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Orientador:
Prof. Marcelo Augusto Pinto Teixeira
Rio de janeiro, RJ
2009
0
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho à minha querida mãe, Célia Paradela, por seu amor e apoio
incondicionais, - mas também pela natureza exigente de seu amor, que nunca deixou de me
impor rígidos limites - sem os quais, eu não teria me tornado quem sou.
1
AGRADECIMENTOS
Ao Hernani Heffner, que despertou em mim a o fascínio e a curiosidade de ver Limite pela
primeira vez.
A Saulo Pereira de Mello e D. Ayla, pelas agradáveis tardes que dedicaram a me revelar
nuances e minúcias de Limite e de Mário Peixoto.
A Marcelo Augusto, mestre dileto e orientador, que me instruiu e incentivou a investigar mais
profunda e apaixonadamente o filme e seu criador.
A Marcio Paes, por seu apoio, fundamental – e pela inestimável ajuda ao proporcionar-me
fontes preciosas de pesquisa de imagem.
2
Poderei renascer todas as manhãs (...)
desde que não me torne possível
num reflexo de receio...
Ignoro quem sou
– como sei o que desejo.
(Mário Peixoto)
3
Sumário
Introdução 4
1 Sobre Limite 6
2 Influências Estéticas 11
2.1 Expressionismo 15
2.2 Montagem intelectual 20
2.4 Decadentismo (Simbolismo) 21
3 Escrituras decadentistas na obra de Mário Peixoto 24
4. Conclusão 30
5. Anexos 31
5.1 Fotogramas de Limite 31
5.2 Entrevista: Saulo Pereira de Mello 35
5.3 Além do Limite 38
6. Referências 39
6.1 Referências Bibliográficas 39
6.2 Outras Fontes 41
6.3 Referências Fílmicas 41
4
INTRODUÇÃO
1
MOURA, Roberto. Cinema Brasileiro: atualidades e reminiscências inspiradoras. In Cinemais n. 10, p. 176.
5
Ainda que construído a partir de referências estrangeiras, o cinema de Limite
apresenta linguagem e estética singulares; suas imagens de virtuosa plasticidade são
inegavelmente constituídas por inúmeros elementos particulares da cultura pictórica
brasileira, possibilitando, desta forma, situá-lo no movimento modernista, a despeito de se
encontrar muitos depoimentos contrários a esta hipótese.
Uma investigação mais meticulosa dos expoentes modernistas no Brasil conduz esse
estudo a uma vertente do movimento que não viria a obter grande expressão nas publicações
da época, as quais, deram maior ênfase ao modernismo paulista – solar e bem-humorado, que
ao carioca, soturno e existencial – ressonância do movimento decadentista que eclodira na
Europa na virada do século.
Através da análise dos componentes estéticos da imagem moderna, – cuja dinâmica,
derivativa da relação entre metrópole e colônia, elabora a maneira pela qual a colônia engole,
devora e recapitula a dimensão da presença do dialeto da metrópole, transportando-o para a
realidade nacional – busca-se definir o contorno desses processos no cinema de Limite, e de
como Mário Peixoto absorveria essas influências e as traduziria em uma obra-prima sem
precedentes na história do cinema e com potência estética maior que a encontrada na matriz
européia.
6
1. SOBRE LIMITE
2
VIANY, Alex. Introdução ao Cinema Brasileiro, p. 44-45.
7
impensáveis para o cinema da época. Na finalização, Edgar também manipulou os
fotogramas na própria película, outra grande inovação naquele tempo.
Muito embora este estudo se concentre na construção imagética de Limite a partir de
múltiplas referências do cinema europeu, é válido abordar seu caráter atemporal e sua
temática tão humana que faz dele um filme universal. É assombrosa a universalização
atingida por Mário Peixoto através do pictórico, e que ainda assim fala a cada espectador de
forma tão sucinta e particular que não pode ser traduzida senão como poesia. A linguagem
poética permeia cada plano de Limite, à guisa de narrativa, conferindo sentido profundo às
imagens.
