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2018, au tores.

Direitos para esta edição cedidos à EDUFBA.


SUMÁRIO
Feito o depósito legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em


vigor no Brasil desde 2009. 7
"Precisamos falar de Gêne ro"
DIAGRAMAÇÃO E ARTE FINAL Marcella Felgueiras de Freitas Napoli /Maria Tarrafa Lin da Rubim e Fernanda Argola
REVISÃO Hilário Mariano dos Sant9s Zefc rino
NORMALIZAÇÃO Daiane _C ruz de Azevedo 23
Dilma- uma mulher política
Sistema de Biblioteca- SIBI /U FBA Céli Regina jardim Pinto
•• •• •••••o •• ooooo•• •• ••• • • • •• ••• •• •••• ••••••• • •• • • ••o•ooooo ooooo oo • - • •••••••·o • ooooo oooo o o oo o oo•••••·• oooooo oooo•·••·••·•oooooouooo oooo•·• ·•·••••••••• •••••••• •••·••

33
O Golpe na perspectiva de Gênero/ Linda Rubim, Fernanda Argola (Organizadora s).- Incongruênc ias e dubiedades, deslegitimação e legitimação: o golpe
Salvador: Edufba, 2018. contra Dilma Rousseff
186 p. (Coleção Cult) Clara Araújo

ISBN: 978-85-232-1684-9 51

.: ..
Imag inário, mulher e poder no Brasil: reflexões acerca do
impeachment de Dilma Rouss~ff
I. Mulheres na Política - Brasil. 2 . Igualdade de Gênero. 3· Direitos das Mulheres-
Cláudia Leitão
Brasil. I. Título. II. Rubim, Linda. !li. Argolo, Fernanda.

65
O golpe e as perdas de direitos para as mulheres
··········································-····················- ---············---·············..···------···············-·--·······-··················--·············---···· E-leonora Menicucci

EDITORA FILIADA À: 75
Uma mulher foi deposta: sexismo, misoginia e violência política
ASOCIAOON DE EOfTOfUAlES
VNM!RSITAAIA$ DE AMERJCA
LAnM. Y EL CAAIOE
Ancx&.çlo &r.ullelra
<S.s [dltor•s Unlnn:lt!rJu
CBaL
Câmara Bahiana do Uvro
Flávia Biroli

EDUFBA Rua Barão de Jeremoabo, s/n- Campus de Ondina, 85


Salvador- Bahia cep 40170 I15 tel/fax (71) 3283-6164 Dire itos reprodutivos, um dos campos de batalha do golpe
www.edufba.ufba.br edufba@ufba.br Maira Kubfk Mano, Márcia Santos Macêdo
105
A máquina misógina e o fator Dilma Rousseff na polrtica brasileira
Marcia Tiburi

117
Mulher, negra, favelada e parlamentar: resistir é pleonasmo
Mariel/e Franco

127
O golpe de 20 16 e á demonização de gênero
Mary Garcia Castro

147
" Prec isamos fa lar de Gênero" 1
Go lpe disfarçado de impeachment: uma articulação escusa contra as
mulheres
Linda Rubim*
Nilma Lino Gom es
Fernanda Argola**
161
Sobre o golpe e as mulheres no poder ..
OUuia Santana

177 *Doutora em Comunicaçã


Dilma: sfmbo lo para a participação política feminina Introdução Cultura (UFRJ). Professora
Programas de Pós-Gradual
V a 11 essa G.r a z z i o 1 in "Venho para abrir portas para que muitas outras Pós-Cultura e PPGNEIM/L
Membro fundador do CU L:
mulher~s, também possam, no futuro, ser presi-
UFBA, onde coordena o gn
denta; e para que - no dia de hoje- todas as brasilei- de pesquisa Miradas.
ras sintam o orgulho e a alegria de ser mulher".
O texto acima é parte do discurso de posse da **Jornalista, Mestre em C\
presidenta Dilma Rousseff, em 12 de janeiro de 2011, e Sociedade. Pesquisadora
Centro de Estudos
durante a celebração da chegada de uma mulher à Multidisciplinares em Cult•
presidência da República do Brasil, inaugurando o (CULT·UFBA), vinculada ac
grupo de pesquisa Miradas
que se pensava que seria uma nova página da histó-
ria cultural e política de um país, que, pela primeira
vez, havia escolhido ser liderado.por uma mulher.
É inevitável que tal fato nos leve à revisitar diversos momentos da narrativas pouco expressivas que escondem a força cultural e a impor-
história das mulheres, nos quais o investimento desse gênero na con- tância desse momento. A respeito disso, já nos anos de 1980, Branca
quista de sua cidadania tem como uma das suas mais importantes con- Moreira Alves, na sua tese de doutorado sobre o assunto observa que,
quistas públicas, o direito político de votar e ser votada, ainda em um
tempo em que as mulheres estavam cerceadas por inimagináveis obs- a historiografia brasileira, se e quando se refere ao decreto de 1932 ou a constitui-
táculos. A conquista e consciência desse direito, também no Brasil, foi ção de 1934, concedendo o sufrágio feminino, geralmente silencia sobre o movi-
alvo de um processo longo e intenso, através de manifestações diver- mento, deixando crer que as mulheres se tornaram eleitoras por uma dádiva gene-
sas, incluso campanhas em periódicos, que já eram produzidos por este rosa e espont5.nea, sem que tivessem lutado ou demonstrado qualquer interesse
gênero à época, como o jornal feminista "Voz Feminina", fundado em por esse direito. (ALVES, 1980,p. 13)
Diamantina, Minas Gerais, por três jovens mulheres em 1900 com o
explicito objetivo da defesa dos direitos das mulheres. (RUBIM, 1984) A conquista do direito ao voto pelas mulheres b rasileiras, no sentido
Um exemplo que pode ilustrar o envolvimento desse periódico na cam- de acontecimento, dado de realidade, é um fato irrefutável. No entanto,
panha pelo voto feminino é o artigo de Clélia Nícia Corrêa Rabello pu- o olhar atento da pesquisadora sinaliza que os registros desse fato são
blicado no número 18 do "Voz Feminina" em 16 de abril de 1901. narrativas dispersas e excludentes que invisibilizam o processo das lu-
tas sufragistas e, de certo modo, os sujeitos que protagonizaram aquelas
E por qu e não havia de ter este direito? Não somos também, como é o homem, lutas. Essa atitude, entretanto, não é mero silêncio, em verdade é um
parte componente da sociedade? Não estamos sob o jugo da lei e não temos inteli- "silenciamento". Atitude política, que .determinadamente produz o
gência, lucidez, vontade livre? Para que o governo s'éja democrático, é necessário apagamento a quem não se reconhece e legitima sujeito, com autono-
que todos que estejam sob seu domínio possam também agir sobre ele. Ou então mia para constituir a sua história~
tudo é absolutismo. Para haver liberdade de um povo é evidentemente necessário É uma percepção que nos parece corroborar com a da professora Céli
que seja o seu governo criado pelo sufrágio de todo ele . Mas se apenas uma metade Regina Pinto (20 07, p. 16) quando problematiza a exclusão da mulher no
pode agir livremente, a outra agirá automaticamente: só a primeira é livre, a segun- texto da constituição brasileira de 1891. Também para a referida profes-
da escrava. São dois povos em um mesmo país, um livre e independente que confor- sora não acontece "como mero esquecimento". A mulher não foi citada,
me sua vontade reina sobre o segundo: os homens são os soberanos: a mulher con- é uma ausência na carta magna do país, porque ela simplesmen te não
tinua a ser a súdita. (RABELLO, 1901 apud ALVES, 1980, p. 94) existia, para os constituintes, como indivíduo dotado de direitos. Uma
falta que rebate diretamente nas narrativas sobre as lutas das mulheres.
Esta, e diversas outras vozes de mulheres, de variados lugares de fala Em consequência, a história desse gênero torna-se uma fragmentada e
foram bastante atuantes na luta pelo voto feminin o, até que finalmente dolorosa saga, tecida por avanços e recuos.
em 1932, este direito foi garantido. Se por um lado tal conhecimento Assim sendo, retomamos a Branca Moreira Alves (1980, p. 14) quan-
traduz o amadurecimento das lutas feministas e consequentemente do diz:
o empoderamento das mulheres, com as conquistas dos seus pleitos,
por outro é estigmatizado, e não raramente, apresentado através de tratando-se da história da mulher, esse é um tema que não se esgota, num momen-
to histórico definido, já que a condição de opressão contém um elemento de contí-

8 LINDA RUBIM, FER NANDA. ARCOL O


PRBCISAMOS FALAR DH C ll. N B RO
nuidade que permite criar uma ligação entre as gerações que se sucedem no inte- cultural do país que o Parlamento também era lugar de mulher. O que
rior de um mesmo sistema de poder. dizer sobre o fato de uma mulher presidente!
Deste modo, no primeiro mandato, os choques ocorreram e foi di-
Uma citação que nos ajuda a perceber o quão frágeis são os tecidos de fícil suportar uma mulher no comando. "Uma mulher dura", mas com
uma cultura, no que diz respeito ao direito à cidadania das mulheres. dias contados, e que em breve iria embora. Não foi. Dilma Rousseff ou-
Uma cultura que não tem pudor de cultivar quaisquer atos arbitrários e sou o segundo mandato.
conservadores em favor da dominação masculina. Um pouco mais protagonista do que na sua campanha em 2010,
quando o presidente Lula lhe fazia sombra. E assim, o voto de 54·501.118
brasileiros lhe deu legitimidade para ocupar por mais quatro anos o
Questões de gênero no impeachment de 2016
Palácio do Planalto. A reincidência da ousadia daquela mulher con-
Oitenta e quatro anos se passaram desde a conquista do direi- quistando, mais uma vez, o direito de governar o Brasil, foi duramente
to ao voto pela m':Jlher no Brasil até a deposição da presidenta Dilma contestada. Vitória que além de provocar ressentimentos com níveis
Rousseff. Optamos por fazer essa evocação de tempo, quase um século, de alta perversidade, em termos de preconceitos, como será discutido
para enfatizar o quão conturbada é a construção da história deste gê- por alguns textos desse livro, também desvelou a imaturidade do nosso
nero, representada por avanços e retrocessos, solapada particularmente projeto democrático e, por óbvio, esgarçou duramente a famosa ban-
no que se refere às lutas pela constituição da cidadania. deira de esperança, "por um mundo menos desigual e mais humano".
Consonante com tal realidade, somos de opinião que a eleição da Palavras de ordem, que se, em algum momento, ativou a esperança de
mulher Dilma Rousseff, com 55.752.483 votos_dos brasileiros em 2010, construção de um Estado menos conservador e mais igual, tornaram-
representou uma mudança significativa para a história das mulheres e, se mero clichê, reminiscência nostálgica do que poderia se tornar uma
particularmente para o perfil presidencial do país, até então, exclusiva- visão ampliada de uma sociedade progressista.
mente, dominado por homens. Tal novidade acabou mobilizando redes Enfim, o respeito às eleições como expressão de democracia foi so-
de tensões e expect~tivas, especialmente porque as instituições pre- terrado. A vitória da presidenta Dilma foi duramente contestada, não
tensamente democráticas são majoritariamente masculinas, pensadas apenas. pela oposição formal, que iniciou seu projeto de destituição
e vividas numa cultura de e para homens. Basta observar que na cons- concomitante com o resultado das eleições de 2014.
trução do prédio do Congresso Nacional por ocasião da construção de Sob o clima desse contexto, foi urdida a ofensiva, "fora Dilma", ten-
Brasília, não foi planejado um local para banheiro feminino. Até 2015, do como pretensa acusação "as pedaladas fiscais", já utilizadas como
portanto não havia banheiro feminino no plenário do Senado Federal procedimento de gestão pelos presidentes anteriores. Em verdade, tais
brasileiro. Como na Constituição de 1891, a mulher ainda é marcada pela palavras de ordem eram de fato a tradução do ressentimento dos polí-
falta. Leve-se em conta que era o tempo histórico dos revolucionários e ticos representantes das tradicionais classes dominantes do Brasil, que
conturbados anos 1960, na capital, ícone da modernidade, fundada por tinham perdido o poder e de classes médias cada vez mais reativas a pos-
um preside~te "Bossa Nova". Mas, nem assim, entrou no repertório sibilidade de um país menos desigual. Inflamados por uma mídia, ab-
solutamente descompromissada com a imparcialidade da informação.'

lO LINDA RUB IM. I'I!RNANDA ARCOLO PR E CISAMOS FALAR DE CI\NI!RO


Ao som das panelas, um artefato simbólico, enquanto estigma, na A campanha eleitoral de 2010, a primeira de Dilma Rousseff como
vida das mulheres, o iropeachment em 2016, durante o segundo man- candidata, foi marcada por estratégias vulgares e desrespeitosas, que
dato de Rousseff, deu um fim melancólico à passagem da primeira mu- incluíam questionamentos à sexualidade dela, e representações este-
lher pela presidência da República brasileira. E mais uma vez, ao modo reotipadas da mídia, em que Rousseff figurava como o poste de Lula.
de 1932, o silêncio pairou sobre as questões de gênero e sobre as con- (ARGOLO, 2014) ··
sequências do afastamento da presidenta à participação política das Já eleita na cerimônia de sua posse, em 111 de janeiro de 2011, foi de-
mulheres. Muito foi dito e escrito sobre os vieses político, econômico e flagrada a primeira inflexão sobre questões de gênero. Diferentemente
jurídico do impeachment. Mas apesar do seu grande impacto simbóli- da posse dos presidentes anteriores, a·presidenta Dilma Rousseff subiu a
co para as mulhere~, contingente significativo da população no país, as rampa do Palácio do Planalto acompanhada de sua filha, Paula Rousseff
questões de gênero, que fizeram parte de modo contundente da campa- -configurando um fato novo, inaugurador na história dessa cerimônia
nha do impeachment foram roinimizadas, relegadas ao status de pro- no Brasil. A magnitude simbólica daquele double de mulheres à fren-
blema menor. O que sem dúvida denota mais uma tentativa de silencia- te do desfile presidencial, sem dúvida estabelecia um fato jornalístico
menta da história das mulheres no Brasil. de primeira ordem. No entanto, isso não foi considerado. Como bem o
Com base nesta percepção este livro tem como objetivo resgatar os demonstra a manchete do jornal O Globo: "A beleza da vice-primeira-
enfrentamentos de gênero que acompanharam a gestão e a crise da pre- dama rouba a cena na posse da Dilma" {SETTI, 2011). O fato jornalístico
sidenta Dilma Rousseff, as reações das mulheres à destituição da presi- é suprimido e a atenção se desloca para a enigmática esposa do então vi-
denta, e problematiza os impactos do impeachment para a participação ce-presidente Michel Temer. O texto dd jornal enfatiza essa opção com a
política das mulheres no Brasil. ·, morna e burlesca observação que a presidenta Dilma Rousseff"até se es-
Proposta que sofreu inicialmente certa contestação, porque havia ne- forçou", mas que foi Marcela Temer quem capturou o olhar dos homens.
gativas de evidências do impeachment relacionadas à questão de gênero. A partir da objetificação do corpo feminino, traço característico da
A compreensão majoritária era de que a deposição da presidenta esta- cultura machista, o jornal banaliza o ato de transmissão de posse da
ria fundamentalmel).te vinculada à crise econômica e ao desempenho presidência da República de 2011, despreza o dado jornalístico mais im-
político de Rousseff. Sem desprezar tais perspectivas, pois reconhe- portante: a primeira vez que uma mulher assume aquele poder. Por fim,
cemos que a crise econômica foi utilizada para inflar o descontenta- a mídia cria um cenário informativo que desconsidera um momento
mento popular cenário ideal para que a oposição atuasse politicamente histórico singular para as mulheres e a nação brasileiras. Em vista de
pelo impeachment. Entretanto, a nosso ver, isso não anula a presença tais faltas, não tem como não pontific!lr esta" derrapagem" como o pri-
da questão de gênero como elemento de disputa durante toda a gestão meiro ato que desqualifica a presidenta Dilma como símbolo de poder.
da presidenta, inclusive fortemente acionada, durante a campanha po- Outra questão que merece atenção é o embate criado pelo uso do ter-
lítico-midiática em favor do impeachment, ora de forma mais sutil, ora mo presidenta, adotado por Rousseff após a sua posse. Tal fato mobi-
com gravíssima veemência. lizou a imprensa brasileira que engendrou uma série de "seminários"
Ao percorremos a trajetória de Rousseff na presidência da República coro especialistas em gramática para opinar sobre a correção da palavra,
do Brasil, evidencia-se desde o primeiro momento como a catego-
ria gênero permeou a disputa pela permanência do establishment.

11 LINDA RUlliM. F ll RNANOA ARGOLO PR EC ISAMO S FALAR D ll GllNBRO


e se opôs a adotar a nomenclatura em seus conteúdos, como mais um transparecer uma factível incoerência: se um deles parece legitimar a
exemplo da sua parcialidade. corrupção, como um traço determinante da cultura e do povo brasilei-
A propósito, o texto da filósofa Marcia Tiburi neste livro, "A máqui- ros, o outro expressa terminantemente a recusa desse modelo. Afinal
na misógina e o fator Dilma Rousseff na política brasileira", observa, qual seria o modelo de gestor que o país precisa/deseja? Alguém que
que o poder é também um jogo de linguagem. Ao inaugurar o termo, a tenha uma participação eficiente no jogo da corrupção, ou alguém que
presidenta Rousseff rompe com 121 anos de uma tradição de homens a se recuse a seguir esse modelo?
comandar a república. E não é sem sentido que, ao ser afastada do cargo A representação da presidcnta como "aventureira" no campo políti-
pelo impeachment, quem a.substitui busca apagar, .desde a linguagem co serviu para manter o varejo da política brasileira em operação, como
até as marcas que podem condensar a memória da sua presença. Uma bem observa Céli Regina Pinto, em "Dilma- uma mulher política". No
das primeiras ações de Michel Temer ao assumir interinamente o go- texto escrito para esse livro, a autora desconstrói o falacioso argumento
verno foi "orientar" a Empresa Brasileira de Comunicações (EBC) a não da presidenta "não-política" e procura demonstrar como essa narrativa
utilizar em seus conteúdos o termo "presidenta". operou em favor da manutenção do status quo, ou seja, pela permanência
Desde a primeira campanha da presidenta Dilma Roussef em 2010, de políticos comprometidos com a barganha e o favorecimento pessoal.
o argumento de que ela não seria uma pessoa política sustenta a crítica e Políticos que têm apoiado projetos de lei que suprimem direitos das
a narrativa da sua orquestrada desqualificação. Rotulada grosseiramen- mulheres e que tentam instituir políticas agressivas de controle sobre
te como "gerentona", a presidenta foi desacreditada como liderança po- o corpo feminino, como destaca o texto de Maíra Kubik Mano e Márcia
lítica. Repetia-se, recorrentemente, durante seu governo a sua falta de Santos Macêdo, "Direitos reprodutivos, um dos campos de batalha do
habilidade para lidar com o Congresso, e, ma-is especificamente, para golpe", sobre a polêmica em torno do Projeto de Lei 6o/gg.
"barganhar" com os congressistas. A inexperiência da mulher naquele A esse respeito, a professora Mary Castro, em "O golpe de 2016 e a
cargo embora seja um mote não explicitamente expresso, permeia as demonização de gênero", pontua que, nos governos Dilma Rousseff, o
narrativas. A professora Clara Araújo, em "Incongruências e dubieda- Congresso Nacional organizou uma ofensiva contra as políticas de gê-
des, desligitimação e legitimação: o golpe contra Dilma Rousseff", rati- nero, em especial com a criação do conceito de ideologia de gênero. Os
fica de forma muito interessante neste livro, como esse jogo de retórica discursos de orientação machista e homofóbicos se multiplicaram nas
sustentou o processo de deslegitimação da presidenta caracterizada, re- casas parlamentares. A partir do apelo à religiosidade do povo, ressalta
correntemente como alguém "fora de lugar". a autora, estimulou-se o medo e o ódio ao diferente.
São narrativas que elaboram um jogo de parcialidades e estabelecem Em outro patamar, a imprensa brasileira, como já dissemos antes,
situações confusas no intuito de provara falta de eficiência da presiden- esquecida dos seus critérios de noticiabilidade, em parceria com o
ta no jogo político. Se uma parte delas reivindica enfaticamente a neces- Congresso Nacional, atuou como o maior partido de oposição à presi-
sidade de reforma do sistema político do Brasil, como possibilidade de denta. De forma contumaz, empregou marcas de gênero em sua campa-
correção do alto nível de corrupção no país, em outras, a grande crítica nha de deslegitimação. Diversos estereótipos foram recuperados nesse
está centrada na inépcia e falta de capacidade da presidenta para lidar processo simbólico de destituição: da histérica à mal-amada, para citar
com a barganha política. São discursos que se contraditam e deixam alguns. Flávia Biroli, em "Uma mulher foi deposta: sexismo, misoginia
e violência política", demonstra que a categoria gênero foi tão incisiva

'4 LINDA RUBIM, FERNANDA ARCOLO PRECISAMOS FALAR DE CI\N B RO


na representação simbólica da presidenta que é marca presente tanto É importante salientar que a ofensiva conservadora não se reduzia às
das peças de oposição quanto das de defesa. produções da imprensa brasileira, que atingia apenas Dilma Rousseff
Deste modo, o sexismo, o machismo e a misoginia compuseram os ou o Partido dos Trabalhadores (PT). A composição do gabinete minis-
lances mais lamentáveis.e perversos da campanha do impeachment. A terial anunciado pelo governo interino acusava a ausência de mulheres
mídia seja abertamente, ou em articulados jogos de linguagem, utilizou e negros ocupando o primeiro escalão da República. Dando a perceber
os estereótipos de gênero e double binds3 para empreender sua elabora- que o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, portanto, foi mais do
da oposição a Rousseff. Mas o fato é que a presidenta rompeu estereóti- que uma marca simbólica para as mulheres brasileiras. Para além disso,
pos de gênero e apresentou-se como uma mulher que não cabe no script significou também a redução da representação descritiva feminina e o
das instituições mais tradicionais da sociedade brasileira, incluindo a fim de um ciclo de empoderamento de mulheres no Executivo Federal.
imprensa. Tanto no comportamento, quanto em aparência, a presiden- Assim, consolidava-se o golpe no gênero feminino.
ta Dilma Rousseff- nos diz Claudia Leitão, no capítulo "Imaginário,
mulher e poder no Brasil: reflexões acerca do impeachment de Dilma
Rousseff"- esteve no sentido oposto ao que se cristalizou no imaginá- As mulheres no centro do golpe: retrocesso e
rio social como representação da mulher. A ofensiva de desconstrução e resistência
deslegitimação operou então para que ela fosse identificada como "um O governo de Dilma Rousseff ficou caracterizado pela maior pre-
erro, uma disfunção". sença de mulheres nos ministérios. Durante as duas gestões foram em-
A rejeição ao modelo de mulher representada pela presidenta torna- possadas 18 ministras e uma presidenta de empresa pública. Houve o
se clara quando, logo após a primeira votação pela abertura do processo, fortalecimento da Secretaria de Políticas para Mulheres com a indica-
de impeachment na Câmara dos Deputados, a revista Veja ofertou ao ção de uma ministra ligada ao movimento feminista e o aumento do
leitor a antítese de Rousseff. O que poderia ser considerado um exem- orçamento da pasta em aproximadamente 18%. Em 2015, após reforma
plo de mulher, devidamente enquadrada em seu devido lugar de femi- ministerial, a secretaria passaria a ter status de ministério com a criação
nilidade, representada pela figura de Marcela Temer, no amplamente do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos
criticado artigo "Marcela Temer: bela, recatada e' do lar"'. (LIN HARES, Direitos Humanos.
2016) A edição da referida revista não poupa seus adjetivos ao perfil do No dia seguinte à posse do governo interino de Michel Temer, esse
que considera ser uma "mulher perfeita": silenciosa, bonita, vaidosa e cenário foi reconfigurado. A foto do novo gabinete ministerial revelava
dona de casa. a ausência de mulheres, de negros, de índios e de jovens dentre outras
Em contraposição, em edição posterior a revista descreve a presiden- faces identitárias. Denotava o início de um governo misógino e con-
ta Dilma Rousseffcomo uma mulher solitária, de personalidade irascí- servador e o consequente desmonte das políticas para mulheres, como
vel, politicamente inábil, abandonada pelos aliados e temida pelos fun- bem destaca o texto da Secretária do Estado Olívia Santana, "Sobre o
cionários. Uma mulher que não desperta sentimentos afetivos, e que, golpe e as mulheres no poder". O ministro chefe da Casa Civil, Eliseu
na leitura induzida pela revista, pagou caro pela ambição e teimosia de Padilha, justificou essa falta. As críticas cerradas ao preconceito de gê-
fugir do lugar social que lhe era devido. (OYAMA, 2016) nero especialmente conduziram Michel Temer à busca de uma mulher
para assumir a Secretaria da Cultura.

LINDA RUBIM. FERNAND.A ARCOLO PRECISAMOS FALAR DE CSNBRO


Em entrevista ao programa Fantástico, da Rede Globo, em 15 de Rousseff foram descontinuadas. As ministras da pasta no governo
maio de 2016, Temer desqualificou a ausência de mulheres no seu go- Dilma, Eleonora Menicucci e Nilma Lino Gomes observam nos textos
verno observando que várias delas ocupariam cargos quase tão impor- que escrevem para esse livro, "O golpe e a perda de direitos para as mu-
tantes quanto os de ministro, pois, na reorganização dos ministérios, lheres" e "Golpe disfarçado de impeachment", respectivamente, como
haveria espaço para as mulheres nas secretarias. Neste sentido, Temer o desmonte da Secretaria de Políticas para Mulheres comprometeu as
enfatizou: "para a cultura eu quero trazer uma representante do mundo políticas de proteção e apoio às mulheres brasileiras, e tem marcado o
feminino". (EM ENTREVISTA... , 2016) retrocesso de seus direitos.
A determinação de Michel Temer gerou um forte gesto de resistên- Ressaltamos que mesmo com limitações, durante o governo Dilma,
cia das mulheres brasileiras. Ao menos cinco das mulheres que foram desenvolveram-se políticas e ações para o enfrentamento da violên-
sondadas para a Secretaria da Cultura, que substituiria o Ministério da cia contra a mulher, bem como em prol de sua autonomia financeira.
Cultura extinto, segundo a imprensa, negaram veementemente o con- Destacam-se a lei do feminicídio e o estímulo por mais autonomia na
vite. A negativa baseava-se não apenas, no caráter explicitamente opor- gestão da vida familiar, por meio da titularidade do "Programa Minha
tunista do convite, mas também na oposição à extinção do Ministério Casa Minha Vida" e como beneficiárias prioritárias do Programa Bolsa
da Cultura (Mine). A cultura, então, foi o lugar da resistência civil ao Família. EU) 2016 elas correspondiam a 93% dos beneficiados e 84% das
impeachment. Artistas, intelectuais, criadores populares, animadores proprietárias das casas. (MULHERES ... , 2016)
e militantes, de diversos segmentos realizaram um dos maiores movi- Estas medidas foram consideradas pela SPM de extrema relevância,
mentos de oposição ao governo interino, e conseguiram reverter a de- ao processo de autonomização das mulheres dado que, por exemplo, di-
cisão de extinção do MinC. É preciso reforçar como a negativa das mu- minuíam as relações violentas ou abusivas, fundamentadas apenas na
lheres ao convite do presidente representou um ato feminista contra o dependência financeira da mulher. (CEF, 2016)
projeto do governo de exclusão das mulheres dos espaços de poder. O texto da senadora e procuradora da Mulher no Senado, Vanessa
A falta de mulheres na lista ministerial não foi o único meio de afas- Grazziotin (PC do B-AM), "Dilma: símbolo para a participação polí-
tá-las do espaço político brasileiro. O decréscimo na representação des- tica feminina", destaca a assimetria no número de parlamentares ho-
critiva das mulheres tem sido feito de forma gradativa. De modo "mera- mens e.mulheres no Brasil, e como esse desequilibro tem comprometi-
mente circunstancial", conforme o Ministério do Planejamento, 12,13% do a representação substantiva das mulheres brasileiras no Congresso.
dos cargos comissionados cortados do Executivo eram ocupados por Neste sentido a senadora reafirma a preocupação quanto ao modo que
mulheres. (PRAZERES; AMORIM, 2017) as Reformas Trabalhista e da Previdência, propostas pelo atual gover-
Paralelamente a isso, o governo extinguiu o Ministério das Mulheres, no, tratam a questão da tripla jornada das mulheres e a desigualdade
da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, passando salarial deste gênero.
suas atribuições ao Ministério da Justiça (MJ). Assim, a Secretaria de Essas ponderações da senadora Grazziotin também estão em pau-
Políticas para Mulheres passou a departamento do MJ, sob o comando ta para a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) em "Mulher, negra,
da ex-deputada Fátima Pelaes (PMDB-AP). favelada e parlamentar: resistir é pleonasmo". 'Ela destaca como preo-
De 2016 para 2017, o corte no orçamento da Secretaria chegou cupação da sua gestão a proposta de aumento do tempo contribuição
a 61%, e a maioria das políticas iniciadas nas gestões de Lula e Dilma

18 LINDA RUBIM, FERNANDA ARCOLO PRECISAMOS FALAR DE Cl!NERO


previdenciária para os empregados domésticos de 15 para 25 anos, le- Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia (NEIM/UFBA),
"Precisamos falar d~ Gênero".
vando em conta que, caso isto se efetive, vai penalizar ainda mais as tra-
balhadoras, visto que o maior cont ingente de trabalhadores domésticos 2 Pesquisa em curso desenvolvida pelas autoras deste texto aponta a imparcialidade e a distor·
ção da informação em favor da campanha pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
no Brasil é composto por mulheres.
3 Kathleen Hali Jamieson (1995) discorre sobre as dificuldades de participação das mulheres
A esperança contra esse movimento conservador e de retrocesso nos no cam po político a partir do conceito de doublebinds, um paradoxo vivenciado pelas mulhe-
direitos das mulheres são os movimentos feministas que vêm surgindo res políticas em que qualquer que seja o comportamento adotado por cla.s ,alguma falta serã
apontada. A autora classifica as principais dualidades que surgem como cobrança para elas:
espontaneamente pelo país. As marcas do sexismo durante a campanha Profissional ou mãe?; O mesmo ou a diferença?; Silêncio ou vergonha?; Feminina ou compe-
pró-impeachmente os projetos de lei que retiram direitos das mulheres tente?; Idad e e invisibilidade. As estratégias de participação das mulheres na política, portan-
to, se colocam como um conjunto de ações para equilibrar os traços considerados masculi-
geraram movimentos em redes sociais contra o machismo e o sexismo nos e os considerados femininos . .
no país.
É possível identificar uma potência no ativismo digital que tem
mantido a agenda feminista em debate, e que em boa medida tem pau-
Referê ncia s
tado a grande mídia, apesar das posições conservadoras assumidas por
ALVES, B. M. Ideologia efeminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil.
ela. A tentativa do Congresso de adoção de políticas de controle sobre o
Petrópolis: Vozes, 1980.
corpo fem inino também mobilizou as brasileiras no movimento inti-
tulado "Primavera Feminista", que levou milhares de mulheres às ruas ARGOLO, F. Dilma Rousseff: trajetória e imagem da mulher no poder.
do Brasil em protesto contra essas políticas. 2014. 151f. Dissertação (Mestrado em Cult.ura e Sociedade) - Instituto de
Ainda é cedo para tecermos conclusões sobre a força que esses movi- Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2014.
mentos terão sobre a produção legislativa e a conjuntura brasileira, mas
é possível afirmar que só por meio da participação política das mulheres CAIXA ECONÔMICA FEDERAL (Brasil)- CEF. Mulheres são as
e de sua mobilização pela igualdade será possível reverter o ciclo his- principais contratantes do Minha Casa Minha Vida Rural. Governo do
tórico e persistente d.a opressão de gênero. Nesse sentido é importante Brasil, Brasília, DF, 1 fev.2016. Disponível em: <http://www.brasil.gov.
manter viva a disposição para "falar de Gênero". br/infraestrutura/2o16/o1/mulheres-sao-as-maiores-contratantes-do-
Boa leitura! minha-casa-minha-vida-rurab. Acesso em: 15 maio 2016.

EM ENTREVISTA concedida a Sônia Bridi, Michel Temer diz que não


tentará reeleição. Entrevistadora: Sônia Bridi. São Paulo: GloboPlay,
Notas 15 maio 2016. 1vídeo online (25 min 48 s), son., color. Entrevista
Esse livro começ?u a ser gestado ainda em 2016, durante a campanha pelo ímpeachment concedida ao Fantástico. Disponível em: <https://globoplay.globo.
exat:me nte pelo ~ncõm~do da ausência de reflexões sobre o papel/a importância da questào com/v/5025938/>. Acesso em: 16 maio 2016.
d~ genero na~ açoes do 1mpeachment. Nesse sentido manifestamos a nossa satisfação pelas
d1versas manifestações que começam a preencher essa falta, em diversas modalidades de JAMI ESON, K. H. Beyond the double bind: women and leadership. New
expressões e regiões do Brasil, assim como uma espécie de questão de ordem que se espraia
pelo mun do pautando essa discussào. Com base nesse contexto é que essa publicação adota York: Oxford University Press, 1995.
como título da apresentação deste livro a oportuna campanha do Núcleo de Estudos
UNHARES, J. Marcela Temer: bela, recatada e" do lar". Veja, São Paulo,
18 abr. 2016. Brasil. Disponível em: <http://veja.abril.eom.br/brasil/
marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/>. Acesso em: 16 maio 2016.

20 L INDA RUDIM, FERNANO. A ARCOLO


PRECISAMOS PALAR Oll CllNERO
MULHERES são as principais contratantes do Minha Casa, Minha
Vida Rural. Gouerno do Brasil, Brasília, DF, 1 fev. 2016. Disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2016/o1/mulheres-sao-as-
maiores-contratantes-do-minha-casa-minha-vida-rurab. Acesso em 15
maio 2016.
OYAMA, T. Os últimos dias de Dilma Rousseff. Veja, São Paulo, 11 maios
2016. Disponível erri: <https://veja.abril.com.br/brasil/os-ultimos-dias-
de-dilma-rousseff/>. Acesso.em: 16 maio 2016.
PINTO, C. R. J. Umrihistória do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2003.
PRAZERES, L.; AMORIM, F. Corte de cargos anunciado por D i lm a - um a m u l her po l ít i ca
Temer atingiu mais mulheres que homens. UOL, (S.l.), 3 mar. 2017.
Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas- C é li Regina jardim Pinto*
noticias/2017/03/03/corte-de-cargos-anunciado-por-temer-atingiu-
mais-mulheres-que-homens.htm>. Acesso em: 5 mar. 2017.
"Eu sou uma mulher dura cercada de homens meigos".
RUB IM, L. Imprensa de mulheres no Brasil. Comunicação e Política, Rio
Dilma Rousseffl
de Janeiro, v. 2, n. 1-2, p. 189-205, mar./jun. 1984.
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globo.com/politica/beleza-da-vice-primeira-dama-rouba-cena-na-
posse-da-diJma-2844111>. Acesso em: 2jan. 2011. No dia 17 de abril de 2016, a Câmara de Deputados, • Doutora em Ciência Po
Professora Titular do dej:
com mais de go% de homens, autorizou a abertu- mento de História da
ra do processo de impeachment contra a presidenta Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFR•
Dilma Rousseff. No dia 31 de agosto do mesmo ano,
o Senado Federal, com mais de 85% de homens, vo-
tou e aprovou o seu impeachment. Não há nenhuma
garantia de que a ausência de mulheres nestes dois
cenários tenha tido qualquer influência no resul-
tado. Entretanto, esta mesma ausência escancara a
condição subalterna das mulheres na política. Se, por

~~ LINDA RUBIM, Pll RNANOA ARCOLO


um lado, não se pode atribuir o impeachment de Dilma Rousseff ao fato alta ou da burgu~sia, tanto urbana como rural. Na questão "específica
de a esmagadora maioria dos representantes no Congresso Nacional ser das mulheres, soma-se ainda o sexismo generalizado da sociedade bra-
formada por homens, por outro, isto não afasta a presença das questões sileira que perpassa classes, raças, etnias, posições políticas e ideológi-
de gênero na trajetória de vida política da primeira presidenta mulher no cas. As assustadoras estatísticas da violência contra a mulher no país são
Brasil, desde sua militância, ainda na adolescência, até o impeachment. o retrato mais nítido destas relações desiguais.
Quando se analisa a presença das mulheres na política, o Brasil é Quanto mais conservadora for a postura política de um partido ou
um dos países menos igualitários do mundo. Segundo dados da União de uma organização da sociedade civil, mais sexistas e preconceituosos
Interparlamentar, atualizados em 111 de março de 2017, o Brasil ocupa o serão seus membros em relação à igualdade das mulheres e de outros
153 11 lugar entre 194 países pesquisados, quanto à presença de mulheres grupos excluídos. Entretant~, não é necessariamente verdade que pos-
nos parlamentos. (IPU, 2017) É também muito pequeno o número de turas políticas progressistas sejam, por natureza, não sexistas. E aqui
prefeitas e governadoras eleitas ao longo da história. O total de mulhe- habita um dos mais graves problemas relacionados às dificuldades que
res efetivamente eleitas nas Assembleias Legislativas, somadas às elei- as mulheres enfrentam na política. Foi neste cenário que se desenvol-
tas na Câmara de Deputados em 17legislaturas, de 19 50 a 2014, é de 564. veu a trajetória política da presidenta Dilma Rousseff.
Destas, apenas 184 chegaram à Câmara de Deputados, neste período.• Quando Lula indicou Dilma como candidata do Partido dos
Desde 1997, com a chamada Lei das Cotas (Lei 9504/1997), os partidos Trabalhadores (PT) para as eleições à presidência da república, as pri-
são obrigados a garantir 30% de mulheres em suas listas de candidatos meiras reações foram de que Lula, naquele momento com alta popula-
para as eleições proporcionais, uma vez que a lei impede mais de 70% ridade, elegeria qualquer um, uma mulher como Dilma, ou um poste.
de candidatos de um mesmo sexo. (BRASIL, 1997) Tem havido muita Como havia sido secretária do município em Porto Alegre, secretária
dificuldade para o cumprimento desta cota nos partidos, independente de estado no Rio Grande do Sul, mi.nistra de Minas e Energia e da Casa
de ideologia e tamanho. Mesmo quando ela é cumprida, não tem mu- Civil no governo Lula, não era possível desqualificá-la completamente,
dado significativamente o quadro do resultado eleitoral. São muitos então se passou a considerá-la uma técnica, não uma política. Vale ob-
os estudos que analisam esta ausência no Brasil, mas é generalizada a servar que esta qualificação não estava diretamente relacionada ao fato
identificação de duas causas que ajudam a explicar as dificuldades de as de Dil~a nunca ter concorrido a cargos eletivos, mas a sua propalada
mulheres chegarem a esta esfera pública: o sistema politico partidário e falta de tato para conversar e atender à classe política e aos interesses
a manutenção de profundas desigualdades nas relações de gênero. Em privados que chegavam até ela na condição de ministra.
relação ao primeiro, cabe destacar o sistema de listas abertas, a oligar- Ora, não é preciso uma observação muito atenta para entender que
quização das burocracias partidárias, o alto custo das campanhas elei- as pessoas podem ser tecnicamente competentes ou não, mas não exis-
torais. As mulheres não encontram espaço neste cenário, mas também te possibilidade de cargos políticos, da importância dos assumidos
estão ausentes os negros, os índios e os trabalhadores das classes popu- por Dilma, serem preenchidos por pessoas não envolvidas na política.
lares. Nas duas casas legislativas que compõem o Congresso Nacional, O famoso técnico competente apartidário sabemos que não existe, que
assenta-se uma robusta maioria de homens brancos, de classe média foi uma invenção dos govex:nos militares do Cone Sul, retomado re-
centemente pelo fundamentalismo neoliberal. Também sabemos que

