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de S ão Paulo ’
Pierre Monbeig

Embora só tivesse permanecido no país por onze anos, entre 1935 e 1946,
poucas pessoas chegaram a identificar-se tanto com São Paulo e o Brasil
como o geógrafo francês Pierre Monbeig (1908-1987), ex-professor da
Universidade de Paris I, a famosa Sorbonne.

Logo que chegou ao país, a convite da Universidade de São Paulo, seus


interesses foram absorvidos pelos problemas de uma região em pleno
desenvolvimento socioeconômico e cultural, Lançou-se, então, a seu
trabalho de doutorado, que iria tornar-se não apenas sua obra principal,
mas também um marco na literatura sobre a expansão da fronteira agrícola
no Brasil: o livro Pionniers et Planteurs de São Paulo, publicado em 1952
pela editora Armand Colin de Paris, cuja tradução para o português só
sairia 32 anos mais tarde. O texto que abre o presente volume também
estava inédito em nossa língua,

4 La Croíssance de la Ville de São Paulo (Grenoble: Institut et Revue de Géographie Alpine, 1953), Texto até
agora inédito em português. Tradução de Tamás Szmrecsányi, feita e publicada com autorização dos editores
da obra original.

14 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


I ntrodução

equena cidade de 26.040 habitantes em 1872, São Paulo


não passava de modesto centro administrativo de uma pro­
víncia cuja população somava 837.354 pessoas. As grandes sedes eco-
nômicas, demográficas e intelectuais do Brasil ainda se localizavam en-
tão no Rio de Janeiro e nas antigas capitais do Nordeste, Salvador e Re­
cife. A partir de 1890, a população do Estado de São Paulo aproximou-
ÍSe do milhão e meio, enquanto sua capital já havia mais do que dobra­
do o contingente. Dez anos mais tarde, estas cifras apresentavam um
crescimento brutal: 2.282.279 habitantes para o conjunto do Estado, e
239.820 para sua capital, a qual, desde então, não cessou de crescer ao
mesmo ritmo. Em 1920, sua população abrangia 579.033 indivíduos
(em face dos 4.592.188 do Estado), e o recenseamento de 1940 apu­
rou 7.261.698 para este último e 1.326.261 para a capital.
Levando em conta os municípios vizinhos, encontrávamo-nos na
presença, já naquela época, de uma aglomeração urbana com cerca de
2,3 milhões de habitantes. Essa grande São Paulo rivalizava em popu­
lação com o então Distrito Federal, inclusive acrescido da cidade de
Niterói. E isto não obstante o fato de o Rio de Janeiro já ter adquirido
suas dimensões quantitativas fundamentais, enquanto São Paulo esta­
va apenas começando sua revolução econômica e demográfica, a qual
se revelaria vertiginosa. Foi a um ritmo acelerado que seus arranha-
;céus substituíram as antigas casas térreas, que os loteamentos de seus
bairros operários ou burgueses, suas fábricas e depósitos tomaram lu-

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 15


gares antes ocupados pelo mato ou por pântanos. Forma uma metró­
pole, uma cidade comercial e até bancária, o maior centro industrial da
América do Sul, um núcleo intelectual e também um dos pólos da vida
política do país, que assim acabaram recebendo a herança do grande
burgo sonolento ainda representado por São Paulo em meados do sé­
culo XIX.
Tanto em sua morfologia como em suas funções, as cidades são o
produto de condições geográficas locais e regionais. Mas elas consti­
tuem além disso uma obra humana, que é reflexo e fruto das civiliza­
ções. Suas paisagens e atividades são o testemunho de aquisições cul­
turais específicas dos grupos humanos que nelas se sucedem e que
procederam à sua construção. “A substituição de uma civilização por
outra no mesmo âmbito espacial requer a formulação de uma nova
geografia humana” (Gourou, 1932:74). Entre a civilização do Brasil
Colônia e a de tipo norte-americano, as diferenças são substanciais. A
cidade que passa de uma à outra no intervalo de poucas décadas deve
apresentar os traços dessa mutação. A civilização importada de Portu­
gal havia tirado partido do espaço paulistano de acordo com suas ne­
cessidades e possibilidades. A civilização norte-americana, igualmen­
te importada, organizou-o de maneira completamente diversa, mas
não conseguiu apagar nele todos os vestígios do início de São Paulo:
pode-se percebê-los não só na paisagem urbana, mas também no
modo de viver dos paulistanos, que, embora fortemente impregnado
de americanismos, ainda permanece próximo ao dos citadinos da ve­
lha Europa.
No Brasil, a economia, a sociedade e os modos de pensar têm evo­
luído rapidamente, com a mesma velocidade que se deu o avanço de
seu povoamento para o Oeste. Embora São Paulo agora esteja bastan­
te longe das áreas pioneiras, ela permanece solidária a estas: seu cres­
cimento, a evolução de suas funções, têm sido complementares às
transformações ocorridas nas franjas pioneiras. A marcha para o Oes­
te e o crescimento da capital têm constituído os dois painéis de um
mesmo díptico. A metrópole paulista apresenta mais de uma seme­
lhança em relação às cidades novas (Monbeig, 1952). Não deixa de ser
notável que o mesmo nome sirva para designar tanto o Estado como

16 HISTÓRIA ECONÔMICA t)A CIDADE DE SÃO PAULO


sua capital, e que se denominem paulistas os habitantes de ambos.1
q É esta sociedade, com uma civilização que ainda não cristalizou
suas características nem chegou a atingir seus limites, e na qual se
misturam uma atmosfera americana e tradicionais afinidades com a
Europa, principalmente a ibérica, que proporciona à cidade de São
Paulo todos os seus atrativos, e que lhe confere um verdadeiro inte­
resse geográfico.2

1. Esta última afinnação deixou de corresponder inteiramente à realidade, já que se costuma desig­
nar como paulistas os habitantes do Estado e, ao mesmo tempo, chamar de paulistanos os que resi­
dem na cidade de São Paulo. Nesta tradução, procurou-se atualizar o termo “paulista” indistinta-
mente utilizado por Monbeig. (N. T.)

2. O estudo apresentado a seguir deve muito aos trabalhos do Prof. Aroldo de Azevedo, e mais ain­
da a nossas amistosas conversas, que tenho o prazer de evocar aqui. Faço também questão de agra­
decer aos meus amigos de São Paulo, que me ajudaram a manter em dia minha documentação so­
bre a cidade: Sra. Nice Lecocq MUllei; Srtas. C. Vicente de Caivalho e Lucila Hennann, e os Srs.
João Ouilhem e Ary França.

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 17


O SÍTIO URBANO

Qualquer que seja a direção de onde nos aproximamos de São Pau­


lo, a chegada sempre constitui uma surpresa. Nada prenuncia ao via­
jante a aproximação de uma grande cidade, alcançada através de áreas
montanhosas, mais ou menos desmatadas e pouco povoadas. “Num
raio de muitas dezenas de quilômetros, é um quase deserto que se es-
tande em volta da cidade”, afora “algumas pequenas vilas e miseráveis
povoados”, conforme escreve Caio Prado Jr. (1941: 194-221) Quem
sobe de Santos atravessa uns quarenta quilômetros pela Serra do Mar
sem nada ver à margem da estrada além de raros albergues. Vindo do
Rio de Janeiro, após a estação de Mogi das Cruzes, a cinquenta quilô­
metros de São Paulo, o trem atravessa uma sucessão de campos pela­
dos sem nenhum atrativo. Chegando-se pela estrada de Curitiba, ou
por uma das que vêm do interior do Estado, depois de pequenas cida­
des como Sorocaba, Itu ou Jundiaí, em percursos de cinquenta a cem
quilômetros, também se passa por áreas montanhosas quase desabita­
das. Não se vêem grandes rios com seus comboios de navios; nem
minas ou terras férteis; nem qualquer adensamento populacional.
Saint-Hilaire já notava, há mais de um século, que a aproximação de
uma cidade podia ser percebida pelo tráfego rodoviário mais ativo.
Nesse caso, porém, não havia nenhum outro sinal avisando os viajan­
tes do próximo término de suas jornadas (Saint-Hilaire, 1851: 2 3 3 ).3
São Paulo é uma cidade de planaltos tropicais. Mais exatamente, ela
se encontra instalada numa bacia aberta no meio das altas terras ar-
queanas do Brasil tropical atlântico. De todos os lados, morros e serras
fecham-lhe o horizonte. Ao norte, a Serra da Cantareira, com mil e
mais metros de altitude, delimita severamente o quadro urbano. No
lado oeste, o sólido Pico do Jaraguá, a montanha tão querida pelos

3. O trecho citado está na página 195. Esta constatação, aqui transcrita do original em português,
correspondia à realidade até meados dos anos 1950, mas deixou de ser válida desde então, como se
poderá ver pelas partes subsequentes deste livro, tanto em função do crescimento da mancha urba­
na de São Paulo, como devido ao crescimento dos municípios que lhe são vizinhos. (N. T.)

18 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


paulistanos, parece barrar o caminho para Campinas. Ao sul, a topo­
grafia confusa da Serra do Mar ascende lentamente até uma altitude de
850 metros a 9 00 metros. É somente para leste que o Vale do Tietê
abre uma via mais ampla. Nascido no reverso da Serra do Mar, esse rio
se liberta dos granitos e gnaisses acima de Mogi das Cruzes, e passa a
fluir preguiçosamente a uma altitude de 725 metros nas argilas e nos
areais que vai encontrando no rumo de leste a oeste. Imediatamente
abaixo de São Paulo, na localidade de Barueri, o rio inflete na direção
noroeste, atravessando antigas rochas num estreito vale de aspectos pi­
torescos. É na bacia do Tietê, com seus depósitos móveis da idade ter­
ciária, e no quadro montanhoso de antigos maciços, que se situa a ca­
pital paulista.
Os elementos do seu sítio urbano são simples:,a planície aluvial do
Tietê, aumentada por aquelas de seus afluentes do lado esquerdo; as
colinas de argila e de areia. Prados inundados, entrecortados de arbus­
tos nas várzeas, savanas com algumas pequenas árvores e alguns bos-
quezinhos em ladeiras de barrancos, contrapondo-se no passado às flo­
restas dos montes circundantes. Mas o desmatamento tem sido tão
acentuado que o contraste entre as ladeiras florestadas e a bacia aberta
terminou por atenuar-se. Atualmente, todos os terrenos já foram des­
maiados, com exceção das reservas florestais da Serra da Cantareira, as
quais mantêm um aspecto refrescante e pitoresco.
Subamos inicialmente pela margem direita do rio Tietê em direção
ao bairro de Santana. Entre seus 770 metros e 805 metros de altitude,
não faltam pontos dos quais se pode vislumbrar o conjunto do quadro
urbano. Um aspecto que imediatamente atrai a atenção do observador
;são as várzeas e planícies pantanosas do Tietê e de seus afluentes: o Ta-
manduateí e o Pinheiros. Numa altitude de 720 metros, as várzeas per­
manecem atravancadas pelos meandros destes rios, por seus braços
abandonados, facilmente reconhecíveis por meio dos trajetos desenha­
dos pela vegetação arbustiva, e pela presença espalhada de pequenas
lagoas. Antes da moderna expansão urbana, essas várzeas estavam pe­
riodicamente inundadas, e até hoje não é raro que nos meses de feve­
reiro e março as águas do Tietê cheguem a submergi-las.
Numa largura de 1,5 mil a 2 mil metros, essa várzea do Tietê sepa-

0 CRESCIMENTO DA CIDADE DE SAO PAULO 19


rava radicalmente as colmas de suas duas margens. Em nossos dias, o
isolamento da margem direita tornou-se menor, mas apenas quatro
grandes avenidas asseguram a sua ligação ao resto da cidade: a Estrada
do Limão, a Avenida Rudge, a Avenida da Cantareira através da Ponte
Grande, e a Avenida Cotching. Esse isolamento contribuiu para retar­
dar o desenvolvimento dos bairros situados nas ladeiras da Cantareira,
os quais se estendem de forma esporádica por mais de vinte quilôme­
tros desde Guarulhos até o Piqueri.
O Vale do Tamanduateí, embora oculto pelas construções, ainda
aparece de forma nítida na topografia da cidade. Pode ser visto de lon­
ge em sua brusca descida das colinas do lado oriental, e por meio do
corredor que desenha entre o Centro e os bairros a leste, do Brás entre
725 metros e 735 metros de altitude, e mais acima, o da Mooca. Em
seu estado original, a várzea do Tamanduateí não era mais atraente que
a do Tietê. Menos larga do que esta, não chegava a impedir a passagem
rumo às colinas da Penha, através do caminho para o Rio de Janeiro.
Antes de atingi-las, ainda era preciso, porém, atravessar alguns lama­
çais e pântanos, os quais se tornavam intransitáveis nos casos de tem­
pestades maiores.
Em direção a oeste, um baixo terraço situado quatro metros abaixo
do leito do Tietê foi sendo utilizado desde cedo como via de passagem
(como nos casos da Avenida Água Branca e da Rua da Lapa), mas tam­
pouco se manteve ao abrigo de inundações provocadas por riachos que
descem das colinas vizinhas. Mais distante ainda, e já fora da manchíj
urbana, a confluência do Pinheiros com o Tietê repete a do Tamandua­
teí, no que se refere à ampliação de suas várzeas.
O rio Tietê, seus afluentes e as várzeas aparecem portanto como um
aspecto essencial do sítio paulistano; trata-se de um elemento repulsi­
vo, de um fator de isolamento, de um obstáculo ao moderno urbanis­
mo, mas que, em condições históricas diferentes das de hoje, desem­
penhou um papel de grande importância na escolha da localização ur­
bana de São Paulo. As várzeas constituíram uma barreira de defesa nas
épocas em que um pequeno grupo de europeus tinha muito a temer
das tribos indígenas circunvizinhas. A mesma segurança era então ofe­
recida pelas colinas da margem esquerda do Tietê.

20 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


No bairro de Santana e seus arredores (Guarulhos, Vila Mazzei,
Mandaqui, Casa Verde, Chora Menino e Freguesia do Ó), as argilas ma­
tizadas e os areais formam uma banda demasiado estreita para que a
:expansão urbana possa encontrar suficiente espaço. Os fundadores da
cidade, vindos do litoral, pararam em frente da várzea, deixando de
instalar-se ao pé da Serra da Cantareira, que constituía mais uma amea­
ça do que uma proteção. Em compensação, eles se sentiram perfeita­
mente à vontade nas colinas da margem esquerda, tendo na retaguar­
da o caminho para o mar, já bastante conhecido.
Abandonemos, pois, as colinas de Santana, e desloquemo-nos para
as da outra margem. Desde o bairro do Sumaré até o do Paraíso, esta­
mos em presença de um planalto que se estende por aproximadamen­
te seis quilômetros, alargando-se ao nível dos 815 metros de altitude.
Suficientemente estreito para comportar apenas uma larga avenida (a
Paulista), esse planalto constitui o divisor de águas entre o Vale do Tie­
tê e o de seu afluente, o rio Pinheiros, que nesse trecho corre quase pa­
ralelamente àquele. Trata-se de um verdadeiro espigão, de uma aresta
cimeira. Do terraço constituído à margem da avenida sobre o espigão,
é fácil divisar e reconstituir o sítio original da cidade, não obstante o
manto de casas que atualmente recobre o terreno.
Amplos barrancos, com uma profundidade de uma trintena de me­
tros, recortam os terrenos ondulados: argilas vermelho-escuras, rosa-
claras, amarelas, além de areais e cascalhos têm sido violentamente en­
talhados por ribeirões afluentes do Tamanduateí ou do próprio Tietê.
Ainda hoje em dia, percebe-se em mais de um ponto seus cursos a trin­
ta metros de profundidade, e algumas vezes chega-se a vislumbrar seus
fundos cheios de areia. Após grossas tempestades, a travessia deles não
costuma ser fácil; a circulação dos veículos e dos bondes chega a ser in­
terrompida, e aluviões caudalosos passam a obstaculizar os cruzamen­
tos que marcam os pontos em que tais barrancos atingem as várzeas.
Em direção ao sul, ou seja, do rio Pinheiros, a inclinação inicial­
mente intensa passa a ser cortada por um nítido ressalto antes de atin­
gir os terraços mais baixos e, em seguida, a várzea. Os barrancos des­
sa vertente são menos acentuados que os do lado do Tietê, onde o ri­
beirão Anhangabaú e seus afluentes entrecortaram o planalto em para-

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 21


peitos e colinas. Pelas ruas do Vergueiro e da Liberdade, baixa-se do -\
cruzamento do Paraíso, a 750 metros de altitude, até o Pátio do Colé­
gio, onde os colonos europeus ergueram a primeira edificação de São
Paulo. Rampas íngremes baixam daí mais 25 metros até a planície do
Tamanduateí.
Um segundo parapeito corresponde à Avenida Brigadeiro Luís An­
tônio, que tem à sua esquerda o Morro dos Ingleses, o qual domina os
barrancos do Anhangabaú. Mais a oeste, outras grandes vias foram
construídas sobre os parapeitos que se estendem do Anhangabaú para
o Pacaembu. E em direção a leste, uma vez atravessada a várzea do Ta­
manduateí, a topografia se mantém a mesma, embora com barrancos e
fraturas menos acentuados que no centro da cidade. Deve-se ir até os
extremos desta para reencontrar na Penha uma bela escarpa de uns ses­
senta metros acima dos meandros do Tietê.
Entre todas essas colinas, os fundadores de São Paulo escolheram as
que, de um lado, dominam o Tamanduateí e, de outro, os barrancos do
Anhangabaú. Em nenhuma outra parte acham-se tão bem marcadas as
ladeiras acima das várzeas, e em nenhuma outra lhes pareceu tão ga- :
rantida a segurança de seus habitantes. Assim, foi nesse pequeno cume
triangular que por muito tempo se fixou a cidade, com um estreito ca­
minho a ligá-la ao espigão de 815 metros. Contudo, quando a aglon
ração procurou expandir-se, a topografia disponível deixou de cons
tuir um fator favorável para transformar-se num obstáculo. Os parapi
tos vizinhos à colina inicial deram origem a caminhos ao longo c
quais foram sendo construídas as casas. Cada um deles foi constitui
do seu próprio bairro, inicialmente isolado dos demais. Isto porqi
para se passar de um eixo de comunicação ou de um bairro a out
havia a necessidade de baixar até a várzea, atravessá-la e subir uma ou­
tra vertente. Surgiu daí uma fragmentação do conjunto urbano, qi
até os dias atuais, vem suscitando sérios problemas para os urbanistas.

22 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


O CRESCIMENTO URBANO" A SÃO PAULO ANTIGA

Um historiador brasileiro, Eurípedes Simões de Paula, falou com ra-


:zão de uma “segunda fundação” da cidade de São Paulo (Paula, 1936).
(Com efeito, há uma enorme ruptura entre a antiga São Paulo e a nova.
Após três séculos de vida tranquila, durante os quais a cidade não che­
gou a ter profundas alterações, de repente, a partir de 1872, deu-se
uma súbita aceleração. Apesar do caráter radical dessa mudança, não
(deixa de ter interesse verificar o que fora a São Paulo antiga, para bem
1Compreender como civilizações distintas puderam utilizar e organizar
o espaço de modos diversos.

A FUNDAÇÃO RELIGIOSA E SECULAR


Por suas origens, São Paulo difere radicalmente das demais cidades
(brasileiras e sul-americanas. Ela não foi fruto de um acaso, nem foi fun­
dada por aventureiros à procura de ouro, ou por comerciantes queren­
do estabelecer um entreposto bem localizado. Ela resultou de uma fun- \
dação religiosa e escolar, tendo sido a obra de jesuítas, que não tinham
outras ambições além de educar crianças (Serafim Leite, 1936)1. Esses
padres já tinham aberto um colégio em São Vicente, a praia vizinha a
Santos na qual os portugueses haviam desembarcado em 1532. Mas,
em 1553, o padre Manoel da Nóbrega constatou seu mau funciona­
mento; a proximidade dos colonos portugueses não era conveniente a
um estabelecimento de ensino para crianças indígenas, e tanto estas
como os noviços estavam demasiado distantes de seus pais, portugue­
ses ou mestiços que viviam nas terras do Planalto. Devido a isso, o pa­
dre Nóbrega decidiu-se a escalar a Serra do Mar, a fim de entrar em
contato com os portugueses ali estabelecidos numa pequena aldeia
chamada Santo André da Borda do Campo, e também com alguns che­
fes índios amigos, como Caiubi e Tibiriçá. Em companhia destes, an-

I. “Os jesuítas - diz ele - ao estabelecerem sua casa em Piratininga, tiveram simplesmente em vis­
ta ensinar os meninos" (Op. cil.: 13).

0 CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 23


dou pelo Vale do Tietê e suas colmas, particularmente pelo pequeno
enclave de savanas junto a montanhas cobertas de florestas, então co­
nhecido pelo nome de “campos de Piratininga”.
As terras aí existentes não eram muito férteis, mais propicias à pe­
cuária do que aos cultivos, mas a altitude delas tomava seu clima hos­
pitaleiro. Alguns anos mais tarde, o padre Anchieta definiria o clima de
São Paulo como não tendo invernos rigorosos nem verões insuportá­
veis (Saint-Hilaire, 1851:87, nota 1). Nesse local podia-se plantar ár­
vores frutíferas de Portugal, cultivar legumes e cereais europeus, como
o trigo e até a cevada. Isto constituía uma grande vantagem com rela­
ção ao calor e à umidade do litoral. Além disso, as condições políticas
do sítio eram relativamente boas, já que, se muitas tribos indígenas
permaneciam pouco acolhedoras, poder-se-ia pelo menos contar com
a de Tibiriçá. Consequentemente, a região foi julgada propícia para a
fundação de um colégio.
No dia 25 de janeiro de 1554 foi celebrada a primeira missa solene
na pequena colina acima dos barrancos e das várzeas. A construção do
colégio teve início em seguida. Tratar-se-ia de “uma casa de madeira e
palha, com catorze passos de comprimento e dez de largura, capaz de
servir como escola, dormitório, refeitório, enfermaria, cozinha e dis­
pensa” (Serafim Leite, 1936).2 Alguns anos mais tarde, um outro edifí­
cio iria substituir essa primeira escola. Um dos padres, Affonso Braz,
exercia os ofícios de arquiteto e pedreiro; foi ele que ensinou aos ín- ■
dios como construir, seguindo modelos portugueses, as casas da taipa,
espécie de adobe muito espesso e capaz de resistir por muito tempo às
intempéries. Construtor de casas cuidadosamente alinhadas, o padre
Braz foi o primeiro urbanista de São Paulo.
Este padre-arquiteto certamente não teve falta de trabalho. Pirati-
ninga, como os índios chamavam São Paulo, passou a ser o local de en­
contro dos portugueses que viviam isolados no planalto. Em 1560, o
governo português passou a obrigar os habitantes de Santo André da
Borda do Campo a se transferirem para São Paulo, ao decretar que o

2. Trecho extraído de uma carta do padre Anchieta.

24 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


pelourinho, símbolo do poder e da justiça do Rei, fosse erigido em
fírente do colégio dos jesuitas.
A decisão fora inspirada pela desconfiança das autoridades com re­
lação aos habitantes de Santo André, e a seu líder João Ramalho. Tendo
chegado ao Brasil antes do seu apossamento oficial, e dedicando-se a
aprisionar índios, João Ramalho não mantinha relações muito cordiais
quer com a administração portuguesa, quer com os jesuítas. Devido a
isso achou-se mais prudente interromper seu isolamento, colocando-o
Sob o domínio direto dos padres. Foram, pois, estas considerações po­
líticas que deram origem aos primeiros afluxos de populações euro­
péias a São Paulo. Em 1573 já existiam 120 lares habitados por bran­
cos. Acrescentando-lhes os índios e mestiços, chamados mamelucos e
igualmente numerosos, pode-se perceber que já se tratava na época de
um pequeno aldeamento bastante sólido.
Com seu trabalho de catequese, os jesuítas procuraram transformá-
lo no centro de uma região de colonização. Eles rapidamente se deram
conta de que o modo de vida dos índios dificilmente iria torná-los
acessíveis, impedindo sua manutenção no “bom caminho”. Um dos pa­
dres instalados em São Paulo já havia perfeitamente diagnosticado o
problema em 1556.
“Os índios - escrevia ele3 - deslocam-se cada três ou
quatro anos, quando suas choças de terras e palmeiras
desmoronam, e quando abrem novas clareiras na flo­
resta para seus cultivos. Eles vivem de forma muito
dispersa e, para mantê-los dentro da religião, torna-se
necessário fixá-los em aldeias, através de um sistema
empregado alhures, que é o das reducciones e das mi-
siones”4.
Existiram de início uma dúzia desses povoados indígenas, as cha­
madas “aldeias”. O padre Anchieta, coordenador dos jesuítas paulistas,

3. Transcrição de carta do padre Luiz de Grã, de 8 de junho de 1556, feita por Serafim Leite
(1936:39).

4. Palavras em espanhol no original (N.T.)

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 25


julgava nefasta essa dispersão, pois cada uma dessas aldeias era dema­
siado débil para resistir aos ataques dos índios ainda não convertidos.
Também considerava muito difícil levar a boa doutrina para distâncias
de “três y cuatro y aun siete léguas”5. Devido a isso, decidiu reunir seus
neófitos em duas aldeias de mil habitantes cada uma: Pinheiros e São
Miguel6.
Além dos índios das aldeias, algumas famílias de origem portugue­
sa viviam dispersas em suas fazendas, nas vizinhanças de São Paulo.
Todas essas pessoas passaram a constituir uma clientela da pequena ci­
dade. Esta era um centro administrativo, um centro escolar para crian­
ças, um seminário para os noviços e um abrigo em caso de guerras, já
que, até o final do século XVI, a ameaça dos índios pesava intensamen­
te sobre os colonos.
A catequese, portanto, situa-se na origem não apenas da fundação
de São Paulo, mas também de sua função urbana. Pierre Deffontaines
sublinhou devidamente a originalidade conferida à região de São Pau­
lo pela presença de pequenas aldeias, bastante raras no resto do Brasil
(Deffontaines, 1936: 69). Na sequência, algumas viriam a ser absorvi­
das pela grande cidade, como foi o caso de Santo Amaro e de Pinhei­
ros. Outras iriam integrar-se nos seus subúrbios industriais ou rurais -
como nos casos de São Miguel, Itaquaquecetuba, Embu e Itapecerica.
Dessa forma, as aldeias dos jesuítas foram estabelecendo uma rede su­
burbana, habilitando modestamente o burgo paulista ao exercício de
uma função regional.
Esta se esboçava no contexto das atividades agrícolas das fazendas
instaladas pelos portugueses entre as aldeias indígenas. Algumas po­
diam ser encontradas no Ipiranga, a caminho de Santos; outras perto do
Tietê, junto à Ponte Grande. Parece que essas primeiras explorações
agrícolas foram bastante numerosas no planalto da atual Avenida Pau-

5, Carta do Padre Anchieta ao Superior da Ordem, datada de 10 de julho de 1570. Transcrição de


Affonso d’Escragnolle Taunay (1921:35). Palavras em espanhol no original (N.T.)