Limite provoca em quem o assiste reações apaixonadas, sensações que vão do êxtase
ao choque, como testemunha Cacá Diegues, em depoimento ao documentário Onde a Terra
Acaba (2001):
Quando eu vi Limite a primeira vez, pra mim, foi um choque: o filme do Mário me
dava a exata dimensão de para onde teria ido o cinema se o som não tivesse
acontecido. Aquele filme é uma estranha síntese... Eu até hoje não consegui
entender... (...) Como é que aquele menino, acompanhado de Edgar Brasil,
conseguiu fazer de repente, num país que não tinha tradição cinematográfica, um
filme que fosse tão a síntese de tudo que tava acontecendo, e mais do que tudo que
tava acontecendo, a direção para onde o cinema iria naturalmente, se não tivesse
3
MELLO, Saulo Pereira de. “Limite, de Mário Peixoto”, In Revista Brasil.
8
sofrido aquela interrupção no seu avanço. O cinema de Limite é um cinema que vai
ficar perdido no tempo, como uma possibilidade que o cinema não realizou4.
“Não o foi, naturalmente por aqueles que podiam entender o filme. O grande público
– senhoras gordas e meninotes fluídicos – esses naturalmente tinham que ficar em
branca nuvem. Já foi muito que não se levantassem no meio da sessão. As exceções
é que surpreenderam. A maioria não entendeu, não foi sensível ao valor rítmico do
filme – mas percebeu que era cinema puro. (...) Uma nota constante essa de pessoas
que procuravam mostrar que tinham percebido que havia arte, mas que confessava
humildemente não ter educação e conhecimento suficiente de cinema para entender
bem o filme desse ponto de vista artístico. Isso, naturalmente, de permeio com
observações gozadíssimas, de cavalgaduríssimas senhoras sobre ‘excesso de
natureza’, ‘água em demasia’, etc. De uma ouvi uma frase que resumia a história de
um homem casado, a mulher e a amante que apareciam presos num mesmo bote.
Como o filme deve ter parecido simples a essa milionária de espírito!... Mas, em
4
Transcrição do depoimento do cineasta Cacá Diegues ao documentário Onde a Terra Acaba, de Sérgio
Machado.
9
oposição, há os que entenderam. E, creia você, foram bastantes. (...) Foi um sucesso
– entre os iniciados – mas um sucesso. ”5
“Posso assegurar que uma vez acesas as luzes, senti a grande impressão que o filme
tinha feito em todos. Orson Welles deu-me particularmente sua opinião, que foi a
melhor. E pude ver-lhe a sinceridade do que dizia nos olhos. Carpeaux soprou-me
nos ouvidos: ‘Mas é poesia pura’... Maria Rosa Olivier não escondeu sua preferência
pela fotografia magnífica e pela grande pureza cinematográfica da sucessão.
Frederic Fuller estava assombrado. Tinha visto um dos maiores filmes da História
do Cinema”.6
Mário Peixoto não realizou um segundo filme, mas deste único deriva uma série de
obras cinematográficas e literárias para o estudo e aprofundamento de Limite. Após sua
restauração, Saulo Pereira de Mello viria a dissecá-lo, fotograma por fotograma, processo que
finalizou em 1970 e que chamou de “mapa de Limite”, posteriormente editado com o título
Limite – filme de Mário Peixoto; além de escrever inúmeros ensaios sobre o cineasta e sua
obra e um roteiro em parceria com ele, intitulado Outono – O jardim petrificado, publicado
em 2000; também recolheu vasto material de pesquisa para a biografia Mário Peixoto: esboço
de um retrato, descrita na relação do acervo como “um pequeno livro a ser distribuído pelo
Arquivo Mário Peixoto”.
5
CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 70-71
6
Crônica de Vinicius de Moraes para o Jornal A Manhã, em 30 de julho de 1942, apud CASTRO, Emil de.
Jogos de Armar, p. 89
10
Limite é citado e tem sua importância enaltecida em numerosa bibliografia sobre o
cinema brasileiro e foi objeto de monografias e teses nos mais variados campos de estudo.
Curioso também que a cinematografia sobre Mário Peixoto supere, em número, a obra
que realizou, sendo estes, um longa e dois curta metragens documentais: O Homem e o Limite
(1975), de Ruy Santos e O Homem do Morcego (1980), de Ruy Solberg, o qual viria a
fornecer preciosos depoimentos do cineasta para o documentário de Sérgio Machado, Onde a
Terra Acaba.
11
2. INFLUÊNCIAS ESTÉTICAS EM LIMITE
“Carlos Scliar desenhou uma árvore do cinema. O grande tronco era Griffith, o
cinema soviético, o cinema americano, o cinema alemão, etc. E quando ele quis
botar o Mário Peixoto, ele não encontrou lugar. Então, ele botou uma pomba
voando. O Mário Peixoto é uma pomba. (...) Ele não tem lugar no cinema brasileiro.