C flLI REGINA JARDIM PINTO O I LMA ·UMA MULHER POLfTICA


as atividades e os comprometimentos políticos vão muito além de car- da própria Dilm~, décadas depois, em 2008, como chefe da Casa Civil
gos eletivos e, quando se trata de mulheres, que encontram todo o tipo à Comissão de Infraestrutura do Senado, o qual dá a dimensão de seu
de dificuldade para se elegerem, a militância fora da disputa eleitoral é comprometimento político. O diálogo ocorreu entre o inquisidor, se-
muito recorrente. Possivelmente a crítica a Dilma, por parte de alguns nador Agripino Maia, e a então ministra. Enquanto Dilma, como vi-
homens que faziam política em Brasília, era devida a um alargado con- mos, entrou na política ainda adolescente e logo foi obrigada a ir para
ceito do que é ser político, que inclui troca de favores e favorecimentos a clandestinidade devido ao golpe militar, Agripino Maia entrou na
entre agentes públicos e entre agentes públicos e privados. política como prefeito de Natal, nomeado por seu primo, o governador
A trajetória de Dilma Rousseff é um contraponto a esta forma de fa- Lavoisier Maia Sobrinho, do Rio Grande do Norte, também nomeado
zer política, como r~vela uma breve recorrida por sua biografia. Ela co- pelo general presidente Ern~sto Geisel.
meça sua militância na escola secundária {atual ensino médio) com 16 Agripino, pondo em dúvida a veracidade das informações que a mi-
anos. Isso não é excepcional, estudos sobre carreiras políticas no Brasil nistra estava dando à Comissão, acusa: "que lembranças a senhora guar-
apontam, tanto para mulheres como para homens, a política estudan- dou dos tempos da cadeia? V1. Ex1. responde: 'A prisão é uma coisa onde
til como costumeira porta de entrada. Nascida em 1947, seu envolvi- a gente se encontra com os limites da gente ... nos depoimentos a gente
mento com a política ocorreu um ano antes do golpe militar que desde mentia feito doido, mentia muito, muito mesmo', o que me preocupa ..."
a primeira hora reprimiu, censurou, prendeu e torturou. A vida política A resposta de Dilma é uma das peças mais importantes do discurso
legal dos jovens foi, pois, violentamente interrompida, e fez com que político brasileiro sobre o que aconteceu na ditadura militar:
muitos deles continuassem militando em organizações. clandestinas.
Qualquer comparação entre a ditadura militar e a democracia brasileira só pode
Dilma Rousseff militou na Comando de Libertação Nacional {Colina)
partir de quem não dá valor à democracia brasileira. Eu tinha 19 anos, fiquei 3 anos
e posteriormente na Vanguarda Armada Revolucionária de Palmares
na cadeia e fui barbaramente torturada, Senador. Qualquer pessoa que ousar dizer
{VAR- Palmares). Há uma discussão conservadora e moralista sobre o
a verdade para interrogadores compromete a vida de seus iguais, entrega pessoas
fato de ela ter ou não pegado em armas. Entretanto, a questão que im-
para serem mortas. Eu me orgulho muito de ter mentido, Senador, porque mentir
porta, do ponto de vista da análise histórica e da análise de trajetória, é
na tortura não é fácil. Agora, na democracia, se fala a verdade. Diante da tortura,
entender que haviam sido fechadas todas as portas para a vida política
quém tem coragem e dignidade fala mentira. Isto faz parte, Senador, e integra mi-
democrática no país e que a luta armada foi uma alternativa, inclusive de
nha biografia, da qual eu tenho um imenso orgulho. Eu não estou falando de heróis,
altíssimo risco de vida de seus militantes, que a resistência encontrou
feliz do povo que não tem heróis desde tipo, Senador, porque aguentar a tortura é
para lutar contra a ditadura militar. Os muitos grupos que lutavam na
algo difidlimo, porque todos nós somos muito frágeis, somos humanos, nós temos
clandestinidade não foram tão fracos e desorganizados como um certo
dor. E a sedução, a tentação de falar o que ocorre, dizer a verdade, Senador, é muito
senso comum tenta impor, foram sim desbaratados por uma repressão
grande. A dor é insuportável, o senhor não imagina quanto é insuportável. Eu me
violenta e cruel, que prendeu, torturou e matou. Consequência disto,
orgulho imensamente de ter mentido, porque eu salvei companheiros da tortura,
Dilma foi presa e torturada em 1970, tendo ficado na cadeia até 1973.
da morte. Não tinha nenhum compromisso com a ditadura, eu estava em um cam-
Quando saiu da prisão, era uma jovem mulher com uma formação
po, eles estavam em outro. (DILMA ..., 201 O)
política sólida. Sobre este tempo, o depoimento mais contundente é o

OILMA- UMA MULHI!I\ POLfTJCA


C Í! LI 1\ I! CINh lhi\OJM PI .NTO
A pergunta que se impõe frente ao diálogo entre estas duas pessoas políticas muito slaras sobre econ omia, que se contrapunham frontal-
é: quem é político? O senador ou Dilma Rousseff? Um homem premia- mente ao neoliberalismo. Singer assim.qualifica o que chama de Plano
do pela ditadura, que só pulou fora de suas fileiras quando se deu conta Dilma:
de que o barco estava afundando, ou Dilma, uma mulher que se for-
jou n a luta contra a opressão dentro e fora da cadeia? É Maia, o homem A desobstrução de caminhos para a retomada industrial, os esforços pela industria-
branco, rico e oligarca, o político? E Dilma o poste? A técnica perdida lização integral do pars, a crença no papel indispensável do Estado no planejamen-
em Brasília? O que significa, para a elite política brasileira, para a mí- to, a descrença nas forças espontâneas do mercado, a decisão por parte do Estado
dia e até para alguns setores da esquerda, ser político? É ter lábia, é ser dos setores que devem se expandir e o papel estatal no financiamento de.s tes esti-
matreiro, é ser ho~em? Que qualidades teria Agripino Maia para ser veram todos presentes no que se poderia também denominar de "plano Dilma"
considerado político e quais os defeitos de Dilma para ser qualificada (SINGER, 2015, p. 45)
como poste e técnica?
Entre sua prisão pelas forças da ditadura até seu depoimento no Portanto, a presença de Dilma no governo Lula e, posteriormente,
Senado, arguida por um dos que se tornou figura política graças às be- sua atuação como presidenta da República têm uma clara perspecti-
nesses de generais, Dilma teve uma vida política ativa. Foi uma das fun- va política. Não é admissível pensar sua trajetória no governo federal
dadoras do PDT, junto com Leonel Brizola. Sua saída do partido foi uma como a de uma técnica. Dilma, por sua própria história política, tinha
decisão de quem pensava p oliticamente o futuro da esquerda no país. uma perspectiva mais política e esquerdizante que o próprio Lula. .
Secretária de Estado de Minas e Energia do governo de Olívio Dutra Dilma nunca esteve de favor em nenhum dos cargos que assumm,
no Rio Grande do Sul, licenciou-se do PDT em 20 o o para apoiar Tarso nunca foi agraciada por ser filha, irmã, s~brinha, ou em troca de favores.
Genro, do PT, que disputava em segundo turno a prefeitura de Porto Enfrentou resistências de todas as ordens: a primeira e a mais radical,
Alegre com Alceu Collares. quando lutou contra a ditadura; depois, quando chegou ao PT vinda do
Em 2001, Dilma se filiou ao PTe, no mesmo ano, participou da cam- PDT. Era uma mulher com tradição trabalhista sem pertencer a nenhum
panha eleitoral de Lula para a presidência da república, quando teve um dos grupos que formaram historicamente o partido. Dilma nunca teve
papel importante nas proposições de políticas para Minas e Energia, um grupo para chamar de seu dentro do PT, nenhum que a defendess:,
tornando-se, após as eleições, ministra da pasta. Em 2005, no segundo que a protegesse. O PT só abraçou Dilma quando se deu conta, atra~es
governo de Lula, assumiu a chefia da Casa Civil, sendo a primeira mu- dela, de que as forças conservadoras do país pretendiam varrer o partido
lher a ocupar o cargo. Porque teria Dilma ocupado estes cargos durante d as disputas eleitorais.
o governo do presidente Lula, um governo com uma preocupação clara Apesar de toda a sua longa vida política, de sua integridade na luta
n o crescimento econômico, na infraestrutura, nas políticas sociais, mas pela democracia, Dilma novamente teve de enfrentar o sistema quan-
também eminentemente político, no sentido de ter de administrar uma do decidiram que ela seria deposta do poder através de um estratagema
coalizão de partidos com interesses distintos e, inclusive, perspectivas legal que uniu quatro forças: as políticas, lideradas pelo então vic~-pre ­
ideológicas muito distantes entre si? Dilma possuía uma capacidade sidente, que estavam mais profundamente ameaçadas pelas mves-
técnica indiscutível e necessária para o governo, mas tinha posições tigações da polícia federal; os representantes do capital, tristemente

~8 C Í! Ll RllClNI\ JIIROIM l'l .NTO


O IL MI\ ·UMA MULHBR POLfTICI\
sintetizados na figura de um pato de plástico, o que deu a dimensão da de Oliveira? Dil!lla ou Moreira Franco? Dilma ou Delcídio do Amaral?
pobreza política e intelectual desta classe; uma classe média, igualmen- Dilma ou Antonio Palocci?
te inculta e confusa politicamente, mas muito consciente de que a con- O último ato de Dilma como presidenta foi a arguição feita pelos
tinuação de um governo de esquerda poderia lhe ameaçar privilégios; Senadores, por 14 horas seguidas, antes da votação do impeachment.
o judiciário, extrapolando suas funções e se tornando um poder polí- Todos que estavam envolvidos naquele evento, todas as cidadãs e to-
tico, que se estende deste a primeira instância até o Supremo Tribunal dos os cidadãos medianamente informados sabiam que aquela sessão
Federal (STF). de arguição era uma farsa e havia uma única pessoa que não estava fin-
Durante a campanha a favor do impeachment, levada a efeito nas gindo: Dilma Rousseff. Sem se alteraí, respondeu a todos os questiona-
redes sociais por g~upos conservadores, e nas manifestações de rua mentos, respondeu para a h.istória, não para os protagonistas da farsa.
lideradas por uma classe média urbana elitizada, a questão de gênero Os senadores da República, sob a presidência de Renan Calheiros, de
aflorou da forma mais primária possível. Deixou de ser um preconcei- posse de um parecer emitido pelo senador tucano Antônio Anastasia,
to contra mulheres na política para ser simplesmente um preconceito em sessão dirigida pelo diminuído ministro presidente do STF, sabiam
contra a mulher. A sociedade brasileira mostrou todo seu primarismo, que não havia crime, mas que Dilma deveria ser cassada, seu mandato
toda a sua ignorância, cultivada nos bairros e nos colégios de elite das tinha de s~r interrompido, para que o fundamentalismo neoliberal fos-
principais cidades do país. As ofensas sexuais, em adesivos e nas redes se implantado.
sociais, bem como os palavrões dirigidos a Dilma Rousseff, melhor do Era fácil derrubar Dilma, era uma mulher, não um cacique do PT.
que qualquer pesquisa de opinião, são parâmetros do nível de educação Depois de tudo que aconteceu, ainda se ouvia, entre detratores e mes-
cívica e de preconceito contra a mulher no país. mo entre militantes da esquerda, que ela era dura, ela não tinha jogo
A crise que resultou no impeachment aflorou a grande contradição de cintura, ela não negociava, ela não cedia às tramas necessárias, ela
da vida de Dilma na política: por um lado, uma mulher que, desde os 16 não era política. Ela era apenas uma mulher. Mulheres não sabem fa-
anos, estava profundamente envolvida em política; por outro, adversá- zer política, elas podem militar desde 16 anos, ser brutalmente tortu-
rios e companheiros .acusando-a de não ser política, de não ter sabido radas, ocupar os principais cargos da República, mas serão ditas como
conversar com os deputados, de não ter sabido negociar. Somou-se a isto não p~líticas, serão no máximo técnicas competentes, que caem porque
o grito preconceituoso das ruas. Em que os que apontaram o dedo para não sabem compactuar. Definitivamente, a política está precisando de
Dilma estavam pensando, quando a acusaram de não ser política? Hoje, muitas mulheres como Dilma Rousseff, uma mulher dura em meio a
quando o presidente da República e seus ministros se dedicam quase homens meigos e dobráveis, nem sempre aos mais nobres interesses da
integralmente a articular manobras para se salvarem das investigações República.
da Lava Jato, a pergunta que não quer calar é: isto é ser político? Quem
era visto como verdadeiro político nas rodas de homens brancos, ricos,
conservadores e mesmo não tão ricos, nem tão conservadores? Dilma Notas
ou Sergio Cabral? Dilma ou Eduardo Cunha? Dilma ou Romero Jucá? Ainda como chefe da Casa Civil e já na condição de candidata à presidência da república
Dilma falou de sua condição de mulher: "Em condições de poder, a mulher deixa de ser vista
Dilma ou Renan Calheiros? Dilma ou José Dirceu? Dilma ou Eunício como objeto frágil e isso é .imperdoável", afirmou. "Af começa a história da mulher dura.
É verdade: eu sou uma mulher dura cercada de homens meigos". (NOSSA, 2009}
posteríormente, já presidenta, deu a mesma resposta a Jô Soares. (DILMA ..., 201 S}

30 C É L I R E G I N A J A R O I M P I .N TO DILMA ·UMA MULHER POLfTICA


2 Este dado considera apenas as deputadas realmente eleitas nos pleitos, não as suplentes que
assumiram mandatos.

Referências
BRASIL. Lei n 11 9-S04, de 30 de setembro de 1997. Estabelece
normas para as eleições. Diário Oficial {da) República Federativa
do Brasil, Poder Legislativo, Brasília, DF, 1. out. 1997. Disponível
em: <http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.
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DILMA Rousseff e a resposta que demoliu o senador Agripino Maia
{DEM-RN). [S.l.): drrosinha, 2010.1 vídeo online (4 min), son., color. Incongruê n c ias e dubiedades,
O isponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Tiyezo1fLRs>. des legitimaçã o e _leg iti m ação:
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o gq lpe contra D il ma Rousseff
DI LMA Rousseff no ]ô Soares: entrevista completa. [S.l.): j p souza, 2015.
1vídeo online. {71 min), son., color. Disponível em: <https://www. Clara Araújo*
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I NTERNATIONAL ORGAN IZATI ON OF PARLIAMENTS- IPU.


Women in national parliaments. New York, 2017. Disponível em: <http:// *Professora e pesquisad
www.ipu.org/wmn-e/classif.htm>. Acesso em: 29 mar. 2017. Programa de Pós-Gradue
em Ciências Sociais da
Introdução Universidade do Estado 1
MOURA, R. M.; PIRES, B.; BULLA, B. 'Não dá para prever duração de
O golpe parlamentar de 2016, consubstancia- Rio de janeiro (UERJ).
julgamento da chapa', dizem ministros. O Estado de S. Paulo, São Paulo,
29 mar. 2017. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/ do no impeachment da presidenta Dilma, levará
geral,nao-da-para-prever-duracao-de-julgamento-da-chapa-dizem- algum tempo até que seus efeitos sejam mais bem
ministros,70001718936>. Acesso em: 29 mar. 2017. dimensionados. E isto é válido também para aná-
lises que tentam compreendê-lo a partir de pers-
NOSSA, L. 'Sou uma mulher dura cercada de homens meigos', diz Di! ma.
Estadão, São Paulo, 10 mar. 2009. Disponível em: <http://politica. pectivas de gênero. Há múltiplas vertentes a serem
estadao.com.br/noticias/geral,sou-uma-mulher-dura-cercada-de- observadas quando se pergunta como e com qual
homens-meigos-diz-dilma,336414>. Acesso em: 29 mar. 217. intensidade o gênero perpassou e interferiu no pro-
cesso que culminou no impeachment da presidenta.
SI NGER, A. V. Cutucando onças com varas curtas: o ensaio
De antemão, pode-se dizer que a história do golpe
desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff(2011-2014).
Novos Estudos, São Paulo, n. 102, p. 43-71, jul. 2015.

3 2 C ti L I R fi C IN 11 111 R O IM P I .N TO
será contada, também, como a história do forte conservadorismo pre- Tratou-se de proçesso ambíguo, vale sugerir. De um lado tais investi-
sente na sociedade brasileira, relacionado com dimensões de gênero. das, aparentemente, não surtiram muitos efeitos, ao menos eleitorais,
Independentemente das posições políticas professadas, do apoio ou inclusive após a exacerbação dos ataques à presidenta, a partir de junho
de críticas à presidenta, ao seu partido ou ainda à sua coalizão gover- de 2013.
namental, o fato é que se torna difícil para pessoas com um mínimo de Na eleição de 2014 o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi incisivo
compromisso com a igualdade de gênero, negar a presença dessa face, no cumprimento da Lei de Cotas· e no preenchimento das mesmas,
que antecedeu em muito o impeachment em si, vale registrar. elevando, finalmente, para 30% a porcentagem de candidatas. O tema
Argumentos de que os registros da presidenta sobre os preconceitos "mulheres no poder" estava mais presente na agenda política. Dilma
e a discriminação q~e sofreu se constituem em mera figura de retórica ganhou as eleições e sua aprqvação após junho de 2013 cresceu um pou-
não se sustenta à luz de um levantamento geral das notícias na mídia.' co mais entre as mulheres.l Em outras palavras, a presença de uma mu-
Desnecessário mencionar aqui aspectos mais brandos de coberturas de lher no cargo mais elevado da República parecia indicar o que a litera-
mídia, como desfile de estereótipos de gênero nas observações sobre tura denomina de "efeito da representação simbólica" durante parte do
roupas, cabelos, modos e estilos de vestimentas, entre outros. Os con- tempo em que Dilma esteve na presidência: mulheres no poder tendem
teúdos midiáticos em reportagens e editoriais são registros públicos. a estimula_r outras mulheres a pleitear ou a considerarem "normal" e
Por ora basta destacar a capa e a matéria da revista Isto É de n 2 2417, de possível disputar cargos. De outro lado, o trabalho sistemático, direto
o6 de abril de 2016, talvez o exemplar icônico dessas abordagens. e indireto de deslegitimação foi de tal monta que parece ter dissolvido
Entre os pontos que aparecem como recorrentes, e não só na grande o que poderia existir de simpatia por partes desses setores da popula-
mídia, mas também nessa arena hobbesiana que se tornou a internet, ção em relação à experiência e presença de uma mulher na presidência.
está o da desqualificação como deslegitimação. Embora a intensidade e O simbolismo inicialmente positivo (se é que de fato houve) se dissol-
o peso efetivo que tal aspecto adquiriu só possam ser melhor analisados veu e, parece, teve seu sinal invertido: de positivo para negativo.
com mais tempo, a indicação aqui cumpre o propósito da edição desta É sob este prisma que o texto faz uma reflexão inicial: parte de al-
coletânea: explorar os indícios, levantar as hipóteses e pensar o proces- gumas manifestações explícitas e de outras nem tanto enfáticas, para
so. Nessa perspectiva, o ensaio reflete sobre alguns exemplos de como pensa~ aspectos da desqualificação política com viés de gênero, que te-
o gênero teria operado como variável importante na deslegitimação' riam operado antes e durante o processo de impeachment. A prática,
de Dilma Rousseff para legitimar o golpe parlamentar. Tal caminho de como sabemos, não é nova e tampouco peculiar à figura da presidenta. 4
deslegitimação, porém, precedeu o processo da crise e do impeachment De fato, o novo está no processo, na raridade de mulheres ocuparem a
e ocorreu mesclado com outras dimensões da crise política em si. presidência; de ser atinente à primeira mulher a ocupar a presidência no
A tentativa de deslegitimação como forma simbólica parece ter Brasil; e, mais raro ainda, dessa presidência sofrer um impeachment.
acompanhado a trajetória de Dilma desde o momento em que seu nome
começou a ser veiculado como possível candidata à presidência; fez-
se presente no processo direto do golpe (BISCAIA, 2016; BOITEUX,
2016); e pôde ser notada mais de um ano após o golpe (maio de 2017).

CLARA ARAÚJO INCONCRUftNCIAS E OUBII!OAOBS. OESLECITIMAÇÃO ll LEGITIMAÇÃO


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Vejamos, pois, alguns episódios ou momentos nos quais o gênero pare- exercício da repre~entação. Haveria, assim, uma complexidade da enge-
ce ter operado como variável interveniente no processo. nharia eleitoral. O indivíduo-candidato e depois indivíduo-parlamentar
tenderiam a ocupar espaço indevido e em excesso, em detrimento dos
partidos e dos interesses coletivos. Neste ambiente, os "atributos" do lí-
Sobre premissas e contextos da democracia, do der como negociador tenderiam a ser bem importantes. Haveria maior
presidencialismo e da liderança no Brasil necessidade de liderança e carisma não só &ente ao eleitorado, com vistas
Como se sabe, nas· democracias representativas a formação do à eleição, mas também na relação com os atores dos legislativos e nas
Executivo pode ocorrer via mecanismos plebiscitários diretos- o voto negociações constantes para a obtenção de votos parlamentares, através
do cidadão para presidente- ou de modo indireto, via parlamento, mas de liberação de emendas e OCl;lpação de cargos.
este é legitimado anteriormente através do voto do cidadão para eleger Carisma e negociação são parte dos processos políticos, como des-
os parlamentares. No parlamentarismo a sobrevivência e a possibilida- tacava Max Weber.s Segundo ele, formas de legitimação do poder e da
de de governo dependem do apoio direto do Legislativo na formação do dominação seriam sempre necessárias. A dominação legítima passaria,
Executivo, ao passo que no presidencialismo o foco da legitimidade está também, pelo carisma como parte da construção da liderança. Por sua
diretamente no eleitor. A negociação e apoio do congresso continuam a vez, o carisma como a capacidade de negociação se torna mais relevante
fazer parte. desse processo e o governante tem autonomia para nomear nas democracias representativas, notadamente nos regimes presiden-
ministros e cargos estratégicos, mas o poder do presidente passa pelo cialistas. Com efeito, carisma, habilidade, compromisso, experiência,
voto direto do cidadão na eleição. Diferentemente do sistema parla- competência, entre outros aspectos, compõem esse cardápio legitima-
mentarista, no presidencialismo o dirigente do Executivo não sai do dor das disputas político-eleitorais e da condução político-administra-
poder caso não consiga formar um governo. Sua legitimidade está asso- tiva governamental. Atributos e carisma, por sua vez, fazeq1 parte do
ciada ao voto, e, claro, também ao compartilhamento de poder com par- capital político de quem disputa cargos, em particular o cargo de presi-
tidos, via distribuição de cargos, número de deputados que o apoiam, dente da República. Resta-nos, porém, refletir se o peso do carisma in-
concessão dé emendas, entre outros aspectos. (BATISTA, 2016) dividual seria um indicador de "qualidade da democracia" e de firmeza
No Brasil vigora o que se convencionou chamar de "presidencialismo de suas _instituições ou, ao contrário, de regimes que ainda dependem
de coalizão", um formato peculiar ao país: a presidência necessita nego- mais de pessoas individuais do que de suas instituições. E ainda, em um
ciar e compartilhar os cargos entre partidos de uma coligação que ele- ou outro caso, refletir sobre quais seriam os atributos de fato relevantes
geram parlamentares e ter base parlamentar para seguir governando, já em cada situação ... Mas este é assunto para outro texto.
que a aprovação de medidas no congresso é fundamental. Esse presiden- O primeiro dos pontos a destacar neste ensaio é, então, que, em se
cialismo e suas "distorções" há muito são objeto de críticas de diversos tratando de mulheres que ocupam ou tentam ocupar esse tipo de espa-
setores: os interesses partidários teriam se tomado apequenados; há ex- ço político de poder- cargos elevados no Executivo-, o que irá consti-
cessivo número de partidos com os quais negociar e muitos partidos "de tuir carisma pesam mais em comparação com os homens; os atributos
alug~el"; e há peso excessivo em negociações individuais, prevalecendo aparentemente neutros para o exercício da liderança, como "competên-
os interesses particulares de parlamentares, uma prática distorcida do cia" e "experiência", tenderão a importar sobremaneira; não são de fato

CL/\R/1 1\RIIÚJO IN C ONGRU tl NCIIIS n D UBJ B DADES. D BS l.EGI T IM A ÇÃO E LEGI T IMAÇÃO
expressões neutras; e tendem a ser submetidos ao crivo público mais interesse particul~r do deputado, de pequenos grupos a partir de bases
intenso, em comparação com os homens. locais, ou de demandas eventualmente pouco republicanas. A nature-
No caso em lume - Dilma Rousseff corno figura política desde a za problemática do "varejo" reside, entre outros aspectos, na expressão
campanha até o impeachrnent- ao que parece, não foi suficiente que de seu antirrepublicanismo, já que, em geral, pautaria interesses muito
o carisma como "qualidade" estivesse ausente na pessoa da presiden- particulares, sem falar de práticas corruptas/ O "varejo" tem sido ob-
ta. Tampouco foi necessário afirmá-lo como atributo e referência para jeto de questionamentos e críticas constantes de vários setores da po-
marcar o que é ser líder e exercer uma presidência. Somaram-se vários pulação, incluindo atores políticos organizados, intelectuais e também
aspectos. E alguns refletiram questões inegáveis e específicas ao con- parte da grande mídia. Registre-se que parte das críticas não ocorre em
texto do país. Por exemplo, a referência temporalmente muito próxima decorrência da natureza pot~:co republicana dessa prática e, nesse sen-
do carisma incomum do presidente Lula, o papel desse "atributo" no tido, por ser condenável e anti-política. Advém da negação da própria
presidencialismo, bem como o contexto da cultura política brasileira, política. Nessa linha, o "varejo" torna-se a substância da política, numa
no qual a figura do líder ainda revela o peso das pessoas vis-à-vis o das associação indiferenciada e perversa com a ação política e com a figura
instituições. O problema, pode-se sugerir, é que em Dilma, a ausência do representante político em geral.
de carisma constituiu mais do que uma referência e um contraponto Em ambas as situações o "varejo" se nos apresenta como um proble-
negativos marcados e lembrados. Tornou-se a falta constante que aferia ma, e seria, portanto, uma prática condenável. No primeiro caso, seria
todo tipo discurso, para (des)qualificar qualquer que fosse a sua mensa- atitude antirrepublicana, porque o representante ou o indivíduo-de-
gem e o conteúdo de sua fala. A presidente Dilma não foi só destacada putado se locupleta com a coisa pública; e não está preocupado com o
como não-carismática, mas como aquela cujos discursos ultrapassavam bem-estar coletivo. Logo, atitudes para evitar esse tipo de negociação
o vazio do apelo e do conteúdo e eram sempre objeto de chacota e da fal- poderiam ser consideradas como virtude política. No segundo caso, a
ta dessa "qualidade" para governar. 6 Não que isso não tivesse ocorrido partir de uma percepção mais distorcida e simplificadora, o varejo es-
com Lula, por sua linguagem, sua escolaridade, entre outros aspectos, taria "no sangue" e o político seria alguém por natureza envolvido com
mas em Dilma foi também a sua associação com "mulher burra" que seus próprios interesses, que só entra na política para se locupletar e sua
fala "besteira" e não sabe o que diz. ação es~aria sempre ferindo o interesse do indivíduo-cidadão, que seria
Ao lado do carisma, o segundo exemplo de desqualificação a des- prejudicado frente ao Estado e à política. Neste caso, a recusa a agir de
tacar neste tópico é o das dinâmicas de negociações entre Executivo e tal maneira poderia ser vista, então, como algo positivo no mar de inte-
Legislativo; de como a presidenta e seus apoiadores conduziram-nas, resses escusos "dos políticos".
se de forma hábil ou inábil, mais ou menos apropriadas politicamente. À presidenta Dilma se atribuía dificuldade de lidar com o "vare-
Como é sabido, dadas as várias distorções e problemas de funcionamen- jo" das negociações nas relações Legislativo-Executivo. Costumavam
to do sistema político, as formas de negociação e a cultura política brasi- ser destacadas a sua falta de habilidade e de "apetite" para conduzi-las.
leira têm como uma das suas bases importantes o "negócio" parlamen- Seria de se esperar, então que daí pudesse advir alguma nota positiva,
tar individual ou o que denomino de "varejo". Ou seja, a negociação do ou mesmo que fosse ressaltada a sua virtude de não se apequenar, de

CLARA ARAÚJO INCONGRU Jl NCIAS 8 OUB180AOBS, OBSLJlG ITIMAÇÃO ll LEGITIMAÇÃO


não se sujeitar ou praticar essa via de negociação. Mas parece que tal característica ou o recurso necessário para estar na política, mulheres os
I

leitura não se fez presente no cenário. A "falta" e o "deslocamento" da terão menos e serão mais cobradas segundo os padrões vigentes.
presidenta desse campo das práticas políticas do varejo são os aspectos
destacados quanto ao seu estilo de negociar. Isto ora parece decorrer de
sua inexperiência política, ora de sua inapetência para a função, ora à sua Sobre a experiência, habilidade e as formas da (des)
inabilidade, ou ainda aos três aspectos juntos. A ética como elemento legitimação
constantemente acionado no discurso midiático, também não contou, Nas democracias modernas, a política envolve participação e repre-
nesse caso. Não se registraiiJ. outras leituras possíveis, como por exem- sentação. A participação política é uni termo amplo, que abarca as di-
plo, a de que tal resis_tência poderia sei uma janela de oportunidade para versas formas de ação coletiya dos sujeitos sociais com vistas a inter-
estimular ou desnudar a forma viciada de negociação, abrindo caminho ferir intencionalmente ou não, em determinado processo ou causa. A
para outro formato de prática política. política é, assim,"[...] o lugar em que se entrelaçam os múltiplos fios da
O ápice foi o episódio do processo contra Eduardo Cunha. A "inabi- vida dos homens e mulheres [...). Diz respeito à elaboração de regras ex-
lidade" de Dilma ou dos parlamentares de seu partido ficou associada plícitas ou implícitas acerca do participável e do compartilhável [.. .]".
ao fato de recusarem-se a negociar com o então presidente da Câmara (ROSANVALON, 2010, p. 72, grifo do autor)
dos Deputados a sua absolvição, na votação para abertura de inqué- A eleição é momento privilegiado para os cidadãos exercitarem seus
rito parlamentar que atingia o deputado. O ultimato fora dado como direitos. Eleições e partidos políticos são fundamentais, mas práticas
um xeque-mate: ou a bancada da presidenta recusa seu processo ou o públicas coletivas de participação e de deliberação são igualmente ne-
deputado aceitaria pedido de impeachment contra a presidenta. Os ·re- cessárias, pois eleições não expressam o todo democrático, embora
sultados são sabidos. E em que pesem todas as imputações de negocia- representem momento importante do processo. Pode-se elencar, por
tas, chantagens e outros aspectos da prática rotineira do então deputa- exemplo, a participação em movimentos sindicais, de bairros ou de gru-
do Eduardo Cunha, nos comentários da grande mídia ou nos diversos pos de interesse e de pressão; manifestações e presença em vários tipos
blogs de movimento~ politicamente contrários à presidenta, não foram de protesto, e assim por diante. Se essas e outras formas de ação coleti-
identificados quaisquer tipos de méritos no seu ato. No arco crítico em va faze~ sentido e são reconhecidas como parte da política, então não
relação à sua falta de habilidades e negociações, alinharam-se setores restam dúvidas de que o histórico de Dilma Rousseff é indissociável de
da direita e também setores de esquerda. A pergunta que fica então é se formas de participação política. Dilma fez movimento estudantil quan-
a mesma leitura poderia ser feita caso a presidência fosse ocupada por do secundarista. Foi de movimentos de resistência à ditadura, inclusive
um homem. Talvez... Não se pode errar em política. Errando, é melhor o guerrilheiro, único a ser lembrado por setores conservadores. Com a
que seja alguém "do ramo". Mas "ser do ramo" pode significar muita volta do exílio, atuou em movimento de mulheres, teve militância em
coisa ... De início é difícil fugir à impressão de que houve forte viés de partidos políticos, ajudou a fundar um dos mais importantes partidos
gênero nessa ênfase desqualificadora. Viés dúbio, registre-se, pois o no período da redemocratização e seguiu com militância partidária.
que fora execrado como problema se inverte e passa a ser lido como fal- A sua história remete à participação política desde adolescente e até o
ta e ausência de Dilma. Como diz Chapman (1993), qualquer que seja a

40 CLA RA 1\RAÚJO INCON G RU!lNCIAS I! DUIIII!DADI!S, DI!S L I!GIT IMAÇÃO E LEGITIMAÇÃO


presente. Remete, portanto, às experiências com dimensões da políti- com ocupação pr~via de cargos é válida ou condenável? E se sim, a quem
ca, embora não estritamente eleitorais. deve caber esse julgamento e de que modo?
Mas não tem sido bem assim que sua história é apresentada. Também, A prática nos governos, nos Executivos, em cargos decisórios e de
neste caso, cabe destacar a característica ambígua nos registros de par- mando é sempre prática política. Por recorte mais amplo ou recorte
te da grande mídia. Nota-se um misto de condenação por seu passado mais estreito trata-se de um agir no campo da política. A indicação de
guerrilheiro e de crítica, ou mesmo sarcasmo, com a "verdadeira mili- cargos nos primeiros escalões - ministérios e presidências de estatais
tância revolucionária";8 sua saída do PDT e sua subsequente filiação ao -muitas vezes independentemente das avaliações sobre as qualidades
PT aparece como se a troca de partido fosse algo excepcional no país, técnicas dos indicados, bem como seus atributos, também tendem a ser
além de mero oportunismo. Sua participação se dÜui, desaparece, não políticas. Em suma, a partici.pação, seja ela institucional ou não institu-
conta, ou conta como problema. Independentemente de posições fa- cional, é do âmbito da política. E a suposta negação do político, também
voráveis ou contrárias a certas formas de resistência à ditadura, numa o é. Mas com Dilma tudo parece ter operado negativamente, sempre.
época de perseguições e de "caça às bruxas" tratava-se de algo que exi- Para prosseguir valho-me de dois exemplos bem recentes, ilustrati-
gia coragem. Ser torturada, e não desistir. Ter ainda mais coragem para vos de tratamento diferenciado sobre trajetórias políticas baseadas na
prosseguir participando. E ainda, prosseguir sobre novas bases poderia experiência de governo e na falta de experiência com eleições. São os
indicar, minimamente, compromisso e alguma vivência política. Mas casos do prefeito de São Paulo João Doria ]r (PSDB) e, mais recentemen-
coragem ou atitude cívica no sentido mais amplo estão fora de ques- te, o do presidente eleito da França, Emanuel Macron {En Marche). Em
tão ... E com isto introduzo o terceiro exemplo de como o viés de gênero ambos, o que foi apresentado como falta em Dilma se transforma, se
e o viés político se mesclaram, perpassando esse requisito valorizado reveste de sentido de virtude, não apenas nos discursos dos dois políti-
da experiência e se transformaram em seu contrário- inexperiência-, cos, mas em especial na narrativa da mídia. Nesses candidatos, a inex-
ajudando na deslegitimação de Dilma Rousseff. periência adquire a áurea de distanciamento da "velha" política e dos
Em democracias representativas plebiscitárias, presidencialistas, "velhos" políticos. Não se argumenta aqui que a explicação se deva ao
é possível a eleição de chefes de Executivos ocorrer sem que determi- gênero porque os dois políticos pertencem ao sexo masculino. É mais
nados pretendentes ao cargo sejam oriundos de mandatos legislativos provável que a explicação esteja na esfera da onda conservadora em
ou mesmo mandatos executivos prévios. Isto é bom? É ruim? Aqui um curso no mundo. Mas é possível sugerir que o fato de Dilma ser uma
posicionamento desejável ou normativo não está em questão. Pode-se mulher tornou mais fácil e palatável a narrativa de seu" deslocamento"
sugerir que, embora desejáveis, experiências eleitorais prévias não são devido à inexperiência política; porque de mulheres sempre se cobrará
imperativas. Outras circunstâncias podem operar como mais impor- um pouco ou muito mais; porque mulheres ocuparem cargos de diri-
tantes. Ou seja, não é requisito para o indivíduo percorrer a "escada" gentes ainda é o excepcional, é objeto de atenção com desconfiança e
eletiva executiva antes de concorrer a cargos mais elevados. Isto signi- de certo estranhamento, ou de olhar mais acurado sobre e para toda e
fica que o indivíduo não fez política? Ou que não seja político? A (apa- qualquer iniciativa pública.
rente) adesão ao a-politicismo, incluindo o perfil atualmente estimu- Vejamos então rapidamente a trajetória de Dilma Rousseff em exe-
lado do "gestor" sem nenhum compromisso básico com a política ou cutivos governamentais (e sem mencionar cargos em segundo escalão):

C LARA ARAÚJO

I JNCONCRUtNCJAS I! DUBJI!DAOHS . DI!SJ.J!CJTIMAÇÀO JllllCJTIMAÇÃO

l
secretária de Finanças de Alceu Colares na prefeitura de Porto Alegre; sempre fora do lqgar. (COLLIN, 1991) Essa imagem parece ter sido um
secretária de Minas e Energia pelo estado do Rio Grande do Sul; minis- dos sustentáculos acionados para que se pudesse viabilizar a deslegiti-
tra das Minas e Energia no primeiro governo Lula e, posteriormente, mação política de alguém que precisaria ser apeado do poder.
ministra-chefe da Casa Civil desses governos. Neste último cargo, tor- A ambiguidade surge através da personificação de uma Dilma des-
nou-se responsável pela coordenação e gestão de alguns dos principais provida de substancialidade, vazia de atributos pessoais, de capacidade
programas de políticas públicas do governo Lula, associados com pla- intelectual, de experiência e de capacidade política, um ser vazio, apesar
nejamento e execução e que foram carros-chefes das políticas sociais de uma trajetória de vida intensa. Ao mesmo tempo, é o ser ameaçador,
e de desenvolvimento. Como se nota, são cargos públicos e políticos, autoritário, manipulador e ambicioso. Na vida pública, em um momen-
de governo, em nív~is estadual e nacional, normalmente identificados to é guerrilheira e, portantq, pessoa (ainda mais mulher) violenta que
como masculinos, estratégicos e não usualmente destinados às mulhe- pega em armas; em outro, é apenas a aparência de guerrilheira incapaz,
res. Por que será que "caíram" no colo de Dilma Rousseff? Não seria um sem coragem de pegar em armas ou de atirar; a ocupar meras posições de
pouco lógico pensar que isto se deveu, de algum modo, à sua vivência apoio, conforme sugerido por um colunista. Passa-se, assim, da violên-
política e que as suas qualificações técnicas lhes credenciavam para tais cia como perigo à ausência dessa violência como falha. (NUNES, 2017)
exercícios? No entanto, não foi o que se viu no Brasil. O currículo da No tratamento da sua vida privada a ambiguidade tende a perpassar
mulher política como aquela que não concorreu a cargos, o uso distor- a forma como suas relações familiares e afetivas aparecem: ora a mulher
cido da trajetória de militância e da inserção coletiva e o esquecimento solitária, separada, sem marido; ora a mulher casada duas vezes, mas
proposital de exercícios de cargos públicos eminentemente políticos fo- sempre submetendo sua vida (até suas escolhas de partidos) às decisões
ram objeto das narrativas mais convenientes à grande mídia, para parte de seu cônjuge, obediente e submissa. A sexualidade varia: da condi-
das elites brasileiras e também para redes sociais. E, mais preocupante, ção de assexuada à condição de lésbica; ou de assexuada à condição de
é o que continua a ser reproduzido. Já Macron e Doria ... histérica, o que responderia por sua possível irascibilidade, conforme
explicitado publicamente por jornalista de uma das grandes revistas
semanais de circulação nacional, posteriormente criticado pelo movi-
Experiências e "desp ersonificação" mento feminista.
Como sugerido, o período que vai da campanha eleitoral de 2010 até Como um ser "fora do lugar", Dilma parece surgir como aquela sem
o impeachment da presidenta pode ser lido como experiência prática de habilidades e apetite para governar (características estas marcadas por
desqualificação do sujeito político pelo viés de gênero, mas em dinâ- um estereótipo de feminino ou de masculino, a depender de quem as
mica ambígua. Por alguns ângulos, a experiência pode ser vista como tenha). Ao mesmo tempo, Dilma é alguém de natureza autoritária e
a forma através da qual Dilma como indivíduo, como pessoa sexuada e perigosa. Alguém ora sem condição de exercer uma agência de poder,
generificada, como candidata, como presidenta e como representante ora ambiciosa em excesso, a ponto de achar que poderia direcionar essa
de um projeto político foi construída (ou desconstruída) e corporificou agência prescindindo das práticas institucionalizadas da política bra-
um ser" fora do lugar", como costumam estar as mulheres em ambien- sileira. Sobre Dilma, transitou-se e transita-se entre excessos e faltas,
tes "não-familiares", ou mesmo nos familiares. A ambiguidade de estar nunca o equilíbrio.