6. Muitas informações sobre as aldeias podem ser encontradas nos artigos de Caio Prado Jr. (1941).

26 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


lista (então denominado Caaussu, grande floresta), e na direção de Pi-
hheiros e do Butantã.
No início do século XVII, os desmatamentos foram se afastando de
Piratininga, subindo o Tietê até Mogi das Cruzes, a jusante na margem
direita em direção à Freguesia do Ó, e para o sudoeste rumo a Cotia.
Além de plantas nativas como o milho e a mandioca, esses primeiros
fazendeiros cultivavam oliveiras, vinhas, trigo e árvores frutíferas locais
e européias. A pecuária constituía uma atividade ainda secundária.
Embora essa agricultura tivesse podido dar origem a uma exporta- ')
Jjaó para o litoral e a cidade do Rio de Janeiro (de trigo e de marmela- j
jflã), ela serviu principalmente para garantir o sustento imediato dos re- i
cém-chegados. Nesta parte do Brasil, as plantações de cana do litoral
filão atingiram o mesmo desenvolvimento que tiveram na Bahia ou em
Pernambuco. Tampouco o seu interior teve as mesmas condições do
sertão do Nordeste para vir a transformar-se numa grande região de pe­
cuária destinada a alimentar as densas populações da franja litorânea.
Isto representaria sem dúvida uma sorte para a pequena cidade dos je ­
suítas, que, de outra forma, teria sido completamente eclipsada pelas
cidades portuárias.
Mas a ausência de uma forte produção agrícola ou mineradora na
região e, na sequência, a ausência de atividades comerciais, deixaram
de favorecer as atividades urbanas. Tratava-se de uma situação que só
póderia vir a retardar o progresso de São Paulo. Meio século após a sua
fundação, São Paulo continuava sendo pouco mais do que um modes­
to centro de catequese e uma boca de sertão, ou seja, o último núcleo
populacional antes da penetração no interior desabitado.
O sertão começava depois de Cotia em direção ao oeste, em Pamaí-
ba às margens do Tietê. A região do Jaraguá era um matagal que servia
de refúgio aos criminosos. A penetração do país ainda era demasiado
débil para que os europeus tivessem podido avaliar as vantagens ofere­
cidas pela situação geográfica de São Paulo. Embora tivessem identifi­
cado devidamente as relativas facilidades de escalada da Serra do Mar
a partir de Santos, através de uma passagem a 800 metros de altitude,
a mais baixa então conhecida do litoral para o planalto, eles não pos­
suíam noção das vias de comunicação para o interior.

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 27


Não tendo encontrado terras de extraordinária fertilidade, nem mi-
nas de ouro ou de diamantes, os portugueses atribuíram menos impor-
tânda a esta parte do Brasil do que às terras do Nordeste, mais próxi ■
mas da Europa. Mais do que a localização, foi o sítio de São Paulo que
atraiu os jesuítas, guiados pela preocupação de uma segurança sufici­
ente para poderem exercer sua ação educativa junto aos colonos euro­
peus e a sua missão evangelizadora junto aos indígenas.

O S BANDEIRANTES E A DESCOBERTA DA SITUAÇÃO URBANA


Circunstâncias históricas completamente diversas iriam revelar, no f
decurso do século XVII e durante parte do século XVIII, o valor da po­
sição geográfica da cidade. As Bandeiras, expedições paulistas de caça e
escravização dos índios, da procura de ouro e diamantes em todo o Bra­
sil, fizeram de São Paulo o ponto de partida de todas as grandes rotas.
Perseguindo os indígenas, os bandeirantes descobriram os cami­
nhos do Brasil meridional e os do Paraguai. A procura das riquezas mi­
nerais levou-os a Minas Gerais e ao Mato Grosso, aos sertões do Nor­
deste e até à Amazônia.
Mas, ao mesmo tempo que se ampliavam os domínios conhecidos | ji
dos portugueses, o controle da Companhia de Jesus sobre a cidade de
Piratininga se desvanecia. São Paulo deixou de ser o ponto de partida
de pequenos desmatadores, para transformar-se na base de exploração |!
de um povo de invasores. Ela foi durante dois séculos uma espécie de
boca de sertão para a maior parte do Brasil. E foi graças à sua localiza­
ção geográfica que ela pôde exercer essa função.
Os historiadores e geógrafos brasileiros, particularmente Caio Pra­
do Jr ., analisaram de forma muito pormenorizada essa posição excep- ; lí f
cional de São Paulo, tornando desnecessária uma volta a esse tema. Li­
mitar-nos-emos, portanto, a lembrar-lhe as grandes linhas (ver Caio
Prado Jr.,' 1935, particularmente a p. 257). Em direção ao sul, depois
de transpor as serras da região de São Roque, abria-se uma larga estra­
da para os campos de Sorocaba e Itapetininga. Por esse mesmo cami­
nho, os paulistas tiveram acesso ao Paranapanema e seus afluentes da
esquerda. A grande artéria em direção ao Brasil Central foi o rio Tietê,
navegável a longas distâncias a partir de Porto Feliz. Atingia-se desse

28 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


modo o rio Paraná, e depois seus afluentes oriundos do Mato Grosso,
os rios podiam ser subidos antes de atingir os cursos d’água que baixa­
vam até o Paraguai. Tratava-se de uma navegação de longo curso, en­
trecortada por obstáculos, mas que nem por isso deixou de constituir
uma via de penetração.
As grandes linhas do relevo facilitaram as viagens ao Brasil Central
por outro caminho que, passando por Jundiaí, Campinas, Franca, le­
vava aos planaltos do Triângulo Mineiro, de Goiás e do Mato Grosso.
Junto às terras altas de Minas, a passagem era relativamente fácil pela
subida dos vales que entrecortavam os contrafortes ocidentais da Ser­
ra da Mantiqueira. Constitui o atual caminho por Atibaia e Bragança.
Finalmente, subindo o vale do Tietê até Mogi das Cruzes, e de lá pas-
; sando com facilidade para o Vale do rio Paraíba, os bandeirantes rapi­
damente descobriram os caminhos que permitiam transpor a Serra da
Mantiqueira. Tratava-se das brechas que se vislumbram com facilidade
desde São José dos Campos ou Lorena.
Desse lado, a cidade de São Paulo teve que suportar as fundações
urbanas feitas pelos bandeirantes ao longo do Vale do Paraíba, cidades
ligadas a pequenos portos no litoral, e, olhando para o mapa, parece
que passar por São Paulo e Santos já constituía um desvio considerá­
vel. Contudo, esse desvio era preferível a uma subida muito penosa da
Serra do Mar. Por mais difícil que fosse a subida de Santos e Cubatão
para o Alto da Serra e São Paulo, ela era ainda menos íngreme do que
a partir de Parati, de Ubatuba e da Ilha de São Sebastião.
Os caminhos explorados e seguidos pelos bandeirantes deram ori­
gem às vias de penetração e aos eixos do povoamento do interior. Eles
foram traçados em função da rede hidrográfica que volta as costas para
o oceano e se dirige rumo ao Oeste. Os vales na época do Brasil Colô­
nia e os espigões há três quartos de século não cessaram de orientar a
marcha para o Oeste.
Mas, quais foram, para a cidade paulistana, as consequências des­
sas Bandeiras e da expansão territorial dos portugueses? Elas foram si­
multaneamente felizes e prejudiciais.
A capital dos bandeirantes obteve um duplo benefício de suas lon­
gínquas expedições. Estas resultaram, em primeiro lugar, numa amplia­

0 CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 29


ção de seu raio de ação. Os paulistanos conheciam todos os grandes ca­
minhos e, acostumados a percorrê-los, logo se transformaram de inva­
sores em comerciantes. Após o término das Bandeiras, ern 1783, o co­
mércio de longa distância tomou-se o melhor recurso dos paulistanos.
Uns iam ao Rio de Janeiro em busca de mercadorias que revendiam em
sua cidade; outros partiam para áreas do Brasil Meridional, onde com­
pravam bois, cavalos e muares que traziam na volta a São Paulo, onde
os habitantes de Minas Gerais vinham adquiri-los; outros ainda partiam
para Minas, a fim de ali vender animais, panos grosseiros, algum açúcar
e os frutos de pequenas lavouras cultivados nos arredores da cidade. Es­
sas primeiras relações comerciais já traziam em si os germes do comér­
cio paulista, que até hoje subsiste; os limites do raio de ação desse co­
mércio já foram praticamente atingidos naquela época.
O segundo benefício que São Paulo obteve das Bandeiras foi de or­
dem essencialmente moral na época, mas não deixaria de ter conse­
quências materiais para o futuro. O movimento bandeirante não pos­
suía vínculos diretos na Europa e, pelo menos no início, teve um cará­
ter espontâneo. Sob controle dos jesuítas, “a região de São Paulo apre­
sentava os rudimentos de uma nação, enquanto a Bahia e as colônias
do Nordeste configuravam um domínio de Portugal na América” (Pra­
do, 19 2 5 :3 4 )7. A vila de Piratininga, durante o século XVII, foi palco
de manifestações que apareciam como primeiros sintomas da tendên­
cia autonomista. As expedições de caça aos índios, que conduziram os
paulistanos às aldeias do Tibagi, e até ao Paraguai, desencadearam um
conflito com a Companhia de Jesus. Em 1643, os padres jesuítas foram
expulsos de São Paulo e tiveram que se contentar com as suas terras do
Paraguai. O governo português havia criticado seus súditos de São
Paulo, mas não os poderia tratar com muito rigor, uma vez que eles es­
tavam contribuindo para ampliar os dominios do Reino e para pôr em
xeque um rival tão poderoso como a Ordem dos Jesuítas. Por esse mo­
tivo, nos primeiros anos daquele século, o governador geral do Brasil,
dom Francisco de Souza, fizera uma visita oficial a São Paulo, a primei-

7. Sobre este aspecto político, podem ser encontradas excelentes observações no trabalho de Mauri-
ce Le Lannou (1948).

30 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


ra inspeção de um personagem tão importante. E ele os encorajara a
procurar e explorar as riquezas do reino mineral.
Por meio das expedições das Bandeiras, o sentimento de uma co­
munidade paulista no interior da comunidade portuguesa havia adqui­
rido um grande vigor. A pequena pátria paulista estava começando a
tomar-se uma realidade, tendo em seu centro o seu burgo maior. A me­
trópole portuguesa e seu representante, o govemador-geral, tomaram
medidas para reforçar a sua dependência administrativa e econômica.
Francisco de Souza já havia decidido transferir organismos judiciários
de São Vicente para São Paulo. Essa medida administrativa foi comple­
tada em 1709 pela divisão da Capitania do Rio de Janeiro, e pela cria­
ção da Capitania de São Paulo. Pouco depois, o Papado também reco­
nheceu a importância de São Paulo e a sua capacidade de difusão, ali
estabelecendo um bispado em 1745.
O próprio nome de São Paulo, que fora até então pouco conhecido
nas demais regiões da Colônia, acabou se tomando famoso. E até mal
afamado, visto que os bandeirantes estavam longe de ser santos, às ve­
zes deixando boas lembranças entre os colonos do Nordeste, que se
sentiram felizes de poder contar com o auxílio dos bandeirantes para
repelir os índios aos sertões. Com isso, São Paulo já havia adquirido
um prestígio inconteste, que a criação da Capitania e do Bispado só fi­
zeram aumentar. A cidade se tornou capital ao mesmo tempo que a co-
munidade efetiva paulista se havia transformado em realidade.
Mas essa capital de um território excessivamente vasto, de popula­
ção rarefeita e irregularmente distribuída, e cuja valorização econômi-
§sà fora até então quase nula, constituía uma cabeça bem pequena para
um corpo gigantesco. As Bandeiras haviam contribuído principalmen­
te para empobrecer as regiões pelas quais elas passavam. Isto se deu
Janto no plano demográfico, com a dizimação das tribos indígenas,
como no campo econômico, já que os recursos minerais se esgotavam
rapidamente, com a maior parte de seus rendimentos sendo canaliza-
j|a para a Europa, para as arcas do Tesouro real. Ao final do século
XVIII, com o término do ciclo da mineração, a cidade de São Paulo
se apresentava tão empobrecida em homens e riquezas como os ser-
ftoes recém-descobertos.

0 CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 31


Os líderes das Bandeiras haviam sido as pessoas mais ricas de São
Paulo, os que possuíam e cultivavam as terras de seus arredores. Mui­
tos deles morreram no sertão, como se pode ler em numerosos inven­
tários da época. Um sangramento de dois séculos tinha entravado o
acréscimo de sua população, tanto rural como urbana. Certo número
de seus habitantes haviam-se espalhado pelas localidades urbanas fun­
dadas ao longo dos caminhos das Bandeiras. O recenseamento de 1776
só contou 53 4 domicílios e 2.026 pessoas em São Paulo.
A capital marcava passo, enquanto sítios urbanos de fundação mais
recente, abrigos de etapas das Bandeiras, estavam fazendo sensíveis
progressos. Dessa forma, as edificações da cidade cobriam uma área
pouco maior do que duzentos anos antes; elas continuavam agrupa­
das na pequena colina escolhida pelos jesuítas, formando uma dúzia
de ruas e vielas, raramente e mal pavimentadas, geralmente ladeadas
de casas térreas. Os habitantes mais abonados mantinham-se às por­
tas da cidade, à qual só se dirigiam para as missas dominicais e as ce­
rimônias oficiais. Externamente nada distinguia São Paulo das nume­
rosas pequenas vilas brasileiras que seriam visitadas por Saint-Hilaire
cinqúenta anos mais tarde. Desertas e mortas durante a semana, suas
ruas, e até suas casas, só se animavam aos domingos, com a vinda dos
agricultores.
Essa jovem capital de uma região mineradora permanecia pobre.
Várias vezes chegou a faltar-lhe dinheiro, e muitas de suas relações co­
merciais se haviam reduzido ao escambo de mercadorias. As rendas
destinadas ao Tesouro real cresciam muito lentamente, sendo três ve­
zes menores em São Paulo do que na Bahia (Simonsen, 1937. Ver par­
ticularmente a nota 32 da p. 355). Nada havia nela que se assemelhas­
se aos surtos de urbanização e riqueza das cidades da América Espa­
nhola, nem às cidades de Minas Gerais e do Nordeste. O período da
expansão paulista marcou a ascensão administrativa da cidade, mas
constituiu ao mesmo tempo uma fase de estagnação urbana.
São Paulo estava longe demais das minas para poder lucrar com
suas atividades. A política do Reino chegou a beneficiá-la, mas com o
devido cuidado de evitar excessos nesse favorecimento, na medida em
que procurava manter um prudente equilíbrio entre as diversas regiões

32 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


da Colônia. A Bahia continuava preponderando; o Rio de Janeiro, liga­
do à região das minas por um caminho que, ironicamente, fora aberto
pelos paulistas, tinha lucrado mais do que São Paulo com a coloniza­
ção das Gerais (Prado, 1925:37). Nem as condições geográficas, nem
as circunstâncias históricas haviam dado ainda um impulso definitivo
à urbanização na Capitania de São Paulo.

A PEQUENA CIDADE PROVINCIAL VISTA POR SAINT-HILAIRE


Uma profunda modificação na economia do Planalto paulista e no­
vas condições políticas vieram suscitar um clima mais favorável à vida
urbana. Os relatos de Spix e Martius, em janeiro de 1818, e os de
Saint-Hilaire, em outubro do ano seguinte, permitem vislumbrar os
primeiros indícios dessa transformação.
Ao chegar a São Paulo, Saint-Hilaire, que acabara de completar uma
cansativa viagem pelo interior, assinalou com sinceridade que a cidade
“é incontestavelmente a mais bela de todas as que havia visitado desde
minha chegada ao Brasil” (Saint-Hilaire, 1851:237). Ele fala da “vista
arrebatadora” que descobriu das janelas do Palácio do Governo, o an­
tigo Colégio dos Jesuítas, com animais pastando nos campos, carava­
nas que chegam e saem da cidade, “velhas araucárias de tamanho gi­
gantesco junto a grupos de palmeiras esbeltas que contrastavam com a
rigidez dessas coníferas por suas longas folhas flexíveis, que se abatem
sobre seus troncos e são balançados pelo vento. O verde aqui é mais
belo e talvez mais fortemente nuançado que o de nossos campos da
Europa no início da primavera...” (Idem: 255)8. E ainda prosseguia di­
zendo que
“Não somente a localização de São Paulo é encantado­
ra, mas respira-se aí um ar puro e vê-se um grande nú­
mero de bonitas casas; suas ruas não são desertas
como as de Vila Rica; os edifícios públicos são bem
conservados, e, contrariamente a grande parte das ci­

8. O verde da paisagem paulista parece ter mudado desde então. Segundo alguns, trata-se de um
efeito das modificações da cobertura vegetal, principalmetite devido ao fato de as araucárias terem
se tomado mais raras.

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 33


dades e vilas de Minas Gerais, nela não se tem a cada
passo a vista afligida pelo aspecto de abandono e de
ruínas” (Saint-Hilaire, 1851: 249).
Esse testemunho, vindo de uma pessoa de juízo bastante severo, era
o testemunho de uma recuperação: São Paulo havia dominado a crise
subsequente ao declínio das Bandeiras. Saint-Hilaire o confirmou ao
notar que nela se vê “uma multidão de lojas bem guarnecidas e bem
ordenadas, onde se pode encontrar uma variedade de objetos quase tão
grande como nas do Rio de Janeiro” (Idem:260). As pessoas do campo
vêm cada dia vender seus gêneros aos comerciantes da Rua das Casi­
nhas - incluindo farinha, toucinho, arroz, milho e charque - num con­
gestionamento de escravos, rurícolas, tropeiros de mulas com seus ani­
mais, os quais ao anoitecer “abrem espaço a nuvens de prostitutas de
categoria inferior” (Idem: 262).
E o viajante também explicava os mecanismos dessa atividade co­
mercial: os comerciantes da capital abastecem uma boa parte das pe­
quenas vilas da província; seus lucros são inferiores aos dos comerci­
antes do Rio de Janeiro, mas são também mais frequentes, e suas des­
pesas são menores que no Rio. Já se tratava, portanto, de um bom mer­
cado, cujas necessidades e possibilidades eram modestas porém cons­
tantes. Aí já existia inclusive uma pequena exportação para outras pro­
víncias do Brasil e até para a Europa.
Em 1801, de acordo com Spix e Martius, dois navios haviam saído
de Santos com destino a Lisboa, com uma carga avaliada em 21.235
mil-réis. Quatro anos mais tarde, cinco veleiros levaram 273.930 mil-
réis de mercadorias paulistas para Lisboa, Porto, Figueira e Madeira.
Em 1813 ainda havia remessas para Portugal, mas também em direção
à Argentina, ao Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Rio de Janei­
ro (Spix, & Martius, 1938. Ver particularmente as p. 224-230). Uma
parte desse comércio de exportação era feita pelos pequenos portos do
litoral, sem passar pela capital. Nesta, contudo, o movimento dos co­
merciantes já era suficiente para justificar a criação de um banco, que
“tinha por objetivo descontar as receitas de longo prazo e fornecer aos
comerciantes títulos de crédito local” (Saint-Hilaire, 1851: 217). Já ha­
via, portanto, um início de organização da vida comercial.

34 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Naquela época, a aglomeração urbana já não se mantinha estrita­
mente acantonada em sua colina primitiva. Sua parte central ainda
continuava delimitada pelos três conventos situados em cada um dos
três pontos culminantes do triângulo original: o Convento do Carmo e
os de São Bento e São Francisco, que, com seus jardins, delimitavam o
núcleo urbano, dando-lhe uma aparência de cidade européia. As pe­
quenas rampas que baixavam da colina para a várzea do Tamanduateí
levavam ao embarcadouro do Porto Geral. Aí acostavam os campone­
ses vindos de barco de São Caetano, onde os monges beneditinos pos­
suíam uma grande chácara, propriedade rural dedicada às lavouras e à
jardinagem.
Ao mesmo tempo, as edificações tinham se expandido em direção ao
sul, nos subúrbios isolados da Mooca e do Ipiranga, e ao longo do ca­
minho da Serra do Mar e de Santos. Outros acréscimos podiam ser ob­
servados no caminho para Santo Amaro, e junto à Igreja da Consolação,
rio caminho que levava para Sorocaba e Itu. Em direção ao norte, as ca­
sas se dispersavam às margens do caminho do Guaré, a estrada para
Bragança e Minas Gerais. Finalmente, as plantas da cidade no início do
século XIX indicavam, conforme se pode ver na ilustração anexa9, o iní­
cio de uma progressão nas colinas da margem esquerda do Anhanga-
baú, em direção a Jundiaí e Campinas (veja-se o mapa a seguir).

9. Trata-se do “Plano de São Paulo em 1800", que figura no trabalho de Gastão C. Bierrenbach
Uma (1946:89-91), sem indicação de escala. Faço questão de agradecer vivamente o autor, que au­
torizou a reproduzir aqui este plano. Em seu trabalho citado há pouco, Roberto Simonsen publicou
um plano de São Paulo em 1810.

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 35


SÃO PAULO DE PIRATININGA NO ANO DE 1800
Plano da cidade de São Paulo no começo do século XIX

Rio Tietê j

© Convento üa Luz
© Hospital dos Lâzaios
© Jaidim Público Ja Luz
0 Seminário das Educandas
@ Convento de Sào Bento
0 Porto Geral
@ Largo da Consolação

o Laigo do Piques
0 Largo de São Francisco

© Largo da Sé
© Igreja do Colégio
© Igreja do Carmo
© Quartel da Tropa de Linha
© Igreja da Boa Morte
© igreja de São Gonçalo
© Laigo da Forca

Figura I: Plano da cidade de São Pauio no começo do século XIX

36 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


As várzeas continuavam desabitadas. Mas, devido ao progresso das
relações comerciais com o interior, as autoridades locais tiveram que
facilitar sua transposição, fazendo construir, pouco antes da chegada
de Saint-Hilaire, sólidas pontes de alvenaria. Por causa disso, um ho­
teleiro chegou a instalar-se no ponto de junção de todos os caminhos,
o “Piques”, no barranco do Anhangabaú. Este se tornou um ponto de
encontro de comerciantes, tropeiros, escravos fugitivos, que conviviam
na hospedaria do “honesto Bexiga”, criador involuntário de um bairro
tle categoria inferior.
Mas, a que correspondiam esses progressos? Por que mudanças fora
suscitada uma renovação da vida comercial, e trazido um sangue novo
ao depauperado burgo dos bandeirantes?
O fato novo era que, naquele momento, os paulistas estavam real-
ménte tomando posse do seu solo. Eles já não se contentavam em pas­
sar por ele rapidamente, apenas se beneficiando de algumas lavouras
dè milho e de mandioca plantadas ao redor de seus abrigos. A febre das
minas havia passado: os descendentes daqueles que conseguiram esca­
par dela, instalando-se no Vale do Paraíba, em Itu, Porto Feliz e na re­
gião de Campinas, estavam desmatando suas terras e cultivando cana.
Saint-Hilaire fala das experiências de cultivo na terra roxa empreendi­
das pelos fazendeiros de Campinas: em Jundiaí, dizia ele, “há um cer­
to número de anos que a cana-de-açúcar foi introduzida na região”
('-laint-Hilaire, 1851:217). Ela viera substituir uma policultura menos
remuneradora, baseada no arroz, no feijão e no milho. Um sólido es­
tudo sociológico sobre Guaratinguetá, no Vale do Paraíba do Sul, assi­
nala uma evolução idêntica naquela mesma época (Hermann, 1948).
Esses progressos agrícolas propiciaram uma substancial melhora
econômica à capital. Os plantadores de cana, conhecidos como “se­
nhores de engenho”, passaram a reforçar a classe dirigente, econômica
e financeiramente. Graças a uma ampliação das lavouras algodoeiras,
uma categoria menos afortunada de lavradores também passou a bene­
ficiar-se de alguma prosperidade. O conjunto das classes sociais come­
çou a desfrutar de uma nova bonança: a capital e seu mercado auferi­
ram as conseqúências dessa feliz reviravolta. Através dessa transforma­
ção de sua agricultura, e por meio dessa evolução econômica, a cidade

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 37


de São Paulo passou a adquirir uma importância comercial, depois de
já haver conseguido um lugar na vida administrativa do Brasil em fun­
ção de suas expedições no sertão.
Devemos contentar-nos em ver nisso tudo os efeitos diretos das
condições geográficas - ou seja, das terras recém-desmatadas, e da lo­
calização espacial da cidade - condicionando o surto agrícola e o de­
senvolvimento de sua função comercial? Tratar-se-ia simplesmente de
um novo ciclo de prosperidade, com a economia tomando-se por si só
capaz de tudo explicar? A capital beneficiou-se de ambos esses fatores,
os quais, porém, não teriam sido suficientes para devolver-lhe o vigor.
Saint-Hilaire, que aqui devemos citar novamente, percebeu bem
isso, ao dizer que “seria inexato considerar sua posição muito favorá­
vel ao comércio”. São Paulo não era um entreposto para produtos vin­
dos da Europa, nem um lugar de trânsito para os produtos do Brasil.
A cidade necessitava do apoio do porto de Santos, o qual a rigor pode­
ria sobreviver sem ela. E o viajante concluía que “São Paulo nunca te- j
ria sido mais florescente do que Santos, se não fosse a capital da pro- í
víncia e a sede de suas autoridades civis e eclesiásticas” (Saint-Hilaire, -j j
1851:259).
A função política continuava sendo fundamental aos destinos de São
Paulo. E a chegada de Dom João VI ao Brasil, em 1806, contribuiu para
reforçá-la ainda mais, quando, fugindo de Portugal, decidiu instalar a
Corte no Rio de Janeiro. Por meio dessa escolha, o rei acabou transfe­
rindo o centro de gravidade da Colônia do Brasil nordestino para o
Brasil meridional. São Paulo foi atingida pelos efeitos dessa transferên­
cia, passando a localizar-se subitamente perto da administração cen­
tral, da Corte, de sua riqueza e elegância. Dessa forma, ela ficou mais
próxima da Europa ainda longínqua, principalmente depois que o so­
berano fora obrigado a consentir aos ingleses a abertura ao comércio
dos portos brasileiros. Essa medida pôs fim à era colonial, pelo menos
em termos políticos. A partir daí, São Paulo iria abrir-se para o Atlân­
tico e, além deste, para a Europa.
É impressionante constatar como, justamente naquelas primeiras
décadas do século XIX, os viajantes europeus começaram a afluir para J
São Paulo, incluindo: um explorador inglês, John Mawe; o Barão Es-

38 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


chwege, autor das primeiras obras sobre a geologia do Brasil; os natu­
ralistas Spix e Martius; além do próprio Saint-Hilaire. Os dois botâni­
cos alemães encontraram em São Paulo três compatriotas, nobres ale­
mães em viagens de turismo. A poucos anos de distância, dois dos go­
vernadores da província seriam descendentes de alemães, o barão
Oeynhausen e o marechal Daniel Pedro Müller.
O rei de Portugal fizera vir operários e um diretor sueco para a fun­
dição de Ipanema, que, a partir de 1815, passou a ser dirigida por um
oficial engenheiro de Hesse chamado Vamhagen. E, visitando Ipane­
ma, Saint-Hilaire encontrou um zoólogo enviado pelo imperador da
Áustria e um jovem naturalista prussiano, amigo de Humboldt. A es­
ses grandes personagens e a esses cientistas podem ser acrescentados
ainda alguns ingleses, franceses e suíços, todos “de condição inferior”,
segundo Saint-Hilaire, mas provavelmente nem por isso menos úteis.
Um dos ingleses era produtor de artefatos de estanho, e o suíço Grel-
let vendia mercadorias francesas importadas por uma empresa do Rio
de Janeiro. Diplomatas, cientistas em missão, comerciantes ou artesãos,
esses estrangeiros, que já não eram apenas espanhóis ou portugueses,
propiciavam a São Paulo um novo ambiente. A presença deles concre­
tizava seus contatos com uma nova civilização. De pequena escola dos
Jesuítas, de ninho de aventureiros, São Paulo estava se transformando
em posto avançado da Europa Ocidental.
Apesar de tudo isso, seriam ainda necessários mais quarenta anos
fàpós a passagem de Saint-Hilaire por São Paulo para que esta rompes-
1sé com o seu passado colonial. Até 1870, seus progressos continuaram
sendo lentos. Em 1836 atribuía-se à cidade uma população de 21.933
habitantes, cifra que abrangia o conjunto de sua circunscrição munici-
pal (Muller, 1923). As duas paróquias urbanas, da Sé e de Santa Efigê-
nia, tinham apenas 8.732 habitantes; a do Brás contava com 659, a da
Penha 1.206, Guarulhos 2.255 e a Freguesia do Ó 1.759. Um viajante
vindo do Rio de Janeiro em 1860 dava a cifra de 26 mil habitantes, sem
precisar a base territorial destes, algo que, aliás, tampouco foi feito no
recenseamento de 1 8 7 210. O tamanho da população estava aumentan­
do, mas ainda muito timidamente.

