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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ana Claudia Lima Monteiro

As tramas da realidade: considerações sobre o corpo em Michel Serres

DOUTORADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ana Claudia Lima Monteiro

As tramas da realidade: considerações sobre o corpo em Michel Serres

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Tese apresentada à banca examinadora


como exigência parcial para obtenção do
título de Doutor em Filosofia pela
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, sob a orientação do Prof. Doutor
Peter Pál Pelbart.

SÃO PAULO
2009

2
Banca Examinadora:

_____________________________________
Prof. Doutor Peter Pál Pelbart
_____________________________________
Profa. Doutora Yolanda Gloria Munoz
_____________________________________
Prof. Doutor Edgard de Assis Carvalho
_____________________________________
Profa. Doutora Márcia Oliveira Moraes
_____________________________________
Prof. Doutor Ronald Arendt

3
Para Leandro, Bárbara e Brenno, que
sempre me ajudam a descobrir novas
possibilidades para o corpo a cada dia...

4
Agradecimentos:

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pela possibilidade de


desenvolvimento de um trabalho autônomo.

À Capes, por possibilitar o desenvolvimento deste trabalho apesar da grande


distância entre o autor e o programa escolhido.

Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-SP, pela receptividade,


pelo apoio e pela competência de seus profissionais, principalmente ao professor
Edélcio Gonçalves de Souza, por manter minha bolsa num momento difícil.

Ao meu orientador, pela atenção, vontade, cuidado, competência e acima de


tudo, por sua generosidade em aceitar um trabalho sobre um autor tão heterodoxo.

Aos professores do programa, que me acolheram com tanto respeito, meu


agradecimento especial aos professores Jeanne-Marie Gagnebin, Ricardo Fabrini e
Dulce Mara Critelli, por suas aulas apaixonantes que tanto contribuíram para minha
formação.

Aos professores que tão generosamente aceitaram ser banca em minha defesa e
que tanto contribuíram para minha formação.

À professora Márcia Oliveira Moraes, pela minha trajetória acadêmica, que está
tão misturada à minha história de vida e a sua presença tão importante em ambas.

Aos meus familiares, que sempre me apoiaram incondicionalmente neste


percurso muitas vezes difícil, principalmente à minha mãe, companheira de jornada,
exemplo de vida e grande guerreira que sempre está por perto quando me sinto fraca.

A todos aqueles que fazem e fizeram parte deste navegar, meus amigos queridos,
que sempre acreditaram que eu seria capaz.

5
RESUMO

Este texto tem como objetivo refletir sobre a possibilidade de pensar o corpo a
partir dos trabalhos do filósofo francês contemporâneo Michel Serres. Este trabalho se
apresenta numa proposta de pensar o corpo que comporte as novas perspectivas sobre
ele. Para tanto, serão utilizadas três possibilidades de pensar o corpo a partir de suas
conexões: o corpo-textura, o corpo-potência e o corpo-narrativa. Desta forma, nosso
trabalho não se apresenta de uma maneira linear, nem mesmo excludente, na medida em
que, acreditamos que estas são apenas três possibilidades de reflexão e não
consideramos estas as únicas maneiras de se pensar o corpo. A partir do trabalho de
Serres, enfatizo nossos estudos em cinco livros específicos: Os Cinco Sentidos,
Variações Sobre o Corpo e três livros de sua quadrilogia sobre a humanidade:
Hominescência, O Incandescente e Ramos. As reflexões apresentadas aqui se inserem
um contexto contemporâneo, no qual as fronteiras entre o que é humano e o que é não-
humano encontram-se cada vez mais tênues, são, a cada momento, transpassadas,
móveis. Pensar sobre o corpo, nesta perspectiva, nos traz novas possibilidades de ação,
e não apenas de reflexão, na medida em que nossa proposta, longe de ser uma
imposição teórica, se apresenta como provocação prática, por nos incitar não a pensar
sobre o corpo, mas a ter, efetivamente, um corpo.

6
ABSTRACT

The goal of this text is to reflect on the possibility of relating the body to the works of
the contemporary French philosopher Michel Serres. This assignment proposes the body
within new perspectives about itself. Therefore three possibilities of thought will be
used starting with their connections: the body-texture, the body-potency and the body-
narrative. It’s not the intention of this paper to be linear nor excludente, due to the fact
that, we believe there are merely three choices of reflection and not the complete nor
entire forms of thinking of the body. Nevertheless, based on the works of Serres, we
consider these connections pertinent, seeing that the author discusses these new choices
in many of his books. The emphasis is mainly on five specific ones: Les Cinq Sens,
Variations sur le Corps and three others of a quadrilogy on humanity: Hominescence,
L’Incandescent and Rameaux. The reflections presented are inside a contemporary
context, in which the frontiers between what is human and what is not, are more and
more tenuous as well as crossed likewise movable each moment. Thinking about the
body, in this perspective, brings us to new possibilities not only about reflections but
actions, because our proposal, far from being a theoretical imposition, is a practical
stimulation. It forces us not to ponder about the body, but to effectively have one.

7
Sumário:

Introdução........................................................................................................................10

Capítulo 1: Corpo-textura – sentir um corpo?.................................................................24

1.1 – A dupla constituição do corpo................................................................................25

1.1.1 – O movimento: O corpo como invariante variável...............................................26

1.1.2 – As afecções: como o corpo se relaciona com outros corpos...............................32

1.2 – As superfícies e seus efeitos....................................................................................41

1.2.1 As diferenciações da superfície: os outros sentidos...............................................48

1.2.1.1 – Os sentidos e a abstração: mais um efeito de superfície..................................60

1.2.2 – As diferenciações da superfície: a consciência...................................................65

Capítulo 2: Corpo-potência – o que pode um corpo?......................................................69

2.1 – A potência do corpo: a alma branca......................................................................71

2.1.1 – O corpo múltiplo..................................................................................................74

2.1.2 – A alma branca – proposta metafísica?................................................................82

2.2 – O aprendizado do corpo: imitação, repetição e transformação............................88

2.2.1 – A imitação: uma forma particular de repetição..................................................90

2.3 – As potências do corpo: suas conexões heterogêneas...........................................101

2.3.2 Considerações sobre o biopoder..........................................................................110

Capítulo 3: Corpo-narrativa – dizer um corpo?.............................................................117

3.1 – A questão do código: proposta de pensar o corpo como informação..................123

3.1.1 – A translação como transformação espaço-temporal.........................................128

3.1.2 – A questão da comunicação: as trocas do corpo................................................134


8
3.2 – A relação entre linguagem e corpo: o corpo se constitui como linguagem?.......140

3.2.1 – A questão do sentido: ampliação do dado, que se transforma em dom............146

3.3 – A narrativa do corpo............................................................................................159

Considerações Finais: Somos todos ciborgues?

9
Introdução:

Digo: o real não está na saída nem na


chegada: ele se dispõe para a gente é no
meio da travessia.
João Guimarães Rosa

No pensar de Guimarães Rosa, é sempre difícil começar, justamente porque as


coisas iniciam-se sempre no meio. Os começos ocorrem por recortes, por perspectivas,
por pontos de vista. Este trabalho não é diferente, encontra-se no meio, em recortes
feitos a partir de uma dupla trajetória: a do autor que escreve e a do autor que inspira a
escrita. A escalada das páginas, exercício incentivado por Serres, em Variações Sobre o
Corpo, ocorre com uma vertigem que é própria do pensamento desse autor: não se
deixar enganar pelas palavras, mas, sentir o mundo – antes de falar dos sentidos, sentir
sua capacidade de experimentar, de ser afetado pelo mundo, como em Os Cinco
Sentidos. Ao invés de olhar as coisas pela janela do escritório, provar o vinho, escalar
montanhas, ouvir o silêncio de Epidauro, navegar enfim e sentir a errância dos sentidos,
sua capacidade de aprender, sua potência de relação. Navegar para sentir e perceber,
como Serres (2001, p. 355), o colear dos sentidos na declaração: “Os cinco sentidos,
ainda no início de uma outra aventura, fantasma de real timidamente descrito em um
fantasma de língua, eis meu ensaio.” Colear que se faz corpo. O corpo não se constitui
através dos sentidos, mas, é atravessado por sensações, afetado por relações.

O corpo, para Serres se apresenta, portanto, como esta diminuição das


intensidades, como ponto de abrandamento das velocidades, como amenização do
tempo pela permanência e pela duração, continuidade que suspende os fluxos,
“estruturas longe do equilíbrio”1. Todas estas propostas de pensar o corpo mostram
muito mais sua incandescência do que sua permanência. O corpo que se apresenta numa
tensão constante, é uma diferenciação do mundo, que se apresenta numa tensão

1
Tal expressão se refere à proposta de pensar as estruturas longe do equilíbrio apresentadas por Prigogine
e Stengers em seu livro Entre o Tempo e a Eternidade,Lisboa, Editora Gradiva, 1990.

10
constante, numa diferenciação e num afastamento que sempre tendem a desfazer sua
permanência. O corpo, em nosso trabalho, deve ser pensado muito mais como esses
encontros e essas tensões do que propriamente pela sua estabilidade, que, em última
instância, o levaria ao fim. Daí, nossa preocupação em não definir o corpo, mas pensar
formas diferentes de “tocá-lo”, de fazer o corpo funcionar, seja como textura, como
potência ou como narrativa.

Porém, antes de avançarmos em nossas considerações sobre o corpo, é


importante que se esclareça um pouco mais o próprio trabalho de Michel Serres. Além,
é claro, da escolha de pensar o corpo a partir deste autor. Iniciaremos com o ponto que
considero mais fácil: a escolha do autor. Serres é um pensador que sempre nos intrigou,
desde nossas primeiras leituras de seu texto, feitas a partir do trabalho de Bruno Latour.
Latour é um importante pensador contemporâneo e seus textos são bastante
controversos, até por suas referências ao trabalho de Serres. Meu segundo contato com a
obra deste autor ocorreu justamente com a leitura das entrevistas que Serres concede a
Latour. Tais entrevistas são uma tentativa importante de esclarecimento, de divulgação
do pensamento de Serres, que, segundo ele mesmo, sempre trilhou um caminho solitário
durante muito tempo. Há um acordo entre eles de que esse caminho solitário ocorreu
muito mais pela dificuldade de compreensão dos textos de Serres do que propriamente
pela relevância de seus escritos. Somente com seu encontro com autores mais jovens,
como o próprio Latour, é que seu trabalho criou novas conexões, foi “traduzido”, posto
em funcionamento com outros autores e pensamentos. A leitura de seus textos
encontrou mais espaço inclusive a partir de trabalhos desenvolvidos com seus alunos.
Em outras palavras, apenas uma geração após a sua, Serres adquiriu uma leitura mais
acurada, cuidadosa, que possibilitou sua divulgação – mesmo que, não encontremos
nenhuma tese de filosofia, no Brasil, inspirada somente neste autor.

A leitura de suas entrevistas nos despertou uma curiosidade muito grande pela
forma original com que Serres compreendia o pensamento, a filosofia, a ciência, enfim,
o mundo e as relações entre os saberes. A leitura de seu livro Os Cinco Sentidos,
inspiração direta para a escrita deste texto, foi ao mesmo tempo, impactante e
desafiadora ao mesmo tempo. A forma vertiginosa, instável, inédita com que Serres nos

11
apresentava os sentidos era algo absolutamente diferente de qualquer leitura anterior
sobre tal assunto. Mesmo tendo sido considerado um livro literário, esse livro pode ser
compreendido como uma forma de desvio, de inauguração de um novo caminho para se
pensar o corpo. Os sentidos não eram apresentados como algo que ocorre no corpo,
mas, como aquilo que é o próprio corpo. Esse corpo, longe de ser algo estabelecido, se
apresenta, não apenas neste texto, mas também em outros textos do autor, como
variação, como uma estabilidade instável. Seus limites não são determinados, porém
construídos pela narrativa do autor, em seus encontros, por relações. As analogias
construídas para reflexão não podem ser confundidas com exemplos de como sentimos
ou de como os sentidos funcionam, mas antes, como desafios, como convites à
experimentação. Serres nos pede menos que compreendamos os sentidos e mais que
experimentemos esse corpo, nossas sensações. Não é um tratado sobre a sensação, mas,
uma celebração, um banquete de sensações, é um livro que serve menos às palavras e
mais ao corpo.

A compreensão dessa forma de escrita só veio ao longo do tempo, com o


exercício próprio de escrever, de pensar, de estabelecer conexões não dadas. Em última
instância, o texto de Serres nos provocou o pensamento, não de uma forma comum,
mas, como experimentação. Não se tratava de uma leitura que se apresenta de maneira
“clara e distinta”, trata-se de uma leitura que podemos denominar de “visceral”, como a
leitura de Nietzsche2, pois deve ser digerida, deve “penetrar no corpo”. Com o avanço
em suas leituras, a cada movimento, a cada reflexão, novas possibilidades de pensar o
corpo surgiam. Por outro lado, Serres é um autor que não se apresenta de forma clara
para os leitores que o lêem de forma rápida e tendem a julgar seus escritos de forma
precipitada.

O objetivo maior das entrevistas que Serres concede a Latour é justamente um


esforço em apontar a importância do pensamento de Serres, inclusive na sua maneira
peculiar de escrever. Serres não “respeita” as fronteiras entre os saberes. Ele mistura,
constantemente, religião, mito, ciência, filosofia, antropologia, literatura, artes plásticas,

2
Tal conselho, de “ruminar a leitura”, encontra-se no livro Genealogia da Moral, de Niezsche.

12
além de uma infinidade de questões trazidas dos lugares mais inusitados: como suas
escaladas.

Sua cultura é extremamente vasta, daí sua potência de reflexão. Seu texto não é
linear, como seu próprio pensamento. Isso, por outro lado, não significa ausência de
rigor ou inserção de incoerências que não se sustentam. Ao contrário, o pensamento de
Serres é extremamente rigoroso, mas num outro sentido, pois seu rigor encontra-se na
velocidade com a qual faz a passagem entre os sentidos dispersos nos vários saberes.
Ele próprio, com sua escrita, busca executar a tarefa de Hermes, isto é, fazer a passagem
entre os múltiplos sentidos, enxertar novos ramos nos caules estruturados. Para Serres,
todos os saberes são narrativas, portanto, possuem potências de conexão. Estas não
devem ser pré-definidas; no entanto, devem gerar o estranhamento próprio de um
pensamento novo. Assim, sua proposta é menos considerar seu trabalho como
“novidade em contraposição ao velho” do que apresentar sua proposta como
deslocamento, passagem, produção de novos sentidos.

Dessa forma, buscamos seguir as orientações do próprio Serres: ler bastante para
depois esquecer, criar, pensar por si mesmo – como o corpo faz: imita, aprende por
imitação, até que cria novas posturas. Pelo exercício, pelo treinamento, o corpo é capaz
de se superar. Por conseguinte, a proposta deste texto não é a de buscar uma “verdade”
nos escritos de Serres, mas, fazê-lo operar, traçar novos caminhos que possam abrir
perspectivas de compreensão do corpo até então não pensadas. Não se trata de um
“novo corpo”, mas, de corpos em construção, produzidos em cada proposta e em cada
movimento que o conecta, que dá a ele um recorte. Por outro lado, a leitura do texto de
Serres não apresenta um corpo que deve ser simplesmente “pensado”, com se fosse
possível esta separação entre “o que pensa” e “o que possui um corpo”. Ao contrário,
para Serres, se penso o corpo, não o tenho, só posso ter um corpo na medida em que não
penso nele. É pela ação que o corpo se potencializa e não pelo pensamento.

Nesse ponto, podemos dizer que este texto foi escrito menos para trazer uma
nova maneira de pensar o corpo e mais para refletir sobre as infindáveis discussões

13
contemporâneas sobre a apropriação dos corpos. Não se trata de uma simples afirmação
do corpo, que levaria a um hedonismo sem saída, mas, de uma nova “política do corpo”.
Falar em política não significa dizer militância, na qual as reivindicações se
apresentariam em praça pública, com protestos e panfletos. Mas, uma “política da
intimidade”. Uma mudança na forma de lidar com o corpo, uma prática que leve em
consideração seus afetos, seu aprendizado, suas potências, sua construção. É menos uma
posição política e mais um fazer político, de resistência, que não se opõe nem à ciência,
nem à sociedade, mas, que se coloca “no meio”, “entre”, produzindo cada vez mais
desvios, conexões inusitadas, formas de resistência pela potencialização do corpo. Não
se apresenta como oposição; no entanto, como dispositivo de conexão. O corpo,
portanto, opera por encontros que surpreende seus limites, que desafia sua estabilidade.
A visão política vem desses desafios, na medida em que desconsidera a colocação do
corpo num espaço delimitado, numa formatação prévia. A visão política vem dessa
possibilidade de desafiar os limites, de não se submeter à lei.

Nesse ponto, encontramos mais uma convergência entre dois percursos que se
entrecruzam para formar um traçado, uma tessitura, até mesmo uma tapeçaria: o
percurso de quem escreve e o percurso de quem inspira a escrita. A nossa formação
pode ser pensada numa dupla convergência: os estudos filosóficos da Psicologia, que
passam por Foucault, Deleuze, Guattari, Lapassade, Lourau, Freud, Lacan e, mais
recentemente, por Bruno Latour, Isabelle Stengers, Anniemarie Mol, Vincianne
Despret, por um lado; e nossa experiência com o corpo, por meio da dança, durante 15
anos de nossa vida, por outro lado. Essa dupla influência sempre nos fez compreender o
corpo de uma maneira peculiar, sempre questionando as várias possibilidades de
determinismo que atravessaram nossa prática. A necessidade de pensar o corpo ocorreu
por este questionamento acerca da permanência do corpo, de sua “passividade”, de sua
captura. Não que o corpo não seja captura, mas existe algo além desta captura: suas
escapatórias, a possibilidade de surpreender. As mudanças do corpo não ocorrem apenas
para dar conta de uma demanda de beleza, de perfeição, mas também para produzir
novos sujeitos, que se reconhecem apenas em corpos produzidos por eles mesmos.
Como exemplo dessa produção, podemos citar um caso trazido por Anniemarie Mol,
em seu livro The Body Multiple: ontology in medical practice. Aqui a autora discute a
possibilidade do governo alemão pagar cirurgias de mudança de sexo, porém o critério

14
para tal mudança deve ser delimitado, obviamente, não pelo sexo da pessoa, mas por
algo mais sutil: sua relação subjetiva com seu corpo. O não-reconhecimento deste corpo
como seu. É como se o sujeito dissesse: “esse corpo não é meu, eu sou uma mulher
presa num corpo masculino”. Essa expressão é muito mais política do qualquer
manifesto em prol dos transexuais, na medida em que afirma a maleabilidade do corpo
muito mais do que pensa sobre ela.

Por outro lado, não se trata de afirmar a prevalência da subjetividade. Não é em


termos de oposição ou privilégio que pensamos o corpo, daí que, algumas vezes ao
longo do texto, vamos passar do corpo à alma e vice-versa, é que a distinção não está
dada de antemão. Em outras palavras, a questão não é diferenciar aquilo que é o corpo e
aquilo que é o sujeito ou a subjetividade; entretanto, ao contrário, mostrar o quanto a
constituição do sujeito passa pelo corpo: não por esse corpo “dado”, mas por um corpo
que se constrói muito mais do que por um corpo “conhecido” pelo pensamento. Os
trabalhos de Serres, nesse sentido, são mais políticos; no entanto, de uma outra maneira
de se compreender a política, na medida em que ele nos diz em Os Cinco Sentidos, por
exemplo, que as mulheres não enganam, ao se maquiar, não escondem sua verdadeira
idade, ao contrário, constroem seu Mapa de Ternura, para enfatizar seus afetos,
determinar suas paragens, mostrar seu mapa afetivo. Essa proposta é política porque
desfaz as marcações entre corpo e alma, porque é um posicionamento político por
questionar estas fronteiras determinadas, por expor a flexibilidade do corpo ao invés de
pensar o ornamento como engano. Serres nos afirma nesse mesmo texto, que os gregos
são sábios por considerar a mesma origem para a beleza e a ordem (cosmos), ou seja, o
ornamento não é engano3, é o estabelecimento de uma ordem que não estava dada, mas
foi construída pelo artefato. O artefato não é, portanto, “enganoso”, mas primordial para
que a ordem advenha.

Cabe aqui trazer mais um dado sobre a tessitura deste trabalho: a formação do
autor. As questões suscitadas pela obra de Michel Serres produzem um efeito em nós,
produtores deste texto. Em nosso caso, a proposta de pensar o corpo trazida por Serres

3
Vale lembrar que esta origem comum ocorre antes da distinção entre essência e aparência, feita por
Platão. Cf. Górgias.

15
nos possibilita construir uma maneira de compreensão do corpo que não parte do
dualismo entre sujeito e objeto. Ao contrário, Serres é absolutamente a favor das
misturas, dos fluidos, das subversões de fronteiras. Pensar o corpo dessa maneira
possibilita a alteração das práticas, efetivamente. As questões trazidas por ele fazem
com que o corpo seja potencializado, que não seja pensado nem como resíduo e nem
como “marionete”. O corpo se produz, portanto, não se encontra submisso à alma,
tampouco às manipulações sociais. É essa produção que faz com que as práticas em
ciências humanas, em geral, e em Psicologia, em particular, sejam repensadas,
reorganizadas. O corpo que se coloca como potência não se opõe à alma, nem mesmo à
subjetividade, ele pode se constituir dessas diversas maneiras, sem se apresentar como
fragmento. É essa possibilidade que fez com que o trabalho de Serres fosse fundamental
não apenas para nossa prática, como também para nosso posicionamento diante do
mundo.

Além disso, a escrita deste texto não pode ser compreendida como linearidade,
na qual cada capítulo está posto segundo uma ordem hierárquica. A ordem é construída
na medida em que o texto é escrito. Portanto, a leitura deste texto deve ser
compreendida como linhas que compõem a trama de uma tapeçaria, a qual são misturas
de vários matizes que se alinham para formar o tema de nosso trabalho: o corpo. Mas,
como a própria escrita, esse corpo se delineia a cada capítulo, sob uma perspectiva
diferente. Isso quer dizer que também o corpo encontra-se no meio, a se fazer. Em nosso
texto, ele se constrói a partir de três delineamentos: o corpo-textura, o corpo-potência e
o corpo-narrativa. Esses três aspectos não são excludentes, se entrecruzam, não são
diferentes corpos, mas diferentes possibilidades de pensar a constituição de um corpo.
Daí a possibilidade de ler este texto sem seguir o posicionamento dos capítulos, haja
vista que podemos ler cada capítulo de forma separada, por não se tratar de uma
continuidade. O corpo é traçado aqui, pelos seus encontros e por suas passagens. Como
Serres conhece seu corpo pelo mar, pelas escaladas, pela religião e por sua aversão à
guerra separatista, qualquer autor impõe sua marca no texto pelos seus pertencimentos,
e pelo afastamento deles como condição de um pensamento livre, original, fabricado
pelas muitas misturas que compõem, não apenas o texto, mas o próprio corpo.

16
Como dissemos anteriormente, os corpos são marcados por suas experiências,
por seus aprendizados e por suas extrapolações. Este texto não seria diferente, já que
surge desta possibilidade de ser marcado, desenhado, constituído por marcas impressas
não apenas neste papel, mas no autor que escreve estas palavras. O texto pensado
também como um corpo, se produz nesta experiência da escrita, na aproximação e no
afastamento de suas palavras com outros textos, outros autores, na possibilidade deste
de gerar potência, de afetar, de construir relações. Assim, a marca do autor, que
encontramos aqui, não se parece com um pensamento “autônomo”, na medida em que
se acredita que tal pensamento, na verdade, não existe. O que constitui, portanto, a
originalidade deste texto é a forma como são conectados os autores, seus
deslocamentos, suas traduções. Como na tapeçaria e na culinária, não se trata de criar
ingredientes originais, mas de criar a originalidade a partir das misturas, das conexões.
Não é a origem que importa, mas, mais uma vez, o meio. Este texto encontra-se no
meio, como encontro possível entre autores, como diálogo que modifica e produz
sentidos que não estão dados previamente.

Podemos nos aproximar um pouco mais das analogias que apresentamos acima –
a tapeçaria e a culinária. Serres utiliza muito o exemplo da tapeçaria, principalmente,
para pensar o corpo como superfície, que se constitui pelas paragens, montes, declínios
e dobras, ênfases e amenizações. Mas, qualquer tapeçaria possui, além de sua superfície,
suas tramas, seus nós, suas laçadas, minúsculas confusões, desalinhos, apertos e
afrouxamentos. Há, portanto, um trabalho de construção que é particular, delimitado,
detalhado, feito ponto a ponto, expresso no detalhe. Mesmo que a tapeçaria seja bastante
extensa, é a cada laçada que ela se constrói, pelos pontos, pelas cores, pela espessura
feita pelas linhas que se entrecruzam. Nada melhor do que essa analogia para pensarmos
a relação entre o local e o global: por mais grandiosa que seja a obra, ela é feita a cada
gesto do tecelão. Ao mesmo tempo, a obra impressa na tecelagem se destaca, se delineia
para além destas linhas e traçados. A figura impressa na tapeçaria é um corpo, composto
por suas particularidades, mas que se apresenta em sua totalidade. A imagem de
Penélope, tecendo os caminhos de Ulisses em suas tramas feitas e desfeitas, é um belo
exemplo das possibilidades da tapeçaria: ela é, ao mesmo tempo, o que constitui os
laços, mas frágil, a ponto de ser refeita. Delineia limites e bordas que são móveis,
passíveis de serem desmanchados e refeitos. A tapeçaria é, ao mesmo tempo, a imagem

17
da totalidade e a sutileza dos pontos particulares, construídos ponto a ponto. Da mesma
forma, o corpo é composto dessa relação: ao mesmo tempo local e global.

Por outro lado, a tapeçaria se constitui por linhas, por continuidades que se
relacionam para fazer emergir algo que não está presente nas linhas elas mesmas. Em
outras palavras, o entrecruzamento das linhas faz surgir a tapeçaria, que não pode ser
compreendida apenas pela trama, local, mas, por sua visão global. O corpo, por sua vez,
também não é apenas o ajuntamento de órgãos, de elementos mais simples. O que dá
sentido ao corpo não são suas partes, mas, a possibilidade de se constituir como uma
totalidade que ganha sentido nas relações. Essa totalidade se apresenta numa dupla
constituição: é, ao mesmo tempo, um sentido interno, de relação entre partes
semelhantes, e uma relação com a exterioridade, que distingue o corpo daquilo que não
é ele mesmo. De forma análoga, a tapeçaria também apresenta a relação entre a trama e
suas bordas de forma semelhante: os laços e nós são sua coerência interna, e os limites e
bordas da tapeçaria sua relação com a exterioridade. Da mesma forma, como dissemos
acima, seus limites podem ser móveis, uma vez que é possível estender a trama, criar
novos nós e laçadas. O corpo, por sua vez, amplia seus limites estabelecendo novas
relações, novas conexões.

Em segundo lugar, temos a referência da culinária, arte pouco valorizada, posta


em segundo plano. Para Serres, a arte dos fluidos, das misturas e das relações é a melhor
imagem que podemos ter do mundo e das coisas. O derretimento, a vaporização, as ligas
e misturas que ocorrem na cozinha são belas imagens do mundo: o que importa não são
as distinções, mas os encontros, as confusões. Por mais que se apresentem como
elementos, como ingredientes, separados, aquilo que se apresenta para o cozimento é
muito mais fluido do que sólido. A solidez não permite os encontros, determina a
fixidez, a claridade, a permanência. Por outro lado, da fluidez e da vaporização
emergme novas formas de relação, novos encontros, novas misturas. Quando Serres se
refere às Luzes, valoriza muito mais a velocidade do que a clareza, talvez por perceber
que é no calor que as melhores misturas ocorrem: o vôo dos anjos, as passagens de
Hermes, as chamas incandescentes. Na cozinha, podemos ver essas imagens,
principalmente, pelo poder do fogo: é ele que faz com que as coisas sejam fluidas,

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elásticas, conectáveis. Pelo fogo, nada permanece estável, as coisas tendem a expandir,
a tomar o espaço, a ampliar. A fluidez traz consigo a expansão, a instabilidade das
bordas e dos limites, a maleabilidade dos encontros. Da mesma forma, o cozinheiro é
aquele que faz expandir os sabores e odores, potencializa as relações, produz
agenciamentos, encontros impossíveis na rigidez dos sólidos.

Essa imagem nos faz pensar o corpo como algo fluido, muito mais do que como
uma determinação sólida, palpável, delimitada. É no calor dos corpos que vemos
emergir sua potência. O corpo se faz líquido no momento em que experimenta suas
bordas, seus limites, no momento em que se faz outro, pelo mimetismo e pela
incorporação, pela conexão com a técnica. O corpo é passível de misturas, de relações
que, se por um lado, atenuam determinadas potências, ao mesmo tempo faz emergir
novas potencializações que só são possíveis nas misturas. O aumento ou diminuição
desse corpo ocorre nas misturas com as quais este corpo é capaz de exercer. Essas
conexões, por não se apresentarem como algo dado, algo determinado, fazem com que o
corpo mude a cada relação. Para Serres, a liberação do corpo acontece quando, a cada
movimento, a cada conexão, esse corpo ganha novas funções. Como exemplo, temos a
memória: no momento em que não precisamos mais armazenar os dados em nosso
cérebro, somos libertos dessa função, estamos prontos para utilizar nossa memória para
outros fins, para novas produções. Assim, a ampliação do corpo faz com que este não
seja apenas acrescentado, não é uma pura adição, mas, uma real transformação. Não é
que o corpo acumule mais dados, as conexões não são apenas quantidades injetadas no
corpo, ao contrário, a injeção de quantidade não é a forma com a qual pensamos o
corpo. Da mesma forma que na culinária, o que importa não é a quantidade, mas, as
mudanças qualitativas que ocorrem a partir das relações entre os ingredientes. Não se
trata de um aumento na quantidade, porém, de uma alteração da qualidade. Nesse
sentido, estamos falando de uma culinária que não leva em consideração o aumento do
tamanho, mas a beleza e a sutileza da forma. Dito de outro modo, a culinária que
buscamos compreender é aquela que não considera a quantidade de ingredientes como
ponto essencial para o sucesso de um prato, mas, as misturas sutis, os aromas distantes,
percebidos apenas no momento em que são compartilhados. Ao invés de buscar a
abundância dos conteúdos, buscamos encontros peculiares, que ocorrem em raros
momentos.

19
A própria constituição do corpo segue esta mesma proposta: mudanças
qualitativas, ao invés de mudanças quantitativas. Assim, dividimos nosso texto em três
capítulos, como dissemos acima. No primeiro capítulo apresentamos do corpo como
textura, ou seja, apresentaremos o corpo a partir da constituição de seus limites, de suas
bordas. Neste primeiro momento, o corpo é pensado como superfície, que se lança numa
relação de exterioridade a qual, ao mesmo tempo, apresenta um sentido de interioridade.
Tal sentido se constitui a partir das afecções de que este corpo é capaz. Assim, o sentido
primeiro, a borda corporal, a primeira diferenciação se apresenta no tato, sentido
constituído pelo maior órgão de nosso corpo: a pele. Os outros sentidos se apresentam
como transformação, especialização desse sentido primeiro. A relação entre eles não é
de superioridade; entretanto, como salientamos, de especialização. O corpo, nesta
primeira parte, se delineia, portanto, como superfície de afecções, na qual não somos
capazes de distinguir uma hierarquia entre os sentidos, na medida em que, cada um
deles, é responsável pelas nossas posturas, nossos posicionamentos diante das coisas.
Tal posicionamento gera algumas especializações mais sofisticadas, como a
consciência, que nada mais é do que uma forma de diminuição da velocidade da ação,
uma dobra. Assim, a consciência pode ser pensada como mais um sentido, apresentado
para conectar um número maior de ações possíveis, como invaginação de uma dobra, o
aumento de uma superfície que, ao transbordar, se vira para dentro, criando uma nova
maneira de relação desse corpo com as coisas que o circundam.

No segundo capítulo, trataremos da possibilidade de pensar o corpo como


potência. Tal proposta desloca nossas reflexões para o que Serres denomina de alma
branca. O sentido dado a esse termo se apresenta na proposta da ótica, de pensar o
branco como a junção de todas as cores. Assim, a brancura da alma significa sua
transparência, sua desdiferenciação, sua potência de se transformar, de se
metamorfosear em várias direções e sentidos diferentes. A alma branca é a possibilidade
do corpo de se apresentar a partir de múltiplas práticas, como nos mostra Anniemarie
Mol. O corpo, portanto, não é um objeto a ser estudado como objeto epistemológico,
passível de delimitação, de alcance de sua forma última; porém, como os mantos de
Arlequim, como uma forma multifacetada, multicolorida, composta de retalhos

20
absolutamente diversos. Ao se despir desses mantos, Arlequim se encontra nu, pura
brancura descaracterizada, pura potência. Essa alma branca, por se apresentar de
maneira multiforme, tem uma forma de aprendizado que a modifica, que a recria ao
constituir corpos conectados, sempre apresentados pelas relações. A alma é algo que se
apresenta muito mais em virtualidade do que na realidade. A brancura é exatamente esta
virtualidade do corpo, essa potência luminosa que se multiplica em feixes
multicoloridos. Assim, sem relação não há corpo, apenas potência, sem a abertura da
alma, o corpo não “encarna”, não adquire paragens, diminuições de ritmo.

O corpo, para se constituir como potência, deve se conectar, se relacionar. Esse


relacionamento opera sempre por mimetismo, por imitação. A potência do corpo
encontra-se encarnada nas metamorfoses, na maleabilidade e nas múltiplas posturas
apresentadas pelo corpo. Para além da captura e das apropriações, o corpo cria, resiste,
se põe de uma forma política: não de uma maneira política como conhecemos hoje, mas
como escape, como fuga dos lugares determinados, como “engano” e errância, em
contraposição às verdades determinísticas. O corpo deriva, mesmo quando se submete
às leis biológicas. O corpo cria novas potências ao deslocar, constantemente, suas
falhas. Em outras palavras, o corpo escapa até mesmo à doença, ou seja, a própria
relação do corpo com aquilo que o despotencializa, pois essa é deslocada porque o
corpo cria novas estabilidades, novas relações. Como exemplo, podemos pensar na
relação entre o cego e o programa de computador4 que o possibilita escrever, ler,
trabalhar, se relacionar. Por fim, neste mesmo capítulo, refletimos sobre a questão
política do corpo, como Serres compreende a relação entre ciência e direito e como esta
forma de pensar nos posiciona politicamente, sem, no entanto, ser uma política no
sentido estrito do termo.

No terceiro capítulo, enfim, traçaremos um caminho que vai do código à


narrativa para pensar o corpo em suas possíveis conexões com a história e a linguagem.
Tornou-se lugar-comum pensar o corpo como informação ou código. Neste último
capítulo, iremos refletir sobre essa possibilidade e se, na verdade, o que ocorre é um
reducionismo ou o que denominamos de negociação e translação. Nos trabalhos de
Serres, encontramos várias passagens que nos ajudam a sustentar a idéia de translação,
até mesmo de transubstanciação, uma vez que toda passagem de um lugar a outro requer

4
Citamos aqui o programa DOSVOX, desenvolvido na UFRJ, pelo doutor pesquisador José Antônio dos
Santos Borges.

21
uma mudança não apenas de sentido, mas de configuração. O próprio símbolo se
apresenta dessa maneira: como passagem, como mudança de um sentido a outro.
Portanto, não há reducionismo, nem do corpo ao código, nem mesmo do corpo à
linguagem. O que existem são trocas, relações, encontros.

Além disso, para que esses encontros se estabeleçam, deve existir uma relação
entre partes diferenciadas. Em outras palavras, o corpo, para se manter, deve se
relacionar com aquilo que não é ele mesmo, trocar “informações”. Isso significa que o
corpo também se estabiliza pelas suas comunicações. Para que haja comunicação, deve
haver necessariamente um encontro no qual as partes envolvidas possuam pontos de
contato, de igualdade, em meio à diversidade. Essa comunicação não é clara, simples, é
também uma transmutação, uma transformação na qual as partes envolvidas se
modificam, se alteram pelo contato. Dito de outro modo, o contato entre partes distintas
constrói uma relação que faz com que as coisas relacionadas não sejam mais as mesmas,
que ganhem um sentido dado pela relação e não o contrário. A relação, o encontro, se
torna comunicação na medida em que as partes envolvidas ganham o sentido dado neste
encontro depois que ele ocorre e não antes.

Assim, o corpo também se constitui como narrativa, uma vez que necessita
desses encontros para permanecer, para se tornar cada vez mais si mesmo, em relação à
diferença que estabelece com sua alteridade. O corpo se torna narrativa menos por sua
capacidade de ser decifrado e mais por sua historicidade, construída no meio das coisas,
no meio do mundo. O corpo se historiciza porque se apresenta numa narrativa espaço-
temporal, composta por diversas outras. O caminhar da história não é um destino
inexorável, mas a construção de um caminho que possui diversas temporalidades,
passíveis de serem relacionadas, mas não reduzidas. No momento em que o corpo é
pensado a partir dessa dimensão histórica, ele se apresenta como um produto das
relações as quais é capaz de exercer, que o tornam menos determinado e mais produto
de uma intrincada rede de relações. Historicamente, o corpo não é substância, é relação.

Essas afirmações nos abrem um caminho importante, pois o corpo, por ser uma
produção, uma rede de relações, não pode abrir mão, em seu tempo histórico, de suas
conexões não humanas. Em outras palavras, o corpo é, portanto, um ciborgue, como nos
apresenta Donna Haraway,em seu Manifesto Ciborgue. A postura da autora se apresenta
muito mais como uma postura política do que como uma defesa das biotecnologias. Não

22
se trata de uma apologia à técnica, mas, antes, de um posicionamento no qual o corpo se
encontra como fator político na medida em que se apresenta antes de qualquer
possibilidade de divisão ou dicotomia. Haraway, como Serres, defende a “terceira
forma”, ou seja, antes de se separar em macho e fêmea, em direita ou esquerda, em
natureza ou cultura, devemos nos colocar na posição desse “terceiro instruído”:
ambidestro, hermafrodita, quase-sujeito, quase-objeto. O corpo ciborgue é o que não se
encontra previamente dado, é o corpo político das relações. É o aparecimento da
diferença, passível de ser narrada. O corpo é, também, pura potência branca,
virtualidade que se apresenta apenas nas paragens, nas diminuições de velocidade. O
corpo é também textura, afecção, forma de diferenciação que ocorre na desdiferença.
Mas, além disso, o corpo é político, na medida em que se produz constantemente, sem
se reduzir às suas prisões. O corpo é escape, fuga das representações, o que se apresenta
apenas na duplicidade: copo-textura, corpo-potência, corpo-narrativa. O corpo necessita
dessa duplicação para emergir, mas, como ressaltamos, não se esgota nelas. Apresenta
apenas algumas de suas facetas, que nos permite operar, que nos permite pensar sobre
ele. Entretanto, antes de tudo, o corpo é ação, se faz na ação, se encontra no meio das
coisas. Portanto, mesmo antes de ler este texto, recomenda-se ter um corpo, saber que
ele é pelos seus próprios contatos. Talvez, aí sim, este texto possa “tocar” outros corpos.

23
Primeiro Capítulo: Corpo-textura – sentir um corpo?

(...) não mais penetrar, mas deslizar de


tal modo que a antiga profundidade
nada mais seja, reduzida ao sentido
inverso da superfície.

Deleuze

Neste primeiro capítulo, nossa proposta é entender o corpo, por um lado, como
superfície e, por outro, como afecção. Acreditamos que estas duas maneiras de pensar o
corpo não são excludentes, mas, complementares. Na medida em que o corpo se
constitui na superfície, esta se apresenta como duplamente constituída, numa relação
que se estabelece entre interioridade e exterioridade. Neste sentido, a idéia de corpo se
apresenta na medida em que o pensamos, num mesmo movimento, à luz da relação
entre o dentro e o fora, uma fronteira que marca uma diferença funcional, localizável,
entre “o meio” e o “ser”1, além de marcar aquilo que podemos compreender como uma
“região”, um “território”, assinalado pela emergência de uma superfície de contato.

É esta relação entre exterioridade e interioridade que produzirá o corpo como ser
individuado, limitado por suas fronteiras espaciais e temporais. Como desdobramento
desta afirmação, poderemos entender como o próprio processo de individuação organiza
a diferença entre “interior” e “exterior”; de tal modo que não podemos abrir mão desta
diferença para pensarmos a própria relação que o homem estabelece com o seu corpo.
Ao contrário das afirmações que tendem a acreditar na minimização do corpo, o que
afirmamos, a partir deste trabalho é que não há possibilidade de buscar uma
compreensão do homem hoje sem pensar a relação que este estabelece com seu corpo.

Neste sentido, podemos pensar, como no texto O Timbre Intraduzível do Corpo,


no qual a autora nos mostra que, ao contrário dos outros animais ou das coisas, nós
dizemos que temos um corpo e não que somos um corpo. Portanto, ter um corpo já

1
Nem a palavra “ser” ou a palavra “meio” são boas para designar esta relação entre interioridade e
exterioridade. Colocamos estes termos entre aspas justamente para frisar a precariedade destes termos,
que partem do pressuposto de que esta diferença já está dada. Apenas usamos tais palavras neste primeiro
momento, mas, elas serão desconsideradas ao longo de nosso texto.

24
produz uma relação com o corpo que não é a mesma com a qual pensamos as coisas e os
animais. É como se disséssemos que nosso corpo, ao mesmo tempo, nos pertence e nos
escapa. Somos e não somos um corpo, porque “o corpo, para o homem, não é algo
evidente, (...) não é um dado imediato da consciência. O que a fenomenologia chamou
de “corpo próprio” é uma criação cultural e não um dado primeiro.” [DUMOULLIÉ]
Desta forma, tanto a negação quanto a afirmação do corpo partem de um mesmo
princípio: o corpo não é dado, ou seja, não podemos dizer que o corpo é algo
previamente estabelecido, no qual uma alma se instaura.

Mas, se a questão é posta nestes termos, é necessário que se afirme ou se negue


o corpo para poder possuí-lo ou abandoná-lo. Partimos da afirmação de que o corpo é
construído, efetivamente, não está desde sempre, posto, não é o ponto de partida, mas,
algo a ser constituído, flexível, móvel, algo que necessita ser praticado. E, o que
caracteriza a construção do corpo é a própria possibilidade de relação estabelecida pelas
afecções que se apresentam numa determinada superfície, superfície esta móvel,
cambiante.

1 – A dupla constituição do corpo.

Para que possamos refletir mais detalhadamente sobre esta constituição do


corpo, é necessário referir, partir de pensadores fundamentais que balizaram o campo de
nossas reflexões2. Seguindo o ponto de vista de Deleuze acerca do pensamento de
Espinosa, encontramos a seguinte reflexão:
Como Espinosa define um corpo? Um corpo qualquer, Espinosa o
define de duas maneiras simultâneas. De um lado, um corpo, por
menor que seja, sempre comporta uma infinidade de partículas: são as
relações de repouso e de movimento, de velocidades e de lentidões
entre partículas que definem um corpo, a individualidade de um corpo.
De outro lado, um corpo afeta outros corpos, ou é afetado por outros
corpos: é este poder de afetar e de ser afetado que também define um
corpo na sua individualidade. [DELEUZE, 2002, p. 128]

2
Os autores utilizados neste texto serão considerados como “ferramentas”, no sentido deleuziano do
termo, ou seja, utilizaremos suas referências para fazer funcionar nossas reflexões. Neste sentido, os
textos utilizados operam uma relação de concordância que faz emergir o entendimento de nossa proposta,
o que não significa dizer que estamos dizendo nem uma “verdade” sobre os autores (sobre aquilo que
significa o “Pensamento” de cada um), nem mesmo uma “mentira” sobre os mesmos (o que opera uma
“traição” dos textos utilizados). Mas, o que pretendemos é, como nos diz Bruno Latour, traduzir os textos
e autores escolhidos, fazê-los operar numa relação de compreensão que nos ajude em nossas reflexões.

25
Desta forma, é seguindo este duplo caminho aberto por Deleuze, que conduziremos
nossa investigação sobre o corpo.

1.1 – O movimento: O corpo como invariante variável.

Neste primeiro momento, encontramos, nos trabalhos de Gilbert Simondon,


algumas considerações que podem elucidar nossa proposta. É em seu texto A
individuação dos seres vivos3, que Simondon nos apresenta o processo de individuação
como esta possibilidade de constituição de uma unidade que apresenta, ao mesmo
tempo, as características de fechamento e abertura em relação ao meio. O corpo é, ao
mesmo tempo, uma invariância que permanece no tempo, e uma variação constante a
partir das trocas efetuadas com o meio, para manter a estabilidade. Portanto, tal
processo se apresenta como uma constante mudança, uma constante troca, para que a
estabilidade ocorra. É a partir de pequenas transformações que é gerada a sensação da
permanência. Tal abertura, desta forma, não é estática, é móvel, cambiante, na medida
em que, tanto o meio externo, quanto o meio interno no qual se estabelece um processo
de individuação, encontram-se em constante movimento. Além disso, o processo de
individuação se apresenta como uma constituição que permite ao indivíduo uma
polaridade, uma diferenciação tal que ele é, ao mesmo tempo, igualdade e desigualdade
em relação a seu meio. Igualdade porque tem a possibilidade de reconhecer aquilo que
lhe é semelhante – o alimento, por exemplo; e desigualdade porque consegue identificar
a relação que existe entre o que ele reconhece como “si” e o que não faz parte disso.
Para que tal distinção se torne clara, é necessário pensar nesta superfície que delimita o
contato, que produz, em última instância, este contato. A diferenciação entre dentro e
fora, neste sentido, é o próprio estabelecimento da superfície como limite, com limiar,
como fronteira.

Para a compreensão desta proposta, utilizamos ainda o texto de Simondon, na


medida em que ele pensa a constituição desta fronteira como o que ele denomina de
processo de individuação. Esta proposta nos é útil porque a constituição desta superfície
não está dada, não se constitui como algo previamente estabelecido. O processo de

3
SIMONDON, G. L’Individuation des êtres vivants. In. L’Individu et as gênese physico-biologique,
Paris: Éditions Jérôme Millon, 1995.

26
individuação nos interessa justamente por ser considerado muito mais como processo do
que propriamente como um resultado. Nas palavras do autor:
O indivíduo não é um ser, mas um ato, e o ser é indivíduo como
agente deste ato de individuação pelo qual ele se manifesta e existe. A
individualidade é um aspecto da geração, ela se explica pela geração
de um ser e consiste na perpetuação desta geração; o indivíduo é este
que foi individuado e continua a se individuar; ele é relação
transdutiva de uma atividade, ao mesmo tempo resultado e agente,
consistência e coerência desta atividade pela qual ele foi constituído;
ele é a substância hereditária, segundo a expressão de Rabaud, pois ele
transmite a atividade que ele recebe, ele é este que faz passar esta
atividade, através dos tempos, sob forma condensada, como
informação. [SIMONDON, 1995, p. 189 – tradução e grifo nossos]
A individuação ocorre a partir da idéia de que há uma organização que é capaz de se
perpetuar, não através de sua permanência num mesmo indivíduo, mas, na possibilidade
de se reproduzir, através da transmissão de informação, ao longo tanto do tempo quanto
do espaço. Além disso, o processo de individuação, como frisamos, é um ato, necessita
de uma ação do sujeito em se reconhecer como individuado. Tal reconhecimento se
caracteriza pela perpetuação de um invariante a partir da possibilidade desta, de variar.
Além disso, a variação se apresenta como possibilidade de transduzir, ou seja, de
transmutar a informação através da reprodução. A reprodução, portanto, é a capacidade
mais importante no processo de individuação. Tal reprodução não é apenas considerada
como reprodução no sentido estrito do termo, pois, ao reconstituir minhas células
epiteliais, em 24 horas, também possuo a capacidade de reproduzir minhas células de tal
forma que, é nesta mudança de células, nesta renovação, que continuo permanecendo o
que sou. Neste sentido, o que “entra” no meu corpo é transformado, transduzido, para
manter-me o mesmo.

Para Simondon, a individuação, vista sob tal ponto de vista, não se restringe ao
organismo vivo, mas, é um processo que ocorre tanto no nível da matéria quanto no
nível da vida – e também no nível do pensamento. Por outro lado, a própria concepção
de que podemos pensar a individuação como forma do organismo é errônea. O que
caracteriza o processo de individuação é não considerar, como dissemos acima, a forma
como finalidade – seja esta palavra considerada como início, seja como fim. Ao
contrário, o que é afirmado acerca da individuação é que esta se constitui como um
processo, ou seja, é a partir da individuação que as relações entre os elementos ocorrem
de maneira a que se possa definir esta organização em contraposição ao meio no qual
esta organização se dá. Os elementos que participam de determinada organização

27
“comportam-se” de maneira semelhante entre si e de maneira diferenciada em relação à
exterioridade. O funcionamento “interno” que consiste em manter a ordem conquistada
é visto de maneira diferente nos diferentes níveis: no nível material, no nível da vida e
no nível do pensamento. Nos restringiremos, por agora, ao nível da vida.

Simondon pretende apontar, nos seres vivos, processos de integração e


diferenciação como maneiras de organização do próprio vivente, que possuem um
funcionamento que se apresenta como uma especificidade deste, em sua forma de
transmitir a informação. A produção da vida é uma forma de individuação na qual a
informação sofre um processo de transdução – que é, ao mesmo tempo, integração e
diferenciação: “O nível total de informação se medirá então pelo número de estágios de
integração e de diferenciação, assim como pela relação entre a integração e a
diferenciação, que poderá ser nomeada transdução, no vivo.” [Idem, p. 158]

Portanto, o processo de individuação não pode se reduzir a uma relação entre


aquilo que considero meu corpo e aquilo que efetivamente me constitui enquanto tal. A
individuação não é apenas uma possibilidade de colocar em outros termos as trocas que
ocorrem entre o corpo e o meio. Mas, o processo de individuação pressupõe tanto uma
relação do indivíduo com aquilo que se assemelha a ele, que o potencializa; quanto com
aquilo que produz a separação dos elementos que constituem a própria individuação:
No ser biológico, a transdução não é direta, mas indireta, e segue por
um duplo canal ascendente e descendente; ao longo de cada um desses
canais, é a transdução que permite aos sinais da informação de passar,
mas, esta passagem ao invés de ser um simples transporte de
informação, é integração ou diferenciação, e produzirá um trabalho
prévio graças ao qual a transdução final é possível, enquanto que no
domínio físico esta transdução existe num sistema como uma
ressonância interna elevada ou fraca; se a integração e a diferenciação
fossem somente reais, a vida não existiria, pois é preciso que a
ressonância exista também, mas se trata aqui de uma ressonância de
um tipo particular, que admite uma atividade anterior que exige uma
elaboração. [Idem, p. 158]

Tais indivíduos não seriam, no sentido estrito, os corpos orgânicos propriamente


ditos, mas a própria possibilidade da natureza em engendrar “indivíduos”: seres
diferenciados entre si e relacionados a outros seres que são semelhantes, mas não

28
idênticos4. A própria manutenção da individuação é problematizada por Simondon, na
medida em que o indivíduo, para permanecer, deverá abrir mão de seu equilíbrio estável
para constituir um prolongamento temporal e espacial que não se confunde com o “seu”
prolongamento, mas, com o prolongamento da própria espécie – ou da informação que o
engendra – a partir dele. Desta forma, o processo de individuação é pensado, como
vimos em Deleuze, como a constituição de um corpo que é, ao mesmo tempo,
pluralidade e individualidade, possui tanto a organização de suas partes dando-lhe uma
idéia de conjunto – integração; quanto uma diferença de funcionamento em relação ao
meio – diferenciação, na medida em que se apresenta como trocas incessantes como o
meio externo sem se confundir com ele. Neste sentido, a individuação vital permite
pensar
dois tipos de relação e dois tipos de limites que se descobre no
indivíduo: num primeiro sentido, o indivíduo pode ser tratado como
ser particular, parcelado, membro atual de uma espécie, fragmento
destacável ou não atualmente destacável de uma colônia; num
segundo sentido o indivíduo é este que é capaz de transmitir a vida da
espécie, e se constitui como o depositário das características
específicas, mesmo se ele não for jamais chamado a atualizar a si
mesmo; portador de virtualidades que não darão necessariamente a ele
um sentido de atualidade, ele é limitado no espaço e também no
tempo; ele constitui então um quantum de tempo para a atividade
vital, e seu limite temporal é essencial à sua função de relação. [Idem,
p. 170]
Em outras palavras, o indivíduo não é aquele que possui um fechamento em si mesmo,
mas, aquele que porta, ao mesmo tempo, as virtualidades atualizáveis da espécie, e a
possibilidade de deslocamento em relação a este grupo do qual ele faz parte. Ele é, ao
mesmo tempo, parte e completude, numa relação, nele próprio, de exterioridade e
interioridade em relação à espécie e ao meio.

Para Simondon, por conseguinte, todo processo de individuação é, a partir de sua


constituição, um equilíbrio instável que se constitui numa relação dupla de
diferenciação e de integração ao que podemos denominar de “meio”, na qual o
indivíduo não é pensado como um ser indivisível, único, mas, como uma estabilização
que necessita constantemente se reproduzir para permanecer estável. Neste sentido, a
estabilização é sempre precária e inconstante, pois, o corpo que se constitui a partir da

4
Tais relações entre a espécie e o indivíduo são pensadas por Simondon numa relação de reprodução ou
duplicação. Na medida em que determinado ser é capaz de se reproduzir e, ao mesmo tempo, permanecer
ele mesmo, há a individuação, pois, a reprodução é, em todo o caso, “independente” daquele que
reproduz, sem prejuízo de sua forma e, o ser que será gerado também irá possuir características daquele
que o gerou, mas, não será a pura reprodução do primeiro.

29
individuação não é um corpo isolado, separado, seja dos outros indivíduos que
constituem sua espécie, seja do meio que o diferencia.