44 CLARA ARAÚJO INCONCRUBNCJA S I! DUBJJ!DA OES. OESLI!CITIMIIÇÃO ll LECITIMIIÇÃO


Após uma primeira eleição bem disputada, quatro anos de mandato, contrariando a his,tória quanto à sua trajetória política e inúmeros regis-
de uma reeleição em disputa acirrada, aberta, com debates, e após cerca tros sobre sua erudição, a ex-presidenta é tratada como alguém despro-
vida de qualquer inteligência, quase uma idiota e fora do lugar. A linha
de um ano e quatro meses de boicotes e ataque da grande mídia, Dilma
de desqualificação prossegue ao longo do editorial. A desqualificação
continuou sendo apresentada por apoiadores do golpe como esse al-
guém fora do lugar. Sua defesa pública no Senado Federal foi considera- reside na escolha precisa dos termos ou das frases que a inabilitam em
da histórica, substantiva e corajosa. Respondeu a uma sabatina e deba- qualquer situação, já que, segundo o editor,
tes por mais de 12. horas e mostrou substância ao fazê-lo. Mas após mais
(...] Dilma Vana Rousseff não apareceu por um acaso na Presidência da República.
de um ano do golpe, a desconstrução e a desqualificação continuam a
Sem nenhuma qualidade que a credenciasse para tão relevante função pública, ela
ser aspectos centrai~ na grande mídia. A guerra político-jurídica-ideo- não te ria subido a rampa do Pâlácio do Planalto, há cinco anos, se não fosse pela
lógica dessa desconstrução segue sustentada pelo viés de gênero, que vontade do capo petista Luiz Inácio Lula da Silva (...]" (RETORNO..., 2017, grifo nos-
imputa às mulheres, de forma aberta ou velada, lugares e papéis redun-
so)
dantes ou aquém do esperado. Assim como na revista Veja8 , outros ar-
tigos e m anifestações poderiam ser elencados. Para este texto cabe ape- O lugar segue dúbio, como se vê: ingênua e ambiciosa ao mesmo
nas e por último mencionar o editorial do jornal O Estado de São Paulo, tempo... Em suma, mais uma vez não se esclarece se o mal, ou a falha
periódico de abrangência nacional e conhecido como porta-voz de par- estaria na sua ambição ou na sua ingenuidade. A desqualificação beira a
celas do empresariado e da elite econômica brasileira. Seu editorial do misoginia, sem qualquer pudor no conteúdo e na forma.
dia 12 de maio de 2.017, cujo objeto é a presidenta Dilma Rousseff, de
certa forma sintetiza os itens abordados acima. O texto tem o seguinte
título "Retorno à irrelevância". Para além de críticas ao modelo político Observaç ões finais?
implantado, ao PT, entre outras, o traço é abertamente desqualificador Uma rápida passada de olhos por algumas manchetes nos dois perío-
em conteúdos e ancorados em recursos linguísticos grosseiros, embo- dos eleitorais, durante os governos de Dilma, em especial nos meses que
ra sob aparência sofisticada. A retórica da inabilidade acompanha a da precederam o impeachment, permite notar como o sentido do termo
(in)experiência. A "inabilidade" de Dilma é remetida à perda da maio- experiência política foi usado todo o tempo por atores diversos- parti-
ria parlamentar. O tratamento depreciativo consistentemente repetido dos de oposição, mulheres políticas pertencentes a partidos de oposição,
pode ser sintetizado em dois trechos do referido editorial. No primeiro, políticos que não se definiam como de oposição, dentre outros.
Dilma surge num misto de agente,9 traidora e ingênua que a remete ao Em relação a Dilma, a dinâmica desqualificadora parece ter opera-
seu "não-lugar". É pelo viés da ausência e não da presença, que sua des- do como único vetor para o·apagamento do histórico de sua constante
personificação mais uma vez está posta. Afirma o Editorial: "Invenção participação política. Do momento que se identificou como candidata
de Lula da Silva, a jejuna Dilma Rousseff traiu seu padrinho ao acreditar até o presente, todo o tempo coube à pessoa da candidata, da presiden-
que tinha sido eleita não para guardar lugar para a volta do chefão pe- ta e da figura pública marcar, lembrar e afirmar essa trajetória, resga-
tista ao poder, mas para pensar e agir por conta própria". Em seguida, tar seu passado também como coragem e compromisso de quem, por

JNCONGRUftNCIAS E OUlllllOAOES, OI!SLEGITIMAÇÃO E I.I!GITIMAÇÃO


C I.ARA ARAÚ JO
S Sobre Max Weber e o tema da Dominação e do carisma na política, ver, entre outros, Sell
coerência, permaneceu por mais de 40 anos experienciando a política. (2011). .
Aqui é possível sugerir, para observações mais sistemáticas, que regis- 6 Não se desconsideraaqui o fato concreto do carisma d~ presidente Lula e do desafío para qual-
tros apagados ou distorcidos se juntaram num matiz ideológico e mi- quer pessoa que o substituísse; ou ainda a importância do carisma para o/um líder. Apenas se
sógino bem além de críticas às suas limitações como política ou gover- reflete sobre o sentido qualificador que essa dimensão adquiriu no caso em análise.

nante. No passado, perigosa ou ingênua. No presente, não bastou ser 7 Nilo estão em quest:lo dimensões institucionais e sistêmicas problemáticas, como por exem-
plo, o número de partidos efetivos com os quais se tem que negociar (na Câmara dos
desprovida de qualquer virtude política. Foi necessário também o ridí- Deputados) ou a distribuição de recursos e financiamentos.
culo e o desrespeito; foi necessário transformá-la em pessoa assexuada 8 Ver como exemplo os três artigos escritos pelo jornalista Augusto Nunes no seu blog na revis-
ou sexualmente "desviante", desprovida de atrativos e de inteligência. ta Veja, entre os dias 13 e 15 de maio de 2017, respectivamente.
O gênero foi acionado. na maioria das vezes como recurso negativo da 9 Aqui, "agência" na acepção sociológica é usada como atributo do sujeito que age, e o faz in·
figura pública da mulher Dilma Rousseff, o que de certa forma é o pa- tencionalmente.

drão. Mas o espectro e diversificação das formas da deslegitimação fo -


ram tão amplos, que .só estudos mais sistemáticos poderão analisar o
seu efetivo impacto no processo do impeachment. De início o que sur- Referências
ge é um período marcado por muito preconceito e misoginia. A história BATISTA, M. O poder no Executivo: explicações no presidencialismo,
do golpe, de suas narrativas legitimadoras e de como o gênero consti- parlamentarismo e presidencialismo de coalizão. Revista de
tuiu uma dessas narrativas está começando a ser analisada. Ultrapassa Sociologia e Política, Curitiba, v. 24, n. 57, p. 127-155, mar. 2016.
o impeachment e expressa valores que ainda bem arraigados em nossa Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
44782016oooi00127&script=sci_arttext&tlng=en>. Acesso em: 15 maio
sociedade. Aqui foram indicados alguns tópicos para futuros estudos.
2017-
BISCAIA, C. N. Um golpe chamado machismo. In: PRONER, C. et ai.
Notas (Org.). A resistência ao golpe de 2016. Bauru: Canal6, 2016. cap. 17,
1 A exemplo de que escreveu Nogueira (2016) em seu blog no jornal O Estado de S. Paulo. p. 86-88.
2 Usarei os termos ·· deslegitimação", ••deslegitimação de gênero", ou ainda "deslegitimação
BOITEUX, L. Misoginia no golpe. In: PRONER, Caro! et al. (Org.)
simbólica de gênero" para me referir a aspectos de um mesmo fenômeno: a desqualificação
da pessoa e do sujeito político pertencentes ao sexo feminino por ser desprovida dos "atribu· A resistência ao golpe de 2016. Bauru: Canal6, 2016. cap. 61, p. 261-266.
tos" associados com a figura do político e de representações tradicionais de sexo.
CHAPMAN, J. Politics,feminism and the reformation of gender. London:
3 A análise da série histórica das pesquisas feitas pelo instituto Data folha revela que até o início
de junho de 2013 a popularidade da presidenta continuava bem elevada. Decresceu abrupta· Routledge, 1993.
mente no fi nal de junho e foi assim até dezembro de 2013. Mas voltou a se recuperar a partir
dar, a ponto de garantir a vitória eleitoral em 2014. Nos dados do Instituto pode-se notar que COLLIN, F. Praxis de la diferencia: liberación y libertad. Ba'rcelona: Icaria,
embora a maior queda de popularidade na crise de 2013 tenha sido entre as mulheres, foi 1991.
também entre elas que os índices de apoio ao governo da presidenta foram mais elevados
fora desse momento mais crítico. DATAFOLHA: Instituto de Pesquisas. São Paulo: 1983-. Disponível em:
4 Ângela Merkel na sua primeira campanha para chanceler recebeu o apelido de "Mutti" (avó) <http://datafolha.folha.uol.com.br/>. Acesso em: 17 maio 2017.
da parte de seus opositores. Uma forma condescend ente, mas, claro, desqualificadora de tra·
tá·la como política, pois se refere a um ser do sexo feminino que deveria estar cuidando dos
netos, e não fazendo política. Dilma não teve a mesma sorte de receber apelidos carinhosos.

INCONCRUilNCIAS ll DUBIBDADilS, DllSLECITIMAÇÃO E LEGITIMAÇÃO 4!


CLARA ARAÚJO
NOGUEIRA, M. A. Dilma, o feminismo e o machismo. Estadão, São
Paulo, 27 jul. 2016. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/
blogs/marco-aurelio-nogueira/dilma-o-feminismo-e-o-machismo/>.
Acessado em: 27 abr. 2017.
NUNES, A. Coluna. Veja, São Paulo, maio 2017. Disponível em: <https:/I
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*Professora e pesquisado
No dia 15 de setembro de 2011, às 15 horas, entrei Centro de Estudos Sociai!
com a ministra da Cultura Ana de Hollanda na sala Apli-cados da Universida1
Esta-dual do Ceará (UECE
da presidenta Dilma Rousseff para apresentar-lhe e consultora para econorr
o anteprojeto do Plano Brasil Criativo, voltado ao criativa da Organização
Mundial do Comércio (OI
fomento da economia criativa brasileira.' Também e Conferência das Nações
participaram da audiência a ministra da Casa Civil, Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento (UNCT
Gleisi Hoffmann, além da secretária da presidência,
responsável pela ata da reunião. Depois de uma hora
de exposição e discussão, a presidenta determinou
que a construção do Plano seria liderada e coorde-
nada de forma compartilhada entre o Ministério da
Cultura (Mine) e a Casa Civil. Saímos, a ministra da

so

l
CLARA ARAÚJO
Cultura e eu, animadas com o êxito da empreitada. Naquele momento Segundo o socjólogo francês Gilbert Durand, o imaginário" é o con-
festejávamos a chegada da primeira mulher à presidência e ainda não ha- junto de imagens e de relações de imagens que constitui o capital pen-
víamos percebido que aquela vitória, inspiradora de uma nova ordem, sado do 'homo sapiens'". (DURAND, 1997 apud PITTA, 2.005, p. 15)
provocaria uma grande desordem e instigaria uma reação, especial- O imaginário enfatiza os significados dos símbolos e das imagens (em
mente dos segmentos sociais, políticos e econômicos do país. A vitória um mundo onde somente os conceitos ganharam hegemonia!), permi-
de Dilma Rousseff seria o nascedouro de sua futura derrota. A memó- tindo às análises históricas uma nova possibilidade de interpretação de
ria mais forte que guardo da minha experiência à frente da Secretaria fatos, representações, comportamentos, discursos e gestos, a partir de
da Economia Criativa é a daquela audiência, e a imagem recorrente é a um olhar menos positivista e mais complexo sobre a interação dos sujei-
daquela mesa, em q':le somente mulheres discutiam animadamente ce- tos com o mundo. Subjacente aos modos de ser e de agir dos indivíduos
nários, desafios e novos caminhos para o desenvolvimento brasileiro. nas sociedades, existe um repertório ou um repositório de arquétipos,
Como se sabe, depois de disputar e ser novamente vitoriosa nas símbolos e mitos. Desse modo, as pulsões subjetivas que respondem
eleições de 2.014, a presidenta da República foi afastada do cargo no dia às intimações objetivas das sociedades constituem o que Durand (1997
31 de agosto de 2.016, em uma votação no Congresso que se tornaria apud PITTA, 2005, p. 15) nom~ia de "trajeto antropológico", ou seja,
um dos episódios mais sombrios vividos por aquela Casa. Transmitido através dos gestos, símbolos e imagens de pessoas e grupos em um de-
pela mídia para todo o país, as imagens de centenas de deputados des- terminado tempo histórico é possível compreender a "bacia semântica"
tilando o seu ódio à presidenta, em nome de um discurso pautado em que nutre aquelas pessoas e grupos.
"Deus" e na "Família", demonstravam de forma monstruosa a ânsia do A antropologia do imaginário estimula novas questões e outros olha-
Poder Legislativo de retirar a presidenta do lugar de chefe de mandatária res sobre os estudos de gênero. Na busca de uma visão de mundo menos
maior da Nação. Havia, nas falas iradas e nos gestos patéticos daqueles cartesiana, os mitos e as constelações de imagens propostas por Durand
homens, um misto insuspeito de violência e de alegria. Era evidente subsidiam a construção de uma epistemologia significativa para a mu-
que a resistência da presidenta da República às pressões dos congres- dança de paradigmas nas reflexões sobre a mulher. Segundo ele, o mito
sistas, simbolizada pela sua insubmissão diante das demandas do então não é somente uma narrativa, mas um ato de pensar, um estado de espí-
presidente da Câmara, Eduardo Cunha, lhe custaria muito caro. Como rito em.busca de razões que escamoteiam o que é. (STRONGOLI, 2005,
compreender aqueles discursos e atitudes? p. 148) O mito conjuga sensibilidade e racionalidade, transformando,
Nesse momento, eu já havia saído no MinC e, como parte da popula- em linguagem e em relato, escolhas feitas que, por sua vez, organizam
ção brasileira, acompanhei pelas mídias a sua agonia. As análises relativas modos e modelos de ser.
a esse processo, quase sempre de natureza econômica e política, vêm su- As imagens organizam-se em constelações. Durand reagrupa as
bestimando outras dimensões que podem emprestar uma maior comple- imagens em dois regimes: o diurno e o noturno. Cada cultura possui
xidade ao fenômeno da sua deposição. Penso que os estudos de gênero pro- sua dinâmica, ou seja, sua forma de estruturar imagens, símbolos e sig-
duzidos pela antropologia do imaginário podem contribuir para ampliar nos. O regime diurno, marcado pela luz e pelas divisões, é caracterizado
as análises tradicionais sobre o poder, revelando novos olhares e outras pela sua estrutura heroica, que expressa o racional, o maniqueísmo, a
dimensões acerca do impeachment de Dilma Rousseff. excludência, a lógica da construção de heróis, o masculino. O regime

51 C LÁUDIA LEITÃO IMAGINÁRIO. MULHER li PODER NO BRASIL


noturno, por sua vez, caracteriza-se pela conciliação, possui uma estru- à tarefa do "chão ,de fábrica", a mulher operária não tem participação
tura mística, que se refere ao sentimento, ao intuitivo, à união, à intimi- nas entidades de classe nem nos sindicatos. É o que observa Margareth
dade, ao feminino. {NOGUEIRA, 2005, p. 101-102) Rago (1987, p. 6s):
No entanto, ao analisarmos as sociedades, em uma perspectiva tem-
Certamente, a construção de um modelo de mulher simbolizado pela mãe devota·
poral, podemos observar passagens (sempre caóticas) das estruturas
da ao sacrifício, implicou na sua completa desvalorização profissional, política e in-
antropológicas relacionadas ao masculino para aquelas fundamentadas
telectual. Esta desvalorização é imensa porque parte do pressuposto de que a mu-
no feminino, ou vice-versa. Nas sociedades pós-industriais, por exem-
lher em si não é nada, de que deve esquecer-se deliberadamente de si mesma e
plo, o mito de Prometeu, símbolo das imagens heroicas e da força da
realizar-se através dos êxitos dos filhos e do marido.
razão e do individu.alismo, presentes no século XX, começa a ser obs-
curecido pela presença de Dionísio, que representa as imagens do femi-
O campo profissional da mulher nas sociedades industrializadas
nino, marcadas pela prevalência do sentir sobre o analisar, enfim, pela
é, portanto, reduzido e subalterno, pois representa a antítese do lar.
reintegração do inconsciente e do subjetivo ao racional e ao intelectual.
A elas são interditados os cargos de chefia e os processos decisórios.
O masculino e o feminino substituiriam, por conseguinte, a dialética
Para o imaginário operário, a mulher simbolizará a fragilidade, assim
entre a ordem e a desordem. Enquanto o universo masculino é solar,
como a figura vítima da exploração do sistema capitalista, enquanto a
diurno, apolíneo, a representação feminina é lunar, noturna, dionisía-
maternidade lhe garantirá a simbologia de guardiã do lar e de instru-
ca. De que forma as estruturas do imaginário de Gilbert Durand podem
mento da procriação. É o que estabelecefl?., por exemplo, os documentos
apoiar nossa reflexão sobre as difíceis e complexas relações entre a mu-
da Câmara Federal sobre as condições do trabalho da mulher, produzi-
lher e o poder no Brasil, contribuindo para uma hermenêutica sobre o
dos pelos deputados em 1919, com o objetivo de produzir-se uma legis-
impeachment de Dilma Rousseff?
lação social {MOURA, 1982 apud RAGO, 1987, p. 69):
A imagem do trabalho no Brasil é especialmente significativa para
as análises de gênero, especialmente, para os estudos do imaginário do Somos todos concordes em considerar que o trabalho é o aviltamento e a escravi-
poder. Afinal, a divisão do trabalho moderno segundo o sexo, destinado dão da mulher, porque é o fim da solidariedade conjugal, da família. O verdadeiro
a estimular relações de dependência entre homens e mulheres, é fruto reino da mulher é o lar. Se ela o abandona, se ela não sabe aí servir ao homem e aos
de uma sociedade prometeica, que encontrará sua anima na represen- filhos, acabou-se o seu poder, foi-se a sua influência.
tação da mulher enquanto "esposa-dona de casa-mãe de família", ofe-
recendo-lhe o lugar da vigília, dos afazeres domésticos e dos cuidados Ao mito do amor materno é, ainda, acrescentada a força simbólica
familiares. Se, em meados do século XIX, com o surgimento da socie- dos discursos científicos, que legitima os limites da atuação feminina
dade industrial, a força de trabalho feminino começa a escapar da esfera no mundo do trabalho. Enquanto ao homem é destinada a esfera públi-
doméstica, a sociedade burguesa encontrará seus modos de enfrentar ca, caberá à mulher a vida privada, a intimidade das alcovas, a invisibi-
essa realidade, a partir da construção de discursos moralistas contra as lidade na vida social, política, econômica e cultural. Enfim, será con-
mulheres. O disciplinamento de ritos e a definição dos significados dos siderada "normal" a mulher que demonstrar o sentimento inato, puro
símbolos acabam por domesticar desejos e destruir sonhos. Destinada

CLÁUDIA LEITÃO IMACINÁRIO . MUL!ii!R I! PODER NO BRASIL


54
e sagrado da maternidade, sentimento este considerado natural e, por anarquista irá corroborar as representações negativas sobre a vida po-
isso, presente em todas as fêmeas no planeta. lítico-partidária: "A política de partidos é sinônimo de fars a, astúcia,
Mas as representações da natureza feminina também se identificam ambição, de hipocrisia e preconceito." (MOURA, 1932 apud RAGO,
às imagens bíblicas de Maria, aquela que, de forma (des)sexualizada, 1987, p. 101). Se a imagem da pureza, associada à mulher, não encon-
torna-se mãe do salvador. Tais quais as imagens da cristandade, a mãe tra respaldo na atividade política, a mulher que exerce cargo político
-esposa-dona de casa é representada de forma pura, ordeira e passiva. carrega consigo o peso da mulher sem princípios, da mulher vadia, da
A Igreja e o Estado se encarregam de disseminar, por meio de seus sím- mulher da rua e não da casa. Nesse sentido, o vereador José Crespo do
bolos, mitos e representações, o ideal feminino que melhor convém ao Partido Democrático Brasileiro (DEM) corrobora nossa observação ao
sistema econômico, .social e cultural. Quaisquer comportamentos des- escrever, em março de 2016, _na sua rede social, um post denominado:
viantes deste modelo são punidos como pecados pela Igreja ou como "RENUNCIA, VAGABUNDA". Acrescente-se a isso o artigo "Vaca até
atos subversivos pelo Estado. quando?", da jornalista Marina Rossi, no jornal El País, de março de 2015:
De forma antagônica e complementar às imagens da pureza, também
surgem, ao longo das civilizações, imagens profanas da mulher eroti- Durante o pronunciamento em rede nacional de Dilma Rousseff no Dia Internacional
zada, mundana, de sexualidade insubmissa. Desde o Brasil Colônia, a da Mulher em 201 5, centenas de brasileiros, em 12 capitais do país foram até as ja-
misoginia e o racismo estiveram presentes e foram decisivos na forma- nelas e sacadas dos prédios e bateram panelas para se manifestar contra a presidenta.
ção da nossa sociedade patriarcal. O imaginário do Brasil República não Piscaram as luzes de casa, buzinaram nos carros e gritaram. Além do barulho da co-
se distancia da bacia semântica do Brasil Colônia. As representações da lher no teflon, foi possível ouvir xingamentos, como 'vaca', 'puta' e 'arrombada', dire-
mulher estão sempre associadas dialogicamente às imagens da mulher cionados à presidenta.
do lar assim como às da mulher vadia, perdida, enfim, a louca da casa.
A construção simbólica do poder observa a proximidade ancestral
Essas observações nos permitem constatar que, em pleno século
do imaginário político e religioso. Se observarmos através de está-
XXI, a presidenta da República Dilma Rousseff será, ao mesmo tempo,
tuas, as representações do poder nas cidades do mundo, as mulheres
simbolizada pelo arquétipo da mãe (quando seu antecessor a nomeia
representadas são, na sua grande maioria, rainhas ou santas! Embora
como a "Mãe do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)"), ao
as sociedades tenham buscado emancipar o imaginário político do re-
mesmo tempo em que é desqualificada pelos seus opositores por meio
ligioso, não podemos afirmar que nas sociedades pós-industriais essa
de uma retórica sexista e homofóbica. É o caso da narrativa do deputado
dessacralização seja uma realidade, pois as imagens do chefe e do líder
Jair Bolsonaro, ao condenar a tentativa do Ministério da Educação de
continuam promíscuas às imagens do pai e do salvador no imaginário
adotar cartilha contra preconceitos sexuais, quando afirma que: "a pre-
brasileiro. Mesmo os regimes democráticos não estão infensos às repre-
sidente deve parar de mentir. Se gosta de homossexual que assuma. Se o
sentações do poder das multidões.
teu negócio é amor com homossexual assuma ... Esse kit gay é o presente
Nas análises acerca da personalidade da presidenta, por exemplo, as
de natal que a Dilma Rousseff está proporcionando para as famílias po-
críticas ao seu estilo de governar sempre foram abundantes, especial-
bres do Brasil". (VIRISSIMO; OLIVEIRA, 2011)
mente, nas classes médias e altas, entre homens e mulheres. De um
Desde os pri'mórdios do Brasil República, o Movimento Anarquista
construiu um contradiscurso à dominação machista. Contudo, a reação

sG CLÁUDIA LEITÃO IMAGINÁRIO, MULHilR E PODER NO BRASIL


lado, o público masculino denunciava sua incapacidade de "negociar" e outro lado, em u~a sociedade marcada pelo autoritarismo, a atividade
sua falta de apetite em urdir acordos políticos- u m talento considerado político-partidária se mantém conectada à bacia semântica das ima-
"masculino"-; de outro, segmentos de mulheres observavam que o seu gens patriarcais, de um lado, marcadas pelo messianismo (simboliza-
modo de ser- de vestir-se, de portar-se- estava distante das expectati- da pela imagem do caçador de marajás, construída pela campanha para
vas acerca de um certo ethos feminino. Essas percepções são importan- Fernando Collor de Melo à presidência), de outro, pela negação ou mes-
tes para que possamos observar que, como todo o imaginário, a esfera mo desprezo à atividade política (simbolizada pela campanha de João
do político é composta por um complexo de imagens, cujas representa- Doria Jr à prefeitura de São Paulo, que construiu a imagem do gestor
ções encontram maior ou menor acolhida na vida dos indivíduos. competente e antipolítico). Duas grandes representações da política
As grandes cons~ruções da imaginação social estão disponíveis para convivem no imaginário brasileiro:
as pretensões mais antagônicas. O imaginário político é, sem dúvida,
De um lado, aqueles bens intencionados, po r uma causa ingrata dotados de elevado
o reflexo da cultura, do frágil equilíbrio entre as diferentes linguagens
espírito público, mas ingênuos, que estariam arriscando sua segurança e de sua fa-
que dispomos para dar significado ao que somos e ao que fazemos.
mília, que não lhes dará em troca senão decepções e prejuízos. De outro lado, mos-
(ARAÚJO; BAPTISTA, 2003, p. 262) Estas reflexões nos permitem in-
trariam interesse pela polrtica, as pessoas maliciosas, espertas, de escrúpulo discu-
dagar: o poder presidencial e suas prerrogativas, exercidos por Dilma
tível, para as quais essa atividade representaria, mais que tudo, uma oportunidade
Rousseff, encontraram adesão pública no Brasil?
de obter vantagens pessoais à custa do erário público. (TABAK; TOSCANO, 1982,
Ora, o saber foi interditado à mulher por milênios. E, por conse-
p.S6)
quência, à mulher foi negado o exercício do poder. O saber, como o
sagrado, foi considerado o apanágio de Deus e do homem (PERROT, Ressalvados os períodos de exceção, nos quais o interesse coletivo
2012, p. 91) e, por isso, a interpretação dos textos religiosos, como as desperta, como reação aos desmandos ditatoriais, a apatia, a inapetência
escrituras do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, foi reservada e a passividade no exercício da política vêm revelando, cada vez mais,
predominantemente ao mundo masculino. Para os gregos, a criação é a sociedade o apartheid entre a nova sociedade de redes e os interes-
uma tarefa masculina, o que fundamentará o distanciamento da pro- ses corporativos representados nas bancadas congressuais. Se o apetite
dução artística e científica do imaginário feminino. A educação, mesmo pela vida político-partidária arrefece no mundo e no Brasil, é evidente
na Idade das Luzes, também foi considerada um privilégio dos homens. que o protagonismo feminino no cenário político é reduzido. Afinal,
Mesmo Rousseau enfatizou o papel subalterno da mulher, sempre ca- no imaginário brasileiro, a imagem da mulher na política é o da com-
racterizado pelos seus deveres junto aos homens. panheira abnegada, da esposa amantíssima, da confidente e cúmplice,
O avanço da mulher, nos últimos cem anos, na construção de um sempre solidária às ambições, às agruras e aos desafios de seus maridos.
protagonismo nas artes, nas ciências, na política, na administração e Tal qual o mito de Penélope, do amor que não se cansa de esperar, reser-
em muitas profissões consideradas tipicamente masculinas, não tem va-se, naturalmente, às mulheres, filhas e viúvas dos políticos brasilei-
ocorrido sem dilemas e conflitos. Ocupar espaços interditados, sa- ros o panteão da lealdade e da dedicação. Como Penélope, que espera
ber para poder, conhecer para ser reconhecida, transfigurar símbolos Ulisses voltar da guerra de Troia, e que borda para enganar o tempo•. as
para ampliar imaginários vem sendo uma tarefa árdua e complexa. Por

IM A G INÁRIO, MULHBR E PODER NO BRASIL


ss CLÁUDIA L B ITÃO
mulheres participam das suas sombras das trajetórias de seus maridos. não têm obtido êxito em atrair um contingente mais expressivo de li-
Impossível lembrar do nosso Ulysses brasileiro sem a figura de Dona deranças femininas para os poderes legislativos municipais, estaduais
Mora, de Vargas, sem a filha Alzira e, atualmente, de Eduardo Campos, e federal. Enfim, embora com proventos desiguais relativamente aos
sem Renata. Portanto, no imaginário brasileiro, a ação política femini- do homem nas mesmas funções, não se pode negar que a mulher con-
na encontra-se historicamente marcada, ora pelo altruísmo, solidão, quistou novos espaços sociais, ocupando lideranças em áreas tecnoló-
culpa e desamparo, ora pelo mundanismo, futilidade, superficialidade gicas, acadêmicas, artísticas, de gestão de negócios, entre tantas outras,
e fragilidade e, por fim, pelas imagens da insensibilidade e dureza, ou que até bem pouco tempo eram hegemônicas do público masculino.
seja, pela masculinização. No entanto, esses avanços não têm ocorrido no lócus político-partidá-
Assumir suas gu~rras e travestir-se de Ulisses não é, portanto, uma rio. Mas, o que justificaria essa. realidade? E em que medida esse fato se
tarefa desejável para as "boas" mulheres, ambição inoportuna em um cone cta com o impeachment de Dilma Rousseff?
país onde as próprias mulheres têm dificuldades em votar em candida- Estudiosos do imaginário carregam consigo alguns "vícios" na ob-
tas mulheres. As pesquisas capazes de aprofundar esse comportamento servação do social. Na posse de Michel Temer, as imagens de sua posse
feminino ainda não são satisfatórias, pois necessitaríamos aprofundar não poderiam ser mais simbólicas, permitindo ver o reaparecimento
as subjetividades femininas e analisar os mitos aos quais suas represen- de uma velha semente mítica do imaginário brasileiro que voltaria a
tações estão historicamente conectadas: ausência de capacidade de lide- germinar. A lógica aristotélica do "só encontras aquilo que procuras"
rança, excesso de emotividade, pouca habilidade para a gestão, são algu- (DURAND, 1996, p. 113) não poderia ser mais oportuna. Homens de
mas entre várias representações negativas da mulher como um "animal pele branca, de idade avançada, oriundos ·da mesma classe social reu-
político". A história eleitoral brasileira expressa a grande lacuna de mu- niam-se para ritualizar a volta daqueles que nunca saíram do poder. Se
lheres na vida política do país: um metalúrgico assume a presidência.da República, oito anos antes de
Dilma Rousseff, uma leitura apressada nos levaria a acreditar que es-
Nas primeiras eleições à Assembléia Constituinte, logo após a queda da ditadura ses dois mandatos simbolizariam a irrupção de um novo mito, marca-
Vargas, apresentaram-~e 18 candidatas, por diferentes Estados da Federação, não do desta feita pelos valores prometeicos da Modernidade: a liberdade, a
tendo nenhuma delas obtido votação suficiente para eleger-se. Assim, a mulher, igualdad~ e a fraternidade. Lula carrega consigo a ambição de Prometeu,
que 14 anos havia começado a exercer o direito do voto, elegendo à Constituinte . que representa o regime diurno/heroico do fazer, do superar, daquele
uma deputada e uma suplente, recuara, em 1946, para uma atuação eleitoral inex- que rouba de Zeus o fogo para trazê-lo aos mortais. Mas a vingança de
pressiva, em termos de representatividade, e que não refletia, em absoluto, seu de- Zeus não tardará. Acorrentado para ter seu fígado comido eternamente
sempenho nos agitados anos que antecederam a deposição de Vargas. {TABAK; pelos abutres, Prometeu pagará pela ousadia.
TOSCANO, 1982, p. 66)
Na tentativa de dar perenidade às tarefas de Prometeu e aos seus valo-
res modernos, uma mulher é escolhida para ocupar o seu lugar. Afinal,
Na história política brasileira, a presença feminina é, portanto, des-
o operário e a mulher estiveram juntos ao longo dos séculos XIX e XX
contínua, com altos e baixos, diferentemente do número sempre cres-
lutando pelos seus direitos, irmanados, em princípio, pelas mesmas
cente da participação da mulher na força de trabalho em geral. Os mo-
causas, pelos mesmos sonhos de igualdade, liberdade e fraternidade.
vimentos feministas, que vêm conseguindo dar institucionalidade e
governabilidade a uma agenda de políticas públicas para as mulheres,

6o CLÁUDIA LEITÃO IMAGINÁRI O, MULHER E PO DER NO BRASIL 6


Mas a guerra de Penélope não se dará com as mesmas armas utilizadas [...]a despeito das proezas dos bandeirantes, das revoltas heroicas da inconfidência
'
por Ulisses. O mito de Prometeu, nas mãos da presidenta, entra em mineira, das revoltas vãs dos paulistas e dos cangaceiros do Nordeste, as profunde-
desgaste e em declínio. Afinal, Dilma não pode ser Ulisses e, enquanto zas da alma brasileira são esta mfstica terrena, essa imensa natureza feminizada,
Penélope, não poderá reverter as "regras do jogo". Estranha e previsível encarnada ao mesmo tempo na mãe amamentadora negra, na amazona feroz, na
repulsa por essa mulher presidenta que não poderá representar o mito amante mestiça, na nobre companheira da pele branca (...). (DURAND, 1996,
triunfalista do homo-faber. Como Georges Sand, escritora francesa que p. 203}
abandona sua identidade feminina, para adentrar no mundo masculino
da literatura, assumindo pioneiramente o uso das calças masculinas, Durand e Caetano Veloso não estão errados. O nosso tropicalis-
também Dilma Ro~sseff o fará, para penetrar no mundo masculino da ta maior, quando compôs "Língua" diz não ter pátria e, sim, mátria!
política. Mas todas as tentativas serão vãs. Mulher e feminilidade, ca- "Conhece-te a ti mesmo", essa é, sem dúvida, a máxima do homo sa-
racterizados pelo regime noturno e sua estrutura mística não encontra- piens. Lutar contra os deuses é lutar contra a própria condição humana.
rão acolhida na soc.iedade patriarcal e suas virtudes virís. Em nosso imaginário luso-brasileiro a virtude da conquista é mascu-
Instalado o governo Temer, seu primeiro ato foi de extinguir o lina. Mais do que construir um projeto de poder político capaz de reu-
MinC. O clamor das classes artísticas e culturais, no entanto, o obri- nir cinco continentes, a colonização portuguesa hibridizou culturas e
garam a devolver a institucionalidade ao Ministério. Nesse ínterim, 0 transfigurou imaginários. Fernando Pessoa descreveu em sua poesia o
presidente compreende a importância estratégica de convidar algumas ethos navegador português. Em seu "Mar Português" (1974, p. 82) saúda
mulheres para compor o seu governo, na tentativa de aplacar as reações a coragem dos navegadores, mas reserva.às mulheres um lugar subal-
contra a legitimidade de seu mandato. Afinal, oferecer a uma mulher terno:"[...] Por te cruzarmos, quantas mães choraram ... quantas noivas
o cargo maior de uma pasta periférica seria convincente e oportuno. ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar! [...]".
Dessa forma, mulheres passaram a ser convidadas e a declinarem do
convite. Eu mesma recebi um telefonema de gestores públicos do Rio li-
Notas
gados ao PMDB que me sondaram neste sentido. Caso aceitasse, o meu
1 Ver Leitão e Machado (2016).
nome seria sugerido ao presidente. Uma mulher nordestina certamente
seria bem vista em um governo de homens sudestinos. Minha resposta
à sondagem foi um sonoro "não"!
Lembro de uma palestra que assisti de Gilbert Durand na Sorbonne Referências
quando fazia meu doutorado, e de suas palavras sobre o Brasil. O cria~ ARAÚJO. A. F.; BAPTISTA, F. P. {Coord.). Variações sobre o imaginário:
dor das estruturas antropológicas do imaginário dizia que o Brasil não domínios, teorizações, práticas hermenêuticas. Lisboa: Instituto Piaget,
era uma pátria, mas uma nação que havia nascido sob a égide do femini- 2003.
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"mátria", pois o homus novus brasiliensis é filho dileto da "pátria mãe
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gentil", símbolo da fecundidade e cadinho da feminilidade:
significados, desafios e perspectivas da economia criativa brasileira. Belo
Horizonte: Código, 2016.

CLÁUD IA LI!ITÃO IMACINÁRIO, MULHI!R I! PODI!R NO Ulli\SIL


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significados, desafios e perspectivas da economia criativa brasileira. Belo
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1982. dente Lula em 2003, mas aprofundou-o em muitos
VIRISSIMO, V.; OLIVEIRA S. PTpede cassação deJairBolsonaro por
discurso ofensivo a Dilma Rousseff. Sul21, (Porto Alegre], 25 nov. 2011.
Disponível em: <http://www.sulzt.com.br/jornal/pt-vai-pedir-a-
I de seus aspectos, principalmente em relação às po-
líticas para as mulheres. Estava dada a senha para
que os opositores do projeto - o grande capital,
cassacao-de-bolsonaro-por-discurso-ofensivo-a-dilma/>. Acesso em: 30 notadamente o financeiro e a mídia, na qual tr~s
jul. 2017.

64 CLÁUDIA LEITÃO
famílias detêm o controle dos principais veículos de comunicação - Em menos de um ano, com uma voracidade jamais vista, desmonta-
pusessem em marcha a engrenagem que levou ao golpe. ram as políticas sociais que sustentam a.vida cotidiana, eliminam direi-
A esse agrupamento logo se juntaram setores majoritários da classe tos civis, sociais e trabalhistas que garantem a cidadania e privatizam
média, incomodados com a ascensão de milhões de brasileiras e de bra- bens públicos. A Petrobrás, que está sendo fatiada e vendida ao capital
sileiros ao que se convencionou chamar de nova classe média, ou me- internacional, é um bom exemplo disso. E mais, ameaça-se vender as
lhor dito, nova classe trabalhadora, que teve o poder de compra amplia- terras brasileiras a estrangeiros, o que é vetado até hoje. Ou a privatizar
do como nunca visto na história do Brasil. Reclamavam, por exemplo, o enorme aquífero existente no subsolo nacional.
de os aeroportos terem ficados parecidos com as estações rodoviárias São retrocessos decorrentes da implantação das políticas em que o
já que os aumentos de salários acima da inflação e uma melhor distri- foco não é a inclusão social.e de garantia dos direitos humanos funda-
buição de renda permitiu o acesso desses emergentes às viagens aéreas. mentais. Recentemente, o Ministério da Educação publicou as Diretrizes
Isso acabava com a distinção e privilégio que lhes parecia natural, Curriculares Nacionais, que vão orientar o ensino em toda a educação
quase um dom divino de não pertencerem à mesma classe social dos até básica brasileira. Elas foram fruto de um minucioso trabalho de consul-
então excluídos. Um grande número de novos consumidores passou a tas e discussões com todos os atores interessados durante o governo da
ter acesso também a celulares e à internet, à compra de automóveis e presidenta Dilma. No entanto, a nova versão do governo golpista elimi-
bens de consumo duráveis, acesso às universidades, entre tantas outras nou do texto todas as referências à gênero e orientação sexual. Um re-
conquistas que mudaram o panorama da vida brasileira. trocesso enorme nos direitos humanos, que visa atender os setores mais
Partindo dessa análise é que afirmo que estamos há um ano sob a conservadores e fundamentalistas da sociedade.
vigência de um golpe patriarcal, machista, sexista, capitalista finan- Esse conjunto de "reformas", com ingredientes de ordem política e
cista, fundamentalista, mediático e parlamentar que retirou da pre- social, se assenta em especial nas mudanças da política econômica, com
sidência da República a primeira mulher eleita e reeleita com mais de forte desregulamentação e orientação para os interesses do mercado.
54 milhões de votos. Ou seja, ness.e caldeirão de interesses, é preciso O foco está em arrecadar mais recursos para o pagamento dos juros
enfatizar a dificuldade em aceitar que o poder era exercido por uma exorbitantes da crescente dívida pública. Ou seja, parte do orçamento
mulher. E a trataram com a falta de cerimônia, civilidade e respeito da Un!ão é voltado para os rentistas, isto é o que se chama economia
que caracterizam o comportamento machista em relação às mulheres rentista. O capital financeiro aplaude e agradece. Enquanto a maioria da
em geral, como veremos mais adiante. população brasileira, pobre, é retirada do orçamento da União.
Quem são os articuladores desse golpe em vigência? São homens Um retrospecto da linha do tempo do golpe, que teve seu início com
brancos, ricos, violentos e vorazes que se explicitaram como estrutu- as manifestações de 2013, deixa claro que o capital que rege os envol-
rantes do patriarcado brasileiro que une gênero, raça e classe. A foto da vidos aproveitou e financiou as manifestações de direita, conhecidas
posse do ministério de Michel Temer chocou a população. Não havia como coxinhas. A primeira delas se deu com a violência sexual explícita
ali uma mulher sequer, ou uma pessoa negra. Todos se caracterizam contra a presidenta na abertura da Copa do Mundo em 2014, quando
por pertencerem à mesma classe social e aos mesmos grupos de in- torcedores ricos e da direita gritaram contra ela palavras de baixíssi-
teresse. E uma grande parte acusada de corrup'ção, hoje comprovadas mo calão e de significado sexual - "Ei, Dilma VTNC". Manifestação
por uma série de denúncias.