10. Ver os dados apresentados na primeira página deste texto.

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SAO PAULO 39


Os acréscimos territoriais seguiam o mesmo padrão. Em direção ao
Oeste, o proprietário de uma chácara, José Arouche de Toledo Rendon,
fez demarcar o terreno entre o Morro do Chá e sua propriedade, fun­
dando nesta uma fiação e tecelagem de algodão (Moura, 1943. Ver par­
ticularmente as p. 132-133). Por outro lado, a municipalidade desen­
volveu trabalhos de retificação do Tamanduateí entre 1848 e 1851. O
início dos serviços da estrada de ferro Santos a Jundiaí levou à forma­
ção de um novo bairro ao redor da Estação da Luz. Naqueles mesmos
anos, algumas melhoras parciais acabaram apontando para uma evolu­
ção certeira porém lenta, com a iluminação a gás das ruas do Centro
em 1856, a inauguração de uma primeira sala de teatro em 1864 e a
construção de chafarizes públicos nas principais praças da cidade, ain­
da todas situadas na Colina dos Jesuítas - a Praça do Pelourinho, pon­
to de partida dos caminhos para Santos e Santo Amaro; a Praça da Mi­
sericórdia, quase no Centro; e as de São Bento e São Francisco.
A lentidão da evolução urbana era uma decorrência da lenta evolu­
ção da agricultura. A cultura da cana-de-açúcar havia cessado de pro­
gredir, e estava começando a ser revezada pela cafeicultura. As déca­
das intermediárias do século XIX foram a época da penetração do café
em terras paulistas. Mas essa penetração se fez inicialmente a partir do
Rio de Janeiro, através do Vale do Paraíba. As exportações dessas no­
vas fazendas não passavam por São Paulo, e os cafeicultores mais ricos
eram atraídos pela Corte Imperial mais do que pela capital da provín­
cia. Em 1854, aquela região produzia mais de 77% do café de São Pau­
lo, enquanto a de Campinas e de Itu era responsável por apenas 14%
(Milliet, 1938:18). A capital de São Paulo ainda permanecia à margem
da expansão cafeeira e de seu movimento comercial. Mas a marcha do
café não tardaria muito a criar condições favoráveis a seu desenvolvi­
mento urbano.

40 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


A nova S ão Paulo : a capital dos fazendeiros

Quando os desmatamentos e a marcha do povoamento passaram a


progredir aceleradamente no interior do Estado, seus efeitos se fizeram
sentir de imediato na capital. O movimento pioneiro tomou impulso
no momento em que a direção da vida econômica e social de São Pau­
lo foi assumida por grandes fazendeiros. Suficientemente providos de
capitais, estes empresários puderam não só formar vastas fazendas,
mas também construir ferrovias, trazer imigrantes e adquirir máquinas
modernas (Monbeig, 1952). As grandes transformações da cidade de
São Paulo nessa mesma época devem, como o avanço do povoamento
rural, ser vinculadas à ascensão ao poder dessa classe de proprietários
agrícolas, e ao controle total que eles tinham da economia do café. Na­
queles anos em que essa classe assumiu a liderança das regiões que
abasteciam da rubiácea tanto a Europa como a América do Norte, o
planalto paulista passou a abrigar crescentes populações de origem eu­
ropéia, e São Paulo foi se tomando uma das maiores cidades européias
nos trópicos, uma condição que ela devia a seu clima. O sítio urbano
havia sido escolhido pelos jesuítas; os bandeirantes fizeram valer sua
posição geográfica; e as suas vantagens climáticas, conhecidas havia
tempos, tomaram-se decisivas a partir do momento em que o Brasil
tropical se transformou em pólo de atração de imigrantes europeus.

Os FATORES POLÍTICOS E SOCIAIS DA EVOLUÇÃO URBANA


A classe social ascendente tinha novas necessidades. Para os gran­
des fazendeiros, o mais urgente era poderem deixar suas residências
rurais e fazer longas estadas na cidade. As instalações temporárias que
possuíam na área foram se tornando cada vez mais permanentes. Esta
era uma necessidade acarretada por seus novos negócios comerciais e
financeiros. Os antigos senhores de engenho podiam viver nas suas ter­
ras e contentar-se em manter relações de vizinhança com os seus pa­
res. Os grandes fazendeiros de café precisavam vigiar de muito perto a
comercialização de seu produto, mantendo frequentes contatos com

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 41


intermediários e exportadores. Algumas vezes, eles mesmos decidiam-
se a fundar suas empresas comerciais, ou a participar de alguma como
sócio, ligando o comércio com a lavoura.
Para organizar e administrar companhias ferroviárias, para consti­
tuir empresas de colonização e imigração, para associar-se aos bancos
que iam surgindo, tratar de seus interesses de classe e envolver-se em
questões políticas de crescente complexidade e cada vez mais decisi­
vas, os grandes fazendeiros não poderiam mais atuar isoladamente,
nem permanecer em suas plantações. A formação de empresas capita­
listas e as necessidades de sua gestão eram incompatíveis com o modo
de vida tradicional; elas exigiam um convívio urbano. Elas constituí­
ram um fator da urbanização dos membros da classe dominante, ten­
do se tornado em seguida uma das causas do desenvolvimento da ca­
pital dos fazendeiros.
Às exigências profissionais acrescentavam-se as necessidades sociais.
Os fazendeiros e suas famílias, enriquecidos e frequentemente agracia­
dos pelo Imperador com um título de nobreza, mais ou menos maltra­
tados na Corte do Rio de Janeiro, ou mais ou menos invejosos dos que
ali eram maltratados, pouco lembravam seus antepassados, que havi­
am desconhecido o luxo e até o conforto, pouco se preocupando com
as ciências, as artes e as letras. As viagens de negócios à Europa aviva­
ram esses novos gostos e desejos. A presença em São Paulo de comu­
nidades européias que aumentavam a cada ano contribuía para refor­
çá-los ainda mais.
Não deixa de ser importante para o estudo da geografia de São Pau­
lo ter um melhor conhecimento da pequena colônia européia que aí se
instalara e foi crescendo continuamente a partir do início dos anos
1870 (Bruno, 1949). Não se tratava ainda da massa de imigrantes, de
proletários em busca de qualquer trabalho por um salário qualquer. A
maioria dos membros dessa colônia inicial eram artífices, comerciantes
ou engenheiros. O grupo dos italianos ainda era modesto, integrado
por alguns comerciantes de massas, de frutos do mar e de pescado. Os
ingleses eram médicos, relojoeiros, mecânicos; um deles possuía uma
serraria a vapor, provavelmente a primeira de São Paulo, e tinha com­
prado uma chácara às portas da cidade; outros vieram para fazer o ca-

42 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


dastramento urbano e para dirigir os trabalhos de canalização das
águas. Os franceses eram mais numerosos e tinham profissões mais va­
riadas: jardineiros e floristas, cabeleireiros, modistas, joalheiros, litó-
grafos, dentistas, professores de música e fabricantes de licores.
A fama da moda francesa estava surgindo naquela época. Portugue­
ses e brasileiros tinham lojas de roupas chamadas “Nôtre Dame de Pa­
ris”, “Au Palais Royal”, “Au Boulevard”, “Au Louvre”, “Au Printemps”,
testemunhando as novas necessidades de luxo e o papel cada vez mais
importante das mulheres na vida paulistana. Mas, entre todos os es­
trangeiros, os alemães eram os mais numerosos; podia-se encontrá-los
como grandes comerciantes, engenheiros da companhia de gás, ou da
primeira companhia de bondes a tração animal, como farmacêuticos,
vendedores de sapatos, chapeleiros (um destes tinha uma oficina em
que trabalhavam 132 operários), produtores de refrigerantes e sobre­
tudo de cerveja. Os alemães fundaram os primeiros botequins e as pri­
meiras cervejarias de São Paulo, contribuindo assim para o floresci­
mento de uma forma de vida até então desconhecida dos paulistanos.
Estrangeiros frequentemente tomaram a iniciativa em trabalhos de
interesse público. Foi um alemão que construiu o primeiro matadouro
na Vila Mariana, então em plena área rural, e que lançou a idéia de li­
gar a cidade a Santo Amaro por um bonde a vapor. Coube a um fran­
cês, Jules Martin, promover a elaboração e realização do projeto de um
viaduto sobre o Vale do Anhangabaú. Encontramos esses recém-chega­
dos nas primeiras vendas de terrenos na forma de loteamentos, como
os dos alemães Glete e Nothmann. A presença e as atividades desses es­
trangeiros eram uma conseqúência das mudanças sociais. E eles, em
troca, contribuíram por sua fácil integração, para acelerá-las ainda
mais, aumentando as transformações da cidade.
É também à ascensão dos fazendeiros de café que se pode imputar
um aspecto original da função urbana no final do século XIX. Os fa­
zendeiros haviam-se empenhado principalmente na resolução de seus
problemas de mão-de-obra por meio da imigração de trabalhadores li­
vres do estrangeiro. Como efeito das instâncias de um dos fazendeiros
mais conceituados, o visconde de Parnaíba, o governo da província ha­
via assumido a organização do fluxo migratório e o estabelecimento de

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 43


um serviço oficial. O visconde fez construir na várzea do Tamanduateí
uma vasta hospedaria para os imigrantes em 1888. Com a sua criação,
São Paulo transformou-se de chofre num “mercado de pessoas”. Pierre
Denis descreveu com perfeição essa função original, assinalando que
São Paulo “abriga em ampla escala as pequenas praças dos povoados
da Sicília ou da Apúlia nas quais os trabalhadores reunidos são contra­
tados no início de cada semana aos preços vigentes do dia. É São Pau­
lo que distribui entre as diversas regiões cafeeiras o fluxo dos imigran­
tes desembarcados em Santos” (Denis, 1928: 111).
A partir de seus vastos edifícios, das pequenas lojas e das modestas
pensões estabelecidas nas ruas vizinhas, a Hospedaria dos Imigrantes
marcou um progresso da cidade no seu espaço. E, mais do que isso,
desencadeou entre o campo e a urbe um movimento contínuo de fa­
zendeiros à procura de mão-de-obra, e de trabalhadores agrícolas à
procura de empregos. Assim, São Paulo se tornou um mercado de tra­
balho antes de constituir um mercado de produtos agrícolas ou indus­
triais. Aí é que se engajavam os serviços de trabalhadores para fazen­
das distantes a centenas de quilômetros. Essa função, que surgiu na
época em que estavam sendo desmatadas áreas em direção a Ribeirão
Preto, continuou viva durante muito tempo, apesar do deslocamento
da frente pioneira para distâncias muito mais longínquas.
O mercado de trabalho reforçou a função comercial da cidade. Os
núcleos urbanos do interior estavam insuficientemente abastecidos
para atender a demanda dos fazendeiros por instrumentos de trabalho,
roupas e alimentos. Devido a isso, eles aproveitavam suas viagens a São
Paulo não só para engajar trabalhadores, mas também para comprar o
que lhes faltava. Tornaram-se assim clientes habituais dos comercian­
tes da capital, adquirindo um costume que frequentemente perdurou.
A escolha da capital para a instalação da Hospedaria dos Imigrantes
fora imposta por razões administrativas: era lógico situar perto do go­
verno um organismo chamado a desempenhar um papel tão importan­
te. A função política da cidade nada perdera do seu valor. Ela se tor­
nou ainda mais importante quando os fazendeiros decidiram participar
ativamente nas mudanças sociais e políticas do Brasil, notadamente na
Abolição do Escravismo em 1888 e na Proclamação da República no

44 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


ano seguinte. Os paulistas foram os mais fervorosos partidários da ado­
ção de um sistema federativo de governo. Chegou-se até a proclamar
uma “República de São Paulo”, e havia pressa em fazer abandonar sua
condição de “vaca leiteira” do Império (Leclerc, 1890: 87). Embora
hem todos esses desejos tivessem sido satisfeitos pelas novas institui­
ções, a autonomia da antiga Província foi ampliada e o Estado passou
a dispor de maior parcela dos seus próprios recursos, passando a geri-
los por meio de suas secretarias, de sua Assembléia Legislativa e de seu
governador eleito. O clima político tornou-se mais do que nunca favo­
rável ao desenvolvimento da vida urbana.
Alguma outra cidade teria podido aproveitar-se disso, afastando São
Paulo, e tornando-se a jovem capital dessa região em renovação. Du­
rante o período de 1870 a 1890, os interesses paulistas e toda a econo­
mia paulista estiveram voltados para as áreas compreendidas entre
Campinas, Araraquara e Ribeirão Preto. Campinas servira de ponto de
partida para a penetração rumo ao planalto ocidental. Fazendas em
pleno funcionamento continuavam a existir em suas proximidades, e
as maiores fortunas da época estavam em poder dos fazendeiros de
Campinas ou de regiões vizinhas. Em 1886, a população de São Paulo
era somente um pouco maior que a de Campinas; 4 7.697 habitantes
em comparação a 41.253, devendo-se ainda subtrair do número de São
Paulo a população de suas paróquias rurais1.
A capital não era o ponto inicial das principais ferrovias do Estado.
A Sáo Paulo Raihvay vinha de Santos e chegava perto de Campinas, em
Jundiaí, de onde fora prolongada pela Cia. Paulista de Estradas de Fer-
|to. Era de Campinas que partia a Cia. Mogiana de Estrada de Ferro, em
direção aos desmatamentos da área de Ribeirão Preto, e que, por suas
linhas secundárias, atingia as fazendas então prósperas no Oeste do Es­
tado. É verdade que o avanço pioneiro também se fez sentir mais lon-
ge de Campinas, em direção a Botucatu, que uma outra linha ferroviá­
ria ligava diretamente a São Paulo; mas as fazendas de café daquela re-
gião não eram capazes de rivalizar com as das zonas servidas pelas es-1

1. Relatório Apresentado ao Exmo. Sr. Presidente da Província de S. Paulo pela Comissão Central
de Estatística. São Paulo, 1888. 578 p.

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tradas de ferro oriundas de Campinas. E, no que se refere às ligações
com a capital do Brasil, a importância destas era então secundária e não
acarretava nenhuma vantagem decisiva para São Paulo ante a sua rival.
Na época, chegou-se a pensar seriamente em transferir a sede das au­
toridades provinciais para Campinas. Isto teria ido de encontro à dire­
ção do crescimento de São Paulo, sem provocar maiores perturbações.
Mas a febre amarela que assolou Campinas por diversas vezes entre
1880 e 1890 acabou decidindo o debate a favor de São Paulo. Essa do­
ença parecia ter chegado de Santos, onde era comum na forma endê­
mica. De qualquer modo, Campinas foi decididamente julgada como
tendo um clima pouco saudável, pondo fim assim às discussões. Des­
tas convém reter o fato de São Paulo não ter ainda assumido àquela al­
tura toda sua importância como centro de comunicações - uma função
que foi adquirindo progressivamente, à medida que o povoamento do
Estado foi se distribuindo mais eqüitativamente no seu interior, e que
se foram intensificando suas relações com o Rio de Janeiro.

O c l im a d e S ã o Pa u l o
Em contraposição a Campinas, as condições peculiares do clima da
capital paulista apareciam na época como um dos principais fatores a
seu favor. Situada a 800 metros acima do nível do mar, São Paulo des­
fruta de um clima acolhedor para os europeus (França, 1946. Ver tam­
bém Setzer, 1946). A média anual de suas temperaturas é de 17,5 graus
centígrados, com os três meses mais quentes - dezembro, janeiro e fe­
vereiro - alcançando uma média de 20,7 graus, e os mais frios - junho,
julho e agosto - baixando para 15,1 graus.2 O recorde de calor regis­
trado até 1945 foi de 37 graus (no dia 9 de dezembro de 1940 na Água
Branca). Pode-se admitir que, para o conjunto da cidade, as médias das
maiores temperaturas no verão ultrapassam de pouco os 27 graus, en­
quanto no inverno elas são da ordem de 23 graus. As mínimas do ve­
rão giram em tomo de 17 graus e no mês de julho essa média é ligei­
ramente inferior a 9 graus. Julho é o mês que registra as maiores bai­
xas da temperatura, com um mínimo absoluto de 1,5 grau negativo.

2. Essas condições parecem ter-se alterado no período mais recente (N. T.).

46 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


O mais importante, porém, é a amplitude das variações durante o
dia, muito grandes no inverno e não desprezíveis no verão, com estas
últimas garantindo um descanso ao organismo após os dias mais quen­
tes. Estes nunca se prolongam por muito tempo. Só se padece do calor
em São Paulo durante períodos muito breves: três ou quatro dias em
janeiro, com maior frequência em fevereiro, e às vezes durante a pri-
meira quinzena de março. Ao término desse mês, as temperaturas
apresentam uma baixa sensível: a partir de 15 de abril, os cobertores
começam a reaparecer nos hotéis. Durante o inverno, os contrastes tér­
micos entre o dia e a noite tomam-se francamente desagradáveis, e até
perigosos para as crianças e os recém-chegados.
Um belo dia de inverno paulista costuma começar por um espesso
nevoeiro, com o orvalho cobrindo a grama e as cercas-vivas dos jar­
dins, e com o termômetro facilmente baixando para 8 graus. Indo ao
Rio pelos primeiros vôos do dia, os aviões decolam no meio do nevo­
eiro e, depois de poucos minutos, passam a sobrevoar um mar de nu­
vens, com os pontos mais elevados - como o Pico do Jaraguá e a Ser­
ra da Cantareira surgindo acima de trezentos metros do solo. Rumo a
leste e em direção ao mar, o céu torna-se claro. Ao chegar do Rio de Ja-
nciro por volta das oito e meia da manhã, pode-se perceber com clare-
fza o nevoeiro em cima da bacia do Tietê e ao longo do Vale do Paraí­
ba, enquanto as montanhas mais altas apenas permanecem cercadas de
algumas poucas nuvens.
O nevoeiro só chega a dispersar-se por volta das dez horas da ma­
nhã, quando a temperatura começa a elevar-se, chegando a 20 graus e
até 22 graus ao redor das 14 horas. Seu descenso processa-se lenta­
mente até as 17 horas, acelerando-se a partir daí até o pôr-do-sol. Nos
barrancos avermelhados, esses belos fins de dia do inverno tropical
propiciam iluminações intensas, cujas luzes, assim como a qualidade
do ar, chegam a evocar as de uma outra cidade de planalto, Madri.
Mas, muito rapidamente, é a névoa que volta, junto com a garoa, tor­
nando perigosa a circulação nas ruas da cidade e nas estradas de mon­
tanha de suas vizinhanças. É dentro dessas condições que foram regis­
tradas amplitudes térmicas de 26 graus, no dia 6 de junho 1942, e de
25,5 graus, no dia 8 de agosto de 1941. Trata-se de um clima tônico,

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SAO PAULO 47


vivificante, apto a sacudir as energias. Os paulistanos não deixam de
atribuir o seu dinamismo a essa bela estação seca e fria, contrapondo-
a maliciosamente à doçura do clima carioca.
Não se trata, portanto, de uma “Nice durante o ano todo”, como di­
zem os viajantes de passagem. Nem todos os pulmões resistem à garoa,
que tem o inconveniente de coincidir com períodos de seca, durante
os quais há um aumento da poluição do ar. As crises de asma ocorrem
com frequência em São Paulo, afetando particularmente as crianças.
Pode-se perguntar finalmente se em regiões análogas o sistema nervo­
so dos europeus não chega a ser afetado.
A despeito da altitude e da proximidade do oceano, o regime pluvi-
ométrico de São Paulo possui uma natureza nitidamente tropical: numa
precipitação anual média de 1300 mm, metade se dá durante os três
meses de dezembro, janeiro e fevereiro. O mês de março, como vimos,
permanece quente e continua chuvoso, enquanto a diminuição das
chuvas torna-se muito nítida em abril, caindo de 140 mm a 67 mm, até
chegar a 34 mm no mês de julho. As chuvas só voltam a partir da se­
gunda quinzena de setembro, com a diferença entre esse mês e o ante­
rior, repetindo, embora mais fracamente, aquela que distingue os me­
ses de março e abril. A estação das chuvas tende a começar em outu­
bro, e as do período de abril a setembro correspondem apenas a 25%
do total anual.
Contudo, a secura do inverno não chega a ser tão pronunciada
como nos planaltos ocidentais do Estado. Os ventos de origem oceâni­
ca e meridional não descarregam toda a sua umidade na Serra do Mar.
Ao chocar-se com a da Cantareira, eles regam a bacia de São Paulo, fa­
vorecida pelas depressões que no inverno atingem a sua latitude tropi­
cal. Alguns dias de chuva fina e contínua durante os meses de inverno
propiciam um esfriamento e uma umidade particularmente desagradá­
veis nas residências desprovidas de meios de calefação. Os brasileiros
não chegam a preocupar-se com isso, mas, nas casas construídas por
norte-americanos, ingleses ou imigrantes da Europa Central, as lareiras
tornam-se obrigatórias.
As chuvas de verão dão-se principalmente como clássicas tempes­
tades dos países tropicais, muito localizadas e de rara violência, que

48 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


sprovocam graves perturbações na vida urbana. Em poucos minutos, as
ruas inclinadas, muito comuns nessa cidade de colinas, transformam-
Se em verdadeiras torrentes, que arrancam a terra e até o asfalto. As
grandes praças situadas nos vales, onde se localizam os cruzamentos
idas vias principais, frequentemente se alagam. A circulação pára e não
há outro remédio além de esperar que as águas baixem, o que muitas
vezes só se dá lentamente, devido à mínima diferença de nível com o
lio Tietê, esse grande esgoto coletor.
No interior da aglomeração tem-se podido distinguir certas nuan-
ças, tentando caracterizar a presença de vários microclimas. Ary Fran­
ça destacou o papel especial que convém reservar aos ventos que atin­
gem a vertente da Serra da Cantareira, cujas temperaturas mais fres­
cas chegaram a atrair alguns europeus, não obstante sua distância do
Centro. Essa mesma característica levou a construir aí um sanatório,
mas com o esquecimento de que se trata da parte mais úmida de
toda a cidade. Protegida pelo relevo e beneficiando-se do efeito dos
ventos quentes que passam por cima da Cantareira, toda a zona tem
uma pluviosidade menor, intermediária - equivalente a 1200 mm
por ano - , do que na várzea do Tietê e no vale do Tamanduateí dos
subúrbios. Isso não impede, porém, que sua umidade relativa seja
elevada, com a baixa vegetação herbácea de suas várzeas desfavore­
cendo a evaporação.
Nos subúrbios do sul, as temperaturas são inferiores às da Avenida
Paulista, enquanto a umidade relativa e as precipitações são maiores. A
influência da altitude e a crescente proximidade do alto da Serra do Mar
ajudam a entender essas mudanças, também se devendo atribuir o au-
mento da umidade às represas aí construídas pela companhia de eletri­
cidade. Isso não tem impedido, porém, que tais subúrbios sejam inva­
didos pela cidade: a atração das represas, o caminho para Santos e os
espaços vazios aí localizados têm um poder de atração superior às dife­
renças para mais ou menos das chuvas. Ao contrário do Rio de Janeiro,
a cidade de São Paulo ainda não parece refletir na densidade demográ-
fica de seus bairros as diferenças geográficas de seus microclimas.
Isto se dá porque, a despeito de discrepâncias menores, seu clima
no conjunto nada tem de hostil ao povoamento por pessoas proveni-

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 49


entes de regiões temperadas. Aí não são encontráveis as taras climáti­
cas das regiões tropicais, nem o cortejo de suas doenças mais comuns.
As áreas pantanosas do Tietê e de seus afluentes não têm sido focos de
malária. Foi preciso esperar vários anos para o aparecimento de anófe-
les vetores no perímetro urbano, em decorrência dos trabalhos de reti­
ficação do rio Pinheiros. Pode ser que isto venha a tornar-se um pro­
blema no futuro, mas, até agora, São Paulo escapou dessa praga vigen­
te em outras terras altas tropicais.
Quanto às fortes variações diurnas da temperatura, suas vantagens
têm sido muito superiores a seus inconvenientes. Elas são de fato mui­
to maiores no sol do que na sombra, ali atingindo uma amplitude que
vai de 49 graus a menos 2,5, sem chegar a impedir as culturas tipica­
mente tropicais nos arredores da capital, e permitindo ao mesmo tem­
po o cultivo de árvores fruteiras da Europa em certas áreas, uma carac­
terística da qual os jesuítas já haviam tirado proveito. Foi só com a es­
pecialização das lavouras, primeiro na cana-de-açúcar e mais tarde no
café, que esses cultivos de origem européia acabaram sendo deixados
de lado. Mas a imigração estrangeira os fez renascer nos jardins dos
horticultores, motivo pelo qual é possível comprar nas feiras de São
Paulo, praticamente durante o ano todo, os legumes da Europa Medi­
terrânea e Ocidental. Trata-se de uma vantagem causadora de inveja
aos habitantes do Rio de Janeiro.
Assim, o mesmo fator geográfico, que no passado contribuíra a ori­
entar a escolha dos jesuítas que a fundaram, acabou sendo decisivo
para o florescimento da grande cidade européia sob os trópicos. A si­
tuação climática e as funções políticas tradicionais tornaram-se os ele­
mentos motores da nova São Paulo.

