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SALVADÓ, Francisco. A Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 243.
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JULIÁ, Santos. (coord.). Víctimas de la guerra civil. Madrid: Temas de Hoy, 1999. p. 25.
ódio. A sociedade espanhola atualmente oscila entre a lembrança e o esquecimento
desses episódios, muitas vezes trazendo à tona velhos ressentimentos entre alguns
grupos.
Mais recentemente, o cineasta mexicano Guillermo Del Toro realizou dois
trabalhos de ficção que exploram essa temática para ambientar suas histórias. O
primeiro filme, de 2001, chama-se El Espinazo Del Diablo que narra a história de um
menino que se vê assombrado pelo fantasma de uma criança em um orfanato em
meio à Guerra Civil. O segundo filme, de 2006, intitula-se El Laberinto Del Fauno e,
mais uma vez, utiliza a ótica de uma criança em uma trama ambientada nos primeiros
anos do regime franquista, cuja repressão aos grupos opositores foi a mais violenta.
Este último, fez com que Del Toro fosse aclamado pela crítica mundial como um
promissor diretor da nova geração, ao mesmo tempo em que chamou a atenção para
toda sua simbologia e representação sobre o período ao qual o filme remete.
Nesse sentido, O Labirinto do Fauno será o objeto de análise, pois, partindo do
pressuposto que Del Toro utiliza elementos objetivos (técnicos) e subjetivos
(simbólicos) – tanto em cenas como nos personagens – para representar a complexa
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conjuntura política e ideológica dos primeiros anos da ditadura de Francisco Franco
(1939-1944), podemos questionar de que forma o filme representa o embate entre as
concepções antagônicas da “Espanha” no período em análise.
O “LABIRINTO ESPANHOL”
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BRENAN, Gerald apud SALVADÓ, Francisco. Op. Cit., p. 9.
realidade que assola sua infância recorre a sua imaginação e se transporta ao mundo
dos contos de fada. Nesse mundo é uma princesa com a missão de retornar ao seu
reino e governá-lo ao lado de seu pai (falecido no início da Guerra Civil). Junto à mãe,
Carmen (Ariadna Gil), que se encontra em um delicado estado de saúde devido a sua
avançada gestação, Ofélia viaja até uma pequena vila na qual se encontra o capitão
Vidal (Sergi López), um capitão franquista da Guarda Civil, e seu padrasto. Porém, o
que interessa não é contar a história do filme, e sim identificar nele os elementos que
remetem aos conflitos entre os personagens participantes da trama, fazendo um
paralelo constante com os acontecimentos da Guerra Civil e da ditadura de Franco.
4
AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 2005. p. 200.
para proteger seu filho, ainda no ventre. Pode-se relacionar a personagem com a
figura da Espanha – um país economicamente debilitado e sujeito às vontades de um
ditador. Casou-se pela segunda vez para poder sustentar os filhos, como aconteceu
com muitas mulheres que enviuvaram durante a guerra.5
O capitão Vidal é o comandante do destacamento do velho moinho, além de
ser o poder máximo da região. Em uma esfera menor, representa a ditadura franquista
e a perseguição contra seus opositores. Seu ideal de vida é facilmente observado na
decoração do Moinho: linhas retas, poucas e antigas mobílias e nenhuma cor. Seu
escritório é um misto de engrenagens e papéis, simbolizando a disciplina e a
burocracia. A personagem é mostrada como um homem extremamente violento, aos
moldes de alguns militares franquistas e militantes falangistas. Ele não se vê como um
indivíduo, mas como um instrumento a serviço da Nação e, em última análise, devido a
sua obsessão por seu filho, aponta a importância da família como núcleo fundamental
e célula base da sociedade no movimento nacionalista de Franco.6 Segundo afirma
Josep Solé i Sabater: “La violencia fue un elemento estructural del franquismo. La
represión y el terror subsiguiente no eran algo episódico, sino el pilar central del nuevo
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Estado, una especie de “principio fundamental del Movimiento”.
A governanta da casa chama-se Mercedes (Maribel Verdú). É uma mulher
corajosa e secretamente envia provisões aos rebeldes das montanhas. Ela desafia o
controle do regime e fomenta secretamente a rebelião. Durante a Guerra Civil e nos
anos posteriores, muitas mulheres acobertaram seus filhos e maridos para que não
fossem presos e assassinados pelas tropas franquistas, e a personagem faz isso por seu
irmão, mas também por pensar de forma diferente no que se refere aos destinos do
país.
O irmão de Mercedes chama-se Pedro (Roger Casamajor) e é o líder do grupo
de guerrilheiros. Sua importância para o filme é a representação do Maquis – grupo de
resistência antifranquista que operava nas regiões de fronteira entre Espanha e
França. Nesse bando pôde ser observada a presença de um francês e a expectativa de
5
DÍAZ-PLAJA, Fernando. La Vida Cotidiana en España de la Guerra Civil. Madrid: Edaf, 1994.