66 ELEONORA M I! NICUCC 'I O COLPE E A S PE R D AS DE DIREI TOS PAR A A S MULII B R I!S


amplificada com indisfarçável prazer pela mídia. E continuou ao longo São dois fatores estruturantes desse protagonismo. O primeiro, ine-
do processo que culminou com o impedimento da presidenta. quívoco, que é do valor simbólico-"mexeu com uma, mexeu com todas".
Esse período ficou marcado por manifestações de rua que brada- O segundo é agora, porque na época do golpe o retrocesso era de gênero,
vam contra a corrupção- embora até os adversários reconhecessem que retirar uma mulher e n ministras do poder. Agora, na resistência, com
Dilma não era corrupta. E, ainda, com slogans nitidamente fascistas, essa avalanche de medidas retroativas, de crueldade que o governo gol-
racistas e misóginos. Ainda provoca imensa indignação, por exemplo, a pista está implementando, as mulheres viram que, além desse simbóli-
lembrança de adesivos fartamente distribuídos mostrando Dilma com co, há a perda de direitos concretos. As mulheres conquistaram com a
as pernas abertas para serem colados nos tanques .de gasolina dos veí- Constituição Federal de 1988 o direito de aposentadoria com cinco anos
culos. Quando tal ~ipo de agressão seria cometida contra um homem? a menos de idade e com cin~o anos a menos de contribuição. Com essa
Ainda causa vergonha e revolta nas pessoas sérias, ainda que de oposi- reforma da previdência tudo vai se igualar, elas terão que trabalhar 49
ção ao governo Dilma, a sessão da Câmara dos Deputados que autorizou anos para receber 100% da aposentadoria. E isso foi determinante para
o afastamento da presidenta. Nesta sessão um deputado, no momento que elas estivessem na linha de frente da resistência ao golpe até hoje,
em que votava, homenageia um dos maiores torturados de nosso país. independentemente de partido: Houve o carnaval do Fora Temer e mar-
Foi muito mais uma sessão de horrores e deboches, quando depu- chas com milhares de participantes no 8 de março, Dia Internacional da
tados e deputadas se manifestaram pelo sim em nome da família, da Mulher, a palavra de ordem, de novo, foi o "Fora Temer". A greve geral
propriedade, da pátria e da tortura. A maioria deles e delas notoriamen- contra as perdas de direitos, as grandes manifestações pelas "Diretas
te corruptos e de passado pouco recomendável. Interessante notar que Já", tudo isto está num crescente tomando as ruas do nosso país.
nenhum apresentou argumentos que comprovassem as acusações que Na verdade, as mulheres experimentaram durante os governos Lula
pesavam contra a Presidenta. Tal demonstração de baixeza e falta de de- e Dilma, conquistas importantíssimas com a implementação de polí-
coro político seria o suficiente para anular o resultado da sessão. O que ticas sociais, que beneficiaram e beneficiam a população mais pobre
não ocorreu, porque o golpe já estava em processo, independentemente do nosso país. E quem são os pobres? A população negra e a população
de comprovação das acusações, pois elas interessavam muito pouco. feminina. Foram tirados 40 milhões de pessoas da pobreza. O Bolsa
O protagonismo das mulheres na luta da resistência, na luta contra Famíl~a passa a ser visto pelas mulheres como um acesso à cidadania,
o golpe, teve, sem dúvida alguma, um primeiro motivo. Na eleição e na porque o cartão para saque do benefício estava em seu nome; a entrega
reeleição da presidenta Dilma, as mulheres brasileiras se sentiram muito de mais de 1 milhão de documentos de identidade a trabalhadoras ru-
representadas. Era uma mulher igual a elas, uma mulher divorciada, não rais, até então sem qualquer registro civil; as cisternas para trazer água
era mulher laranja, era uma mulher com a retidão de vida- ética, honesta para as casas da região Nordeste do país, constantemente assolada pela
e sempre com a vida pautada na luta pela democracia e pela justiça social. seca. Nesse caso, a principal beneficiária é a mulher, porque tradicional-
Então elas pensaram: eu posso também. Nesse eixo simbólico, sentiam mente cabia a elas andar quilômetros para buscar água que abastecesse
que o que estavam fazendo com Dilma também era feito com elas. E re- a casa e a família.
sistiram, mandaram-lhe flores, abraçavam-na quando a encontravam. Em outros programas importantes, como o "Minha Casa, Minha
Vida" que beneficiou milhares de famílias pobres. A titularidade é, em

68 ELEONORA MENICVCCI O GOLPE E AS PERDAS DE DIREITOS PARA A S MVLHEJIBS


muitos casos, para as mulheres, porque, em casos de separação conju- Feminicídio é um crime de ódio e seu conceito foi desenvolvido na
gal, quando elas ficam com a responsabilidade pelos filhos, é impor- década de 1970 para reconhecer e dar yisibilidade à morte violenta de
tante garantir a moradi~ da família. No Programa Nacional de Acesso mulheres resultante da discriminação, opressão, desigualdade e vio-
ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) elas responderam pela maioria lência sistemáticas.
das matrículas. O interessante é a mudança do perfil de frequência aos Na área da Saúde, a presidenta sancionou uma portaria para uni-
cursos. Elas optaram, em grande número, não por conhecidos cursos versalizar o atendimento às mulheres em situação de violência e de
para as mulheres- manicure, cabeleireira, costureira- e sim pelas pro- estupro, com oferta da contracepção de emergência e aborto, nos casos
fissões que lhes permitiriam trabalhar nas plataformas de petróleo, na previstos em lei. Registre-se, ainda, a aprovação da proposta de emen-
direção de veículos·.p esados, mecânicas, eletricistas, em profissões na da à constituição, que inclu~u as empregadas domésticas no acesso aos
construção civil e no conserto de produtos da indústria branca (gela- benefícios já concedidos às outras categorias profissionais. Sancionada
deiras, máquinas). pela presidenta, essa Proposta de Emenda Constitucional (PEC), ficou
A Secretaria de Políticas para as Mulheres com status de Ministério, conhecida como a PEC das Trabalhadoras Domésticas. Vale lembrar que
criada no governo Lula, avançou demais no governo da Dilma, nas po- mais de 90% de trabalhadores domésticos são mulheres. A maioria ne-
líticas de enfrentamento à violência, com programas importantíssi- gras e de baixa escolarização.
mos, como o Mulher Viver sem Violência no valor de 360 milhões de Foram avanços enormes e a maioria deles foi estancado, desestru-
reais, com seis ações para o enfrentamento à violência contra as mu- turado ou paralisado. Em momentos de crises, Simone de Beauvoir já
lheres: construção de 27 Casas da Mulher Brasileira, uma em cada es- disse que os cortes acontecem primeiro nas ações voltadas para a vida
tado para reunir, em um só espaço físico, todos os serviços necessários das mulheres. Isso porque o patriarcado é o sustentáculo do capitalis-
para acabar com a via sacra das mulheres que foram agredidas e estu- mo, o sustentáculo das políticas neoliberais. Estamos vivendo, portan-
pradas. Inauguramos três casas (Campo Grande, Brasília e Curitiba) e to, muitos retrocessos e perdas de direitos. Se a reforma da Previdência
deixamos em processo de construção mais seis (São Paulo, Salvador, Social (que regula a pensão e aposentadoria de todas as trabalhadoras e
Fortaleza, São Luiz, Boa Vista e Porto Velho). trabalhadores brasileiros) for aprovada será a mais cruel e a mais trágica
Hoje é lamentável que as três que já existiam não estejam mais fun- para tc:>da a população, mas, sobretudo, para as mulheres. Do ponto de
cionando. A de São Paulo, que foi entregue no final de 2016, encontra-se vista do ensino, a aprovação da reforma do ensino médio com a inclu-
fechada envolta pelo mato, sem nenhuma satisfação da informação so- são na base nacional do currículo da perspectiva da Escola Sem Partido,
bre o que foi feito com os recursos públicos repassados. Também foram sem as disciplinas críticas, a exemplo sociologia, filosofia e educação
entregues 54 ônibus para percorrerem áreas rurais levando atendimen- física, o objetivo é formar cidadãos e cidadãs adestradas. São impactos
to às mulheres vítimas de violência; o disque 180, os barcos onde estão? que provocam retrocessos e colocam as mulheres em lugares dos quais
Este é um dos maiores exemplos do desmonte das políticas públi- já saíram, que são o tanque, a cozinha e o fogão, século XX. É muito re-
cas para as mulheres. trocesso e muita perda de direito, isso não pode ser aceito.
Também foi sancionada a Lei do Feminicídio, Lei n 2 13.104/2015, Todas essas políticas exigiram um debate pesado com o Congresso
pela presidenta Dilma, que tipifica a morte de mulher por questão de Nacional, por ser uma das legislaturas mais conservadoras que já
gênero, como crime hediondo variando a pena de 12 a 30 anos.

O COLPE E AS P E RDAS DE DIREI TO S PARA AS MULtiER B S


70 ELEONORA M I!N ICUCCI
passaram pelo congresso. Foram duríssimos os embates, sendo que o do seu palácio, rpas a mulher brasileira foi rebaixada". (GOLPE ... , 2017)
debate sobre o aborto como uma questão de saúde coletiva nunca pôde Nesse contexto, é de se lamentar, embora não seja de se estranhar, que o
ser feito. Ministério da Mulher tenha sido rebaixado ao nível de uma secretaria na-
Esse retrocesso, no plano político, é representado, por exemplo, pelo cional, terceiro escalão da Secretaria Geral da presidência da República,
número irrisório de ministras (apenas duas em 27 ministérios). E no sem autonomia e sem recursos para implementar minimamente projetos
desmonte de programas que garantiriam a emancipação e a igualdade que atendam às necessidades e reivindicações das mulheres.
de gênero. No aspecto referente à mulher na sociedade, o símbolo é a Do ponto de vista de avanços ou de manutenção dos direitos con-
exaltação da primeira dama como o exemplo de mulher "bela, recatada quistados, tudo isso é muito ruim. E a perspectiva é piorar. É consolidar
e do lar", em clara oposição à imagem da presidenta Dilma. Ainda n esse a perda dos direitos. E acrepito que se as mulheres não estiverem nas
campo, o pronunciamento de Michel Temer na solenidade em homena- ruas com informações para reivindicar, para protestar, para mostrar o
gem à mulher no dia 8 de março foi elucidativo, particularmente quan- que perdemos e o que vamos perder, será muito difícil retomarem uma
do enalteceu o que vê como qualidades e responsabilidades das mulhe- questão fundamental: a democracia. Porque, como militante contra a
res: educação das crianças e pelo bem estar da família. E culminou com ditadura militar depois presa e torturada, sei quanto sangue a minha
a lembrança de que elas podem ter grande participação na economia, geração derramou para reinstaurar a democracia no nosso país.
porque "ninguém mais é capaz de indicar os desajustes de preços no su- Hoje o cenário brasileiro se apresenta como um dos mais perigosos
permercado do que a mulher". (AMARAL, 2017) da história do Brasil: a judicialização da política, a crescente crimina-
Os movimentos feministas e de mulheres reagem e denunciam tal lização dos movimentos sociais e dos partidos do campo de centro es-
rebaixamento nas redes sociais e nas manifestações de rua. Uma emis- querda, a explicitação total do grupo que liderou o golpe que hoje está
sora poderosa de televisão, em uma semana, teve que responder a essa no executivo, no consórcio dos três grandes grupos da mídia, no judi-
reação. Puniu um ator consagrado, afastando-o das novelas por assédio ciário, no tucanato e grandes empresários.
sexual a uma funcionária, e eliminou um concorrente de um programa
de entretenimento chamado Big Brother Brasil, por agressão à namora-
da na casa onde os participantes ficam confinados. Referências
Duas situações são emblemáticas da permanência e consolidação, AMARAL, Luciana. "Temer diz que só mulher é capaz de iniciar
porque não falar legitimação da cultura da violência e do estupro: a mi- 'desastres' de de preço no mercado". G1 Online, o8 mar. 2017. Dispo'nivel
nha condenação, por exemplo, emitida por uma juíza, a pagar a um de- em:< https://gt.globo.com/politica/ noticia/mulher-ainda-e- tratada-
como-figura-de- segundo-grau-no-brasil-diz- temer.ghtmb
terminado ator 10 mil reais por eu ter criticado a sua postura numa rede
de TV, alegando que ele fazia apologia do estupro; a outra, recentemen- GOLPE misógino rebaixou a mulher brasileira. Brasi/247, [S.l.], 10
te contra a deputada Maria do Rosário, agredida por um humorista que abr. 2017. Disponível em: <https://www.brasil247·com/pt/247/
divulgou via internet, gestos de violência sexual contra ela. brasil/289739/Golpe-mis%C3%B3gino-rebaixou-a-mulher-brasileira.
Também fazendo contraponto ao retrocesso, o jornal digital Brasil247, htm>. Acesso em: 19 nov. 2017.
lembrou em artigo que "um ano depois do golpe, Dilma dá palestras na
Europa e nos Estados Unidos, enquanto Michel Temer mal consegue sair

F.LI!ONOitA MllNI C UC C I O GOLPE ll A S PE RDAS D E DIREITO S PARA A S MULHERES


Uma m ulher foi deposta:
se xis mo, m is o g i ni a e v i o Iê n c i a
po lítica

Flávia Biroli*

Em 2016, um golpe parlamentar que contou *Professora do lnstitutc


Ciência Política da UnivE
com o protagonismo dos meios de comunicação de Brasflia (UnB), onde
e do Judiciário depôs a primeira mulher a chegar coordena o C rupo de Pe
sobre Democracia e
à presidência da República no Brasil. A eleição de Desigualdades (Demodi
Dilm~ Rousseff em 2010, tanto quanto sua reelei-
ção em 2014, pode ser tomada como uma indicação
de que os obstáculos para a atuação das mulheres
nas esferas de representação formal não estão loca-
lizados na disposição de eleitoras e eleitores.
O Brasil é um dos países com os menores índi-
ces de representação feminina no mundo e no con-
tinente americano. Os obstáculos à participação
das mulheres na política podem ser localizados nas
esferas da representação política formal (ARAÚJO; ALVES, 2007) e políticas públicas com perspectiva de gênero que foram construídas
midiática (MIGUEL; BIROLI, 2011), mas também na divisão sexual nesse período, em diversos âmbitos. Houve de fato uma agenda de gê-
do trabalho no cotidiano, que rouba às mulheres tempo e recursos fi- nero incorporada às políticas de Estado nas áreas de saúde, educação,
nanceiros, condições preciosas para que tenham voz na esfera pública. assistência social, em políticas para o empoderamento econômico das
(ARAÚJO; SCALON, 2oo6; BIROLI, 2016b) mulheres e profissionalização das mulheres negras, em políticas de-
Dilma Rousseff chegou à presidência em um contexto no qual as senhadas para ampliar o acesso das meninas a carreiras em que os ho-
condições para a participação política permanecem em larga medida mens predominam, em um conjunto robusto de medidas para tornar
desfavoráveis no Brasil, mas a posição social relativa das mulheres se efetivo o combate à violência contra as mulheres. (MACHADO, 2016;
modificou bastant~. O percentual de mulheres economicamente ativas MATOS, 2016;MATOS; PA.RADIS, 2014)
aumentou significativamente no país, passando de 18,5% em 1970 para A partir do Executivo, com destaque para a atuação da Secretaria
um teto de 59% em 2005, mantendo-se desde então em cerca de s6%. de Políticas para Mulheres e para as estratégias de ação traçadas nas
(PINHEIRO et al., 2016)As mulheres são mais escolarizadas do que os Conferências de Políticas para as Mulheres(2004, 2007, 2011, 2016),
homens, tendo em média oito anos de estudos, enquanto eles têm sete mas também a partir de decisões conquistadas no âmbito do Judiciário
anos e meio. Também tem havido mudanças significativas na configu- e de alianças pontuais no Legislativo, os movimentos feministas pro-
ração das famílias; entre 2000 e 2015, a taxa de fecundidade das mulhe- duziram avanços importantes, entre os quais cito, a título de exemplo, a
res brasileiras caiu de 2,39 para 1,72 filho. Trata-se de um processo de Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/zoo6), sancionada em 2006, que per-
profundas transformações, mas também de resiliências: mencionei os mitiu institucionalizar e ampliar o combate à violência doméstica numa
obstáculos à participação política em conjunto com a divisão sexual do perspectiva de gênero; as Normas Técnicas do Ministério da Saúde para
trabalho, que onera as mulheres desigualmente por tarefas que deve- garantia do acesso das mulheres ao. aborto nos casos previstos por lei;'
riam ser de responsabilidade coletiva, como ocuidado com as crianças a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 72/2013, conhecida como
e os idosos, c gostaria de mencionar também a cidadania restrita pela PEC das Domésticas, regulamentada em junho de 2015, que equaliza os
recusa do direito ao. aborto e pela violência cotidiana na forma de es- direitos das trabalhadoras domésticas ao de outros trabalhadores,lem-
tupros, feminicídio s, mas também em suas formas mais sutis, como o brand~ que, no Brasil, g8% das pessoas que exercem trabalho domésti-
assédio moral ou sexual. co remunerado são mulheres; a Lei do Feminicídio (Lei n° 13.104/2015),
É possível afirmar que a despeito da baixa presença das mulheres sancionada em março de 2015.
nos espaços de representação formal, elas têm atuado sistematicamente Conectados a redes transnacionais e mobilizando a seu favor acor-
na política. A partir da transição para a democracia nos anos 1980, essa dos internacionais, os movimentos feministas brasileiros atuaram em
atuação tem ocorrido de forma mais organizada e com maior presença e defesa dos direitos das mulheres em um contexto de democratização, a
incidência no âmbito estatal. Isso se ampliou com a chegada do Partido partir de 1988 sobretudo, e em um momento favorável de maior abertu-
dos Trabalhadores (PT) ao poder em 2003, por ser esse um partido que ra para suas agendas, com a chegada do PT ao governo federal em 2003.
tem bases históricas em movimentos sociais, com maior abertura, por- Os muitos limites a essa atuação podem ser destacados, mas meu ponto
tanto, para o ativismo feminista. Ainda está por ser feito um mapa das

FLÁV I A DIROLI UMA MULHER FOI DEPOSTA SEXISMO. MISOCINIA E VIOLi!NCIA POLfTICI\
aqui é que um dos subprodutos das mudanças sociais e da atuação polí- tenha se iniciado em 2015, é claro, mas foi em maio daquele ano que o
tica de movimentos feministas consolidados a partir dos anos 1980 é a debate sobre gênero foi retirado pelos parlamentares do Plano Nacional
maior capilarização do feminismo na sociedade brasileira, que faz dele de Educação (PNE) e reações semelhantes pipocam em todo o país.
um fenômeno que, se não é novo, apresenta-se hoje com nova potência. Multiplicam-se ações contra os direitos das mulheres, sobretudo os di-
A internet e as novas formas de mobilização têm , certamente, um papel reitos sexuais e reprodutivos. {BIROLI, 2016a)
nessa capilarização e na forma hoje assumida por debates, manifesta- O sexismo atravessa quase todas as relações em uma sociedade como
ções e campanhas. a nossa, mas os estereótipos mais extremos, que negavam às mulheres
Por que trato desse contexto? O que ele nos diz sobre o golpe? competência para atuação política, vinham se tornando mais fracos e
Entendo que o golpe de 2016 depôs Dilma Rousseff em um contexto mesmo ausentes do jornalis.mo empresarial e do debate nas arenas for-
de reação às transformações na posição social relativa das mulheres e às mais. A visibilidade da própria Rousseff, quando ministra das Minas
poucas, mas significativas, conquistas no âmbito institucional. O con- e Energia (2003-2005) e da Casa Civil (2005-2010) e, depois, candi-
teúdo de classe do golpe, isto é, seu conteúdo antipopular, claramen- data à presidência seguiu padrões distintos daqueles que as ministras
te revelado nos desdobramentos posteriores- destruição da legislação mulheres dos anos 1980 e 1990 obtiveram em sua presença na mídia.
trabalhista que estabelecia garantias para trabalhadoras e trabalhado- (MIGUEL; BIROLI, 2011, p. 168)
res, por exemplo - é uma de suas faces; o conteúdo de gênero é, sem As narrativas enunciadas durante o processo de impeachment, no
dúvida, outra face. Ambas compõem o processo que converge na depo- entanto, mostraram-nos que os discursos misóginos não estavam, de
sição da primeira mulher a chegar à presidência. maneira alguma, neutralizados. Sexismo e misoginia participaram da
Assim que Rousseff foi deposta, o ministério de homens brancos construção de um ambiente político no qual uma mulher eleita foi con-
de Michel Temer passou a desfilar seus corpos e a disparar declarações testada em sua competência c deposta. Em alguns casos, a construção da
sexistas que indicavam su a distância em relação às transformações imagem de Rousseff e a configuração dos posicionamentos favoráveis
sociais em curso no país e sua convicção de que o lugar das mulheres a sua deposição podem ser descritos como formas de violência política
é na vida doméstica, garantindo assim o protagonismo m asculino. contra as mulheres, como defendi em outro local!Atingem Rousseff,
O amb iente em que as performances sexistas do novo establishment se ao mesmo tempo em que colocam em xeque a condição das mulheres
tornaram possíveis é aquele em que a competência das mulheres para a como atores políticos.
vida pública e, especificamente, para a política foi abertamente contes- Em revistas seman aisl, a estigmatização de Rousseff como incom-
tada. É, também, o ambiente em que foram rompidos laços e diálogo petente politicamente se deu no recurso a estereótipos convencionais
com os movimentos femini stas. de gênero, nos quais a mulher é associada ao destempero emocional.
A reação em curso contra os direitos das mulheres se tornou mais Em jornais diários, 4 a construção da presidenta eleita em imagens que
aguda, no Brasil, a partir de 2015. Os dois anos de intensa campanha de certo modo anunciavam sua deposição dentro de um ambiente po-
contra Rousseff e de tramitação do golpe parlamentar foram também lítico no qual diferentes tipos de violência ganhavam legitimidade an-
aqueles em que a noção de "ideologia de gênero" foi mobilizada para se tecipava um ambiente político em que posições de recusa aos direitos
restri ngir o debate sobre gênero nas escolas e a agenda da igualdade e humanos ganhariam maior espaço.
da diversidade nas políticas públicas. Não se trata de uma história que

PlÁVIA OIROLI UM A M ULHJ!R FOI DEPOSTA SBX I SMO , MISOCIN I A E VIOlilNCIA POLfTICA
A idcia de que se tratava de uma mulher perdendo o controle, inca- no processo de legitimação do impeachment sem crime de responsa-
paz de reagir com sensatez à crise política, atravessou todos os registros bilidade.s Poderiam ter sido outros os registros, mas foram, em abun-
e esteve presente em maior medida do que outras abordagens na mí- dância, organizados por estereótipos de gênero. O segundo conjunto
dia empresarial. O conteúdo sexualmente violento ganhava espaço na de problemas diz respeito à ofensiva conservadora em curso no Brasil
internet ao mesmo tempo em que a violência de gênero se expressava e na América Latina no que diz respeito ao papel social das mulheres e
na mídia empresarial pela estigmatização de Rousseff e das mulheres aos direitos conquistados nas últimas décadas. Convergem as ofensivas
como não capazes de atuação na política, sobretudo em contexto de cri- contra os direitos de trabalhadoras e trabalhadores e o ataque frontal ao
se. Nas redes sociais, as imagens que circularam em memes confirma- que vem sendo definido como "ideologia de gênero", que corresponde
vam que o espectro dos estereótipos aceitáveis se alargava. ao conjunto de conquistas e conhecimento acadêmico referenciado pela
Ao mesmo tempo, nos espaços institucionais, a presença massiva- igualdade de gênero. Mas uma vez, o apelo à neutralidade é uma forma
mente masculina dava seu recado com o slogan "Tchau, querida!", uti- de naturalizar perspectivas machistas. Desde a deposição de Rousseff,
lizado por partidos e parlamentares que se articularam para a suspen- acelerou-se um ajuste fiscal que restringe equipamentos públicos. res-
são do mandato de Rousseff. A ironia presente no "Tchau, querida!" se ponsabilidades do Estado e ações para a retirada de direitos e garantias
completava nos corpos. Nas imagens da votação, televisionada e tea- sociais. As reações são, assim, às mulheres na política e a uma condi-
tralizada, ternos e termos utilizados pelos parlamentares- 9 o homens ção de maior participação na vida pública. Em conjunto, reconfiguram
para cada dez mulheres nessa legislatura- ao votarem pela deposição de a participação social das mulheres e colocam em risco a posição em que
Rousseff e comemorarem o afastamento sem provas da primeira mu- a ofensiva conservadora e o governo pós-deposição querem colocá-las,
lher a chegar à presidência da República no Brasil apresentam uma gra- a de sujeitos na vida doméstica, mas não na vida pública; em outras pa-
mática de gênero bastante evidente. lavras, a de indivíduos domesticados. De muitas localizações sociais
Ao manifestarem seu voto, os parlamentares favoráveis à deposi- emergem vozes que deixam claro que as mulheres não aceitam essa res-
ção defenderam repetidamente a "família tradicional", modo de or- trição à sua condição de cidadãs. Os golpes que se recolocam desde a
ganização das relações historicamente desvantajoso para as mulheres. deposição se dão em meio a conflitos, o jogo continua a ser jogado.
O modelo de família que, para os parlamentares, permitiria um retorno
a u ma ordem desejada tem sido historicamente reduto de violência e
da exploração, expondo as perspectivas de gênero em jogo. O discurso N o tas
de ódio também esteve presente, na homenagem de um deputado ao Ver Brasil (2005).

torturador de Rousseff, que foi prisioneira política durante a ditadura 2 Remeto a discussões feitas em Biroli (2016c), nos quais situo o debate teórico e a legislaçào
sobre violência contra as mulheres na polftica. Os exemplos de que trato a seguir já foram
de1964. util izados no artigo ao qual remeto nesta nota.
Dois conjuntos de problemas precisam ser destacados, no meu en- 3 Para um exemplo, ver reportagem de capa da Isto é (2016).
tendimento. Um deles é o modo como sexismo e misoginia desem- 4 Para um exemplo. ver fotografia na capa de O Estado de S. Paulo. (FOGO ...• 2016)
penharam um papel na caracterização de Rousseff como incompe-
S Dil ma Rousseff evocou ela mesma o sexismo para explicar o impeachment. Para um exem-
tente e indesejável à frente do Executivo, definindo uma abordagem plo, ver entrevista à CNN. (DILMA ..., 2016)

8o FLÁVIA BIROLI UM A MULHER 1' 01 DEPOSTA S E XISMO, MI S OCINIA E VJOLilN C IA POLITICA


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I'LÁVIA BIROLI UM A M U LH I! R POI DEPOSTA SllXISMO, MISOGINIA I! VIQLI\NCIA POLITICA


Direitos reprodutivos, um dos
campos de batalha do golpe

Maíra Kubík Mano*


Márcia Santos Macêdo**

"Eta, eta eta eta • Doutora em Ciências S


Eduardo Cunha pela Universidade Estad1
Campinas (Unicamp) e
Quer controlar professora adjunta do de
mento de Estudos de Gê1
Minhab...!" Feminismo da Universid;
Federal da Bahia (UFBA).
(Primauera Feminista apres Caetano Veloso) Épesquisadora do Núclc
Estudos lntcrdi sciplinare
a Mulher (NEIM).
** Doutora em Ciências
pela Universidade Feder;
Bahia (UFBA), professor;
Introdução associada do departamc•
Estudos de Gênero e Fen
No primeiro dia do mês de janeiro de 2011, da UFBA e pesquisadora
Dilma Rousseff tomou posse como presidenta da permanente do Núcleo d
Estudos lnterdisciplinare
República. Naquele dia, diante das câmeras de tele- a Mulher (NEIM).
visão, de todas as pessoas convidadas e do público
em geral, não estava somente a pessoa que seria a próxima mandatária processo numa perspectiva feminista e, portanto, utilizando-se das
do país. Estava uma mulher. E era inevitável enxergá-la enquanto tal, chamadas lentes de gênero, muitos caminhos poderiam ser traça-
já que se tratava, após 122 anos de República, da primeira a ocupar esse dos. Contudo, optamos por pensar aqui a partir do terreno onde se dá
espaço, até então reservado exclusivamente para uso masculino. uma das principais disputas encampadas pela pauta feminista: os di-
Como afirma a socióloga francesa Colette Guillaumin (1992, p. 15, reitos sexuais e reprodutivos. Analisaremos particularmente o caso
tradução nossa): do Projeto de Lei (PL) n° 60/99 - que previa acesso à contracepção de
emergência por mulheres vítimas de estupro - , as principais forças que
Diante de um patrão, há sempre uma mulher, diante de um politécnico, há uma atuaram por sua aprovação, e também aquelas contrárias a ela, e como
mulher, diante de um operário há uma mulher. Mulheres nós somos, não é um qua- essa disputa desembocou na <;:hamada Primavera Feminista de 2015 e no
lificativo entre outro~. é nossa definição social. Tolas as que acreditam que é apenas enfrentamento a um dos artífices do impeachment: o então presiden-
um traço físico, uma diferença- e que a partir desse dado múltiplas possibilidades te da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), preso por
nos seriam abertas. [...] Não é o começo de um processo (um ponto de partida, corrupção, posteriormente, no final de 2016. A questão que orienta essa
como acreditamos), é o fim, é o fechamento. reflexão é discutir como a temática dos direitos reprodutivos - mais es-
pecificamente o tabu contra o aborto-demarca a fragilidade dos limites
Assim, em uma sociedade lastreada por uma ordem patriarcal de em torno dos avanços na questão de gênero, produzindo um efeito polí-
gênero como a brasileira, a eleição de Dilma Rousseff não significava tico tal que chegou ao ponto de pressionar a ampla aliança estabelecida
necessariamente que estávamos vivenciando uma maior abertura à em nome da governabilidade e demonstrando, assim, a indissociabili-
participação das mulheres. Pelo contrário. Longe de ser um termômetro dade dos marcadores de classe, raça/etnia e gênero para pensar a estru-
apontando para uma significativa transformação nas relações de gênero turação da sociedade brasileira.
no país, sua vitória nas urnas pode ser lida como, provavelmente, uma Trabalharemos com a hipótese de que a tensão permanente que ron-
das poucas brechas na tão consolidada divisão sexual do trabalho que dou os dois governos de Düma Rousseff não poderia ser solucionada
vem imput~ndo às mulheres a responsabilidade pelo espaço doméstico dentro dos parâmetros democráticos estabelecidos, dada a incomple-
enquanto disponibiliza aos homens a direção do espaço público. Para tude da nossa democracia em sua vocação de massas, ao não conseguir
atestarmos tal avaliação, basta notarmos que, no mesmo período, a reconhecer direitos fundamentais de importantes contingentes popu-
porcentagem de mulheres eleitas para o Legislativo não teve alteração lacionais e, principalmente, no que se refere aos interesses de mais de
significativa, permanecendo com uma taxa de participação baixíssima 50% de sua população, a saber, das mulheres cisgêneras- e também dos
- em torno de 10%. (MANO, 2015b) homens transgêneros. E são, afinal, 8oo mil interrupções voluntárias
Partiremos de uma compreensão crítica do conservadorismo e an- de gestações por ano (SUWWAN, 2004) realizadas de maneira ilegal,
drocentrismo estruturante da arena política brasileira para analisar o sendo que apenas a elite branca consegue realizá-las, também clandes-
processo que levou à deposição, em 2016, por meio de um golpe par- tinamente, mas em condições seguras e a um alto preço nas clínicas
lamentar-empresarial-jurídico-midiático, da primeira mulher a ocu- privadas, muitas delas camufladas como instituições particulares de
par a presidência da República. É evidente que para refletir sobre esse atendimento rotineiro à saúde das mulheres.'

D I RE I TOS RI!PRODUT I VOS , UM DOS CAMPOS OH BA T A LHA DO GO LI'I!


86 M AfRA K UB IK M ANO , MÁRC I A SA NT OS MAC I!OO
Colocando as l entes de gênero plenamente proletário", como nos mostra Jules Falquet (2008, p. 125).
Para olhar para esse caso, consideraremos que, em um contexto de Ademais, na sociedade brasileira, é impossível refletir sobre a distri-
forte desigualdade de gênero c, portanto, de ampla reprodução de um buição dessas tarefas sem cruzá-las com raça/etnia, uma vez que entre
discurso cultural dominante, estamos diante de uma situação prato- as classes média e alta há uma transmissão de parte dessas atribuições
típica" da mulher fora do lugar". Esse deslocamento é produto de uma para empregadas domésticas, em sua grande maioria mulheres negras-
lógica contraditória, baseada em percepções e práticas de gênero cons- a "mucama permitida", segundo Lélia González (1984). Temos, então,
truídas e inter-relacionadas dialeticamente (SAFFIOTI, 1992) c que não apenas uma divisão sexual do trabalho, como também uma divisão
vão se materializar em uma forte divisão sexual do trabalho e que está racial do trabalho, que ocorrem de maneira concomitante e imbricada,
baseada, como nos aponta Kergoat (2009), em dois princípios: existem pois, como ressalta Moore (2<?00, p. 34): "o próprio poder é representa-
trabalhos masculinos e femininos e os masculinos valem mais do que do, em muitos contextos, como sexualizado e racializado".
os femininos. Entre os trabalhos considerados masculinos estão a di- Convém ainda destacar que, nessa perspectiva, a divisão sexual do
reção das forças armadas, das igrejas e, claro, da política institucional- trabalho pressupõe, obviamente, que as relações sejam heterossexuais
por exemplo, a presidência da República. Inversamente, para as mulhe- para que a reprodução ocorra. Monique Wittig (2013, p. 62, tradução
res, a principal responsabilidade esperada é a do trabalho reprodutivo nossa) alerta para o risco que incorremos quando deixamos de questio-
que envolve a gestação, o parto e o aleitamento, mas também o cuidado nar a heterossexualidade compulsória, pois
ao longo da vida das crianças e pessoas incapacitadas, assim como a exe-
embora tenha sido ace ito em anos recentes q\le não existe semelhante coisa como
cução das tarefas domésticas e sexuais para o marido/companheiro e
a natureza, que tudo é cultura, permanece ainda um cerne de natureza que resiste a
outros membros da família. (TABET, 2004)
ser examinado, uma relação excluída do social na análise- uma relação cuja carac-
Nesse contexto, tais tarefas, diferentemente daquelas em que há
terística é inescapável na cultura, assim como na natureza, c que é a relação hete-
venda de força de trabalho, são realizadas sem remuneração direta, a
rossexual.
partir de uma apropriação do corpo feminino, o que a leva, como afirma
Guillaumiri (1992, p. 15), à posição de "máquina de trabalho"- produz A esse respeito, Moore (2ooo) ainda nos lembra que os discursos
crianças, leite, benefícios à saúde, limpeza etc. E tem como consequên- culturais dominantes vão conferir diferentes posições de sujeitos a
cia a despossessão da mulher de seu próprio corpo, que passa a perten- homens e mulheres, limitando as opções e estratégias dessas últimas
cer à sociedade. Entre os meios pelos quais isso ocorre e se mantém, es- em particular. E é através dessa insistente ideologia embasada na no-
tão o estupro e o arsenal jurídico-ambos colocados em questão no caso ção de natureza que se inverte o raciocínio sobre como se constroem os
do PL n 2 60/99. homens e. as mulheres- e as desigualdades entre eles-, encarcerando-
Essa posição, que obviamente antecede o sistema capitalista, com nos na perspectiva de que "uma mulher é uma mulher porque é uma
ele, agravou-se. (EISENSTEIN, 198o) Há uma coformação das relações fêmea". (GUILLAUMIN, 1992, p. 51) Sob esse ponto de vista, qualquer
de produção capitalistas - de exploração assalariada- e das relações não- reivindicação de autonomia e poder é intolerável e, mais do que isso, é
capitalistas- de apropriação/opressão - que empurra uma mão de obra tida como perigosa, porque, ao fazê-la, estamos sacudindo as estruturas
feminina rumo a um "trabalho que não é totalmente gratuito, mas que
também não é corretamente remunerado e que nem é, nem nunca será,

88 MAIRA KUBIK MANO, MÁRCIA SANTOS MACtDO D IR E ITOS RI!I'RODUTIVOS, UM DOS CA MI' OS DE BATALHA DO GOLPE
que sustentam as desigualdades de gênero que, interseccionadas com do PSDB, José Serra, teria chamado a candidata petista de "abortista".
classe e raça/etnia, teriam o poder de implodir a sociedade tal como a Através da "Mensagem da Dilma", a então candidata à presidência veio
conhecemos. a público para garantir que não proporia a descriminalização ou a le-
galização do aborto, caso eleita, porque acreditava que esse era um as-
sunto que dizia respeito ao Legislativo. Ela começa a sua carta dirigin-
Situando o problema na conjuntura atual do-se ao povo "com carinho" e "respeito que merecem os que sonham
O historiador Lincoln Secco (201 2) afirmou em seu livro História com o Brasil cada vez mais perto da premissa do Evangelho de desejar
do PT que a "Carta ao Povo Brasileiro", lançada por Lula em 2002, antes ao próximo o que queremos para nós mesmos". (ROUSSEFF, 201 0)
de eleger-se pela primeira vez presidente da República, foi, em termos São muitas concessões feitas para um texto tão pequeno: a defesa da
gramscianos, a "pá de cal" do processo de transformismo do PT - ou manutenção da legislação atual sobre aborto; o comprometimento em
seja, a absorção do maior partido da esquerda brasileira por aqueles que não propor "iniciativa que afronte a famí lia" e a recusa da sanção do
já detinham a hegemonia do país. Para os dirigentes petistas, a condição Projeto de Lei da Câmara (PLC) n° 122 que torna a lesbo/homo/trans-
para vencer o pleito de 2002 dependeria de um amplo arco de alianças fobia crime, caso ele viole "liberdade de crença, culto e expressão e de-
com setores da burguesia nacional e com partidos do centro, da centro- mais garantias constitucionais individuais existentes no Brasil".
direita e da direita, aí incluso o Partido Social Cristão (PSC). Tais acordos Posicionamento semelhante foi também adotado, posteriormen-
não foram temporários, pelo contrário. Permaneceram vigentes no go- te, pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM)• por
verno e no Congresso Nacional, onde foram determinantes para a cons- Eleonora Menicucci, socióloga, feminista -e professora da Universidade
trução de uma maioria para uma certa "governabilidade". Até o ponto de Federal de São Paulo (Unifesp), ocupante do cargo durante o governo
ter Michel Temer (PMDB-SP) na vice-presidência com Dilma Rousseff. Dilma, entre 2012 e 2015. Ao assumir o cargo, ela declarou:
Mas, aprofundando a crítica de Secco, podemos considerar que o
Eu já dei entrevistas, sobretudo nos anos 70,80 e 90, quando o feminismo necessi-
longo processo de transformismo do PT teve, ainda, mais dois elemen-
tava de marcar posições e muitas mulheres ousaram dizer até da sua vida privada.
tos bastante dramáticos. Primeiro: seu envolvimento em denúncias
Não me arrependo, mas eu sou governo e a matéria da legalização ou descriminali-
de corrupção, em especial o conhecido caso do Mensalão, em 2005, e
zação do aborto é uma matéria que não diz respeito ao Executivo, diz respeito ao
aquelas decorrentes da Operação Lava Jato, que teriam feito com que
Legislativo.
o partido perdesse, aos olhos da sociedade, o diferencial ético em rela-
ção às demais agremiações- e, quando um partido de esquerda perde Tais pronunciamentos, longe de trazerem à tona posições pessoais de
sua distinção em relação a outros, isso abre caminho para uma extre- Menicucci e Dilma Rousseff, fornecem indícios da pressão que envolve
ma-direita, como alerta Chantal Mouffe (2015). Segundo: a divulgação tal pauta e do quanto ela foi objeto de negociação em prol da dita gover-
da "Mensagem da Dilma", carta lançada pela, à época candidata, Dilma nabilidade. Evidentemente que essa pressão já existia nos dois manda-
Rousseff, em outubro de 2010. Naquele momento, mais de 19 milhões tos do presidente Lula- visto que o PT historicamente se posicionou a
ele panfletos associando Dilma Rousseff à defesa da prática do aborto favor da legalização do aborto- mas certamente que ela aumentou no
foram apreendidos pela Polícia Federal e, somado a i~so, o candidato

MA filA KUBIK MANO, ~iÁRCIA SANTOS MA C ilDO D IR E I TOS REPRODUTIVOS, UM DOS C AMPO S DE BATALHA DO GOLPI!
momento da candidatura e, mais ainda, quando o país passou a ser di- passou a ser discutido no plenário, onde recebeu apenas elogios. Cinco
rigido por uma mulher. Afinal, poderia se pressupor que ela estaria do deputadas se pronunciaram, entre elas Iara Bernardi (PT/SP), a autora
mesmo lado daquelas que passam por interrupções de gestações, sejam do projeto, que ressaltou a importância de transformar o que já era um
elas desejadas ou não, por ocupar também o mesmo lado na divisão se- procedimento do SUS em lei, para garantir o cumprimento da preven-
xual do trabalho. ção às doenças sexualmente transmissíveis e à gravidez. Ela também
parabenizou a Casa "por ter concordado em colocar em pauta este pro-
jeto que está em discussão desde 1999. É uma reivindicação do movi-
O caso do PL n 11 60/99 mento feminista. Parabenizo a Casa inclusive pelo consenso construí-
O mais próximo que se chegou da discussão sobre aborto duran- do". (BRASIL, 2013b)
te os governos Dilma Rousseff foi com o PL n° 6o. Proposto em 1999 Pelos pronunciamentos, podemos apreender alguns pontos. O pri-
pela deputada Iara Bernardi (PT/SP), tinha o objetivo de dispor sobre o meiro é que as integrantes da Bancada Feminina estavam muito gratas
atendimento imediato e multidisciplinar para o controle e tratamento, ao presidente da Câmara Federal, Henrique Eduardo Alves (PMDB/
tanto do ponto de vista físico quanto emocional, da vítima de violência RN), hoje em cárcere, e à Casa Legislativa, por terem "permitido" que
sexual. Com a aprovação da lei, todos os hospitais integrantes do SUS o PL n11 60/99 fosse à votação após tanto tempo, justamente na semana
deveriam: 1) Fazer o diagnóstico e o tratamento das lesões físicas no do 8 de Março. Outro ponto relevante é que Nilda Gondim (PMDB/
aparelho genital e demais áreas afetadas; 2) Fornecer amparo médico, PB), Flávia Morais (PDT/G O) e Sueli Vidigal (PDT/CE), deputadas que
psicológico e social; 3) Facilitar o registro da ocorrência e encaminhá-la discursaram na ocasião, eram então integrantes da Frente Parlamentar
a órgãos de medicina legal e delegacias especializadas com informações da Família e Apoio à Vida e mesmo assim defenderam o projeto de lei.
que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da vio- "Todo mundo concordou com o PL 66/99 porque é uma coisa tão óbvia
lência sexual; 4) Fazer a profilaxia da gravidez e de doenças sexualmen- a proteção à mulher vítima de violência sexual que não houve, dentro da
te t ransmissíveis, assim como coleta de material para exame de HIV; e bancada, nenhum movimento contrário", explicou]ô Moraes (PCdoB/
5) Fornecer·informações às vítimas sobre os direitos legais e serviços MG), coordenadora da Bancada Feminina à época. (MANO, 2015b, p.
disponíveis. 231) Em entrevista posterior, a deputada Liliam Sá (PROS/RJ), evangé-
Até sua aprovação, o PL n 11 60/99 tramitou por apenas duas comis- lica, confirmou a afirmação de Jô Moraes:
sões (BRASIL, 2013a), em ambas com relatores do PT. Em os/03/2013,
Éum assunto polêmico. Eu sou evangélica, eu tenho uma posição em relação a esse
14 anos após sua proposição, ele chegou ao Plenário da Câmara para vo-
projeto. Mas como eu sou um agente público, eu tenho que olhar como um todo.
tação após um requerimento de urgência (no 6906/2013), novamente
Me colocar no lugar daquela família, daquela mãe. Eu sou a favor daquilo que está
por ação de um homem pctista, o deputado José Guimarães (PT/CE). O
escrito na Bíblia. Mas não tiro meu apoio dessas mulheres que necessitem dessa
motivo era aproveitar a efeméride do 8 de Março, Dia Internacional das
intervenção porque eu sei que é muito duro, é muito triste e doloroso. Então eu
Mulheres, para aprovar o projeto.
gosto de separar muito bem as coisas. Aquilo que eu penso, que é da religião, e
A alteração do regime de tramitação proposta por Guimarães foi
aquilo que eu tenho que fazer como agente pública. (MANO, 201 Sb, p. 231)
aprovada imediatamente pelas lideranças de todos os partidos e o PL

91 MllfRII KUBIK MANO, M. ÁRCIII SANTOS MIICilOO OIRIJITOS Rf\PROOUTIVOS, UM DOS CAMPOS Oll BATIILIIII 00 COLI'E
Chama a atenção o fato da deputada Liliam Sá reivindicar a separa- Não há, no que diz respeito às relações estruturais de sexo, a "posição de consciên-

ção entre religião e a representação pública, apontando que a Bancada cia" dos homens e a posição de consciência das mulheres, mas a posição dos ho-

Evangélica não deve, portanto, ser vista como homogênea - assim mens (com variações mais ou menos sutis) e as posições das mulheres. Há um cam-

como são diversas as denominações protestantes. Aparentemente, a po de consciência estruturado e dado para os dominantes, e de toda forma

sua percepção de pertencer ao grupo de mulheres deputadas e de seu coerente diante da mínima ameaça contra seu poder; e diversas modalidades de

mandato representar a população femin ina se sobrepôs à sua afiliação fragmentação, de contradição, de adaptação ou de recusa ... mais ou menos (des)

religiosa, o que pode demonstrar que, para algumas pautas, foi man- es trutu radas do lado das/os dominadas/os, modalidades cujo entendiment o pare-

tida a compreensão da necessidade de agir conjuntamente. Ainda que, ce particularmente difícil para um dominante.

vale ressaltar, ela tenha tendência a estar à direita do espectro político.