Em seu texto Biontes, Bióides e Borgues, Luis Alberto Oliveira nos dá exemplos
muito esclarecedores a respeito. Ao nos falar sobre experimentos com formigueiros, ele
nos diz que
uma formiga isolada se comporta como um bêbado sonso – mas
duzentas (ou mais) formigas são capazes de resolver um complexo
problema de otimização de recursos, o de determinar a menor
distância entre dois pontos de maneira a minimizar o dispêndio de
energia, levando em conta as circunstâncias (tridimensionais!) do
território. (...) Há portanto capacidades na ação coordenada de
duzentas formigas que não estão presentes nas formigas individuais;
um predicado novo foi acrescentado, uma nova qualidade emergiu.
[OLIVEIRA, 2003, p. 145]
O que significa dizer que, para considerarmos o processo de individuação, não devemos
levar em conta o sujeito isolado – a formiga, no exemplo – e sim, considerar as relações
que são estabelecidas entre as partes para que se possa compreender a individuação. No
caso citado acima, o comportamento “individualizado” está presente muito mais no
formigueiro do que propriamente na formiga. Em outras palavras, a individuação não
está na formiga mais do que no formigueiro. Dependendo dos objetivos estabelecidos
entre os componentes de uma determinada comunidade, estes componentes se
comportarão mais como indivíduos ou menos como tais:
O todo-formigueiro, portanto, não apenas contém suas partes, mas age
sobre elas. Esse todo é mais do que a simples soma das partes, porque
serve como meio para as partes agirem sobre si próprias. A
heterogeneidade estrutural dos sistemas complexos instaura um campo
de mediações entre os níveis global e elementar que tem como
resultado a aparição de novas propriedades no sistema. [Idem, p. 148]

Esta forma de relação, que apresenta vários níveis de individuação e de


aparecimento de um meio externo, se constitui como um ponto interessante. O que
percebemos aqui é que não está em jogo uma relação pré-estabelecida entre “meio” e
“ser”. As variações apresentadas organizam, de forma variada as experiências de
exterioridade e interioridade. As mudanças que ocorrem em determinados locais e em
determinadas circunstâncias alteram efetivamente a própria idéia de constituição de um
indivíduo. Como foi dito anteriormente, a individuação não é uma forma, mas um ato,
um processo.

30
Do mesmo modo, tais considerações encontram ressonância também nos
trabalhos de Prigogine e Stengers acerca do que os autores denominam de “estruturas
dissipativas”. Tais estruturas se apresentem como estabilidades que ocorrem a partir de
pequenos e inúmeros desequilíbrios. As estruturas dissipativas não seguem o padrão
determinista de reversibilidade do tempo, portanto, não podem ser pensadas como
estruturas estáveis. Isso significa dizer que existem estruturas que, para se constituírem
enquanto tal, para serem pensadas como “estruturas” necessitam manter o equilíbrio se
“desequilibrando”, ou seja, são estruturas instáveis, dinâmicas que, segundo os autores,
necessitam estar em movimento para alcançarem estabilidade. Belo paradoxo no qual a
estabilidade só se dá nas pequenas instabilidades que mantém a estrutura diferenciada.
Nas palavras de Prigogine:
Em nossa escala de seres vivos, agregados macroscópicos, parecia que
a lei dos grandes números poderia restabelecer na prática o esquema
determinista. Mas eis que as probabilidades fazem sua entrada à força,
mesmo neste mundo: é esse um dos aspectos da descoberta da auto-
estruturação dos sistemas macroscópicos longe do equilíbrio. O que os
relaciona ao aleatório deve-se à variedade das formas que, de uma
experiência a outra, esses mecanismos de estruturação podem
desenvolver, a despeito do rigoroso controle das condições
experimentais. Não se trata mais de fenômenos calculáveis por meio
de leis gerais. Próximo do equilíbrio, as leis da natureza são
universais; longe do equilíbrio, elas são específicas. Essas
“instabilidades” exigem um fluxo de energia, elas dissipam energia.
[PRIGOGINE, 1991, p. 38]

No livro A Nova Aliança, os autores trabalham exatamente esta possibilidade de


entender o funcionamento do mundo muito mais pela complexidade e pela instabilidade
do que a partir da dinâmica clássica, na qual o mundo é compreendido pelo famoso
paradigma do relógio. As trocas de calor e as estruturas dissipativas mostram que, ao
contrário do que se pensava, a instabilidade é parte significativa da constituição do
mundo e das coisas:
A termodinâmica dos processos irreversíveis descobriu que os fluxos
que atravessam certos sistemas físico-químicos e os afastam do
equilíbrio podem nutrir fenômeno de auto-organização espontânea,
rupturas de simetria, evoluções no sentido de uma complexidade e
diversidade crescentes. No ponto onde se detêm as leis gerais da
termodinâmica pode-se revelar o papel construtivo da
irreversibilidade; é o domínio onde as coisas nascem e morrem ou se
transformam numa história singular tecida pelo acaso das flutuações e
a necessidade das leis. [PRIGOGINE e STENGERS, 1984, p. 207]

31
Partindo dos esclarecimentos apresentados anteriormente, podemos agora pensar como
Serres apresenta seus textos sobre o corpo. Em Variações sobre o corpo, o autor nos
convida a pensar o corpo nesta relação do invariante com suas variações:
A versatilidade e a prodigalidade são a chave do segredo. Como, de
fato, definir o corpo vivo? Ele é invariante, mas de forma relativa e
temporária; as distâncias entre suas variações podem ser fracas e
depois fortes, podem ser inicialmente circulares ou periódicas e, em
seguida, caóticas. Os perigos reforçam sua estabilidade antes de
destruí-la para sempre. Estável por suas variações, equilibrado por
suas instabilidades, organizado por sua desorganização, ordenado,
enfim, por suas próprias perturbações, o ser vivo invariante e versátil
caminha em direção a (vers) algo: esta é a forma estável, diretiva,
rotativa, rítmica, enfim, caótica de seu tempo percolador, que associa
em si o tempo do coração e o da cabeça, do relógio e do barômetro, do
periódico e do aperiódico – essa aperiodicidade de cristal que
Schrödinger descobrira na ciência do ser vivo se reconduz então aqui,
na própria experiência de nossa proprioceptividade –, de bifurcações e
de turbulências e, sem dúvida, de outras temporalidades ainda
desconhecidas. Alertados, os médicos adotaram como insígnia um
caduceu constituído por serpentes e um bastão. Esta é a origem das
esperanças do corpo feminino. [SERRES, 2004 p. 122/123]
Nesta longa citação encontramos a mesma idéia de que o ser vivo se constitui por suas
variações. Mas, tais variações são o que faz do corpo, ao mesmo tempo, suporte estável
e lugar das mudanças. O que nos lembra a pergunta espinosista: “o que pode um
corpo?” Em linhas gerais: variações muito amplas sob um suporte maleável5. Num
outro texto Serres ainda nos diz:
Via vita, a vida caminha rápido. Sem os deslocamentos, não existiria
vida humana, sem eles não haveria ritos de iniciação ou aprendizagem
e, muito menos, pré-história ou antropologia. Do outro lado de nosso
destino, entretanto, não existe vida sem caminho. A palavra
viabilidade pode servir para ambos. Tudo se movimenta, mesmo a
árvore cuja seiva circula e cuja folhagem balança sob a ação do vento
quente. Tudo se move, mesmo as moléculas no interior da mais fina
célula. Tudo vive porque se comunica. Tudo existe em virtude da
troca. A relação condiciona a vida e precede a existência. [SERRES,
2005, p. 155]

1.2 – As afecções: como o corpo se relaciona com outros corpos.

Na citação acima, ficou mais clara a relação que podemos estabelecer entre o
movimento e as afecções, para que possamos entender certa dimensão do corpo.
Podemos complementar nossas considerações e buscar a relação entre afecções e corpo
sob o ponto de vista de um outro autor próximo ao pensamento de Serres. Bruno Latour,

5
A questão da potência do corpo será melhor desenvolvida no capítulo 3

32
em algumas de suas reflexões utiliza-se do pensamento de Michel Serres. A idéia de
uma não distinção entre humanos e não-humanos, que é um dos fios condutores do
pensamento de Bruno Latour, ganha sustentação no próprio pensamento das
mestiçagens e dos fluidos de Serres. No livro Jamais Fomos Modernos, Latour discute a
constituição moderna, na qual a distinção entre humanos e não-humanos se apresenta de
forma ambígua: ao mesmo tempo que os modernos dizem respeitar a distinção, em seus
laboratórios, misturam constantemente atores díspares e heterogêneos.

Neste mesmo livro, Latour nos diz que há uma dupla constituição do direito e da
ciência. Tal maneira de pensar nos mostra a necessidade de uma negociação, para que as
coisas venham a existir. O que queremos dizer é que a realidade não é algo dado, não se
apresenta como um conjunto de seres pré-definidos. A realidade, como os próprios
corpos, são construções formadas pela arregimento de atores díspares e heterogêneos.
Sobre tal ponto de vista: um dos principais livros utilizados por Latour neste trabalho é
Statues, pois é neste que Serres nos apresenta a dupla constituição das coisas e das leis:
Em todas as línguas da Europa, ao norte bem como ao sul, a palavra
coisa, qualquer que seja sua forma, tem como origem ou raiz a palavra
causa, proveniente da área jurídica, política ou da crítica em geral.
Como se os objetos em si existissem apenas de acordo com os debates
de uma assembléia ou de acordo com uma decisão pronunciada por
um júri. (...) Era assim que o latim chamava res, a coisa, de onde
tiramos a realidade, objeto do procedimento jurídico ou a própria
causa, de forma que, para os amigos, o acusado era chamado de réus
porque os magistrados o citavam. Como se toda realidade humana
viesse apenas dos tribunais. (...) O tribunal coloca em questão a
identidade da causa e da coisa, da palavra e do objeto ou a passagem
substitutiva de ambos. Algo emerge aí. [cit. em LATOUR, p. 82]

Podemos também mencionar o livro Luzes: Entrevistas com Bruno Latour.


Nesta coleção de entrevistas, Latour busca compreender melhor o trabalho de Serres, e
trazer ao público esclarecimentos importantes sobre tal autor. Na terceira entrevista, os
autores discutem exatamente esta relação entre humanos e não-humanos, a partir da
compreensão das relações:
Instintivamente, é isso que você me pergunta, é sempre isso que se
exige a um filósofo: qual é o seu substantivo de base? A existência, o
ser, a linguagem, Deus, a economia, a política, e assim por diante
desde que venha no dicionário. Mas de onde é que extrai, então o
sentido ou rigor? Qual é a designação em –ismo do seu sistema? Ou
pior: qual é a sua obsessão? Resposta: parto, de forma dispersa, das
relações, de cada uma delas, bem diferenciada – daí a dispersão e,
singularmente, a sua questão –, e de todas, se possível, para acabar por

33
agrupá-las. Permite-me fazer notar que cada um dos meus livros
descreve uma relação, muitas vezes exprimível por uma preposição
singular? A inter-ferência, para os espaços e os tempos que se
encontram entre, a comunicação ou contrato, para a relação expressa
pela preposição com, a tradução, para através... o para-sita, para ao
lado de..., e assim por diante. Statues é o meu contralivro e levanta a
questão: que se passa na ausência de relações? [SERRES, 1991, p.
141]
Ao invés de pensar na existência das coisas, anteriormente apresentadas, Serres busca
pensar a constituição do mundo pelas relações.

Portanto, tanto em Serres como em Latour, o corpo surge como esta composição
de encontros. Não há possibilidade de falar dos corpos sem se remeter à constituição das
relações. Em seu texto How to talk about the body Latour chama a atenção para o que
caracteriza um corpo, neste pensamento:
(…) ter um corpo é aprender a ser afetado. Significando “efetuado”,
movido, posto em movimento por outras entidades humanas ou não-
humanas. Se você não está engajado nesta aprendizagem você se torna
insensível, tolo, você cai morto. (…) Equipado com tal “patho-lógica”
definição do corpo, não há obrigação de se definir uma essência, uma
substância (o que o corpo é por natureza), mas ao contrário, eu irei
argumentar que a interface se torna mais e mais descritível quando
esta aprende a ser afetada por muito mais elementos. O corpo não é,
portanto, uma residência provida por algo superior - uma alma
imortal, o universal, ou pensamento – mas o que deixa uma trajetória
dinâmica pela qual nós aprendemos a registrar e nos tornamos
sensíveis àquilo de que o mundo é feito. Tal é a grande virtude desta
definição: não existe sentido em definir diretamente o corpo, mas
somente em relacionar a sensibilidade do corpo ao que os outros
elementos são. [LATOUR, 2002, documento eletrônico]
Não há corpo sem afecção. O corpo se constitui na afecção. Dizer que não há sentido
em falar do corpo, a não ser pela relação que este estabelece com o mundo a partir de
sua sensibilidade, é dizer que, sem o conjunto de afecções aos quais está exposto, não há
corpo propriamente dito.

As afecções são o que determinam o próprio corpo. Neste sentido, a “aquisição”


do corpo não é dada apenas por pré-disposições a priori, mas, antes, por possibilidades
múltiplas de ser afetado. A diferença entre uma forma e outra de pensar muda
radicalmente o entendimento sobre o corpo. Se entendo o corpo como algo que possui
determinadas disposições para ser afetado, estou afirmando que este corpo está
determinado pelas capacidades prévias de afecção. Mas, se, ao contrário, entendo o
corpo como algo que possui uma maleabilidade tal, que suas conexões não estão
determinadas previamente, este corpo possui uma variabilidade quase infinita. Em

34
outras palavras, o corpo não se esgota em relações pré-definidas, mas se forma, se
organiza, se constrói e se expande somente nas conexões que lhe são apresentadas. As
afecções, ao invés de determinar os encontros possíveis, é o que gera efetivamente
encontros. Tais encontros podem ser de tal ordem que produzem corpos até então não
imagináveis – como a relação entre os chips e as células nervosas, por exemplo6.

Por outro lado, os corpos não podem ser pensados como coisas que se
constituem antes das afecções. São as afecções que constroem um corpo na medida em
que a constituição dos corpos se apresenta, desde sempre mesclada, matizada, tatuada
pelas afecções.

Podemos retornar aqui, mais uma vez, ao pensamento de Deleuze. Seguindo


ainda a intuição deleuziana, passamos agora a considerar as afecções como forma do
corpo de se constituir enquanto tal, nas relações de troca que estabelece com os outros
corpos. É sobre as afecções, como mediação7 entre as coisas e os indivíduos, como
aquilo que produz, ao mesmo tempo, o reconhecimento de uma relação e a identificação
de um fechamento que pretendemos nos inclinar agora.

As afecções podem ser pensadas, de maneira simples, como aquilo que produz
um efeito nos corpos. Tal efeito, vale lembrar, é sempre duplo e marca tanto nossa
sensação de individualidade, de interioridade, quanto nossa sensação de pertencimento
ao mundo, nossa exterioridade. Mais uma vez, quando ele “faz funcionar” o pensamento
de Espinosa, ele nos possibilita entender as afecções de uma maneira muito interessante:
“Definiremos um animal, ou um homem, não por sua forma ou por seus órgãos e suas
funções, e tampouco como sujeito: nós o definiremos pelos afetos de que ele é capaz.”
[DELEUZE, 2002, p. 129] Da mesma maneira, Serres nos convida:
Os nus expostos em séculos de pintura não se destinam aos voyers,
mas mostram o sensível, todas banhistas. Não modelos a serem
pintados, mas modelos do que é preciso fazer para poder pintar ou
pensar algum dia: lançar-se no oceano do mundo. Sentir que se forma
ao redor de si esta membrana, este tecido, este véu invisível.
[SERRES, 2001, p. 30/31]

6
Tal questão, sobre a relação entre o corpo e os outros materiais heterogêneos, possibilitada pela
engenharia genética, falaremos melhor no capítulo 4.
7
Sobre a diferença entre intermediário e mediador, falaremos no decorrer do texto.

35
Serres, nesta citação, nos apresenta o corpo a partir de sua superfície: a própria pele.
Nossa relação com o mundo e com os outros ocorre através das afecções que são
impressas em nosso corpo através da pele, este primeiro e maior órgão-limite.

Portanto, o sentido “primeiro”, que nos permite nos reconhecer como um corpo
é o tato. Antes que possamos ver ou ouvir, sentimos o contato e, tal contato nos
delimita, nos impõe um limite, ao mesmo tempo em que nos lança no mundo, que nos
relaciona com as coisas. Para Michel Serres todos os nossos sentidos são posteriores ao
tato, como podemos perceber em suas narrativas sobre as tapeçarias da Idade Média A
Dama e o Licorne. Ele nos diz: “O tato parece predominar, reunir o sentido comum,
soma dos cinco sentidos, com que tece a tenda”8. [Idem, p. 49] Neste trecho, há uma
bonita analogia entre o tecido e a pele que vale ser aprofundado.

Serres se refere às tapeçarias da Idade Média não apenas para nos trazer uma
reflexão sobre os sentidos, mas para que esta reflexão se apresente, efetivamente
atrelada a uma tapeçaria. Não é por acaso que é colocada esta relação. A própria
tapeçaria já se apresenta como textura, como forma de apresentação dos sentidos do
tato. O toque da tapeçaria já apresenta a pele conectada a ele de uma maneira própria. O
corpo que consegue sentir a suavidade da textura já é um corpo produzido pela
tapeçaria. Os sentidos não se distinguem do que sentem, portanto, a tapeçaria forma um
corpo, da mesma maneira que o sentido comum – apresentado na sexta tapeçaria como a
tenda – forma a conexão dos cinco sentidos, e dá à dama o seu corpo. No mar de
sensações, apresentado nas tapeçarias, encontramos sempre a textura dos tapetes, o
entrelaçamento de seus fios e os nós de suas conexões.

Da mesma forma, quando admiramos os quadros de Bonnard, não vemos apenas


uma tela, pintada para enganar os sentidos, mas, o que vemos são texturas que formam
sentidos:
Generalizando esta hipótese, diríamos que o tecido, o têxtil, o estofo
dão excelentes modelos de conhecimento, excelentes objetos quase

8
A tenda a que Serres se refere aparece na sexta tapeçaria, das seis expostas no Museu da Idade Média,
em Paris, denominadas A Dama e o Licorne. Nesta sexta tapeçaria, encontramos características únicas,
diferentes das anteriores: é a única que possui a tenda citada e inscrições em seu topo que dizem:
“UNICAMENTE MEU DESEJO”. Para Serres esta tapeçaria representa o sentido interno: “Definida pelo
fechamento do espaço, fechada sobre si, a tenda, um pouco aberta, descobre-se a si mesma, o corpo pode
escrever ou dizer: MEU.” p. 52

36
abstratos, primeiras variedades: o mundo é um amontoado de panos. A
mulher, pelo conhecimento, estava há muito tempo à frente do macho.
Mulher nua de Bonnard, deusa com a ave, moça com o licorne ou
pobretona de sapatinhas. [SERRES, 2001, p. 79]

É preciso refletir um pouco mais sobre esta questão dos afetos. Simplificar os
afetos, dizendo que afetamos e somos afetados o tempo todo não nos ajuda muito.
Devemos considerar de maneira um pouco mais detalhada as afecções. Dentre os
autores que teceram considerações acerca das afecções, temos um eixo que vai de
Aristóteles aos fenomenologistas, passando pelos empiristas, por Espinosa e Merleau-
Ponty (com todas as diferenças que cada autor apresenta, é claro). Em tal caminho, o
que aparece como ponto de encontro é a preocupação com o conhecimento que advém
das sensações. Muito já se discutiu, em filosofia, a respeito disso: se as sensações são
capazes de produzir conhecimento, ou, ao contrário, se o conhecimento advém de outro
lugar. Em outras palavras, podemos explicar a complexidade de nosso pensamento
apelando apenas para os nossos sentidos mundanos? Não cabe, no enquadre a que nos
propusemos, propor resposta a questão tão vasta. Entretanto, podemos pinçar alguns fios
que agreguem à economia de nossa argumentação.

Podemos, por exemplo, retornar ao texto de Luis Alberto Oliveira, no qual o


autor nos apresenta a vida como uma complexificação dos sistemas materiais. Para este
autor, os sistemas vivos possuem uma característica muito importante: a possibilidade
de se auto-afetar – a partir desta possibilidade, os sistemas vivos modificam-se
intensamente, a tal ponto que podem modificar sua própria natureza para assimilar as
pressões do ambiente. Para explicar estas mudanças, o autor utiliza-se do conceito de
dobra, trazido por Deleuze: “Implicar é dobrar ou conectar, explicar é desdobrar ou
dissociar. Complexo ou complicado é o que está dobrado junto, o que está redobrado.”
[OLIVEIRA, 2003, p. 150] Portanto, este conceito de dobra nos traz a possibilidade de
pensar a complexidade de uma maneira mais clara:
Qual é o efeito de uma dobra? Induzir a existência de uma outra
superfície, não vista mas intuída, “por detrás” da superfície aparente.
(...) Ou seja: a dobra vai permitir que os corpos se avolumem e que
portanto o quadro adquira uma terceira dimensão espacial, uma
profundidade [Idem, p. 151]

Podemos retornar ao texto de Bruno Latour, no qual ele nos apresenta um


exemplo interessante: a aquisição de “um nariz” a partir das experiências realizadas com

37
o que ele denomina “Malettes à odeurs”, ou seja, um kit de odores que possibilita um
aprendiz a definir, cada vez de forma mais apurada, os odores, mesmo que estes estejam
misturados ou ocultos em outros odores. Adquirir “um nariz” significa, portanto, ser
capaz de diferenciar os odores: “Então, as partes do corpo são progressivamente
adquiridas ao mesmo tempo que as ‘partes-contadas do mundo’ são registradas de uma
nova maneira. Adquirir um corpo é então um empreendimento progressivo que produz,
de uma só vez, um meio sensor e um mundo sensitivo” [Latour, p. 2]

Deste modo, o mundo não se apresenta como algo “já dado”, pronto, e, por outro
lado, o próprio sujeito não pode ser pensado como algo que se apresenta como uma
forma. Para Latour, partir do pressuposto de que as coisas são objetivas e os sujeitos
subjetivos, nos impede pensar a produção do corpo:
Eu pretendo contrapor isso a outro modelo que espero evitar, a todo
custo, este risco que parasita minha descrição: num tal modelo, existe
um corpo, que significa um sujeito; existe um mundo, que significa
objetos; e existe um intermediário, que significa a linguagem que
estabelece as conexões entre o mundo e o sujeito. Se nós usarmos este
modelo, acharemos muito difícil explicar o aprendizado por meio da
dinâmica do corpo: o sujeito está “dentro” como uma essência
definida, e aprender não é essencial para este vir a ser; o mundo está
fora, e afetar os outros não é fundamental para a sua essência. Como
para os intermediários – linguagem, kit de odores – que desaparecem
uma vez que as conexões tenham sido estabelecidas, já que eles não
fazem nada mais importante do que conduzir a ligação. [LATOUR,
documento eletrônico]

Como contraponto, podemos pensar que todos os elementos envolvidos na


própria aprendizagem de “se tornar um nariz” é o que possibilita a constituição de um
corpo. É por mediações que nos tornamos nós mesmos e não o contrário. Sabemos que a
questão da mediação é trabalhada de forma mais profunda em dois livros de Serres:
Hermès III, la traduction, e O Terceiro Instruído, no qual ele nos traz a bela história de
Arlequim, que, ao visitar todos os lugares do mundo diz não haver nada diferente em
lugar nenhum – em contraste com seu manto, absolutamente multicolorido, diverso,
descontínuo, composto por retalhos desarranjados. Arlequim só é Arlequim a partir do
seu manto furta-cor, ao retirá-lo, o que encontramos é outro manto até chegarmos à
pele – tatuada, mesclada, mestiça, hermafrodita, ambidestra. Tornar-se um corpo
significa afastar-se de si mesmo, deixar-se tatuar, marcar os caminhos percorridos pelas
afecções:

38
Eis assim descrito o terceiro instruído, cuja instrução não pára: pela
sua natureza e pelas suas experiências, acaba de entrar no tempo;
abandonou o seu lugar, o seu ser e o próprio estar aí, a sua terra de
origem, viu-se excluído do paraíso, atravessou vários rios, com todos
os seus riscos e perigos. [SERRES, 1993, P. 27]

Numa tradição em que cada coisa possui uma essência e uma natureza, o corpo
não seria nada mais do que um intermediário entre o sujeito e o objeto. Mas, num
mundo em que as coisas são constituídas por relações, nas quais os efeitos e afecções
não são dados previamente, há uma constituição constante do corpo a partir das
mediações. O corpo se constitui como relação9, como conexão, torna-se, cada vez mais
sensível ao mundo que o cerca. Não há autenticidade sem mistura, originalidade sem
cópia, o que há é uma constante produção que ocorre a partir de um afastamento de si
mesmo que, ao invés de produzir um enfraquecimento de si é o que nos possibilita dizer
“eu”.

Todas as afecções produzem o que Serres denomina de nó. A composição que


nos representa, nosso corpo, nada mais é do que um encontro no qual podemos construir
uma espécie de tapeçaria:
Toda separação esquece o nó ou os arabescos que estão entre as coisas
separadas. (...) A falta de sutileza impede-nos ver a floresta de nós sob
a tela ou por baixo da tapeçaria, deslumbrados pela representação de
inteligência. Com certeza o tapete mostra uma espécie de mosaico
discreto, mas, para analisá-lo verdadeiramente, seria preciso desfazer,
por detrás, com a mão, os fios entrelaçados. (...) Antes que o infinito
ou o tempo separem o descontínuo do contínuo, o nó os amarra. A
prática e o conceito de conexão impõem-se na frente de muitos outros.
[SERRES, 2001, p. 74]
Da mesma maneira, esta relação entre a mistura e a coisa se apresenta num outro sentido
quando não mais podemos distinguir a essência e a aparência. Mesmo que a tradição
faça uma distinção muito forte entre uma idéia de permanência da beleza, uma beleza
que se apresenta de maneira “natural” e uma idéia de beleza produzida, esta que engana,
que não deve ser levada em consideração10, na qual a primeira mascara e a segunda

9
Vale lembrar que o que estamos chamando aqui de relação está relacionado ao conceito de mediação,
muito mais do que o conceito de intermediário. Como pudemos perceber nas citações sobre Bruno Latour,
as mediações não são a mesma coisa que intermediários. O conceito de mediação compreende a mistura
como anterior à coisa, as mediações produzem deslocamentos e não são meramente intermediários, que se
apresentam apenas como portadores de mensagens previamente estabelecidas.
10
Como podemos perceber no diálogo Górgias de Platão, no qual o autor nos diz: “a cozinha é a adulação
disfarçada da medicina. Da mesma maneira, à ginástica corresponde a toilette, prática malfazeja e
enganadora, vil e indigna de um homem livre, que ilude com aparências, cores, cuidados da pele e do

39
modifica, é na própria etimologia da palavra cosmos que podemos ver misturados os
dois sentidos:
Dizemos de maneira equivalente cosmética ou a arte da maquiagem.
Os gregos tiveram a requintada sabedoria de fundir numa mesma
palavra a ordem e o ornamento, a arte de ornar com a de ordenar. O
cosmo designa a arrumação, a harmonia e a lei, a conveniência: eis o
mundo, terra e céu, mas também a decoração, o embelezamento ou o
arranjo. Nada é tão profundo como o enfeite, nada é tão abrangente
como a pele, o ornato e as dimensões do mundo. Cósmico e
cosmética, a aparência e a essência saem de uma mesma fonte. A
maquiagem iguala a ordem, e o embelezamento equivale à lei, o
mundo surge ordenado, em qualquer nível em que se considerem os
fenômenos. Todo véu se apresenta magnificamente historiado.
[SERRES, 2001, p. 27]
Dizer que nos tornamos cada vez mais nós mesmos é afirmar a fabricação de si, antes de
dizer que estamos, o tempo todo, sendo “falsos”, enganando a natureza.
Não, a mulher não põe uma máscara mentirosa como dizem os
moralistas, nem remedeiam o irremediável como pretendem os jovens;
ela traça o Mapa de Ternura do tato, e seus riachos de ouvido, rios de
paladar e lagos de escuta, águas misturadas frementes de onde se
ergue sua beleza, fiel. Torna visível sua invisível carteira de
identidade ou corpo impressionável. [Idem, p. 29]
A superfície corporal, portanto, não se apresenta apenas como uma idéia de
“corpo próprio”, como pudemos perceber, pois, o corpo não se apresenta de uma forma
“pura”, “essencial”, mas como algo que só pode emergir na mistura que estabelece com
o mundo e com as coisas. O corpo em sua superfície é conexão, é mediação, á algo que
varia de acordo com as variações da pele. Não é apenas um receptáculo de sensações,
mas, a própria possibilidade de sentir, e deste modo, de dar sentido. Portanto, podemos
compreender a ambigüidade da própria palavra “sentido”, que é as mesmo tempo,
possibilidade de sentir e possibilidade de dar sentido às coisas. Não há separação entre
estas duas possibilidades pois, ao mesmo tempo que sinto o mundo, dou sentido à ele.
Do mesmo modo, as misturas, os encontros, as relações são anteriores, são primordiais
e, como vimos na citação acima, não privilegiam a “pureza”, mas enaltecem as
variações.

O lugar do encontro, das relações e da própria constituição do sujeito se


apresenta na superfície. Não há portanto, motivo para procurar, fora do corpo, o que
seria o próprio sujeito. Nosso encontro com o mundo, nossas afecções se apresentam na
superfície, na própria pele – como nos diz Valéry: o mais profundo é a pele.

vestuário, a tal ponto que, interessadas em exibir uma beleza artificial, as pessoas descubram a beleza
natural, proporcionada pela ginástica.” 465b

40
2 – As superfícies e seus efeitos

Portanto, nossas primeiras relações conosco e com o mundo nos são dadas a
partir desta linha tênue que nos separa deste, que nos possibilita sentir, ser afetados, que
é a nossa pele. É na e pela pele que constituímos nossos primeiros sentidos de “eu”. É
neste órgão limítrofe que demarcamos, desde o nascimento, as fronteiras de nosso
corpo. São as primeiras sensações que marcam a distinção que produzimos entre o que
reconhecemos como “nós” e o que não faz parte de nós. Nossa primeira unidade
encontra sua primeira estabilização na pele.
A pele é uma variedade de contingência: nela, por ela, com ela tocam-
se o mundo e o meu corpo, o que sente e o que é sentido, ela define
sua borda comum. Contingência quer dizer tangência comum: mundo
e corpo contam-se nela, acariciam-se nela. Não gosto de dizer meio
como o lugar onde meu corpo habita, prefiro dizer que as coisas se
misturam ao mundo que se mistura a mim. A pele intervém em várias
coisas do mundo e faz que se misturem. [SERRES, 2001, p. 77]

Pensar a pele como borda, não restringe nossas considerações a um lugar-


comum que é determinar biologicamente nossas fronteiras a partir da visibilidade de
nossos limites, nem mesmo a uma simplificação do corpo a partir do seu limite visível.
Sabemos que, algumas vezes, o lugar delimitado como “eu” não coincide exatamente
com o limite entre o que está dentro e o que está fora deste grande órgão periférico que
é a pele. É neste sentido de tangência comum que queremos sublinhar nossas
considerações, pois, como está claro no texto, é neste órgão-limite que somos
tangenciados, cortados, afetados pelas coisas11. Isso não quer dizer que somos somente
o limite determinado por nossa pele, mas é a partir dos contatos que estabelecemos com
as coisas que brotam as sensações, e também os sentidos. Esta leitura, um tanto
empirista das sensações encontra ainda, suporte no pensamento de Serres, porém a
querela moderna sobre a “substancialidade” do “eu”, o problema do psicologismo, e
toda a discussão acerca do inatismo do Cogito ou da transcendentalidade das
faculdades, se desloca quando pensamos que a construção tanto do sujeito quanto do
objeto não segue a via da distinção a priori.

11
Sobre esta relação entre o corpo e o corte, ver o exemplo de Deleuze, em seu livro A Lógica do Sentido.

41
Não cabe aqui uma longa discussão sobre os caminhos percorridos pela
modernidade, nem mesmo as diferenças e semelhanças entre os autores. Nós
mencionamos a questão do empirismo somente para acrescentar, nas palavras de Serres,
sua proposta – que se aproxima da proposta empirista, na medida em que se afasta dos
pressupostos racionalistas de que só construímos o conhecimento a partir de uma
racionalidade “pré-existente”. Para Serres, produzir conceitos não é a mesma coisa que
ter afecções. Uma afirmação tão óbvia deve ser dita não porque esquecemos o corpo,
mas porque acreditamos que todo o conhecimento advém dos conceitos, formas que
“enformam” a experiência. Ao contrário desta afirmação Serres nos apresenta a estátua
no festim: o filósofo entra na festa com uma pele de mármore e o filósofo abre e fecha
suas janelas, para que lhe sejam apresentadas as flores, primeiramente. Porém, lhe dizer
“rosa” não distingue as múltiplas possibilidades a qual tal conceito pode se referir.
Dentro do banquete, a estátua o interrompe, não se senta nem bebe,
não fareja nem degusta, ela come o cardápio: dicionário móvel capaz
de memorizar a rubrica dos pratos, das receitas e dos vinhos, mas
impotente para comemorar qualquer ceia. (...) Diz melhor que
ninguém o que ela nunca sentiu, mas se trai no vocabulário.12

Por outro lado, temos a própria questão da modernidade, este “ato inaugural”
que transforma aquilo que é anterior a ele como algo ultrapassado. A emergência da
distinção entre sujeito e objeto, que data a modernidade, se apresenta como anterior a
qualquer possibilidade de pensar a junção entre estes dois “mundos”. Mas, autores como
Serres e Latour, não consideram a divisão moderna como um marco intransponível, do
qual deveremos partir. A tese do livro Jamais Fomos Modernos, é justamente apontar
para a construção desta distinção e o que ela possibilitou. Não possui nenhum tom, nem
de denúncia em nome da verdade, nem mesmo de nostalgia, busca do passado “melhor”.
Mas, aponta para os efeitos que tal distinção produziu, como a separação entre natureza
e sociedade. Num mundo dividido, no qual os saberes e conhecimentos apresentam-se
em trincheiras, a mistura não é bem vista. Portanto, o pensamento de Michel Serres
ocupa este “nimbo”, dedicado à não clareza, nem ontológica, nem epistemológica. Para
este pensamento, Latour nomeia seu próprio lugar (e daqueles que, como ele, entendem
a constituição do mundo como mistura) de a-modernos, pois, estes não se encontram
nem num lugar anterior à modernidade: pré-moderno; nem mesmo numa posição

12
Sobre a importância da linguagem e sua relação com o corpo, explicitaremos melhor no segundo
capítulo.

42
posterior à modernidade: pós-moderno13. Na entrevista que cede à Bruno Latour, Serres
nos diz:
Talvez eu não seja moderno, de fato, no sentido que dá a essa palavra.
Mas, no fundo, que importa que eu seja isto ou aquilo, descrito por um
adjetivo que traduz pertença? (...) Uma questão: e se aqueles que se
pretendem modernos não fossem senão antigos e muito raros fossem
os que são modernos? A referida modernidade supõe que tenha
existido uma revolução, que mudou um determinado estado de coisas
para dar lugar a uma nova era, não é verdade? Ora, essa idéia e esse
gesto repetiram-se tão freqüentemente na nossa história que podemos
perguntar se o pensamento ocidental não deixou de o recomeçar,
como um reflexo automático, desde a sua origem. Pelo menos desde
que os primeiros antepassados foram expulsos do paraíso terrestre:
foi-lhes preciso voltar a partir do zero..., ocorrendo depois o
nascimento do Messias... Esta maneira de ser moderno define
exatamente as nossas utilizações repetidas, ia dizer arcaicas; o célebre
prefácio à Crítica da Razão Pura assinala, para cada ciência, um
momento inicial a partir do qual tudo começa, deixando no seu rastro
uma espécie de antiguidade. Se tornar-se moderno exige que
repitamos esse gesto, então nada é tão antigo. Somos modernos
quando repetimos um gesto? Conservadores? Arcaicos? [SERRES,
1997, p. 195]
Partindo destas considerações, podemos perceber que Serres não busca pensar a divisão
entre sociedade e cultura, muito menos entre sujeito e objeto. Para o autor, a questão
não passa por um começo, por uma origem da qual tudo deve derivar. Seu ponto de
partida não se confunde com os pressupostos modernos, nem da divisão, nem da
ultrapassagem.

O termo utilizado por Serres para pensar as diferenciações que ocorrem no


mundo é circunstância. Ao invés de pensar a divisão, Serres pensa a constituição do
mundo a partir de encontros e transformações que são circunstanciais. Não no sentido
restrito do termo, mas, a partir de uma ampliação do sentido desta palavra, encontramos
as múltiplas possibilidades que se tornam estáveis: circunstâncias.
A circunstância torna-se todo o motor. A substância já não tem
importância: é queimada no fogão. (...) As circunstâncias dizem a
multiplicidade irredutível à unidade: não em número apenas, mas em
localização, forma, tempo, cor ou matiz, matéria, fase, vizinhanças...
contingências. [SERRES, 2001, p. 300/301]

A relação entre tangência e circunstância é fundamental para a compreensão,


tanto dos textos de Serres, quanto de sua concepção do corpo. A tangência se apresenta

13
Para um esclarecimento mais amplo desta questão ver o texto Pós-moderno? Não! Simplesmente a-
moderno, de Bruno Latour e sua crítica à pós-modernidade.

43
exatamente como marca de um encontro que não é simplificável a partir do apelo ao
limite corporal. Sentir algo não é somente distinguir uma exterioridade, mas, é também,
em certa medida, reconhecer uma interioridade. Interioridade esta impossível de
reconhecimento se não forem afetadas determinadas partes da pele. “O mapa da
epiderme exprime certamente mais que o toque, mergulha profundamente no sentido
interno, mas começa no tato.” [SERRES, 2001, p. 20] Por outro lado, dizer que as
coisas se constituem na circunstância é afirmar:
Trata-se justamente de circunstâncias: fenômenos não compreendidos
na definição estrita do sistema, não dedutíveis do equilíbrio geral, à
parte. Nenhuma balança compensa as direções gerais pelos
movimentos que eu diria ocidentadas, nem os afastamentos do
equilíbrio, excentricidades ou inclinações, pelas obliqüidades
simétricas. O tempo reversível não integra suas exceções em uma
soma ritmada. O clinâmen de Lucrécio volta; e em dimensões
gigantescas. Lança-nos no tempo da gênese irreversível, o tempo do
fogo: na cosmogonia, o sol deixa seu papel de massa central para
reassumir o de fonte de irradiação. [Idem, p. 298]

Os afetos que possibilitam o surgimento de um corpo em relação a um mundo


são pensados como tangência e circunstância, pois os encontros se constituem nesta
dupla realidade, na qual o clinâmen, ao se mover, determina a diferenciação. O que está
em jogo aqui, não é a diferença entre sujeito e objeto, constituída a priori. O clinâmen é
anterior a qualquer possibilidade de diferenciação. O que se apresenta, nesta forma de
pensar as relações são sempre circunstâncias. As circunstâncias, como nos diz Serres,
são irreversíveis, lançam os corpos no fogo. Portanto, a tangência é a própria
possibilidade de diferenciar-se de si mesmo, de produzir um “efeito de superfície” que,
ao ser gerado, cria a própria idéia de superfície como limite, como limiar.

No corpo, o que podemos perceber é que esta diferenciação se constitui em


partes específicas. Estas partes são afetadas pelo mundo. Uma região que não foi
afetada dificilmente se reconhecerá como parte do corpo, conseqüentemente, a maneira
como somos afetados nos permite constituir o mapa de nossa própria pele:
(...) eis na pele, à superfície, a alma instável, ondulante e fugidia, a
alma estriada, anuviada, tigrada, zebrada, sarapintada, chamalotada,
conturbada, constelada, multicolorida, matizada, impetuosa,
turbulenta, incendiada. Uma idéia selvagem, a primeira depois da
consciência, consistiria em riscar finamente essas zonas e passagens, e
colorir, como um mapa. [Idem, p. 18]
A partir dessas conexões que estabelecemos com o mundo externo também somos
produzidos. A própria idéia de eu, nossa identidade, não pode ser pensada se excluirmos

44
este encontro. Como dissemos anteriormente, a identidade, antes de ser aquilo que
estabelece a fixidez, é o que nos mistura às coisas:
Assim, complexa e assustadora, surge nossa carta de identidade.(...)
Os que têm necessidade de ver para saber ou crer desenham ou pintam
e fixam o lago de pele inconstante e ocelado, tornam visível, com
cores e formas, o puro tátil. Mas, pra cada epiderme, seria preciso uma
tatuagem diferente, seria preciso que ela evoluísse com o tempo: cada
rosto pede uma máscara tátil original. A pele historiada traz e mostra a
própria história; ou visível: desgastes, cicatrizes de feridas, placas
endurecidas pelo trabalho, rugas e sulcos de velhas esperanças,
manchas, espinhas, eczemas, psoríases, desejos, aí se imprime a
memória; por que procurá-la em outro lugar; ou invisível: traços
imprecisos de carícias, lembranças de seda, de lã, veludos, pelúcias,
grãos de rocha, cascas rugosas, superfícies ásperas, cristais de gelo,
chamas, timidez do tato sutil, audácias do contato pugnaz. A um
desenho colorido ou abstrato, corresponderia uma tatuagem fiel e
sincera, onde se exprimiria o sensível. A pele vira porta-bandeira
quando porta expressões. [Idem, p. 18]
É nesta topologia do corpo que encontramos nossas identificações. Variáveis por cada
traço de afecção que nos produziu e, ao mesmo tempo, identificados a estas variações,
somos o que se apresenta como ponto de intersecção, único e variável.

Mas, nas texturas que compõem o corpo, encontramos, mais uma vez, as
variações de contato. Serres expressa estas variações de formas diferentes, nos
remetendo, mais uma vez, às próprias afecções. Nos quadros de Bonnard, Serres
encontra as texturas, a pele, os véus e a tela. É no jogo destas superfícies que
encontramos a própria idéia de revestimento, que é tão importante para nosso trabalho.
Sobre um quadro do autor de 1890, Serres nos diz:
Tirem as folhas, tirem o penhoar: tocarão a pele da mulher morena ou
a tela do quadro? Pierre Bonnard menos deixa ver do que sentir sob os
dedos películas e camadas finas, folhagem, pano, tela, em liso,
desfolhamento, desnudamento, desvelamentos refinados, cortinas
leves, acariciantes: sua tela cheia de tato não faz da pele um objeto
banal de se ver, mas o sujeito que sente, sujeito ativo sempre por trás.
[Idem, p. 25]
Esta relação entre a tela, o véu e a pele, nos remete, mais uma vez, à relação entre as
afecções e as coisas. Além disso, não há privilégio aqui de um tipo de revestimento que
encobre as coisas, pois, todos os revestimentos são os meios de contato e relação.
O Nu no Espelho de Pierre Bonnard mantém em equivalência ou em
equação a tela, os véus e a pele. A nudez é coberta de tatuagens, a pele
é impressa, impressionada. O nu enfia o penhoar ou a criança o
avental, tecidos impressos, sóbrios ou cintilantes, que expressam mal,
com rigidez ou convenção, nossas impressões singulares. O pintor
mancha a tela para expressar, digamos, suas impressões: ele a tatua,
expõe sua pele frágil, privada, caótica. [Idem, p. 26/27]

45
As texturas, ao invés de serem apresentadas como aquilo que serve unicamente
para cobrir, são, inversamente, vistas como a própria possibilidade de sentir. Tal
inversão expõe a pele, ela não é apenas uma textura que encobre o que é importante, ela
é o que dá sentido e totalidade, se confunde com aquilo que encobre. Por outro lado, o
revestimento não é o que deve ser descartado, mas, afetado para produzir as relações.
Esta forma de compreender as superfícies inverte toda a possibilidade de pensar a
profundidade. Como nos lembra Deleuze, sobre os estóicos:
O que há nos corpos, na profundidade dos corpos, são misturas: um
corpo penetra outro e coexiste com ele em todas as suas partes, como
a gota de vinho no mar ou o fogo no ferro. Um corpo se retira de outro
como o líquido de um vaso. As misturas em geral determinam estados
de coisas quantitativos e qualitativos: as dimensões de um conjunto ou
o vermelho do ferro, o verde de uma árvore. (...) não mais estados de
coisas ou misturas no fundo dos corpos, mas acontecimentos
incorporais na superficie, que resultam destas misturas. [DELEUZE,
2000, p. 7]
Ao compreendermos esta “profundidade da própria pele” é que podemos entender a
importância do corpo. Não é apenas o corpo que se constitui na superfície, mas a
própria possibilidade de se pensar como um corpo, de ser um corpo.

Mas, tal superfície não pode ser pensada como algo liso, sem impressões,
homogênea. O corpo, para ser visto enquanto tal, deve ser impressionado, afetado, como
dissemos anteriormente. O manto de Arlequim, que citamos alhures, não é formado por
um tecido homogêneo, mas, por conexões entre tecidos heterogêneos, advindos de
vários lugares e várias relações possíveis. Ao citar o quadro de Bonnard O Nu no
Espelho, Serres nos instiga:
Sua epiderme está pintada de maneira bem singular. Ela despe o
roupão, dir-se-ia que as estampas do tecido ficaram em sua pele. Mas,
no penhoar, as meias-luas se distribuem de forma regular, mecânica,
reprodutível; na roupa cutânea, vívidas, as impressões distribuem-se
ao acaso, de maneira inimaginável. (...) Mistura sobre mistura e caos
sobre caos, a pele tem por imagem a cortina, tem por reflexo uma tela,
por fantasia uma toalha. [SERRES, 2001, p. 26/27]

Para Serres, cada um apresenta sua própria tatuagem, marca de suas próprias
afecções. O corpo, desta forma, não é apenas um suporte físico-fisiológico, mas, o
próprio mundo, enquanto forma de afecção. Como dissemos anteriormente, estar no
meio significa estar propriamente vivo, ter um corpo. Mas, cada impressão apresenta
sua conexão única, característica, na qual o corpo marca sua existência. Existência aqui

46
é pensada como aquilo que, antes de apontar para um pertencimento, é um “estar fora”,
manter-se em desequilíbrio estável para se manter como estabilidade. Neste sentido,
podemos dizer que o eu. Ou ainda, ter uma identidade, não se confunde com nossos
pertencimentos – se estes são pensados como formas de identificação, o corpo não se
apresenta como uma forma de reconhecimento para além de qualquer relação.

Para que esta idéia de corpo fique mais clara, devemos pensar na distinção que
Serres faz entre pertencimento e identidade. Esta última é a simples declaração de uma
existência singular, única, apresentado no próprio princípio de identidade no qual se é
idêntico a si mesmo. Além disso, ao pensarmos em identidade, nos remetemos, em
nossos dias, aos vários mecanismos de identificação dos sujeitos: carteira de identidade,
passaporte, nacionalidade. Porém, para Serres, estas identificações não teriam,
necessariamente, relação com a identidade, e sim, com o que ele denomina de
pertencimento. Os pertencimentos não são móveis, não são constituintes de relações,
são referências fechadas, localizações e delimitações. Qualquer referência a apenas um
pertencimento constitui no erro de localizar os sujeitos em identidades pré-
estabelecidas:
O que diz o racista? Ele o trata como se sua identidade se esgotasse
em um de seus pertencimentos: para ele você é negro ou homem,
católico ou ruivo. Ele adora o verbo ser, tão fluido quanto redutor. O
racismo tira seu poder de uma ontologia cujo primeiro ato de palavra
reduz a pessoa a uma categoria e o indivíduo a um coletivo. Ele o
encerra dentro de um compartimento, da mesma forma que um
entomologista fixa um inseto em sua coleção com um alfinete;
perseguido, assassinado, trespassado pelo aço, esse inseto é a
encarnação de sua espécie. [SERRES, 2005, p. 101]
O corpo, apesar de ser aquilo que nos identifica, no sentido que propomos acima, não é
o que nos insere, definitivamente, em algum de nossos pertencimentos. O corpo é o
lugar da construção dos pertencimentos – que, em última instância produzirão a
identidade singular – a partir de seus encontros. Em outro texto, Serres nos diz:
Escandalosas injustiças e insustentáveis misérias nascem, como é de
seu conhecimento, de uma falta de lógica, freqüentemente cometida,
que consiste em confundir sua identidade com uma ou outra entre as
suas pertinências.(...) Sua carteira de identidade, bem nomeada,
comporta somente duas ou três de suas pertinências, dentre as que
ficam fixas durante toda a sua vida, pois você continua macho ou
fêmea e filho de sua mãe: na verdade, sua autêntica identidade se
detalha , sem dúvida, se perde em uma descrição da infinidade virtual
de tais categorias, indefinidamente cambiantes com o tempo real de
sua existência: ontem, você ingressou em um clube de ciclismo, por
causa de seus talentos, amanhã, por opinião, você adere a um partido

47
político, e esta manhã, vencedor em uma determinada prova, você foi
aceito, por concurso, em um determinado grupo de peritos. [LEVY,
2000, p. 13/14]

Quanto mais afastado de si, mais nos tornamos nós mesmos, como dissemos acima.
Este belo paradoxo nos diz que, cada vez mais, o que construímos é um “corpo
próprio”, não no sentido que comumente se dá a este termo. Mas, ter um corpo próprio
significa “costurar” nossas sensações para construir nosso véu próprio nas relações com
as coisas e com os outros. “Nós nos vestimos todos de peles fabulosas que parecem
esfinges enigmáticas. A pele varia, discreta, contínua, mal costurada, eriçada. Varia,
atapetada, historiada, tatuada, lendária. A construção do corpo próprio equivale á ficção
do licorne.” [SERRES, 2001, p. 57]

Mas, a constituição do corpo não se esgota na pele. Existem especializações,


dobras, erupções que fazem de nossa pele algo que já é complexo por si mesmo. Nesta
complexidade, encontramos as especializações que compõem nosso corpo. Os outros
sentidos; olfato, paladar, audição e visão nada mais são do que estas especializações do
corpo, do próprio contato com o mundo, com nossas afecções a partir do tato. E, num
sentido mais amplo, a própria consciência se constitui como diferenciação do tato, a
constituição de uma dobra. Primeiro, nos remeteremos à constituição dos sentidos, para
depois nos atermos à consciência.

2.1 As diferenciações da superfície: os outros sentidos

Iniciaremos esta parte de nossas reflexões, nos remetendo à própria forma como
Serres escreveu seu livro Os Cinco Sentidos. Tal livro inicia suas reflexões a partir do
tato, do corpo sentido, da pele, em contraposição aos outros sentidos que serão
trabalhados posteriormente. Tal escolha não é aleatória, já que Serres nos diz que
Os órgãos dos sentidos formam nós, lugares de singularidades em alto
relevo neste múltiplo desenho plano, especializações densas,
montanha ou vale ou poços na planície. Irrigam toda a pele de desejo,
de escuta, de vista ou de odor, ela escoa como água, confluência
variável das qualidades sensíveis. [SERRES, 2001, p. 47]
Falar sobre os sentidos em geral, é falar das especializações que a pele torna possível.
Por outro lado, pensar os sentidos não significa falar sobre eles. O caminho encontrado
por Serres para escrever seu livro foi buscar as próprias sensações, citar os sentidos
como atuam e não como funcionam. Em outras palavras, Serres abre mão de uma

48
discussão teórica sobre os sentidos em proveito de um livro que efetivamente nos
remete ao que é sentido. Não falar da relação entre o olho e o visto, mas, povoar a pele
com olhos de pavão. Não desvendar os caminhos da audição, mas sentir o prazer da
música que preenche nossas almas. Não buscar a compreensão do paladar a partir da
explicação de seu funcionamento, mas oferecer o vinho e o pão, o prazer e a
saciedade14.

A constituição do corpo se apresenta menos como uma linguagem a ser


decifrada, e mais como uma relação a ser construída, um entre que se estabelece nas
relações. Por outro lado, a relação que estabelecemos entre os sentidos não pode ser
reduzida, como dissemos anteriormente, à idéia de que há, previamente estabelecido,
um órgão e a sensação que preencherá este órgão “vazio”. Para pensar como se constitui
esta relação, e como estabelecemos os pontos de convergência que denominamos
sentidos, passamos agora para a narrativa de Serres a respeito dos outros sentidos.

Em relação ao paladar, Serres constrói uma belíssima ligação entre o Banquete


de Platão e a Santa Ceia, de Jesus. Nesta relação, Serres contrapõe a boca que fala e não
sente, da boca que, ao constituir a Santa Ceia, constrói a relação, a comunhão entre os
membros desta. A idéia cristã de comunhão15 se estabelece no próprio compartilhar a
ceia, e a repetição deste ato restabelece, a cada reprodução, o próprio cristianismo que,
segundo Serres, por ser uma religião do corpo, é frágil, necessita ser relembrada: “Fazei
isto em memória de mim”. Para entender o próprio sujeito não é necessário que se fale
dele, mas, que se atualize a existência na divisão do pão e no compartilhamento do
vinho.

14
Na entrevista que cede à Bruno Latour, Serres nos diz porque escreveu Os Cinco Sentidos: “Ri-me
muito, na minha juventude, com a leitura da Fenomenologia da Percepção. Merleau-Ponty começa essa
obra com as seguintes palavras: “Iniciando o estudo da percepção, encontramos na linguagem a noção de
sensação...” Não acha este exórdio exemplar? Tal como o conjunto, tão austero e escasso, dos exemplos
em que se inspiram as descrições que se seguem? O autor vê, pela janela, uma árvore, sempre em flor, e
apóia-se com as mãos no parapeito do seu gabinete; vez em quando, aparece uma mancha vermelha: são
citações. De fato, decifre nesse livro uma boa etnologia dos habitantes das grandes cidades,
hipertecnicizados, portanto, intelectualizados, agarrados à sua cadeira de escritório e tragicamente
despidos de qualquer experiência sensível. Muita fenomenologia, nada de sensação: tudo está na língua.”
[SERRES, 1997, p. 180]
15
A própria origem da palavras comunhão, que é koiné nos remete à idéia cristã da igualdade, pois, como
Jesus “não faz acepção de pessoas”, sua busca do comum passa também pelo compartilhamento do pão e
do vinho, que se apresenta como aquilo que liga as pessoas. A ligação não é feita por um contrato de
palavras vazias, mas com a experimentação, com a lembrança do paladar do pão e do vinho. A ligação do
corpo é, portanto, ao mesmo tempo mais frágil, porque precisa sempre ser repetida, e mais forte, porque
não depende das palavras, mas dos sentidos.