Ele esvoaçou em volta7.
A grande questão é com que ele dialoga. Ele dialoga com o modernismo, dialoga
com uma forma cinematográfica mais contemporânea. Mário é um artista moderno,
antimoderno, revoluciona o próprio cinema ou dá um passo adiante do próprio
cinema? Não é mais ponto de discussão se Mário Peixoto realizou um grande filme.
Isso já é ponto pacífico8.
Emil de Castro vai enfatizar que o período em que esteve na Inglaterra teria sido
fundamental para a formação do jovem cineasta:
7
“O Limite de Mário Peixoto”. in Jornal da PUC-Rio.
8
“O Limite de Mário Peixoto”. in Jornal da PUC-Rio.
12
forte influência na formação do jovem estudante da Hospedene School, despertando
nele a vocação para a arte cinematográfica. O Manifesto Futurista, de Marinetti, a
Semana de Arte Moderna de 22, a avant-garde francesa, o “Cinema-olho” e o
“Cinema-verdade”, a pintura cubista, enfim, toda essa revolução cultural
proporcionaria uma mudança no mundo da arte e neste contexto nasceria o cineasta
Mário Peixoto, que se utilizaria do olho mágico da câmera para mostrar as
limitações do ser humano, leitmotiv de Limite.9
9
CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 60
10
NOBRE, Ana Luiza. Um modo de ser moderno, p. 256.
13
Em sua biografia sobre Mário Peixoto, Emil de Castro o descreve com todas as
nuances com que se pode pintar um artista decadentista:
Mário era um introspectivo, uma alma poética, encerrado no seu casulo, à espera de
sua transformação, de sua metamorfose numa crisálida e depois num novo ser. (...)
Mário Peixoto é um desses artistas fatalizados, como Lúcio Cardoso, Cornélio Pena,
Walmir Ayala e Otávio de Faria. Todos são de um mesmo círculo: a geração dos
introspectivos, dos que se conheceram e identificaram com a mesma busca. E por
serem íntimos, se entendiam e se comunicavam. Trocavam experiências,
sentimentos, dores e espantos. Nenhum deles se preocupava com o lado puramente
social de suas obras. Tocavam o social, mas não assumiam outra posição que não
fosse a do artista preocupado com o processo de criação. A beleza como finalidade
única e razão de ser. “A beleza está intimamente ligada ao sofrimento, àquele
sofrimento que nos fere no instante exato em que unificamos a euforia”, diria Lúcio
Cardoso nas anotações para seu diário.12
11
CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 132
12
CASTRO, Emil de. Jogos de Armar: a vida do solitário Mário Peixoto, Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 2000.
p.132, 133
14
Tudo é puro Brasil - Mangaratiba, brejo, lodo, praia, mata. Estas ruínas, de
vegetação pendente; estes muros manchados; este céu branco; este cemitério lodoso:
é o Brasil. A eles os personagens se ligam de maneira trágica, se incorporam à
paisagem e, através dela, se "exprimem". Essa paisagem, trágica como Limite, é uma
das grandes forças do filme.13
13
MELLO, Saulo Pereira de. Ver “Limite”. In Revista USP nº 4 , p. 86.
15
2.1 Expressionismo
16
na realidade”; Truffaut constata duas linhas do cinema: o “realismo e o esteticismo”;
e Kraucauer identifica tendências “realistas e formalistas”.14
14
KORFMANN, Michael. Romântico, expressionista e colorido: O gabinete do Dr. Caligari, p. 34
15
HERTZ, Constança. Imagem e palavra: a teoria do Chaplin Club, p. 1
17
havia espaço para um cinema independente e experimental. Entre 1918 e 1933, o
cinema teve ao menos três movimentos de vanguarda – o impressionismo francês
(1918-1929), o expressionismo alemão (1920-1933) e a escola soviética de
montagem (1925-1933). As tendências estéticas que marcaram a primeira metade do
século XX voltaram-se para o cinema, que deixou de ser visto como uma descoberta
científica, e passou a ser compreendido como um rico manancial para novas
possibilidades formais e narrativas16.
