Construída por inteiro com pedra - a Escócia não era conhecida por sua
abundância de madeira - poderia ter tido o mobiliário e as comodidades de uma casa
senhorial e, entretanto, o que deveria ter sido um grande salão, parecia em troca uma
velha sala medieval.
O desenho da casa era moderno. Seus ocupantes, aparentemente, não. Parecia
que seu construtor a tivesse construído como um modo de protesto, que tivesse
crescido em algum antigo castelo e que estivesse decidido a conservar um estilo que
para ele devia ser o mais acolhedor.
Mesas com cavaletes e bancos de madeira rodeavam as paredes que eram
cobertas com papeis de tema floral. Henry não teve a menor duvida de que os tiravam
na hora do jantar para acomodar à família, cujos membros comiam juntos, como nos
velhos tempos. As janelas não tinham cortinas, mas sim estavam cobertas por peles de
ovelha, ainda com o pêlo. Embora entendesse que as peles resguardavam melhor do
frio que uma cortina, era imprescindível que fossem de ovelha? Não havia nenhum sofá
nem cadeira cômoda à vista, só uns quantos bancos sem almofadas perto do fogo. E
havia feno no chão.
Quando reparou nele, ficou olhando e, finalmente, meneou a cabeça. Depois de
tudo, não tinha se equivocado. Os MacTavish das Terras Altas viviam realmente como
na Idade Média.
Mas ali não havia nenhum MacTavish, nem nenhuma outra pessoa, embora ainda
fosse cedo. A grande sala medieval estava vazia, à exceção da mulher, que agora
retornava com outros dois copos de uísque quente. Embora agora não estivesse
sozinha. Pisando os calcanhares vinha um jovem alto que se deteve na soleira para
saudar o guia de Henry com um movimento de cabeça; pelo visto se conheciam. O guia
tinha dito que não era a primeira vez que vinha a casa. Logo, aquele homem cravou o
olhar em Henry.
Depois do momento que levava contemplando o que deveria ter sido um salão
moderno, Henry não teria se surpreendido se os habitantes da casa aparecessem
vestidos com peles de urso, ou melhor, dizendo: de ovelha. Mas não, os escoceses
também usavam calça e casaco. O jovem poderia estar passeando por uma elegante rua
de Londres sem chamar a atenção, salvo talvez por sua estatura - devia medir um metro
e oitenta - e sua corpulência.
Não obstante, o jovem não disse nada, e não parecia muito satisfeito de que tivesse
chegado um desconhecido. Ou talvez aquele olhar de poucos amigos fosse normal nele.
Henry se sentiu muito desconcertado. Quase o dobrava em idade e, contudo, o
jovem conseguiu intimidá-lo durante uns instantes... Bom, não era de estranhar. Os
habitantes das Terras Altas não tinham nada a ver com os afáveis escoceses do sul, que
levavam séculos tratando com os ingleses. O progresso social se estancou naqueles
distantes limites do reino, tão isolados por causa do abrupto relevo e do clima. Muitos
dos clãs do norte escocês viviam exatamente iguais aos seus antepassados: com
privações, mas obedecendo estritamente ao chefe de seu clã.
Lorde Archibald MacTavish não era chefe de clã algum, mas sim de uma pequena
parte dele e, sem dúvida, de sua família, que abundava em primos longínquos, mas que,
por desgraça, carecia de um herdeiro imediato, já que ele tinha sobrevivido a seus
quatro filhos. E por aquele motivo, a visita de Henry não ia ser bem recebida. Teria
sorte de que não o jogassem a chutes assim que revelasse sua identidade.
Entretanto, o jovem da porta não podia saber quem era. Então, suas pouco e
cordiais maneiras não guardavam nenhuma relação com ele. Talvez fossem inatos, ou
possivelmente os reservasse unicamente para os ingleses. E ele sabia que Henry era
inglês, pois tinha falado com a mulher que o tinha ajudado e tinha sido ela, obviamente,
a que tinha ido em busca do moço.
O jovem entrou na sala com passo firme. E quando se aproximou da luz do fogo
e das duas velas que ardiam a cada lado do suporte da lareira - era a única iluminação
que havia em todo o recinto-, Henry viu que não era tão jovem como tinha acreditado
em um primeiro momento. Devia ter uns vinte e cinco anos. A maturidade de seu
olhar, quando menos, indicava que era mais velho, embora de longe parecesse muito
mais jovem.
-Se este homem não estivesse com você, senhor - o jovem assinalou ao guia de
Henry com a cabeça- pensaria que se perdeu. Então, o que quer o inglês que anda com
Archie MacTavish?
Henry lhe revelou sua identidade com diligência, adotando um tom
convenientemente grave.
-Estou aqui por um motivo, um assunto urgente e de não pouca importância. Sou
o advogado de lorde Neville Thackeray, que é...
-Sei quem é Thackeray - o jovem o interrompeu com impaciência- Então, ainda
está vivo?
-Bom, sim, ao menos estava quando saí da Inglaterra, embora não sei até quando.
Não esteve bem, sabe? E com sua avançada idade, ninguém pode dizer quando piorará.
O jovem assentiu com brutalidade e logo disse com seu melodioso acento
escocês:
-Venha a meu escritório. Está mais aquecido. Aqui há muita corrente de ar.
-Seu escritório?
Henry mostrou tal surpresa que quando o jovem arqueou a sobrancelha em sinal
de interrogação não se surpreendeu. Logo, surpreendentemente, seu anfitrião se pôs a
rir sonoramente.
-Não me diga que caiu na brincadeira do velho Archie?
Com rigidez, porque não estava habituado a ser motivo de brincadeira alguma
Henry respondeu:
-E que brincadeira é essa?
-Este aposento, é obvio - respondeu o homem, ainda sorridente- Insiste em que
tragam os forasteiros a este aposento, em lugar de levá-los a parte normal da casa.
Desse modo se diverte com a idéia que fazem dele.
Henry se ruborizou, evidenciando que tinha engolido a isca.
-Então, tenho que deduzir que este aposento não é muito utilizado, só quando há
visitas?
-Oh, não. Tem seu uso, quando as ovelhas têm filhotes além do devido e não
cabem nos celeiros durante as neves. E, naturalmente, na temporada da tosquia,
quando vêm MacTavishs de outros lugares e necessitamos uma sala grande para
podermos comer juntos. Esta serve bem a esse propósito.
Henry não soube distinguir se o que acabava de lhe dizer era parte ou não da
brincadeira. Preferia não averiguar, e a alusão a um quente escritório era muito propícia,
por isso não hesitou em seguir ao jovem.
O resto da casa era muito acolhedor e a decoração era tão suntuosa como era de
se esperar. Se Henry não tivesse tido tanta pressa em ficar junto ao fogo nem tudo
tivesse estado tão escuro, talvez tivesse se dado conta antes que o tinham levado a um
estábulo convertido em salão. Mas, agora que tinham deixado um abajur sobre a mesa
da sala, era fácil ver os aposentos que o rodeavam e vislumbrar sua bela decoração.
O escritório ao que foi conduzido era pequeno, mas bonito. E tinha um grande
aquecedor aceso em um canto, o qual indicava que o jovem se encontrava ali quando
Henry chegou.
O advogado estava começando a pensar que tinha sido o agente de Archibald ou
o administrador de suas propriedades quem tinha saído para recebê-lo, mas já tinha
feito muitas conjeturas, muitas equivocadas Ele perguntou educadamente quem era o
jovem assim que se acomodou na fofa poltrona de pele em frente a sua escrivaninha.
Duncan começou a rir porque não acreditava que o atrevimento de seu avô inglês
pudesse lhe afetar. Neville Thackeray podia escolher uma dúzia de futuras esposas para
ele. Mas quem ia obrigá-lo a casar? Ele era um homem feito. Se Neville pretendia dirigi-
lo e controlá-lo como afirmava seu advogado, deveria ter mandado buscá-lo antes,
quando ele ainda não era capaz de tomar suas próprias decisões.
Aquela situação era inacreditável. Archibald tinha confiado à Duncan a
administração das granjas, as minas e as demais empresas dos MacTavish quando fez
dezoito anos. Por que ia fazer algo semelhante se durante todo aquele tempo houvesse
sabido que Duncan não estaria ali para seguir a cargo de tudo? Uma promessa feita
antes que ele nascesse, que todo mundo conhecia - salvo ele- Francamente
inacreditável.
Não tinha nada pessoal contra os ingleses. Afinal de contas, sua própria mãe era
inglesa, embora depois de converter-se em uma MacTavish, mal tinha tido presente sua
origem. Sua hostilidade era visceral, resultado da desconfiança e o desagrado que tinha
presenciado durante toda sua vida. E não obstante, tinha que partir para a Inglaterra
para viver entre ingleses? E inclusive casar com uma delas? Nem sonhando.
Seu bom humor durou pouco depois de pôr o homenzinho inglês nas mãos da
governanta de Archibald para que indicasse a ele onde dormir. Passou uma noite
inquieta, sentindo assombro e irritação ante a magnitude do que tinham escondido dele.
Entretanto, no final decidiu que Archibald deveria ter um plano para eximí-lo de
cumprir aquela antiga promessa. E averiguar isso seria a primeira coisa que ia fazer
assim que se levantasse.
Como era de esperar, Archibald já estava na cozinha ao despontar da alvorada.
Duncan se uniu a ele como todas as manhãs. Os dois eram madrugadores. E na
cozinha, o recinto mais quente da casa, era onde comiam, pois a sala de jantar era
grande e fria para só duas pessoas.
Faziam assim desde que o último dos quatro filhos de Archibald, o pai de
Duncan, morreu há quatorze anos. Dois de seus filhos tinham morrido por não se
cuidar e dois devido à fúria da natureza. Os pais de Duncan tinham falecido juntos.
Navegavam rumo à França, onde deviam assinar uns contratos para comercializar a lã
dos MacTavish. A viagem era curta, mas a tormenta foi tão repentina e violenta que o
navio jamais chegou ao porto.
Duncan também deveria ter ido naquele navio, mas seu destino se manifestou
inclusive antes de zarpar. Archie, que naquele dia se achava no porto para ver os seus
partir, tinha insistido em que ficasse em terra. Duncan não tinha reagido bem. Queria
viajar. Com sete anos, aquela teria sido sua primeira viagem longe de casa; e a última.
Ao ser o último de seus descendentes diretos, Archibald criou Duncan entre
algodões, e o super protegeu tanto que sua preocupação freqüentemente o sufocava.
Mas não podia culpar ao velho. Não devia ser fácil ter sobrevivido a todos seus filhos.
E Duncan era seu único neto.
Outros dois filhos de Archibald tinham estado casados antes de morrer, mas as
três gravidezes de suas esposas não tinham prosperado e elas, ao não ter filhos, tinham
retornado com suas respectivas famílias depois da morte de seus maridos. O último
filho foi ordenado sacerdote. Uma queda enquanto reparava o telhado de sua igreja
tinha sido a causa de sua morte.
A vida de Archie tinha estado semeada de tragédias. Também a de Duncan, ao ter
conhecido a dois de seus três tios. Não obstante, era assombroso que Archibald não se
transformar em um velho amargurado. Nem sequer era tão mais velho, embora,
certamente, todos se referiam a ele como ao "velho". Casou-se jovem e seus quatro
filhos tinham nascido muito próximo uns dos outros, nos quatro anos que seguiram a
suas bodas. Sua esposa teria lhe dado muitos mais se não tivesse falecido enquanto
dava a luz ao último.
Entretanto, não voltou a casar, embora sem dúvida poderia tê-lo feito, e ainda
podia. Só tinha sessenta e dois anos. Mantinha quase todo o cabelo ruivo, embora
ligeiramente descolorido. Suas têmporas eram grisalhas e a barba lhe outorgava um ar
distinto, ou melhor, o fazia quando ele se incomodava em se arrumar. Não obstante,
agora que tinha repassado muitos de seus assuntos a Duncan, mal saía de casa, daí que
quase sempre estivesse desalinhado.
Como não tinha ninguém a quem impressionar além da cozinheira, com quem
levava longo tempo flertando e a qual jamais o tinha levado a sério, era fácil encontrar
Archie com a roupa de dormir em pleno dia.
Hoje estava vestido, penteado e limpo, e não parecia muito feliz quando Duncan
se uniu a ele na cozinha. Isso significava que o tinham posto a par da chegada do
advogado. Bom. Assim Duncan pôde ir diretamente ao assunto assim que se sentou.
-Por que não tinha me explicado isso, Archie?
Archibald fez uma careta, e não porque Duncan o tivesse chamado por seu
primeiro nome.
Não era uma falta de respeito, embora pudesse ser considerado assim. Nem
tampouco tentou evitar a pergunta simulando que não sabia do que falava.
-Não queria que tivesse que tomar partido antes do necessário.
-Tomar partido por quê? Eu sou leal a você, e assim será sempre.
Archie sorriu e durante uns instantes pareceu bastante adulado. Mas logo deixou
escapar um suspiro.
-Deve saber como ocorreu, rapaz. Meu Donald arrastava asa pela sua mãe. Não
desejava outra coisa além de fazê-la sua, apesar de ser inglesa. Mas ela era uma
jovenzinha, nem sequer tinha completado dezoito anos. E pai dela não gostou que
tivesse posto os olhos em Donald. Nem tampouco queria que vivesse tão longe de
casa. Negou-se a dar permissão para o casamento. Opôs-se durante quase um ano. Mas
amava sua filha e não pôde suportar vê-la consumida pelo sofrimento. Então decidiu
negociar. Exigiu que o herdeiro de Donald, meu herdeiro, fosse enviado a ele quando
alcançasse a maioridade. Se ela prometesse, poderia casar com Donald.
-Sei o porquê da promessa, mas não o motivo de ter sido o último, a saber.
-Para ser justo, rapaz, confiava que esse porco morresse muito antes e que seu
advogado não soubesse nada de você. Que tivesse tido algum parente em alguma parte
para quem legar seu maldito título. Mas não, esse condenado vai viver mais que todos
nós.
Archibald disse aquelas últimas palavras com tal desgosto que Duncan poderia ter
rido se não fosse ele o centro daquela disputa. E ainda não tinha ouvido qual
era o plano de Archie para tirá-lo do atoleiro. Além disso, Archie não tinha respondido
ainda a sua pergunta.
Ele a recordou.
-E minha mãe? Por que ela me ocultou isso?
-Não ocultou. Você era muito pequeno quando morreu. Teria contando quando
fosse um pouco mais velho. Sua mãe não estava descontente com sua promessa. Do
começo ao fim, era inglesa e a agradava que você fosse o próximo marquês de
Birmingdale depois de seu pai. Dava muita importância aos títulos. Como os ingleses.
-Você deveria ter me contando, Archie. Não deveria ter esperado até o dia em
que viessem me buscar sem que eu soubesse. E o que vou fazer com esse homenzinho
inglês que temos no andar de cima? Acredita que vou com ele...
-É o que você vai fazer.
-Nem sonhando!
Duncan se levantou com tanta brutalidade que atirou a cadeira no chão. A
cozinheira, que estava no outro extremo do aposento, se assustou, deixando cair
involuntariamente a faca e chiando ao ver que tinha quase cravou-a no pé. Olhou para
Duncan soltando faíscas pelos olhos. Ele não se deu conta, pois estava fazendo o
mesmo com seu avô. Archibald teve a prudência de não afastar os olhos da mesa.
-Não pode ficar aí sentado me dizendo que não encontrou a forma de me tirar
disto - prosseguiu Duncan acalorado-. E quem vai administrar tudo se eu for?
-Eu me arrumava bem antes que você se encarregasse. Não sou tão velho...
-Se o fizer, morrerá jovem...
Desta vez foi a risada de Archie que interrompeu Duncan.
-Não acredite que o fato de que eu tenha cedido às rédeas a você significa que
esteja preparado para me retirar. Não, precisava aprender rapaz, e colocá-lo no
comando era a melhor forma de obtê-lo.
-Com que propósito? Para que pudesse partir daqui e ser um maldito marquês?
-Não, para que aprendesse de primeira mão e pudesse se acostumar a seu filho.
-Que filho?
Capítulo 07
-Af, rapaz, oxalá isto não o contrariasse tanto. Era um blefe sim, o que disse, mas ele
não sabia. Passamos quase seis meses trocando ameaças, logo outros nove meses
discutindo até que lhe disse que me conformaria com seu primogênito, ao qual ele não
queria renunciar. Sei que Neville pensava que se você não se adaptasse bem poderia
moldar seu filho para que ocupasse seu lugar. Não obstante, não estava sendo realista
se acreditava que ia viver o bastante para poder lhe influenciar.
-E você sim?
Archie se pôs a rir.
-Você tampouco está sendo realista, Duncan. Como meu herdeiro, além de dele,
se alegrará em ter um filho, ou dois ou três, a quem legar tudo o que lhe deixamos.
Enviar a Escócia seu primogênito só trabalhará em seu benefício. Mas sim, eu viverei
muitos anos mais do que esse porco, e ele sabe.
-Você somente falou que quinze meses - murmurou Duncan- Por que adiou
minha partida até agora?
-Pois bem, falar de meninos levou de forma natural a falar de esposas. Ele insistia
em que você casasse com uma inglesa. Não queria ceder nisso, mas passaram outros
cinco meses enquanto nós... Bom, "falávamos" disso. Eu insisti então em que a moça
fosse a mais bela de todas, e ele demorou a encontrá-la.
-Uma dama inglesa, imagino.
Archie riu.
-Sim. Isso foi o que lhe levou tanto tempo. Não era fácil que tivesse título e fosse a
mais bela.
-E entretanto não foi mais que uma perda de tempo - respondeu Duncan,
acrescentando- Talvez vá a Inglaterra, mas não vou me casar com alguém que nunca vi
em minha vida.
-Não se zangue por isso. Insistir em que encontrasse uma esposa foi outra das
minhas estratégias para atrasar as coisas. Se não quiser casar com a moça mais bela de
toda a Inglaterra por sua obstinação, ninguém vai insistir. Bom, talvez Neville o faça,
mas, como já disse, tem idade suficiente para se negar e não dar seu braço a torcer.
-Isto não tem nada a ver com ser obstinado - replicou Duncan, elevando a voz
com irritação.
-É obvio que não.
Aquele tom tão condescendente valeu a Archie um olhar de poucos amigos.
-Eu escolherei minha esposa, isso é tudo. Não é mais do que qualquer homem
espera fazer, incluído você.
-E me alegra ouvir isso. Mas por que queimar a ponte antes de atravessá-la? Dê
uma olhada na moça que Neville encontrou antes de rejeitá-la. Talvez você goste. Do
contrário, ao menos faça um esforço por encontrar outra.
Duncan bufou.
-Não tenho nada contra o casamento, Archie, mas ainda sou muito jovem para
pensar nisso.
-E eu sou muito velho para não fazê-lo. Talvez sobreviva a Neville, e enquanto
isso encontrarei alguém que me ajude aqui, mas eu não cederei por completo as rédeas
até saber que seu filho tem idade suficiente para me substituir.
O que significava que Archie estava de acordo com Neville em que Duncan devia
casar imediatamente. Tratava-se de um dos passos mais cruciais de sua vida e os dois o
pressionavam.
Duncan saiu da cozinha, muito aborrecido. Iria à Inglaterra. Mas se perguntava se
seu avô Neville se alegraria de sua chegada.
Capítulo 08
Era com toda probabilidade o lugar mais lúgubre e desolado que já tinha visto.
Supôs que o grosso manto de névoa que o cobria, de vários metros de espessura, podia
ser a causa, assim como as árvores sem folhas, que, pelo que ele sabia, podiam estar
tanto vivos como mortos. Ou talvez parecesse tão deserto porque era muito cedo.
Por outra parte, Duncan duvidava que algum raio de sol, por mais fraco que
fosse, pudesse influenciar em seu estado de ânimo, nem tampouco o canto dos
pássaros, se é que havia algum por ali naquela época do ano. Estava predisposto a
detestar Summers Glade, e detestaria, disso estava seguro.
Sir Henry queria ter chegado na noite anterior, o que teria sido fácil, pois a
estalagem em que se alojaram estava a menos de vinte minutos de seu destino. Mas
Duncan não estava de humor para conhecer seu avô inglês depois de um dia inteiro de
viagem. Queria estar tão descansado quanto fosse possível, não cansado e pensando
unicamente em um banho quente e uma cama.
Entretanto, não tinha planejado chegar antes que Neville Thackeray tivesse
sequer levantado, como foi o caso, e aquilo o contrariou, porque ia disposto a enfrentar
seu avô. E quase abrigava a esperança de que, por seu desolado aspecto, a casa estivesse
vazia. Em troca, estava cheia de serventes, mais do que poderiam utilizar dez famílias
numerosas, todos a serviço de um só ancião.
Não obstante, Duncan teria que admitir que o marquês vivia em uma casa muito
grande, que podia necessitar uns quantos serventes mais que o habitual para funcionar
como é devido. Também deduziu que provavelmente os ingleses estavam um pouco
mal-acostumados, sobretudo os grandes lordes como seu avô, e que talvez acreditassem
necessitar muitíssimos serventes, apesar de não ser assim.
Em contraste com a desolação que caracterizava o exterior da antiga mansão, o
interior era suntuoso e alegre. Os móveis de quase todos os aposentos que Duncan viu
em seu caminho eram de estilo francês antigo, lavrados com delicadeza e profusão.
Estavam bem conservados apesar de serem antigos e sua ornamentação lhes dava um
ar alegre, embora também resultassem ligeiramente chamativos.
Os espelhos e quadros tinham molduras de ouro quase tão largas como o que
emolduravam. Os castiçais de cristal eram tão imensos e tinham tantas gotas de cristal
que poderiam deslumbrar a qualquer um que cometesse a estupidez de olhar quando
estavam acesas. E havia flores em todos os aposentos, o que sugeria que a mansão
devia ter uma estufa em alguma parte.
Em definitivo, Summers Glade, ao menos por dentro, não era nem de perto o
que Duncan teria esperado de um velho marquês inglês, sobre tudo depois de ver quão
austero era por fora. Intuía que Neville estaria rodeado de peças sérias, despretensiosas
e sólidas, não do estilo frívolo que tinha caracterizado o século anterior.
Mas como Neville tinha vivido no século anterior, não era absolutamente
surpreendente, depois de meditar um pouco, que preferisse o estilo rebuscado e alegre
no que sem dúvida se criou. Agora Duncan não se assombraria se seu avô aparecesse
com uma dessas absurdas perucas brancas, antiquadas e volumosas, que tinham estado
tão em moda enquanto imperou aquele tipo de decoração.
Quatro empregados o levaram até o altivo mordomo, que o levou até a donzela
do andar de baixo, que por sua vez o levou até o andar de cima e, por último, a rígida
governanta para acompanhar Duncan a seu quarto, situado no primeiro andar. Quando
a governanta saiu para recebê-lo, ele já ria entre dentes de que tivessem tantas pessoas
para levá-lo ao primeiro andar quando teria bastado que lhe indicassem o caminho. Mas
aquele não era nem por indício o final da procissão.
Apareceu outra donzela para acender o fogo de seu quarto. Logo veio outra com
água quente e toalhas. E, logo atrás chegou outra com uma grande bandeja de lanches
matutinos: bolachas, salsicha, pães e dois bules de chá e chocolate quentes. E menos de
dez minutos depois que partiu, veio ainda outra senhorita para perguntar se necessitava
de mais alguma coisa.
E por último chegou Willis.
Willis era um homenzinho magricelo de meia idade, quase cinqüentão, que
proclamava com orgulho ter sido escolhido como valet2 de Duncan. Tinha o cabelo
castanho, o pouco que restava, os olhos castanhos e uma expressão que poderia se
pontuar de franca arrogância, e isso que Duncan acreditava que o mordomo de
Summers Glade era a pessoa mais arrogante imaginável; pois bem, Willis conseguia
parecer ainda mais soberbo e altivo.
Duncan não era tão ignorante para não saber qual era a função de um valet.
Estava surpreso, isso sim, que houvesse um em seus aposentos, que Willis já estivesse
desfazendo sua mala que quase arrebatou um lacaio no andar de baixo para subi-la
pessoalmente antes de ter oportunidade de lhe dizer que não era necessário.
E então ouviu:
-Uma saia, senhor?
-É uma saia escocesa, tolo! - Duncan quase rugiu ante aquele insulto, ruborizando
até as orelhas.
Seu tom não alterou Willis, que se limitou a estalar a língua enquanto guardava a
saia escocesa na cômoda.
Duncan ficou olhando-o, sem sair de seu assombro. O insulto já tinha sido o
bastante grave, mas que, além disso, aquele homenzinho ignorasse sua fúria...
Apertando os lábios, Duncan ordenou:
-Fora daqui.
Aquilo atraiu toda a atenção de Willis, quem, não obstante, se limitou a dizer:
-Senhor?
Ante o olhar perplexo do homenzinho, Duncan explicou:
-Não necessitei um valet em toda minha vida, e não vou necessitar agora.
Entretanto, em lugar de se zangar e partir, Willis voltou a estalar a língua e disse:
-Não é culpa sua onde você se criou, mas agora está em terras inglesas e irá fazer
as coisas como são devidas, estou seguro.
-Ah, sim? - respondeu Duncan em tom ameaçador, começando a se zangar outra
vez.
-Naturalmente e naturalmente que necessita de um valet. Nenhum cavalheiro de
importância pensaria jamais em se vestir sozinho.
2 Valet ‐ Um homem, que cuida das roupas e executa outros serviços pessoais.
-Eu não sou um cavalheiro, nem um lorde, e posso me vestir sozinho, maldito
seja. Agora parta, antes que me veja obrigado a lhe jogar.
Com aquelas palavras, Willis acabou por tomá-lo a sério e Duncan teve a
impressão de tê-lo assustado.
-Não estará me mandando embora, não é? Isso me prejudicaria muito.
-Só porque não o necessito?
-Mas ninguém acreditará - assegurou Willis- Não, isto se entenderá
exclusivamente como minha culpa e me impedirá de aspirar por toda a vida a uma
posição tão prestigiosa como é esta. Será minha ruína, senhor, se me enviarem de
retorno a Londres.
Duncan teria jurado que o lábio inferior do homenzinho acabava de tremer.
Suspirou. Ele não era um homem mesquinho, só obstinado. Não obstante, não
desejava ser o causador da "ruína" de ninguém. Embora não gostasse de fazer
concessões.
-Muito bem, pode se dedicar a engomar e limpar o que vista, mas me vestir é
minha coisa, fica claro?
-Obrigado, senhor - disse Willis, retomando seu tom altivo e condescendente- E
permita que chame o alfaiate do marquês para que tome medidas, ou vão chegar mais
baús em breve?
Duncan ficou olhando-o. Dê a um inglês a mão e...
Capítulo 09
Sabrina não achou tão trágica que a história de sua família tivesse voltado à luz. De
fato, a boa sociedade de Londres estava reagindo de forma tão estranha quando a
conhecia que até achava divertido. As pessoas, que antes tinham uma cuidadosa mera
curiosidade reservada a todo recém-chegado, lhe dedicava agora olhadas que pareciam
dizer: “Segue viva? Mas não por muito tempo, asseguro". Uma dama tinha inclusive,
cometeu o vexame de gritar, acreditando que era um fantasma. Sabrina se perguntava
até que ponto devia ter se distorcido o rumor quando chegou aos ouvidos daquela tola.
Suas perspectivas de encontrar um marido em Londres eram agora nulas,
obviamente. Do começo ao fim, qual cavalheiro que casasse com a pretensão de ter um
herdeiro, e essa era a razão pela que muitos o faziam, desejaria uma esposa que talvez
não vivesse o bastante para dar. Suas duas tias estavam vivas depois de muitos anos das
tragédias, rompendo claramente o círculo vicioso, mas havia alguém que levasse isso
em conta? Não. A alta sociedade londrina, em resumidas contas, passava por cima
daquele detalhe.
O certo é que ao contar a todo mundo a verdade sobre sua família não fazia
nenhum bem. Acreditariam no que queriam acreditar e, acaso as provas respaldavam
sua crença? Não, mas a verdade não era tão suculenta nem se prestava a tantos
falatórios. Era muito mais interessante insistir em que aquela tendência a acabar com a
própria vida prematuramente tinha que ser algo de família.
Por desgraça, Richard, o bisavô de Sabrina, tinha feito isso, e sua inconstante
esposa, incapaz de suportar a tragédia, seguiu seu exemplo. Entretanto, aí deveria ter
terminado tudo. Lucinda, a filha que sobreviveu, já estava casada naquela época com
William Lambert, um conde de constituição robusta, e já tinham duas filhas, Hilary e
Alice. O pai de Sabrina, John, ainda não tinha nascido razão pela qual o título do velho
duque passou a outro ramo longínquo da família desconhecida para os Lambert.
Desconhecendo que suas hóspedes londrinas tinham chegado, Duncan e seu avô
estavam naquele mesmo instante no andar de cima, vendo-se pela primeira vez.
Duncan tinha insistido em esperar Neville em seu salão particular quando seu valet se
negou a despertar o marquês antes do que era habitual nele, e a espera tinha durado
quase duas horas.
No final, o ancião tinha feito sua aparição e o valet, que partiu ruborizado, tinha
recebido sem dúvidas uma reprimenda por não tê-lo despertado antes. O certo é que
Duncan não se importou com a espera, que tinha lhe permitido examinar alguns dos
pertences que Neville devia considerar importantes, dado que os tinha em seu salão
particular.
Os estranhos artefatos africanos que havia em uma parede sugeriam que Neville
devia ter visitado aquele continente em algum momento de sua vida, ou que desejava
tê-lo feito. Outro canto do recinto estava repleto de arte chinesa, e no suporte da lareira
havia objetos egípcios. Ou ele gostava de viajar ou era um colecionador de arte exótica.
Entretanto, os móveis tinham o mesmo toque francês que prevalecia no resto da
casa. A escrivaninha parecia tão frágil que teria dado medo em Duncan de usá-la,
temendo que pudesse desabar só de apoiar um cotovelo. Havia em cima duas
miniaturas, uma das quais reconheceu como o retrato de sua mãe quando era jovem,
pintado sem dúvida antes que partisse de casa para casar com Donald. O outro era de
um menino com o cabelo muito vermelho.
O segundo retrato lhe chamou a atenção e ficou olhando-o. Poderia ser ele,
supôs, embora certamente não recordasse a ninguém conhecido que pudesse tê-lo
pintado.
O menino não estava posando, mas sim brincava ao ar livre, alheio a que pudessem
estar observando-o. E Duncan só tinha tido o cabelo vermelho assim quando era
pequeno, pois agora a cor era muito diferente. Com a idade tinha escurecido de
maneira considerável. Entretanto, não achou outra semelhança além do cabelo, embora
isso pudesse ser culpa do artista; estava ficando sem razão para descartá-lo como seu
retrato, quando no fundo sabia que era.
O certo é que não podia imaginar por que Neville o tinha, por que o tinha
desejado, quando nenhuma só vez na vida de Duncan tinha tentado ver seu neto ou
inclusive ficar em contato com ele. Tinha escrito a Archie, mas nunca a seu único neto,
o qual falava com eloqüência, pelo que Duncan sabia, sobre os sentimentos de Neville
para ele. Era uma posse prometida, e provavelmente Neville não o via muito diferente
de seus outros objetos de arte: algo estimado e de valor, mas que não despertava nele
sentimento algum.
Agora, ao vê-lo pela primeira vez Neville tinha se detido na porta que dava a seu
quarto e não se movia, se estudaram mutuamente, surpreendidos que nenhum dos dois
correspondesse a suas expectativas.
Neville conservava todo o cabelo, embora tivesse adquirido uma cor branca
prateada, e tinha cortado um pouco abaixo das orelhas, como era moda então. E tinha
envelhecido bem. Não dissimulava os anos que tinha, mas apenas tinham parecido às
rugas e tinha o olhar vivo. A barba prateada lhe dava um ar de grande distinção,
embora pouco inglês, que ficava reforçado por sua constituição ou o que em seu caso
podia se considerar fragilidade e sua pouca estatura. Não obstante, caminhava muito
erguido. De fato, Duncan não se achava ante um homem próximo ao leito de morte,
como Henry tinha insinuado. Nada mais afastado do que estava vendo. Neville parecia
gozar de uma saúde excelente.
-É mais corpulento... Do que esperava - foi a primeira coisa que Neville disse.
Na mesma linha, Duncan respondeu:
-E você não é tão velho como esperava; não está tão mal.
As palavras romperam o incômodo silêncio. Neville entrou no salão, andando a
bom passo, embora suspirou ao se sentar em sua pequena escrivaninha Duncan, ao não
encontrar nenhuma cadeira em todo o salão que não desse a impressão de quebrar-se
com tão só olhá-la, ficou de pé junto à lareira. Em seguida averiguou que não tinha sido
boa escolha, pois o fogo já crepitava inclusive antes que ele chegasse e seguia fazendo-
o. Por esse motivo, fazia um calor excessivo no salão que, junto ao fogo, resultava
insuportável.
Ele foi até uma janela e começou a abrir, as três que tinha no quarto estava
fechada e trancada.
-Por favor, não o faça - pediu Neville e, ante o olhar interrogante de Duncan,
acrescentou um pouco envergonhado - pediram-me que tome cuidado com as
correntes de ar. Pelo visto, meus médicos pensam que meus pulmões não suportarão
outra doença mais. Infelizmente, isso significa que os recintos que freqüento devem
estar mais quentes que o habitual.
-Então, esteve doente?
-Passei o último inverno de cama. Este ano me encontro melhor.
Duncan assentiu. Tinha dito isso com naturalidade. Neville não estava se
lamentando, tão só o informando sem mais. Duncan permaneceu junto à janela, onde
ao menos estava um pouco mais fresco, embora não o bastante depois de ter estado
junto à lareira. Suava e tirou a jaqueta.
-Suponho que é tão alto como foi seu pai, e também tem seu cabelo - assinalou
Neville, observando-o.
- Disseram-me que tenho os seus olhos.
-Se importaria... De se aproximar para que os veja?
A pergunta, quase em tom de súplica, desconcertou Duncan.
-Não tem boa vista, então?
-Uso óculos - respondeu Neville em tom resmungão- Mas nunca sei onde os
coloquei.
Aquele tom, que recordou a Archie, quase conseguiu lhe relaxar. Teve que
lembrar a si mesmo que aquele ancião não era o avô que o tinha criado e que ganhou
seu amor. Este não significava nada para ele.
Não obstante se aproximou e ficou frente à escrivaninha. O deixou bastante
nervoso o exame minucioso de Neville. Ficou com vontade de se afastar, mas
conseguiu se conter.
-Elizabeth estaria orgulhosa de você se pudesse vê-lo agora.
De certo modo o elogio, de Neville, não de sua mãe provocou o efeito de zangar
Duncan em lugar de adulá-lo.
-E como você pode saber o que ela pensaria, quando não voltou a vê-la depois
que se casou?
Sua amargura era patente. Neville teria que ser surdo para não detectá-la e, a sua
avançada idade, talvez estivesse perdendo outras faculdades, mas não o ouvido. Ficou
rígido. Se o que queria era falar do passado, não tinha intenção de permiti-lo.
Abruptamente disse:
-Lady Ophelia e seus pais chegam hoje. Seria de grande interesse para os dois que
fizesse um esforço por impressioná-la. Embora ela vá se beneficiar mais que você com
este casamento, me informaram que é extremamente popular nos círculos londrinos e
que teve inumeráveis ofertas além da nossa, então, até que se celebre o casamento,
deverá deixá-la contente. Estas jovens de hoje - acrescentou aborrecido - rompem os
compromissos como se fosse nada.
Não era surpreendente que Sabrina saísse para dar um passeio assim que teve
oportunidade. Adorava as estações, as quatro, e inclusive quando fazia frio era capaz de
desfrutar de uma vigorosa caminhada. A natureza, em seu momento mais cru ou belo,
sempre a maravilhava. Encantava-lhe levantar o rosto para sentir a chuva na pele em
vez de correr a proteger-se, ou sentir o vento no cabelo e o sol nas bochechas. Quando
era menina, suas tias caçoavam, lhe dizendo que tinha sangue de fada e que tinha
deixado as asas esquecidas em algum lugar.
Subiu a colina sobre a qual parou em alguma de suas outras caminhadas, quando
vinha de outra direção. Até então, aquela colina era o mais perto que jamais estivera de
Summers Glade, mas sempre lhe tinha oferecido uma vista perfeita da grande mansão
do lorde Neville.
Tinha-a contemplado em todas as estações do ano e por isso sabia que seu desolado
aspecto logo mudaria com a chegada da primavera, quando as imponentes árvores que
a rodeavam voltassem a se encher de folhas.
Era uma antiga casa francamente formosa, e agora que a tinha visto por dentro
estava ainda mais impressionada. Era uma lástima que lorde Neville não recebesse
pessoas em casa com mais freqüência para mostrá-la aos vizinhos que, como as
Lambert, tinham se mostrado, sempre curiosos por ele e seu lar.
Agora não estava recebendo pessoas em casa porque desejava, mas por obrigação. E
a atitude que adotaria com seus hóspedes continuava sendo uma incógnita. De fato,
Sabrina ao regressar de seu passeio podia encontrar a suas tias fazendo de novo a
bagagem. Não é que aquilo fosse lhe afetar muito, ainda que tivesse vontade de poder
conhecer enfim ao estimado lorde Neville, após ter vivido tão perto durante tantos
anos e não tê-lo visto nunca, nem sequer de longe.
Mas não tinha pressa por voltar e averiguar que tinha passado fosse o que fosse, e
quando atingiu o cume da colina se sentou, sem pensar que a erva e a terra podia
manchar o vestido, e desfrutou sem mais da vista. Suas tias costumavam lamentar-se
ante suas amigas de que, quando era menina, a roupa nunca chegava a ficar pequena,
pois sempre a destroçava com as silvas ou a enchia de manchas muito antes que
precisasse mudar de tamanho.
Naquele aspecto tinha sido descuidada, e continuava sendo; nunca tinha se
preocupado pela impressão que seu aspecto causava nos demais. Quando não tinha
nada que fazer, ou melhor, para que perder tempo tentando?
Tirou a coifa3 e deixou-a no solo. Teria saído voando se não estivesse presa pelas
fitas, mas o vento a arrastou pelo chão, sem que ela percebesse, a deixando feita um
desastre. Sabrina tinha fechado os olhos para sentir melhor o vento que jogava seu
cabelo em todas as direções. Riu quando uma mecha roçou o seu nariz, lhe fazendo
cócegas.
No entanto, estar com os olhos fechados e que o vento estivesse uivando nos
ouvidos não foi o que lhe impediu ver ou ouvir ao cavaleiro que quase a atropela.
Apareceu por detrás com tanta brusquidão que nenhum dos dois teve tempo de reagir.
3 Uma espécie de chapéu que as mulheres usavam antigamente.
Sabrina livrou-se por milagre. Tão milagroso que, quando o cavalo se empinou e o
cavaleiro lhe obrigou a girar para evitá-la, o animal esmagou a coifa com os cascos ao
tocar de novo o chão. Ainda que não tivesse percebido isso, embora. Seu único
pensamento foi enganar o cavalo rodando pelo chão, o que foi mais fácil que voltar a se
pôr em pé com aquela saia tão volumosa que usava.
No entanto, Sabrina não foi a única que rodou pelo chão. Ao empinar-se, o cavalo
tinha derrubado ao cavaleiro, que tinha ido parar no lugar onde a colina começava a
descer de forma abrupta e, ao não encontrar uma superfície plana, tinha rodado um
trecho antes de se deter.
Sabrina foi a primeira a se recuperar e a pôr-se de novo em pé. O homem estava
sentado no chão, com as pernas estendidas, um pouco atordoado em aparência, ou se
perguntando ao menos que tinha acontecido. O cavalo afastou-se bufando, mas não
demais. Levou a coifa de Sabrina, que ainda estava presa no casco, e agora tentava
comer as flores de seda que tinha visto no estampado.
Tratava-se de um homem corpulento. Foi o primeiro em que se fixou Sabrina; era
impossível não o fazer. E a grossa jaqueta curta de inverno que usava, ressaltava a
largura de seus ombros. Mas foram suas pernas as que lhe chamaram a atenção. Não
pôde evitar. Estava com uma parte descoberta, ao menos os joelhos, entre a saia
escocesa e as botas de cano alto.
Uma saia escocesa no inverno, que estranho. Já tinha visto os escoceses com saia,
quando passavam por Oxbow a caminho para o sul e a sua volta, mas só no verão. A
maioria preferia abrigar-se mais nas estações frias. Por acaso não sentia frio?
Sabrina imaginou de quem podia se tratar: o noivo de Ophelia. A saia e o cabelo,
ruivo escuro, indicavam que ao menos era escocês, e Summers Glade, a direção que
levava, esperava a um escocês. Oh, meu Deus. Ophelia ia ficar estupefata, e
possivelmente mudaria de opinião ipso facto4 quanto ao querer desfazer-se dele. Como
não o ia fazer, quando era tão aposto que até deixou a Sabrina sem respiração?
O homem ficou em pé, demonstrando-lhe, para sua surpresa, que não só era
corpulento, senão também alto. E limpou a saia de tal forma que deixou descoberto
uma parte da coxa, ruborizando-a. Por sorte, ele ainda não se tinha fixado nela. De
todas as formas, ainda que o tivesse feito, Sabrina tinha as bochechas tão cortadas pelo
vento que era impossível notar que tinha se ruborizado.
- Você está bem?
Ele se virou.
- Ah, aí está. Isso eu deveria estar perguntando. Não a vi aí sentada até que quase era
tarde demais.
Sabrina sorriu. Tinha um sotaque escocês melodioso e agradável, e a voz profunda.
Gostava como soava, estranho aos seus ouvidos, mas lírico. E aqueles olhos, de um
azul tão escuro. Desconcertava-lhe, agora que a olhava fixamente.
- Isso me parece.
4
Imediatamente.
- Devo desculpar-me. Este animal e eu não nos demos muito bem - disse olhando
para o cavalo com o cenho franzido. - Mas na verdade, para começar, não sou bom
cavaleiro. Prefiro ir a pé, se a distância não é excessiva.
Que coincidência, igual a ela. Sabrina sabia montar, e fazia-o muito bem. De fato
tinha aprendido desde menina, para completar sua formação. Mas encontrava a sela
muito incômoda e, além disso, o Senhor tinha-a dotado com duas robustas pernas com
o propósito de que as usasse.
Sua alusão à distância instou-a a perguntar-lhe:
- Você está chegando agora, a Summers Glade?
Ele contemplou a casa desde o alto da colina e voltou a franzir o cenho antes de
dizer:
- Não. Só precisava desabafar um pouco e pensei que esse garanhão me serviria. Foi
uma estupidez. Deveria ter sabido que montar ia me fazer mais mal que bem.
Ela riu. O que provocou que Duncan voltasse a examiná-la, desta vez com mais
detalhe.
Era uma garota suja e não muito alta, com o cabelo castanho solto e emaranhado,
mas achou sua falta de decoro bastante atraente. Era pequena, mas nem sequer seu
longo abrigo, que a cobria desde o pescoço até os pés, podia dissimular a generosidade
de seus seios, ainda que ocultasse o resto de sua figura. Reparou que lhe faltavam dois
botões. Reparou nos olhos violetas mais belos que jamais tinha visto.