49
O grande cálice, quase-objeto, traça as relações entre os apóstolos,
como o anel que corre no cordão na brincadeira de passar de mão em
mão, ela transmite, tece, objetiva aquilo que une o grupo ou os doze.
Em André, em Tiago, em João, o cálice descansa e torna a partir: a
conexão coletiva pára e continua. Em cada um o grupo morre e revive.
Cada apóstolo toma e dá. Toma o vinho, bebe ou degusta. E dá. Dá
seu princípio de individualização que o vinho, contra a sua vontade,
tira-lhe. Deposita na taça e no vinho essa identidade que o vinho retira
de quem o degusta. [SERRES, 2001, p. 178]
A comunhão é construída neste compartilhamento do quase-objeto, que é o vinho. A
construção tanto do sujeito quanto do grupo ocorre neste compartilhamento que não é o
mesmo que beber o vinho. A construção da relação é, ao mesmo tempo, de um mundo,
de uma cultura e de um sujeito. O pertencimento é construído – e rememorado
constantemente na repetição da comunhão até nossos dias.

Para além da ceia, o próprio vinho – mistura de vários tons diferenciados, liga
que se dá na fermentação – não pode ser pensado como puro objeto de ligação. O quase-
objeto não se constitui como uma estrutura pré-definida. O vinho, como confluência dos
sentidos não é puro objeto, nem mesmo um objeto “puro”:
O que corre junto parece confuso à primeira língua [a língua que fala],
quer fale francês ou grego, mas à segunda [a língua que bebe], que
recebe a unção e segue o mapa da mistura, parece divino como o
vinho de Yquem. É preciso que a primeira jamais tenha degustado
para desprezar a tal ponto os fluxos reunidos, ondas compostas,
corredores cheios de nós, que desembocam em um mesmo volume, os
entroncamentos, as interferências fluidas. [Idem, p. 162/163]

Junto ao sentido do paladar, Serres nos convida a pensar o olfato: “O olfato


parece o sentido do singular” [Idem, p. 171]. Para entender tal relação às coisas,
devemos pensar como Serres: que o olfato está ligado à memória e ao tempo de maneira
inextrincável. Por sua relação com os ventos e o ar, os odores favorecem esta relação
com o tempo. A própria vida, entendida como este “ato de soprar” nos faz pensar na
relação entre os odores, a vida e a memória.

A relação entre a memória e o sentido do olfato é bastante interessante, pois, a


memória voluntária – aquela a qual nos esforçamos para lembrar – é bastante diferente
de uma memória “involuntária”, que nos toma de surpresa, que nos remete a momentos
passados e não apenas a lembranças. É como se o nosso próprio corpo estivesse em
outro lugar, não é apenas uma lembrança. Vemos esta relação estabelecida entre a
memória e o paladar, em Proust, pois, é o gosto da madeleine que faz o personagem

50
“sentir” o passado. Porém, podemos pensar que o ar etéreo, sutil, vivifica em nós, muito
mais fortemente, esta sensação de passado. Os perfumes, os odores, a “atmosfera” de
determinados lugares, de determinados momentos, nos dão a viva impressão – ao nosso
corpo – de estar em outro tempo.

É desta memória que Serres fala, é da constituição no corpo da memória que


estamos falando, como ele nos diz em Variações sobre o corpo:
O que existe de mais precioso do que os mapas desses lugares
visitados que permaneceram no fundo da memória corporal? Essa
preciosidade foi concebida pelo poeta grego Simonide: quando
interrogado sobre a posição dos convidados do banquete após o tremor
de terra que abalara a casa de seu anfitrião, pôde responder e
reconhecer a identidade das pessoas que haviam sido esmagadas pelo
desabamento do teto, porque, ao deitar, seu corpo foi capaz de rever
imediatamente quem estava estendido sobre o leito à sua direita e à
sua esquerda, em frente e ao lado, como se seus membros
conservassem a memória da superfície da mesa. [SERRES, 2002, p.
76]
Desta maneira, o que recordamos está menos ligado ao pensamento enquanto tal do que
às nossas relações com as coisas.

Ao mesmo tempo que trazemos esta memória do corpo, podemos pensar que não
apenas nossas posições nos fazem lembrar das coisas. Há um conjunto de coisas que nos
fazem lembrar, conjunto este vivamente ligado ao corpo, apesar de, às vezes, nos
parecer “incorporais”. Há uma imaterialidade etérea na lembrança. Da mesma maneira,
os odores se compõem de ares e atmosferas. O corpo não se resume à materialidade de
suas formas, mas, também aos odores do ar, aos sopros da vida:
Partindo do ar, o circuito dos odores volta ao ar: sobe por emanação,
desce ao amor, à morte, ao saber e torna a subir. Partindo do vento, da
alma, o circuito retorna para a alma, no sopro do vento. Alma: zero
dos sentidos e portadora de todos eles. Amo tua alma leve, sutil,
vaporosa, turbulenta, caótica, amo que ela penetre tua boca, tuas
orelhas, que reine em tua pele. Digam a diferença entre a alma e o
vento. [SERRES, 2001, p. 174]

O sopro de vida, metáfora que habita a religião e a filosofia – “Alma. A alma


traduz o latim anima, que, por seu turno, traduz o grego anemos, que quer dizer vento.
A alma errante vem de onde vem o vento.” [Idem, p. 174] – não apresenta a alma como
nossa parte “racional”, advinda de um outro lugar, mas, ao contrário, traz a alma como
anima. Nesta concepção de alma, cabe perguntar se os odores, as misturas que
compõem o ar que respiramos, não seriam sopros de alma que nos constituem, tanto

51
como corpo, quanto como lembranças. O ato de respirar nós dá, ao mesmo tempo, o ar
que nos move e o cheiro que nos constitui.

Porém, quando a filosofia retorna sobre os sentidos, não é nem ao tato, nem ao
olfato e muito menos ao paladar que ela se refere, mas, à audição e à visão. Estes dois
últimos sentidos se sobrepõem aos outros quando falamos, por exemplo, sobre aquilo
que nos torna homens. Em outras palavras, a visão e a audição seriam os sentidos mais
apurados em nós, humanos, o que facilitaria nossa capacidade de pensar. Não é por
acaso que a própria linguagem, como propriedade superior, se apresenta
prioritariamente como nossa capacidade de distinguir as palavras através da audição e,
posteriormente, nossa capacidade de ler a palavra escrita, identificando os signos
lingüísticos16. Além disso, valorizamos muito mais o que denominamos de memória
visual e memória auditiva do que esta memória apresentada anteriormente: a memória
dos ventos e da alma, esta que nos toma, que nos transporta a outros lugares e a outros
tempos.

O privilégio dado pela filosofia – e pela própria ciência – aos estudos sobre o
corpo nos quais a visão e a audição são nossos sentidos “privilegiados”, são mais
comuns do que aqueles que pensam os outros sentidos “inferiores”, como o tato.
Os filósofos do conhecimento encontram mais facilmente apoio ou
referência na óptica ou na audição sem dúvida, em razão destas
performances: intuição, harmonia. (...) A forma volta, a linha
harmônica se reproduz, já temos aí um conhecimento, pelo menos um
conhecimento freqüente: estabilidades fortes retornam diante do olhar,
soam na orelha como refrão (...) [SERRES, 2001, p. 171/172
É nesta força da forma, que podemos compreender a distinção feira anteriormente entre
as duas possibilidades de memória, pois, esta memória da visão e da audição também
podem ser pensadas como formas organizadas, evocadas voluntariamente por nós.

Mas, não se trata aqui de construir um tratado sobre a memória, muito menos de
estabelecer reducionismos, mas, de buscar potencializações, novas formas de
compreender os sentidos que não esgotem suas possibilidades. Mesmo a visão e a
audição são se apresentam de maneira tão clara como podemos pensar numa perspectiva

16
Sobre a relação do corpo e da linguagem, falaremos mais detalhadamente no próximo capítulo.

52
mais geral, podemos perceber estes sentidos como sendo também variações da pele,
portanto, como especializações de formas possíveis de afecções.

Sobre a audição, podemos nos remeter ao texto de Michel Serres sobre os ruídos.
Ouvir não é um ato simples de compreensão da linguagem, ao contrário, para que seja
possível a audição é necessário um esforço constante de apagamento dos ruídos:
A primeira fonte de ruído esta no organismo, cuja orelha
proprioceptiva ouve, às vezes em vão, o murmúrio subliminar:
milhares de células de entregam a tal ação bioquímica que devíamos
desmaiar sobre a pressão de seu rumor. (...) A segunda fonte de ruído
está dispersa pelo mundo: trovões, vento, ressaca oceânica, aves do
campo, avalanches, estrondos aterrorizantes que precedem os tremores
de terra, sinais galácticos. (...) A última fonte de ruído habita o
coletivo, ultrapassa, de longe, as outras duas, a ponto de anulá-las
frequentemente: silêncio no corpo, silêncio no mundo. (...) a sociedade
produz um ruído colossal que está de acordo com ela, o rato das
cidades se distingue do rato do campo por estar imunizado contra esse
ruído. [Idem, p. 104/105]
Em outra passagem, quando concede as entrevistas para Bruno Latour, Serres também
se refere ao ruído: “Uma mensagem passa lutando contra o ruído de fundo; também
Hermes atravessa o ruído em direção ao sentido.” [SERRES, 1997, p. 94]

Desta forma, nos deparamos com uma constituição do corpo que, mais uma vez,
não está dado, precisa ser construído. Tal construção é relatada por Serres de duas
maneiras: na primeira, ele evoca Ulisses, na segunda, ele evoca Orfeu. Para que Ulisses
atravesse o mar, para que chegue à Ítaca, é necessário que atravesse o ruído das sereias,
seus cantos encantadores: “Sob a linguagem, a placa musical reveste de universalidade
o caos que a precede. A linguagem precisa de música, sua condição; a música não
precisa absolutamente de linguagem. A música precisa do ruído, sua condição; o ruído
não precisa absolutamente de música.” [SERRES, 2001, p. 121] Mas, como a música
precede a linguagem, a própria audição precede a fala. Antes de qualquer chamado,
escutamos a música. Mas, o sentido que emerge da música não é o mesmo que nos
entope de palavras:
O anfiteatro não significa um espaço onde se fala, mas um lugar onde
muitos vêem. Uma palavra sagrada faz calar a assembléia; nem
sempre uma palavra, um gesto silencioso pode bastar para torná-la
tácita, uma mímica, uma espécie de rito, e o silêncio desce no ouvido
coletivo enquanto o feixe de olhares se fixa. [Idem, p. 85]
Ulisses precisa se tornar surdo para continuar sua trajetória. Neste sentido, a escolha de
Ulisses não é pela surdez propriamente dita, mas, pela escuta longínqua de sua terra. Em

53
contraposição às falas que paralisam, os ouvidos devem estar atentos ao que nos faz
caminhar, ao que nos faz seguir adiante. O sentido não emerge das falas incessantes das
sereias, mas, da luta contra o falatório. O que representa este falatório? As glórias
alcançadas. A paralisia encontra-se intimamente ligada à pretensão, ao envaidecimento.
Vangloriar-se é estar preso ao passado, é não mais caminhar, é sucumbir à própria
glória. Ulisses ouve a tentação da permanência, porém, por estar “atado a fortes
liames”17 segue em frente, vai em busca de seu caminho, de outras conquistas.

Por outro lado, encontramos Orfeu e Eurídice. A relação entre a escalada de


Eurídice do reino dos mortos, a frágil estabilidade que constitui o corpo de Eurídice é,
em certa medida, nossa própria constituição. Antes de sermos um corpo “falado”, somos
um corpo que necessita ser “sentido”. Eurídice não necessita apenas da música para se
libertar dos infernos, ela necessitaria da luz do Sol, do contato com as coisas, do próprio
mundo, antes disso, ela é apenas espectro. A música a faz sair, mas não sustenta sua
existência sem o contato com o mundo. Em contraposição a isto podemos pensar que,
na emergência do sentido, encontramos também a proliferação das falas. Transformar as
coisas em palavras é esvaziá-las, em certa medida, de sua própria constituição. Orfeu,
ao retirar Eurídice dos infernos, busca reconstituir, com sua música, não as palavras,
mas as próprias coisas.
A morte nos transforma em palavras, as palavras nos transformam em
mortos. Frase-epitáfio que enterra as coisas embaixo dela. Os que têm
a ver com as palavras têm a ver com os mortos e dão-se ares de
carregar o luto do mundo. Nossos nomes buscam desde nosso
batizado uma vaga imortalidade, traço suave a partir de nosso
desaparecimento. A morte nos reduz a nosso nome único, frágil, leve,
esvoaçante, sem defesa, que uma fina camada de areia de
circunstância recobre. [Idem, p. 128/129]

A audição, como foi exposto acima, antes de ser o sentido que nos propicia ouvir
as palavras, é este que, ao constituir nossa relação com as coisas e os outros, nos
proporciona uma idéia de corpo que se constitui a partir do silenciar dos ruídos que
perturbam o mesmo. O corpo, portanto, não se constitui como uma linguagem, mas se

17
Há uma belíssima passagem no livro O Efeito Sofístico de Bárbara Cassin, no qual a autora compara o
poema de Parmênides e a volta de Ulisses para casa. Não entraremos em detalhes sobre tal livro aqui,
mas, vale lembrar esta relação entre a poesia épica e o nascimento da filosofia do “Ser”. “parece-me
poder ler aí até que ponto o Ser é o herói de Parmênides assim como Ulisses é o de Homero. Parmênides
toma de empréstimo a seqüência do narrativo por excelência que é a Odisséia, com seus episódios e seu
clímax, para instituir na língua, ou mesmo constituir como língua, o personagem filosófico
definitivamente soberano que é o Ser”. [CASSIN, 2005, p. 24]

54
apresenta como a organização – e posterior silenciamento – dos ruídos que o
atravessam. Ter um corpo é aprender a não ouvir, em certa medida, os clamores que o
desintegrariam:
Sem essa obra de fundo que contém o ruído de fundo, nada se mantém
unido, nem as coisas no mundo, nem as pessoas no coletivo, nem os
sentidos, nem as artes, nem as partes do corpo. A música vem antes da
filosofia, ninguém pode se dedicar à segunda sem passar pela
primeira. [Idem, p. 124]

A música não é uma referência nova em filosofia, em seus primórdios, a


filosofia encontra-se atrelada à música. Pitágoras, um dos primeiros filósofos já pensava
a constituição do mundo a partir da música. Nossa audição encontra-se num lugar
privilegiado devido a sua relação com a matemática, com os números, com a proporção
própria da musicalidade. Esta musicalidade seria a própria forma de constituição do
mundo. As proporções estabelecem a harmonia necessária para compreendermos o
cosmos. O corpo, parte integrante desta harmonia, também se constitui pela beleza das
proporções, e aqui, encontramos a relação intrínseca que há entre a audição e a visão: a
possibilidade de constituir harmoniosamente. A harmonia apresentada pela música
extrapola os limites do som e se estabelece nas próprias coisas. Os gregos, amantes da
harmonia, viam nas formas geométricas a beleza das próprias coisas. A filosofia, em seu
nascimento, busca das coisas, suas relações com a eternidade, que se apresenta nas
abstrações da geometria. Serres nos questiona se já vimos, alguma vez, uma esfera.
Resposta impossível de ser dada pela experiência, pois, como veremos mais adiante,
não podemos “ver esferas”, o que vemos são bolas, novelos de lã, pérolas, a Lua, o Sol,
maçãs, e assim por diante.

A partir das abstrações que são possíveis pelo olhar, o corpo aparece como uma
referência mínima, como suporte daqueles sentidos que se sobreporiam pela capacidade
de distanciamento do próprio corpo – o que poderíamos denominar também de
abstração. Neste sentido, a visão possui um lugar privilegiado para a filosofia:
No avião, o viajante surpreende-se por vezes com a dimensão da visão
que se tem a partir das janelas, ao mesmo tempo em que, no interior
do habitáculo veloz, confinado aos limites estreitos de sua poltrona,
seu corpo dorme. Esta é a visão do sobrevôo: a imensidão da
paisagem que se apresenta abaixo é tamanha que se transforma em
espetáculo, como um cinema no qual os espectadores permanecem
sentados e passivos em uma sala escura, reduzidos ao olhar, única
coisa ativa no interior de uma carne tão ausente quanto uma caixa-

55
preta. O olhar vivo de um organismo quase morto fornece sensações
quase incorpóreas, já abstratas. [SERRES, 2004, p. 14]

A filosofia em seus primórdios, ao iniciar seus questionamentos, parte do


princípio de que, através da visão, poderemos alcançar o que está para além da visão – o
conhecimento real das coisas. Em Platão, por exemplo, podemos nos remeter à
apresentação das habilidades da visão do escravo no diálogo Menon. O argumento de
Platão, ao afirmar a reminiscência, recai sobre a possibilidade do escravo em
reconhecer, visualmente, no quadrado desenhado por Platão no chão, qualquer
quadrado, o quadrado abstrato, a própria Idéia de quadrado, alcançada, portanto, a
partir de um exercício de purificação, de treinamento do olhar.

Mesmo que o conhecimento não se esgote, ou mesmo não se apresente pelo


olhar, é na relação entre o olhar e o dizer de Sócrates18 que o escravo é capaz de
conhecer. Num outro momento, no diálogo do Fedro, Platão vai nos falar da
necessidade de se conhecer – no mundo sensível – os corpos belos para que,
posteriormente, possamos alcançar a própria Idéia de beleza. Como dissemos acima, é a
visão que nos possibilita a abstração e, no seguimento deste raciocínio, não há
conhecimento possível que não nos remeta à visão, ou seja, a própria capacidade de
abstrair se submete à capacidade de ver.

Em relação ao olhar, por exemplo, podemos dizer que este caminha numa
direção oposta à do tato: enquanto a pele se compõe das impressões e sensações que a
ela chegam, enquanto a pele se apresenta como ponto de contato e relação, como lugar
da mistura, enquanto ela se constitui a partir desta mistura, é impensável um
conhecimento puro da pele. Em outras palavras, a pele é, desde sua constituição, o lugar
da mistura.

Por outro lado, o olhar não se esgota em si mesmo. Como dissemos acima,
acerca da fenomenologia, é que este pensamento se sustenta no próprio ato de ver. Ao
escrever sobre a percepção, Merleau-Ponty inicia suas considerações sobre os sentidos
versando primeiramente sobre a visão:

18
O que, por si só, já mereceria longas considerações, na medida em que, o olhar não se apresenta como
suficiente para o alcance da abstração. É necessária, ainda, a palavra. Mas, pelo menos para nossos
objetivos atuais, não consideraremos tal problema.

56
Trata-se da própria definição do fenômeno perceptivo, daquilo sem o
que um fenômeno não pode ser chamado de percepção. O “algo”
perceptivo está sempre no meio de outra coisa, ele sempre faz parte de
um “campo”. Uma superfície verdadeiramente homogênea, não
oferecendo nada para se perceber, não pode ser dada nenhuma
percepção (...) Um campo visual não é feito de visões locais. Mas o
objeto visto é feito de fragmentos de matéria e os pontos do espaço
são exteriores uns aos outros. [MERLEAU-PONTY, 1999, p. 24/25]
A relação entre espacialidade e percepção fica clara neste trecho do autor. Mesmo que,
posteriormente se faça referência aos outros sentidos, o que sustenta sua argumentação
fenomenológica é a visão. É por isso que Serres nos diz que a fenomenologia apresenta
uma proposta de pensar os sentidos a partir da visão daqueles que não percebem, isto é,
daqueles que só vêem, não sentem. Todas as possibilidades da sensação estão, de
alguma maneira, sujeitas à visão (e, quando muito, à audição). A argumentação traz
como exemplos questões ligadas ao ver, ao perceber através dos olhos.

Porém as afecções, a possibilidade de sermos afetados, se estabelecem


anteriormente na própria pele. Antes da visão, nossa relação com o mundo passa pelo
corpo. Desta forma, não estamos aqui falando de uma relação estável, permanente,
homogênea, mas, ao contrário de relações mutáveis e heterogêneas, de conexão de
coisas absolutamente díspares e heterogêneas. Tais características, ao invés de colocar o
tato num lugar inferior à visão, para Serres é o que faz da pele algo tão especial:
Meio, abstrato, denso, homogêneo, quase estável, concentra-se;
mistura em flutuação. Meio faz parte da geometria sólida, como se
dizia antigamente; mistura favorece a fusão e vira fluido. Meio separa,
mistura, abranda: o meio faz as classes, e a mistura, os mestiços. (...)
A teoria do conhecimento está subordinada a essas coisas, quero dizer,
a esses exemplos. Teoria ou intuição ficam na ordem da visão,
chegou-se a dizer, e com rigor, que elas ficavam no sólido. Há muito
tempo caminho na direção do fluido, encontrei as turbulências, antes,
e as misturas, recentemente. [SERRES, 2001, p. 77/78]

Num outro momento, é a relação entre o tato e a visão que é posta em evidência
por Serres. No problema de Molyneux – no qual é perguntado ao cego de nascença se
ele reconhece, a partir da visão, os objetos geométricos que percebia através do tato –
percebemos a dificuldade mais claramente. Para Serres esta apresentação:
(...) levanta uma questão mais da geometria das perspicácias que da
teoria do conhecimento. Por que não experimentaram com um
rouxinol ou um ramo de lilás, com uma esmeralda ou uma saia de
veludo, que existem, em vez de volumes abstratos que não existem?
Quem já viu alguma vez um cubo ou uma esfera? Nunca os
concebemos a não ser na língua. Que dêem ao cego uma bola e um
tijolo e ele saberá apreciar pelo tato as deformações contínuas, as

57
rupturas e as singularidades, perguntará logo se vocês conhecem pela
visão a diferença entre uma bola e uma esfera, entre um cubo e um
paralelepípedo. Ele rirá delicadamente do fracasso de vocês.
[SERRES. 2001, p.80]
Para Serres, tal paradoxo não se apresenta como um problema de perspicácia
simplesmente porque são diferentes as habilidades necessárias para se conhecer através
do tato e através da visão. O contato com as coisas estabelece um conhecimento, uma
movimentação, uma relação que se apresenta de maneira diferente quando vemos e
quando não vemos. Isto não significa dizer que há uma hierarquia de conhecimento,
mas, uma outra relação com o mundo.

Serres nos expõe uma questão muito importante sobre a relação entre estas duas
formas de estabelecer uma relação com o mundo e com as coisas, que são a visão e o
tato. A partir das considerações postas acima, devemos pensar que mesmo que a visão
seja o sentido, por excelência, da abstração, isto não quer dizer que o pensamento de
constitui unicamente a partir da visão – um cego de nascença vive, relaciona-se, pensa,
age. O corpo cego se constitui, se estabiliza numa relação com o mundo que, a cada
proposta apresentada por este mundo, apresenta também suas estabilizações.

Num dos livros mais instigantes sobre a cegueira, escrito por Bruno Sena
Martins e intitulado E Se Eu Fosse Cego? Narrativas silenciadas da deficiência19,
encontramos uma forma de pensar a cegueira de uma maneira inteiramente nova e
bastante inteligente. A grande “novidade” do texto passa pela possibilidade do autor de
ouvir as pessoas cegas. Ao invés de escrever sobre aqueles que perderam a visão ou
nasceram sem ela, é mais importante ouvi-las, saber de que lugar parte suas narrativas.
Desta forma, o autor nos presenteia com um livro que, ao invés de partir do pressuposto
da tragédia pessoal, parte da construção histórica da própria idéia de deficiência,
construída em nossa cultura ocidental, repleta de filosofia e referências à visão enquanto
pré-condição para o pensamento.

O autor apresenta longas considerações acerca da exclusão dos sujeitos ditos


“deficientes” e como o corpo é apresentado como princípio de exclusão na medida em
que qualquer “deficiência corporal” é pensada como necessariamente diminuidora da
capacidade dos sujeitos: “os corpos das pessoas com deficiência são tomados como

19
Referência.

58
explicação suficiente para a sua situação de marginalidade social” [p. 19]. Portanto, o
autor nos alerta para o fato de que, a construção da cegueira como deficiência, nos traz
um problema muito maior em relação ao corpo. A própria classificação da cegueira
como “deficiência sensorial” nos impõe pensar que é no corpo que encontramos os
impedimentos do conhecimento, apesar do conhecimento se apresentar como a
capacidade, por excelência, de superação do corpo.

Como pudemos perceber; se, por um lado, a visão nos remete à purificação das
formas, por outro, a visão também nos impulsiona para uma relação com as coisas
esvaziada, distanciada. A visão, ao estender o corpo para além de seu território
perceptivo, produz, ao mesmo tempo, uma espécie de abandono do corpo. O que ocorre
em certa medida, na modernidade, é que a frase “os sentidos podem enganar” não
funciona da mesma maneira para todos. A visão, mesmo que possa ser enganada, se
constitui como a arena privilegiada do debate moderno. Todas as idéias, mesmo que
“não tenham estado antes nos meus sentidos” se apresenta de forma “estruturada”, como
imagem. As imagens, partindo ou não da experiência, são sempre organizadas, imagens
são idéias que se constituem numa relação do homem com as coisas, relação esta
sustentada na capacidade humana de organizar aquilo que é visto.

Nosso objetivo, nestas poucas linhas acerca da visão, não é solapar o


conhecimento que advém deste sentido, mas, ao menos, pôr em evidência a relação
intrínseca que existe entre a construção do pensamento moderno e o sentido da visão. O
próprio termo alemão Aüfklarung, nos remete à luz, conceito estreitamente ligado à
visão. A apresentação do paradoxo de Molineux segue o mesmo caminho apresentado
pela modernidade: é a visão que nos dá o sentido de sobrevôo, como dissemos acima.

Porém, o sobrevôo, apenas, não constitui nem o corpo, nem mesmo o


conhecimento. Para Serres, a capacidade de abstração não se apresenta apenas como
uma extensão da visão. O excesso da visão, para Serres, pode gerar a vigilância, ao
invés da observação. O olhar vigilante é aquele que julga, que determina o que se deve e
o que não se deve fazer. A vigilância, ligada às ciências humanas, busca o controle das
relações entre os homens.
Observar as coisas ou supervisionar as relações, enorme diferença:
dois mundos talvez se oponham aí, dois tempos, o do mito o o de

59
nossa história. (...) A sociedade onde a vigilância domina envelhece
rápido, soberania abusivamente arcaica, o passado aí permanece,
monstruoso, ela acusa a idade do mito. (...) Panoptes vê tudo e sempre
e em toda a parte: em que tarefa os deuses o empregam: na vigilância
ou na observação? Para que serve a teoria? Para vigiar as relações ou
para examinar os objetos? [SERRES, 2001. p. 34]
Neste sentido, podemos perceber algumas ressonâncias no pensamento de Foucault, a
quem Serres diz ter acompanhado durante a escrita do livro As Palavras e as Coisas20.

2.1.1 – Os sentidos e a abstração: mais um efeito de superfície

Sobre este assunto, podemos buscar respostas na última parte do livro O


Incandescente, de Michel Serres. É ali que o autor nos apresenta sua idéia de
universalidade e de abstração. Sabemos que, em outras obras, de maneira mais
fragmentada, podemos localizar suas idéias sobre ambas as coisas, mas, para nossa
compreensão do corpo, utilizaremos este texto e algumas partes das obras Os Cinco
Sentidos e Variações sobre o Corpo, como nossos principais eixos de trabalho.

No livro supracitado, Serres nos dá uma definição de universal que ajuda na


compreensão desta maneira de pensar a universalidade na imanência. Mais do que isso,
nos ajuda a pensar a abstração não como uma métrica, uma forma definida e afastada do
mundo das coisas, mas, uma forma de relacionar as coisas de maneira topográfica, sem
abrir mão de sua forma acidental. Vamos à definição:
Vamos tentar esclarecer o sentido da palavra universalidade, tantas
vezes repetida, de emprego difícil e que significa exatamente: “seguir
rumo a um ponto comum (versus) para que seja formado um conjunto
único (unus)”. Um campo de forças, um cardume de peixes, um bando
de patos ou uma divisão de infantaria que seguem na mesma direção,
cada um de seus elementos em posição paralela ao outro. Da mesma
forma, num estado sistêmico tudo se deduz de um princípio. Posso
pensar de maneira coerente ou obsessiva, mas meus amores continuam
fiéis. [SERRES, 2005, p. 229]
Nos deteremos um pouco mais nesta palavra: vers, porque ela implica em muitas
considerações interessantes sobre o corpo, apresentadas no livro Variações sobre o
corpo, sob o curioso título Vertigem. Nesta parte do texto, Serres faz uma reflexão sobre
a relação entre as vértebras e o sentido desta palavra: “em direção a”:

20
Afirmação apresentada em uma de suas entrevistas: “Aí discutíamos, justamente, todas as semanas
sobre As Palavras e as Coisas, na altura em que ele o redigia. Uma grande parte desse livro foi escrita
depois de algumas discussões entre nós. (...) o aspecto estruturalista que imprimiu à sua obra resultou
dessa colaboração estreita.” [SERRES, 1997, p. 55]

60
O esqueleto seria semelhante ao rígido bastão guarnecido por duas
volutas espiraladas, em forma de hélice, conhecido com o caduceu de
Hermes? Ou como a forma do filamento do ADN ao qual todos devem
sua aparência? (...) Que relação estranha nossa postura ereta e vertical
mantém com as rotações dessas vértebras? [SERRES, 2004, p. 107]

Sabemos que tais considerações, se lidas rapidamente, podem parecer vazias de


sentido, devido à conexão, tão instantânea (característica de Serres), entre elementos tão
díspares e heterogêneos como o caduceu de Hermes e os filamentos de ADN21. Porém,
se conseguirmos compreender o estilo da escrita do autor, passamos por tal dificuldade
para entender que o próprio corpo se apresenta como direcionamento “retorcido”, na
medida em que, ao nos colocarmos numa postura vertical, nos direcionamos também
para a flexibilidade, para as posturas flexíveis da dança e do esporte.

Para definir o corpo, Serres apresenta esta forma, já dita anteriormente, de se


portar como um invariante que permanece como tal a partir de suas próprias variações.
Como, de fato, definir o corpo vivo? Ele é invariante, mas de forma
relativa e temporária; as distâncias entre suas variações podem ser
fracas e depois fortes, podem ser inicialmente circulares ou periódicas
e, em seguida, caóticas. Os perigos reforçam sua estabilidade antes de
destruí-la para sempre. Estável por suas variações, equilibrado por
suas instabilidades, organizado por sua desorganização, ordenado,
enfim, por suas próprias perturbações, o ser vivo invariante e versátil
caminha em direção a algo: esta é a forma estável, diretiva, rotativa,
rítmica, enfim, caótica de seu tempo percolador, que associa em si o
tempo do coração e do da cabeça, do relógio e do barômetro, do
periódico e do aperiódico (...) de bifurcações e de turbulências e, sem
dúvida, de outras temporalidades ainda desconhecidas. [SERRES,
2004, P. 122/123]

Portanto, a universalidade não está fora das relações mundanas, ao contrário, se


constitui a partir do que podemos pensar como processos de individuação nos quais o
que está em jogo é menos as partes que compõem o todo, e mais a própria totalidade.
Porém, tal totalidade não é constituída desde sempre, ela se faz, se constrói, necessita o
tempo todo de estabilizações posteriores. Esta universalidade não se apresenta como
algo estanque, mas, como construções que, devido ao seu direcionamento, se
apresentam sempre como totalizações incompletas. Mais uma vez, encontramos a idéia
de “universalidade em rede”, nos textos de Bruno Latour, para tentarmos compreender o
que estamos dizendo:

21
Sobre a rapidez com que Serres passa de um assunto ao outro, falaremos melhor no capítulo sobre
narrativa, quando trataremos da questão da linguagem e sua relação com o hermetismo.

61
(...) os quase-objetos22 quase-sujeitos traçam redes. São reais, bem
reais, e nós humanos não os criamos. Mas são coletivos, uma vez que
nos ligam uns aos outros, que circulam por nossas mãos e nos definem
por sua própria circulação. São discursivos, portanto, narrados,
históricos, dotados de sentimento e povoados de actantes com formas
autônomas. São instáveis e arriscados, existenciais e portadores de ser.
[LATOUR, 1994, p. 88]
Nestas palavras, identificamos uma forma de pensar a universalidade que não se
apresenta de maneira dada, de forma a priori, a universalidade não se encontra antes das
relações, mas, ao contrário, é na convergência de muitos atores que encontramos a
universalidade. A universalidade deve ser produzida, deve organizar determinados
atores de forma a estabelecer um contrato. No sentido de Serres, um contrato que leve
em consideração também as coisas, um contrato natural que não se abstenha nem das
relações entre humanos, nem das relações entre as coisas.

Neste mesmo sentido, a abstração não se apresenta como algo a priori, mas,
como algo que se constitui como instrumento. Sobre a questão da abstração, podemos
refletir sobre um trecho de livro de Isabelle Stengers, A Invenção das Ciências
Modernas, no qual a autora nos apresenta a abstração menos como a capacidade de
resolver os problemas de forma matemática, e mais como a possibilidade de relacionar
atores heterogêneos na construção de um dispositivo. Para tanto, Stengers nos dá o
exemplo do plano inclinado de Galileu, que, ao ser construído, estabelece uma nova
relação com as coisas que até então não tinha sido feita. O plano inclinado torna-se um
“ponto de passagem obrigatório” para todos aqueles que querem falar sobre o
movimento uniforme. Neste sentido, o plano inclinado é o que permite a abstração, esta
não é efetuada sem o dispositivo experimental, portanto, faz parte dele:
Pode-se certamente dizer que se trata de um mundo abstrato,
idealizado, geometrizado. Mas não se terá dito nada, pois se estará
simplesmente repetindo a objeção cética de Sagredo: é apenas um
mundo que responde a uma definição elaborada no abstrato. A questão
é antes saber o que foi abstraído, o que singulariza essa ficção. O
mundo fictício proposto por Galileu não é somente o mundo que
Galileu sabe questionar, é um mundo que ninguém pode questionar de
um modo outro que o dele. É um mundo cujas categorias são práticas
visto que derivam do dispositivo experimental que ele inventou.
[STENGERS, 2002, p. 106]

22
Sobre os quase-objetos, Latour nos diz: “Reais como a natureza, narrados como o discurso, coletivos
como a sociedade, existenciais como o Ser, tais são os quase-objetos que os modernos fizeram proliferar,
e é assim que nos convém segui-los, tornando-nos simplesmente aquilo que jamais deixamos de ser, ou
seja, não-modernos.” (p. 89)

62
Portanto, a abstração não pode abrir mão do dispositivo galileano, pois, sem tal
dispositivo, a própria possibilidade de pensar o plano inclinado não seria efetuada. Em
outras palavras, a relação que Galileu estabelece entre o plano inclinado e o movimento
uniformemente variado é de tal ordem que, ao mesmo tempo em que faz as coisas
convergirem (vers) para a demonstração (para o dispositivo), também produz a própria
abstração que responde ao problema do movimento que tal plano encarna,
possibilitando a abstração do movimento em todos os lugares e em qualquer tempo.

Em outro momento Stengers nos diz:


Quando falamos de “representação científica abstrata” referimo-nos
com excessiva freqüência a uma noção geral da abstração, comum,
por exemplo, à física e às matemáticas. Ora, a abstração traduz aqui
não um procedimento geral, mas um acontecimento: o triunfo local,
condicional e seletivo sobre o ceticismo. [STENGERS, 2002, p. 107]
Desta forma, a abstração cumpre sim um papel importante: ela “faz calar os
adversários” na medida em que constrói um caminho (no sentido de método) a partir do
qual todos aqueles que quiserem falar sobre o plano inclinado, deverão seguir. A “prova
empírica” não é apenas uma construção abstrata, mas, uma forma de “traduzir”, através
do dispositivo, aquilo que se propõe defender. Mas, o próprio dispositivo não se
apresenta como algo que se constitui numa “sofisticação” do pensamento. Como se
fosse possível pensar sem uma construção do corpo no próprio ato do pensamento. Para
Stengers:
A abstração não é o produto de uma “maneira abstrata de ver as
coisas”. (...) Ela diz respeito à invenção de uma prática experimental
que a distingue de uma ficção entre outras, ao mesmo tempo em que
“cria” um fato que singulariza uma classe de fenômenos entre outros.
[STENGERS, 2002, p. 107]

É claro que a preocupação da autora não é com o corpo, e sim com a construção
“social” da ciência23, mas, como pudemos perceber, em nenhum momento se
considerou a abstração como algo que se constitui “fora” do corpo, como se a abstração
pudesse ser pensada como uma característica “pura” do pensamento. Se existem
diferenças entre aquilo que percebemos e aquilo que pensamos, tais diferenças não são
de “natureza”, mas, de relação.

23
Não queremos aqui dizer que Stengers é defensora da idéia de que a ciência é uma construção social,
suas reflexões não são tão simplistas, mas, que todo e qualquer construção é o arregimento de atores
heterogêneos, constitui um coletivo sócio-técnico, sejam eles “sociais”, ou “naturais”.

63
A partir do que foi dito acima, podemos então buscar, nos textos de Serres, suas
reflexões acerca da abstração. E, a partir daí, poderemos entender que, a abstração não
ocorre sem corpo:
A medida, a agrimensura, diretas ou imediatas, são operações de
aplicação. No sentido, evidentemente, de uma métrica, uma metrética
concernir uma ciência aplicada. Na grande maioria das vezes, no
sentido de a medida ser o essencial da aplicação. Mas sobretudo no
sentido do tato. (...) A medida imediata ou direta é possível ou
impossível de acordo com a possibilidade ou impossibilidade desta
aplicação. Desse modo, o inacessível é aquilo que não posso tocar,
sobre o qual não posso transpor minha régua e sobre o qual a unidade
não pode ser aplicada. É preciso, digamos, passar da prática à teoria,
através de uma astúcia da razão, imaginar um substituto desses
comprimentos que meu corpo não consegue alcançar, a pirâmide, o
Sol, o navio no horizonte, a outra margem do rio. A matemática seria
o circuito destas astúcias. [grifo nosso. SERRES, 1990, p. 38]
Neste texto, intitulado O que Tales viu aos pés da pirâmide, Serres nos apresenta uma
forma de relação entre corpo e abstração na qual a abstração só é possível na relação
com o corpo. Tal seria, portanto, a “astúcia da razão”24: relacionar o corpo com aquilo
que escapa ao alcance da medida corporal. Estabelecer escalas comparativas de medida.
Serres continua neste mesmo texto:
Pois o circuito consiste, enfim, na passagem do tato à visão, da
medida por aplicação à medida por visada. Neste caso, teorizar é ver,
como bem diz a língua grega. A visão é um tato sem contato. (...) O
inacessível é, às vezes, acessível à vista. Será possível fazer-se uma
agrimensura a olho, do Sol e da Lua, do navio e da pirâmide? Esta é
tida a história de Tales, que descobre, nada mais, nada menos, do que
as virtudes precisas do olhar (...). Impossibilitado de transportar uma
régua, Tales transporta as linhas de visada, ou, melhor, deixa a luz
projetá-las sem ele. Que eu saiba, mesmo para os objetos acessíveis, a
vista por si só pode assegurar-me que a régua-regra é fielmente
aplicada sobre a coisa. [SERRES, 1990, p. 39]

Esta relação entre o tato e o olhar é de uma outra natureza do que aquela
estabelecida na vigilância. A diferença aqui se apresenta na medida em que o olhar já
não vigia, mas, constrói relações, estipula diferenças de escala. Há, como podemos
perceber, uma potencialização dos sentidos e não um enfraquecimento destes. O olhar
se revela como potência do tato, e não como substituto deste. É o tato que pode alcançar

24
Gostaríamos aqui de frisar nosso conhecimento sobre o fato de que, ao longo da história da filosofia, a
questão da razão ocupou um lugar de destaque. Principalmente para a modernidade. Mas, ao invés de
considerarmos o “tribunal da razão”, de pensar a razão como um “investigador”, nos é mais produtivo
pensar a razão desta maneira: como astuciosa. Tal escolha se deve não apenas ao pensamento de Serres,
mas, mesmo às considerações de Isabelle Stengers apontam nesta mesma direção. Ao invés de julgar,
buscamos pensar como as conexões entre atores heterogêneos são capazes de produzir novas alianças.
Tais alianças, por sua vez, constituem novas relações que, ao se estabelecerem, tanto modificam quanto
fortalecem seus componentes.

64
o inatingível, não é o olhar que julga a importância das coisas. A especialização da pele,
deste corpo-textura produz novas relações com as coisas, mas, não abre mão das
relações. Ao contrário do que se possa pensar, o olhar produz a potência do tato.

Ao relacionarmos estas duas possibilidades de pensar a abstração – de Isabelle


Stengers e de Michel Serres – o que podemos perceber é que tanto Tales quanto Galileu
só foram capazes de construir seus dispositivos porque fizeram do olhar um aliado do
tato. Não é o abandono do corpo que nos capacita à abstração, mas, ao contrário, ao
acrescentarmos mais elementos ao próprio tato, é possível estabelecer relações que antes
seriam impossíveis apenas pelo tato. Neste sentido, a abstração não se contrapõe à
prática, nem mesmo à experiência, mas é impossível sem estas. O corpo que sente, que
é afetado, é o mesmo que constrói as abstrações matemáticas, não por exclusão, mas por
extensão, por potencialização.

2.2 – As diferenciações da superfície: a consciência

Dentre as especializações do corpo, encontramos também a consciência. A


consciência, como dobra, não se constitui como algo para além, que nos remeteria ao
pensamento cartesiano do Cogito. Ao contrário, a consciência se apresenta como uma
superfície que se “interioriza”.
Quem sou eu? A contingência de minha fé. Alguém que ela irá
justificar, fazer viver e salvar. Mais uma vez, quem sou eu? O próprio
contrário da certeza; um temor que hesita entre ser e não-ser; em
resumo, uma consciência. [SERRES, 2008, p. 84]
Há o que podemos denominar de um “engrossamento” das afecções. A possibilidade de
“atraso” das reações, das ações que são solicitadas pelas afecções gera uma espessura,
um prolongamento, uma dobra. A desaceleração gerada pela não-ação propicia o
aparecimento desta dobra, que denominamos consciência.

Dentre os autores contemporâneos que se debruçam sobre esta questão,


encontramos, mais uma vez, Deleuze25. Em seu texto Segunda Série de Paradoxos: dos

25
Apesar de não caber, neste texto, pensar como a consciência se constitui para Nietzsche, gostaria
apenas de lembrar que é este autor que efetivamente abre o caminho para entender a consciência como
espessura do corpo. Tais considerações ficam mais claras a partir da leitura de seu livro A Genealogia da
Moral.

65
efeitos de superfície, Deleuze nos apresenta uma forma de pensar a relação entre as
afecções e as superfícies que são importantes para nossas considerações.

Neste texto, ao analisar o pensamento estóico, Deleuze nos fala da superfície


menos como superficialidade do que como possibilidade de passagem e de extensão da
consciência através do corpo. A superfície é o lugar das passagens, das mudanças, da
própria diferenciação. Ao invés de nos remeter a uma profundidade que poderia ser
pensada como única maneira de se alcançar a “essência” das coisas, em ressonância
com o pensamento de Michel Serres, Deleuze vai nos dizer que é na superfície que se
encontram as estabilizações e trocas, ou seja, a própria constituição fugidia, não apenas
da consciência, mas, do próprio indivíduo. Os acontecimentos ocorrem aí onde o
incorporal26 – como verbalização de todos os acontecimentos possíveis – se atualiza nas
formas do corpo:
Por exemplo, em Aristóteles, todas as categorias se dizem em função
do Ser; e a diferença se passa no ser entre a substância como sentido
primeiro e as outras categorias que lhe são relacionadas como
acidente. Para os Estóicos, ao contrário, os estados de coisas,
quantidades e qualidades, não são menos seres (ou corpos) que a
substância; eles fazem parte da substância; e, sob este título,se opõem
a um extra-ser que constitui o incorporal como entidade não existente.
O termo mais alto não é pois o Ser, mas Alguma Coisa, aliquid, na
medida em que subsume o ser e o não-ser, as existências e as
insistências. [DELEUZE, 2000, p. 7/8]
Para Deleuze, portanto, as afecções não podem ser pensadas como meras atribuições
temporárias de acidentes porque as modificações ocorridas na superfície possibilitam
alterações que não podem ser considerados como meros atributos que se “fixam” nas
coisas, que, por sua vez, possuiriam uma essência, além ou aquém destes atributos.

As transformações operadas na superfície não são, por extensão, superficiais. Ao


contrário, algumas transformações, certas afecções que ocorrem na superfície geram
efeitos que se caracterizam pela diminuição do ritmo temporal. Em outras palavras, as
afecções podem gerar efeitos que estão além da superficialidade: o próprio corpo,
enquanto “efeito de superfície” possui invaginações, paragens, rupturas, inversões. No

26
Esta questão do incorporal em Deleuze é muito mais complexa do que a colocamos aqui, implica em
considerar todo o pensamento do autor como uma inversão do platonismo – e da filosofia clássica como
um todo – no qual o ser é pensado não a partir de uma Idéia pré-estabelecida, mas, como isto que ele
chama aqui de aliquid, ou seja, aquilo que se produz – e se modifica – constantemente através dos
contatos superficiais que são gerados pelos encontros dos corpos e que produzem novos corpos,
transformações corporais mais do que puras aquisições de atributos contingentes. Não é uma relação na
qual a causa gera um efeito mas, uma relação de contato que gera novas forma de existência.

66
corpo não encontramos uma superfície no sentido pleno do termo, pois, as trocas
operadas no corpo ocorrem numa relação que apresenta, ora uma superfície que protege,
fechada às agressões; ora uma superfície porosa, aberta às relações exteriores.

Tal diminuição se apresenta como algo que, ao mesmo tempo, é uma extensão e
uma diferenciação do tato. Serres nos fala desta dobra na passagem seguinte:
Com o [dedo] médio eu toco um de meus lábios. Nesse contato reside
a consciência. Começo a examiná-la. Ela se esconde geralmente em
uma dobra, lábio pousado sobre lábio, palato colado à língua, dentes
sobre dentes, pálpebras abaixadas, esfíncteres contraídos, mão fechada
em punho, dedos pressionados uns contras os outros, face posterior de
coxa cruzada sobre a face anterior da outra, ou pé pousado sobre o
outro pé. (...) A pele sobre si mesma adquire consciência, também
sobre a mucosa e a mucosa sobre si mesma. Sem dobra, sem contato
de si sobre si mesmo, não haveria verdadeiramente sentido íntimo,
nem corpo próprio, muito menos cenestesia, tampouco
verdadeiramente esquema corporal; viveríamos sem consciência;
apagados, prestes a desaparecer. [SERRES, 2001, p. 16]
A aparente simplicidade de tais palavras esconde a complexidade do que é dito aqui. Ao
afirmar a dobra como o lugar da consciência, Serres reforça a idéia de que não há
profundidade da consciência, mas, complicações, no sentido etimológico da palavra:
com-plicas, ou seja, com dobras. Ao fazer a consciência passar pelo corpo, pela pele,
Serres vai contra o pensamento no qual a consciência é entendida como profundidade.
Há, mais uma vez, a defesa das superfícies em detrimento das profundidades: “Temos
superfícies esquerdas quase planas, sem dobras, desertas, por onde a consciência passa,
fugidiamente, sem deixar memória. Ela mora nas singularidades contingentes, onde o
corpo a tangencia.” [Idem, 2001, p. 17]

Nesta parte do texto, podemos retornar às consonâncias que ocorrem entre o


pensamento de Serres, Deleuze e Simondon. Este último, ao nos trazer a questão da
individuação, nos apresenta uma proposta de pensar a consciência que nos faz refletir,
tanto sobre as palavras de Deleuze, quanto sobre as palavras de Serres: a consciência
não é algo “vindo de fora”, mais, algo que se organiza como parte constituinte do corpo.

Como dissemos no início de nosso texto, ao se estabelecer um processo de


individuação, esta diferenciação que se produz em relação ao exterior faz surgir algo
que podemos denominar de “sentido de interioridade”. Há uma diferença entre o que
consideramos como “nós” e o que consideramos como “fora de nós”. Para Simondon, a

67
própria possibilidade de estabelecer tal diferenciação, que aqui denominamos de
“consciência”, um “mundo psíquico”, é algo que se produz no indivíduo que o permite
“uma redução da individuação do vivo, uma amplificação neotênica do estado primeiro
desta gênese. Há psiquismo quando o ser vivo não se concretiza por completo, conserva
uma dualidade interna.” [SIMONDON, 1995, p. 163] Para o autor, tal processo não
pode ser pensado nem como complemento, nem como um paralelismo entre a
individuação e o pensamento. Em outras palavras, a possibilidade de retardamento da
ação torna o indivíduo mais dúplice, no sentido mesmo de dobra, pois, a consciência
como dobra potencializa tanto o sentido interno quanto o sentido externo, aumentando a
complexidade da vida: quanto mais me sinto eu mesmo, menos sinto que sou
participante de uma espécie – e por isso sustento a dualidade de pertencimento e não-
pertencimento a uma espécie.

Daí as considerações de Simondon acerca da diferença entre instinto e tendência,


no qual os instintos, muitas vezes vão contra as tendências, que se apresentam sempre
como atitudes voltadas para o grupo social (que se difere da colônia por possuir muitos
indivíduos), como tendências de alimentação, abrigo e reprodução. Tais paradoxos se
apresentam nos seres que possuem consciência justamente porque há uma ampliação
das relações entre sentido interno e sentido externo, de tal forma que a diferenciação
entre os indivíduos sofre um esgarçamento limítrofe.

A constituição de uma individualidade amplia de forma quase ilimitada as


possibilidades da consciência, pois, quanto maior a percepção de si mesmo, maior será a
tendência a diferenciar-se. Este possibilidade segue um caminho muito ambíguo, pois,
há uma tendência ao fechamento em si mesmo – apresentado no mito de Narciso e, ao
mesmo tempo, a possibilidade de variação. Neste duplo sentido, a consciência produz
mais uma dobra: o inconsciente. Para Serres, a consciência não seria o contraponto do
inconsciente, pois, ambos se apresentam no corpo. Mas, o excesso de consciência, ao
invés de produzir cada vez mais um “conhecimento de si”, o que produz é um
afastamento cada vez maior da ação, uma espécie de paralisia. Se, como dissemos
anteriormente, o corpo possui a memória, por outro lado, é no próprio corpo que
encontramos o esquecimento: “O esquecimento alivia o que a consciência torna
inflexível. De tanto olhar para si mesmo, Narciso ancilosa-se, ou seja, diminui seus

68
movimentos e se torna mortalmente melancólico. Eduquem os que são considerados
ineptos para que percam a consciência.” [SERRES, 2003, p. 43]

Ter um corpo, sentir o corpo não significa saber um corpo, ao contrário, o


esquecimento do corpo não se apresenta como uma forma de esquecer o corpo, mas ,
numa forma de potencializar o corpo pelo esquecimento. Não é possível, a partir de
nossas considerações, pensar o corpo como o resíduo descartável do sujeito. Ao
contrário, o corpo se apresenta como possibilidade de ser muito mais do que a própria
consciência:
Eu nunca soube explicar o eu nem descrever a consciência. Quanto
mais penso, menos sou; quanto mais eu sou eu, menos penso e menos
ajo. Não me busco como sujeito, projeto tolo; solitários, as coisas e os
outros se encontram. Entre eles encontra-se meu corpo, um pouco
menos coisa e muito menos outro. [SERRES, 2004, p. 13]
Mesmo que haja o esquecimento, este não ocorre a partir da negação do corpo,
mas, da própria possibilidade do corpo de “incorporar” o conhecimento: “A
aprendizagem mergulha os gestos na escuridão do corpo; aliás, os pensamentos
também; saber é esquecer. A virtualidade ágil e a passagem para a ação exigem um
certo tipo de inconsciência.” [Idem, p. 43] Tanto a consciência, quanto o inconsciente se
apresentam como formas de atuação do corpo, como formas de relação que emergem na
constituição de encontros possíveis.

Vale lembrar que, o que estamos denominando aqui de inconsciente não é o que
Freud denomina de inconsciente, pois, não se trata de pensar as formações do desejo,
nem mesmo de adentrarmos no âmbito psicanalítico da compreensão do corpo. Mas, se
trata apenas de pensar a relação entre corpo e consciência. Nas palavras do autor
O que é o inconsciente? O corpo, ou melhor, o corpo em boa forma. O
mais consciente entre os homens chama-se Narciso, termo proveniente
de narcose: um jovem tão dorido quanto embebedado de narcóticos
que se asfixia em conseqüência de uma overdose. [Idem, p. 45]

Nesta relação, não estamos apenas considerando a consciência “clara e distinta”,


como dissemos acima, mas, uma forma de relação que o corpo estabelece com o mundo.
Neste sentido, cabe considerar o inconsciente como possibilidade de ação do próprio
corpo, ou seja, o corpo age de forma inconsciente, e, desta forma, atua pelo
esquecimento, pela transformação do pensamento em ação.
Penso se e somente se fico por minha conta. Saber exige o
esquecimento do próprio saber. O pensamento zomba de suas

69
lembranças. A ciência perde consciência na consciência do sujeito
sábio que, por esta perda, pensa e inventa. [SERRES, 2001, p. 348]
Assim, a ambigüidade apresentada acima, se esvanece, pois, não se trata de um olhar
que se volta a si mesmo, não se trata de um pensamento que reflete – e aí ainda
encontramos Narciso olhando para si mesmo – mas, de uma possibilidade de variar a
partir das variações do corpo. É neste ponto que podemos encontrar os conselhos do
autor: esquecer para pensar. Não um esquecimento ligado à abstração ou ao
pensamento, mas um esquecimento ligado ao corpo. Este esquecimento nos remete
agora a nosso próximo capítulo, pois, há uma relação muito forte entre o que Serres
denomina aqui de esquecimento e o que denominaremos a seguir de potência. Portanto,
no próximo capítulo mudaremos um pouco o foco de nossas considerações, passaremos
de uma reflexão do corpo como textura, como superfície e pensaremos no corpo como
potência, como geração de potencialidades.

70
Segundo capítulo: Corpo-potência

O homem normal é o homem normativo,


o ser capaz de instituir novas normas,
mesmo orgânicas. Uma norma única de
vida é sentida privativamente e não
positivamente.
Canguilhem

No capítulo anterior, discorremos sobre a possibilidade de pensar o corpo como


superfície. Esta proposta nos propiciou compreender o corpo em seus limites, em suas
formas de permissão e impedimento daquilo que o separa de algo que não faz parte dele.
O corpo delimita e é delimitado por diferenciações e por relações de semelhança entre
partes, de coesões e afastamentos. Neste sentido, o corpo se apresenta como algo que
produz deslocamentos, acelerações e retardamentos que o diferenciam e o constituem.
Neste capítulo, nosso foco para pensar o corpo se desloca, se apresenta menos nos
limites e mais nos transbordamentos do corpo. Desta forma, nossa questão não se
relaciona mais à superfície do corpo, mas, ao que pode um corpo. Nosso ponto de apoio
para estas reflexões também se alteram: nossos contrapontos não são mais as afecções,
mas, como nos diz Serres (2004), são as variações.

