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O Golpe na perspectiva de Gênero/ Linda Rubim, Fernanda Argola (Organizadora s).- Incongruênc ias e dubiedades, deslegitimação e legitimação: o golpe
Salvador: Edufba, 2018. contra Dilma Rousseff
186 p. (Coleção Cult) Clara Araújo
ISBN: 978-85-232-1684-9 51
.: ..
Imag inário, mulher e poder no Brasil: reflexões acerca do
impeachment de Dilma Rouss~ff
I. Mulheres na Política - Brasil. 2 . Igualdade de Gênero. 3· Direitos das Mulheres-
Cláudia Leitão
Brasil. I. Título. II. Rubim, Linda. !li. Argolo, Fernanda.
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O golpe e as perdas de direitos para as mulheres
··········································-····················- ---············---·············..···------···············-·--·······-··················--·············---···· E-leonora Menicucci
EDITORA FILIADA À: 75
Uma mulher foi deposta: sexismo, misoginia e violência política
ASOCIAOON DE EOfTOfUAlES
VNM!RSITAAIA$ DE AMERJCA
LAnM. Y EL CAAIOE
Ancx&.çlo &r.ullelra
<S.s [dltor•s Unlnn:lt!rJu
CBaL
Câmara Bahiana do Uvro
Flávia Biroli
117
Mulher, negra, favelada e parlamentar: resistir é pleonasmo
Mariel/e Franco
127
O golpe de 20 16 e á demonização de gênero
Mary Garcia Castro
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" Prec isamos fa lar de Gênero" 1
Go lpe disfarçado de impeachment: uma articulação escusa contra as
mulheres
Linda Rubim*
Nilma Lino Gom es
Fernanda Argola**
161
Sobre o golpe e as mulheres no poder ..
OUuia Santana
Referências
BRASIL. Lei n 11 9-S04, de 30 de setembro de 1997. Estabelece
normas para as eleições. Diário Oficial {da) República Federativa
do Brasil, Poder Legislativo, Brasília, DF, 1. out. 1997. Disponível
em: <http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.
jsp?jomal=1&.pagina=1&.data=01/I0/1997>- Acesso em: 23 mar. 2017.
DILMA Rousseff e a resposta que demoliu o senador Agripino Maia
{DEM-RN). [S.l.): drrosinha, 2010.1 vídeo online (4 min), son., color. Incongruê n c ias e dubiedades,
O isponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Tiyezo1fLRs>. des legitimaçã o e _leg iti m ação:
Acesso em: 20 mar. 2017.
o gq lpe contra D il ma Rousseff
DI LMA Rousseff no ]ô Soares: entrevista completa. [S.l.): j p souza, 2015.
1vídeo online. {71 min), son., color. Disponível em: <https://www. Clara Araújo*
youtube.com/watch?v=V8m2ZL-MOP4&.feature=youtu.be>. Acesso
em: 29 m ar. 2017.
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será contada, também, como a história do forte conservadorismo pre- Tratou-se de proçesso ambíguo, vale sugerir. De um lado tais investi-
sente na sociedade brasileira, relacionado com dimensões de gênero. das, aparentemente, não surtiram muitos efeitos, ao menos eleitorais,
Independentemente das posições políticas professadas, do apoio ou inclusive após a exacerbação dos ataques à presidenta, a partir de junho
de críticas à presidenta, ao seu partido ou ainda à sua coalizão gover- de 2013.
namental, o fato é que se torna difícil para pessoas com um mínimo de Na eleição de 2014 o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi incisivo
compromisso com a igualdade de gênero, negar a presença dessa face, no cumprimento da Lei de Cotas· e no preenchimento das mesmas,
que antecedeu em muito o impeachment em si, vale registrar. elevando, finalmente, para 30% a porcentagem de candidatas. O tema
Argumentos de que os registros da presidenta sobre os preconceitos "mulheres no poder" estava mais presente na agenda política. Dilma
e a discriminação q~e sofreu se constituem em mera figura de retórica ganhou as eleições e sua aprqvação após junho de 2013 cresceu um pou-
não se sustenta à luz de um levantamento geral das notícias na mídia.' co mais entre as mulheres.l Em outras palavras, a presença de uma mu-
Desnecessário mencionar aqui aspectos mais brandos de coberturas de lher no cargo mais elevado da República parecia indicar o que a litera-
mídia, como desfile de estereótipos de gênero nas observações sobre tura denomina de "efeito da representação simbólica" durante parte do
roupas, cabelos, modos e estilos de vestimentas, entre outros. Os con- tempo em que Dilma esteve na presidência: mulheres no poder tendem
teúdos midiáticos em reportagens e editoriais são registros públicos. a estimula_r outras mulheres a pleitear ou a considerarem "normal" e
Por ora basta destacar a capa e a matéria da revista Isto É de n 2 2417, de possível disputar cargos. De outro lado, o trabalho sistemático, direto
o6 de abril de 2016, talvez o exemplar icônico dessas abordagens. e indireto de deslegitimação foi de tal monta que parece ter dissolvido
Entre os pontos que aparecem como recorrentes, e não só na grande o que poderia existir de simpatia por partes desses setores da popula-
mídia, mas também nessa arena hobbesiana que se tornou a internet, ção em relação à experiência e presença de uma mulher na presidência.
está o da desqualificação como deslegitimação. Embora a intensidade e O simbolismo inicialmente positivo (se é que de fato houve) se dissol-
o peso efetivo que tal aspecto adquiriu só possam ser melhor analisados veu e, parece, teve seu sinal invertido: de positivo para negativo.
com mais tempo, a indicação aqui cumpre o propósito da edição desta É sob este prisma que o texto faz uma reflexão inicial: parte de al-
coletânea: explorar os indícios, levantar as hipóteses e pensar o proces- gumas manifestações explícitas e de outras nem tanto enfáticas, para
so. Nessa perspectiva, o ensaio reflete sobre alguns exemplos de como pensa~ aspectos da desqualificação política com viés de gênero, que te-
o gênero teria operado como variável importante na deslegitimação' riam operado antes e durante o processo de impeachment. A prática,
de Dilma Rousseff para legitimar o golpe parlamentar. Tal caminho de como sabemos, não é nova e tampouco peculiar à figura da presidenta. 4
deslegitimação, porém, precedeu o processo da crise e do impeachment De fato, o novo está no processo, na raridade de mulheres ocuparem a
e ocorreu mesclado com outras dimensões da crise política em si. presidência; de ser atinente à primeira mulher a ocupar a presidência no
A tentativa de deslegitimação como forma simbólica parece ter Brasil; e, mais raro ainda, dessa presidência sofrer um impeachment.
acompanhado a trajetória de Dilma desde o momento em que seu nome
começou a ser veiculado como possível candidata à presidência; fez-
se presente no processo direto do golpe (BISCAIA, 2016; BOITEUX,
2016); e pôde ser notada mais de um ano após o golpe (maio de 2017).
CL/\R/1 1\RIIÚJO IN C ONGRU tl NCIIIS n D UBJ B DADES. D BS l.EGI T IM A ÇÃO E LEGI T IMAÇÃO
expressões neutras; e tendem a ser submetidos ao crivo público mais interesse particul~r do deputado, de pequenos grupos a partir de bases
intenso, em comparação com os homens. locais, ou de demandas eventualmente pouco republicanas. A nature-
No caso em lume - Dilma Rousseff corno figura política desde a za problemática do "varejo" reside, entre outros aspectos, na expressão
campanha até o impeachrnent- ao que parece, não foi suficiente que de seu antirrepublicanismo, já que, em geral, pautaria interesses muito
o carisma como "qualidade" estivesse ausente na pessoa da presiden- particulares, sem falar de práticas corruptas/ O "varejo" tem sido ob-
ta. Tampouco foi necessário afirmá-lo como atributo e referência para jeto de questionamentos e críticas constantes de vários setores da po-
marcar o que é ser líder e exercer uma presidência. Somaram-se vários pulação, incluindo atores políticos organizados, intelectuais e também
aspectos. E alguns refletiram questões inegáveis e específicas ao con- parte da grande mídia. Registre-se que parte das críticas não ocorre em
texto do país. Por exemplo, a referência temporalmente muito próxima decorrência da natureza pot~:co republicana dessa prática e, nesse sen-
do carisma incomum do presidente Lula, o papel desse "atributo" no tido, por ser condenável e anti-política. Advém da negação da própria
presidencialismo, bem como o contexto da cultura política brasileira, política. Nessa linha, o "varejo" torna-se a substância da política, numa
no qual a figura do líder ainda revela o peso das pessoas vis-à-vis o das associação indiferenciada e perversa com a ação política e com a figura
instituições. O problema, pode-se sugerir, é que em Dilma, a ausência do representante político em geral.
de carisma constituiu mais do que uma referência e um contraponto Em ambas as situações o "varejo" se nos apresenta como um proble-
negativos marcados e lembrados. Tornou-se a falta constante que aferia ma, e seria, portanto, uma prática condenável. No primeiro caso, seria
todo tipo discurso, para (des)qualificar qualquer que fosse a sua mensa- atitude antirrepublicana, porque o representante ou o indivíduo-de-
gem e o conteúdo de sua fala. A presidente Dilma não foi só destacada putado se locupleta com a coisa pública; e não está preocupado com o
como não-carismática, mas como aquela cujos discursos ultrapassavam bem-estar coletivo. Logo, atitudes para evitar esse tipo de negociação
o vazio do apelo e do conteúdo e eram sempre objeto de chacota e da fal- poderiam ser consideradas como virtude política. No segundo caso, a
ta dessa "qualidade" para governar. 6 Não que isso não tivesse ocorrido partir de uma percepção mais distorcida e simplificadora, o varejo es-
com Lula, por sua linguagem, sua escolaridade, entre outros aspectos, taria "no sangue" e o político seria alguém por natureza envolvido com
mas em Dilma foi também a sua associação com "mulher burra" que seus próprios interesses, que só entra na política para se locupletar e sua
fala "besteira" e não sabe o que diz. ação es~aria sempre ferindo o interesse do indivíduo-cidadão, que seria
Ao lado do carisma, o segundo exemplo de desqualificação a des- prejudicado frente ao Estado e à política. Neste caso, a recusa a agir de
tacar neste tópico é o das dinâmicas de negociações entre Executivo e tal maneira poderia ser vista, então, como algo positivo no mar de inte-
Legislativo; de como a presidenta e seus apoiadores conduziram-nas, resses escusos "dos políticos".
se de forma hábil ou inábil, mais ou menos apropriadas politicamente. À presidenta Dilma se atribuía dificuldade de lidar com o "vare-
Como é sabido, dadas as várias distorções e problemas de funcionamen- jo" das negociações nas relações Legislativo-Executivo. Costumavam
to do sistema político, as formas de negociação e a cultura política brasi- ser destacadas a sua falta de habilidade e de "apetite" para conduzi-las.