As movimentações das feministas e da Bancada Feminina foram
(CORAD!Nl, 2010, p. 247)
registradas pela mesma matéria de O Globo de 22/07/2013 . (ÉBOLI,
Mas a unanimidade durou pouco. Quando o PL n°6o/99 foi enviado
2013) Elas foram ao encontro de Gleisi Hoffmann, então ministra da
para sanção da presidência da República, a Bancada Evangélica decidiu
Casa Civil, acompanhadas da ministra da SPM, Eleonora Menicucci,
se mobilizar contra ele. O problema era o termo "profilaxia da gravi-
que apoiou publicamente o PL. Érika Kokay (PT/DF), que participou
dez", no artigo 40, inciso IV, entendido como uma interrupção de ges-
do encontro, narrou, em entrevista, a articulação feita pelas mulheres:
tação e não como contracepção. A presidenta Dilma Rousseff tinha um
mês para sancionar ou vetar a lei, justamente durante o recesso parla- Nós fizemos duas reuniões com diversos segmentos, vários representantes do gover-
mentar, e, nesse período, ouviu argumentações de ambos os lados. no, na perspectiva de participação também com entidades femininas da sociedade
Nesse ínterim, ambas as Bancadas estiveram reunidas com ela. civil, para que nós pudéssemos assegurar a manutenção ou a sanção sem qualquer
A presidenta recebeu, em 16 de julho de 2013, 16 cantoras gospel e o tipo de veto ao projeto da depu tada Iara Bernardi que estabelece o atendimento às
então ministro da Pesca, Marcelo Crivella (PRB/RJ), bispo evangéli- vítimas de violência. Isso é um pouco a demonstração do obscurantismo que nos ronda,
co, eleito prefeito do Rio de Janeiro em 2016. "[...] é um momento de que está à espreita, esperando os momentos oportunos e as frestas para poder golpear
muita pressão. O Brasil está vivendo um momento muito delicado, e direitos básicos da mulher. (MANO, 201 Sb, p. 239, grifo nosso)
nós viemos aqui representando a Igreja Evangélica no Brasil e a apoian-
do no que ela precisar", disse a cantora Damares de Oliveira ao jornal O Globo trouxe ainda uma montagem carregada de drama com uma
O Globo, referindo-se também ao período subsequente às manifes- foto da deputada federal Iara Bernardi (PT/SP) e duas imagens distri-
tações de junho de 2013. (ALENCASTRO, 2013) Se as parlamentares buídas pela internet, uma contra a sanção presidencial e outra a favor.
evangélicas não reforçaram o coro contrário ao PL, as cantoras gospel A mesma reportagem afirma que os religiosos advertiram a presidenta
cumpriram esse papel. que "se o projeto não for vetado, haverá ampla campanha contra ela na
Para refletir sobre a contradição entre as próprias mulheres evan- eleição presidencial de 2014". Segundo o texto, um dos integrantes do
gélicas, podemos recorrer à Nicole-Claude Mathieu (2013, p. 130) que Movimento Pró-Vida, o advogado Paulo Fernando Melo, disse na reu-
pode ajudar a compreender a fragmentação e contradições no campo nião que "as consequências [da sanção do projeto] chegarão à militância
das" dominadas": Pró-Vida, causando grande atrito e desgaste para vossa Excelência[... ],

DIREITOS REPRODUTIVOS. UM OOS CAMPOS Oll BATALHA 00 GOLPB


94 MAI RA KU8 I K MANO• M. Á R C I A S A N T OS M A C t OO
que prometeu, em sua campanha eleitoral, nada fazer para instaurar o descolar-se da base do governo. Logicamente que a tramitação pela
aborto em nosso país". (ÉBOLI, 2013) Câmara e a nova posição de destaque de Cunha fez com que a pressão
Ao final, Di! ma Rousseff manteve o PL na íntegra, que se tornou a sobre o tema voltasse, despertando o alerta nos movimentos feministas.
Lei n° 12.845/2013. No mesmo dia, no entanto, a presidenta anunciou Algumas organizações de mulheres, que acompanhavam mais de per-
que enviaria duas sugestões de alteração ao Congresso Nacional para: to a movimentação dos PL no Congresso Nacional, passaram a pautar a
(i) que o artigo 20 não trate de violência sexual de forma vaga, mas sim questão diante do risco da perda de um direito recém-adquirido.
a partir das formas já presentes no Código Penal; (ii) e que o inciso IV Para fazer frente a tão grave retrocesso, no final de outubro de 2015,
do artigo 30 substitua "profilaxia da gravidez" por "medicação com efi- milhares de mulheres saíram às ruas do país para protestar contra o PL
ciência precoce para. prevenir gravidez resultante de estupro" - a reda- de Eduardo Cunha. O movimento ficou conhecido como Primavera
ção inicialmente pensada por Iara Bernardi (PT/SP). (EXPOSIÇÃO ... , Feminista e fez parte de um contexto onde registrou-se, também, uma
2013) Derrotada, a Bancada Evangélica decidiu mudar de estratégia. Em forte mobilização online, por meio de campanhas como #meuprimei-
reportagem de 03 de agosto de 2013, intitulada "Evangélicos vão atacar roassedio e # meuamigosecreto. (MANO, 2015a) As passeatas foram
lei da pílula do dia seguinte", anunciam, na Folha de S. Paulo, a apresen- agendadas via redes sociais e protagonizadas por uma juventude bas-
tação de um Projeto de Lei para revogá-la. A Conferência Nacional dos tante pulsante e criativa, como mostra a ousada epígrafe desse texto.
Bispos do Brasil (CNBB) divulgou uma nota, também publicada pelo No entanto, a necessária e oportuna discussão em torno dessa movi-
jornal, em que "lamenta profundamente a sanção da lei", que "pode in- mentação e se ela pode configurar uma nova onda do feminismo, ficará
terferir no respeito incondicional à vida humana individual já existente para outra oportunidade.
e em desenvolvimento no útero materno, facilitando a prática do abor- Não é exagero afirmar que o enfrentamento que as mulheres fize-
to" (FALCÃO; GUERREIRO, 2013) - como se, nesse caso, houvesse ram à figura de Eduardo Cunha nas ruas das grandes cidades foi o mais
alguma outra vida humana em questão senão a da própria mulher. O contundente que um deputado jamais experimentou. Cerca de um mês
deputado Eduardo Cunha (PM DB/ RJ), evangélico, propôs, em segui- depois, em 2 de dezembro de 2015, Cunha aceitou o pedido de impeach-
da, o PL n° 6.033/2013 para revogar a Lei n 11 12.845/2013. ment contra Dilma Rousseff feito pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel
Reale J~. e Janaina Paschoal. Paralelamente a essa movimentação, na
manhã daquele dia, o PT havia anunciado que votaria pela cassação de
A Primavera Feminista Cunha, com o aval da presidenta Di! ma Rousseff, abrindo um processo
Prosseguindo a tramitação da Lei, o poder Executivo encaminhou no Conselho de Ética da Câmara por quebra de decoro, sob a alegação
sua proposta de alteração ao Congresso Nacional, que se tornou o PL no do deputado ter ocultado a existência de contas bancárias não declara-
6022/2013. O PL de Cunha foi apensado a ele em novembro de 2014 e das no exterior. O debate sobre Cunha foi retomado em 30 de março
em maio de 2015, ambos chegaram à Comissão de Seguridade Social e de 2016, quando o relatório preliminar que demandava a continuidade
Família, onde permaneciam até a escrita desse artigo esperando o pare- do processo disciplinar com pedido da cassação de Cunha foi aprovado,
cer do relator designado, o deputado federal Jorge Solla (PT-BA). fazendo, portanto, com que o condutor do impeachment estivesse de-
Vale lembrar que, três meses antes dos PL chegarem à Comissão, em finitivamente sob suspeita.
fevereiro de 2015, Eduardo Cunha havia sido eleito presidente da Câmara
dos Deputados, após vencer o candidato petista Arlindo Chinaglia e

M 1\ f R 1\ K U B I K M 1\ N O , M. Á R C I 1\ S 1\ N TOS M 1\ C ll D O DIREITOS REPRODUTIVOS, UM DOS CAMPOS DE 81\T/\LH/\ DO GOLPE

l
O gênero no golpe Assim, considerando-se que a desigualdade brasileira se constitui
O dia era 17 de abril de 2016. Da mesma forma que, cinco anos atrás, o sobre os pilares de classe, mas também de gênero e raça/emia, tendo
país havia parado para assistir à posse da primeira presidenta eleita e vi- como pano de fundo o colonialismo, vemos como qualquer mudança
via o ineditismo de ter um corpo de mulher ocupando o centro daquele estrutural dependeria de uma ação articulada de enfrentamento nessas
ritual, mais uma vez era uma mulher o alvo daquele novo espetáculo três esferas. A disputa em torno do PL n!! 6022/2013 foi uma das muitas
m idiático. Com um placar final de 367 votos favoráveis e 137 contrários demonstrações da falta de capacidade de construção de uma direção po-
ao impedimento da presidenta, cada voto favorável foi acompanhado de lítica e ideológica que conseguisse garantir hegemonia. O PT ganhou a
um argumento que respondia às mulheres, trabalhadores/as, negros/ eleição, mas não levou o governo. A sociedade brasileira não foi, ao lon-
as, homossexuais e ~.vários outros grupos marcados como diferentes: go do tempo, convencida/co~quistada pelo projeto político do Partido
"Voltem para seu lugar!". Para Dilma Rousseff, as placas com a irôni- dos Trabalhadores- muito provavelmente porque, a este projeto, faltou
ca frase "Tchau, querida!" colocavam em evidência o caráter patriarcal, coerência e constância em sua apresentação. Dessa forma, apesar de não
conservador e, acima de tudo, misógino do golpe em sua face mais cruel se posicionar publicamente a favor do aborto, Dilma Rousseff sancio-
e repugnante. Como nos lembra Burigo (2016): "patriarcado é o siste- nou uma lei que garantia mínimos direitos das mulheres à revelia de
ma, misoginia é a indicação de sua existência, machismos são seus atos. uma base de apoio importante para o seu governo e viu, nesse episódio,
Na linguagem, no simbólico onde circulam informação e poder, encon- uma das mais agudas crises que antecederam sua deposição.
tramos evidências de todos". Isso pode explicar, também, porque, mesmo com todo o processo
Por outro lado, o processo atual vivido no Brasil não teve apenas um de transformismo e do esgotamento da experiência petista, ainda era
ponto de partida. Trata-se de uma crise múltipla- política, econômi- incômodo ter uma mulher eleita pelo PT na presidência. Com o esgar-
ca, ecológica- e não se limita às nossas fronteiras nacionais, mas é sim çamento da coalizão entre o PT e a base aliada, era melhor para a elite
permeada pelo cenário de crise global. Certamente que, na atual con- voltar a ter controle direto sobre o aparelho do Estado e garantir que
juntura, a resposta encontrada pelas elites para a "superação da crise" nenhuma concessão fosse feita - e, talvez, com isso, garantir que ne-
implica voltar no tempo e destruir, uma a uma, as recentes e ainda frá- nhuma outra ouse chegar aonde Dilma Rousseff chegou...
geis conquistas de nossa jovem e incompleta democracia. Parte de nos- Nessa perspectiva, adquirem dimensão simbólica e material vários
sas perdas do presente remetem à compreensão das profundas contra- aspectos em jogo no período que antecedeu ao impeach ment e uma série
dições nas escolhas políticas dos últimos governos que, para chegarem de ocorrências que o sucederam. Merece destaque, em primeiro lugar, a
e se manterem no poder, apostaram numa estratégia de conciliação de constatação de que não é sem razão que um dos principais embates des-
classes - incorporando não apenas parte do programa da direita, mas ses últimos tempos tenha ocorrido entre Eduardo Cunha e as feminis-
realizando concessões na partilha do poder - e fazendo com que movi- tas. Ou que a votação do impeachment na Câmara dos Deputados tenha
mentos para a ampliação da democracia fossem muito limitados, o que sido marcada por discursos a favor de uma percepção limitada de famí-
impediu sua radicalização, fundamental para qualquer transformação lia burguesa, da religião como guia para a política ou da tortura como
social de longo prazo. arma de destruição do contraditório. E ainda que a primeira ação dos
golpistas tenha sido a de nomear um ministério inteiramente burguês,

M A I R A KUBIK MA NO , M ÁRC I A SAN TOS M A C fl DO DIR E IT OS REPRODUT IVO S, U M D OS CA M POS DE BA T A LH A DO COLP 8


masculino e branco- encerrando, portanto, qualquer possibilidade de Notas
uma ocupação feminina "fora do lugar". Dilma Rousseff evocou ela mesma o sexismo para explicar o impeachment. Parô\ um exem·
pio, ver entrevista à CNN. (DILMA ..., 2016)
O fortalecimento dessa nova coalizão encontra-se na dependência
2 Importante destacar que a SPM foi criada durante o governo Lula que depois foi objeto de
da progressiva adesão às pautas conservadoras por parte dos grandes reforma- juntamente com outras pastas da área de Equidade Racial e Direitos Humanos -
partidos que ocupam o espectro da centro-direita no Brasil- especial- ainda no governo Dilma e perdeu status de ministério com Mi chel Temer na presidência, sen-
do posteriormente extinto.
mente o PMDB e o PSDB, ambos representantes de forças políticas que,
nos últimos 30 anos, abrigaram feministas liberais favoráveis aos di-
reitos sexuais c reprodutivos das mulheres. Quanto tempo essa aliança
que articulou o golpe durará, só o tempo poderá dizer. O certo é que Referências
teremos um longo percurso pela frente para aquelas e aqueles que ali- ALENCASTRO, C. Dilma recebeu cantoras gospel no Palácio do Planalto.
mentam um horizonte emancipatório. Muitas serão as frentes para o O Globo, Rio de Janeiro, 16 jul. 2013. Disponível em: <https://oglobo.
bom combate contra qualquer forma de conservadorismo e para que globo.com/brasil/dilma-recebeu-cantoras-gospcl-no-palacio-do-
planalto-go4I8o6>. Acesso em: 21 out. 2017.
não retrocedamos na defesa de lutas históricas dos movimentos sociais
em torno da garantia de direitos sexuais c reprodutivos - em especial na BERT!-1, J. Mortes por aborto no Brasil: a legitimação da nossa ignorância.
garantia do aborto legal -, na manutenção da laicidade do Estado, nos Justificando, São Paulo, 28 set. 2016. Disponível em: <http://justificando.
avanços pela igualdade de gênero e por uma educação não sexista, no cartacapital.com.br/2016/og/28/mortes-por-aborto-no-brasil-
combate ao racismo e à lesbo/homo/transfobia, entre outras questões. legitimacao-da-nossa-ignorancia/>. Acesso em: 21 out. 2017.
Em um texto de 1985, Carlos Nelson Coutinho (1993, p. 125), refle- BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Projeto de lei nQ
tindo sobre a redemocratização brasileira afirmou: 6o, de 1999. Dispõe sobre as vítimas de violência sexual. Brasília, DF,
2013a. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
Resta ainda um longo caminho a percorrer na luta para ampliar a socialização da fichadetramitacao?idProposicao=I4993>. Acesso em: 21 out. 2017.
política, para construir um efetivo protagonismo de massas capaz de consolidar
BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Departamento de
definitivamente a sociedade civil brasileira. Do desenlace dessa luta irá depender,
Taquigrafia, Revisão e Redação. Sessão 023·3·54.0, de 5 de março de 2013.
de resto, o destino do atual processo de transição da chamada 'Nova República': na Brasília, DF, 2013b. Sessão ordinária.
medida em que esse processo é fruto da combinação de pressões' de baixo' e ope-
rações transformistas 'pelo alto', seu ponto de chegada pode ser ou a criação de BURIGO, J. Em meio à crise, o patriarcado contra-ataca. Carta Capital,
uma real democracia de massas ou a restauração do velho liberalismo elitista e ex-
São Paulo, 20 abr. 2016. Sociedade. Disponível em: <https://www.
cartacapital.com.br/sociedade/em-meio-a-crise-o-patriarcado-contra-
cludente.
ataca>. Acesso em: 21 out. 2017.
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de tempestade nos alertam para procurarmos abrigo e cavarmos - ou alinhamentos políticos. Reuista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 18,
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100 MAIRA KUBIK MAN O, MÁR C IA SANTOS MACtDO DIREITOS REPRODUTIVOS, UM DOS CAMPOS DE BATALHA DO GOLP E
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101 MAfRA KUBIK MANO, MÁRCIA SANTOS MACitDO DIREITOS REPRODUTIVOS, UM DOS CAMPOS DE BATALHA DO GOLPE
A máquina misógina e o fator
Dilma Rousseff na política
brasileira
Marcia Tiburi*

• Marcia Tibu ri é graduada


Filosofia e Artes e mestre'
doutora em Filosofia pela
Máquina misógina Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRG!
A q1,1estão da misoginia relacionada ao golpe é colunista da revista Cult.
contra a democracia vivida no Brasil atual ainda não
foi suficientemente analisada. Na tentativa de ex-
por seus fundamentos e seus efeitos redigi o texto
que segue a partir de minha participação como tes-
temunha no Tribunal Internacional em Defesa da
Democracia no Brasil presidido por Juarez Tavares
no Rio de Janeiro em 19 de julho de 2016.
Minha intenção é propor que analisemos o machis-
mo como um jogo de linguagem para que possamos
avaliar a função central da rnisoginia em suas operações. Ora, a rnisoginia é jogo de linguagem hegernônico, o jogo de linguagem do poder, mas,
o discurso de ódio contra as mulheres, um discurso que faz parte da histó- nesse caso, o jogo de linguagem machista que é sinônimo do poder.
ria do patriarcado, do sistema da dominação e dos privilégios masculinos, Para compreender essa ideia, convém colocar em questão que gover-
daquilo que podemos chamar de machismo estrutural, o machismo que no não representativo de Michel Temer se enuncia corno uma espécie
petrifica a sociedade em sua base e impede transformações democráticas. de ditadura do pater potestas, de uma soberania tirânica que subjuga
Quero dizer com isso que a luta pela democracia hoje se confunde com a e exclui o povo dos processos governamentais. Seu governo dá espaço
luta contra a rnisoginia e todos os ódios a ela associados no espectro amplo apenas ao homem branco capitalista, coronelista e colonialista e exclui,
do ódio à diferença. Mas a rnisoginia não é feita apenas de ódio, o afeto nesse gesto, a imensa população marcada por toda sorte de diferenças.
corno a inveja também merece atenção conforme falaremos adiante. Michel Temer vem a represe!Jtar um poder de caráter antiquado. A ex-
O que aconteceu com Dilma Rousseff nos faz saber que o poder tinção de ministérios e a retirada de representantes negros e mulheres,
violento do patriarcado não se volta apenas contra as mulheres, mas em outras palavras de todos os subrepresentados que se tornam agora
contra a democracia corno um todo, sobretudo na sua versão cada vez absolutamente não representados, é a prova do tom da política atual-
mais radical intimamente relacionada com as propostas do feminismo mente imposta corno um velho jogo de linguagem. Ora, quando dize-
corno luta por direitos ao longo do tempo. O que aconteceu com Dilma mos jogo de linguagem, queremos dizer dos processos discursivos, mas
Rousseff nos ensina a compreender o funcionamento de uma verdadei- não só. Tudo o que é simbólico, imaginário, todo o campo das repre-
ra máquina rnisógina, máquina do poder patriarcal, ora opressor, ora sentações, está em questão não só no que é dito e no que é feito, mas
sedutor, a máquina composta por todas as instituições, do Estado à fa- também no que é encenado.
mília, da Igreja à escola, máquina cuja função é impedir que as mulheres
cheguem ao poder e nele permaneçam.
Dilrna Rousseff é a personagem que está em jogo hoje em dia no Dilma, presidenta
Brasil e será necessariamente incluída em nossa história corno uma Di! ma Rousseff se confirma no gesto excludente e antidemocrático
grande heroína. É em torno de sua figura que todo um sistema de práti- de Michel Temer corno um tabu. Sabemos como u rn tabu pode virar to-
cas sedimentadas vem sendo desmontado. É em torno dela, figura cen- tem em termos de política. Não voltando ao seu cargo, sua chance de se
tral, que se desenvolvem todas as estratégias que movem a política no transformar em heroína histórica aumenta e ela pode ser tornar publi-
Brasil hoje. camente o que já é em seu fundamento: símbolo da representação das
Corno mulher, sacrificada politicamente nesse momento, indepen- mulheres extirpadas da política.
dentemente das críticas pontuais que possamos tecer acerca de seu Ela foi barrada do lugar ao qual chegou pelo voto que instaura a von-
governo, Dilrna se torna urna figura exemplar, altamente simbólica tade popular democrática e soberana. Lugar, diga-se de passagem, de
da democracia representativa, aquela mesma que é aniquilada nesse mulher que foi eleita.
momento pelo governo da traição golpista representada pela figura de É preciso, contudo, ponderar sobre o papel da reeleição em seu desti-
Michel Temer, personagem fundamental nessa história. Estamos dian- no político. Dilrna não apenas foi eleita, mas o foi duas vezes. Di! ma foi
te de personagens com narrativas, operadores, corno todos nós, de um a mulher reeleita. Isso incomodou as elites machistas e se intensificou

1 06 MARCIA TIBURI A MÁQUINA MISÓCINA E O FATOR DILMA ROUSS EFF NA POLfTJCA BRASILEIRA
quando, como reeleita, insistiu em ser chamada como "presidenta" e mas talvez não tivesse acontecido se ela não fosse mulher e se, como
não como presidente. mulher, não fosse tão diferente de tudo o que se pode esperar de uma
A autodenominação serviu de afronta ao poder patriarcal e pode ser mulher. No futuro, a expectativa plantada pelo governo do golpe é de
elencada entre os fatores que aceleraram o ódio - e também a inveja - que não seja mais possível que uma mulher venha a estar no cargo má-
despertado pela mulher que se afirmou como presidenta. Sabemos que ximo da política. E isso quer dizer que elas - e todos os sub-representa-
uma feminista desperta mais o ódio por se dizer feminista do que por dos- não terão lugar.
agir como uma feminista. O ódio à presidenta - com "a" e não com "e" O voto, todos sabemos, com ou sem novas eleições, já não significa
-é do nível da idiossincrasia fascista, um ódio idiossincrático, ou seja, nada no Brasil no estado de exceção velado em que estamos vivendo.
sem muita explicação, altamente gratuito, um ódio cujos motivos pare-
cem não existir. Mas o que realmente está em jogo no caso de uma pes-
soa que se autodefine como presidenta além de uma autoafirmação que Dilma, culpada e banida
pode levar ao ódio? Ora, o jogo de linguagem machista opera por hetero Di! ma Rousseff foi a primeira mulher eleita- e reeleita- prcsiden-
denominação e hetero determinação. Isso quer dizer: homens falam e ta de um país em que os números de participação feminina na política
dizem sobre mulheres. Ora, o poder é uma questão de voz, de discurso, são vergonhosos. Se cerca de 10% de mulheres estão presentes na vida
de quem fala e de quem escuta. O poder também se cria por meio do ato parlamentar é, no mínimo, sinal de que vivemos em um país em que
de falar sobre o outro. A categoria do "outro" é criada em um discurso. as mulheres não são bem-vindas na política. Atraso da nossa política?
Assim é que se cria a mulher ideal e, ao mesmo tempo, se demoniza a Certamente. E um país atrasado não é atrasado por acaso.
mulher fora do" ideal". Enquanto vimos há menos de um ano o primeiro ministro do
Fato é que Di! ma Rousseff, ao dizer-se "presidenta" causou mal-estar Canadá nomeando metade do seu ministério tendo em vista a paridade
ao machismo. Interrompeu, talvez sem perceber, o jogo de linguagem de gêneros, buscando assim uma representação contemporânea e atua-
machista da história da política no Brasil. Ao afirmar-se presidenta, ela lizada da democracia, no Brasil podemos dizer que estamos no século
se afirmou como eleita e reeleita potencializando seu lugar- único e pio- XI X. O governo atual não pretende sequer manter as aparências da de-
neiro- de representante justamente das mulheres, histórica e atualmen- mocrac_ia para não pegar mal. Honestidade e idoneidade não contaram
te ainda mais sub-representadas no cenário da democracia brasileira. para a escolha dos ministros do governo no golpe, por que a questão
No estado de exceção em que nos encontramos, em que a vigência da gênero deveria contar?
ilegalidade é a lei, a figura incomum e inadequada de Dilma Rousseff é Tocar na questão gênero quando se trata de falar de Dilma Rousseff
colocada à margem. Banida de seu cargo, lançada para fora do governo é chover no molhado, mas quando políticos do século XIX, eviden-
por não ser igual em nada - nem em gênero, nem em desonestidade - temente mumificados, que praticam entre nós o populismo da igno-
aos cleptocratas que a julgam hoje e usurpam seu lugar, Dilma Rousseff rância, vêm vociferando contra a expressão gênero, é uma chuva alta-
se torna hoje um fator político, aquele que define o lugar das mulheres mente política. Sabemos, desde Simone de Beauvoir, que ser mulher é
na política e, fundamentalmente, seu futuro em nosso país. Sabemos ser marcada por sua sexualidade. Gênero tem a ver com essa marcação.
"que o que aconteceu com Di! ma Rousseff pode acontecer com todos, A marcação a que me refiro é o jogo de linguagem do machismo do qual

lO 8 MARCIA TlllURI A MÁQUINA MISÓCINA ll O FATOR OILMA ROUSSEFF N/\ POtfTICA BRASILEIRA
saímos apenas no momento em que nos tornamos feministas. E temos e mesmo sem provas, enquanto que seus algozes seguem inocentados
nos tornado cada vez mais feministas. por eles mesmos. Para que possa ser a culpada, ela precisa ser transfor-
No contexto da misoginia, fala-se mal de mulheres de muitos mo- mada em vilã, mesmo que seja apenas uma vítima.
dos, seja inventando uma essência para elas, seja ocultando as heterode-
nominações que pesam sobre elas, seja criando e intensificando as ideo-
logias femininas, tais como a ideologia da maternidade, da juventude, Dilma, politicamente estuprada e invejada
da sensualidade, todas essas que fazem parte do sistema do machismo Aqui, sou obrigada a dizer que Dilma Rousseff viveu um estupro
estrutural. Todo esse sistema ideológico não prevê mulheres no poder. político. Ora, todo estupro é político porque o crime contra uma mu-
Porque o poder é coisa que os homens querem para eles. É evidente que lher sempre é político já que, desde Simone de Beauvoir, podemos di-
toda mulher vai ter que pagar um preço imenso quando tomar para si zer que a sexualidade é política. Uma mulher está para um homem na
alguma coisa desejada pelos homens. sociedade da cultura do estupro como é a nossa, como Dilma está para
A misoginia, cabe dizer, nunca é inocente. É preciso entender que os políticos que, mancomunados, tiraram-na de seu cargo. Como um
se ela está na base do golpe ela não é pouca coisa. Nenhuma misoginia estuprador que considera o corpo de uma mulher um objeto para seu
é pouca coisa. A misoginia é uma arma de espertos, assim como a igno- uso perverso, os golpistas olham para o corpo de quem ocupa o cargo,
rância (sobre a qual temos que falar mais a sério). Simbólica e prática, mas só quando esse corpo a presidir um cargo, é mulher. Por isso, olham
estamos diante de uma misoginia de resultados, gananciosa e compe- para esse corpo com o olhar do fabricante do caixão. Medem seu tama-
tente como seus defensores. nho, seu corte de cabelo, impõem-lhe as medidas que o homem branco
Sabemos que o capitalismo depende da culpabilização das pessoas, europeu e capitalista, que se entende como o dono do poder, inventou.
de trabalhadores, de negros cujos corpos são usurpados. Ora, não é di- Mas não se trata apenas disso, eles olham para essa mulher de mui-
ferente com as mulheres, o machismo é o sistema da culpabilização das tos modos o que nos obriga a pensar na condição desse olhar. De um
mulheres e Di! ma Rousseff foi, até agora, tratada como a grande culpa- lado podemos falar do olhar estuprador típico do desejo patriarcal que
da, culpada da "crise", culpada do golpe. Na televisão e no discurso do não se deve confundir com o todo do desejo masculino. Refiro-me ao
telespectador, vemos a construção da mulher culpada por tudo. Desde olhar daquele que objetifica o outro e que se serve dele para seus fins.
Eva, desde Pandora, qualquer mulher, seja mãe ou não seja, é educada Sobre isso, no jogo imaginário misógino, podemos lembrar da imagem
para sentir-se culpada. A culpa é estrutural, está arraigada e toda a so- de Dilma Rousseff na forma de um adesivo que circulou em carros du-
ciedade ajuda a sustentá-la. rante algum tempo, no exato instante em que, de pernas abertas, era
Ora, o machismo sempre foi a melhor e mais inteligente estratégia invadida por uma peniana bomba de gasolina. Mas podemos também
política, uma grande estratégia de banimento das mulheres da política e lembrar do personagem símbolo do estupro político que é o deputado
de sua culpabilização. A grande estratégia da exclusão de metade da po- Jair Bolsonaro, que se posicionou como o grande estuprador em poten-
pulação mundial. Agora essa estratégia é usada contra Dilma Rousseff, cial contra Maria do Rosário e que, no dia 17 de abril no momento da vo-
uma mulher que só pode ser excluída porque, primeiro, foi culpabili- tação do impeachment, elogiou o conhecido torturador coronel Ustra
zada. E, culpabilizada, já foi punida, mesmo antes de seu julgamento como o "terror de Di! ma Rousseff". Nesse caso, não podemos falar de

110 M/I.RCI/1. TIUUill A MÁQUIN/1. MISÓGIN/1. I! O FATOR DILM/1. llOUSSEPF N/1. POLiTICA BRASILI!IIl/1.
um olhar de desejo sexual, mas de um olhar de culpabilização- típico sua condição de veste do poder, no flagrante do olhar caído de Michel
do estuprador que precisa culpar a mulher de saias para tornar-se apto a Temer.
violentá-la. Esse olhar responde por um desejo obtuso que se expressa Dilma Rousseff, além de tudo, não é a mulher dos moldes da bran-
como violência sexual. quitude burguesa, europeia e obediente. Ela está longe de ser a "bela,
Nesse caso, temos que falar de um outro olhar que, a meu ver, entra recatada e do lar" que, conforme vimos na mídia golpista, pode-se ter
na constelação misógina. Esse olhar implica o afeto da inveja. É o olhar à cama nos tempos do machismo narcísico e impotente. Contra isso,
conhecido como "olho grande", ou "olho gordo". A inveja é a impotên- revistas tentaram fazê-la passar por louca, má, agressiva, doente.
cia para o desejo. A inveja é !esponsável por todo tipo de violência co- Manipulações da imagem fazem parte da era do espetáculo político.
varde. Para além da mística em tomo da potência cancelada da inveja, é Desde o abnóxio segund<;> colocado, neto de vovô, até o vice-presi-
preciso ter em vista que subestimamos há muito a potência dos afeto s dente, troféu dos menos votados de seu partido (partido, aliás, acos-
em termos de racionalidade política. Vimos, contudo, o papel do ódio tumado a presidentes não eleitos pelo voto), ilegítimo em seu cargo
entre nós. É o caso de vermos também o papel da inveja. A inveja quase interino, passando pelo ladrão histórico que renunciou há poucos dias
não se expressa, ela se oculta, porque é covarde. O desejo é o seu oposto. -todos representantes máximos entre nós do que podemos chamar de
O desejo está para a potência como a inveja está para a impotência. ridículo político - todos desejam ser a presidenta. Desejam e não po-
Sabemos que o estuprador não tem desejo. Ele odeia e, no fundo, tal- dem porque não têm votos, nem poder, só a violência da politicagem.
vez inveje. Não é o desejo que olha para Dilma, mas a impotência de um Cuidado com a inveja masculina que historicamente inventou a in-
homem que olha para ela. E esse olhar é destrutivo. veja feminina num golpe de mestre da misoginia histórica.
Não podemos crer que, sendo o poder patriarcal, capitalista, branco,
sendo o poder que impera no Brasil, um poder colonial (de um colonia-
lismo que vem de fora, mas que também foi introjetado pelos que hoje "Aquela mulher": ideologias machistas contra o
estão dentro) que aqueles que sempre o representaram ficariam de bem gênero feminino
- isentos de inveja - com uma figura como Dilma Rousseff no seu posto Dilma Rousseff é uma mulher e como toda mulher terá que pagar
máximo. Além de morrerem politicamente nas urnas, morreram de in- pelas r~gras compulsórias que regem suas vidas no contexto do ma-
veja. Por isso desrespeitam o voto. A inveja do mau perdedor, do menos chismo como ideologia. É a ideologia patriarcal que constrói a ideologia
votado, do inelegível, do impopular, do pouco popular. da maternidade, a ideologia da sensualidade e a ideologia da beleza que
Morreram politicamente nas urnas e depois morreram de inveja - homens, sobretudo os brancos, tanto quanto as igrejas, os partidos, a
passaram todos os recibos - de não poderem usar aquilo que em sua publicidade, a mídia e a sociedade civil de um modo geral jogam sobre
mente autoritária seria simplesmente seu. Se prestarmos atenção no as mulheres sempre renovando, pela violência simbólica e estrutural, a
inconsciente ótico revelado na iconografia das redes sociais, nos provi- alienação de suas vidas e corpos como se faz há milênios.
denciou a imagem de Temer no corpo de Dilma Rousseff com o vesti- Mulheres, como outros trabalhadores, são oprimidas e seduzidas
do da posse. Talvez o poder fosse seu e do mesmo modo o vestido, em para que não pensem e não ajam de modo a desconstruir o que está mui-
to bem guardado por conservadores. Dilma Rousseff foi confrontada

li 2 MI\RCII\ TIDUR I 1\ MÁQUINI\ MISÓCINI\ E O FI\TOR D II.MI\ ROUSSIIFF Nl\ POLfTICI\ DRI\SII.IIIRI\
a todo o momento com aqueles quesitos do jogo de linguagem misó- político entre nós, como o boçal invejoso, implicou o ato simbólico de
gino que sustenta a ideologia machista às vezes de modo mais velado, esvaziar a política de seu sentido. Como ele conquistou essa façanha?
às vezes de um modo mais escancarado, como acontece com todas as Tirando a representação da cena.
mulheres que chegam ao poder. A qualquer tipo de poder. Imaginem Se na modesta e capenga democracia brasileira denunciamos há mui-
o que deve ser chegar ao poder quanto tantos inelegíveis tem você na to pouco a sub-representação de mulheres, e de mulheres negras, de ne-
mira de suas armas e quando a maledicência é uma arma poderosa nos gros, indígenas, quilombolas, lésbicas, de todos os grupos jogados no
tempos midiáticos, em que televisão e redes sociais elevam o verbal e o campo infindável, imenso, das minorias, o governo gol pista vem deixar
discursivo ao mais importante de todos os capitais. claro que democracia não é o seu forte. Pensando que está no tempo dos
Dilma Rousseff tornou-se, no contexto da misoginia diária, sempre colonizadores e dos coronéis. que do século XIX, sua escola antiquada,
estimulada pela mídia, "aquela mulher". Seu nome próprio desaparecia pensando que governará ilegitimamente deitado em seu esquife de
diariamente, num sinal de evidente falta de respeito. vampiro sugando o pescoço de nossa democracia jovem, guerrilheira
Dilma Rousseff foi sempre objeto da vileza política seja ao nível ins- e adolescente, o governo do golpe continua mirando o povo com seus
titucional, seja ao nível aberto do político no qual todos exercem seus olhos capitalistas de fabricante de caixão. Com a típica covardia mas-
ideais e repetem os clichês da tendência dominante bem trabalhados culina, Michel Temer, o invotável, usurpou o lugar da presidenta eleita
pela publicidade midiática que serve como prótese de pensamento dos legitimamente e instaurou um estado de exceção em que leis não tem
ex-cidadãos transformados em telespectadores e idiotas, esvaziados de mais vigência. Um estado de exceção invisível, analfabeto político, au-
sensibilidade e inteligência moral em nossa época. toritário e cínico.