Para tornar mais clara nossa proposta, devemos entender a potência como algo
que possibilita a variação. Para compreender esta possibilidade, nos propomos a pensar
o corpo a partir de um viés que se aproxima de questões relativas à constituição do
corpo como um sistema ativo de produção de variações. Como sistema biológico,
podemos considerar as variações como metamorfose – quando as variações se tornam
parte da constituição do corpo; ou como mutações – quando as variações não são
determinadas pelo próprio sistema, mas, por uma diferenciação não esperada. Porém,
existe no homem uma forma de variação que não pertence especificamente a este campo
da vida, que Serres denomina, muitas vezes, de desdiferenciação:
Afirmo que o homem não especializado se tornou uma contra-
espécie: ele literalmente se generalizou. Ao perder as características
que especificam, ele nivelou seu programa e tornou-se uma
generalidade. O homem constitui uma incógnita x porque possui
simultaneamente todos os valores e nenhum valor. [SERRES, 2005, p.
60]

71
Temos ainda no livro Variações Sobre o Corpo a seguinte colocação: “Apenas os
animais conhecem os limites dos instintos; sem ele, os homens montam suas tendas
frágeis e móveis, sem paredes nem proteção contra o ilimitado.” [SERRES, 2004, p. 39]

A compreensão da desdiferenciação, em nosso texto, seguirá dois caminhos: no


primeiro, será pensada uma questão própria do pensamento de Serres que é o que ele
denomina de “brancura” da alma. No livro Os Cinco Sentidos, Serres (2001) nos faz
refletir sobre uma questão importante para sua própria compreensão do corpo como
potência: a brancura da alma. Neste texto pretendemos discorrer um pouco mais sobre
esta proposta, para pensarmos tal brancura como potência, como forma de
potencialização do corpo. Neste primeiro momento, utilizaremos uma reflexão sobre o
corpo que se inicia com Canguilhem (1995), mas, que ganha novas possibilidades no
trabalho etnográfico de Annemarie Mol (2002).

As formas de aprendizado do corpo, segundo Serres (2004), ocorrem por


imitação e por repetição. Desta forma, será tratada uma questão importante relacionada
à potência do corpo que é a possibilidade de mimetismo, de imitação do corpo. O corpo-
potência é aquele que, cada vez mais se relaciona com as coisas numa busca constante
de potencialização de suas capacidades. Neste sentido, o corpo adquire novas formas, se
metamorfoseia de maneira quase ilimitada relacionando-se com as coisas de maneira a
aumentar seus próprios limites. O corpo produz alianças heterogêneas, se refaz a cada
conexão, apontando para um caminho de relações que não estão dadas, mas, que são
possíveis a partir de uma forma de aprendizado do corpo, que é justamente esta
descoberta das potencialidades deste corpo.

Seguindo o caminho traçado anteriormente, temos, em livros mais recentes,


como Hominescências e Ramos, questões relacionadas ao que Serres (2003 e 2008)
denomina de exodarwinismo do corpo. O que ele denomina de exodarwinismo, se
relaciona com uma forma de potencialização do corpo que ocorre não apenas no
mimetismo, mas na ampliação. A partir desta forma de potencialização do corpo,
podemos pensar sobre algumas formas de transformação que são operadas pelas
conexões do corpo com o mundo que o constitui. Assim, as extensões do corpo se
apresentam como uma potência de ampliação dos limites deste próprio corpo. Porém, tal
ampliação não se apresenta de forma linear, ou seja, não se trata de um simples

72
“aumento” do corpo, mas de uma transformação da própria relação do corpo com o
mundo, transformação esta que estabelece novas potências, modificações que não estão
previstas, formas de existência que se constituem e são constituídas a cada variação.
Sob tal perspectiva, terminaremos esta parte de nosso texto, apontando para as
possibilidades de conexões heterogêneas que são cada vez mais presentes em nossas
vidas, que nos fazem diferir, derivar.

1.1 –A potência do corpo: a alma branca

Para iniciar nossas questões sobre a potência do corpo, gostaria de utilizar alguns
trechos de um livro que nos possibilita refletir sobre a questão do poder de uma maneira
muito interessante. Tal forma de pensar nos faz considerar o poder de uma maneira
muito próxima do que estamos denominando aqui de potência do corpo. Em Quem Tem
Medo da Ciência? Ciências e Poderes, Isabelle Stengers traz uma reflexão fundamental
sobre a questão do poder que estará balizando este texto. Vale lembrar que, em tal livro
a autora não está falando do corpo, mas, das ciências, e de como as ciências estão
inseridas em nossa cultura, como elas fazem parte de nossa sociedade. Porém, a mesma
reflexão feita sobre as ciências também vale para o corpo, na medida em que existem
formas discursivas que fazem parte do campo da ciência que também buscam
compreender o corpo, senão afirmar um conhecimento sobre este corpo. Ela nos diz:
(...) a noção de poder não terá para mim um sentido negativo,
unilateral. Quando disser poder não se deverá ter o reflexo
condicionado: “poder = dominação = mal”, etc. (...) “Poder” aqui deve
ser entendido no sentido de descoberta de um novo modo de acesso
fidedigno à realidade. E esse poder (...), é um poder que fala
imediatamente de seus riscos. [STENGERS, 1990, 13 e 15]

Podemos perceber que a questão do poder não será tratada aqui especificamente
como captura do corpo, como possibilidade de dominação dos corpos, mas, como
potência. O corpo como variação é aquele que pode fazer muitas coisas. Além disso, o
texto nos mostra a questão do risco, ou seja, nenhum poder está isento de risco, neste
sentido, a transformação do corpo não apresenta um caminho linear, estabelecido desde
sempre. O uso do corpo, a princípio está “além do bem e do mal”, seu valor será
adquirido a posteriori. Assim, podemos compreender a brancura da alma como potência
do corpo e não como algo desencarnado. Por outro lado, sabemos também que as
conexões do corpo não são infinitas, ou seja, que algumas conexões, algumas relações

73
que o corpo estabelece o despotencializam e, dependendo do grau de
despotencialização, temos a desintegração de sua unidade, em outras palavras, a morte1.

Isabelle Stengers nos chama atenção para um cuidado em relação à ciência que
também deve ser tomado em relação ao corpo: não determinar a priori que qualquer
intervenção feita no corpo segue necessariamente o caminho da dominação. Dizer que o
poder envolve risco é dizer que aquilo que advém das formas de conectar atores
heterogêneos não está dado desde sempre. Ao mesmo tempo, podemos afirmar que a
emergência de novas possibilidades de se pensar, sentir, dizer o corpo não são
necessariamente formas de captura, mas, que, ao mesmo tempo, trazem novas
possibilidades de relação até então não imaginadas. A brancura2 do corpo consistiria
exatamente nesta não previsibilidade das relações, das conexões. A potência do corpo
não possui determinação prévia, portanto, não é objeto de captura imediata. Além disso,
não há captura sem ganho, o que queremos dizer é que, de alguma maneira, o corpo se
alia sempre àquilo que o transforma, que o faz crescer, mesmo que este crescimento não
seja necessariamente “saudável”.

Para compreendermos um pouco melhor o que estamos denominando aqui de


potência do corpo, é necessário que possamos nos remeter a um determinado tipo de
conhecimento que, continuamente se depara com a potência do corpo: a medicina. O
saber médico, ao longo da história, busca capturar, de formas diversas, o conhecimento
sobre o corpo. Nossa proposta é produzir uma reflexão sobre a própria relação entre o
corpo e a medicina, que se apresenta nas efetivas práticas médicas. Mesmo que nossa
proposta não seja dissecar o saber médico, é importante ressaltar que a medicina, como
prática, sempre teve o desafio de “compreender o corpo”, de buscar entender o
funcionamento deste corpo para intervir naquilo que se compreende como “mal”
funcionamento.

1
A questão da morte será tratada de maneira mais detalhada em outro momento do texto.
2
A questão da brancura do corpo será melhor explicitada no decorrer do texto, porém, é importante
salientar que o que denominamos aqui de brancura está relacionado a uma contraposição feita por Serres
entre a brancura do corpo – no sentido de que o branco é a possibilidade de todas as cores – e as múltiplas
apresentações e possibilidades deste corpo: suas cores, traçados, tatuagens, marcas. Em outras palavras, o
corpo é furta-cor, multifacetado justamente por ser branco, potência de todas as cores.

74
Como dissemos acima, de alguma maneira, a medicina se depara, sempre, com
uma questão pertinente ao corpo: o que seria um funcionamento “saudável” e o que
seria um funcionamento “patológico”. Neste sentido, um estudo fundamental sobre tal
relação encontra-se em Canguilhem (1995), em seu livro O Normal e o Patológico. A
medicina como nos mostra o autor, tem de lidar com algo que lhe é próprio: o caso
particular. Porém, não é apenas no século XIX que a medicina se depara com o
particular, mas, em toda sua história. O estudo de Canguilhem recai sobre tal época por
uma questão muito peculiar: o embate entre duas formas diferentes de compreender esta
relação entre o normal e o patológico: aquela da clínica, e aquela do laboratório. Para
Canguilhem a normatização exercida no laboratório não é capaz de compreender os
casos particulares, nos quais a doença se apresenta não como um desvio da norma, mas,
como uma forma de compreensão de si mesmo. Em outras palavras, não está doente
aquele que não se reconhece como tal. A norma da vida é particular e não poderá ser
determinada pela normatização que se exerce no laboratório, normatização esta feita de
forma estatística, geral, que não leva em consideração os casos particulares.

Neste sentido, a norma da vida não segue um caminho linear, da mesma maneira
que podemos dizer que o corpo não é uma condição prévia. Mas, nossa discussão vai
um pouco além da questão trazida por Canguilhem já que não se trata de contrapor duas
maneiras de se compreender o corpo: uma clínica e outra experimental; mas, de refletir
sobre a convivência, em nossos dias não apenas destas duas maneiras de compreender o
corpo, mas, de várias outras, mesmo no campo da medicina. Em outras palavras, a
questão não é defender uma forma de atuação em detrimento de outra, mas, de não se
apressar, acreditando que em quaisquer formas de “enquadrar” o corpo, nós o
encontraremos lá, a espera de ser descoberto. Ao contrário, o que queremos mostrar é
que não há, em nenhum destes lugares, uma verdade sobre o corpo. O que não quer
dizer, que não há um corpo que se apresenta a partir destas práticas. Não se trata de uma
questão dualista, entre verdade e mentira, mas, de multiplicidade, de ampliação e de
possibilidades. Por outro lado, a questão da normatividade do corpo nos é interessante
não apenas no sentido de contraposição, mas, como uma possibilidade de olhar para o
corpo que, de alguma maneira, não busca reduzi-lo a uma norma, mas, busca
compreender as normas que são estabelecidas nos encontros.

75
Para nos aprofundarmos um pouco mais em nossas reflexões, temos um livro
fundamental para pensar as potências do corpo: The Body Multiple: Ontology in
Medical Practice, de Annemarie Mol. Neste livro a autora tem uma dupla proposta:
seguir a prática médica em um hospital geral na Holanda em relação a uma doença
específica: a arteriosclerose; e apresentar uma discussão teórico-prática sobre a proposta
de pensar o corpo como multiplicidade. É claro que estas duas propostas se
entrecruzam, pois a narrativa da autora não está desvinculada de suas reflexões teórico-
práticas. Porém, a radicalidade na qual a autora apresenta sua descrição etnográfica
enriquece tanto suas reflexões teóricas quanto o inverso. Em outras palavras, as
reflexões teóricas não são apenas um suporte “epistemológico” de sua prática, mas, a
própria prática é estabelecida no encontro singular entre a autora e as múltiplas
possibilidades de se estabilizar3 uma determinada doença. Portanto, a questão levantada
por Mol é deslocada pois, o que lhe interessa é apontar as várias possibilidades de se
constituir um corpo a partir de diversas práticas médicas que se aglutinam ao redor de,
supostamente, uma “mesma doença”, a aterosclerose. Mas, como veremos a seguir, não
se trata nem de um corpo determinado, nem mesmo de uma doença única, mas, de
formas diferentes de atuação sobre o corpo, que fazem deste corpo uma multiplicidade.

2.1.1 – O corpo múltiplo:

O poder do corpo pode ser pensado como uma forma de fazer existir4 este corpo,
que, segundo a autora, é múltiplo. Dizer que o corpo é múltiplo não torna nossa
proposta mais clara, pois, não se trata de pensar o corpo como algo fragmentado, no
qual as partes são distintas, não se trata de pensar o corpo como um sistema integrado
de partes diversas, mas, de pensar o corpo como algo que, o tempo todo é produzido a
partir das práticas que lhe dão sentido.
Na prática o corpo e suas doenças são muito mais do que um, mas isso
não significa que ele é fragmentado em muitos. Esta é uma coisa
difícil. Mas, este é o estado complexo de relações que este livro

3
O termo estabilização é utilizado propositadamente, pois, para a autora, o que ocorre justamente, quanto
há concordância sobre a doença (aterosclerose, no caso) o que ocorre é uma estabilização das várias
práticas utilizadas para determinar esta doença.
4
O termo “fazer existir” não é totalmente apropriado para traduzir o termo enact, do inglês, pois, este
termo tem uma conotação muito mais ampla do que a tradução pode apresentar, enact é por em ação, e ao
mesmo tempo, atuar, performar, quando se trata de uma atuação teatral e, ao mesmo tempo, promulgar,
no sentido jurídico, de “fazer valer”, de tornar existente, efetiva, uma determinada lei. Porém , neste texto
usaremos o termo em inglês toda vez que este aparecer, mas, com o sentido dado nesta nota.

76
explora. Eu tentei capturar no título, no qual o nome singular está
junto com o adjetivo pluralizante. Este, então, é um livro sobre um
intrincado aglomerado de coordenadas: o corpo múltiplo. [MOL,
2005, p. VII e VIII tradução nossa]
O corpo não é algo determinado, que deve ser “descoberto” ou “analisado”, mas algo
que se exerce. Na prática médica, esta proposta se apresenta de maneira mais clara,
segundo a pesquisa de Annemarie Mol (2002), porque a medicina é algo que se legitima
pelo conhecimento do corpo. Isto não quer dizer que a medicina possui o conhecimento
do corpo, mas, que esta prática está inteiramente relacionada à produção do corpo, no
sentido em que, é da prática médica – seu sucesso ou seu fracasso – que depende, em
última instância a permanência do corpo enquanto tal. Do mesmo modo, o corpo que é
“produzido”5 na prática médica não se apresenta de maneira única, daí a potência da
medicina: apesar de todas as tentativas de unificação do corpo, o que ocorre – como nos
mostra Annemarie Mol – é a dispersão. Não no sentido de que o corpo escapa à
medicina, mas, no sentido de que efetivamente, o que subjaz é pura potência.

Para a autora, não é de uma forma simplista que podemos compreender a relação
entre medicina e corpo, até porque, como dissemos acima, a própria prática médica não
é única. Em outras palavras, não se trata de apontar para uma via privilegiada de acesso
ao corpo, mas, ao contrário, de apontar a diversidade que é própria a qualquer proposta
de esgotamento do corpo. As diferentes especialidades apresentam diferentes formas de
enact o corpo. Neste sentido, ela apresenta uma forma de pensar tanto o poder quanto a
medicina de uma maneira que, ao mesmo tempo, se aproxima e se distancia das
reflexões feitas por Foucault, principalmente em seu livro O Nascimento da Clínica6.

Para entendermos a discussão da autora, são necessárias algumas breves


considerações sobre o trabalho de Foucault, principalmente no livro supracitado. Neste
é analisada a emergência da prática médica que se torna possível a partir da abertura dos
corpos, a visibilidade destes se torna cada vez mais aparente e, consequentemente, os
médicos são aqueles que detêm o poder de falar sobre tais corpos. O jogo de tornar os

5
Utilizamos o termo “produzido”, neste trecho, como enact.
6
A escolha destes autores não é aleatório, nas entrevistas que Serres cede à Latour, ele nos diz que parte
do livro As Palavras e as Coisas foi escrito depois de conversas entre eles. Além disso, a própria
Annemarie Mol cita Serres em seu livro, para pensar as relações de coexistências entre várias
possibilidades de se ordenar o corpo. É importante salientar que, tanto Annemarie Mol quanto Michel
Foucault serão utilizados em nosso texto da mesma maneira que utilizamos Deleuze e Simondon no
capítulo anterior: como possibilidades de por em movimento – em última instância de enact – o
pensamento de Serres

77
corpos visíveis ao olhar do médico, de algum modo, faz emergir uma nova maneira de
compreender tanto o corpo como a doença, pois, a abertura dos corpos apresenta,
claramente, os locais nos quais a doença se “instaura”. Não se trata mais de um corpo
doente, nem mesmo de um sujeito que sofre, mas, de um lugar que abriga um mal até
então não visto. Para além dos corpos, existe a “causa”, localizável, de um determinado
“problema”. Este proposta desloca todas as formas de compreender os corpos, pois, se,
antes, o sujeito sabia de sua doença, de sua dor, agora não é mais ele que detém este
saber, este saber é transferido para o médico. O inclinar-se sobre os corpos possibilita o
médico atuar, produzir formas discursivas que capturam os corpos em determinadas
redes de saber-poder nas quais o médico ocupa um lugar privilegiado, assimétrico em
relação aos outros saberes sobre o corpo, inclusive o saber do próprio sujeito7.
(...) foi portanto, necessário situar a linguagem médica nesse nível
aparentemente muito superficial, mas, para dizer a verdade,
profundamente escondido, em que a fórmula de descrição é ao mesmo
tempo gesto de desvelamento. E esse desvelamento, por sua vez,
implicava, como campo de origem e de manifestação da verdade, o
espaço discursivo do cadáver: o interior desvelado. [FOUCAULT,
2004, p. 217]
A questão da visibilidade é central nestas reflexões trazidas por Foucault, além do
deslocamento do médico em relação ao paciente. O que queremos frisar aqui é que não
se trata de negar as importantes considerações de Foucault acerca da relação entre
médico e paciente, sabemos que os deslocamentos exercidos pela medicina esvaziaram
os sujeitos de um saber sobre si mesmo. Porém, a questão, para nós aqui, é modificada,
pois, nos interessa pensar, para além deste desnível, as formas de relação entre um
determinado saber e o corpo, que, como veremos a seguir, não é operado de maneira
unificadora.

Por outro lado, o século XIX vê surgir uma forma de unificação do saber médico
através da implementação dos lugares “apropriados” ao ensino da medicina. O exercício
da medicina estará, desde então, submetido, condicionado a uma formação adequada
que é ensinada nos espaços de saber que são constituídos nos hospitais. Neste sentido,
Mol (2005) nos chama a atenção para o fato de que Foucault, ao mesmo tempo em que
nos mostra que há uma relação estreita entre poder e conhecimento, entre ciência e
sociedade, ele também insiste em que a medicina se apresenta de uma forma unificada

7
Vemos aí, de alguma maneira, ressonâncias com as reflexões feitas por Canguilhem, na medida em que,
é sobre a relação entre o sujeito e seu que estamos falando.

78
[MOL, 2005, p. 62]. Esta forma, se não se apresenta na relação entre médico e paciente,
pelo menos se apresenta em relação aos pares, aos outros médicos. É como se, de
alguma maneira, Foucault estivesse nos falando de algo que ocorre de uma maneira
única: a relação médico-paciente. Mas, não se trata disso, o próprio campo da medicina
é pulverizado, é disperso, é controverso, não há unidade. Mesmo que a questão fosse
apenas de especialidade, na qual se poderia argumentar que a unidade não ocorre porque
a medicina trata de um corpo fragmentado (cardiologia, oftalmologia, gastroenterologia,
angiologia etc.), esta não seria uma justificativa bastante forte, pois, como dissemos
anteriormente, o estudo etnográfico de Annemarie Mol não pesquisa diferentes
especialistas que falam de diferentes partes do corpo, mas, de uma “única doença”. A
questão, portanto, é muito mais complexa, propositadamente, para que não se busque
uma saída “mais fácil” para o problema proposto, a saber, a discussão sobre a
legitimidade epistemológica da doença.

Foucault, para Mol, ainda trabalha com a noção de episteme8, que, para a autora,
mantém um sentido de permanência, de fechamento que nos impede de pensar as
mudanças e particularidades que ocorrem em espaços singulares. Os saberes são
móveis, intercambiáveis e, em determinados momentos, coisas que se organizavam de
uma determinada maneira, podem se organizar de outra maneira, as fronteiras são
fluidas, maleáveis. Não há uma única forma de pensar a medicina, nem mesmo a
relação entre médico e paciente, em certa medida, estas relações são “performadas”9,
são enact a cada momento. Portanto, não se trata de esclarecer, epistemologicamente,
“quem tem razão” sobre a aterosclerose, não é uma questão sobre a verdadeira doença,
mas, há um deslocamento da questão:
A questão médica por excelência não é a questão apontada por
Foucault como tal: “Onde dói?”. Ao contrário, ela tem se tornado
outra: “Qual é o seu problema?” Esta questão é sobre se você,
paciente, consegue viver uma boa vida, ou se você tem um problema
com isso. Os problemas não são face às condições do corpo. Eles
pertencem a este corpo, mas eles são situados em outro lugar: na vida
deste. (...) O profissional, ou o conhecimento profissional, não é a
verdadeira autoridade que consegue diferenciar entre o que é e o que

8
Sobre a questão da epistemologia, Serres nos diz: “(...) caminho inútil, a epistemologia exige que se
aprenda a ciência para a comentar mal; pior, para a duplicar. Os próprios cientistas refletem melhor sobre
sua matéria do que os melhores epistemólogos do mundo: pelo menos, mais inventivamente.” [SERRES.
1996, p. 45]
9
Anniemarie Mol não gosta da palavra “performance”, porque esta carrega ainda uma conotação muito
forte de representação, a qual a autora se afasta.

79
não é um problema na vida da pessoa. (...) Esta é uma nova troca:
estes pacientes estão sendo evocados a articular normas sobre e para
eles mesmos. [MOL, 2005, p. 127]

Além disso, no livro citado, a proposta de Anniemarie Mol é de seguir as


práticas, ao invés de constituir um campo epistemológico, ou mesmo um campo teórico.
Esta escolha nos faz refletir sobre a o projeto de Mol, ou seja, o que se busca é pensar as
práticas no momento em que estas são feitas. Nas palavras da autora:
Eu investigo o conhecimento incorporado nos eventos e nas atividades
diárias mais do que o conhecimento articulado em palavras e imagens
e impressões no papel. Eu privilegio práticas ao invés de princípios e
estudo-as etnograficamente. Isto tende a fazer com que a antropologia
entre na filosofia. Um movimento que se afasta da tradição
epistemológica em filosofia que tenta articular a relação entre sujeitos
que conhecem e objetos a serem conhecidos. [Idem, p. 32]
Deste modo, o que se busca não é uma discussão propriamente epistemológica, de
legitimidade, mas, o caminho de constituição no qual a separação entre sujeitos e
objetos é exercida a cada momento, em cada prática.

Para compreender esta possibilidade, Mol utiliza-se da proposta de Bruno


Latour, de pensar a rede, mesmo que esta palavra esteja altamente desgastada, discutida,
reafirmada e questionada, a rede não é uma configuração prévia, que apresenta bordas e
fronteiras demarcadas, mas, é uma proposta de “ontologias de geometria variável”
[LATOUR, 1994, p. 84] 10, pois busca pensar uma maneira de relação entre as coisas e
os homens na qual não há organização prévia. Neste sentido, o que ocorre não é
exatamente uma captura, ou mesmo uma forma de dominação – a qual a palavra
“poder” encontra-se muitas vezes vinculada – mas, um tipo de associação, na qual as
partes envolvidas numa determinada conexão são modificadas. Não se trata de uma
questão de apropriação dos corpos, mas, muito mais de uma nova maneira de enact
estes corpos. Mol apresenta o exemplo de Latour no texto que fala sobre a
“pasteurização da França” a partir das “descobertas” de Pasteur, mas, podemos também
pensar nas relações que o corpo estabelece não apenas com os medicamentos que são
lançados continuamente no mercado, mas, com coisas simples, como as tecnologias de

10
Nas palavras do autor: “A ontologia dos mediadores, portanto, possui uma geometria variável. O que
Sartre dizia dos humanos, que sua existência precede sua essência, é válido para todos os actantes, a
elasticidade do ar, a sociedade, a matéria e a consciência. (...) Ora, se traçarmos o mapa das variedades
ontológicas, iremos perceber que não há quatro regiões, mas somente três. A dupla transcendência da
natureza, de um lado, e da sociedade, do outro, corresponde às essências estabilizadas. Em compensação,
a imanência das naturezas-naturantes e dos coletivos corresponde a uma mesma e única região, a da
instabilidade dos eventos, a do trabalho de mediação.” p. 85/86

80
calçados mais confortáveis e adequados (no caso dos tênis de corrida), ou mesmo na
forma como escrevemos hoje: em frente a uma tela e um teclado, que nos possibilita
caminhar no texto de maneira muito mais livre.

A possibilidade de relações heterogêneas que não levam em consideração


“essências” prévias pode ser compreendida de forma simplista, portanto, é necessário
que nos aprofundemos um pouco mais nesta idéia de associação trazida pelo texto de
Annemarie Mol, para que possamos entender que não se trata apenas de uma mudança
de palavras, mas, de novas possibilidades de compreensão do mundo, e,
particularmente, de compreensão do corpo. Afirmar que não existem essências prévias
não significa dizer que não existem estabilizações. É claro que algo emerge nas relações
que o corpo estabelece com o mundo, porém isto não significa que o que emerge é algo
que já existia anteriormente. Em outras palavras, não há essência sem relação,
estabilidade sem conexão, corpo sem variação.
A variedade de cores, de formas, de tons, a variedade das pregas, dos
franzidos, dos sulcos, dos contatos, dos morros e desfiladeiros, das
peneplanícies, a variedade topológica singular que é a pele é descrita o
mais pobremente possível por uma mistura compósita, gradual e
maleável, de corpo e de alma. Cada lugar singular, mesmo banal,
forma então uma mistura original. Digamos que essas misturas,
quando chegam ao contato, analisam-se ou fazem surgir, de sua
composição, os elementos simples. (...) Ninguém viu a grande batalha
dos simples, nunca experimentamos senão as misturas, só
encontramos reuniões. [SERRES, 2001, p. 22]

Antes que possamos continuar nossas reflexões acerca do texto da autora,


gostaria de explicar melhor o que significa o afastamento desta em relação ao
pensamento de Foucault. Para que este afastamento seja esclarecido, gostaria de utilizar
os próprios argumentos da autora e, ao mesmo tempo, enriquecê-los com algumas
considerações de Serres. Para compreender esta nova maneira de pensar os saberes, Mol
utiliza-se de uma metáfora trazida por Serres em seu livro Hermès V, Le passage du
Nord-ouest, neste livro, Serres, ao invés de utilizar a metáfora das caixas para
compreender a relação entre saberes, utiliza-se da metáfora das bolsas, que são de
pano11, portanto, maleáveis, fáceis de serem moldadas, como as sapatinhas de
Cinderela, que, ao mesmo tempo em que envolvem o pé, são o que formam a princesa.

11
Vale lembrar aqui o primeiro capítulo deste texto, no qual Serres utiliza-se, de forma bastante ampla, da
metáfora dos tecidos para compreender o corpo. Não é apenas uma questão de metáfora corporal, como
podemos perceber, mas, uma forma de pensar o mundo, pelos fluidos mais do que pelos sólidos.

81
Cinderela não é ninguém sem as sapatinhas de veiro, da mesma maneira que as
sapatinhas não significam absolutamente nada se não estão nos pés de Cinderela [Idem,
p. 59 a 63]. As bolsas, formadas por tecidos, podem tanto abrigar coisas como estar
contida em outra bolsa, é nesta proposta de mudanças intercambiáveis que Mol
apresenta a relação que estabelece entre corpo e medicina.

Por outro lado, Serres, nas entrevistas que cede à Latour, também vai nos falar
sobre o que ele compreende por epistemologia:
A ciência autofundamenta-se e, portanto, não tem necessidade de uma
filosofia exterior, traz consigo a sua endo-epistemologia, se assim
posso dizer. A filosofia das ciências fará, enfim, a publicidade pura e
simples do cientismo? (...) A epistemologia nasce justamente depois
desse tempo: já reparou que não havia epistemologia na idade
clássica, quando os próprios filósofos inventavam as ciências? Essa
disciplina marca, portanto, o atraso do filósofo em relação à invenção.
[SERRES, 1996, ps. 174/175]
Assim, a questão trazida por ele nos mostra que a constituição de qualquer saber não se
apresenta apenas como teoria, nem mesmo como simples prática, mas numa relação
entre coisas e homens que, por se tornarem estáveis, apresentam, posteriormente,
divisões e estabilizações que são sempre passíveis de serem renegociadas. Tais
considerações encontram ressonância também com o conceito de associação
apresentado acima, pois, o conceito de interferência, de Serres, também nos remete á
uma possibilidade de pensar as relações como intercambiáveis, como produtoras,
indefinidamente, de espaços de interferência:
É preciso conceber ou imaginar como é que Hermes voa e se desloca
quando transporta as mensagens que os deuses lhe confiam – ou como
viajam os anjos. E, por isso, descrever os espaços que se situam entre
coisas já balizadas, espaços de interferência, segundo o título do
segundo Hermes. Esse deus ou esses anjos viajam no tempo dobrado,
e daí os milhões de conexões. Entre sempre me pareceu, e ainda me
parece, uma preposição de importância capital. [Idem, p. 92/93]

Desta forma, podemos compreender como as práticas médicas não apenas em


um hospital Geral na Holanda12, mas em cada lugar e em cada momento em que se

12
É importante também ressaltar algumas questões trazidas por Serres a respeito da relação entre local e
global. O livro no qual o autor trabalho mais esta questão é O Contrato Natural, mas nas entrevistas que
cede à Latour ele também fala sobre a relação entre local e global de uma maneira bem interessante, pois
nos incita a compreender tal relação em cada encontro, incita-nos a pensar a produção de sínteses que se
diferem de sistemas: “Partia, quase indutivamente, e ao invés das teorias unitárias, de elementos sempre
diferentes, extraídos da obra ou do problema levantado, usando meios ao mesmo tempo análogos e
diferentes, uma forma de pensar formal e relacional, como disse antes: portanto, nunca cheguei a um
começo, a uma origem, a um princípio de explicação único, tendo classicamente todas as coisas de estar

82
estabelece a relação entre médico e paciente, esta relação enact homens e coisas de tal
maneira que torna possível falar da emergência de um corpo. Neste sentido, não há
corpo sem potência a ser apresentada, atualizada. O corpo não é suporte, não é “coisa”,
mas, ato, atualização que se apresenta em cada momento. “Meu corpo e nossa espécie
existem menos no real concreto do que em “potencial” ou em virtualidade”. [SERRES,
2004, P. 52] O corpo não é apenas algo a ser apropriado nas redes de poder, mas, algo
que, a partir das associações estabelecidas, pode ser potencializado ou
despotencializado. Na verdade, não se trata de captura, mas, de formas de relação:
Talvez brinquemos de pedra filosofal que transforma as ligas e
transmuta os títulos. Nada é mais abstrato, nem mais sábio, nem mais
profundo, que essa imediata meditação sobre os mistos, nem mais fino
nem mais difícil de apreender que essa refundição local e complexa,
que essa conversão transtornada ou essas reviravoltas instáveis; sem
dúvida nunca se disse nada da mudança, da transformação em geral,
que teria acontecido ali, na vizinhança fina de nossa contingência.
Ninguém pode pensar a mudança, a não ser sobre as misturas: quando
se tenta pensar sobre os simples, só se chega a milagres, saltos,
mutações, ressurreições, até à transubstanciação. [SERRES, 2001, p.
23]

A partir de tais considerações, podemos perceber que a questão se encontra


menos localizada no problema da existência ou não existência de algo anterior ao corpo
e mais nas possibilidades de encontro, de potencialização deste corpo. Mas, o que seria
então esta potência? Para Serres, a brancura, a leveza, “Alma global: pequeno lugar
profundo, perto do espaço da emoção. Alma local e de superfície: lago viscoso pronto a
agarrar, onde a luz brinca, múltipla, irisada, lentamente cambiante, sujeito a
tempestades.” [SERRES, 2001, p. 18/19] A alma não é um lugar, mas uma potência
cambiante, que se aninha em lugares diversos, de diversas formas. “A alma transparente
como um anjo, raramente ali, embranquece os lugares onde desce; a pele, historiada de
cores variadas em outra parte, torna-se, aqui, tanto mais clara quanto se anima luminosa
até à brancura.” [Idem, p. 19]

Como podemos perceber, para Serres a alma não é algo que se opõe ao corpo,
não é sob uma perspectiva dualista que podemos compreender a alma como potência
pois: “O dualismo só permite conhecer um espectro diante de um esqueleto. Todos os

em coerência ou fazer sistema, ou sentido, mas a um conjunto bem diferenciado, mas organizado, de
relações. (...) A síntese diferencia-se do sistema ou mesmo da unicidade de um método. Um conjunto de
relações profundamente diferentes ganha unidade.” [SERRES, 1996, p. 140/141]

83
corpos reais são chamalotados, misturas imprecisas e em superfície de corpo e alma.”
[Idem, p. 20] A alma, para Serres, se apresenta como sopro de vida que nos faz
diferentes de cada ser vivo pela desdiferenciação13. “A evolução conduz o homem a
essa indeterminação branca. Valência zero, todas as valências; potência nula, todas as
potências; não serve para nada, é bom para tudo.” [SERRES, 2005, p. 61]

Por outro lado, não queremos dizer que Serres nos apresenta mais um dualismo
por nos remeter à alma como brancura. A proposta é exatamente outra: pensar a alma
como potência branca, não como coisa a ser conhecida, ou mesmo separada, distanciada
do corpo. Esta forma automática de pensar a distinção entre corpo e alma, como
veremos a seguir, não é exatamente o que estamos propondo aqui, nas palavras de
Serres:
O dualismo alma-corpo, tão incensado no passado, tão enraizado na
invenção matemática, sempre desemboca, por exemplo, em conjuntos
possíveis. Intensamente detestado pelo pensamento politicamente
correto atual, esse dualismo se desfaz pela capacidade que o corpo
humano tem de entrar na modalidade. [SERRES, 2004, p. 139]
Portanto, não se trata de denunciar os problemas do dualismo, mas, de mostrar como
nos tornamos herdeiros deste pensamento dualista, ou seja, mostrar como atualizamos
esta forma de compreensão do corpo em nossos dias a partir da retomada de algumas
discussões antigas, mas que estão presentes em nossa maneira de pensar e agir.

2.1.2 – A alma branca – proposta metafísica?

A possibilidade de pensar o corpo como potência nos remete a uma discussão,


ou melhor, a um “campo de batalhas” há muito habitado pela filosofia: a metafísica.
Sabemos de toda a questão acerca das infindáveis batalhas descritas por Kant em sua
Introdução à Crítica da Razão Pura. Nossa proposta é discutir, a partir dos trabalhos de
Serres, o que vimos falando até o momento: a alma como potência. Nesta perspectiva,
cabe falar de metafísica? Por um lado, sim, pois faz parte da tradição remeter à

13
Mesmo em biologia, encontramos esta mesma questão apresentada em outros termos, nos trabalho de
um biólogo: Stephen Jay Gould, ele defende uma idéia de potência do corpo a partir do conceito de
neotenia: “Suponhamos que os traços juvenis dos antepassados de desenvolvam tão lentamente em seus
descendentes que se transformem em traços adultos. Este fenômeno de retardamento do desenvolvimento
é comum na natureza: denomina-se neotenia (literalmente, “retenção da juventude”).” [GOULD, 1999, p.
118]

84
metafísica o estudo da alma – a partir, é claro de Platão14. Por outro lado, há quem diga
que esta questão é superada justamente porque já não nos remetemos mais ao sujeito
transcendente – abandonamos a Deus, mesmo que denominemos este deus de meta-
narrativa15.

A proposta de nosso texto aqui é refletir como Serres compreende esta


possibilidade de pensar a relação entre alma e metafísica, na medida em que, tal
proposta é inaugurada na tradição filosófica por Platão, no momento em que Platão nos
remete à alma racional como sustentáculo não apenas do conhecimento, mas, da própria
existência do homem enquanto tal. Para enriquecermos nossa discussão, nos
remeteremos a um livro muito interessante sobre a construção das emoções e,
conseqüentemente, como esta construção se sustenta na divisão entre razão e emoção,
proposta por Platão, que compreende que a alma racional deve ser aquela que comanda
as outras almas, ligadas ao corpo e perecíveis com ele. A alma racional, portanto, não
pertenceria ao corpo, seria de uma outra natureza, daí sua idéia de que esta alma não
seria propriamente física, mas, meta-física – falando de maneira muito simplista.

Por outro lado, Vinciane Despret é uma etnopsicóloga que nos convida a pensar
a constituição das emoções, principalmente em sua diferenciação da razão , como já
dissemos, e, consequentemente, sobre a separação e a relação que estabelecemos entre
corpo e alma. A alma, para a autora, é constituída através de três temas abordados na
obra de Platão: “Este que eu chamarei de interdito do arrombamento; o problema da
autonomia da alma; e a temática do conhecimento de si (...)” [DESPRET, 1999, p. 157 –
tradução nossa] Esta relação, segundo a autora, serve a um determinado fim: constituir o
discurso verdadeiro, a “sangue-frio”, desinteressado, portanto, racional. Neste sentido, a
autora nos mostra como, nos diálogos de Platão, principalmente no Teeteto,
encontramos este movimento de “afastamento” da alma. A separação deve ser operada
não apenas em nome da verdade – que deve ser igual para todos, mas, ainda, em nome
de uma verdade que é também política, na medida em que é na polis que encontramos a
necessidade maior de acordo. O conhecimento, apesar de se apresentar como o

14
Sobre tal tema, ver o Capítulo III, Platon, inventeur de L´âme, do livro Ces Émotions qui nous
Fabriquent, de Vinciane Despret. Em tal livro, no qual a autora irá discutir a questão da fabricação das
emoções, ela irá discutir, ainda esta separação entre alma e corpo.
15
Sobre tal discussão, do fim das meta-narrativas, cf. LYOTARD, A Condição Pós-Moderna.

85
problema, é também o pano de fundo para a busca de uma realidade que não deve
pertencer a ninguém, mas, deve ser aceita por todos simplesmente por ser verdadeira,
por ser imutável, permanente.
Eu terei, durante a análise de algumas passagens do Teeteto, que
evocar e anunciar que um dos problemas ligados a este que afeta o
conhecimento é um problema de estabilidade, o fato de que uma coisa
pode aparecer como diferente disto que ela é porque ela reencontra um
sujeito diferente; o fato também de que o sujeito ele mesmo pode ser
levado a se definir diferentemente no fato deste reencontro com o
mundo (por exemplo, quando este que é passivo se torna ativo ao se
unir a outra coisa). [Idem, p. 157]

O problema da alma encontra-se intimamente ligado à metafísica, em Platão, na


medida em que, não haverá solução possível, para a permanência da alma, se esta não
estiver, pelo menos de alguma maneira, ligada a algo que é imutável. Para Platão – e
para muitos filósofos antes dele – esta imutabilidade pode ser percebida principalmente
através das verdades matemáticas (geométricas, no caso). A matemática seria, de
alguma maneira a forma de acesso à verdade, distinta das instabilidades do mundo e do
corpo, da aparência. Platão nos remete à metafísica, na medida em que nos propõe que
este mundo “abstrato” (para Platão não se trata de abstração, mas de um mundo real,
para além do mundo sensível), não pertence a ninguém. Porém, apenas nós, humanos,
dotados de uma alma racional, somos capazes de ascender, de alcançar a verdade que se
encontra “fora” do mundo16.

Por outro lado, esta alma racional – que segundo a autora é uma criação
platônica – é o que nos faz propriamente humanos porque representa a conquista do ser
humano contra o caos, contra a indiferenciação. Deste modo, ser humano é justamente
afastar-se desta indiferenciação e aproximar-se daquilo que podemos compreender
como “eu”17. Porém, o que se denomina como caos é tão produzido quanto a própria
alma, em outras palavras, no momento da contraposição, a alma e o caos se diferenciam
um do outro isto ocorre no instante em que colocamos esta distinção. A atividade da
alma deve sempre remeter à sua busca da verdade, daquilo que está para além das
sensações, pois, as sensações, por serem enganadoras, por se apresentarem como algo
que pode nos “misturar” ao mundo, é uma ameaça. Por outro lado, a alma é aquilo que

16
Estas considerações também podem ser encontradas em outros diálogos de Platão, como O Banquete,
Fedro e A República.
17
Nas palavras de Serres: “A alma habita um quase-ponto onde o eu se decide” [SERRES, 2001, p. 15]

86
existe em oposição, ou mesmo, em referência ao corpo na medida em que, o que chega
ao corpo, o que faz o corpo participar do mundo, é o que o ameaça ao esfacelamento. A
alma é uma conquista na medida em que mantém o corpo íntegro, sem misturas,
esvaziado de qualquer possibilidade de mistura e de esfacelamento. Na medida em que
o corpo está misturado ao mundo, a alma “salva” este corpo da mistura por afastá-lo dos
“perigos” que esta mistura revela: o arrombamento. A diferença entre corpo e alma
inaugura, para Despret, uma oposição que, ao mesmo tempo, coloca as emoções como
contraponto do conhecimento e faz com que a alma esteja não apenas devidamente
apartada do corpo, mas, que o corpo esteja sob o controle desta alma.

Para nossas considerações aqui, esta análise nos traz o problema da relação entre
corpo e mente sob novas possibilidades. O corpo, que corre sempre o risco de se
enganar, de ser afetado pelo mundo não é confiável, pode, a cada momento, esfacelar-
se. Por outro lado, a alma, pura, mais ainda, fechada sobre si mesma, é o que nos
possibilita, em última instância, ser. Porém, o eu purificado não é este do qual estamos
tratando aqui. O eu que está misturado às coisas, que habita o mundo é este que não se
considera separado de sua alma. A autora nos mostra que, como herdeiros do
platonismo, nós não conseguimos considerar a alma como algo que pertence ao corpo,
que é constituinte deste, por acreditarmos no argumento de Platão de que, ao nos
misturarmos às coisas, não nos diferenciaríamos das bestas, que, estas sim, “se
consideram a medida de todas as coisas”. A animalidade habita aqueles que não
consideram o acordo social, que não ascendem à verdade que está para além das
vontades e desejos de cada um. Além disso, a autenticidade dos homens está justamente
no reconhecimento desta alma, disto que nos separa da natureza e nos faz sujeitos de
conhecimento.

A mistura entre os homens e as coisas, em última instância, não nos permite


conhecer o mundo porque não nos dá o ponto de referência, não nos dá a diferença entre
aquele que conhece e aquele que é conhecido. Esta diferença fundamental nos inscreve
no registro da verdade, por acreditar que as coisas são sempre determinadas por esta
alma racional. Desta forma, dizer como o Protágoras de Sócrates (que se apresenta
apenas nas palavras de Sócrates e Teeteto), que estamos no meio das coisas é afirmar
que não há diferença entre o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido. Esta
indiferenciação é uma ameaça, porque nos joga no meio das coisas, numa relação que

87
não privilegia o sujeito do conhecimento, e, por conseguinte, não alcança a verdade.
Esta verdade estaria, ao mesmo tempo, na alma e fora do corpo. Apesar de paradoxal,
tal afirmação ganha sentido no momento em que compreendemos o objetivo de Platão:
encontrar uma verdade que não se apresenta para cada um mais do que para todos18.

Porém, estar “no meio das coisas” ao invés de fazer com que percamos as
referências, que os limites sejam esfacelados, permite exatamente o contrário, que
possamos, cada vez mais, produzir uma determinada interioridade19. O sentido interno
depende da relação que estabelecemos com o que consideramos “nosso exterior”. A
discussão acerca da diferença entre mente e corpo, pode ser considerada, nas palavras
de Serres:
Em resumo, o corpo não se reduz nem à fixidez nem à realidade:
menos real do que virtual, ele visa ao potencial, ou melhor, ele vive no
modal. Longe de um estar lá, ele se movimenta; não se desloca apenas
sobre o trajeto daqui para acolá, mas forma-se, deforma-se,
transfigura-se; polimorfo e proteiforme, vocês não interromperão estas
variações, a não ser que definam o corpo como capaz. O corpo pode.
[SERRES, 2003, p.138 – grifo nosso]

Existem conseqüências importantes que podemos retirar das reflexões de


Despret, dentre elas, podemos dizer que somos herdeiros20 de uma diferença entre corpo
e mente que nos faz compreender que alguns processos são mentais, outros corporais.
Que algumas coisas são próprias da mente e outras do corpo. Estas diferenças
apresentam uma forma de conhecimento que privilegia a mente como “instância” na
qual ocorrem determinados processos que lhe são próprios, como a abstração. Porém,

18
Verdade que não seja apenas sobre as coisas, mas, que seja, principalmente, uma relação dos homens
entre eles na qual a verdade não se encontra nas coisas, mas, nas ações e decisões dos cidadãos
atenienses.
19
Como dissemos no capítulo anterior.
20
A questão da herança no texto de Despret, é algo muito importante e muito mais rico do que
costumamos entender como herança, na linguagem comumente falada. Para Despret, ser herdeiro da
tradição platônica significa menos se apropriar desta tradição e mais problematizar o que compreendemos
daquilo que nos é legado. Para pensar esta questão, na introdução do livro, Despret nos relata a história
dos doze camelos. Nesta história árabe, o patriarca, ao morrer, deixa para os filhos onze camelos e lhes dá
a seguinte ordem: “metade destes camelos ficará com o filho mais velho, um quarto ficará com o filho do
meio e um sexto com o filho mais novo”. Como podemos perceber, esta herança é impossível. Porém, os
filhos estão dispostos a obedecer o pai e procuram um velho sábio que lhes diz que a única coisa que
poderá fazer é emprestar um camelo velho para que eles possam resolver. Com este camelo, a conta se
fecha da maneira exata e sobre exatamente o camelo do velho sábio, que eles devolvem. Como nós
pudemos perceber, o que estes filhos herdam do pai é muito mais um problema do que algo pronto, dado.
E neste sentido de Despret nos diz que somos herdeiros da alma platônica, não como algo dado, mas
como um problema, como algo problematizável. É neste sentido que estaremos utilizando a palavra
“herdeiro”.

88
como dissemos do capítulo anterior, aquilo que denominamos abstração é também uma
forma de relação que o corpo estabelece com as coisas e com o mundo, como nos diz
Serres é uma “olhar de sobrevôo” que produzimos sobre as coisas, mas, que não deixa
de ser uma forma do corpo se relacionar com o mundo. Portanto, algumas formas de
relação entre os homens e o mundo, que permaneciam como formas de superação do
corpo, se apresentaram como parte e potencialização deste mesmo corpo. Serres, nos
mostra isso quando fala de Tales aos pés da pirâmide: diante da grandeza do túmulo, a
postura ereta de Tales cria a relação. A geometria se funda num duplo movimento:
numa relação com a morte (a pirâmide representa estes mortos) e numa relação com o
corpo, já que a comparação é feita entre a altura da pirâmide e a altura do próprio Tales.
Além disso, a geometria nasce desta comparação, deste “pôr em relação” a vida e a
morte.

Em relação à alma branca, podemos dizer que, por não ter um sentido
determinado, o corpo também é um conceito branco, ou seja, é algo sobre o qual
podemos inserir variadas formas e sentidos. Os conceitos brancos são metamorfoses,
são variações, são conjuntos variáveis de sentidos, intercambiáveis, mas que, a partir do
momento em que são inseridos em um determinado sistema, adquirem forma, são
informados. Desta maneira, o que seria a metafísica então?
Damos o nome de metafísica à disciplina que trata do grupo de
conceitos brancos. Os universais. A circunscrição rural, a habitação e
os objetivos, em seguida o relacional, dinheiro e signos,
instrumentalizam-se a partir do corpo desprogramado para,
posteriormente, retornar ao subjetivo. Por sua vez, o corpo
individualizado e bloqueado parte rumo a novas exteriorizações, desta
vez em direção ao templo, à praça, ao tribunal coletivos, à totalidade
das profissões, rumo, enfim, à liberdade que condensa e retoma o
circuito. [SERRES, 2005, p 89]
Num sentido geral, o corpo seria então, este lugar de provocação, de tensão que faz
emergir conceitos brancos, por ser, justamente mais um dentre eles. Para além de
qualquer possibilidade de determinação, a desdiferenciação.

Por outro lado, Serres nos faz pensar que, este limiar, este limite de
desdiferenciação não se encontra como que “disponível”, acessível à manipulação. Não
se trata de pensar a metafísica como possibilidade, mas, como limite:
O que é a metafísica? Ela descreve os limiares mínimos inferiores de
nossas desespecializações corporais ou exteriorizadas. Os limiares de

89
brancura, abstração e simbolização, os limites inferiores sob os quais
não podemos imergir sem morrer. [SERRES, 2005, p. 91]
Neste sentido, a metafísica não está além do corpo, mas, está em seu limite inferior, em
sua possibilidade de desfazer-se. Não há, em última instância, uma metafísica do corpo
– nem mesmo da alma, mas, um limiar de desdiferenciação que, ao ser ultrapassado, faz
esvaecer o corpo – e a alma.

O corpo desdiferenciado é aquele que se torna capaz de se relacionar com o


mundo sem que haja determinações prévias, sem que se acredite em uma única
potência. Desdiferenciar-se é ser capaz de mudar constantemente, de produzir novas
relações, de ultrapassar suas limitações. A potência do corpo, por ser branca, estimula-
nos a sair do lugar, a variar, a inventar novas possibilidades de existência. “Alma. A
alma traduz o latim anima, que, por seu turno, traduz o grego anemos, que quer dizer
vento. A alma errante vem de onde vem o vento. (...) Zero dos sentidos, portador de
todos eles.” [SERRES, 2004, p. 174] O corpo branco tem uma potência ilimitada de
aprendizagem, varia de acordo com suas relações e surpreende-se com seus encontros.
Os ginastas educam sua alma para se moverem em torno dela ou se
enrolarem em torno dela. Os atletas não têm alma. Eles correm ou
lançam; mas os saltadores têm uma que atiram por cima da barra ou
para além dela; enroscam mansamente seus corpos em torno do lugar
em que a atiram. A diferença entre o atletismo e a ginástica, fora os
saltos, tem a ver com a prática da alma. A barra fixa, o salto mortal, as
argolas, o exercício no solo, o trampolim, os mergulhos valem por
exercícios de metafísica experimental (...). [SERRES, 2001 p. 15]
O aprendizado, antes de ser uma formatação, é uma desdiferenciação, mesmo que a
formatação a suceda. Desta forma, falaremos um pouco mais sobre este aprendizado do
corpo, como podemos pensar a potência como diferenciação, nas formas de aprendizado
do corpo.

3.2 – O aprendizado do corpo: repetição, imitação e transformação

Serres, em seu livro O Terceiro Instruído, nos convida a pensar a questão da


aprendizagem a partir das seguintes palavras:
Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo à parte
que permanece ligada à margem de nascimento, à proximidade de
parentesco, à casa e aos costumes próprios do meio, à cultura da
língua e à rigidez dos hábitos. Quem não se mexe não aprende nada.
Sim, parte, divide-te em partes. (...) Parte e então tudo começa, pelo
menos a tua explosão em mundos à parte. E tudo começa por esse
nada. [SERRES, 1993, p. 23]

90
Esta provocação do autor nos incita a pensar sobre o que estamos denominando aqui de
aprendizado do corpo. Mas o que significa exatamente partir? Cremos que o
afastamento do equilíbrio é uma boa resposta a tal pergunta, pois, se a morte é a
estagnação, a vida se caracteriza justamente por afastar-se desta estagnação.
Misteriosa e frequentemente, o corpo pode destruir os efeitos dessas
leis da estática. Ao exercer seu papel fora do equilíbrio, ao afrontar
seus limites ele consegue estabelecer na instabilidade uma outra
estabilidade de nível mais complexo. [SERRES, 2004, p. 47]
Por outro lado, podemos ainda pensar que o corpo extrapola seus limites através do
treinamento, pois “O treinamento, que permite ao coração agüentar uma maratona ou
formar os músculos que suportam alteres muito pesados, negocia com as possibilidades
até às fronteiras da morte; os acidentes e enfermidades atuam da mesma maneira”21.
[SERRES, 2004, p. 40]

Não se trata aqui, apenas de dizer que estabelecemos novas normas, mas, de dar
um passo além: sermos capazes de nos inventar. Como a citação acima nos mostra, o
corpo só consegue ultrapassar seus limites na medida em que repete. A repetição do
corpo não é igual, não é a mesma, a cada repetição, são inventadas novas maneiras de
ultrapassar de se superar, de fazer diferente, de “educar” o corpo a mudar. Se o livro
supracitado foi dedicado aos professores de educação física, não é como uma ironia que
devemos ler esta dedicatória, mas, como provocação, pois “os exigentes exercícios
corporais são um ótimo início para um programa de filosofia básica: na alta montanha,
qualquer hesitação, rotas equivocadas, mentiras ou má-fé equivalem à morte”. [Idem, p.
12] O aprendizado do corpo não permite enganos, da mesma maneira, ninguém se torna
um exímio dançarino sem treino, sem pôr o corpo à prova, sem trabalho duro de
repetição.
Nada resiste ao treinamento, de cujos gestos repetitivos a disciplina
tira a naturalidade (...) e torna espontâneas as necessárias virtudes de
concentração (...), coragem (...), paciência, domínio da angústia na
montanha, por exemplo; não existe trabalho sem regras quase
monásticas de emprego do tempo, algo que o desportista de alto nível
conhece bem: uma vida subordinada aos ritmos do corpo, à
observância rigorosa do sono e alimentação sadia. [Idem, p. 35]

21
Nesta questão Serres se aproxima de Canguilhem, quando este nos diz que a doença é, de alguma
maneira, uma possibilidade para o corpo instituir novas regras de funcionamento. Como exemplo,
podemos pensar que determinadas doenças fortificam o corpo na medida em que criam defesas para que
esta mesma doença não possa se instaurar mais uma vez.