A EXPANSÃO URBANA
A partir de 1870, o afluxo de população fez estalar as velhas estru­
turas da cidade, e a aglomeração urbana, descendo de sua colina, em­
preendeu a conquista das várzeas.
Nos bairros mais antigos, várias casas foram transformadas em es­
tabelecimentos comerciais. Em 1877 foram expulsos os quitandeiros
da Rua das Casinhas, a qual, tomada Rua do Tesouro, passou a ser la-

50 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


deada de lojas e escritórios. Os andares térreos das antigas residências
foram transformados em seções administrativas e depósitos de merca­
dorias. Durante certo tempo continuaram sendo habitados os andares
superiores, como no caso do Conselheiro Antônio Prado, que residia
acima dos escritórios da Cia. de Café Prado Chaves, da qual foi o prin­
cipal diretor. Esse encolhimento fora possível pela diminuição do nú­
mero de escravos, e o mesmo fenômeno acabou se produzindo tam-
bém na cidade de Santos.
Mas esta não era uma solução confortável, e as famílias mais ricas
preferiram abandonar o centro da cidade, que estava se tornando um
local de negócios. Elas procuraram construir suas casas em bairros no-
vos. Por outro lado, as ferrovias e suas estações ocuparam as partes bai­
xas e planas. Tal foi o caso da Estação da Luz, de onde se embarcava
tanto para Santos como para Campinas, e, a partir de 1877, o da esta­
dão da Estrada de Ferro Sorocabana, cujos trilhos alcançavam Ipane­
ma, e da Estação do Norte, pertencente à Estrada de Ferro Central do
Brasil, cujos trens ligavam São Paulo à capital do País. Sem cair em de­
suso, as antigas estradas percorridas por carroças - como o Caminho
do Mar, que passava pelo Ipiranga; o de Santo Amaro; e os que leva­
vam a Itu e Sorocaba - foram perdendo importância com a construção
das estradas de ferro. A estrada para Bragança e Minas Gerais deixou
de ter interesse face aos grandes fluxos que se dirigiam para os planal­
tos do interior de São Paulo. Todos esses caminhos, que até então ha­
viam marcado as tênues expansões de São Paulo, passavam por coli­
nas, as quais, momentaneamente, deixaram de ser atrativas para o po­
voamento urbano.
As primeiras grandes obras de urbanismo de São Paulo foram em­
preendidas sob a direção de João Theodoro Xavier de Matos, eleito pre­
sidente da província em 1872 (Paula, 1936). Foi na sua administração
que se abriu uma rua ligando os bairros do Brás e da Luz, ou seja, en­
tre as estações dos trens para o Rio e para Campinas. A várzea do Ta-
manduateí recebeu um primeiro conjunto de melhorias, junto com o
arruamento da Ladeira do Carmo, a transformação em jardim público
de parte dos pantanais e a construção de uma estrada no lugar do an-
jtigo caminho que levava às colinas da Mooca. Mais tarde, em 1886,

0 CRESCIMENTO DA CIDADE DE SAO PAULO 51


essa estrada se transformaria numa rua conduzindo para sítios que em
seguida foram sendo loteados. Outras obras foram empreendidas nas
ruas do Pari e do Gasómetro, sob a influência da Estação do Norte
(mais tarde Estação Franklin Roosevelt). E, graças às novas facilidades
de travessia da várzea do Tamanduateí, deu-se aí o surgimento do bair­
ro do Brás.
Este fora até então um simples subúrbio de artífices e de chácaras:
local de parada para os tropeiros chegados pelo caminho do Rio, sedê
de oficinas de carpintaria, de ferrarias, sapatarias, contando com um;
farmacêutico, um veterinário e alguns pequenos comerciantes atraídos
pelo movimento dos viajantes e pelas possibilidades de escapar dos im­
postos urbanos. Todos esses estabelecimentos foram rapidamente ce­
dendo espaço a pequenos hotéis, a lojas e a casas de operários. A in­
fluência da estação ferroviária foi mais tarde reforçada pela vizinhança
da Hospedaria dos Imigrantes e da Rua Parnahyba. A transformação da
várzea e a evolução dessa parte oriental da cidade iriam acelerar-se a
partir de 1896, com a canalização do Tamanduateí. Parcialmente co­
berto, esse riacho cederia seu lugar à Rua 25 de Março.3
Em direção ao norte, a Estação da Luz dava vida a uma área já mar­
cada por algumas melhorias desde a sua inauguração. Os bairros de
Santa Ifigênia, dos Campos Elíseos, da Barra Funda e do Bom Retiro
estavam se desenvolvendo tão rapidamente como o do Brás. O estabe­
lecimento de um serviço de bondes a tração de animal (1872) aproxi­
mou a estação das chácaras vizinhas ao centro urbano. Os alemães
Nothmann e Glete tomaram a iniciativa de prolongar essa primeira li­
nha à procura de espaços para o estabelecimento de um novo bairro, o
dos Campos Elíseos.
Este foi o bairro aristocrático de São Paulo no final do século XIX e
durante as duas primeiras décadas do século XX. Suas ruas bem traça­
das foram margeadas por amplas residências, os chamados palacetes,
com dois ou três andares, de estilos muitas vezes terrivelmente à moda
do fim do século XIX, tanto externa como intemamente, e dotados de

3. Numerosos pormenores dessa mudança podem ser encontrados no trabalho de Sousa (1946: 53-
65) e em Moura (1943).

52 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


amplos jardins. As mais abonadas famílias paulistanas colonizavam es­
ses Champs Elysées do café; e na década de 1930 ainda se podia vis­
lumbrar ai a chácara dos Prados, uma versão modernizada da velha
chácara que durante muito tempo servira de marco da entrada na ci­
dade para os viajantes procedentes de Jundial. Nessa parte, como no
fjéste, a aglomeração urbana estava chegando junto às velhas chácaras
ffíãos antigos sítios. Ao longo dos dois lados das novas ferrovias esta-
jf # n surgindo novos bairros populares: o Bom Retiro e a Barra Funda
(.1884-1.886), resultantes do desvio e do prolongamento das ruas Hel-
ffètia e José Paulino. A travessia dos trilhos pela Alameda Nothmann
acabou unindo esses novos bairros. O nascimento deles marcou o iní­
cio de conquista das várzeas, a qual também foi se manifestando pelo
surgimento de casas ainda isoladas no Pari e no Canindé.
J j Na outra margem do Tietê, depois de atravessada a Ponte Grande,
Santana continuava sendo um pitoresco subúrbio, excessivamente
afastado, que ainda permanecia fora da aglomeração urbana. Mas, nes­
sa época, o governo já havia instalado em seus solos medíocres uma
colônia de italianos e tiroleses, que iam ao mercado vender frutas, le-
gumes, tubérculos e sorgo.
Era necessário dirigir-se a oeste para poder reencontrar a exuberân-
cia urbana. As ações do presidente João Theodoro também aí se exer­
ceram com sucesso. O Largo dos Curros, antiga plaza de toros, uma área
pantanosa que havia sido saneada e urbanizada, iria transformar-se na
jPraça da República, então ainda afastada do Centro. A Rua Aurora li­
gava o local aos Campos Elíseos, enquanto em seus arredores conti­
nuavam existindo chácaras e, mais longe ainda, uma pequena capela
dedicada a Santa Cecília, que marcava o ponto de partida da Estrada
do Emboaçava, a caminho de Jundiaí e Campinas.
A urbanização da área rapidamente absorveu essas propriedades
semi-rurais e semi-urbanas. Um de seus proprietários, o Sr. Rego Frei-
tis, resolveu lotear seus domínios, que se estendiam do atual Largo do
Arouche, então ainda um simples prado pantanoso, até a Rua da Con­
solação. O loteamento dessa chácara permitiu aos paulistanos observar
§§ novidade constituída pelas cercas de arame. Em 1876 fora iniciado
um outro loteamento, da Chácara do Chá, sobre o pequeno planalto si-

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 53


tuado na margem esquerda do Vale do Anhangabaú, em frente ao cen­
tro da cidade. Esse loteamento deu origem a uma grande rua prolon­
gando uma das principais artérias do Centro Velho, a Rua Direita. Des­
sa forma começou a esboçar-se o surgimento de um grande eixo de cir- j
culação entre leste e oeste, ainda interrompido pelo Vale do Anhanga­
baú, seus jardins e seus terrenos vazios e inundáveis. A progressão das
habitações em direção a oeste intensificou-se a partir de 1890 por meio
da venda dos terrenos situados na colina acima da chácara de Freitas.
O engenheiro Nothmann passou a atrair a burguesia paulista para um
bairro mais alto, mais arejado e mais distante das várzeas com suas fer­
rovias e concentrações populares. Esse loteamento, chamado Higienó-
polis, passou a competir com os dos Campos Elíseos na fixação das re­
sidências da alta burguesia.
Na direção sul, a expansão dessa época foi menos brilhante. A cida­
de de São Paulo havia abandonado seus antigos caminhos para fixar-se
unicamente no que levava ao Jaraguá, a Campinas e às terras do café.
Seria preciso esperar até o final do século XIX para registrar alguns
progressos no bairro da Consolação e no caminho para Santo Amaro. !,r }
A companhia das águas havia estabelecido seu principal reservatório
perto da Rua da Consolação, e alguns de seus funcionários e engenhei­
ros passaram a morar nas suas vizinhanças. Um americano do sul dos
Estados Unidos, de onde emigrara depois da Guerra Civil, estabeleceu j
sua chácara perto do cemitério que ali havia sido criado em meados do
século XIX. Entre 1890 e 1895, outro chacareiro loteou sua proprie­
dade nas proximidades da futura Avenida Paulista. Várias transforma- :
ções ocorreram na mesma época ao longo do caminho que levava para
Santo Amaro. A estrada, que partia do Largo do Piques e chegava ao
espigão entre os dois braços do Anhangabaú, foi substituída por uma
avenida que seguia diretamente esse espigão desde o largo São Francis- j
co até a futura Avenida Paulista. Tratava-se da Avenida Brigadeiro Luís t
Antônio.4 I
Slteíi

4. Um estudo dessa avenida (até agora inédito) foi feito por três alunos meus da Universidade de
São Paulo: as Srtas. Cecconi e Xavier, e o Sr. José de Araújo Filho. Um trabalho semelhante foi ela­
borado a respeito da Rua da Consolação pela Srta. Bruna Rossi.

54 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Como em toda parte, um loteamento foi acompanhando a abertura
dessa avenida. Mas, de acordo com as fotografias feitas alguns anos
mais tarde, a atração dessa nova via não era das maiores, e ao lado dela
só chegaram a ser construídos alguns poucos palacetes. As classes
abastadas sentiam maior atração pelos bairros de Higienópolis e dos
Campos Elíseos; os elementos populares não tinham nenhum motivo
para irem morar longe dos centros comerciais em formação junto às es­
tações ferroviárias. Mas o que aqui permanece significativo foi o aban-
dono do Piques como ponto de partida das principais estradas. As la­
deiras do Anhangabaú deixaram de constituir o principal elemento do
sistema de comunicações externas da capital, uma função que passou
a ser assumida pela grande planície do Tietê.
As aberturas de avenidas e ruas, as novas construções, os loteamen-
tos, tudo isso testemunhava suficientemente o súbito crescimento de
São Paulo. Mas procurar-se-ia em vão um plano de conjunto, uma von-
tade bem meditada, ou uma direção administrativa central capaz de
impor seus desejos, de traçar as linhas mestras da nova cidade, e de le­
gislá-la de forma útil. A expansão de seu povoamento urbano foi realiza­
da sem ordem alguma e de conformidade aos interesses imediatos dos
indivíduos, exatamente como no caso da expansão do povoamento ru­
ral no interior. Que eram de fato esses loteamentos, e quem eram os
seus loteadores? Na maioria das vezes, os novos bairros foram surgin­
do ao acaso. Por ocasião do falecimento de um dos proprietários das
velhas chácaras, seus herdeiros, ao invés de conservá-las em comum,
ou de mantê-las mais ou menos intactas, decidiam-se a dividi-las e a
colocar suas parcelas à venda. Para tanto constituíam uma pequena
sociedade, cujo capital se originava da herança. Algumas vezes, os
herdeiros acharam mais cômodo vender em bloco suas propriedades
a agrimensores brasileiros ou estrangeiros, e outras vezes, a decisão
de lotear e vender as terras era tomada pelos seus proprietários ainda
em vida.
Davam-se ou foram dados em seguida os nomes dos antigos donos
às ruas mais importantes da cada loteamento. Foi assim que surgiram as
avenidas Angélica e Brigadeiro Luís Antônio, bem como a Rua Barão de
Itapetininga. Esse hábito permaneceu até hoje como testemunho do ca-

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 55


ráter familiar de tais empresas. Em nenhum desses casos a administra- J;j
ção municipal chegou a exercer um papel de alguma importância: cada
um fazia seu loteamento isoladamente, sem grandes preocupações ur­
banísticas, traçando as ruas da forma mais simples possível e, acima de i
tudo, procurando extrair um lucro apreciável. Esse sistema refletia per- i
feitamente uma sociedade na qual a instituição familiar ainda não ha­
via perdido sua solidez, mas estava ao mesmo tempo lançando-se no
enriquecimento pela livre concorrência, frequentemente acoplada à es­
peculação, praticada por indivíduos ainda pouco conscientes da exis- *
tência de interesses coletivos.
O crescimento urbano que se processava ao acaso das oportunida­
des particulares só fez completar uma fragmentação antecipada pela to- j
pografia. A urbanização da Chácara do Chá foi empreendida quando a '
Praça da República, as ruas Aurora e Vitória e as vizinhanças do Largo
do Arouche já estavam parcialmente construídas. Uma espécie de lacu­
na semi-urbana havia sobrevivido entre os espaços habitados. Isto se t
dava frequentemente porque todos os terrenos de um loteamento não i
eram comprados ao mesmo tempo, e porque alguns compradores de- i
moravam mais para construir do que outros. " jj
Mas o mais grave era o corte que o barranco do Anhangabaú inter- jj
punha entre o centro velho e os novos bairros do oeste. Para ultrapas- j
sá-lo tornava-se necessário fazer um desvio por uma rua íngreme, a La­
deira do Açu, cruzar o riacho por uma ponte, atravessar as chácaras em
via de transformação, e ir de encontro, na altura do atual Largo do Pais-
sandu, a um terraço pantanoso transformado em reservatório. Esse tra­
jeto era incômodo e longo. Um francês estabelecido em São Paulo
como negociante de mapas e plantas, dono de uma oficina de litogra-
vura, Jules Martin, foi o primeiro a propor a idéia de construir um via- j
duto por cima do Vale do Anhangabaú em 1877. Desenhou uma plan- j
ta deste e a sua construção foi imediatamente decidida.
A sua realização, no entanto, foi bem mais demorada. Encontrou a
resistência obstinada dos proprietários que tiveram que ser expropria­
dos, e que não tinham a mínima intenção de deixar suas residências si­
multaneamente urbanas, pelo fato de suas fachadas se situarem numa
das grandes ruas da cidade (a atual Libero Badaró), e rurais, por seus

56 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


jardins e pomares localizados no Vale. Finalmente, em 1889, foi possí­
vel demolir a casa da proprietária mais recalcitrante, a Baronesa de Ta-
tuí, dando ensejo à grande alegria da população, que comemorou es-
pontaneamenie o evento. Três anos mais tarde, o governo do Estado e
fa Municipalidade puderam inaugurar solenemente o (antigo) Viaduto
do Chá, um triunfo da metalurgia alemã (Freitas Jr., 1936), Pouco de­
pois, um segundo viaduto passou a ligar o centro velho, a partir do
Largo São Bento, ao bairro de Santa Ifigênia.
Essas duas obras deram um novo aspecto à paisagem de São Paulo;
mas elas só resolveram parcialmente seus problemas de circulação.
Cada um deles concentrou parte do tráfego urbano e, à medida que
este foi aumentando,, também foram crescendo as dificuldades de cir-
fculação. Havia-se aparado um problema urgente, mas sem pensar em
solucioná-lo de vez por meio do traçado de grandes artérias, da aber­
tura de largos espaços e da simplificação da relações em torno do nú-
deo urbano.
Este ainda se confundia com o velho triângulo que servira de limite
à aldeia dos jesuítas. A Rua XV de Novembro, as ruas São Bento e Direi­
ta condensavam dentro de suas estreitas fronteiras todas as principais
atividades da cidade. Os fazendeiros que vinham à capital, todos os co­
merciantes e negociantes criaram o costume de se encontrar nos cafés do
Triângulo, nas sombrias lojinhas em que sempre se costuma servir cal­
do de cana recém-moída, ao lado das casas lotéricas que oferecem rui­
dosamente seus bilhetes à fortuna de todos os transeuntes. Os grandes
fazendeiros haviam naturalmente instalado os escritórios de suas admi­
nistrações e das empresas comerciais de sua propriedade nessas mesmas
ruas, que começaram a ficar estreitas. Os negócios transbordaram para
a Ladeira do Açu, onde fora aberto um grande café, para a curta Rua Li­
bero Badaró e para a praça situada no prolongamento do Viaduto do
Chá. O Largo São Francisco passou a integrar-se ao Centro devido à
abertura da Avenida Brigadeiro Luís Antônio. O arruamento da ladeira
do Carmo, as novas facilidades de travessia da várzea, os caminhos em
direção aos novos bairros da parte baixa da cidade atraíam as casas co­
merciais e as lojas para a Praça da Sé. Mas, não obstante essas amplia­
ções, o Triângulo continuava sendo o centro da cidade de São Paulo.

o CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 57


O crescimento urbano pouco alterou essa situação. O casario do
Centro continuava sendo integrado pelos mesmos edifícios coloniais
com telhados cinzas, frequentemente térreos, algumas vezes assobra­
dados, com um ou dois andares, dotados de pequenas portas de ma­
deira, e de fachadas tristes e desnudas. Nesse ambiente arcaico, em que
nada indicava qualquer ruptura com os tempos coloniais, começou a
circular em maio de 1900 um bonde elétrico. Ele teve como passagei­
ros os engenheiros responsáveis por sua instalação e altos funcionários
da administração municipal, todos vestindo fraques e portando barbi­
chas de tipo cavanhaque, num estilo já em desuso na Europa e certa­
mente bastante estranho num cenário tropical.

58 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


O SURGIMENTO DA METRÓPOLE

Pode-se considerar esse dia da inauguração dos bondes elétricos


como ponto de partida da fase contemporânea da evolução urbana de
São Paulo, da sua fase de florescimento como metrópole. Com efeito,
foi a partir da primeira década do século XX que a cidade deixou de
ser apenas a urbe dos fazendeiros de café. A eletrificação e a indústria
deram-lhe um impulso que, embora fraquejando vez por outra, nunca
cessou de manter-se desde então. O número das edificações foi cres­
cendo sem cessar, apenas fazendo alguma pausa durante a Primeira
Guerra Mundial e no ano da Gripe Espanhola, por ocasião da grande
crise de 1929 a 1932, e no início da Segunda Grande Guerra (veja-se
o gráfico abaixo). E, por mais fortes que tenham sido as quedas numé­
ricas, elas não chegaram a alterar a tendência geral, já que as retoma­
das foram igualmente intensas. Nesse intervalo de quase cinqúenta
anos, a aglomeração urbana não cessou de anexar novas áreas, ao mes­
mo tempo em que uma atividade trepidante e uma nova arquitetura
subverteram por completo a sua paisagem.

17.000

16.000

15000

14.000

U ÍW

12000

ms

Figura II: A marcha construções de 1901 a 1948

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SAO PAULO 59


O CRESCIMENTO DA CIDADE E DE SUA PERIFERIA
O ganhos obtidos no último quartel do século XIX foram ampla­
mente ultrapassados: a onda das construções cobriu os terraços do Vale
do Tietê, invadindo as várzeas, subindo as encostas, transpondo o es­
pigão de 815 metros e atingindo com vigor sua vertente meridional.
Em pontos mais distantes, o impulso urbano acordou velhas aldeias,
fez nascer novos centros e deu origem a uma região suburbana.1
Em direção a oeste, a incorporação urbana baseou-se nos baixos
terraços do Tietê, uma estreita faixa de terra plana entre a várzea inun-
dável e as colinas. Uma longa artéria composta de feixes retilíneos foi
traçada desde o Centro até a saída da cidade, situada além do bairro da
Lapa. Suas primeiras obras remontam a 1911, quando um grupo de
proprietários imobiliários divisou uma boa oportunidade de especula­
ção ao promover a desapropriação de parte de seus terrenos a fim de
alcançar e urbanizar a Ladeira do Açu (Hermann, 1944). Este foi o iní­
cio da Avenida São João, que desce ao fundo do Vale do Anhangabaú,
também urbanizado na mesma época, e se prolonga rumo a oeste. Este
grande eixo leste-oeste tem um traçado paralelo aos trilhos da Soroca-
bana e da antiga São Paulo Railway2, que margeiam a várzea e acaba­
ram bloqueando a expansão habitacional em sua direção. As novas edi­
ficações puderam, no entanto, invadir aos poucos os terrenos situados
na base das colinas do Sumaré e do Alto da Pompéia, e, mais recente­
mente, começaram a subir também por suas ladeiras. Como o povoa-
mento estava se processando ao mesmo tempo no topo dessas colinas,
tendendo a descê-las, as duas correntes acabaram por se encontrar, fa­
zendo com que os espaços vazios diminuíssem rapidamente.

1. Ver o artigo de Caio Prado Jr. (1941). Também aproveitamos as idéias expostas no fascículo de
Aroldo de Azevedo (1943). Mas é indispensável conhecer bem o estudo clássico de Prestou James
(1933:271-298); ver particularmente o esboço da figura 11 na página 294, e o mapa da figura 12
nas páginas 296-297.

2. Atual estrada de ferro Santos a Jundiat (N. T.)

60 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Quanto mais nos afastamos do Centro, mais rarefeito se torna o po-
voamenLo. Nos pontos em que a estrada se vale de um estreitamento
do Tietê para atravessá-lo, apenas encontramos alguns loteamentos iso­
lados, como o da Vila Anastácio3, que constituiu ao mesmo tempo um
distrito industrial. A confluência do Tietê com o Pinheiros tem marca­
do até anos recentes os limites da aglomeração urbana, mas a canaliza­
ção do primeiro, seguida por aquela do segundo, tenderá a tornar dis­
poníveis os terrenos outrora inundados em cada verão. Prevê-se para
breve a formação de novos distritos industriais nessas áreas.
Esse eixo da Avenida São João, prolongado pela Avenida Água Bran­
ca e pelas ruas Guaicurus e da Lapa, dá início à grande estrada para
Campinas, sucessora do velho caminho que conduz ao Triângulo Mi­
neiro e rumo a Goiás. O desenvolvimento da circulação rodoviária, o
tráfego de caminhões a longas distâncias, transformaram esse eixo
numa artéria-mestre de São Paulo. Sua importância constitui um teste­
munho da solidariedade existente entre o desenvolvimento do organis­
mo urbano da capital e os progressos da conquista de novas terras no
interior.
Além disso, as estradas de rodagem e as ferrovias também contri­
buíram para fazer surgir por aqueles lados uma área suburbana turís­
tica, de abastecimento alimentar, e de natureza industrial. Uma peri­
feria que se inicia na margem direita do Tietê e se prolonga de manei­
ra cada vez mais descontínua rumo a Jundiaí, constituindo uma tran­
sição entre os arrabaldes urbanos de São Paulo e as pequenas cidades
do interior do Estado. Na margem esquerda do Tietê, os quartéis de
Quitaúna e as fábricas de Osasco já se tornaram uma dependência de
São Paulo, sobrepondo-se a uma fazenda isolada aberta por um italia­
no ao final do século XIX.
Uma outra grande artéria da cidade, a Avenida Celso Garcia, mar­
cou a sua expansão rumo a leste, em direção à Penha. Já vimos como

3. O termo "vila" serve para designar os loteamentos geralmente operários. Por sua vez, o termo
“jardim" era mais empregado para os loteamentos de terrenos mais caros. Contudo, não se pode ser
excessivamente rigoroso nessa diferenciação, uma vez <\ue os interesses da publicidade muitas vezes
falseiam os referidos termos.

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 61


o bairro do Brás passou a desenvolver-se ao lado da Estação Ferroviá­
ria do Norte, após as primeiras obras de urbanização da várzea do Ta-
manduateí. Uma urbanização que se completou entre 1895 e 1915,
com a drenagem, canalização e cobertura de parte do curso desse ria­
cho, dando lugar a uma rua que margeia a longa base da colina cen- j
trai, a Rua 25 de Março, bem como ao novo Mercado Central e aos jar- j
dins públicos do Parque Dom Pedro II. Deixou de existir, portanto, a
falta de continuidade entre o centro da cidade e o bairro do Brás, para
o qual foram atraídas várias fábricas, seja devido à vizinhança das li­
nhas ferroviárias para Santos e Rio de Janeiro, seja pelas facilidades de f
construção nos terrenos planos ao abrigo dos inconvenientes da vár- D
zea. Dessa forma o Brás, Belenzinho e mais a Mooca tornaram-se os ■1
bairros operários da capital. JU
A Avenida Celso Garcia e a estrada para o Rio de Janeiro tiraram f
proveito dos progressos da circulação de automóveis e caminhões, da
mesma forma que a Avenida São João e seus prolongamentos. Mas aí %
os trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil não detiveram a pro- j
liferação de loteamentos entre a grande avenida e o Tietê. As instala- 1
ções ferroviárias dessa área, menos importantes que as da Sorocabana J
e da São Paulo Railway, não chegaram a travar a transformação dos !
campos em terrenos de moradia. Assim, de ambos os lados da Aveni-
da Celso Garcia até a Penha, o povoamento não cessou de expandir-
se. A própria Penha, antigo local de peregrinações, acabou sendo ab- H
sorvida no espaço urbano. Ao seguir pela estrada que parte de São
Paulo rumo ao Rio de Janeiro, o trânsito permanece movimentado até
a Penha, e apenas a travessia de ruas estreitas margeadas de casas ve­
lhas chega a indicar aos viajantes que a cidade propriamente dita já foi
deixada para trás.
Mais além, uma outra área suburbana foi estendendo-se rapida-
mente rumo a leste. Vários loteamentos estão instalados nela há mais
de vinte anos. Seus contornos figuram belamente nos mapas da déca­
da de 1930 como vilas de ruas frequentemente geométricas e por ve­
zes descrevendo harmoniosas sinuosidades, levando a crer que todas já J
estão habitadas - como nos casos da Vila Matilde, perto de Poá, de Ita- |
quera e de Itaquaquecetuba (Azevedo, 1945). Mas foi apenas na déca-

62 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


da de 1940 que a venda de terrenos começou a acelerar-se nelas. Atual-
ffríente, a influência urbana tem aumentado em toda essa zona, esten­
dendo-se até Mogi das Cruzes.
Uma rápida olhada aos mapas de São Paulo poderia levar a crer que
a vida e a expansão urbanas processaram-se exclusivamente em função
de um grande eixo leste-oeste, bem visível, de um lado, na Avenida
Celso Garcia, do outro, nas avenidas São João e Água Branca, e apenas
entremeado pelo Centro da cidade. Houve, contudo, uma terceira di­
reção que também acabou se impondo, ainda mais antiga e menos vi­
sível nos mapas, porém de igual eficácia: a direção que aponta para
Santos. Mas, nessa direção, a estrada de rodagem e a ferrovia já não são
paralelas e vizinhas entre si. A estrada de ferro sobe o Vale do Taman-
duateí até chegar ao Rio Grande e atingir o Alto da Serra junto aos ma­
nanciais do rio Mogi. A estrada de rodagem, por sua vez, ruma para o
sul e sudeste, infiltrando-se entre as colinas arredondadas da Serra do
Mar, que em seguida passa a descer vertiginosamente.
Dessa divergência das duas grandes artérias que levam ao Oceano
resultou um desenho da expansão urbana menos nítido que aquele ao
longo dos eixos leste-oeste. Margeando o velho Caminho do Mar, as
colinas do Ipiranga deram origem a um bairro que ainda aparece iso­
lado da aglomeração principal no mapa chamado “Dos Excursionistas”,
publicado em 1924, que então marcava nela aproximadamente o pon­
to extremo da cidade. Desde então, contudo, o bairro do Ipiranga foi
se ligando ao Centro, transbordando simultaneamente em direção ao
Tamanduateí e invadindo o vale do riacho Ipiranga. Uma série de pe­
quenos loteamentos - como os da Vila Independência, da Vila Cario­
ca, de Heliópolis e da Vila Sacomã - levaram a cidade até a serra. Ao
longo da ferrovia, o desenvolvimento do Parque da Mooca e da Vila
Prudente acabou alcançando o antigo lugarejo de São Caetano. Aí nas­
ceu uma área suburbana industrial compreendendo não apenas São
Caetano, mas também Santo André, com seu bairro Utinga, reforçado
pela presença da ferrovia e de diversas fábricas. Dessa forma, a expan­
são urbana foi rumando em direção ao Alto da Serra. Com a instalação
de fábricas em Mauá e Ribeirão Pires, foi ocorrendo um prolongamen­
to dos distritos industriais da capital.