Teve uma premonição e não teve dúvidas ao expressá-la:
- É você lady Ophelia, por acaso?
- Meu Deus, não, mas você deve de ser o bruto escocês do que tanto tenho ouvido
falar.
Por alguma razão, ele não se ofendeu. Talvez pelo brilho que detectou em seus olhos
quando o disse. Era evidente que lhe divertia o termo «bruto» usado naquele contexto,
referido a ele, e sua diversão lhe fez graça.
Além disso, tinha colocado a saia escocesa, que normalmente não usava no inverno,
para demonstrar a Neville que preferia o escocês ao inglês. No entanto, as pessoas
podiam vê-lo como um bruto, tendo em conta a época do ano, ainda que aquele
insignificante frio da Inglaterra não era nada para ele. Mas também isso era divertido,
agora que estava bastante calmo para pensar nisso.
De modo que ele também disse com verdadeiro humor:
- Pois sim, esse sou eu.
- Você não é tão velho como pensava - prosseguiu ela.
Ele arqueou uma sobrancelha, de cor castanha avermelhada, lhe perguntando:
- Quanto velho?
- Quarenta no mínimo.
- Quarenta! - rugiu ele.
Seu riso era contagioso.
Duncan fez um esforço para conter-se e, em vez disso, a olhou fingindo severidade.
- Então, você estava rindo de mim? - disse.
- Está tão evidente?
- Não há muitos que tenham coragem para fazê-lo.
Ela sorriu.
- Duvido muito que seja você o bruto que dizem que é, mas, afinal de contas, eu
também não sou o fantasma andante que dizem que sou. É curioso, os boatos e as
fofocas. Quase nunca se referem aos fatos e, no entanto, com freqüência tomam ao pé
da letra.
- De modo que Neville esperava a um bruto, não? - disse Duncan.
Ela piscou e depois voltou a rir.
- Oh, puxa, suponho que não. Ele não ia ser tão tonto, não? Já que o conhece
suficiente, sendo seu avô. Não, não. São os que ainda não lhe conhecem, mas estão a
par de sua chegada, quem pode estar intrigado com um escocês das Terras Altas, sendo
tão poucos os que vêm a Inglaterra para demonstrar que as Terras Altas da Escócia já
devem estar civilizadas a estas alturas. E, certamente, isso dá muito jogo para
murmurar, não crê?
Duncan esteve a ponto de rosnar em resposta. Sabrina tinha posto o dedo na chaga
ao supor que seu avô já lhe conhecia. Mas o resto do que tinha dito lhe pareceu
divertido. De fato, conseguiu voltar a acalmá-lo, tanto que teve vontade de seguir
caçoando com ela em lugar de abordar o sério tema da má fama que tinham os
escoceses das Terras Altas.
- Têm que estar? - disse.
- O que?
- Civilizadas.
Ela pareceu meditar durante uns segundos e depois respondeu com muita lógica:
- Bom, talvez não estejam tão civilizadas como a Inglaterra, naturalmente. Mas tenho
sérias dúvidas de que sigam produzindo autênticos brutos. Afinal de contas, fixe-se em
você. Ou se esqueceu trazer a pintura de guerra?
Ele se lançou a rir. Teve que sujeitar o estômago e secar as lágrimas.
Mas quando se acalmou um pouco, se deu conta de que ela o olhava com o cenho
franzido. E, depois, disse muito séria:
- Se esqueceu, não é mesmo?
Desta vez desabou no riso. E quando deixou de fazer se sentiu... Quase normal. A
amargura que lhe corroia as entranhas tinha desaparecido, ao menos por enquanto. E
viu o travesso sorriso que ela esboçava agora, o que demonstrava que só tinha seguido
a brincadeira.
Aquela jovem era uma jóia. Certamente, não tinha nada a ver com seu conceito das
moças inglesas. Se as outras eram como ela, bom, talvez não lhe resultasse tão
desagradável se casar com uma apesar de tudo.
Capítulo 12
Entretanto, era um ponto questionável. Sem dúvida, o escocês sentia que tinha
perdido Duncan devido à promessa de Elizabeth e, por isso, insistia na continuação de
sua linhagem para ter um novo herdeiro. Naquilo, ao menos, Neville podia estar de
acordo. Quem não gostaria de saber que sua linhagem continuaria e não se extinguiria
antes de morrer? Duncan poderia assegurar o futuro das duas famílias tendo muita
descendência, mas só se colocasse mãos à obra em seguida.
Neville estava satisfeito com a noiva que lhe tinha procurado. Talvez devesse ter
feito um esforço para conhecê-la pessoalmente antes de selar o compromisso, mas
ainda continuava tão furioso com o Archibald por insistir em que fosse a mais bonita
de todas como se isso fosse a única coisa mais importante ao escolher esposa, que
quando seus agentes lhe juraram e perjuraram que o era, pôs-se em contato com seus
pais sem mais demora.
Entretanto, agora que a tinha conhecido, não estava desagradado. Ophelia Reid
era sem lugar a dúvida tão bela como se dizia. É possível que fosse um pouco
orgulhosa, e inclusive arrogante, mas isso podia dever-se ao nervosismo por lhe
conhecer.
E em sua opinião, a arrogância não tinha por que ser negativa. Em ocasiões,
Neville sabia que ele mesmo dava essa impressão. Em função de com quem se tratasse,
não estava certo das amostras de condescendência. Mas agora não lhe cabia a menor
dúvida de que, assim que a visse, Duncan ficaria apaixonado. E isso era quão único
importava, que o moço estivesse contente com sua futura esposa.
Sabrina poderia ter estado certa ao supor que Ophelia mudaria de opinião sobre o
Duncan MacTavish assim que o visse. Assim poderia ter acontecido, se eles tivessem se
conhecido a, sós e em outras circunstâncias.
Mas por obra do destino, Ophelia estava rodeada de amigas e admiradores
quando Duncan se apresentou no salão onde estavam reunidos. Como acabava de
retornar de seu passeio a cavalo, ainda levava a roupa que pôs para irritar Neville e
Ophelia viu nisso uma confirmação dos rumores que tinha difundido sobre ele.
Infelizmente, também suas amigas entenderam desse modo.
- Deus santo, leva uma saia - ouviu que sussurravam a seu redor.
- Na Escócia é um traje aceitável - Tentou assinalar alguém - É uma saia...
- É uma maldita saia. E eu que pensava que um parente do marquês não podia ser
tão tosco... Pelo visto, equivocava-me.
Ophelia se sentiu envergonhada, imersa em uma situação da que abominava.
Tinha suposto que teria que deixar Duncan em ridículo de alguma outra forma, posto
que os rumores que tinha difundido sobre ele tinham dado em nada.
Por esse motivo não se fixou realmente nele. Viu a saia escocesa e reflexos
vermelhos de seu cabelo castanho, que o forte vento tinha emaranhado. Mas não viu
nada mais salvo que, ironias do destino, os rumores que tinha difundido eram certos.
Por uma parte, sentiu-se aliviada. Agora, seus pais teriam que dar-se conta de que um
escocês das Terras Altas, ao menos um bruto como aquele, não era para ela. Tinham
ouvido os rumores. Ela se tinha assegurado de que assim acontecesse. Mas tinham rido,
alegando que não podiam ser verdade. Agora não poderiam negá-los.
Mas, por outra parte, uma coisa era ter o controle de um rumor e fazer que com
que fosse para o benefício próprio e outra muito diferente era ser vítima das verdades e
da vergonha que isso podia suportar. E Ophelia odiava as situações embaraçosas.
Ruborizar-se não ia absolutamente com sua pessoa.
Por esse motivo estava muito zangada quando Duncan se apresentou, depois de ter
observado durante um instante o salão da soleira, lhe fazendo uma reverência que lhe
pareceu exagerada e disse:
- Como não há outra moça mais bela que você em todo mundo, presumo que é
você lady Ophelia.
Ela o tinha entendido perfeitamente, mas disse:
- Quando conseguir expressar seus comprimentos em inglês, talvez lhes preste
atenção. Também poderia tentar vestir-se como é devido, ou os escoceses gostam de se
parecer com as mulheres?
Implicar que uma saia escocesa tinha algo de feminino, por muito remoto que fosse,
era o insulto mais grave que podia imaginar. Duncan poderia havê-la perdoado,
atribuindo-o à ignorância inglesa, se não tivesse sabido que o havia dito de propósito.
Não podia passar por cima sua intenção. Nem os risos mal dissimulados ou as
gargalhadas de seu público, nem seu olhar de suficiência para ouvi-las.
Não obstante, Duncan não pôde dissimular sua confusão e isso era, exatamente,
o que ela queria. Ele não podia imaginar o porquê, embora agora não importasse. E o
que tinha sentido ao princípio, emoção, assombro, gratidão inclusive, assumindo que
teria que lhe dar as graças a seu avô por aquela prometida tão espetacular fez-lhe
encaixar o golpe muito pior.
Pode ser que ao vê-la pela primeira vez sua beleza tivesse lhe surpreendido e
deslumbrado, era um presente para a vista, mas naquele preciso instante não poderia ter
sido mais feia aos seus olhos.
Não lhe disse nenhuma palavra mais. Virou sobre seus calcanhares e saiu do salão
para ir em busca de seu avô. Encontrou-o em seguida, pois Neville estava descendo as
escadas para unir-se a seus convidados.
Duncan não se deteve e, quando passou junto a ele, limitou-se a lhe dizer:
- Não me serve.
Neville, surpreso ao princípio pelo tom terminante do Duncan, talvez o teria
seguido para averiguar o por que. Mas, considerando o pouco amistosa que até então
era sua relação, decidiu averiguá-lo por outros meios.
Dado que Ophelia Reid tinha lhe agradado tanto, era compreensível que Neville
estivesse incômodo e queria averiguar o ocorrido para jogar pela amurada os esforços
de um ano, para achar à esposa perfeita.
Fez um sinal a seu mordomo, que estava montando guarda no saguão e que
sempre se inteirava de tudo. E aquela vez não foi diferente, pois estava informado,
palavra por palavra, pelo que se havia dito no salão.
Vá cabeça oca. Olhe e melhor não ter idéia que arejar sua ignorância daquela
forma. A beleza era desejável, mas não quando vinha associada à semelhante estupidez.
Duncan tinha razão. Ophelia Reid era de toda inapropriada.
Capítulo 13
Duncan tinha partido, deixando a Sabrina na colina, embora não podia saber que ela
ia na mesma direção. E Sabrina não tinha nenhuma pressa para voltar, mas pelo
contrário. Havia se sentado novamente e tinha perdido por completo a noção do
tempo enquanto recordava todas as coisas que lhe havia dito, as armazenando para
sempre em sua memória.
Que tarde tão emocionante, a mais emocionante que recordava ter tido, embora
até então tivesse jamais nem falado com um homem tão bonito como aquele. E tão
complicado. Mostrou-se resistente a sorrir e a rir com ela. Sabrina tinha tido que
esforçar-se mais que de costume para consegui-lo. E se perguntava depois de que ele
partiu o que podia preocupá-lo tanto para deixá-lo ele de tão mau humor.
Entretanto, ele sorria quando partiu e isso a agradava infinitamente, porque gostava.
Normalmente, Sabrina não emitia julgamentos como aquele com tanta rapidez, mas,
naquele caso, era quase impossível não fazê-lo: sua voz, seu sorriso, seu senso de
humor quando se deixava levar e, naturalmente, seu aspecto. Tinha a transtornado os
sentidos em uma miríade de formas, mas mesmo assim Sabrina tinha desfrutado de
todos os instantes que tinha passado em sua companhia.
Mas Sabrina não se iludia. Um homem como aquele não era para moças como ela,
era para as Ophelias do mundo. Era uma pena, uma verdadeira pena, que assim fosse,
mas tinha que resignar-se. Os bonitos para os bonitos e para ela um homem agradável
de aspecto comum, inteligente, com recursos, amável, alguém que gostasse de caminhar
com ela e rir, e sentar-se em uma colina para contemplar juntos o pôr-do-sol...
Oh, puxa, o sol já estava a ponto de se por. Onde tinha ido o tempo?
- Não pode culpar lorde Neville, esta reunião não tinha sido idéia dele. Sem dúvida,
acredita que Ophelia e seu prometido precisam passar um tempo sozinhos, para se
conhecerem...
- Vai ser difícil, querida, quando os Reid já partiram para Londres.
- Partiram? -Sabrina franziu o cenho- Só porque o marquês se negou a organizar
uma festa para todo mundo? Não acredito que Ophelia tenha dado um chilique por
isso, verdade?
- Não tenho nem idéia. Eu não os vi antes que se fossem. Hilary talvez sim. Pode
perguntar a ela.
Sabrina o fez, enquanto aguardavam na entrada com a bagagem. A governanta tinha
mandado procurar um dos veículos de lorde Neville, posto que elas tinham chegado
com os Reid e não tinham meio de transporte.
- Mary me disse que me escreveria - respondeu Hilary em resposta à pergunta da
Sabrina-. Disse-me que estava muito transtornada para falar disso agora e, certamente, a
pobre o parecia.
- E a Ophelia? Viu-a?
- Sim - respondeu Hilary e, logo, sussurrando, acrescentou- E acredito que seu pai
acabou castigando-a por ser tão presunçosa. Tinha uma bochecha muito "rosada". Não
concordo com castigos físicos, mas à filha de Mary permitiram ter uns ares que
deveriam ter cortado pela raiz há muito tempo.
Sabrina não saía de seu assombro.
- Seu pai bateu?
Hilary assentiu.
- O tapa que tinha marcado na bochecha assim sugere.
- Mas não puseram objeções quando nos convidou a vir - assinalou Sabrina.
- Logo que teriam reparado em nós se tivéssemos sido as únicas, mas hoje chegaram
cinqüenta e seis pessoas, todas convidadas pela Ophelia, como se já fosse a marquesa e
tivesse direito a convidar a quem quisesse. Não é de estranhar que Neville dissesse
basta quando por fim soube quantas pessoas vinham. Eu também o teria feito, não me
importa dizê-lo, se os hóspedes que eu convido convidam por sua vez a outras
cinqüenta e seis pessoas. Querida, essas não são maneiras.
É obvio que não, e Ophelia não tinha nenhuma dúvida a respeito. Mas Sabrina não
tinha contado a suas tias os esforços de sua amiga para sabotar seu compromisso e
desfazer-se de seu prometido. Falar disso a teria incomodado, pois ela não o aprovava,
e, além disso, a mãe da Ophelia era uma boa amiga da Hilary.
Aquela última maquinação de Ophelia, o de trazer para o meio Londres ao Summers
Glade, tinha o único objetivo de zangar ao marquês.
Embora, por outra parte, isso tinha sido antes de conhecer em pessoa a seu
prometido e, se já o tinha feito, certamente que a esta altura estava arrependida.
Os planos da Ophelia, e sua forma de levá-los ao fim, eram muito complicados.
Sabrina se alegrava de não formar parte deles. Tinham-na educado para que fosse
franca e direta. Tecer complicadas maquinações com a esperança de que sortissem um
efeito determinado não ia absolutamente com ela. Estar perto de Ophelia não tinha
sido nunca monótono, mas o certo é que Sabrina desejava voltar a ter um pouco de
monotonia em sua vida.
Entretanto, queria ver Duncan MacTavish uma vez mais antes de partir do Summers
Glade, pois com toda certeza já não voltaria a vê-lo depois daquele dia, ao menos não
até as bodas, que seguramente estariam convidadas. Agora que Ophelia tinha retornado
para Londres, ele também iria lá. Mas, estivesse onde estivesse naquela enorme casa,
não seria perto da entrada, e elas logo estaria de retorno a casa.
Capítulo 14
- Bom, onde está? Devo admitir que morro por conhecer a jovem mais bonita de
toda a Inglaterra que você encontrou para o rapaz.
Neville se esticou quando o corpulento escocês irrompeu na sala de jantar, onde ele
estava jantando a sós. O mordomo de Neville, que chegou um instante depois, olhou-o
torcendo o gesto, a modo de desculpa por não lhe haver podido advertir daquela
intrusão.
- Archibald? -aventurou Neville.
- Sim, a quem você ia esperar?
- Certamente, não você - respondeu Neville com desagrado- Que diabos está
fazendo aqui?
O escocês se sentou frente a Neville e ficou olhando o mordomo, como se esperasse
que fosse lhe servir, agora que estava ali. Mas Neville disse:
- Não acreditaria que ia lhe deixar toda a responsabilidade de assegurar que as bodas
se celebrem em um prazo prudente, não?
- Duncan não mencionou que você fosse vir - assinalou Neville.
Ao ouvir aquilo, Archie se pôs a rir.
- Talvez seja porque não sabia. O rapaz não toma as coisas com calma, já sabe.
Quando se propõe algo, vai por isso. Não é uma má qualidade, mas um velho como eu
já não pode lhe seguir. Teria se impacientado se eu lhe tivesse atrasado em sua viagem
até aqui, por isso decidi partir depois, a um ritmo mais lento, sem lhe dizer nada.
Depois de tudo, a impaciência o zanga e você não teria querido que ele chegasse aqui
zangado, mais do que já estava.
O tom com que Archibald havia dito as últimas palavras demonstrava uma óbvia
presunção. Neville percebeu e teve que conter-se para não chiar os dentes.
- Sim, o certo é que veio muito a desgostoso. Pergunto-me por que.
Archibald bufou.
- Não me culpe disso. Não fui eu quem decidiu que devia crescer em um único lar
para ter estabilidade. Foram você e a mãe do menino. Uma decisão acertada, não
acredita, com a que eu estive de acordo. Mas também podia ter vindo visitá-lo, para que
lhe conhecesse antes de ficar mais velho.
- Depois da primeira viagem que fiz até ali com esse propósito quase acabasse com
minha vida?
- Oh, sim. Os ingleses são uns frouxos que se enrugam quando faz um pouco de frio
- disse Archie aborrecido, recordando a tentativa de Neville de aventurar-se nas Terras
Altas de Escócia. - Mas, se por acaso ele não tenha dito, o que tanto lhe incomoda não
é o fato de não lhe haver conhecido, mas sim o está tirando de seu lar para que viva
entre desconhecidos.
- Não demoraremos muito em deixar de sê-lo.
- E que ninguém lhe tivesse advertido de que você lhe obrigaria a viver aqui.
Neville se ruborizou ligeiramente, incapaz de rebater aquela acusação, e disse em sua
defesa:
- Elizabeth deveria ter dito.
- Sim, e sem dúvida o teria feito, se tivesse vivido o suficiente, a pobrezinha.
- Você poderia haver o contado muito antes e não agora - acrescentou Neville- Por
que não o fez?
Archie arqueou uma sobrancelha.
- Eu esperava que você morresse antes que ele alcançasse a maior idade, assim não
teria que lhe contar nada.
Esta vez Neville se ruborizou até as orelhas, mas de ira, não de confusão.
- Sinto lhe decepcionar, mas mesmo assim teria sido o próximo marquês,
independentemente de quando eu morresse.
- Não tem nenhum outro parente, nem sequer algum primo muito longínquo que
tenha esquecido?
- Eu fui filho único - disse Neville com frieza- Meu pai foi filho único. Meu avô
tinha duas irmãs, mas ambas morreram quando eram meninas. As gerações anteriores
tiveram descendência, mas não ficaram sobreviventes. Duncan é meu único herdeiro e
ainda não compreendo sua insistência em que não possa ser também o seu.
- Então, não lhe importaria que vivesse todo o ano na Escócia? - disse Archie
simulando surpresa- Oh, deveria ter me dito isso...
- Naturalmente, não poderia ficar ali de forma permanente - interrompeu-o Neville
com impaciência- Aqui teria obrigações que...
- Justo o que eu pensava - interrompeu-o Archie a sua vez- Mas você sabe que,
durante a maior parte do ano, não é prudente ficar muito nas Terras Altas, inclusive
para os que habitam ali. E, não obstante, permitiria que o rapaz o fizesse? Ou está
sugerindo que suas obrigações aqui são mais importantes que na Escócia? Ou talvez
esteja sugerindo que só passe em casa, o único lar que ele conhece, umas quantas
semanas ao ano, durante nosso curto verão?
- Não, o que acredito é que você não tem suficiente confiança nele para lhe permitir
que administre sozinho um império. Mas ele leva o sangue dos Thackeray nas veias.
Diferente de você, eu tenho plena confiança nele.
- Esse moço pode fazer o que propor, seja o que seja - disse Archie quase a gritos-
Só que eu não quero ver como se mata tentando abranger tudo, e você está disposto a
fazê-lo.
- Nesse caso, discordamos sobre o que é capaz de fazer, ou melhor, sobre o grau em
que você o permitirá. Isto já começa a parecer uma dessas ridículas cartas que temos
escrito. E não me surpreenderia se você discordar e termina por contradizer-se, só para
me levar a dizer ao contrário.
Archie pôs-se a rir.
- Nas Terras Altas não criam imbecis.
- Me permita discordar: os imbecis não se criam, nascem. E podem nascer em
qualquer lugar. Que você esteja aqui sentado discutindo comigo em minha própria casa
dá fé a isso.
- Assim agora você está me chamando de imbecil. - Archie riu divertido- A mim,
pelo contrário, parece-me que o está dizendo a si mesmo.
Ao qual Neville replicou com brutalidade:
- Fora daqui, MacTavish.
- Vou ficar até que o rapaz se case. Assim, quanto antes nos asseguremos de que o
faça, depois você se desfará de mim. Quando são as bodas, por certo?
Quando Ophelia chegou, Sabrina estava fora, desfrutando de seu passeio diário. Por
esse motivo, sua amiga já estava desfazendo a bagagem quando ela retornou e se
inteirou de que tinha uma hóspede inesperada. Além disso vinha sozinha, sem seus
pais.
Fazia uma semana que os Reid tinham retornado a Londres. Hilary ainda não tinha
notícias de lady Mary e, por conseguinte, ainda não sabia o que tinha acontecido em
Summers Glade o dia em que tinham expulsado a todos.
Entretanto, sim sabiam era impossível manter-se à margem porque toda a vizinhança
falava disso aqueles dias que, apesar de tudo, o marquês do Birmingdale tinha decidido
organizar uma festa em grande estilo.
E os boatos, conforme haviam dito os serventes, cuja informação estava acostumada
ser muito mais precisa que as fofocas da alta sociedade, que o propósito do marquês
era buscar uma nova esposa a seu neto.
Aquilo tinha sido uma surpresa, ao menos para a Sabrina. Ainda não acabava de
acreditar que, por alguma razão, o jovem escocês tivesse rejeitado a Ophelia depois de
conhecê-la, que era o que estava na boca de todos. Tudo tinha ido como Ophelia
esperava, mas mesmo assim, Sabrina tinha estado convencida de que quando os dois
jovens se conhecessem ambos seguiriam adiante com o compromisso. Em troca,
parecia que Duncan MacTavish estava agora procurando outra candidata e, com a
ampla seleção de senhoritas sem compromisso foram convidadas a Summers Glade,
certamente não demoraria em encontrar uma.
Sabrina e suas tias, naturalmente, não tinham sido convidadas a grande festa, sem
dúvida porque o velho rumor sobre sua família tinha ressurgido e chegado inclusive
para ouvidos do marquês, se é que não o recordava de tempos passados. As pessoas
evitavam os rumores a todo custo quando pensava no matrimônio; não se casava um
com um rumor.
Desde o dia anterior, Summers Glade tinha começado a se encher com a crème de
la crème5 inglesa. Já tinham chegado mais de centenas de convidados, incluindo alguns
dos que tinham sido expulsos na semana anterior. No fim das contas, em todas as
partes se dizia que ia ser a festa do ano e ninguém queria perder.
Isso se devia em parte a que muitos aristocratas londrinos tinham tanta curiosidade
como os vizinhos de lorde Neville por conhecer aquele solitário indivíduo. Outros
opinavam que não lhe podia dizer não a um marquês, fosse qual fosse a razão. Uma
condessa havia inclusive havia cancelado seu próprio baile para poder ir a Yorkshire.
Esse mero feito tinha bastado para que os convites fossem muito cobiçados,
assim que se correu o boato.
Hilary e Alice tiveram uma decepção quando souberam que Sabrina não estava
convidada e inclusive brigaram por isso. Não porque pensassem que o futuro marquês
fosse fixar-se nela, mas sim porque todos outros jovens sem compromisso
compareceriam sem dúvida a uma festa daquelas dimensões. Sabrina também se
5
Nata da alta sociedade.
desiludiu, mas não por essa razão: lamentava perder a ocasião de voltar a ver Duncan
MacTavish, depois do resultado de seu primeiro encontro.
Mas ali estava Ophelia, outra vez em Yorkshire, e o mais provável é que ela
tampouco tivesse sido convidada a Summers Glade.
Quando Sabrina se recuperou de sua surpresa, não pôde evitar perguntar-se por que
tinha vindo, e isso foi o que tentou averiguar, embora sem ir diretamente ao ponto,
uma vez que teve quer saudar a Ophelia no quarto aonde ia se alojar.
- Pensava que se alegraria de voltar para Londres, que é onde está toda a diversão -
disse Sabrina.
Ophelia alfinetou:
- Quando toda Londres está precisamente aqui?
Sabrina arqueou uma sobrancelha ao notar o tom de sua voz. Ophelia podia estar ali,
mas pelo visto, na realidade não o desejava. Então, por que diabos tinha vindo? A
menos que...
- Então, convidaram a Summers Glade? Ficaram sem aposentos ?
- Não seja obtusa - replicou Ophelia- Naturalmente que não o têm feito. Vim para
me esconder, se por acaso lhe interessa saber, e ver o que posso fazer para retificar esta
horrível situação.
Sabrina tinha dificuldades para lhe seguir seu raciocínio.
- Esconder-se de quem? De seus pais? Não sabem que veio?
- Juro-lhe isso, Sabrina, sua estupidez é irritante - disse Ophelia com crueldade- Os
meus pais não se importam aonde vou. Estão chateadíssimo comigo neste momento.
Meu pai inclusive me deu um tapa. Pode-lhe acreditar isso deu-me um tapa! Jamais o
perdoarei.
- Então, está se escondendo deles?
Ophelia sentou na cama suspirando sonoramente, dando a entender que já se fartou
de dar explicações a pessoas que não tinham suficiente luz para entendê-las. Sabrina
não se ofendeu. Já tinha presenciado muitas cenas de sua amiga para não impressionar-
se, embora se atrevesse a dizer que desta vez Ophelia não estava fingindo. Parecia
incomodada de verdade.
Sabrina preferiu não fazer mais comentários. O silêncio sortia um efeito
surpreendente em Ophelia.
A maioria das vezes incitava-a a ir ao ponto sem necessidade de seguir interrogando-
a quando, de outra forma, continuaria dando mais e mais rodeios até ter a seu
interlocutor a ponto de expirar de curiosidade, ou de exasperação.
Desta vez não foi diferente.
Ao cabo de uns instantes, Ophelia murmurou algo para si mesma e se incorporou na
cama, olhando a Sabrina com fúria, como se tudo fosse culpa dela - fora o que fosse-
embora em seguida esclareceu do que se tratava.
- Estou perdida - disse. Logo, elevando o tom até convertê-lo em um gemido,
acrescentou- Que lástima! Lástima! Imagina? Não, é obvio que não, porque,
simplesmente, é ultrajante.
Sabrina, com prudência, disse justo o que sua amiga esperava ouvir:
- Não, não imagino.
Ophelia assentiu.
- Pois assim é. Até minhas amigas íntimas estiveram compadecendo-se de mim antes
de vir a Summers Glade, convite oficial em mão.
Com cautela, Sabrina perguntou:
- Mas por quê?
Ophelia voltou a ficar com raiva, levantando-se da cama e dando várias voltas no
quarto antes de responder:
- Esse bruto escocês, esse é o porquê! Supunha-se que esse estúpido estaria de
acordo em que não nos convinha nos casar. Supunha-se que ia ser uma decisão mútua
pela que nenhum dos dois sairia prejudicado. Em troca, zangou-se por uma
insignificante crítica minha e disse a todos que não me aceitava. Agora todo mundo,
mães inclusive, sabem que me deixou plantada no altar.
- Mas você não foi ao altar - observou Sabrina com muita calma.
Aquilo lhe valeu outro olhar que devia dizer com certeza: "Idiota, que diferença
faz?", mas em voz alta, o que Ophelia disse foi:
- É que ainda não o entende? Tinham que me felicitar por haver me liberado de um
matrimônio infernal. Em troca, estou na boca de todos. Como foi ele quem rompeu o
compromisso, agora todos pensam que devo ter algo errado. Ao fim e ao cabo, por que
ia me rejeitar se não?
Neste ponto, Sabrina suspirou.
- Então, acredito que não o entendo. Teria jurado que você esperava que ele
rompesse o compromisso.
- Ele não! Supunha-se que deviam fazê-lo meus pais, posto que tinham sido eles
quem o tinha combinado. Ele tinha que cair aos meus pés até o final, dissesse-lhe o que
dissesse. Mas é muito bruto para saber que deveria ter atuado de uma forma mais
cavalheiresca. E agora não me atrevo a aparecer em público até que tudo isto se
esqueça, ou ele retifique.
Bom, aquilo explicava enfim por que Ophelia queria esconder-se. Entretanto,
Sabrina não podia imaginar como ia Duncan retificar em favor de Ophelia, a menos
que se tratasse de oferecer um motivo para romper o compromisso que a deixasse em
melhor posição.
- O que lhe disse que o impulsionou a rejeitá-la?
- Já lhe disse isso. Não foi mais que um comentário sem importância que ele tomou
muito a sério. Admito que foi pouco considerado da minha parte, mas o certo é que eu
estava muito confusa quando apareceu com aquele traje tão tosco, o qual serve para me
confirmar que ele era tal e como eu temia. Se tivesse ido vestido de um modo normal,
não teria me surpreendido tanto e esse primeiro encontro teria sido muito diferente.
Sabrina teve que mostrar-se de acordo. Por acaso ela não havia acreditado que o
casal aceitaria de bom grado seu compromisso assim que se vissem? Mas, a estas
alturas, já conhecia a Ophelia o bastante para saber que estava fazendo muito
insistência em sua inocência, e se perguntava por que.
- Então, irá ficar aqui conosco até que as pessoas deixem de murmurar?
- Deus santo, não. Isso poderia durar uma eternidade. Não, isto nós vamos arrumar.
Sabrina piscou.
- Nós?
- Sim. - Ophelia assentiu- É a menor coisa que pode fazer por mim, dado que eu a
acolhi em Londres e a ajudei ser introduzida em meu círculo. Agora, você tem que me
ajudar com isto.
- Bom, certamente... Se puder.
- Sei que pode - assegurou-lhe Ophelia- E não terá que fazer muito. Basta com que
organize um encontro.
- Um encontro com quem?
- Com meu ex-prometido, naturalmente. Vamos conseguir que volte a pedir que me
case com ele. Então, parecerá que a causa da ruptura não foi mais que uma absurda rixa
entre dois apaixonados, o qual será muito aceitável e porá fim aos falatórios.
Capítulo 16
Entretanto, desiludiu-lhe que a moça não compareceria como ele tinha acreditado
pelo qual não teve pressa em unir-se aos convidados em um dos muitos aposentos
pelas que se repartiam e, para ouvir que batiam na porta, aproveitou a oportunidade
para fazer tempo indo abrir pessoalmente. O mordomo, ausente naquele momento,
estava sem dúvida buscando-o para lhe entregar outra nota. Pensá-lo quase lhe divertiu.
Entretanto, desejou ter se misturado à festa quando o jovem que aguardava outro
lado da porta o olhou com grosseria de cima abaixo e logo exclamou:
- Bem, bem. Você deve ser o bruto... Com esse cabelo, sim, tem que sê-lo. Não
esperava conhecê-lo tão logo. Puseram-no a abrir portas, não?
Duncan, enquanto tentava decifrar o marcado acento inglês de seu interlocutor, sem
muito êxito, parou com a palavra que já tinha ouvido muitas vezes desde sua chegada a
Inglaterra. E tal e como se sentia então, ainda perturbado por sua conversa com o
Neville, lhe teria resultado fácil chegar aos tapas.
- Está-me chamando bruto, não?
- Eu? Jamais faria nada semelhante. Brutalmente bonito, talvez. Mas, não, não, isso
são rumores, não sabe? Embora, talvez não saiba. Faz semanas que você está na boca
de todos.
Duncan decidiu que o que estava ouvindo poderia ter sido uma língua estrangeira
desconhecida, embora captou a frase "na boca de todos" e quis esclarecê-la.
- A que se refere com "na boca de todos"?
- É você o tema de todas as conversas - esclareceu aquele indivíduo-. Eu sei de boa
fonte (embora, pode dizer-se isso quando se trata de rumores?) que sua prometida,
bom, ex-prometida, foi a primeira em difundir os rumores.
Aquela não era a primeira vez que Duncan ouvia dizer que corriam rumores sobre
ele. Não havia dito algo à moça da colina sobre ter "ouvido" que era um bruto? Com
ela, não obstante, tinha sido incapaz de ofender-se. Mas com aquele indivíduo, era
quase impossível não fazê-lo.
De mesma estatura, embora não tão largo de costas, aquele homem tinha uma
constituição atlética. Com a capa de viagem deixada cair sobre os ombros e vestido de
forma impecável, apesar da viagem, o qual estava acostumado a enrugar até o melhor
das malhas, tinha uma figura imponente. Loiro, Duncan estava começando a pensar
que todos na Inglaterra o eram, com os olhos azuis e de uns vinte e cinco anos de
idade, tinha um indiscutível ar de superioridade.
Duncan não teria estranhado se pertencesse à realeza. Seguia sem gostar das
maneiras daquele indivíduo e em um tom o mais sereno possível, embora quem o
conhecia o qualificaria de ameaçador, perguntou:
- O que se diz exatamente de mim, se é que você não se importa de dizer.
- Sandices que qualquer com um pouco de inteligência desprezaria, mas você já sabe
como ridículas podem ser algumas mulheres. Note minha irmã, por exemplo.
O indivíduo assinalou com a cabeça uma moça que tinha o cabelo tão loiro como
ele. Estava dando instruções a quatro serventes para que descarregassem não menos de
seis grandes baús da carruagem parada perto dali. Era muito bonita, não obstante.
Assim que Duncan reparou em sua beleza, o indivíduo acrescentou:
- Tive que trazê-la a força. A tola não está segura de que você não vai aparecer no
jantar com um porrete e vestido com peles de ovelha. Mandy toma os falatórios ao pé
da letra, quando deveriam interpretar-se como o que são: meras invenções destinadas a
romper o inevitável tédio de uma classe que não ganha o pão com o suor de sua testa.
- Por que veio, se não queria fazê-lo?
- E perder oportunidade de conhecer solitário Neville Thackeray? Nem pensar. Faz
anos que se especula sobre ele e quase todas as pessoas que conheço nem sequer lhe
viram. Além disso, minha irmã está solteira e sem compromisso, por isso meus pais
insistiram em que não deixe passar a oportunidade de brilhar em uma festa de grande
estilo como promete ser esta. Não esperam que você especificadamente se fixe nela,
estimado jovem. Só querem quer circule enquanto não encontra um marido, e aqui há
muito material, não crê?
Agora Duncan estava começando a entender melhor suas palavras e a desejar não
fazê-lo. Aquele "estimado jovem" tinha-lhe parecido particularmente condescendente,
o suficiente para comentar:
- Se por acaso não se deu conta, eu não sou de todo um "jovem" e, certamente, nem
"estimado" para você, porque acabamos de nós conhecermos. Briguei com muitos
homens por menos que isso.
- Ah, sim?
- O indivíduo disse aquilo em tom fleumático, mas logo começou a rir e, ao cabo de
pouco, estava fazendo-o as gargalhadas. Quando se acalmou, o inglês prosseguiu:
- Um conselho, meu amigo. Aprenda a distinguir entre um insulto deliberado e o que
não é se ao menos essa é sua intenção, uma forma afetada de expressar-se.
Economizará muita dor de cabeça, asseguro, e também salvará alguns narizes
inocentes.
Sentir que fazia o ridículo nunca tinha sido do agrado do Duncan, que estava
acostumado a ir às nuvens, e aquela vez não foi diferente.
- Seu nariz ainda corre perigo, senhor. Quem é você?
Sorrindo, e claramente negando-se a tomar a sério a ameaça do Duncan, o inglês
respondeu:
- Tenho uns alguns títulos, mas o certo é que me parece deplorável recitá-los.
Chame-me de Rafe, "velho amigo".
Aquela última brincadeira o levou a fechar a porta no nariz de um dos lordes jovens
mais cobiçados do reino, herdeiro de um ducado, rico em demasia, o melhor partido de
Londres e o sonho feito realidade de toda anfitriã. E, mesmo assim, tinha fechado a
porta no nariz.
Duncan tampouco se teria deixado impressionar se soubesse tudo aquilo. Esperava
que seu primeiro encontro fosse o último. Não obstante, iriam se converter em grandes
amigos. Embora ainda não soubessem.
Capítulo 17
- Puxa senhorita Sabrina! - exclamou surpreso Richard Jacobs- Nunca tinha ido tão
longe em nenhum de seus passeios. Ocorreu algo?
Sabrina sorriu ao mordomo de lorde Neville para tranquilizá-lo. Conhecia-o bem, e
também a sua família. De fato, conhecia virtualmente a todo mundo naquela pequena
zona de Yorkshire, incluindo os serventes, e todo mundo a conhecia. Seus passeios a
levavam a todas as partes, e dado seu afável temperamento, estava acostumada a
conversar com todos que cruzava. Além disso, tinha crescido ali e era difícil não
conhecer todo mundo em uma comunidade tão pequena; com a condição do próprio
lorde Neville.
Entretanto, estava começando a sentir-se incômoda, posto que Jacobs soubesse que
não estava ali porque a houvessem convidado. Ele se orgulhava de saber tudo o que
guardasse relação com lorde Neville e, dado que era ele quem recebia aos convidados,
estaria à ciente de quem devia vir.
Para sentir-se um pouco mais cômoda, Sabrina não foi diretamente ao ponto. Em
lugar disso, perguntou:
- Como está sua encantadora esposa? Melhor, espero.
- Oh, muito melhor, senhorita. E, por favor, volte a agradecer a sua tia Alice pela
receita da infusão. Foi ideal para lhe aliviar a tosse.
Sabrina poderia ter seguido conversando, mas notava que suas bochechas ardiam e,
antes que o rubor fosse muito óbvio, ela reuniu coragem:
- Farei não se preocupe. E, não. Não ocorreu nada. Só me pediram que desse uma
mensagem pessoal lorde Duncan quando saísse a passeio.
Sabrina não podia imaginar-se por que o mordomo tinha revirado os olhos até que
disse:
- Levo todo o dia fazendo o mesmo, desde ontem pela tarde. Lorde Duncan está se
zangando bastante comigo, e não o culpo. - E logo, aproximando-se dela, acrescentou
em um sussurro- São seus avôs, os dois. Parece que queiram levá-lo em direções
opostas, sem lhe dar um momento de pausa.
- Seu avô escocês também está aqui?
- Oh, puxa, sim. E, além disso, é um cavalheiro... Que não passa despercebido. Mas
quando estão juntos no mesmo aposento, lorde Neville e lorde Archibald, bom, não
caem nada bem, se sabe ao que me refiro.
Que pena. Caberia esperar que os avôs combinassem, posto que ambos queriam o
melhor para seu neto. Sabrina se limitou a assentir e, por muito que tivesse preferido o
contrário, voltou a abordar o tema de sua visita.
- Se lorde Duncan está ocupado, não o incomode. Sempre posso voltar em outro
momento, posto que não acredito que minha mensagem seja um assunto urgente. Mas
se dispuser de um momento, e não vou demorar mais que isso, queria me liberar desta
obrigação.
- Certamente, senhorita Sabrina. Tentarei localizá-lo agora mesmo. E por favor,
entre...
- Não! -Sabrina tossiu para dissimular o sobressalto com o que tinha respondido.
Quer dizer, sei que tem a casa cheia de convidados e, bom, hoje faz tão bom dia que
preferiria esperar aqui.
Fazia tudo menos um bom dia. Havia muitas nuvens e parecia que podia chover em
qualquer momento. Mas todo mundo que conhecesse a Sabrina sabia que adorava estar
ao ar livre que nunca perdia seu passeio diário, fizesse o tempo que fizesse. Chovesse,
nevasse ou brilhasse um sol forte, ela sempre saía. Por isso mesmo, o que talvez
parecesse um clima frio e horrível ela podia encontrá-lo refrescante e inclusive bonito.
O mordomo assentiu e, para não ser incorreto, deixou a porta aberta ao adentrar na
casa. Sabrina, temerosa de que alguém a visse passar, afastou-se da porta. Esperava que
Duncan estivesse ocupado; mas, por outra parte, queria terminar com aquilo de uma
vez por todas. Ter sentimentos contraditórios não era bom para o estômago e o seu
estava protestando violentamente com uma persistente sensação de náusea.
Passaram cinco minutos, e logo outros cinco. Sabrina estava quase segura de que
vomitaria entre os arbustos se tivesse que suportar aquela vergonha durante um minuto
mais e decidiu que seria melhor, ao menos para seu estômago, partir sem mais. Então
ouviu passos a suas costas.
Virou sobre seus calcanhares justo quando Duncan começava a dizer:
- O mordomo disse que você... -deteve-se surpreso e o semblante alegrou ao
reconhecê-la. Logo acrescentou- Você! Então, vive nos arredores, não é assim?
- Bom, sim. Nossa casa está junto ao caminho que conduz à Oxbow, uns vinte
minutos a pé daqui.
- Nossa? Você não é casada, verdade?
Sabrina piscou. Logo sorriu travessa.
- Não, que eu saiba. Vivo com minhas duas tias solteiras.
Ele franziu o cenho.
- Então, você é nova nestas terras? Acaso não conhece meu avô para não convidá-la
à festa?
A conversa estava tomando uma aparência que a incomodava e Sabrina não queria
entrar em detalhes sobre a razão de que lorde Neville não tivesse enviado convites.
Duncan estava mostrando muita curiosidade para ela quando deveria estar lhe
perguntando pela mensagem.
Assim Sabrina se limitou a dizer:
- Não conheço lorde Neville e, portanto, ele não me conhece.
- Muito bem então. -Duncan lhe sorriu- Como eu a conheço, me permita convidá-la
com atraso...
Sabrina elevou a mão para detê-lo. Tinha pensado realmente que poderia evitar o
tema?
- Temo-me que talvez lhe dei uma falsa impressão. Seu avô não me conhece, mas
isso não significa que não tenha ouvido falar de mim, e acredito que posso dizer sem
temor de me equivocar que não me consideraria uma convidada apropriada para o
propósito desta festa.
Sabrina tinha as bochechas em vermelho vivo quando terminou de dizer todo aquilo.
Mas ele assentiu em sinal de compreensão e logo a, surpreendeu ao dizer:
- Então virá de todas as formas, porque eu o peço, e ao diabo o que o velho tenha
que dizer de você.
- Não, sério. Não poderia. Deve permitir que lhe dê minha mensagem e vá.
Ele franziu um pouco os lábios, como se quisesse protestar, mas logo suspirou:
- Muito bem, que mensagem é essa?