91
É nesta dupla recomendação: dividir-se, diferenciar-se e produzir o hábito no
corpo que entendemos o aprendizado que advém deste corpo.
Nossa evolução e, talvez, a evolução de toda a vida consistem nessa
dureza amedrontadora, tímida e temerária: não ficar na própria casa
em repouso, sair em direção ao mundo das coisas, desalojar-se?
Nascer implica expor o frágil ao rigor, o morno ao gelado, o flexível
ao rígido, o terno à violência; isto é conhecer. [Idem, p. 24]
Não se trata de pensar nem a divisão e nem a repetição como subtração, como limitação
da potência, mas, ao contrário. Se podemos afirmar que a abstração parte do corpo,
podemos também dizer que o afastamento do corpo que a abstração permite, também
nos faz acreditar numa forma de aprendizagem que leva em consideração apenas a
repetição vazia de palavras. Como pudemos perceber, o aprendizado do corpo não
permite erros, enganações – não se pode dançar, correr, jogar futebol (pelo menos por
um tempo considerável) sem treino, nem mesmo escrever. Escrever também exige um
exercício do corpo, exige que se mantenha em treinamento.
(...) o trabalho do verdadeiro escritor exige a totalidade do corpo e um
engajamento único, singular e solitário. (...) Específico, particular e
original, o corpo todos inventa; a cabeça adora repetir. A cabeça é
ingênua. O corpo é genial. Não sei porque não aprendi mais cedo sua
força criadora, por que não compreendi, quando mais jovem, que
somente o corpo glorioso poderia ser real. [Idem, p. 17]

Há uma diferença fundamental, como podemos perceber, entre a repetição do


corpo e a repetição que Serres escreve aqui. A repetição do corpo gera uma
transformação do corpo, na medida em que, a cada repetição, como dissemos
anteriormente, é alcançado um outro patamar, o corpo ao repetir, inventa. Isto significa
dizer que o corpo tem maneiras próprias de se diferenciar, de inventar novas formas de
relação com o mundo.

2.2.1 – A imitação: uma forma particular de repetição

Vale esclarecer que a imitação que estamos evocando aqui é de um tipo


particular: o mimetismo. O mimetismo é uma maneira de repetição do corpo que faz
com que este corpo atue de uma maneira diferente no mundo e assim, supere seus
próprios limites. A imitação não faz com que o corpo repita aquilo que ele imita, mas,
faz com que o corpo teste seus próprios limites ao encontrar o que é diferente de si
mesmo. O aprendizado do corpo, por mimetismo, nos permite potencializar este corpo
na medida em que apresenta a ele novas possibilidades de encontro, de ser afetado. Nas

92
palavras de Serres: “(...) não existe nada no conhecimento que não tenha estado
primeiro no corpo inteiro, cujas metamorfoses gestuais, posturas móveis e a própria
evolução imitam tudo aquilo que o rodeia. Nosso saber origina-se do saber de outros
que o aprendem a partir do nosso.” [Idem, p. 68]

Mais uma vez, nos remeteremos à Platão para compreender que, sua maneira de
pensar o mimetismo também está vinculada às questões que colocamos acima. O
mimetismo, para Platão, apresenta-se como cópia, o que podemos perceber em seu
diálogo Górgias, quando Platão compara a medicina e a ginástica à saúde do corpo
[464b]. Por outro lado, a culinária não seria uma arte [techné], porque não teria a
qualidade de gerar a saúde, como a medicina, a culinária ludibria os insensatos pelo
prazer e não pela saúde [464c]22. Esta diferenciação marca a importância do
conhecimento, mais uma vez, para que possamos nos diferenciar dos outros animais,
pois, o médico, por excelência, é aquele que sabe reconhecer o corpo saudável. Além
disso, nos mostra que há algo que diz respeito à verdade, que conhece o que é melhor e
o que é pior, e há algo que diz respeito apenas ao prazer, isto é um simulacro,
enganação, cópia, feita apenas para enganar, iludir, ludibriar.

Sobre tal possibilidade, encontramos no texto Mimesis e sofística: de poikilos a


metis de Maria Cristina Franco Ferraz considerações importantes para pensarmos no
lugar da mimesis no pensamento de Platão. Em sua análise, um dos motivos principais
para que Platão coloque a mimesis num lugar de inferioridade é que esta traz o engano
das cores que a pintura apresenta, por exemplo. As cores, apresentadas principalmente
na pintura são enganosas porque nos dão a impressão de uma realidade que é pura
aparência: “Poikilos remete a tudo que é multicor e heteróclito, ou seja, para Platão, não
apenas a mistura de cores, mas a própria cor, enquanto produto de misturas.” [FERRAZ,
1996, p. 52] Platão estabelece uma “hierarquia da realidade” na medida em que nos diz
que só há realidade nas Idéias, que são alcançáveis pela alma racional, e que os objetos
sensíveis são apenas cópias desta realidade. A pintura, nesta hierarquia é de um grau
inferior a este da realidade sensível, pois é apenas a cópia da cópia. Assim as cores
possibilitam ao pintor uma imitação, uma cópia que não serve a outro fim senão o de
enganar. Esta imitação diz respeito a uma forma de imitação que leva em consideração

22
Mais uma vez vemos aqui o prazer sendo apartado do conhecimento, marcando a diferença entre aquilo
que apetece o corpo e aquilo que realmente alimenta a alma.

93
apenas o aprendizado que ocorre no nível do pensamento. O aprendizado do corpo pela
mimese não é levado em consideração.

Há um sentido de imitação que não se restringe a esta leitura de que a imitação é


uma simples cópia, mas, uma forma de metamorfosear o corpo. Paul Woodruff em seu
artigo Aristotle on Mimeses defende que “mimeses aristotélica não é o mesmo que
imitação, ficção, reprodução, representação ou simulação...” (WOODRUFF, 1992 p. 89
– tradução nossa), portanto, ele nos traz um sentido de mimese que pode não apenas
lançar luz sobre seu sentido em Aristóteles, mas ainda, nos trazer uma possibilidade de
entendimento que enriqueça nossa visão contemporânea acerca do que estamos tentando
mostrar aqui: que a imitação não se apresenta apenas como cópia, como modo inferior
de relação com o mundo no qual a mentira substitui a verdade. Serres nos ajuda aqui ao
nos dizer:
Receber, emitir, conservar, transmitir: estes são, todos, atos
especializados do corpo. Em seguida, a imitação engendra a
reprodução, a representação e a experiência virtual, termos
consagrados pelas ciências, pelas artes e pelas técnicas de simulação
por computador. Os novos suportes de memorização e de transporte
de signos, como as tábuas de cera, o pergaminho ou a imprensa,
fizeram com que esquecêssemos a prioridade do corpo nessas funções;
as culturas sem escrita ainda os conhecem. [SERRES, 2004, p. 69]

Trata-se de pensar a mimese como potência, como forma de organização


diferenciada do corpo, o que desloca muito a idéia de imitação tal como ela é proposta
por Platão. É sabido que Aristóteles insiste em reconhecer um conhecimento que
advenha das coisas, que seja imanente às coisas. É sabido também que este teve forte
influência da tradição médica de sua família, o que o fez reconhecer a importância desta
prática para o conhecimento. É desta maneira que nós nos remetemos a ele, como
alguém que conhece a importância do corpo – mesmo que isso não seja tão evidente na
totalidade de sua obra. A visão de Aristóteles sobre o corpo não é apenas esta que
apresentaremos aqui, porém a própria maneira como este autor estabelece o caminho
para o conhecimento, já mostra que não se trata apenas de um “uso indevido” do autor,
mas, uma maneira de potencializar seus argumentos utilizando novas “ferramentas”. Em
Serres vemos também esta relação entre Aristóteles e a mimese, na medida em que ele
nos diz: “Como diz Aristóteles, tornamo-nos os mais miméticos dentre os seres vivos.
Os mais bem-dotados para a aprendizagem. O conhecimento se inicia. Por vezes nos
esquecemos ou desobedecemos. Semeamos nossa memória com revoltas e negligências.

94
A invenção inicia-se a partir desse momento.” [SERRES, 2005, p. 68] Aqui podemos
entender que, mesmo Serres percebe que a preocupação de Aristóteles com a mimese é
algo bastante relevante. Nas próximas linhas iremos traçar este caminho para esclarecer
melhor a importância da mimese não apenas para Aristóteles, mas para
compreendermos o corpo.

Aristóteles nos dá uma outra possibilidade de pensar a mimese, num primeiro


momento que nos chama a atenção, quando nos traz uma outra leitura da medicina, nos
dizendo que esta é também uma mimese, é uma imitação da natureza, na medida em que
“substitui” a natureza não para ser um simulacro desta, mas para devolver a saúde, que é
o estado “natural” do homem. Portanto, a saúde trazida pela medicina é tão boa quanto
aquela adquirida por natureza, não há diferença aqui. Como podemos perceber, o
mimetismo não é visto como cópia, mas como potência. O corpo, ao adquirir saúde
através da medicina não está “se enganando”, mas, buscando a mesma finalidade por
outros meios. A medicina imita a natureza não para ser seu simulacro, mas para atingir
o mesmo fim, a mesma finalidade da natureza. Por outro lado, Aristóteles dá uma
função à mimese para além deste exemplo dado pela medicina, há um uso da imitação
que é, ao mesmo tempo, didático. A mimese serve, na Poética de Aristóteles, para um
fim educativo: fazer com que os cidadãos atenienses aprendam o que é a virtude através
da encenação. A palavra usada é a mesma: “esta relação entre techné e natureza ele
[Aristóteles] descreve como mimeses” (WOODRUFF, 1992, p. 78). Neste sentido, a
medicina é mimética não porque engana a natureza ou o corpo, mas, porque ajuda a
natureza a atingir seu próprio fim. Através de procedimentos diferentes – medicina e
natureza – alcançamos o mesmo fim: a saúde.
(...) techné completa a natureza por realizar através da mimeses o que
a natureza foi inábil para concluir. Natureza significa para nós ser
saudável, por exemplo, mas nem sempre isso acontece; a medicina
pode intervir para realizar o efeito ao qual a natureza tem se dirigido.
Medicina e natureza, nesta explicação, são semelhantes de duas
formas: elas produzem o mesmo fim, e elas fazem então do mesmo
modo, por subordinar cada coisa ao fim ao qual eles se dirigem.
Mimeses aqui não tem nada a ver com imitação ou representação: ela
produz saúde mais do que um simulacro de saúde. (Idem, p. 78 – grifo
nosso)

Ao nos trazer a possibilidade de pensar a mimese em Aristóteles como algo bem


distinto do sentido que Platão dá a este termo, Woodruff defende que, para Aristóteles,
este termo não apresenta nem uma conotação pejorativa, nem é um sentido relacionado

95
ao que fala Platão sobre ele. Para o autor, Aristóteles não segue o mesmo sentido dado
por Platão não porque queira contrapô-lo, mas, simplesmente porque segue um sentido
mais popular do termo. As preocupações de Aristóteles, em relação à mimese são
distintas das de Platão. Além disso, se para Platão a mimese deve ter necessariamente
um objeto ao qual deve imitar, para Aristóteles pode não haver este objeto: “Isso segue
que o objeto da mimese poética pode ser inteiramente fabricado pelo poeta. O objeto da
mimeses pode ser uma ficção.” (Idem, p. 81) No caso de Platão tal possibilidade não se
apresenta pois: “Aqui Aristóteles diverge consideravelmente de Platão, que trata a
mimeses conseqüentemente como tendo objetos que não são nem reais – no caso da
poesia e da pintura – e têm como objetos coisas que são elas mesmas mimemata de
coisas reais.” (Idem, p. 81) Enquanto Platão se preocupa com a formação dos jovens e
com os prejuízos que o engano podem gerar nesta formação, Aristóteles busca outros
caminhos para entender os efeitos da mimese, principalmente na tragédia, para seus
expectadores. Desta forma, o autor defende uma relação estreita entre a questão da
mimese na Poética e a questão das afecções na Retórica.

Sob tal perspectiva, a mimese possui um papel bastante distinto daquele que
seria simplesmente “iludir” os espectadores. Ao contrário, o papel da mimese é
fundamental, como dissemos, para entendermos os efeitos da tragédia em seus
espectadores, pois esta tem o poder de suscitar nossas afecções através da mimese. Em
outras palavras, é a mimese que se torna responsável pela possibilidade de gerar as
afecções. Serres também acredita que esta é uma maneira de aprendizado importante,
pois ele nos diz:
Como aprender as emoções e os estados mentais a não ser por
reconhecê-los nos outros? Como reconhecê-los sem experimentá-los?
Como experimentá-los sem imitá-los? Como aprendê-los sem imitá-
los, como imitá-los sem aprendê-los? A repetição deste círculo cresce
e nos faz crescer. [SERRES, 2004, p. 70]

Neste sentido, o problema de pensar o “engano” provocado pela mimese não se


reduz à simples idéia de “dizer mentiras”, ou, de dizer coisas que não são
“profundamente conhecidas” pelos poetas, já que estes não são, no sentido estrito, os
conhecedores da natureza humana. Não se trata disso, a questão, em certa medida, vai
além da verdade ou mentira ditas na poesia, pois, o que importa é o efeito desta naqueles
que assistem uma encenação. A pergunta, portanto, é a seguinte: Como a encenação de
fatos e características particulares pode suscitar sentimentos que dizem respeito à

96
universalidade do homem, e, desta maneira, são fundamentais para a formação do
caráter? Este é o ponto fundamental da mimese em Aristóteles, pois, é através deste
“engano” que é possível ser afetado pela poesia em geral, e pela tragédia, em particular.
Neste sentido, tal “engano” ocupa um lugar de destaque, pois, sem a “ilusão” que a
poesia suscita em seus espectadores ela não teria a capacidade de afetá-los. As afecções
são aqui, a forma de ensino utilizada pelos tragediógrafos, pois, só é possível “ensinar a
sentir” pela repetição destes sentimentos, por um jogo de espelhos no qual me
reconheço no outro e sou reconhecido por este23.

Podemos pensar que para a formação do povo grego é essencial o ensino da


virtude, e cabe também ao tragediógrafo ensinar as características virtuosas. Mas, se a
tragédia não visa apenas informar, apontar, mostrar atitudes virtuosas, deve haver um
meio de se fazer com que as ações virtuosas afetem aqueles que assistem uma
encenação, no mesmo sentido em que a medicina produz saúde através da mimese,
como dissemos mais acima. É neste ponto que a mimese torna-se imprescindível, pois, a
imitação operada no palco não é uma pura repetição de gestos, mas, uma forma de
produção de sensações, de afecções aos quais a platéia se vê “ligada”. A mistura entre
fatos que poderiam acontecer no cotidiano de cada um daqueles espectadores,
misturados com fatos extremamente impactantes geram no espectador uma identificação
que os faz sentir-se como atuante da cena representada.

Há, portanto, um benefício na mimese, dado que seu objetivo não é


simplesmente fazer com que a platéia acredite no que está vendo, mas, que, de alguma
maneira, a própria realidade esteja misturada com determinadas características
“fantasiosas”. A possibilidade do que acontece em cena, acontecer a um dos
espectadores o fazem compartilhar deste mesmo pathos. Para sentir piedade ou medo do
que acontece em cena, sabemos que não é preciso acreditar no que está acontecendo no
palco – o que ocorre é apenas uma encenação. Por outro lado, não ficamos totalmente
indiferentes aos fatos ocorridos em cena, portanto, nossas emoções são suscitadas,

23
Sobre esta questão, encontramos a seguinte passagem no texto de Serres: “Certamente os gestos das
bailarinas, os movimentos dos ginastas e as profissões práticas são aprendidas, mas seria mais adequado
dizer que os esportes e habilidades manuais, o face a face da mãe com o bebê, em que a filha ou o filho
ensinam tanto ao adulto quando este à criança, o mano a mano dos guerreiros, o vis-à-vis entre os
professor e os alunos, entre o patrão e os empregados, a comunicação recíproca dos amantes são
adquiridos por meio da dança e do espelho. Por isso, toda sociedade constitui um pas-de-deux. Nada mais
eficaz para a aprendizagem do que o face a face do teatro.” [SERRES, 2004, p. 71]

97
podemos sentir terror, ódio, piedade. Ao sentir tais coisas, estamos atualizando nossas
emoções, somos levados a repetir ou temer certas atitudes não necessariamente porque
elas são possíveis, mas justamente porque elas convencem24. A mimese aparece
exatamente neste lugar que torna a atualização das idéias em fatos convincentes, e, desta
forma, em coisas que nos afetam, seres empíricos.
Aparentemente nós devemos acreditar que um mal tem e não tem
tomado lugar. O poeta deve fazer-nos responder aos eventos
representados no palco como se eles estivessem acontecendo agora,
tanto que evocam medo e piedade, é como se eles, [ao mesmo tempo],
não estivessem acontecendo, tanto que causa mais prazer do que dor.
[Idem, p.86]
Para o autor, este relação entre realidade e ficção é o que faz da mimese um engano
necessário, pois, sem ela este jogo de cena, que causa nossas emoções, não seria
possível. Para chamar mais ainda nossa atenção para este fato o autor afirma que
Esta é a possibilidade que Aristóteles sugere na Poética 9, que um
escritor pode nos dizer uma verdade universal sobre o comportamento
humano e, em fazer isso, produz um mimema de uma ação que é ao
mesmo tempo ficcional e particular. [Idem, p. 86]

A partir do que foi dito acima, podemos compreender que a palavra mimese
expressa muito mais uma forma de potencialização daquilo que é imitado do que
propriamente uma cópia. Neste sentido, o que deve ser “imitado” são apenas partes que
identifiquem, em certo sentido, a forma do objeto. Sob tal perspectiva, podemos
entender porque Aristóteles não dá tanta importância à questão da imitação na mimese,
pois, para que algo seja mimemata de outra coisa não precisa copiá-la, mas exercer a
mesma função. Não se trata de pensar o mimetismo como cópia, mas, como uma forma
de alcançar novas maneiras de produção que são capacitadas pela imitação.

A imitação serve para tornar algo semelhante àquilo que é imitado, mas que não
é necessariamente a mesma coisa. Em outras palavras, a mimese exerce a função de
“ensinar sem risco”. Como exemplo, podemos dizer que a possibilidade de aprender
algo pelas afecções que são trazidas pela tragédia exerce um papel fundamental da
formação do homem grego sem necessariamente confundir os atores, os personagens
com os espectadores, como nas situações apresentadas na tragédia. Como conseqüência,
podemos vislumbrar com mais clareza porque Aristóteles entende a importância do

24
Neste sentido, Aristóteles é bem claro na Poética 25: “(...), podemos preferir o que é convincente mas
impossível do que o que não convence mais é possível.” (1460a13)

98
engano na representação trágica, pois, sem tal engano, os efeitos desejados
simplesmente não acontecem. Para esclarecermos melhor o que significa tais palavras
devemos acrescentar que
Se a pintura chama nossa atenção cognitiva para o que é universal
num caso geral, a tragédia convoca nossas emoções em nome do
particular que é tramado para representar um modelo geral. A mimeses
trágica não deve desviar nossas emoções, mas o poder cognitivo que
normalmente nos mantém sob controle, tanto que nós poderemos
orientar a experiência emocional em nome de caracteres e eventos que
nossas mentes dispensariam como irreais. [Idem, p. 83]

Mas, retornemos à nossa questão principal: como podemos entender a mimese


no pensamento aristotélico e como podemos tirar conseqüências contemporâneas deste
entendimento. Se não são quaisquer características que são visadas na produção de um
mimema, então podemos afirmar que o efeito produzido pelo mimema deve ser, em
certo sentido, o mesmo que o próprio objeto produziria. Desta forma, “a mimeses rompe
a ordem natural de causa e efeito. Isto é o que é maravilhoso e excitante, e é o que nos
ocasiona um modo seguro de aprender fatos sobre leões – através da pintura – e um
modo prazeroso de desenvolver hábitos corajosos na mente – através da música ou da
dança” [Idem, p. 92]. Pois se a mimese é ao mesmo tempo algo que possui
características específicas dos objetos – por isso surte efeito – e não se confunde com
ele, pode ser mais útil e, muitas vezes mais necessário, que aprendamos com a mimese e
não com o objeto mesmo.

Podemos explicar um pouco melhor a afirmação acima dizendo, de uma maneira


muito simples, é melhor aprender algo sobre leões através do desenho de algum artista,
do que convivendo com os próprios leões. Vale frisar que uma coisa não invalida a
outra e que, em nossos tempos, criamos dispositivos muito eficazes para nos aproximar
de maneira segura de animais selvagens. Mas, o que nos interessa é que a simulação
proporcionada pela mimese pode nos ser muito mais útil do que a experiência real.
Desde que esta ficção possua características importantes, tais como produzir efeitos
benéficos, aprendizados efetivos. No exemplo da tragédia a questão é a seguinte:
mesmo que esta seja absolutamente fictícia, que não se valha de absolutamente nenhum
fato real, não importa, o que importa é que a tragédia convença, o que significa dizer
que ela atingiu seu objetivo, ela suscitou os sentimentos desejados. “A ficção inventa,
mas a mimeses permite que estas invenções tenham efeitos que são normalmente

99
reservados a experiências atuais” [Idem, p. 92]. Neste sentido, uma boa tragédia é
aquela que produz afecções tão reais que os sujeitos que a assistem são tomados por
sentimentos que só o afetariam se eles estivessem realmente vivendo aquelas situações.
O papel da mimese é exatamente este: produz o mesmo efeito que uma experiência
empírica produziria, neste caso, de ser uma mimese daquilo que, em outro caso, seria a
experiência efetiva da dor, ou da piedade.

Segundo tais afirmações podemos tirar conseqüências bastante interessantes e


relevantes sobre esta questão da mimese para os dias atuais. Há uma possibilidade que o
autor nos indica acerca do entendimento desta palavra que nos abre um amplo caminho
para pensar a questão da aprendizagem através daquilo que hoje entendemos como
simulação e que, nos parece, tem uma íntima relação com a idéia trazida no texto de
“engano funcional”25. Para explicitar tal conceito o autor nos dá o exemplo da relação
entre ouvir uma música heróica e, a partir desta escuta, desenvolver atitudes e
características heróicas:
Melodia e ritmo são movimentos, e então são ações; os dois tipos de
movimento, quando percebidos, organizam movimentos
correspondentes na mente do público. Até aqui isso parece explicar
somente a aparência da música para a ação. Quando o caráter vem?
Ações são ao mesmo tempo indicadores e formadores do caráter: a
música que corresponde um determinado tipo de caráter simula este
caráter no ouvinte organizando movimentos apropriados em sua alma.
Ouvindo músicas heróicas eu sinto ritmos heróicos pulsando através
de minha alma e estes são justamente os movimentos que eu poderia
sentir se eu fosse um herói engajado em uma ação heróica e essas são
as ações as quais, se eu tivesse um caráter heróico, eu poderia vir a me
acostumar. [Idem, p. 93]
Desta forma, a mimese tem um papel fundamental da formação do caráter dos jovens
gregos. Ela sai do “limbo” conceitual no qual só podemos pensá-la como engano, erro
ou cópia para adquirir uma positividade que nos remete à importância deste “engano”
na formação do caráter, e, conseqüentemente, no desenvolvimento de atitudes virtuosas.

Pensar este “engano funcional” como parte fundamental da formação do jovem


grego é bastante interessante, pois, em certa medida, os meios para adquirir
determinadas atitudes virtuosas não são mais tão importantes, desde de que atinja este

25
Como é bastante frisado pelo autor, não estamos buscando uma correspondência entre o termo mimeses
e o significado que a palavra simulação adquiriu no mundo contemporâneo, o que estamos propondo é um
enriquecimento da questão da simulação a partir de uma leitura da mimeses em Aristóteles, o que, em
sentido estrito, não fere nem seu significado “original”, nem deturpa, ou torce o sentido de mimeses para
“caber” nele a idéia de simulação no mundo contemporâneo.

100
objetivo. Em outras palavras, podemos pensar que um dos objetivos de se tornar um
“bom grego” é ser corajoso, então não importa se este jovem irá adquirir tal
característica através de atitudes propriamente heróicas ou através da escuta de músicas
que possuem um ritmo heróico, pois, o fim atingido será o mesmo. Há, nesta concepção,
as mesmas justificativas das que ocorrem na relação entre natureza e medicina: o que
importa é tornar o homem mais próximo de sua finalidade, ou seja, ser saudável, sem
importar o meio para adquirir tal saúde. Por conseguinte, podemos pensar que não é
necessário estar o tempo todo em guerra para que aprendamos a ser guerreiros, existem
outros meios de ensinar o jovem a ser corajoso sem submetê-lo a situações de perigo.

A partir das considerações feitas acima, podemos tirar algumas conseqüências


importantes para o nosso mundo contemporâneo: 1o. que a mimeses é uma forma
legítima de aprendizagem, que não é inferior absolutamente à idéia imitada, dado que
ela não é uma simples imitação, pois, o que é imitado é a própria forma, e, portanto,
alcança o mesmo fim; 2o. não há um privilégio anteriormente estabelecido entre a
mimese e seu referente, pois, atos corajosos são sempre desejáveis, seja através da
guerra, seja através das músicas que despertam em mim atitudes corajosas.

Podemos perceber, por conseguinte, que o que estamos denominando aqui de


“engano funcional” pode ser apropriado para que possamos compreender melhor o
aprendizado pela imitação ao qual se refere Serres. Mesmo que a questão da mimese se
relacione principalmente com a questão da tragédia, e com o ensino da virtude para o
povo grego, podemos perceber que esta forma de aprendizagem está muito mais ligada
ao corpo do que propriamente ao pensamento como simples abstração desencarnada. As
afecções estão ligadas ao corpo como um todo, são aquilo que possibilita os efeitos das
artes em geral e da tragédia em particular. Tais efeitos só podem ser vistos como forma
do corpo se relacionar ao mundo, porém esta forma descrita acima encontra seus limites
no mimetismo que ocorre com os homens entre si. Porém, Serres nos incita a pensar
uma outra forma de mimetismo que ele denomina de homotetia: “Assim nasceu a
homotetia, homômima do mimetismo quando este se volta em direção às coisas.”
[SERRES, 2004, p. 84] É a esta homotetia que nos referimos ao falar da comparação
entre Tales e a pirâmide. A mesma idéia de que a mimese deve ser pensada como
“engano funcional”, serve para pensar o que denominamos aqui de homotetia, pois, esta
é uma forma do corpo se relacionar ao mundo que sempre faz com que o corpo se

101
diferencie de si mesmo, que se afaste do seu equilíbrio. “Ao imitar aos outros, nós os
amamos e os odiamos; desde a aurora grega, imitamos também as coisas e, com isto,
devemos concluir que as consagramos e as destruímos.” [Idem, p. 95]

Por outro lado, a homotetia amplia as potências do corpo num sentido diferente,
na medida em que apresenta a este, novas formas de relação com as coisas e com o
mundo. Não se trata aqui de pensar a pura imitação de gestos ou de posições corporais,
mas, de metamorfoses do corpo.
Com efeito, estas são as seqüências do mistério do corpo: eu não
posso; exercito-me e posso fazê-lo; não sei; exercito-me e passo a
saber; não compreendo; exercito-me e passo a compreender.
[SERRES, 2003, p. 42]
O corpo se metamorfoseia em diversas formas, como o próprio nome já indica, neste
sentido, um aprendizado do corpo se apresenta na medida em que busca novas
possibilidades de relação com as coisas e com os outros através de uma prática corporal
que faz com que o corpo adquira uma determinada habilidade que antes não possuía. A
elasticidade do corpo proporciona mutações que se desdobram em formas potenciais de
existência. A questão não é o engano, mas, a transformação.

Porém, Serres acredita que, para se executar esta transformação é necessário


partir, que significa deslocar-se, sair do lugar ao qual ocupamos atualmente, fazer com
que o corpo aprenda novas formas e posicionamentos pelo exercício. Não se trata
apenas de memória, mas de invenção, pois a memória do corpo opera pelo
esquecimento, aprendemos quando esquecemos, quando o que adquirimos se torna
inconsciente no corpo. A invenção ocorre quando há o transbordamento daquilo que foi
imitado para que o corpo se metamorfoseie de tantas maneiras que já não seja ele
mesmo, que ocupe um outro lugar pela flexibilidade que permite:
Uma flexibilidade fundamental (...). Essa leveza inaugura e
condiciona o conhecimento, pois nos conduz do rígido ao flexível.
Essa flexibilidade funciona como uma fornalha que permite que nos
moldemos a qualquer forma. [Idem, p. 87]
Permitir-se partir, portanto, é abrir mão dos pertencimentos em nome das misturas, da
flexibilidade. Desta forma, seremos capazes de inventar novas relações, produzir
deslocamentos e criar possibilidades.
Se a imitação inicia o conhecimento, este, em compensação, irrompe
sobre o corpo, torna-o mais flexível e reanima-o para dançar um pas-
de-deux com a inteligência. Se for verdadeira e intensa, qualquer
meditação funciona como tratamento: o pensamento propicia a saúde,

102
a pesquisa traz o bem-estar saudável, a beleza envolve a invenção com
sua auréola de luz generosa e calmante, da mesma forma que a
ausência de idéias pode tornar qualquer um feio, áspero, ciumento,
sofredor e velho. [Idem, p. 101]

2.3 – As potências do corpo: suas conexões heterogêneas

Para Serres, apenas o corpo pode se reinventar enquanto que a simples repetição,
a reprodução do mesmo, fica por conta do pensamento. No livro Ramos, ele inicia o
livro escrevendo sobre este “Formato-pai”, ao qual nos submetemos, ao qual nos
“formatamos” para poder existir. A imitação teria, então, este primeiro papel: de
repetição. Porém, a invenção que se segue não pode abrir mão desta “imitação”, na
medida em que, é a partir desta imitação, que podemos inventar. Mas, a invenção não
advém do pensamento, e sim, da superação do corpo. Neste sentido, o corpo é capaz de
se misturar às coisas para que se torne, cada vez mais, si mesmo. Este movimento de
exteriorização do corpo, Serres denomina de exodarwinismo.

É importante que possamos nos referir a tal exodarwinismo como uma forma de
transformação do corpo, possível a partir do que se denomina de neotenia, como já
dissemos anteriormente. Porém, é importante que possamos nos aprofundar um pouco
mais nas questões trazidas por este importante conceito para que possamos compreender
a relação que Serres estabelece entre o corpo e sua exteriorização, representada pelo que
estamos denominando aqui de exodarwinismo.

A neotenia seria, nas palavras de Stephen Jay Gould: “um abrandamento


acentuado das taxas de desenvolvimento”. [GOULD, 1989, p.94] Este abrandamento faz
com que os seres humanos, de alguma maneira, nunca se desenvolvam “até o fim”. O
que significa dizer que os humanos não apresentam uma “formatação” final a qual estão
submetidos os outros animais. Em outras palavras, os humanos multiplicam suas
potências por não finalizar nenhuma delas. O próprio tempo de maturação do bebê
ocorre, também, fora do corpo da mãe, o que possibilita este bebê a aprender muito mais
coisas, a se diversificar de maneira muito maior do que os outros filhotes. Não
aprendemos comportamentos estereotipados, mas, criamos relações múltiplas. Este
conceito, em biologia, nos dá a exata dimensão do que queremos dizer aqui: que
somente nós, humanos, somos capazes de nos metamorfosear. Nós imitamos outros

103
homens, os animais e as coisas. Ao fazer nosso corpo tornar-se pedra, bicho ou planta,
estamos exercitando nossa capacidade de pensar pela invenção e não pela repetição.
Histórias nas quais todos os seres vivos se comunicam, as fábulas
ensinam coisas profundas. La Fontaine começa seu último livro com
“Os companheiros de Ulisses”; metamorfoseados em animais, eles
não querem mais voltara ser humanos, admitindo com isto que
encontraram, finalmente, seu ponto de equilíbrio definitivo, seu
verdadeiro caráter, sua paixão fundamental. Eis como e por que os
homens podem transformar-se em animais, por que seu próprio corpo
imita uma espécie e as fábulas escrevem sobre eles. (...) por meio de
uma deliciosa cinestesia, essa adaptabilidade quase infinita os
[crianças] faz compreender interiormente as operações da varinha
mágica, menos ilusórias do que virtuais, menos inspiradas pela magia
do que por uma pedagogia do possível. [SERRES, 2004, p. 52/53]
Nossos corpos são determinados para que sejam produzidas diferenças. Não
obedecemos aos nossos instintos não porque somos condicionados à cultura, mas,
porque nosso desejo é branco, como a alma26, é puro transbordamento.
Nossa espécie sai, esse é seu destino indefinido, seu fim sem
finalidades, seu projeto sem objetivo, sua viagem, não, sua errância, a
escência de sua hominescência. Saímos de nossas produções e
fazemos com que elas saiam de nós; nós produzimos e nos
autoproduzimos por meio desse incessante movimento de saída.
[Idem, p. 160]

Sair, buscar novas relações, desdiferenciar-se, desajolar-se. O corpo não cessa de


buscar novas relações, de experimentar. Por mais que estejamos imersos nas coisas e no
mundo, o corpo humano insiste em afastar-se daquilo que poderíamos denominar de
“meio”, na medida em que cria novos meios, se afasta da inevitabilidade. Neste sentido,
nós, humanos, nos afastamos, mesmo que lentamente, daquilo que denominamos de
“seleção natural”. O que estamos querendo mostrar é que, ao produzirmos, cada vez
mais formas de diferenciação, somos capazes de produzir nosso próprio meio. Vale
lembrar que o que estamos dizendo aqui não é que o homem esteja imerso na cultura, ao
contrário, o que estamos sugerindo aqui é que, na verdade, não há humano que não se
constitua numa íntima relação com as coisas. Em outras palavras, a fragilidade humana
só permite sua sobrevivência na medida em que “produz” um mundo de relação com as
coisas que não está, de forma alguma, dado.

26
Sobre tal questão, é importante que nos remetemos ao texto O Mal-estar na Civilização, no qual Freud
imputa à cultura o papel de controle das pulsões. Porém, mesmo que acreditemos que à um
acondicionamento do homem à cultura, podemos também pensar que, inversamente, é o próprio homem
que produz as formatações culturais.

104
A técnica como exodarwinismo

Em seu texto Sombras de Lamarck, Gould nos incita a pensar numa relação
entre Darwin e Lamarck que pode nos ajudar a compreender o que estamos tentando
dizer: que há uma diferença fundamental entre aquilo que Darwin compreende como
evolução em contraposição ao pensamento de Lamarck. A diferença fundamental
consiste em apontar um certo determinismo em Lamarck que não se apresenta em
Darwin. Em outras palavras, a seleção natural, para Darwin, não é determinada, o
indivíduo não é capaz de modificar sua própria estrutura para se adaptar ao meio, esta
adaptação é absolutamente aleatória27. Por outro lado, para Lamarck é a própria espécie
que estabelece as mudanças que serão “melhores”, adaptativamente falando. Mesmo
que esta forma de pensar seja preferencialmente aceita, na medida em que dá aos
organismos uma certa autonomia em relação à sua produção, não se trata de afirmar
uma direção privilegiada que se estabeleceria a partir de uma certa “vontade” do
organismo.

Por outro lado, Gould nos faz pensar que esta forma de compreender a evolução
ganha força na medida em que é responsável por uma explicação da vida “mais
adequada” ao nosso pensamento.
(...) a mais importante razão para o atrativo contínuo do lamarckismo,
reside na sua oferta de algum conforto contra um universo desprovido
de significado intrínseco para as nossas vidas. Reforça dois dos nossos
mais profundos preconceitos – a crença de que o esforço deve ser
recompensado e a esperança num mundo inerentemente propositado e
progressivo. [GOULD, 1989, p. 71]
Desta maneira, a teoria de Lamarck apresenta um sentido da vida que é anterior, que é
prévio, que antecede à existência. É como se, desde sempre, houvesse uma orientação
da vida para que esta alcançasse a humanidade, que seria a última instância, o ponto de
chegada da evolução, seu mais alto grau.

27
Vale esclarecer este ponto com uma citação do autor: “Os darwinistas referem-se a primeira fase, a
variação genética, como sendo “aleatória”. Trata-se de um termo infeliz, porque não queremos dizer
aleatório no sentido matemático, de igualmente provável em todas as direções. Simplesmente,
entendemos que a variação ocorre sem orientação preferida nas direções adaptativas.” [GOULD, 1989, p.
67]

105
Porém, esta forma de pensar, segundo Gould, encontra sua legitimação não no
campo da biologia, como forma de explicação para a evolução das espécies, mas, como
forma de explicação de uma outra espécie de “evolução”, a evolução cultural.
A evolução cultural progrediu segundo taxas das quais os processos
darwinianos sequer podem começar a aproximar-se (...) A evolução
cultural humana é de caráter lamarckista, em forte oposição à nossa
história biológica. O que aprendemos numa geração é transmitido
diretamente pelo ensino e pela escrita. [Idem, p. 72]
Da mesma forma, Serres nos dirá: “Quando temos acesso à técnica, inventamos uma
intenção que substitui a ausência de causas finais.” [SERRES, 2005, p. 65] Assim,
podemos pensar que há uma forma de operar que, de alguma maneira, se sobrepõe à
forma darwiniana de adaptação. Mesmo que os conceitos sejam diferentes, a idéia
central é a mesma: apontar para uma forma de mudança que opera segundo padrões
diferenciados deste apresentado pelo evolucionismo tradicional. Mesmo que Gould
argumente que a força do lamarckismo esteja em nossas crenças, também podemos
dizer que isso ocorre porque nossa forma de ação no mundo segue este padrão.

As conseqüências que podemos retirar do que foi exposto acima é que, diferente
das outras espécies, nós, humanos, somos capazes de criar nosso próprio meio, além de
produzir e reproduzir novas formas de relação com este mesmo meio, que não pode
mais ser chamado desta maneira, na medida em que nos afastamos, de maneira
inexorável do acaso. “Em virtude da inadaptação, enfrentemos a morte e, por isso,
inventamos as culturas ortopédicas que, em caso de urgência, podíamos mudar à
vontade, sem esperar do banco genético uma adaptação problemática e longa que coloca
qualquer espécie em perigo de extinção.” [SERRES, 2005, p. 66] Assim, o aprendizado
cultural, que passa através da gerações, se apresenta como uma intenção e uma escolha,
diferente da evolução aleatória e indeterminada.

As reflexões feitas acima nos fazem pensar que, mesmo que a natureza aja de
maneira “lenta e arriscada” na criação de formas de relações “aleatórias”, a espécie
humana criou uma maneira de produzir relações bastante peculiar, que denominamos de
técnica. Neste sentido, há efetivamente algo que é próprio do humano: seu afastamento
da natureza, ou melhor, não há como falar, em relação aos homens, de uma natureza que
não nos remete à técnica. Não se trata de afirmar que o homem “não faz parte da
natureza”, mas de argumentar que, para o homem, não há algo que podemos chamar
estritamente de “natureza”. Latour nos fala de estudos sobre babuínos nos quais os

106
comportamentos destes animais se assemelham muito aos comportamentos “sociais”
apresentados por nós. Para ele, não seria o “contrato social” que nos diferencia dos
outros animais, ao contrário, nesta comunidade de babuínos, o líder deve negociar o
tempo todo a sua posição. Esta posição de liderança é constantemente ameaçada,
constantemente negociada. Portanto, o que diferencia-nos dos babuínos não é a
“sociedade”, mas as formas de mistura, de hibridização aos quais somos capazes, nossa
inserção num coletivo sócio-técnico. Em outras palavras, são necessários muitos outros
dispositivos, que levem em consideração o arregimento de cada vez mais objetos, para
que se constitua um coletivo propriamente humano. Esta questão se aproxima do
pensamento de Serres, na medido em que podemos identificar, nesta questão trazida por
Latour, uma proposta de pensar a técnica como construção propriamente humana, que,
na verdade, nos constitui enquanto homens. Desta forma, esta reflexão trazida por
Latour, se aproxima daquilo que dissemos acima sobre o pensamento de Serres: que a
técnica produz o exodarwinismo, ao mesmo tempo em que produz o próprio sentido da
palavra “humano”.

Porém, gostaria de me aprofundar um pouco mais na questão da cultura, pois,


neste texto utilizamos tal palavra livremente. Portanto, para nos aprofundarmos nesta
questão da cultura, podemos nos remeter, mais uma vez, aos trabalhos de Latour,
principalmente seu livro Jamais Fomos Modernos. Neste livro, o autor discute
amplamente a distinção entre natureza e cultura. Latour nos fala da dupla constituição
moderna: a separação entre natureza e cultura, e a mistura incessante entre estes dois
pólos distintos. Para o autor, o que nos faz ser modernos é, ao mesmo tempo, acreditar
que natureza e cultura são coisas distintas, mas, misturar cada vez mais estes dois pólos,
este seria o paradoxo moderno:
Os modernos, ao tornarem os mistos impensáveis, ao esvaziarem,
varrerem, limparem, purificarem a arena traçada no meio de suas três
instâncias28, permitiram que a prática de mediação recombinasse todos
os monstros possíveis sem que eles tivessem um efeito qualquer sobre
a construção da sociedade, e nem mesmo contato com ela. [LATOUR,
1994, p. 47]
A questão é que os modernos acreditam no dualismo, não apenas no dualismo entre
natureza e cultura, mas, também, em todos aqueles dualismos que derivam deste,
principalmente no dualismo entre sujeito e objeto. Desta forma, acreditam que não há

28
Trata-se aqui do pólo natureza, do pólo cultura e dos híbridos de natureza e cultura, híbridos sócio-
técnicos.

107
possibilidade de se misturar este dois pólos, mas, ao mesmo tempo, a modernidade
produz, cada vez mais, e de forma cada vez mais “sofisticada”, híbridos de natureza e
cultura nos laboratórios. Assim, para Latour, a separação entre ciência e técnica não se
justifica na medida em que a produção da ciência sempre passa pelos laboratórios: “esta
cozinha repugnante onde os conceitos são refogados com ninharias” [LATOUR, 1994,
p. 27].

Além disso, nos mostra que, em última instância, jamais fomos modernos no
sentido estrito, porque, na verdade, as fronteiras entre natureza e cultura nunca foram
“respeitadas”. Como dissemos acima, o que é próprio do humano é, constantemente
“misturar” natureza e cultura. Nas entrevistas que cede à Latour, Serres também nos diz
que as fronteiras entre natureza e cultura, impostas pela modernidade, na verdade, são
tão artificiais quanto aquilo que é posto como “natureza”, ou seja, não é possível falar
de algo que seja estritamente “natural”, em relação aos homens. Porém, a concepção de
modernidade destes autores diverge. Para Latour, ser moderno significa acreditar na
distinção entre natureza e cultura, para Serres, ser moderno é inaugurar “um novo
pensamento”. Para ele, nada mais arcaico do que recomeçar, do que dizer que antes
deste pensamento, tudo era “antigo”. Latour nos diz:
Na minha opinião, estamos numa falsa pista, porque “moderno” para
mim não quer dizer novo, modernista, modernizador. Tomava-o no
sentido mais filosófico. Tornar-se moderno é fazer a revolução
copernicana duas vezes, separando o passado do presente, separando
absolutamente o mundo conhecido do espírito que conhece, é o
sentido que Kant lhe confere no seu prefácio. Para o dizer de uma
forma mais antropológica, é separar absolutamente o coletivo e o
mundo, digamos, Baal e Challenger. [SERRES, 1996, p. 196/197]
Por outro lado, ao misturar o sacrifício do deus Baal e o acidente da Challenger, Serres
executa exatamente a mesma mistura a qual Latour se refere. Trata-se aqui de pensar
que, num sentido mais amplo, Serres, como Latour, “jamais foi moderno” porque não
acredita na distinção moderna. O exemplo dado aqui é bastante significativo, na medida
em que mostra que Serres, ao comparar a explosão da Challenger e o sacrifício ao deus
Baal, nos mostra que, mesmo que estes dois acontecimentos sejam tão distintos, na
verdade, se assemelham, na medida em que repensamos a distinção moderna entre
ciência e religião, por exemplo. Para Serres não importa a intenção manifesta, neste
caso específico, a colocação do objetivo para o sacrifício, mas, o fato, despido destas
intenções, mostrado como um acontecimento que acarretou conseqüências semelhantes.
Por isso Serres não respeita a distinção moderna, pois, independente das intenções,

108
trata-se de sacrifício humano, na medida em que se acredita que colocar em risco vidas
humanas, serão alcançados objetivos “mais nobres”, nos dois casos.

Dizer que nós, humanos, misturamos natureza e cultura é dizer que somos
constituídos a partir desta mistura. Em relação aos homens, em última instância, vale
dizer que não há humano sem mistura, portanto, o corpo é marcado por estas relações,
por estes “aprendizados”, pelas conexões incessantes entre natureza e cultura, pela
nossa capacidade de nos misturar às coisas. Neste sentido, podemos dizer que a
evolução humana, quando se distancia da natureza e se torna propriamente um coletivo
sócio-técnico, estabelece novas regras e normas de funcionamento, mais do que isso, o
que é próprio do homem é exatamente esta mistura. Serres, em seu livro Ramos dá um
nome para isso: naturança:
Recentemente descrito, o verdadeiro conhecimento transubstancia seu
objeto; tendo começado pela incorporação, ele termina quando, por
meio da externalização, inventa; uma outra forma é extraída do
corpo.(...) Transformador e motor de metamorfoses ele [Homo
sapiens] produz meninos e meninas, pensamentos e signos,
instrumentos e máquinas... novos... todos eles criados por
contingência. Naturantes, mundo e homem gritam de dor e de alegria
na hora do parto. [SERRES, 2008, p. 177/178]

Por outro lado, a imitação das coisas e do mundo nos dá a exata dimensão de
nossas potências, pois, pela experimentação brincamos com os limites, traçamos novas
fronteiras. A extensão do corpo, proposta pela relação que este estabelece com as coisas,
dá ao corpo uma infinidade de possibilidades. O que queremos dizer aqui é que o que
Serres denomina de exodarwinismo nada mais é do que esta possibilidade do corpo
“projetar-se”. O corpo só é capaz de diferenciar, da maneira como constatamos hoje nas
várias culturas, como dissemos anteriormente, pela desdiferenciação original.
Desprovidos de limites, desde nosso próprio começo, encotramo-nos
imprevisíveis em um meio ambiente cuja singularidade nunca se
adapta à nossa abertura. Não é sem razão que essa infinitude nos
provoca medo. De onde viemos? De uma integral definida de
bifurcações contingentes ao longo da Grande Narrativa. Quem somos
nós? Inacabados. Indefinidos ou sem definição. Para onde vamos? É
nessa desdiferença que uma história imprevisível e improvável se
inicia. [SERRES, 2005, p. 61/62]
Não se trata propriamente de relativismo, mas, como nos diz Serres “de universalidade
da natureza corporal” [Idem, p. 62]. Isso significa dizer que é o corpo que se apresenta
sempre de forma desdiferenciada, o que possibilita suas metamorfoses.

109
Além disso, é exatamente com esta palavra: exodarwinismo, que Serres nos
propõe uma forma de compreender estas diferenciações. Esta palavra, para ele, significa
uma forma de relação que o corpo estabelece com as coisas que não pode ser
determinada a priori. Neste sentido, Serres inaugura uma discussão sobre a técnica que
nos é fundamental para entender a relação entre corpo e técnica. Tal relação é discutida
como uma forma de evolução acelerada, como nos indica Gould, pois, mais do que uma
questão de herança cultural trata-se de pensar aqui em uma herança “técnica”29. Para
Serres, o exodarwinismo é uma forma de exteriorização do corpo que, ao mesmo tempo
em que o potencializa, o produz. Como não há relação prévia entre coisas e homens, o
uso da técnica e a mistura dos corpos às coisas, nos liberam de muitos dos nossos
“fardos”. A imitação das coisas, mais do que a imitação dos homens, nos liberta porque
nos faz menos previsíveis. A imitação das coisas é de um grau superior, para Serres,
pois, na medida em que imitamos as coisas, nos recriamos. Neste ponto, o aprendizado
pelas coisas se sobrepõe à imitação dos homens porque não busca a repetição
ortopédica, mas a invenção de novas posturas corporais, a liberação do corpo.

Na medida em que nos conectamos com as coisas, nossas funções se alteram, se


ampliam, se transformam. O uso habitual de nossos órgãos se alteram quando estes
ganham novas perspectivas na medida em que são liberados de suas funções comuns.
“Nosso corpo se desembaraça e se reduz; como poderia ele engajar-se em novas
aventuras se, durante o caminho evolutivo, não se desfizesse do peso das coisas que já
sabia fazer?” [SERRES, 2004, p. 112] Neste mesmo texto, Serres nos dá um nome para
isso: “aparelhar. Dispersos na natureza, nosso membros dissociados nasceram como
objetos técnicos. O instrumento não é um prolongamento, mas uma objetivação do
órgão” [SERRES, 2004, p. 113]. O corpo compreendido como potência nos possibilita
pensar que a técnica não é algo que possamos “descartar”, mas, uma forma de relação a
qual não podemos nos privar, a técnica produz novos homens, na medida em que são

29
Sobre a questão da técnica, podemos argumentar, com Paula Sibilia que,ao falar da tradição fáustica,
em oposição à tradição prometeica, nos diz: “(...) a tradição fáustica esforça-se por desmascarar os
argumentos prometéicos, revelando o caráter essencialmente tecnológico do conhecimento científico:
haveria uma dependência, tanto conceitual quanto ontológica, da ciência com relação à técnica. Existiria
um “programa tecnológico oculto” no projeto científico, como assinala Hermínio Martins, de maneira que
a sua fecundidade nessa área não seria um mero subproduto da ciência – entendida como um saber que
apontaria, fundamentalmente, para o conhecimento puro e abstrato – mas o seu objetivo primordial.”
[SIBILIA, 2002, p. 47] A questão então se coloca de maneira diferente, pois, não há ciência que não vise
à técnica, no projeto fáustico, pois o alcance da verdade ou do conhecimento não seriam a finalidade
última da ciência, mas, a técnica.

110
produzidas por estes. Por outro lado, as expansões do corpo causam um estranhamento
porque se apresentam como formas não determinadas, como possibilidades de
potencialização e não como formas determinadas de relação. Daí o estranhamento,
mesmo que este seja próprio do corpo:
Nossos corpos são explicados pelas máquinas que já produziram. A
aprendizagem inverte essa aparelhagem. Basta observar essas rodas na
parte inferior do corpo; o corpo as projetou no mundo, mas, fora dele,
o destino e a evolução as ampliaram e desenvolveram tanto que o
corpo não mais as reconhece como suas. [Idem, p. 113]
Esta forma de relação do corpo com as coisas é o que Serres denomina propriamente de
exodarwinismo: “esses aparelhos exteriorizados produzem uma história que denomina
evolução exodarwiniana, como se o próprio darwinismo saísse lentamente de nós, como
se a evolução percolasse em meio a esses objetos.” [Idem, p. 112]

A libertação do corpo não o elimina, como poderíamos pensar, mas, o torna mais
presente. Existem algumas leituras da técnica30 que nos permitem pensá-la como
apropriação do corpo, como forma de controle e captura do corpo. Por esta perspectiva,
o corpo seria minimizado em nome de dispositivos técnicos que o fariam “prisioneiro”,
a técnica seria um dispositivo de “esquecimento do corpo” e não de potencialização
deste. Sabemos que existem vários mecanismos de captura do corpo que operam no
sentido de enfraquecê-lo, porém, menos do que a técnica vemos, como Serres, o
enfraquecimento do corpo como algo que se opera pela sua anestesia. Esta anestesia não
é feita necessariamente pelos dispositivos técnicos, mas, por tudo aquilo que atua como
possibilidade deste esquecimento, como a linguagem, por exemplo. No livro Os Cinco
Sentidos, Serres nos diz: “Temo menos os que vivem drogados do que os que se
submetem à língua. Entregamos-nos ao dito. O inglês diz bem: addicted.” [SERRES,
2001, p. 90] Aqui a questão se desloca da técnica para o uso da linguagem, falaremos
sobre isso no próximo, porém é importante dizer que não se trata de pensar sobre o

30
Dentre os livros que mais criticam a questão da técnica como forma de apropriação do corpo é o livro
Adeus ao corpo de David Le Breton. Por outro lado, Paula Sibilia inicia seu livro O Homem Pós-
orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais com a seguinte epígrafe de Sterlac: “É hora de se
perguntar se um corpo bípede, que respira, com visão binocular e um cérebro de 1.400 cm3 é uma forma
biológica adequada. Ele não pode dar conta da quantidade, complexidade e qualidade de informações que
acumulou; é intimado pela precisão, pela velocidade e pelo poder da tecnologia e está biologicamente mal
equipado para se defrontar com seu novo ambiente. O corpo é uma estrutura nem muito eficiente, nem
muito durável. Com freqüência ele funciona mal [...] Agora é o momento de reprojetar os humanos, torná-
los mais compatíveis com suas máquinas.” Mas, se olharmos do ponto de vista de Michel Serres, o corpo
sempre foi necessariamente frágil, daí sua constituição sempre depender das relações e potencializações
que ele opera.

111
esquecimento do corpo que a técnica produz, mas, sobre o esquecimento do corpo que a
repetição, a ortopedia, seja ela lingüística ou não, produz em nossos corpos. O corpo,
para Serres, é o que é capaz de mudar, de inventar, de criar novas relações, o que o
impede é a repetição das velhas formas e não a transformação e a invenção operada pela
técnica.

Como podemos perceber, para Serres a questão está muito menos ligada à
apropriação de técnicas, ou mesmo ao uso das novas tecnologias e mais vinculada ao
lugar que ocupamos e à reprodução automática destas técnicas. É importante frisar que,
para Serres, não é o corpo que produz anestesia, mas, ao contrário, é o esquecimento do
corpo que nos faz acreditar num aprendizado que não leve em consideração esta relação
que o corpo estabelece com as coisas, uma vez que o aprendizado do corpo é o que nos
traz as inovações técnicas. Em outras palavras, Serres acredita que qualquer
aprendizado que não passe pelo corpo, na verdade é uma forma de anestesia, de
drogadição, do vício em acreditar mais na repetição do que propriamente na criação.
Vocês querem inventar as matemáticas? Mandem Platão para os
diabos e consultem seus corpos; o sublime filósofo declarava que o
escravo ignorante, personagem do Ménon, havia esquecido seus
conhecimentos sobre a geometria enquanto a teoria das Idéias oculta
essa verdade ofuscante de seu autor e de dois mil anos de imitação
servil: todos os corpos a conhecem e cada um deles a ignora. Cegos
aos tesouros corporais, nem sequer enxergamos o que fazem aqueles
que os vêem: os criadores devem suas descobertas a uma fantástica
proprioceptividade, esta capacidade interna de o organismo perceber
os estímulos. [Idem, p. 136]

2.3.2 Considerações sobre o biopoder

Para finalizar este capítulo é necessário que possamos pensar na questão do


poder a partir daquilo que denominamos de biopoder. Tal termo cunhado por Foucault
tornou-se, na linguagem de Latour, um “ponto de passagem obrigatório” quando
falamos do poder. Não poderíamos deixar de escrever sobre esta questão e como Serres
se posiciona em relação e ela – se é que podemos dizer que há um posicionamento
direto de Serres em relação a esta questão, o que duvidamos. Como podemos perceber
em seus trabalhos, Serres não se refere diretamente ao biopoder, não passa por esta
questão, porém é importante falarmos sobre ele na medida em que, de alguma maneira,
é pelo caminho aberto por Foucault que podemos pensar no corpo como potência, pois,

112
se o corpo é passível de ser disciplinado, é porque contém uma potência quase infinita
de elasticidade.