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 63


Nesse eixo meridional, a expansão urbana tem sido assimétrica e rc-
vestiu-se de outro caráter. Na direção norte, o Tietê apenas parcialmen­
te cessara de constituir-se num obstáculo. Devido à ausência de liga­
ções diretas com as ferrovias, poucas fábricas chegaram a instalar-se na
margem direita desse rio. Cada um de seus antigos distritos foi crescen­
do moderadamente. A antiga rota para Minas foi muito menos atingida
pela expansão urbana do que a ferrovia para o Rio de Janeiro. Foram
abertos loteamentos em suas colinas argilosas e arenosas, principalmen­
te de vilas operárias, mas também de alguns pequenos bairros de classe
média. As paisagens dessas áreas permanecem rurais, devido à presen­
ça de pomares com árvores frutíferas européias nos flancos da monta­
nha, de jardins, e até de pequenas plantações de cana do Tremembé. A
Serra da Cantareira nada perdeu de sua natureza de barreira, de frontei­
ra da aglomeração urbana. Mas ela participa intensamente da vida des­
ta, seja por suas pedreiras de granito, seja por sua transformação em
parque pelas multidões de paulistanos que a visitam cada domingo.
A expansão rumo ao sul foi muito mais intensa porque aí não ha­
via obstáculos capazes de detê-la. Dois fatos contribuíram para sua
ocorrência: em primeiro lugar, a crescente atração exercida por Santo
Amaro, e em seguida a tendência da burguesia paulista de desertar
seus antigos bairros, próximos às ferrovias e às estações, e nas vizi­
nhanças das várzeas. A expansão em direção a Santo Amaro proces­
sou-se por meio do povoamento das áreas ao longo de suas duas ar­
térias principais: a Rua da Liberdade e a Avenida Brigadeiro Luís An­
tônio. A venda, depois da Primeira Guerra Mundial, das terras da Vila
Mariana contribuiu ao prolongamento da Rua da Liberdade para além
do espigão de 815 metros. E, mais recentemente, os loteamentos de
Indianópolis e do Brooklin Paulista tiveram o mesmo efeito em relação
ao eixo da Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Por sua vez, os lagos arti­
ficiais criados pela Light & Power tornaram-se pontos de atração de vi­
sitantes nos fins de semana. As facilidades de transporte proporciona­
das, seja pelos bondes, seja por linhas de ônibus e pela presença de
boas estradas, têm levado os paulistas de classe média, e também os es­
trangeiros, a procurar morar perto de Santo Amaro, ou até nessa pe­
quena cidade e nas vizinhanças das represas.

64 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Além disso, a progressão para o sul foi também devida ao desejo de
se afastarem dos bairros populares e de desfrutarem de uma situação
topográfica mais agradável. Essa tendência, que já se manifestara com
a fundação do bairro de Higienópolis, foi prosseguindo e se fortalecen­
do. Da mesma forma que se pode acompanhar através das gerações as
migrações dos grandes fazendeiros promovendo a expansão das fren­
tes pioneiras, é possível detectar na cidade, também de geração a gera­
ção, uma migração semelhante constituída pela sucessão dos bairros
“chiques” da capital.
Entre 1850 e 1870, os ancestrais das classes abastadas tinham chá­
caras nos limites da cidade ou residiam nas ruas do triângulo. Na ge­
ração seguinte criou-se a voga de morar no bairro dos Campos Elíseos,
seguida pelo entusiasmo por Higienópolis, o bastião urbano dos fazen­
deiros. O enriquecimento de imigrantes italianos e sírios, e acidental­
mente de alguns filhos de franceses, desencadeou um rush burguês ao
longo da Avenida Paulista, no mais belo sítio da cidade de São Paulo.
Depois de 1920 começou um movimento, inicialmente muito lento,
rumo aos loteamentos do Jardim América e do Jardim Paulista.
A expansão rumo ao sul beneficiou-se igualmente da estrada que,
continuando a Rua da Consolação e dois de seus prolongamentos - a
Rua Teodoro Sampaio e a Avenida Rebouças - , passa pelo subúrbio do
Butantã e leva por ramificações para as cidades de Itu e Sorocaba, e
também para Curitiba e ao Vale do Iguape. Os transportes automotivos
ajudaram a povoar os bairros de Cerqueira César, Pinheiros e Butantã.
Nos arredores da cidade, a região das velhas aldeias de M’boi e Itape-
cerica, que se estende até Cotia, recebeu na época uma verdadeira sa­
cudida. Essa modalidade de sertão florestado às portas da capital vol­
tou a ser desmatada nos últimos vinte anos, e passou a ser invadida por
cultivos hortigranjeiros para o abastecimento da cidade.
Neste seu desenvolvimento policêntrico, a expansão da primeira
metade do século XX acabou englobando antigos distritos e promoven­
do o surgimento de novas aglomerações. Em l.° de setembro de 1947,
Santo André já era uma cidade de 127.349 habitantes, enquanto San­
to Amaro tinha 25.436, Osasco 27.764, Nossa.Senhora do Ó 22.936,
Santana 66.307, Tucuruvi 49.388 e Guarulhos 22.409 (Almeida <Sr

o CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 65


Perdigão, 1948). A aglomeração urbana de São Paulo projetou-se ao í
longo das estradas de rodagem e das ferrovias, principalmente daque-
las que conduzem aos centros de produção agrícola do Estado e ao i
porto de Santos. Meio século antes, os pontos extremos da cidade não I
estavam além de dois quilômetros do Centro; atualmente, os bairros da
Lapa e da Penha ficam a mais de 10 km, enquanto Jundiaí e Mogi das ;
Cruzes distam 60 km e 51 km, respectivamente.4 De leste a oeste, a :
aglomeração paulista abrange mais de 20 km. Tanto por sua extensão
como pelo ritmo de seu crescimento, ela constitui uma cidade autenti­
camente americana.

Os FATORES DO CRESCIMENTO
Nem a expansão das fazendas de café, nem o enriquecimento de
seus proprietários foram suficientes para propiciar um impulso de tal
magnitude ao crescimento da capital. Não se quer dizer com isto que
seu destino se tenha desatrelado das fases felizes ou infelizes pelas
quais a agricultura passou. Ocorre apenas que essas relações foram
evoluindo ao longo do tempo. Houve o surgimento de uma indústria
urbana, bastante solidária à economia urbana, tanto por suas origens
como por suas tendências, a qual propiciou à cidade inesperadas ener­
gias. O estudo desse desenvolvimento industrial permite conhecer as
principais causas do florescimento urbano.

A Eletricidade
O equipamento hidroelétrico da região da capital constituiu a base
de sua industrialização. Afastada das jazidas carboníferas do Sul do
Brasil, a cidade de São Paulo não dispunha de nenhuma fonte energé­
tica apreciável até a entrada em cena da Light & Power.5 Trata-se de
uma empresa da Canadian General Finances Ltd., que, por meio de fir-

4. Cf. Aroldo de Azevedo, cujas contribuições foram realçadas na Introdução deste texto.
Af|J
5. Como se verá na segunda parte deste livro, o Professor Paul Singer não defende o mesmo ponto
de vista em relação à gênese da industrialização em São Paulo. Consulte-se também a este respeito j
o livro de Fldvio A. M. de Saes (1986). (N.T.) f

66 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


'féfiás com nomes semelhantes, tem contribuído desde 1900 para a ele­
trificação do Brasil, do México e da Catalunha. A modernização de São
Paulo situa-se pois sob a dupla égide dos investimentos estrangeiros e
de uma penetração econômica oriunda da América do Norte.
||hí A Light começou por adquirir uma pequena central termoelétrica já
jéjh funcionamento na cidade, dedicando-se logo em seguida ao forne-
cimento de energia e à organização dos transportes coletivos locais.
Pouco depois lançou-se com sucesso ao equipamento hidroelétrico da
região da capital paulista. O estreitamento do Vale do Tietê abaixo da
cidade de São Paulo oferecia um local favorável à construção de peque-
Mâs barragens, suficientes para atender uma demanda energética ainda
modesta. Três usinas hidroelétricas foram aí construídas sob essas con­
dições: a de Parnaíba, que data de 1901 (com 16 mil kW); a de Itupo-
ranga, posta a funcionar em 1915 (57.500 kW); e finalmente a de Ras­
gão, inaugurada em 1924 (22 mil kW). A companhia canadense rapi-
damente se deu conta de que a capital e sua periferia poderiam consu-
mir mais eletricidade, iniciando em consequência seus amplos traba­
lhos de construção de barragens na área da Serra do Mar. Seus enge­
nheiros conceberam e realizaram um grandioso projeto de represar a
pouca distância de São Paulo alguns dos rios nascidos no alto da Ser­
ra do Mar e fluindo para o oeste (Costa, 1932).
Foram sendo assim constituídos vastos reservatórios de água, cujo
conteúdo passou a alimentar, através de dutos especiais, uma usina si­
tuada ao pé da serra, em Cubatão. Esta usina foi inaugurada em 1926,
e por ampliações sucessivas sua capacidade geradora foi elevada a 415
mil kW Uma outra usina foi instalada em Porto Góis no ano de 1933
(com 11 mil kW), junto com uma usina termoelétrica de apoio (a Pau­
la Souza, de 8 mil kW). A este conjunto foram acrescentadas treze pe­
quenas empresas locais compradas pela Light. Esta não se contentou
em atender às necessidades mais urgentes, adotando uma política de
construções de longo prazo, fundamentada na convicção de que o par­
que industrial e a cidade de São Paulo continuariam a consumir cada
vez mais eletricidade, tanto para iluminação como sob forma de força
motriz. Em função dela, processou-se a instalação em Cubatão de ge­
radores adicionais com capacidade de gerar 92 mil CV cada um, para

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SAO PAULO 67


começarem a funcionar em 1951. Prevê-se, ainda em Cubatão, a insta­
lação de duas centrais, com capacidade de 500 mil kW cada uma. Seus
técnicos chegaram até a preconizar a elevação da capacidade geradora
do complexo de Cubatão para 2 milhões de kW, indo buscar águas do
Tietê, seja a jusante, na área de Pirapora, seja regularizando seu curso
a montante, por meio da instalação de lagos artificiais acima de Mogi
das Cruzes, os quais iriam também receber águas do rio Paraíba.
Pode-se ver, portanto, que reina confiança, e que esta parece bem
justificada quando se observa a curva crescente das usinas da Light,
cuja produção de energia tem aumentado regularmente a partir de
1902. Essa curva só apresenta três patamares: o primeiro, em 1919,
corresponde à epidemia da Gripe Espanhola, que atingiu o Brasil de
forma dramática; o segundo foi suscitado por perturbações políticas
em 1925; o terceiro reflete a depressão econômica mundial e a crise do
café, bem como as sequelas de ambas entre 1929 e 1932. Desde então,
todavia, a curva em apreço voltou a ascender verticalmente, ao mesmo
tempo em que os paulistas continuavam reclamando volumes crescen­
tes de energia.

A industrialização e a função industrial


Na época em que a Light começou suas atividades em São Paulo, as
circunstâncias eram favoráveis ao surgimento da função industrial. En­
tre 1900 e 1943 estava grassando uma crise de superprodução de café.
Começou então a parecer evidente que a economia de todo o país não
poderia mais ficar vinculada a uma única cultura comercial. O gover­
no federal, sustentado pela opinião pública, estava preocupado em re­
duzir as importações a partir da criação de uma indústria têxtil nacio­
nal apta a transformar o algodão então produzido pelos Estados do
Nordeste. Já uma vez, por ocasião da abolição do escravismo (1888),
uma elevação das tarifas aduaneiras sobre as importações de tecidos de
algodão havia inaugurado uma política protecionista favorável à funda­
ção de tecelagens nacionais. E, em 1900, essas tarifas voltaram a ser
aumentadas.
Isto explica por que as primeiras indústrias têxteis de São Paulo fo­
ram tecelagens, e não fiações, uma vez que os fios continuavam a ser

68 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


importados. A maioria dessas fábricas foi fundada por imigrantes italia­
nos ou libaneses. Crespi fundou sua fábrica em 1897, e em 1904 Ma-
ftarazzo iniciava a produção de sacaria para o transporte das farinhas de
seus moinhos. Em 1907 foi a vez de um libanês, Jafet, montar uma te­
celagem. Outras fábricas foram abertas na mesma época, as de Kowa-
rick, do Moinho Santista, etc.
Gradativamente, cada uma dessas tecelagens foi criando sua própria
fiação, seguida por uma tinturaria, e, algumas vezes, a fabricação de
fios e tecidos de algodão era complementada por instalações que tra­
balhavam a lã e, em épocas mais recentes, a seda artificial.6 Foi assim
que a fábrica Mariângela, das empresas Matarazzo, completou seu ci­
clo evolutivo iniciado por panos grosseiros: suas instalações foram du­
plicadas a partir de 1911 para uma tecelagem especializada em artigos
mais finos, a fábrica do Belenzinho. Matarazzo ainda abriu um tercei-
ro estabelecimento na região de Campinas, onde, além de produzir
seda para sua fábrica Santa Cecília, lançou-se à produção de rayon por
meio da fundação da Companhia Visco-Seda Matarazzo. Seu exemplo
não foi o único e muitas grandes empresas têxteis que atualmente pos­
suem fiações, tecelagens, oficinas de impressão de tecidos, tinturarias,
passamanarias, e que trabalhavam tanto o algodão como a lã, tiveram
seus primórdios entre 1900 e 1910 (Caldeira, 1935).
Outros eventos econômicos e as duas guerras mundiais contribuí­
ram poderosamente para o desenvolvimento do parque industrial pau­
lista e, consequentemente, ao desenvolvimento da aglomeração urba­
na da capital. É bem sabido como a Primeira Guerra Mundial foi mar­
cada pelo início da industrialização em vários países novos. A fase de
prosperidade do café que se seguiu a ela e que durou, grosso modo, de
1920 a 1929, também foi favorável ao processo. Embora tivesse sido
artificialmente prolongada pelas políticas de valorização do café, ela
contribuiu para aumentar o poder de compra dos fazendeiros e de seus
empregados. Tanto estes como aqueles passaram a demandar bens de
consumo até então difíceis de serem encontrados no país. Como os fa­
zendeiros permaneciam cada vez menos em suas propriedades rurais,

6. Nome que se dava na época aos fios e tecidos de fibras de celulose ou rayon. (N. T.)

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SAO PAULO 69


eles passaram de bom grado a empregar seus lucros na compra de ter­
renos e na construção de casas em São Paulo. Foi daí que se originou
a expansão dos bairros residenciais entre a Avenida Paulista e a várzea
do Pinheiros.
Após a queda dos preços do café, esboçou-se um movimento de saí­
da das áreas rurais em direção à cidade grande, o qual se originou seja
do abandono da agricultura por alguns fazendeiros desejosos de se de­
dicarem a suas profissões liberais, seja do investimento de seus últimos
capitais na indústria, seja da busca de trabalhos menos aleatórios por
parte dos antigos empregados das fazendas. Durante os anos da Segun­
da Guerra Mundial, o êxodo rural tomou-se catastrófico. As fábricas
trabalhavam a todo vapor e os custos da agricultura aumentavam rapi­
damente. Os pequenos proprietários, os arrendatários e os trabalhado­
res das fazendas passaram a ter dificuldades crescentes na obtenção
dos fundos necessários para a compra de sementes ou dos instrumen­
tos de trabalho mais comuns. Preferiram por causa disso tentar a sorte
na capital, não obstante a rápida elevação dos preços que nela vigora­
va e o montante ainda insuficiente de seus salários.
Uma das principais indústrias da periferia paulista estimou que
mais de 10% de seus operários procediam diretamente das áreas rurais,
enquanto outra parte de seu pessoal já havia passado antes por outras
fábricas. Isto significa que a proporção de imigrantes rurais de seus
empregados era superior a 10%. As repercussões disso nas regiões ru­
rais eram bastante graves, com a falta de braços obrigando vários fa­
zendeiros a abandonarem suas plantações cansadas, as quais poderiam
ter sido renovadas por meio do trabalho. Nas áreas mais novas, as di­
ficuldades de recrutar mão-de-obra levaram a preferir a pecuária à agri­
cultura. Assim, inverteu-se a função exercida por São Paulo na época
em que se tornara a capital dos fazendeiros; agora, em vez de constituir
um mercado de trabalho para o interior, ela passou a drenar os recursos
humanos das áreas rurais.
As perturbações econômicas e o abandono das culturas tradicionais
desencadearam uma reorganização das classes sociais. São Paulo dei­
xou de ser o lugar onde apenas era possível encontrar fazendeiros de
riqueza fabulosa e escravos miseráveis. Os quadros profissionais das

70 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


novas indústrias, os funcionários da administração pública ou privada,
os médicos, advogados, professores, todos elementos da classe média,
são muito mais numerosos do que na Bahia ou no Recife. Essa classe
média não partilha do esnobismo da alta burguesia, que só quer adqui­
rir produtos importados - tecidos ingleses, vestidos franceses - ou que
pretende apenas ler livros europeus. Seríamos inclusive tentados a di­
zer que esse esnobismo cosmopolita foi substituído por um nacionalis­
mo econômico particularmente virulento. Traço ao qual se acrescenta­
va um estado de espírito comum a toda a América: o de procurar viver
confortavelmente e de permanecer up to date.7 Dentro dele, as pessoas
estão sempre dispostas a introduzir mudanças em suas casas, a exigir
novidades, mesmo que se trate de quinquilharias que logo deverão ser
substituídas.
Essa americanização do gosto chegou a penetrar nas classes popu­
lares, apontando para uma nova mentalidade dos operários, que pas­
saram a engrossar as massas de compradores de uma produção mais
diversificada. Tem-se a nítida impressão de que a democratização da
sociedade, ao mesmo tempo em que é uma conseqüência da industria­
lização, também contribui para acelerá-la. Não deixa de ser significativo
que, entre 1938 e 1943, houve maiores investimentos nas indústrias
mais úteis à vida urbana do que à vida rural, denotando um maior inte-
resse nos artigos de segunda necessidade, proporcionadores de maiores
lucros, do que nos bens de equipamento (Hermann, 1947).
As guerras no exterior, uma prosperidade mais ou menos artificial,
k as crises econômicas forneceram às fábricas paulistas a mão-de-obra
necessária. Após a guerra de 1914-18, presenciou-se o desembarque
em Santos de imigrantes oriundos da Europa Central, da Europa Ori­
ental e dos países bálticos. Muitos adquiriram pequenas propriedades
na franja pioneira, e voltaram à capital por alguns anos, a fim de garan­
tir o dinheiro necessário para pagar as terras que suas mulheres esta­
vam cultivando. A cidade de São Paulo recebeu ainda imigrantes ex-
clusivamente urbanos, prontos a aceitar quaisquer tarefas, e outros
também já habituados ao trabalho fabril, e que facilmente se integra-

7. hto é, atualizado; palavras em inglês no original. (N. T.)

0 CRESCIMENTO DA CIDADE DE SAO PAULO 71


ram na mão-de-obra da indústria têxtil. Uma outra imigração preciosa
para São Paulo foi a dos refugiados da Europa Central antes da Segun-
da Guerra Mundial e até depois de seu início. Técnicos, engenheiros,
desenhistas, pequenos artífices, comerciantes chegaram então à cidade
de modo mais ou menos clandestino, mas logo conseguindo regulari­
zar suas situações e encontrar empregos sem grandes dificuldades, tor- 1:
nando possíveis vários aperfeiçoamentos técnicos e o crescimento das
empresas em que trabalhavam. O problema dos quadros técnicos vi­
nha sendo mais difícil de ser resolvido do que o da massa operária, e a
imigração em questão contribuiu para minorar sua intensidade. }
A participação dos estrangeiros não foi menor nas fileiras do empre­
sariado. Mais precisamente, tratou-se de imigrantes que se tornaram
brasileiros por naturalização, ou então de seus descendentes. A indús-
tria local é rica em “paulistas de primeira barriga”, como diziam ironi­
camente os paulistas de velha estirpe. Muitas empresas prósperas per­
tencem a italianos, sírios, poloneses. O rei da indústria paulista, e até
brasileira, era descendente de um imigrante italiano.8 Entre estes ho­
mens que se fizeram por si mesmos, respirava-se uma atmosfera de
tipo norte-americana. Por outro lado, os complexos industriais só ra­
ras vezes pertenciam a grupos financeiros ou a sociedades anônimas,
mantendo geralmente um caráter de empresas individuais ou familiais.
A contribuição propriamente estrangeira se fez sentir sobretudo
pela entrada de capitais e pela fundação de novos ramos industriais.
Nunca é demais esclarecer essa questão, pois é indiscutível o fato de a
indústria paulista não ter sido gerada exclusivamente por capitais, em­
presários e engenheiros estrangeiros. Não faltam empresas industriais
inteiramente brasileiras, inclusive entre as maiores; tal é o caso das In­
dústrias Reunidas Francisco Matarazzo, que abrangiam simultanea­
mente fábricas de produtos químicos, tecidos, produtos alimentícios,
metalúrgicos e cerâmicos. Por outro lado, têm havido freqüentes asso-

8. Monbeíg refere-se aqui á mítica figura de Francisco Matarazzo, cujas empresas praticamente dei­
xaram de existir nas últimas décadas. Veja-se a seu respeito o clássico trabalho de José de Souza
Martins (1972). (N. T.)

72 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


dações entre capitais nacionais e estrangeiros, as quais tornam difícil
estabelecer diferenças entre as duas fontes. Mas, uma vez admitido
isto, não se pode deixar de reconhecer que a atuação imediata dos in­
vestimentos estrangeiros tem sido decisiva.
Vimos há pouco o caso da Light & Power.9 Durante a década eufó-
rica de 1920-29, outros capitais canadenses vieram a São Paulo para ti­
rar proveito da febre de construções, capitais esses que promoveram a
implantação em 1925/26 da fábrica de cimento de Perus, na periferia
ocidental da capital de São Paulo. N,a mesma época, duas grandes em­
presas norte-americanas, a Ford e a General Motors, instalaram suas li­
nhas de montagem na capital e seus arredores, a fim de atender à de­
manda por automóveis e caminhões de uma população em plena ex­
pansão. Capitais dos EUA e da Grã-Bretanha já instalados em São Pau­
lo antes de 1914 tiveram uma boa oportunidade de fundar na capital
seus frigoríficos, no momento em que a marcha pioneira atingia os Es­
tados vizinhos nos quais imperava então a pecuária, e em que as pri­
meiras erradicações de cafeeiros101permitiram ampliar as áreas de pas­
tagem. A partir desses processos, os desenvolvimentos da indústria e
da aglomeração urbana continuaram vinculados à evolução da frontei­
ra agrícola.
Naquela mesma época, os capitais franceses também participaram
destes movimentos por meio da fundação, inicialmente modesta, da
Rhodia Química Brasileira. Em muito pouco tempo, essa filial da Rhô-
ne-Poulenc tornou-se a maior empresa de produtos químicos e farma­
cêuticos do Brasil11, com sua fábrica de Santo André logo sendo acres­
cida de outra de seda artificial (a Cia. Brasileira Rhodiaceta). A grande
crise de 1929 não diminuiu a atração exercida por São Paulo sobre os
capitalistas e industriais do Velho e do Novo Mundo, os quais busca-

9. Veja-se atrás neste capitulo a nota (5), na p. 66, e o texto a que ela se refere. (N. T.)

10. Provocadas pelas crises de superprodução da rubiâcea. (N. T.)

11. Esta afirmação pode ser discutida historicamente, diante da implantação na mesma época, par-
ticulannente no Rio de Janeiro, de várias subsidiárias de outras grandes empresas químicas e fa r ­
macêuticas tanto da Europa como dos EUA. (N. T.)

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 73


ram resguardar-se nela das preocupações sociais, fiscais e políticas de
seus países de origem. Foi dessa forma que aí chegaram alguns indus­
triais de Lyon, que em poucos anos conseguiram abocanhar uma boa
parcela do mercado brasileiro de tecidos de algodão. Também foi esse
o caso da Tubize, que deu origem às vastas instalações da Cia. Nitro-
química Brasileira, que chegou a empregar 4 mil operários em São Mi­
guel, um ex-aldeamento criado pelos jesuítas. E com a Segunda Guer­
ra Mundial, houve um aumento da participação norte-americana. Du­
rante todos aqueles anos, pôde-se acompanhar o florescimento e cres­
cimento das fundições, das pequenas indústrias siderúrgicas, das ofici­
nas de construção mecânica, das fabriquetas de produtos químicos,
muitas vezes puramente nacionais, e em alguns casos parcialmente
norte-americanas.
A inflação, os altos preços e algumas raras exportações propiciaram
grandes lucros às empresas já instaladas, dando-lhes as condições ne­
cessárias para crescer. Entre 1941 e 1942, os dividendos distribuídos
passaram de Cr$ 1.399.025 para Cr$ 7.208.045 na empresa têxtil Ja-
fet; de Cr$ 1.950 mil para Cr$ 10.470 mil na fábrica de pneus Fires-
tone; de Cr$ 2.922 mil a Cr$ 5 milhões no caso da Nitroquímica. Na­
queles mesmos anos, os lucros das fábricas de tecidos Rodolfo Crespi
elevaram-se de Cr$ 6.032.732 a Cr$ 16.893.583; os da fábrica de vi­
dros Santa Marina12 de Cr$ 3.436.438 a Cr$ 6.894.820; os da fábrica
de pneus Goodyear de Cr$ 1.045.549 a Cr$ 19.543.112 equivalentes
a 56% e 39% de seus capitais registrados (Costa, s.d.). Estes números
dão uma medida dos capitais prontos a serem reinvestidos, e capazes
de continuar garantindo o crescimento de São Paulo.
O início do funcionamento da usina siderúrgica de Volta Redonda
tem propiciado a estes capitais os mercados que procuravam. A indús­
tria paulista já não se limita às fábricas de tecidos, de produtos alimen­
tícios e aos frigoríficos. Excluindo a metalurgia pesada, todos os ramos
da produção industrial encontram-se presentes em São Paulo e sua pe­
riferia. Neles são transformadas matérias-primas vindas do exterior, de

12. Denominação na época da subsidiária brasileira da Saínl-Gobain. (N. T.)

74 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Volta Redonda ou de outras regiões do Brasil, incluindo a montagem de
automóveis e caminhões a partir de peças e componentes oriundos dos
EUA; a fabricação de pneus, utilizando em parte borracha vinda da
Amazônia; a fabricação de produtos químicos cada vez mais baseados
em insumos brasileiros; a metalurgia leve vinculada à produção nacio-
hal de aço; indústrias de equipamentos elétricos, as quais ainda recebem
matérias-primas e componentes do exterior, mas que já começam a tra­
balhar o alumínio e o cobre produzidos no Brasil; e as editoras de livros,
que aos poucos vão se liberando também das compras no exterior.
Um exemplo que ilustra essa evolução é o de uma grande empresa
têxtil, da família Jafet, que está construindo atualmente uma fábrica
metalúrgica que, dentro de poucos anos, passará a consumir 50 mil CV
de energia. Trata-se da prova de uma evolução rápida, aparentemente
normal em países de industrialização recente. O parque industrial pau­
lista evoluiu segundo um esquema clássico, partindo da industria têx­
til, primeiramente algodoeira, até chegar a uma diversidade que inclui
praiicainente todos os ramos. Pode-se indagar se, na etapa atual, o cen­
tro industrial da capital está efetivamente começando a contribuir para
á valorização do interior e para a melhoria do nível de vida em geral.
Pode-se constatar que esta não chegou a ser a tendência dominante en­
tre 1938 e 1943. A siderúrgica de Volta Redonda foi criada especifica­
mente para modificar esse estado de coisas. Mas, embora as primeiras
consequências de seu funcionamento pareçam ser auspiciosas, ainda é
cedo para afirmar que tais objetivos tenham sido plenamente atingidos.