leira têm como uma das suas bases importantes o "negócio" parlamen- Seria de se esperar, então que daí pudesse advir alguma nota positiva,
tar individual ou o que denomino de "varejo". Ou seja, a negociação do ou mesmo que fosse ressaltada a sua virtude de não se apequenar, de
leitura não se fez presente no cenário. A "falta" e o "deslocamento" da terão menos e serão mais cobradas segundo os padrões vigentes.
presidenta desse campo das práticas políticas do varejo são os aspectos
destacados quanto ao seu estilo de negociar. Isto ora parece decorrer de
sua inexperiência política, ora de sua inapetência para a função, ora à sua Sobre a experiência, habilidade e as formas da (des)
inabilidade, ou ainda aos três aspectos juntos. A ética como elemento legitimação
constantemente acionado no discurso midiático, também não contou, Nas democracias modernas, a política envolve participação e repre-
nesse caso. Não se registraiiJ. outras leituras possíveis, como por exem- sentação. A participação política é uni termo amplo, que abarca as di-
plo, a de que tal resis_tência poderia sei uma janela de oportunidade para versas formas de ação coletiya dos sujeitos sociais com vistas a inter-
estimular ou desnudar a forma viciada de negociação, abrindo caminho ferir intencionalmente ou não, em determinado processo ou causa. A
para outro formato de prática política. política é, assim,"[...] o lugar em que se entrelaçam os múltiplos fios da
O ápice foi o episódio do processo contra Eduardo Cunha. A "inabi- vida dos homens e mulheres [...). Diz respeito à elaboração de regras ex-
lidade" de Dilma ou dos parlamentares de seu partido ficou associada plícitas ou implícitas acerca do participável e do compartilhável [.. .]".
ao fato de recusarem-se a negociar com o então presidente da Câmara (ROSANVALON, 2010, p. 72, grifo do autor)
dos Deputados a sua absolvição, na votação para abertura de inqué- A eleição é momento privilegiado para os cidadãos exercitarem seus
rito parlamentar que atingia o deputado. O ultimato fora dado como direitos. Eleições e partidos políticos são fundamentais, mas práticas
um xeque-mate: ou a bancada da presidenta recusa seu processo ou o públicas coletivas de participação e de deliberação são igualmente ne-
deputado aceitaria pedido de impeachment contra a presidenta. Os ·re- cessárias, pois eleições não expressam o todo democrático, embora
sultados são sabidos. E em que pesem todas as imputações de negocia- representem momento importante do processo. Pode-se elencar, por
tas, chantagens e outros aspectos da prática rotineira do então deputa- exemplo, a participação em movimentos sindicais, de bairros ou de gru-
do Eduardo Cunha, nos comentários da grande mídia ou nos diversos pos de interesse e de pressão; manifestações e presença em vários tipos
blogs de movimento~ politicamente contrários à presidenta, não foram de protesto, e assim por diante. Se essas e outras formas de ação coleti-
identificados quaisquer tipos de méritos no seu ato. No arco crítico em va faze~ sentido e são reconhecidas como parte da política, então não
relação à sua falta de habilidades e negociações, alinharam-se setores restam dúvidas de que o histórico de Dilma Rousseff é indissociável de
da direita e também setores de esquerda. A pergunta que fica então é se formas de participação política. Dilma fez movimento estudantil quan-
a mesma leitura poderia ser feita caso a presidência fosse ocupada por do secundarista. Foi de movimentos de resistência à ditadura, inclusive
um homem. Talvez... Não se pode errar em política. Errando, é melhor o guerrilheiro, único a ser lembrado por setores conservadores. Com a
que seja alguém "do ramo". Mas "ser do ramo" pode significar muita volta do exílio, atuou em movimento de mulheres, teve militância em
coisa ... De início é difícil fugir à impressão de que houve forte viés de partidos políticos, ajudou a fundar um dos mais importantes partidos
gênero nessa ênfase desqualificadora. Viés dúbio, registre-se, pois o no período da redemocratização e seguiu com militância partidária.
que fora execrado como problema se inverte e passa a ser lido como fal- A sua história remete à participação política desde adolescente e até o
ta e ausência de Dilma. Como diz Chapman (1993), qualquer que seja a
C LARA ARAÚJO
l
secretária de Finanças de Alceu Colares na prefeitura de Porto Alegre; sempre fora do lqgar. (COLLIN, 1991) Essa imagem parece ter sido um
secretária de Minas e Energia pelo estado do Rio Grande do Sul; minis- dos sustentáculos acionados para que se pudesse viabilizar a deslegiti-
tra das Minas e Energia no primeiro governo Lula e, posteriormente, mação política de alguém que precisaria ser apeado do poder.
ministra-chefe da Casa Civil desses governos. Neste último cargo, tor- A ambiguidade surge através da personificação de uma Dilma des-
nou-se responsável pela coordenação e gestão de alguns dos principais provida de substancialidade, vazia de atributos pessoais, de capacidade
programas de políticas públicas do governo Lula, associados com pla- intelectual, de experiência e de capacidade política, um ser vazio, apesar
nejamento e execução e que foram carros-chefes das políticas sociais de uma trajetória de vida intensa. Ao mesmo tempo, é o ser ameaçador,
e de desenvolvimento. Como se nota, são cargos públicos e políticos, autoritário, manipulador e ambicioso. Na vida pública, em um momen-
de governo, em nív~is estadual e nacional, normalmente identificados to é guerrilheira e, portantq, pessoa (ainda mais mulher) violenta que
como masculinos, estratégicos e não usualmente destinados às mulhe- pega em armas; em outro, é apenas a aparência de guerrilheira incapaz,
res. Por que será que "caíram" no colo de Dilma Rousseff? Não seria um sem coragem de pegar em armas ou de atirar; a ocupar meras posições de
pouco lógico pensar que isto se deveu, de algum modo, à sua vivência apoio, conforme sugerido por um colunista. Passa-se, assim, da violên-
política e que as suas qualificações técnicas lhes credenciavam para tais cia como perigo à ausência dessa violência como falha. (NUNES, 2017)
exercícios? No entanto, não foi o que se viu no Brasil. O currículo da No tratamento da sua vida privada a ambiguidade tende a perpassar
mulher política como aquela que não concorreu a cargos, o uso distor- a forma como suas relações familiares e afetivas aparecem: ora a mulher
cido da trajetória de militância e da inserção coletiva e o esquecimento solitária, separada, sem marido; ora a mulher casada duas vezes, mas
proposital de exercícios de cargos públicos eminentemente políticos fo- sempre submetendo sua vida (até suas escolhas de partidos) às decisões
ram objeto das narrativas mais convenientes à grande mídia, para parte de seu cônjuge, obediente e submissa. A sexualidade varia: da condi-
das elites brasileiras e também para redes sociais. E, mais preocupante, ção de assexuada à condição de lésbica; ou de assexuada à condição de
é o que continua a ser reproduzido. Já Macron e Doria ... histérica, o que responderia por sua possível irascibilidade, conforme
explicitado publicamente por jornalista de uma das grandes revistas
semanais de circulação nacional, posteriormente criticado pelo movi-
Experiências e "desp ersonificação" mento feminista.
Como sugerido, o período que vai da campanha eleitoral de 2010 até Como um ser "fora do lugar", Dilma parece surgir como aquela sem
o impeachment da presidenta pode ser lido como experiência prática de habilidades e apetite para governar (características estas marcadas por
desqualificação do sujeito político pelo viés de gênero, mas em dinâ- um estereótipo de feminino ou de masculino, a depender de quem as
mica ambígua. Por alguns ângulos, a experiência pode ser vista como tenha). Ao mesmo tempo, Dilma é alguém de natureza autoritária e
a forma através da qual Dilma como indivíduo, como pessoa sexuada e perigosa. Alguém ora sem condição de exercer uma agência de poder,
generificada, como candidata, como presidenta e como representante ora ambiciosa em excesso, a ponto de achar que poderia direcionar essa
de um projeto político foi construída (ou desconstruída) e corporificou agência prescindindo das práticas institucionalizadas da política bra-
um ser" fora do lugar", como costumam estar as mulheres em ambien- sileira. Sobre Dilma, transitou-se e transita-se entre excessos e faltas,
tes "não-familiares", ou mesmo nos familiares. A ambiguidade de estar nunca o equilíbrio.
nante. No passado, perigosa ou ingênua. No presente, não bastou ser 7 Nilo estão em quest:lo dimensões institucionais e sistêmicas problemáticas, como por exem-
plo, o número de partidos efetivos com os quais se tem que negociar (na Câmara dos
desprovida de qualquer virtude política. Foi necessário também o ridí- Deputados) ou a distribuição de recursos e financiamentos.
culo e o desrespeito; foi necessário transformá-la em pessoa assexuada 8 Ver como exemplo os três artigos escritos pelo jornalista Augusto Nunes no seu blog na revis-
ou sexualmente "desviante", desprovida de atrativos e de inteligência. ta Veja, entre os dias 13 e 15 de maio de 2017, respectivamente.
O gênero foi acionado. na maioria das vezes como recurso negativo da 9 Aqui, "agência" na acepção sociológica é usada como atributo do sujeito que age, e o faz in·
figura pública da mulher Dilma Rousseff, o que de certa forma é o pa- tencionalmente.
*Professora e pesquisado
No dia 15 de setembro de 2011, às 15 horas, entrei Centro de Estudos Sociai!
com a ministra da Cultura Ana de Hollanda na sala Apli-cados da Universida1
Esta-dual do Ceará (UECE
da presidenta Dilma Rousseff para apresentar-lhe e consultora para econorr
o anteprojeto do Plano Brasil Criativo, voltado ao criativa da Organização
Mundial do Comércio (OI
fomento da economia criativa brasileira.' Também e Conferência das Nações
participaram da audiência a ministra da Casa Civil, Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento (UNCT
Gleisi Hoffmann, além da secretária da presidência,
responsável pela ata da reunião. Depois de uma hora
de exposição e discussão, a presidenta determinou
que a construção do Plano seria liderada e coorde-
nada de forma compartilhada entre o Ministério da
Cultura (Mine) e a Casa Civil. Saímos, a ministra da
so
l
CLARA ARAÚJO
Cultura e eu, animadas com o êxito da empreitada. Naquele momento Segundo o socjólogo francês Gilbert Durand, o imaginário" é o con-
festejávamos a chegada da primeira mulher à presidência e ainda não ha- junto de imagens e de relações de imagens que constitui o capital pen-
víamos percebido que aquela vitória, inspiradora de uma nova ordem, sado do 'homo sapiens'". (DURAND, 1997 apud PITTA, 2.005, p. 15)
provocaria uma grande desordem e instigaria uma reação, especial- O imaginário enfatiza os significados dos símbolos e das imagens (em
mente dos segmentos sociais, políticos e econômicos do país. A vitória um mundo onde somente os conceitos ganharam hegemonia!), permi-
de Dilma Rousseff seria o nascedouro de sua futura derrota. A memó- tindo às análises históricas uma nova possibilidade de interpretação de
ria mais forte que guardo da minha experiência à frente da Secretaria fatos, representações, comportamentos, discursos e gestos, a partir de
da Economia Criativa é a daquela audiência, e a imagem recorrente é a um olhar menos positivista e mais complexo sobre a interação dos sujei-
daquela mesa, em q':le somente mulheres discutiam animadamente ce- tos com o mundo. Subjacente aos modos de ser e de agir dos indivíduos
nários, desafios e novos caminhos para o desenvolvimento brasileiro. nas sociedades, existe um repertório ou um repositório de arquétipos,
Como se sabe, depois de disputar e ser novamente vitoriosa nas símbolos e mitos. Desse modo, as pulsões subjetivas que respondem
eleições de 2.014, a presidenta da República foi afastada do cargo no dia às intimações objetivas das sociedades constituem o que Durand (1997
31 de agosto de 2.016, em uma votação no Congresso que se tornaria apud PITTA, 2005, p. 15) nom~ia de "trajeto antropológico", ou seja,
um dos episódios mais sombrios vividos por aquela Casa. Transmitido através dos gestos, símbolos e imagens de pessoas e grupos em um de-
pela mídia para todo o país, as imagens de centenas de deputados des- terminado tempo histórico é possível compreender a "bacia semântica"
tilando o seu ódio à presidenta, em nome de um discurso pautado em que nutre aquelas pessoas e grupos.