Agora que Sabrina tinha que dizer não conseguia articular palavra. Seguro que, a
estas alturas, suas bochechas, que seguiam lhe ardendo, deviam ser já de cor escarlate.
Afastou o olhar dele, desesperada, e consciente de que ele aguardava...
Vendo um canto dos estábulos, que aparecia por detrás de um lado da casa,
abandonou o intento.
- É estranho, ver carruagens em lugar de cavalos enchendo o pátio do estábulo,
embora haja menos dos que imaginava com uma festa desta importância. Levaram
alguns a pastar?
- Pastar...? - começou a dizer ele, mas a imagem que lhe inspiraram as palavras da
Sabrina, a de cinquenta carruagens mais ou menos pastando nos campos, fez o rir antes
de terminar a frase.
Sabrina não encontrou nada divertido no que acabava de dizer e aproveitou a
distração do Duncan para soltar a toda velocidade:
- Lady Ophelia quereria ter a oportunidade de falar com você em particular. Sugeriu
que se encontrassem na estalagem do Oxbow para que ela possa desculpar-se.
Tinha conseguido surpreendê-lo com a guarda baixa. De fato, agora a olhava como
se fosse tola. Mas em seguida torceu o gesto e alfinetou:
- Para voltar a me insultar, muito bom.
- Não, de verdade. Assegurou-me que lamenta tudo o que disse, fosse o que fosse.
Irá ao encontro?
- Não.
Para sua surpresa, Sabrina sentiu que sua confusão diminuía ao ouvir aquela
categórica resposta. Mas para saldar com honestidade sua dívida tinha que fazer outro
esforço em nome da Ophelia.
Assim disse:
- É um não do tipo "pensarei nisso" ou um não do tipo "necessito que siga insistindo"?
- Foi um não terminante do tipo "não há nada a fazer".
-Oh, Deus, e eu que pensava que esse tipo tinha ficado antiquado.
- Que tipo? - disse ele, em um tom que começava a soar exasperante-. Do que está
você falando agora?
- De seu não do tipo "não há nada a fazer". Pensava que nestes tempos todo mundo
deixava certa margem para mudar de opinião. Economiza situações incômodas, sabe?
Recorrer às evasivas, só se por acaso mais adiante decide mudar de opinião.
-Sim, mas economiza inclusive mais tempo se souber o que quer dizer.
Sabrina decidiu não seguir por aquele caminho e, em lugar disso, perguntou:
- Realmente custaria tanto a você ouvir o que ela tem a dizer?
- Não me custaria, mas seria uma perda de tempo.
Sabrina havia tornado a ruborizar-se, quase com violência, consciente de que ela
também estava lhe fazendo perder o tempo.
- Sinto muito. Deveria ter me dado conta de que está você agora muito ocupado, que
este não é o melhor momento para importuná-lo. Vou embora. Bom dia, Duncan
MacTavish. Foi um verdadeiro prazer voltar a vê-lo.
- Espere.
Sabrina já tinha se afastado uns quinze passos, tentando fugir de sua própria
confusão, logo que ouviu o Duncan. Deu a volta, sem sequer ter certeza de ouvir se ele
a chamava ou se tinha sido mais que um truque de sua imaginação. Mas, não, ele se
dirigia a ela e, quando a alcançou, parecia um homem a ponto de explodir.
- A verei com uma condição - disse.
Surpreendida, ela respondeu:
- Certamente. E qual é essa condição?
- Que você faça a bagagem e retorne para cá antes que se sirva o jantar esta noite.
Sabrina abriu os olhos de forma desmesurada.
- Está-me convidando para jantar?
- Estou-a convidando a esta maldita festa, enquanto dure, por muito que isso seja.
Ela sorriu. Não pôde evitá-lo. Parecia muito ofendido por ter tido que fazer
concessões para obter o que queria.
- Eu, bom, não preciso fazer a bagagem. Vivo aqui perto e só virar a esquina.
- Virá então?
- Minhas tias teriam que vir comigo. Não posso assistir a este tipo de eventos sem
que elas me acompanhem.
- Traga quem quiser menos ela.
Sabrina assentiu.
- Mas você se encontrará com a Ophelia? - Quando ele assentiu com brutalidade,
acrescentou- Quando?
- Dentro de uma hora. Mas se não for pontual, não a esperarei. E logo você terá que
me explicar por que me trouxe esta mensagem dela.
Duncan deu a volta e voltou a entrar na casa. Sabrina, assombrada com o resultado
de sua visita, apressou-se em retornar a, casa para dar a Ophelia a boa notícia. Tinha
saldado sua dívida com ela. Estava francamente aliviada de que tudo tivesse terminado,
de que já não tivesse que fazer nunca mais nada tão aborrecível como aquilo.
Já tinha subido até a metade da colina onde tinha conhecido ao Duncan quando o
mordomo de lorde Neville, correndo atrás dela, conseguiu que ouvisse seus gritos.
Quando a alcançou estava quase sem fôlego e entre ofego e ofego conseguiu lhe
dizer o que lhe tinham pedido.
- A carruagem de lorde Neville irá lhe buscar esta tarde.
- Não é necessário - disse ela- Você sabe que temos nossa própria carruagem.
- Sim, senhorita. Mas imagino que lorde Duncan deseja assegurar-se de que você virá
.
Sabrina ruborizou. A imaginação de Jacobs, sem dúvida, mas era muito agradável
ouvi-la.
Capítulo 18
Duncan não podia acreditar que, pela segunda vez, não havia perguntado à moça
como se chamava. E não tinha reparado nisso até que Neville perguntou quem era. Foi
então que sobressaltou. Tinha ido em sua busca pela terceira vez, convencido de que
teriam uma discussão quando lhe dissesse que tinha convidado alguém que não era
nobre. Aquela foi à conclusão que Duncan conseguiu quando a moça lhe explicou por
que Neville a tinha excluído de sua lista de convidados. Isso porque ela e suas tias
viviam em uma casinha.
A posição social da moça não mudava nada para ele. Seguia gostando dela, em
particular seu senso de humor, que com tanta facilidade dispersava qualquer
preocupação que pudesse incomodar. E seu propósito não era casar com ela, pelo qual,
que objeções podia pôr Neville? Mas Duncan estava enganando.
Sabia que tipo de pessoas tinham sido convidadas por Neville, todas elas eram
nobres e poderiam se ofender caso alguém pertencesse à outra classe e se achasse na
mesma festa que elas, não como servente, mas sim como um convidado. Também
sabia que aquela ia ser a objeção de Neville e por isso estava convencido que teriam
uma discussão.
Mas Duncan não iria brigar com ele quando nem sequer estava com disposição
de dizer ao avô quem era a moça. Supôs que poderia haver mencionado que não era
nobre, mas decidiu guardar segredo e que o velho o descobrisse por sua conta. Depois
de tudo, era uma excelente oportunidade para ver como reagiria em uma situação
assim. Duncan averiguaria se era um aristocrata da velha escola, que em sua maioria
eram de um esnobismo sem limite, ou se pertencia à escola mais ilustrada e opinava que
um título não representava a valor de um homem.
Embora Duncan deveria ter optado pela discussão, que sem dúvida lhe teria
servido para desafogar parte da tensão que o atendia. E a tensão não fez mais que
agravar enquanto se dirigia à estalagem de Oxbow. Só tinha esquecido dela durante um
instante, ao tentar averiguar onde poderia estar "a casinha junto ao caminho" de que
tinha falado a moça. Em todo o trajeto, não tinha visto nenhuma só moradia pequena,
só uma casa senhorial e umas quantas casas de lavoura.
Talvez tivesse querido dizer no caminho ao Oxbow vindo da outra direção, ou
nos subúrbios daquela pequena cidade –do começo ao fim, havia muitas casinhas nas
ruelas que desembocavam na rua principal- Mas, como distração, não durou muito,
pois trajeto a cavalo era muito curto.
Duncan ainda não podia acreditar que iria falar com Ophelia Reid, quando
esperava não voltar a vê-la em sua vida. Do que serviria, salvo para aliviar a má
consciência que talvez ela tivesse? Qualquer desculpa significaria bem pouco para ele.
Tinha demonstrado como era na realidade. Não havia nada que pudesse lhe dizer para
desculpar a gravidade de seus insultos. E, além disso, Duncan sabia, que podia confiar
nesse tal Rafe, que ela tinha sido a autora daqueles ridículos rumores sobre sua
“brutalidade”.
Ophelia ainda não estava na estalagem. Duncan admitiu que tivesse chegado com
cinco minutos de antecipação, embora tenha suposto que alguém impaciente por fazer
as pazes estaria ali antes de hora, para assegurar de que ele não partiria. Agora teria
que aguardar e, em sua opinião, ela não merecia que a esperassem nem cinco minutos.
Indicou ao hospedeiro que não queria tomar nada e se sentou junto à grande
lareira da estalagem. Teria preferido um gole de uísque, mas queria ter a cabeça limpa
ao tratar com aquela moça.
Ophelia entrou pela parte de atrás. Então, tinha chegado depois de tudo e só
pretendia realizar uma entrada triunfal? O certo é que foi. Com aquele gorro branco de
peles sobre sua cabeleira loira, o longo casaco de veludo azul pálido e uma capa orlada
de branco estavam deslumbrantes, quase cegava, quando o viu e sorriu antes de dirigir-
se a ele. Fez devagar, dando tempo mais que suficiente para que ficasse hipnotizado por
sua beleza. A luz, combinada com as peles brancas, a fazia resplandecer com uma
etérea formosura.
Duncan não era o único que não podia tirar os olhos. Os clientes reunidos ali a
olhavam com a boca aberta. Ele não estava tão deslumbrado, apesar de tudo, embora
tivesse que fazer um esforço para não esquecer que, apesar de sua formosura, aquela
moça era malvada. Olhando era impossível saber, mas assim que abria a boca era difícil
não prevenir.
Ophelia seguia sorrindo quando chegou até ele. Tinha vacilado uns instantes,
esticando um pouco ao reparar na saia escocesa do Duncan. Ele a tinha posto de
propósito. Tinha dois dedos na testa, Ophelia se daria conta de que a saia era sua forma
de lhe dizer, sem palavras, que aquele encontro não tinha nenhum sentido.
-Vejo que lhe deram minha mensagem - disse ela.
-Sim. E por que veio me dar isso essa jovem? -respondeu ele.
Não era sua intenção lhe perguntar aquilo. Tinha pensado abordar a questão mais
tarde com a moça de olhos violetas e lhe aliviou que não lhe desse uma resposta em
sentido estrito. Não ia distraí-la. Que dissesse o que quisesse assim ele poderia partir
antes. Devia o ter presente.
Ela encolheu os ombros.
-Por que não? A maior parte das vezes, as pessoas consideram um privilégio me
ajudar.
Duncan não disse nada, embora fosse difícil pensar em uma resposta quando
estava concentrando em não rir. Aquela simples afirmação dizia muito dela e o irônico
era que Ophelia nem sequer se dava conta do efeito que causava. Transbordava a mera
presunção, a mais pura arrogância, e alcançava níveis de vaidade e presunção que
Duncan não alcançou a pensar na palavra exata para descrever, se é que existia alguma.
Seu silêncio a desconcertou, colocando em apuro, por assim dizer, de expressar o
que tinha que falar. Duncan chegou inclusive a perguntar se em realidade tinha algo que
lhe dizer. Aparentemente, ela vinha lhe apresentar suas desculpas, mas saberia
desculpar-se alguém como Ophelia Reid? Não seria essa uma noção inconcebível para
alguém que pensava que alguma vez se equivocava?
Ao ver que ela seguia calada, durante um tempo que lhe pareceu excessivo,
Duncan encolheu os ombros e se afastou. Não pareceu uma grosseria, não perante ela
em qualquer caso. Por seus insultos, Duncan tinha colocado a Ophelia na categoria de
"quem não era digno de sua atenção", e estava sendo benevolente. Se fosse um homem, a
consideraria um inimigo sem mais.
Mas sua ação a impulsionou a falar.
-Espere! Aonde vai?
Parecia realmente confusa. Duncan demorou um momento em responder.
-Não vim aqui para ficar olhando-a com a boca aberta, como está fazendo o resto
da sala. Se tiver algo que me dizer, diga-o.
Ela se ruborizou.
-Queria lhe explicar por que não fui muito cordial em nosso primeiro encontro.
-Assim que chamam os ingleses? Não ser muito cordial? Terei que recordar da
próxima vez que insulte alguém de maneira deliberada.
-Não foi de propósito - tentou explicar ela- Eu estava muito confusa.
-Ah, sim? -respondeu com um cepticismo tão evidente que, até um menino o
teria notado- Devido a que? A que eu falasse com acento escocês? O que parecesse?
Suponho que não esperava nenhuma das duas coisas, não?
Ela suspirou.
-Oxalá queira me entender. Estava muito segura de que você e eu não
pareceríamos um com o outro.
-E que eu seria um bruto?
-Bom sim, isso era o que eu temia. Mas agora me dou conta de quão estúpida fui.
Você não é um bruto.
-Eu não estaria tão seguro disso - respondeu ele, exagerando o acento de
propósito.
-A questão é que me equivoquei em minhas hipóteses.
Duncan tinha a sensação de que aquilo era o mais parecido a uma desculpa que
obteria dela. Para ela custava muito dizer “sinto muito" era um conceito muito alheio
para alguém como ela, que sem dúvida estava convencida de não fazer nada de mal.
-Muito bem, estava equivocada então. Queria me falar de alguma outra questão?
Sua impaciência por partir era tangível, mas, por alguma razão, ela não percebeu.
-Bom, de fato, pensei que poderíamos começar de novo. Já sabe. Esquecer do
nosso primeiro encontro, como se não tivesse acontecido nunca.
-Como se ainda estivéssemos prometidos?
Ophelia elevou os olhos e lhe dedicou um de seus radiantes sorrisos.
-Sim. Não é uma magnífica idéia?
Ele o havia dito em brincadeira. Ela falava a sério. Duncan não saía de seu
assombro. Pensava realmente Ophelia que ele poderia esquecer seus insultos? O que
lhe havia dito aquele dia não só pretendia ferir, e não para se divertir uma sala lotada de
pessoas. Se um homem houvesse dito aquelas coisas, Duncan teria brigado com ele e
teria se vingado. Mas, ao tratar de uma mulher, tinha tido que partir com o rabo entre
as pernas, algo que jamais esqueceria.
Embora aquela não era a única razão pela qual não se casaria com ela, e lhe deu
outra, respondendo:
-Acredito que me fartaria de ter que competir com minha esposa para ganhar sua
atenção.
-Como disse?
Duncan não se surpreendeu que ela não tivesse captado a idéia. As pessoas
egocêntricas são as últimas em admitir que são, mas quem está apaixonado por si
mesmo, como obviamente estava Ophelia, era definitivamente um caso perdido.
Ele tinha escutado. Nem sequer lhe tinha dado uma verdadeira desculpa. No que
ele respeitava, já que tinha concedido todo o tempo que merecia.
-Bom dia.
Ophelia o olhou consternada. Os homens não a deixavam a menos que ela
quisesse que o fizessem. O que tinha acontecido para que ele não estivesse prostrado
aos seus pés lhe mostrando sua gratidão por ter mudado de opinião?
O encontro não tinha sido como devia. Tinha-lhe dado outra oportunidade para
casar com ela. Então, por que não voltavam a ser prometidos? Estava começando a
suspeitar que Duncan era um verdadeiro bruto. Que outra desculpa podia ter para que
não tivesse entendido o que ela acabava de oferecer com aquele encontro?
Capítulo 19
Ophelia ainda não sabia que Sabrina tinha sido convidada à festa. Tinha subido a
preparar sem mais demora assim que lhe disse que Duncan tinha aceitado vê-la. Nem
sequer tinha perguntado pelos detalhes. Nem tampouco parecia surpreendida de que
ele tivesse aceitado. Sabrina suspeitou que podia havê-lo dado por feito, em tão alto
conceito que tinha, mas aquele era um mau pensamento que descartou imediatamente.
Entretanto, Sabrina se deu conta, quando já era muito tarde, do terrível engano
que tinha cometido ao aceitar o convite, qualquer convite, pois ela tinha uma hóspede
em casa. E, naturalmente, Ophelia não podia ficar sozinha. Ou Hilary ou Alice teriam
que acompanhá-la. E também ia trazer problemas, porque era seguro que as suas duas
tias gostariam de assistir à festa de Neville, agora que tinham sido convidadas.
Embora sem dúvida que estava se preocupando em vão. Ophelia retornaria com
convite próprio, talvez inclusive voltasse a estar prometida. O certo é que ao pensar
deixava abatida, mas havia muitas probabilidades de que fosse assim. Sabrina tinha
visto com seus próprios olhos como se comportavam os homens com Ophelia. Alguns
ficavam tão deslumbrados com sua beleza que perdiam a noção da realidade em sua
presença.
Seguiu adiando o momento de dar a notícia para suas tias de que tinham sido
convidadas, convencida de que todas poderiam assistir à festa. Ophelia retornou, dando
uma batida na porta ao entrar, e subiu correndo para seu quarto, fechando a porta com
brutalidade. Agora já não havia dúvida de que seu encontro não tinha sido como ela
tinha planejado assim Sabrina se viu obrigada a informar a suas tias sobre o que ela
sabia como um grande engano.
A reação foi típica delas. É obvio que tinham que ir, ao menos aquela noite. Era
uma magnífica oportunidade que não podiam desperdiçar, agora que Sabrina já tinha
aceitado só porque tinha uma hóspede inesperada. Se Ophelia não tivesse estado ali,
etc, etc. Mas Sabrina teria que explicar sobre lorde Duncan, com muita cautela, que não
poderia voltar para Summers Glade, ao menos enquanto durasse a festa, não até que
sua hóspede decidisse retornar a sua casa.
A Sabrina pareceu divertido que, mesmo que não dissesse abertamente, o óbvio
era que agora suas duas tias desejavam que Ophelia partisse o quanto antes.
-Eu ficarei com ela - ofereceu Alice, conseguindo dissimular em parte o suspiro
de tristeza por ter que perder a festa. E o que direi se me perguntarem de você? Mas há
alguma razão para que deva sabê-lo, para não notar sua ausência? Algo assim só
conseguiria ofendê-la.
A pergunta era dirigida a Hilary, que tomou um instante para pensar antes de
responder com simplicidade:
-Não vejo por que temos que ofender sem necessidade à moça. E só será por esta
noite. E terá de dizer que compreende que Sabrina se entusiasmou tanto que esqueceu
por um momento que Ophelia era nossa hóspede.
Em realidade, Sabrina tinha uma desculpa muito melhor que aquela, mas não
acreditava que Ophelia gostaria que soubesse o que tinha pedido que fizesse, assim não
tinha posto as suas tias a par das suas tentativas como alcoviteira. Não obstante, se via
obrigada a fazer, explicaria a Ophelia que tinha aceitado o convite dos Summers
Glade tinha sido a condição para que Duncan fosse encontrar com ela.
Fosse qual fosse o resultado daquele encontro, a sonora batida que tinha dado,
Ophelia não sugeria que tivesse ido como esperava, ela tinha tido sua oportunidade e
obrigado Sabrina a aceitar a assistir à festa. Aquilo não era muito adulador para a
Ophelia e por esse motivo Sabrina o manteria em segredo enquanto fosse possível. E,
como esperavam suas tias, podia dizer que Ophelia nem sequer notaria sua ausência e
passaria o resto da tarde em seu quarto, fazendo caretas. Bom, era uma possibilidade...
Sabrina e Hilary conseguiram partir antes que Ophelia desse sinal de vida, assim
não saberiam onde tinham ido até sua volta. Entretanto, assim que chegou a Summers
Glade, nenhuma das duas demorou para esquecer por completo de sua hóspede.
Era uma grande festa, bastante impressionante comparada inclusive às festas a que
tinham assistido em Londres. Era lógico, porque as cinqüenta jovens que Neville havia
convidado tinham que ir acompanhadas, de seus pais, um irmão ou dois, suas irmãs, ou
inclusive seus primos. Um convite em seguida implicava quatro convidados ou mais e,
certamente, parecia haver ali mais de duzentas pessoas.
Sabrina não conseguia imaginar onde tinha conseguido alojar todas as pessoas e
comentou a sua tia. Summers Glade era grande, mas certamente não tinha cinqüenta
quartos, e muito menos cem. Como em sua juventude Hilary tinha assistido ao menos
uma festa como aquela, sorriu e disse:
-Se alegre de que não pediram que alojassem várias pessoas, como têm feito com
nossos vizinhos.
Sabrina reconheceu a vários vizinhos sem filhas e se deu conta de que os haviam
convidado unicamente para lhes pedir que abrissem as portas de suas casas. Também a
estalagem do Oxbow devia estar transbordando, uma vez em sua história.
-Além disso- acrescentou Hilary- só os convidados mais importantes se alojam
em quartos, sozinhos. Lembro que em uma ocasião tive que dormir com outras seis
moças e nosso pai, que nos tinha acompanhado, não teve tanta sorte: alojaram com
outros nove cavalheiros. Mas, quando se celebra festas desta importância que duram
semanas, é certo que não tenha outra opção.
-Você veio.
Sabrina deu a volta e viu que Duncan se aproximou dela por trás. Tinha estado
sorrindo para sua tia e seguia com o sorriso nos lábios quando o saudou.
-Acreditava que não ia vir?
-Depois do resultado desse encontro que organizou, tinha minhas dúvidas.
-A que encontro se refere querida?- perguntou Hilary, que estava ao seu lado.
Sabrina conseguiu não ruborizar e evitou o tema dizendo:
-Nada importante tia Hilary. Apresento Duncan MacTavish.
Duncan fez uma reverência a sua tia, com muito cavalheirismo. De fato, aquela
noite parecia um cavalheiro, vestido com elegância em um fraque azul que ressaltava
seus olhos azuis escuro.
-Não se parece em nada com seu avô, meu jovem, disse Hilary, e acrescentou
com sua habitual franqueza- Eu considero uma sorte, para você.
Duncan se pôs a rir, mas ele não foi o único em ouvir.
-Diz a sério? E quem é você, senhora?
Hilary olhou ao ancião cavalheiro que se uniu a eles arqueando uma sobrancelha.
-Não me reconhece Neville? Não me surpreende. Já passaram mais de vinte anos.
-É você Hilary Lambert?
-Certamente.
-Você ganhou um pouco de peso querida- grunhiu ele.
-E você parece a ponto de cair morto. Bom, o que há de novo?
Sabrina tampou a boca com a mão, desejando se achar a três metros dali para
poder rir com gosto. Duncan, olhando alternativamente, enquanto eles se fulminavam
com o olhar, disse:
-Então, você conhecia à moça?
-Que moça? -perguntou Neville mal-humorado- Não estará chamando de moça
esta velha?
-Acredito que se refere a minha sobrinha, palerma - particularizou Hilary.
Neville reparou em Sabrina, que naquele momento já não tinha vontade de rir. O
mau humor de Hilary podia ser divertido, mas não quando insultava seu anfitrião.
Não obstante, ele não parecia haver se dado por ofendido e agora estava olhando
com ávida curiosidade até que por fim disse:
-Bom maldita seja, são realmente violetas, verdade? Pensava que o moço estava
exagerando. -Logo, como se lhe acabasse de ocorrer naquele mesmo instante,
acrescentou- Meu deus, você é uma Lambert?
Sabrina sabia por que ele se sobressaltou. Por desgraça igual as suas tias, também
ela era em ocasiões mais direta do que deveria e respondeu:
-A última vez seguia sendo, e continuo viva.
Neville teve a cortesia de ruborizar. E Sabrina também, por ter sido tão pouco
diplomática em sua resposta. Duncan, precavendo disso, franziu a sobrancelha e disse:
- Perdoem-nos levando Sabrina à força para o recinto contíguo.
Ali também havia muita gente; mas como era o salão de baile e três vezes maior
que o resto dos aposentos, e aquela noite aguardavam um bufe para jantar e não ia
haver baile, Duncan conseguiu encontrar um lugar em um canto onde ninguém poderia
ouvi-los. E ela sabia exatamente por que necessitava de um pouco de intimidade. O
pobre estava muito confuso, e era compreensível.
-Seria tão amável se me explicar o que significa tudo isto? -perguntou assim que
se deteve e lhe soltou o braço.
Ela torceu o gesto em uma careta.
-Devo?
Como resposta, ele se limitou a olhá-la, e seguiu fazendo-o até que Sabrina fez
outra careta, desta vez genuína.
-Muito bem. -suspirou- Mas esta história seria muito mais interessante se fosse
contada por outra pessoa. Está seguro de que não prefere que seu avô explique? Não
haveria a menor duvida de que exageraria para que causasse mais impacto. Quase todo
mundo o faz.
-É amargura que percebo em sua voz? -perguntou ele.
Sabrina piscou e lhe dedicou um sorriso.
-Descobriu meu segredo.
-Sou todos ouvidos.
-Mas acabou de escutar.
Duncan deu dois tapinhas na orelha, dizendo:
-Então, devo ter algum problema de audição, porque eu ainda não escutei nada.
-Puxa. Como pode haver esquecido assim tão rápido, quando acaba de dizer que
percebeu minha amargura? Esse é meu segredo. O resto - disse Sabrina fazendo um
gesto com a mão- é de domínio público. De segredo não tem nada.
Ele voltava a olhar fixamente, com resolução, indicando que desta vez suas
tolices não iam distraí-lo. Não obstante, se por acaso havia alguma dúvida, disse:
-Devo recordar que não faz muito que faço parte do público e algo nessas terras
que supostamente deveria saber é desconhecida?
-Então, me permita que lhe dê a versão abreviada, posto que na realidade não é
nada interessante. Aos Lambert, quer dizer, a meus parentes próximos, são conhecidos
porque suas mortes não se devem a causas naturais a não ser, digamos, a sua própria
iniciativa. Isso deu origem à conclusão generalizada de que em minha família há "sangue
ruim" e de que, sem dúvida, eu seguirei o mesmo caminho. Algumas pessoas, ao que
parece, são incapazes de entender por que ainda estou viva. Outras inclusive juram que
não estou que sem dúvida devo ser...
-Um fantasma?
-Ah. Recorda que eu mencionei?
Ele assentiu, respondendo:
-Acredito que preferiria ouvir a versão longa, o que explica por que isto causa em
você certa amargura.
-Na realidade, não sinto amargura, Duncan. Com franqueza, às vezes tudo isto
parece divertido, como a vez em que lady Marlow me viu uma mulher muito
corpulenta, gritou até esgoelar-se antes de perder a consciência e cair no chão. E todo
mundo ouviu seus gritos. Houve inclusive quem felicitou nosso anfitrião por ter uma
casa tão sólida como que o chão não cedesse (a dama em questão era francamente
volumosa). OH, venha. Sei que quer sorrir.
Duncan começou a rir com suavidade. Logo se interrompeu bruscamente e
tentou aparentar seriedade de novo. Tentou com todas suas forças, mas não conseguiu.
Naquele ponto, Sabrina poderia havê-lo feito rir a todo pulmão sem muitos esforços.
Com isso, Duncan poderia ter esquecido que queria ouvir a "versão longa". Mas, ao final
teria acordado. E o melhor seria acabar o quanto antes para que Sabrina pudesse
desfrutar de sua única noite em Summers Glade.
-Foi meu bisavô Richard quem começou o rumor tirando a própria vida. Ninguém
tem certeza por que fez, mas era evidente que tinha feito, e sua esposa, incapaz de
superar aquela tragédia, imitou-o em pouco tempo. Sua única filha, minha avó, já estava
casada naquela época e tinha duas filhas, as duas tias com quem moro. Ela aceitou bem
aquela tragédia e aquele falecimento duplo, ao menos durante um tempo. Mas quando
teve seu filho varão, meu pai, bom, caiu das escadas. Minhas tias insistem que foi um
acidente, mas ninguém mais optou por pensar e, desse modo, surgiu à teoria de que
temos "sangue ruim", o qual se findou ainda mais quando meus pais morreram juntos.
-Sinto pelos seus pais.
-Eu também. O que mais sinto é não ter chegado a conhecê-los porque eu era
muito pequena para recordá-los agora. Mas eles não se mataram. Comeram algo
estragado. Até o médico, que já não podia fazer mais nada, disse. Sem dúvida a fofoca
diz que se envenenaram juntos. E agora, embora minhas tias, que são da mesma
família, são saudáveis e fortes, e não tenham intenção de saltar de nenhum precipício
esperam que eu dê o salto.
-Não posso imaginar ninguém menos propenso a tomar as coisas tão a serio para
expor o desejo de acabar com tudo.
-Deus santo. Acredito que você acaba de me chamar de cabeça oca.
-Eu não fiz nada disso- bufou ele.
-Sinto-me gravemente insultada.
-É você uma bruxa.
Ela bufou.
-E das más.
Duncan se pôs a rir, o bastante alto como para que algumas pessoas virassem
para olhar. Um indivíduo que tinha estado passeando com um prato na mão - Neville
tampouco possuía duzentas cadeiras, porque nem todo mundo pudesse comer sentado
aproximou deles. Sabrina quase pôde notar a tensão que se apoderava do Duncan e
tentou distraí-lo para que não acabasse se frustrando.
-Você esta aqui e quem é ela? -perguntou o indivíduo- Acredito que não nos
conhecemos.
Estava olhando Duncan para que fizesse as apresentações, mas o escocês se
ruborizou e Sabrina se deu conta, com atraso, de que ainda não lhe havia dito como se
chamava. Antes que Duncan tivesse que admitir e sentisse ainda mais irritado, disse:
-Sabrina Lambert.
Ao princípio, o indivíduo se surpreendeu, mas logo pareceu muito encantado.
-O fantasma andante? É um prazer. Contrariou-me muito não conhecê-la em
Londres. Para lhe ser franco, queria conhecer a jovem que pôs em evidencia a todos
esses comentários.
Sabrina sorriu ao dar conta de que aquele indivíduo não acreditava nos rumores
que corriam sobre ela.
-E você é?
-Raphael Locke aos seus pés.
-E também fica no meio - acrescentou Duncan.
Raphael não se ofendeu, mas sim pareceu ter estado esperando aquele
comentário.
-OH, venha, velho amigo, não acreditará que você pode monopolizar uma dama
tão interessante como a que temos aqui, verdade?
-Não deveria estar fazendo companhia a sua irmã? -recordou enfaticamente
Duncan.
Raphael parecia horrorizado.
-Está rodeada de um monte de amiguinhas que não fazem mais que rir como tolas.
Deus me livre de me aproximar delas. Tenha piedade de mim. Além disso, deveria ser
você que o fizesse. Depois de tudo, é você quem está procurando uma noiva, não eu.
Como vai tomar uma decisão apropriada se não conversa com todas?
-Talvez já a tenha encontrado.
-Não diga isso nem de brincadeira! Minha irmã sentiria uma enorme desilusão.
-Sua irmã sentiria alívio.
-Então, você vai solicitar sua mão?
-Maldito seja, vá embora.
Raphael riu com malícia, satisfeito de ter zangado ao Duncan o suficiente -por
agora- mas aceitou partir dizendo:
-Muito bem, irei em busca desse velho escocês que afirma ser seu outro avô. É
muito divertido o que diz de você, eu adoro ter munições, se por acaso ainda não sabe.
As bochechas de Duncan demoraram um bom momento para recuperar sua cor
habitual depois que Raphael partiu. Sabrina o poderia ter acalmado antes, mas também
poderia ter piorado as coisas, posto que o aborrecimento de Duncan tivesse sido
causado pela rivalidade masculina e isso escapava a sua compreensão. Além disso,
incomodava muitíssimo pensar que ela podia ser o motivo pelo qual acabassem de
discutir.
Ao final, decidiu que devia ter sido fruto de sua imaginação, porque então,
Duncan já estava bastante calmo para perguntar:
-Tinha ouvido falar dele antes de conhecê-lo?
-Não, deveria?
Ele encolheu os ombros dizendo:
-O velho Neville está encantado com sua presença. É o filho do duque, pelo
visto.
Sabrina sorriu.
-Portanto, isso converte a sua irmã em uma boa candidata para você.
-Você acredita? Parece um pouco cabeça oca e sim, desta vez disse. Até seu irmão
está de acordo, mas é melhor assim, caso com ela, só para chateá-lo.
-Oh, puxa. Isso não cai bem, na verdade?
-Af, não. Como pode me perguntar isso quando tenho uma horrível vontade de
esmagar o nariz com um murro?
Capítulo 20
Sabrina estava desfrutando muito para dar conta que Duncan não se separou dela
nem um só instante. Até tinha comido com ela, encontrando um par de assentos livres
na sala de música. Logo tinham se unido a um jogo de cartas que ela tinha ensinado as
regras sobre a partida, sem que os outros dois jogadores se precavessem disso. Sim,
aquilo tinha sido hilariante. Fazia muitíssimo tempo que não ria tanto.
Quando Sabrina caiu em si ao final das contas que como convidado de honra, ou
ao menos devido ao propósito daquela festa, Duncan deveria repartir seu tempo de
forma mais equilibrada entre os convidados, não o disse, como deveria ser feito. Estava
tendo um ataque de egoísmo e reconhecia.
E decidiu que, enquanto lembrasse, e não tentasse enganar, podia permitir só
daquela vez.
Tampouco tentou enganar sobre o motivo de que ele ficasse ao seu lado. Riu
muito durante toda a festa para dar outra impressão que não fosse de desfrutar sua
companhia. Não havia nada de romântico nisso. Sabrina o fazia rir. Estar com ela era
divertido.
Entretanto, para a Sabrina tinha sido uma noite mágica, um sonho. Mas todos os
sonhos têm um final e sua noite em Summers Glade não era uma exceção.
Quando viu que sua tia a buscava, com os casacos no braço, dirigiu ao Duncan e
disse:
-Devo partir.
Ele não protestou porque esperava tê-la todos os dias que durasse a festa e por
isso disse:
-Vejo-a amanhã, então.
-Não. De fato... Não.
Sabrina suspirou, lamentando de todo coração o que tinha que dizer. Duncan já
estava começando a franzir o cenho, mas ela levava toda a festa adiando e já não podia
esperar mais. Não obstante, era uma pena, uma verdadeira pena, que aquela
maravilhosa noite, ao menos para ela, tivesse que terminar dessa forma.
-Quando você me convidou, bom, devido à surpresa me esqueci por completo de
que minhas tias e eu temos agora mesmo uma hóspede. Eu nem sequer teria que ter
vindo esta noite. Não tinha comprometido a assistir antes que minha hóspede chegasse,
e ela sabe. Assim, não posso cometer a incorreção de deixá-la só outra vez.
-Você não quer vir.
Ela sorriu ante aquela errônea conclusão, tão completamente ilógica que até ele
tinha que sabê-lo, e disse:
-Tolices. Desfrutei muito desta noite. Eu adoraria voltar, e talvez se nossa
hóspede partir antes que termine sua festa, então possa...
-Traga-a - interrompeu-a ele.
-Ah, Duncan. Não deveria me perguntar de quem se trata antes de me fazer esse
oferecimento?
-Enquanto não seja Ophelia...
Ele não prosseguiu. Não pôde evitar franzir o cenho quando viu pela expressão
da Sabrina que se tratava dela precisamente.
Quase grunhiu quando por fim conseguiu acrescentar:
-Maldita seja. O que está fazendo com você?
Aquilo, ao menos, era bastante fácil de explicar.
-Aproveitar da mesma cortesia que sua família mostrou comigo em nossa recente
estadia em Londres.
-E fazê-la de mensageira era também parte dessa cortesia? - perguntou ele.
-Não, isso foi para saldar uma dívida - disse Sabrina, sorrindo com pesar do tom
mal humorado de Duncan- Ela me ofereceu sua amizade, Duncan, e me facilitou muita
coisa em Londres. Eu não podia negar a sua petição, embora na realidade não quisesse
fazê-lo, pois me sentia em dívida com ela. Mas agora já saldei essa dívida.
-Então, ignore que está em sua casa, ou deixe-a de novo com sua outra tia, como
foi feito esta noite.
Sabrina negou com a cabeça.
- Você pensa que eu poderia me comportar com alguém de forma tão grosseira?
Duncan permaneceu em silencio durante um momento e suspirou.
-Não, sei que você não faria nada parecido. E deixarei que parta antes que pense
que sou um menino mimado, pela forma que me comporto cada vez que as coisas não
acontecem de acordo com a minha vontade.
-Eu jamais pensaria isso. -Sabrina sorriu travessa- Um bruto escocês, talvez...
-Vá-se de uma vez - Alfinetou ele sorrindo também.
-Pode ser que nos vejamos em um de meus passeios - disse ela enquanto se
afastava.
-Sim, e pode ser que você se desfaça de sua hóspede indesejada antes do previsto.
Duncan acompanhou a Sabrina e a sua tia até a porta e aguardou durante uns
instantes junto ao mordomo enquanto subiam à carruagem, tempo suficiente para
tomar nota e observar.
-Uma moça encantadora, nossa Sabrina.
Duncan olhou ao senhor Jacobs.
-Nossa? Faz tempo que a conhece?
-Sim. Vive aqui desde que nasceu.
-Suas caminhadas pelo campo, são freqüentes? -perguntou Duncan.
-Todos os dias, faça o tempo que faça - respondeu Jacobs- Prefere as manhãs,
mas às vezes volta a sair pela tarde.
Duncan assentiu e pensou em sair para caminhar pela manhã, até compreender
que passar com ela uma ou duas horas não bastaria. E seus dois avôs iriam às nuvens se
ele desaparecesse durante a maior parte do dia, quando seu trabalho era se dedicar a
encontrar uma esposa.
Depois daquela agradável festa, a primeira em que tinha desfrutado desde sua
chegada a Inglaterra, Duncan foi para cama de muito mau humor.
Enquanto a carruagem se dirigia a tropicões para a Cottage by the Bow, a casa
senhorial a que Sabrina se referia como a "casinha" porque no passado tinha existido
outra mansão ducal maior, Hilary não deixou de falar da festa. Sabrina não estava
prestando atenção, mas sim continuava saboreando suas lembranças da festa, até ouvir:
-Gosta.
Aquele comentário captou imediatamente sua atenção e não houve necessidade
de que sua tia a pusesse em antecedentes, pois a conhecia o bastante para saber a que se
referia.
-Sim, acredito que sim, mas não da forma que você acredita.
Hilary se ofendeu pela parte que tocava a Sabrina e bufou:
-E por que não dessa forma?
-Sejamos sinceras, tia Hilary. Se colocarem alguém como eu junto a alguém como
Ophelia ou inclusive Amanda Locke, nem sequer reparariam em minha presença. E
lorde Neville convidou a crème de la crème para que seu neto fique tentado a contrair
matrimônio. Você viu com seus próprios olhos, que são jovens e que elas não eram as
mesmas aspirantes que estavam em Londres neste ano. Algumas sim, mas a maioria das
que convidou Neville não precisa assistir a festas para encontrar um marido. Sabe
quanto valem e não precisam desfilar para que as vejam.
-Vá. E o que tem isso que ver com o fato que goste?
-Somos amigos, nada mais - respondeu Sabrina- Quando Duncan escolher uma
esposa será uma dessas moças bonitas...
-Você não é a feia do baile. Talvez queira, mas não é assim.
Sabrina suspirou. Certamente, agradava ouvir, mas uma das duas tinha que ser
realista, ou encheriam sua cabeça de caraminholas e começaria a ter esperanças de que
ocorresse algo impossível.
-Não creio que teria dado conta se um homem se interessasse por mim dessa
forma? Prometo tia Hilary. Duncan não me olha nem me vê como a uma possível
esposa. Mas bem, tem como a sua confidente, alguém que pode ajudar aconselhando
sobre qual dessas belezas lhe convém.
-O tempo o dirá - respondeu Hilary, por alguma razão pouco disposta a dar o
braço a torcer.
Sabrina, pouco disposta a ficar discutindo, dado que preferia continuar
saboreando suas lembranças em silêncio, disse:
-E me diga, por que atacou lorde Neville dessa forma esta noite?
-Bom, não é nada. Só é nosso mútuo desagrado que tornou a ressurgir.
Mas Hilary obrigada a ficar na defensiva, não disse mais nada durante o resto do
trajeto.
Capítulo 21
-Eu ouvi dizer de sua própria irmã -disse Edith Ward- Gosta das mosquinhas
mortas. Quem melhor que Sabrina para encaixar nessa descrição?
-Não me importaria se com isso captasse sua atenção - observou Jane.
-Não pode ser uma mosca morta só porque o deseja querida - disse Edith- É muito
bonita.
Jane se ruborizou, mas era evidente que estava decepcionada, embora a qualquer
outro momento o elogio teria lhe entusiasmado. Recordando para que estavam ali,
acrescentou:
-Embora o mesmo, porque assim que veja a Ophelia...
As duas moças tinham estado tentando aplacar o ciúme da Ophelia, que atendiam
desde que tinham visto Sabrina saindo da sala do café da manhã acompanhada pelo
atraente Raphael Locke. A expressão de pura incredulidade que viram em seu
semblante bastou para antecipar o que ia ocorrer.
Mavis, por outra parte, estava encantada com o giro que tinham dado os
acontecimentos. De fato, tinha tido a impressão de que ao fim se fazia justiça ao ver
que o ardil de Ophelia para desfazer-se de seu prometido, assim como os falatórios,
tornou ao contrário. Era a primeira vez na vida que recebia seu castigo daquela forma.
Por esse motivo, naquela manhã tinha cansado sua alma vê-la em Summers Glade,
aparentemente com convite, isso ela sabia tão bem como as outras que voltaria a beijar
o chão que pisava.
A única coisa boa que tivesse vindo em sua opinião era que Mavis, agora poderia ver
com seus próprios olhos o êxito que estava tendo Sabrina; a campanha que tinha
iniciado para arruinar sua apresentação na sociedade não tinha funcionado bem, ao
menos ao que se referia MacTavish e a Locke.
E Ophelia nem sequer sabia ainda quem era Raphael Locke, posto que não o
conhecia. Tampouco suas amigas, até ontem, quando chegou com sua irmã. Amanda
sim era conhecida dela, por descontado, haviam enchido de perguntas para se inteirar
de quem era seu irmão, o herdeiro Locke, que acabava de retornar a Inglaterra depois
de passar vários anos no estrangeiro. Por isso não conheciam e nem sabiam nada dele.
Infelizmente, havia muitíssimas possibilidades de que, assim que conhecesse
Ophelia, Raphael caísse prostrado aos seus pés, igual ao que acontecia a todos os
outros, com a única exceção de Duncan; pelo qual Mavis o admirava sinceramente.
Edith e Jane eram da mesma opinião. Estavam nesse momento falando com Ophelia,
colocando-a em dia dos últimos acontecimentos, e explicando quem era o herdeiro de
um ducado, que era bonito, rico e ideal para ela e que já tinha terminado com seu ex-
prometido, quando ele apareceu acompanhando pela Sabrina. E não era casualidade.
Falavam e sorriam enquanto procuravam um lugar onde sentar.
As três moças tinham presenciado o êxito que Sabrina tinha tido na noite anterior
ao conseguir monopolizar a atenção de Duncan MacTavish durante a maior parte da
festa. Jane e Edith haviam inclusive tido uma discussão amistosa sobre qual das duas ia
tentar conquistá-lo, agora que Ophelia tinha terminado com ele, mas o deixaram correr
ao ver quão cativado parecia estar pela Sabrina.