A INFLAÇÃO E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA EXPANSÃO URBANA


Os progressos da indústria não foram o único fator desencadeante
do crescimento de São Paulo, nem o seu único sustentáculo nos últi­
mos cinqüenta anos. Já mostramos como as vicissitudes da agricultura
contribuíram para a industrialização e, consequentemente, para o for­
talecimento da capital. Os fenômenos econômicos que atingiram o
mundo rural tiveram, portanto, um papel muito importante. Isto tam­
bém pode ser constatado em relação ao período de inflação monetária
e de alta dos preços que acompanhou a Segunda Guerra Mundial. Em
função desta, o papel-moeda em circulação, que havia passado do ín-

6
0 CRESCIMENTO DA CIDADE DE SAO PAULO 75
dice 100 em 1930 ao índice 162 em 1940, foi atingido então por um
intenso surto inflacionário, que fez subir o índice para 386 em 1943,
616 em 1945, e 732 ao final de 1946 (Byé, 1948: 121). Um dos resul­
tados dessa tendência foi a valorização dos terrenos e o desencadea­
mento de uma febre especulativa voltada para os bens imobiliários.
Preocupados com a desvalorização da moeda, numerosos cidadãos,
particularmente os da alta classe média e da grande burguesia, julga­
ram prudente investir suas rendas em imóveis. A especulação também
se beneficiou da escassez de moradias provocada pela chegada dos re­
fugiados de guerra, de técnicos norte-americanos, de trabalhadores
atraídos pelas fábricas, que se conjugou à prudência dos burgueses.
Após uma redução, entre 1941 e 1943, do número de construções, j:
tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, teve início um verdadeiro
boom, cujo maior crescimento se deu entre 1945 e 1948, como se pode :
ver no gráfico e na tabela apresentados a seguir.

Imóveis com 10 andares e com mais


de 15 andares construídos anualmente

Imóveis com mais de 15 andares Escritórios esa Apartamentos

1937 1938 1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1948 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1W8

Figura III: Construções Modernas

76 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Número de Casas Construídas Anualmente
1941 16.5 24 1 94 4 8 .1 0 3 1947 13.338
1942 8 .2 2 4 1 94 5 1 1 .0 7 6 1 94 8 17.98U
1943 7 .7 9 5 1 94 6 - 1 949 1 2 .7 9 9 '

* apenas no primeiro semestre

Imóveis com valores estimados entre Cr$ 200 mil e Cr$ 400 mil an­
tes da Guerra passaram a valer de Cr$ 1.500 mil a Cr$ 2 milhões. A
expansão urbana foi tão rápida e a crise habitacional atingiu tal magni­
tude que se começou a construir até nos loteamento estabelecidos
quinze anos antes na periferia da capital e que haviam permanecido
sem compradores desde então. A proporção de imóveis nas zonas ur­
banas e suburbanas (de acordo com critérios puramente fiscais, mas
que nem por isso deixam de ser indicativos), que era de 90,12% em
São Paulo no dia 31 de dezembro de 1940, passou para 79,41% seis
anos mais tarde. Por sua vez, o valor das compras e vendas de imóveis
elevou-se de Cr$ 381.562 a Cr$ 2.216.818 durante o mesmo período.
Esse aumento das construções torna-se ainda mais interessante se
levarmos em conta que ele ocorreu numa época de escassez de mate­
riais ao final da Guerra. Houve portanto a necessidade de amplo recur­
so ao crédito. Maurice Byé mostrou como esse crédito imobiliário pas­
sou a ser fornecido por bancos especializados, que proliferaram como
cogumelos. Ele indica que o número de tais bancos nas grandes cida-
des do Brasil passou de 1.360 em 1940 para 2.459 em 1944, e para
2.765 no ano seguinte (Byé, 1948: 122).13Ora, esses próprios bancos
não hesitavam em fazer construir suntuosos edifícios nas áreas centrais
Ide tais cidades, contribuindo assim diretamente para modificar a pai­
sagem urbana. Instituições oficiais ou semi-oficiais também tomaram
parte nessa febre de construções, não sem deixar de beneficiar alguns
felizes especuladores.
Tratava-se das caixas de pensões de grupos profissionais ou de “ins­
titutos” de seguros, os quais na época detinham ativos equivalentes a

13. Os dois autores podem estar se referindo aqui não a bancos, mas a agencias bancárias (N.T.).

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SAO PAULO 77


um terço da moeda em circulação no Brasil. Poder-se-ia acreditar que
essa febre de construções fosse pôr um fim à crise habitacional. Mas
nada disso aconteceu. As casas e os apartamentos eram frequentemen­
te vendidos antes mesmo de estarem terminados a compradores que
não tinham intenção de os habitar, mas apenas de revendê-los com
uma folgada margem de lucro. “Os apartamentos passam assim fre­
quentemente por vários proprietários antes do término da construção,
encontrando dificuldades em serem habitados, já que os candidatos a
fazê-lo frequentemente carecem do capital necessário para a aquisição v
de um imóvel sobrevalorizado: donde o paradoxo de uma crise habita­
cional ante a arranha-céus vazios” (Byé, 1948: 122). A menos que esti­
vessem ocupados pelos escritórios de outras empresas imobiliárias...
Com exceção dos citados institutos, a maioria dos loteamentos tem
permanecido em poder de pequenas empresas agrupando algumas
poucas pessoas. Mas essas associações, mesmo conservando um cará­
ter familiar ou amigável, constituem empresas deliberadamente volta­
das para a especulação, muito mais do que aquelas dos tempos dos fa­
zendeiros. Trata-se de agrupamentos de financistas, de cambistas, cor­
retores, diretores de bancos, tanto brasileiros como estrangeiros, os
quais por suas atividades profissionais estão a par da situação dos mer­
cados imobiliários, e estão dispostos a adquirir terrenos de proprietá­
rios querendo desfazer-se deles.
Estes últimos muitas vezes adquiriram suas propriedades por suces­
são hereditária, ou então são pessoas sem outros ativos além dos refe­
ridos terrenos. O grupo de especuladores dispõe dos fundos financei­
ros para transformá-los em loteamentos, assumir os gastos de publici­
dade e de construção das casas. Estas obras são confiadas a pequenos
empreiteiros dispostos a fazerem bons negócios a partir da edificação
de habitações de qualidade sofrível, mas com boa aparência. Algumas
vezes esses empreiteiros estão endividados com os bancos, sentindo-se
felizes em poderem quitar seus débitos dessa forma, por proposta dos
próprios banqueiros. Nessas condições, os custos tendem a ser baixos.
Mas como os preços de venda costumam ser elevados, os negócios são
excelentes, e acabam deixando todos satisfeitos.

78 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Tratar-se-ia de uma situação excepcional, causada pela inflação? Ela
corresponde também a uma situação tipicamente americana, e os pró­
prios paulistanos a bem da verdade não chegam a surpreender-se com
sua ocorrência, por estarem acostumados a observar irregularidades, e
até fraudes, em questões de terras. Tanto no centro das cidades como
nas áreas pioneiras, os títulos de propriedade carecem muitas vezes de
certeza. Faltam documentos para demarcar de forma inconteste os li­
mites de terrenos, e estes com frequência são reivindicados por mais de
um proprietário. Os detentores de falsos títulos de propriedade, aque­
les que conseguem interpretações jurídicas falaciosas, os chamados
“grileiros”, têm prosperado tanto na capital como no interior.
No bairro da Vila Mariana, por exemplo, eles se aproveitaram de
dúvidas existentes a respeito da localização do antigo caminho para
Santo Amaro que deveria servir de limite. Ainda atualmente outros
conflitos se anunciam numa área chamada “Campo dos Bombeiros”,
ao sul do bairro Bosque da Saúde, onde se espera que a Prefeitura abra
uma bela avenida, contribuindo para a valorização dos terrenos, a fim
de iniciar hábeis manobras. As gangues de especuladores trabalham
tão eficientemente em São Paulo como nas grandes cidades norte-
americanas.
No entanto, ao lado desses agrupamentos ocasionais de loteamen-
tos improvisados, há uma organização sólida que já deu provas de seu
caráter construtivo: a City of São Paulo Improvements and Freehold
Land Co. Ltd. Trata-se de uma empresa criada por um pequeno gru­
po de paulistas, incluindo políticos e fazendeiros, como Cincinato
Braga, que haviam participado da marcha pioneira. Antes de dar iní­
cio a suas atividades, essa sociedade entrou em negociações com um
empresário francês, Edouard Fontaine de Laveley, o qual, depois de
ter-se comprometido a comprá-la, acabou cedendo seus direitos e en­
cargos a um grupo londrino. Os capitalistas brasileiros contentaram-
se em manter apenas uma parcela das ações, com vistas a satisfazer
exigências legais. A direção da empresa transferiu-se para Londres,
enquanto em São Paulo a City passou a ser administrada por um co­
mitê, cujo presidente inglês era assessorado por quatro personalidades
locais, antigos detentores dos primeiros títulos de propriedade - ge-

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SAO PAULO 79


ralmente os mesmos políticos, advogados e engenheiros que figuram
nos conselhos de algumas das maiores empresas de São Paulo: com­
panhias ferroviárias, seguradoras francesas, empresas industriais, e de
eletricidade, como a Light.
Essa estrutura administrativa é inteiramente representativa da situa­
ção que se criou em São Paulo após as crises do café no início do sé­
culo XX. Uma situação na qual houve uma intensificação da penetra­
ção estrangeira, com os fazendeiros não perdendo o controle da polí­
tica ou da economia, mas passando a ter a seu lado engenheiros de
formação européia, bem como homens de negócios. Essas modifica­
ções na estrutura econômica e social foram acarretando mudanças de
método nos loteamentos, e consequentemente na conformação da
paisagem urbana.
Com efeito, a Cia. City pôde empreender uma obra de amplo fôlego,
diversamente das pequenas empresas imobiliárias de cunho familial ou
amigável. Ela teve a possibilidade de praticar uma política de urbani­
zação que correspondia simultaneamente a seus interesses de longo
prazo e às esclarecidas concepções de seus administradores. A partir
dos primórdios de sua existência, desde 1912, ela apelou para o apoio
do urbanista inglês Barry Parker. A Primeira Guerra Mundial freou sua
atuação, que só se intensificou durante os anos 1920, aproveitando-se
da prosperidade gerada pelos altos preços do café entre 1925 e 1929.
A cidade de São Paulo deve à Cia. City a urbanização dos bairros do
Alto da Lapa, do Jardim América, da Vila Romana, do Pacaembu, Bela
Aliança, Butantã, Anhangabaú, Alto de Pinheiros e, mais recentemen­
te, do Jardim Guedala.
Seu sucesso foi considerável, pois, pela primeira vez, pode-se ver;
comerciantes imobiliários esmerando-se no traçado das ruas de seus
terrenos e na organização de suas redes de esgotos, água, gás e eletri­
cidade, bem como na arborização de avenidas e ruas sinuosas. Em con­
trapartida a esses benefícios, a Cia. City impunha obrigações precisas a
seus clientes, tais como a limitação da altura das casas, o ajardinamen-
to dos terrenos, cujos preços via de regra eram superiores aos de ou­
tras empresas. E ela ainda mantinha a vantagem soberana de possuir tí­
tulos de propriedade incontestáveis. Graças a isso, a City pôde proibirj

80 HISTORIA ECONOMICA DA CIDADE DE SAO PAULO


rigorosamente a abertura de lojas e oficinas no Jardim América, limitar
Ja localização dos postos de gasolina a alguns cruzamentos mais impor­
tantes, e a do comércio às margens de seus loteamentos, criando assim
belos bairros residenciais.
O caso da City é comparável ao de uma outra empresa inglesa, a
Companhia de Terras do Norte do Paraná, que desenvolveu seus lotea-
mentos nas áreas rurais da franja pioneira. A contribuição da Cia. City
ao embelezamento da capital, seus procedimentos de vendas, sua es-
Lratégia de preparar com grande antecedência os loteamentos a serem
comercializados vários anos mais tarde, bem como sua publicidade, as­
semelharam-se muito às táticas adotadas pelos ingleses no norte do Pa­
raná, na venda de pequenas propriedades rurais.
A City acabou fazendo escola: sob pena de insucessos, todas as so-
ciedades loteadoras de alguma envergadura e voltadas para uma clien­
tela de maior poder aquisitivo tiveram que passar a praticar políticas
de urbanização. Isto pode ser percebido no Jardim Europa, vizinho ao
Jardim América, e nos bairros dos jardins Paulista e Paulistano, na co­
lina do Sumaré e no Parque do Jabaquara. Progressivamente, essas
preocupações urbanísticas acabaram se impondo. A rapidez com que
a cidade estava crescendo já não podia mais conviver com o laissez-fai-
k tradicional. Os problemas que foram surgindo precisaram ser resol-
vidos de maneira inovadora, rompendo com os velhos costumes.

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SAO PAULO 81


Paisagens e problemas da metrópole

A capital dos fazendeiros havia conservado muitos traços da velha


São Paulo: o Centro permaneceu intacto, e, nos bairros novos, as opu­
lentas moradias dos fazendeiros enriquecidos não alteraram o conjun­
to da fisionomia urbana. A chegada dos estrangeiros não chegou a pro­
vocar grandes mudanças: a maioria deles partia novamente para as fa­
zendas do interior, e a origem mediterrânea destes ajudava a dilui-los
na população de origem portuguesa. Atualmente, todavia, para reen­
contrar alguma imagem da cidade vista por Saint-Hilaire, devemos
contentar-nos com as de algumas ruas que descem do Centro para a
várzea do Tamanduateí. No resto da aglomeração foi necessário limpar,
alargar e, em seguida, destruir os restos do passado. A arquitetura ur­
bana se transformou. Os recém-chegados trouxeram para a paisagem
urbana nuanças diversas além das variedades funcionais. Trata-se das:
consequências internas de um rápido crescimento. Mas também do
crescimento de um poderoso núcleo da vida urbana numa região até
então pouco povoada, mal desmatada, sonolenta - um crescimento
que veio a perturbar sua quietude, e cujos ecos se fizeram sentir a gran­
des distâncias.

A VARIEDADE DAS PAISAGENS URBANAS


Tomada em seu conjunto, a aglomeração paulistana não dá uma
sensação de asfixia frequentemente proporcionada pelas cidades euro­
péias. Isto se deve em primeiro lugar aos tipos de construções que pre­
dominam nos bairros residenciais. Se lembrarmos as chácaras nas
quais moravam, às portas da velha cidade, os paulistanos ricos do sé­
culo XVIII e da primeira metade do século XIX, podemos constatar que
o hábitat burguês conservou suas características ao mesmo tempo em
que se urbanizava. Uma primeira etapa consistiu das grandes casas
com quartos altos e frios, de estilo despojado, com terraços à seme­
lhança dos existentes nas fazendas. As mais simples não chegavam a di­
ferenciar-se das boas residências rurais do Brasil, enquanto outras;

82 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


mais luxuosas, passaram a associar traços europeus à arquitetura tradi­
cional. Estas últimas são as casas construídas por famílias ricas ao final
do século XIX e na primeira década do século XX. As que ainda sub­
sistem, no meio de casas modernas mais modestas, constituem, com
' seus grandes jardins, verdadeiros oásis de silêncio em meio a ruas que
se tornaram terrivelmente barulhentas.
Nos loteamentos que foram sendo edificados, na época de prospe­
ridade do café, para uma clientela mais democrática, o tipo das cons­
truções foi apenas modificado, sem chegar a tornar-se algo novo. Os
vendedores de terrenos faziam construir casas de estilo único em seus
loteamentos: eram habitações ligeiramente elevadas, para evitar a umi­
dade de um subsolo que podia servir de adega, às quais se chegava gal-
gando alguns degraus situados à entrada de uma sala com pé-direito
alto. Mais compridas do que largas, todas são precedidas de um peque-
1no jardim, e têm suas cozinhas abertas para um quintal ao fundo, no
qual são lavadas e secadas as roupas de seus habitantes. Desde os anos
1920, o mesmo modo de utilização dos terrenos tem prevalecido em
habitações de arquitetura mais variada e mais moderna, por exemplo,
ihos bairros do flanco sul do espigão - os Jardins Paulistano e Paulista,
e também na Aclimação e nas Perdizes.
As residências elegantes e por vezes suntuosas de Higienópolis, do
Pacaembu, da Avenida Paulista, do Jardim América, do Jardim Europa,
de algumas ruas de Perdizes ou da Aclimação, são rodeadas de jardins,
sombreadas por belas árvores - palmeiras, eucaliptos, quaresmeiras,
primaveras, azaléias, jaboticabeiras, ipês - que lhes dão um ar de fres­
cor e de bom gosto, e que por vezes, graças a seus tamanhos avantaja­
dos, ajudam a esconder os traços pseudo-orientais e a riqueza ostenta-
tória de algumas das maiores. “Pode-se sentir a riqueza jorrando, súbi­
ta, enorme, ávida de um luxo cujas aparências, diversamente do que
ocorre entre nós, não se procura atenuar.” Esta frase, escrita em rela­
ção a Joanesburgo, na África do Sul (Siegfried, 1949:40), também se
aplica aos belos bairros residenciais da cidade de São Paulo.
Os bairros proletários do Bexiga, da Barra Funda, do Brás ou da
Mooca possuem ruas ladeadas por longas fileiras de casas baixas, sem
jardins, mas abertas ao fundo para pequenos quintais, longos e estrei­

!> CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 83


tos, cercados de muros. É aí que se encontram os tristes cortiços, espé­
cie de habitações coletivas construídas nos primórdios da industriali­
zação - em 1903, 1906 e 1912 (Violich, 1944). Suas casas também são
elevadas, mas seus subsolos, úmidos e sombrios, são habitados. Foram
construídas face a face, de cada lado de um quintal comum provido de
uma fonte de água para lavar. Uma variante desse tipo de habitações é
constituída por um grande quintal coletivo, repleto de casas de um ou
dois andares, com galerias no andar térreo e no primeiro. Nele não há
falta de ar até o momento em que, devido ao aumento do número de
habitantes, o cortiço se torna superpovoado, forçando a construção de
casas térreas no interior do quintal.
Famílias com inumeráveis crianças vivem nesses cortiços desprovi­
dos de higiene, pagando altos aluguéis. Violich conta o caso de um
grupo de 16 famílias vivendo num cortiço de 10 metros por 24, e de
outro em que 42 famílias se amontoam num terreno de 30 metros por
180. Cada habitação abrigava de quatro a seis pessoas - homens, mu­
lheres e crianças. O aluguel médio destas alcançava setenta cruzeiros
para salários mensais entre Cr$ 250 e Cr$ 500. Na Mooca, o sociólo­
go norte-americano Donald Pierson calculou que seis famílias em mé­
dia dispõem de um único quintal, sem jardim, em cada lote de terre­
no medindo 513 m2 (contra 5433 m2 no Jardim América).1
Estes cortiços ainda não se tornaram excepcionais, estimando-se
entre 40% e 60% o número de habitações de São Paulo com padrõ>
inferiores ao mínimo aceitável. Esse amontoamento nos bairros poptf
lares pode parecer estranho num sítio urbano que não carece de esp
ço. Mas, na época em que os cortiços foram construídos, ninguém ti­
nha preocupações urbanísticas e relativas ao conforto da mão-de-obra
imigrada. Os cortiços exerceram na cidade o mesmo papel que as co­
lônias nas fazendas. Vale a pena destacar o fato de que o cresciment
urbano continuava a processar-se horizontalmente, sem que se cogit
se em aumentar a verticalização das edificações.2

1. Dados em pés quadrados (1539 e 16.299) extraídos da obra citada na nota anterior. (N. T)

2. Nunca é demais assinalar que a situação habitacional de São Paulo mudou muito, para pior, t
rante as décadas transcorridas desde a época em que Monbeig publicou este trabalho, com a mutl

84 HISTORIA ECONOMICA DA CIDADE DE SAO PAUL


A situação é menos ruim nos modernos loteamentos da periferia in­
dustrial, em cujas vilas operárias cada família vive sob seu próprio teto.
Mas os aluguéis que aí vigoram são mais elevados: CR$ 150 por mês
para uma casinha de dois quartos, Cr$ 300 para uma de três, enquan­
to os salários não são mais altos do que os indicados acima. Nesses lo­
cais, as famílias não padecem de amontoamento, mas de isolamento.
Essas vilas são frequentemente distantes da cidade e o seu povoamen­
to tende a ser incompleto. As poucas vendas comerciais ai localizadas
tiram proveito sem escrúpulos de sua situação de monopólio. Por últi­
mo, as condições elementares de higiene só raramente chegam a ser
preenchidas nas fases iniciais desse tipo de loteamentos.
Rapidamente atraídas, e na maioria das vezes atraídas por oportu­
nidades momentâneas, as massas urbanas que aí vivem só raramente
trabalham nos mesmos locais. Aos vazios que subsistem entre essas
erupções da periferia adicionam-se as distâncias que separam as habi-
i ições dos locais de trabalho. A vegetação rapidamente volta invadir os
terrenos vazios, formando matagais tão frequentes que nem se fazem
mais notar. Algumas vezes, os limites externos dos bairros urbanos são
ocupados por hortos, pomares e viveiros que resistiram às pressões dos
loteamentos. Em outros casos, trata-se de lotes cujos proprietários ain­
da não puderam construir suas casas.
Os barrancos do Pacaembu e do Anhangabaú permaneceram du­
rante muito tempo como grandes rasgões do tecido urbano. Algumas
culturas hortícolas e a presença de árvores conferiam-lhes um ar tropi­
cal em plena cidade. Servindo de paraísos para cães errantes, de pra­
dos onde pastavam alguns burricos magricelas, de refúgios para cho­
ças de miseráveis, e de improvisados campos de futebol para a garota­
da, esses barrancos, da mesma forma que as várzeas do Tietê, forma­
vam verdadeiras “zonas de transição” entre bairros residenciais cujas
áreas foram se reduzindo ao longo dos anos.
No Pacaembu, a municipalidade fez construir um estádio de linhas
tão imponentes quanto harmoniosas. A construção da Avenida Nove

plicação e expansão das favelas, cuja presença na cidade e seus arredores nem sequer chegou a ser
percebida e mencionada por ele. (N.T.)

0 CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 85


de Julho e a abertura de um túnel sob a Avenida Paulista permitiram
aos grandes prédios e às casas elegantes invadir a edificar os terrenos
vazios da região do Anhangabaú. Mas os matos permaneceram nas co­
linas do Sumaré, no Alto da Lapa, nos vales do lado do Ipiranga, e a
várzea do Tietê continuava a interpor seus charcos entre o Centro da
cidade e o bairro de Santana. E, quando em pleno Jardim América se
descobre uma área cultivada de milho, ou no Jardim Europa um mato
com vacas pastando, surge irresistivelmente a evocação das cidades da
franja pioneira. Essa impressão do inacabado e da perpétua mudança
se faz sentir ainda mais frequentemente nas vilas dos bairros externos :
e nos municípios da periferia, onde construções rapidamente erguidas
se espalham ao longo de ruas entremeadas de campos vazios, que de
lamaçais no verão se transformam em areais amarelados pela secura do
inverno.
Pode-se indagar em que medida a densidade demográfica reflete si­
multaneamente a expansão e a estrutura da aglomeração urbana. Uma
primeira cifra global já se mostra reveladora: em 1940, no município
de São Paulo, sem considerar o distrito de Santo Amaro, ainda essen­
cialmente rural, a densidade atingia apenas 1.417 habitantes por km2 i
(numa superfície de 925 km2), mostrando bem a importância de seus
espaços vazios. Os distritos de sua periferia tinham densidades inferio­
res às de numerosos municípios agrícolas do Estado: 20 habitantes por
km2 em Santo Amaro, 40 no distrito do Lajeado, 80 em Penas, que en­
globam em áreas montanhosas praticamente vazias. Mais perto da ci­
dade, ou beneficiando-se da presença de grandes estabelecimentos in­
dustriais, temos São Miguel, Osasco, Butantã, Vila Matilde e a Fregue­
sia do Ó com densidades variando entre cem e quinhentos habitantes
por quilômetro quadrado.
Mas, em vários bairros completamente integrados à vida urbana e
socialmente diversos, as cifras se mantêm inferiores às das cidades eu­
ropéias com mais de um milhão de habitantes. O Jardim América tem
uma densidade de 4.500 habitantes por km2, a Lapa apenas 2.300, e o
alto da Mooca 4.700. As densidades mais elevadas são as de bairros;
operários como os do Brás, da Bela Vista e da Liberdade, com 20.100,:
18.700 e 16.400 respectivamente. A partir desses números percebe-se

86 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


claramente o papel exercido pelos espaços vazios e pela dispersão es­
pacial do povoamento.
A fim de apreciar exatamente o grau de concentração atingido nas
:áreas efetivamente povoadas, convém deixar de lado as circunscrições
: administrativas, apenas suscetíveis de fornecer elementos de avaliação
êm cidades de territórios completamente ocupados, mas que são insu-
jficientes nos casos em que a apropriação dos solos continua sendo
jfragmentária. Devido a isso, tem-se procurado estimar quais eram as
densidades por aglomerações de edifícios (Milliet, 1938a). Os resulta­
dos da aplicação desse método têm permitido realçar contrastes de
Uma rara intensidade. Nas áreas de cortiços, a densidade atinge 200
mil habitantes por km2, e em áreas vizinhas cai a 30 mil.34No bairro do
Pari, onde algumas densidades medidas por esse critério atingem 140
■mil habitantes por km2, que em áreas vizinhas, elas chegam a ser dez
vezes menores.'1
Pesquisas do Departamento de Cultura do Município mostram bem
como ao redor da Avenida Dom Pedro I as cifras globais mascaram
uma distribuição de ilhas habitacionais com altas densidades.5 Os es-
paços vazios, ou ocupados por fábricas ou depósitos, não bastam para
explicar os contrastes aí observados. É o acaso que faz surgir num lo­
cal um pequeno loteamento para faniílias de classe média, ou até de al­
tas rendas, na vizinhança de um aglomerado de casas operárias. Se é
possível em alguns casos diferenciar os bairros por sua composição so-
cial, em outros passa-se diretamente de um grupo a outro no mesmo
bairro. Nestes casos, tanto a estabilidade social como a espacial ainda
não foram atingidas.
Ou seja, trata-se de situações transitórias: isto é algo que pode ser
percebido nas modificações da distribuição das densidades, modifica­
ções que refletem a conquista recente de espaços vazios e o surgimen­
to de novas tendências na ocupação do espaço. Tomando por base as

3. Monbeig menciona as cifras por hectare (200 e 300 habitantes respectivamente). (N. T.)

4. Idem: as cifras no original são de 100 a 140 habitantes por hectare. (N. T.)

5. Ver no trabalho mencionado acima na nota 3 os gráficos 1 e 2.

0 CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 87


estimativas da população em l.° de janeiro de 1947, constata-se que
durante os sete anos anteriores não houve falta de mudanças. Não ape­
nas houve um aumento geral das densidades, o qual nada mais fez do
que refletir a progressão da população total do município (cuja densi­
dade global passou a 1.956 habitantes por km2), mas os aumentos ve­
rificados em bairros como Jardim América, Belenzinho, Tatuapé, Casa
Verde e Penha são um testemunho da rapidez com que se edificaram
terrenos vazios e com que a várzea acabou sendo invadida.
A comparação das densidades de 1940 com as de 1947 ainda reve- i
la um outro fato: o de certos bairros vizinhos do Centro e praticamen-
te. desprovidos de espaços vazios em 1940, e que, em conseqüência,
poderiam parecer terem alcançado os limites de seu povoamento, te­
rem apresentado densidades mais elevadas no ano de 1947. Tais foram
os casos de Santa Cecília, cuja densidade passou de 13.200 habitantes
por km2 para 17.592; da Bela Vista, de 18.700 a 22.194; e da Conso­
lação, de 8.300 a 11.832. Em outros bairros, como os de Santa Ifigê­
nia, Brás e Sé, que teriam diminuído suas populações entre 1934 e
1940, observou-se uma parada no recuo, e até uma volta ao crescimen­
to (no Brás, a densidade passou de 20.100 a 22.876 durante o mesmo
período).6 Nesses bairros do Centro, todavia, não teria sido uma sur­
presa se tivesse havido uma redução das densidades.
As distâncias entre a periferia e o núcleo central tornaram-se tão
grandes que surgiu a preferência de morar na cidade, em vez de ter que
enfrentar longos trajetos, desconfortáveis e onerosos. Assim, a consoli­
dação das densidades nos bairros centrais pode ser vista em primeiro
lugar como conseqüência de uma expansão desmesurada da aglomera­
ção urbana. Os loteamentos da periferia ficam a mais de dez quilôme­
tros do centro da cidade de São Paulo, e tornou-se comum ter que se
deslocar entre seis e oito quilômetros para ir do domicílio ao local de
trabalho. O problema da distância tornou-se mais grave durante os

6. Entre 1934, quando o governo de São Paulo fez um censo no Estado, e 1940, ano do recensea­
mento federal, a população do Brás passou de 82.955 habitantes a 80.914; a da Sé de 11.469 a
10.331; e a d e Santa Ifigênia de 43.623 a 41.555. Jd as estimativas de 1947 atribuiram a esses bair-
ros as cifras de 89.219, 11.046 e 41.788 habitantes respectivamente.