Por outro lado, não se trata de negar as apropriações do corpo operadas pelo
capitalismo, pelo mercado e pelas formas de docilização dos corpos. Porém, como
mesmo nos mostra Foucault, todo poder opera por resistência, ou seja, não há formas de
relação de poder que não apresentem escapatórias, formas de diferenciação. São
exatamente estas formas de diferenciação que dão ao corpo sua maleabilidade e, por
conseguinte, sua própria sobrevivência. É nesta relação de forças que o corpo apresenta
sua potência, pois mais do que real, trata-se de pensar aqui nas virtualidades do corpo,
ou ainda, do corpo como virtualidade, como dissemos alhures, o corpo existe muito
mais em potencial, em virtualidade, do que propriamente no real, e, é esta virtualidade
que lhe dá a liberdade. Para Serres, falar sobre a liberdade nos insere num labirinto de
conceitos filosóficos, porém
Para livrar-se desse labirinto, basta partir do corpo e da singularidade
da vida. Em qualquer circunstância, todo o poder deve ser contido em
benefício de sua integridade; com mãos e braços livres, o corpo tem o
direito de se mover de acordo com sua vontade, deve dispor de sua
natureza e de sua capacidade. Sua virtualidade se opõe a qualquer
poder. A liberdade se define pelo corpo e este por sua potencialidade.
[SERRES, 2004, p. 52]
Podemos perceber que se trata de uma outra maneira de pensar o corpo que não o faz
submisso, apesar de não negar a possibilidade de submissão. O corpo deve ser visto
como potência virtual justamente porque encontra-se nesta relação ambígua entre a
docilização e a potência.

Neste sentido, as questões trazidas por Foucault em relação ao biopoder, à


colocação do sexo em discurso, operada no século XVIII e à transposição da vida em
circuitos de produção e de lucro que emergem no capitalismo, fazem com que os corpos
se apresentem a partir de sua sexualidade, atrelada a dois dispositivos: a demografia e a
medicina. Estas práticas fazem com que os corpos apareçam de forma “domesticada”,
visíveis a partir destes circuitos de dominação. Porém, em meio às práticas de
dominação, há efetivamente um fortalecimento do corpo que é operado pelos
“especialistas”. O corpo, cada vez mais, se conecta com coisas até então inimagináveis,
como aquelas possibilitadas pelos medicamentos, pelas nanotecnologias e
biotecnologias. Para Serres, a questão se coloca de uma outra maneira, pois, o corpo,

113
desde sempre submetido às mais diversas limitações, fardos e doenças, em nosso tempo
foi, finalmente, liberto de um tipo de escravidão que o submetia a um lugar de
inferioridade.
Trespassado por esses pesos e faltas, por toda a excentricidade da dor
e do desejo, nosso corpo não cessa de experimentar uma alienação
essencial. Abandonado à seca e à peste, delas ele jamais se livra. Além
disso, os mais fortes roubam o corpo dos que foram atingidos pela
fome e pelas doenças, como se a ferocidade coroasse os outros males.
Em conseqüência disso, ele se entregou aos reis e aos grupos. Escravo
encarnado da natureza e de sua cultura, o corpo viveu como um servo
ou um colonizado, primeiro servidor, escravo imediato e primitivo
tiranizado pelo espírito, pela alma, pela vontade, pela tradição, pelo
poder e por tantas outras coisas importantes. As filosofias recentes e
as religiões mais antigas esboçam dele esse perfil, cujo aspecto
patético decorre menos, como se crê, daqueles que falaram a seu
respeito do que de algumas de suas condições reais de vida. Sempre e
por toda parte, o corpo reencontra o impossível. Os mais sábios pré-
historiadores consideram mesmo que seu desaparecimento teria sido
menos relevante do que sua sobrevivência. Como então, diante dessas
condições, não colocar sua esperança numa instância diferente? O
corpo sofreu tanto que bem merecia uma alma. [SERRES, 2003, p.
39]
Nesta longa citação, podemos reconhecer que Serres estipula uma relação entre corpo e
poder de uma maneira diferenciada. Para ele, o que ocorre em nossos dias, mais do que
a apropriação dos corpos é sua liberação, a possibilidade de um não sofrimento
inimaginável desde então. Os corpos se apresentam mais livres, de certa forma, capazes
de experimentar novas possibilidades de existência.
As transformações recentes e rápidas tendem a liberar esse servo
multimilenar, cuja escravidão parecia o estado quase natural e que, em
alguns decênios, teve que assimilar imprevisível reapropriação. (...)
Ele se metamorfoseia e testa suas capacidades sem limites no esporte
e a estética, nos desejos e viagens, na alimentação e na reprodução, na
medicina, nas ciências biológicas e nas técnicas do genoma. [Idem, p.
39/40]

Podemos perceber que a preocupação de Serres não se vincula à questão


apresentada por Focault em seu livro História da Sexualidade I: A vontade de saber,
livro no qual Foucault cunha o termo biopoder a partir das investigações sobre a
sexualidade. Neste livro Focault nos diz seu objetivo:
Em suma, gostaria de desvincular a análise dos privilégios que se
atribuem normalmente à economia de escassez e aos princípios de
rarefação, para, ao contrário, buscar instâncias de produção discursiva
(que, evidentemente, também organizam silêncios), de produção de
poder (que, algumas vezes tem a função de interditar), das produções
de saber (as quais, freqüentemente, fazem circular erros ou
desconhecimentos sistemáticos); gostaria de fazer a história destas
instâncias e de suas transformações. [FOUCAULT, 2005, p. 17]

114
Podemos perceber que o distanciamento de Serres em relação à Foucault ocorre por
uma compreensão diferenciada destes dois autores em relação à política. Seguimos esta
pista dada por Serres em seu livro Diálogo sobre a Ciência, a Cultura e o Tempo, no
qual ele nos diz que seu afastamento de Foucault ocorre por uma divergência em relação
à política.

Para que possamos compreender esta diferença, nos remeteremos ao livro O


Contrato Natural, no qual Serres nos apresenta sua distinção entre ciência e direito.
Para ele, tudo o que diz respeito à ciência é a invenção, a criação, o novo, a
possibilidade de mudanças e tudo o que diz respeito ao direito é a repetição, a
formatação, o antigo, a permanência. Ele retoma esta distinção em um livro mais
recente, Ramos, ao contrapor o Formato-pai à Ciência-filha. Assim, tudo o que se
submete à regra, tende a se repetir, a se perpetuar e, conseqüentemente, a impedir a
emergência do novo. Assim, ele contrapõe Egito e Grécia; Roma e Israel: os primeiros
seriam povos do direito, da repetição das regras, os segundos, povos da descoberta, da
inquietação. Os gregos fundam a filosofia, os israelitas fundam a religião, novidades
impensadas na repetição apresentada pelas regras estabelecidas, revoluções do
pensamento que se apresentaram como alternativa àquilo que vigorava como única
possibilidade de existência.

Neste mesmo livro Serres (1994) vai contrapor Anaxágoras e Sócrates para
ilustrar esta mesma questão. Ele nos diz que enquanto Anaxágoras é expulso da cidade,
condenado ao exílio por dizer que o sol era uma bola de fogo e por prever a queda de
um meteoro, ou seja, por trazer para o meio da cidade, das relações sociais, a natureza;
em contraposição, Sócrates, que se ocupa de pensar as virtudes, a postura na polis, as
relações sociais, ocupa o lugar da vigilância, da polícia, em última instância, das
ciências humanas. É no controle das condutas que se encontra o poder de regrar, de
vigiar, seja este qual for, independente dos dispositivos e das épocas. Para Serres, a
política, o direito é, desde sempre, este campo da vigilância, em contrapartida, a ciência
é sempre o lugar da invenção.

Como podemos perceber, é nesta diferença entre direito e ciência que podemos
perceber o deslocamento feito por Serres em relação à questão posta por Foucault: para
Serres trata-se menos de investigar as apropriações do corpo e mais de pensar como,

115
desde sempre, este corpo escapa das apropriações por meio da invenção. Para Serres,
qualquer que seja a intenção da política, esta sempre recai na vigilância e no controle,
que é operado a partir da necessidade de se cumprirem as leis. No livro Os Cinco
Sentidos Serres nos diz que, na medida em que olhar prevalece sobre o tato, a vigilância
prevalece sobre a criação. Mas, escapar a esta vigilância não se apresenta como uma
tomada de posição, na qual nos colocamos em oposição, numa relação de contraposição,
de crítica. Donna Haraway, em seu Manifesto Ciborgue31, nos escreve: “O ciborgue não
está sujeito à biopolítica de Focault; o ciborgue simula a política, uma característica que
oferece um campo muito mais potente de atividades”. [HARAWAY, 2000, p. 69]

Como Serres afirma, não se trata, nem mesmo em relação à Foucault, de uma
crítica, de uma contraposição. Não há posicionamento, portanto, Serres não se coloca
numa interlocução com Foucault. Até mesmo por sua aversão ao debate, à guerra,
improdutiva justamente por apresentar posições, contraposições. Porém, podemos
pensar que, a partir da apropriação operada pelas ciências humanas, também
apresentadas pelas reflexões foucaultianas, o que acontece é uma exacerbação da
suspeita, ao invés de sua eliminação. Sabemos da importância de não sermos
“ingênuos” em relação à apropriação dos conhecimentos, sejam eles quais forem, pois
“qualquer ingenuidade progride na suspeita” [Idem, p. 36].

Para Serres, esta discussão nos afasta de nossos objetivos: seguir as


relações, buscar os encontros no momento em que são produzidos; compreender como
estas relações ocorrem e como podemos engendrar novas formas de existência a partir
disso. Trata-se de apontar para a própria flexibilidade do corpo, uma vez que, para
Serres, a denúncia, a suspeita “(...) constitui a mais velha ocupação do mundo. As
coletividades ainda privadas de objetos, por sua própria vontade ou pela crueldade dos
outros, entregam-se às delícias da polícia, à prisão política, condenam-se ao inferno das
relações.” [SERRES, 2001, p. 36]

Em última instância, tudo pode ser capturado e o corpo, justamente por portar
sua brancura, não escapa a esta captura. Porém, o risco de paralisia que esta atitude nos
traz, talvez nos impeça de ir adiante, de buscar efetivas potencializações do corpo. A

31
Falaremos melhor sobre a proposta de Haraway na conclusão, mas aqui, queremos apontar apenas as
semelhanças em relação ao posicionamento sobre o biopoder. Cf. HARAWAY, 2000.

116
vigilância opera em detrimento da potência. “O método, nas ciências humanas que só
tratam de relações, segue a suspeita, policial ou inquisicional. Espiona, segue, sonda as
entranhas e os corações. Faz as perguntas e suspeita das respostas, nunca ele se
questiona sobre seu direito de agir assim.” [Idem, p. 37] Neste sentido, as ciências
humanas são, para Serres, ao mesmo tempo, o melhor e o pior caminho, pois, ao mesmo
tempo em que é o operador da vigilância, é também aquele que vê o corpo em sua
potência criadora, pois, para Serres, são as ciências humanas que lançam novos focos de
luz sobre as coisas e sobre as relações. Não há predominância de nenhuma ciência sobre
qualquer outra, desde que cada uma lance luz em determinados lugares que foram
deixados à sombra. Trata-se de multiplicar as formas de conhecimento, de dar voz
àqueles que a perderam. Mas, isso não significa inverter as hierarquias, mas, implodi-
las, subverter a ordem sem criar uma nova ordem. A entrada das ciências humanas em
cena não é apresentada por oposição, mas, por conexão. Novas formas de compreensão
do corpo são geradas em conjunto, novas potências são trazidas à tona. As ciências
humanas se posicionam antes da vigilância, numa forma narrativa. Apresentam-se como
uma possibilidade, dentre outras, de narrar nosso mundo, de seguir as conexões e não de
denunciá-las.

É nesta dupla constituição que podemos compreender as ciências humanas:


como denunciadoras e como libertadoras, que nos reencontramos com Canguilhem32,
quando num artigo sobre a psicologia ele nos diz que, saindo da Sorbonne, ao subir,
encontramos o Pantheon, ao descer, nos deparamos com a Gabinete de Polícia. É
exatamente neste duplo caminho que as ciências humanas se encontram: ou se
apresentam como formas de potencialização, seja do corpo, seja de produção de
dispositivos que possibilitam novos posicionamentos; ou serão mais um dos
instrumentos utilizados para a dominação, seja dos corpos, seja de qualquer
possibilidade de potência inovadora.

Neste capítulo, foi possível pensar a relação entre corpo e potência para
compreendermos mais uma faceta do corpo, apresentado aqui como potência branca,
desdiferenciação. Buscamos compreender o aprendizado do corpo a partir do
mimetismo e como ocorrem transformações nesta forma de aprendizado. Isto nos

32
Cf. CANGUILHEM, 1972.

117
permitiu refletir sobre as metamorfoses do corpo, sua maneira de relação com as coisas
a partir do que Serres denomina de exodarwinismo. Pudemos também pensar sobre as
apropriações da potência do corpo e como devemos buscar alternativas que ajam no
caminho da potência. Nosso posicionamento aqui se delineou como uma proposta
política, porém, sem definições partidárias, sem defesa das oposições, sem luta, seja
pela igualdade, seja pela contraposição.

No próximo capítulo, o foco será mudado: apresentaremos uma forma de


compreender o corpo que pense em suas relações de entrada e saída, sua constituição
histórica e sua forma de relação, seja no tempo, seja no espaço. Para tanto, será
necessária uma reflexão sobre os códigos, a informação e sua relação com o corpo.
Buscaremos refletir sobre a questão do código a partir de alguns conceitos, como
negociação, translação e transubstanciação. A partir daí, será discutida a questão do
sentido, de como podemos pensar este corpo com algo que se apresenta numa unidade
de sentido. Porém, esta unidade será questionada, posta como algo que está para além
da linguagem. O corpo, portanto, não se apresenta como pura tradução lingüística. Mas,
esta é apenas uma das maneiras do corpo se apresentar, mas, que não esgota suas
potências.

Por último, mas não menos importante, será trazida para nossas reflexões a
questão da narrativa. Esta será pensada sob o crivo da história, não de uma história
linear, determinista, inexorável, mas, de uma história tecida por relações. Uma história
construída como a tapeçaria de Penélope, sempre passível de ser refeita, de ser
rearranjada. Desta forma, o corpo-narrativa é este que se constrói num tempo e num
espaço localizáveis, numa construção que leva em consideração os desvios, os
percalços, os relevos do caminho. Uma história topológica, errante, à deriva. Porém,
esta deriva não permanece constante, ela se estabiliza, cria cenários, paisagens. Assim, o
corpo não é permanentemente instável, mas, cambiante, sujeito à modificações, mas
também diferenciação.

118
Terceiro Capitulo: Corpo-narrativa

Hermes, o mensageiro, traz consigo,


primeiro, a clareza nos textos e signos
herméticos, ou seja, obscuros. Uma
mensagem passa lutando contra o ruído
de fundo; também Hermes atravessa o
ruído em direção ao sentido.
Serres

No capítulo anterior, traçamos um caminho no qual o corpo se apresenta como


potência, desdiferenciado. Tal possibilidade delineou o corpo como brancura, que se
metamorfoseia nas várias formas de mimetismo que o possibilitam sua diferenciação.
Estes aprendizados, que se iniciam com a repetição, com o mimetismo, se expandem e
possibilitam ao corpo novas posturas e novas relações. Esta reflexão, como é de se
esperar, não esgota as possibilidades do corpo. Neste capítulo, o corpo será traçado
como narrativa, o que não significa dizer que podemos compreender o corpo como
linguagem. As relações entre corpo e código e corpo e linguagem são pensadas de tal
forma que não há propriamente uma decodificação, mas, negociações, translações e
transmutações. Estas são feitas de diversas formas e em diversos níveis, o que nos faz
pensar nas trocas do corpo, a constituição de sentidos diversos que enlaçam o corpo,
que o fazem emergir.

Por último, é possível pensar a constituição do corpo em suas relações históricas,


em seus traçados e enlaçamentos locais. O corpo, sob tal perspectiva, é algo que se
constrói historicamente, o que também não significa dizer que o corpo se reduz a suas
relações locais, ele também se constitui globalmente. No livro Hominescências, Serres
nos dirá que as mudanças que fazem o corpo perdurar no tempo, que aumentam o tempo
de sua existência, tornaram o corpo mais forte e da mesma forma, mudou as relações
deste corpo com a própria vida. Portanto, as mudanças que se iniciam de maneira local
se transformam, criam novas relações e se estabelecem de maneira global. O corpo,
portanto, não se apresenta apenas em suas microrelações, ele também se constitui
historicamente, de maneira global. Portanto, é nesta tensão que podemos compreender o
corpo: local e global.
119
Portanto, devemos nos voltar agora para a questão da permanência do corpo, na
medida em que há uma diferença entre o que faz um corpo se manter e o que faz este
corpo perecer, seja no tempo, seja no espaço. Em outras palavras, não são todas as
conexões que fazem o corpo se perpetuar, algumas conexões o despontencializam e, em
última instância, o desfazem. O corpo, como vimos, é conexão, desta forma, podemos
pensar que o corpo, ao mesmo tempo em que se diferencia, também necessita das
relações com sua exterioridade para manter seu “equilíbrio longe do equilíbrio”. Estas
relações pressupõem formas de decifração de códigos, implícitos em toda forma de
transformação de uma matriz de informação em repetições do modelo decodificado. Em
outras palavras, a possibilidade de replicação de um mesmo modelo, a partir de um
número finito (e limitado) de elementos, é o que determina, ao mesmo tempo, a unidade
de funcionamento de um corpo, sua diferenciação de um meio externo e sua
perpetuação no tempo, sua duração. A partir desta proposta, devemos refletir sobre o
que estamos aqui entendendo como código e como Serres relaciona o código e o corpo.
Nesta reflexão, é importante pensar o problema da tradução do corpo em um
determinado código, suas possibilidades e limitações.

Num segundo momento será traçado um caminho, em certa medida, diferente do


caminho apresentado anteriormente. Se antes o que estava pressuposto era a própria
constituição do corpo a partir do código, nesta parte do texto a compreensão do corpo
ganha novas nuances, acrescentadas pela questão da relação entre linguagem e corpo.
Esta relação não está pressuposta na questão anterior, porém ela emerge como problema
na medida em que o próprio corpo se torna “alvo da representação”, na medida em que
ocorre um deslocamento da questão: se tudo pode ser pensado como decifração de
códigos, então o corpo pode ser visto como pura representação de um código
estabelecido: o código genético. Esta maneira de reducionismo, no qual a informação
prevalece em detrimento do que é constituído por esta forma, nos leva a pensar o corpo
como representação Porém, como vimos antes, os encontros que o corpo estabelece com
as coisas o potencializa, então, ele não pode ser pensado como puro representação de
códigos. Desta maneira, os códigos poderiam ser pensado como mais uma potência,
como mais uma maneira do corpo se apresentar a partir de determinadas conexões dadas
por este código.

120
Por outro lado, a representação do corpo produz um distanciamento deste que já
insere nas nossas reflexões uma outra forma de pensar o código: a possibilidade de
pensar o código como linguagem. A linguagem sim, aparece como representação, como
forma de redução do corpo ao código. Vale lembrar que, ao contrário do código, o
corpo pensado como linguagem já possui um distanciamento, uma busca de totalização
que, em certa medida, é pensada “de fora”. O que estamos tentando dizer é que a
linguagem já se apresenta como uma forma de totalização do sentido do corpo que se
apresenta a partir de um outro, que o nomeia. Podemos observar isso, inclusive, com a
própria palavra “corpo”, totalização (exterior) e redução de uma experiência em um
determinado conceito que o significa, mas, ao dar significado, a linguagem também
deixa de fora uma parte da potência do corpo.

Em outras palavras, o sentido do código será transformado, deslocado, para


abarcar a linguagem, não apenas como troca de informação – idéia implícita no próprio
conceito de código – mas, como possibilidade de produção de sentido. A linguagem não
é apenas aquilo que nos possibilita a comunicação – ou mesmo a decodificação – mas é
também o que nos faz relacionar coisas e palavras. A linguagem amplia as
possibilidades das coisas na medida em que acrescenta a estas a suavidade de suas
relações. Assim, podemos dizer “faca” e tornar este objeto simbólico, sem o risco do
corte. A linguagem efetua uma “suavização das coisas” e, conseqüentemente, dos
corpos, pois ela nos possibilita falar, compreender, relacionar, sem o risco da dureza, a
palavra torna as coisas etéreas, abstratas. Portanto, para Serres, o corpo não é
representação da linguagem, mas a linguagem pode se constituir como uma forma de
potencialização do corpo, dentre outras, na medida em não reduza o corpo à
representação mas, suavize as relações para aumentar as potências do corpo. Portanto, é
na mistura entre o que ele denomina o “duro” e suave1, que também mesclamos nossos

1
Quando aparece o termo francês doux, ou mesmo douce, traduziremos sempre pela palavra suave, a
partir de uma orientação dado pelo próprio Serres no texto La Philosophie que se encontra em seu livro
Petites Croniques du Dimanche Soir 2: Je croix que la culture, aujourd’hui, est vaincue parce qu’elle est
douce – au sens de soft. Portanto, é neste mesmo sentido que será utilizada a palavra douce. Além disso,
para entendermos o que são o dado e o suave, vale lembrar as palavras de Serres: “O dado que se dizia
bruto pertence às vezes, nem sempre, à escala entrópica: distende os músculos, rasga a pele, arde os
olhos, trespassa o tímpano, arranha a garganta, ao passo que o dado na linguagem se apresenta sempre
suave.” SERRES, 2001, p. 110. Sei que há uma perda significativa na relação entre os sons das palavras
donné e douce, porém, para preservar o sentido nos arriscamos a perder a musicalidade.
121
corpos ao mundo. Desta forma, o próprio corpo é esta mistura, esta relação entre o duro
e o suave:
Suavidade aplicativa e dureza material fazem uma sensível
distinção, sensivelmente colocada fora da linguagem. Claro,
ela vem da ciência e, portanto, da linguagem e do aplicativo,
mas embora a enunciemos na língua da energia,
termodinâmica ou teoria da informação, o corpo a recebe ou
a sofre pelas coisas. Ele sabe tacitamente a suavidade do
sentido, que o discurso não esfola a retina, nem as costas
nem a pele. (...) O corpo conhece esta diminuição, melhor,
vive como se conhecesse, ou, melhor ainda, sobrevive ao
conhecimento. Se quiser ignorá-lo, fere-se e morre. Assim
também a vida explora essa distinção. Vai da dureza à
suavidade. Seu impulso é dirigido do material para o
aplicativo, da energia para a informação. O sensível segue
este sentido. O corpo conhece este desvio e sua direção, no e
pelo sensível. [SERRES, 2001, p. 110]
Neste sentido, o corpo poderia ser pensado não apenas como um “código a ser
decifrado”, mas, como uma produção que se constitui também nestas negociações entre
a dureza do mundo e a suavidade do dito.

Em terceiro lugar, gostaríamos de ampliar nossas considerações, para poder


abranger a questão do sentido. Desta maneira, o corpo também amplia suas relações,
pois, o sentido, não sendo apenas lingüístico transforma o corpo em possibilidades de
negociação muito mais amplas, pois o corpo não se expressa como linguagem, mas, se
metamorfoseia em sentidos múltiplos, sejam eles lingüísticos ou não. Vale lembrar que
a proposta de pensar a relação entre o mundo e a linguagem nos convida a pensar o
dado como dom2, numa relação entre os sentidos e as coisas na qual a linguagem, ao
traduzir as coisas, sempre deixa escapar a abundância destas. O dom nos remonta à
questão do toque, da relação, pois o dado nada mais é do que a possibilidade do toque,
que Serres denomina de dom. É como se o dado, como dom, fosse muito além da
linguagem possível, o dom se apresenta como transbordamento, como possibilidade,

2
Serres nos apresenta uma passagem muito bonita sobre esta relação entre o dado e o dom: “O dom não
corresponde a nenhuma obrigação: o doador não o deve, ao recebedor ele não é devido. Poderia chamar-
se o dado. Salve, o corpo cheio de dados gratuitos, por ele recebidos como dons do mundo. O que entra
pelos sentidos ou por eles no corpo não se apaga nem em dinheiro nem em energia ou informação, nem
em moeda de qualquer espécie, assim concordamos em chamá-lo dado.” [2001, p. 207] Ou ainda: “O
corpo recebe a gratuidade. O mundo a dá, desinteressado, não pede que lhe retribuam, não espera o
“contradom”, não tem balança, nem faz balanço. Nossos sentidos não lhe devolvem nada, não podem
restituir nada à fonte das belezas dadas. O que poderia o olho devolver ao sol ou o palato à vinha
d'Yquem?” [Idem, p. 217]
122
intrínseca às próprias coisas, de dar-se. É na conexão heterogênea entre linguagem e
coisa que podemos perceber tal abundância:
A metalurgia das ligas, desde a idade do bronze, a jovem
química que classifica os compostos e os corpos novos pela
recombinação, a farmácia e suas preparações que adicionam
os específicos para aumentar a eficácia dos remédios, a
cozinha, padeira ou licoreira, mil práticas todas nobres
misturam desde a aurora dos tempos fluxos diversos em cem
crateras, a quente ou a frio, para o uso ou o prazer, muitas
vezes para o conhecimento. [SERRES, 2001, p. 163]

Por fim, mas não menos importante, discutiremos a questão do corpo narrativa.
Buscaremos alguns caminhos, ao longo deste capítulo, que nos possibilitem pensar o
corpo como narrativa, ao contrário de reduzi-lo, seja à informação, seja à linguagem.
Esta proposta se apresenta de maneira mais clara nos livros Hominescências, O
Incandescente e Ramos. Nestes livros, Serres irá refletir sobre o que ele denomina a
Grande Narrativa e como o homem pode ser pensado inserido nesta Narrativa, ou seja,
como ele havia dito em sua entrevista à Bruno Latour, são seus livros sobre o tempo e a
história3.

Porém, ao pensar nesta possibilidade, Serres nos chama a atenção para o fato de
que a humanidade (também em relação aos seus corpos) está inserida em várias
narrativas, portanto, ao invés de nos apresentarmos como formas de reprodução de um
mesmo código, nos apresentamos, como dissemos no capítulo anterior, como um ser
desdiferenciado. Neste sentido, não há como falar de uma história que seja pré-
determinada. A narrativa, para Serres, tem uma característica muito importante: na
origem da tessitura de uma narrativa, não há determinação do seu fim, os encontros e
relações são sempre intercambiáveis, mutáveis. Porém, na medida em que a narrativa
produz suas conexões, seus arranjos e negociações, isto se caracteriza com a rigidez de
um caule, do formato que sustenta todas as ligações. A imagem de Jano, no livro
Ciência em Ação de Bruno Latour nos ajuda aqui:
Incerteza, trabalho, decisões, concorrência, controvérsias, é
isso o que vemos quando fazemos um flashback das caixas-
pretas4 certinhas, frias, indubitáveis para o seu passado

3
Cf. SERRES, 1996, p. 51.
4
Vale lembrar o que significa o conceito de caisa-preta para Latour: “A expressão caixa-preta é usada em
cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu
lugar, é desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber nada, senão o que nela entra
e o que dela sai. (...) Ou seja, por mais controvertida que seja sua história, por mais complexo que seja seu
123
recente. Se tomarmos duas imagens, uma das caixas-pretas e
outra das controvérsias em aberto, veremos que são
absolutamente diferentes. São tão diferentes quanto as duas
faces, uma vivaz e outra severa, de Jano bifronte. “Ciência
em construção”, a da direita; “ciência pronta”, ou “ciência
acabada”, a da esquerda (...) [LATOUR, 2000, p. 16]
Porém a imagem utilizada por Serres é a de uma árvore, na qual o tronco é o formato e
os galhos e ramos se constituem como as bifurcações, possibilidades e alongamentos,
diferenciações e complexificações daquilo que se apresenta como “novo”5. Estas
bifurcações se lançam num movimento de desespecialiação, como dissemos no capítulo
anterior, mas, vale lembrar aqui, que esta forma de “evolução” se torna cada vez mais
imprevisível:
Uma evolução que para mim parece lançar-se em sentido
inverso (...) nos desespecializa, nos desdiferencia e nos
programa na desprogramação, como se retornássemos aos
galhos principais da árvore, até mesmo em direção ao
tronco. Esquecemos a especiação, ou seja, a formação das
espécies? Em seu sentido mais amplo, essa indiferença essa
não-diferenciação resultariam desse tipo de esquecimento?
Esquecemos o mundo e o tempo, esquecemos também o
nosso programa? Posso denominar nossa espécie de Homo
negligens? Desliga-se ela da natureza, negligencia por vezes
a leitura de seu próprio código? Atualmente duvidamos até
mesmo que se trate de um código. Ao obedecê-lo como
autômatos genéticos, outras espécies são capazes de uma
leitura melhor deste código. [SERRES, 2005, p. 60]
Tal proposta tem algumas conseqüências interessantes para nosso trabalho, pois, como
mostraremos ao longo do texto, o corpo pensado como narrativa não pode ser reduzido
nem ao código nem à linguagem pois o corpo se caracteriza principalmente por sua
flexibilidade, por sua potência6. A narrativa então, segue este caminho inverso apontado

funcionamento interno, por maior que seja a rede comercial ou acadêmica para a sua implementação, a
única coisa que conta é o que se põe nela e o que dela se tira.” [LATOUR, 2000, p. 14]
5
Falaremos melhor sobre esta questão do novo no decorrer do capítulo. Sobre a imagem da árvore, Serres
nos apresenta um artigo intitulado L’Arbre et as symbolique no livro Petites Chroniques du dimanche
soir: septembre 2004 – janvier 2006. “Este símbolo tem três características. O élan único, primeiro, a
ejeção do tronco, a unicidade de uma ereção que parte da base e se eleva. Se multiplica, se bifurca,
desabrocha, ocupa o espaço pelas ramificações, pelos ramos e ramagens em todas as direções... Eis o um
e o múltiplo, a harmonia e a diversidade. O élan vital! Em segundo lugar, eis aqui um vivente preso à
terra, com os pés sob a terra, as raízes afundadas na terra, mas que, no mais, traz a cabeça alta, na luz, no
ar e no sol. O material e o ideal. Ela traz mesmo os ninhos e os cantos dos pássaros. Enfim, o melhor, esta
luz a nutre, ela sabe, ela pode fazer matéria com a iluminação! Para suas raízes, matéria quer dizer
madeira, ela faz madeira material dos raios que parecem imateriais. A madeira, a celulose, você sabe que
é de açúcar? De fato, você tem pensado, também, na palavra “raiz”? Todas as palavras tem uma raiz,
como se as palavras tivessem as árvores. Eu creio. Nós temos todas as raízes – terrenas, familiares,
regionais, paisagísticas... – como as árvores e as palavras.” [SERRES, 2006, p. 110]
6
Como foi discutido no segundo capítulo.
124
por Serres na medida em que aponta sempre para a desdiferenciação, para as ramagens,
para a extensão.

3.1 – A questão do código: proposta de pensar o corpo como informação.

Gostaríamos de iniciar esta parte do texto da seguinte maneira:


(...) a humanidade passou bruscamente dos meios e
forças de produção às redes de comunicação; o início do
novo século consagrou a vitória mundial da internet e dos
telefones celulares. Hermes, deus dos intermediários e dos
tradutores, assim como um número incalculável de anjos
portadores de mensagens, passou a assumir o lugar de
Prometeu, o velho e solitário herói do fogo. [SERRES, 2003,
p. 27]
Nestas palavras de Serres, identificamos uma grande semelhança com a questão trazida
por Paula Sibilia em seu livro O Homem Pós-Orgânico: corpo, subjetividade e
tecnologias digitais, pois, neste livro, a autora nos convida a pensar as novas formas de
relação estabelecidas pelo homem a partir das novas tecnologias, como o título sugere.
Em suas reflexões ela nos traz a questão da ciência fáustica, em oposição à ciência
prometeica7:
Na atual sociedade tecnológica, enfim, o antigo prometeísmo
está em decadência. É aqui que entra em cena a outra
vertente filosófica da tecnociência: a tradição fáustica. (...) a
tradição fáustica esforça-se por desmascarar os argumentos
prometéicos, revelando o caráter essencialmente tecnológico
do conhecimento científico: haveria uma dependência, tanto
conceitual quanto ontológica, da ciência com relação à
técnica.
Mesmo que já tenhamos discutido a questão da técnica no capítulo anterior, a retomada
do texto de Paula Sibilia aqui nos propõe menos repensar a relação entre ciência e
técnica, e mais a refletir a mudança de foco em relação à compreensão do mundo
operada por este deslocamento. Tal mudança apresenta duas questões fundamentais: a
primeira diz respeito à relação entre técnica e ciência já dita acima e, a segunda, nos
remete à questão da informação como forma privilegiada de relação entre as coisas,
como acesso exclusivo a algo que poderíamos considerar como “essência” das coisas.

7
Nas palavras da autora: “Hermínio Martins se vale dessas duas figuras míticas da cultura ocidental,
Fausto e Prometeu, para analisar as bases da tecnociência moderna e contemporânea. A tradição
prometéica e a tradição fáustica constituem duas linhas de pensamento sobre a técnica que podem ser
detectadas nos textos dos epistemólogos dos séculos XIX e XX. Após um levantamento minucioso,
Martins conclui que é na segunda dessas duas tendências que se inscreve a filosofia da tecnociência
contemporânea; as suas características “fáusticas” podem ser inferidas dos diversos projetos, pesquisas e
descobertas que brotam da prolífica agenda tecnocientífica de nossos dias.” [SIBILIA, 2002, p. 43]
125
Paula Sibilia argumentará que a informação é a forma última na qual as coisas podem
ser “conhecidas”, decifradas – e, portanto, manipuladas. “Numa perspectiva
perfeitamente alinhada com o paradigma digital, portanto, é a informação que constitui
a “essência do ser” e irá determinar a confusa fronteira entre a vida e a morte.” [Idem, p.
52] Neste sentido, a informação se torna o ponto de partida do qual seremos capazes de
falar das coisas, os códigos e decodificações prevalecem em relação às próprias coisas.
A materialidade esvaece em formas combinatórias de símbolos. O material se
desmaterializa em códigos de informação.

Por outro lado, Serres, na citação que apresentamos mais acima, parece
compartilhar desta idéia, porém, há uma diferença fundamental entre estes dois
argumentos: Serres substitui Prometeu por uma legião de anjos. Isto significa que as
mensagens e os códigos são mais alguns dentre os mediadores, são possibilidades de
ligação e não informações pré-estabelecidas prestes a “incorporarem”, ou seja, prontas
para “ganhar um corpo” que já se apresenta pronto na informação. Não há, nas palavras
de Serres, especificamente uma denúncia ou fatalidade, ou mesmo uma forma
categórica de afirmação do inevitável. Serres busca pensar a constituição de novas
formas de relação naquilo que se apresenta como inovação. Seu ponto de partida é
sempre o que há de transformador nestas novas formas de relação. Em nosso trabalho,
incidiremos mais sobre a relação entre corpo e código, na medida em que esta relação
está sendo produzida, constantemente, em nossa cultura contemporânea.

Pensar o corpo como código, não nos parece ser uma proposta de esgotamento
do corpo, no trabalho de Serres, na medida em que, suas afirmações sobre o código
genético não buscam esgotar os sentidos do corpo, mas, ao contrário, trazer apenas mais
uma das possibilidades de pensar o corpo, como fazemos aqui. Assim, Serres busca
pensar a constante produção de novas possibilidades de entender o corpo a partir das
mudanças ocorridas em nossos dias, ou seja, as possibilidades de escape, de
recomposição, de diferenciação às quais o corpo é capaz, seja como código, superfície
ou potência.

Portanto, pensar o código em Michel Serres, não é denunciar a redução do


homem ao ADN, ao contrário, é buscar uma forma de relacionar código e sujeito de

126
uma maneira que não os reduza um ao outro, mas, pensando o código como uma das
maneiras do corpo se apresentar, uma de suas conexões possíveis, dentre outras. É numa
relação que não está previamente determinada que pensamos a possibilidade de
decodificação do corpo. Pensar o corpo como código não se apresenta como um
fechamento, mas, como uma das muitas “vias de entrada” possíveis. Para que tal
possibilidade se efetue, é fundamental compreender a negociação que há entre o código
e o corpo, sim, porque mais do que decodificação, o que ocorre é uma translação, uma
tradução, que apresenta menos uma forma determinada pelo código e mais uma
negociação que é operada entre corpo e código. Vale lembrar que esta negociação se
apresenta sempre como forma virtual de relação, uma vez que, para que existe um
corpo, não é apenas necessário o código, deve existir também uma forma de
materialidade que se apresente como subjetum, como “suporte material”. Neste sentido,
a própria materialidade implica numa negociação, numa relação de escolhas e trocas,
substituições que fazem com que o corpo seja sempre este “lugar das passagens”, dos
aumentos ou diminuições de fluxos.

Desta forma, não há nenhuma possibilidade de redução, pois, na medida em que


ocorre a translação8 do código em moléculas de proteína, no momento desta translação,
algo é modificado. Além disso, o código não é claro, não se apresenta como algo
límpido, puro, transcrito ponto a ponto, a própria hélice do ADN, com nos lembra
Serres, é espiralada, trazendo assim, a imagem das dobras e desvios, revoluções que se
operam nas voltas da fita de ADN. A própria fita, a ser “lida”, e transformada em
proteína, já apresenta, de certa forma, a metamorfose do corpo, suas negociações e
escolhas, na medida em que se apresenta de forma curva. Em sua origem, o corpo pode
ser pensado como acontecimento, como fato ocasional que necessita de muitos fatores
para sobrevir. Há o que podemos denominar de acontecimento, que não é o encontro
entre coisas pré-estabelecidas, o acontecimento é uma proposta de pensar o surgimento
das coisas a partir dos encontros, e não o contrário:
Causa local, efeito universal; causa física, efeito biológico.
As conseqüências bifurcam-se tanto em natureza quanto em
alcance. O que chamar de acontecimento? Quando causas
conhecidas desenvolvem-se de tal maneira que os efeitos
esperados permanecem homogêneos a tudo aquilo que os
precede e, pela regra clássica da causalidade, a seqüência se

8
A escolha da palavra translação, ao invés de tradução será melhor explicitado no decorrer do texto.
127
insere num formato previsível: as horas se seguem, o tempo
passa, as pessoas entendiam-se ou vivem seu quinhão de
felicidade. Quando, porém, sobrevém um fato colossal, de
efeitos inesperados, em dimensão ou natureza, e que, por
exemplo, desvia a direção do formato monótono das regras
anteriores, nós lhe damos, então, o nome de acontecimento.
[SERES, 2008, p. 114]
Nesta longa citação que se apresenta no livro Ramos, podemos ver como Serres pensa a
questão do acontecimento e, além disso, percebemos que há uma relação muito próxima
entre o que ele diz e o que dissemos sobre a relação entre corpo e código anteriormente.

Ainda neste livro, Serres nos fala, sobre esta questão do acontecimento
mostrando a importância do desvio para que a narrativa ganha uma nova força. O desvio
cumpre o papel da novidade, daquilo que se apresenta como mudança de curso. Para
Serres, sem desvios não há narrativa, daí toda a atenção dada, em qualquer narrativa, até
mesmo nas narrativas lingüísticas, às mudanças de rumo. Assim, Serres nos mostra o
desvio como possibilidade, ao nos dizer que a forma da narrativa, como algo
interessante, que prende a atenção do espectador, se apresenta sempre como desvio:
quando tudo segue um determinado rumo, eis a novidade, é isto que prende os
espectadores numa narrativa, a mudança de curso.
O que existe de interessante? O desvio, o surgimento.
Exceção ao nada: o big-bang; à entropia: a organização; ao
reino bacteriano: os pluricelulares; à posição quadrúmana, a
posição ereta; às mãos sujas que assassinam quem delas
cuidam, Semmelweis9, seguido por Pasteur; às regras
sinistras da violência: o amor raríssimo; à mediocridade, a
obra. O que existe de interessante? A saída da agonia: vida,
pensamento inventivo, calor, amor e coragem benfazeja. O
nascimento, a vitória da vida contingente sobre a morte
necessária. [Idem, p. 129]
Nesta lista apresentada por Serres, podemos incluir também o acontecimento do corpo.
O corpo também se apresenta como uma espécie de clinâmen, na medida em que é neste
desvio de continuidade que o código se transforma em coisa: uma certa forma se
transforma, sai de seu curso, produz um deslocamento. E, o oposto também ocorre, pois,
o corpo também produz o código, também apresenta sua formatação, sua estratégia de
permanência com o advento do código.

9
Semmelweis foi um médico húngaro que, para prevenir a febre puerperal, introdução o método de lavar
as mãos com um tipo de solução antisséptica, depois que os médicos mexiam com cadáveres e antes deles
realizarem os partos, para evitar tal febre.
128
Neste sentido, a relação entre código e corpo não é de determinação, mas como
foi dito acima, de negociação. O corpo não está dado, constituído a priori pela
decifração do código, mas, se constrói na medida em que a decifração é possível de tal
ou qual maneira, numa estratégia de relação que mantém ambas as partes como formas
coerentes de trânsito e transmutação, de trocas intercambiáveis. Neste sentido, os
desvios constituem o corpo tanto quanto o código, na medida em que a relação entre
código e corpo, de uma certa maneira, também representa uma forma de desvio.

Para esclarecer um pouco mais a reflexão feita acima, podemos nos remeter ao
conceito de translação. Tal conceito irá nos ajudar a pensar esta relação entre código e
corpo na medida em que é a translação que nos mostra que, em toda tradução há
mudança daquilo que é traduzido. Em outras palavras, a tradução não é a simples
transposição de algo, de um lugar para outro, qualquer tradução implica uma mudança,
uma maneira diferente de atuação das partes envolvidas. Assim o corpo se apresenta
como tradução do código, na medida em que, ao mesmo tempo em que participa do
código, não se esgota nele. Além disso, o corpo estabelece outras relações, que não
sejam esta com o código, para continuar se mantendo enquanto unidade.

O corpo se conecta, constantemente, com vários materiais heterogêneos para que


se constitua sempre como diversidade, desdiferenciação. Neste sentido, o conceito de
tradução, ao invés de apresentar uma redução do corpo, o potencializa. Podemos
ampliar a tradução, para que este abarque o conceito de translação, pois, além da idéia
de transporte apresentada acima, a translação traz um fator novo: o deslocamento, uma
espécie de desvio no qual, para que haja a tradução, é necessária uma modificação. A
translação nos mostra que o deslocamento sempre deixa algo de fora, e, ao transladar,
também leva algo que não estava dado antes. Aqui fica mais clara a idéia de negociação,
pois, a passagem possui o desvio e é necessária a negociação para que a passagem seja
feita levando em conta a mudança implicada na translação. Assim, além da
decodificação, do transporte, temos ainda o que podemos denominar de deslocamento.
Este ocorre sempre a partir da idéia de desvio, de mudança, torna esta possibilidade
mais forte, mais presente. Porém, para que esta questão fica clara, devemos ter mais
cuidado em definir a translação.

129
Em primeiro lugar, gostaria de pensar a translação da mesma maneira que ela é
pensada nos trabalhos de Latour – que também busca referência nos trabalhos de Serres,
principalmente em seu livro Hermès III, la traduction. Em seu livro Ciência em Ação,
Latour nos define translação:
Além de seu significado lingüístico de tradução
(transposição de uma língua para outra), também tem um
significado geométrico (transposição de um lugar para
outro). Transladar interesses significa, ao mesmo tempo,
oferecer novas interpretações desses interesses e canalizar as
pessoas para direções diferentes. [LATOUR, 2000, P. 194]
Portanto, a própria tradução é ampliada para que o sentido de translação possa abranger
as possibilidades de pensar os deslocamentos, as mudanças, os arranjos. Desta forma,
podemos pensar que o próprio mecanismo de passagem do código ao corpo implica em
deslocamentos que ocorrem no momento da passagem. Tais deslocamentos não se
apresentam de maneira linear, nem mesmo de forma contínua. A translação, portanto,
implica temporalidades múltiplas, seqüências temporais que, da mesma forma, não são
lineares: “Começamos a considerar as alças do ADN como uma sonda temporal”
[SERRES, 2005, p. 295]. Considerar o ADN com algo temporal implica em dizer que,
ao invés da pura decodificação, o que temos é uma forma de duração temporal, que é
produzida no momento do desvio. Além disso, os desvios operados pela translação
apresentam-se também de uma forma espacial, tanto para Latour quanto para Serres, os
deslocamentos significam efetivamente mudanças de posição, o que quer dizer que a
translação não pode ser pensada como uma espécie de “evolução no tempo”, mas, como
uma transformação espaço-temporal.

3.1.1 – A translação como transformação espaço-temporal

Antes de continuar nossas reflexões sobre a questão do código, é necessário nos


ater a como Serres pensa tanto o tampo quanto o espaço, pois, estas questões são de
grande importância para a compreensão do corpo como código neste autor. Serres, em
muitos de seus textos, nos fala sobre o que ele entende como temporalidade.
Primeiramente, podemos pensar o tempo, em Serres, a partir do livro Diálogos sobre a
Ciência, a Cultura e o Tempo. Neste, o autor nos convida a pensar o tempo da seguinte
maneira::
O tempo não corre sempre segundo uma linha (...) nem
segundo um plano, mas de acordo com uma variedade
extraordinariamente complexa, como se aparentasse pontos
130
de paragem, rupturas, poços, chaminés de aceleração
espantosa, brechas, lacunas, tudo semeado aleatoriamente,
pelo menos numa desordem visível. (...)Para explicar estas
duas percepções é preciso, com efeito, clarificar a teoria do
tempo; a teoria clássica é a da linha, contínua ou
entrecortada, enquanto a minha seria antes caótica. O tempo
flui de maneira extraordinariamente complexa, inesperada,
complicada (...). Paradoxal, o tempo dobra-se ou torce-se; é
uma variedade que seria necessário comparar à dança das
chamas de uma fogueira; ora cortadas, ora verticais, móveis
e inesperadas. [SERRES, 1997, p. 83/84]
Nesta longa citação, podemos perceber que o tempo, para Serres não apresenta uma
forma determinada de passagem, não é contínuo. Coisas que aparentemente estão muito
próximas no espaço, podem estar muito distantes no tempo, como também o contrário
pode acontecer, coisas aparentemente distantes espacialmente, podem estar próximas no
tempo. Além disso, a proximidade, mesmo temporal, não é dada pela linha do tempo,
mas por uma temporalidade própria que se caracteriza pelos desvios, dobras e rupturas,
estes desvios ocorrem muito mais pelo significado e pelo sentido que possibilitam as
ligações do que a proximidade.

O tempo, na citação acima, aparece para explicar a maneira de Serres


compreender o tempo. Desta forma, o tempo aparece como uma forma de pensar, de
construir relações que não seriam possíveis sem esta “dobra” do tempo. Bruno Latour
pede para que Serres explique o funcionamento de seus textos, suas passagens, sua
rapidez. Para um melhor entendimento dos textos, Serres fala desta velocidade como
forma de aproximação de idéias que podem ser conectadas não por sua proximidade
temporal, mas, por sua proximidade de sentido. O exemplo utilizado para pensar o
tempo, no caso citado acima, são os estudos sobre Lucrécio, no qual Serres aproxima tal
autor à física contemporânea, à física dos fluidos. Desta forma, não há nenhum
problema em pensar a atualidade de Lucrécio, pois, se o tempo não é linear, poderão
existir aproximações que, aparentemente, estariam muito distantes. O modelo não é,
portanto, do tempo irreversível10 e linear, pensado como tal antes do advento das
ciências modernas, mas, de um tempo no qual as reversibilidades são possíveis na
medida em que são construídas proximidades de sentido. Da mesma forma, pensar o
ADN como temporalidade significa dizer que a própria constância do código não ocorre

10
Sobre a questão do tempo irreversível e da reversibilidade, cf. STENGERS, 2002.
131
de maneira linear e sim a partir de possibilidades de trocas e diferenciações sem as quais
seria impossível a variabilidade dos sistemas vivos.

Neste sentido, a permanência temporal do corpo se apresenta de forma ambígua,


uma vez que, ao perpetuar a formatação, a decifração determinada do código, o faz
modificar, perecer na brevidade da vida; por outro lado e, ao mesmo tempo, faz com
que este código se mantenha como forma virtual do corpo, numa permanência delicada,
pois, neste filamento cabem inumeráveis códigos, muitos sem sentido. O filamento de
ADN, como sonda temporal, se apresenta como nos diz Serres:
A nova sonda abandona qualquer ritmo para entrar na
arritmia: em meio a um alfabeto extremamente simplificado,
as alças do ADN desenvolvem uma mensagem longa na qual
nenhum período se torna evidente, mas na qual entram
milhares de fragmentos destituídos de sentido ou utilidade
manifestos. Pelo fato de associar em mim mesmo um corpo
que tem a duração de um piscar de olhos a um germe-sonda
que acumula esse tempo colossal, um fenótipo de ritmo
curto a um genoma do qual uma parte remonta às primeiras
bactérias e estas aos primeiros átomos, um metabolismo que
pulsa como um coração a um banco de informações sem
duração, minha vida se compõe dos ciclos superficiais
próprios à medida rítmica do tempo que mantém um estoque
no qual sua natureza se concentra? [SERRES, 2005, p. 296]
Fica claro, nesta citação, de Serres, que há uma relação fundamental entre o tempo e
este “código da vida”. Porém Serres termina esta parte do texto com uma reflexão que
ele mesmo responde nas páginas subseqüentes:
Nosso genoma contém um fragmento da evolução, o abismo
obscuro de uma parte de seu desdobramento, de onde surge a
comunidade de todos e a singularidade de cada um.
Começamos a compreender a relação profunda que existe
entre duração e individuação, entre mim mesmo e esse fluxo
colossal que eu acreditava jamais poder alcançar. Idem, p.
297]

A partir do que foi dito acima, podemos pensar que o tempo, tal como é pensado
nos trabalhos de Serres, se apresenta de duas formas diferentes em relação à vida:
primeiro podemos pensar numa relação entre temporalidade e vida na qual a vida se
apresenta como constância, como perpetuação de um determinado equilíbrio adquirido
ao longo de um tempo colossal. Por outro lado, a vida não se apresenta como pura
repetição do mesmo, ela se apresenta como forma de variação e diversidade, dada a
amplitude de possibilidades que são as espécies de seres vivos. Porém, Serres nos diz,
de uma outra maneira, que o que ele considera como temporalidade só se apresenta nos
132
momentos de mudança, de desvio, pois, a repetição, a formatação, suprime a
temporalidade. Assim, ao invés de compreender o tempo como repetição ou mesmo
como algo periódico, trata-se de pensar o tempo como duração, como aquilo que está
fora do equilíbrio, instável. A translação e a temporalidade do ADN se apresentam
como esta possibilidade da vida de variar e, ao mesmo tempo de se perpetuar na
variação. Esta possibilidade dupla é o que enriquece a relação entre corpo e código,
trazendo, portanto, uma forma de translação que opera uma mudança temporal.

Por outro lado, a translação atua como mudança na medida em que organiza
novas possibilidades de arranjos espaciais, possibilidades de combinações que fazem do
código algo que se apresenta de maneira topologicamente variada. O que torna tal
proposta possível é a combinatória de elementos até então distintos e separados. A
combinatória, longe de exibir a simplicidade de elementos que mudam simplesmente de
lugar, exibe uma variedade quase infinita de possibilidades com o aumento de
elementos que se encontram nesta cadeia de combinações possíveis. A própria
linguagem pode ser compreendida desta maneira, pois, há um número finito de signos –
as letras – que, por combinatória, criam um número quase infinito de possibilidades de
sentido – as palavras e as frases.

Portanto, esta combinatória não é passível de reprodução, pelo menos de


maneira simples:
Se trato em conjunto um grande número de elementos, a
probabilidade com que prontamente reproduzirei a mesma
combinação anterior diminui quase em torno de zero. A
seqüência desses estados de coisas não se repetirá a não ser
ao fim de algum tempo inimaginável. A cada
entrelaçamento, surge uma originalidade. Nada mais pulsa
ou gira, tudo vira outra coisa, muda e se transforma: a
seqüência dos cálculos e do tempo se perde de maneira
irreversível. A combinatória produz uma flecha: o genoma
contém o sentido do tempo. [Idem, p. 297]
Aqui percebemos como Serres organiza a idéia de combinatória e a relação espaço-
temporal da translação: o tempo percola, portanto, na medida em que se constituem
combinações, estas não poderão ser “recriadas” pela simples reversibilidade. Além
disso, a disposição espacial, permitida pelas infinitas combinações, aumenta a variação
das relações possíveis. Em outras palavras, antes de se constituir uma determinada
relação, não sabemos como ela será estabelecida, mas, depois que esta relação é

133
estabelecida, o caminho inverso não poderá ser percorrido, sem o risco de mudança ou
perda do que foi constituído. Neste sentido, temos o ADN sendo construído, ao mesmo
tempo, por uma indeterminação anterior e uma necessidade posterior, pelas relações que
já se tornaram possíveis, que se tornaram existentes. O ADN é, desta forma, o percurso
de uma determinada relação, que, antes, poderia não ter ocorrido, mas, depois, torna-se
necessária. Mais uma vez, vemos a imagem da árvore, na qual o nascimento, cheio de
percalços, dá lugar à perenidade de sua força.