Embora isso não fosse mencionado a Ophelia, e esperavam que ela não se
inteirasse por outras vias. Assim, nenhuma das duas deu crédito a seus ouvidos quando
Mavis alfinetou:
-Mosquinha morta, uma ova! Tentei dizer que Sabrina tem um encanto especial,
mas todas zombavam. A prova é que tem os dois solteiros mais atraentes da festa
disputando sua atenção.
Ao ouvir melhor suas palavras, Ophelia a olhou com os olhos entreabertos lhe
inquirindo:
-Que outro solteiro? De quem está falando?
-Pois de seu Duncan, claro- sentiu prazer em dizer Mavis antes que Jane e Edith
pudessem detê-la.
Mavis conseguiu dissimular um sorriso triunfal depois de dizê-lo. Mas, embora ela
ainda não soubesse, o que disse a seguir foi inclusive mais efetivo. Ao fim e ao cabo,
não podia estar inteirada de que a noite anterior Ophelia não tinha falado com suas
anfitriãs e, em troca, trancou-se em seu quarto, tentando compreender por que Duncan
não se comportou como deveria durante seu encontro.
- Sabrina não explicou que Duncan não se separou de seu lado ontem à noite? -
acrescentou Mavis.
Como Ophelia nem sequer sabia que Sabrina tinha estado ali, em Summers
Glade, o golpe foi duro em dose dupla. Por outra parte, dissimular seus sentimentos
não era um de seus fortes. Embora tentasse aparentar indiferença em sua resposta, a
miríade das emoções que mostrou seu semblante deixou patente que, certamente, não
era assim como se sentia.
-Sabrina não é das que faz confidências - assinalou Ophelia.
-Nem tampouco areja seus êxitos, pelo visto. Que pena - respondeu Mavis- Eu
adoraria saber o que parecia tão divertido para passarem rindo quase toda a festa.
-Você pode dizer o que quiser Mavis - apressou-se a intervir Edith, tentando ainda
evitar que Ophelia se zangasse, embora inclusive ela sabia que não havia nada o que
fazer, depois de tudo o que tinha revelado Mavis- Isso não significa que nenhum dos
dois esteja pensando em casar com ela. Ou acaso esqueceu que tem "sangue ruim"?
-Bom quem poderia esquecê-lo? -voltou a intervir Mavis em tom irônico- Sobre tudo
quando ela parece tão feliz, e tão viva. Além disso, é um rumor absurdo.
- Esqueceu de quem começou a difundi-lo? -disse Jane em defesa de Ophelia.
- Não. De fato, recordo à perfeição quem foi tão malévola para pô-lo de novo em
circulação.
Ao fim o tinha feito. Tinha insultado a Ophelia. Entretanto, Mavis estava
entusiasmada de que por fim tivesse tido a coragem de fazê-lo. E nesta ocasião Ophelia
captou a mensagem, a diferença de tantas outras vezes. A vistosa loira perdeu parte de
sua beleza quando corou de raiva.
Edith sufocou um grito. Jane estava muito horrorizada para articular uma palavra.
Ophelia alfinetou:
-Malévola. Está... Chamando-me...
-OH, sim. Por favor, faça uma cena para que joguem daqui pela segunda vez -
interrompeu-a Mavis com um sorriso radiante- Assim, melhor para as demais pessoas,
poderão voltar a nos divertir.
Mavis deu a volta para partir, consciente de que tinha cortado por completo os laços
com o grupo, e orgulhosa de ter sido capaz de fazê-lo por fim. Mas Edith e Jane lhe
caíam bem, ao menos quando não se comportavam como duas tolas descerebradas na
presença de Ophelia e, por isso, disse-lhes antes de partir:
-Quando irão despertar e se darão conta de que ela não é sua amiga? Não duvidaria
em apunhalar pelas costas se acreditasse que com isso ia conseguir o que deseja. E não
teria nenhum remorso ao fazê-lo.
Mavis se afastou com muita dignidade, a um bom passo e com um sorriso nos
lábios. Sabia que talvez teria que fazer a bagagem e partir, que qualquer dia começaria a
circular algum horrendo rumor sobre ela. Só que agora já não importava.
-Bom, eu nunca - bufou Jane, incapaz de pensar em nada mais apropriado que dizer
depois do fim do discurso de Mavis.
-Nem eu - confirmou Edith.
-Não me surpreende -disse Ophelia, recuperando a compostura, embora por dentro
ardia de fúria- Depois de tudo, é uma mentirosa. Já a tenho descoberto fazendo isso,
OH, ao menos cinco vezes, mas tive a decência de não dizer nada. Pobrezinha.
Pergunto-me se for superior a ela. Há pessoas que não podem evitá-lo, já sabem.
Capítulo 23
Duncan tinha evitado unir-se à festa naquela manhã, depois da decisão que tinha
tomado na noite anterior. Tinha consultado com o travesseiro ou, melhor dizendo,
passou um bom momento dando voltas na cama antes de enviar uma segunda
mensagem ao chofer, anulando a anterior. E tinha acrescentado que devia recolher a
todos os possíveis hóspedes das Lambert. Depois daquilo, tinha conciliado o sono em
seguida. Mas aquela manhã, não se sentia tão cômodo com sua decisão e isso lhe estava
amargurando o dia.
Permitir que Ophelia voltasse a entrar em sua casa era um grande engano, fosse
qual fosse a razão. Ela interpretaria como uma forma tácita de pedir perdão, nada mais
afastado de seu propósito.
Durante as duas semanas que duraria a festa, ele poderia achar outras formas de
encontrar com a Sabrina de vez em quando, sem que notassem muito sua falta... Bom,
pior para eles. Ninguém havia dito que tivesse que passar as vinte e quatro horas do dia
em Summers Glade. Então, por que não tinha feito isso?
Duncan sabia perfeitamente. Que se Sabrina estivesse na festa significaria que
poderia contar com ela dezesseis horas todos os dias e poder conversar quando
quisesse e ficar junto quando necessitasse e que o animasse ou o aconselhasse sobre a
importante decisão que devia tomar no transcurso das suas duas próximas semanas.
Em suma, Sabrina estaria presente com seu efeito calmante. E daí que ele estivesse
mais que disposto a confrontar qualquer idéia errônea que se formou em Ophelia, a
qual poderia corrigir com relativa facilidade. Mas não tinha antecipado o que pensariam
os outros ao vê-la de novo ali, depois de que tivessem quebrado o compromisso.
Reparou nisso quando Archie foi vê-lo em seu quarto para lhe perguntar se tinha
mudado de opinião a respeito da Ophelia.
Tinha perguntado singelamente, mas logo quis saber quais eram suas intenções
com Sabrina, e foi muito mais complicado. Ele não tinha nenhuma intenção em
particular. Embora soubesse que Archie não ia compreender sua relação, tal e como
pôde constatar.
-Uma amiga? -zombou Archie- Os homens fazem amizade com outros homens,
não das mulheres.
-Por quê?
-Porque o maldito sexo se interpõe, por isso. E se me diz que não pensou nisso
nem uma vez com essa jovem, direi que é um mentiroso.
Duncan não se ofendeu, mas sim achou divertido.
-Então, me diga que sou um mentiroso. O certo é que estive muito ocupado
rindo com ela para pensar em nada mais.
Archie voltou a zombar; Duncan estava já seguro de sua incompreensão. Era um
conceito muito singelo, mas Archie não via mais à frente da “ordem natural das coisas"
entre homens e mulheres.
Mesmo assim, tentou explicar-se:
-Considere isto, se o desejar. Se você tem um grande amigo que vive perto de
você, talvez inclusive seja seu melhor amigo. Celebram uma festa. Quer que ele esteja
ali para compartilhar com você o que promete ser um bom momento, sim?
Archie se uniu a suas especulações.
-Mas meu amigo tem outro compromisso.
-Sim, mas é um compromisso menor que pode resolver se trouxer o convidando
também à festa. E você sabe que teria feito o mesmo por mim.
-Não, se o outro "compromisso" tivesse sido uma jovem de língua venenosa que
poderia arruinar a festa, e isso sim sei perfeitamente.
Duncan suspirou. Certamente, aquilo não podia discutir posto que era uma
possibilidade evidente. Mas então sorriu divertido. Ao menos Archie tinha captado a
idéia.
-Não se preocupe com a Ophelia até que ela nos dê motivos para fazê-lo. E não
tema. Minhas intenções com a Sabrina não vão além de mera amizade. Fale hoje com
ela e verá por que é tão agradável tê-la aqui. Possui o dom de fazer esquecer seus
problemas.
Por sua expressão, Archie não estava muito convencido. - Entretanto não
esqueça o propósito desta festa.
-Já falei que não estou desesperado em encontrar uma esposa. O que eu não
gosto é essa maldita pressa. E, o digo a sério, se não puder decidir antes que termine
esta festa, não quero ouvir nenhuma queixa a respeito. Não vou escolher uma só por
obrigação.
-Não esperávamos que se apaixonasse de repente, moço -respondeu Archie,
resmungão- Isso demora tempo para chegar.
-Eu não estou falando de amor. Falo de agrado. Ao menos, a mulher com a que
me comprometa tem que me agradar. Terá que partir de algo, Archie, que não seja a
mais absoluta indiferença.
-É obvio que sim. Mas não irá encontrar se passar o dia com "amigas". E como
interpretarão isso as outras moças se não souberem que são só amigos? Pensarão que já
escolheu e que não precisam mais captar sua atenção. Algumas podem inclusive fazer
as malas e partir.
Duncan torceu o rosto. Se Archie o propunha a algo, não havia quem lhe
rebatesse.
-Pois sim. Tomei uma noite livre e me dedicarei a me divertir em lugar de
procurar uma esposa - disse Duncan- Até isso me joga na cara, não?
-Não, enquanto não haja mais noites como essa. Porque esta festa não pode durar
para sempre. E não terá outra oportunidade como esta para encontrar uma esposa.
Nunca tinha visto tantas moças reunidas sob um mesmo teto em toda minha vida. O
velho Neville se esmerou muito escolhendo às convidadas colocando-as no caminho
para você. Só peço que use melhor seu tempo.
Duncan aceitou fazer, mas quando se uniu à festa um pouco mais tarde foi a
Sabrina a quem procurava de uma maneira inconsciente enquanto percorria os
diferentes recintos. Por desgraça se encontrou com Ophelia ou, mas bem, foi ela quem
encontrou a ele, interpondo-se em seu caminho de tal forma que não teve mais
remédio que deter-se ou ignorá-la sem reparos.
Duncan teria optado pelo segundo sem vacilar, posto que no dia anterior já lhe
havia dito tudo que tinha que lhe dizer. Se não tinha captado a mensagem, era seu
problema. Mas não estava sozinha, a não ser com outras duas moças, ele tinha em
mente sua conversa com o Archie.
Tinha conhecido a suas duas companheiras, embora não durante o tempo
suficiente para recordar seus nomes; tinham apresentado a mais de cem pessoas nos
dois últimos dias. As duas eram bastante bonitas e, portanto, valia à pena conhecer um
pouco melhor, supôs ele. Isso significava que aquele não era o momento indicado para
ser grosseiro. Não obstante, mudou de idéia assim que Ophelia abriu a boca.
-Acredito que já conhece minhas duas boas amigas, Edith e Jane.
Ele não queria conhecer melhor a ninguém que pudesse considerar uma boa
amiga de Ophelia. Sabrina era a exceção, mas ela nunca havia dito que fosse amiga de
Ophelia; mas bem tinha feita insistência em suas obrigações para com ela.
-Certamente - disse sem dedicar um só olhar a Ophelia. Olhando a suas
companheiras acrescentou- Um prazer, senhoritas, mas se me desculparem, ainda não
comi.
-É tão... -Jane guardou silêncio enquanto tentava pensar em outra palavra que não
fosse "grosseiro" para descrever a atitude do Duncan. Ao fim se decidiu-... Seco,
verdade? -acrescentou enquanto o viam sair da sala.
-Um traço escocês imagino - disse Ophelia em tom enfastiado.
De fato, alegrava de que não ficasse com elas. Tinham sido vistas falando com
ele. No momento, aquilo era tudo o que lhe interessava.
-Aceitará voltar a pedir que se case com ele, quer dizer, se nesta ocasião não pede
sua mão a seu pai? -perguntou Edith.
Ophelia fingiu que dedicava um tempo a pensar nisso.
-Ainda não me decidi. Agora terá que ter em consideração lorde Locke, depois de
tudo.
-Claro - respondeu Jane- Ainda não a conhece, mas isso tem uma fácil solução.
Sabrina poderia apresentá-lo.
O aborrecimento de Ophelia se esfumou com inusitada rapidez.
-Eu não necessito que ninguém me apresente - disse com brutalidade- E menos
ainda Sabrina. Conhecerei o Raphael Locke quando estiver preparada para fazer; talvez
esta noite. Disseram que esta noite haverá dança no salão.
-Sim, isso nós ouvimos.
-Excelente. Tenho um novo vestido de noite ideal para uma ocasião como esta.
-Ah, Ophelia, querida. Não acredito que esta noite seja um baile em sentido
estrito - advertiu-a Jane- No campo estas coisas são muito mais informais.
-Tolices. Um baile é um baile, se celebre onde se celebre. E eu quero estar
insuperável quando o conhecer. Um esplêndido vestido de noite é o que necessito.
Jane pretendeu acrescentar algo mais, mas a forma em que Edith a olhou lhe fez
mudar de opinião.
Ophelia continuava sendo sua amiga, elas ainda queriam seguir crescendo a custa de
sua popularidade, mas a nenhuma das duas tinha gostado da forma que se vingou de
Mavis, que também tinha sido sua amiga. E a consciência estava pesando muito por
Mavis, posto que as duas viram a facilidade com que podia chegar a cumprir.
Assim, se Ophelia queria ser notada naquela noite, era assunto dela. Se depois se
sentisse envergonhada, também isso seria assunto dela. Tinham avisado, mas como era
típico dela, Ophelia não fazia caso a nenhuma opinião que não fosse a sua.
Capítulo 25
Tinha percorrido todos os recintos quando se deu conta de que Sabrina não se
achava em nenhum deles. Os únicos que não tinha olhado eram o salão de baile, que
não se usava durante o dia, e o estúdio de Neville, também estava fora de uso, porque
ocupava o administrador das terras de Neville, que se achava ausente enquanto durasse
a festa. A tia de Sabrina que a tinha acompanhado ontem estava na sala de música com
outra mulher de uma idade similar, mas Sabrina tampouco se achava com elas.
Pensou melhor que não tinha vindo a Summers Glade. Seria irônico que ele
tivesse que sofrer a presença da Ophelia e que, entretanto, o prêmio que isso suportava,
que era a companhia da Sabrina, o fora negado. Mas por que não ia vir quando o resto
de sua casa estava ali, incluído sua convidada?
Antes de perguntar a suas tias, olhou nos outros dois aposentos. Averiguou que
tinham fechado com chave o estúdio; uma imprudente precaução supôs. O salão de
baile estava aberto, mas a tormenta tinha sumido na escuridão e estava vazio, como era
de esperar; ao menos isso parecia com primeira vista. Entretanto, vislumbrou um
ligeiro movimento, justo ao fechar a porta. Ali estava Sabrina, no outro lado do salão,
de pé junto a uma das janelas do balcão. O papel da parede que havia detrás dela, de
um violeta similar ao vestido que levava, confundindo com o resto do salão, fazendo
quase invisível.
Sabrina o ouviu aproximar e, sem se voltar, soube que era Duncan. Havia algo em
sua forma de andar, muito enérgica, que era fácil de reconhecer. Acelerou o seu pulso,
estranho incidente que se produzia sempre que ele estava perto. Perguntou-se por que
se encontrava ele ali. Certamente, não pela mesma razão pela qual estava ela.
Assim que tinha começado a tormenta, Sabrina tinha ido em busca de um lugar
tranqüilo do qual podia contemplar a fúria desatada da natureza. Ela gostava das
tormentas tanto como a garoa. Embora algumas pessoas ficassem nervosas com o
barulho de um trovão ou o brilho de um raio, ela se serenava com aquelas coisas e
sentia o impulso de sair ao ar livre.
Hoje era impossível. Mas, em seu desgosto, o melhor era contemplar a tormenta.
As portas do balcão, envidraçada, permitia ver o terraço e os campos que rodeavam o
salão de baile vazio proporcionando a intimidade necessária para desfrutar a sós o
espetáculo.
Mas não se importava que Duncan tivesse ido incomodá-la. De fato, era
agradável poder compartilhar aquele momento com ele.
-É bonito, não é verdade? -disse Sabrina quando ele se deteve junto a ela.
Pensou que teria que explicar a que se referia, mas soube que ele tinha
compreendido para ouvir responder:
-Gostaria de vê-la mais de perto?
Sabrina o olhou e sorriu, mas negou tristemente com a cabeça.
-As minhas tias não gostariam que aparecesse molhada e desalinhada, em especial
agora que se aproxima a hora de comer. Não daria tempo para voltar para casa para
trocar de roupa.
Duncan devolveu o sorriso, pegou-a pela mão e, abrindo a porta do balcão, a
puxou para que os dois estivessem sob a chuva. Deteve-se ali, no terraço, e elevou o
rosto ao céu, saboreando os elementos como teria feito ela.
Deus santo. Naquele momento, Sabrina soube que estava perdidamente
apaixonada por Duncan.
Ele pensou que devia estar louco para haver deixado levar por aquele impulso, até
que baixou a cabeça e olhou para Sabrina. Tinha uma expressão tão alegre, tão radiante,
que estava encantadora. Embora o cabelo estivesse molhado e grudava no rosto,
durante breves instantes Duncan ficou hipnotizado, por seus incríveis olhos, por uma
gota de chuva suspensa em suas pestanas antes de escorregar pela bochecha, por outra
alojada em uma de suas covinhas antes de descer até seu belo queixo, por seus lábios
carnudos quando sorriu, atraindo seu olhar para eles.
Ele tomou seu adorável rosto entre as suas mãos e a beijou. Foi outro impulso,
mas celebrou haver se deixado levar. A chuva era glacial, mas ele não sentia o frio, a
não ser unicamente o calor de seus lábios, e o ardor de seus corpos em contato. Ela
tinha sabor de ambrósia, era um sopro de ar quente frente aos rigores do inverno.
Ao longe ouviu um trovão e Duncan a abraçou com mais força. Um raio cruzou
o céu enquanto abria seus lábios, explorando a boca com a língua. Durante uns
instantes, não existiu ninguém mais no mundo além deles dois, os elementos e a paixão
que os tinha invadido.
Quando Duncan recuperou o sentido, e sentiu se culpado, a confusão era algo
mais, que imediatamente não reconheceu com temor. Podia jogar a culpa em Archie
por haver incitado a pensar em Sabrina como mulher e não só como amiga, e culparia
se aquele impulso terminasse por estragar sua amizade.
Soltou-a e deu um passo para trás. Agora estava muito perturbado para olhá-la. Só
desejava escapar antes que Sabrina dissesse algo que pudesse arruinar sua relação,
embora antes tivesse que se desculpar. Não podia deixar que pensasse que ele era tão
bruto como se dizia.
-Foi... Não deveria... -balbuciou Duncan. Maldita seja! Por que custava tanto falar?-.
Sinto muito. Não sei por que fiz isso, mas não voltará a acontecer. Eu prometo.
Capítulo 26
Ophelia não se sentiu sobressaltada ao ser a única mulher que levava um vestido de
noite. Não obstante, teria mudado de roupa se tivesse precavido a tempo, não quando
estava já no salão de baile. Tinha estado muito ocupada em localizar Raphael Locke
para fixar-se no modo em que ia vestida as pessoas.
Esqueceu-se do assunto assim que tomou a surpresa e o mal-estar iniciais.
Afinal de contas, sabia que estava esplêndida, e aquilo era quão único importava:
brilharia com mais intensidade em comparação com o resto de mulheres presentes.
Para ela, isso era normal e assim era como tinha que ser.
Ainda não tinha visto o herdeiro Locke, mas sim sabia que Mavis seguia ali, e isso a
irritou muitíssimo. Aquela cadela odiosa teria que ter partido já de Summers Glade,
mas, pelo visto, que a tachassem de traidora mentirosa e vingativa ante suas amigas não
a envergonhava o bastante para ter que ir. Ophelia teria que pensar em alguma outra
coisa para mandá-la para casa desfeita em lágrimas.
Quando ao fim localizou ao Raphael Locke foi para vê-lo junto à Sabrina. Outra
vez? Era intolerável! O que era o que ele e Duncan encontravam tão interessante
naquela moça? Certamente, não podia ser seu aspecto físico. Mavis havia dito que era
divertida. Que tolice. Era mais provável que estivesse lhes dando algo que não devia.
Sim, isso tinha que ser. E quem ia pensar que aquela ratinha de campo teria uma moral
tão relaxada? Embora, por que não? Sabrina não tinha nenhuma esperança de casar-se,
assim que sua reputação não devia lhe importar muito, não?
Entretanto, agora estava a sós com Raphael Locke, e o bastante longe de outros
convidados sem que ninguém os ouvisse. E ele por fim estava comportando como
devia, examinando-a de cima abaixo com aqueles olhos tão azuis. Ophelia não se irritou
absolutamente, pois estava habituada a que a olhassem, inclusive de forma metódica,
como estava fazendo ele. De fato, esperava que o tivesse feito antes.
-Sua beleza é francamente deliciosa -disse ao fim Raphael. Embora não em tom
admirativo, mas sim de surpresa- Mas, sem dúvida, escuta dizê-lo tão freqüentemente
que deve significar bem pouco para você, ou nada absolutamente.
Era certo, mas dizê-lo não era em nenhum caso de bom tom, por isso ela
objetou:
-Ao contrário, uma dama nunca se cansa de ouvir esses elogios, sobre tudo
quando provém de um cavalheiro tão bonito como você.
Por alguma razão, seu elogio o pôs na defensiva. Soube o porquê quando
Raphael alfinetou:
-Não creia está fazendo nenhuma conquista, querida. Em minha família, os
homens tomam a iniciativa. Não suportamos que ninguém nos persiga para nos levar a
altar.
Ophelia poderia haver-se ofendido, mas isso teria frustrado seus planos.
-Puxa, lorde Locke. A que pode você estar referindo? Não pensará que quero me
casar com você só porque o acho bonito? Acho bonitos a muitos homens, e se me
fazem um elogio, é possível que eu o devolva como acabo de fazer. Com total
inocência, o asseguro. Sem nenhum motivo oculto.
-Excelente -respondeu ele satisfeito- Alegra-me ouvi-lo. Muito.
Agora, ele deveria sentir-se envergonhado por seu engano, mas não era o caso,
mas sim em seus lábios se desenhou um sorriso cético. Bom, não importava. Se casaria
com ele. Tomou a decisão naquele preciso instante. Era jovem e muito atraente, e o
ducado e a fortuna que herdaria iriam como anel ao dedo. Mas não estava disposta a
tolerar sua associação com a Sabrina, fosse sórdida ou não, ia cortar a de raiz naquele
preciso instante.
-Teria que ser um pouco mais dissimulado, sabe? -sussurrou ao ouvido.
-Dissimulado? E seria tão amável de me dizer no que?
-Em que esteve deitando-se com a Sabrina. Ou não lhe importa pôr em perigo
sua reputação?
Sua reação não foi absolutamente a que Ophelia tinha antecipado. Qualquer
outro homem se teria apressado a lhe assegurar que não havia nada entre eles dois.
Houvesse-o ou não, aquela teria sido a resposta de um cavalheiro. E a partir desse
momento, teria se assegurado de evitar a Sabrina, embora só fosse para respaldar sua
afirmação. Em qualquer caso, não voltaria a aproximar-se da moça.
Ele suspirou. Sabrina tinha razão. Teria que saber. Mas, por outra parte, ele
esperava uma atitude mais reservada por sua parte depois do que tinha acontecido entre
eles no terraço: irritação inclusive. Não obstante, agora que pensava nisso, era quase
impossível imaginar Sabrina zangada, zangada de verdade, elevando a voz, soltando
fogo pelos olhos. Aquilo seria todo um espetáculo: seus olhos violetas ardendo de
paixão...
Duncan afastou o olhar para que ela não se precavesse do que estava passando-se
por sua cabeça. Por desgraça, esta vez seus olhos se posaram em Ophelia e não pôde
evitar o sorriso que lhe dedicou quando se encaminhou para ele.
Duncan não demorou muito em dar-se conta de que estar com a Sabrina, que
conhecia a Ophelia bastante bem, oferecia a loira uma desculpa para unir-se a eles. Isso
lhe impulsionou a partir naquele mesmo instante.
-Voltarei -foi o único que disse a Sabrina.
Tinha passado mais de uma hora quando conseguiu voltar junto a ela. Deu-se
conta de que evitar a Ophelia não funcionaria dado que ela ia estar na casa todos os
dias. Teria que deixar claro que ele desejava que mantivesse distância, posto que ela não
parecia entender que tentava ignorá-la.
-Parece que lhe devo umas quantas desculpas -disse a Sabrina quando se uniu a
ela perto da mesa dos refrescos.
-Só umas quantas? -respondeu ela, arqueando uma sobrancelha- Ocorrem-me
como mínimo sete.
Foi o número ímpar que tinha empregado, e sua expressão grave, o que lhe levou
a pensar ao Duncan que por uma vez falava a sério.
-Af, que mais tenho feito?
-Bom, uma, ainda não me pediu que dance com você. Dois, deveria desculpar-se
por pensar que há algo pelo que deve desculpar-se, quando não é assim. Três, não
deveria mostrar-se tão surpreso quando alguém tira sarro, porque poderia pensar que
necessita uma lição na arte do absurdo e partir com ele.
-Partir com o que? -perguntou ele exasperado, depois de tentar seguir seu
estranho discurso.
-Seu cabelo, por descontado.
O fato de que ela seguisse olhando-o com tanta seriedade foi o que fez que suas
gargalhadas, quando explodiram, fossem tão sonoras e bruscas. Embora, naquele
momento, a Duncan dava igual estar chamando a atenção. Uma vez mais, Sabrina o
tinha serenado por completo, tinha apagado sua irritação como se nunca tivesse
existido.
-Um dia desses perguntarei pelas outras quatro desculpas que lhe devo.
-OH, bem. Eu adoro dispor de tempo para desenvolver minha criatividade.
Posso ser muito mas que absurda se me propuser a isso, sabe?
Duncan lhe sorriu e insistiu:
-Mas mesmo assim quero me desculpar por havê-la deixado a sua sorte esta tarde,
quando deveria havê-la levado pessoalmente a casa para que colocasse uma roupa seca.
Não há desculpa para uma atitude tão desconsiderada por minha parte. Ao me dar
conta retornei ao salão de baile, mas você já tinha partido.
-E quem é agora o absurdo? Como se eu tivesse que ir a Londres para mudar de
roupa. Minha casa não é longe, vivo quase na esquina, mais ou menos. É por isso pelo
que estava você tão alterado? -Quando ele arqueou a sobrancelha, ela acrescentou-
Minhas tias me disseram que deu essa impressão.
-Ah, bom, isso entre outras coisas. Com meus dois avós esperando que encontre
esposa antes que termine esta festa, sinto-me um pouco pressionado. Decepcionar a
eles, ou decepcionar a mim se me precipitar. Em qualquer caso, ninguém sai ganhando.
A Neville dá igual decepcioná-lo, mas neste assunto está com Archie. Não
obstante, o que quer Archie é uma estupidez, mas isso não pode dizer-lhe a um velho
escocês tão obstinado como ele.
- Você está em um bom apuro -respondeu Sabrina pensativa, franzindo os lábios-
Se não tomasse tão a serio, as coisas talvez seriam muito mais singelas.
-E hoje faz um sol esplêndido, por isso vejo -respondeu ele.
Como, de fato, tinha estado chovendo a maior parte do dia, ela zombou com
suavidade:
-Não seja tão cético, porque às vezes funciona. Em meu caso, averiguei que se
não me obcecar com um problema, às vezes a solução me apresenta de repente. Não
sempre, é obvio, isso seria muito simples, mas o bastante frequentemente para que
tente não me preocupar quando tenho um problema. Alguns têm a virtude de resolver
sem que alguém intervenha. Oxalá fosse todos assim -rematou com um sorriso.
- Você é um pouco jovem para ser tão filosófica.
-Você crê? -disse ela arregalando os olhos, fingindo inocência- O que acabo de
lhe explicar é de uma lógica tão infantil que a maioria dos adultos esquece assim que
ficam mas velhos.
Ele pôs-se a rir. Era um tesouro, aquela amiga dele. E essa noite estava
especialmente encantado com seu singelo vestido azul e aquele radiante olhar. Sabrina
tinha mencionado a dança de brincadeira, mas ele queria dançar com ela, e sabia por
que. Queria tocá-la.
Duncan suspirou interiormente. Tinha que cortar aquele tipo de pensamentos.
Ela não estava interessada nele daquele modo, jamais lhe tinha inspirado outra coisa
que não fosse amizade. Considerava-o um amigo. Ia espantá-la se não controlasse
aquela repentina atração que sentia por ela. Por muito que queria lhe roubar outro
beijo, preferia mais ter sua amizade, a qual, estava-se dando conta, parecia-lhe de um
valor incalculável.
Mas isso não lhe impedia de tirá-la para dançar. Nem sequer ela pensaria mal,
pois esperava que ao menos a tirasse uma vez. Uma dança, e logo Duncan voltaria a
pensar em encontrar esposa.
Capítulo 29
Pensar nisso? Sabrina teve dificuldades para não pensar em outra coisa durante a
seguinte hora. E se Raphael estivesse certo e Duncan não se deu conta de que estava
apaixonando-se por ela? Inclusive o beijo com o qual a tinha dado respaldava aquela
hipótese. Logo Duncan havia sentido-se incômodo, mas por que a tinha beijado se
entre eles não havia outra coisa que amizade?
Entretanto, quando ao fim interveio a razão, Sabrina soube que não levaria a
cabo a sugestão do Raphael. Seria uma mentira de grandes proporções que só afetaria a
Duncan, e não podia fazer isso. Além disso, a colocação de Raphael parecia lógica, mas
algo podia parecê-lo se era exposto da forma apropriada. Que ela queria acreditar era
uma verdadeira estupidez. Jogar a "o que ocorreria se" nunca tinha formado parte de seu
caráter realista.
E depois de sua conversa com a Ophelia descartou por completo a idéia.
-Viu como tenta me deixar ciumenta? -ronronou ao ouvido- Parece-me absurdo,
mas a um homem não pode lhe dizer isso, nem conseguir que admita o que está
fazendo.
O comentário, vindo como o fez de improviso, posto que Ophelia tinha se
aproximado por detrás, confundiu durante um instante a Sabrina. Em geral, não era tão
lenta, mas depois de ter estado pugnando com o tema do ciúme que Raphael Locke
tinha introduzido, ouvi-lo de um ângulo distinto conseguiu confundi-la durante uns
segundos.
Entretanto, arrependeu-se de haver perguntado a quem se referia ato seguido,
porque para então as idéias já lhe tinham esclarecido o bastante para conhecer a
resposta. E Sabrina teria preferido, com toda sua alma, evitar a conversa que
mantiveram a seguir.
-Puxa, a Duncan, é claro -disse Ophelia. Logo acrescentou, com certa surpresa-
Parece assombrada.
Sabrina não o estava, mas ao que parece Ophelia esperava que o estivesse e
prosseguiu como se ela tivesse mostrado surpresa.
-Não me diga que pensava que se mostra tão atento contigo porque se interessa
de verdade? -É acrescentou um risinho-. Querida, pensava que você saberia melhor que
ninguém.
-Não pensei nada disso -respondeu Sabrina em um tom mais defensivo do que
teria gostado- Duncan e eu somos só amigos.
-Você talvez acredite, mas isso só demonstra quão ingênua é. Asseguro-lhe isso,
só está fingindo, para que eu me interesse por ele.
Aquilo doeu e Sabrina perguntou se não tinha sido essa a intenção de Ophelia. É
possível que não fosse uma boa candidata a esposa, mas queria acreditar que sim era
digna de amizade. Não obstante, Ophelia estava insinuando que Duncan não seria feito
seu amigo a não ser com segunda intenção.
-A amizade não tem por que deixar Ophelia, verdade?
-Certamente que não -respondeu sua amiga impaciente- Mas ele espera que eu o
interprete como algo mais, ou ainda não sabe do que estou falando?
-Não, suponho que não -disse Sabrina em tom irônico- Pensava que estava falando
de ciúmes.
Ophelia ruborizou, mas estava firmemente decidida a dizer o que tinha que dizer e
voltou para ataque.
-Só estava tentando evitar que sofresse em vão, querida, se por acaso interpretava
mal a atenção que Duncan está dando. Mas se você somente pensa que se trata de
amizade, então não sofrerá quando ele se case comigo.
-Não, claro que não -viu-se obrigada a dizer Sabrina.
Embora teria querido acrescentar "só sinto pena por ele", conseguiu conter-se.
-Bem -respondeu Ophelia, e logo acrescentou, com expressão pensativa-
Suponho que também deveria advertir a Amanda Locke. Está fazendo o mesmo com
ela, se por acaso não se deu conta. E ela, ao menos; pode pensar que seu interesse é
genuíno, mais que fingido por minha causa.
Sabrina já estava começando a cansar-se dos sutis insultos dela,que para falar a
verdade não eram muito sutis para alguém que tivesse um mínimo de inteligência.
Agora já estava familiarizada com suas táticas, mas que as usasse de uma forma tão
descarada com ela, como se fosse muito tola ou muito ingênua para não dar-se conta
de que a estava insultando de forma deliberada...
-Sou consciente de meus defeitos -disse Sabrina com rigidez- Também sei que
Amanda Locke não tem nenhum. No que me diz respeito Ophelia o interesse de
Duncan por Amanda poderia ser genuíno.
Ophelia pôs-se a rir, uma risada áspera e soberba.
-Certamente, mas não o é.
-Isso você não pode saber ao certo -apontou Sabrina.
Ophelia se limitou a fazer um gesto de desdém e disse:
-É tão ingênua, mas, claro, você não esteve na estalagem o outro dia para ver
quanto lamenta Duncan ter desmanchado nosso compromisso. Notava-se em tudo o
que dizia e fazia. Estou segura de que breve retificará. Só que primeiro tem que curar
seu orgulho ferido, por aqueles desafortunados insultos que disse e me castigar antes
que possamos fazer as pazes. E o estúpido decidiu que me deixando ciumenta bastará.
Não está funcionando, mas enquanto ele crer, estará satisfeito, suponho.
Sabrina estava fazendo um nó na garganta e cada vez lhe custava mais falar.
-Então, pensa que Duncan vai voltar a pedir que se case com ele?
-Sei que o fará. Não sei por que os homens acreditam que têm que tomar uma
revanche quando alguém fere seu orgulho, mas assim é, e Duncan não é distinto. Mas
só é uma questão de tempo, Sabrina, que voltemos a estar prometidos.
-Está segura de que não é você a que abriga falsas esperanças?
Sabrina não podia acreditar que houvesse dito aquilo. Depois de tudo, estava
falando com Ophelia Reid, rainha do ano, a moça mais bela e desejável que tinha sido
apresentada em sociedade desde fazia uma década, talvez do século. Por esse motivo,
não lhe surpreendeu que Ophelia se ofendesse.
Sua temeridade lhe valeu um olhar de reprovação e uma tensa resposta:
-Deveria saber o que a persigam para saber do que falo. Mas como explicar-lhe a
alguém que não sabe o que é isso? Bom, em primeiro lugar está o apaixonado beijo que
me deu na estalagem antes de partir totalmente fora de si. Estou segura de que ele
não queria revelar seus sentimentos daquela forma tão espetacular, mas simplesmente
não pôde conter-se. E tem sorte de que ninguém o visse, ou me teria posto em um
compromisso e se teria visto obrigado a casar-se comigo. Eu não desejo isso mais do
que possa querer ele, assim não o contei a ninguém salvo a ti, posto que é tão obtusa
que me obriga a lhe mencionar isso.
A confusão da Sabrina foi à causa da irritação que estava começando a sentir e,
ao não estar muito familiarizada com aquela emoção, disse sem pensar:
-Pode economizar a lição. Asseguro-lhe isso, posso seguir vivendo felizmente na
lua sem saber do que fala.
-Nem pensar -ronronou Ophelia- Não é nenhum inconveniente para mim,
querida. Posso acrescentar que estou surpreendendo uma e outra vez a Duncan me
olhando quando pensa que não me dou conta.
-Isso não quer dizer nada...
-Não terminei -alfinetou Ophelia; logo tossiu e prosseguiu com seu falso tom
doce- Isso, unido ao beijo que me deu sem meu consentimento, é de fato tudo o que se
necessita para definir seus verdadeiros sentimentos por mim. E além disso está sua
campanha para me deixar ciumenta. Compreende agora por que sei que quer me
recuperar?
Rompeu nosso compromisso cego pela ira. Não é que o culpe, quando isso era o que
eu queria conseguir naquele momento. Ele o lamenta, mas seu orgulho não lhe permite
retificar imediatamente. Daí que, enquanto isso, finja.
-Eu diria que quão única finge aqui, Ophelia, é você com respeito a nossa
amizade. E se houver alguém a quem terei que advertir é você. Duncan também me
beijou , mas eu não sou estúpida para achar que significou nada. Também me dizem
que me olha, mas eu não sou tão tola para pensar que isso tampouco signifique nada.
Seu interesse pela Amanda Locke é provavelmente genuíno, e se alguém tem que ser
uma esposa ideal para ele essa é Amanda Locke. Eu não lhe agrado. Deixou mais claro
que a água, assim no futuro me economize estes bate-papos "amistosos". De fato,
Ophelia, quero que se mantenha afastada de mim, eu agradeceria.
Capítulo 31
Sabrina não tinha feito em sua vida nada tão... alheio a sua natureza como o daquela
tarde. Foi à irritação, que tão pouco familiar lhe resultava, o que a impulsionou a
procurar seu casaco e partir de Summers Glade sem nem sequer dizer a suas tias, lhes
enviando uma lacônica mensagem que devia lhes entregar o senhor Jacobs. Mas foi a
vergonha a que abriu passo, a que impregnou até os ossos, o que a incitou a sair
correndo, sem esperar à carruagem.
Parecia-lhe impossível ter dito aquelas coisas a Ophelia. Responder à crueldade
com crueldade não era o adequado, por muito satisfatório que pudesse resultam sim,
Ophelia merecia todas e cada uma das palavras que lhe havia dito, mas havia alguma
desculpa para que Sabrina pusesse de lado seus princípios e sua natureza?
Poderia haver partido sem lhe dizer nada. Esse mero desplante teria bastado para
lhe transmitir a mensagem: estava farta dela e não toleraria mais sua maledicência. Mas
não, Sabrina se tinha deixado levar pela ira que e se colocou a seu mesmo nível.
Seu desejo era não ter que voltar para Summers Glade, ao menos enquanto
Ophelia seguisse ali, mas não sabia que desculpa podia dar a suas tias para não fazê-lo.
Considerou a possibilidade de dizer a verdade, mas logo o descartou. Depois de tudo,
Hilary iria culpar-se, porque a mãe de Ophelia era amiga dela. É possível que também
se sentisse obrigada a informar lady Mary sobre o horrendo comportamento de sua
filha, e logo se sentiria culpada também por isso. Ao menos, Sabrina podia economizar
a sua tia aquele mau gole.
Oxalá pudesse ignorar as conclusões de Ophelia e acreditar nas de Raphael, mas não
podia. O beijo que lhe tinha dado Duncan não tinha tido nada de passional, além da
violenta tormenta que caía quando teve lugar. Seu beijo tinha sido suave, doce,
surpreendente, maravilhoso, ao menos para a Sabrina, mas ela não tinha notado uma
grande paixão. Em troca, Duncan tinha beijado a Ophelia apaixonadamente, mesmo
que não quisesse fazê-lo. Isso tinha insinuado ela, que ele o tinha feito contra sua
vontade, e isso dizia muito sobre os verdadeiros sentimentos de Duncan.
Sabrina não duvidou nem por um instante que o principal argumento de Ophelia
fosse certo. O queria recuperá-la, só que ainda estava muito zangado para admiti-lo.
Como ia ser de outra forma? Ophelia era muito bonita para que qualquer homem
resistisse a querer fazê-la sua. Entretanto, Sabrina não pensava que Duncan estivesse
utilizando-a para deixar com ciúmes a Ophelia. Talvez a Amanda, mas não a ela. Sua
amizade era genuína. Tinha que sê-lo. Não podia equivocar-se tanto com ele ou sobre
seu próprio valor.
E logo se apoderou dela a tristeza, ao aceitar que o homem a quem amava estava
apaixonado por outra, de alguém que nem sequer era digna dele. Sabia que cedo ou
tarde teria que confrontá-lo, mas tão logo?
Como é natural, aquela reflexão deu passo às lágrimas, e foram tantas que Sabrina
logo se encontrou correndo sem rumo fixo, sem ver para onde ia. Quando esteve a
ponto de tropeçar com um ramo, deteve-se um momento para secar as lágrimas e
descobriu que tinha estado correndo em círculo e que quase tinha voltado para
Summers Glade. Essa foi à razão de que a carruagem que naquele momento
abandonava a mansão a alcançasse em tão pouco tempo.
-Que diabos você está fazendo? - Sabrina ouviu antes que Duncan descesse do
assento do chofer e a metesse na carruagem.
No interior não havia luz. Duncan tinha subido no primeiro veículo que tinha
encontrado com os cavalos já enganchados.
Assim, ele não pôde ver suas lágrimas quando a seguiu ao interior da carruagem
para se resguardar do frio. Por esse motivo, sua segunda pergunta foi igual de
contundente que a primeira.
-O que aconteceu aí dentro que a impulsionou a sair correndo da casa?
-Nada.
-Nada? Tão perturbada estava que nem sequer pôde esperar ao chofer?
-Eu gosto de andar..
-Ia correndo!
-Faz frio...
-Vai ter que me dizer a verdade, querida, e basta de desculpas. Vi-a falando com
Ophelia. O que lhe disse que a perturbou desta maneira?
-Duncan, eu somente quero ir para casa. Se não quer que vá andando, então me
leve você.
Agora que Sabrina havia dito várias palavras seguidas sem que ele a interrompesse,
Duncan deve ter notado que lhe tremia a voz, porque lhe tocou a bochecha com o
dedo, apalpou as lágrimas que esperava encontrar e a abraçou, afogando-a quase com
sua própria confusão.
-Sinto muito -murmurou- Não tem que falar disso se não quiser. Sou um animal
insensível.
Duncan não era nada disso. De fato, estava tentando emendar seu engano lhe
limpando as lágrimas dos olhos e as bochechas com seus próprios lábios. E, como se
fora uma progressão natural, começou a beijá-la nos lábios. Sabrina não resistiu.
Resultava impossível se imaginar resistindo aos beijos de Duncan, os desse por
compaixão, por amizade ou por..
A paixão, como a ira, era uma emoção assombrosa pela rapidez com que podia
surgir e apoderar-se de uma pessoa. A completa escuridão aguçava o resto dos sentidos,
sobre tudo o do tato e, o que Sabrina sentia a flor de pele, combinado com o que sentia
em seu ventre, era muito intenso para poder resistir.