6
PICAZO, Carlos A. Viva España! El nacionalismo fundacional del régimen de Franco. 1939-1943.
Granada: Comares, 1998.
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SOLÉ I SABATÉ, Josep; VILLARROYA, Joan. Mayo de 1937- abril de 1939. In: JULIA, Santos. (coord.). Op.
Cit., p. 248.
ajuda da União Soviética, mostrando o caráter universalista do comunismo e a união
das Brigadas Internacionais na luta contra os fascismos durante a Guerra Civil. 8
Ainda existe o Dr. Ferrero (Álex Angulo), um médico dedicado a ajudar ambos
os lados. Ele representa a humanidade por trás do conflito, pois não faz distinção entre
os “vermelhos” e os “nacionalistas”. O médico tenta permanecer neutro, embora
reconheça que precisa posicionar-se.
Dentro da esfera mítica do filme, a personagem do Fauno (Doug Jones)
representa a liberdade. Encontra-se no fim do labirinto e tem a missão de auxiliar
Ofélia a encontrar seu reino, orientando-a na tentativa de burlar as normas e a lutar
contra a opressão. Pode-se entender essa relação como a busca de libertação da
República através da luta consciente, quebrando as barreiras impostas pelo governo.
Cabe esclarecer que o Sátiro (ou Fauno) é uma divindade do campo e dos
bosques, metade homem e metade cabra. Celebra a natureza, a liberdade, a
sexualidade e expõe o conflito do ser humano enquanto ser racional e ser animal.
Devido à perseguição da Igreja Católica, sua figura foi associada ao demônio,
representando-o como um dos símbolos pagãos.9 Esse elemento do paganismo versus
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o cristianismo é outro embate que se encontra representado no filme, pois de um lado
está Ofélia e o Fauno e de outro Vidal e a sociedade tradicional católica espanhola.
8
SERRANO, Secundino. Maquis – Historia de la guerrilla antifranquista. Madrid: Temas de Hoy, 2001.
9
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia – História de Deuses e Heróis. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2001. p. 204.
republicana como um “conto de fadas”, a mão esquerda de Ofélia como alusão ao
socialismo, e a direita de Vidal como menção ao franquismo e as forças que o apoiam.
Na primeira noite no moinho, Ofélia assusta-se com os barulhos da casa. Sua
mãe a tranquiliza, dizendo que ali no campo as coisas são diferentes da cidade. A cena
representa as discrepâncias entre o atraso das zonas rurais e o progresso das cidades.
Para Francisco Salvadó:
história de uma rosa que oferecia o dom da imortalidade a quem ousasse atravessar o
terreno repleto de espinhos venenosos. Pode-se interpretar a rosa como a libertação
do estado espanhol e os espinhos venenosos como o exército de Franco.
Mais adiante, Ofélia, a fim de retornar ao seu reino encantado, tem a obrigação
de livrar uma velha figueira do monstro oportunista que se instalou sob ela, deixando-
a doente e impedindo-a de gerar frutos. A velha figueira simboliza a Espanha e o
monstro oportunista representa Franco, que impede o país de desenvolver-se, pois,
“La economía española”, segundo o hispanista Raymond Carr, “siguió siendo pobre
durante los años cuarenta, y no hubo en ella producción ni consumo. Fueron los ‘años
del hambre’”.12
Existe uma sequência na qual o Capitão Vidal – que representa o poder máximo
franquista no filme – promove um jantar em sua casa, no qual os convidados são
membros da classe média, um padre e demais oficiais da Guarda Civil. Durante a ceia,
10
SALVADÓ, Francisco. Op. cit., p. 28-29.
11
PICAZO, Carlos A. Op. Cit., p. 111.
12
CARR, Raymond. España 1808-1975. 12ª. ed. Barcelona: Ariel, 2003. p. 704.
ficam claras as intenções dessa união entre as classes dirigentes e dominantes
tradicionais para a unificação do Estado Espanhol e a ideia de uma “Nação Limpa”, ou
seja, uma nação na qual não haja nenhuma oposição ao governo, o que pode ser
constatado no discurso do personagem Capitão Vidal: “a guerra terminou e nós
[nacionalistas] ganhamos e eles [republicanos] perderam. Não somos todos iguais. Se
tivermos que matar todos os desgraçados é o que faremos!”. Sobre esse aspecto,
Raymond Carr afirma que:
13
Ibid., p. 664.
abordado por Pedro e Mercedes que tomam posse do menino e, antes de assassinar o
capitão, juram-no que a criança jamais saberá quem foi seu pai.