A espacialidade também é pensada a partir da idéia de combinatória no artigo de


Luiz Alberto Oliveira Biontes, Bióides e Borgues, pois, ao falar sobre sistemas
complexos, o autor nos diz:
Num sistema complexo, no qual diferentes níveis de
organização estão presentes, quando em um desses níveis
ocorre uma síntese de elementos até então disparatados,
desligados, essa integração de díspares produzirá uma nova
via de atuação que ocorrerá no nível recém-formado, e o
sistema não mais será o mesmo, nem estrutural nem
funcionalmente. A dobra, portanto, cria uma nova relação
dentro-fora: uma nova topologia: quando o contato se
realiza, isso equivale ao estabelecimento de ligações até
então não concretizadas, apenas potenciais, entre os
componentes dispersos originais; assim se daria a formação
(ou reforma) de uma estrutura, o germe da aparição (ou
modificação) de um indivíduo. [OLIVEIRA, 2003, p.
151/152]
A idéia de complexidade e estrutura presentes no texto de Oliveira são também os
pontos presentes no pensamento de Serres. Em sua forma de entender as relações
espaciais Serres utiliza-se da idéia de topologia para esclarecer sua forma de
compreender a vida, ambos pensam a vida como complexidade e estrutura. Porém, vale
esclarecer em que sentido estamos usando a palavra estrutura, uma vez que este
conceito foi amplamente utilizado pelas ciências humanas, principalmente depois da
teoria lingüística de Saussure. Portanto, não se trata do estruturalismo, presente tanto
nas ciências humanas quanto nos estudos de linguagem. Serres, mais uma vez nas
entrevistas concedidas a Latour, nos diz que seu método é um método matemático:
É de origem algébrica ou topológica, oriundo da matemática
das estruturas, nascida neste século. (...) De repente, dois ou
três objetos situados a uma grande distância, anteriormente
sem qualquer ligação, fazem parte da mesma família. Esta
forma de pensar ou de operar faz de quem a exerce um
estruturalista autêntico, mesmo se a palavra perdeu tanto o
sentido original como a sua importância nos métodos.(...) A
vantagem que resulta disso é uma nova organização do
134
saber: toda a paisagem é assim alterada. Em filosofia, onde
os elementos se encontram ainda mais afastados uns dos
outros, esse método parece, a princípio, bastante curioso:
aproxima as coisas mais díspares. [SERRES, 1997, p.
100/101]
Portanto, o estruturalismo não se apresenta como o método que foi apropriado pelas
ciências humanas, mas, como um método, ainda matemático em sua origem. Não se
trata de uma forma de pensar as relações a partir de sua “estrutura”, mas, de repensar a
própria possibilidade de estabelecimento de encontros, de aproximações, de uma
maneira estruturalista, num sentido topológico. A rapidez como característica desta
forma de pensar ao contrário de ser entendida como conexão sem critério de qualquer
coisa com qualquer outra, é entendida, nos escritos de Serres, como uma forma de
eliminar os intermediários (por isso é tão difícil segui-lo):
(...) se a vida é breve, felizmente o pensamento anda tão
depressa como a luz. Outrora os filósofos utilizavam a
metáfora da luz para falar da clareza do pensamento;
gostaria de utilizá-la para exprimir não apenas o brilho e a
pureza, mas também, e sobretudo, a velocidade. Neste
sentido, inventamos neste momento uma nova época das
Luzes. (...) Embora escrevendo x possa querer dizer 1, 2, 3,
o infinito, os racionais e transcendentes, os reais e os
complexos, e mesmo os quaternões, temos aí uma economia
de pensamento. O que você me censura, dizendo: “A
estrutura não basta, é preciso acrescentar todos os
intermediários”, não é um pensamento de matemático. Os
filósofos adoram as mediações, os matemáticos eliminam-
nas de boa vontade. Uma demonstração elegante salta os
intermediários. [Idem, p. 97]
Para Serres, o caminhar é único, é uma forma singular de estabelecer relações,
impossível de ser percorrido mais de uma vez. A demonstração traz em si a abertura de
um caminho, portanto, o método, menos do que repetir caminhos é o que constitui
novas possibilidades de encontro, novas maneiras de estabelecer relações. A
substituição de qualquer elemento por uma variável faz com que as operações sejam
simplificadas. Isto implica em dizer que há uma economia efetiva de construções, de
explicações, de repetições para a produção de novos sentidos.

As considerações acerca do método de Serres nos possibilita pensar que, ao


discutir a questão do código, não é de uma linearidade que estamos falando, nem ao
menos de uma proposta que busca entender a relação entre código e corpo de forma
reducionista, como dissemos acima. Como pudemos perceber, há uma conexão muito
importante entre translação e combinatória, além disso, na própria idéia de translação e

135
no sentido da palavra combinatória, encontramos o caminho para pensarmos a
diversidade e o novo:
A encruzilhada está ali, está dada, mas a escolha é
imprevisível, imponderável, dela só podemos dizer sua
chance. Cada vez que em uma encruzilhada um caminho é
seguido, o dado do acaso rola sobre a mesa da necessidade.
O labirinto seria assim o dispositivo por excelência pelo qual
uma necessidade férrea suporta um acaso inventivo, um
acaso inovador. Uma matriz de futuros (...). [OLIVEIRA,
2003, p. 152/153 grifo do autor]

Portanto, o que está em jogo aqui é menos uma determinação do que uma
potencialidade. O código nos ajuda a produzir, a construir, a transladar na medida em
que se apresenta como um leque de possibilidades, como nos diz Oliveira, uma “matriz
de futuros”. Pelas translações e combinatórias, podemos compreende porque o corpo
não pode ser reduzido ao código, ao contrário, na medida em que o código opera,
produz diferenciações, novos caminhos, novas possibilidades de relação que se
apresentam neste momento da translação, ao longo das relações espaço-temporais do
corpo.

2.1.2 – A questão da comunicação: as trocas do corpo

Como dissemos anteriormente, o código não esgota o sentido do corpo, não


apenas graças às translações e combinatórias, há, além destas contingências, as relações
que o corpo estabelece com outras coisas além do código, mesmo depois que o código é
decifrado. As potências do corpo, como dissemos, operam por diferenciações, pela
desdiferença que nos constitui. O aparente paradoxo pode ser explicado de uma maneira
espacial: o corpo como forma materializada, ocupa um determinado espaço, ou seja,
estabelece limites e bordas. Porém, tais limites não são fechados, são negociados, no
sentido em que o corpo deve constantemente “conquistar” estes limites. O corpo se
diferencia de algo que podemos denominar de “meio” (muito mais no sentido de “estar
no meio de” do que propriamente pertencer a um meio). Na verdade, o corpo se
apresenta como portador de interfaces, interfaces estas que processam relações entre
dentro e fora, que, ao estabelecer e negociar nestes limites, é permitido a este corpo
relações de constância e desestabilização.

136
O que faz com que o corpo se porte como algo desdiferenciado são justamente
as regras de troca que estabelece com as coisas, com o que não é ele mesmo. Tais coisas
podem fazer o corpo se perpetuar, ou, ao contrário, perecer, como apontamos no início
do nosso texto. Portanto, o corpo também se potencializa nas trocas, sejam “reais” ou
“virtuais”, que o fazem instalar a si mesmo e ao seu meio. Neste sentido, o corpo
apresenta formas de “entradas e saídas”, de pertinências e não-pertinências, de
pertencimentos e não pertencimentos. As superfícies corporais, portanto, além de operar
com as afecções, de se configurarem como potência, também têm de lidar com as
trocas, os intercâmbios, na medida em que produzem identificações, formas de relação e
ações que mantém a própria “corporalidade” na medida em que aumentam – ou
diminuem – a superfície.

A troca, nesta proposta de pensar o corpo, se apresenta então como forma de


produzir redes de contato, de dar visibilidade cada vez maior aos pertencimentos através
destes contatos. Não é apenas uma metáfora espacial, é verdadeiramente um
pensamento no qual as superfícies se comunicam. As trocas ocorrem para que o corpo
ao mesmo tempo em que permanece “igual a si mesmo”, seja diferente ao longo do
tempo. Dentre estas formas, encontramos uma que é bastante peculiar, que se apresenta,
em certa medida, como o que Serres denomina de transubstanciação. Esta
transubstanciação, esta passagem, este deslocamento, nós denominamos aqui de
comunicação. Para pensarmos esta comunicação, podemos nos remeter às passagens do
texto de Serres nas quais o autor nos fala sobre a diferença entre a teoria e a informação,
ou utilizando sua própria linguagem, entre os personagens conceituais11 Hermes e
Panoptes. Enquanto a teoria vigia, observa, busca a vigilância das relações, a
informação passa, dá passagem, espalha-se no espaço. O campo da comunicação não se
refere ao olhar, mas à pele, ao contato.

11
Serres nos diz na entrevista com Latour, o que ele compreende ser o trabalho da filosofia: criar
personagens conceituais: “Porque a filosofia cria, para além de conceitos, personagens; o próprio Deleuze
o disse ainda há pouco, melhor do que eu poderia fazê-lo; eis alguns deles: Hermes, o Parasita, o
Hermafrodita, o Terceiro Instruído, o Arlequim.” [SERRES, 1996, p. 105] Em outro livro, Serres ainda
nos diz: “A filosofia aborda, com certeza, o saber abstrato, mas também as sensações imediatas, as
condutas corporais, a própria vida, enfim, as coisas como elas são. Ela inventa nos conceitos do que
personagens: Hermes, o Parasita, o Hermafrodita, o Terceiro Instruído, Arlequim e Pierrô, Atlas, Anjos e
Dominações, o Hominescente e o Incanescente, todos eles convertem-se em personagens que erram pelas
paisagens do mundo, que têm em comum a capacidade de vibrar entre a pessoa e o símbolo, de aliar o
singular ao Universal, de turbilhonar entre os dois estado de coisas que destaquei no começo destas
páginas. [SERRES, 2005, p. 239]
137
Falamos das relações e dos objetos, saber e vigilância,
concorrência e sociedade. O mundo da informação toma o
lugar do mundo observado; as coisas conhecidas porque
vistas dão lugar aos códigos permutados. Tudo muda, tudo
decorre da vitória conquistada pela tábua de harmonia sobre
o quadro dos olhares. [SERRES, 2001, p. 45]

Para além da comunicação entendida como possibilidade de entradas e saídas de


uma determinada caixa-preta12, Serres nos propõe pensar a comunicação como uma
outra maneira de se produzir uma metamorfose. Já falamos sobre a metamorfose do
corpo a partir dos encontros que o corpo estabelece com as coisas, pelo caminho da
potência, aqui, tais metamorfoses ganham um sentido peculiar: tais metamorfoses
ocorrem por deslocamentos do corpo, por suas entradas e saídas, pelas negociações
entre o que é passível de aumentar a potência do corpo e aquilo que é passível de
diminuir esta potência. Qualquer coisa que entre em relação com o corpo, que produza
uma espécie de relação de comunicação, irá necessariamente alterar este corpo e ser
alterado por ele, como pudemos perceber quando tratamos das afecções.

Tal proposta nos mostra que a comunicação, ao invés de ser uma passagem do
exterior ao interior, de algo que é identificado como semelhante, é uma apresentação de
semelhanças e diferenças que produzem metamorfoses, transformações, transmutações
– ou, como dissemos, transubstanciação. Neste sentido, as mutações, ao invés de
estarem restritas ao erro do código – como se este se apresentasse como uma linguagem
clara, transparente –, são pensadas como possibilidades de transformação a partir dos
encontros – como a própria linguagem é pensada como metamorfose –, das
comunicações que se apresentam em relações e trocas.

Para Serres, qualquer possibilidade de comunicação deve ocorrer como


passagem daquilo que emerge como negociação, pois, a relação que ocorre numa
comunicação é algo que delimita as permissões de entrada e saída de algo que
permanece, de alguma maneira, constante. Em outras palavras, a comunicação produz
uma formatação que pressupõe a entrada e algo, daí a idéia de in-formação. Esta
entrada, como nos diz a teoria da informação, é sempre produzida para que o “sistema”
seja modificado de acordo com as exigências do “exterior”. Neste sentido, ser um corpo

12
Sobre este conceito, ver nota número 4 neste mesmo capítulo.
138
é negociar, é estabelecer, com sua externalidade, uma relação de encontro na qual as
entradas e saídas são sempre passíveis de negociação.

Para ilustrar o que estamos dizendo, é importante trazer mais uma narrativa
apresentada pelo autor: a história de Cinderela. Nesta história, Serres vê a possibilidade
de metamorfose da linguagem, que se apresenta nesta passagem, que faz fluir as
comunicações e, portanto, as transmutações de Cinderela. Cinderela se transforma duas
vezes, de filha preferida a lacaia, de lacaia a princesa. A variação de Cinderela, para
Serres, se apresenta na relação entre a sapatinha de veiro e o pé da moça. O sentido da
comunicação não é a permanência da sapatinha, que determina quem é a princesa, mas é
a relação entre o pé de Cinderela e a sapatinha que estabelecem uma verdade no
momento exato em que esta relação ocorre. Há um laço fundamental que liga a
sapatinha e o pé da moça ambos se constituem como relação e se significam
mutuamente, na medida em que se apresentam interligados. O que Serres nos mostra, a
partir de sua forma narrativa, é a construção do sentido da sapatinha que é “inaugurado”
no pé de Cinderela, em toda a história, é a primeira vez que um determinado objeto dá
sentido “real”, permanente, a alguma coisa que toca. No mundo de Cinderela ratos se
transformam em serviçais e abóboras se transformam em carruagens, neste mundo de
pura significação não há sentido algum, dado que o sentido, para ser construído, para se
apresentar numa relação necessita do estabelecimento de um acordo, de um contrato.
Este contrato só ocorre no momento em que Cinderela calça as sapatinhas, toda a magia
se desfaz, os encontros estabelecem um contrato.

É neste exato momento que ocorre a comunicação, pois, a sapatinha dá sentido à


princesa, que detém seu sentido nesta negociação. Ambas se constituem no sentido dado
pela relação: é a sapatinha da princesa, ao mesmo tempo em que é a princesa por
causa da sapatinha. A comunicação, portanto, é a formatação do sentido, o
reconhecimento das partes em se constituírem como tais. É a constituição do sentido na
negociação, no estabelecimento de um contrato que faz com que as partes se
reconheçam como integrantes de uma relação. Mais uma vez, entendemos o contrato a
partir do pensamento de Serres, pois, em O Contrato Natural, Serres nos diz que esta
palavra tem origem na idéia de amarração. É no estabelecimento de laços bem
amarrados, que unem duas partes até então distintas, que estabelecemos um contrato.

139
Neste sentido, o invariante – no caso de Cinderela a sapatinha – estabelece um contrato,
ou seja, amarra duas coisas num mesmo laço, laço simbólico. Torna-se o ponto no qual
a comunicação ocorre, estabiliza o sentido.
A sapatinha envolve o pé na medida do pé. O pé designa a
unidade da medida. A unidade, bem entendido, não deve
variar, a sapatinha que envolve na medida exata marca a
variação. A sapatinha de veiro, parâmetro, torna-se a
variável. Ao mesmo tempo em que Perrault escrevia seus
contos, Leibniz introduzia nas matemáticas e na mesma
língua, francesa e latina, a noção de variável e dava a
variedade como critério da realidade de um fenômeno. A
variação exige que se pense ao mesmo tempo o estável e o
instável, não o instável puro que não poderia ser
verdadeiramente compreendido, mas o invariante na
variação. [SERRES, 2001, p. 62]

Como podemos perceber, este encontro ocorre segundo uma circunstância, ou


seja, antes dele não se pode falar nem de princesa e nem se sapatinha de princesa. Da
mesma maneira, a circunstância que permite o que se exerça a comunicação faz com
que tudo o que antes era determinado, se reconfigure. A comunicação distribui novas
atribuições, impõe novos limites e estipula novos lugares. Novos arranjos se apresentam
para dar sentido à transubstanciação. Serres nos dá um bom exemplo:
A circunstância ou a coisa não são apenas causas, elas
também codificam. Vejamos: como parte do destino, ao
nascer, você recebe um conjunto de cartas, como no jogo de
baralho; no decorrer desse jogo, você obtém uma carta nova,
das duas uma, ou ela não lhe traz nada de novo, ou
transforma sua cartada medíocre numa quadra de ases. A
cada instante da vida você recebe ou não um novo conjunto
de cartas, no primeiro caso a seqüência transforma pouco a
pouco seu jogo, a ponto de a mão anterior tornar-se
irreconhecível. [SERRES, 2005, p. 261]
Neste trecho podemos, mais uma vez, perceber a importância dada às trocas, às
relações, em detrimento de uma determinação do código. Para que estas relações
ocorram, é fundamental que algumas alterações possam ser feitas, que este corpo esteja
aberto.

Em outro trecho de seu livro Os Cinco Sentidos, Serres contrapõe O Banquete de


Platão e A Santa Ceia, descrita na Bíblia, já falamos sobre este trecho no primeiro
capítulo, quando mostramos o paladar como uma dentre as diferenciações de superfície.
Mas, retomo este trecho em outro sentido, para mostrar a diferença entre duas formas de
comunicação: a do Banquete: que visa à instrução, e a da Santa Ceia, que visa ao
140
compartilhamento No primeiro capítulo, escrevemos sobre a comunhão, aqui,
gostaríamos de chamar a atenção para a diferença que ocorre entre uma comunicação
que se exerce no e pelo corpo e uma comunicação que é apenas uma forma de disputa,
na qual vence quem melhor convence. Além disso, para Serres, O Banquete encena
alegorias:
Em volta do banquete, alegorias bebem: a comédia, a
tragédia, a medicina... Falam alegoricamente. Só
compreendemos isto verdadeiramente quando assistimos a
um festim formal, onde cada instituição ocupa uma cadeira,
onde cada convidado só o foi porque representa a política, a
ciência, o banco, as mídias ou a administração, potências do
momento. O jantar imita o dos deuses, tanto os indivíduos
acreditam que só se tornarão deuses se perderem a
individualização. A dona da casa poderia ter convidado
robôs que falariam por programação, ao comando de teclas:
o que diz um administrador ou um jornalista não pode ser
tido como surpreendente, ele celebra seu poder. [SERRES,
2001, p. 176/177]

Por outro lado, a Ceia celebra a comunicação que ocorre muito mais através dos
atos e gestos dos apóstolos do que por suas colocações verbais. Enquanto que no
Banquete as pessoas falam sem degustar, na Ceia as pessoas degustam sem falar:
Cada um, Tiago, André ou João, simples pescadores da
costa, da beira do lago, marinheiros de água doce, publicano
ou mero coletor, não representava nada além de si mesmo,
indivíduo, pobre que sonha com pesca miraculosa,
patinhando no peixe escorregadio que transborda do barco,
cada um bebe, por sua vez, no cálice, e o passa, dá o passe a
seu vizinho, cala-se. Nunca se soube que Tiago tenha falado,
nem João, nem André. Pedro falou. Para trair. Pedro, o
chefe, o primeiro, o papa. O único que representa. [Idem, p.
177/178]

Nesta relação entre o Banquete e a Ceia, a transubstanciação pode ser percebida,


na medida em que se apresenta como uma forma de comunicação que ocorre no corpo.
Ao invés de ser um simples ato de informar, a comunicação transforma. O que está
implícito nesta maneira de pensar a comunicação é sua forma de fazer com que as
coisas variem. A comunicação como forma intermediária – na qual existem essências
prévias e a linguagem é uma mensagem pura – é abandonada para se buscar um tipo de
mediação no qual a linguagem é apenas mais uma das muitas maneiras de construir
relações. Desta forma, podemos nos remeter, mais uma vez, às palavras de Latour em
seu livro Jamais Fomos Modernos:

141
O mundo dos sentidos e o mundo do ser são um único e
mesmo mundo, o da tradução, da substituição, da delegação,
do passe. Diremos, sobe qualquer outra definição de uma
essência, que ela é “desprovida de sentido”, desprovida de
meios para manter-se em presença, para durar. Toda
duração, toda dureza, toda permanência deverá ser paga por
seus mediadores. [LATOUR, 1994, p. 127]
Neste trecho, podemos perceber que trata-se de uma questão fundamental: não existem
essências anteriores às relações e, por outro lado, não existem coisas que sejam
puramente intermediários. Há sempre transformação, há sempre produção. O que
ocorre, nas palavras de Serres, é que existem legiões de anjos que, ao estabelecerem
relações, produzem a duração, a durabilidade, em outras palavras: um corpo. Os
mediadores são estes que, ao produzirem encontros, geram estabilidades. Neste sentido,
a comunicação, como mediação é uma forma de produzir encontros que serão
construídos a medida em que ocorrem. Esta é uma forma ampliada de compreender a
comunicação, na qual o sentido não se esgota na linguagem.

3.2 – A relação entre linguagem e corpo: o corpo se constitui como linguagem?

Num outro livro, A Comunicação, Serres retoma, mais uma vez, o conto de
Cinderela para nos falar da comunicação, de uma forma mais específica: a comunicação
propiciada pela linguagem. Nesta maneira de pensar a comunicação a transmutação de
que falamos, o contrato que estabelecemos, nada mais é do que a metamorfose, a
translação das coisas nas palavras. Para que as coisas possam engendrar palavras,
devem se estabelecer como uma formatação, como uma forma de estabilizar a variação
das coisas a partir da estabilidade das palavras. A forma como é feita a nomeação é
fundamental para compreendermos a linguagem: a designação. Para Serres, o ato de
nomeação se apresenta como a varinha mágica: “E se, por acaso, a varinha mágica fosse
o dedo da designação, o dedo da prestidigitação?” [SERRES, s/d, p. 221], e, ao mesmo
tempo, a fada madrinha seria aquela que designa, que nomeia: “E se a fada – fata, fateor
– fosse uma bela faladora, atirando palavras, atirando feitiços, benefícios ou
malefícios?” [SERRES, s/d, p. 222]

Desta forma, o ato de nomeação determina a constância, a amarra da linguagem,


que estabelece o contrato na medida em que dá à palavra o poder sobre as coisas, o
poder de designação. Neste momento, as palavras substituem as coisas, mas, sempre

142
deslocando-as, ao mesmo tempo em que retiram sua “materialidade”, lhe dão uma
“virtualidade” que opera no intuito de dar às coisas a liberdade das palavras, seu
transporte etéreo, sua velocidade. A transformação, a transubstanciação operada pela
linguagem faz com que as coisas estabeleçam novas relações até então impossíveis, até
mesmo impensadas. A imaterialidade da linguagem dá aos objetos do mundo sua
suavidade, que permite às coisas uma variação até então não experimentada. A
passagem das coisas às palavras nos permite lidar com estas coisas desta forma etérea,
gasosa, que se desfaz em sons e símbolos, que são suaves, que habitam o pensamento.

Porém, o dedo da designação, ao mesmo tempo em que apresenta o objeto,


também o transforma, pois, esta designação pretende transformar a linguagem em coisa,
e vice-versa, enquanto pretende esconder esta transformação. É como se houvesse uma
simples transposição do objeto à linguagem e não uma transformação, uma translação.
O que queremos frisar aqui, é que este ato da designação, longe de ser uma simples
transposição, é um ato de transubstanciação, de transformação que, ao invés de transpor,
modifica, altera, transforma no momento da designação. Serres nos traz o conto de
Cinderela, e, conseqüentemente, a fada que transforma as coisas ao nomeá-las
justamente para que possamos pensar neste ato da nomeação, pois, ao apontar a varinha
para a abóbora, por exemplo, esta se transforma em carruagem pelo simples ato de
nomeá-la como tal. Em outras palavras, o ato da designação, no conto de Cinderela, faz
com que as coisas se tornem aquilo que é designado, daí a citação de Serres, quando nos
dá a fada como o dedo da designação, pois este ato, ao invés de simplesmente apontar,
produz, dá aos objetos, como dissemos, sua suavidade.

Em contrapartida, quando as coisas nos chegam aos sentidos, são afecções, são
formas de relação que se estabelecem com o corpo. Portanto, as coisas nos chegam
como dados, não no sentido restrito, de que são dados codificados, mas, num sentido
amplo, que são efetivamente formas de relação entre corpos, que, ao se relacionarem,
trocam afecções. Por outro lado, como já dissemos, o que a linguagem produz é uma
suavização da dureza das coisas, uma forma de transformação da dureza em símbolos,
leves. Assim, a linguagem faz emergir uma nova forma de apresentação13 das coisas, na

13
Evitamos falar aqui sobre representação para não entrarmos numa longa discussão sobre a linguagem
como representação. Esta discussão sairia de nossa proposta. Porém, gostaria apenas de citar um trecho
143
qual o funcionamento destas se modifica. Porém, esta modificação se apresenta de tal
maneira, fortalecida, que, aparenta transformar absolutamente todas as coisas em
linguagem:
Eis o mundo: até em seus pequenos recantos, calhaus, raízes,
grilos, em suas dobras secretas, minas, bolsões, covas, sob a
terra e no fundo das águas. No meio das florestas primitivas
ou nos confins das galáxias recentemente descobertas, ele é
repleto de proposições e de categorias, sem lacuna. Mesmo o
desconhecido ou o inconsciente ou o indizível reintegram a
linguagem. [SERRES, 2001, p. 110]
Neste trecho, percebemos a força que a linguagem exerce, seu poder de transformação,
de fazer com que as coisas se suavizem. A linguagem faz parecer que qualquer coisa do
mundo pode ser transformada em linguagem e, desta maneira, se esvaeçam, se tornem
etéreas. A informação penetra nas coisas, decodifica-as, pulveriza-as e as faz operar
numa ordem que, ao mesmo tempo em que tira a dureza, faz as coisas adquirirem
rapidez, a rapidez da luz. Porém, o que acontece é que acredita-se que o dado se esgota
na linguagem, como se esta fosse sua forma última, sua decifração. Mas, para Serres o
dado escapa, fugidio, do esgotamento da linguagem:
É bem verdade que o dado muito freqüentemente se dá na e
pela linguagem, mas acontece que, por uma brecha no muro
aplicativo, passa uma força que derruba. O dado às vezes faz
cair do cavalo, nem sempre por uma palavra que soa. (...) A
náusea nem sempre vem da escrita, ela corre da onda para a
água sem que a língua se meã, barulho náutico, ruído da
carne. Sim, o dado às vezes se endurece, ao passo que na
linguagem ele se dá sempre suave. [Idem, p. 111]
Este não esgotamento da coisa na linguagem é o que nos faz pensar os objetos como
dados, como formas sempre fugidias, como relações sempre renováveis. A designação
não é a forma última das coisas, sua decifração, não é porque não posso transformar
coisas em palavras, mas, porque as relações entre as coisas passam necessariamente,
pelo corpo. Neste sentido, o dado não é lingüístico, mas corporal. Sendo assim, há algo
que escapa à designação, à significação, algo que ocorre a partir dos sentidos, que não
participam da codificação lingüística. Daí a relação que Serres estabelece entre a língua
que fala, que significa e a língua que sente o gosto, que degusta e nos mostra a relação

do livro Jamais Fomos Modernos sobre a dupla constituição da sociedade e da natureza operada, em
conjunto, por Hobbes e Boyle: “Em seu debate, os descendentes de Hobbes e de Boyle nos fornecem os
recursos que usamos até hoje: de um lado, a força social, o poder; do outro, objeto da ciência. Os porta-
vozes políticos irão representar a multidão implicante e calculadora dos cidadãos; os porta-vozes
científicos irão de agora em diante representar a multidão muda e material dos objetos. (...) Em breve a
palavra “representação” tomará dois sentidos diferentes dependendo de estarmos falando de eleitos ou de
coisas.” [LATOUR, 1994, p. 35]
144
entre a sapiência e o saborear, que se estas fossem, mais do que complementares,
inseparáveis. A comparação entre o banquete e a ceia deriva desta reflexão, na qual o
corpo está presente, em detrimento da linguagem, que fala sem sentir, sem degustar:
A sensação, dizia-se, inaugura a inteligência. Aqui, mais
localizadamente, o paladar institui a sapiência. Pela ancestral
definição latina do humano, nossos antepassados instruídos,
mas ainda sensíveis, indicavam seriamente que sem o
paladar arriscamo-nos a perder o estado de homem, a recair
no rol dos bichos. Antes de reconstruir o pensamento sobre a
sensação, estranha empreitada, decerto queriam que
meditássemos sobre uma espécie de recíproca: ao desprezar
a sensação, ao substituí-la por artifícios, por discursos
ortopédicos, voltamos correndo para a animalidade. O bicho
come depressa, o homem saboreia. [SERRES, 2001, p. 155]

Por outro lado, a nomeação como possibilidade de se estabelecer uma linguagem


não só suaviza as coisas, mas, ao mesmo tempo dá à variedade das coisas, a unidade da
palavra.
A linguagem e o monoteísmo tornam homogêneo o trapo
pagão, a técnica passa sobre nichos sagrados: destruição dos
velhos deuses vicinais, abolição da gleba e dos limites. O
empirismo respeita e dá vida a cem divindades locais,
adorará até a do verbo. O monoteísmo torna possível a
intervenção tecnicista global: para formar um espaço
isótropo, foi preciso primeiro matar os ídolos. [SERRES,
2001, p. 243]
Esta unidade arbitrária opera no sentido de possibilitar o transporte, de amenizar as
relações e, portanto, de formatar as coisas através do sentido. A comunicação só pode
ocorrer nesta unificação, neste acordo, neste contrato. Mais uma vez, nos deparamos
com Ulisses e as sereias, pois, atado a seu mastro, preso com amarras apertadas à
“realidade” das coisas, Ulisses é capaz de ouvir os ruídos no mundo – da mesma
maneira em que, atados à linguagem, não nos perdemos na infinidade de sons que nos
vêm do corpo, da cultura e do mundo: “o que cantam então, o que gritam as Sereias? O
mundo banal, misto de suavidade, atraente, e de duro, repulsivo” [SERRES, 2001, p.
123].

Além disso, não nos dispersamos em meio às “divindades” do mundo, em meio


à variação que é própria do mundo. Desta forma, somos capazes de atravessar os
diversos mares de sentido para nos submetermos à linguagem. A linguagem só se torna
comunicativa, na medida em que se situa no contrato, na amarração, feita, como
dissemos, não sem violência. A violência decorre da necessidade de obediência ao
145
contrato, às amarras, não se pode permitir a alteração deste contrato, daí decorrem todas
as regras, designações, explicações, significados, sinônimos, conceitos e todas as formas
de normatização da linguagem. Serres também nos lembra:
Então, desde quando a estátua reina? Desde a origem, desde
o começo de nossa memória, no próprio nascimento da
linguagem. Nosso primeiro ancestral descreve, o mais antigo
herói cantado parte por água para as ilhas do vento ou terras
desconhecidas e embalsamadas que dormem no horizonte
violeta, a prisão da língua fecha-se, poética, sobre aquele
que viaja e tenta perder-se para escapar a ela; apesar das
tempestades desejadas, as piores sortes do mar, apesar das
feiticeiras que mudam as aparências, Ulisses recai na
armadilha da trama coordenada, onde sua viagem é
assinalada nas laçadas de Penélope, desfeitas, refeitas, de
noite, de dia, no programa textual, na língua: tudo isso ele
canta no banquete do rei, mata os pretendentes, que não
cantam, no último festim na casa de sua mulher. [SERRES,
2001, p. 201]
Desta forma, Ulisses retoma a linguagem, refaz o percurso e estabelece sua lei. Ao
impor sua volta, seu retorno, retoma o sentido em suas próprias mãos, constitui seu
sentido e significado.

Porém, não somos herdeiros apenas desta cultura grega. Para além da tradição
grega, encontramos em um autor alemão, conhecido tanto pela riqueza do seu
pensamento, quanto pela sua origem judaica, uma forma de compreender a nomeação
que pode nos ajudar a compreender tal ato de uma maneira que nos facilite compreender
porque Serres evoca, tantas vezes, a tradição judaico-cristã, ao invés da tradição greco-
romana. Estamos nos referindo ao texto Questões Introdutórias de Crítica do
Conhecimento, na Origem do Drama Barroco de Walter Benjamin. Neste texto, o autor
se remete ao ato adâmico de nomeação14, e desta forma, nos desloca do próprio sentido
dado ao logos grego para fazer falar uma outra tradição que nos atravessa, como
dissemos acima, a cultura judaico-cristã. Isto ocorre porque Benjamin compreende que
encontramos nesta cultura, tanto quanto na cultura grega, nossa herança, seja na forma

14
Refiro-me aqui à passagem do texto de Benjamin, apenas para apontar esta nossa herança judaico-
cristã, para tornar relevante a importância desta herança para a questão da relação entre linguagem e
corpo. Sabemos dos limites de tal relação, da diferença entre as posturas teóricas os autores e da
preocupação de Benjamin com a legitimação de seu trabalho sobre o drama barroso como questão
propriamente filosófica daí decorre sua relação entre Platão e Adão Porém, gostaria de ressaltar um
trecho do autor, para esclarecer o lugar de suas reflexões: “A verdade não é uma intenção, que
encontrasse sua determinação através da empiria, e sim a força que determina a essência dessa empiria. O
ser livre de qualquer fenomenalidade, no qual reside exclusivamente essa força, é a do Nome. É esse ser
que determina o modo pelo qual são dadas as idéias.” [BENJAMIN, 1984, p. 56]
146
do pensamento, seja na forma da relação entre linguagem e coisa, seja na maneira de
compreendermos o corpo. Serres, ao mesmo tempo em que se remete à Ulisses, também
nos traz Adão, como aquele que nomeia, que ordena. Da mesma forma, Serres nos diz:
“Nosso primeiro ancestral, na margem defronte, muito contente com seu festim de
frutas, no meio das árvores, nu em companhia de sua bela mulher, trata logo de nomear
as espécies.” [Idem, p. 201] Para Serres, tanto Ulisses quanto Adão “dizem a gênese da
língua” [Idem, p. 201]

Na tradição judaico-cristã, a linguagem ganha ênfase por apontar para o ato da


nomeação como ato inaugural da humanidade. No momento em que Adão nomeia, se
torna homem, se humaniza ao relacionar as coisas às palavras. É como se, no ato da
nomeação, as coisas ganhassem uma outra vida, sob a égide do contrato. Os homens,
como criaturas de Deus, são aqueles capazes de dar às coisas uma outra possibilidade de
existir, nas palavras. O domínio humano sobre a Terra, dado por Deus, se constitui neste
ato de nomeação. Ato que se repete no momento em que “O Verbo vira carne e habita
entre nós”. Neste caminho inverso, no qual é a palavra que ganha “corpo”, Serres vê a
religião do corpo, da carne, na medida em que Jesus, ao transubstanciar o pão em seu
corpo e o vinho em seu sangue, também dá um novo sentido a estas palavras, cria um
novo contrato e pede que este ato se repita “em memória dele”. Mas, este contrato
frágil, só pode ser compartilhado por poucos, por aqueles que estão “em comum”
acordo com esta nova significação. Cria-se uma nova religião que advém de um novo
sentido, de um nov contrato que deve ser sempre refeito.
Isto é vinho – como se pode chamar isto de vinho? – isto é
espírito isto é meu sangue. (...) O vinho circula entre nós,
corpos em comunhão. Aqui estamos unidos, reunidos, não
formamos mais que um só corpo, unânime. A mesma alma
circula entre nós, sangue novo do corpo coletivo. (...) A
velha ambrosia dos velhos deuses passa para o meio da
comunicação, doravante imortal, ao contrário dos
indivíduos, mortais. Sangue da eterna e nova aliança. Bebam
o vinho, vertam o sangue, percam sua singularidade para
vertê-la à comunidade, ligações, alianças antigas e novas,
confusão ainda e sempre, aparição de um tempo novo e de
promessas novas, lembranças. Façam isto em memória de
mim. [Idem, p. 185]

Por outro lado, podemos pensar que o próprio corpo se constitui neste ato de unificação
no qual o nome se apresenta. Mas, sabemos também que o ato de nomeação não esgota

147
as possibilidades do corpo, por isso deixamos esta discussão para o último capítulo,
porque, ao longo de todo o texto pudemos refletir sobre as múltiplas possibilidades de
se pensar o corpo. A linguagem é apenas mais uma dentre estas possibilidades de
transubstanciação. Porém, vale lembrar a força que esta maneira de compreender o
corpo possui em nossos dias e em nossa cultura. Para enfatizar esta importância, Serres
nos diz:
Então passamos das religiões antigas à nossa, das religiões
dos sentidos à do verbo, do corpo à palavra, das filosofias da
experiência às da linguagem, esta narrativa data de ontem,
ou de dez anos, ou de quase dois mil anos, ou do momento
perdido em que o mundo se refugiou na linguagem pela
palavra daquele que se torna homem ao dizê-la. Eis
exatamente o primeiro discurso: isto. Isto é o corpo e o
sangue do próprio verbo, Isto seria mais que uma palavra?
[Idem, p. 187]
Portanto, a palavra ganha força e posição de destaque em nossa cultura, a tal ponto que
buscamos compreender todas as coisas pela passagem destas à linguagem. É como se
não fosse possível nenhuma relação que não pudesse ser dita, explicitada pela palavra.
A palavra se torna a visibilidade última das coisas, sua exposição máxima.

3.2.1 – A questão do sentido: ampliação do dado, que se transforma em dom

Porém, podemos estender a questão da linguagem, para que o sentido seja


pensado como algo mais amplo. A linguagem não se restringe à designação, mas, é algo
que, como dissemos dá novas dimensões às coisas. O sentido traz uma questão até então
não colocada: o problema da interpretação. Um problema que, de alguma maneira,
atravessa o pensamento de Serres, na figura de Hermes. Mas, o que Serres entende
como a função de Hermes não está necessariamente restrita à linguagem, a mensagem
que Hermes carrega, na verdade, é o que Serres denomina de dom, aquilo que
transforma o caminho, que muda as relações.

Desta forma, podemos pensar que o sentido é a própria possibilidade de conectar


elementos díspares e heterogêneos que busca arranjos e aproximações antes
impossíveis. Além disso, o sentido “amarra” coisas até então livres, até então errantes, à
deriva. O ato de tricotar pode nos ajudar a refletir sobre a questão do sentido. Neste ato,
o traçado feito pela linha e pela agulha é um misto de apertos e afrouxamentos, de nós e
de laçadas que, ao se formarem constituem a trama do tecido. As laçadas, que são
148
passagens da linha pelas agulhas, determinam as configurações dos relevos e a força do
tecido: quanto mais apertadas as laçadas, menos visíveis são os espaços entre um ponto
e outro. Da mesma forma, o sentido é constituído menos pela coisa que se apresenta a
partir dele e mais pelo engendramento anterior das relações que foram traçadas ao longo
do caminho de reprodução deste sentido. Em outras palavras, é na repetição de um
mesmo gesto, na construção de encontros e de novas laçadas, que lentamente emerge o
sentido.

Para entender um pouco melhor o que estamos tentando dizer, devemos entender
o sentido a partir daquilo que o materializa: o símbolo. Além disso, devemos pensar que
o símbolo é algo que se apresenta com uma certa transparência, na medida em que ele
não se esgota em si mesmo, mas, ao contrário, nos remete sempre a outra coisa. Desta
maneira, não podemos falar de sentido se não falarmos de interpretação. Portanto, o
sentido se estabelece a partir do surgimento de um símbolo que requer interpretação.

Sabemos que a tradição filosófica se apropria do significado da palavra símbolo


deslocando-o de sua forma original: símbolo, que para os gregos significa “lançar
junto”, era uma espécie de cerâmica que, ao ser quebrada produzia um contorno único,
somente completo com a outra metade da mesma peça. Cada parte deste símbolo era
entregue a uma pessoa: a primeira era o hospedeiro e a segunda o hóspede. Os gregos
utilizavam tal objeto para reconhecer seus amigos, quando se reencontrassem, depois de
terem compartilhado a refeição, era um encontro que marcava a hospitalidade do
anfitrião e a possibilidade de retorno do viajante. Estabelecia-se uma espécie de
“contrato” no qual o reencontro entre anfitrião e viajante marcava sempre o
reconhecimento de ambos. Portanto, não importava o lugar e a ocasião do encontro, o
símbolo marcava a semelhança entre eles. Pressupunha-se que somente os “amigos”
eram capazes de portar o símbolo. Assim, a relação simbólica ocorre para marcar as
semelhanças, em detrimento das diferenças. Além disso, o símbolo não é nada sozinho,
são necessários, no mínimo, três coisas para se estabelecer o símbolo: o anfitrião, o
hóspede e a cerâmica. Sem tais componentes, não podemos falar de símbolo. Portanto, o
símbolo pressupõe um enlaçamento, um nó que une coisas heterogêneas, numa mesma
relação.

149
O símbolo não se esgota em si mesmo, como dissemos, porém, ele se constitui
como um nó, uma laçada, uma amarração que busca constituir, em meio aos
afrouxamentos da realidade, um caminho seguro, passível de ser reconstituído, enfim,
busca instituir uma formatação em meio à diversidade. O símbolo reúne, em meio à
heterogeneidade das relações possíveis, elementos desconexos para que estes se
reconheçam como “pares”, ocorre um emparelhamento de coisas díspares. Para que isso
ocorra, como dissemos anteriormente, é necessário “firmar o sentido” com amarras bem
apertadas, em contraposição à diferenciação que se encontra no mundo empírico. Sobre
tal questão, Serres nos diz:
Excluir o empírico é excluir a diferenciação, a pluralidade
dos outros que encobre o próprio. É o primeiro movimento
da matematização, da formalização. Neste sentido, o
pensamento dos lógicos modernos acerca do símbolo é
semelhante à discussão platônica acerca da forma
geométrica desenhada na arena: é preciso eliminar a
cacografia, a tremura do traçado, o acaso do traço, o defeito
do gesto, o conjunto dos reencontros que fazem com que
nenhuma grafia seja estritamente da mesma forma que
qualquer outra. Do mesmo modo, a coisa percebida é
indefinidamente discernível: seria preciso uma palavra
diferente para todo o círculo, símbolo, árvore ou pombo; (...)
Na extrema conseqüência do empirismo, o sentido está
totalmente imerso no ruído, o espaço da comunicação é
granular, o diálogo está condenado à cacofonia: o transporte
da comunicação é transformação perene. Então, o empírico é
estritamente o ruído essencial e acidental. (...) A partir daí,
para que o diálogo seja possível, é necessário fechar os olhos
e tapar os ouvidos ao canto e à beleza das sereias. [SERRES,
1985, p. 35/36]
Como podemos perceber, para Serres, não é pressupondo a simples clareza do sentido
que podemos entender o símbolo. Ao contrário, o símbolo emerge de um fundo de
ruído, da interferência originária, como ele nos diz, da empiricidade originária, da
diversidade.

Por outro lado, o símbolo é, ao mesmo tempo, o que instaura o sentido e o que
escapa deste sentido. O que queremos dizer é que o símbolo requer interpretação e
reconhecimento, das partes envolvidas, do sentido que ele carrega. Desta forma, tudo
aquilo que requer interpretação, pode ser pensado como símbolo. Há um deslocamento
do sentido original dado ao símbolo para o sentido pensado na filosofia. Em certa
medida, continuamos falando de partes que devem ser “encaixadas”, porém, ampliamos
os encaixes. Dito de outro modo: pensamos que os símbolos são passagens, são coisas

150
que se apresentam sempre para mostrar outra coisa que não é a si mesmo. Símbolos são
coisas que nos exigem interpretação, são pontos de passagem, são caminhos. Como
conseqüência, podemos pensar que, mesmo o corpo, é passível de interpretação, se
apresenta de maneira simbólica.

Para que possamos elucidar a questão posta acima, devemos refletir um pouco
mais sobre a questão da interpretação e como tal questão se relaciona ao corpo.
Portanto, iremos, nos próximos parágrafos, nos remeter à tradição filosófica da
hermenêutica – que é a tradição que se ocupa deste problema de forma mais detalhada.
E, especificamente, pensar a como a questão do símbolo e da interpretação se tornaram
algo fundamental na compreensão contemporânea do corpo, a partir dos estudos feitos
por Ricoeur, mais nomeadamente, sobre o trabalho de Freud. Tal questão é importante
porque, a partir dos estudos freudianos, se desenvolve uma corrente de pensamento que
acredita que o corpo é sempre representação simbólica, ou passível de reduzir ao
sentido, mais do que à linguagem.

Na verdade, é o próprio sentido da palavra hermenêutica, como inauguração de


um pensamento que questiona a clareza do sentido, que nos intriga aqui. Porém,
gostaria de apontar para alguns caminhos que justificam nossa escolha. Primeiro,
gostaria de pensar na hermenêutica como um caminho traçado por Hermes, este
caminho que produz sentido, que cria relações até então não apresentadas. Neste sentido
nos aproximamos de Serres, dado o grande número de referências a este mensageiro na
obra do autor. Mais uma vez, nas entrevistas que cede a Latour, estes autores discutem a
questão da hermenêutica no trabalho de Serres (1996) a partir da figura do próprio
Hermes:
Agitado, por passar por todo lado, na enciclopédia completa,
que trabalho; agitado, isto é, ativo, e não preguiçoso;
trapalhão, ou seja, para criticar as ordens obsoletas, rir-se
delas, mostrar que o espaço do saber mudou de relevo e que
este perfil é mais acidentado do que se julga; trapalhão, ou
seja, desembaraçado no meio do caos, eis o nome que Platão
deu ao pai do amor, desembaraço ou, em termos mais
nobres, expediente; mais do que turista, errante e miserável,
atravessando o deserto; sim, e muito pior ainda, zaragateiro.
Mesmo ladrão, se quiser! Ao mesmo tempo bom e mal.
Hermético, além disso. (...) A personagem de Hermes está
agora completa. Universal e singular, concreta, abstrata,

151
formal, transcendental e narrável. [SERRES, 1996, p.
161/62]
Portanto, Hermes é menos um personagem do que a própria passagem, o ato de passar
por vários tempos e vários espaços. Hermes é o deus das passagens, o que faz dele o
deus da relação, desta forma, Hermes também pode ser pensado como aquele que
constitui o sentido, na medida em que, ao arrumar as relações, desloca as coisas de seu
lugar, lhe dá um sentido, lhe transmite um dado. Assim, o dado é pensado como este
dom, que é transmitido por Hermes e pela legião de anjos.

Podemos pensar que, nesta perspectiva, o sentido se encontra sempre como


possibilidade, como forma de organização das coisas na qual a própria constituição de
algo ocorre nesta relação com o sentido. O sentido, portanto, é aquilo que dá a
existência a algo. Retomando o ato adâmico, podemos pensar que, na tradição judaico-
cristã o que ocorre é exatamente isso, no momento da nomeação é como se as coisas
passassem a existir, ou a se constituir como algo que se produz na relação com o próprio
ato adâmico da nomeação. Sem a nomeação não há existências das coisas. Da mesma
maneira, no ato inaugural do mundo, as coisas passam a existir no momento em que
Deus, através de sua palavra, diz “Faça-se”. Nesta tradição o ato da nomeação é
anterior, e por isso mesmo, as coisas surgem deste ato.

Após este esclarecimento, gostaria de, em segundo lugar, esclarecer as


aproximações e afastamentos de Serres desta tradição para que a discussão sobre a
possibilidade de pensar o corpo como linguagem se torne mais clara, na medida em que
existem leituras diferentes sobre a linguagem que geram caminhos, muitas vezes
opostos na constituição de relações entre a linguagem e o corpo. Para que possamos
efetivamente discutir esta relação, devemos nos remeter à tradição hermenêutica, que
toma como pressuposto o que dissemos acima: a antecedência do ato de nomeação,
como forma de tornar as coisas existentes.

A tradição hermenêutica, escolhida por nós, como dissemos anteriormente, têm


em Paul Ricoeur15 um dos filósofos que, mais do que afirmar a possibilidade da
interpretação, questiona-a, é intrigado por ela. Ricoeur é um autor que busca pensar a

15
Autor contemporâneo que dedicou suas reflexões e muitas de suas obras à hermenêutica, escolhida para
nosso trabalho devido à importância do seu pensamento para a filosofia de língua francesa.
152
interpretação, num sentido grego, como thauma, ou seja, como aquilo que nos move a
pensar, como aquilo que requer explicação, que se apresenta como problemático. Por
outro lado, utiliza-se também da tradição judaico-cristã para pensar este ato inaugural
do sentido, sua potência de nomeação. Neste autor, a questão da interpretação emerge
de uma dupla inserção: filosófica e religiosa. Porém, não é apenas nestes campos que
Ricoeur irá pensar a interpretação. O que intriga Paul Ricoeur, em seu texto Da
Linguagem, do Símbolo e da Interpretação é justamente o problema trazido pela
psicanálise, sobre a interpretação. Neste sentido, Ricoeur propõe pensar muito mais
naquilo que escapa à interpretação do que propriamente naquilo que a interpretação
efetivamente faz. Desta forma, podemos refletir sobre esta relação entre corpo e
linguagem, na medida em que, é na psicanálise que encontramos tal relação posta de
maneira mais explícita, pois, é no corpo que ocorrem os sintomas, ou seja, aquilo que é
passível de interpretação, na psicanálise.

Ricoeur nos apresenta duas possibilidades de interpretação das quais somos


herdeiros: a que ele identifica em Aristóteles (tradição filosófica) e a exegese bíblica
(tradição judaico-cristã). Em Aristóteles há a idéia de interpretação como “imposição”
de um nome a uma coisa “não designa uma ciência versando sobre significações, mas a
própria significação, a do nome, do verbo, da proposição e, em geral, do discurso.”
[RICOUER, 1977, p. 28] Quando nomeamos as coisas, estamos dando-lhes um sentido
e este sentido já marca um distanciamento: “A ruptura entre a significação e a coisa já
se realiza com o nome, e essa distância marca o lugar da interpretação.” [Idem, 1977, p.
29] Mas, em Aristóteles, mesmo que essa significação deixe certa abertura na relação
entre coisa e nome, tal distinção é ainda muito geral para abrigar as miríades das
interpretações multívocas. Mesmo que o ser “se diga de muitas maneiras”, isso não quer
dizer que haja uma multiplicidade de interpretações, apenas quer dizer que há várias
maneiras de se falar de um mesmo ser, que é uma unidade lógica e ontológica. “A
noção de significação requer a univocidade do sentido: é o que exige a definição do
princípio de identidade, em seu sentido lógico e ontológico.” [Idem, 1977, p. 29]

Porém, para Serres, tal princípio de identidade, pode ser sim, pensado como
unidade lógica, porém, não como unidade ontológica, na medida em que, dizer que uma
coisa é igual a si mesma, não significa dizer que o nome esgota o sentido das coisas. Ao

153
contrário, se o nome é dado às coisas, posteriormente à sua existência, então não
podemos dizer que as coisas “pertencem” ao nome que lhe é dado. Como dissemos, há
um distanciamento entre coisa e palavra, na medida em que, antes as coisas existem,
depois são nomeadas. Num outro sentido, mesmo que o nome se distancie dos objetos,
podemos pensar que, sem este nome, os objetos não se constituem como tais, pois, a
nomeação como ato, é o que dá o dom às coisas. Neste sentido, não é possível pensar
algo que não se apresente através do dom da linguagem. O corpo, por sua vez, na
medida em que é significado, também é dotado da graça:
Ela, a carne, ela, a mãe, a sensibilidade corporal, concebe
virginalmente o verbo: sem que o dado a afete a não ser pelo
verbo. Antes de assim conceber, ela mesma foi concebida
imaculada. O dado só vem da linguagem: o corpo nunca
recebeu nada senão verbo. Antes de só receber verbo, antes,
portanto, de receber, ele nunca recebera nada. (...) Só o anjo
anuncia o que nos faz recordar que o corpo se enchia de
graça antes que o verbo o anulasse e o tornasse, por efeito
retroativo, carne imaculada. (...) Quando o verbo a satura, a
carne perde essas antigas graças, velhas mensagens
incompreensíveis em língua, esquece, desbota, a graça. Ela
abandona a carne quando o verbo se faz carne. [SERRES,
2001, p. 205/206]
Como percebemos no texto acima, a linguagem como dom se apresenta no instante da
nomeação, no ato de nomear, de significar. Neste momento, a cerne se faz graça, se dá
ao sentido, se apresenta na ligação, no enlaçamento do significado.

Portanto, fica clara a idéia de que encontramos o problema da interpretação


justamente na tradição judaico-cristã, a partir da interpretação na exegese bíblica.
“Nesse sentido a hermenêutica é a ciência das regras da exegese, sendo esta entendida
como interpretação particular de um texto. É incontestável que o problema da
hermenêutica constitui-se, em grande parte, nesse recinto da interpretação da Sagrada
Escritura” [Idem, 1977, p. 30]. Mesmo que a exegese não se limite à noção de analogia,
esta é fundamental até mesmo para pensarmos a respeito da própria idéia de exegese
como uma “transposição” dos limites da escritura enquanto tal. É compreendendo o que
significa uma analogia, que podemos compreender o sentido da transposição, da
interpretação e da significação. A analogia, que no pensamento grego, coloca as coisas
em proporção, nos faz compreender que nesta relação, o sentido emerge como
ponderação, como forma de por em conexão sentidos diferentes para que estes se
relacionem. É como se o homem, pela analogia, fosse capaz de compreender as coisas

154
de maneira mais ampla. O exemplo de Serres, para pensar a peculiaridade do povo
grego, é Tales aos pés da pirâmide. A comparação da sombra de Tales e a sombra da
pirâmide, o capacita, por analogia, a medir a altura da pirâmide, por proporção.
Portanto, a significação da altura da pirâmide só pôde ser conhecida em relação à altura
de Tales. O sentido, portanto, não advém das próprias coisas, não é ontológico, mas,
relacional. Além disso, é com seu próprio corpo que Tales relaciona o tamanho da
pirâmide, assim, o sentido também passa por este dado: o corpo significa a pirâmide e
vice-versa, o sentido constitui a ambos.

Por outro lado, podemos pensar a analogia de uma outra maneira: há analogia
entre coisas que, a princípio, não possuem uma semelhança aparente, nem mesmo uma
semelhança lingüística que pode ser pensada como comparação de uma palavra a outra.
Mas, há uma diferença “de natureza” entre as coisas postas em analogia. A interpretação
carrega esta possibilidade de “dar sentido” a coisas que, a princípio não poderiam ser
postas na relação analógica. Como exemplo, em Freud, temos os sintomas histéricos,
que, grosso modo, são postos “em analogia” com os desejos reprimidos do paciente. O
que significa dizer que é possível constituir uma relação do corpo com o sentido, que
até então não foi imaginada: o corpo “fala” sobre o desejo. O corpo estabelece um novo
sentido para seu próprio desejar, dá o dom do desejo, recebe o sentido do corpo.
Estabelece paragens, ligações, sentidos para o que não pode se expressar por palavras: o
corpo se expressa a partir de um outro sentido: novos dons são estabelecidos pelo desejo
que não se esgota na linguagem.