Misoginia como razão de estado Misoginia e luta por hegemonia


Com a saída da presidenta, a misoginia torna-se razão de estado. É o Política é luta por hegemonia. O jogo do poder é um jogo de manu-
todo da política de governo. Em termos práticos, isso quer dizer o fim tenção do próprio poder, mesmo que o poder tenha que se tornar vio-
do Ministério das mulheres, da igualdade racial, da cultura, da comuni- lento para isso. Um reconhecimento do inimigo sempre foi necessário.
cação, do que mais tiver relação com uma política capaz de reconhecer Todo governo tem seu inimigo e se deve levá-lo a sério. A direita
pautas relacionadas a direitos fundamentais. Uma política capaz de re- combate a esquerda, e vice versa. Os capitalistas sempre combateram os
conhecer a importância da participação popular. Uma política capaz de comunistas e vice versa. Um governo autoritário combate a democracia
representar os cidadãos. É o fim da democracia representativa. de todos os modos, nas formas mais veladas.
Autorização coletiva para o machismo em todos os níveis, o racismo, Ora, o inimigo existe ou é criado. As mulheres foram criadas pela
os preconceitos de gênero, em uma palavra é o fascismo como negação misoginia histórica como inimigas dos homens e delas mesmas. Assim
do outro o que entra em cena com o fim da representação. O governo foi com Di! ma Rousseff reduzida a ser "aquela mulher" cujo nome as
se expõe, mas de modo cínico. O rito governamental de Michel Temer, pessoas pararam de pronunciar como não se pronuncia o nome do
que entrará para a história como o magno representante do ridículo Diabo, ou um palavrão. Ora, todo poder, todo governo combate aquele

114 MARCIA TIBURI A MÁQUINA MISÓCINA E 0 FATOR DILMA ROUSSEFF NA POLfTICA BRASILEIRA
que o fragiliza. O combate que o governo ilegítimo Temer tem em rela-
ção às minorias é do mesmo teor do combate às mulheres e à presidenta
Dilma que se tornou uma heroína fundamenta l, uma verdadeira metá-
fora da democracia em seu estágio atual, o da representação feminina.
Não é momento para debater isso, mas no dia em que as mulheres des-
cobrirem que o patriarcado é um inimigo sério, no dia em que o povo
perceber que o neoliberalismo e toda a religião capitalista são seus ini-
migos, aí sim, teremos uma revolução.
O governo Temer expõe-se como governo do golpe, uma abjeção po-
lítica organizada por anos, na estratégia que culminou no afastamento
da presidenta. O golpe começou com um combate diário, desde que a
prcsidenta era candidata. Esse combate é velho e é misógino. Mulh er, ne g ra, favel ada e
A permanência da misoginia é a vitória do autoritarismo antidemo- pa rlam en tar: re s istir é
crático instaurado hoje no Brasil. Se há machismo estrutural é porque pl eona sm o
há um sistema de privilégios masculino que depende das práticas e dos
discursos m isóginos. Marielle Franco*
Parece-me que a responsabilidade de todos nós que respeitamos a
democracia é combater a misoginia. Hoje, lutar por democracia se con-
firma como luta contra a misoginia, ou seja, como desmontagem da
máquina misógina, aquela mesma para a qual Dilma Rousseff apontou *Vereadora do Partido
Socialista (PSOL-Rio).
ao d izer-se presidcnta. Ésocióloga formada pela
A questão do golpe contra Dilma Rousseff nos coloca hoje essa gran- Introdução Pontifícia Universidade C;
do Rio de janeiro (PU C-Ri
de questão. Não haverá democracia se houver misoginia, pois a miso- O golpe no Brasil, e não estou falando de 1964, e mestra em Administraç~
ginia carrega o princípio da negação do outro que nos coloca agora no foi uma ação autoritária, feita com a utilização do Pública pela Universidade
Fede ral Fluminense (UFF)
atual esvaziamento do estado de direito e do fim da democracia que arcabouço legal brasileiro em pleno século XXI.
sempre será a única esperança que podemos ter na política. Os principais atores desse cenário? De um lado a
presidenta, mulher, vista por parcela da população
como de esquerda. De outro lado um homem, bran-
co, visto por parcela expressiva das pessoas como de
direita e socialmente inserido nas classes dominan-
tes. Essa conjuntura do golpe, màrcada pela altera-
ção da correlação de forças políticas, também cravou

116 MAR C IA TJBURI


alterações sociais significativas na esfera do poder do Estado e no ima- desigualdades, com políticas para construção de um Brasil com condi-
ginário popular. Trata-se de um período histórico em que se ampliam ções de vida mais dignas para todas as pessoas. Sabíamos que a concilia-
as desigualdades, pelas retiradas de direitos de um lado e, por outro, ção de classe tinha limites, e um governo ancorado em tal arquitetura,
a discriminação e a criminalização de jovens pobres e das mulheres, não reuniria forças para superar as desigualdades. Nesse caso, questões
principalmente as mais pobres. fundamentais, como o genocídio dos povos indígenas e da juventude
No mesmo período outros elementos pulsam na cidade carioca com negra, percebem-se limitadas para acumular políticas públicas e um ar-
caracterizações distintas para a conformação política da ordem nacio- cabouço legal que possa superar tal situação.
nal e do imaginário predominante. Para uma mulher favelada, negra c O governo ilegítimo, no entanto, dá mais força às elites políticas e
que se assume politicamente de esquerda, ser eleita com mais de 45 mil econômicas que sempre estiyeram no poder e reage às manifestações
votos é um marco eleitoral histórico. Tais contradições, antinomias de populares com forte repressão policial. Temer assumiu a incumbência
um mesmo ambiente, com diferentes escalas, protagonizam o cenário. de aprovar as reformas estruturais da forma como foram pensadas pelos
Enquanto esteve à frente da presidência da república, Dilma Rousseff grandes empresários e pelas instituições financeiras internacionais. As
enfrentou vários desafios relacionados ao fato de ser a primeira mulher contrarreformas trabalhistas e da previdência, por exemplo, são peças
a ocupar aquele espaço de poder e de ter no prédio ao lado o Congresso fundamentais para destruir os direitos das mulheres, principalmente
Nacional mais conservador da nossa história. Não por acaso, seu im- das que vivem dos seus trabalhos ou em condições nas quais o trabalho
peachment revelou logo a sua faceta patriarcal, com ameaças cotidia- de suas famílias são os meios de manutenção de suas sobrevivências.
nas às conquistas históricas dos movimentos de mulheres e feminista s. Num país com alarmantes desigualdades de gênero que temos, lo-
Nossa ação política, portanto, identifica com importância significativa cal onde as mulheres recebem salários menores, as mulheres têm mais
a ocupação de espaços de poder, inclusive institucionais, contribuindo dificuldade de serem empregadas em trabalhos formais, sofrem mais
para criar ambientes nos quais mais mulheres tenham voz e visibilida- com o desemprego e ainda são sobrecarregadas com a dupla ou tripla
de para pautar nossas demandas em todos os lugares. jornada, as superações e conquistas são desafios diários. Se já é difícil
Os estereótipos associados ao que é ser uma mulher e as expectati- para as trabalhadoras domésticas atingirem os 15 anos de contribuição
vas sobre como devemos nos comportar são facetas do discurso conser- previdenciária, imagina para alcançar os 25 anos propostos no projeto
vador. Movimento esse que ganha força, em escala internacional, tendo de lei enviado ao Congresso?
em vista que o outro, a outra, o corpo que não compõe o grupo social de O golpe atinge social, econômica e simbolicamente a maioria da po-
poder tende a ser "colocado para fora" ou "impedido" de conviver, com pulação, mas chega com força destruidora para todas nós, mulheres.
suas "diferenças" pelas classes dominantes. Com a fal ácia da narrati- A repercussão dessa onda toma todo o país em níveis nacional, nas uni-
va de "crise econômica", busca-se derrubar os direitos conquistados e dades federativas e nos municípios, com grande impacto nas cidades.
uma vez feito, nós, mulheres negras, estaremos ainda mais vulneráveis Antes mesmo do impeachment, os protestos da Primavera das
à violência c ao racismo cotidiano. Para além de resistir, trata-se de ação Mulheres chamaram a atenção para o absurdo do projeto de lei que
fundamenta l alterar tal correlação de forças a nosso favor. dificultava o acesso ao aborto nos casos já permitidos legalmente.
Apesar das nossas críticas aos governos petistas, nossa luta sem- As Marchas das Margaridas c das Mu lheres Negras, em Brasília,
pre foi baseada na perspectiva de mais direitos, com enfrentamento às

11 8 MARI ELLI! PI\ANCO MULHI! R, NP.CRA, PAVI!LAOA E PARLAMENTAR


mostraram a força do nosso movimento e transversalidade das nossas agir. Como mulher, negra, com origem na favela da Maré, feminista por
pautas. No último 8 de março, uma aliança internacional levou milha- convicção, assumi o desafio de ocupar a câmara municipal do Rio com
res de mulheres às ruas contra as reformas trabalhista e da previdência. as nossas pautas. Para além disso, assumi o desafio de conquistar um
Estamos, portanto, organizadas, ocupando ruas e os vários cenários espaço determinante para uma estética popular que consiga articular
públicos de diversas maneiras, com outros movimentos sociais, apesar com os sujeitos estratégicos para barrar o avanço do capital e constituir
da dura repressão contra esses atos. Descriminalizar, barrar derrubadas ambientes nos quais os direitos às diferenças, à vida e a dignidade hu-
de direitos e avançar no direito à diferença e às conquistas sociais e eco- mana sejam determinantes. Portanto, a empatia com mulheres, negros
nômicas são desafios que assumimos para o presente. e mais pobres, são elementos centrais para enfrentar, barrar e superar os
Estamos confiantes, portanto, de que ter um gabinete formado ma- projetos dos" donos do pode('.
joritariamente por mulheres, voltado para os temas de gênero, favela e
negritude, reunirá forças para criar ambientes favoráveis para os em-
bates atuais. O diálogo com outras mulheres que ocupam papel de re- A cidade do Rio
presentação, no Estado ou na sociedade civil, assim como com outros O Rio de Janeiro possui uma história que, em muito, o diferencia
setores explorados, marginalizados e oprimidos, será uma estética cla- de outras metrópoles brasileiras. Na maior parte de sua existência foi
ra para forjar novos ambientes favoráveis para barrar a onda das classes capital do Brasil, passando a ser unidade federativa com uma só cidade
dominantes e obter novas conquistas. Precisamos cultivar o bom senso para em seguida, somente em 1975, integrar-se ao estado fluminense.
para construir uma nova estética política na perspectiva de articular gê- Condições sui generis, inclusive para criar uma identidade metropoli-
nero, raça, classe e territórios populares para que a vida das pessoas seja tana em uma cidade que é uma grande metrópole. Afinal, a cidade na
colocada acima do lucro. qual vivemos está incluída entre asso maiores cidades do mundo. Nos
Pode-se afirmar que uma das grandes vitórias da burguesia, das clas- últimos anos, viveu-se, neste local, o poder político controlado pelo
ses dominantes brasileiras, foi construir uma cultura na qual predomi- PMDB, no governo estadual e na prefeitura (até as eleições de 2016).
na um estigma entre pobres e ricos de que o maior problema do Brasil É importante destacar como são grandes as contradições que ainda
seja a corrupção. Um discurso moral, com latência imediata na vida das fluem na cidade, e um desses exemplos foi a eleição, ao mesmo tempo,
pessoas. Com isso, nós da esquerda ficamos em situação desfavorável para a Câmara Federal, de Eduardo Cunha, figura chave do processo de
na correlação de forças, com consequência destruidora para os mais po- impeachment, e a Jean Wyllys, defensor da causa da LGBT.
bres. Enfrentar e superar as desigualdades são desafios atuais, contem- A minha trajetória na coordenação da Comissão de Direitos
porâneos, que estão colocados para nós, para o nosso mando, para nossa Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) me co-
ação de transformação social por uma vida mais digna e para a grande locou em contato também com as consequências diretas do projeto,
estratégia de superação do capitalismo. predominantemente racista e machista, implementado pelo PMDB.
Neste ensaio, quero pontuar os desafios que essa conjuntura tem nos O projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) que, apesar de ter
colocado e algumas soluções que estamos criando a partir do mandato, sido premiado internacionalmente, colocou-nos num cenário desola-
com as possibilidades de escala de mudanças que podemos interagir e dor, sobretudo diante da crise pela qual passa o governo fluminense.

12 0 MARIIJLLil F RAN CO MULHER, NEGRA, FAVELADA ll PARLAMENTAR


Principal m arca desse cenário é a violência e o número de mortes que da legislação em prol do direito à moradia, como o estatuto das cidades.
segue ampliando assustadoramente, por conta dos confrontos diários, (KONCHINSKI, 2015; PARKIN, 2015)
espalhando-se pela cidade, de forma mais notória nas favelas das Zonas Com as consequências da falta da moradia e da falta de referência
Norte e Oeste e nos territórios populares. E pode ficar ainda pior soma- territorial, pois foram removidas, as famíli as lutaram, com suas pos-
do à situação do país e à incapacidade de construir um direito criminal sibilidades e condições, para ter seus direitos reconhecidos, ter um lu-
sustentado da defesa da vida e não na ampliação das punições. gar para onde ir, algum tipo de amparo pelo Estado. A história da Vila
O t rabalho na comissão me fez perceber que no Rio de Janeiro era Autódromo é muito significativa, pois é com as mais bravas guerreiras
preciso defender o que já deveria ser universalmente óbvio, a vida: que da Vila no processo de resistência, que renovo minha certeza de levar
havia direitos fundamentais a serem respeitados; que as favelas são vis- adiante a ideia de construir um mandato voltado para as lutas das mu-
tas como local de medo, miséria e "bandidos", mas são territórios de lheres em todos os campos.
potência e sofrem o peso da falta dos investimentos do Estado, não é Quando lançamos a candidatura de Marcelo Freixo à prefeitura,
natural o que nelas ocorre; que é preciso pensar e praticar uma política pelo PSOL, nossa proposta era se contrapor ao projeto de cidade imple-
de segurança pública ampla, integrada a uma perspectiva social que sir- mentado por Eduardo Paes. Nós defendemos um Rio para as pessoas.
va para defender a vida. Inúmeras famílias, mães, irmãs, avós estão pas- Embora não tenhamos chegado à prefeitura, nossa campanha foi vito -
sando pelo pior: a perda de seus filhos, filhas e entes queridos, além da riosa: chegamos ao segundo turno e elegemos uma bancada de seis ve-
convivência diária com a militarização e a violência por parte do Estado readores na Câmara Municipal.
no d ito combate ao tráfico e por parte dos grupos criminosos; o que Como feminista, é um desafio ter, pela primeira vez, um prefeito
causa efeitos psicológicos e físicos imensuráveis. Soluções como o uso que é bispo, ligado a uma das maiores igrejas do país, com o risco de
de argamassa blindada nas escolas não blindarão os corpos vulneráveis construir, na cidade, uma estética mais pigmentada pela conduta reli-
a essa violação diária de direitos. giosa que pela postura laica. Nossa primeira prova de fogo no mandato
As questões territoriais na cidade ampliam as desigualdades em foi a audiência pública do Plano Municipal de Educação que, apesar da
formas e condições muito elevadas. Um exemplo simbólico disso foi sua importância e amplitude, foi marcada pelo debate sobre "ideologia
o ocorrido na Vila Autódromo durante o governo do último prefeito. de gênero" e "escola sem partido". Como acontece no âmbito nacional,
Posicionada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, esse território popular há um d iscurso organizado que dizima as propostas em prol de uma
viveu os efeitos nefastos que as remoções e desapropriações feitas em educação mais diversa e inclusiva. Reduz as nossas necessidades da
nome de projetos nos quais o lucro tem mais importância que a vida pauta- que são muitas- a um debate vazio.
das pessoas: os megaeventos e os equipamentos esportivos para as Apesar de todos esses desafios, não ficaremos na defensiva, rea-
Olimpíadas e Copa do Mundo. Entre 20 09 e 2013, 20.299 famílias (cer- gindo aos avanços que o conservadorismo nos impõe. O feminismo
ca de 67 mil pessoas) foram removidas de suas casas pela prefeitura. cresceu muito nos últimos anos, está ocupando as redes e as ruas com
Outras milhares -não se sabe o número exato - tiveram as casas de- emblemáticas campanhas, performances e textos provocadores. É com
sapropriadas por decreto, d~srespe itando marcos jurídicos importante esse dinamismo que estamos construindo nossas propostas.

I 21 MIIR I ELLR PI\1\NCO MULIIUR, NEGRII, PI\Vll LI\ 011 IJ I'IIIt L IIMilNTAR

t
Tornar legal é determinante para a realidade na criação de espaços noturnos para as crianças, que garantiriam que elas
qual vivemos pudessem permanecer nos espaços de educação infantil realizando ati-
Em 2015, milhares de mulheres foram às ruas contra o Projeto de vidades extras, lúdicas, diversas ou descansando. O objetivo é garantir
Lei (PL) so6g/2013. O referido projeto tinha como objetivo dificul- que as mulheres possam ter maior liberdade de atuar no mercado de tra-
tar o acesso das mulheres vítimas de violência sexual às informações balho, pois os limites de horários da educação infantil hoje são um dos
e procedimentos sobre o aborto, direito garantido por lei. A chamada fatores que afetam diretamente a empregabilidade das mulheres.
Primavera das Mulheres tomou as ruas do país e fez do movimento fe- Nosso objetivo não é deixar as crianças por tempo demais nas cre-
minista um canal importante nas lutas dos movimentos da conjuntura ches, nem forçá-las a uma carga excessiva de estudos, mas encontrar um
pré-golpe. equilíbrio dos horários c tipC?S de atividades para que as mães não pre-
As manifestações inspiraram a minha campanha e o meu compro- cisem ter que abandonar o emprego, recorrer ao trabalho informal ou
misso em fazer um mandato afinado as pautas do movimento femi- contar com sobrecarregar outras mulheres da família.
nista. Por isso, o primeiro PL que apresentei na Câmara de Vereadoras Assim seguimos para a construção de um mandato parlamentar,
e Vereadores foi um projeto de programa que garante o atendimento comprometido com a vida, em suas múltiplas dimensões com refe-
humanizado às mulheres que têm o direito de interromper a gravidez. rência clara nas pessoas que são exploradas, marginalizadas, discrimi-
Hoje, a lei garante este direito em três situações: casos de anencefalia, nadas e interditadas por uma cidade dos poderosos. Avançamos para
risco de morte para a mulher e nos casos de gravidez em decorrência de construir insumos que contribuam para potencializar que mulheres,
estupro. (BRASIL, 1940, 2012) negros, pobres, assumam o papel de sujeitos para uma cidadania ativa.
Apesar disso, muitas mulheres não sabem que têm esse direito, sem Conquistar uma cidade de direitos é uma ação fundamental para a re-
contar os profissionais que se negam a fazer o atendimento, alegando volução no contemporâneo. E esse é o nosso lugar, esses são os desafios
objeção de consciência - quando se sentem impedidos de fazer algo colocados para o nosso mandato.
que vai de encontro com a sua convicção religiosa-, deixando as mu-
lheres à própria sorte. Entre 2013 e 2015, 52% das mulheres que procu-
raram os hospitais para realizar um aborto legal não foram atendidas. Referências
(MADEIRO; DINIZ, 2016) BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de7 de dezembro de 1940. Código penal.
Diário Oficial, Poder Executivo, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. Seção 1,
O que nós queremos com o PL é garantir que as mulheres sejam aten-
p. 23911, art. 128.
didas de forma segura e humanizada e que não tenham que levar adian-
te uma gravidez decorrente de uma violência tão grave como o estupro. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento
de preceito jundamentals4, de 12 de abril de 2012. Brasília, DF, 2012.
Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
Espaço Coruja jsp?docTP=TP&.doclD=3707334>. Acesso em: 15 jul. 2017.

Eu fui mãe adolescente e sei bem as dificuldades de cuidar dos filhos KONCH INSKI, V. Paes muda discurso e desapropria sem acordo casa
e conseguir trabalhar. Por isso, outro projeto que apresentamos foi o de de vizinhos da Rio-2016. UOL Olímpiadas, Rio de Janeiro, 21 mar. 2015.

12 4 MA R IELL B FRANCO MULH E R, N il CIIA, P AV il LADA E PARLAMBNTAR


Disponível em: <https://olimpiadas.uol.com.br/videos/?id=policia-
federal-cumpre-mandado-de-busca-e-apreensao-na-casa-de-nuzman-
04028C99396ACogg6326>. Acesso em: 22 mar. 2017.
MADEIRO, A. P.; OINIZ, D. Serviços de aborto legal no Brasil-um
estudo nacional. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2,
p. 563-572,2016.
PARKIN, B. Prefeito anuncia desapropriação na Vila Autódromo, e MIT
critica política da prefeitura. Rioonwatch: relatos das favelas cariocas,
Rio de Janeiro, 27 mar. 2015. Disponível em: <http://rioonwatch.org.
br/?p=t38tt>. Acesso em: 27 mar. 2017.

O golpe de 2016 e a
demoniz açã o d e gê n ero 1

M a r y Garcia Castro*

*Professora aposentada c
Universidade Federal da B
Tomando altura (UFBA), pesquisadora da
A intenção deste ensaio• sobre o tema sugerido, Faculdade latino-america
de Ciências Sociais (FLAC
"o golpe na perspectiva de gênero", é um texto de- Brasil) e bolsista do Consc
sorden~dol em que se joga com teses de alguns au- Nacional de Desenvolvim
Científico e Tecnológico
tores, como a de Heleith Saffioti (2004) sobre oca- (CNPq).
ráter de formação capitalista da sociedade brasileira
por u ma "ordem patriarcal de gênero" e as de Terry
Eagleton (2015), que em livro com o sugestivo títu lo
Esperança, sem otimismo nos anima ao identificar,
no ataque ao que se anunciava como ondas libertá-
rias, o medo:

126 MAIII BLLI! FRANCO


O fundamentalismo tem suas raízes não no ódio, mas no medo, o medo de um da falocracia, do a~drocentrismo, da primazia masculina. t por conseguinte um con-
mundo moderno e mutante, em que tudo está em movimento, onde a realidade é ceito de ordem política. E poderia ser de outr~ ordem, se o objetivo das(os) feminis-
transitória e com um final não definido, onde as certezas e os pilares mais sólidos tas consiste em transformar a sociedade, eliminando as desigualdades, as injustiças,
parecem ter desaparecido. Nesse sentido, é a outra face do pós-modernismo. as iniquidades, e instaurando a igualdade?
(GUMUCIO, 2016)
Ainda em nível de cruzeiro, ensaio o gesto de destacar que tal for-
Eagleton (2015) mais anima ao sugerir que "a luta continua" porque mação de gênero patriarcal capitalista teve, no impeachment da presi-
estar na luta seria a nossa sorte. Ainda que sem profecias ou otimismo, denta Dilma Rousseff, ponto de destaque, mas que vinha há muito se
exalta a esperança, porque estamos nos movendo, as ruas fervilham modelando, legitimando-se junto ao povo, aproveitando o difundido
em manifestações contra o golpe e nessas as mulheres se destacam. analfabetismo político, tanto por alianças com pares, como pelo fun-
Segundo ele: damentalismo religioso, de agências no poder midiático, no judiciário
e no legislativo e pelo cultivo do medo à perda de privilégios, ao outro,
A esperança é um tipo de desejo, mas um que o vincula com um tipo de expectativa. a outra não igual, apelo a inseguranças e à demonização de indícios de
A esperança tem que ser, de alguma forma, viável; tem que ser possfvel de ser reali- viradas libertárias pregadas como ameaças à norma, à lei do pai, ao pa-
zada, enquanto o desejo pode não ser. (GUMUCIO, 2016) triarca.4
O processo de analfabetismo político contou com a omissão de uma
Recorre-se ao conceito de ordem patriarcal de gênero {SAFFIOTI, esquerda arrogante que, para garantir p<;>der formal na política por re-
2004), tendo gênero tanto como estruturante de relações simbólicas e presentatividade e um projeto de desenvolvimento econômico com-
materiais do normatizado como ser ou estar homem ou mulher, assim petitivo e de integração na ordem econômico mundial, deixou campo
como da crítica a tal modelagem das relações sociais. Já a combinação aberto para tal escalada político-econômico-cultural de direita, já que
gênero e patriarcado sublinha o acento em poder de dominação, lingua- as pugnas por reconhecimento e distribuição de bens e oportunidades
gem que embasa instituições, qualifica e hierarquiza mais além do sexo que focalizam categorias como gênero, raça/etnicidade, sexualidade e
biológico. geração, assim como orientadas por vetores de sustentabilidade ecoló-
Sobre o trânsito e fronteiras entre os conceitos de gênero e de pa- gica, dignidade e do bem viver seriam em tal projeto marginalizadas
triarcado e sua utilidade no debate sobre cultura no capitalismo, escla- como políticas identitárias, desviantes da unidade necessária entre tra-
rece Saffioti (2004, p. 36): balhadores/trabalhadoras para a luta de classe, concebida como restri-
ta ao campo das relações econômicas, ou, no caso da esquerda liberal
Não se trata de abolir o uso do conceito de gênero, mas de eliminar sua utilização
ou sócio-democrática, contradições que se resolveriam por injunções
exclusiva. Gênero é um conceito por demais palatável, porque é excessivamente ge-
pontuais.
ral, a-histórico, apolftico e pretensamente neutro [-1· O patriarcado ou ordem pa-
Mas gênero e raça/etnicidade são processos organizatórios que sus-
triarcal de gênero, ao contrário, como vem explicito em seu nome, só se aplica a uma
tentam uma formação capitalista-patriarcal-racista, não somente ins-
fase histórica, não tendo a pretensão da generalidade nem da neutralidade e deixan-
crições individualizadas no corpo, cujas colonial idades e subordinações
do propositadamente explicito o vetor da dominação-exploração [...].Trata-se, pois,

MARY GAR C IA C A S TRO O GOLP E DE ~01 6 E A D E M O NIZAÇÃO DE CilN I! RO


terminariam contempladas com políticas e programas compensatórios estávamos no poder e dessa posição poderíamos avançar alguma eman-
para algumas mulheres, alguns negros, alguns indígenas, alguns dos ti- cipação política.
dos corno pessoas LGBTTQ, alguns jovens e alguns velhos. Contávamos com cargos, maquinarias para direitos humanos, con-
Se o ataque mais direto a direitos humanos das mulheres se dá no quistamos leis avançadas contra violências nas relações sociais entre os
governo Temer, há que ter claro que o processo de subalternidade da sexos, contra discriminações raciais e de proteção a vulnerabilizadxs.
trabalhadora, principalmente se negra, no terreno da economia, não é Estávamos institucionalizadxs.
novo, mas em muito se agudizará, no projeto neoliberal em curso: Óbvio que tal reflexão é uma hipérbole, a realidade é mais comple-
xa e na correlação de forças não éramos poder. Tal apelação retórica é
A imensa maioria dos trabalhadores precarizados é formada por mulheres. Somos mais para sublinhar a irnp<?rtância da educação formal e aquela que,
70% [segundo estudo elaborado pela CUT em 2015) da mão de obra terceirizada por diversos meios, apela para o combate ao analfabetismo político e
do País. Assim, podemos afirmar que a t erceirização tem rosto de mulher, principal- em especial sobre as potencialidades do ativismo/consciência em gêne-
mente de mulheres. negras. Essa realidade combinada aos cortes na educação e na ro e raça/etnicidade para "cidadanias insurgentes" (HOLSTON, 2013)
saúde, impactará brutalmente a vida da mulher trabalhadora, que em sua maioria tanto contra violências sexualizadas ou baseadas em estereótipos sobre
arca sozinha com as responsabilidades da famrlia. sexo/gênero como para um pensamento crítico sobre o sistema como
um todo. Haveria que ter investido mais na perspectiva da interseccio-
A Reforma Trabalhista, que isentará as empresas de arcarem com licença materni-
nalidade- destacada contribuição do" feminismo negro" 6 - mas não só
dade e outros direitos adquiridos pelas mulheres, vem acompanhada da nefasta
de inscrições individualizadas, e sim como enlace de processos simbó-
Reforma da Previdência, que quer estabelecer que trabalhemos "até morrer".
licos e materiais que fortalecem classes de subordinações e se rebelem
contra um estado de exceção, como o vigente no Brasil e que ironica-
O projeto original da reforma previdenciária acaba com a diferença de idade entre
mente, mas não acidentalmente, derrubou uma mulher da presidência
homens e mulheres para se aposentar, igualando o tempo de contribuição, mesmo
e vem minando conquistas de várixs subalternizadxs.
com as mulheres trabalhando mais por causa da dupla jornada e começando a tra-
Mas o agito de muitos contra o golpe ilustra a propriedade do acento
balhar ma i~ cedo informalmente, fruto do trabalho doméstico, que isenta o Estado
na esperança, como sugerido por Eagleton (2015).
da obrigação com o cuidado e manutenção das famílias. (MACHADO, 2017, p. 124}

Segundo Ieda Castro, feminista, ex-gestora do governo Dilma: 'Faltou às gestões


A serpente do neofascismo foi se criando, alimentando-se de um
anteriores investir na educação política. Queríamos tanto que as políticas aconte·
moralismo oportunista que reificou os males do sistema em um sinto-
cessem que não fizemos a educação política. Agora é hora de conquistar corações e
ma, a corrupção, e não nos demos conta que dignidade é um valor básico
mentes para a luta geral', completou Ieda. Na opinião dela, o formato do 8 de março
elo povão e nos omitimos da tarefa pedagógica de desvendar a dinâmi-
deste ano [2017) consolida o mês das mulheres para além do perfil comemorativo
ca das desigualdades sociaiss e mais pressionarmos por uma educação
mas como espaço de luta e defesa de direitos. Lúcia Ricon da União Brasileira de
de qualidade, contra o analfabetismo político. Nós, ativistas em movi-
Mulheres confia no impacto das manifestações do mês [maio de 2017), especial-
mentos sociais, curtimos por algum tempo a euforia de que tínhamos,
mente do dia 8. 'Nós temos um movimento de mulheres em diferentes facetas e
todas unidas na ação de denúncia do golpe contra a reforma da Previdência e contra

130 MARY GARCIA CASTRO O COLJ'B DB 2016 I! A DllMONJZAÇÀO DI! CllNilllO


a reforma trabalhista. Então com certeza as atividades que acontecerão vão fazer mais porque a escola, sexualidade e gênero, também no meio escolar,
reverberar a denú ncia'. (CARVALHO, 2017) são alvos prediletos de ataques fundamentalistas e conservadores.
Se o capitalismo neoliberal é contra o estado de bem estar, apoia-se
na lei do mercado, em privatizações e na precariedade do trabalho, o
patriarcado é entendido como a supremacia masculina, castradora de
A Demonização de gênero: por que o medo à desejos e de sexualidades que não se alinham com a heteronormativi-
educação? dade. Apoia-se no poder do macho, do pai, da lei/autoridade, ou seja,
Nesta seção embico mais aterrissagem. Gostaria de tratar do golpe em instituições e ideologias que consideram a mulher como objeto de
político cultural contra direitos à diversidade, a invéstida fundamenta- reprodução e não sujeito de ~esejos e de escolhas próprias; e o gay, o/a
lista, o alvo na educ~ção dos gol pistas, como forma de minimizar a for- transexual, o/a transgênero e o travesti como "invertidos" ou "anoma-
m ação de uma consciência crítica, não somente em relação a costumes, lias" ideias que vêm sendo defendidas pelo fundamentalismo religioso.
mas a um estado da nação, ressaltando que a campanha contra uma Ideias que conquistam massas socializadas no familismo, no pa-
pseudo ideologia de gênero faz parte da orientação pelo retrocesso po- triarcado e que tem medo de perder o pater potes tas para a escola, tida,
litico cultural, básico para sustentar um regime autoritário. A liberdade erroneamente, como libertá ria e, principalmente, pelo medo de perder
é um afeto que tende a não se deixar enquadrar, exigindo ambiências sua autoridade/austeridade (vocábulos caros ao golpe) para uma juven-
polissêmicas. tude que se rebela contra as amarras castradoras de desejos.
São jovens mulheres, jovens trans, gente transgressora, que, em di- A comum·apelação para salvar a família, as declarações de fé pelos
ferentes manifestações de repúdio ao golpe, fazem o nexo entre macro valores "da família brasileira" nas exposições de voto na seção plená-
e micro políticas, sugerindo que corpo e sexualidade são construtos de ria da Câmara dos Deputados, que em 17 de abril de 2016 legalizou o
orientação político-econômica e não tema menor, específico. impeachment da presidenta Dilma são emblemáticos de uma ideologia
A força de mobilização das mulheres, dxs jovens decolando do corpo jogo de cena, para conquistar uma massa levada a associar um governo,
e des ou reterritorializando regras na crítica ao processo golpista mere- uma gestão que se queria derrubar com uma mulher que não se encaixa-
ce análises e visibilidade social maiores, sugerindo a esperança a que se va na n.orma esperada, a de mãe de família, "recatada e do lar" e que seria
refere Eagleton (2015), a renovação da resistência. uma ameaça à família, aos "bons costumes", à moral de austeridade que
Um dos desafios para a resistência é compreender que a onda neo- se queria nas finanças públicas- as metáforas entre a defesa da família e
conservadora que assola vários países e que, no Brasil, tomou a forma o impeachment da presidenta estariam subliminarmente postas.
de um golpe político-econômico-cultural, instalando um regime de Não ao azar, tanto o golpe de base conservadora como uma Igreja pa-
exceção, precisa para enfrentamento de uma" deseducação" contra o li- triarcal no Brasil combatem conquistas feministas, como perspectivas
vre pensar, que recorra ao pensamento crítico, ou seja, um saber pensar sobre gênero, exaltando a mulher cuidadora, a do lar, como se essa não
para um saber agir, como há que mais demarcar que o golpe em cur- gostasse ou aspirasse também estar no bar. Governo neoliberal e igrejas
so mescla capitalismo neoliberal com patriarcado. Precisamos refletir fundamentalistas contribuem para violências físicas, verbais, simbóli-
cas- ou seja, aquelas em que as vítimas indiretamente colaboram para

MARY GARCIA CASTRO O GOLPE DE 1016 B A D B MONI:Z.AÇÃO DE G I! NBRO


'31
sua opressão, comumente pela sedução de ideias sobre maternidade, Daí a propriedade da reflexão de Saffioti (2004) sobre formação de
amor romântico e proteção familiar ou medo do "inferno", não o aqui gênero patriarcal capitalista e porque o golpe instalado no Brasil com
vivido, mas projetado transcendentalmente. Inseguranças e medos de o impeachment da presidenta Dilma é mais que uma troca de guarda,
várias ordens são baluartes de uma ordem conservadora que se sente ou uma mudança de projetos econômicos liberais e tanto se interessa
ameaçada pelos avanços de debates sobre gênero, em especial no campo por minar direitos conquistados por trabalhadorxs, negrxs e pessoas
de direitos reprodutivos e sexuais, ou seja, o controle de corpo, sua fle- LGBTTQ.
xibilização quanto a· performances e o poder de vida, separando repro- Em outro texto desenvolvo mais a ideia de que gênero se alinha a um
dução biológica de reprodução sexo-social e destacando a importância paradigma de conhecimento modelado na complexidade (CASTRO,
do desejo e dos afetos. 2012), o que pede constant~ crítica a princípios universais, uma vez
O patriarcado, o poder do pai, do marido, da lei, de uma crença, de que, ao se focalizar tanto reprodução como sexualidade, há que decolar
um pensamento único e de um modelo hegemônico de masculinida- principalmente do território corpo, das vivências e produções de repre-
de, é um processo material e simbólico complexo, que cada vez mais se sentações sobre este. Então corpos negros, corpos transexuais pedem
enrosca com o capitalismo. O patriarcado é um sistema de opressão de modelações próprias não somet:lte em termos de considerar violências,
gênero, entendido como construções sociais sobre relações entre o sexo discriminações, subalternidades, mas também desejos, criatividade e o
e sua perfilhação cultural e normativa e, novo aporte básico, de cons- questionamento de conceitos já que abarcam uma pluralidade de vivên-
trução também do sexo biológico? O patriarcado é contra mulheres, cias, de relações e de subjetividades.
gays, lésbicas, transgêneros e outros que não se alinham à heteronor- Rebatendo a censura a gênero nas escolas estimulada pela aliança
matividade. golpe e fundamentalismos religiosos, insisto que gênero não é uma
A perspectiva da interseccionalidade foge da dicotomia patriarcado ideologia, se entendido tal termo como uma "falsa consciência de ma-
e racismo versus capitalismo, ainda que aceite que, a nível da micro po- terialidades vividas", já o que fundamentalistas chamam de "ideologia
lítica, podem ambos os sistemas conviver sem se engalfinharem. Mas de gênero" para combater perspectiva de gênero nas escolas é sim parte
é uma falácia de níveis equivocados se raça, gênero e orientação sexual, de um paradigma sexista, um paradigma da simplicidade que dicoto-
por exemplo, além da inscrição corporal, não são considerados como miza e.hierarquiza o mundo das relações sociais e sexuais. É um gênero
processos de dominação, de violências que ordenam sistemas sociais. de ideologia que há muito é defendido por dogmas religiosos, como o
Ou seja, há que reconhecer a mútua colaboração da economia, da cul- "parirás com dor", associação de prazer a pecado; estigmatizar a mulher
tura e da política para sustentar privilégios, competições e hierarquias como a amiga da serpente que trouxe vários males ao mundo; reduzir a
no capitalismo. Mais do que me referir à intersecção entre gênero, raça mulher à reprodutora; considerar a família como uma instituição que
e classe, defendo a imbricação de processos de defesa por hegemonias deve ser sustentada pela autoridade do pai/marido e formatar Igrejas
normativas quanto a gênero/sexualidade, com processos por hegemo- como organizações masculinas. Um pensamento que está de acordo
nias étnico/raciais em um sistema de organização da economia capi- com a ideologia da submissão que pauta o golpe de estado no Brasil hoje.
talista, em sua fase neoliberal, financista e entreguista a interesses do O desafio quanto à reivindicação de autonomia das mulheres e dos
capital internacional dominante. pejorativamente tidos como "mulherzinhas" persiste e, nestes tempos,

134 MARY GARCIA CASTRO O GOLPE DE 2016 E A DE M O NIZAÇÃO DE GilNERO


é bastante ameaçado tanto por um governo golpista conservador que Bispos do Brasil (CNBB) dirigido a vereadores contra uma perspectiva
cortou inclusive conquistas institucionalizadas, como a Secretaria de de gênero nos planos municipais de educação:
Políticas para as Mulheres com legitimação de movimentos sociais,
como vem gradativamente podando a mínima rede de proteção social Essa ideologia [de gênero] comporta diversos inconvenientes para a educação:

que se conquistara, como o Sistema Único de Saúde (SUS), assim como (1) A confusão causada nas crianças no processo de formação de sua identidade,
possibilidades de trabalho e, portanto, possibilidade de autonomia das fazendo-as perder as referências; (2) A sexualidade precoce, na medida em que a

mulheres. Aliás explicitamente contra a mulher são várias as investi- ideologia de gênero promove a necessidade de uma diversidade de experiências

das deste desgoverno, por exemplo segundo notícia veiculada em 26 sexuais para a formação do pr6prio "Gênero"; (3) A abertura de um perigoso cami-

de março de 2017, o. valor autorizado para gastos c~m atendimento à nho para a legitimação da pedofilia, também considerada um tipo de gênero; (4) A

mulher em situação de violência caiu 61% em 2017 em relação ao ano banalização da sexualidade hu..;,ana podendo aumentar a violência sexual, sobretu-

passado segundo dados do portal do orçamento da Comissão Mista de do contra mulheres e homossexuais; (5) A usurpação da autoridade dos pais, em

Orçamento do Congresso Nacional. Também houve redução de recur- matéria de educação de seus filhos, principalmente em temas de moral e sexualida-

sos que deveriam ser destinados para políticas de autonomia das mu- de, já que todas as crianças serão submetidas à influência dessa ideologia, muitas

lheres. D e R$11,5 milhões em 2016, o valor passou para R$5,3 milhões vezes sem o conhecimento e o consentimento dos pais. (KRIEGER, 201 5)

em 2017, uma redução de 54%. (GOVERNO ... , 2017)


Ora tal pronunciamento sobre o que chamam "ideologia de gêne-
A campanha conservadora contra o que se demoniza como "ideolo-
ro" desconh~ce a complexidade de vivê~cias de juventudes em relação
gia de gênero", defendendo como a única norma possível a heterosse-
à sexualidade e à orientação da perspectiva de gênero nas escolas contra
xualidade, vem contra ventos libertários, debate crítico sobre estereó-
violências, por exemplo.
tipos em relação ao que seria ser mulher e ser homem, questionando
Fala-se em precocidade da sexualidade e se desconhece que, em
desigualdades sócio-sexuais. As escolas têm sido alvo privilegiado de
grande medida, a chamada gravidez precoce se associa a ideias român-
tal ataque e em tal campanha vem se divulgando pós-verdades, como a
ticas sobre sexualidade e à falta de debates sobre respeito, dignidade da
ideia de que·u ma educação em gênero retiraria a autoridade da família
mulher, auto estima e prevenção, ou seja, à falta de uma educação sexual
ou que propiciaria a pedofilia. O mais terrível é o apelo para a religiosi-
com perspectiva de gênero.
dade do povo e a autoridade de religiosos junto a famílias, em especial
A fecundidade entre as mulheres jovens na faixa entre 15 e 19 anos
de baixo poder aquisitivo. Estimula-se o medo e o ódio ao diferente.
vem crescendo com mais intensidade desde os anos 1980. Em 2004 ti-
A confusão entre gênero como perspectiva sobre respeito ao outro,
nha-se que cerca de 107 mil adolescentes e jovens no ensino médio e nos
à outra; ênfase em direitos sexuais e reprodutivos, combate a violências
dois últimos anos do fundamental, nas 14 p~incipa is cidades do país,
várias contra homossexuais, transexuais com a ideia simplificadora de
ou seja, 22% da população feminina entre 10 a 24 anos naqueles níveis
que seria um conhecimento contra a família, a favor da pedofilia e da
escolares, já haviam ficado grávida. 8 Para período mais recente, tem-se
exploração sexual das crianças bem denota uma leitura enviesada sobre
que:
gênero e o reconhecimento da importância de debate com perspecti-
vas de gênero nas escolas. Segundo escrito da Conferência Nacional dos

MARY CARCIA CASTRO . O COLPE DE 1016 E A OllMONIZAÇÀO DE CilNERO


[Em 2012] 26,8% da população sexualmente ativa {15-64 anos) iniciou sua vida Lembro que o cpnceito de patriarcado se refere ao poder discricioná-
sexual antes dos 15 anos no Brasil; rio do pai, à supremacia masculina, ao poder repressivo da lei, ou seja,
o patriarcado atua no espaço privado, como a família, e nos espaços pú-
Cerca de 19,3% das crianças nascidas vivas em 201 Ono Brasil são filhos e filhas de blicos.
mulheres de 19 anos ou menos; O Congresso e o Senado são formados por muitos patriarcas que,
independentemente da idade (e até do sexo/gênero), são vetustos fun-
Em 2009,2,8% das adolescentes de 12 a 17 anos possuram 1 filho ou mais;
damentalistas. Sexistas fundamenta listas porque leem a Bíblia de uma
Em 201 O, 12% das adolescentes de 15 a 19 anos possuram pelo menos um filho
forma que tal leitura beneficie seus interesses. De fato há católicos e ca-
(em 2000, o rndice ·.para essa faixa etária era de 15%). {BRASIL, 2008, 2012;
tólicos, evangélicos e evangÇlicos, e adianto que grande parte da ban-
NAÇÕES UNIDAS, c2013; UNICEF, 2011 apud UNFPA, (201-])
cada evangélica e católica no Congresso e nas Câmaras não necessaria-
mente contam com o apoio de muitos católicos e cristãos.
Cerca da metade dos nascidos vivos de mães entre 15 a 19 anos, com
maior probabilidade, vivem em famílias sem a presença do pai bioló-
gico. A gravidez entre adolescentes e jovens tem um perfil social pró- Estes tempos- esperança, ainda que com moderação
prio: estima-se que mais da metade das adolescentes de 15 a 19 anos sem Já se tem indícios de barbárie anunciadas pelas Propostas de Emenda
nenhum ano de escolaridade já tenham se tornado mães. A taxa de fe- Constitucioal (PEC) 271 - 55 e a Reforma do Ensino Médio, o aborto das
cundidade das jovens com mais baixo rendimento (menos de I salário reformas estruturais necessárias como a Reforma Tributária, a Reforma
mínimo) era de 128 por mil mulheres, entre as jovens com rendimentos Política, a Reforma dos Meios de Comunicação e a Reforma Agrária.
mais altos (lo salários mínimos ou mais), a taxa de fecundidade baixaria A relação entre o imperialismo, o capital dito nacional, a mídia, o ju-
para 13 por mil, segundo Camarano (1998) para a década de 1990 e vá- diciário, o legislativo e o executivo sugere investida agressiva em uma
rios estudos indicam que tal quadro não se alterou muito nos períodos agenda neoliberal. A luta de classe ganha outro patamar, de enfrenta-
mais recentes, a maior proporção de fecundidade está entre adolescen- mentos mais explícitos de interesses
tes de baixa renda e baixa escolaridade. As ocupações das escolas, das universidades, a mobilização dos se-
Existe (e não é de hoje) um vazio inclusive no plano de políticas pú- tores organizados de trabalhadores, dos movimentos sociais, como os
blicas por uma educação que colabore em questionar formas de pensar e de corte feminista, negro e de pessoas LGBTTQsugerem também que a
viver a sexualidade, que invista na autoestima das mulheres jovens, no formação política se faz hoje nas ruas, mas pede mais investimento or-
combate às homo, lesbo e transfobias, e na formação de uma massa críti- ganizativo, quando a agenda por dignidade deveria tomar acento eman-
ca juvenil. O universo juvenil, suas referências culturais, os sentidos de cipacionista, colorindo, diversificando as frentes de classe, unidas na
seus corpos são silenciados por uma educação pouco crítica ou por va- crítica à barbárie capitalista.
lores de uma "adultocracia" bem intencionada, mas distante de tal uni- Perdemos uma importante frente para mudanças na cultura patriar-
verso. Possivelmente tal quadro irá piorar em tempos de Temeridade, cal, quando foi retirado do texto do Plano Nacional de Educação (PNE),
com o empobrecimento da população, a não discussão sobre relaÇões de que define diretrizes e metas para a educação até 2024, a menção às
gênero e violências nas escolas.