Sabrina nem sequer o tentou. Sabia perfeitamente o que podia acontecer, o que
estava acontecendo, e se achava em uma situação única para que não lhe importasse.
Podia ignorar se estava bem ou mau porque já tinha decidido que jamais se casaria, mas
ali estava o homem a quem ela amava, lhe oferecendo uma pequena amostra do que
poderia ser converter-se em sua esposa. Não ia negar-se. Aceitaria tudo o que ele
estivesse disposto a dar, incluindo aqueles furtivos momentos de paixão, seus sonhos
feitos realidade.
Entretanto, havia um elemento de irrealidade, de incredulidade, resultava difícil
acreditar que algo tão maravilhoso pudesse ser certo; devia ser um sonho. Mas se fosse
ou não, não havia razão para rejeitá-lo. Teria que saboreá-lo ao máximo, e isso é o que
estava fazendo Sabrina.
Correr tinha desmanchado o penteado por completo e para Duncan foi fácil
deslizar os dedos pela nuca e lhe sujeitar a cabeça para beijá-la com maior
profundidade. Sua língua era travessa e atrevida, tentando os sentidos de Sabrina,
incitando-a a unir-se ao jogo. E logo, de súbito, voltou-se imperiosa, ardente em seu
desejo, e Sabrina recebeu também aquilo com o assombro e a emoção que cada nova
sensação lhe produzia.
Começou a respirar de forma entrecortada até dar-se conta de que estava muito
ocupada em gozar para pensar em algo tão prosaico. A partir de então, fez um esforço
por respirar com normalidade, ou o tentou, embora seus esporádicos ofegos sugerissem
o contrário. Resultou mais fácil, não obstante, quando ele começou a beijá-la no
pescoço. Mas aquilo despertou toda uma série de novas sensações que a obrigaram a
ofegar outra vez e a tremer de prazer.
Seu casaco se abriu não tinha se incomodado em fechá-lo e o tinha posto
precipitadamente ao sair da mansão, quando ele a beijou um pouco mais abaixo.
Duncan era tão alto que era um pouco incômodo ter que encurvar-se para chegar
aonde pretendia e Sabrina não se surpreendeu quando ele ficou de joelhos ante ela.
Agora começou a repassar com seus beijos o quadrado decote do vestido de
Sabrina, muito recatado em comparação com o que teria um vestido de noite. Estava-a
beijando muito longe dos seios, mas a emoção que ela sentiu não tinha limite, porque
até então nunca a tinham beijado nessa parte do corpo; de fato, apenas a tinham
beijado em nenhum lugar.
Ela apoiou as mãos nos ombros de Duncan, moveu-as vacilante para seu cabelo,
voltou às colocar em seus ombros; não sabia o que fazer exatamente com elas, o que
desejava era apertá-lo contra si.
Na carruagem estava começando a fazer bastante calor. Ela o notou quase ao
mesmo tempo em que ele, porque tirou o casaco e logo se tirou a jaqueta, e ela não
pôde mais que assentir interiormente em sinal de aprovação. Não obstante, aquilo não
foi de muita ajuda, porque o vestido de Sabrina era de manga longa e de uma malha
muito grossa, assim, quando Duncan o tirou, tirando também a camisa, ela voltou a
assentir sem mover-se.
Que não teria dado Sabrina por ter uma vela naqueles instantes, ou para
aparecesse a lua, por qualquer tipo de luz, de fato. Mas estavam completamente às
escuras. Contemplar os torsos nus das estátuas, quão únicos ela tinha visto, não era o
mesmo que apalpar com as pontas dos dedos a cálida pele de um homem que ela
desejava tanto ver como tocar.
Sabrina não pôde evitar perguntar-se se ele sentia o mesmo, porque parecia estar
tentando imaginar seu corpo através unicamente do tato, tocando-a por toda parte.
Percorria os braços, os ombros, o pescoço..., os seios.
O grito que afogou Sabrina quando lhe cobriu os seios com as mãos só expressou
surpresa. A fina camisa dela ainda se interpunha entre os dois, embora, no que a
Sabrina dizia respeito, poderia ter estado nua por completo, tão cálidas eram suas
palmas e tão firmes suas carícias. E quando voltou a reclamá-la com a boca enquanto
começava a lhe amassar seus túrgidos montes, Sabrina notou uma quebra de onda de
calor em seu interior que se estendeu pelo corpo e escapou em um longo gemido de
prazer. E, entretanto, aquilo não foi nada comparado com as sensações que a invadiram
quando ele a jogou no assento e continuou instruindo-a nas delícias do amor.
A carruagem era grande e luxuosa, o que não era surpreendente, posto que era o
veículo que levava o brasão do marquês. Os assentos eram largos, amaciados, de um
veludo muito suave. As janelas fechavam hermeticamente para impedir que penetrasse
o frio, como em um pequeno quarto de uma casa; com camas estreitas. Mesmo assim,
não era o lugar que ela teria escolhido para perder a virgindade, mas nenhum dos dois
tinha escolha. O que estava ocorrendo tinha surgido de forma espontânea, não estava
planejado, pois do contrário talvez não estivesse acontecendo.
No mais fundo de seu ser, Sabrina temia que Duncan se detivesse, que em
qualquer momento fosse recuperar o sentido comum como tinha feito depois do beijo
no terraço, ou que ela mesma despertasse do sonho, se o era. Aquele temor imprimiu
uma imperiosidade muito real às emoções que a invadiam. Queria saborear tudo muito
devagar e, de uma vez, desejava dar pressa para não perder nada.
Se Duncan houvesse dito simplesmente: "vou fazer amor", ela poderia haver-se
depravado e gozar assim de cada instante. Mas Sabrina suspeitava que o impulso de
Duncan só tinha sido isso, um impulso, e que por isso poderia extinguir-se em qualquer
momento se a razão se interpunha. Teria gostado de saber como impedi-lo, mas em sua
inocência desconhecia como incitá-lo a que se apressasse sem dizer-lhe possibilidade de
todo descartada, já que suas palavras romperiam o feitiço e os devolveria bruscamente à
realidade.
As mãos de Duncan seguiam percorrendo-a para formar uma imagem mental
dela, ou isso parecia, rodeando a cintura, os quadris, deslizando pelas coxas. Quando
retirou as mãos arrastou consigo as anáguas de Sabrina, que subiram até os quadris.
Entretanto, ela apenas notou, agora que sentia o calor de suas mãos na pele nua.
Duncan moldou uma e outra vez suas coxas, suas panturrilhas, a dobra do joelho, até
tirou os sapatos e fez uma massagem nos pés. Não estava deixando nenhuma parte de
seu corpo sem explorar e o fazia com muito atrevimento, sem as vacilações que ela
experimentava ao evolver suas carícias.
Perguntou-se se aquela ousadia seria um traço escocês. Mas não, isso era absurdo.
Os ingleses, supunha, podiam ser igualmente ousados, embora alguns tinham umas
maneiras tão exageradamente corretas que imaginou que inclusive pediam permissão
antes de beijar ou tocar um joelho O...
Ocorreu sem mais, antes que Sabrina chegasse a dar-se conta ou antecipasse sua
carícia. De repente, sua mão estava ali, apoiada firmemente na união de suas pernas,
pressionando e esfregando com a palma. Voltou a beijá-la com ardor, capturando seus
ofegos. Esperava talvez um protesto? OH, não. Nada de protestos sobre o que estava
sentindo agora. Nenhum absolutamente. Só assombro por outra nova sensação.
Ele seguia sem apressar-se. E ela seguia desejando que o fizesse. Por isso se
alegrou quando Duncan voltou a sentar-se a seu lado e encheu seus sentidos com sua
presença. Sua fragrância, embriagadora e viril, tão distinta ao aroma de água de rosas,
pós e especiarias que reinava em um lar exclusivamente feminino. A dura textura de sua
pele, seus músculos de aço, seu áspero pêlo, que o fazia cócegas, sua mera corpulência,
que a fazia sentir tão pequena e feminina... E seu peso quando ele cobriu muito
devagar sua pele com a sua, sua aveludada virilidade enchendo-a, a...
Sabrina gritou, nem tanto pelo instante de dor, a não ser devido à surpresa. E
Duncan se apressou a compensá-la por isso, enchendo seu rosto de beijos, jurando que
era inevitável, mas que não voltaria a doer nunca mais.
Acreditou, como não podia ser de outro modo, porque a dor já tinha
desaparecido, permitindo senti-lo dentro em toda sua plenitude e experimentar de novo
todas essas sensações quando começou a mover-se. O prazer se apoderou
imediatamente dela e foi aumentando em intensidade com a mesma rapidez, tentando-
a, extasiando-a, levando-a a um ponto culminante tão delicioso que logo que foi capaz
de assimilá-lo em toda sua beleza.
Agora Duncan a beijava com ternura. Também tinha chegado ao clímax, embora
Sabrina não se deu conta pela intensidade de sua própria experiência. Pensou que talvez
agora que tudo tinha terminado sentiria vergonha, mas não, só notou uma tremenda
lassidão. Poderia ficar adormecida se não tivesse sido porque ele ainda a reclamava com
seus beijos.
Duncan a ajudou a vestir-se, o que foi uma sorte, seus olhos se fechavam. Agora
o longo dia e as contraditórias emoções que o tinham povoado começavam a ter seu
efeito sobre ela. Tinha sido o dia mais insólito, assombroso, perturbador e finalmente
maravilhoso de sua vida, e entretanto logo que podia manter-se acordada para saboreá-
lo.
Desta vez Duncan não se desculpou por seus atos. De fato, logo que disse nada,
além de "Falaremos pela manhã", antes de deixá-la só na carruagem que devia levá-la a
casa. O trajeto só durou uns minutos e ela conseguiu permanecer acordada.
Ele a acompanhou até a porta e lhe deu um último beijo muito doce e o conselho
de que dormisse um pouco. Suas tias ainda não tinham chegado e com toda
probabilidade não o faria durante algumas horas mais, enquanto durasse a festa.
Dormir? Já estava dormindo antes de recostar a cabeça no travesseiro; depois não
recordaria haver-se metido na cama aquela noite.
Capítulo 32
Sabrina despertou com um sorriso nos lábios saboreando ainda seu sonho. Porque
ter feito o amor com o Duncan MacTavish tinha que ter sido um sonho. Uma coisa tão
maravilhosa e ao mesmo tempo tão improvável, não podia ser real. Continuou
pensando desse modo até fixar-se em sua roupa empilhada no chão, no alto de um
monte estavam suas anáguas manchadas de sangue.
Sentou-se então, maravilhada e surpreendida de uma vez. Ficou um momento na
cama, consumida em uma espécie de devaneio, recordando e revivendo aquele incrível
prazer, aquela completa... felicidade. Poderia haver-se passado todo o dia naquele
estado de eufórico estupor se as batidas na porta não a tivessem advertido da chegada
da donzela que compartilhava com Hilary e Alice. Ao ouvi-las apressou a esconder as
anáguas antes que a porta se abrisse.
Parecia-lhe impossível ter conseguido vestir-se e encontrar-se com suas tias no piso
de baixo sem que ninguém notasse que sua vida tinha mudado e que a felicidade que
sentia era quase insuportável. Queria compartilhar aquela felicidade, confessar tudo o
que tinha acontecido, mas, não podia fazê-lo. Talvez a compreendessem. Talvez se
emocionassem tanto como ela e esperassem que suas bodas se anunciassem
imediatamente. E aquele era o motivo pelo qual não podia dizer nada.
Duncan não tinha pedido que se casasse com ele, embora sim havia dito que
falariam pela manhã, o qual sugeria que o faria. Agora Sabrina esperava que o fizesse, e
isso era o que a fazia tão feliz, mas também deixaria claro que não estava obrigado a
fazê-lo. Se só tinha sido um impulso por sua parte, Sabrina não ia obrigá-lo a casar-se
com ela explicando o ocorrido. Passasse o que fosse, não o lamentaria nenhuma vez.
Como ia fazer-lo se o amava? Se pedisse que se casasse com ele, devia fazê-lo por
própria vontade, não porque suas tias o exigissem.
Aquela manhã Sabrina estava impaciente por ir a Summers Glade para encontrar-
se com Duncan e colocou pressa a suas tias para que subissem à carruagem.
Entretanto, foi um pouco desconcertante ir sentada naquele veículo, com as
lembranças que agora tinha do acontecido em seu interior, embora se ruborizou um
pouco durante o trajeto, suas tias não repararam nisso.
Chegaram a tempo para o café da manhã, suas tias foram diretamente à sala onde
o serviam. Sabrina, confiando em encontrar Duncan antes, declinou unir-se a elas.
Entretanto, topou-se com Raphael, que parecia decidido a detê-la.
Sabrina pensou que devia dizer que não estava certo, ao menos em parte. Não
tinha feito falta "despertar" a Duncan, como Rafe tinha sugerido. Simplesmente,
necessitava uma oportunidade e ela a tinha proporcionado ontem à noite, com sua
precipitada fuga da mansão, impulsionando-o a segui-la. Aquilo demonstrava por que
não podiam as jovens ficar nunca a sós com um homem pelo que se sentiam atraídas: a
tentação era muito forte para poder resistir.
Mas, ocupada como estava em procurar a Duncan entre a multidão do salão, só
escutava ao Raphael pela metade, embora mesmo assim reconheceu a ironia em seu
tom de voz e o claro desgosto que transmitia.
-Esta festa se converteu em uma celebração de grande estilo -disse- Embora o
pensando bem, duvido que nenhum dos bandos tenha muitos motivos para celebrar
nada. Quantos tontos arrastam asas por essa rainha de gelo não terão vontades de
celebrá-lo, embora em realidade deveriam fazê-lo, posto que se livrou que um destino
pior que a própria morte. Apesar de não sabê-lo ainda. E para quão jovens acreditavam
ter alguma oportunidade com nosso estimado recém-chegado, incluída você, querida,
isto será uma triste decepção.
Aquele último comentário conseguiu captar a atenção da Sabrina o suficiente para
perguntar:
-Do que está você falando?
-Estou falando de notícias frescas que atentam contra o sentido comum.
-Bem, obrigado por ter a amabilidade de transmiti-las de uma forma que também
atenta contra o sentido comum.
-Não me faça conta, Sabrina. Mas preferiria não ser eu quem a ponha a par -disse
Raphael, suspirando antes de partir.
-Bem, isso me esclarece tudo -murmurou Sabrina si mesma.
Estava pensando em ir atrás dele para que lhe desse uma explicação, ao menos
uma que tivesse sentido, mas então viu que Hilary irrompia na sala aproximando-se
dela para lhe dizer:
-Não posso acreditar!
Sabrina reconheceu sinais em Hilary que evidenciavam que estava a ponto de ir às
nuvens e, como de costume, tentou apaziguá-la.
-Nem eu -disse assentindo de maneira enfática, mas logo, sorrindo, acrescentou-
O que é o que não pode acreditar?
-Não se incomode em utilizar essa tática comigo, querida. Isto é muito
inacreditável para considerar uma brincadeira. E esta vez eu estava convencida de que
tinha razão. Isso demonstra que a especulação deveria deixar-se para os corretores da
bolsa de Londres.
Sabrina piscou. Acabava sua tia de fazer uma brincadeira ou falava a sério?
-Comprou ações?
Hilary bufou.
-Não estou falando de ações, mas sim dos caprichos do amor. Sei que você
mantinha que eram só amigos, mas eu estava segura de que havia algo mais...
-Espera um momento -interrompeu-a Sabrina entre exasperada e divertida-Que
tenho eu que a ver com isto? De qual de meus amigos está falando?
Hilary a olhou com o cenho franzido.
-Não me diga que ainda não soube? Anunciaram ontem à noite, justo depois de
que Alice e eu partíssemos, pelo visto. Por isso não nos inteiramos até agora. Você
tinha ido a casa porque doía a cabeça, mas seguro que a estas alturas alguém já teria
dito. As pessoas não falam de outra coisa esta manhã.
Aquilo estava começando a soar igualmente a absurda conversa que Sabrina
acabava de manter com o Raphael, e ela começava já a temê-lo pior.
-O que se anunciou?
-Que Ophelia e Duncan fizeram as pazes pela rixa que provocou sua ruptura e
voltam a estar prometidos.
Sabrina empalideceu. A impressão a aturdiu momentaneamente e teve que agarrar-
se ao braço da Hilary para manter o equilíbrio. Hilary não se deu conta. Continuou
falando do tema.
-Eu não encontro nenhum sentido, nenhum absolutamente. Por que tomar-se
todas estas moléstias e incorrer nos gastos de celebrar uma festa para reunir aqui a
todas estas jovens em idade de casar, se sabia desde o começo que não era mais que
uma rixa que poderia solucionar-se?
-Se sabia quem?
-Neville, é obvio. Espero que se dê conta da desilusão que produziu seu anúncio.
Celebrá-lo? É uma maldita tragédia.
Tragédia não. Golpe sim. Inesperado, em realidade não. Só que, por uns
instantes, Sabrina tinha esquecido que aquele era o resultado mais provável. Assim
Ophelia tinha estado certa desde o começo e, por desgraça, também Sabrina. O que
tinha acontecido ontem à noite entre Duncan e ela só tinha sido um impulso por sua
parte, uma oportunidade que um varão em seu são julgamento não deixaria escapar, e
certamente ela não tinha tentado impedir que acontecesse. Nem tampouco podia
arrepender-se de não havê-lo feito, nem sequer agora.
Entretanto, o que lhe doía, o que tanto a abatia, era que Duncan fizesse as pazes
com a Ophelia e lhe tivesse pedido que se casasse com ele justo depois de fazer o amor
com ela. Se tivesse passado algum tempo entre uma coisa e outra, inclusive embora só
tivesse sido uma semana, o golpe não teria sido tão forte. Agora bem, fazer o amor
com ela parecia ter sido o catalisador para que Duncan se desse conta de quais eram
seus verdadeiros sentimentos.
Ophelia entrou na sala então e recebeu as pouco entusiastas felicitações de umas
quantas pessoas ali presentes, embora ela não pareceu dar-se conta, pois estava radiante
com aquele triunfo. Raphael tinha acertado em uma coisa: ninguém tinha uma autêntica
vontade de celebrar aquele acontecimento. Os jovens presentes, com a exceção de
Raphael, que parecia detestá-la de um modo genuíno, estavam sem dúvida
decepcionados, se não desfeitos, de que Ophelia voltasse a estar prometida. E havia ao
menos uma mulher com as esperanças destroçadas.
Sabrina não poderia suportar ouvir a Ophelia gabando-se de sua vitória, mas
sabia que o faria se tinha oportunidade. E suspeitava que a única forma do impedir de
era partindo em seguida, antes que a moça de Londres percebesse sua presença.
-Não me encontro bem, tia Hilary.
-Não a culpo, querida. Eu também tenho vontade de vomitar. Vamos para casa?
-Sim, por favor.
Capítulo 33
Poderia ter saído em atrás de sua inimiga e tentar ao menos convencê-la, em lugar de
pensar que a moça jamais estaria disposta a guardar silêncio, como lhe tinha assegurado
Ophelia, porque não duvidou nem um instante que ela tivesse inimizades que
desejassem sua ruína. Em lugar disso, partiu para tentar apagar de sua mente aquela
horrenda situação, e se tinha esmerado tanto que inclusive agora tinha tão só uma vaga
lembrança de seus dois avôs, lhe dizendo que, depois de tudo, ia ter que casar-se com a
Ophelia Reid.
Quanto às insinuações de Raphael, não tinham base alguma.
-Você não sabe que eu apareci em seu quarto sem prévio aviso, assim é
impossível que tivesse feito uma armadilha. Não foi obra dela, disso estou seguro. Eu
fui o causador de tudo com meu gênio e minha impaciência e, por esse motivo, não
posso permitir que isto seja sua ruína, quando em último termo sou eu o culpado de
tudo. Não poderia viver com essa carga.
-Maldito seja. Você tinha que antepor a honra a todo o resto, não? -disse Raphael
em um tom de leve desgosto antes de partir.
Capítulo 34
Sabrina estava junto à janela de seu quarto, contemplando a carruagem detida frente
à casa. Em realidade, não lhe surpreendia voltar a chorar cada vez que a olhava. Não
chorava muito, só algumas lágrimas que foram se acrescentar a todas as que tinha
derramado naqueles últimos dias. A carruagem seguia retornando todos os dias,
esperando várias horas antes de retornar a Summers Glade; embora lhe houvessem dito
ao chofer que não se incomodasse.
A festa, em teoria, não tinha ido a menos, mas sim continuaria até o dia das bodas,
que se tinha fixado para o meio da semana seguinte. Ao que parece Neville tinha
pensado que, visto que já tinha a casa cheia de convidados, para que ia incomodar se
em enviar novos convites para as bodas estando já presente os interessados?
Aquela era a opinião imperante entre quem murmurava sobre as bodas. Sabrina não
se inteirou de nada daquilo pessoalmente, mas suas tias a mantinham informada, posto
que elas seguiam recebendo visitas embora Sabrina não o fizesse. De fato, ela ficava
sempre em seu quarto, negando-se a sair. Não quis descer para falar com Duncan
quando ele se apresentou no dia seguinte de que foi anunciada suas bodas. Tampouco
quis lhe ver um dia depois, quando voltou a insistir. E, certamente, negou-se a receber a
Ophelia quando veio às visitar pela tarde, sem dúvida para gabar-se de seu êxito.
Mas, ao cabo de três dias de chorar e sofrer de forma ininterrupta, e de se angustiar
se perguntando o que era o que poderia ter acontecido para ver-se despojada de sua
breve felicidade, Sabrina tinha alcançado um estado no que já não sentia nada. E isso
era, até certo ponto, uma bênção. Os sentimentos anestesiados não doíam.
Supôs que, finalmente, conseguiria deixar tudo aquilo para trás e voltar a ser a
Sabrina de sempre, que poderia sentir aquela angústia só de vez em quando e desterrá-
la com um suspiro. Mas, no momento, aquele intumescimento lhe permitiu ao menos
sair de seu esconderijo.
Entretanto, foi má sorte que sua primeira incursão no piso de debaixo tivesse que
levá-la até o salão, onde esperava encontrar ao menos a uma de suas tias. Em lugar
disso, encontrou-se com a Ophelia, sozinha. A donzela acabava de fazê-la entrar e tinha
ido informar de sua chegada.
Por incrível que pudesse parecer, Sabrina não sentiu nada, nem sequer o horror de
que as boas formas lhe exigissem saudá-la. Seu intumescimento era uma anestesia
perfeita.
- Encontra-se melhor? - perguntou Ophelia, fingindo preocupação quando a viu
aparecer na soleira.
- Melhor?
- Quando vim visitá-la ontem, lady Alice disse que estava indisposta e que tinha
deitado. Eu teria ido vê-la em seu quarto, inclusive o propus, mas tive certeza que
dormia.
- OH, isso - respondeu Sabrina, com um gesto de pouco caso - Nada que não tenha
sido reparado com algumas horas de sonho. O que a traz para nossa casa? Não segue a
festa em Summers Glade?
- Sim, certamente, embora os convidados tenham partido - disse Ophelia com um
toque de raiva na voz- Suponho que muitas damas pensaram que ficar seria uma perda
de tempo.
Sabrina não se surpreendeu. A maioria das jovens convidadas estava em idade de
casar e agora que o solteiro a quem queriam conquistar estava comprometido teriam
que continuar procurando, o que as levaria de volta a Londres para assistir às festas que
ali se celebravam.
Fez-se um incômodo silêncio. Aquela forçada cortesia não tinha muito sentido
depois do amargo sabor que tinha deixado seu último encontro. Não caíam bem. Isso
era patente.
Ophelia rompeu o silêncio com um longo suspiro.
- Eu gostaria de me desculpar - disse, ruborizando-se ligeiramente e baixando o
olhar- Dou-me conta de que a outra noite na festa fui um pouco cruel e que por isso
você, bom, perdeu o controle. Quereria explicar por que...
- Não se incomode - interrompeu-a Sabrina sem muita convicção - Não tem
nenhuma importância.
- Talvez para você não, mas me arrependo das coisas que nos dissemos - insistiu
Ophelia- Depois de tudo somos amigas.
Se não tivesse estado anestesiada por seu intumescimento sentimental, Sabrina
poderia ter respondido com um resmungo. Mas, visto com frieza, elas duas jamais
tinham sido amigas.
Ophelia tinha apresentado a suas amizades, mas que outra opção tinha, sendo
Sabrina sua hóspede? Nenhuma. Agora se dava conta que Ophelia tinha feito a contra
gosto, não porque queria fazê-lo, mas sim por obrigação. E na única ocasião que tinha
recorrido a sua suposta "amizade" foi quando necessitou um pouco da Sabrina e
pensou que a devia.
Mas Ophelia, como era típico nela, ignorou o desinteresse de Sabrina e prosseguiu
com o que tinha intenção de dizer.
- Sabe? Essa noite não estava tão segura como queria aparentar. Não sei por que. De
fato, é provável que a campanha de Duncan para fazer ciúmes estivesse funcionado.
Mas, fosse qual fosse a razão, estava começando a ter dúvidas e isso me irritava um
pouco. Infelizmente, desafoguei-me contigo. Depois de tudo, não estou habituada a me
sentir insegura, nem a constatar depois quão estúpida fui. Deveria ter sabido. Puxa,
justo depois daquilo foi quando ele deixou de fingir e voltamos a nos comprometer.
Aquele comentário em particular abriu um claro buraco no intumescimento da
Sabrina. Justo depois? Antes que ele saísse em busca da Sabrina?
- Quando foi isso? - perguntou.
- Quem se importa...?
- Quando?
Ophelia piscou ante a dureza com que tinha falado Sabrina, mas, depois de meditá-lo
durante uns instantes, respondeu:
- Puxa, logo depois de foi embora. Eu estava muito perturbada e me retirei. Duncan
deve ter me visto subir, porque me seguiu e insistiu, insistiu muitíssimo, em que
voltássemos a nos comprometer. São tão impetuosos estes escoceses. Suponho que já
não suportava ter que continuar a mentir, mas o mais provável é que se impacientasse.
No final, deve ter se dado conta de que quanto antes nos comprometesse antes nos
casaríamos. E é tão apaixonado - acrescentou, ruborizando-se ligeiramente- Tenho a
sensação de que se deitaria comigo ali mesmo se não nos tivessem interrompido.
Sabrina teve que sentar-se depois de ouvir aquilo. O impacto que acabava de receber
foi tão duro como a manhã em que soube que eles dois iriam casar.
De fato, foi inclusive pior. Dava crédito a Ophelia, tinha sido ela quem tinha
despertado a paixão de Duncan, o qual, ao não poder satisfazê-la por causa da
interrupção, e encontrou depois a Sabrina, antes de apaziguar-se, e tinha se aproveitado
da situação. Que fosse ela não tinha tido nenhuma importância. Com a escuridão que
reinava na carruagem aquela noite, Duncan poderia ter imaginado que Sabrina era
quem realmente desejava que fosse.
Por desgraça, considerando tudo, Sabrina acreditou em Ophelia. Se ela tivesse sido
um pouco mais bonita, ou Ophelia tivesse sido um pouco menos, talvez então tivesse
dúvidas. Mas não podia enganar-se sobre aquela questão em particular. Ophelia levava
muita vantagem no que se referia aos homens.
A questão era se podia culpar Duncan por tomar o que lhe entregou com tanta
facilidade estando ele já comprometido com outra. Não faria qualquer um o mesmo
que ele? Não, não podia culpá-lo. Além disso, seguia lhe amando. Oxalá não o fizesse,
mas não podia lutar contra isso. Embora não se importasse se o culpasse ou não.
De toda as formas, ele ia casar-se com Ophelia. O dia em que o fizesse lhe romperia
o coração um pouco mais do que já o tinha feito.
Ophelia continuava falando como se suas palavras não tivessem causado nenhum
dano.
- Estou tão contente de que o tenhamos dado um jeito e voltamos a ser amigas.
Edith e Jane me abandonaram, sabe? Prometeram-me que retornarão para as bodas na
semana que vem, mas duvido que tenham tempo assim que voltem a estar imersas na
vida social de Londres. Eu sei que não teria. Mas sem elas, isto é aborrecidíssimo. Tem
que voltar para Summers Glade, Sabrina, embora só seja para me fazer companhia.
Por sorte, Sabrina se livrou de ter que lhe explicar por que era isso impossível
quando ao fim apareceu Alice, reparou em sua expressão pálida e abatida e a mandou
de volta à cama, como se fosse ali onde realmente tivesse passado os últimos três dias.
Para que Ophelia não a ouvisse, sua tia a repreendeu com suavidade em voz muito
baixa. Mas Sabrina não necessitava desculpa alguma para retornar ao seu quarto. Por
ela, Ophelia podia pensar o que quisesse. Em qualquer caso, esperava que já houvesse
dito tudo o que tinha que lhe dizer e não voltasse a visitá-la nunca mais.
Capítulo 35
Ophelia estava conseguindo ficar de mau humor no curto trajeto de volta a Summers
Glade. Tinha conseguido o que queria: tirou de cima de si a obrigação de ter que
desculpar-se para que tudo voltasse a ser igual entre Sabrina e ela. Esperava ter tido
êxito ao menos nisso, porque estava se aborrecendo muitíssimo em Summers Glade e
Sabrina seria um remédio ideal.
Já não ficavam suficientes convidados na mansão para distraí-la. Duncan inclusive a
ignorava, zangado ainda, supôs, por ter que renovar o compromisso. Pior para ele. Não
tinha feito aquela armadilha. Ele tinha feito tudo por sua conta, embora Ophelia não
pudesse negar que tudo tinha saído como ela queria.
Ophelia jamais teria imaginado que ele pudesse fazer nada tão impetuoso como
entrar em seu quarto. Aquilo era uma total incorreção, inclusive embora ela não
estivesse meio vestida.
Mas Ophelia tinha pensado que ele pretendia arrumar as coisas e por esse motivo
podia perdoar sua impetuosidade. Logo tinha descoberto que tudo se devia a Sabrina.
Tinha sido a gota que encheu o copo, sobretudo depois de que aquela camponesa tirou
a mascara, demonstrando que, depois de tudo, não era todos sorrisos e podia ser uma
verdadeira megera.
Entretanto, quando ele mencionou a Sabrina, Ophelia se lembrou da conversa que
tinha mantido com ela. Em concreto, a parte em que lhe havia descrito uma situação
que poderia havê-la posto em um compromisso. Tinha inventado, mas não importava.
E por outra parte, não tinha se vingado dela.
Ophelia nunca teria pensado nisso se Duncan não lhe tivesse recordado sua
conversa com a Sabrina. Por esse motivo, esforçou-se por achar a forma de prendê-lo
até que alguma das outras moças aparecesse, e foi Mavis, precisamente ela, a que abriu
a porta. Tinha sido muito perfeito. Ophelia não poderia ter planejado melhor. E não
tivera que fazer nada, o que era ainda mais irônico. Duncan tinha se metido sozinho na
boca do lobo.
Acabou sendo simples, assim que partiu, localizar lorde Neville e pô-lo ciente dos
fatos. Ele pertencia à velha escola. Não precisou convencê-lo de que Duncan a tinha
comprometido de forma irreparável; era evidente. Neville tentou encontrar Mavis, mas,
por infortúnio, não teve sorte, se a tivesse visto a teria obrigado a anunciar o
compromisso de seu neto aquela mesma noite.
Edith e Jane partiram à tarde seguinte, igualmente tinham feito muitas das outras
jovens, junto com seus acompanhantes. De fato, Ophelia tinha agora para ela sozinha o
quarto que tinha compartilhado com outras oito moças.
Mavis partiu na mesma noite do baile, motivo pelo qual lorde Neville não tinha
podido encontrá-la. Sem dúvida, não queria que nem o marquês nem Duncan a
intimidassem para que mantivesse a boca fechada sobre o que tinha visto, pois ela não
tinha nenhuma intenção de fazê-lo. Por que não tinha ido de forma tão precipitada,
sem sequer fazer a bagagem? Só tinha ido em busca de seu primo, que era seu
acompanhante, tinha pedido uma carruagem e partiu. Não obstante, assim é
exatamente como teria atuado Ophelia se tivesse disposto de um rumor tão suculento
como aquele, pelo qual a compreendia perfeitamente.
Anunciar o compromisso antes que se difundisse o rumor o desacreditava por
completo. Se o casal estava comprometido, a pessoa riria de seus encontros amorosos,
mas as desculparia. Por outro lado, se não havia compromisso, a mulher cairia em
desgraça. Assim, Mavis não tinha agora nada que ganhar difundindo a história. Ela
devia pensar que poderia utilizá-la contra ela de alguma forma, mas na realidade tinha
ajudado a Ophelia a conseguir o que queria. Era para se desmanchar de rir.
Entretanto, agora, de volta a Summers Glade, Ophelia não podia evitar pensar que
talvez tivesse piorado a relação com a Sabrina e por isso estava zangada consigo mesma
apesar de que não deveria estar. Não ia se sentir culpada por haver mentido. Sabrina
merecia por ter tentado lhe roubar Duncan.
Mas queria que voltasse a ser sua amiga, por isso, em vez de mentir, talvez deveria
ter tentado averiguar por que lhe importava tanto saber quando tinha ido ver Duncan.
Ao chegar à mansão, Ophelia soube que lorde Neville a estava esperando. Não sabia
desde quando, posto que não tivesse estado ali para receber o aviso, mas foi
diretamente ao seu salão particular, onde ele a aguardava.
Ophelia esperava ter um bate-papo com ele muito antes, mas também Neville a
tinha ignorado desde que anunciou o compromisso. Entretanto, devia-lhe uma
desculpa. Depois de tudo, ela era a parte inocente em tudo aquilo e teria saído muito
prejudicada se não tivesse querido casar-se com Duncan, mas teria que fazê-lo de todas
as formas porque ele a tinha comprometido. Por sorte, ela desejava esse matrimônio,
mas não era necessário mencioná-lo até receber a desculpa que lhe deviam.
Entretanto, Ophelia estava equivocada por completo com respeito ao motivo de sua
reunião. Assim que se sentou frente à escrivaninha de lorde Neville, ele começou a lhe
dizer com muita dureza:
- Além do fato de que seus pais foram informados do ocorrido e chegarão em breve,
temos uma série de assuntos que em minha opinião terá que abordar com urgência.
- Certamente - respondeu Ophelia com certa apreensão, posto que por seu tom
deduziu que não ia gostar tanto da conversa como pensava.
- Fui informado, através de várias fontes distintas, de que você tem o costume de
difundir rumores e fofocas.
Ophelia se ofendeu. Acaso ia repreendê-la quando nem sequer eram ainda parentes?
- Todo mundo murmura, lorde Neville - observou ela com frieza.
- Não todo mundo, mas quem o faz com assiduidade tem má intenção. Só estou lhe
fazendo saber, lady Ophelia, que não se tolerará essa classe de comportamento. Assim
que você passe a formar parte desta família, se conduzirá de forma irreprovável.
Agora Ophelia estava surpreendida e se sentia insultada. Má intenção? Ela? Nem
pensar. Podia ser que, de tanto em quando, tivesse que pôr às pessoas em seu lugar,
pode ser também que se vingava uma vez ou outra, mas com má intenção?
Absolutamente.
Não obstante, lorde Neville estava se referindo sem dúvida a sua campanha para
converter Duncan em um bobo e poder livrar-se de um compromisso que então não
desejava. Ele tinha tomado aquele incidente como algo pessoal. Mas ela não o tinha
feito com má intenção e, de fato, não tinha causado nenhum prejuízo a Duncan. Tinha
sido simplesmente um meio para um fim.
- Se pensa que minha conduta é censurável, senhor, diga-o sem mais, mas não me
acuse de algo que...
- Querida - interrompeu-a ele sem alterar-se- Se me escutou, deu-se conta de que sua
conduta me parece censurável. O mero feito de que várias pessoas tenham advertido de
seus costumes diz tudo. As pessoas falam de você isso é inaceitável. Sente-se! - gritou
quando ela ficou em pé indignada.
Ophelia se deixou cair na cadeira. Ardiam as bochechas. Se ele não fosse um
personagem tão eminente, teria partido dali naquele preciso instante; só isso a manteve
em seu lugar. Certamente, não tinha ficado porque a tivesse amedrontado com a dureza
de seu tom e seus olhares.
- Não leve uma idéia equivocada - prosseguiu ele com aquele tom dele, sereno e não
obstante implacável- Esta conversa teria acontecido antes se Duncan não se negasse a
casar com você quando a conheceu. Você deve compreender que agora faz parte desta
família implica uma responsabilidade por sua parte para que talvez não esteja
preparada.
- Sou filha de um conde - respondeu Ophelia com arrogância- Asseguro-o que
minha educação não é deficiente.
O cepticismo com que a olhou lorde Neville não foi absolutamente
contemporizador. De fato, prosseguiu na mesma linha.
- Seus pais vivem em Londres desde que você nasceu por isso a educação que
recebeu pode não lhe ser de utilidade aqui. Isto é uma casa com terras. Como futura
marquesa, terá obrigações específicas que lhe ocuparão a maior parte do tempo e a
colocarão em contato com uma ampla variedade de pessoas, desde faxineiros a vigários
até mesmo a rainha. Mas, deixando de lado com quem tem que tratar, conduzirá você
como corresponde à marquesa de Birmingdale.
- O que terei que fazer? - perguntou Ophelia, franzindo o cenho.
- Desempenhar as obrigações normais que exige uma casa destas dimensões.
Suponho que ao menos lhe ensinaram a cuidar de uma casa? Meu secretário a instruirá
sobre as obrigações desta fazenda, que se somarão a suas obrigações domésticas. Basta
dizer que ficará com muito pouco tempo para divertir-se, organizar festas ou difundir
rumores.
- Nada de organizar festas? - perguntou ela sem sair de seu assombro.
Não podia estar falando a sério. Ophelia associava a um nobre da categoria de
Neville com festas luxuosas e freqüentes. Em Londres, as damas de seu nível eram as
principais anfitriãs da cidade e seus convites estavam muito procurados. É óbvio,
Ophelia tinha se imaginado fazendo um lugar entre elas e convertendo-se na rainha de
todas.
Mas lorde Neville falava sério, ou certamente isso parecia quando prosseguiu sua
explicação.
- Nós não temos o hábito de organizar festas. A que nos tivemos foi uma estranha
exceção para um propósito específico. Não se repetirá. Nem tampouco temos casa em
Londres, o que implicaria um desembolso frívolo, posto que nunca vamos a Londres.
- Eu tenho família em Londres - recordou-o Ophelia-. Naturalmente, eu vis...
- Sua família pode vir a visitá-la aqui - cortou-a ele- Falava totalmente a sério quando
dizia que não terá tempo de viajar ou divertir-se. Tampouco Duncan, embora ele não
esteja interessado nisso. Você vai ter que mudar sua forma de pensar a esse respeito.
Agora, coloque na sua cabeça que você é do campo.
Por desgraça, Ophelia sabia o que aquilo significava. Os nobres que viviam em suas
fazendas, em vez de visitá-las de vez enquanto, dificilmente as abandonavam.
Aborreciam-se em Londres. Não participavam dos atos sociais da alta sociedade
londrina. Havia mais ou menos renunciado a qualquer pretensão de ser sofisticados e se
tornaram "do campo". Tinham desenvolvido novos interesses: o tempo, a colheita, os
preços do mercado. A alta sociedade londrina, ao menos o círculo da Ophelia,
zombava daqueles nobres e os equiparava à classe trabalhadora.
Ophelia se beliscou, querendo que tudo fosse um simples pesadelo. Mas não estava
sonhando.
E aquilo não era o que ela tinha previsto quando decidiu que Duncan lhe convinha.
Seu futuro título e sua atitude não compensavam o horror que acabava de lhe descrever
lorde Neville.
Entretanto, Ophelia se deu conta, cada vez com maior desespero, de que estava
obrigada a casar-se com Duncan gostasse ou não, e só porque tinha posto a Mavis
contra ela. Se ainda fosse sua amiga, teria mantido a boca fechada sobre a cena que
tinha presenciado. Claro que teria mantido, sobre tudo se lhe tivessem assegurado que
na realidade não tinha acontecido nada.
De fato, aquele incidente não comprometia Ophelia de forma irreparável. Não é que
ela e Duncan tivessem feito amor. Mas Mavis nunca manteria silêncio. Por que faria,
quando a desprezava? E o único que a mantinha calada agora era seu compromisso e as
iminentes bodas. Romper pela segunda vez o compromisso estava descartado, posto
que daria a Mavis carta branca para difundir aquele sórdido rumor sobre ela.
- Você não tem muito bom aspecto - disse Neville, interrompendo seus caóticos
pensamentos.
- Acredito que não estou me sentindo bem - respondeu Ophelia desolada- Se me
desculpar...
Não esperou que Neville lhe desse permissão e saiu de sua sala particular quase
correndo.
Capítulo 36
Ophelia bateu a porta com força ao sair do salão de Neville, que fez uma careta por
aquele inesperado ruído. Não obstante, recostou-se depois na cadeira com o olhar
pensativo, perguntando-se se não se excedeu um pouco com a moça.
- Está você começando a ter dúvidas, verdade? - perguntou Archibald, aparecendo à
cabeça depois da volumosa poltrona de leitura no que tinha estado sentado sem que
Ophelia soubesse.
- Dúvidas? Digamos que já me estou arrependendo - disse Neville com
aborrecimento.
- Ora, não se faça de inocente, homem. Se estiver pensando que ela é inocente, você
está errado. Ophelia teve que fazer algo para pôr o jovem fora de si, ou ele não teria se
apresentado em seu quarto daquela forma tão temerária.
- Contou-lhe ele o que é que aconteceu ou, ao menos, como começou tudo?
Archibald suspirou enquanto se levantava e ia tomar assento frente a Neville.
- Não quer falar desde essa noite, nem sequer comigo. Creia-me, perguntei, mas ele
se zanga cada vez que menciono. Diz que a culpa de tudo isso é por causa do seu
gênio. E me rompe o coração vê-lo tão triste.
- E acredita que eu gosto disto mais que você? - perguntou Neville- Era você quem
dizia que não importava quem fosse à moça sempre que fosse bonita. Vê agora como
se importa?
- Não precisa incidir nesse ponto - grunhiu Archie- Por que acredita que lhe sugeri
que tivesse esta conversa com ela? Parecia muito satisfeita com o resultado deste
maldito fiasco. Agora não está, e sim há alguém capaz de encontrar uma forma de
desfazer toda esta ofensa, é alguém tão maquinadora como ela. E você não tem feito
mais que lhe dizer a verdade, ou acaso embelezou um pouco?
- Embelezado, não. Mas certamente a exagerei. Eu já sabia que ela não foi feita para
esta família. Soube assim que a conheci, motivo pelo qual me alegrou que Duncan
fosse capaz de ver além de seu rosto bonito. - Neville suspirou naquele ponto- Eu não
acredito que o que foi dito hoje aqui vá mudar nada. Não há forma de sair disto. Essa
moça não pode romper o compromisso embora deseje fazê-lo. Sua reputação ficaria
manchada de forma irreparável se o incidente de seu quarto chegasse a espalhar-se. Ela
sabe tão bem como nós.