Para compreender o que Ricoeur pensa sobre a analogia, nos remeteremos à


metáfora do livro da natureza: “Essa metáfora faz surgir uma extensão possível da
noção de exegese, na medida em que a noção de “texto” ultrapassa a de “escritura””
[Idem, 1977, p. 31]. Neste sentido, a própria interpretação não se vê mais aprisionada
nos muros da “escritura”, o que, em certa medida, amplia, desloca, “traduz” a própria
exegese, de tal maneira que ela altera seu lugar. Tal “alteração” traz conseqüências
importantes, pois, o próprio Freud apela para uma interpretação que não se reduz à
“escritura”, nas palavras de Ricoeur:
Freud recorre a ela [noção de “texto” libertada da noção de
“escritura”] com freqüência, especialmente quando compara
155
o trabalho da análise com a tradução de uma língua para a
outra. O relato do sonho é um texto ininteligível que o
analista substitui por um texto mais inteligível. Compreender
é fazer essa substituição. [Idem, 1977, p. 31]
Vemos neste trecho, que a interpretação, como o próprio Ricouer coloca, não pode ser
apenas textual, ela se apresenta de maneira mais analógica. O próprio conceito de
tradução, como dissemos alhures, possui um sentido muito mais amplo do que a pura
transposição de palavras entre línguas diferentes. Interpretar sonhos não significa
transformar imagens em palavras, símbolos em significados, muito mais que isso, a
tradução sempre opera num outro nível: a interpretação do analista sempre acrescenta
um sentido àquilo que, a princípio, não possui sentido algum. Se estendemos nossas
reflexões, chegamos ao ponto de afirmar que a interpretação pode ser pensada como
uma forma de relacionar-se não apenas com a linguagem, mas, com o próprio corpo.
Retomamos aqui a questão do sintoma: só compreendemos aquilo que acontece no
corpo como sintoma, na medida em que interpretamos determinadas maneiras de
apresentação do corpo, como algo que possui um sentido que não está explícito. A
psicanálise, neste sentido, constitui uma nova maneira de interpretar o corpo, no qual
este se apresenta como algo a ser decifrado.

Mesmo que não seja nosso objetivo nos aprofundar nesta questão da
interpretação freudiana, nos chama a atenção a colocações do corpo em termos de
decifração. Por um lado, podemos pensar que a proposta freudiana se apresenta como
uma abertura para este novo dom: o corpo é interpretado a partir de novas relações, de
novas formas de compreensão que não estão previamente dadas. Neste sentido, o corpo
se dá de forma inédita, apresenta um novo dom. Porém, na medida em que este corpo se
vê aprisionado ao modelo de interpretação analítica, mais uma vez, o dom se transforma
em saturação, satura a carne de palavras, busca aprisionar o dado, a graça, numa forma
única de interpretação. Assim, Serres nos alerta:
O dom não corresponde á nenhuma obrigação: o doador não
o deve, ao recebedor ele não é devido. Poderia chamar-se o
dado. Salve, corpo cheio de dados gratuitos, por ele
recebidos como dons do mundo. O que entra pelos sentidos
ou por eles no corpo não se paga nem em dinheiro nem em
energia ou informação, nem em moeda de qualquer espécie,
assim concordamos em chamá-lo dado. Salve, carne plena
desses dons. [SERRES, 2001, p. 207]

156
Como podemos perceber, o caminho da interpretação traduz o corpo, nos dá
mais uma forma de compreensão deste corpo cheio de dons. Porém, mais uma vez, o
corpo não se esgota neste único dom. A interpretação, como forma de apreensão do
corpo pela linguagem, ao mesmo tempo em que nos dá uma nova possibilidade de
compreender o corpo, busca torná-lo seu único caminho. Como escape, o corpo não de
deixa interpretar, produz novos sintomas, novas forma de expressão. No texto Nas
dobras do corpo..., Eliana Schueler Reis nos traz um caminho alternativa ao nos dizer:
O que é parte da matéria perturbadora do corpo, o que
escapa à ordem da castração, se deixa atravessar por outro
corpos, se dispersa em percepções alucinadas ou encena
próteses monstruosas, este fica sendo território da psicose ou
da perversão, lugares que a psicanálise ainda não se aventura
muito, por serem territórios por demais sinistros e
incontroláveis. [REIS, 1997, p. 337]
Neste trecho, fica clara a proposta de captura do corpo operada pela psicanálise e, ao
mesmo tempo, suas vias de escape. Assim, ao querer capturar o corpo em modelos de
interpretação, a psicanálise opera, ao mesmo tempo, um deslocamento de proposta de
pensar o corpo, inova, ao considerar a linguagem do corpo como algo passível de ser
interpretado. Dá um novo dom a este corpo. Por outro lado, a psicanálise também
captura o corpo em formas de linguagem que não permite a este corpo novas
possibilidades. Porém o próprio Freud reconhece, em seu texto, Análise Terminável e
Interminável, os limites da interpretação na medida em que nos diz que em momento
algum, afirma a completa eficácia do tratamento analítico, nem num sentido estrutural
(qualquer pessoa, mesmo sendo neurótica, é passível de análise, independente de sua
constituição egóica e pulsional); nem num sentido temporal (mesmo que a análise seja
bem-sucedida, nada garante que, depois de um certo tempo, aquele próprio paciente
venha a ter “recaídas”, seja devido à força das vicissitudes da própria vida; seja por
enfraquecimento do ego diante de tais vicissitudes).

Deste fato, podemos pensar a questão da interpretação nos seus limites: a


interpretação analítica, pelo menos, esbarra em muitos fatores que não conseguem ser
“traduzidos”, ou seja, há um limite para a interpretação. Tal limite pode ser encontrado
nas relações entre o ego e a pulsão. Mas, o que nos diz tal relação? Freud aponta para
três fatores decisivos para o sucesso do tratamento analítico: “a influência dos traumas,

157
a força constitucional das pulsões e as alterações do ego”16. Destas ele destaca a força
das pulsões, que não seria apenas constitucional, mas que sempre remete a uma ocasião
na vida do paciente. A questão do fim da análise nos remete ao problema da
interpretação na medida em que, para o tratamento analítico, não há como delimitar um
fim. É claro que, como Freud mesmo aponta, uma análise termina quando analista e
paciente não se encontram mais. Mas, dito de outro modo: será possível um
esgotamento da interpretação? Freud nos diz que não. Inicialmente, não conseguimos, é
claro, transformar todo o conteúdo inconsciente em algo consciente. Além disso, há um
constante investimento da pulsão que não se esgota nem na relação analítica
(transferência), nem em qualquer relação estabelecida pelo paciente futuramente. Não
há previsibilidade possível, nos alerta Freud. Daí uma certa “interminabilidade” do
tratamento analítico. O que se propõe então, é um fortalecimento do ego, a tal ponto que
este se torne “forte” o suficiente para lidar com futuras vicissitudes.

Ainda neste texto, encontramos um caminho que nos leva de volta ao texto de
Ricoeur: se pensarmos no que Freud fala a respeito da pulsão, podemos perguntar: o que
significa dizer que há uma força da pulsão? Freud ressalta a questão da economia, e seu
conseqüente remetimento ao fator quantitativo na análise. O conceito de repressão
aponta para este fator e, para Freud, o fortalecimento do ego ocorre também de uma
forma que poderíamos entender como sendo quantitativa. Mas, qual seria o papel da
interpretação neste sentido? O próprio Freud nos alerta, como dissemos acima, para a
questão de que, se um conflito não está presente na análise, o analista não tem nenhum
poder sobre ele, portanto, não há interpretação possível de conflitos que não surgem no
setting analítico (ou seja, que não ocorrem na transferência): “Se um conflito pulsional
não está presentemente ativo, se não está manifestando-se, não podemos influenciá-lo,
mesmo pela análise.”17 Se fosse possível “prever” todos os eventuais problemas futuros
do paciente, poderíamos dizer a ele o que fazer quando estes conflitos surgissem. Mas,
Freud nos alerta que mesmo falando ao paciente sobre a possibilidade de outros
conflitos pulsionais, tal relato não produz efeito algum no paciente, segundo ele: “O
resultado de “instruir” o paciente acerca de futuros conflitos para fortalecê-lo] não

16
Freud, Análise Terminável e Interminável. In. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, Vol. XXIII, pg. 256.
17
Freud, op. cit., pg. 263.
158
ocorre. O paciente escuta nossa mensagem, mas não há reação.(...) Aumentamos seu
conhecimento, mas nada mais alteramos nele.”18 Este fato é bastante significativo, pois,
a questão do sentido não pode estar desvinculada da força pulsional. O que significaria
tal fato? Em última instância, a psicanálise não pode abrir mão disto que Paul Ricoeur
nos diz em O Conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica: que nenhum dos
dois fatores que influenciam o pensamento de Freud podem ser negligenciados. Nas
palavras do autor:
O problema hermenêutico encontra-se, assim, situado do
lado da psicologia: compreender é, para um ser finito,
transportar-se para outra vida. [Que] nos remetem a uma
problemática muito mais fundamental: como a vida, ao se
exprimir, pode objetivar-se? Como, ao objetivar-se, elucida
significações suscetíveis de serem retomadas e
compreendidas por outro ser histórico, que supera sua
própria situação histórica? Encontra-se posto um problema
maior (...) o da relação entre a força e o sentido, entre a vida
portadora de significação e o espírito capaz de encadeá-los
numa seqüência coerente. Se a vida não for originariamente
significante, a compreensão será sempre impossível.19

O que podemos perceber, a partir das considerações postas acima, é que a


interpretação não pode abrir mão da historicidade da narrativa. Se, para Freud, a força
da pulsão está intimamente ligada ao sentido, a significação destas forças desejantes,
então não é possível pensar o corpo sem interpretação. Porém, tal interpretação não
pode ser considerada como algo esgotado, finito, algo que se apresenta para além da
vida, das circunstâncias. “O gênio não se deixa prender, o corpo não deixa esclarecer as
suas causas e seus efeitos, há sempre um pedaço que fica na sombra, que se encolhe
enquanto outro incha; se oculta enquanto se mostra; um efeito colateral quando há uma
cura.” [REIS, 1997, p. 338] O corpo não é algo que se apresenta em sua clareza, seja
pelo sintoma, seja pela interpretação. A objetividade do corpo não é algo que possamos
apreender, nem mesmo pela interpretação.

No texto de Serres, encontramos esta mesma mobilidade, Hermes não se deixa


capturar, em sua trajetória fugidia, produz significados, mas escapa, encontra-se sempre

18
Freud, op. cit., pg. 266.
19
Ricoeur, Existência e Hermenêutica. In. O Conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica, pg.
9.
159
em outro lugar. Sobre esta mobilidade de Hermes, podemos nos remeter mais uma vez
às entrevistas de Serres:
Poderia chamar imperialistas os comentários que outrora
criticava (...) porque utilizavam uma única chave para abrir
todas as portas e janelas: a chave-mestra psicanalítica,
marxista, semiótica, e assim por diante. (...) Sempre que se
procura abrir uma fechadura diferente, é necessário forjar a
chave específica, portanto, evidentemente irreconhecível e
sem equivalente no mercado dos métodos. [SERRES, 1996,
p. 129]
Serres não concebe nem o corpo e nem mesmo a realidade com algo passível de ser
capturado, posto em uma única porta, na qual se possui uma única chave. Neste sentido,
a interpretação deve ser exercida, a todo tempo e em todos os lugares. Serres multiplica
seus personagens conceituais, lhes dá uma forma de atuação, doa a eles sua existência,
porém, não inscreve seus personagens sem mundos que lhe são estranhos. Todos os
personagens habitam seus lugares próprios, constituem seu próprio mundo e dão
sentidos novos ao mundo que conhecemos. Por outro lado, os personagens conceituais
não se apresentam de forma isolada, não são aquilo que se apresenta apenas numa
parcialidade, eles constituem sínteses do mundo. “Imagine um ponto, e extraia dele um
mundo. (...) A demonstração traz a transparência a um lugar extremamente obscuro, um
raio de sol que passa por um buraco. [Idem, p. 135]

Serres nos apresenta seus personagens para que possamos compreender a


interpretação de uma maneira diferente: qualquer conceito pode ser pensado em termos
de narrativa, qualquer interpretação pode ser pensada como ambiguidade na medida em
que sempre se refere a algo que não está dado. A interpretação ocorre interligada à
narrativa na medida em que os personagens não pretendem ser qualquer outra coisa, a
não ser personagens, a não ser narrar suas histórias. Fica claro que o uso deste termo já
nos entrelaça com a narrativa, pois, os personagens são sempre narrados, nunca são
passíveis de serem retirados de seu próprio contexto. Os personagens possuem uma
natureza dupla: são ao mesmo tempo locais e globais. São locais porque, como
dissemos, se apresentam em seu contexto, mas, são também globais porque sua
apresentação, sua cena, ultrapassa os limites de sua própria narrativa. A síntese exercida
pelo personagem, faz com que este extrapole seu lugar de nascimento, esta é sua
produção de sentido, o que requer interpretação. Não é sem motivos que Serres
apresenta a narrativa com forma do pensamento: é a narrativa que nos move, que requer

160
interpretação, que nos incita a estabelecer novas relações. Neste sentido, podemos
ampliar nossas considerações sobre a interpretação para que ela abarque a narrativa em
sua totalidade e, mais especificamente, a narrativa de mais um dos personagens
construídos por Michel Serres, o corpo.

3.3 – A narrativa do corpo

Narrar o corpo não significa reduzi-lo ao simbólico, nem mesmo significa


interpretá-lo. O corpo se metamorfoseia e é exatamente sua forma metamórfica que
produz a narrativa. Neste sentido, a narrativa se apresenta em sua historicidade, no
traçado de um caminho que produz seu sentido na medida em que se constitui. A
narrativa não é algo que pode ser previsto, não é uma forma linear de compreender os
acontecimentos. “Subitamente, o sentido muda de sentido; ora, o sentido nasce quando
o sentido muda, seja de direção ou de significado” [SERRES, 2008, p. 133] A
historicidade se constrói nesta mudança de sentido, a narrativa se delineia nestes
caminhos sinuosos através dos quais é possível construir uma história.

3.3.1 – Histórias e narrativas no pensamento de Serres:

Neste ponto, é necessário que consideremos com mais detalhes o que significa a
história para Michel Serres. No início do seu livro O Incandescente, Serres nos
apresenta uma cena na qual mostra as várias possibilidades de narrar uma paisagem:
uma menina em relação a um brinquedo, um homem em relação a uma casa, uma casa
em relação a uma montanha. É importante considerar a própria relação, nenhuma
narrativa se apresenta isolada, nenhuma história é construída por um único fato. O
entrelaçamento das histórias é o que caracteriza a narrativa. Para Serres, a história não
se apresenta apenas como um fato ocorrido, inquestionável, mas como a possibilidade
de ligação que qualquer fato, qualquer acontecimento comporta. Podemos pensar a
história como a tapeçaria de Penélope: no momento em que se constroem suas ligações,
seus nós, sua tessitura, Penélope faz surgir o mundo, porém, esta tessitura é desfeita, é
reorganizada, da mesma maneira que a volta de Ulisses se apresenta tortuosa, uma
chegada que nunca se completa, uma história construída de idas e vindas. A história é a
construção de narrativas, sua concatenação. Não há história linear porque são possíveis

161
vários agrupamentos, várias relações, conexões diversas que se costuram numa
narrativa.

Por outro lado, a história não é um nivelamento das narrativas, mas, sua
complexificação. Colocar várias histórias em relação é buscar um sentido novo, é
construir conexões até então não apresentadas.
Assim como Copérnico e Galileu com sua ciência mecânica
mudaram nossa antiga percepção dos movimentos terrestres
em torno do sol, também você doravante contempla
maravilhado essa nova metamorfose na duração, uma
sucessão de relógios escalonados cujas engrenagens, umas
imensamente lentas – estrelas e montanhas – outras
prodigiosamente rápidas – menina e boneca – contabilizam o
tempo. Cada uma delas em seu ritmo, ou melhor, em seu
tempo, presta-se ao prazer do olhar e à privação quase
imóvel do sentido da visão. [SERRES, 2005, p. 15]
Da mesma forma, Serres nos apresenta a relação da rosa e do jardineiro: a brevidade da
rosa dá sentido ao jardineiro ao mesmo tempo em que a perenidade do jardineiro
constitui um sentido para a própria rosa, sua própria possibilidade de existência. O que
permanece como história, é exatamente a construção deste sentido, desta relação: duas
narrativas que se apresentam interligadas. No pensamento de Serres, podemos chamar
de história o que ele denomina de Grande Narrativa, na medida em que a Grande
Narrativa é a própria possibilidade de constituir relações entre várias narrativas até
então desconectadas: humanidades, ciências da natureza, literatura, religião. Em seu
trabalho, Serres nos apresenta o tempo todo, sua Grande Narrativa: um sentido
construído a partir da tessitura dos saberes, filosofia mestiça, filosofia dos corpos
misturados.

As narrativas multiplicam o tempo e nos fazem compreender de maneira


diferente a duração. Não se trata de pensar a duração em oposição ao tempo linear,
trata-se de considerar a duração em sua variedade. Como dissemos anteriormente, o
tempo não passa, o tempo percola. “Quando dizemos que o tempo corre, esquecemos
que o verbo latino colare significa filtrar uma mistura de elementos diversos. Como é
possível constatar, ele percola mais do que corre: ele filtra. Ele passa e não passa.”
[SERRES, 2008, p. 138] Não há um tempo adequado ao qual a duração se oponha,
todas as coisas possuem uma historicidade própria na medida em que se apresentam
pela sua duração, em relação a outras. A história, portanto, não é apenas a contagem do

162
tempo, a apresentação sucessiva de fatos, é escolha, é filtragem de fluxos. Quando se
pretende narrar, se escolhe o caminho que deve ser seguido a partir do entrelaçamento
de personagens e paisagens. Cada componente possui sua própria história, sejam
aqueles que se apresentam na cena, seja a própria cena. No livro O Contrato Natural,
Serres já nos chama a atenção para tal fato: o cenário não é algo imóvel, não é apenas o
suporte da cena, é também parte da narrativa. O que deve estabelecer este contrato
natural é exatamente a possibilidade de inserir a paisagem na história, torná-la mais um
dos personagens. O contrário disso é o que se apresenta comumente:
Fazei desaparecer o mundo em redor dos combates,
preservai apenas os conflitos ou debates, densos de homens,
puros de coisas, e terão o teatro, a maioria de nossas
narrativas e filosofias, a história e a totalidade das ciências
sociais: esse espetáculo interessante a que chamamos
cultural. (...) A nossa cultura tem horror ao mundo.
[SERRES, 1990, p. 14]

Para que possamos pensar o trabalho da narrativa, é necessário que haja uma
compreensão do corpo como paisagem, como outra maneira de narrar a própria história
a partir de lugares e de tempos que percolam. Para Serres, compreender esta narrativa
implica numa possibilidade de pensar a própria paisagem como manto, como corpo:
O corpo se junta por membros esparsos, uma roupa é
montada por peças e costuras, seria de pensar que a
paisagem veste o corpo de minha mãe Terra, os semideuses
do panteão pagão a prenderem jóias, aqui e ali, para adorná-
la? (...) Não perguntem mais como se vê uma paisagem,
pergunta de criança mimada que nunca trabalhou,
descubram como o jardineiro a desenhou; como, desde há
milhares de anos, o agricultor lentamente a compôs para o
pintor que a expõe ao filósofo, nos museus e nos livros.
[SERRES, 2001, p. 242]
A paisagem-corpo, apresentada para nós historiciza também o mundo. A narrativa se
amplia, a paisagem se torna personagem.

3.3.2 – O corpo-narrativa: construção de caminhos possíveis

É a partir da possibilidade de pensar a história como constituição de personagens


que o corpo emerge como forma narrativa. A construção de narrativas faz com que o
corpo se apresenta como lugar múltiplo, mais uma vez. A construção mosaica do corpo
faz com que este corpo seja sempre um equilíbrio frágil, fugidio.

163
Quem sou eu? Não apenas o nível evolutivo da escala que
indica a idade e o estado civil, mas também os níveis
sucessivos de uma boa parte de sua extensão. Meu tempo se
expande sobre a duração do mundo; mais que isso, mergulho
por inteiro em seu tempo. Composto de ritmos variados, meu
corpo passa do efêmero a milhões de séculos, em suma, sou
tão velho que minha vida e a história quase não têm
importância. [SERRES, 2005, p. 18]

Por outro lado, o que faz um corpo ser como tal, é sua permanência, sua
perenidade no tempo. Desta forma, podemos pensar que o corpo se constitui também
como forma de narrar, de apresentar sua estabilidade pela concatenação de histórias.
Compor um corpo, como o corpo de Arlequim é, sem dúvida, construir uma narrativa na
qual os pertencimentos se entrecruzem para constituir uma unidade que ganhe esta
denominação: corpo. Mas, como percebemos acima, é possível pensar o corpo de uma
maneira diferente: como forma de duração da própria espécie, da própria vida e, em
última instância, do próprio universo. O corpo inserido na Grande Narrativa faz parte de
uma história que o precede infinitamente, que o conecta a narrativas que o ultrapassam e
que fazem transbordar seu próprio sentido.

Entretanto, o corpo não é significado apenas desta maneira como colocamos


acima. Na verdade, raramente reconhecemos o corpo como parte desta Grande
Narrativa. É muito mais comum que possamos pensar o corpo numa relação com nossa
própria história, como personagem construído de maneira local, pelas suas relações
próximas. Como personagem o corpo se insere na temporalidade da história, pode ser
compreendido em sua própria ambigüidade: permanência que se desfaz. A duração do
corpo nos permite experimentar esta ambivalência:
À angústia pascaliana diante do silêncio infinito das
extensões cósmicas, sucede o maravilhamento de quem
flutua de corpo e alma numa duração em que ritmos e
distâncias proliferam de maneira quase infinita, desafiando a
intuição tanto na formação das coisas quanto na brevidade
do momento. [Idem, p. 17]
O corpo comporta esta angústia; entretanto, não se vale dela para simplesmente se
tornar crítico. No pensamento de Serres não cabem nem a denúncia, nem a suspeita, e
nem mesmo o tédio niilista, armas poderosas que promovem a separação, a distinção e a
indiferença. Para Serres, as texturas, as potências, as narrativas se apresentam como
possibilidade de ação “O que há de interessante? O advento. O nascimento. O quente
raro, não o frio regular. O despertar; nem o sono, nem o sonho. A invenção da
164
sobrevivência. A saída da caverna e do túmulo. Pensem sempre em sair. Em nascer para
vencer a morte.” [SERRES, 2008, p. 129]

Na construção da Grande Narrativa, o corpo se apresenta como mais um lugar


nesta construção, uma parte da tessitura, local e global ao mesmo tempo. No encontro
destas duas possibilidades, o corpo inventa posicionamentos, cria novas ramagens,
apresenta-se incandescente.
Composto de corpo e germes, o ser vivo associa em si
diversos ritmos fenotípicos, metabólicos e orgânicos que
medem o tempo e as combinações aperiódicas, dobradas ou
empilhadas, que ocultam e desvelam sua natureza: ritmos e
duração, períodos e processual, reversível e irreversível,
mensuração e natureza, memória e esquecimento. Uma
carteira de identidade branca que se mistura a uma outra.
[Idem, p. 299]

Por outro lado, ao construir mais uma narrativa, na qual o corpo se apresenta
nesta relação com o tempo e com a história não faz com que a construção de uma
narrativa, que leve em conta as culturas, as humanidades, as relações sociais seja
desconsiderada. A questão da angústia, indicada em linhas anteriores, não cessa de se
apresentar em nossas relações e escolhas. O corpo não se apresenta apenas como algo
que possui historicidade, mas, como dissemos, algo que constitui sentidos. Os
significados do corpo emergem em suas relações locais, mesmo que o sentido global
não lhe escape. No fim de seu livro O Incandescente, Serres toca neste problema:
Entendo vocês: nada nessa longa epopéia pode nos consolar
nem nos proteger do fato de que não nos entendemos, pois
não falamos as mesmas línguas. De nos odiarmos por não
praticarmos as mesmas religiões, de nos explorarmos porque
os que não vivem nos mesmos níveis econômicos
encontram-se indefesos, de nos perseguirmos, porque não
dispomos das mesmas formas de governo. Nada pode evitar
que nos assassinemos uns aos outros por todas essas razões.
(...) Pior ainda, a antiga cultura pela qual alguns choram,
embora fundada sobre os horrores da guerra de Tróia ou a
interdição do sacrifício humano sob o punho de Abraão, pai
dos monoteísmos, jamais nos livrou das violências infernais
do cotidiano da história, dos massacres dos gauleses, dos
índios, dos cátaros ou dos aborígenes, nem de Auschwitz ou
de Hiroshima. As ciências não ditam o sentido, somente as
culturas podem evocá-lo. [SERRES, 2005, p. 302]

Nesta longa citação podemos perceber que a preocupação de Serres, ao contrário


de nos parecer “distanciada” das questões da humanidade, se apresenta como forma de
165
deslocamento, como busca de construção de novos sentidos que dêem conta de
problemas que podem ser pensados como “humanos”. No Contrato Natural, Serres, de
alguma maneira, se apresenta como opositor da guerra para que aqueles que se
acostumaram a vigiar as relações humanas pudessem reconstruir suas conexões para que
nelas também coubesse o mundo. Ao invés de apontar para a Ágora, era precisa apontar
para as estrelas. Por outro lado, fica claro, em sua entrevista com Latour, que Serres se
preocupa muito mais com as guerras humanas do que propriamente com a ciência.
Classificar seu pensamento como Filosofia da Ciência é esvaziar toda a dimensão
política inserida em seu pensamento, é dividir as páginas de seu trabalho, amputar sua
produção. Ele nos diz que o problema do mal é, sem dúvida, o problema filosófico
primeiro.
Peço aos meus leitores que ouçam o deflagrar deste
problema em todas as páginas dos meus livros. Hiroxima
continua a ser o único objeto da minha filosofia. (...) Sim,
todas as ciências, umas após outras, mudavam, mas também
transformavam profundamente as relações que mantinham
com o mundo e com os homens. [SERRES, 1996, p. 28]

166
Considerações finais: Somos todos ciborgues?

No final do século XX, neste nosso


tempo, somos todos quimeras, híbridos –
teóricos, e fabricados – de máquina e
organismo; somos, em suma, ciborgues.
O ciborgue é nossa ontologia; ele
determina nossa política.
Donna Haraway

No decorrer de nosso texto, apresentamos o corpo sob diversos pontos de vista,


sempre a partir do pensamento de Michel Serres e de conexões possíveis entre este autor
e outros pensadores que se aproximam dele, seja de forma real, seja de forma “virtual”.
Traçamos então um caminho que se revelou muito mais heterogêneo do que
homogêneo. Buscamos pensar o corpo não a partir de uma subjetividade prévia, de um
sujeito anterior, que pudesse dar sentido a este corpo. Nossa proposta foi a construção
do corpo a partir de seus encontros, como dissemos diversas vezes ao longo do texto.
Para tanto, pensamos o corpo a partir de suas articulações com outros “personagens”
que serviram como “liga”, como sustentação para nossas reflexões, assim, o corpo
emerge como textura, potência ou narrativa. Com estes substantivos, buscamos refletir
sobre a virtualidade do corpo, suas possibilidades múltiplas, sua ausência de substrato.
Apresentamos, portanto, a multiplicidade do corpo, que não se confunde com sua
dispersão. Dito de outro modo, o corpo não é pensado como algo desconectado, como
partes independentes que se conectam, mas, como uma construção, que se apresenta
sempre completa, nos seus diversos modos. Não se trata de pensar a dispersão, mas, o
fazer prático, que torna o corpo sempre uma matéria moldável, flexível, ao mesmo
tempo, que se apresenta sempre como totalidade, como coerência, em quaisquer que
sejam suas apresentações.

Nossas reflexões se apresentam de uma maneira que pretende suscitar encontros;


dessa forma, não há nenhuma pretensão em se concluir este trabalho aqui. Entretanto, a
nossa intenção é de fazê-lo operar, é a de trazer uma provocação a mais. Nesse ponto

169
reiteramos que a nossa proposta é de trazer uma reflexão que nos faça pensar o corpo
em sua diversidade coerente, em sua forma política de apresentação. Mais uma vez,
fazer o corpo agir a partir de uma derradeira conexão: o ciborgue. Dessa maneira, não
nos cabe escrever uma finalidade para nosso trabalho. Cabe-nos, sim, trazer mais um
problema, uma vez que é a partir dessa problematização que este trabalho encontrará
novas conexões, novos pontos de estabilização que vão além destas páginas. O trabalho,
neste ponto, deve ser “vivo”, pulsante, provocador, como qualquer corpo deve se
apresentar, como abertura, ao mesmo tempo em que se delineia como coerência: um
invariante na variação.

Tentamos evitar aqui alguns reducionismos a respeito do corpo, apesar de


buscarmos uma proposta não tão extensa quanto o tema nos pudesse exigir. Nosso
cuidado em relação ao reducionismo se deve à preocupação em não pensar o corpo
como algo que sempre se apresenta em relação ou em oposição àquilo que podemos
denominar alma, consciência, sujeito pensante. Nesse sentido, buscamos compreender a
constituição do corpo sem subjectum, sem algo que subjaz à sua produção, ao mesmo
tempo em que pensamos o corpo sem distinções prévias. Porém, isso não quer dizer que
o corpo não possui diversas especificidades, diferenciações. O que desejamos discutir e
refletir, não é sobre a presença ou solidez do corpo, mas, sua fluidez, na medida em que
afirmamos a força das conexões. Por outro lado, não se trata de uma busca pelo
princípio e sim de uma tentativa de compreensão das forças de conexões, que quando
estabilizadas, apresentam mudanças, passagens, represamentos de fluxos contínuos,
contenção de intensidades. Tal apresentação se assemelha ao que dissemos no texto
sobre o nó. O corpo, em certa sentido, também pode ser pensado como esta diminuição
do fluxo, esse nó. Portanto, a constituição do corpo ocorre por estabilização de
potências, muito mais do que por definição de essências.

Para direcionar nossas considerações, é pertinente que busquemos, em nosso


mundo contemporâneo, uma nova maneira de pensar o corpo, que esteja de acordo com
nossa tentativa de reflexão. Assim, trazemos para nossa derradeira reflexão, a imagem

170
do ciborgue, apresentada por Donna Haraway em seu manifesto. Como dissemos no
segundo capítulo, não é como contraposição que devemos pensar nossa proposta
política e sim como uma busca de sentido que não se coloque nem de um lado, nem de
outro das dicotomias cristalizadas pelos embates oposicionistas. Não buscamos uma
oposição: buscamos mais enlaçamentos, mais conjunções, mais subversões do que está
dado como fim inexorável. Busquemos, então, a compreensão do ciborgue e sua
potência para nossos escritos.

Como nos indica Haraway, o ciborgue não é apenas uma imagem que se
apresenta como metáfora do corpo. O ciborgue é real, é nossa ontologia. O corpo
ciborgue não é apenas uma maneira de compreender o corpo, é sua possibilidade de
existência. O ciborgue é um manifesto a favor das misturas, dos abrandamentos das
fronteiras. Segundo a definição de Haraway:

O ciborgue é uma criatura de um mundo pós-gênero: ele não tem


qualquer compromisso com a bissexualidade, com a simbiose pré-
edípica, com o trabalho não alienado. O ciborgue não tem qualquer
fascínio por uma totalidade orgânica que pudesse ser obtida por meio
da apropriação última de todos os poderes das respectivas partes, as
quais se combinariam, então em uma unidade maior. Em certo
sentido, o ciborgue não é parte de qualquer narrativa que faça apelo a
um estado original, de uma “narrativa de origem”, no sentido
ocidental, o que constitui uma ironia “final”, uma vez que o ciborgue é
também o telos apocalíptico dos crescentes processos de dominação
ocidental que postulam uma subjetivação abstrata, que prefiguram um
eu último, libertado, afinal, de toda dependência – um homem no
espaço. [HARAWAY, 2000, p. 42/43]

O ciborgue então, se encontra nesse espaço entre um início e um fim. Encontra-


se, também no lugar da pré-definição, no qual as determinações não ocorreram e, ao
mesmo tempo, apresenta-se antes do fim, pois não requer finalidade última, haja vista
que é puro recomeço. O ciborgue é a encarnação dos delírios pós-humanidade, ao
mesmo tempo em que é a própria definição de humano, porque é pensado como
potência de conexões, como um invariante da variação, como um tecido de informações
e traduções – o que não significa dizer que o ciborgue é a própria experiência da
“libertação”. Por não possuir finalidade, o ciborgue não pode ser pensado como a
encarnação de nossa liberdade, uma vez que qualquer deslocamento o faz tender para
171
todos os lados. Dito de outro modo, o ciborgue está para além “do bem e do mal”;
entretanto, ao ser encarnado, ao se tornar uma prática, possui a gama de variedades
possíveis entre estes dois extremos.

Um corpo ciborgue, dessa forma, apresenta múltiplos ângulos e possibilidades,


pois é sempre múltiplo sem ser muitos. O ciborgue não é o fim da humanidade, como
dissemos, não é uma “nova forma” de compreender o homem, é sua ontologia. Mais
uma vez, a proposta do ciborgue abre muito mais caminhos do que captura nosso
objeto. O ciborgue pode ser superfície, potência, narrativa. No entanto, além disso, o
ciborgue não se apresenta como fechamento:

O ciborgue está determinadamente comprometido com a parcialidade,


a ironia e a perversidade. (...) Não mais estruturado pela polaridade do
público e do privado, o ciborgue define uma polis tecnológica
baseada, em parte, numa revolução das relações sociais do oikos – a
unidade doméstica. Como o ciborgue, a natureza e a cultura são
reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de
incorporação pela outra. [Idem, p. 43]
O ciborgue, como percebemos, é um projeto político; no entanto, que não delineia um
campo político tal como o conhecemos. O ciborgue não se posiciona por não acreditar
nos antagonismos de origem. Sua política é a de conexão, mas não de totalidade. Sua
herança é subversiva, é problemática, é traição. O ciborgue não possui posicionamento,
não é fiel aos seus pertencimentos: ele os subverte. Dessa forma, o ciborgue não cria
novas dicotomias, apresenta sempre os desvios possíveis entre os campos de
estabilidade, produz novas entradas, delineia novas saídas.

Podemos relacionar o ciborgue com a proposta de Serres de pensar o Terceiro


Instruído: também ambidestro, hermafrodita, anterior às divisões apresentadas pelas
propostas de submeter o corpo a essências prévias.

Não, não somos um, mas dois. Canhoto ou destro, o corpo de cada um
compõe-se de dois irmãos inimigos, gêmeos perfeitos, embora
enantimorfos, ou seja, ao mesmo tempo simétricos e assimétricos,
gêmeos concorrentes e contrariados depois de um deles já ter morto o
outro (...). Protesto contra a pena de morte nesta matéria, sou pelo
corpo reconciliado, pela amizade entre irmãos, enfim a favor desta
tolerância talvez rara do amor, que procura que o outro, seu
172
semelhante mais próximo, viva feliz e tenha no futuro pelo menos a
oportunidade ou o direito de nascer. [SERRES, 1993, P. 20]
O corpo que se submete a uma de suas essências, deve necessariamente “matar” seu
irmão, destruir seu contrário, submeter suas outras potências. A identificação a qualquer
pertencimento destrói as múltiplas possibilidades do corpo. Mesmo que pareça, a um
primeiro olhar, dicotômico, o trecho que transcrevemos anteriormente não busca apenas
a conciliação entre opostos que são contraditórios. Serres, que era canhoto de
nascimento, aprendeu a usar as duas metades do corpo, conciliou suas duas potências,
se posicionou antes da divisão, aprendeu a ter um corpo ambidestro, que, apresentando a
diferença entre direito e esquerdo, não desvalorizou as possibilidades de cada
posicionamento. Ainda sobre essa questão, Serres (2008) vai um pouco mais longe:

Quem sou eu? Essa bifurcação. O ponto de intercessão na


estrutura interna do escudo, figura cruzada em quiasma.
Esgotado, infatigável. Repelido, perdido de amor. Inconsciente,
ruidoso. Terra, e ar, rastejante, voador. Água e fogo, geada
incandescente. Entusiasta-indiferente. Atleta e aborto, vivo,
cheio de recursos. Gravidade e graça. (...) Eu mesmo e sempre
outro. Mestiço, completamente canhoto, Terceiro-Instruído.
Hermafrodita. Anjo e besta. Estátua e música. No final das
contas, choro de alegria. [SERRES, 2008, p. 101]

Mas, essas passagens, essas inclusões de outras potências não ocorrem de


maneira simples, pois o manifesto ciborgue não é um panfleto que se deve segurar.
Trata-se de uma proposta que se deve incorporar, não com aquiescência, mas, como
resistência. O que queremos dizer é que o corpo-ciborgue não advém pelas palavras ou
por teorias: advém por posturas corporais, por mudanças no corpo, mudanças que
trazem potências, inovações, formas diferentes de relação. O ciborgue requer
aprendizado, no sentido corporal, requer um novo corpo, que sustente as ampliações e
passagens. A aquisição de potências corporais não vem sem esforço, sem luta. No
entanto, não é uma luta contra o outro. É uma luta a favor do outro, como possibilidade
de incorporação de um outro. Para que isso ocorra, é necessário, muitas vezes, que uma
parte de nós pereça, ou, ao menos, que mude de função. Serres nos escreve sobre isso
quando cita, por exemplo, a liberação da memória promovida pelos bancos de dados.
Não se trata de pensar um enfraquecimento desta memória – mesmo que isso ocorra
efetivamente – mas, de buscar novas funções, novas maneiras de utilizar a memória. Da

173
mesma maneira que as mãos livres podem criar belíssimas obras, essas mesmas mãos
podem destruir com a mesma facilidade. Por isso, não é o uso dos instrumentos e das
técnicas que geram um empobrecimento ou enfraquecimento do corpo. Ao mesmo
tempo em que o corpo se deixa enfraquecer pelas facilidades e pela domesticação (como
nos dirá Serres em seu livro Hominescências), essas mesmas facilidades libertam o
homem de suas dores e de seus sofrimentos. Assim, o que pode ocorrer é justamente o
fortalecimento desse corpo a partir das potências apresentadas, novas formas de relação
até então não apresentadas. Se antes o corpo padecia de muitas dores, hoje ele se
apresenta “libertado” dessas para ser outro, para produzir novos corpos e novas relações
– até mesmo uma alma. Para Serres, é próprio do homem encontrar-se nessa oscilação:
tendemos, ao mesmo tempo para a guerra e para o amor. A cada metamorfose, nos
bifurcamos.

Frente à oscilação que nos é constituinte, Serres encontra num personagem


conceitual, deslocado por ele, mais um ponto relevante para nosso trabalho. No livro
Ramos, Paulo, discípulo tardio de Jesus, nos é apresentado, de uma certa maneira, como
um ciborgue, por subverter as ordens vigentes. Esta escolha se deve não somente à sua
fé, mas, principalmente pela mistura que Paulo representa: “Judeu, grego e latino, São
Paulo reunia em sua pessoa singular três dos antigos formatos que deram origem ao
Ocidente” [SERRES, 2008, p. 74]. Como encarnação dessa tripla herança, Paulo não se
submete a nenhuma delas, por isso pode criar uma nova civilização. Não há luta entre
contrários: há incorporação de oposições, tensões que se apresentam pela diferença,
deslocamentos de sentido, provocações.

Paulo não é nem o “formato-pai”, nem a “ciência-filha”. Ele é o que Serres


denomina de filho adotivo, porque não se apresenta nas oposições, pois ele é o enxerto,
a possibilidade de uma nova cultura que não se submete aos formatos antigos;
entretanto, também não se coloca no lugar da oposição, da rebeldia. É, nesse sentido,
uma herança subvertida, problematizada, pois traz a novidade sem esquecer suas raízes.

174
Por outro lado, essas raízes são múltiplas, advém de vários pertencimentos. A mistura
desses pertencimentos é que faz surgir a novidade de Paulo:

Paulo carrega sobre os ombros uma trindade universal de pais


universais. Imediatamente antes de afirmar: eu sou quem sou, não é
por acaso que Paulo se diz: um aborto (I, Cor., XV, 8); diz-se também
filho adotivo (Gal., IV, 5); não por figura de retórica, mas com toda a
verdade. Isso porque, ao isentar-se da lei, da sabedoria e do direito, ele
abandona os pais correspondentes e deseja que nos livremos deles.
Contingentes, a graça e a fé substituem a lei necessária; loucura e
vulnerabilidade substituem a sabedoria e a força. [SERRES, 2008, p.
91]
É nessa imagem de Paulo que encontramos, mais uma vez, a expressão política de
Serres: não se posicionar, se colocar no lugar da vulnerabilidade.

Além disso, Serres nos apresenta uma possibilidade de resistência que não passa
necessariamente pela guerra, pelo antagonismo. Para que qualquer antagonismo se
efetue, é necessário o que Serres denomina de “libido do pertencimento”, ou seja, é
necessário que se acredite tanto na herança, que ela se torna sua única possibilidade de
existência. O pertencimento a uma determinada “classe” ou “família” ou “grupo social”,
nos faz submissos à lei:

Cometemos a maioria dos pecados da carne de acordo com um


treinamento mimético, pela pressão dos pares e sob o entusiasmo cego
da coesão nacional, tribal, familiar... em virtude do corporativismo ou
da máfia. Quem tem a coragem do eu? Nós o cometemos com muito
mais frequência do que eu os cometo, visto que o pecado diz respeito
ao nós, ou seja e, à lei, e não ao eu pessoal, que dele nos liberta.
Quando São Paulo nos “liberta da Lei”, ele, que em princípio, livra
nossa própria identidade desse laço coletivo. [SERRES, 2008, p. 78]
Porém, não se trata de pensar a questão da Lei e do pecado de forma simplista e sim
como um formato, como uma maneira de aprisionamento do corpo, uma forma de
limitação das potências, de imposição de fronteiras, de adequação imposta ao corpo.
Além disso, o formato delineia o campo do pertencimento, porque organiza as
diferenças em campos opostos.

Por outro lado, Paulo não reproduz seus pertencimentos. Ele busca a libertação
operada pela “nova ordem”, impensável em sua época, de sustentar uma sociedade na

175
fraqueza. Apesar das muitas críticas – principalmente advindas do pensamento
nietzscheano, sobre a fraqueza – Serres busca pensar “as boas-novas” nesse lugar limite:
não como revolução, mas como proliferação. A colocação do corpo como algo “a ser
produzido”, portanto, não é apenas uma questão teórica, como já dissemos. Trata-se de
uma proposta prática, não no sentido de impor uma “nova ordem”; porém, no sentido de
produzir, nos pequenos espaços, nas pequenas relações, mudanças efetivas, que
proliferem pela própria práxis, pelo próprio fazer, pelas conexões locais. A produção de
desvios locais só se torna significativa porque contribui para o contágio, para a
disseminação de novos corpos, ainda não capturados, domesticados, submissos. Assim,
o ato inicial de Paulo, que Serres relaciona com seu testemunho do apedrejamento de
Estevão, é o de buscar uma inversão: ao invés dos pertencimentos, uma singularidade1.
A morte de Estevão configura o perecimento do eu em favor do nós. Nesse sentido,
Paulo não rompe com a tradição, mas, subverte-a, para que não haja uma única bandeira
de pertencimento. Assim, os ramos não se desprendem do tronco: vislumbram novas
paisagens, ocupam o espaço, e, principalmente, podem criar uma nova árvore, não
necessariamente igual àquela que o originou.

Portanto, essa disseminação não ocorre na busca de oposição, como já dissemos


anteriormente, mas, nos espaços cotidianos, nas transformações microscópicas. Essa
forma da novidade se apresenta de maneira sutil, tênue, porém, se apresenta a partir de
uma grande força: a conexão. A possibilidade de conexão, aquilo que denominamos de
Eros, é a força das alianças, a força que constrói encontros. Eros não é apenas a relação
entre opostos, é a própria possibilidade de conexão entre elementos díspares e
heterogêneos. Nesse sentido, Eros subverte os formatos ao produzir os ramos, as
bifurcações, as diferenciações a partir de uma origem comum. Para Serres, é Paulo que
nos mostra a possibilidade de emergência do eu:

O novo eu se constrói a partir de uma tríplice contingência: fé e


incerteza; esperança feliz cujo tempo é indeterminado; laços de Amor
incondicionais. Três debilidades, três forças. Menos de dois milênios
depois de São Paulo, Descartes tenta reconstruir o sujeito, ao tentar

1
Serres, na verdade, utiliza a palavra identidade. Para ele, identidade tem a apenas um sentido lógico: ser
igual a si mesmo. Para ele isso é absolutamente diferente do que ele denomina de pertencimento, que é
considerar a identidade como apenas um dos pertencimentos: ser negro, mulher ou europeu, por exemplo.
176
encontrar certezas. Duvido de que ele tenha tido êxito, uma vez que a
contingência e a incerteza, em resumo, a própria dúvida, presidem seu
nascimento e sua formação. (...) Fé, esperança e caridade descrevem a
não-ontologia desse novo sujeito, sua não-instalação, sua não-certeza,
seu não-ser, seu nada... o despertencimento da alma... [SERRES,
2008, p. 86]
O eu, que possui um corpo, que se apresenta como não-ontologia, é este que não
determina as diferenças a priori. Errante, o corpo adquire uma alma no movimento de
se produzir, na força das relações e na fraqueza de sua estabilidade.

A fragilidade dos ramos são sua própria força, uma vez que, em comparação ao
formato, à estabilidade e à certeza do caule, os ramos são apenas descrições frágeis, se
apresentam como expansão inconclusiva, afastamento da segurança. Assim, os ramos,
apesar de se prenderem ao caule, em contraposição a este são contingenciais É nesta
contingência que a novidade se apresenta – há sempre a possibilidade do enxerto, da
criação de uma nova relação. Nesse sentido, os ramos se apresentam como unidade de
medida, a qual todo tipo de ramificação se apresenta enfraquecido. Por outro lado, é
essa comparação que faz com que os ramos se diferenciem: “Dessa unidade de medida,
só podemos constatar que alguém que se compara a ela é nada: a relação com o absoluto
conduz aquele que se compara ao nada.” [SERRES, 2008, p. 89] Mais uma vez, Serres
busca compreender o corpo nessa desdiferenciação. Mas isso não implica uma oposição,
já que não há “descolamento” do caule. Ele nos dirá que, sempre em relação ao passado,
o que ocorre são bifurcações, diferenciações, produções diferenciadas. Porém, essas não
são vistas como produção do embate, da guerra, da oposição. Ser “nada” significa
exatamente se colocar no lugar da produção, sem se colocar como oposição. Por outro
lado, os embates também são pensados por Haraway:

Toda história começa com a inocência original e privilegia o retorno à


inteireza, imagina que o drama da vida é constituído de individuação,
separação, nascimento do eu, tragédia da autonomia, queda na escrita,
alienação; isto é, guerra, temperada pelo repouso imaginário no peito
do Outro. Essas tramas são governadas por uma política reprodutiva –
renascimento sem falha, perfeição, abstração. (...) Mas existe um outro
caminho para ter menos coisas em jogo na autonomia masculina, um
caminho que não passa pela Mulher, pelo Primitivo, pelo Zero, pela
Fase dos Espelho e seu imaginário. Passa pelas mulheres e por outros
ciborgues não nascidos da Mulher, que recusam os recursos
ideológicos da vitimização, de modo a ter uma vida real.
[HARAWAY, 2000, p. 98/99]
177
Em outro trecho, podemos encontrar mais um ponto de apoio para as
semelhanças traçadas aqui por Serres e Haraway. O incandescente de Serres se alia ao
ciborgue na medida em que Donna Haraway irá nos alertar para as infindáveis guerras
dicotômicas que assolam todas as propostas emancipatórias – inclusive as questões
trazidas pelas feministas.

Depois do reconhecimento, arduamente conquistado, de que o gênero,


a raça, e a classe são social e historicamente construídos, esses
elementos não podem mais formar a base da crença em uma unidade
“essencial”. Não existe nada no fato de ser “mulher” que naturalmente
una as mulheres. Não existe nem mesmo uma tal situação – “ser”
mulher. Trata-se, ela própria, de uma categoria altamente complexa,
construída por meio de discursos científicos sexuais e de outras
práticas sexuais questionáveis. A consciência de classe, de raça ou de
gênero é uma conquista que nos foi imposta pela terrível experiência
histórica das realidades sociais contraditórias do capitalismo, do
colonialismo e do patriarcado. E quem é esse “nós” que é enunciado
em minha própria retórica? Quais são as identidades que
fundamentam esse mito político tão potente chamado “nós” e o que
pode motivar o nosso envolvimento nessa comunidade?
[HARAWAY, 2000, p. 52]
No texto de Haraway, apresenta-se a preocupação da autora com o mesmo problema
que Serres denomina de pertencimento, e Haraway de identidade de classe. A partir de
todas as “conquistas” de oposição, caímos sempre no impasse de um novo poder, de
uma nova ordem opressora, que gera uma nova forma de embate.

Neste ponto de nossas reflexões, cabem algumas considerações mais detalhadas


sobre a questão do embate, em Serres. Uma imagem bastante significativa de como
Serres vislumbra o embate é o início de seu livro O Contrato Natural. Aí ele narra a
imagem de um quadro de Goya, no qual dois guerreiros lutam em meio à lama. Assim,
Serres nos chama a atenção para a colocação em cena do mundo nesse quadro: quanto
mais os guerreiros lutam entre si, mais eles afundam na lama. A luta entre os humanos,
ao mesmo tempo em que desconsidera as coisas, se afunda em sua “materialidade”.
Portanto, a questão se coloca de uma maneira diferente: não se trata de lutar contra
teorias, opondo saberes, delimitando territórios, mas de fazer a passagem das coisas e
dos homens por entre essas fronteiras. Num outro momento dessa mesma obra, Serres

178
nos fala de seus ensinamentos como marinheiro para pensar a política: no navio,
cercado pelo mar, é impossível ser recluso ou mesmo se voltar contra os outros homens,
a não ser que se ponha em perigo a volta de todos à terra firme. Serres utiliza-se da
oposição entre a Ilíada e a Odisséia para pensar a diferença entre o embate e o
isolamento de Aquiles, e a errância e a coesão dos marujos de Ulisses. Podemos
também pensar na obsessão do capitão Ahab em capturar a natureza representada pela
Baleia Branca de Moby Dick. Não se trata de uma luta, de uma oposição, quer seja com
os outros homens, quer seja com a natureza. Como ciborgues, o que se busca é
subverter os caminhos, abrir novas estradas sem pavimentá-las, sem torná-las
necessárias e, mais especificamente, não transformar os encontros em embates, em
disputas, em jogos de poder.

Por outro lado, o ciborgue não se apresenta como uma oposição ao “homem
natural”, encarnado como essência última, seja corporal, seja “transcendental”. No
entanto, ao mesmo tempo, o ciborgue não é puramente um homem técnico, uma vez que
não é a técnica que determina sua “humanidade”. Reiteradamente, percebemos que o
ciborgue não se posiciona nem como natureza e nem como cultura, do mesmo modo,
encontra-se entre natureza e técnica. Este ciborgue também se encontra no meio dessas
variações, se produzindo a partir delas e não antes delas. “Em uma ficção na qual
nenhum personagem é “simplesmente” humano, o significado do que é humano torna-se
extremamente problemático.” [Idem, p. 103] Nesse ponto, podemos vislumbrar que o
corpo não é, senão, mais um ciborgue. O corpo não se apresenta totalizado, depende
sempre de um “processo de corporificação” [Idem, p. 106] que o torna quem ele é.

Gostaríamos de finalizar este trabalho não apenas conectando Haraway e Serres,


como se existisse uma “real” conexão entre eles; entretanto, como forma de produzir um
deslocamento entre esses autores que nos permitam repensar nossas práticas, nossos
discursos e nosso posicionamento diante das propostas apresentadas em campos
diversos do saber. Nesse sentido, nossa política esboça um esforço contínuo em
constituir espaços de resistência que não apresentem totalidades prontas, fechadas.

179
Trata-se de repensar circunstâncias, posturas, arranjos que não pretendam ser modelo,
direcionamento e nem mesmo “ultimatos”. O que também não significa dizer que não
haja um posicionamento do autor em relação ao que está escrito acima. São coisas
diferentes que estão em jogo aqui: a postura do autor em relação ao que escreve, e a
crença deste mesmo autor de que aquilo que escreve esgota as possibilidades do que
está escrito. Como dissemos no início, este texto apresenta a trajetória do autor, nossas
conexões, nossas trajetórias, nosso posicionamento.

Por outro lado, este percurso não se apresenta como caminho único, apesar de
ser um caminho singular. Não há pretensão de esgotamento do tema, mas de
provocação, como já dissemos. Nesse sentido, encontram-se, nessas páginas, algumas
de nossas perspectivas sobre o corpo, aquilo que pensamos ser suas conexões, seus
engendramentos. Mais uma vez, nosso encontro com Michel Serres foi o que
possibilitou o desenvolvimento desta perspectiva, que nos fez pensar o corpo de uma
maneira tão singular e, ao mesmo tempo, tão diferenciada. Os esforços de compreensão
da obra de Serres formam, ao mesmo tempo, uma grande dor e um grande prazer, como
se seus escritos realmente penetrassem no corpo, fossem compreendidos muito mais no
corpo do que no pensamento. Daí a importância das leituras constantes, das múltiplas
entradas, de uma certa errância nas citações utilizadas aqui, além da extensão destas.
Não é sem propósito que o texto oscila, vagueia, num certo sentido, nos muitos livros
do autor e, ao mesmo tempo, se encontra tão conectado a este. Sua escrita favorece essa
navegação, é feita por um marinheiro que conhece os múltiplos caminhos do mar, que
nos apresenta o balanço das ondas e a fluidez necessária ao pensamento. Serres nos faz
pensar com o corpo e nos faz conectar nosso próprio pensamento a ele, como se fossem
dois a escalar uma montanha ou a navegar em uma nau. É assim que buscamos construir
nosso texto: com alianças, deslocamentos e traduções, fazendo torções e estabelecendo
encontros.

Em meio a esse turbilhão de idéias, recorremos, mais uma vez, ao pensamento


de Guimarães Rosa, que capitaneou o início de nossa navegação, e, como argonautas,

180
vislumbramos o que se fez corpo: nosso trabalho. E percebemos, navegantes que somos,
não o gosto da partida ou o da chegada, mas o gosto da travessia. No meio. Mar aberto
para mais buscas, mais investigações.

181
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