MARY GARCIA CASTRO O GOLPE DE 2016 I! A DEMONIZA Ç ÃO DE GftNllRO


questões de gênero e orientação sexual.9 Mas a luta continua, contra a marca contemporânea, um estrutural desafio que se busca enfrentar
investida do que chamam de "ideologia de gênero". Locais de trabalho, em diversas frentes de direitos de mulheres e daqueles de orientação
as periferias, as escolas, as ruas e a universidade são importantes frentes não heteronormativa no plano da corrente feminista emancipacionis-
de lutas emancipacionistas. tato e antirracista.
A demonização de gênero por conservadores bem indica, insisto, a
A supressão [de uma perspectiva de gênero] é efeito da pressão de setores religio- importância da cultura na viração de relações sociais, ou seja, na forma-
sos conservadores que, incomodados com práticas pluralistas que contradizem ção de sujeitos políticos avessos a repressões, desigualdades sociais e a
seus valores morais, têm dificultado, no âmbito da educação, o desenvolvimento de discriminações de várias ordens. E a formação de sujeitos políticos, com
políticas em nome dos direitos das mulheres, dos direitos sexuais e reprodutivos, a colaboração de uma educação crítica, é básica para uma outra cultura,
assim como qualque~ medida no marco dos direitos humanos. participativa, para mudanças no hoje e para outro amanhã. É um desa-
fio ao mesmo tempo classista e movimentista, que tem na mobilização
A importância de se discutir tais questões no âmbito da educação é atestada pela contra o golpe um importante momento de esperança em uma longa
amplitude e incidência de crimes homofóbicos e violência de gênero no Brasil.
caminhada.
Estes ocorrem no contexto de uma história e uma cultura construída com lingua-
gem machista, sexista e homofóbica que vítima, antes tudo, no âmbito simbólico.
As mulheres, as lésbicas, transexuais, travestis, bissexuais, gays e outros sujeitos Notas
sexuais marginalizados têm suas imagens desvalorizadas, o que enseja um clima Neste texto desenvolvo ideias apresentadas em diferentes seminários na Universidade
favorável a violências de todo tipo. Tratar a discussão sobre gênero e diversidade Católica de Salvador (UCSAL); Universidade do Estado da Bahia (UNEB) campus de Se rrinha,
UNEB campus de Alagoinhas e Universidade Federal da Bahia (UFBA) campus de Salvador no
sexual como matéria de educação [por outra cultura] significa dar um passo impor- primeiro semestre de 2017, que muito se bçneflciaram dos debates com jovens nessas uni-
tante para reduzir as desigualdades e a violência que marcam o país. (POR QUE..., versidades. Éum texto em processo e que aqui toma a forma de ensaio.

2014) 2 O Ensaismo ético em Adorno joga ênfase na cultura e na ideologia para pensar criticamente
a sociedade, crítica à ideologia e à identidade. Ou seja, a tradiç3o do ensafsmo ético seria
pensar criticamente a sociedade. Para Adorno, o ensaio não tem fecho; interessa-se pela to-
A ofensiva de parlamentares e outros atores, em nome da religião talidade, mas não é arbitrário. (ADORNO, 1986)
contra o debate sobre gênero na escola, bem indica o desafio de termos 3 O ensaio, segundo Adorno (1986, p. 174), privilegia a desordem das ideias- "O ensaio não
tanto na economia como na cultura como frentes de lutas políticas para compartilha o jogo da ciência e da teoria organizada, segundo as quais, como diz Spinoza, a
ordem das coisas seria a mesma que a das idcias. (...) O ensaio não almeja uma construção
a emancipação agora e por outro amanhã. O retrocesso no PNE, sugere fechada, dedutiva ou indutiva [...). Vai contra a doutrina arraigada desde Platão, segundo a
que, de fato, mesmo os conservadores reconhecem e temem a impor- qual o mutável e o efêmero não seria digno da filosofia [...e) contra a violência do dogma".
tância de um conhecimento crítico à cultura, à escola, para desconstruir 4 "Na opinião do jornal Financiai Times, a prcsidenta Dilma Rousseff rompeu com a rotina de
poder no Brasil. A publicação incluiu Dilma na lista de Mulheres do Ano divulgada em dezem-
preconceitos e estigmas. bro do ano passado e ressaltou, em entrevista realizada com ela, que é outro o tratamento
O reconhecimento tanto dos nexos entre patriarcalismo e capitalis- dado a réus homens que estão no comando do pars. Na ocasião Dilma declarou: 'Uma mulher
mo, assim como entre economia e cultura, quer no plano de micropo- exercendo autoridade é considerada dura, enquanto um homem é chamado de forte'.

líticas quer em termos de projetos de mudanças sociais tem sido uma

14 o MARY GARCIA CASTRO O COLPE DE :l016 E A DEMONIZAÇÃO DB CllNERO


Lúcia Rincón, presidenta nacional da União Brasileira de Mulheres (UBM), não tem dúvidas co ntrato. A liberdade civil não é universal- é um atributo masculino e depe nde do direito
de que o fato de o pafs ter como presidenta uma mulher estimulou a misoginia. 'Foi uma arma patriarcal. Os filhos subvertem o regime paterno não apenas para conquistar sua liberdade,
importante na deposiç3o de uma proposta de governo que estava comprometida com o mas também para assegurar as mulheres para si próprios. Seu sucesso nesse empreendimen·
avanço da igualdade social e no combate à discriminação'. to é narrado na história do contrato sexual. O pacto original é também um contrato sexual
quanto social; é social no sentido de patriarcal - isto é, o contrato cria o direito polftico dos
De acordo com Lúcia, não foi surpresa que o 'braço pesado do golpe' atingisse de imediato a homens sobre as mulheres-, e também sexual no sentido de estabelecimento de um acesso
Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. 'Foi um órgão que perdeu a autonomia por sistemático dos homens ao corpo das mulheres. O contrato original cria o que chamarei, se·
duas vezes. Hoje é uma subsecretaria dentro do ministério da justiça, com isso dificulta o guindo Adrienne Rich de 'lei do direito sexual masculino'. O contrato está longe de se contra·
transito, as possibilidades dessa secretaria ser reconhecida por outros ministérios em pé de por ao patriarcado; ele é o meio pelo qual se constitui o patriarcado moderno". (PATEMAN,
igualdade', avaliou Lúcia. 1988, p. 16-17 apud SAFFIOTI, 2004, p. 53·54)
O ataque às conquistas e à autonomia das mulheres brasileiras tem o Congresso Nacional 8 Dados de 2002 da pesquisa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
como aliado de peso. O Centro F'eminista de Estudos e Assessoria (Cefemea) denuncia as a Cultura (Unesco), segundo Castro, Abramovay e Silva (2004).
manobras da bancada evangélica e outras como a chamada bancada da bala e o jogo de troca
de favores com o Executivo. 'Os direitos das mulheres são tratados pelas bancadas conserva- 9 Em 22.04.2014 a repórter Maria~a Tokarnia da Agência Brasil escreveu sobre a votação no
doras como moeda de troca para aprovar a reforma da Previdência', explicou Maira Abreu, Congresso do PNE: "Após ser alvo de polêmica, depu tados retiraram a questão de gênero do
assessora técnica do Cefemea. Plano Nacional de Educação (PNE). O PNE começou a ser votado hoje (22) na comissão espe·
cial da Câmara dos Deputados formada para analisar o texto. A comissão aprovou o relatório
Na opinião dela, o direito ao aborto, seja em que condições seja, é o alvo da bancada conser- do deputado Ângelo Vanhoni (PT-PR), salvos os destaques. A questão de gênero foi suprimi-
vadora no Congresso Nacional. No dia 29 de novembro de 2016 decisão do Supremo da no primeiro destaque votado. O destaque aprovado nesta terça-feira modifica o trecho do
Tribunal Federal (STF) confirmou o direito das mulheres brasileiras a interromper a gestação plano que diz: 'São diretrizes do PNE a superação das desigualdades educacionais, com ênfa-
até a 12a se mana. O aborto é permitido por lei nos casos em que a gestação implica risco de se na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual', retomando o
vida para a mulhe r, quando a gestação é decorrente de estupro e no caso de anencefalia. texto do Senado, que fala apenas em "erradicação de todas as formas de discriminação".
A mai s recente é a iniciativa do Deputado Alan Rick do Partido Republicano Brasileiro (PRB) Para os deputados que argumentaram a favor da alteração, as formas de preconceito estão
que apresentou emenda para mudar o nome do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e contempladas no texto, e colocar a questão de gênero e orientação sexual vai favorecer o que
do Adolescente para Conselho Nacional dos Direitos do Nascituro, da Criança e do chamaram de 'ditadura gay'. Outros parlamentares consideraram a retirada da qu estão de
Adolescente, incluindo, através da emenda, as expressões como os direitos do nascituro e a gênero um retrocesso. "A escola, mais que outro lugar, não pode ser surda e muda e reprodu-
inviolabilidade do direíto à vida. zir os preconceitos da sociedade", defendeu a deputada Fátima Bezerra (PT-RN).
'Além das restrições totais ao aborto, a proposta sustenta um projeto de sociedade conserva- Dos 26 deputados presentes, 11 votaram contra o destaque. O plenário e stava lotado, com
dora, de impedimento à autonomia das mulheres e de flexibilização da laicidade do Estado representantes de estudantes, de movimentos sociais, de entidades ligadas à educação e de
brasileiro', avaliou jolúzia Batista, da assessora técnica do CefemeaH. {CARVALHO, 2017) grupos religiosos. A alteração causou aplausos e vaias. Dirigindo-se aos estudantes, que pe·
diam a manutenção da discriminação dos grupos no PNE, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ)
S Em pesquisás que participamos com jovens do ensino médio em escolas públicas em várias
levantou uma folha de papel na qual estava escrito: 'Volta para o zoológico'."
cidades do Brasil, comumente a corrupção era apontada como a principal causa dos proble-
mas do pafs e a principal fonte de informação para tal ideário, segundo xs jovens era a TV ou o 1O Ver ~rodução da União Brasileira de Mulheres (UBM) sobre feminismo emancipacionista na
"ouvir dizer". Ver Abramovay, Castro e Waiselfisz (201 5). revista Presença da Mulher, da editora Anita Garibaldi e, entre outras publicações, Valadares
(2007} e Rocha (2012).
6 Ver sobre interseccionalidade, entre outros autores, Ribeiro (2016), Davis (2016) e Carneiro
(201 1). Sobre feminismo negro ver também artigos em Geledés: Instituto da Mulher Negra:
<http://www.geledes.org.br>.
7 Sobre o conceito de patriarcado, Saffioti recorre a Pateman, para quem:
Referências
"A dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso sexual regular a
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201$.
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O COLPB DI! ~016 B A DEMON I ZAÇÃO DE C!!NERO


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144 MARY GARCIA CASTRO O GOlPE DE :LOt6 E A DEMONIZAÇÃO DE GltNERO


Golpe disfarçado de
i m peac hment: uma
arti c ulação escusa contra as
mulh e res

Nilma Lino Gomes•


*Doutora em Antropolo;
Social pela Universidade
São Paulo (USP) e pós-de
em Sociologia pela
Universidade de Coimbr;
Professora da graduação
In t r o·d u ç ã o
1 Era uma manhã, em Brasília, com um céu im-
pós-graduação da Faculd.
de Educaçào (FAE) da
Universidade Federal de I
pressionantemente azul como sempre nos apresen- Gerais (UFMG). Secretár
ta o céu da capital do país. Dia 12 de maio de 2016. Polfticas de Promoção da
Igualdade Racial (Seppir)
No dia anterior eu e técnicos do Ministério das Ministério das Mulheres,
Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Igualdade Raciai,Juventu
Direitos Humanos da pre
Direitos Humanos arrumávamos às pressas as úl- ta legitimamente eleita [
timas caixas com os nossos pertences, separando o Rousseff(201 S-2016).
que era da administração pública e o que era pessoal.
Fomos no carro oficial até a minha residência colocar as caixas den- final do Senado em 31 de agosto, substituindo Dilma Rousseff, uma
tro do apartamento e, ao nos despedirmos, choramos: eu, o motorista, mulher com uma história política reconhecida e honrada de luta contra
o segurança, o chefe de gabinete e a secretária. Não chorávamos por- a ditadura militar nos anos 1960,1970 e 1980, no Brasil. Aquela que dis-
que havia terminado o mandato de quatro anos para o qual a nossa se com orgulho que, apesar de todas as torturas sofridas, nunca delatou
presidenta fora eleita e havia nos escolhido como parte da sua equipe. ninguém na época dos interrogatórios torturantes dos militares e seus
Chorávamos de desilusão com a política institucional, por sabermos asseclas.
que o impeachment era um golpe parlamentar, midiático, jurídico, fun- Em 2016, o Brasil se encontrava mergulhado em um processo inter-
damentalista, de classe, raça, gênero e com orientação heteronormati- nacional e nacional de crise econômica, alimentada pelo capitalismo
va. O coração apertava por saber que estávamos sendo obrigados a sair global. Uma crise que força~a os países, cuja opção econômica dos úl-
e que entraria para o governo federal um grupo de políticos corruptos, timos governos mais à esquerda, legitimamente eleitos, tinha sido de
fundamentalistas, ruralistas, empresários, apoiados pelo capital nacio- cuidar da população e construir políticas sociais para combater a po-
nal e internacional, pelas famílias donas da mídia hegemônica do país breza, a fome e a desigualdade social, a adotar medidas de austeridade
e que instituiriam, sem pestanejar, o Estado mínimo tão almejado pelo impostas pelos organismos internacionais e abandonar a pauta das po-
neoliberalismo. E ainda, que retomariam com vigor as relações colo- líticas sociais por uma outra de arrocho econômico e abertura ao capital.
niais, patriarcais e racistas contra as quais alguns de nós tanto lutamos Nós, a presidenta Dilma e sua equipe, tentávamos, dentro das condi-
para superar e desenraizar da sociedade, das instituições e da gestão pú- ções possíveis, construir um equilíbrio interno à nossa economia, sem
blica brasileira. perder de vista o investimento nas políticas sociais que foram a marca
O poder do voto de cada cidadã e cidadão - mesmo daqueles que vo- dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e que revolucionaram
taram contrários ao partido que estava no poder e sua candidata- estava a situação de fome, pobreza, assistência, educação superior, moradia
sendo usurpado e a tão batalhada Constituição de 1988 tinha uma de e saúde da população ao longo dos últimos 13 anos, tornando-se um
suas páginas rasgadas. Tudo feito premeditadamente, a ponto de mo- exemplo internacional.
mentos após o desfecho do golpe, passadas 14 horas de arguição pelo Tudo correu às mil maravilhas? Sem limites, sem equívocos, sem
Senado Federal, senadores de oposição declararem que não havia crime tensõe.s? Não. Construir políticas sociais em um país marcado pelas de-
de responsabilidade fiscal, mas era impossível ter governabilidade, por sigualdades socioeconômicas, de raça, gênero, sexualidade, localização
isso a presidenta da República deveria sair. geográfica e regional não é algo que se faz em uma quinzena de anos.
As fontes de todo esse processo estão na internet, nos jornais e nas É preciso mais tempo para realizar, avaliar, superar ambições e arrogân-
redes sociais. Basta acessá-las com uma boa consulta no Google. Tudo cias, rever ações inadequadas e ouvir as demandas da base. Mas, sem dú-
está registrado na história e na vida das brasileiras e brasileiros que vida, foi e continua sendo um passo necessário para que o protagonista
acompanharam esse processo violento. O dia 12 de maio foi a data de do Brasil como nação democrática não seja o grande capital nem o mer-
oficialização da admissibilidade do impeachment de Dilma Rousseff, cado econômico, mas, sim, o povo brasileiro na sua diversidade étnico
primeira mulher le_gitirnamente eleita presidenta do Brasil. No dia 13 de -racial, ·cultural, de gênero, de classe, regional. A diversidade do Brasil
maio, o governo interino e ilegítimo assumiria o poder até a votação

NILMA LINO COMI!S COLPE DISFARÇADO DE IMPBACIIMI!NT


precisa estar representada nas suas políticas como reconhecimento e político a um governo federal que se eleja, no Brasil, com uma proposta
afirmação da nossa característica pluriétnica e pluricultural. de esquerda, de combate à fome, à pobreza, ao machismo e ao racismo.
Esse foi o projeto para o qual fui convidada pela presidenta eleita, O golpe disfarçado de impeachment significa a retomada do lugar do
como ministra de Estado, para integrara equipe do seu segundo manda- capital e do mercado como eixos orientadores da política econômica e,
to. Primeiro como ministra chefe da Secretaria de Políticas de Promoção com eles, todo um processo de diminuição de direitos das trabalhado-
da Igualdade Racial (Seppir) e depois no Ministério das Mulheres, da ras e dos trabalhadores, com aumento dos privilégios dos capitalistas.
Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos (MMIJDH). Representa a retomada do eixo norte-sul da cooperação internacional,
Nesse curto período (2015-2016) pude acompanhar de perto o desafio o enfraquecimento dos BRICS e do lugar do Brasil no Mercosul. Tudo
das mulheres para se manterem em cargos de poder, decisão e conheci- isso com a ajuda das alas ~e direita, conservadoras, religiosas fun-
mento. Os boicotes à presença feminina na mais alta função do país iam damentalistas, ruralistas e moralistas do Congresso Nacional, sob
desde piadinhas nos corredores até xingamentos à forma dura como os o olhar literalmente cego de setores do Judiciário e municiados pela
homens se sentiam tratados, às escolhas da presidenta, à imposição de mídia hegemônica de empresários. E ainda, por uma parcela da classe
um determinado tipo de ordem, à sua negação de se aliar com políticos média que sonha um dia ser elite e por setores populares cuja visão de
e empresários corruptos. honestidade e moral, tão caras para as pessoas que lutam cotidiana-
A imagem que construí desse momento da minha trajetória pro- mente pela sua sobrevivência, foi bombardeada pela leitura tenden-
fissional e·de vida era de um mundo pertencente aos homens, dizendo ciosa da direita via mídia, novelas, rádio, pequenos jornais, internet,
que ali estava uma mulher e, só por esse fato, ela não os representava, igrejas fundamentalistas e escolas.
mesmo que fosse uma mulher branca, de esquerda e de classe média, E o crime de responsabilidade fiscal? Única permissão constitucio-
conforme ainda é consentido no contexto da branquitude presente nal para a retirada legítima de um chefe do Executivo do poder? Ele foi
nas relações de poder. comprovado? Não. Portanto, os argumentos de que o impeachment
Havia exceções masculinas? Sim. Havia alguns poucos homens que seria pelo "conjunto da obra", como afirmaram alguns parlamentares,
se esforçavam para superar o machismo. E é sempre bom recordar que não se sustentam juridicamente. Não se comprovou, mas se manipulou
o machismo é um sistema de dominação que ultrapassa a classe, a raça, a opi11:ião pública, através de um teatro do Legislativo, apoiado pelo ju-
a posição ideológica e política. O machismo é estrutural e estruturante. rídico e pela mídia hegemônica que induziram a população, à dúvida e
Este é um fato do qual alguns podem discordar, mas não há como negar. à desconfiança. Colocaram em xeque a competência e a honestidade da
primeira mulher chefe de Estado no Brasil.
Por isso, para mim, o impeachment da presidenta eleita Dilma
Golpe disfarçado de impeachment: uma articulação Rousseff foi um golpe. E não foi um golpe qualquer. Repito que foi um
escusa golpe parlamentar, midiático, jurídico, fundamentalista, de raça, clas-
A articulação escusa para a retirada da primeira mulher presidenta se, gênero e com uma orientação heteronormativa. Essas características
significou não somente colocar em prática muito do que o machismo do golpe estão explicitamente representadas na foto do governo golpis- ·
e a misoginia são capazes, como, também, o temporário fechamento ta, um dia após usurpar definitivamente o poder, e em todas as ações

NILMA LINO GOMES GOLPE DISFARÇADO DE IMPEACIIMI!NT


desencadeadas pelo Executivo, parte do Legislativo e do Judiciário e da mulher "bela,,recatada e do lar". Ora a mídia propugnava que o pro-
pela mídia hegemônica desde então. blema estava na incompetência do fato de ela ser uma mulher e isso não
Trata-se de um alinhamento de forças e grupos conservadores, não lhe dava condições de gerir um país e uma grande economia, ora a apre-
somente no Brasil, mas na América Latina e demais países da conjuntu- sentava como alguém sem as características emocionais necessárias
ra internacional. A ofensiva da direita europeia, os retrocessos na polí- para ouvir as pessoas, os partidos, os políticos e fazer negociação.
tica norte-americana após a última eleição de Donald Trump e os dife- O mais interessante é que se passarmos em revista os diversos ho-
rentes perfis que disputam a presidência e cargos de primeiro ministros mens presidentes e primeiro-ministros do mundo, encontraremos tais
na Europa, África e Ásia com viés conservador atestam isso. características comprovadas pela forma como fizeram política e passa-
Um novo contexto de dominação política, econômica e cultural ram pela gestão, mas não m~ lembro de ouvir ou ver tais características
está se configurando no mundo e as forças capitalistas querem minar atribuídas ao fato de serem homens, mas, sim, péssimos políticos ou
as políticas sociais, impondo uma pauta de ajuste fiscal e econômico. gestores ruins. O gênero não contava nesses momentos de crítica aos
Querem a retomada da primazia do Estado neoliberal nos países onde governos masculinos.
este perdeu força ao longo dos últimos 15 anos. O golpe brasileiro está, A ação da mídia dos grandes empresários, dos ruralistas, dos políti-
portanto, dentro de um contexto macro e micro, global e local. cos conservadores e de direita, dos grandes jornais e das famílias que há
Todas as medidas destruidoras implementadas pelo governo golpista, anos dominam o mercado midiático do rádio, da televisão e da internet
assim que tomou posse, em relação às políticas sociais dos governos Lula tinha objetivos claros. Sendo todos eles capitalistas de primeira linha,
e Dilma só reforçam que a questão não estava com a condução, nem com o o seu objetivo era derrubar o partido, o projeto político e a presidenta
jeito de ser da presidenta, mas, sim, com o projeto de sociedade, de gover- que interpunha dificuldades aos processos corruptos de negociação e
no e de Estado que ela representava: um Estado democrático e de direito e acumulação de riquezas, do uso privado do orçamento público. A ideia
não um Estado neoliberal, como temos visto nos últimos meses. de um Estado mínimo perseguida pelos neoliberais tomou ares ainda
mais radicais na primeira década do século XXI e vem se exacerbando.
A batalha contra a visão machista e misógina da primeira mulher pre-
A dimensão do machismo e da misoginia sident~ divulgada pela mídia hegemônica foi e vem sendo travada pelas
A mídia teve uma participação intensa na propagação da miso- mídias sociais, de caráter progressista.
ginia no processo do golpe. Seja pelas opiniões dos telejornais, pelos Na realidade, desde o golpe disfarçado de impeachment têm sido
comentaristas, Facebook, Twitter e documentários tendenciosos. as mídias e redes sociais a divulgarem publicamente a imagem, as opi-
Participamos de uma campanha midiática que demonizou o partido ao niões, o trabalho internacional da presidenta eleita Dilma Roussef. Ela
qual a presidenta Dilma é vinculada, bem como a sua trajetória política continua sendo recebida internacionalmente com honras de chefe de
e institucional. Estado, enquanto o presidente ilegítimo e o seu governo têm sido visi-
Apresentada como uma mulher com valores subversivos, que "pe- velmente suportados nos meios políticos internacionais e muito criti-
gou em armas" durante a ditadura, neurótica e sem controle emocional, cados pela imprensa internacional.
a imagem da presidenta foi se construindo socialmente como a antítese

NILMA LINO GOMES GOLPE DISFARÇADO DB IMP BAC HMilNT


A diferença de tratamento é de tal ordem que mesmo com todos Trata-se de abrir ps olhos para comparar o tratamento dado à primeira
os desmandos, corrupção, pronunciamentos autoritários na internet, mulher que ocupou o Executivo e que até hoje não teve comprovado
ordens equivocadas, como colocar as tropas do Exército nas ruas de qualquer crime de responsabilidade fiscal em relação ao tratamento
Brasília para massacrar manifestantes pacíficos, o governo ilegítimo dado ao homem, vice-presidente que usurpou o poder, com todo um
não sai das imagens e programas de entrevista na televisão, dos jornais histórico de envolvimento ilícito em propinas com grandes empresá-
televisivos, rádios, internet, Facebook e Twitter. Mesmo que seja para rios e com um fazer político, dos velhos tempos, recheado de jantares
criticar, a imagem dó homem branco, de classe média, usurpador dopo- caros e promessas para indução de votos no Parlamento.
der não sai de cena. As perguntas são: por que esse tratamento diferenciado? Simplesmente
Só esse fato já nos dá a dimensão da misoginia e do machismo. Esses porque estamos falando de p~rtidos de esquerda e de direita? Por que esta-
mesmos m eios de comunicação, desde o início do segundo mandato da mos avaHando "a melhor" forma de fazer política e conduzir a economia?
presidenta eleita, silenciaram sobre os seus feitos, sabotaram a sua ima- Será que é só isso?
gem e do seu governo, como se o país não tivesse uma chefe de Estado. A situação nos mostra o tipo de tratamento dado a nós, mulheres,
Enquanto isso esbanjavam notícias negativas sobre a economia, atri- quando ocupamos lugares de poder e decisão em uma sociedade que fin-
buindo-as ao Partido dos Trabalhadores e suas políticas dos últimos ge aceitar os avanços do femin ismo, mas que, na realidade, alimenta-se
13 anos, envolvendo as suas principais lideranças no Executivo Federal: do patriarcado, do racismo e do machismo estrutural. Fenômenos que a
Lula e Dilma. A misoginia é de tal ordem que até revistas publicaram luta das mulheres tem desvelado e denunciado. São construções sociais,
capas altamente machistas e estereotipadas com a imagem da presi- políticas e culturais alicerçadas em estruturas profundas. E essas estru-
denta eleita, insinuando que a mesma não estava bem das faculdades turas compõem o sistema de dominação masculina: o machismo.
mentais, que estava descontrolada. Se essa deturpação ficasse retida E é contra esse sistema de dominação que qualquer mulher que o
apenas à mídia hegemôníca ou veículos das redes sociais conservadores desafia e disputa cargos e funções tidas como masculinas tem que lu-
e contrários à presidenta e ao seu partido, já seria sério. Mas o pior é que, tar. E já que a sociedade brasileira se alimenta de desigualdades estru-
sendo formadores de opiniões, revistas e jornais, enfim, o mundo da turais, se somarmos a raça, a origem socioeconômica, a sexualidade,
mídia, conseguiu expandir a visão negativa da primeira mulher eleita a idad~ e a localização geográfica e regional, as dificuldades e desafios
presidenta no Brasil e no exterior. serão ainda mais intensos para as mulheres. Esse mesmo sistema de
Mesmo com todas as denúncias dos últimos tempos, que provam dominação masculina, quando quer desqualificar especialmente as
como o impeachment foi tramado por uma articulação escusa de em- mulheres em lugares de poder e decisão associam a sua forma de ser e
presários, mídia hegemônica, políticos, ruralistas, capital internacio- de agir às questões da sexualidade, à suposta sensibilidade feminina,
nal, vários setores da população brasileira ainda alimentam essa ima- ao fato de ser ou não ser mãe, ter ou não um companheiro, ficar ner-
gem estereotipadamente construída da primeira mulher presidenta e vosa por estar "naqueles dias" ou na fase da menopausa. Quem já não
do seu governo. ouviu esse tipo de associação feita nos discursos machistas de homens
Não se trata de fechar os olhos para aquilo que foi limite no ato de (e mulheres!) quando julgam os atos de uma mulher que ocupa lugar de
governar ou na forma de governar escolhida pela presidenta eleita.

'54 NJLMA LJNO COMllS GOLPE DISI'AilÇADO Dfi IMPEA CIIMJlN T


poder e decisão, principalmente, quando discordam dos encaminha- frase "Volta, que~ida!", contrapondo-se à ridicularização um sentimen-
mentos por ela feitos? to de afeto e reconhecimento da competência.
O golpe dado à presidenta eleita Dilma Rousseff foi uma tacada do O fato de um homem branco, de direita, deputado federal, dar o seu
patriarcado e do machismo sobre todas nós, mulheres, mesmo para voto no fatídico dia 17 de abril de 2016- dia da vergonha- homenagean-
aquelas que abertamente se mostram contrárias às ideias, ao partido e do o comandante Ustra, reconhecido torturador durante o período da
o modo de agir da presidenta. Se entendemos o machismo como um ditatura militar, e um dos torturadores da própria presidenta quando
sistema de domináção presente na realidade social, cultural e política, a esta atuava na militância de esquerda contra o golpe militar de 1964,
vitória desse sistema somado ao patriarcado ao expulsar a primeira mu- é mais um exemplo de misoginia. No voto e na saudação do deputado
lher presidenta eleita recai sobre as demais mulheres. Simbolicamente, estavam representados um~ posição favorável à cultura do estupro, o
coloca em xeque a nossa competência. E mais, afirma para os homens desprezo, a violência e o ódio contra a mulher.
machistas que eles continuam liderando os espaços de poder e que, so- No Legislativo, assistimos essa pactuação sinistra entre o machismo
mado aos lugares que ocupam na hierarquia social e econômica, eles e a misoginia vinda também das próprias mulheres. Ninguém está livre
podem se beneficiar do imaginário machista para se manter no poder, desse imaginário de dominação masculina, nem as próprias mulheres.
mesmo quando não tiverem razão. Quem não se lembra da deputada federal que, histericamente, pulou e
Pode parecer uma avaliação radical, mas aquelas que já ocuparam balançou a bandeira brasileira dizendo "Sim! Sim! Sim!" ao impeach-
esses lugares sabem muito bem como tudo isso funciona. Por isso foi ment e ainda dedicando o seu voto ao marido, na época prefeito de uma
muito importante que, desde o início do seu primeiro mandato, Dilma cidade do interior de Minas Gerais, que, dias depois, foi preso por cor-
Rousseff tivesse instituído que a chamassem de presidenta, como uma rupção e perdeu o mandato?
demarcação de gênero. Logo em seguida ouvimos homens, mulheres, Alguém se lembra de alguma entre as pouquíssimas mulheres do
especialistas na língua portuguesa e juristas se horrorizarem com tal Poder Judiciário, dentro da liberdade que a posição lhes proporciona,
ato. Mas, como sempre, depois de tudo, descobrimos que tal tratamen- emitir alguma opinião denunciando o trato machista e misógino dado
to é possível dentro da língua portuguesa. à presidenta eleita durante todo esse processo? Enquanto isso, vários
home~s do Judiciário encheram as redes sociais e a mídia hegemônica
com comentários desrespeitosos.
Tchau querida e volta querida! A desigualdade de gênero e a misoginia alimentadas durante todo o
A frase "Tchau, querida!", como um deboche à imagem da mulher/ processo do golpe disfarçado de impeachmente sofrido por todas as mu-
presidenta e à relação profissional c de amizade desta com o ex-presi- lheres, representadas pela figura da presidenta eleita Dilma Rousseff,
dente Lula, adotada pela oposição durante todo o processo de admis- não ocupou os programas de análise de conjuntura, nem, tampouco,
sibilidade do impeachment, comprova também a misoginia. A frase é os debates dos partidos da própria esquerda. Se não fossem as mulheres
uma crítica que mistura o desprezo ao lugar do feminino e a afirmação ativistas dentro dos partidos de esquerda, nas redes sociais, no movi-
de que o Executivo não é um espaço para as mulheres. No seu .lugar, mento feminista, de mulheres negras, nos demais movimentos sociais
o Movimento de Mulheres e demais movimentos sociais cunharam a e sindicatos e nas universidades, essa questão não teria visibilidade.

NILMA LJNO GOMES GOLPE D ISFARÇA DO DI! IMP EACHMENT


Pude observar vários livros e seminários que abordaram o golpe em quer seja no Legislativo ou em outros lugares de poder e decisão. Será?
uma perspectiva progressista serem escritos e realizados apenas com a A realidade da política brasileira tem nos mostrado quão perigosa e
presença de autores homens do campo progressista. Por que? Nós, mu- equivocada é essa situação.
lheres, não podemos fazer análise econômica, política e de conjuntura? Mas se entramos na disputa política de maneira digna, sabemos que
E ainda, muito raramente essas publicações de caráter crítico admiti- uma candidatura feminina, diante de tudo o que já foi exposto neste ar-
ram as questões de gênero e a misoginia como parte da análise do gol- tigo, não se dá da mesma forma que a masculina, pois o campo da polí-
pe. Ou seja, até mesmo no campo emancipatório nós, mulheres, ainda tica não foi e nem está sendo pensado para nós, mulheres, e para a nossa
enfrentamos a luta por reconhecimento, visibilidade, lugares de poder presença, forma de pensar e fazer política. Nem sempre as bandeiras que
e decisão, o que co~prova o caráter estrutural do machismo e do pa- muitas de nós carregamos ~ão aceitas, inclusive, em parte do universo
triarcado que ajudam a exacerbar a misoginia. feminino conservador. O esforço é maior, a disputa é mais acirrada e há
que se analisar muito bem as condições e o momento da disputa.
Não tenho muita certeza de que o bom negócio é concorrer de qual-
Repercussões do machismo e da misog1n1a do golpe quer jeito para colocar toda e qualquer mulher nos espaços de poder,
Se já temos uma diminuição do número de mulheres eleitas nas úl- como defendem algumas companheiras. Numa sociedade tão conser-
timas eleições federais, estaduais e municipais, corremos o risco de ver vadora, p~triarcal, machista e racista precisamos muito de mulheres
esse quadro se agravar ainda mais com o advento do golpe. Já tivemos com perfil de esquerda, com diferentes pertencimentos étnico-raciais e
esse resultado negativo nas eleições municipais de 2016 e teremos que socioeconômicos. Com isso, não quero dizer que em alguns momentos
trabalhar muito para uma mudança em 2018. Não se trata apenas de as essa estratégia "universalista de gênero" não seja necessária. Mas há que
mulheres tomarem coragem, candidatarem-se e disputarem lugares saber muito bem como, quando, qual o melhor e qual seria o momento
de poder. Aquelas e aqueles que participam dessas instâncias políticas para adotá-la.
de gestão e partidárias sabem que uma candidatura precisa ser previa- Considerando o machismo, o patriarcado, o racismo e a rnisoginia,
mente construída. Principalmente, se seguimos o caminho legítimo de faz-se cada vez mais necessário que nós, mulheres, articulemos a nossa
como se deve organizar uma candidatura. prese~ça nos diferentes espaços com uma proposta política emancipa-

Sabemos que os caminhos ilegítimos elegem muito mais rapida- tória. Que analisemos o perfil, as condições, os recursos e as alianças
mente alguns artistas, humoristas, jogadores de futebol, empresários que poderão ser feitas. E que as pautas de gênero e de raça façam parte
que nunca se interessaram pela vida política e que, de um dia para o das nossas propostas.
outro, aproveitam-se da sua imagem pública e de recursos financeiros
investidos na campanha para se elegerem ou ganharem disputas em ou-
Considerações finais
tros pleitos. Estes costumam vir a público dizer que não são políticos e
nem são pobres, por isso, não "precisam e não serão fáceis de corrom- Finalizo relembrando uma parte da reflexão que registrei em um ar-
per". Eles autointitulam-se como "gestores". E, na sua grande maioria, tigo publicado no livro Mídia, misoginia e golpe, organizado por Elen
são homens. E brancos. Afirmam que, por isso, farão um bom mandato, Geraldes e colaboradores (2016):

NILMA LINO COMES GOLP E OISPARÇAOO DE IMPEACHMI!NT


As mulheres no poder, nessa concepção machista e racista, são vistas como inferio-
res e sofrem os mais terrfveis tipos de assédio moral e sexual. Quando as mulheres
tornam público esse comportamento machista e misógino dos homens, disputando
com eles posições de poder, recusando-se a agir como eles desejam e deles diver-
gem, tornam-se fonte de ódio, de desejo, de disputa. Encontram nos homens não os
seus parceiros, mas verdadeiros opositores e algozes que se aprovei tam das desigual-
dades de gênero e da pouca presença de mulheres em lugares de poder e decisão
para tentar inferiorizá-las, subjugá-las, desrespeitá-las e até mesmo violentá-las física
e psicologicamente. Há uma outra história que se esconde por trás do processo de
golpe disfarçado em impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff. Uma his-
tória da relação de poder em uma sociedade machista, racista e classista que despre-
za as mulheres, duvi.da da nossa capacidade e inteligência, constrói armadilhas moti- Sobre o golpe e as mulheres no
vadas pelas questões de gênero e misoginia. Lamentavelmente são os mesmos poder
conteúdos da cultura do estupro e da violência contra a mulher, porém, com roupa-
gem refinada, na maioria das vezes, de terno e gravata. (RAMOS, 2016, p. 241) Olíuia Santana

Referências
GERALDES, E. C. etal. (Org.). Mfdia, misoginia e golpe. Brasília, DF: FAC Manhã de sabor amargo, aquela do dia 12 de maio • Pedagoga e atual Secrc
Livros, 2016. do Trabalho, Emprego, F
de 2016, data em que a presidenta Dilma Rousseff Esporte da Bahia. Foi ve1
foi afastada por 180 dias, após a abertura do pro- por três mandatos em S
RAMOS, L. de S. Nilma Lino Gomes. In: GERALDES, E. C. etal. (Org.). (BA) e também Secretá1
Mídia, misoginia e golpe. Brasília, DF: FAC Livros, 2016. p. 237-2.41. cesso de impeachment no Senado. Muitas de nós,
Estadual de Polfticas pa1
mulheres feministas, estávamos em Brasília, par- Mulheres.
ticipando da IV Conferência Nacional de Políticas
para as Mulheres, cujo tema era "Mais Direitos,
Participação e Poder para as Mulheres". Uma ironia
dramática.
Ainda antes da Conferência, na comissão organi-
zadora, coube a mim escrever um texto - colhendo
também contribuições de outras companheiras -
refutando a possibilidade do golpe. Li na plenária a