- Mas ainda não se filtrou nada. A moça que os surpreendeu juntos no quarto, esteja
onde esteja, não difundiu nenhum rumor. Você pensa que talvez não seja a classe de
pessoa que se dedica a espalhar rumores? Mesmo que odeie a Ophelia e deseje sua
ruína, como ela afirma, seus escrúpulos podem lhe impedir de tomar uma revanche de
forma tão desprezível.
- Mas nós não podemos nos expor a isso, Archibald, e você sabe perfeitamente. Não
tinha sentido expor se Mavis Newbolt difundiria ou não o rumor. Tínhamos que supor
o pior e tomar medidas para impedi-lo, e isso fizemos. Não ouvimos nada porque
agora já passou o momento, ao anunciar o compromisso. O que antes teria causado
sensação, agora só interessaria a uns poucos. Com o compromisso, o rumor perdeu
todo o interesse que pudesse ter.
- E você continua não conseguindo encontrar essa moça? - perguntou Archie.
Neville passou a mão pelo cabelo grisalho em sinal de frustração.
- Desapareceu do mapa, e agora também o têm feito seus pais.
Archibald franziu o sobrecenho para ouvir aquilo e aventurou:
- Acaso têm medo?
Neville bufou.
- Oxalá fosse isso, mas não. Lorde Newbolt não é a classe de homem que gosta que
lhe façam perguntas sobre nada, e em particular quando não conhece as respostas.
Informaram-me que foi às nuvens quando um de meus homens se apresentou em sua
casa pela quarta vez. Negou-se a voltar a falar com ele e, pouco depois, partiu de
Londres com sua esposa para que não voltassem a incomodá-los. Se sabem aonde foi
sua filha quando partiu daqui, não nos vão dizer isso. Eu acredito que ela não disse e
essa é a razão de que lorde Newbolt o tenha tomado tão mal.
- Por que diabos isso tem que ser tão difícil? Quanto pode custar averiguar o
paradeiro de uma jovem? Não serão seus homens uns incompetentes?
Neville ignorou a última pergunta, observando:
- O fato de que ainda não a tenhamos encontrado pode ser mera coincidência, mas
eu estou começando a pensar outra coisa. Acredito que se escondeu. Se o tiver feito,
será melhor que comecemos a falar sobre como manter os nossos futuros bisnetos a
salvo da influência de sua mãe.
Archibald fez um gesto com a mão de descaso às palavras de Neville.
- Simplesmente, você terá que me enviá-los antes do que tinha previsto. Ela não vai
querer vir às Terras Altas, creia.
- Essa não é uma opção - grunhiu Neville.
- Assim vamos voltar a brigar, não? - replicou Archibald.
- Absolutamente - respondeu Neville muito tenso- Estou incidindo no fato de que
os filhos do Duncan serão ingleses, aprenderão a amar este país, parecerão ingleses
antes que você ponha a mão em cima.
- Não me insulte mais do que é necessário, homem, ou pensarei que já não lhe caio
bem - observou Archie com uma risada zombadora.
Neville o olhou com o cenho franzido.
- Alegro-e de que tenha captado a mensagem, mas me desconcerta que possa
encontrar esta situação divertida.
- A situação não tem nada de divertido, mas você sim quando fica tão inglês. Venha,
não volte a levar as mãos à cabeça, homem. Nós dois estamos no mesmo lado no que
diz a respeito a não querer a Ophelia Reid em nossa família. Então, por que você não
adia as malditas bodas até que tenhamos encontrado à outra moça?
Neville voltou a suspirar.
- Porque o resultado seria o mesmo. Se a moça está guardando silêncio nestes
momentos, porque difundir o rumor não vai reportar lhe grandes benefícios dado à
iminência das bodas, o que você acha que fará com a informação que tem se suspeita
que o compromisso não é mais que uma farsa? Então pode começar a difundir esse
conto, o que garantira umas bodas imediatas.
- Dá-se conta de quem estamos tentando proteger aqui, o que pode ser prejudicial a
sua família e a minha?
- Se estiver sugerindo que deixemos a Ophelia Reid a sua sorte e a joguemos aos
lobos, por dizê-lo de algum modo, já o considerei, pois ela não vale os esforços que
estamos fazendo para protegê-la depois do que fez; ao menos em minha opinião.
Inclusive insinuei a Duncan, embora de forma indireta. E, me diga você, qual acredita
que foi sua reação sabendo que ele se considera o causador de tudo?
Agora foi Archie quem suspirou.
- Duncan é um bom moço. Até odiando-a, não quereria vê-la prejudicada por um
engano dele. Assim seguimos sem ter mais remédio que continuar procurando a Mavis
Newbolt, ou confiar em que lady Ophelia ache algo que a exima de casar-se com
Duncan, agora que você lhe deu um bom motivo para começar a pensar nisso.
- Você talvez a veja tão ardilosa para que possa ocorrer algo, mas eu não conto com
isso e vou redobrar meus esforços para encontrar a Mavis. Creia-me, se consigo
averiguar seu paradeiro, farei todo o necessário para obter seu silêncio, a pagarei,
ameaçarei, suplicarei, o que precisar. Mas antes tenho que encontrá-la, e está acabando
o tempo.
Capítulo 37
Ante a iminência de suas bodas, Duncan já era quase incapaz de falar com alguém de
Summers Glade sem lhe soltar algum resmungo, por isso tentava evitar os convidados
que ficavam tanto como podia. Por sorte, tinha deixado de ser a "atração principal" e já
não tinha que estar sempre presente. Aquilo lhe permitia uma escapatória assim ele
pensava, durante longos momentos, todos os dias, sem dar pé a muitos comentários
quando retornava.
Seus avôs, os dois, deixavam-lhe agora em paz. Tinham o que queriam - uma
candidata a esposa- embora nenhum dos dois parecia muito contente com a que
Duncan tinha terminado escolhendo. Talvez lhes mortificasse tanto como o fato de
que Ophelia fosse a última mulher que teria escolhido se tivesse tido escolha.
Nunca em sua vida havia se sentido tão apanhado e abatido. Nem sequer a notícia de
que teria que partir para Inglaterra para viver com um avô que não conhecia, nem
queria conhecer, tinha-lhe afetado tanto. Isso lhe tinha enfurecido. Ter que casar-se
com uma mulher que nem sequer gostava, e que sabia que não gostaria jamais, estava-o
consumindo por dentro.
Precisava animar-se. Necessitava Sabrina. Mas estava começando a pensar que não
voltaria a vê-la jamais, e aquilo lhe pesava muitíssimo.
Temia ter perdido sua amizade, que o estivesse evitando deliberadamente porque
agora o desprezava. E nem sequer podia culpá-la. Aproveitou-se de sua confusão,
quando sem dúvida ela não era proprietária de seus atos. Ao refletir sobre isso, era
muito possível que agora o odiasse por isso. Pior ainda. Justo depois de fazer amor, ele
tinha comprometido-se com outra mulher. Não podia imaginar o que pensaria Sabrina
a respeito, mas certamente não o deixava em bom lugar. Em qualquer caso, nem sequer
tinha podido explicar-lhe, pois ela se negava a recebê-lo.
Tinha ido a sua casa. Tinha-lhe deixado notas. Haviam-lhe dito que estava
indisposta, o que podia significar um monte de coisas distintas, entre elas "vá embora".
Embora Sabrina gostasse tanto de passear, pois saía para fazê-lo todos os dias, em
ocasiões inclusive duas vezes em um mesmo dia não tinha topado com ela nenhuma só
vez. E não era porque não o tivesse tentado. Percorria o caminho ao Oxbow mais de
uma vez ao dia, passando sempre junto à Cottage by the Bow. Ficava horas sentado na
colina onde se conheceram, desejando que ela voltasse a tomar aquele atalho. Mas nem
uma vez a viu, nem sequer de longe.
Mas ali estava agora, andando pelo caminho a muita distância dele, com o vento
invernal lhe açoitando o cabelo, envolta em seu grosso casaco, que dissimulava sua
bonita silhueta curvilínea. Duncan pôs seu cavalo rapidamente para alcançá-la.
Levantou pó ao fazê-lo. Queria tomá-la em seus braços e não soltá-la nunca e, não
obstante, encontrou-se lhe gritando, desafogando com ela toda sua frustração,
preocupação e medo.
- Saiu para passear com este tempo apesar de ter estado indisposta? Ou é não estava
realmente doente? Por que diabo não queria ver-me quando fui visitá-la?
Ela o olhou de uma forma estranha. Abriu a boca para responder, fechou-a, voltou a
abri-la, fechou-a pela segunda vez, esta vez com força, e seguiu seu caminho. Seguiu
seu caminho?
Duncan a olhou sem dar crédito a seus olhos. Mas não demorou em dar-se conta do
tom acusador que tinha empregado com ela, e com qualquer pessoa, inclusive alguém
tão despreocupado e alegre como era Sabrina ou estava acostumado a sê-lo, poderia
ofender-se.
Suspirou e a seguiu ao trote.
- Espere. - Ela não o fez- Fale comigo pelo menos.
Sabrina se deteve e limitou a dizer:
- Não deveríamos estar falando, Duncan.
- Por quê?
- Agora você é um homem comprometido. Não deve visitar nenhuma outra mulher,
nem abordá-la no caminho. Se o vissem, poderia parecer outra coisa e chegar aos
ouvidos de Ophelia, e nós não queremos que isso aconteça, não é mesmo?
Sabrina voltou a caminhar e isso pôs Duncan tão furioso que ignorou a amargura
que tinha percebido em suas palavras.
- Ao diabo com o que ela pense - grunhiu- Visitarei meus amigos se gosto de fazê-lo,
ou já não somos amigos?
Aquilo a fez dar meia volta, mas só para dizer:
- Ophelia não vai permitir que você tenha amigas, Duncan, ou por acaso não se deu
conta de quão ciumenta é, nem de quão malévola pode voltar-se por essa causa?
- É isso o que a perturbou tanto aquela noite? Utilizou sua língua viperina contra
você?
Sabrina suspirou.
- Não realmente. Doeu-me ter perdido a paciência com ela e ter me colocado no seu
mesmo nível. Eu não sou assim e me horrorizava ter dito aquelas coisas tão horríveis.
Que Sabrina tinha perdido a paciência? Ele tampouco era capaz de imaginar, mas
certamente teria encantado vê-lo. Embora pensando melhor, não, não teria gostado. Já
tinha o suficiente com o distanciamento com que o estava tratando agora, e não
gostava nada.
Duncan desmontou e ficou de frente a ela.
- Ao menos sua explosão não teve conseqüências importantes. Outros perdem a
paciência e pagam por isso durante toda vida.
Duncan disse com tanta tristeza que a Sabrina teria que ter sido indiferente para não
lhe perguntar:
- Pagá-lo? Como? O que você fez?
- Zangou-me que você estivesse tão perturbada para sair correndo em plena noite.
Não me custou saber que a causa tinha sido Ophelia, posto que você tinha estado
falando com ela.
- Mas ela não foi o verdadeiro motivo. Seus sutis insultos não me incomodam. Foi
minha própria reação a que me surpreendeu.
- Sim, mas você não quis me contar o que tinha acontecido quando o perguntei
aquela noite - recordou-lhe Duncan- E quando retornei a Summers Glade estava
decidido que ela me contasse isso. Pus-me furioso ao não encontrá-la. Quando ao fim a
localizei, não me importou que fosse em um lugar inapropriado.
- Onde?
- Seu quarto.
Sabrina poderia haver dito uma dúzia de coisas naquele preciso instante para
diminuir o impacto do que estava ouvindo, mas tudo o que conseguiu articular foi:
- Oh.
- E nem sequer isso teria tido importância se não tivesse sido surpreendido por
alguém.
- Quem?
- Chama-se Mavis Newbolt. Ophelia disse que a odeia e que desfrutaria difundindo o
rumor. Mas Mavis partiu e não podemos encontrá-la para verificar se o faria ou não.
- Está dizendo que essa é a razão pela que você e Ophelia voltam a estar
comprometidos?
- Que outra coisa podia ser? - disse ele- Não pensou que eu quero me casar com ela?
- E isso ocorreu depois de que você... Levou-me para casa?
- Sim.
Sabrina afastou o olhar. Pareceu-lhe ouvir um grunhido, embora saindo dela, não
esteve segura. Quando voltou a lhe olhar, ao cabo de um longo momento, tinha o rosto
imperturbável e lhe falou com muita calma.
- Ophelia diz muitas mentiras, mas a opinião que Mavis tem dela é certa. Embora foi
ela quem a propiciou. Antes eram amigas, mas recentemente brigaram. Aconteceu em
Summers Glade, de fato, mas logo Ophelia se dedicou a desacreditar Mavis.
- Você conhece muito a essa tal Mavis? Quereria vingar-se da Ophelia, inclusive
embora isso implicasse fazer mal a outras pessoas?
- Sinto muito, Duncan, mas não a conheço o bastante para sabê-lo. Parecia muito
agradável (ao menos quando não estava com a Ophelia). Quando estava ao seu lado,
voltava-se sarcástica e rancorosa. Mas parece que Ophelia provoca esse efeito em
muitas pessoas, lhes tirando o que tem de pior. É assombrosa, essa qualidade dela.
- Não, o assombroso é que eu esteja comprometido com Ophelia, só pelo lugar onde
nos haviam visto juntos, quando eu jamais a toquei. E não parece que haja forma de
impedir essas bodas a menos que...
- A menos... ?
Duncan se voltou, perguntando-se como podia ocorrer aquilo, e até mencioná-lo,
quando seria utilizar a Sabrina só para salvar sua pele. Certamente, o resultado seria
imensamente mais desejável, mas estaria aproveitando-se dela outra vez.
- Nada - balbuciou ele- É uma idéia absurda que é melhor não mencionar.
- Eu acreditava que você teria em conta todas as opções, se realmente não quer se
casar com ela.
Sabrina disse em um tom bastante tenso, o que impulsionou Duncan a dar a volta e
lhe responder à defensiva.
- E você acredita que não o tenho feito? Eu tenho muito claro que não é a ela a
quem comprometi, a não ser a você. Se tiver que me casar com alguém, essa deveria ser
você. Ah. Não era assim como queria que soasse.
Sabrina adotou um tom ainda mais tenso, embora argumentou:
- Seja o que for que você queira dizer, essa opção está descartada, Duncan, porque
não impediria a ruína de Ophelia se ficarem sabendo que esteve a sós com ela em
seu quarto. Não importa que você jamais a tenha tocado. Um rumor é precisamente
isso, e eu sei por experiência quanto pode prejudicar. As aparências são tudo em um
rumor, e a verdade e os fatos quase não têm importância. E por muito que eu deteste
agora Ophelia, não participarei de sua ruína, direta ou indiretamente.
Depois daquilo, voltou a afastar-se dele. Esta vez Duncan não tentou detê-la. Seu
encontro não lhe tinha levantado o ânimo como esperava. Se tinha conseguido algo, era
aumentar seu desassossego. E a razão era que Sabrina parecia tão abatida como ele.
Capítulo 38
- Bom, eu não quero me casar contigo - disse mal-humorada- Não mais, em qualquer
caso, posto que falar com seu avô demonstrou-me quão aborrecido será viver aqui.
Mas você, não tem razão para continuar dissimulando, Duncan. Sabe que casar comigo
não vai importar. Sem dúvida, você só repara à forma em que voltamos a nos
comprometer.
Duncan demorou um momento em recuperar a fala antes de responder:
- Ocorreu-lhe alguma vez, Ophelia, que o aspecto físico pode não ser o mais
importante para todo mundo, que alguns homens podem preferir a uma mulher por
suas boas qualidades e não por seu rosto bonito?
Ophelia ficou olhando-o durante uns instantes sem compreender nada, mas logo se
pôs a rir com condescendência e lhe informou:
- Tive centenas de propostas de matrimônio para demonstrar o contrário, e a maioria
de homens que mal me conheciam. O que diz isso sobre o que preferem os homens?
- Diz-me que lhe convenceram para que pense que quão único importa é sua beleza.
E teria que casar com um deles para abrir de uma vez os olhos, quando ele acabasse
sabendo como é de verdade. Deixe eu explicar. Eu não gosto de como é. Eu não gosto
quão cruel pode chegar a ser. Eu não gosto da forma em que tratas às pessoas, como se
ninguém importasse além de você.
- Se acredita que...
Duncan interrompeu sua indignada resposta dizendo no tom mais sereno que foi
capaz:
- Fica calada por uma vez e deixe que explique por que estou dizendo isto. Se
tivermos que nos casar, e não parece que alguma coisa vá liberar-nos de fazê-lo, só
teremos duas opções: viver em paz um com o outro ou converter isto em um inferno.
Mas a única forma de que haja paz é que você mude sua forma de agir. Acredita que
poderá fazê-lo?
- Não há nada mal em minha forma de me comportar - insistiu ela.
Duncan suspirou.
- Se não é capaz de entender que eu acho reprovável seu ar de superioridade e sua
tendência a ser cruel, então não temos nada mais de que falar.
- Um mero insulto sem importância me converte em uma pessoa cruel? Acaso
importa saber por que o insultei? Importa que eu não queria me casar contigo, que
estivesse furiosa com que tivessem combinado meu compromisso sem sequer me
consultar? Eu só queria rompê-lo. O que tem de mal nisso?
- Tinha outras opções - disse-lhe Duncan- A mais óbvia é que podia ter dito para
mim como se sentia e poderíamos ter posto fim ao compromisso de um modo
amigável.
- Deve estar de brincadeira. Eu sabia que assim que me visse não haveria nada que o
dissuadisse de casar comigo, a menos que rompesse o compromisso em um momento
de raiva, tal e como fez.
Duncan entendia seu raciocínio, até certo ponto. Ao vê-la pela primeira vez, ele
havia se sentido incrivelmente afortunado. Sua beleza o tinha cegado como sem dúvida
acontecia com os outros homens. Se Ophelia houvesse dito que não queria casar-se
com ele, é muito possível que ele tivesse tentado fazê-la mudar de opinião, ao menos
até conhecê-la melhor e descobrir que não era de seu agrado. Assim, se ela tivesse sido
honesta o resultado teria sido provavelmente o mesmo.
Mas, em vez de ser honesta, tinha tentado manipulá-lo com seus insultos, e tinha
conseguido. E seus ardis não acabavam ali...
- Difundir rumores para me desprestigiar também tinha a mesma finalidade?
- Não seja tolo - disse ela em tom jocoso- Isso não foi absolutamente por você, a
não ser para demonstrar a meus pais que você não era o marido ideal que eles
pensavam para mim. Assim, eu poderia lhes convencer de que desfizessem o
compromisso eles mesmos. Mas isso não funcionou. Estavam decididos acontecesse o
que acontecesse. E não finjamos que isso o ofendeu. Era impossível que o prejudicasse,
a menos que os rumores resultassem ser certos. Bastou com que as pessoas tivessem a
oportunidade de conhecê-lo para ver que eram injustificados.
Duncan sacudiu a cabeça.
- Não se dá conta de quão desprezíveis são todas suas maquinações? Quando um
pouco de honestidade haveria...?
- Bastado? - interrompeu-lhe ela, agora com aspereza- Tentei, Duncan. Disse a meus
pais desde o começo que não queria me casar com um homem que não conhecia.
Agora me diga você uma coisa e seja sincero. Como se sentia você estando
comprometido com uma mulher que não conhecia? - Suspirou- Não se importava.
Obviamente não se importava, porque seguiu adiante.
Duncan se ruborizou porque aquilo não era de tudo certo. Ao inteirar-se de que lhe
tinham procurado esposa sem consultar tinha reagido como Ophelia, ou ao menos
como ela afirmava ter feito.
Viu-se obrigado a admitir:
- Na realidade, não me inteirei até uns dias antes de vir aqui. Eu já tenho idade para
escolher a minha esposa, sabe? Neville estava equivocado se pensava que podia fazê-lo
por mim. Eu teria quebrado o compromisso, mas me pediram que ao menos a
conhecesse antes, e fiz conta.
Ophelia também se ruborizou. Logo se lamentou em tom defensivo:
- Bom, e como eu ia saber? Mas, como parece que você admira tanto a honestidade,
me diga: teria-o rompido se eu não te tivesse insultado?
Dado que acabava de considerá-lo, a resposta do Duncan foi rápida.
- Não. Ao menos não imediatamente. É bela, ninguém pode negar. Mas não teria
demorado muito para ver o que havia debaixo da superfície e em comprovar que eu
não gostava do que via. Agora já não temos escolha, e me inteirei que inclusive isto se
deve em parte por sua forma de agir, porque se inimizou deliberadamente com a moça
que nos surpreendeu juntos. Se tivesse sido qualquer outra pessoa, agora não nos
acharíamos nesta situação.
- Isso é muito improvável - rebateu ela- Comprar o silêncio é um assunto espinhoso
que nunca é seguro.
Duncan olhou o teto.
- Nem todo mundo necessita que o comprem. Algumas pessoas acredite ou não,
compreenderiam e não quereriam que nenhum de nós ficasse prejudicado ou
desprestigiado por um encontro inocente que pôde ser interpretado mal.
- Confia muito na natureza humana - mofou-se ela.
- E você muito pouco. Assim voltamos para o princípio, acredito que estamos
condenados a seguir juntos. E eu ainda quero saber se você seria capaz de mudar sua
forma de agir. Pode deixar de se vingar de seus inimigos só porque você não gosta do
que dizem ou fazem? Pode deixar de maquinar e tecer formas de se vingar? Pode deixar
de mentir só porque te convém ou...?
- Oh, basta - interrompeu-o ela- E por que não deixo simplesmente de respirar?
- O sarcasmo não vai servir de nada.
- Não foi sarcasmo - replicou ela- É evidente que você é muito nobre de
pensamento para meu gosto, Duncan. Assim, por que não admitimos que não
parecemos um com o outro e que jamais nos pareceremos? Pensava que não me
importaria me casar contigo, quando o conheci, mas depois mudei de opinião, sobre
tudo depois de falar com lorde Neville e saber com todo luxo de detalhes quão
aborrecido será viver aqui. Acredite-me. Quero me liberar deste compromisso tanto
como você. Agora, inclusive suplicaria a Mavis, sim "suplicaria", para que mantivesse a
boca fechada. Mas sei que não serviria de nada. Ela me odeia. Provavelmente, sempre
foi assim.
- Por quê? - inquiriu ele- A menos que você fizesse algo para incitá-la.
- Não seja ingênuo. Não fiz nada além de nascer com este aspecto, o qual provoca
inveja e ciúmes nas demais mulheres, e isso conduz a uma hostilidade da pior classe.
Tentam dissimulá-lo, mas nem sempre consegue. Mavis, como tantas outras, só fingia
ser minha amiga porque eu tenho êxito, sou a estrela. Acredita que eu não sei que me
utilizam? Acredita que é fácil lhe subtrair importância disso?
- Acredito que, se não suspeitasse que você é a responsável por que lhe odeiem
tanto, poderia ter pena.
- Como se atreve? - alfinetou Ophelia- E se quer sair desta situação tão horrenda que
por acaso preciso recordar isso, você provocou com seu maldito gênio, então faz algo!
Eu não posso percorrer todo o país tentando encontrar a Mavis, mas você sim. Assim
deixe de lamentar e nos tire disto.
Ophelia partiu de mau humor, deixando Duncan como no princípio, com poucas
esperanças sobre seu futuro. Ele ir em busca da Mavis Newbolt, quando nem sequer
estava familiarizado com aquele país? No entanto, Ophelia tinha razão. Tinha estado
lamentando-se. Tinha permitido que a situação o mergulhasse em um estado de
abatimento que ele não superava. Entretanto, seu ceticismo não era motivo para ficar
de braços cruzados.
Sua única esperança real era que houvesse homens procurando a Mavis, homens
habituados a seguir a pista de pessoas, ou isso era o que seu avô lhe tinha assegurado.
No entanto, aquilo não era suficiente para tirá-lo de seu abatimento, não estando o dia
de suas bodas tão perto.
Capítulo 39
Nesse ponto, Duncan poderia lhe haver torcido o pescoço por lhe haver dado
esperanças e logo as haver frustrado. Sem dúvida sua expressão delatava seus
pensamentos, porque Raphael se afastou ao menos um passo dele.
Mas logo sorriu com descaramento e acrescentou:
- Eu poderia tirá-lo dessa enrascada.
- Inclusive se isso fosse certo, o qual duvido, por que ia você fazê-lo?
- Meu deus, não importa que seja tão desconfiado. Não tenho outros motivos, o
asseguro. Simplesmente sei que você preferiria casar-se com outra pessoa.
Sabendo a freqüência com que Raphael mencionava a sua irmã a pequena, Amanda,
e que já devia estar farto de lhe fazer de acompanhante, o qual só poderia deixar de
fazer se ela contraía matrimônio, Duncan não duvidou que Raphael estivesse se
referindo a ela.
Assim, assegurou-lhe:
- Você está equivocado. Eu não quero me casar com ela.
- Não? Surpreende-me você. Estava convencido. - E logo, com um suspiro,
acrescentou- Muito bem, então estava equivocado. Mas mesmo assim quero lhe ajudar.
- Como?
- Pedindo a Ophelia que se case comigo, é obvio. Eu sou, o único pelo qual o
rejeitaria.
Duncan não pôde reprimir um resmungo.
- Meu senhor, tem você em muito alto conceito, possivelmente tanto como Ophelia
tem a si mesma.
Raphael sorriu zombador.
- Absolutamente. O que estamos falando é de títulos, que é quão único lhe interessa
isso e a fortuna que entranham. Não cometa o engano de pensar que é a você a quem
quer. Resulta que o título que eu vou herdar é mais elevado que o seu.
- Inclusive se isso funciona, que não o fará, eu não poderia lhe pedir que fizesse
tamanho sacrifício.
- Que sacrifício? Eu não estou falando de me casar realmente com ela - disse
Raphael, estremecendo-se- Pedirei, estaremos comprometidos durante um tempo e
logo romperemos o compromisso. Até serei um cavalheiro e deixarei que ela termine
nosso relacionamento. Para que salve sua reputação e todo o resto. Assim ninguém
sairá prejudicado, você evita um destino pior que a morte, eu retomo minhas habituais
aventuras libertinas e todos ficam contentes.
- Salvo Ophelia, que ainda terá sobre sua cabeça a ameaça dessa inimizade dela,
disposta a difamá-la em qualquer momento com a informação que possui - assinalou
Duncan- O que impedirá a Mavis difundir essa história se Ophelia não se casar
comigo? O fato de que se comprometa com você não vai impedir, mas sim converterá
a história em um verdadeiro escândalo, e isso é precisamente o que estamos tentando
evitar.
Raphael franziu o sobrecenho, ao parecer tinha esquecido aquele aspecto.
- Bom, diabos. Então está você em um verdadeiro apuro, não? O que espera então?
Agora que o penso, faz tempo que não vou a Manchester. Acredito que irei com você.
Nós dois podemos cobrir uma zona muito mais ampla que uma só pessoa. Melhor
ainda, faça seu avô saber para que possa enviar também a sua gente.
Por muito que Duncan pesasse admiti-lo, e seguia sem gostar dos rodeios que
Raphael empregava para dizer as coisas, aquele indivíduo estava começando a lhe
agradar depois de tudo.
Capítulo 40
Para Sabrina, a vida seguia adiante. Deu-se conta de que se conseguia não pensar em
Duncan era inclusive capaz de voltar a rir quando tinha vontade de fazê-lo. Entretanto,
assim que baixava a guarda, era fácil que começasse a chorar, mas, no geral, conseguia
ser a de sempre no dia a dia.
Salvo em uma ocasião, quando o pobre Robert Willison se deteve para falar com ela
em Oxbow e tinha tido que presenciar uma de suas choradeiras. Vê-la desfazer-se em
lágrimas diante dele o tinha incomodado tanto que tinha ido em busca de três aldeãos
para que o ajudassem.
No entanto, quando chegou todo mundo, Sabrina já voltava a ser dona de seus atos
e atribuiu as lágrimas a uma bolinha de pó que tinha no olho, recordando ao seu
público que uma boa choradeira era a melhor forma de limpá-las com lagrimas.
Tinham-na tratado com cuidado como se fosse uma tola. As pessoas freqüentemente a
olhava assim quando dizia algum absurdo, assim que aquilo não foi nada fora do
normal.
Suas tias também tinham decidido que estava "recuperada", embora nunca tivessem
falado sobre a enfermidade que a tinha afligido. Sabiam que tinha a ver com Duncan,
mas, por um acordo tácito, tinham decidido não tentar lhe surrupiar nada. Entretanto,
o tema surgia de vez em quando. Como não ia ser quando as bodas de Duncan
continuavam sendo o principal tema de conversa na vizinhança e, portanto, resultava
tão difícil evitá-lo?
Entretanto, havia tornado a pensar em outros cavalheiros adequados para ela e, justo
a noite anterior, estando reunidas no salão depois do jantar Alice mencionou a um
cavalheiro que acabava de chegar fazia pouco.
- Chama-se sir Albert Shinwell. Está construindo uma casa senhorial ao outro lado
do Oxbow, perto da bonita pradaria. Ouvi que acaba de receber uma inesperada
herança e que decidiu fazer uma casa aqui.
Hilary assentiu, acrescentando:
- As pessoas têm tendência a gastar muito dinheiro quando acabam de herdá-lo. É
estranho, mas sempre acontece o mesmo.
- Ouvi que também está construindo uma em Bath e outra em Portsmouth. Parece
que a herança é substanciosa.
- Não está casado, nem o esteve nunca - disse Hilary- Confirmaram-me isso.
- E é jovem - acrescentou Alice- Não chega aos trinta.
A essas alturas, Sabrina já não teve nenhuma dificuldade para saber a aparência que
teria a conversa.
- Passarei para conhecê-lo, mas não o tragam aqui para me apresentar a ele.
- Nós não faríamos uma coisa assim, querida, ao menos eu - assegurou-lhe Hilary.
- O que quer dizer, que eu faria? - bufou Alice- Não sou tão insensível para não me
dar conta de que a nossa Sabrina não faz nenhuma graça com o casamento na próxima
semana.
- Não, só é o bastante insensível para mencioná-lo! - replicou Hilary com um
resmungo.
Sabrina ficou em pé para distraí-las, antes que a rixa fosse maior, e voltassem a lhe
fazer caso.
- Está bem. Não têm que suavizar o tema diante de mim. É certo. Como tia Hilary,
eu também pensava que entre Duncan e eu podia haver algo mais que uma simples
amizade, mas me equivoquei. Superarei. Que tenha voltado a comprometer-se com
Ophelia foi uma surpresa mais que outra coisa, da que agora estou recuperada. Sério,
encontro-me bem.
Partiu antes que o tremor de seus lábios a mostrasse o contrário do que aquela
afirmação, mas as duas irmãs se olharam, sabendo o que ocorria.
- Mente - suspirou Hilary- Continua muito triste.
- Sei. - Alice suspirou um pouco mais alto- Eu gostaria de ter um porrete e...
- Eu também - interrompeu-a Hilary- Mas do que serviria isso? Nenhuma mulher
poderia competir com alguém como Ophelia, nem sequer alguém tão maravilhosa
como nossa Sabrina. Os homens podem ser tão cegos e estúpidos.
Alice poderia ter rido com aquele comentário, se o tema não abatesse também a elas.
- Não é que tenha importância, mas, pensando-o bem, melhor assim. Não acho
graça que esse insociável do Neville fosse me olhar por cima do ombro se acabasse
sendo parentes por afinidade deles. Deixou sua postura bem clara no dia quando surgiu
o rumor, demonstrando que não queria ter nada mais a ver com nossa família.
- Não estou tão segura de que fosse só isso - respondeu Hilary pensativa- Fez um
comentário na festa que me levou a pensar que o que lhe tinha aborrecido é o que
nosso avô fez, não o rumor que tinha dado pé. Eram muito bons amigos. Ao menos,
estavam acostumados a caçar sempre juntos.
- Que comentário?
- Perguntou-me se a imbecilidade seguia sendo coisa de nossa família - respondeu
Hilary.
Alice ficou furiosa, que se fez patente em seu tom de voz e no rubor que tingiu suas
bochechas.
- Puxa. Pequeno hipócrita! Quem foi o que deixou que sua filha partisse e se casasse
com um escocês das Terras Altas e logo lamentou durante o resto de sua vida? Isso sim
que é ser um imbecil.
Hilary negou com a cabeça.
- Isso foi uma circunstância que não pôde evitar-se, pois ela se apaixonou por aquele
homem. O que deveria ter feito é impedir que se conhecessem.
- Você o respondeu, espero - respondeu Alice, ainda indignada.
- É obvio. Mas depois de pensar nisso, acredito que só estava referindo ao feito de
que o avô se disparasse e isso, deve admitir, é o que nós pensamos de vez em quando.
- OH, bem, depois choveu muito - disse Alice. Logo passou a outra queixa- Mas
você nunca deveria ter animado a Sabrina para que pensasse que tinha alguma
oportunidade com Duncan. Neville não teria permitido que se casassem.
- Animá-la como? - Hilary olhou a sua irmã com ira- Tenho olhos, sabe? Era
evidente que o jovem estava interessado nela, embora, pelo que parece, o que ele
apreciava não era mais que sua amizade - acrescentou com um suspiro.
- Não podemos culpá-lo por isso - respondeu Alice- Sabrina é um encanto.
- É obvio que é. Entretanto, equivoca-se pensar que Neville teria posto objeções por
causa do rumor. Não teria gostado, mas pelo que sei, ele só quer um novo herdeiro, e
depressa. Com tanta pressa, não pode precisamente pôr muitos reparos.
- Certamente que sim - discrepou Alice- Esse era o motivo da festa. Duncan tinha
mais moças entre as que escolher do que necessitava, e olhe o que aconteceu.
Terminou ficando com a que Neville queria para ele.
- Mas ele a escolheu?
- A que se refere?
- Conhece a filha de Mary Petty, a que trabalha como donzela em Summers Glade?
Falei com a Mary esta manhã no sapateiro. Diz que sua filha lhe contou que em
Summers Glade ninguém está contente com as bodas, em especial os noivos.
- Nenhum dos dois?
- Isso é o que ela me disse.
- Isso não tem sentido. Então, por que se casam?
Hilary arqueou uma sobrancelha, ante o qual Alice exclamou:
- Tolices. Não se ouviu nem o mais mínimo rumor de que...
- Exato - interrompeu-a Hilary com um sorriso matreiro- Os matrimônios não
desejados servem para cortar um rumor! Na raiz antes que possa começar a espalhar-se.
- Uma conjetura sem base alguma, neste caso - assinalou Alice- Só está se
aventurando com uma opinião.
- O sentido comum...
Alice a interrompeu:
- Quem diz que você tem?
- Diabos. Falar contigo é como falar com a maçaneta de uma porta - lamentou-se
Hilary.
- O que significa...?
- Que sabe girar a maçaneta, mas não tem a inteligência que se necessita para abrir a
porta.
- Ou sou o bastante inteligente para saber que do outro lado da porta não há nada
que valha pena - respondeu Alice triunfal.
Hilary se deu por vencida. Aquele comentário era muito agudo e, embora nunca o
admitisse, estava orgulhosa de que a sua irmã tivesse pensado.
Capítulo 41
Aquela manhã, quando Sabrina passou por Oxbow seguindo a rota que tomava
todos os dias, teve quatro encontros que a convenceram de que teria que abandonar
seus velhos costumes ao menos durante um tempo. Ela sabia que podia seguir adiante
se conseguisse afastar Duncan de seu pensamento, mas isso era impossível se as
pessoas não faziam mais que recordar-lhe e Duncan, que ainda era novo na
comunidade, ia ser tema de conversa recente durante bastante tempo. Agora também
sir Albert começava a adquirir certo protagonismo, mas Duncan, como correspondia a
seu elevado título nobre, continuava sendo de maior interesse.
As duas primeiras pessoas com quem se encontrou lhe disseram que Duncan partiu
para Londres, provavelmente para comprar para sua noiva um presente de bodas. O
terceiro encontro, com a anciã senhora Spode, não foi muito distinto.
A senhora Spode era uma anciã resmungona, uma das amigas mais divertidas que
tinham as tias da Sabrina. Ela caiu na risada com a hipótese do "presente de bodas",
sussurrando a Sabrina que possivelmente o jovem lorde tinha partido a Londres, indo
para uma última farra antes da cerimônia, em especial porque lorde Locke, um
conhecido libertino, tinha-o acompanhado.
- E eu pergunto a você, saberia lorde Locke onde encontrar presentes de bodas, ou,
onde encontrar senhoras de má reputação? O último é obvio. Se o jovem lorde retornar
com um presente, será com uma dessas horríveis enfermidades. - E a anciã pôs-se a rir,
admirada por seu engenho.
Sabrina não tinha gostado daquela conversa e, de fato, deixou à senhora Spode com
uma pressa que poderiam considerar de má educação. Mas, antes que pudesse sair de
Oxbow, teve o quarto encontro.
Aquele foi o pior, pois se tratava do avô de Duncan. Não Neville. Sabrina teria
levado bem a conversa com ele se tivesse podido se repor da surpresa que teria ao vê-lo
em Oxbow. Entretanto, foi o avô escocês quem a saudou ao sair da estalagem de
Oxbow, o avô que ainda não conhecia, embora ele parecia conhecê-la bastante bem
para chamá-la por seu nome.
- Então, posso lhe falar sem disfarces. Bem, eu não gosto de dar rodeios. Por isso
me preocupa que você não venha. Sabe? Agora mesmo, Duncan necessita de amigos.
Espero que você possa animá-lo um pouco quando fala com ele.
Animá-lo? O encontro com o Duncan no caminho tinha sido muito doloroso.
Inteirar-se de que estavam o obrigando a casar-se com Ophelia foi quase tão mau como
pensar que queria fazê-lo. E, por outra parte, os dois lhe davam versões muito distintas
da relação. Ophelia era conhecida por suas mentiras, assim que sua afirmação de que
Duncan seguia mostrando paixão por ela poderia ter sido uma invenção dela. Mas e se
fosse Duncan quem mentisse quando dizia que não queria a Ophelia por esposa?
Tinha-lhe recordado que, na realidade, só tinha se comprometido com ela. Tinha
sido aquela sua intenção desde o começo? Tinha pedido a Ophelia que se casasse com
ele em um momento de paixão e se arrependeu justo depois? E usou logo a Sabrina
para lhe proporcionar uma escapatória?
Sabrina não queria pensar assim dele, embora o certo é que podia ter ocorrido dessa
forma. Ao fim e ao cabo, por que ia Ophelia mentir a respeito do momento em que lhe
pediu que se casasse com ele? Só porque Sabrina tinha sido incapaz de lhe ocultar que a
resposta era de suma importância para ela?
No entanto, estava se enganando, tentando ver defeitos em Duncan com a esperança
de que isso extinguisse seu amor por ele. Não funcionava. Sabrina não pensava
realmente que tivesse mentido. Mas, inclusive se o tinha feito, era óbvio que agora o
lamentava.
Aquele dia, Sabrina tinha querido animá-lo. Havia sentido um forte impulso de fazê-
lo. Mas como podia animar a alguém estando ela tão abatida?
Decidiu evitar a pergunta do Archibald por completo, e mudança de tema:
- Acabo de me inteirar de que Duncan foi a Londres. Talvez a viagem faça que deixe
de pensar em...
- Não, foi em busca de Mavis Newbolt, assim não pensará em outra coisa.
Ouvir aquilo a surpreendeu e a esperançou.
- Então, sabe onde procurá-la?
- Não exatamente - disse ele, desiludindo-a- Não queria ficar de braços cruzados
enquanto os homens de Neville a buscavam, assim foi ele mesmo. Embora não tem
muitas possibilidades de encontrá-la, e sabe. Fica muito pouco tempo para as bodas.
- Suponho que assim é.
Sabrina conseguiu conter-se e não suspirar.
- Eu queria adiá-la, mas Neville opina que qualquer demora por nossa parte daria pé
a que se espalhasse o rumor.
- Então, devem confiar em que Duncan tenha sorte.
- Uma esperança muito vaga. Mas se o moço consegue sair deste enrascada e volta a
procurar esposa, tenho a impressão de que pedirá a você que se case com ele.
Sabrina piscou.
- A mim?
- Sim, mas seria por motivos equivocados, sabe? Ele quer tê-la perto, isso é tudo.
Demonstrou até que ponto o deseja quando a convidou à festa, mesmo que isso
significasse trazer também a Ophelia teria procurado um quarto em Summers Glade se
isso não tivesse resultado impróprio. Acredito que se casaria com você só para tê-la
com ele de forma permanente. Tanto que valoriza sua amizade. Mas é só isso. Não se
deixe enganar pensando que Duncan sente algo distinto por você. Os dois lamentariam
se você se deixasse enganar.
Sabrina rogou para agüentar em pé uns minutos mais, até que pudesse afastar-se
daquela dolorosa conversa. Já tinha ouvido Archibald a primeira vez, quando lhe havia
dito que para Duncan não era mais que uma amiga. Tinha banido aquele pensamento
porque se lembrar disso destroçava o coração. Mas agora Archibald havia tornado a
abordar o tema e esta vez era impossível ignorá-lo. Uma amiga. Não era mais que uma
amiga. Jamais seria algo mais que isso.
- Você está preocupando-se com algo que tem poucas possibilidades de acontecer,
pois só faltam dois dias para as bodas.
- Certo - suspirou ele- E lhe peço desculpas, por ter a necessidade de adverti-la; só
no caso. Você irá às bodas, não é mesmo?
Estar ali e presenciar como Duncan e Ophelia se uniam para sempre? Por nada do
mundo. O qual a obrigou a dizer outra mentira, embora esteja vez indireta.
- Estou segura de que todos os que recebam convite assistirão. Agora devo retornar
para casa sem falta. Minhas tias pensavam que não ia demorar-me tanto e começarão a
preocupar-se...
Sabrina não o ouviu soprar pela segunda vez quando partiu a toda pressa. Archibald
já começava a lamentar o que lhe havia dito. Não tinha dúvida de que era certo, mas se
deu conta, quando já era tarde, de que tinha posto o carro diante do cavalo. Não havia
nenhum motivo para adverti-la de nada, pois com toda probabilidade Duncan se
casaria com outra. Se conseguisse evitá-lo, seria então quando chegasse o momento das
advertências, não antes.
Capítulo 42
A carta chegou à tarde seguinte. Deixou a Sabrina perplexa por completo. Estava
convencida de que se tratava de uma brincadeira. Era muito absurda. Se haviam
sequestrado alguém importante, por que pediam unicamente quarenta libras de resgate?
Se tivessem sido quarenta mil, ou inclusive uns quantos milhares mais, poderia havê-la
tomado a sério, mas só quarenta libras, uma cifra tão pouco habitual? Tinha que ser
uma brincadeira.
Mas não podia ignorá-la sem mais. Nem sequer estava segura de que a pessoa que
assinava a carta fosse quem dizia ser. Se for uma brincadeira, não a teria enviado essa
pessoa. Mas não tinha outras das suas cartas com as quais compará-la. Assim, ante a
improvável possibilidade de que a carta fosse legítima, Sabrina tinha que agir.
Mostrou para suas tias. Embora o remetente pediu-lhe para guardar segredo, Sabrina
não podia sair sem dar uma explicação.
As duas coincidiram em que tinha que ser uma brincadeira, e de muito mau gosto.