"Deus" e na "Família", demonstravam de forma monstruosa a ânsia do A antropologia do imaginário estimula novas questões e outros olha-
Poder Legislativo de retirar a presidenta do lugar de chefe de mandatária res sobre os estudos de gênero. Na busca de uma visão de mundo menos
maior da Nação. Havia, nas falas iradas e nos gestos patéticos daqueles cartesiana, os mitos e as constelações de imagens propostas por Durand
homens, um misto insuspeito de violência e de alegria. Era evidente subsidiam a construção de uma epistemologia significativa para a mu-
que a resistência da presidenta da República às pressões dos congres- dança de paradigmas nas reflexões sobre a mulher. Segundo ele, o mito
sistas, simbolizada pela sua insubmissão diante das demandas do então não é somente uma narrativa, mas um ato de pensar, um estado de espí-
presidente da Câmara, Eduardo Cunha, lhe custaria muito caro. Como rito em.busca de razões que escamoteiam o que é. (STRONGOLI, 2005,
compreender aqueles discursos e atitudes? p. 148) O mito conjuga sensibilidade e racionalidade, transformando,
Nesse momento, eu já havia saído no MinC e, como parte da popula- em linguagem e em relato, escolhas feitas que, por sua vez, organizam
ção brasileira, acompanhei pelas mídias a sua agonia. As análises relativas modos e modelos de ser.
a esse processo, quase sempre de natureza econômica e política, vêm su- As imagens organizam-se em constelações. Durand reagrupa as
bestimando outras dimensões que podem emprestar uma maior comple- imagens em dois regimes: o diurno e o noturno. Cada cultura possui
xidade ao fenômeno da sua deposição. Penso que os estudos de gênero pro- sua dinâmica, ou seja, sua forma de estruturar imagens, símbolos e sig-
duzidos pela antropologia do imaginário podem contribuir para ampliar nos. O regime diurno, marcado pela luz e pelas divisões, é caracterizado
as análises tradicionais sobre o poder, revelando novos olhares e outras pela sua estrutura heroica, que expressa o racional, o maniqueísmo, a
dimensões acerca do impeachment de Dilma Rousseff. excludência, a lógica da construção de heróis, o masculino. O regime
64 CLÁUDIA LEITÃO
famílias detêm o controle dos principais veículos de comunicação - Em menos de um ano, com uma voracidade jamais vista, desmonta-
pusessem em marcha a engrenagem que levou ao golpe. ram as políticas sociais que sustentam a.vida cotidiana, eliminam direi-
A esse agrupamento logo se juntaram setores majoritários da classe tos civis, sociais e trabalhistas que garantem a cidadania e privatizam
média, incomodados com a ascensão de milhões de brasileiras e de bra- bens públicos. A Petrobrás, que está sendo fatiada e vendida ao capital
sileiros ao que se convencionou chamar de nova classe média, ou me- internacional, é um bom exemplo disso. E mais, ameaça-se vender as
lhor dito, nova classe trabalhadora, que teve o poder de compra amplia- terras brasileiras a estrangeiros, o que é vetado até hoje. Ou a privatizar
do como nunca visto na história do Brasil. Reclamavam, por exemplo, o enorme aquífero existente no subsolo nacional.
de os aeroportos terem ficados parecidos com as estações rodoviárias São retrocessos decorrentes da implantação das políticas em que o
já que os aumentos de salários acima da inflação e uma melhor distri- foco não é a inclusão social.e de garantia dos direitos humanos funda-
buição de renda permitiu o acesso desses emergentes às viagens aéreas. mentais. Recentemente, o Ministério da Educação publicou as Diretrizes
Isso acabava com a distinção e privilégio que lhes parecia natural, Curriculares Nacionais, que vão orientar o ensino em toda a educação
quase um dom divino de não pertencerem à mesma classe social dos até básica brasileira. Elas foram fruto de um minucioso trabalho de consul-
então excluídos. Um grande número de novos consumidores passou a tas e discussões com todos os atores interessados durante o governo da
ter acesso também a celulares e à internet, à compra de automóveis e presidenta Dilma. No entanto, a nova versão do governo golpista elimi-
bens de consumo duráveis, acesso às universidades, entre tantas outras nou do texto todas as referências à gênero e orientação sexual. Um re-
conquistas que mudaram o panorama da vida brasileira. trocesso enorme nos direitos humanos, que visa atender os setores mais
Partindo dessa análise é que afirmo que estamos há um ano sob a conservadores e fundamentalistas da sociedade.
vigência de um golpe patriarcal, machista, sexista, capitalista finan- Esse conjunto de "reformas", com ingredientes de ordem política e
cista, fundamentalista, mediático e parlamentar que retirou da pre- social, se assenta em especial nas mudanças da política econômica, com
sidência da República a primeira mulher eleita e reeleita com mais de forte desregulamentação e orientação para os interesses do mercado.
54 milhões de votos. Ou seja, ness.e caldeirão de interesses, é preciso O foco está em arrecadar mais recursos para o pagamento dos juros
enfatizar a dificuldade em aceitar que o poder era exercido por uma exorbitantes da crescente dívida pública. Ou seja, parte do orçamento
mulher. E a trataram com a falta de cerimônia, civilidade e respeito da Un!ão é voltado para os rentistas, isto é o que se chama economia
que caracterizam o comportamento machista em relação às mulheres rentista. O capital financeiro aplaude e agradece. Enquanto a maioria da
em geral, como veremos mais adiante. população brasileira, pobre, é retirada do orçamento da União.
Quem são os articuladores desse golpe em vigência? São homens Um retrospecto da linha do tempo do golpe, que teve seu início com
brancos, ricos, violentos e vorazes que se explicitaram como estrutu- as manifestações de 2013, deixa claro que o capital que rege os envol-
rantes do patriarcado brasileiro que une gênero, raça e classe. A foto da vidos aproveitou e financiou as manifestações de direita, conhecidas
posse do ministério de Michel Temer chocou a população. Não havia como coxinhas. A primeira delas se deu com a violência sexual explícita
ali uma mulher sequer, ou uma pessoa negra. Todos se caracterizam contra a presidenta na abertura da Copa do Mundo em 2014, quando
por pertencerem à mesma classe social e aos mesmos grupos de in- torcedores ricos e da direita gritaram contra ela palavras de baixíssi-
teresse. E uma grande parte acusada de corrup'ção, hoje comprovadas mo calão e de significado sexual - "Ei, Dilma VTNC". Manifestação
por uma série de denúncias.
Flávia Biroli*
FLÁV I A DIROLI UMA MULHER FOI DEPOSTA SEXISMO. MISOCINIA E VIOLi!NCIA POLfTICI\
aqui é que um dos subprodutos das mudanças sociais e da atuação polí- tenha se iniciado em 2015, é claro, mas foi em maio daquele ano que o
tica de movimentos feministas consolidados a partir dos anos 1980 é a debate sobre gênero foi retirado pelos parlamentares do Plano Nacional
maior capilarização do feminismo na sociedade brasileira, que faz dele de Educação (PNE) e reações semelhantes pipocam em todo o país.
um fenômeno que, se não é novo, apresenta-se hoje com nova potência. Multiplicam-se ações contra os direitos das mulheres, sobretudo os di-
A internet e as novas formas de mobilização têm , certamente, um papel reitos sexuais e reprodutivos. {BIROLI, 2016a)
nessa capilarização e na forma hoje assumida por debates, manifesta- O sexismo atravessa quase todas as relações em uma sociedade como
ções e campanhas. a nossa, mas os estereótipos mais extremos, que negavam às mulheres
Por que trato desse contexto? O que ele nos diz sobre o golpe? competência para atuação política, vinham se tornando mais fracos e
Entendo que o golpe de 2016 depôs Dilma Rousseff em um contexto mesmo ausentes do jornalis.mo empresarial e do debate nas arenas for-
de reação às transformações na posição social relativa das mulheres e às mais. A visibilidade da própria Rousseff, quando ministra das Minas
poucas, mas significativas, conquistas no âmbito institucional. O con- e Energia (2003-2005) e da Casa Civil (2005-2010) e, depois, candi-
teúdo de classe do golpe, isto é, seu conteúdo antipopular, claramen- data à presidência seguiu padrões distintos daqueles que as ministras
te revelado nos desdobramentos posteriores- destruição da legislação mulheres dos anos 1980 e 1990 obtiveram em sua presença na mídia.
trabalhista que estabelecia garantias para trabalhadoras e trabalhado- (MIGUEL; BIROLI, 2011, p. 168)
res, por exemplo - é uma de suas faces; o conteúdo de gênero é, sem As narrativas enunciadas durante o processo de impeachment, no
dúvida, outra face. Ambas compõem o processo que converge na depo- entanto, mostraram-nos que os discursos misóginos não estavam, de
sição da primeira mulher a chegar à presidência. maneira alguma, neutralizados. Sexismo e misoginia participaram da
Assim que Rousseff foi deposta, o ministério de homens brancos construção de um ambiente político no qual uma mulher eleita foi con-
de Michel Temer passou a desfilar seus corpos e a disparar declarações testada em sua competência c deposta. Em alguns casos, a construção da
sexistas que indicavam su a distância em relação às transformações imagem de Rousseff e a configuração dos posicionamentos favoráveis
sociais em curso no país e sua convicção de que o lugar das mulheres a sua deposição podem ser descritos como formas de violência política
é na vida doméstica, garantindo assim o protagonismo m asculino. contra as mulheres, como defendi em outro local!Atingem Rousseff,
O amb iente em que as performances sexistas do novo establishment se ao mesmo tempo em que colocam em xeque a condição das mulheres
tornaram possíveis é aquele em que a competência das mulheres para a como atores políticos.
vida pública e, especificamente, para a política foi abertamente contes- Em revistas seman aisl, a estigmatização de Rousseff como incom-
tada. É, também, o ambiente em que foram rompidos laços e diálogo petente politicamente se deu no recurso a estereótipos convencionais
com os movimentos femini stas. de gênero, nos quais a mulher é associada ao destempero emocional.