A sequência final do filme representa a morte da República e o renascimento
de uma nova Espanha – representada pelo bebê. O juramento que Mercedes faz ao
capitão, de jamais contar ao menino quem foi seu pai, nos remete à década de 50 em
que a Espanha ingressa nas Nações Unidas e, a partir daí, dá-se início a uma campanha
política pelo esquecimento das atrocidades cometidas nos anos anteriores. Ao passo
que, nos dias de hoje, o povo espanhol tenta dar conta de apagar o governo franquista
de sua memória.14
14
JULIÁ, Santos. Op. Cit., p. 43.
15
FERRO, Marc. O filme, uma contra-análise da sociedade?, In: História e Cinema. São Paulo: Paz e Terra,
1992. p. 79-115.
16
NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla (orgs.). Fontes Históricas. São
Paulo: Contexto, 2006. p. 237.
criando uma atmosfera repleta de perigos, incertezas e tensão. A opção pelo terror,
maquiagem realista, atmosferas densas e simbolismo dos cenários, personagens e
diálogos reflete as influências artísticas de Del Toro, podendo-se perceber em outras
de suas produções, como Hellboy, O Orfanato e A Espinha do Diabo.
A câmera movimenta-se constantemente, configurando uma característica
“voyerística”. Esse recurso aproxima o espectador da trama, fazendo com que ele se
sinta um personagem do filme. Ao mesmo tempo, ela pode remeter um olhar curioso
de uma criança, enfatizando mais uma vez a opção do diretor pelo ponto de vista
infantil da história e na História.
Além disso, existe certo anacronismo no filme, pois apesar de estar situado no
ano de 1944, os conflitos da trama remetem diretamente à Guerra Civil. Del Toro
optou por esse viés para representar os traumas e sentimentos do povo espanhol que
ainda acreditava que o conflito não havia acabado.
Com o final da guerra, muitos espanhóis que tiveram condições de fugir para
outros países optaram pelo México, pois esse era um dos poucos países que apoiava a
República espanhola abertamente. Isso explica o fato de um diretor mexicano abordar
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a Guerra Civil e o Franquismo em duas de suas obras:
[...] a Guerra Civil espanhola é uma guerra que foi muito romantizada
nas imaginações dos escritores. Muito preto ou branco, e como a
última batalha entre o bem e o mal. Não é assim! Obviamente é
muito mais complexa. É uma guerra sobre o qual se pode falar muito.
Então era interessante para mim. Cativou muito minha imaginação.18
17
MORENO, Francisco. La represión en la posguerra. In: JULIÁ, Santos. (coord.). Op. Cit., p. 283.
18
Em entrevista ao documentário sobre a produção do filme El Laberinto del Fauno que se encontra nos
extras do DVD.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
19
CARR, Raymond. Op. cit., p. 663.
20
NAPOLITANO, Marcos A. Op. cit., p. 266.
cinematográfica e projetou-se como um dos mais célebres e renomados diretores de
Hollywood – em parte, graças a esse filme, no qual a fantasia e a brutal realidade
mesclam-se, dando lugar a uma história em que a fantasia ao redor de Ofélia serve para
fugir da crueldade de um regime em que se encontra imersa. A vivência da menina
pode ser comparada, em alguns aspectos, à história real de Anne Frank que viveu vinte
e cinco meses em um anexo no sótão do escritório de seu pai com mais oito pessoas,
escondendo-se dos alemães nazistas, tendo como refúgio apenas o seu diário.
Nesse sentido, o filme O Labirinto do Fauno mostra a perspectiva das ideologias
conflitantes dos grupos antagônicos que guerrearam na Espanha ao longo dos anos 30
e 40, sobre os quais ainda hoje se debate.21 Produções como essa se propõem a
repensar qual noção a sociedade possui sobre os horrores da guerra, da repressão, do
ódio, mas também sobre a memória coletiva e suas representações.
REFERÊNCIAS
21
MORAL, Félix. Veinticinco años después. La memoria del franquismo y de la transición a la democracia
en los españoles del año 2000. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas, 2000.
MORAL, Fálix. Veinticinco años después. La memoria del franquismo y de la transición a la democracia en
los españoles del año 2000. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas, 2000.
PICAZO, Carlos A. Viva España! El nacionalismo fundacional del régimen de Franco. 1939-1943.
Granada: Comares, 1998.
PRESTON, Paul. España en crisis – Evolución y decadencia del régimen de Franco. Madrid: FCE, 1977.
. Franco – Caudillo de España. Barcelona: Mandadori, 1999
SALVADÓ, Francisco J.R. A Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
SERRANO, Secundino. Maquis – Historia de la guerrilla antifranquista. Madrid: Temas de Hoy, 2001.
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