Mas, sem dúvida, estavam impacientem por viver uma pequena aventura, embora não
fosse mais que uma perda de tempo. Assim, chamaram seu chofer, que vivia em
Oxbow, e as três estavam a caminho na última hora daquela mesma tarde.
Suas tias sabiam que não poderiam acompanhá-la até seu destino, porque as
instruções diziam que Sabrina devia apresentar-se só com o dinheiro. Mas alegaram que
não podia viajar sozinha e que desejavam estar perto dela para averiguar quanto antes à
identidade do brincalhão.
Sabrina não o via como uma aventura, mas sim como uma boa desculpa para não
assistir às bodas na manhã seguinte, pois era mais que improvável que pudessem estar
de volta a tempo. Inclusive se ficavam em caminho justo depois de confirmar que a
carta não era mais que uma brincadeira não chegaria a casa até altas horas da noite, ou
inclusive de madrugada. Assim, ela poderia levantar-se muito tarde, quando as bodas já
se celebraram.
Chegaram quando já tinha anoitecido. Por isso tiveram dificuldade para encontrar o
endereço consignado na carta. Há essas horas não havia muitas pessoas na rua a quem
perguntar, e em duas ocasiões lhes indicaram o caminho errado. Já era quase meia noite
quando por fim encontraram a residência.
Alice e Hilary foram esperar na carruagem, perto dela. A carta fazia insistência em
que Sabrina devia ir sozinha para que ninguém acabasse ferido, mas elas se negaram
redondamente a deixá-la sozinha. E tinha que gritar tão alto como pudesse se
necessitasse ajuda. Mickey, o chofer, estava informado de sua missão e havia trazido
uma pistola e um pau de muito mau aspecto.
Por outra parte, as tias da Sabrina também levavam uma arma cada uma. Ela tinha
tido que conter-se para não rir ao as ver meter em suas bolsinhas duas pequenas
pistolas idênticas antes de ir para o caminho.
Em sua opinião, aquelas precauções eram de tudo absurdas. Estava convencida de
que se encontraria com a casa vazia, ou com outra carta lhe aguardando no alpendre,
rindo de quão tola tinha sido ao vir. A completa escuridão que reinava no interior da
moradia respaldava sua hipótese. Não havia nenhuma só luz, nem sequer mortiça, em
nenhuma das janelas. A casa era muito bonita, de dois pisos, não muito grande, mas
tampouco pequena. Não era precisamente o cenário que alguém imaginaria para
cometer atos iníquos, como manter a alguém cativo com a intenção de cobrar um
resgate.
No alpendre não havia nenhuma carta. Tentou abrir a porta principal, mas estava
fechada. Como é lógico em uma casa vazia, disse-se Sabrina. Pensou em ir à parte de
atrás para ver se havia outra porta que pudesse estar aberta, mas imaginou que
provavelmente tropeçaria em algo na escuridão e, por outra parte, ela não queria
manter sua visita em segredo. Assim, bateu energicamente na porta. Quanto antes se
confirmasse que na casa não havia ninguém, antes poderiam retornar ela e suas tias.
A porta se abriu. Aquela foi à primeira surpresa de Sabrina. A segunda foi que a
arrastassem para dentro e fechassem a porta. A casa seguia estando às escuras, mas
ouvia respirações e passos. E logo alguém ligou uma lamparina e se fez a luz.
Entretanto, a lamparina seguia coberto com algo fino como uma gaze e a iluminação
era tão tênue que só se distinguiam as silhuetas.
Sabrina estava rodeada por quatro homens. Teve que virar sobre si mesma para ver
todos. Não estava impressionada, embora tivesse que admitir que, depois de tudo, a
carta que tinha recebido não era uma brincadeira.
Era um grupo patético: eram mal vestidos e três deles estavam tão esquálidos que
Sabrina se perguntou se estavam habituados a comer todos os dias. Estavam
desalinhados, inclusive sujos, o que sugeria que deviam banhar-se com tão pouca
freqüência tal como comiam. Podiam ser mais jovens que ela ou inclusive mais velho
que suas tias; resultava difícil distingui-los debaixo de tanta imundície.
O quarto homem era algo distinto; ao menos, fazia um esforço para parecer
apresentável. Estava limpo e devia rondar os vinte e cinco anos. Levava o cabelo
penteado para trás com fixador e bastante longo para que lhe frisasse na nuca. Sua
roupa também estava em melhor estado, embora certamente não fosse de boa
qualidade. E não parecia esfomeado. De fato, tinha boa figura. Também era o único
dos quatro que não lhe apontava uma pistola. Aquelas três armas, que Sabrina viu em
seguida, insistiram-na a guardar silêncio.
Sabrina supôs que seriam delinqüentes, embora, se o eram, saltava à vista que não
devia ir muito bem. As armas que levavam, por exemplo, indicavam que devia tratar-se
de principiantes. Não parecia que as tivessem usado durante bastante tempo. Todos
eles estavam desconjurados naquela bonita casa.
Quando Sabrina começou a recuperar-se de sua surpresa, deu-se conta de que dois
daqueles homens também se surpreenderam com sua aparição. Entretanto, não
demorou em saber por que, quando começaram a falar sobre ela, todos de uma vez por
isso lhe custou um pouco lhes seguir o fio.
- Outra mulher.
- Sim, verdade? Está pensando o que eu?
- Podemos enviar à outra para que traga um resgate por esta, digo eu.
- Eu estava pensando o mesmo.
- Alegro-me de que estejamos de acordo. - As palavras foram acompanhadas de um
sorriso- Isto poderia converter-se em uma boa linha de trabalho.
- E tampouco pode dizer-se que tenha pressa para deixar essa cama tão branda que
tenho acima.
- Trouxe o dinheiro, senhora?
Era a primeira vez que se dirigiam a ela. Sabrina ainda estava assimilando a noção de
que aqueles indivíduos queriam retê-la ali, se tinha compreendido bem. E não lhe
ocorria uma forma razoável de tirar a idéia da cabeça deles, por isso tentou ganhar
tempo.
- Bom, não sei muito bem do que estão falando - respondeu, e se jogou uma luz- E,
o que estão vocês fazendo em minha casa?
- Sua casa? O cavalheiro disse que era a sua.
- Que cavalheiro?
- Que trancamos no porão, que é aonde irá parar você se não houver trazido o
dinheiro.
- Bem, se expõem isso assim, estou segura de que posso retornar com um pouco de
dinheiro - disse-lhe ao último que tinha falado- Quanto necessitam?
- Está-nos tirando sarro? Não recebeu a carta que lhe trouxe aqui?
- Uma carta? Puxa, sim. Mas esta semana quebrei as lentes e não pude lê-la. Era para
me dizer que vocês tinham apanhado a alguém que tinha invadido minha casa? Nesse
caso, sua ação é louvável e, certamente, merecem vocês uma recompensa. É esse o
dinheiro de que estão falando?
Os homens trocaram olhares, desconcertados, até que um deles disse:
- Senhora, limite-se a me dizer sim ou não. Você tem as quarenta libras?
Aquela quantidade tão pouco habitual cobrava sentido agora, quarenta dividido por
quatro. Embora seguisse sendo uma quantidade irrisória.
- Puxa, sim, agora que o diz...
- Sim ou não?
- Disse que sim - assinalou um deles.
Um grunhido de frustração.
- Ouvi-a, mas isso ia ser mais que um simples sim ou não.
- Está louca - disseram detrás dela- Não se esforce por entendê-la...
- Você se assegure de que tem o dinheiro.
Tiraram-lhe a bolsinha. Ela protestou indignada.
- Hein! Ouça...!
- Está vazio - lamentou-se o homem que o tinha tirado- Diga-me você, por que leva
a bolsa vazia?
- Já disse que não tente compreender aos ricos. Estão todos endoidecidos.
Sabrina ouviu outro grunhido de frustração a sua esquerda.
- Onde está o dinheiro, senhora?
- No bolso, naturalmente. Qualquer muito inocente saberia que não deve levar o
dinheiro na bolsa, quando as bolsas são o primeiro objetivo dos ladrões. Você acaba de
tirar-me de um puxão, não? Isso o certifica.
Eles voltaram a olhar-se, mas esta vez seriamente zangados. De fato, Sabrina não se
surpreendeu quando a tomaram pelo braço e a levaram a piso de cima.
Supôs que não deveria ter posto em prática com eles sua tática de dizer tolices. Não
as apreciavam no mais mínimo. Mas, depois de ouvir que se estavam querendo prendê-
la ali, necessitava tempo para pensar em tudo o que isso implicaria. Já sabia em parte e
não gostava de nada. Assim, agora precisava achar a forma para que a deixassem partir.
Aquilo era primitivo. Depois de tudo, se não saía logo da casa, suas tias quereriam
entrar e também teriam que as reter. E se as retinham as três, a quem pediriam o
dinheiro do resgate? Certamente, à seu parente longínquo não, o que tinha herdado o
título de seu bisavô se negava inclusive às reconhecer como parte da família.
Quando a colocaram a empurrões em um quarto do piso de cima e fecharam de uma
portada, pensou que disporia de tempo para pensar, e o teria feito, se Mavis Newbolt
não tivesse estado também ali.
Capítulo 43
O aposento estava às escuras. O único que indicou a Sabrina que não estava sozinha
foi uma voz tremente, que lhe soou familiar, proveniente de algum ponto do quarto,
lamentando-se:
- E agora o que quer?
- Sou eu, Sabrina - disse ela para o lugar de onde procedia a voz- Não me esperava?
- Oh! Sim! Mas por que demorou tanto? Faz dias que lhes mandaram a carta e a
colocaram na caixa de correio.
- Eu não a recebi até hoje.
- Ora, esses idiotas - disse Mavis com desdém-Deveria ter imaginado que não
saberiam nem enviar uma carta. Bom, não importa, enfim chegou. E não pode imaginar
quanto agradeço.
- Não há de que - respondeu Sabrina- Mas me surpreende que entrassem em contato
comigo. Pensei que a carta era uma brincadeira.
Um suspiro.
- Quem dera que fosse. Mas Sabrina, sinto seriamente ter lhe envolvido nisto. O
certo é que não me ocorreu ninguém mais com quem me pôr em contato perto daqui.
Teria demorado muitíssimo em contatar com meus pais e, além disso, eles acreditam
que eu continuo em Summers Glade e não queria que pensassem o contrário.
Incomodaria- lhes muito saber que parti, mas não fui diretamente para casa, e logo
aconteceu isto.
Sabrina decidiu não mencionar ainda que seus pais já soubessem que Mavis não
estava onde se supunha. Primeiro queria assegurar-se de que se encontrava bem, e para
isso tinha que vê-la.
- Aqui não há nenhuma vela que possa acender-se? Acho bastante estranho falar
com você às escuras.
- Há muitas, sim, mas não economizei muito. Já gastei todas as velas, e eles não me
trazem mais. Sem dúvida, não querem incomodar-se em buscá-lo, os folgados -
acrescentou Mavis com aspereza.
Entretanto, ao cabo de uns instantes, a luz da lua entrou em torrentes no aposento
quando Mavis correu as cortinas das duas janelas. Como Sabrina levava vários minutos
sumida na completa escuridão, aquela tênue iluminação foi para ela quase como
acender uma luz.
- Melhor? - disse Mavis, voltando a sentar-se no bordo da cama.
- Muito melhor - respondeu Sabrina, e se sentou junto a ela para examiná-la de
perto.
Mavis tinha bom aspecto, embora estivesse um pouco desalinhada. Estava vestida
com a mesma roupa que usava ao partir de Summers Glade, e parecia que não a tinha
tirado nenhuma só vez. Tinha dormido vestida, e tinha feito sobre a cama, sem meter-
se entre os lençóis, embora assim tivesse estado mais quente. Entretanto, não fazia
muito frio no quarto, o qual sugeria que o fogo tinha estado aceso e que fazia pouco
que o tinham apagado. O fato de que Mavis tivesse o casaco perto sugeria que estava
habituada com que, durante a noite, diminuísse a temperatura.
- Deram-lhe o que comer? - perguntou Sabrina preocupada- Tratam-na bem?
- Sim, deram-me o que comer, mas quase sempre me trazem barras de pão roubadas,
disso não me cabe a menor dúvida, porque imagino que eles não fazem o pão. A
despensa não estava cheia, só havia umas poucas provisões, e certamente as esgotaram
em seguida. E quanto a como me trataram, bom, tiveram-me trancada aqui em cima
quase todo o tempo.
- O que é exatamente o que está acontecendo aqui? - perguntou Sabrina a seguir- É
esta sua casa?
- Não, pertence ao meu primo John. Chegamos muito tarde, diretamente desde
Summers Glade. A casa estava um pouco desordenada e John em seguida suspeitou
que tivesse entrado alguém. Entretanto, não esperávamos que os intrusos seguissem
aqui, nem que estivessem dormindo no piso de cima. De fato, surpreenderam-se tanto
como nós. Pelo visto, encontraram a casa vazia e decidiram que seria um bom lugar
para ficar passando o inverno, ou até que o proprietário aparecesse. São vagabundos,
ou ao menos é o que me pareceu.
Sabrina também tinha chegado a essa conclusão.
- Suponho que não deu tempo para chamar as autoridades.
- Não houve tempo de pensar em nada lógico, se for isso ao que se refere. É o
primeiro que deveríamos ter feito. Sei. Mas suponho que John estava muito furioso
para pensar ou fazer as coisas como é devido. É compreensível. Tinham entrado em
sua casa. Ainda seguiam ali. Foi às nuvens. Mas não teria que ter tentado jogá-los aos
quatro ele sozinho.
- Aos quatro?
- Sim, já sei, conseguiria se fosse um bom atleta, e não o é, a briga era muito desigual.
E, depois de tudo, eles só queriam fugir. Assim, tudo poderia ter saído bem se John
não tivesse ido às nuvens. Quando tentou dar a um deles uma surra, os outros três
foram em sua ajuda e foi John que terminou mal.
- Fizeram-lhe mal?
- Imagino que feriram seu orgulho mais que outra coisa. Mas essa vitória os
encorajou. Amarram-no e o meteram no porão, e logo me trancaram aqui. Passaram
várias horas antes que subissem com o plano de resgate e me ordenassem que
escrevesse essa carta, por só quarenta libras. Pode acreditar? - acrescentou com um
resmungo de indignação- Meus pais têm...
- Sei que é uma quantidade ridícula - interrompeu-a Sabrina- Mas provavelmente não
para eles, e isso carece de importância. Estão armados. Estavam antes?
Mavis franziu o cenho.
- Não, eu não vi nenhuma arma. Deus estão se convertendo em verdadeiros
delinqüentes, não é certo? Devem tê-las adquirido depois que isto começou.
Provavelmente, as tenham roubado como fazem com o pão. Isso foi uma estupidez.
Agora alguém pode acabar ferido.
- Enquanto não sejamos nenhum de nós...
- Oh, não me preocupa que sejamos nenhum de nós. É mais provável que disparem
entre eles. Parecem uns verdadeiros ineptos. Duvido que tenham feito nada similar em
toda sua vida e estão um pouco perdidos. Tampouco me surpreenderia que tivessem
montado neste alpendre para ficar mais tempo aqui. Pelo visto, adoram isto, embora
seja natural, depois de ter vivido na rua.
- Já me dei conta. E lhes ocorreu outra razão para ficar mais tempo. Planejam me
reter aqui e enviar você em busca de meu resgate.
Mavis bufou com desespero.
- Nem pensar! Não lhe pedi que viesse para pô-la na deplorável situação em que eu
me encontro. São estúpidos. Não há outra explicação. Bom, teremos que informar de
que esta não é forma de fazer as coisas.
- Isso não é quão único temos que lhes explicar - disse Sabrina, com patente
preocupação- Terei que lhes dizer que virão mais pessoas se eu não partir logo. Você
leva vários dias tratando com eles. Funcionará se lhes dermos o resgate e permitimos
que partam?
- Vai vir alguém?
- Sim, minhas tias - suspirou Sabrina- Estão me esperando lá fora, na carruagem.
- Deus santo - disse Mavis. E voltou a dizê-lo quando ouviram que alguém batia na
porta- Oh, querida.
Capítulo 44
Tudo passou muito depressa. Raphael tinha jogado a porta abaixo quando viu que
demoravam em responder, saltando a fechadura, tinha os ombros fortes, e logo tinha
murmurado:
- Que diabos? - Justo antes de cair ao chão.
À luz da lamparina que havia no alpendre da parte de atrás, Duncan o viu desabar-se,
viu a arma na mão do homem que o tinha golpeado na cabeça, e se equilibrou sobre
ele. Ouviu um disparo.
Ouviram-se gritos de alarme na parte dianteira da casa, no piso de acima, na casa
contigua. Àquelas horas da noite, o disparo tinha quebrado o silêncio naquela tranquila
paragem. O aroma de pólvora queimada impregnou o ar. A bala tinha passado junto ao
pescoço de Duncan e ele a tinha ouvido perfeitamente. Foi isso o que o zangou tanto
para deixar ao homem com a cara toda vermelha antes de dar conta dele.
Deveriam ter abordado aquilo com mais cautela em lugar de deixar-se levar pela
impaciência que havia se apoderado deles. Mas depois de dois dias de busca, vendo
como as pessoas lhes fechavam a porta no nariz e fugindo dos cães, agora que um
moleque havia-os trazido até aqui, atravessando pátios traseiros e saltando cercas em
lugar de vir pela rua, encontrar-se com a casa deserta... não os tinha acalmado
precisamente.
Duncan levou um momento para perguntar-se a quem acabava de deixar
inconsciente. Não acreditava que fosse John Newbolt. Um de seus serventes, talvez,
que compreensivelmente tinha comparecido armado para investigar o que com toda
certeza parecia um invasão da moradia. Maldita seja. Agora teriam que dar explicações.
Sem dúvida, as autoridades não demorariam em chegar, depois de todos os gritos que
tinham ouvido.
Logo se certificou de que Raphael não estivesse morto. Não estava, e inclusive já
começava a choramingar um pouco. Foi em busca do farol que havia no alpendre. O
moleque tinha desaparecido. Não lhe surpreendeu.
Quando retornou à cozinha, onde estavam estendidos os dois corpos, Duncan só
teve tempo de deixar a lamparina na mesa antes que aparecessem outros dois homens
na soleira. As pessoas levava uma pistola pronta para disparar. Duncan não tinha
pensado em recolher a arma com que tinham golpeado Raphael na cabeça.
- Que diabos?
- O que aconteceu aqui?
- Um pequeno mal-entendido acredito - explicou Duncan- Vim a ver John Newbolt,
ou melhor, dizendo, a sua prima. Trabalham para ele?
Os dois homens se olharam antes que alguém dissesse:
- Certamente, mas estas não são horas para vir de visita. Volte pela manhã,
cavalheiro.
- Ficarei para solucionar o assunto que me trouxe até aqui, se não houver
inconveniente.
- Você partirá se souber o que lhe convém - disse o homem que estava armado e, se
por acaso Duncan não tivesse visto, agitou a arma.
Entretanto, o outro interveio e disse com cordialidade:
- Está bem. Levaremos ao lorde Newbolt. Sem dúvida se alegrará em vê-lo.
O sarcasmo que Duncan percebeu nas palavras daquele homem não foi o primeiro
sinal de que algo estava mal, a não ser o fato de que chamasse "lorde" ao Newbolt,
quando este tinha um título menor, segundo Rafe, bastante importante para que seus
serventes se referissem a ele como "lorde Newbolt".
A lamparina que Duncan tinha levado a cozinha iluminava o curto corredor que
conduzia ao saguão da casa, embora a luz fosse débil, e o resto da casa estava às
escuras. Teria que haver o levado. Um dos dois homens deveria ter pensado também
nisso. Parecia estranho que não houvesse luz na casa, a menos que todo mundo
estivesse dormindo. No entanto, os homens estavam vestidos, o que indicava que não
se levantaram da cama para investigar os ruídos na parte traseira da casa.
Entretanto, os ruídos deviam ter despertado a todos os membros da casa, incluindo
as pessoas do piso de cima. Ao menos, isso foi o que pensou Duncan ao ver pela
extremidade do olho umas saias no alto das escadas. Começou a voltar-se nessa
direção, mas notou o canhão da pistola nas costas, insistindo-o que continuasse
andando.
Aquele foi o último sinal que necessitava para constatar que algo estava mal. Se
estivesse equivocado já daria explicações mais adiante, mas naquele momento se
voltou, deu-lhe um golpe no braço ao homem que o apontava com a arma e o atingiu
com um murro no nariz. O tipo foi impulsionado para trás, tropeçou com uma mesa
do saguão e não se moveu.
O outro homem, que tinha aberto a comitiva e agora estava detrás dele, rugiu e lhe
saltou às costas, lhe rodeando o pescoço com os braços para tentar estrangulá-lo. Não
estava conseguindo, nem por indício, embora ele devesse pensar o contrário, porque ria
eufórico. Duncan, que a aquelas alturas já estava fora de si, atirou aquele homenzinho
esquálido até lhe dar a volta, sustentou-o ante ele e foi lhe dar um murro. Mas o viu
gritar e desmaiar antes que ele o golpeasse. Aborrecido, deixou-o cair no chão.
E logo se assombrou ao ouvir uma voz que reconheceu no ato, apesar de quão
zangada que soava.
- Como pôde você ignorar a arma dessa forma?
Duncan não respondeu e, em troca, inquiriu:
- Que diabos está fazendo você aqui?
Ela tampouco respondeu concentrada ainda em sua primeira pergunta. Furiosa,
disse:
- Poderiam ter lhe matado!
Duncan se deu conta então de qual era a causa de sua irritação e tentou dar pouca
importância.
- Quando seu futuro é tão deprimente, se expor ao perigo não significa quão mesmo
quando o espera tudo da vida.
- Foi uma imprudência, por muito que você diga - insistiu ela com voz tensa.
Duncan não ia discutir.
- Responderá você agora a minha pergunta?
- Sim, certamente... Se você tiver dado conta de todos eles - respondeu.
- De todos, quais?
- Os pobres diabos que invadiram a casa e foram tão estúpidos para ter a Mavis e ao
John sequestrados durante toda a semana. Em total são quatro.
- Eu só me encontrei com três...
- Então, nos trancaremos aqui em cima enquanto você termina. Mas tome cuidado.
Ao menos três deles estão armados e... - Ela guardou silêncio quando voltaram a bater
na porta principal- Provavelmente deve ser Mickie, nosso chofer. Deixe-lhe entrar.
Ajudará- a procurar ao que fica. E John está no porão. Por favor, assegure-se de que se
encontra bem.
Duncan ficou ali durante uns instantes depois que Sabrina desaparecesse na
escuridão, surpreso ainda de havê-la achado ali, e ainda mais surpreso de sua
capacidade para dar ordens. Mas logo sorriu, recordando sua irritação e sua
preocupação por causa do pequeno roce com o perigo que ele acabava de ter.
Capítulo 45
Sabrina esperava que Duncan batesse na porta a qualquer momento. Não esperava
que a porta se abrisse sozinha, mas assim ocorreu, e a razão era que tinha esquecido
que a porta tinha chave.
O quarto sequestrador estava na soleira, chave em mãos. Era o menos desalinhado
de todos, que não tinha arma, ao menos nenhuma que ela tivesse visto. O que não
significava que não pudesse ter uma com ele. No entanto, era o que parecia menos
perigoso do grupo, até o momento.
Suas primeiras palavras tampouco lhe deram motivo para alarmar-se.
- Venham, senhoras. Vim para resgatá-las. Abaixo há um maldito escocês fora de si.
- Resulta que o escocês é nosso amigo - assinalou Sabrina.
- Temia isso - disse ele, mordendo o lábio inferior de uma forma que deixava patente
sua preocupação- Bom, então uma de vocês vai vir comigo para me resgatar. E
preferiria que não fosse você, dona maritaca.
Sabrina, um pouco indignada por como a tinha qualificado, respondeu muito tensa:
- Não vai você importunar a minha amiga, mais do que já o tem feito retendo-a aqui.
Se quiser salvar-se, sugiro-lhe que o faça. Aí tem uma janela.
- Estamos no piso de cima - queixou-se ele, como se Sabrina o tivesse passado por
cima.
- E o que? Imagino que qualquer queda seria menos dolorosa que ter que medir suas
forças com Duncan MacTavish.
Ele se voltou para a Sabrina para discutir com ela.
- Vamos ver senhora, aqui sou eu o que manda, e vou servir-me de uma de vocês
para sair deste enrascada, sobre tudo quando nem sequer nos deu as malditas quarenta
libras que nos deve!
- Bom, se for só isso o que pede...
Sabrina não teve que terminar a frase. Mavis, que conhecia com perfeição aquele
recinto na escuridão, tinha conseguido encontrar um objeto pesado e aproveitou que o
indivíduo lhe tinha dado as costas para golpeá-lo na cabeça.
Logo deixou o objeto no chão, sacudiu as mãos com energia e lhe disse ao tipo
inconsciente:
- Isso foi por ter me dado só pão para comer.
Sabrina começou a sorrir, mas a porta voltou a abrir-se. Esta vez era Duncan, quem,
depois de olhar ao homem estendido no chão, olhou-a e lhe disse em tom acusador:
- Pensei que você ia fechar a porta por dentro.
- Bom, fiz isso - respondeu ela à defensiva- Suponho que me esqueci de que ele tinha
a chave.
- Sim, já vejo - disse Duncan aborrecido enquanto carregava nas costas o homem
inconsciente. Ao sair, acrescentou- Agora podem descer. Newbolt foi em busca de
alguém para que levem a estes tipos.
- Então, está bem?
- Sim, está bem. Mais envergonhado que outra coisa por perder o controle. E
também um pouco zangado consigo mesmo, acrescentaria.
- Informou a minhas tias de que tudo está sob controle? - perguntou Sabrina quando
o seguiu ao andar de baixo.
- Não tinha a este tipo e nem sequer sabia que suas tias estavam aqui... Onde estão?
Sabrina se ruborizou ao recordar que ainda não as tinha mencionado. Supôs que as
aventuras não eram santas de sua devoção e que não fazia mais que se meter uma e
outra vez.
- Estão lá fora, em nossa carruagem. Agora mesmo volto - disse, saiu correndo pela
porta principal antes de Duncan notar seu sobressalto.
Tranqüilizar as suas tias lhes assegurando que ninguém corria perigo lhe custou mais
do que calculava. Levava muito tempo dentro da casa para que elas não estivessem
preocupadas. Mas quando as duas começaram a brigar sobre se deviam retornar a casa
imediatamente ou tentar encontrar uma estalagem aberta àquelas horas, soube que
estavam bastante calmas para que ela pudesse voltar um momento para casa. Ainda
tinha que dar ao Duncan a boa notícia de que Mavis não ia contar a ninguém o que
tinha visto aquela noite em Summers Glade, se a moça ainda não o havia dito. Mavis
tinha descido com ela, por isso talvez Duncan já devia saber que não teria que casar-se
com a Ophelia.
Surpreendeu-lhe encontrá-lo só junto às escadas, e não parecia precisamente alguém
que acabava de resolver com êxito um sequestro, nem alguém que acabava de livrar-se
de um matrimônio que não desejava. Dava a impressão de que acabava de perder a seu
melhor amigo.
Alarmada, perguntou:
- O que aconteceu?
Duncan estava tão desconsolado que apenas a olhou:
- Não vai ajudar-me. Negou-se redondamente a guardar silêncio se não me casar
com a Ophelia.
Sabrina franziu o cenho.
- Tolices. Acaba de me assegurar que o faria.
- Então mentiu. Está encantada de poder dar a Ophelia seu castigo. São suas
palavras exatas. E não há mais que falar.
Sabrina se sentou nas escadas, um pouco aturdida pela surpresa.
- Não entendo. Ela acreditava que você já voltava a estar prometido com a Ophelia,
que por isso se achava ali essa noite. Entristeceu-a acreditar que Ophelia estava
voltando a conseguir o que queria. Por isso partiu. Estava abatidíssima. Mas quando lhe
expliquei o que tinha acontecido realmente, e que você só se casava com a Ophelia para
proteger sua reputação pelo que tinha visto, Mavis jurou que não o contaria jamais. Por
que mudou que opinião, Duncan? O que lhe contou?
- A verdade.
- E eu não? - perguntou Sabrina sem sair de seu assombro.
- Sim, tem-no feito - tranquilizou-a ele- Mas havia um detalhe mais que você
desconhecia e que eu não pensei ocultar. Esquecia-me de quanto odeia a Ophelia essa
moça. Eu só estava apelando a sua compaixão, mas pelo visto isso é menos importante
que seu desejo de impedir por uma vez que Ophelia consiga o que quer.
- O que é verdade?
- Ophelia não quer casar-se comigo mais do que o desejo eu. Depois do bate-papo
que teve com o Neville, na qual a pôs ciente das responsabilidades que deveria assumir
como a próxima marquesa, decidiu que ser minha esposa será trabalhoso demais. Rafe
tinha razão. Ela só estava interessada no título, não em mim, e agora que o título
implica mais do que ela esperava, quer voltar a romper o compromisso.
Sabrina não sabia se ria ou chorava. Aliviava-lhe muitíssimo que Ophelia não
quisesse Duncan, que na realidade nunca o tivesse querido ele, a não ser o que
implicava. Mas ia tê-los de todos os modos, por sua forma de ser, porque tinha
inspirado uns sentimentos tão funestos contra ela que durante muito tempo foi sua
amiga preferia vingar-se que fazer o que considerava correto.
- Voltarei a falar com ela.
- Por mim encantado, mas o vi em seus olhos, o triunfo que acabo de lhe servir em
bandeja de prata. Agora tem o meio para tomar revanche com sua inimizade. Não
renunciará a isso.
Capítulo 47
A festa ainda não tinha terminado, embora algum dos convidados já estivesse
partindo. Esse foi o motivo de que a chegada da Sabrina e Mavis passasse inadvertida.
Entraram em Summers Glade justo quando partia um pequeno grupo de convidados, e
o senhor Jacobs estava ocupado em outras necessidades em vez de atender a porta.
Entretanto, houve alguém que as viu chegar. Raphael Locke, muito bonito aquele dia
com seu traje de etiqueta, estava apoiado na maçaneta da porta do salão, onde se
achavam reunidos a maior parte dos convidados ficavam, olhando casualmente para o
saguão porque acabava de despedir do grupo que se dispunha a partir. Tinha um copo
na mão e os olhos um pouco avermelhados, fora pela falta de sono ou por alguma taça
a mais; provavelmente se apoiava na maçaneta da porta porque isso o ajudava a
manter-se em pé.
- Sei que algumas mulheres gostam de chegar tarde, para que todos as vejam chegar,
por assim dizê-lo, mas isto é um pouco exagerado, não?
Sua observação, dita em voz alta para que a ouvissem do saguão, fizeram as duas
corarem. Nem Mavis com sua roupa de viagem nem Sabrina com um singelo vestido e
o casaco que levava em suas caminhadas foram vestidas de modo adequado para umas
bodas, o qual já as incomodava o suficiente. Tinham preferido ganhar tempo em lugar
de vestir-se para a ocasião. Portanto, chamar a atenção não era precisamente o que
mais desejavam.
Sabrina se apressou a reduzir as distâncias com o futuro duque para que ele não
tivesse que voltar a lhes falar aos gritos.
- Se não lhe importar, não estamos aqui pela celebração, se é que pode chamar-se
assim, a não ser para tentar oferecer uma solução que talvez permita anular este
indesejado evento. Eu acredito que é uma perda de tempo, mas Mavis está desesperada
por emendar seu engano. Por isso estamos aqui, e não precisamos chamar a atenção,
muito obrigado.
Sabrina tinha falado entre sussurros, mas o tom era de franca reprimenda. Ante
aquilo, Raphael sorriu zombador e disse:
- Oh, eu adoro as adivinhações. Quantas oportunidades tenho de adivinhar o que
você quer dizer com isso?
Sabrina o deixou por impossível, pois sem dúvida estava bastante ébrio.
- Seguem aqui, verdade? Ainda não se foram que viagem?
- Se está se referindo aos noivos, claro que seguem aqui, como almas em sofrimento.
Quão último sei é que Ophelia estava em seu quarto fazendo birra, e acredito que
Duncan se entrincheirou perto do conhaque. Caso se case hoje, está decidido a não se
lembrar de nada.
Sabrina pensou que ia ser Raphael quem não se lembraria de nada, e franzindo o
cenho, perguntou:
- A que se refere com isso de "se casar"?
- Puxa, porque a cerimônia ainda não se celebrou - respondeu Raphael com
naturalidade.
Sabrina voltou a sentir um profundo alívio, mas esta vez se refreou. Não queria
expor-se à outra decepção se estava interpretando mal o que acabava de ouvir.
- É sério que ainda não se casaram?
Raphael lhe sorriu.
- Não, seriamente que não.
Sabrina lhe devolveu o sorriso, deixando-se invadir agora pelo alívio, e se tratava de
uma sensação extremamente embriagadora. Era o último que esperava sentir ali, e a
confusão não demorou em apoderar-se dela.
- E por que não? - perguntou-lhe- Acreditava que todos estavam de acordo em que
qualquer adiamento seria prejudicial para a reputação da Ophelia.
- Certamente seria, mas, dadas as circunstâncias, isto não é um autêntico adiamento.
Por isso intuo, e não estava para presenciá-lo, somente você, Duncan disse que Neville
se zangou muito esta manhã ao inteirar-se de que Mavis não estava disposta a manter a
boca fechada. Por isso me surpreendeu que tivesse tido uma oportuna recaída justo
quando começava a cerimônia esta manhã. Parece-me muito acertado, se quiser minha
opinião. Tiveram que levá-lo para cima e chamar o médico.
Sabrina franziu o cenho.
- Oportuna? Está você seguro de que não piorou?
Raphael riu.
- Bom, tendo em conta que Duncan foi dar com a língua nos dentes e me explicou
que seus avós estiveram discutindo sobre a qual dos dois correspondia à honra de ter
um colapso, sim, estou seguro por completo.
- Oh - respondeu Sabrina.
Custava-lhe um pouco acreditar que o estimado lorde Neville pudesse estar de
acordo com um ardil como aquele e ainda mais que se prestasse a pô-lo em prática em
pessoa.
Vendo a dúvida em seu rosto, Raphael acrescentou:
- Não é mais que uma tática para atrasar as coisas e não durará muito. Mas, pelo
visto, Neville pensa que se pode falar com a Mavis poderá fazê-la entrar em razão. E se
não for assim, pensa tirar uns quantos favores que lhe deve seu pai para que ele seja
quem entre em razão. Enviou alguém a Manchester para que vá procurá-la, agora que
enfim se conhece seu paradeiro. Que bom que a trouxe.
Por sorte, Mavis seguia na entrada e não ouviu nada daquilo.
- Eu não trouxe. Foi ela quem quase me trouxe a força. Atormentava-lhe pensar que
era muito tarde para arrumar esta enrascada e ia sugerir uma anulação.
- Muito tarde? Ontem à noite tive a impressão de que estava decidida a vingar-se da
Ophelia. O que a tem feito mudar de opinião?
- Só estava decidida que Ophelia acreditasse durante um pouco mais de tempo.
- Não é muito amável por sua parte, considerando que Duncan também era vítima
de sua vingança.
- Estou de acordo, mas o compreendo, agora que conheço um pouco melhor os
motivos que a induziram a desprezar tanto a Ophelia. E desde o começo tinha a
intenção de vir aqui hoje para assegurar que manteria a boca fechada. Mas ninguém se
incomodou em lhe dizer que o casamento ia ser celebrado esta manhã. Ela fazia seus
cálculos em virtude do que costuma demorar em conceder licença, por isso pensou que
tinha tempo de sobra para impedir as bodas.
Raphael meneou a cabeça assombrado.
- Puxa a impressão que faz das pessoas é de dar às vezes um chute no t... Bom, os
dentes, verdade?
Sabrina clareou a garganta, mas mesmo assim não pôde evitar lhe sorrir quando
respondeu:
- Certamente, ultimamente eu perdi uns quantos dentes.
Aquilo fez que Raphael estalasse em gargalhadas. Por desgraça, o ruído foi muito
inapropriado naquela atmosfera de velório que reinava na casa. Depois de tudo, os
convidados não estavam a par da gravidade do colapso de Neville, por isso rir, naquelas
circunstâncias, chamava imediatamente a atenção.
Raphael, ébrio como estava, não se deu conta, mas Sabrina se ruborizou até as
orelhas quando todos os olhos do salão se posaram nela, censurando-a com severidade.
Colocou-se a toda pressa junto à parede, fora do alcance daqueles olhares.
Teve vontades de dar em Raphael um chute por havê-la levado a mostrar-se frívola,
tanto como para recorrer a seu antigo costume de tentar fazê-lo rir. Mas mudou de
opinião. Fazia muito tempo que não gostava de rir com ninguém. Na realidade, ter
recuperado aquela sensação era um verdadeiro alívio. Indicava que enfim estava
começando a sair do poço...
Capítulo 49
Duncan se virou muito devagar para olhar a Ophelia, que estava detida na metade
das escadas. Era evidente que seu comentário lhe tinha irritado, mas pensar que, por
sorte, já não teria que vê-la mais depois daquele dia o serenou um pouco.
Assim, o tom que empregou só expressou de maneira festiva sua antipatia quando
disse categoricamente:
- Se eu fosse o bruto que diz que sou não voltaríamos a estar prometidos, embora
esta pessoa tivesse me visto contigo na cama essa maldita noite. Não teria pensado nem
por um instante em sua reputação, sabe?
- Mas foi sua responsabilidade! - recordou-lhe, embora a franqueza do Duncan a
ruborizou.
- O que quer dizer com isso? Ou é que, de repente, nós os brutos se preocupam com
a responsabilidade?
- Oh, muito bem, então não é um bruto - respondeu ela mal-humorada.
- Assombroso. Acredito que vou desmaiar - interrompeu-os Raphael com uma risada
zombadora-. Rainha de gelo se retratou.
Ophelia se voltou para fulminá-lo com o olhar, mas então se precaveu da presença
da Mavis. Suspirou ostensivamente. E se esqueceu por completo do trio reunido ao pé
da escada. Apressou-se a descer os degraus que lhe faltavam e atravessou o saguão para
ir junto de sua velha amiga.
- Mavis, sabia que viria antes que fosse muito tarde. Sabia que não poderia esquecer
nossa longa amizade. Tem que me perdoar. Não pode permitir que sofra durante o
resto de minha vida por umas quantas palavras insignificantes que você sabe que eu
não pensei com atenção.
Duncan revirou os olhos para ouvir sua descrição do que seria estar casada com ele.
Tinham seguido a Ophelia a tempo para ouvir suas súplicas. Faria alguma observação
se Mavis não parecesse agora tão confusa.
Entretanto, entenderam sua confusão quando perguntou:
- Antes que seja muito tarde?
Olhou a Sabrina para que o confirmasse. Sorriu-lhe e assentiu. Todos perceberam o
alívio de Mavis ao inteirar-se e, continuando, o instante preciso em que se deu conta de
que voltava a ter a sua inimiga a sua mercê.
Para Ophelia tampouco passou inadvertido o que implicava sua pergunta.
- Pensava que já estávamos casados? Então, veio para se divertir?
- Por um acaso me chamo Ophelia? - replicou Mavis- Divertir-se é sua especialidade,
querida, não a minha.
Ophelia ficou rígida. Era evidente que teria gostado de devolver o insulto, mas não
se atreveu a fazê-lo. Por uma vez, teve que morder a língua. Depois de tudo, seguia
acreditando que necessitava da colaboração de Mavis e não a conseguiria se a deixasse
como um trapo, como era típico dela.
- Então, o que faz aqui?
- Como bem tem suposto, acreditava que as bodas já tinha sido celebrada. É lógico
que passei para felicitar ao feliz casal, não?
Ophelia não pôde evitar um resmungo.
- Feliz? Quando nos desprezamos?
Mavis simulou incredulidade.
- Está-me dizendo que há um homem neste mundo que não caiu rendido a seus pés?
Estou assombrada, acredite.
Ophelia afastou os lábios e baixou a voz, adotando um tom confidencial que
pensava que só Mavis ouviria.
- Não é inglês - disse, como se aquela fosse à única explicação possível.
- Tem sorte, se isso for o que importa para que você não o deslumbre.
- Importa muito menos que isso - interveio Raphael com um sorriso zombador.
Ophelia, recordando que não estava sozinha, fulminou-o com o olhar e disse:
- Importa-lhe? Estamos tendo uma conversa particular.
- Não me importa absolutamente, querida - respondeu Raphael- Mas isso não
significa que vá partir-me. Não, não perderia isto por nada do mundo. Asseguro.
- Perder o que? - alfinetou Ophelia- Ver como me arrasto? Detesta-me tanto?
O silêncio que obteve como resposta foi o bastante revelador, por isso ruborizou.
Teve o impulso de partir. Era evidente que queria sair correndo, mas ainda não podia
deixar Mavis se existia a mais mínima possibilidade de pô-la a seu favor.
Com aquele propósito, tentou ignorar aos três intrusos, como ela os via, e se
concentrou em Mavis. Mas agora a moça a olhava com curiosidade e Ophelia não
demorou em averiguar o porquê.
- Dois homens, Ophelia - disse Mavis, fingindo incredulidade- E nenhum dos dois a
desejou? Dá- isso alguma pista?
- O que está insinuando agora? - inquiriu Ophelia com impaciência.
- Que talvez não se trate deles? Que talvez se trate de você? Estive colocando as
garras sem descanso, Pheli - disse Mavis, usando o nome que utilizavam de meninas e
que Ophelia tinha proibido a suas amigas usarem fazia tempo- estes dias mostrou-se tal
e como é muito antes do habitual, antes de poder enganar com sua falsidade às pessoas
que acaba de conhecer. As pessoas não estão tão cegas como você acredita. Alguns
inclusive vêem que debaixo da bonita superfície que mostra ao mundo não há mais que
gelo.
Aquele último comentário mordaz conseguiu que Ophelia tivesse que sufocar um
grito. Entretanto, ainda não podia partir, por muito que o desejasse. Duncan estava
começando a sentir-se um pouco incômodo. Pela atitude de Mavis, o lógico era supor
que jamais se prestaria a colaborar. A essa altura, a mesma Ophelia devia estar
chegando a essa conclusão. Se Sabrina não lhe tivesse avisado antes qual era o
verdadeiro motivo de que Mavis tivesse vindo, aquela conversa entre as duas moças
teria sido o último que lhe faltava...
- Terminou de me insultar? - disse Ophelia, fingindo aprumo.
Entretanto, a voz lhe quebrou durante uns breves instantes, tempo suficiente para
que todos notassem que estava ferida.
Mavis não reparou, embora, de havê-lo feito, com toda segurança não teria parado.
Estava tomando a revanche, depois de tudo, e Duncan teve a prudência de manter-se à
margem, mesmo que estivesse começando a sentir certa pena pela beleza loira.
- Desde quando a verdade é um insulto? -rebateu-lhe Mavis.
- Muito bem. Então sou a pessoa mais desprezível do mundo. Meu prometido já me
deixou isso bem claro. Sabrina também. Até o Locke o tem feito. Com tantas provas
em meu contrário, deve ser certo.
Agora já não cabia nenhuma dúvida de que Ophelia estava ferida, mas Mavis não se
comoveu.