A reação em curso contra os direitos das mulheres se tornou mais Em jornais diários, 4 a construção da presidenta eleita em imagens que
aguda, no Brasil, a partir de 2015. Os dois anos de intensa campanha de certo modo anunciavam sua deposição dentro de um ambiente po-
contra Rousseff e de tramitação do golpe parlamentar foram também lítico no qual diferentes tipos de violência ganhavam legitimidade an-
aqueles em que a noção de "ideologia de gênero" foi mobilizada para se tecipava um ambiente político em que posições de recusa aos direitos
restri ngir o debate sobre gênero nas escolas e a agenda da igualdade e humanos ganhariam maior espaço.
da diversidade nas políticas públicas. Não se trata de uma história que
PlÁVIA OIROLI UM A M ULHJ!R FOI DEPOSTA SBX I SMO , MISOCIN I A E VIOlilNCIA POLfTICA
A idcia de que se tratava de uma mulher perdendo o controle, inca- no processo de legitimação do impeachment sem crime de responsa-
paz de reagir com sensatez à crise política, atravessou todos os registros bilidade.s Poderiam ter sido outros os registros, mas foram, em abun-
e esteve presente em maior medida do que outras abordagens na mí- dância, organizados por estereótipos de gênero. O segundo conjunto
dia empresarial. O conteúdo sexualmente violento ganhava espaço na de problemas diz respeito à ofensiva conservadora em curso no Brasil
internet ao mesmo tempo em que a violência de gênero se expressava e na América Latina no que diz respeito ao papel social das mulheres e
na mídia empresarial pela estigmatização de Rousseff e das mulheres aos direitos conquistados nas últimas décadas. Convergem as ofensivas
como não capazes de atuação na política, sobretudo em contexto de cri- contra os direitos de trabalhadoras e trabalhadores e o ataque frontal ao
se. Nas redes sociais, as imagens que circularam em memes confirma- que vem sendo definido como "ideologia de gênero", que corresponde
vam que o espectro dos estereótipos aceitáveis se alargava. ao conjunto de conquistas e conhecimento acadêmico referenciado pela
Ao mesmo tempo, nos espaços institucionais, a presença massiva- igualdade de gênero. Mas uma vez, o apelo à neutralidade é uma forma
mente masculina dava seu recado com o slogan "Tchau, querida!", uti- de naturalizar perspectivas machistas. Desde a deposição de Rousseff,
lizado por partidos e parlamentares que se articularam para a suspen- acelerou-se um ajuste fiscal que restringe equipamentos públicos. res-
são do mandato de Rousseff. A ironia presente no "Tchau, querida!" se ponsabilidades do Estado e ações para a retirada de direitos e garantias
completava nos corpos. Nas imagens da votação, televisionada e tea- sociais. As reações são, assim, às mulheres na política e a uma condi-
tralizada, ternos e termos utilizados pelos parlamentares- 9 o homens ção de maior participação na vida pública. Em conjunto, reconfiguram
para cada dez mulheres nessa legislatura- ao votarem pela deposição de a participação social das mulheres e colocam em risco a posição em que
Rousseff e comemorarem o afastamento sem provas da primeira mu- a ofensiva conservadora e o governo pós-deposição querem colocá-las,
lher a chegar à presidência da República no Brasil apresentam uma gra- a de sujeitos na vida doméstica, mas não na vida pública; em outras pa-
mática de gênero bastante evidente. lavras, a de indivíduos domesticados. De muitas localizações sociais
Ao manifestarem seu voto, os parlamentares favoráveis à deposi- emergem vozes que deixam claro que as mulheres não aceitam essa res-
ção defenderam repetidamente a "família tradicional", modo de or- trição à sua condição de cidadãs. Os golpes que se recolocam desde a
ganização das relações historicamente desvantajoso para as mulheres. deposição se dão em meio a conflitos, o jogo continua a ser jogado.
O modelo de família que, para os parlamentares, permitiria um retorno
a u ma ordem desejada tem sido historicamente reduto de violência e
da exploração, expondo as perspectivas de gênero em jogo. O discurso N o tas
de ódio também esteve presente, na homenagem de um deputado ao Ver Brasil (2005).
torturador de Rousseff, que foi prisioneira política durante a ditadura 2 Remeto a discussões feitas em Biroli (2016c), nos quais situo o debate teórico e a legislaçào
sobre violência contra as mulheres na polftica. Os exemplos de que trato a seguir já foram
de1964. util izados no artigo ao qual remeto nesta nota.
Dois conjuntos de problemas precisam ser destacados, no meu en- 3 Para um exemplo, ver reportagem de capa da Isto é (2016).
tendimento. Um deles é o modo como sexismo e misoginia desem- 4 Para um exemplo. ver fotografia na capa de O Estado de S. Paulo. (FOGO ...• 2016)
penharam um papel na caracterização de Rousseff como incompe-
S Dil ma Rousseff evocou ela mesma o sexismo para explicar o impeachment. Para um exem-
tente e indesejável à frente do Executivo, definindo uma abordagem plo, ver entrevista à CNN. (DILMA ..., 2016)
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em:1o maio 2017.
88 MAIRA KUBIK MANO, MÁRCIA SANTOS MACtDO D IR E ITOS RI!I'RODUTIVOS, UM DOS CA MI' OS DE BATALHA DO GOLPE
que sustentam as desigualdades de gênero que, interseccionadas com do PSDB, José Serra, teria chamado a candidata petista de "abortista".
classe e raça/etnia, teriam o poder de implodir a sociedade tal como a Através da "Mensagem da Dilma", a então candidata à presidência veio
conhecemos. a público para garantir que não proporia a descriminalização ou a le-
galização do aborto, caso eleita, porque acreditava que esse era um as-
sunto que dizia respeito ao Legislativo. Ela começa a sua carta dirigin-
Situando o problema na conjuntura atual do-se ao povo "com carinho" e "respeito que merecem os que sonham
O historiador Lincoln Secco (201 2) afirmou em seu livro História com o Brasil cada vez mais perto da premissa do Evangelho de desejar
do PT que a "Carta ao Povo Brasileiro", lançada por Lula em 2002, antes ao próximo o que queremos para nós mesmos". (ROUSSEFF, 201 0)
de eleger-se pela primeira vez presidente da República, foi, em termos São muitas concessões feitas para um texto tão pequeno: a defesa da
gramscianos, a "pá de cal" do processo de transformismo do PT - ou manutenção da legislação atual sobre aborto; o comprometimento em
seja, a absorção do maior partido da esquerda brasileira por aqueles que não propor "iniciativa que afronte a famí lia" e a recusa da sanção do
já detinham a hegemonia do país. Para os dirigentes petistas, a condição Projeto de Lei da Câmara (PLC) n° 122 que torna a lesbo/homo/trans-
para vencer o pleito de 2002 dependeria de um amplo arco de alianças fobia crime, caso ele viole "liberdade de crença, culto e expressão e de-
com setores da burguesia nacional e com partidos do centro, da centro- mais garantias constitucionais individuais existentes no Brasil".
direita e da direita, aí incluso o Partido Social Cristão (PSC). Tais acordos Posicionamento semelhante foi também adotado, posteriormen-
não foram temporários, pelo contrário. Permaneceram vigentes no go- te, pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM)• por
verno e no Congresso Nacional, onde foram determinantes para a cons- Eleonora Menicucci, socióloga, feminista -e professora da Universidade
trução de uma maioria para uma certa "governabilidade". Até o ponto de Federal de São Paulo (Unifesp), ocupante do cargo durante o governo
ter Michel Temer (PMDB-SP) na vice-presidência com Dilma Rousseff. Dilma, entre 2012 e 2015. Ao assumir o cargo, ela declarou:
Mas, aprofundando a crítica de Secco, podemos considerar que o
Eu já dei entrevistas, sobretudo nos anos 70,80 e 90, quando o feminismo necessi-
longo processo de transformismo do PT teve, ainda, mais dois elemen-
tava de marcar posições e muitas mulheres ousaram dizer até da sua vida privada.
tos bastante dramáticos. Primeiro: seu envolvimento em denúncias
Não me arrependo, mas eu sou governo e a matéria da legalização ou descriminali-
de corrupção, em especial o conhecido caso do Mensalão, em 2005, e
zação do aborto é uma matéria que não diz respeito ao Executivo, diz respeito ao
aquelas decorrentes da Operação Lava Jato, que teriam feito com que
Legislativo.
o partido perdesse, aos olhos da sociedade, o diferencial ético em rela-
ção às demais agremiações- e, quando um partido de esquerda perde Tais pronunciamentos, longe de trazerem à tona posições pessoais de
sua distinção em relação a outros, isso abre caminho para uma extre- Menicucci e Dilma Rousseff, fornecem indícios da pressão que envolve
ma-direita, como alerta Chantal Mouffe (2015). Segundo: a divulgação tal pauta e do quanto ela foi objeto de negociação em prol da dita gover-
da "Mensagem da Dilma", carta lançada pela, à época candidata, Dilma nabilidade. Evidentemente que essa pressão já existia nos dois manda-
Rousseff, em outubro de 2010. Naquele momento, mais de 19 milhões tos do presidente Lula- visto que o PT historicamente se posicionou a
ele panfletos associando Dilma Rousseff à defesa da prática do aborto favor da legalização do aborto- mas certamente que ela aumentou no
foram apreendidos pela Polícia Federal e, somado a i~so, o candidato
MA filA KUBIK MANO, ~iÁRCIA SANTOS MA C ilDO D IR E I TOS REPRODUTIVOS, UM DOS C AMPO S DE BATALHA DO GOLPI!