160 NJLMA LINO GOMES


"Carta Aberta às Mulheres Brasileiras", naquele clima em que a realida- Benedita da Silva, da Assistência Social, (2003 a 2004) e a ministra
de era tão chocante que mais parecia um pesadelo. Matilde Ribeiro, de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (2003 a
Foi um protesto sentido, lido com a voz embargada de quem esta- 2008). A passagem de Benedita pelo governo foi meteórica. Após ter fi-
va estupefata e indignada com a imposição de semelhante injustiça. cado apenas um ano à frente da pasta, ela saiu sob acusação de ter usado
Consegui dizer que retirar com pretextos fúteis uma mulher que fora recursos públicos em uma viagem à Argentina para um evento religio-
eleita e que cumpria suas funções, era um golpe revoltante. Atenta, so de interesse particular. Matilde foi descartada por ter sido acusada
atônita e compartilhando do mesmo sentimento, a plateia me ouvia. de fazer mal uso do cartão corporativo, com direito a uma humilhante
Disse que os golpistas queriam suspender a aplicação do programa de coletiva de imprensa, que mais parecia um pelourinho eletrônico, vir-
governo que ganhara quatro eleições seguidas e pôr em prática o pro- tual. Ambas sofreram dur~s ataques da grande mídia, eivados de pre-
grama derrotado nas urnas. Ao final, a emoção se entrelaçou com a em- conceitos machistas e racistas, e, lamentavelmente, as vozes de defesa
polgação e aquela plenária de mulheres brancas, negras, indígenas, qui- foram de baixo potencial audível. Não se trata aqui de defendermos ati-
lombolas, ciganas, filhas do povo, umas universitárias, outras não tão tudes não probas, sob qualquer pretexto. Como destaca Rita Tourinho
letradas, mas todas carregadas da sabedoria que só a labuta da vida traz, (2009), o poder discricionário de um gestor ou de uma gestora pública
levantou-se a uma só voz e por aclamação aprovou o documento que eu deve levar em conta os princípios da legalidade e da moralidade, por-
lera como se fosse um manifesto, ao som dos gritos improvisados: "Não tanto, toda má utilização de dinheiro público deve ser combatida.
vai ter golpe!". Entretanto, não se pode ter dois pesos e duas medidas. Muitas au-
Ovações concluídas, todas se entreolhavam naquele misto de dor, toridades públicas praticam delitos infinitamente maiores que os erros
revolta e esperança, quem sabe, na expectativa de que algo pudesse cometidos pelas mulheres que ilustram a situação aqui em análise, mas
acontecer para repor as coisas nos seus devidos lugares e salvar o man- são sujeitos que gozam de elástica tolerância por parte de instituições de
dato da presidenta. fiscalização e punição. Esses são invariavelmente homens brancos que
Entretanto, a dura realidade se impôs e, a despeito da veemência detêm poderoso networking, rede de contatos influentes, que garantem
de todas, de·nossas plataformas e da manifestação do nosso desejo de a blindagem de suas presenças nos espaços de poder, a despeito de tur-
preservação da democracia e da mais importante conquista de empo- bulên~ias que possam experimentar. Mas as mulheres, especialmente
deramento que tivemos na história (a chegada de uma mulher à presi- as negras, não dispõem do direito de errar. Aqui cabe recepcionar a aná-
dência), não logramos forças para barrar o golpe. Assim, o velho poder lise feita pela ativista Sueli Carneiro (2009, p. 6) acerca da sub-repre-
patriarcal e oligarca, expresso em cores berrantes pelo então vice-pre- sentação e dos estereótipos construídos sobre a figura da mulher negra
sidente Michel Temer, usurpou a faixa presidencial, com o benepláci- que "determinam tanto a sua ínfima presença nas instâncias de poder
to de congressistás, membros do Ministério Público e do Judiciário. como as dificuldades adicionais que lhes espreitam quando ousam
Cumpriu-se o planejado, com a facilidade de quem remove um intruso romper portas e adentrar lugares para os quais não foram destinadas".
da sua poltrona predileta. Em entrevista ao jornal The Washington Post, ao comentar so-
Vale lembrar, ainda no governo Lula, a for_ma como duas mulhe- bre a crise política que impactava o seu governo, a presidenta Dilma
res negras foram também excluídas da alta esfera do poder, a ministra Rousseff fez a seguinte afirmação: ~'Eu acredito que tem um pouco de

OL(VJA SANTANA SOfllll! O COLPll I! AS MVLHlllli!S NO PODJ!R


preconceito sexual ou preconceito de gênero. Eu sou descrita como uma 305,00 dólares ~m 2014; o pré-sal foi descoberto, passando a ser base de
mulher dura e forte, que coloca seu nariz em tudo que ela não deveria". um grande projeto de emancipação energética, econômica e social para
(WEYMOUTH, 2015, tradução nossa) Sem dúvida Dilma foi muito o país. Enfim, um ciclo virtuoso começara a se erguer, proporcionando
polida ao diagnosticar "um pouco" de preconceito sexual ou de gênero algum bem-estar a milhões de brasileiras e brasileiros.
na saga implementada por forças conservadoras e de direita para des- Mas a crise econômica, que fez estrago em diversos países, também
bancá-la do poder. Na verdade, desde sempre o sexismo fez-se presente chegou a Pindorama. E ao invés de termos um governo unido para en-
em seu caminho, da escolha do seu nome até a sua gestão presidencial. frentá-la, o que vimos foi um desnorteamento generalizado e ao final
Quando entrou em pauta.a escolha de um nome para suceder a Lula na uma capitulação indecorosa às exigências do rentismo que, para não ver
presidência, não for~m poucos os que torceram o nariz ao se surpreen- reduzidos seus lucros, exigiu do governo impostor que jogasse toda a
derem com a escolha feita pelo presidente de uma mulher para dispu- carga dos prejuízos nas costas das camadas mais vulneráveis da popu-
tar as eleições. Afinal, entre tantos homens, por que uma mulher? E seu lação, os mais pobres, as mulheres, os negros, os trabalhadores e as tra-
nome só prevaleceu porque Lula gozava de alto prestígio, chegando ao balhadoras do campo.
final do seu segundo mandato com mais de 8o% de aprovação. E para os Foi uma verdadeira desconstrução nacional e social, facilitada e feita
que clamavam por um Hércules, eis que é apresentada uma Joana D'Arc a toque de caixa, em função dos mecanismos que tiveram que lançar
que, mais adiante, não escapou da fogueira simbólica em que se conver- mão Lula e Dilma para chegarem ao poder, aliando-se a partidos ideolo-
teu o linchamento midiático, levando-a à perda do mandato. gicamente divergentes, conservadores, como PMDB, PP, PTB e outros.
A chegada de Rousseff ao poder foi, portanto, um ponto fora da cur- Sem aquelas alianças, seria impossível·conquistar a presidência, pois a
va. As tensões de gênero permearam enormemente o processo sistemá- esquerda sozinha poderia chegar a 30% do eleitorado, e só atraindo se-
tico de tornar ilegítima sua liderança. Isto se deu misturado à grande tores do centro e dividindo a direita, teria a possibilidade de ultrapassar
carga de ataque ultraliberal dos setores conservadores da elite nacional os 50%. Afinal, para além de ideários, política também é matemática.
e grupos estrangeiros, que estavam determinados a pôr fim à agenda Ademais, o golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016 se deu
democrática e popular desenvolvida por Lula e continuada por ela. num contexto de crise mundial e de enormes pressões dos EUA para
Apesar de todas as tentativas de sabotagem, a era Lula/Dilma foi mant~r-se como potência hegemônica, retendo a emergência de uma
exitosa. Foi um ciclo em que se afirmou a soberania nacional e se ergueu nova ordem mundial multipolar, de maior equilíbrio entre as nações.
o Brasil no concerto das nações; o PIB que era de R$1,2 trilhão em 2001 Ventos democráticos sopraram ao sul do Equador, a partir de 2000.
pulou para R$5,2 trilhões, em 2014; o Brasil saiu do mapa da fome das Além do Brasil, na Argentina, Venezuela, Bolívia e no Uruguai, gover-
Nações Unidas (FAO, 2015); novas universidades foram construídas c a nos populares foram eleitos, encamparam agendas de afirmação de so-
política de cotas, assegurou assento para a juventude mais pobre, e para berania, e apostaram em acordos de integração e desenvolvimento da
os negros; as mulheres ganharam prioridade nos programas de trans- América do Sul e de toda a América Latina. O Brasil teve papel estraté-
ferência de renda e Minha Casa Minha Vida; as trabalhadoras domésti- gico de liderança regional. Além de enfrentar o poderio estadunidense,
cas, majoritariamente negras, conquistaram alguns direitos com a Lei contribuiu com a criação e desenvolvimento dos BRICS, em contrapo-
Complementar 150/201 5; o salário mínimo saltou de 86,21 dólares para sição ao G7.

OLIVIA SANTANA SOBRE O GOLPE B AS MULHERBS NO PODBR


A vingança veio no galope da espionagem. O WikiLeaks revelou Argentina, dur~s ataques, acusação de corrupção, abalaram sobrema-
que o governo Dilma foi vasculhado pelos Estados Unidos. Edward neira o governo de Cristina Kirchner, abrindo o caminho para a vitória
Snowden chegou a afirmar e apresentar dados de que o Brasil seria o país do direitista Mauricio Macri; na Venezuela, Nicolás Maduro, embora
mais espionado da América Latina, especialmente em área estratégica tenha ganho duas eleições disputadíssimas e altamente fiscalizadas,
como o setor petrolífero, especificamente a nossa Petrobrás e a extraor- mantém-se no comando, sabotado e agredido diuturnamente.
dinária riqueza que a descoberta do pré-sal representou. (VIANA, 2015) Em todos esses países, os governos impostos, ou mesmo eleitos, as-
A presidenta da República, sua secretária, ministros, e até o avião sumiram uma concepção neoliberal, e as agendas anteriores, de desen-
presidencial foram alvos de grampos telefônicos. Ao tomar conheci- volvimento com distribuição de renda e de integração regional, foram
mento desses absurdos, a presidenta cancelou viagem oficial aos Estados abandonadas. Os problem~s se agravaram e o povo sofre as mais du-
Unidos, fez um duro pronunciamento contra a prática de espionagem ras consequências. Vale aqui resgatar a dramática reflexão de Eduardo
estadunidense e levou o caso para a 68" Assembleia da Organização das Galeano (2010, p. s) em As Veias Abertas da América Latina:
Nações Unidas (ONU), alertando que o grave incidente diplomático
Alguns pafses especializam-se em ganhar, e há outros que se especializaram em
feria o direito internacional. Defendeu com maestria e firmeza a sobe-
perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América latina, foi pre-
rania das nações. Mas o mal já estava feito e o golpe, longe de ser uma
coce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do
ação doméstica, com certeza tem seus tentáculos no coração do impé-
Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta.
rio, como o tempo mostrará.
No passado, os golpes de Estado por essas bandas, eram à base das A ação golpista nos impõe o retrocesso. Fica a questão: que país pode
quarteladas (todas fomentadas por interesses estrangeiros em articula- se impor como nação soberana se parte significativa da sua elite eco-
ção com grupos nacionais de direita). As botas e baionetas revelavam a nômica e política está vocacionada a apenas buscar nacos de vantagens,
autoria militar de tomada do poder por via da força. Hoje há uma mo- atendendo a interesses estrangeiros que nos mantêm sob amarras neo-
dernização da forma como se interrompem mandatos e se trocam o co- colonialistas? Tal prática é histórica por essas bandas e tem matado nos-
mando de nações, vergando-as a uma tradição de subaltemidade. sas melhores perspectivas de futuro.
Aqui mesmo, na América Latina, uma onda desestabilizadora, de Este cenário tão complexo esvazia a tese misógina de alguns que in-
poucos anos para cá vem modificando a configuração política de diver- sistem em afirmar que Dilma teria caído por ser mulher, e não ter com-
sos países. Golpes têm sido dados, mas de forma modernosa: não é mais petência para dirigir o Brasil. A presidenta foi derrubada porque, na qua-
o golpe militar de estilo clássico, mas articulações preponderantemente dra da disputa de poder sobre a região, o governo dela era um empecilho
parlamentares-jurídicas-midiáticas, com eventual participação secun- à consecução de interesses neoliberais de alta monta. Decididamente
dária dos militares. Em Honduras, Zelaya foi deposto, num golpe mi- razões de gênero não foram determinantes para o golpe. Entretanto,
litar-jurídico-parlamentar, em 2009; no Paraguai, em 2012, Fernando converteram-se em um importante ingrediente facilitador da investi-
Lugo foi deposto através de um impeachment forjado, aprovado no par- da gol pista, já que, numa sociedade machista e misógina, como a nossa,
lamento, em 24 horas; no Brasil, o golpe parlamentar-jurídico-midiáti-
co de 2016, teve, aos olhos do senso comum, aparência de legalidade; na

SOBRil O GOLPE E AS MULHERES NO PODER


t66 OLfVIA S ANTANA
violar os direitos das mulheres é tolerável, ainda que se trate daquela que subjetivas das ~ulheres na esfera de poder, de difícil superação. Muitas
fora ungida pelo povo com mais de 54 milhões de votos para governar o dessas mulheres, ainda que estejam n.a paisagem do poder, são prisio-
país. neiras das amarras de gênero, não se comportando como senhoras ple-
Há que se examinar também a composição das forças presentes no nas de seus mandatos, mas atuando como instrumentos para atender
Congresso Nacional. Em 2014, segundo a pesquisa Radiografia do aos projetos e expectativas dos homens. Não raro entraram para a po-
Novo Congresso feita pelo Departamento lntersindical de Assessoria lítica institucional pela porta do matrimônio ou pelos laços de filiação.
Parlamentar, o eleitorado brasileiro elegeu o Parlamento com a pior São esposas ou filhas de poderosos e influentes que fazem do poder
composição desde 1964, ano do golpe militar. (DIAP, 2014) Cresceram que o povo lhes conferiu a extensão do pátrio poder. É, portanto, uma
os religiosos de feiç~o obscurantista, segmentos conservadores ligados forma de se manter nos m11rcos da imanência- como diria Simone de
às forças de segurança pública, os ruralistas e os que acham que a defesa Beauvoir' - sem transcender para recriar a política a partir da prioriza-
dos direitos humanos é algo a ser desprezado. ção das pautas de afirmação das mulheres e de promoção da emanci-
Esses setores ganharam o apelido de bancada BBB -da bala, do boi pação de todas. Vale aqui ilustrar com o exemplo da deputada Raquel
e da bíblia. Já a bancada que tem origem na luta dos trabalhadores, fi- Muniz que, ao gritar desesperadamente pelo "sim" ao impeachment da
cou reduzida, de 83 para apenas 50 parlamentares, sendo que a peque- presidenta, afirmou que o Brasil tinha jeito, como comprovava a gestão
na bancada mais identificada com a luta antirracista perdeu nomes do seu marido, o prefeito de Montes Claros. No dia seguinte ele foi pre-
importantes a exemplo do ex-deputado e ex-ministro da Promoção da so pela Polícia Federal, acusado de crime de corrupção pela Operação
Igualdade Racial, Edson Santos, do Rio de Janeiro, da deputada Janete Máscara da Sanidade II - Sabotadores da Saúde. •
Pictá, de São Paulo, e do deputado Luiz Alberto, da Bahia. Mesmo a ban- Tem-se falado sobre as dificuldades de Dilma lidar com o Parlamento.
cada feminina tendo crescido levemente, saindo de 46 para 51 deputa- Sem dúvida, a experiência política da presidenta era de outra ordem,
das, ainda tem uma representação feminista verdadeiramente pequena. mais voltada para a gestão dos projetos do que para lidar com as pessoas
Na votação em favor do impeachment, 29 mulheres disseram sim, e suas mais diversas expectativas frente ao governo. Isto pode ter aden-
20 votaram·contra, uma se absteve e outra não compareceu. Se com- sado problemas com o Congresso. Mas, não percamos de vista que as
parado aos homens, proporcionalmente, as mulheres foram mais soli- características altamente retrógradas desse Congresso, as que eram co-
dárias à presidenta, já que não chegou a dois terços as que apoiaram o nhecidas e as que se revelaram vergonhosamente nos últimos tempos.
golpe. Entretanto, considerando todas as lutas que foram pavimentan- Neste particular, parlamentares altamente permissivos encontraram-
do o caminho para que as mulheres pudessem chegar ao parlamento, se com uma presidenta impávida, indisposta a barganhas e chantagens.
esperava-se bem mais consciência dessa parcela de parlamentares, para Dilma montou seu governo buscando contemplar o leque de forças par-
a compreensão de que a trama do impeachment era falsa, gol pista, e que tidárias que lhe ajudaram a obter a vitória. Entretanto, a formação de
estava em jogo o mandato da única mulher na história da República a um governo de coalização não foi o bastante. O fisiologismo daqueles
conquistar a faixa presidencial. que a traíram exigia da governante infinita capacidade de atender a es-
Em uma apreciação, ainda que rápida do desempenho da bancada fe- tômagos insaciáveis. A julgar pela feição do governo Temer- seu ex-vi-
minina no Congresso Nacional, há que se considerar ainda as limitações ce-presidente- e os incríveis lances de alta corrupção, comprovada por

SOBRE O COLPil ll AS MULHERES NO P ODER


OLIVIA SANTANA
malas milionárias e gravações, era impossível a uma mulher da índole feito com alguns mestres em corrupção levantando hipocritamente a
de Dilma Rousseff conciliar interesses daqueles que, na verdade, veem bandeira da luta contra a corrupção.
a política como um ambiente de negócios escusos com vistas a enrique- A Operação Lava Jato, potencializada pelos holofotes da mídia,
cimento ilícito, não como estratégia de transformação do país e da vida lamentavelmente, tem sido, em várias das suas etapas, meticulosa-
das pessoas. mente seletiva, transparecendo que o seu alvo maior é o Partido dos
Mas há também que se analisar as insuficiências e as limitações do Trabalhadores (PT), e seu objetivo fora a derrubada da presidenta.
projeto erguido nos governos Lula e Dilma. Doze anos se passaram sem Muitos pesos e muitas medidas estão sendo usados na arena dos julga-
que, pelo menos, os governos populares pautassem a realização de re- mentos e no uso das delações premiadas. Juízes tendenciosos substi-
formas estruturais que pudessem criar as bases de um novo Estado, de tuem a venda de Temis, a qeusa da justiça, por lentes de aumento, para
caráter efetivamente democrático, mais desenvolvido e menos desi- enxergarem seus desafetos e salvaguardarem seus protegidos; tomam
gual. Uma reforma da Educação, com vistas a elevar a qualidade do sis- nas mãos a espada da punição e da perseguição e abrem mão da busca
tema público, do pensa~ento crítico e a torná-la acessível a todos; uma da justiça e do respeito às leis. E magistrados e promotores desprezam
reforma dos meios de comunicação, reduzindo oligopólios e democra- provas que ligam figuras de pr?a do PSDB e PMDB a altos esquemas de
tizando o acesso aos meios modernos de comunicação, especialmente corrupção e, por outro lado, tomam indícios como provas cabais, quan-
dos grupos historicamente silenciados; uma reforma tributária com do se trata de incriminar lideranças políticas ligadas ao PT e ao campo
taxação diferenciada das diferentes rendas, tributação das grandes for- aliado da presidenta Dilma. Lula foi, e continua sendo, o alvo absoluta-
tunas e promoção da justiça fiscal; uma reforma política democrática mente destacado para ser desconstruído aos olhos do povo, às custas do
que reduzisse a influência do poder econômico nas disputas eleitorais e que for preciso, para que jamais possa voltar à cadeira da presidência.
com critérios de promoção de mulheres, negros e jovens na democracia O dia em que o impeachment foi votado ficará na história corno uma
representativa. Todo esse elenco de reformas estruturais seria funda- página tão bizarra como as narrativas de Gabriel García Márquez sobre
mental para a consolidação da experiência que estava em curso. E isto os fatos terríveis e surreais que aconteciam em Macondo, cidade imagi-
não foi feito: Criar um pacto social, com participação ampla, em torno nária do romance Cem anos de solidão.
das reformas, era um caminho que poderia gerar o cimento da sustenta- A .era Temer, marcada pelo pragmatismo tosco, de um presidente
ção do governo. As políticas compensatórias de transferência de renda ilegítimo, que procura apagar todas as marcas progressistas do governo
para os mais pobres foram acertadas, mas elas não substituiriam políti- anterior, foi iniciada eliminando a presença de mulheres, de negros e de
cas estruturantes para o desenvolvimento nacional. gente de extração popular do seu primeiro escalão. A fotografia de um
O golpe de Estado que solapou o mandato da presidenta foi um ver- governo constituído por 24 homens brancos comandando ministérios
dadeiro ataque às ·conquistas democráticas e um assalto à história de evidenciou a marca misógina e falocêntrica da nova gestão, divorciada
empoderarnento das mulheres no Brasil. O que vimos foi uma quadri- da mais remota perspectiva de promover a igualdade entre os sexos na
lha de homens brutos perfilados à direita de um cabo de guerra entre ocupação de espaços de poder. As reações foram imediatas, no Brasil e
democracia e autoritarismo, fazendo valer a pior das alternativas, jo- no mundo. Diferente do que sugeriu a revista Veja (UNHARES, 2016),
gando a nação na trilha da incerteza e dos descaminhos. Tudo tem sido pouco tempo antes do golpe, sobre Marcela Temer, a esposa "bela,

O LiVII• SANTANA SOBR Jl O COLP Jl n AS MULH B RI!S NO POOJlR


recatada e do lar", como se esta devesse ser a vocação das brasileiras, as denunciaram o ~exismo, a misoginia dos novos governantes. O desmon-
mulheres bradaram nas ruas e nas redes sociais sua insati_sfação com o te do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos,
golpe e com o profundo retrocesso que ele significou na sua representa- fruto de uma fusão feita na reforma administrativa no governo Dilma,
ção política e em todos os aspectos da vida sociaL foi duramente criticado, repercutindo internacionalmente. Temer
Vale refletir, investigar melhor o que realmente queriam as pessoas voltou atrás e recriou a Secretaria de Políticas para a Igualdade Racial,
que foram manipuladas para respaldar a derrubada do governo Dilma. a Secretaria de Políticas para as Mulheres e a Secretaria de Direitos
O que queriam? Como se sentiram em relação ao que veio depois da Humanos. Não mais com o status de ministério ou como secretarias li-
saída da presidenta? O governo Dilma foi envolto numa imensa tor- gadas à presidência, todas foram para dentro do Ministério da Justiça.
menta. A presidenta foi perseguida, hostilizada, demonizada. A cada Se antes já existiam sem a. devida substância econômica, tornaram-se
pronunciamento público ouvia-se batidas de panelas em todo o Brasil; organismos precarizados e esvaziados na formulação das políticas pú-
um adesivo simulando o seu estupro foi distribuído quando houve blicas e, sobretudo, nos recursos para materializá-las. Acrescente-se a
aumento da gasolina; o cartunista Chico Caruso (2015) estampou no isso o fato de que, num governo de caráter extremamente conservador,
jornal O Globo, a infame charge da presidenta em posição de ser de- não há ambiente propício ao processo de transversalização das políticas
capitada por um carrasco do Estado Islâmico em pleno 8 de Março de para mul~eres, para os negros, e para a promoção dos direitos humanos,
2015, Dia Internacional da Mulher. Enfim, em pleno século XXI, os consubstanciando-se num verdadeiro desmonte de tais políticas. Mais
insultos misóginos sofridos por Dilma, figura pública, mas, sobretu- adiante, Temer criou um Ministério de Direitos Humanos, como uma
do, uma mulher de carne, osso e sensibilidade, revelaram que o nosso resposta à ausência de mulheres e negros no primeiro escalão e nomeou
seifcultural de hoje não anda muito distante do seifcultural vigente no ministra a desembargadora Luslinda Valois, medida que jamais ultra-
Renascentismo, em 1484. passou o perímetro do simbólico.
Como bem analisou a saudosa feminista Rose Marie Murara (2009), A democracia no Brasil retrocedeu terrivelmente. A Constituição
na breve introdução histórica do livro O martelo dasfeiticeiras, foi uma passou a ser sistematicamente violada. O governo Temer, com sua base
terrível contradição que, justo no apogeu da Renascença, a humanidade aliada, tem adotado medidas que impactam diretamente a vida dos que
tenha permitido que se acendesse a fogueira da inquisição e nela fossem mais precisam da proteção do Estado. Congelou por 20 anos as verbas da
consumidas as vidas de milhares de mulheres acusadas de bruxaria, educação e da saúde públicas, além de outras áreas sociais; impôs a Lei
simplesm ente por exercerem seu poder divergente dos códigos e nor- da Terceirização indiscriminada; fez a Reforma Trabalhista que, entre
mas vigentes na época, e por buscarem liberdade e autonomia. outros absurdos, permite que mulheres grávidas e lactantes trabalhem
Fato é que uma histeria coletiva tomou larga parcela do povo brasi- em locais insalubres, mediante autorização médica; pautou a Reforma
leiro, emulada pelos grandes meios de comunicação. O país ficou pola- da Previdência, buscando imputar aos trabalhadores um suposto défi-
rizado entre antipetistas e petistas, chamados, respectivamente, "coxi- cit previdenciário de 152 bilhões, dados desmentidos pela Associação
nhas" e "mortadelas", e não viu a luz da razão. E o maniqueísmo se fez Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e
golpe e habitou entre nós. outras instituições. (ANFIP; DIEESE, 2017) O desmonte só empurra
Havia mulheres dos dois lados, entre os que queriam o golpe e os o país para o abismo. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
que defendiam a permanência da presidenta e a democracia. Vale, en-
tretanto, valorizar as manifestações das jovens e de outras gerações que

OL IVIA SANTANA SOBRE O GOLPE E AS MULHERES NO PODER


Contínua de abril de 2017 indicava que 14,04 milhões de brasileiros es- Referências,
tavam d esempregados. {IBGE ... , 2017) ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DA RECEITA
Quando escreveu Quarto de Despejo em 1950, acatadora de papelão FEDERAL DO BRASIL- ANFIP; DEPARTAMENTO INTERSINDICAL
que se revelou urna genial escritora, Carolina Maria de Jesus, fez um re- DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS- DIEESE.
lato chocante: "Eu, quando estou com fome, quero matar o Jânio, que- Previdência: reformar para excluir?: contribuição técnica ao debate
sobre a reforma da previdência social brasileira. Brasília, DF; 2017.
ro enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades cortam o
Disponível em: <https://www.anfip.org.br/doc/publicacoes/
afeto do povo pelos políticos". (JESUS, 1999, p. 33) Há que se ter em con- Livros_23_02_2017_12_o6_28.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2017
ta que o rebaixamento da política é a estrada que se abre para a barbárie.
Estamos vivendo um tempo de perplexidade, desalento e desencanto no BEAUVOIR, S. de. Fatos e mitos. In: BEAUVOIR, S. de. O segundo sexo.
seio do povo brasileiro, o que convoca os setores mais comprometidos 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. v. 1.
com a luta coletiva a buscar resgatar o país das mãos daqueles que usur- CARN EIRO, S. Mulheres negras e poder: um ensaio sobre a ausência.
param o poder central. Este fato imponderável acontece há apenas 30 Articulação de Mulheres Brasileiras, [S.l.J, 2009 . Disponível em: <http:/I
anos desde a redemocratização do Brasil. Nos vemos diante do desafio articu lacaodemul heres. org. br/wp -content/uploads/2015/o 6/TC-6-
de, mais uma vez, lutar por eleição direta para presidente da República. CARNEIRO-Suely-Mulheres-Negras-e-Poder.pdf>. Acesso em: 26 maio
E só a luta ampla, que resulta da aliança entre os diferentes movimentos 2017.
sociais, pode impulsionar a consciência crítica pelo resgate da democra- CARUSO, C. Entreouvido no deserto. O Globo, Rio de Janeiro, 8 mar.
cia e pelo reposicionamento do país no rumo do desenvolvimento e da 2015. Blog do Noblat. 1 charge, color. Disponível em: <http://noblat.
promoção do bem-estar social. Um novo e generoso projeto de nação oglobo.globo.com/charges/noticia/2015/03/charge-de-chico-
precisa surgir após o caos que estamos vivendo. Porém, sem as mulheres caruso-o8-o3-2015.htmb. Acesso em: 10 jul. 2017.
e sem os negros a democracia representativa nunca será capaz de espe- DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ASSESSORIA
lhar a grandeza da diversidade do povo brasileiro. PAR LAMENTA R - DIAP. Radiografia do novo Congresso: legislatura
2015-2019. Brasília, DF, dez. 2014. Disponível em: <http://www.
diap.org.br/index.php/publicacoes/finish/41-radiografia-do-novo-
Notas congresso/2883-radiografia-do-novo-congresso-legislatura-2015-2019-
1 Simone de Beauvoir (1908-1986) foi uma escritora, filósofa existencialista, memorialista e dezembro-de-2014>. Acesso em: 5 jul. 2017.
feminista francesa que produziu uma densa obra sobre as desigualdades de gênero e emanci-
pação das mulheres. GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e
2 O exemplo apresentado ganhou ampla repercussão na imprensa. Destaco reportagem do Terra, 2010.
íornal O Dia, com o título "Marido de deputada que fez discurso innamado pelo impeach-
ment é preso", publicada em 18 de abril de 2016. (NASCIMENTO, 2016) GARCfA MÁRQUEZ, G. Cem anos de solidão. 46. ed. Rio de Janeiro:
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até abril. Correio Braziliense, Brasília, DF, 31 maio 2017. Economia.
Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/
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OLfVIA SANTANA SOORE O GOLPil ll AS MULHERES NO I'ODER


'74
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TOURINHO, R. Discricionariedade administrativa: ação de improbidade (PCdoB} do Amazona
&. controle principiológico. 2. ed. rev. e atual. Curitiba: }uruá, 2009. Há uma relação perversa entre gênero e política, Procuradora Especial•
no Senado.
que ~ nossa tarefa transformar. A pequena partici-
VIANA, N. WikiLeaks: NSA espionou assistente pessoal de Dilma e pação feminina nos espaços de poder é a face mais
avião presidencial. Agência Pública: agência de reportagem e jornalismo
visível desta relação. Não tenho dúvidas de que isso
investigativo, São Paulo,4 jul. 2015. Reportagens. Disponível em:
<https://apublica.org/2015/07/wikileaks-nsa-espionou-assistente- foi um componente importante no processo de im-
pessoal-de-dilma-e-aviao-presidencial/>. Acesso em: sjul. 2017. peachment, aspecto abordado por mim, Vanessa
Grazziotin, e outras/os parlamentares "no calor da
WEYMOUTH, L. Why does everyone in Brazil hate their president? The hora",• em pronunciamentos nas comissões e no
Washington Post, Washington, June 25, 2015. Disponível em: <https://
plenário, bem como em artigos externos à luta par-
www.washingtonpost.com/opinions/brazils-president-dilma-rousseff-
points-to-the-sexual-bias-of-her-critics/2015/06/25/6f938e40-1aeb- lamentar.•
11e5-bd7f-46na6 odd8e5_story.html?utm_term=.ab63ead84dcf>.
Acesso em: 26 maio 2017.

176 OLfVIA SANTANA


atingiu-14-048-rn' '.,cia do Brasil, Dilrna Rousseff, e nenhuma justificativa legal para um afastamento como o que foi feito.
Acesso em: 11 jul. '
~iação da figura feminina e Também pudemos expor as reais intenções dos que ardorosamente de-
JESUS, C. M. de fendiam o impeachment.
Paulo: Ática, 19 .á presente até mes- Nós procuramos ouvir e dialogar com todas as forças, e com todos
Jmo a primeira-minis- os segmentos, e conseguimos construir uma bancada da legalidade.
UNHARES, T
,ões. Parafraseando a heroína comunista Olga Benário Prestes, neste proces-
18 abr. 2016. T
;sses ocultos e o alvo acabou so lutamos pelo bom, pelo justo e pelo melhor para o Brasil.
marcela-tetr
.n nenhuma acusação sólida.l Infelizmente, a maioria de ocasião que se formou já havia decidido
MURAR( •a, houve uma conjugação de in- pelo impeachment, indep~ndentemente da acusação ou dos motivos.
martelod _.1êiade de traições capitaneada por A questão de gênero transparecia em muitos discursos, mas além do
5-17. .Lente Michel Temer. preconceito, da misoginia e do machismo, houve também a perfusão de
NASC' . nte às eleições de 2014, quando o can- outros interesses que impactaram no voto dos senadores e das senadoras.
pelo iT .evantou a tese do impeachment. Ao lon- Pessoalmente, posso dizer que tivemos apoio de várias regiões do
Disp• .nando vários setores da mídia, segmentos país, mas também recebemos manifestações de ódio e intolerância vin-
de-c' .trariados, como a indústria petrolífera inter- das de diversas cidades. Ouvimos inúmeras críticas e recebemos milha-
htr res de mensagens de eleitores que eram favoráveis ao impeachment.
.ocupados com o avanço da Operação Lava-Jato,
o . da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Respeitei as críticas e aceitei que muitos eleitores estivessem insatis-
I .ntervenção da mídia sem precedente na história. feitos, pois sabia que a campanha midiática poderia nublar a percepção
.~nso bombardeio, de ações ilegais como a interceptação das reais intenções de Temer e seus aliados. Mas nunca tive dúvidas do
..s dela e do ex-presidente Lula, e de uma emulação goeb- meu papel e da responsabilidade que tinha na luta contra o golpe.
massas, manipulando o ódio, a raiva e o preconceito social. Hoje a história mostra que estávamos certos. O que temos vivido
.ias oportunidades, percebemos que a aglutinação desses se- desde o afastamento da presidenta Dilma Rousseff corrobora o alerta
jderia representar uma quebra das regras democráticas, mas o feit~ por ela própria presidenta, na data de seu afastamento efetivo, de
.ento simbólico foi a aceitação de um pedido de impeachment sem que o maior risco para o país era ser dirigido por um governo sem voto
paldo jurídico pelo ex-deputado Eduardo Cunha. nem legitimidade.
Milhões de brasileiros lutaram bravamente contra o impeachment:
movimentos sociais, setores progressistas da intelectualidade, da igreja
e Parlamento. Um balanço
Mas o nível de articulação dos setores mais conservadores, conjuga- Um ano 4 se passou desde que Michel Temer assumiu a presidência da
do com um apoio maciço da mídia, levou a uma conjuntura que conso- República, após uma decisão inicial da Câmara dos Deputados em reco-
lidou o golpe. mendar a abertura de um processo de impeachment contra a presidenta
No Senado, fizemos um debate aprofundado sobre as questões fis-
cais arroladas na denúncia, mostrando que não havia nenhum respaldo

VAN ESSA CllAZZIOTIN O I L M A : S f M B O L O I' A R A A P A R T I C I P A Ç À O I' O L f T I C A F ll M I N I N A


Dilma, e a autorização para abertura do processo no Senado, no dia 12 de R$149 bilhpes; em março de 2017, esse déficit subiu para R$156 bi-
de maio. lhões. Já a taxa de desemprego no Brasil, em abril de 2016, que era em
De fato, uma grande parte apoiou a saída da presidenta Dilma por- torno de 11,2%; hoje é superior aos 13%, ou seja, quase 14% são a taxa de
que acreditava nas promessas de que tudo melhoraria. desemprego. (FRAGA; CARNEIRO, 2017)
Nos bastidores do Congresso, ou até mesmo nos microfones, alguns Também prometeram que os juros baixariam significativamente e
diziam que a questão não era mais jurídica ou legal- já que a presidenta . tentam enganar a população, dando conta de que, nas últimas reuniões

I
Dilma perdera o seu apoio no Congresso Nacional e nenhum presiden- do Comitê de Política Monetária (Copom), houve queda na taxa de juros.
te governaria sem o apoio do Congresso Nacional.s De fato, houve queda, mas temos que analisar se as quedas da taxa
Com viés mais econômico, outros diziam que, diante da situação do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), dos juros oficiah
grave da economia nacional, só haveria uma saída, tirar a presidenta 1 do Brasil, foram superiores à queda da inflação. E aí chegamos à con·
Dilma e substituí-la pelo vice-presidente Michel Temer. (COSTA, 2015) clusão simples: em que pese ~ominalmente terem baixado as taxa~
O simples fato de um novo presidente assumir- argumentavam- já Selic de juros nos últimos meses, do ponto de vista dos juros reais, a!
levaria uma segurança maior ao mercado financeiro, e que nossa econo- taxas aumentaram, para o consumidor as taxas de juros permanece·
mia, portanto, voltaria a crescer. ram em torno de 41%,42%.
Precisamos, efetivamente, fazer um balanço do que aconteceu nesse São esses os números com que o governo presenteou a nação brasi·
último ano no Brasil e o que poderá vir a acontecer nestes próximos anos. !eira, o povo brasileiro, com um ano de exercício.
Um ano após a usurpação, o governo de Michel Temer só colecionou Agora estamos, a Câmara e o Senado, debatendo duas reformas qU<
números extremamente negativos, piores ainda se comparados com as foram entendidas como as prioridades do governo federal- a Reform;
promessas feitas por ele e pela maioria dos parlamentares que cassaram da Previdência e a Reforma Trabalhista.6
o mandato de uma presidenta que nenhum crime cometeu. O objetivo dessas reformas é equilibrar os gastos públicos às expen·
O que aconteceu com as contas do governo, que dizia que o déficit sas dos trabalhadores e das trabalhadoras, no sentido de que isso pos·
público era insuport~vel e que precisava alguém para pôr ordem na casa? sa contribuir para a superação de uma crise econômica estrutural de
Fechamos o ano passado aprovando, contra o nosso voto, o teto de sist~ma capitalista- porque não é uma crise econômica só do Brasil-
gastos- a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55/2016 -, para mesmo que venha em detrimento do bem-estar e do atendimento da~
quê? Para cortar gastos em investimentos, gastos na área social, gastos necessidades de cidadãs e cidadãos.
na área de educação, mas mantiveram intactos os gastos financeiros, Agora o governo passa a divulgar que em tomo de R$2 bilhões serãc
num orçamento em que metade dos recursos vai para pagar rolagem e liberados para pagamento das emendas dos parlamentares da base de
o principal de um:a dívida pública. governo. E para que liberar emendas de parlamentares? Para aprovar ê
A dívida pública do governo brasileiro, em abril de 2016, era de 71% Reforma da Previdência, para aprovar a Reforma Trabalhista.
do Produto Interno Bruto (PIB). Em março de 2017, era 79,9% do PIB. Que governo austero é esse?
Em abril de 2016, as contas do governo registravam um déficit da ordem Não podemos aceitar, de forma pacífica, que promovam essas refor-
mas absurdas contra o povo. Isso não é reforma; isso é contrarreforma,

180 VANESSA GRAZZIOTIN DILMA: S IMilOLO PARA A PARTICIPAÇÃO POLITICA FEMININA


isso é supressão de direitos, contra a qual não há senão a possibilidade A modificação desta situação é objeto principal da bancada femin
da resistência política. na, por meio da PEC 134/2016 e da campanha Mais Mulheres na Polític
Hoje há uma crise fiscal estrutural porque o governo optou por dis- Com esta proposta de emenda constitucional, pretende-se criar a rese
cutir e por resolver o problema do gasto e não o problema da arrecada- va de gênero para a ocupação efetiva de um percentual de vagas, a partir d
ção. Isso é algo lamentável em qualquer nação do mundo, entretanto voto proporcional, em lista fechada e com regra de alternância de gênero.
com perversão acentuada numa nação com as características do Brasil. Desde 2015, a campanha foi lançada oficialmente em 12 capitais e e1
O país, no âmbito da Organização paraa Cooperação e Desenvolvimento 11 outras cidades brasileiras, além de ter produzido e divulgado fart

Econômico (OCDE), ao lado da Estônia, é o único país que não cobra tri- material de pesquisa, como o livro Mais Mulheres na Política e o ma~
buto sobre distribuição de lucros e dividendos. As Nações Unidas já divul- das mulheres no poder, ~ncartado no mesmo.
garam inúmeros relatórios mostrando como o Brasil é o paraíso fiscal dos Lançada no fim de 2016, a terceira edição desse livro contém análi!
ricos, dos poderosos, desses que não pagam tributo. quantitativa e qualitativa sobre a desigualdade de gênero na política,
Precisamos de uma reforma tributária, não da destruição de nossa partir dos dados das eleições de 2014 e de 2016.
Previdência Social e de nossas leis trabalhistas - mas carecemos tam- Na história do Brasil, as eleições têm servido de indicador para aver
bém de uma reforma política que considere a fundo a imensa distorção guar a precariedade da democratização de gênero na sociedade brasileir
de gênero que hoje caracteriza a eleição de nossos representantes. Os dados das eleições de senadoras, deputadas, prefeitas e vereadc
ras mostram um panorama de crescimentos ínfimos, de estagnação, é
diminuição e mesmo de ausência total de representantes femininas. E1
Por m'ulheres no poder 2016,1.284 municípios brasileiros ficaram sem uma vereadora sequer

O segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff- iniciado em Nos melhores cenários, resultados mostram que as mulheres bras
2015 e terminado no triste 31 de agosto de 2016-, coincidiu com o lança- Ieiras parecem ter atingido um "teto" difícil de ultrapassar espontane;
mento da campanha Mais Mulheres na Política, um esforço conjugado mente, a despeito de medidas que garantiram um número de pelo m<
da bancada feminina na Câmara e no Senado para confrontar a sub-re- nos 30% de candidaturas femininas e também regulamentaram o us
presentação feminina nos lugares de poder político, que é um dos ele- do .tempo de propaganda para mulheres.
mentos centrais da reforma política que precisa ser feita no país. Hoje o sistema existente favorece uma sistemática sub-represem;
Na história do Brasil, as eleições têm servido de indicador para ave- ção feminina e uma super-representação masculina que resulta men<
riguar a precariedade da democratização de gênero na sociedade brasi- da disputa efetiva que das regras que pré-definem como o jogo eleite
leira. ral pode ser jogado.
o impacto do voto feminino- de mulheres e em mulheres- é repre- Talvez nem seja o caso de continuar chamando de representativo UJ
sado por outros fatores do sistema eleitoral. Barreiras históricas e so- sistema assim. Há uma grande diferença entre representar e substitui
ciais ainda inibem a entrada, a permanência e as perspectivas de futuro Estes homens não nos representam- nos substituem, usurpam um h
das mulheres na política, de modo que a representação masculina no gar que seria de outras de nós.
Parlamento continua inflacionada.

VANBSSA CRAZZ I OTIN OILMA : SfMBOLO PARA A PARTICIPAÇÃO POLfTICA FI!MJNINI


GRAZZIOTIN, V. O golpe de 2016 e a violência política de gênero. In:
RAMIRO, J. F.; MO RALES, R. S. de. Somos todas. Somos uma: formas de
pensar a mulher na sociedade brasileira. Porto Alegre: Arte Língua, 2016.
cap.16.
MAPA mulheres na política 2016. Brasília, DF: Senado Federal, 2016.
Disponível em: <https://wwwl2.senado.lcg.br/institucional/
procuradoria/proc-publicacoes/mapa-mulheres-na-politica-2016>.
Acesso em: 10 maio 2017.

NOBLAT, R. Sem apoio, como Dilma imagina governar por mais três
anos? O Globo, Rio de Janeiro, 22 out. 2015. Disponível em: <http:/I
noblat.oglobo.globo.com/meus-textos/noticia/2015/Io/sem-apoio-
como-dilma-imagina-governar-por-mais-tres-anos.html>. Acesso em:
10 maio 2017. I
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t86 VANilSS/1 CRAZZIOTlN

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