- Oh, por favor - disse com ironia- Não acredita que vais poder usar essa tática
comigo, Pheli. Esquece-se de que a conheço. Sei que é capaz de usar todos os truques
que existem para obter o que quer.
- Eu também a conheço e as duas sabemos que vais terminar lamentando o que está
dizendo aqui. Ser tão vingativa não é próprio de você, Mavis. Sabe que preferiria me
perdoar. Conhecemo-nos muito...
- Lembra que já a perdoei uma vez - interrompeu-a Mavis muito tensa e com certa
irritação- E do que me serviu? Mudou sua forma de agir? Impediu que seguisse
arruinando a vida de outros como fez comigo?
- Francamente, Mavis, acreditava que estávamos de acordo em que estava melhor
sem o Alexander.
- Disse-me isso para me contentar, mas não funcionou. Meu coração não pôde
aceitar aquela perda. Em lugar de assimilá-lo, amargurei-me até que já quase não me
reconhecia. E a única razão de que tenha seguido suportando-a é que levo todo este
tempo esperando presenciar sua queda.
Ophelia pareceu surpreender-se com aquela última revelação, o suficiente para
protestar com sentimento.
- Mavis, não pode me odiar tanto!
- Ah, não? Ainda não se deu conta, Pheli, de que não cai bem a ninguém? Não tem
nenhuma só amiga de verdade, porque termina usando a todas e, ao contrário do que
possa pensar, nem todas somos tão estúpidas para não nos dar conta.
- Isso não é certo - disse Ophelia com um fio de voz- Jane e Edith seguem sendo
minhas amigas.
- Ah, sim? - objetou Mavis, pondo o dedo na chaga-Acaso vieram às bodas? As
bodas da sua "melhor" amiga?
O silêncio de Ophelia disse tudo. E se aquilo não era resposta suficiente, a expressão
de abatimento que mostrou durante uns breves instantes foi. O sorriso de Mavis, que
logo que podia definir-se assim, deixava patente seu triunfo.
- Como eu pensava - prosseguiu Mavis- Até a Jane e Edith acabaram por abrir os
olhos, verdade? Mas como não fariam, quando me atacou diante delas? Agora sabem
que não podem confiar. Embora soubesse disso sempre, posto que quando estão
contigo sempre estão tentando não alterá-la, porque sabem que se voltaria contra elas
com a mesma facilidade com que se volta contra outros.
- Não é certo.
- Deus santo, Ophelia, mente para outros tanto como queira, mas não venha querer
mentir para mim! Eu estava ali quando você as criticou no passado, quando utilizou sua
língua viperina contra elas em mais de uma ocasião. E por quê? Por alguma ninharia
que não merece a pena mencionar, mas que casualmente a ofendia. Embora você tome
tudo como algo pessoal, porque tudo tem que girar em torno de você.
- Não posso evitar ter o gênio que tenho.
Mavis negou com a cabeça.
- Sim pode. O que acontece é que jamais tenta. Prefere pôr desculpas, inclusive ante
si mesma, para justificar suas desagradáveis vinganças. O que diz isso de você, Pheli?
Que segue se comportando como uma menina? Que ainda não amadureceu? Não já
está na hora de que o faça?
- Basta. Já disse o que queria.
- Ah, sim? Mas tenho aberto os olhos? Duvido-o. Já encontrará alguma desculpa,
chamara-me néscia e mentirosa, e seguirá como se nada tivesse acontecido, ignorando
todas as opiniões além da sua, como faz sempre.
- Não posso seguir como se nada quando me acho apanhada nesta situação... Mavis
suplico-lhe isso... Aí o tem. Já disse. É para isso que veio? Já está contente? Por favor,
não me obrigue a me casar com um homem que me despreza.
Mavis voltou a negar com a cabeça, esta vez em sinal de assombro.
- Vê a egocêntrica que é Pheli? Não ocorreu pensar que posso ter vindo por lorde
Duncan, verdade? Pois dá a casualidade de que esse é o motivo de que esteja aqui, para
pôr fim a uma tragédia, porque isso é o que seria casar-se com você. Podem contar
com meu silêncio, mas não por sua causa, mas sim por Duncan, porque nenhum
homem merece ver-se obrigado a tê-la como esposa.
Aquela foi à última palavra que disse Mavis sobre o assunto; de fato, deu as costas a
Ophelia, ignorando-a por completo, e se dirigiu ao Duncan.
- Lorde Duncan. Sinto muito. Sinto muitíssimo não lhe haver assegurado ontem à
noite que guardaria silêncio. Quase permiti que minha obsessão com Ophelia destruísse
minha própria integridade, embora isso não seja desculpa eu sei.
- Não se castigue desse modo - respondeu sorridente- Meu alívio é tão grande que
não posso mais que agradecer-lhe.
Mavis assentiu com brutalidade, envergonhada ainda de lhe haver deixado na dúvida
um dia mais do devido. Logo se voltou para a Sabrina e tomou a mão para apertar.
- Obrigado por me recordar quão cálida e desinteressada é a verdadeira amizade,
Sabrina. De agora em diante, será um orgulho para mim poder chamá-la de amiga, se
você me permitir isso.
- Certamente - respondeu Sabrina- Mas significa isso que vai?
- Sim. Não posso atrasar mais minha volta a casa. Imagino que meu pai me espera
com uma longa lista de castigos e eu mereço isso tudo.
Ophelia partiu sem que se dessem conta. Sabia que ninguém se importaria. Também
sabia que já não era capaz de conter-se mais e foi em busca de um lugar onde poderia
desafogar-se. Correu para as escadas, mas, ao dobrar a esquina do saguão, chocou-se
com Raphael Locke.
Ele também partiu sem que se dessem conta, justo antes que ela, e com o propósito
rápido de lhe falar a sós, caso tomasse aquela direção. Tinha ouvido quase todas as
acusações de Mavis Newbolt, coisas que ele não sabia, e acreditava que Ophelia não
estava ainda o bastante contrita por todo o mal que tinha causado.
Pretendia lhe dizer umas quantas coisas mais. Entretanto, não esperava ver seu
formoso rosto alagado de lágrimas.
- Por Deus, são reais, não? - disse, afastando-a um pouco para lhe tocar com o dedo
a bochecha úmida- E você não pensava as compartilhar com ninguém? Impressiona-
me.
- Deixe-me... Em paz - balbuciou ela.
Raphael não o fez. Para seu completo assombro, teve o impulso de atraí-la para si e
deixar que se recostasse em seu ombro. Era horrível esse defeito dele, que as lágrimas o
comovessem tanto, as de verdade, mas era mais forte que ele, e esta vez sem dúvida ia
lamentar.
Suspirou interiormente, mas não havia nada que fazer. O esbelto corpo de Ophelia
tremia de emoção e o sentimento com que chorava sobre seu ombro era incrível. Não
obstante, Raphael não incorreu no engano de pensar que o gelo de Ophelia estava
começando a derreter-se. Impossível. Ele jamais pensaria uma coisa semelhante. Os
Locke não eram tolos.
Capítulo 51
A rapidez com que Neville se "recuperou" do colapso assim que foi informado da
breve visita de Mavis foi assombrosa. Inclusive desceu em pessoa para anunciar
oficialmente que, depois de tudo, os dois jovens tinham decidido não contrair
matrimônio e que desta vez tinham posto fim ao seu compromisso de forma amigável,
por mútua decisão.
Depois do anúncio, virtualmente expulsou da casa os convidados que restavam.
Fez com diplomacia, mas mesmo assim o fez, e saboreando-o em segredo. Aquela
noite, Summers Glade voltaria a estar vazio, como deveria ficar; bom, salvo um único
hóspede não desejado de quem ainda não podia desfazer-se, nem poderia fazê-lo até
que Duncan encontrasse esposa.
Aquela noite, esse hóspede estava sentado frente a ele na sala de jantar. Tomavam
uma taça enquanto esperavam que Duncan se unisse a eles para jantar. Agora que o
dilema do matrimônio com a Ophelia estava resolvido, a trégua temporária que tinham
mantido porque ambos se opunham ao mesmo já era quase inexistente.
Depois de ter dada graças a Deus de que, ao final, Mavis tivesse demonstrado ser
uma pessoa decente, Neville e Archibald estavam outra vez como ao princípio, em
desacordo sobre como conseguir que Duncan se casasse.
-Terá que ir a Londres - disse Neville, incapaz de vislumbrar nenhuma outra
possibilidade.
Archie grunhiu.
-Deus, ouvi que em sua Londres vive o mesmíssimo diabo.
-Tolices! Nossa Londres não é distinta de sua Edimburgo. Estou seguro.
Archie bufou.
-Não pode estar seguro, porque não o conhece.
-E acaso esteve você em Londres? -rebateu Neville- Quando foi isso?
Archie se esticou ante aquela pergunta tão direta e seguiu em sua insistência:
-Que importância tem que seja aqui ou lá? Uma grande cidade seja do país ou
não, não é a resposta. O que tem que mau em celebrar outra festa aqui, hein?
-Esta casa não sofrerá outra invasão - respondeu Neville inexorável. Era evidente
que não ia permitir que outra multidão de desconhecidos voltasse a colocar o nariz em
sua intimidade- Em Londres a temporada social está ainda em pleno apogeu. Será fácil
obter convites para todos os eventos importantes, e receberemos mais quando Duncan
for reconhecido ali.
-Numa cidade tão grande haverá muitas moças - assinalou Archibald- Como vai o
rapaz poder escolher?
-Um rumor absurdo que não tem nem pé nem cabeça - assinalou Duncan, e logo
lhe perguntou desafiante- Você tem medo de um rumor sem importância?
-Absolutamente. De fato, estou inclusive de acordo em que é absurdo. Mas
mesmo assim não é nada desejável para a família se pode se evitar. Embora se me
assegura que a ama, então, se case com ela sem duvidá-lo.
-Maldito seja, Neville - estalou Archie- não vê que o rapaz está se enganando?
Não o anime a cometer esta estupidez.
Duncan estava assombrado, uma vez mais, porque Neville ficou do seu lado.
Embora a contra gosto, prestava-lhe seu apoio incondicional. Archie, em troca, não o
surpreendeu com a reação que estava tendo.
-Archie, deixe que eu seja quem me preocupe de meus sentimentos - disse
Duncan, e voltou a levantar-se-. Você confiou em mim para que dirigisse seus
negócios. Confie em mim sobre o que quero e por que o quero. E acredito que vou
visitar a moça agora mesmo.
Archibald apoiou a cabeça na mesa assim que Duncan saiu da sala de jantar.
Inclusive a golpeou várias vezes em sinal de frustração. Neville, sem deixar-se
impressionar por seu histrionismo, fez um gesto para que os serventes, que tinham
escolhido aquele inoportuno momento para entrar com o jantar, partissem. Agora, a
bebida era mais apropriada, ao menos para seu hóspede escocês.
-O está tomando muito a peito - sugeriu-lhe Neville assim que voltaram a ficar
sozinhos.
Archie lhe olhou franzindo o cenho.
-Ah, sim? Não vê que tudo isto é um engano?
-Não, se Duncan a ama.
-Ora, esse é o maldito problema. A ama. Não tenho a menor dúvida. Mas não é a
classe de amor que um homem entrega a sua esposa, sabe?
-Amor é amor... -começou a dizer Neville.
-Não, há muitos tipos de amor - interrompeu-o Archie- Ela é uma boa amiga e
assim é como ele a ama. Mas, como resulta que é mulher, Duncan confundiu seus
sentimentos e pensa que o que sente por ela é quão mesmo o amor de casal, quando
não o é. Ufa! Vê você o que ocorre quando os homens e as mulheres se fazem amigos?
-E se você se equivoca?
-Não me equivoco. Conheço-o. Nunca teve bons amigos e agora encontrou uma.
Teme arriscar-se a perdê-la. Pensa que o matrimônio a manterá sempre a seu lado, e
assim será, mas ao final isso não o fará feliz. E o averiguará assim que se deitem e se dê
conta de que preferiria estar jogando bridge com ela.
Neville não pôde conter as gargalhadas.
- Juro, Archibald, às vezes, sua forma de pensar me deixa pasmado. Ainda não
pensou que o que pôde começar como amizade pode haver-se transformado em algo
muito mais profundo? Não tudo são flechadas, sabe? Às vezes, é algo progressivo.
Archie bufou.
-Amor, sim, mas a paixão ou está ou não está, e Duncan não sente paixão por essa
moça. Vejamos que esperança há para um matrimônio que não começa com uma boa
dose de paixão, né? Inclusive o amor progressivo começa com a paixão. Sem ela, não
há nada do que partir nada que possa dar pé a nenhum sentimento, sabe?
Poderiam lhe haver impedido de vê-la. Duncan caiu na conta quando chegou à
Cottage by the Bow e Alice, a tia da Sabrina que saiu para abrir a porta olhou-o com
desaprovação por apresentar-se há àquela hora tão inoportuna. Embora estalasse a
língua e murmurasse que sua visita teria que ser breve e que deveria ter esperado até
amanhã, conduziu-o pela sala de jantar por volta de duas portas pelas quais dava acesso
a um jardim e assinalou nessa direção.
Duncan viu que Sabrina estava ali, envolta em seu casaco de inverno, sentada em
um banco de pedra e banhada pelos raios da lua. Era a única luz que havia porque
aquele lado da casa estava às escuras, mas era mais que suficiente quando seus olhos se
acostumavam a ela. O jardim estava em hibernação naquela época do ano, mas no
verão devia ser muito bonito.
Duncan não estranhou que Sabrina gostasse de estar sentada ali em pleno
inverno. Aquela altura já sabia que preferia estar ao ar livre, fosse qual fosse à época do
ano e, por isso parecia, a qualquer hora do dia.
- Você não tem frio? -perguntou-lhe ao aproximar-se.
-Absolutamente - disse ela com simplicidade.
-Acredito que gostará das Terras Altas - observou ele sem transparecer
sentimento algum.
-Por que acha isso?
-Porque quase todas as pessoas que vêm inclusive os escoceses do sul, não se
tomam o incomodo de contemplar a paisagem que têm a seu redor. Em troca, você
não teria pressa por ficar sob coberto para resguardar do frio, verdade?
Sabrina sorriu.
-Provavelmente não, mas isso pode dizer-se de muitas pessoas e de quase todas
as partes, inclusive aqui. Olhe - acrescentou, assinalando o céu- A lua de inverno é algo
muito belo, saia no país que saia, porém rara é a vez em que alguém se detém admirá-la.
Duncan sorriu.
-Mensagem captada, mas eu me admiro por que saia inclusive em seu céu inglês,
que está sempre tão nublado.
-Segue odiando estar aqui?
-Não - assegurou-lhe ele- Há algumas coisas inglesas que acabei gostando muito.
Sabrina sorriu interiormente, embora não tivesse captado a segunda intenção
daquela afirmação. Simplesmente se alegrava de que ele começasse já a encontrar-se a
gosto em seu novo lar. Aquele dia, Sabrina tinha partido de Summers Glade muito
animada. Não por ela, mas sim por ele. Alegrava-se de que Duncan tivesse se livrado de
um matrimônio que teria detestado.
Ela não se afastou quando ele se sentou no banco mais perto do que seria
correto. Encontrava-se a gosto com ele pela amizade que os unia. Sua proximidade só a
perturbava quando começava a pensar em Duncan como algo mais que um amigo.
Mas tinha banido aqueles pensamentos depois de sua conversa com Archibald. E
para seu próprio bem ia seguir fazendo-o.
Ele ainda tinha que encontrar esposa. Logo partiria para Londres com esse
propósito. Pensou que talvez por isso tivesse ido visitá-la, para lhe dizer que se
ausentaria durante um tempo. Ia vê-lo muito pouco, mas agora teria que habituar-se a
vê-lo só de vez em quando. Quando retornasse teria uma esposa...
- Suas tias estão nos observando de alguma dessas janelas? -perguntou ele de
repente.
-É muito possível.
-Não me importa. Vou beijá-la.
Foi muito inesperado. E Duncan a estreitou em seus braços e cobriu seus lábios
com os seus com tanta rapidez que Sabrina não teve tempo de reagir. Estava beijando-
a, em consciente profundidade. E assim que se recuperou da surpresa, Sabrina se deu
conta de que não queria pensar, nem analisar, nem fazer nada que não fosse saborear o
prazer de estar em seus braços outra vez.
Estava sendo muito egoísta lhe dando a impressão equivocada. Mas era superior a
ela. Aquela ia ser a última vez que poderia tocá-lo, desfrutar dele, sonhar durante uns
breves instantes que podia ser dela. Teria que insistir em que não voltasse a acontecer
jamais. Seguiria sendo sua amiga, mas não se ele continuasse a tentando daquela forma.
E provavelmente Duncan nem sequer pretendia isto. Aquela devia ser sua forma de
compartilhar seu alívio com ela, mas por Deus, era assim que beijavam os escoceses as
suas amigas?
Soube a resposta justo depois, quando ele se afastou para olhá-la aos olhos e lhe
disse sem mais preâmbulos:
-Brina, quer casar-se comigo?
Ela ficou olhando-o durante longo momento, vendo todas suas fantasias feitas
realidade naquelas poucas palavras. Tinha que saborear essa alegria durante uns
instantes mais, afastar a realidade e a dor que ia sentir assim que lhe respondesse. Mas
como sabia qual ia ser a resposta, qual devia ser sua alegria foi efêmera. Tentou retê-la,
mas suas emoções se negaram a colaborar e, se não terminasse logo, ia ficar a chorar a
lágrima viva.
Deveria haver-se explicado, mas só foi capaz de articular:
-Não.
Duncan não esperava isto e sua expressão lhe delatou: a surpresa, a dor que em
seguida dissimulou a rigidez com que deu um passo. Não obstante, ele não se
contentou com a resposta. Perguntou-lhe:
-Por quê?
Era incrível as coisas difíceis que Sabrina tinha que fazer por Duncan, e aquela ia
ser sem dúvida a pior: tentar conter sua própria angústia durante o tempo suficiente
para lhe fazer compreender.
-Você é meu amigo, Duncan, o melhor que tive nunca, de fato, e me importa
muito como tal. Mas pensar que sentimos mais um pelo outro seria um engano.
Deveria haver dito mais coisas, sem dúvida, mas as palavras estavam começando
a engasgar-se, e ficou em pé e lhe deu as costas, antes que ele pudesse pressentir seus
verdadeiros sentimentos. A lua a ajudou, ocultando-se e sumindo o jardim na
escuridão. Se ele tivesse podido lhe ver o rosto naquele preciso instante, teria sabido
que Sabrina não estava lhe dizendo a verdade. As lágrimas, que agora caíam por suas
bochechas, incapazes de esperar mais, teriam lhe dito tudo.
E além de dor, Sabrina também sentiu ira pelo avô de Duncan. Naqueles
instantes, odiava Archibald por avisá-la, por prepará-la para aquilo. Por que não a tinha
deixado na ignorância? Teria sido tão mau para ela casar-se com Duncan? Sabrina o
teria amado pelos dois. Poderia ter sido uma boa esposa.
Mas estava se enganando. No matrimônio não era suficiente que só um amasse
uma das partes. Teriam vivido juntos, como amigos. Isso não era um matrimônio. E,
ao final, Sabrina também teria acabado ressentindo-se de que ele não a amasse como
ela desejava.
Tentou secar as lágrimas antes de voltar a olhá-lo para que não se precavesse de
que tinha estado chorando. Acreditava que tinha conseguido. Não importava. Duncan
tinha partido sem que ela se desse conta.
Capítulo 53
Duncan não foi diretamente a casa, onde sabia que seus dois avôs se
equilibrariam sobre ele para lhe perguntar se voltava a estar comprometido. Não tinha
vontades de falar sobre o tema. Em lugar disso, foi à estalagem do Oxbow, ou mais
exatamente ao botequim e, subornando ao hospedeiro para que não fechasse quando o
homem tentou mandá-lo a casa, bebeu até não poder mais.
Ao final conseguiu chegar a casa, embora caísse duas vezes do cavalo. Ao menos
estava quase seguro de que tinham sido duas, e poderia haver ficado estendido no frio
chão se o animal não lhe tivesse jogado seu fétido e quente fôlego várias vezes na cara.
Tinha a ligeira suspeita de que podia ter sido seu próprio fôlego, mas dava o mesmo,
porque no estado em que se achava não teria sabido distingui-lo.
Tampouco tinha conseguido evitar a seus avós. Os dois se equilibraram sobre ele
assim que entrou trôpego pela porta principal. O senhor Jacobs tinha tido o sentido
comum de ir dormir, mas Neville e Archie, apesar das altas horas, esperavam-no,
acordados.
Embora não juntos. Archie saiu do salão para ajudar a levantar Duncan que, sem
saber como, estava outra vez no chão. Neville se achava no alto das escadas,
perguntando se devia chamar um lacaio para levar a Duncan à cama.
-Maldita seja. Posso levantá-lo sozinho - alfinetou Archie indignado.
Duncan, que teria preferido ficar dormindo no chão do saguão, teve a vaga
suspeita de que Archie estava decidido a carregá-lo por sua conta escada acima, e
obstinado como era o escocês e isso seguramente lhe romperia a espinha. Por esse
motivo, fez um último esforço e subiu as escadas sem ajuda, detendo-se só um instante
para olhar de soslaio a Neville, que estava de roupão sustentando um abajur, e
arqueando uma sobrancelha.
Por resposta obteve um resmungo muito inglês, que o impulsionou a rir. Não
sabia que os resmungos pudessem diferenciar-se por idioma e o encontrou francamente
divertido.
-Bom, me diga - ouviu que dizia Neville a suas costas quando ele prosseguiu seu
caminho em direção a seu quarto- Já que o conhece tão bem, embebedou-se esta vez
para celebrá-lo ou para afogar seus sofrimentos?
-Shhh - sussurrou-lhe Archie- Não lhe recorde o que tentou esquecer com a
bebida.
-Nada de celebrações, então - suspirou Neville.
Duncan, perguntando-se se pensavam que a bebida afetava de alguma forma ao
sentido do ouvido, apoiou-se na parede mais próxima e disse:
-Não me aceitou. Negou redondamente a casar-se comigo. Mas responde a meus
beijos como se quisesse me arrastar para seu leito. Não entendo isto, Archie -
lamentou-se, mas então olhou de maneira acusadora a Neville, lhe perguntando- É essa
uma peculiaridade das inglesas?
-Que queiram levar-lhe à cama? Ou que sigam sem casar-se com você depois de
havê-lo feito?
-Sim, isso.
Duncan suspeitou que o ancião quisesse rir, mas conseguiu conter-se quando lhe
respondeu:
-Não sei. Não houve tantas mulheres que tenham querido me levar para cama.
Archie foi incapaz de conter-se e riu de Neville.
-Vá, e por que será que não me surpreende?
O qual valeu a Archie um olhar furioso, outro resmungo e os deixou quase sem
luz, posto que Neville partiu com o abajur. Mas retornou com ela ao cabo de um
instante, deixou-a na mesa mais próxima e disse com rigidez:
-Para o rapaz, para que não se rompa a cabeça. Pela manhã discutiremos o que
parece ser um mal-entendido.
Disse aquilo último fulminando de novo a Archie com o olhar, o qual, esta vez,
em lugar de divertir ao ancião escocês, impulsionou-lhe a fazer uma careta. Duncan não
se deu conta e perguntou:
-Que mal-entendido?
-Que parece que você tampouco entende – respondeu. O que Neville dizia era
muito incompreensível para o cérebro de Duncan, empapado de uísque como estava, e
se resignou a não tentar decifrá-lo. Preferiu ir cambaleando até o que lhe pareceu ser
seu quarto entrou sem acender a vela e desabou, desta vez sobre uma cama macia. Já
averiguaria pela manhã se era ou não seu quarto. Como ninguém o jogou aos gritos
dali, o cérebro de Duncan aproveitou para deixar de funcionar.
Quando despertou na tarde seguinte - conseguira dormir até essa hora- Duncan
comprovou, pela segunda vez, que havia alguém sentado junto a sua cama, esperando a
que despertasse. Desta vez era Archie e, embora fingisse estar dormido ele conhecia
Duncan bem.
Apesar do martelar nas têmporas, reparou na coincidência. Em ambas as ocasiões,
ele tinha estado bebendo até quase perder o sentido.
Archie, abrindo um olho, disse mais ou menos o que ele estava pensando.
-Embebedou-se quando teve que se comprometer, mas não queria. E agora
tornou a fazê-lo quando queria, mas não pode. Valerá a pena o problema quando o
esquecimento é apenas temporário?
-Não, absolutamente. E você se arrependerá de haver passado toda a noite aí
sentado só para me perguntar isso, pois seus velhos ossos vão estar lhe rangendo
durante uma semana inteira.
-Deixa que eu seja quem me preocupe com meus velhos ossos - respondeu
Archie enquanto se incorporava.
Os dois ouviram uns quantos rangidos e Archie riu com suavidade.
Duncan se incorporou com dificuldade e se sentou na da borda da cama. Fez-o
com supremo cuidado, mas não lhe serviu de nada. Era evidente que lhe faltavam horas
de sono para eliminar por completo o álcool que tinha no corpo. A próxima vez que
pensasse que a bebida era a resposta a seus problemas, pediria a alguém que lhe pegasse
um tiro.
Archie, vendo lhe desse jeito, disse incômodo:
-Deveria esperar até que se encontrasse melhor, mas minha consciência me
impede isso.
-Se pensa me gritar, faça-o sem levantar a voz - respondeu Duncan.
Archie torceu o gesto.
-Se alguém for receber gritos, serei eu.
Aquilo captou totalmente a atenção de Duncan.
-Consciência, né? Muito bem, o que lhe preocupa?
-Que esteja machucando profundamente a rejeição dessa moça.
Duncan arqueou uma sobrancelha, mas lhe doeu. Em lugar disso, provou a
franzir o cenho, mas também lhe doeu. Finalmente se limitou a enterrar o rosto entre
as mãos e murmurou:
-Teria que dar saltos de alegria porque ela não me ama da forma que a amo eu?
-Então, está seguro de que a amas dessa forma?
- Teria pedido que se casasse comigo se ainda a visse só como a uma amiga?
-Sim, temia que o fizesse, só para resolver o assunto de seu matrimônio. - Archie
suspirou- A última vez que me disse a respeito disse que só eram amigos.
-E o fomos, então. O gracioso é que foi precisamente sua insistência em que os
homens e as mulheres não podem ser verdadeiros amigos o que me fez começar a olhá-
la com outros olhos. E vi que eu gostava do que via, muito. De fato, para mim foi um
inferno, depois disso, me conter para não tocá-la.
Archie fechou os olhos enquanto voltava a suspirar.
-Então devo uma desculpa. Temo-me que posso ter influenciado em sua decisão
de rejeitá-lo.
-Não seja absurdo - zombou Duncan- Você não pode mudar seus sentimentos.
-Não, mas a conversa que tive com ela pôde havê-la convencido para que não
admitisse seus verdadeiros sentimentos.
Duncan ficou calado e cravou os olhos em seu avô.
-Que conversa?
-A semana passada, quando a vi em Oxbow. Adverti-lhe que você podia lhe pedir
em casamento, se conseguisse se liberar de Ophelia, mas que se o fazia seria por razões
equivocadas.
-Maldito seja! Disse-lhe que eu não sentia por ela mais que amizade?
Archie torceu o gesto, embora o tom de Duncan não fosse tão duro como ele o
percebeu.
-Sim, mas então eu estava seguro de que isso era tudo o que havia entre vocês,
dado que você acabava de me assegurar isso e eu não queria ver como os dois
cometiam um grave engano, pensando que poderiam apoiar seu matrimônio nisso.
De repente, a expressão carrancuda de Duncan deu passo a um sorriso.
-Sabe você que isso significa que ela me ama de verdade?
-Sim, é uma possibilidade.
-Mais que isso. Agora me dou conta de quão estúpido fui não fazendo caso a meu
coração, quando eu sei que sente por mim algo mais que afeto. Ontem à noite permiti
que sua negativa direta me ofuscasse.
-Falarei com ela, rapaz - exclamou Archie- E lhe explicarei meu engano.
-Não. -Duncan sacudiu a cabeça, sorrindo- Precisa convencer-se de que eu a amo de
verdade e se não for capaz de fazê-lo sozinho, é que não a mereço.
-Então, pode me perdoar por me haver intrometido?
-Não se preocupe Archie. Sei que o fez com boa intenção. Mas por esta maldita
dor de cabeça que vai impedir de ir vê-la neste mesmo instante, sim, pode você
fustigar-se um pouco, mas pela parte de culpa que tem.
Archibald bufou e se dirigiu à porta.
-Pois se eu for ter que me fustigar, sofre você as conseqüências de sua própria
estupidez - disse, e fechou de uma portada, sabendo que com isso Duncan ficaria a
choramingar de dor, como pôde constatar.
Capítulo 54
Como era natural, era impossível conciliar o sono. Sabrina não esperava que essa
noite fosse ser diferente da anterior. Era estranho o que um coração quebrado podia
fazer com alguém. Assegurava-se de que se consumisse analisando todos os "se"
imagináveis, embora ao final não servisse de nada. Não se dava trégua, impedindo que
o sonho a fizesse esquecer momentaneamente da dor.
Entretanto, desta vez tinha decidido tentar ler e levou para cama o livro que
tantas vezes lhe tinha ajudado a conciliar o sonho. Não funcionou. Acaso pensava que
conseguiria? Sabia que provavelmente ia perder, inclusive, a amizade de Duncan.
Poderia seguir tudo como agora, tendo cometido ele a imprudência de tentar convertê-
la em algo mais quando em realidade não sentia o que teria que sentir para fazê-lo?
Duncan estava se enganando e quase tinha conseguido enganar também a ela,
mas só porque Sabrina queria acreditar que ele podia amá-la. Ela sabia que aquilo era
impossível, mas, de alguma forma, tinha perdido de vista o que era evidente. Sabrina
não era um bom partido, não era a classe de mulher que fazia que as cabeças se
voltassem a sua passagem, não possuía o tipo de beleza que poderia atrair a alguém tão
bonito como Duncan. Tinha deixado a um lado seu sentido comum por uns tantos
beijos e...
Bom, o certo é que não tinham sido beijos de amizade. E os amigos não estavam
acostumados a fazer o amor. Mas, era por isso que Sabrina tinha passado por cima -
aquela era sua opinião, a opinião de uma mulher. Era óbvio que os homens deviam ter
uma perspectiva muito distinta.
Estava voltando a fazê-lo - analisando, dissecando, ficando cada vez mais
taciturna, quando nada ia mudar. Levantou-se. E ficou a andar pelo quarto. Deteve-se
junto à janela, correu as cortinas, mas a lua estava se ocultando, fundindo tudo na
escuridão. Talvez um longo passeio... Não, então teria que voltar a vestir-se, deixar uma
nota para suas tias...
Aproximou-se do fogo, que mantinha o quarto aquecido. Deveria apagá-lo, e
apagar os abajures. Ter o quarto às escuras não lhe tinha servido de nada ontem à noite.
Um copo de leite quente, então. Naquele ponto, provaria qualquer coisa para dormir
um pouco e poder interromper seus pensamentos.
Colocou o roupão e desceu à cozinha, mas ao cabo de uns minutos retornou ao
quarto arrastando os pés. O leite não provocara sonolência. Seguia desperta, e
despertou ainda mais quando abriu a porta e encontrou Duncan sentado em sua cama.
Sabrina, obviamente, pôs em dúvida o que estava vendo. Sua imaginação o
trouxera até ali, inclusive lhe tinha tirado o casaco, porque ela sabia que dentro de casa
calor já afligia. Era uma ilusão. Não era real.
-Como já era tarde quando estive em condições de vir - disse-lhe Duncan- pensei
que o melhor seria esperar à uma hora em que suas tias não pudessem nos vigiar da
janela. Não sabia como ia subir sem despertar a toda a casa até que você apareceu na
janela.
]
Foi o sotaque de Duncan, o qual Sabrina sabia que não poderia reproduzir com
nenhum grau de exatidão, o que a convenceu de que não era fruto de sua imaginação,
de que ele era de carne e osso.
-Entrou pela janela?
-Sim, e me custou muito. Essa árvore não queria colaborar. Acredito que quebrei
alguns ramos.
Parecia arrependido. Sabrina seguia muito assombrada de sua presença para
pensar com claridade.
-Mas por quê?
Duncan se levantou da cama, aproximou-se de Sabrina e fechou a porta que ela
tinha deixado aberta sem se dar conta. Sabrina se afastou dele, aproximando-se do
fogo, começando a notar... Agitação. Isso não o dissuadiu: voltou a segui-la, tomou
suas mãos para impedir que se afastasse de novo.
-Vim aqui disposto a fazer o ridículo se estou equivocado, mas tenho que lhe
dizer Brina, que o que sinto por você já não é só amizade.
Sabrina lamentou para si mesma, sabendo que não ia ser capaz de manter a calma
se ele tentava convencê-la de que a amava, apesar de que ela sabia que estava se
enganando. Não tinha se limitado a escutar e arquivar a advertência do Archibald, mas
sim a tinha repetido mentalmente incontáveis vezes; havia-a impresso em seu coração.
"Ele quer tê-la perto, isso é tudo. Demonstrou até que ponto deseja isso quando a convidou para
a festa, mesmo que isso significasse trazer também Ophelia. Teria procurado um quarto em Summers
Glade se isso não tivesse resultado impróprio. Acredito que se casaria com você só para tê-la com ele de
forma permanente. Tanto que valoriza sua amizade. Mas é só isso. Não se deixe enganar pensando
que Duncan sente algo diferente por você. Os dois o lamentariam se você se deixar enganar."
Sabrina tentou pôr aquelas palavras como escudo quando Duncan prosseguiu:
-Archie me confessou o que lhe disse, mas se equivocava...
-Não - interrompeu-o ela- Odiei-lhe por me dizer isso, mas tinha razão. Nós...
-Cale-se e me deixe terminar - advertiu-lhe ele com suavidade- Não me refiro a
suas intenções. Eram boas e nobres. Refiro-me a que se equivocava no que acreditava.
Sem dúvida, eu lhe havia dito algum tempo atrás que só éramos amigos, e então era
certo. Sentia-me mais perto de você do que jamais tinha estado de alguém e,
sinceramente, não pensava em você de nenhuma outra forma até que Archie tentou me
convencer de que os homens e as mulheres não podem ser amigos, que o sexo se
interpõe. Não se ruborize agora. Não há uma forma educada de explicar isto.
Foi depois de ter essa conversa com ele que comecei a vê-la como algo mais, como a
mulher bonita que é. Pode jogar a culpa em Archie, se o desejar, mas eu não culpo a
ninguém pelo que agora sinto por você. Já não é o que era.
Aquilo era mais doloroso do que Sabrina poderia ter imaginado, posto que
desejava acreditar nisto com todas as forças, mas não podia. Archie tinha razão.
Duncan só queria tê-la por perto e ele pensava que aquela era a única forma de
consegui-lo. E acabava de dizê-lo: havia-se sentido mais perto dela do que jamais tinha
estado de alguém. Sabrina era sua melhor amiga, mas, como era uma mulher, Duncan
estava tentando pôr outro nome na sua relação.
Afastou-se dele para olhar o fogo.
-Sim, isso é o que era - lamentou-se- Deu-se conta de que não me tem tão perto
como gostaria, de que não pode me visitar sempre que queira, de que não pode
despertar em plena noite para me fazer participante de seus pensamentos...
A risada de Duncan a deixou sem fala, e sem fôlego, quando a rodeou com os
braços por trás.
-E o que é isto, se não for em plena noite?
-Sabe a que me refiro. Não pode subir numa árvore todas as noites. Os vizinhos
começariam a murmurar sobre nós se você tentasse ver-me sempre que quer. Embora
você saiba. E é por isso por...
Desta vez Duncan a abraçou com tanta força que Sabrina não pôde seguir
falando.
- Você é muito obstinada, assim vou direto ao ponto. Agora, cada vez que a vejo,
quero tê-la em meus braços e lhe fazer o amor. Você acredita que isso tem algo a ver
com amizade? Agora mesmo, estou-me contendo para não beijá-la. Brina, eu adoro que
primeiro fôssemos amigos, e eu adoro pensar que sempre o seremos, mas agora tenho
que ser algo mais que isso. Quero ser seu amante, seu protetor, seu fornecedor e seu
amigo, mas não posso sê-lo tudo se você não se casar comigo.
-Você vai me matar - balbuciou Sabrina.
Duncan lhe deu a volta.
-Olhe para mim! Pareço-lhe um homem que não sabe o que quer? E se me diz
que não, juro-lhe que a levarei para as Terras Altas e viverei em pecado com você.
Quando tivermos tido nove ou dez pirralhos, então poderá me dizer que não a quero
quando eu sei que a amo.
-Referi-me que não me deixa respirar.
-OH - disse ele, mas viu o brilho em seus olhos violetas e riu ao voltar a estreitá-
la entre seus braços- Agora acredite em mim.
Não era uma pergunta, nem ela precisava confirmá-lo, embora dissesse:
-Qualquer homem que queira ter tantos filhos comigo tem que me amar.
- Você não sabe você quanto dói.
Sabrina tomou o rosto de Duncan entre as mãos e ficou nas pontas dos pés para
beijá-lo com suavidade.
-Não, apenas dói quando não se pode compartilhar. Agora vamos compartilhá-lo,
Duncan.
-Então, espero que compreenda que já não posso seguir lutando mais contra isto.
"Isto" era beijá-la, e não precisamente como a uma amiga. Sua boca tomou a dela
com voracidade, compensando-se por tanta frustração acumulada, desejando recuperar
o tempo perdido. A paixão estalou imediatamente entre eles, mas ia mesclada com
tanta alegria e alívio que era uma emoção única, exclusiva dos dois.
Sabrina desejava rir de felicidade, mas não podia deixar de beijá-lo para fazê-lo.
Ele devia sentir o mesmo, porque seus lábios desenhavam um sorriso incontido
inclusive quando devoravam os de Sabrina.
Caíram juntos de joelhos no tapete que havia frente ao fogo, beijando-se ainda,
com as mãos entrelaçadas. A cama, a só uns passos, estava muito longe para a urgência
que os tinha invadido. Nem sequer enquanto se despiam separaram seus lábios. Não se
surpreenderam de que alguns botões saíssem espalhados pelo quarto quando tiraram
a roupa.
Duncan riu.
-Você está brincando, mas quando eu estiver aqui não vais necessitar nunca de
fogo algum, prometo-lhe isso.
-Não estava brincando – corrigiu-lhe ela- Contava com que você me fizesse ficar
com calor.
Capítulo 55
-Aff rapaz - disse Archie, aproximando-se dele e pondo uma mão no ombro-
Não sabia que era isso o que tanto o irritava. Pensava que só estava zangado por ter
que viver aqui.
-Se não tivesse vindo, Archie, jamais teria conhecido Sabrina, assim já não posso
me lamentar disso. Inclusive tenho vontade de assumir minhas responsabilidades aqui.
Estar sem fazer nada não vai comigo, como você já sabe.
Archie assentiu, mas acrescentou:
-O certo é que Neville queria que viesse muito antes. Assim é. Foi sua mãe quem
decidiu que devia crescer em um só lar. Neville teria preferido que esse único lar fosse
aqui, na Inglaterra, mas seu pai jamais aceitou isso, e estava em seu direito. Neville
cedeu, porque era o melhor para você.
-Não estamos falando de dois lares que fossem tão longe um do outro para que
não pudessem visitar, Archie. Você veio aqui, inclusive na sua idade, e Neville não era
mais velho que você quando eu nasci. Mesmo assim, jamais veio a me conhecer, não?
Eu não existia para ele até que chegou o momento de me recolher, igual a essas
malditas peças de arte que coleciona.
Agora, a expressão e o tom de Duncan transmitiam uma inconfundível amargura.
Archie sabia que estava ali, oculta no mais profundo de seu ser. Para ele era mais fácil
que Duncan não a tivesse compartilhado, porque era resistente a abordar o tema. Mas
se tinha dado conta de quão egoísta tinha sido.
Archie prosseguiu:
-Veio rapaz. Mais de uma vez.
Duncan ficou imóvel.
-Quando? Acaso era eu muito pequeno para recordá-lo?
-Não, de fato nunca chegou às Terras Altas. As duas primeiras vezes o tempo o
obrigou a retornar. A terceira, o tempo pôde com ele. Ficou tão doente que esteve a
ponto de morrer. Já não poderia ir a nenhum lugar onde faça um pouco de frio, nem
sequer confronta bem o pouco frio que faz aqui. Não pensará que tem os aposentos
tão quentes por gosto? Não, parecem-lhe tão incômodos como a mim, mas seus
médicos não lhe deram opção. E tudo porque queria conhecer seu único neto.
-Maldito seja. Por que não me tinha contado isso? -estalou Duncan.
-Possivelmente porque não sabia que era isso o que o irritava, e eu não fui de
muita ajuda quando lhe disse que o motivo de seu aborrecimento era vir aqui. Para ele,
você sempre foi o primeiro, rapaz. Sua mãe o manteve informado sobre todos os
aspectos de seu crescimento, e se eu não cumpria com igual diligencia nos anos
posteriores, pressionava-me para que o fizesse.
- Volto logo - conseguiu dizer Duncan enquanto se dirigia à porta, a pesar do nó
que lhe tinha formado na garganta.
-Tenho um bom ombro... -começou a dizer Archie, mas Duncan o interrompeu.
-Humph!
Archie riu, satisfeito de ter esclarecido aquele mal-entendido e pensando que o
rapaz só precisava passar uns momentos a sós para voltar a ser dono de suas emoções.
Mas Duncan necessitava de algo mais que isso.
Encontrou a Neville justo quando saía de seu salão para descer para a cerimônia.
O ancião começou a dizer algo, mas Duncan não lhe deixou. Rodeou seu frágil corpo
com os braços, como se tratasse de um menino, e o abraçou com supremo cuidado,
embora com ímpeto. Aquele simples contato conseguiu dissolver toda sua ira e
amargura.
Neville se surpreendeu tanto que ao princípio não soube o que fazer com os
braços, mas logo o abraçou também, tão embargado pela emoção que lhe umedeceram
os olhos. Não era um homem expressivo, mas aquele abraço significava mais para ele
do que seria capaz de expressar em palavras.
Nenhum dos dois parecia incômodo quando se separaram; de fato, os dois
sorriam. Era um alívio tão grande aceitar que se importavam. Naquele momento, não
faziam falta as palavras para dizê-lo com mais claridade.
Mas Duncan disse:
-Oxalá o tivesse conhecido antes. Vou sentir-me extorquido quando me faltar.
Neville sorriu.
-Então, me permita que use uma das frases preferidas do Archibald e diga que
não faça cerimônias. Decidi viver uns quantos anos mais.
Duncan lhe sorriu.
-Isso é toda uma decisão, né?
-Bem, de fato - admitiu Neville- levo muito tempo sem uma razão a que me
aferrar. Estou começando a pensar que esse foi em parte o motivo de meu declive e de
que minha saúde continuasse piorando até pensar inclusive que não chegaria ao fim do
ano.
-Significa isso que se encontra melhor?
Neville lhe piscou os olhos o olho.
-Não o diga a Archie, mas agora estou decidido a viver mais que ele.
Os dois puseram-se a rir.
Capítulo 56
Fim