momento da candidatura e, mais ainda, quando o país passou a ser di- passou a ser discutido no plenário, onde recebeu apenas elogios. Cinco
rigido por uma mulher. Afinal, poderia se pressupor que ela estaria do deputadas se pronunciaram, entre elas Iara Bernardi (PT/SP), a autora
mesmo lado daquelas que passam por interrupções de gestações, sejam do projeto, que ressaltou a importância de transformar o que já era um
elas desejadas ou não, por ocupar também o mesmo lado na divisão se- procedimento do SUS em lei, para garantir o cumprimento da preven-
xual do trabalho. ção às doenças sexualmente transmissíveis e à gravidez. Ela também
parabenizou a Casa "por ter concordado em colocar em pauta este pro-
jeto que está em discussão desde 1999. É uma reivindicação do movi-
O caso do PL n 11 60/99 mento feminista. Parabenizo a Casa inclusive pelo consenso construí-
O mais próximo que se chegou da discussão sobre aborto duran- do". (BRASIL, 2013b)
te os governos Dilma Rousseff foi com o PL n° 6o. Proposto em 1999 Pelos pronunciamentos, podemos apreender alguns pontos. O pri-
pela deputada Iara Bernardi (PT/SP), tinha o objetivo de dispor sobre o meiro é que as integrantes da Bancada Feminina estavam muito gratas
atendimento imediato e multidisciplinar para o controle e tratamento, ao presidente da Câmara Federal, Henrique Eduardo Alves (PMDB/
tanto do ponto de vista físico quanto emocional, da vítima de violência RN), hoje em cárcere, e à Casa Legislativa, por terem "permitido" que
sexual. Com a aprovação da lei, todos os hospitais integrantes do SUS o PL n11 60/99 fosse à votação após tanto tempo, justamente na semana
deveriam: 1) Fazer o diagnóstico e o tratamento das lesões físicas no do 8 de Março. Outro ponto relevante é que Nilda Gondim (PMDB/
aparelho genital e demais áreas afetadas; 2) Fornecer amparo médico, PB), Flávia Morais (PDT/G O) e Sueli Vidigal (PDT/CE), deputadas que
psicológico e social; 3) Facilitar o registro da ocorrência e encaminhá-la discursaram na ocasião, eram então integrantes da Frente Parlamentar
a órgãos de medicina legal e delegacias especializadas com informações da Família e Apoio à Vida e mesmo assim defenderam o projeto de lei.
que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da vio- "Todo mundo concordou com o PL 66/99 porque é uma coisa tão óbvia
lência sexual; 4) Fazer a profilaxia da gravidez e de doenças sexualmen- a proteção à mulher vítima de violência sexual que não houve, dentro da
te t ransmissíveis, assim como coleta de material para exame de HIV; e bancada, nenhum movimento contrário", explicou]ô Moraes (PCdoB/
5) Fornecer·informações às vítimas sobre os direitos legais e serviços MG), coordenadora da Bancada Feminina à época. (MANO, 2015b, p.
disponíveis. 231) Em entrevista posterior, a deputada Liliam Sá (PROS/RJ), evangé-
Até sua aprovação, o PL n 11 60/99 tramitou por apenas duas comis- lica, confirmou a afirmação de Jô Moraes:
sões (BRASIL, 2013a), em ambas com relatores do PT. Em os/03/2013,
Éum assunto polêmico. Eu sou evangélica, eu tenho uma posição em relação a esse
14 anos após sua proposição, ele chegou ao Plenário da Câmara para vo-
projeto. Mas como eu sou um agente público, eu tenho que olhar como um todo.
tação após um requerimento de urgência (no 6906/2013), novamente
Me colocar no lugar daquela família, daquela mãe. Eu sou a favor daquilo que está
por ação de um homem pctista, o deputado José Guimarães (PT/CE). O
escrito na Bíblia. Mas não tiro meu apoio dessas mulheres que necessitem dessa
motivo era aproveitar a efeméride do 8 de Março, Dia Internacional das
intervenção porque eu sei que é muito duro, é muito triste e doloroso. Então eu
Mulheres, para aprovar o projeto.
gosto de separar muito bem as coisas. Aquilo que eu penso, que é da religião, e
A alteração do regime de tramitação proposta por Guimarães foi
aquilo que eu tenho que fazer como agente pública. (MANO, 201 Sb, p. 231)
aprovada imediatamente pelas lideranças de todos os partidos e o PL
91 MllfRII KUBIK MANO, M. ÁRCIII SANTOS MIICilOO OIRIJITOS Rf\PROOUTIVOS, UM DOS CAMPOS Oll BATIILIIII 00 COLI'E
Chama a atenção o fato da deputada Liliam Sá reivindicar a separa- Não há, no que diz respeito às relações estruturais de sexo, a "posição de consciên-
ção entre religião e a representação pública, apontando que a Bancada cia" dos homens e a posição de consciência das mulheres, mas a posição dos ho-
Evangélica não deve, portanto, ser vista como homogênea - assim mens (com variações mais ou menos sutis) e as posições das mulheres. Há um cam-
como são diversas as denominações protestantes. Aparentemente, a po de consciência estruturado e dado para os dominantes, e de toda forma
sua percepção de pertencer ao grupo de mulheres deputadas e de seu coerente diante da mínima ameaça contra seu poder; e diversas modalidades de
mandato representar a população femin ina se sobrepôs à sua afiliação fragmentação, de contradição, de adaptação ou de recusa ... mais ou menos (des)
religiosa, o que pode demonstrar que, para algumas pautas, foi man- es trutu radas do lado das/os dominadas/os, modalidades cujo entendiment o pare-
tida a compreensão da necessidade de agir conjuntamente. Ainda que, ce particularmente difícil para um dominante.
l
O gênero no golpe Assim, considerando-se que a desigualdade brasileira se constitui
O dia era 17 de abril de 2016. Da mesma forma que, cinco anos atrás, o sobre os pilares de classe, mas também de gênero e raça/emia, tendo
país havia parado para assistir à posse da primeira presidenta eleita e vi- como pano de fundo o colonialismo, vemos como qualquer mudança
via o ineditismo de ter um corpo de mulher ocupando o centro daquele estrutural dependeria de uma ação articulada de enfrentamento nessas
ritual, mais uma vez era uma mulher o alvo daquele novo espetáculo três esferas. A disputa em torno do PL n!! 6022/2013 foi uma das muitas
m idiático. Com um placar final de 367 votos favoráveis e 137 contrários demonstrações da falta de capacidade de construção de uma direção po-
ao impedimento da presidenta, cada voto favorável foi acompanhado de lítica e ideológica que conseguisse garantir hegemonia. O PT ganhou a
um argumento que respondia às mulheres, trabalhadores/as, negros/ eleição, mas não levou o governo. A sociedade brasileira não foi, ao lon-
as, homossexuais e ~.vários outros grupos marcados como diferentes: go do tempo, convencida/co~quistada pelo projeto político do Partido
"Voltem para seu lugar!". Para Dilma Rousseff, as placas com a irôni- dos Trabalhadores- muito provavelmente porque, a este projeto, faltou
ca frase "Tchau, querida!" colocavam em evidência o caráter patriarcal, coerência e constância em sua apresentação. Dessa forma, apesar de não
conservador e, acima de tudo, misógino do golpe em sua face mais cruel se posicionar publicamente a favor do aborto, Dilma Rousseff sancio-
e repugnante. Como nos lembra Burigo (2016): "patriarcado é o siste- nou uma lei que garantia mínimos direitos das mulheres à revelia de
ma, misoginia é a indicação de sua existência, machismos são seus atos. uma base de apoio importante para o seu governo e viu, nesse episódio,
Na linguagem, no simbólico onde circulam informação e poder, encon- uma das mais agudas crises que antecederam sua deposição.
tramos evidências de todos". Isso pode explicar, também, porque, mesmo com todo o processo
Por outro lado, o processo atual vivido no Brasil não teve apenas um de transformismo e do esgotamento da experiência petista, ainda era
ponto de partida. Trata-se de uma crise múltipla- política, econômi- incômodo ter uma mulher eleita pelo PT na presidência. Com o esgar-
ca, ecológica- e não se limita às nossas fronteiras nacionais, mas é sim çamento da coalizão entre o PT e a base aliada, era melhor para a elite
permeada pelo cenário de crise global. Certamente que, na atual con- voltar a ter controle direto sobre o aparelho do Estado e garantir que
juntura, a resposta encontrada pelas elites para a "superação da crise" nenhuma concessão fosse feita - e, talvez, com isso, garantir que ne-
implica voltar no tempo e destruir, uma a uma, as recentes e ainda frá- nhuma outra ouse chegar aonde Dilma Rousseff chegou...
geis conquistas de nossa jovem e incompleta democracia. Parte de nos- Nessa perspectiva, adquirem dimensão simbólica e material vários
sas perdas do presente remetem à compreensão das profundas contra- aspectos em jogo no período que antecedeu ao impeach ment e uma série
dições nas escolhas políticas dos últimos governos que, para chegarem de ocorrências que o sucederam. Merece destaque, em primeiro lugar, a
e se manterem no poder, apostaram numa estratégia de conciliação de constatação de que não é sem razão que um dos principais embates des-
classes - incorporando não apenas parte do programa da direita, mas ses últimos tempos tenha ocorrido entre Eduardo Cunha e as feminis-
realizando concessões na partilha do poder - e fazendo com que movi- tas. Ou que a votação do impeachment na Câmara dos Deputados tenha
mentos para a ampliação da democracia fossem muito limitados, o que sido marcada por discursos a favor de uma percepção limitada de famí-
impediu sua radicalização, fundamental para qualquer transformação lia burguesa, da religião como guia para a política ou da tortura como
social de longo prazo. arma de destruição do contraditório. E ainda que a primeira ação dos
golpistas tenha sido a de nomear um ministério inteiramente burguês,
100 MAIRA KUBIK MAN O, MÁR C IA SANTOS MACtDO DIREITOS REPRODUTIVOS, UM DOS CAMPOS DE BATALHA DO GOLP E
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101 MAfRA KUBIK MANO, MÁRCIA SANTOS MACitDO DIREITOS REPRODUTIVOS, UM DOS CAMPOS DE BATALHA DO GOLPE
A máquina misógina e o fator
Dilma Rousseff na política
brasileira
Marcia Tiburi*
1 06 MARCIA TIBURI A MÁQUINA MISÓCINA E O FATOR DILMA ROUSS EFF NA POLfTJCA BRASILEIRA
quando, como reeleita, insistiu em ser chamada como "presidenta" e mas talvez não tivesse acontecido se ela não fosse mulher e se, como
não como presidente. mulher, não fosse tão diferente de tudo o que se pode esperar de uma
A autodenominação serviu de afronta ao poder patriarcal e pode ser mulher. No futuro, a expectativa plantada pelo governo do golpe é de
elencada entre os fatores que aceleraram o ódio - e também a inveja - que não seja mais possível que uma mulher venha a estar no cargo má-
despertado pela mulher que se afirmou como presidenta. Sabemos que ximo da política. E isso quer dizer que elas - e todos os sub-representa-
uma feminista desperta mais o ódio por se dizer feminista do que por dos- não terão lugar.
agir como uma feminista. O ódio à presidenta - com "a" e não com "e" O voto, todos sabemos, com ou sem novas eleições, já não significa
-é do nível da idiossincrasia fascista, um ódio idiossincrático, ou seja, nada no Brasil no estado de exceção velado em que estamos vivendo.
sem muita explicação, altamente gratuito, um ódio cujos motivos pare-
cem não existir. Mas o que realmente está em jogo no caso de uma pes-
soa que se autodefine como presidenta além de uma autoafirmação que Dilma, culpada e banida
pode levar ao ódio? Ora, o jogo de linguagem machista opera por hetero Di! ma Rousseff foi a primeira mulher eleita- e reeleita- prcsiden-
denominação e hetero determinação. Isso quer dizer: homens falam e ta de um país em que os números de participação feminina na política
dizem sobre mulheres. Ora, o poder é uma questão de voz, de discurso, são vergonhosos. Se cerca de 10% de mulheres estão presentes na vida
de quem fala e de quem escuta. O poder também se cria por meio do ato parlamentar é, no mínimo, sinal de que vivemos em um país em que
de falar sobre o outro. A categoria do "outro" é criada em um discurso. as mulheres não são bem-vindas na política. Atraso da nossa política?