88 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


anos da Guerra, quando tanto os transportes coletivos como os indivi­
duais passaram a ser mais deficientes. Para a massa da população, a
única solução foi se amontoar ainda mais nos cortiços do Brás, ou nas
lamentáveis casas do Bexiga. Já os mais ricos puderam optar, não sem
esnobismo, pela mudança para prédios de apartamentos.
Por volta de 1935, alguns já haviam sido construídos na Avenida
São João; mais tarde apareceram outros ao redor e nas proximidades da
Praça da República, nas novas ruas que a ligaram ao Largo do Arouche.
E, com a moda pegando, os imóveis coletivos acabaram penetrando os
bairros residenciais, como o de Higienópolis, a Avenida Paulista e ruas
vizinhas, e, mais longe ainda, os Jardins Paulista e Paulistano. Durante
os últimos cinco anos houve profundas transformações nas habitações
urbanas de São Paulo.
Após ter crescido em extensão, São Paulo começou a expandir-se
para o alto. Uma segunda camada de edifícios passou a dominar o an­
tigo casario. Enquanto os prédios de apartamentos encontram-se nas
proximidades do Centro, os arranha-céus do mais puro estilo norte-
americano têm florescido na própria área central, onde se localizam as
sedes das maiores empresas. Por falta de espaço, pelo encarecimento
dos terrenos, e também pelo desejo de imitar Chicago, os paulistanos
adotaram a construção vertical dos arranha-céus. O primeiro a ser
construído surgiu em 1929; trata-se do Edifício Martinelli. Desde en­
tão, os imóveis de dez a quinze andares, ultrapassados pelos de vinte e
até de trinta, literalmente invadiram o triângulo e suas imediações,
chegando até a Avenida São João e às ruas próximas à Estação da Luz.
Eles margeiam todas as ruas abertas no antigo Morro do Chá, onde
uma das mais recentes - a Rua Marconi - foi imediatamente cercada de
altos edifícios. Os mais imponentes pertencem a e abrigam os escritó­
rios das principais companhias de seguros, ferrovias, empresas expor­
tadoras de café e de algodão, alojando também alguns clubes aristocrá­
ticos. E, finalmente, em buildings recentes foram se instalando os con­
sultórios e escritórios de médicos, dentistas, advogados e arquitetos.7

7. Veja-se a evolução destes na figura III do capítulo anterior deste trabalho, na p. 74.

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 89


Assim, o centro de São Paulo rapidamente adquiriu o aspecto clássi­
co das grandes cidades norte-americanas. Mas as suas transformações
não se detiveram apenas nisso. Podemos encontrá-las ao longo das ruas,
onde se emaranham as redes aéreas das linhas telefônicas e das fiações
elétricas. Pode-se percebê-las ainda melhor na rapidez com que bairros
inteiros vão perdendo suas antigas funções para adquirirem novas. O
geógrafo Maurice Le Lannou descreveu as transformações sofridas pelo
“nobre bairro” dos Campos Elíseos. Inicialmente habitado pelos fazen­
deiros, ele deixou de abrigar os detentores da riqueza fundiária. Suas
belas e confortáveis mansões encheram-se de famílias pobres, muitas
vezes miseráveis, cada uma ocupando uma habitação entre a cozinha e
o banheiro. Roupas precárias e multicolores são postas a secar nos ter­
raços monumentais que eram motivo de orgulho dos fazendeiros, e es­
sas ruas elegantes passaram a servir de campos de jogos para uma es­
pantosa criançada negra e branca (Le Lannou, 1949:240). O bairro dos
Campos Elíseos passou a constituir uma área em deterioração compa­
rável àquelas que foram descritas por sociólogos norte-americanos,
particularmente em Chicago.
Seria possível aplicar a São Paulo os esquemas evolutivos sistemati­
zados por Burgess? De acordo com este autor, todas as cidades tendem
a espraiar-se a partir do centro através de radiais, algo que correspon­
de à situação paulistana. Ao mesmo tempo, vão se formando áreas con­
cêntricas em tomo do centro dos negócios, com cada zona tendendo a
invadir a que se encontra no seu exterior. Assim, uma zona de transi­
ção e em deterioração passa a envolver o Centro, mas é ao mesmo tem­
po absorvida por ele e por indústrias leves. Mais adiante encontrar-se-
iam os bairros residenciais para operários e, em seguida, uma área re­
sidencial constituída de prédios de apartamentos e habitações familia­
res, um bairro essencialmente burguês; e, finalmente, as áreas subur­
banas e as cidades-satélites situadas a mais de meia hora do Centro.
Esse esquema não deixa de ser excessivamente teórico, contrapondo-
se à inexistência de receitas universais no campo da Geografia Huma­
na. Apesar disso, em que medida poder-se-ia aplicar à cidade america­
na de São Paulo as concepções de Burgess, pelo menos para servirem
de fio condutor?

90 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Uma análise sociológica do eixo da Avenida São João, elaborada em
1936, apontou para a sucessão dos diversos bairros (Hermann, 1944).
O Centro, tanto econômico como político e administrativo, estendia-se
então dos primeiros números da avenida, começando no Triângulo e
iindo até o edifício do Correio Central, com seus bancos, lojas e servi­
ços públicos. Em seguida aparecia uma área em deterioração que se es-
tendia até a Alameda Glete. Nessa área, o grande comércio cedia seu
lugar às pequenas lojas, ao comércio de miudezas e às pequenas ofici­
nas. Entre as casas baixas, velhas e mal conservadas começaram a er­
guer-se os pequenos edifícios modernos, cujos aluguéis eram menores
que os do Centro.
!; Tratava-se igualmente de uma área de deterioração moral, já que
esle era o bairro dos cabarés, dos apartamentos de rapazes solteiros e
das casas de tolerância. A maioria de seus habitantes era composta de
celibatários (72% ), dotados de um nível cultural excepcionalmente
alto, com apenas 4% de analfabetos. Os escritórios dos novos edifícios
aí construídos davam a sua contribuição para elevar a proporção dos
Jritelectuais (com 28% sendo destinados a profissionais liberais). Mas,
|dè qualquer modo, a população dessa área em deterioração era extre-
mamente móvel.
Indo mais além, encontrava-se uma área de residências modestas,
imprecisa até a Praça Marechal Deodoro, e a seguir mais nítida até che­
gar a uma região de residências de luxo na Avenida Água Branca. Nes­
se trajeto passava-se progressivamente dos imóveis coletivos recentes a
casas antigas, e a mansões construídas pelos antigos moradores da par­
te inicial da Avenida São João, expulsos pelas desapropriações de seus
imóveis, mas que puderam construir belas residências mais para oeste.
A densidade da população diminui de 1,6 pessoas por metro de frente
para 0,45. O número de indivíduos brasileiros aumenta, passando de
68% na área em deterioração, para 76% na das residências modestas,
e de 73% na das mansões, junto com os de crianças e de analfabetos.
Ao final da Avenida Água Branca começa um bairro industrial, es­
sencialmente constituído pelos curtumes de uma empresa franco-bra­
sileira e pelas fábricas Matarazzo (de produtos alimentícios e óleos v e­
getais). De imediato a proporção dos estrangeiros aumenta (passando

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 91


a 38% ) junto com a dos iletrados (34% ) e dos homens casados (64%,
sendo 38% na área residencial burguesa e 99% na de casas mais mo­
destas). Um pequeno centro comercial situado na Rua Trindade marca
o final do grande eixo leste-oeste, a partir do qual se entra nos verda­
deiros subúrbios. Lucila Hermann pôde concluir aí o seu estudo, cons­
tatando que este corroborava perfeitamente os resultados obtidos por
Burgess em Chicago.
Contudo, não há nenhuma certeza de que sua pesquisa retomada
nos anos 1950 iria conduzir às mesmas conclusões. Aparentemente o
centro comercial e financeiro havia continuado a estender-se, mas já se
poderia hesitar em qualificar de área em deterioração a parte da Aveni­
da São João situada entre o Largo Paissandu e a Praça Marechal Deo-
doro. A expulsão das baixas casas de tolerância das ruas vizinhas, a
construção de imóveis residenciais e de escritórios, o surgimento de
grandes hotéis e de cinemas, a abertura de lojas de automóveis muda­
ram sensivelmente seu aspecto.
Se, ao falar de deterioração, desejamos apenas referir-nos a mudan­
ças, convém aplicar o termo a outros trechos dessa radial. Por exem­
plo, na Avenida Água Branca, as belas mansões tornaram-se menos nu­
merosas, particularmente no lado par, voltado para as ferrovias e para
áreas invadidas por pequenas indústrias. A progressão de uma área a
outra já não se faz unicamente ao longo de um eixo indiscutível, de
uma radial, e seria preferível dizer que o Centro se expande à maneira
de uma mancha de óleo.
Com efeito, todo o antigo Morro do Chá, com seus grandes edifí­
cios, passou a constituir um anexo do Centro tradicional. Grandes lo­
jas, boutiques de moda, bijuterias e livrarias transformaram-no em nú­
cleo comercial cujas fronteiras já ultrapassaram a Praça da República,
atingindo o Largo do Arouche, e indo em direção à Praça Marechal De-
' odoro através da Rua das Palmeiras. Este foi o traço essencial da pro­
gressão dos bairros comerciais nos últimos quinze anos. Ela se tomou
possível pelas crescentes facilidades nas relações entre as várias áreas da
cidade, correspondendo simultaneamente às necessidades acrescidas
í da população local e às iniciativas mercantis de numerosos refugiados
í europeus.

92 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Outras grandes radiais enquadram-se ainda menos facilmente nos es­
quemas de Burgess do que a Avenida São João. A Avenida Celso Garcia
- ou seja, a estrada que leva para o Rio de Janeiro - constitui inicialmen-
jtè uma mistura da rua do Faubourg Saint Antoine8, com suas lojas de
Imóveis, e de uma popular via parisiense com suas lojinhas de comér­
cio variado. Depois da Estação Franklin Roosevelt, a atividade comer­
cial diminui o caráter e o residencial passa a prevalecer. Já na altura do
Tatuapé, a Avenida Celso Garcia transforma-se num pequeno centro
industrial e, à medida que nos afastamos do Centro, os aspectos subur­
banos, e até rurais, passam a predominar. Estes aspectos irão possivel­
mente desaparecer com a expansão dos bairros residenciais e do co­
mércio local. Mas uma extensão do comércio atacadista - isto é, uma
projeção local do centro comercial - ainda parece pouco provável, por
estar demasiadamente afastado das demais regiões urbanas. Todo o
conjunto permanece nitidamente popular, e não se percebe muito
grandes possibilidades de aí se estabelecerem áreas residenciais social­
mente distintas.
Uma terceira grande radial, a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, su­
gere outras observações. Tanto quanto na Avenida São João, nela tam­
bém se tornou visível a expansão do Centro por meio da construção de
edifícios modernos. Mas a deterioração não chega a aparecer com tan­
ta clareza em toda parte. Havia anteriormente ao longo desse velho ca­
minho para Santo Amaro, sobretudo no seu lado ímpar, numerosas
chácaras com belas residências. Estas continuam existindo, mas várias
foram transformadas em clínicas ou passaram a ser ocupadas por re­
partições de serviços públicos. As chácaras eram menos frequentes no
lado par, que faz fronteira com o bairro popular do Bexiga, fazendo
com que exista um nítido contraste entre os dois lados da Avenida Bri­
gadeiro Luís Antônio. Depois de seu cruzamento com a Rua Treze de
Maio, e até a Avenida Paulista, a Brigadeiro Luís Antônio continuou
sendo uma artéria de residências luxuosas.
O esquema sociológico que parecia válido para a Avenida São João
perde sua validade nos outros casos. Trata-se de um enquadramento

8. Uma conhecida artéria de Paris (N. T.)

0 CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 93


adequado quando aplicado a um grande eixo de circulação que cres­
ceu rapidamente, ao longo do qual as condições topográficas são uni­
formes, e que foi estabelecido através de terrenos cujo povoamento era
originalmente pouco expressivo. No caso de uma antiga via como a
Avenida Brigadeiro Luís Antônio, que em parte correspondia ao antigo
caminho para Santo Amaro, ou no da Rua da Consolação, os restos do
antigo povoamento modificam os efeitos da expansão moderna.
Os acidentes topográficos acrescentam outros elementos da diversi­
dade. Como já foi indicado, os fazendeiros foram se retirando das ruas
próximas às várzeas, estabelecendo-se perto do espigão e ao longo da
Avenida Paulista. O bairro do Paraíso, a parte alta da Avenida Brigadei­
ro Luís Antônio, o Morro dos Ingleses, a própria Avenida Paulista, o
bairro de Higienóplois e a parte alta da Avenida Angélica constituem
um andar social que domina os que se encontram abaixo topográfica e
sociologicamente. Já na vertente sul do planalto da Avenida Paulista, a
estratificação se inverte e até se toma menos sensível. A descida para os
terrenos mais baixos é iniciada por residências de padrão intermediário
e até popular, como no caso da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, na
qual chegou a instalar-se uma fábrica de fios. Mas, ao chegar embaixo,
na altura da Rua Estados Unidos, reaparecem as mansões elegantes.
Para o lado do centro da cidade, a superposição de bairros burgue­
ses tem sua origem na antiga presença de núcleos de povoamento nas;
áreas mais baixas.-Esses restos da antiga São Paulo levaram os constru­
tores de casas ricas a afastar-se para o alto, para áreas beneficiadas por
paisagens desimpedidas e por localizações mais arejadas. No outro ex­
tremo, em direção à planície do rio Pinheiros, a estratificação inversa
das classes sociais torna-se explicável pela forte valorização dos terre­
nos situados em loteamentos da Cia. City no Jardim América. Assim,;
cada radial, em que se associam uma artéria principal e as ruas que lhe-
são vinculadas, possui uma paisagem específica, e todas têm caracterís­
ticas sociológicas e funcionais diversas entre si.

Os DIFERENTES ELEMENTOS ÉTNICOS


Também existem diferenças oriundas de uma distribuição geográfi­
ca desigual das nacionalidades no espaço, uma outra característica que

94 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


aproxima São Paulo das grandes cidades norte-americanas. Os dados
do censo estadual de 1934 mostraram que a população da capital com­
preendia 28% de estrangeiros, liderados por italianos (8,3% ), portu­
gueses (7,7% ) e espanhóis (3,3% ). Vinham a seguir os alemães (com
1,3%) e pessoas de outras numerosas nacionalidades - , sírios, russos,
austríacos, japoneses, ingleses e franceses - , cada qual representando
mínimas frações variando de 0,1% a 0,8% (Araújo, 1941).9
Deve ser dito de imediato que os contingentes mais numerosos não
são aqueles que marcam com maior força alguns bairros específicos,
sendo antes o contrário que parece mais exato. Ouve-se falar italiano
e se reconhece o sotaque daquele país em toda a cidade de São Paulo,
sem que nela chegue .a existir um bairro italiano. Contudo, enquanto
os palacetes mais majestosos da Avenida Paulista ou do Jardim Améri­
ca pertencem a industriais italianos e seus descendestes, é sobretudo
nos bairros operários que podemos encontrar os espanhóis. Estima-se
que representam de 12% a 25% da população destes. Eles se concen­
tram nas ruas à direita da Avenida Celso Garcia, em direção à Hospe-
daria dos Imigrantes.
No extremo oposto, os franceses e ingleses, e, numa proporção me­
nor os alemães, estão quase todos concentrados em bairros do sul, nos
bairros de classe média e da burguesia. Não deixa de ter interesse o
fato de um colégio britânico localizado no Jardim Paulistano ter atraí­
do para suas redondezas um bom número de famílias inglesas, en­
quanto o liceu franco-brasileiro situado na Vila Mariana não parece ter
exercido o mesmo poder de atração. Tanto no caso dos norte-america­
nos chegados durante a Segunda Guerra Mundial, como no dos ale­
mães ou de outros europeus ocidentais, a localização espacial vincu­
lou-se menos a um desejo de permanecerem juntos do que à sua situ­
ação social. A grande maioria deles é constituída por administradores,
engenheiros, arquitetos, joalheiros de luxo e membros do corpo con­
sular. Isto os levou a fixar-se nos Jardins, onde também estava instala­
da a burguesia paulista. A distribuição espacial desses europeus obede-

9. Devido à falta de fontes mais recentes, tivemos que nos contentar com os dados de 1934. Mas é
bem provável que as proporções entre elas tenham mudado muito pouco desde então.

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 95


ceu mais a critérios econômicos e sociais do que a motivações de or­
dem étnica ou sentimental. Isto não a tornou menos interessante, e
acabou reforçando a estrutura econômica e social já existente no país.
Mas há três pequenos grupos de imigrantes que, pelo contrário, fo­
ram se concentrando individualmente em algumas ruas e formando
quistos étnicos, como dizem os paulistas.101Trata-se dos sirios, dos ja ­
poneses e dos judeus.
Num total de 8.734 sírios recenseados em 1934, mais de 2.300 mo­
ravam nos distritos centrais da Sé e de Santa Ifigênia; 1.091 estavam j
agrupados num espaço restrito em que constituíam 24,8% da popula- ;
ção presente. Esse núcleo sírio inseria-se num triângulo formado pelas j
Ruas 25 de Março, Cantareira e pela Avenida do Estado. Nele havia li- I
vrarias que só vendiam obras escritas em árabe. Em suas confeitarias e !
cafés, os rádios apenas emitiam programas na mesma língua. Os cardá- f
pios dos restaurantes eram de comida típica. A Rua 25 de Março con- j
centra uma sucessão de lojas de tecidos pertencentes a sírios e libane­
ses. Nelas se ouvia falar mais o árabe do que o português. Num grupo
de quatro conjuntos de edifícios cobrindo menos de 30 mil metro:
quadrados, a percentagem dos sírios variava de 39,5% a 41,5% .11 E, ■
além disso, o recenseamento aplicou o epíteto de “nacionalidades di- j
versas” a indivíduos cuja maioria também se originava no Oriente Pro-
ximo, fazendo subir a percentagem para cerca de 60%. E mesmo com
isso, é possível que não tenhamos uma imagem exata do bairro, já qu<
as crianças nascidas no Brasil são consideradas brasileiras, embora vi­
vam numa ambiência radicalmente estrangeira.
Numa das áreas sobreviventes da velha São Paulo, nas proximida- j
des da Praça da Sé, instalou-se um grupo de uns mil japoneses dos
4 .5 6 3 que residiam no Município de São Paulo em 1934. Localizaram-
se num pequeno espaço entre as ruas Conde de Sarzedas, Conde do Pi­
nhal, Irmã Simpliciana, Estudantes e Glória, inserindo-se ainda pelas

10. Esse assunto foi analisado por Oscar Egidío de Araújo em seu belo artigo de 1940, pp. 227-246.

11. As percentagens com duas dízimas foram arredondadas para facilitar a leitura (N. T.) ||=;

96 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Ruas Tabatingüera e São Paulo. Trata-se de ruas estreitas, por vezes
Simples vielas, nas quais a densidade chega a atingir 25 mil habitantes
por quilômetro quadrado.12 Nesse bairro, a proporção dos japoneses
èra bem menor que a dos sítios na Rua 25 de Março, chegando em mé­
dia a 16% e alcançando no máximo 35,4% .13
Mas já era suficiente para criar em pleno centro da capital um bairro
tipicamente japonês - com seus hotéis, onde se hospedavam os nume-
ipsos japoneses vindos das áreas rurais, seus restaurantes, tinturarias, la­
vanderias, lojas, todos parecendo tipicamente japoneses. Não longe daí
se situavam os escritórios da mais poderosa organização nipônica de
colonização e imigração, com o banco de sua propriedade e seus ser-
viços de exportação de algodão. A ruptura de relações diplomáticas en­
tre o Brasil e o Japão durante a Segunda Guerra Mundial desencadeou
medidas policiais para dissolver esse centro eventualmente perigoso de
éidadãos de um país inimigo. Os habitantes do bairro foram dispersos,
mas vários puderam permanecer nele, e outros acabaram retornando
em 1945 e 1946.
O terceiro bairro estrangeiro de São Paulo configurou-se no Bom
Retiro.14 Mas como ele ainda estava mal delimitado na época do recen­
seamento, e como os judeus foram sendo registrados de acordo com
suas diversas nacionalidades oficiais, toma-se difícil aferi-lo estatistica­
mente. Oscar Egidio de Araújo estimou em 4.582 o número de judeus
do Bom Retiro, a participação dos quais na população total do bairro
eia de 11,5% em média e chegava a alcançar 36% .15 Os “russos”, como
eram chamados pelos paulistanos, estavam agrupados perto de suas si­
nagogas situadas nas Ruas Newton Prado e Correia dos Santos, mas o
local comercial que preferiam era a Rua José Paulino. Assim como nos
dois outros bairros mencionados há pouco, em que prevalecem as ins­

12. O dado do Autor (250 habitantes) é por hectare. (N. T.)

13. Ver observação da nota (11) acima. (N. T.)

14. Atualmente povoado de comerciantes coreanos e de trabalhadores bolivianos (N. T.)

15. Ver as observações das notas (13) e (11) acima. (N. T.)

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 97


crições em árabe e japonês respectivamente, no Bom Retiro viam-se
muitos cartazes e anúncios em iídiche. E enquanto os sírios eram ven- :
dedores de tecidos e os japoneses donos de hotéis, os israelitas do Bom
Retiro exerciam o comércio de roupas e de artigos de vestuário, possu­
indo suas próprias oficinas para sua produção, principalmente no
ramo da malharia.
A concentração espacial desses grupos étnicos foi efetuada por mi- j
norias e, dentro destas, pelos indivíduos mais pobres. As classes mais «.
altas da sociedade paulistana incluem tanto sírios e libaneses como
“russos” que se assimilaram com facilidade. Podemos encontrá-los não
apenas entre os grandes industriais e comerciantes (de papel, tecidos j
de algodão e lã, artefatos de metal), mas também entre os arquitetos,
engenheiros, políticos, artistas e escritores. Suas origens foram sendo
rapidamente esquecidas. Mas os que não tiveram essa chance acabaram .
se reagrupando. Sendo relativamente numerosos, possuíam línguas e
costumes excessivamente diversos para poderem diluir-se com facili-
da de nas multidões, como os espanhóis e os italianos. Ao mesmo tem- 1
po, tinham um número excessivamente grande para poderem desapa- -
recer da mesma forma que os poucos imigrantes franceses e alemães de
baixa renda.
Nem todos os estrangeiros do município da capital eram urbanitas.
Pode-se deixar de lado os pequenos grupos de engenheiros franceses
que residem perto das fábricas da Rhodia em Santo André, e os dos in­
gleses amantes do campo que vivem em Santo Amaro, mas os portu­
gueses e os japoneses já têm uma outras importância. Trata-se dos úni­
cos estrangeiros cujas maiorias não viviam nas áreas urbanizadas: 52%
dos portugueses habitavam a periferia, sendo 42% nos subúrbios e
10% na parte rural do município; quanto aos japoneses, 58% viviam
fora da cidade e 37% trabalhavam no campo. Os portugueses e os ja ­
poneses têm sido os grandes abastecedores de São Paulo. Os primeiros
eram horticultores nos subúrbios mais próximos, floricultores e cria- I
dores de aves. Já os japoneses traziam aos mercados e feiras da capital Jj
suas hortaliças, legumes e morangos. Após terem se apossado das ter- ’1
ras vazias do subúrbio do Butantã, começaram a cultivar os terrenos ■
acidentados de M’Boi, Itapecerica e Santo Amaro. E com seus compa- ;j

98 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


iriotas estabelecidos em Cotia passaram a fornecer a maioria das bata­
tas. Podia-se ainda encontrá-los, mas misturados aos portugueses, nos
vales da Serra da Cantareira e nos baixios úmidos entre as colinas além
da Penha, avançando em direção ao Rio de Janeiro. Uma organização
cooperativa perfeitamente atualizada, a Cooperativa Agrícola de Co­
tia,16permitiu que os horticultores japoneses conquistassem a primazia
no abastecimento de legumes da cidade.
Mas ainda há um outro grupo étnico merecedor de um lugar todo
especial nessa cidade tropical: os negros de origem africana da popula­
ção brasileira. Sabe-se o quão difícil é avaliar seu peso numérico, devi-
do á impossibilidade de se definir com exatidão a abrangência do ter­
mo “negro”. A simples inclusão dos mulatos nesse rol torna pratica-
mente impossível sua diferenciação em relação aos “brancos”. Por ou-
(tfq lado, como as certidões do estado civil não incluem obrigatoria­
mente a especificação das cores, as tentativas de verificação numérica
dessa etnia pelas taxas de natalidade e de mortalidade nas várias ida­
des não tem tido maior sucesso.
11 Fundamentando-se em questionários escolares realizados no ano de
1938, Samuel Lowrie estimou que, naquele ano, os negros e mulatos
representavam de 8% a 12% da população da capital. O recenseamen­
to de 1940 nos mostrou que os negros constituíam 5% da população
de mais de dez anos de idade (51.026 pessoas). Já a categoria dos de
“outra cor não declarada” parecia englobar a maioria dos indivíduos in­
termediários (35.789) entre negros e brancos. Juntando as duas cate­
gorias, temos uma participação de 8% na população total, uma cifra
que vai de encontro às estimativas de Lowrie. Em última análise, pode-
se dizer que a população de cor é estatisticamente comparável à de ori­
gem italiana, talvez até ligeiramente superior a esta. Mas essa participa­
ção dos negros é indubitavelmente maior nas cidades do Rio de Janei­
ro, Salvador e Recife (Lowrie, 1938)17.