Assim é que se cria a mulher ideal e, ao mesmo tempo, se demoniza a Certamente. E um país atrasado não é atrasado por acaso.
mulher fora do" ideal". Enquanto vimos há menos de um ano o primeiro ministro do
Fato é que Di! ma Rousseff, ao dizer-se "presidenta" causou mal-estar Canadá nomeando metade do seu ministério tendo em vista a paridade
ao machismo. Interrompeu, talvez sem perceber, o jogo de linguagem de gêneros, buscando assim uma representação contemporânea e atua-
machista da história da política no Brasil. Ao afirmar-se presidenta, ela lizada da democracia, no Brasil podemos dizer que estamos no século
se afirmou como eleita e reeleita potencializando seu lugar- único e pio- XI X. O governo atual não pretende sequer manter as aparências da de-
neiro- de representante justamente das mulheres, histórica e atualmen- mocrac_ia para não pegar mal. Honestidade e idoneidade não contaram
te ainda mais sub-representadas no cenário da democracia brasileira. para a escolha dos ministros do governo no golpe, por que a questão
No estado de exceção em que nos encontramos, em que a vigência da gênero deveria contar?
ilegalidade é a lei, a figura incomum e inadequada de Dilma Rousseff é Tocar na questão gênero quando se trata de falar de Dilma Rousseff
colocada à margem. Banida de seu cargo, lançada para fora do governo é chover no molhado, mas quando políticos do século XIX, eviden-
por não ser igual em nada - nem em gênero, nem em desonestidade - temente mumificados, que praticam entre nós o populismo da igno-
aos cleptocratas que a julgam hoje e usurpam seu lugar, Dilma Rousseff rância, vêm vociferando contra a expressão gênero, é uma chuva alta-
se torna hoje um fator político, aquele que define o lugar das mulheres mente política. Sabemos, desde Simone de Beauvoir, que ser mulher é
na política e, fundamentalmente, seu futuro em nosso país. Sabemos ser marcada por sua sexualidade. Gênero tem a ver com essa marcação.
"que o que aconteceu com Di! ma Rousseff pode acontecer com todos, A marcação a que me refiro é o jogo de linguagem do machismo do qual
lO 8 MARCIA TlllURI A MÁQUINA MISÓCINA ll O FATOR OILMA ROUSSEFF N/\ POtfTICA BRASILEIRA
saímos apenas no momento em que nos tornamos feministas. E temos e mesmo sem provas, enquanto que seus algozes seguem inocentados
nos tornado cada vez mais feministas. por eles mesmos. Para que possa ser a culpada, ela precisa ser transfor-
No contexto da misoginia, fala-se mal de mulheres de muitos mo- mada em vilã, mesmo que seja apenas uma vítima.
dos, seja inventando uma essência para elas, seja ocultando as heterode-
nominações que pesam sobre elas, seja criando e intensificando as ideo-
logias femininas, tais como a ideologia da maternidade, da juventude, Dilma, politicamente estuprada e invejada
da sensualidade, todas essas que fazem parte do sistema do machismo Aqui, sou obrigada a dizer que Dilma Rousseff viveu um estupro
estrutural. Todo esse sistema ideológico não prevê mulheres no poder. político. Ora, todo estupro é político porque o crime contra uma mu-
Porque o poder é coisa que os homens querem para eles. É evidente que lher sempre é político já que, desde Simone de Beauvoir, podemos di-
toda mulher vai ter que pagar um preço imenso quando tomar para si zer que a sexualidade é política. Uma mulher está para um homem na
alguma coisa desejada pelos homens. sociedade da cultura do estupro como é a nossa, como Dilma está para
A misoginia, cabe dizer, nunca é inocente. É preciso entender que os políticos que, mancomunados, tiraram-na de seu cargo. Como um
se ela está na base do golpe ela não é pouca coisa. Nenhuma misoginia estuprador que considera o corpo de uma mulher um objeto para seu
é pouca coisa. A misoginia é uma arma de espertos, assim como a igno- uso perverso, os golpistas olham para o corpo de quem ocupa o cargo,
rância (sobre a qual temos que falar mais a sério). Simbólica e prática, mas só quando esse corpo a presidir um cargo, é mulher. Por isso, olham
estamos diante de uma misoginia de resultados, gananciosa e compe- para esse corpo com o olhar do fabricante do caixão. Medem seu tama-
tente como seus defensores. nho, seu corte de cabelo, impõem-lhe as medidas que o homem branco
Sabemos que o capitalismo depende da culpabilização das pessoas, europeu e capitalista, que se entende como o dono do poder, inventou.
de trabalhadores, de negros cujos corpos são usurpados. Ora, não é di- Mas não se trata apenas disso, eles olham para essa mulher de mui-
ferente com as mulheres, o machismo é o sistema da culpabilização das tos modos o que nos obriga a pensar na condição desse olhar. De um
mulheres e Di! ma Rousseff foi, até agora, tratada como a grande culpa- lado podemos falar do olhar estuprador típico do desejo patriarcal que
da, culpada da "crise", culpada do golpe. Na televisão e no discurso do não se deve confundir com o todo do desejo masculino. Refiro-me ao
telespectador, vemos a construção da mulher culpada por tudo. Desde olhar daquele que objetifica o outro e que se serve dele para seus fins.
Eva, desde Pandora, qualquer mulher, seja mãe ou não seja, é educada Sobre isso, no jogo imaginário misógino, podemos lembrar da imagem
para sentir-se culpada. A culpa é estrutural, está arraigada e toda a so- de Dilma Rousseff na forma de um adesivo que circulou em carros du-
ciedade ajuda a sustentá-la. rante algum tempo, no exato instante em que, de pernas abertas, era
Ora, o machismo sempre foi a melhor e mais inteligente estratégia invadida por uma peniana bomba de gasolina. Mas podemos também
política, uma grande estratégia de banimento das mulheres da política e lembrar do personagem símbolo do estupro político que é o deputado
de sua culpabilização. A grande estratégia da exclusão de metade da po- Jair Bolsonaro, que se posicionou como o grande estuprador em poten-
pulação mundial. Agora essa estratégia é usada contra Dilma Rousseff, cial contra Maria do Rosário e que, no dia 17 de abril no momento da vo-
uma mulher que só pode ser excluída porque, primeiro, foi culpabili- tação do impeachment, elogiou o conhecido torturador coronel Ustra
zada. E, culpabilizada, já foi punida, mesmo antes de seu julgamento como o "terror de Di! ma Rousseff". Nesse caso, não podemos falar de
110 M/I.RCI/1. TIUUill A MÁQUIN/1. MISÓGIN/1. I! O FATOR DILM/1. llOUSSEPF N/1. POLiTICA BRASILI!IIl/1.
um olhar de desejo sexual, mas de um olhar de culpabilização- típico sua condição de veste do poder, no flagrante do olhar caído de Michel
do estuprador que precisa culpar a mulher de saias para tornar-se apto a Temer.
violentá-la. Esse olhar responde por um desejo obtuso que se expressa Dilma Rousseff, além de tudo, não é a mulher dos moldes da bran-
como violência sexual. quitude burguesa, europeia e obediente. Ela está longe de ser a "bela,
Nesse caso, temos que falar de um outro olhar que, a meu ver, entra recatada e do lar" que, conforme vimos na mídia golpista, pode-se ter
na constelação misógina. Esse olhar implica o afeto da inveja. É o olhar à cama nos tempos do machismo narcísico e impotente. Contra isso,
conhecido como "olho grande", ou "olho gordo". A inveja é a impotên- revistas tentaram fazê-la passar por louca, má, agressiva, doente.
cia para o desejo. A inveja é !esponsável por todo tipo de violência co- Manipulações da imagem fazem parte da era do espetáculo político.
varde. Para além da mística em tomo da potência cancelada da inveja, é Desde o abnóxio segund<;> colocado, neto de vovô, até o vice-presi-
preciso ter em vista que subestimamos há muito a potência dos afeto s dente, troféu dos menos votados de seu partido (partido, aliás, acos-
em termos de racionalidade política. Vimos, contudo, o papel do ódio tumado a presidentes não eleitos pelo voto), ilegítimo em seu cargo
entre nós. É o caso de vermos também o papel da inveja. A inveja quase interino, passando pelo ladrão histórico que renunciou há poucos dias
não se expressa, ela se oculta, porque é covarde. O desejo é o seu oposto. -todos representantes máximos entre nós do que podemos chamar de
O desejo está para a potência como a inveja está para a impotência. ridículo político - todos desejam ser a presidenta. Desejam e não po-
Sabemos que o estuprador não tem desejo. Ele odeia e, no fundo, tal- dem porque não têm votos, nem poder, só a violência da politicagem.
vez inveje. Não é o desejo que olha para Dilma, mas a impotência de um Cuidado com a inveja masculina que historicamente inventou a in-
homem que olha para ela. E esse olhar é destrutivo. veja feminina num golpe de mestre da misoginia histórica.
Não podemos crer que, sendo o poder patriarcal, capitalista, branco,
sendo o poder que impera no Brasil, um poder colonial (de um colonia-
lismo que vem de fora, mas que também foi introjetado pelos que hoje "Aquela mulher": ideologias machistas contra o
estão dentro) que aqueles que sempre o representaram ficariam de bem gênero feminino
- isentos de inveja - com uma figura como Dilma Rousseff no seu posto Dilma Rousseff é uma mulher e como toda mulher terá que pagar
máximo. Além de morrerem politicamente nas urnas, morreram de in- pelas r~gras compulsórias que regem suas vidas no contexto do ma-
veja. Por isso desrespeitam o voto. A inveja do mau perdedor, do menos chismo como ideologia. É a ideologia patriarcal que constrói a ideologia
votado, do inelegível, do impopular, do pouco popular. da maternidade, a ideologia da sensualidade e a ideologia da beleza que
Morreram politicamente nas urnas e depois morreram de inveja - homens, sobretudo os brancos, tanto quanto as igrejas, os partidos, a
passaram todos os recibos - de não poderem usar aquilo que em sua publicidade, a mídia e a sociedade civil de um modo geral jogam sobre
mente autoritária seria simplesmente seu. Se prestarmos atenção no as mulheres sempre renovando, pela violência simbólica e estrutural, a
inconsciente ótico revelado na iconografia das redes sociais, nos provi- alienação de suas vidas e corpos como se faz há milênios.
denciou a imagem de Temer no corpo de Dilma Rousseff com o vesti- Mulheres, como outros trabalhadores, são oprimidas e seduzidas
do da posse. Talvez o poder fosse seu e do mesmo modo o vestido, em para que não pensem e não ajam de modo a desconstruir o que está mui-
to bem guardado por conservadores. Dilma Rousseff foi confrontada
li 2 MI\RCII\ TIDUR I 1\ MÁQUINI\ MISÓCINI\ E O FI\TOR D II.MI\ ROUSSIIFF Nl\ POLfTICI\ DRI\SII.IIIRI\
a todo o momento com aqueles quesitos do jogo de linguagem misó- político entre nós, como o boçal invejoso, implicou o ato simbólico de
gino que sustenta a ideologia machista às vezes de modo mais velado, esvaziar a política de seu sentido. Como ele conquistou essa façanha?
às vezes de um modo mais escancarado, como acontece com todas as Tirando a representação da cena.
mulheres que chegam ao poder. A qualquer tipo de poder. Imaginem Se na modesta e capenga democracia brasileira denunciamos há mui-
o que deve ser chegar ao poder quanto tantos inelegíveis tem você na to pouco a sub-representação de mulheres, e de mulheres negras, de ne-
mira de suas armas e quando a maledicência é uma arma poderosa nos gros, indígenas, quilombolas, lésbicas, de todos os grupos jogados no
tempos midiáticos, em que televisão e redes sociais elevam o verbal e o campo infindável, imenso, das minorias, o governo gol pista vem deixar
discursivo ao mais importante de todos os capitais. claro que democracia não é o seu forte. Pensando que está no tempo dos
Dilma Rousseff tornou-se, no contexto da misoginia diária, sempre colonizadores e dos coronéis. que do século XIX, sua escola antiquada,
estimulada pela mídia, "aquela mulher". Seu nome próprio desaparecia pensando que governará ilegitimamente deitado em seu esquife de
diariamente, num sinal de evidente falta de respeito. vampiro sugando o pescoço de nossa democracia jovem, guerrilheira
Dilma Rousseff foi sempre objeto da vileza política seja ao nível ins- e adolescente, o governo do golpe continua mirando o povo com seus
titucional, seja ao nível aberto do político no qual todos exercem seus olhos capitalistas de fabricante de caixão. Com a típica covardia mas-
ideais e repetem os clichês da tendência dominante bem trabalhados culina, Michel Temer, o invotável, usurpou o lugar da presidenta eleita
pela publicidade midiática que serve como prótese de pensamento dos legitimamente e instaurou um estado de exceção em que leis não tem
ex-cidadãos transformados em telespectadores e idiotas, esvaziados de mais vigência. Um estado de exceção invisível, analfabeto político, au-
sensibilidade e inteligência moral em nossa época. toritário e cínico.
114 MARCIA TIBURI A MÁQUINA MISÓCINA E 0 FATOR DILMA ROUSSEFF NA POLfTICA BRASILEIRA
que o fragiliza. O combate que o governo ilegítimo Temer tem em rela-
ção às minorias é do mesmo teor do combate às mulheres e à presidenta
Dilma que se tornou uma heroína fundamenta l, uma verdadeira metá-
fora da democracia em seu estágio atual, o da representação feminina.
Não é momento para debater isso, mas no dia em que as mulheres des-
cobrirem que o patriarcado é um inimigo sério, no dia em que o povo
perceber que o neoliberalismo e toda a religião capitalista são seus ini-
migos, aí sim, teremos uma revolução.
O governo Temer expõe-se como governo do golpe, uma abjeção po-
lítica organizada por anos, na estratégia que culminou no afastamento
da presidenta. O golpe começou com um combate diário, desde que a
prcsidenta era candidata. Esse combate é velho e é misógino. Mulh er, ne g ra, favel ada e
A permanência da misoginia é a vitória do autoritarismo antidemo- pa rlam en tar: re s istir é
crático instaurado hoje no Brasil. Se há machismo estrutural é porque pl eona sm o
há um sistema de privilégios masculino que depende das práticas e dos
discursos m isóginos. Marielle Franco*
Parece-me que a responsabilidade de todos nós que respeitamos a
democracia é combater a misoginia. Hoje, lutar por democracia se con-
firma como luta contra a misoginia, ou seja, como desmontagem da
máquina misógina, aquela mesma para a qual Dilma Rousseff apontou *Vereadora do Partido
Socialista (PSOL-Rio).
ao d izer-se presidcnta. Ésocióloga formada pela
A questão do golpe contra Dilma Rousseff nos coloca hoje essa gran- Introdução Pontifícia Universidade C;
do Rio de janeiro (PU C-Ri
de questão. Não haverá democracia se houver misoginia, pois a miso- O golpe no Brasil, e não estou falando de 1964, e mestra em Administraç~
ginia carrega o princípio da negação do outro que nos coloca agora no foi uma ação autoritária, feita com a utilização do Pública pela Universidade
Fede ral Fluminense (UFF)
atual esvaziamento do estado de direito e do fim da democracia que arcabouço legal brasileiro em pleno século XXI.
sempre será a única esperança que podemos ter na política. Os principais atores desse cenário? De um lado a
presidenta, mulher, vista por parcela da população
como de esquerda. De outro lado um homem, bran-
co, visto por parcela expressiva das pessoas como de
direita e socialmente inserido nas classes dominan-
tes. Essa conjuntura do golpe, màrcada pela altera-
ção da correlação de forças políticas, também cravou
I 21 MIIR I ELLR PI\1\NCO MULIIUR, NEGRII, PI\Vll LI\ 011 IJ I'IIIt L IIMilNTAR
t
Tornar legal é determinante para a realidade na criação de espaços noturnos para as crianças, que garantiriam que elas
qual vivemos pudessem permanecer nos espaços de educação infantil realizando ati-
Em 2015, milhares de mulheres foram às ruas contra o Projeto de vidades extras, lúdicas, diversas ou descansando. O objetivo é garantir
Lei (PL) so6g/2013. O referido projeto tinha como objetivo dificul- que as mulheres possam ter maior liberdade de atuar no mercado de tra-
tar o acesso das mulheres vítimas de violência sexual às informações balho, pois os limites de horários da educação infantil hoje são um dos
e procedimentos sobre o aborto, direito garantido por lei. A chamada fatores que afetam diretamente a empregabilidade das mulheres.
Primavera das Mulheres tomou as ruas do país e fez do movimento fe- Nosso objetivo não é deixar as crianças por tempo demais nas cre-
minista um canal importante nas lutas dos movimentos da conjuntura ches, nem forçá-las a uma carga excessiva de estudos, mas encontrar um
pré-golpe. equilíbrio dos horários c tipC?S de atividades para que as mães não pre-
As manifestações inspiraram a minha campanha e o meu compro- cisem ter que abandonar o emprego, recorrer ao trabalho informal ou
misso em fazer um mandato afinado as pautas do movimento femi- contar com sobrecarregar outras mulheres da família.
nista. Por isso, o primeiro PL que apresentei na Câmara de Vereadoras Assim seguimos para a construção de um mandato parlamentar,
e Vereadores foi um projeto de programa que garante o atendimento comprometido com a vida, em suas múltiplas dimensões com refe-
humanizado às mulheres que têm o direito de interromper a gravidez. rência clara nas pessoas que são exploradas, marginalizadas, discrimi-
Hoje, a lei garante este direito em três situações: casos de anencefalia, nadas e interditadas por uma cidade dos poderosos. Avançamos para
risco de morte para a mulher e nos casos de gravidez em decorrência de construir insumos que contribuam para potencializar que mulheres,
estupro. (BRASIL, 1940, 2012) negros, pobres, assumam o papel de sujeitos para uma cidadania ativa.
Apesar disso, muitas mulheres não sabem que têm esse direito, sem Conquistar uma cidade de direitos é uma ação fundamental para a re-
contar os profissionais que se negam a fazer o atendimento, alegando volução no contemporâneo. E esse é o nosso lugar, esses são os desafios
objeção de consciência - quando se sentem impedidos de fazer algo colocados para o nosso mandato.
que vai de encontro com a sua convicção religiosa-, deixando as mu-
lheres à própria sorte. Entre 2013 e 2015, 52% das mulheres que procu-
raram os hospitais para realizar um aborto legal não foram atendidas. Referências
(MADEIRO; DINIZ, 2016) BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de7 de dezembro de 1940. Código penal.
Diário Oficial, Poder Executivo, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. Seção 1,
O que nós queremos com o PL é garantir que as mulheres sejam aten-
p. 23911, art. 128.
didas de forma segura e humanizada e que não tenham que levar adian-
te uma gravidez decorrente de uma violência tão grave como o estupro. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento
de preceito jundamentals4, de 12 de abril de 2012. Brasília, DF, 2012.
Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
Espaço Coruja jsp?docTP=TP&.doclD=3707334>. Acesso em: 15 jul. 2017.
Eu fui mãe adolescente e sei bem as dificuldades de cuidar dos filhos KONCH INSKI, V. Paes muda discurso e desapropria sem acordo casa
e conseguir trabalhar. Por isso, outro projeto que apresentamos foi o de de vizinhos da Rio-2016. UOL Olímpiadas, Rio de Janeiro, 21 mar. 2015.
O golpe de 2016 e a
demoniz açã o d e gê n ero 1
M a r y Garcia Castro*
*Professora aposentada c
Universidade Federal da B
Tomando altura (UFBA), pesquisadora da
A intenção deste ensaio• sobre o tema sugerido, Faculdade latino-america
de Ciências Sociais (FLAC
"o golpe na perspectiva de gênero", é um texto de- Brasil) e bolsista do Consc
sorden~dol em que se joga com teses de alguns au- Nacional de Desenvolvim
Científico e Tecnológico
tores, como a de Heleith Saffioti (2004) sobre oca- (CNPq).