16. Mantida em funcionamento até a década de 1980. (N. T.)

17. Seus dados relativos ao Estado são mais precisos que suas infonnações a respeito da capital.
Também pude utilizar um trabalho não-publicado de Lavinia Costa Villela, “Gênero de Vida das Po­
pulações Pretas no Brasil". Outras informações me foram fornecidas por Nice Lecocq Miltler

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 99


Se já é difícil quantificar a população negra no conjunto da cidade,
a dificuldade aumenta ainda mais nas estimativas de sua distribuição
espacial. Só se pode, neste particular, adotar as conclusões de Lowrié
baseadas nos inquéritos escolares. Os mulatos e negros configuram
uma larga faixa de norte a sul, dividindo o município em duas partes.;
As maiores percentagens de crianças de cor foram encontradas nos!
bairros mais populares e com menos estrangeiros. O maior grau de
concentração foi constatado no Bexiga (25% a 29%), enquanto um se­
gundo núcleo, com 20% , apresentou-se no bairro de Santa Cecília. OS
bairros em que predominavam os italianos e os espanhóis, o Brás e a
Mooca, eram aqueles em que as percentagens de negros e mulatos
eram mais baixas. O proletariado negro tem procurado menos o traba
lho nas fábricas do que os imigrantes e seus descendentes, havendo
sido mais atraído, após a Abolição, para as áreas antigas, já urbaniza
das, do que para os bairros novos.
Tanto a leste como no oeste, a proporção das pessoas de cor au
menta nos distritos rurais, nas vilas cujos terrenos e aluguéis são mais
baratos - como Itaquera-e Lageado de um lado, e Pirituba do outio
ou, mais ao norte, na região da Serra da Cantareira. A pequena man­
cha do bairro da Lapa é interessante, pois, seguindo-se uma faixa na
qual a participação branca, da classe média e dos operários, mostra st.
vigorosa, volta a aparecer uma separação entre proletários de etnias
diferentes.
Um outro traço que diferencia negros e brancos é a supremacia nu­
mérica das mulheres na população de dez anos e mais em 1940, com
uma participação de 58% em comparação com os 50,1% na população
municipal como um todo.18 Também a população de origem brasileira
apresenta uma participação maior de mulheres (51,1% ) do que a
maioria dos grupos estrangeiros, com exceção dos franceses, espa­
nhóis e “russos”.
Os mulatos e mais ainda os negros têm sido de modo geral os h i
bitantes mais pobres da cidade de São Paulo. A concentração deles nas
ruas cujas casas são as mais miseráveis basta para mostrá-lo. A partu

18. Ver as observações da nota (11) deste capítulo. (N. T.)

100 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


do momento em que se abandona um dos belos bairros residenciais de
jfiàò Paulo, adentrando seja os terrenos ainda vazios à espera dos urba­
nistas, seja algumas ruas mais velhas, chega-se ao território ocupado
por eles. É justamente a proximidade de tais bairros que contribui para
[atraí-los, uma vez que suas filhas e esposas trabalhavam como empre-
gadas domésticas. Essa contigüidade dá destaque aos contrastes, visí-
fteis na paisagem urbana, separando as pessoas pela cor da pele e a par­
tir dos níveis de vida que a ela se associam. É por causa disso que se
tornou comum afirmar em São Paulo que a separação entre negros e
brancos constitui mais uma questão social do que o resultado de um
preconceito racial.
Isto pode ser verdadeiro quando se vê negros, brancos, amarelos e
mulatos lado a lado nos bondes, ou nas arquibancadas dos estádios em
que se aplaudem os gênios do futebol, que são frequentemente negros.
Mas, ao mesmo tempo, não é estranho constatar a separação espacial das
moradias de trabalhadores de etnias diferentes? Trata-se de uma realida­
de criada em parte por não-brasileiros, e isto é importante. Mesmo as­
sim, pode-se ver nos jornais de São Paulo alguns anúncios bastante su­
gestivos, de famílias com nomes brasileiros, de classe média (identifi­
cável por seus endereços), procurando pajens para tomar conta de seus
filhos, mas excluindo de saída as candidatas de cor negra. É preciso ter
vivido em São Paulo para saber que o comportamento da burguesia
brasileira é sensivelmente mais desembaraçado em relação às emprega­
das domésticas negras do que em relação às brancas. Não há choques
brutais, nem conflitos abertos; tudo permanece em nuanças. A discri­
minação racial frequentemente se dissimula atrás das diferenças sociais
e, à medida que as classes forem tomando consciência de si, a oposi­
ção entre etnias tenderá a tomar-se mais aguda.
A unidade lingüística e a mediocridade numérica contribuem para
dissolver a presença das pessoas de cor na cidade. Mesmo nas ruas do
Bexiga, nunca se tem a impressão de estar entrando num ambiente à
parte, como se pode sentir no bairro sírio ou nas ruas dos japoneses. E
no entanto há momentos e até dias em que um viajante chegando de
improviso pode julgar que São Paulo é etnicamente comparável ao Rio
de Janeiro. Nos domingos à noite, os negros, homens e mulheres, par­

0 CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 101


ticularmente os mais jovens, literalmente invadem a Praça do Patriarca
e passeiam pela Rua Direita. Esta se transforma em seu recanto, da
mesma forma que a Rua Barão de Itapetininga se toma o das famílias
brancas, e que os cafés da Avenida São João são invadidos pelos torce­
dores de futebol. Os desfiles dos clubes por ocasião do Carnaval mar­
cam em São Paulo, como no Rio, o triunfo dos negros. Perdidos na vida
cotidiana da cidade, os negros tomam sua revanche na animação da­
queles dias de festa.19

P r o b l e m a s u r b a n ís tic o s

Por mais americana que seja - pela rapidez de seu crescimento, por
sua nova arquitetura, por sua mistura étnica a cidade de São Paulo
tem conservado um ritmo de vida europeu. Os paulistas conservaram
o hábito de almoçar em família, um hábito preservado pelas reparti­
ções públicas, que permanecem fechadas na parte da manhã. Assim,
pode-se observar um duplo horário de pico nos transportes coletivos
entre a periferia e o Centro (Prefeitura do Município de São Paulo,
1 943:149 e segs.). Um deles ocorre de manhã, entre sete e oito horas,
com a partida dos empregados e funcionários administrativos, assim
como dos estudantes de vários níveis; e o outro se dá depois do almo­
ço, entre 13 horas e 14 horas. Na direção oposta, o tráfego se intensi­
fica entre as 11 horas e 12 horas, e novamente à noite, entre as 18 ho­
ras e 19 horas. Pode-se notar que o horário de ponta posterior ao al­
moço chega a ser mais intenso que o das primeiras horas da manhã,
pois trata-se da partida dos funcionários de serviços públicos que con­
tribuem para ampliar a massa dos empregados e dos estudantes.
Este simples aspecto dos costumes não deixa de ter suas repercus­
sões na geografia urbana, servindo de freio à americanização dos bair­
ros comerciais, nos quais ainda não se vêem as inúmeras cafeterias das
cidades norte-americanas, em que se pode consumir um lanche rápi­
do. São Paulo continua sendo uma cidade de restaurantes, e também
de pequenos bares nos quais se toma, em pé, cafés bem quentes con-

19. Não será difícil aos leitores atuais deste trabalho de Monbeíg verificar que a realidade descrita
no presente parágrafo deixou de existir em São Paulo hd várias décadas. (N. T.)

102 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


versando com algum amigo; nestes casos trata-se igualmente de carac­
terísticas mais mediterrâneas do que norte-americanas.
A persistência do almoço em casa se ajusta de forma precária às
crescentes distâncias a percorrer. Já entre 1940, os serviços de bondes
e de ônibus mal conseguiram dar conta dos quatro horários de pico
durante os quais a duração dos percursos tendia a aumentar. Por cau-
jsà disso muitos paulistas preferiam voltar para dentro do Centro, pas-
sando a morar em edifícios de apartamentos, a fim de não terem que
deixar seus hábitos. Trata-se da contradição flagrante de uma cidade
{morfologicamente norte-americana com um gênero de vida que conti-
nua sendo europeu.20
O crescimento espetacular de bairros novos a grandes distâncias do
Centro, o aumento da população e, consequentemente, do tráfego ur­
bano acabaram dando origem a novos problemas urbanísticos. Alguns
lestes, inclusive dos maiores, têm recebido soluções apenas parciais.
Assim, nas épocas de seca, os bairros mais altos estão sujeitos à falta de
água. Mas há outros, de caráter urgente, que têm começado a receber
medidas tendentes a solucioná-los.
No passado, como já vimos, os paulistanos nunca mostraram o me-
nor interesse na elaboração de um plano urbanístico. Foi necessário es­
perar até a fase de prosperidade do café, entre 1926 e 1929, para a
ocorrência, diante da rapidez do crescimento urbano, de um primeiro
ataque ao problema. E há um nome que certamente ficará vinculado à
urbanização da cidade de São Paulo. Trata-se do engenheiro Prestes
Maia, que divulgou seus primeiros projetos na década de 1930, quan­
do estes já tinham recebido um início de sua execução sob a adminis­
tração do Prefeito João Pires do Rio, e que se esforçou em realizá-los
quando ele mesmo assumiu a Prefeitura durante a Segunda Guerra
Mundial (Maia, 1930). Sem reproduzir esses planos em detalhes, vale
a pena indicar o que deles já chegou a ser realizado.
Um dos pontos essenciais das concepções de Prestes Maia reside
na retificação e canalização do rio Tietê. As inundações catastróficas

20. Também aqui não será difícil para os leitores atuais avaliarem o que deixou de existir em rela-
ião às observações contidas nestes três parágrafos. (N. T.)

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 103


ocorridas em 1929 colocaram a questão na ordem do dia. Os traba­
lhos previstos foram sendo realizados de maneira mais ou menos
contínua. Foi possível canalizar o rio numa parte de seu curso, apro­
fundando seu leito, de modo a evitar, nas épocas das grandes chuvas,
o entupimento do riacho Ipiranga e de outros afluentes. Para facilitar
a ligação entre o Centro da cidade e o bairro de Santana, a Ponte
Grande foi reformada, alargada e deslocada, a fim de permitir a pas­
sagem de uma ampla avenida norte-sul. De acordo com Prestes Maia,
a regularização do Tietê iria não apenas deixar a cidade ao abrigo das
enchentes periódicas, mas também permitir o povoamento urbano
das várzeas e a construção de uma estação central única na margem
direita do Tietê. Trata-se de um projeto grandioso, que permitirá re­
cuperar nas áreas urbanas os espaços atualmente ocupados pelas fer­
rovias e suas estações, resolvendo os problemas de engarrafamento
do trânsito nas passagens de nível ou nas pontes. Concebia-se que a
sua realização seria lenta, configurando uma tarefa para os anos vin­
douros.
E havia outras intervenções radicais mais urgentes e no meio da ci­
dade. Era necessário descongestionar o Centro, sobrecarregado pela
circulação de automóveis. As ações da municipalidade iriam concen­
trar-se em dois pontos: de um lado nas praças da Sé e João Mendes (que
depois de ter sido desimpedida e alargada, foi transformada em ponto
final dos bondes descendo da Aclimação e subindo pela Liberdade); e
do outro, o plano comportava um rearranjo do Vale do Anhangabaú e,
simultaneamente, o alargamento e a reconstrução do Viaduto do Chá.
O antigo vale foi transformado numa larga artéria no meio, flanqueada
por ruas laterais nas quais iriam chegar numerosas linhas de ônibus.
Uma galeria subterrânea e uma escadaria monumental iriam dar aces­
so à Praça do Patriarca. O Anhangabaú foi assim transformado numa
grande garagem urbana, configurando ao mesmo tempo um amplo es­
paço aberto em pleno centro da cidade. A fim de facilitar o seu acesso
seriam alargadas as ruas que conduzem ao mercado, e construída uma
nova avenida, a Nove de Julho, que, passando por um túnel debaixo
do espigão da Avenida Paulista, iria drenar o tráfego dos bairros resi­
denciais do sul.

104 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Um esforço de descongestionamento foi igualmente empreendido
por meio do alargamento e da ampliação das vias de acesso à Estação
do Luz, e dando início à construção de um sistema de avenidas em tor­
no do Centro. A Avenida Ipiranga, que margeia a Praça da República,
e a Avenida Itororó constituíam as peças principais desse “perímetro de
irradiação”. A ligação de ambas pressupunha a construção de viadutos
atravessando vale e barrancos. Tomou-se de fato indispensável interli­
gar os grandes eixos de circulação que sobem pelos parapeitos e vão ao
centro do espigão, aí fixando novos bairros residenciais. Da mesma for­
ma que no passado, quando se tornou necessário atravessar os barran­
cos próximos do Centro mediante a construção dos viadutos do Chá e
de Santa Ifigênia, atualmente deve-se fazer algo semelhante mais a
montante.
Esses novos viadutos irão pôr fim à divisão topográfica de São Pau­
lo, cidade dos planaltos, assim como os elevadores de Salvador puse­
ram fim à separação que antes havia nela entre a cidade baixa e a cida­
de alta, ou como os túneis da orla do Rio de Janeiro puseram fim ao
isolamento de suas praias do sul. E essas novas pontes, vitórias do con­
creto armado, trazem um elemento novo e original à paisagem de São
iPaulo, e constituem para os paulistanos uma realização de sua civiliza-
ção moderna, que é uma civilização de engenheiros.

A INFLUÊNCIA EXTERNA DE SÃO PAULO


As dimensões de São Paulo não podem ser avaliadas ficando-se ape­
nas à sombra de seus arranha-céus e de suas fábricas. A sua metamor­
fose moderna contribuiu não apenas para despertar seus pobres arre­
dores, mas também para reencontrar os velhos caminhos dos bandei­
rantes, os quais ela já chegou, a ultrapassar Os trabalhos realizados nos
escritórios desses arranha-céus e nas oficinas de suas fábricas vêm al­
cançando longínquas repercussões. “Uma metrópole - como escreve
com justeza Georges Chabot - equivale a uma bola de neve particular-
Tnente bem-sucedida” (1948:92). Com seus êxitos, a metrópole paulis­
tana tem feito as vezes de uma bola de neve, emaranhando as funções
{Comerciais com as industriais, enquanto suas necessidades crescentes
têm promovido a expansão dos limites de sua influência.

Ó CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 105


A posição de São Paulo como centro comercial não deixa de ser ori­
ginal, já que a cidade é reforçada pelo Porto de Santos. Continua váli­
da a observação de Saint-Hilaire, segundo a qual Santos poderia deixar
de lado São Paulo, sem que isto levasse o país a perder essa grande en­
trada pela qual recebeu uma parte de sua alimentação, os produtos es- .
senciais para o funcionamento de suas fábricas, continuando ao m
mo tempo a exportar por ela seu café e seu algodão. São Paulo consti-
t ui apenas uma estação de passagem para a grande massa de produtos 4y
agrícolas destinados a serem expedidos quer para outras regiões do
Brasil, quer para o exterior. Não foi em São Paulo, mas em Santos, que
se instalou a Bolsa do Café.
Por outro lado, já se disse que a produção industrial era mais ori-
entada para as necessidades dos mercados urbanos do que para as das |;
comunidades rurais. Tanto as fábricas que transformam as matérias- J1
primas, como os produtos já elaborados que são desembarcados em i
Santos, não se situam a jusante da capital, em direção ao interior, mas i
a seu montante, às portas da cidade. E mesmo as mais recentes acabam 1
instalando-se em seus subúrbios do leste, a fim de poderem abastecer
simultaneamente o mercado da capital e o da cidade do Rio de Janei­
ro. Estes são os fatores que limitam o papel efetivo de São Paulo como
centro de comércio. |
Esse papel, contudo, não deixa de existir. Ele se manifesta em primei- *I
ro lugar nas compras de gado para seus frigoríficos e de algodão para J
suas fiações. Por meio dessas transações, são estabelecidas relações co­
merciais entre a capital, as áreas mais longínquas do interior do Estado,
e de outras regiões ainda mais afastadas - como o sul de Goiás, o Triân­
gulo Mineiro, uma parte de Mato Grosso. Já como vendedora, a cida­
de de São Paulo remete os produtos de sua indústria de alimentos e
principalmente os de suas indústrias químicas e mecânicas até os con­
fins da Bacia Amazônica;' o norte de Goiás, onde encontra a concorrên­
cia de produtos entrados pela Bahia; o interior de Minas Gerais, onde
rivaliza com as indústrias do Rio de Janeiro, de Juiz de Fora e de Belo
Horizonte; e os Estados do Sul do País. Os tecidos de algodão produ­
zidos em São Paulo são vendidos em todo o Brasil, além de exportados
para outros países da América do Sul e, às vezes, até para a África do4

106 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Sul. Não há dúvida de que várias dessas transações se fazem através de
^Santos, mas as relações de São Paulo com o interior são diretas, valen-
do-se das ferrovias e cada vez mais dos caminhões, que já estão che­
cando até o sertão de Goiás. Se é verdade que muitas mercadorias ape­
nas passam por São Paulo, as empresas comerciais que as vendem têm
ias suas sedes e os apoios financeiros que necessitam no município da
capital.
Entre os bancos atualmente funcionando na cidade, os mais antigos
idatam das décadas de 1880, tendo-se originado na fase inicial da ex­
pansão cafeeira em São Paulo. Embora desde aquela época já se tives-
jse constatado a presença de bancos ingleses e portugueses, os mais im-
jportantes foram os criados pelos grandes fazendeiros. Uma segunda
i fase de expansão bancária correspondeu ao período da retomada da
economia cafeeira após a crise de superprodução do início do século,
libem como aos primeiros progressos da indústria paulista, favorecida
pela guerra de 1914-18. Esta foi a época de criação das sucursais de
! grandes bancos ingleses, canadenses, norte-americanos, belgas e ho­
landeses. E nos anos que precederam as crises do café e de 1929, tan­
to os paulistas como os banqueiros do Rio de Janeiro criaram novos es­
tabelecimentos financeiros.
A prosperidade do algodão por volta de 1935, a industrialização
e a inflação a partir de 1940 fizeram florescer os bancos de São Pau­
lo. Dos 27 bancos com sede na capital do Estado, 18 foram criados
depois de 1940. A maioria deles possui agências nas principais cida­
des do Estado, e nas regiões que dele dependem economicamente -
como o norte do Paraná, a área central de Mato Grosso e o sul daque­
le Estado, o Triângulo Mineiro e a parte mais povoada de Goiás. Tra­
ta-se de uma rede cujo centro se situa em São Paulo, a cidade que
constitui o mais importante núcleo econômico do Brasil. Uma boa
parte de seu capital é paulista. Como os banqueiros do Rio de Janei­
ro também abriram sucursais em São Paulo, não há negócio industri­
al ou comercial que deixe de procurar em São Paulo o mercado finan­
ceiro capaz de apoiá-lo. E, por outro lado, a crescente extensão da
rede bancária vai estreitando as relações entre a cidade e as diversas
áreas rurais, velhas ou jovens. Apenas a cidade do Rio de Janeiro pos-

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE SÃO PAULO 107


sui um raio de atuação financeira mais amplo que o de São Paulo.21*
No âmbito intelectual, a irradiação de São Paulo não é menos notá- ,
vel. Já passaram mais de cinco décadas desde que Pierre Denis subli­
nhou a influência nacional exercida pelas sucessivas gerações de juristas
e estadistas que se formaram em sua Faculdade de Direito, numa época i ,
em que a Escola Politécnica estava começando a desfrutar de igual pres- j
tígio. Essa tradição não foi interrompida. O governo de São Paulo foi o ; j
primeiro do Brasil a criar uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, ;
e a reunir outros estabelecimentos de ensino superior em torno dela
para criar uma universidade. No começo da década de 1920, foi em São
Paulo que teve início o movimento artístico e literário modernista que
acabou conquistando o Rio de Janeiro e os velhos centros intelectuais . j
do Nordeste do país. A competição entre Rio e São Paulo continua in- _ ;
tensa, envolvendo tanto seus professores universitários e cientistas, J 1
como os escritores e artistas de cada centro. Mas não é possível impor-
se nos meios culturais do Brasil sem antes obter a consagração paulista­
na. As principais editoras do País estão repartidas entre o Rio, São Pau­
lo e, em grau menor, Porto Alegre. Nas grandes cidades, as elites inte­
lectuais não deixam de ler assiduamente os jornais de São Paulo.
As ações vivificadoras da metrópole paulista não se limitam ao que
ela oferece, mas também abrangem o que ela pede. No litoral e nas
montanhas de suas proximidades, os habitantes da cidade procuram l
temperaturas amenas no inverno e frescor durante o verão. As praias
de Santos, São Vicente e Guarujá são invadidas em julho por habitan­
tes de São Paulo, que chegam até Itanhaém, Bertioga, Caraguatatuba e
São Sebastião. Os planaltos de Campos do Jordão foram transformados
em lugar de veraneio da burguesia e das classes médias da cidade; as
estações de águas de Minas Gerais - como Poços de Caldas e Caxam-
bu - atraem os urbanistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. O peque­
no comércio focal e os agricultores das regiões respectivas tiram pro­
veito dessa expansão turística.

21. Essa constatação deixou de ser válida já a partir do final da década de 1950, com a transferên­
cia do governo federal para Brasília. Ver a respeito o texto de Francisco Vidal Luna publicado nes- 1
le livro (N. T.)

108 HISTÓRIA ECONÔMICA DA CIDADE DE SÃO PAULO


Mas a atuação de São Paulo é ainda mais benéfica em relação às re­
giões deserdadas e empobrecidas pelas quais procura atender à deman­
da de alimentos da aglomeração urbana. As imediações da capital re­
presentam um bom exemplo disso, e o mesmo fenômeno chega a atin­
gir em toda a sua amplitude as áreas que foram arruinadas pela deca­
dência dos cafezais. Os pequenos proprietários rurais de Jundiaí, Lou-
veira, Rocinhas, Valinhos, São Roque vivem de sua fruticultura para os
mercados da cidade, produzindo uvas, tomates, figos - sem falar da fa­
bricação de vinhos e aperitivos, de doces e conservas. A criação de
gado leiteiro, a produção de manteiga e de queijos fez voltar à vida as
fazendas do Vale do Paraíba, e deu nova às de Campinas, Leme e Piras-
sununga. A Serra da Mantiqueira contribui igualmente ao abastecimen-
to de São Paulo, seja de laticínios, seja de legumes (como as cenouras
jifò Vale do Lageado), seja ainda de frutas de clima temperado (como as
pêras e os pêssegos cultivados por japoneses em Campos do Jordão), e
também de “grãos” - feijão e milho.22
Essa reabilitação de áreas decadentes tem servido para atenuar os
efeitos desastrosos da expansão pioneira. Por meio dela, São Paulo aca-
bou desencadeando uma segunda onda de povoamento rural, baseada
num mercado interno e estável, o qual exige um trabalho mais assíduo
que as culturas de exportação. Esse renascimento agrícola efetuado por
pequenos estabelecimentos parece mais capaz de fixar as pessoas à ter­
ra do que as culturas pioneiras.23
Será desejável presenciarmos uma ampliação desse tipo de agricul­
tura trabalhando para a cidade? Assistiremos sem inquietações pelo
futuro de São Paulo ao crescente desenvolvimento de seus fenômenos
urbanos? Tais tendências não ocorrem unicamente nos países jovens.
Há outros que já conheceram essa prodigiosa concentração humana
em suas capitais, assim como os contrastes entre os vazios do campo

22. Esses cultivos de abastecimento interno expandiram-se bastante nas décadas subsequentes à pu­
blicação do trabalho de Monbeig, não só em todo o interior do Estado de São Paulo, mas também
nos Estados vizinhos. (N. T.)

23. Trata-se de uma tendência que acabou sendo interrompida e prejudicada pela expansão da
agroindústria canavieira ocorrida no Estado durante as últimas décadas. (N. T.)

O C R E S C IM E N T O D A C ID A D E DE SÃ O PAU LO 109
e o amontoamento nas cidades, os quais rapidamente se tornam ater­
radores. No Estado de São Paulo, a capital correspondia apenas a 3%
da população total em 1872; essa percentagem cresceu ininterrupta­
mente desde então, passando a 5% em 1890, 10% em 1900, 12% em
1920, 18% em 1940, 20% em 1950. Dentro em breve, o espaço entre
Santos e Campinas tornar-se-á uma vasta aglomeração, e desde já ele .
compreende mais de um terço da população do Estado. Os trabalha­
dores estão abandonando as lavouras, e os pequenos proprietários das
áreas pioneiras não hesitam em vender suas terras a fim de migrar J
para São Paulo. fj
Pode-se perceber todas as consequências dessa situação. O parque I
industrial não cessará de se desenvolver, na medida em que o cresci- 1
mento da população urbana lhe assegure a mão-de-obra e os mercados ||
necessários. Mas os produtores agrícolas que abandonam suas ativida- 1
des transformam-se em meros consumidores de alimentos, cuja produ- , I
ção cessará de crescer e até poderá diminuir. Os problemas que disto \
resultam abrangem todo o Brasil, mas é em São Paulo que eles se apre- j
sentam de modo mais agudo. São problemas que se complicam pela j
constituição de um crescente proletariado urbano. De chofre, a ques- f
tão social se apresenta às classes dirigentes que haviam podido ignorá- f
la até aquele instante. Os problemas políticos tradicionais deixam de f
ter interesse para os operários das fábricas e os empregados dos escri- j
tórios. Dentro da vivacidade dos sentimentos paulistanos, reivindica- j
ções mais urgentes passam a preocupar as massas, que vão deixando F
de lado seus antigos agentes políticos.
A nova sociedade cria uma nova civilização urbana e busca novos *
caminhos. Ao longo de seu crescimento secular, a cidade de São Paulo
conseguiu finalmente valer-se de seu contexto geográfico. Mas agora
ela se encontra presa a seus problemas.

110 H IS TÓ R IA EC O N Ô M IC A DA C ID AD E DE SÃO PAULO


O bservações finais

A redação do presente trabalho foi terminada no início de 1949.


Desde então, São Paulo passou evidentemente por novas transforma­
ções. A construção de arranha-céus tomou-se mais intensa do nunca;
a abertura de novas artérias, de acordo com os planos anteriores, trans­
formou por completo as paisagens do Centro, enquanto que bairros
periféricos não cessaram de crescer. As ligações entre a aglomeração e
seus subúrbios foram melhoradas, particularmente na direção de San­
to Amaro. Novas fábricas foram construídas, registrando-se paralela­
mente um aumento dos investimentos industriais norte-americanos,
uma retomada dos investimentos franceses e, como seria de esperar, a
reentrada em cena das empresas alemãs.
Houve grandes progressos nas ligações rodoviárias com outras
grandes cidades do País. O término da auto-estrada de São Paulo a
Santos reforçou a solidariedade entre as duas cidades. Encontra-se em
fase final de construção uma excelente rodovia para o Rio de Janeiro,
cujos efeitos irão se fazer sentir em detrimentos dos velhos bairros em
torno da Penha. Precisamos espantar-nos com o movimento conside­
rável do aeroporto paulistano, de onde a cada meia hora sai um avião
para o Rio?
Finalmente, há os dados do último recenseamento efetuado no dia
I o de julho de 1950, atribuindo à capital paulista uma população de
2.227.512 pessoas, e de 9.242.610 habitantes para o conjunto do Es­
tado.
Em relação a tudo isso, tivemos infelizmente apenas indicações
fragmentárias. Por essa razão, pareceu-nos preferível limitar-nos ao
texto de 1949, cujas conclusões não nos pareceram precisar de altera­
ções. Os leitores que conhecem a São Paulo de 1953 poderão levar isto
em conta.

o C R E S C IM E N T O DA C ID A D E DE SA O PAU LO 111
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