ráter de formação capitalista da sociedade brasileira
por u ma "ordem patriarcal de gênero" e as de Terry
Eagleton (2015), que em livro com o sugestivo títu lo
Esperança, sem otimismo nos anima ao identificar,
no ataque ao que se anunciava como ondas libertá-
rias, o medo:
que se conquistara, como o Sistema Único de Saúde (SUS), assim como (1) A confusão causada nas crianças no processo de formação de sua identidade,
possibilidades de trabalho e, portanto, possibilidade de autonomia das fazendo-as perder as referências; (2) A sexualidade precoce, na medida em que a
mulheres. Aliás explicitamente contra a mulher são várias as investi- ideologia de gênero promove a necessidade de uma diversidade de experiências
das deste desgoverno, por exemplo segundo notícia veiculada em 26 sexuais para a formação do pr6prio "Gênero"; (3) A abertura de um perigoso cami-
de março de 2017, o. valor autorizado para gastos c~m atendimento à nho para a legitimação da pedofilia, também considerada um tipo de gênero; (4) A
mulher em situação de violência caiu 61% em 2017 em relação ao ano banalização da sexualidade hu..;,ana podendo aumentar a violência sexual, sobretu-
passado segundo dados do portal do orçamento da Comissão Mista de do contra mulheres e homossexuais; (5) A usurpação da autoridade dos pais, em
Orçamento do Congresso Nacional. Também houve redução de recur- matéria de educação de seus filhos, principalmente em temas de moral e sexualida-
sos que deveriam ser destinados para políticas de autonomia das mu- de, já que todas as crianças serão submetidas à influência dessa ideologia, muitas
lheres. D e R$11,5 milhões em 2016, o valor passou para R$5,3 milhões vezes sem o conhecimento e o consentimento dos pais. (KRIEGER, 201 5)
2014) 2 O Ensaismo ético em Adorno joga ênfase na cultura e na ideologia para pensar criticamente
a sociedade, crítica à ideologia e à identidade. Ou seja, a tradiç3o do ensafsmo ético seria
pensar criticamente a sociedade. Para Adorno, o ensaio não tem fecho; interessa-se pela to-
A ofensiva de parlamentares e outros atores, em nome da religião talidade, mas não é arbitrário. (ADORNO, 1986)
contra o debate sobre gênero na escola, bem indica o desafio de termos 3 O ensaio, segundo Adorno (1986, p. 174), privilegia a desordem das ideias- "O ensaio não
tanto na economia como na cultura como frentes de lutas políticas para compartilha o jogo da ciência e da teoria organizada, segundo as quais, como diz Spinoza, a
ordem das coisas seria a mesma que a das idcias. (...) O ensaio não almeja uma construção
a emancipação agora e por outro amanhã. O retrocesso no PNE, sugere fechada, dedutiva ou indutiva [...). Vai contra a doutrina arraigada desde Platão, segundo a
que, de fato, mesmo os conservadores reconhecem e temem a impor- qual o mutável e o efêmero não seria digno da filosofia [...e) contra a violência do dogma".
tância de um conhecimento crítico à cultura, à escola, para desconstruir 4 "Na opinião do jornal Financiai Times, a prcsidenta Dilma Rousseff rompeu com a rotina de
poder no Brasil. A publicação incluiu Dilma na lista de Mulheres do Ano divulgada em dezem-
preconceitos e estigmas. bro do ano passado e ressaltou, em entrevista realizada com ela, que é outro o tratamento
O reconhecimento tanto dos nexos entre patriarcalismo e capitalis- dado a réus homens que estão no comando do pars. Na ocasião Dilma declarou: 'Uma mulher
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Sabemos que os caminhos ilegítimos elegem muito mais rapida- tória. Que analisemos o perfil, as condições, os recursos e as alianças
mente alguns artistas, humoristas, jogadores de futebol, empresários que poderão ser feitas. E que as pautas de gênero e de raça façam parte
que nunca se interessaram pela vida política e que, de um dia para o das nossas propostas.
outro, aproveitam-se da sua imagem pública e de recursos financeiros
investidos na campanha para se elegerem ou ganharem disputas em ou-
Considerações finais
tros pleitos. Estes costumam vir a público dizer que não são políticos e
nem são pobres, por isso, não "precisam e não serão fáceis de corrom- Finalizo relembrando uma parte da reflexão que registrei em um ar-
per". Eles autointitulam-se como "gestores". E, na sua grande maioria, tigo publicado no livro Mídia, misoginia e golpe, organizado por Elen
são homens. E brancos. Afirmam que, por isso, farão um bom mandato, Geraldes e colaboradores (2016):
Referências
GERALDES, E. C. etal. (Org.). Mfdia, misoginia e golpe. Brasília, DF: FAC Manhã de sabor amargo, aquela do dia 12 de maio • Pedagoga e atual Secrc
Livros, 2016. do Trabalho, Emprego, F
de 2016, data em que a presidenta Dilma Rousseff Esporte da Bahia. Foi ve1
foi afastada por 180 dias, após a abertura do pro- por três mandatos em S
RAMOS, L. de S. Nilma Lino Gomes. In: GERALDES, E. C. etal. (Org.). (BA) e também Secretá1
Mídia, misoginia e golpe. Brasília, DF: FAC Livros, 2016. p. 237-2.41. cesso de impeachment no Senado. Muitas de nós,
Estadual de Polfticas pa1
mulheres feministas, estávamos em Brasília, par- Mulheres.
ticipando da IV Conferência Nacional de Políticas
para as Mulheres, cujo tema era "Mais Direitos,
Participação e Poder para as Mulheres". Uma ironia
dramática.
Ainda antes da Conferência, na comissão organi-
zadora, coube a mim escrever um texto - colhendo
também contribuições de outras companheiras -
refutando a possibilidade do golpe. Li na plenária a
UNHARES,]. Marcela Temer: bela, recatada e" do lar". Veja, São Paulo,
18 abr. 2016. Brasil. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/brasil/
marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/>. Acesso em: 3jul. 2017.
I
Dilma perdera o seu apoio no Congresso Nacional e nenhum presiden- do Comitê de Política Monetária (Copom), houve queda na taxa de juros.
te governaria sem o apoio do Congresso Nacional.s De fato, houve queda, mas temos que analisar se as quedas da taxa
Com viés mais econômico, outros diziam que, diante da situação do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), dos juros oficiah
grave da economia nacional, só haveria uma saída, tirar a presidenta 1 do Brasil, foram superiores à queda da inflação. E aí chegamos à con·
Dilma e substituí-la pelo vice-presidente Michel Temer. (COSTA, 2015) clusão simples: em que pese ~ominalmente terem baixado as taxa~
O simples fato de um novo presidente assumir- argumentavam- já Selic de juros nos últimos meses, do ponto de vista dos juros reais, a!
levaria uma segurança maior ao mercado financeiro, e que nossa econo- taxas aumentaram, para o consumidor as taxas de juros permanece·
mia, portanto, voltaria a crescer. ram em torno de 41%,42%.
Precisamos, efetivamente, fazer um balanço do que aconteceu nesse São esses os números com que o governo presenteou a nação brasi·
último ano no Brasil e o que poderá vir a acontecer nestes próximos anos. !eira, o povo brasileiro, com um ano de exercício.
Um ano após a usurpação, o governo de Michel Temer só colecionou Agora estamos, a Câmara e o Senado, debatendo duas reformas qU<
números extremamente negativos, piores ainda se comparados com as foram entendidas como as prioridades do governo federal- a Reform;
promessas feitas por ele e pela maioria dos parlamentares que cassaram da Previdência e a Reforma Trabalhista.6
o mandato de uma presidenta que nenhum crime cometeu. O objetivo dessas reformas é equilibrar os gastos públicos às expen·
O que aconteceu com as contas do governo, que dizia que o déficit sas dos trabalhadores e das trabalhadoras, no sentido de que isso pos·
público era insuport~vel e que precisava alguém para pôr ordem na casa? sa contribuir para a superação de uma crise econômica estrutural de
Fechamos o ano passado aprovando, contra o nosso voto, o teto de sist~ma capitalista- porque não é uma crise econômica só do Brasil-
gastos- a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55/2016 -, para mesmo que venha em detrimento do bem-estar e do atendimento da~
quê? Para cortar gastos em investimentos, gastos na área social, gastos necessidades de cidadãs e cidadãos.
na área de educação, mas mantiveram intactos os gastos financeiros, Agora o governo passa a divulgar que em tomo de R$2 bilhões serãc
num orçamento em que metade dos recursos vai para pagar rolagem e liberados para pagamento das emendas dos parlamentares da base de
o principal de um:a dívida pública. governo. E para que liberar emendas de parlamentares? Para aprovar ê
A dívida pública do governo brasileiro, em abril de 2016, era de 71% Reforma da Previdência, para aprovar a Reforma Trabalhista.
do Produto Interno Bruto (PIB). Em março de 2017, era 79,9% do PIB. Que governo austero é esse?
Em abril de 2016, as contas do governo registravam um déficit da ordem Não podemos aceitar, de forma pacífica, que promovam essas refor-
mas absurdas contra o povo. Isso não é reforma; isso é contrarreforma,
Econômico (OCDE), ao lado da Estônia, é o único país que não cobra tri- material de pesquisa, como o livro Mais Mulheres na Política e o ma~
buto sobre distribuição de lucros e dividendos. As Nações Unidas já divul- das mulheres no poder, ~ncartado no mesmo.
garam inúmeros relatórios mostrando como o Brasil é o paraíso fiscal dos Lançada no fim de 2016, a terceira edição desse livro contém análi!
ricos, dos poderosos, desses que não pagam tributo. quantitativa e qualitativa sobre a desigualdade de gênero na política,
Precisamos de uma reforma tributária, não da destruição de nossa partir dos dados das eleições de 2014 e de 2016.
Previdência Social e de nossas leis trabalhistas - mas carecemos tam- Na história do Brasil, as eleições têm servido de indicador para aver
bém de uma reforma política que considere a fundo a imensa distorção guar a precariedade da democratização de gênero na sociedade brasileir
de gênero que hoje caracteriza a eleição de nossos representantes. Os dados das eleições de senadoras, deputadas, prefeitas e vereadc
ras mostram um panorama de crescimentos ínfimos, de estagnação, é
diminuição e mesmo de ausência total de representantes femininas. E1
Por m'ulheres no poder 2016,1.284 municípios brasileiros ficaram sem uma vereadora sequer
O segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff- iniciado em Nos melhores cenários, resultados mostram que as mulheres bras
2015 e terminado no triste 31 de agosto de 2016-, coincidiu com o lança- Ieiras parecem ter atingido um "teto" difícil de ultrapassar espontane;
mento da campanha Mais Mulheres na Política, um esforço conjugado mente, a despeito de medidas que garantiram um número de pelo m<
da bancada feminina na Câmara e no Senado para confrontar a sub-re- nos 30% de candidaturas femininas e também regulamentaram o us
presentação feminina nos lugares de poder político, que é um dos ele- do .tempo de propaganda para mulheres.
mentos centrais da reforma política que precisa ser feita no país. Hoje o sistema existente favorece uma sistemática sub-represem;
Na história do Brasil, as eleições têm servido de indicador para ave- ção feminina e uma super-representação masculina que resulta men<
riguar a precariedade da democratização de gênero na sociedade brasi- da disputa efetiva que das regras que pré-definem como o jogo eleite
leira. ral pode ser jogado.
o impacto do voto feminino- de mulheres e em mulheres- é repre- Talvez nem seja o caso de continuar chamando de representativo UJ
sado por outros fatores do sistema eleitoral. Barreiras históricas e so- sistema assim. Há uma grande diferença entre representar e substitui
ciais ainda inibem a entrada, a permanência e as perspectivas de futuro Estes homens não nos representam- nos substituem, usurpam um h
das mulheres na política, de modo que a representação masculina no gar que seria de outras de nós.
Parlamento continua inflacionada.
NOBLAT, R. Sem apoio, como Dilma imagina governar por mais três
anos? O Globo, Rio de Janeiro, 22 out. 2015. Disponível em: <http:/I
noblat.oglobo.globo.com/meus-textos/noticia/2015/Io/sem-apoio-
como-dilma-imagina-governar-por-mais-tres-anos.html>. Acesso em:
10 maio 2017. I
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