No artigo "Eu creio na imagem", publicado pelo jornal do Chaplin Club em 1928,
Octavio de Faria deixa ainda mais claras algumas questões que fizeram parte das
discussões deste grupo que se mostrava muito distante da forte corrente regionalista
que predominava no modernismo brasileiro das décadas de 1920 e 1930, tanto na
estética cinematográfica, quanto na literatura. O Chaplin Club, como suas
publicações confirmam, apresenta discussões estéticas pouco usuais no Brasil de
então e Limite (1931), o filme de Mário Peixoto, está muito próximo das discussões
estéticas deste grupo que formava o clube de cinema, mas também, a obra literária
de Mário Peixoto, cineasta e poeta, revela possuir muitas afinidades com esta busca
16
HERTZ, Constança. Do grupo de cinema à teoria literária: O debate do Chaplin Club.
18
por novas possibilidades estéticas, pois também apresenta uma profunda
desconfiança em relação à palavra em sua produção literária17.
É notório que Mario Peixoto, em sua breve permanência na Europa, teve acesso a
filmes expressionistas e oportunidade de se inserir nos ambientes de onde emergiam as
produções da vanguarda. No diário que manteve durante sua permanência na Inglaterra, relata
com entusiasmo ter assistido à Metropolis (1927), de Fritz Lang. Na qualidade de admirador
da arte cinematográfica, o futuro cineasta possivelmente assimilaria, ainda que de forma
diletante, os princípios estéticos e fundamentos da linguagem expressionista. Importante
destacar que a estética de Limite se aproxima mais da vertente realista do expressionismo,
conhecida por “kammerspiel”, onde observa-se uma estética eqüidistante às deformações
clássicas do caligarismo – que vai ser inaugurada nos filmes de Friedrich Murnau.
Os dez anos mais fecundos do cinema alemão, que se estendem de 1917, com a
criação da U.F.A., até os primeiros filmes históricos de Lubitsch (...) coincidem com
o período em que Mário Peixoto se encontrava estudando na Europa, como anotaria
no “Diário da Inglaterra”. O futuro autor de Limite ainda era bastante inexperiente,
mas estava munido de seu instrumental de trabalho, pois certamente, teria adquirido
as lições que H.A. Potenkk aponta como qualidades que contribuíram para o
desenvolvimento da arte cinematográfica universal: 1ª, integração da luz, da direção
artística e do relato; 2ª, desenvolvimento do tema nas narrações particulares; 3ª,
premeditação da película; 4ª, efetiva submissão do autor; 5ª, consideração da câmera
como o instrumento mais importante, e 6ª, fiscalização e disciplina, amadurecimento
do autor, construção da película, já não como fotografia em movimento, senão como
“visão interrompida”.18
De modo que, se a estética expressionista que tanto se faz presente, ou mais facilmente
identificável, em Limite – através do uso de cenas fora de quadro (sugeridas por meio de
vazios), enquadramentos opressivos, bem como da direção de cena minimalista e comedida,
focada em uma expressão psicologizada das personagens (muito característica dos filmes
kammerspiel), isso pode ser atribuído, em parte, ao fato da natureza poética de Mário Peixoto
identificar no expressionismo uma forma igualmente poética de expressão visual, pois não
17
HERTZ, Constança. Do grupo de cinema à teoria literária: O debate do Chaplin Club.
18
CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 36
19
tinha como objetivo a representação de uma realidade puramente concreta, mas sim, de
emoções e reações subjetivas que objetos e eventos nele suscitavam e que o jovem cineasta
tratou de expressar por meio do amplo uso do simbolismo, como veremos mais à frente.
O Kammerspiel, embora seja uma vertente da vanguarda expressionista alemã, prima
pelo realismo e por inovações narrativas e visuais, onde privilegia-se os movimentos da
câmera bem como dos elementos constituintes da cena, o que é bastante evidenciado em
Nosferatu (1922). A construção do espaço cênico pretende uma representação fiel do mundo
real.
Contudo, esse naturalismo é envolvido pela combinação de inúmeros recursos
visuais, como simbologias, representações oníricas, fusões, enquadramentos inusitados e
cenas fora do quadro, bem como de movimentos de câmera pouco usuais no cinema da época
– no qual o uso expressivo da câmera, pode tanto utilizar o contra-plongé para evidenciar a
altivez de um personagem, como o plongé para representar sua humildade. O termo
kammerspiel, que pode ser traduzido como “câmera desvencilhada” é alusivo a este
movimento de câmera, muito característico desses filmes: uma câmera sempre dinâmica a
explorar minuciosamente o espaço cênico e os aspectos psicológicos da mise em scène,
conferindo maior intensidade e fluidez à narrativa.
É notável também o uso expressivo de movimento de objetos em cena - como o
botão que cai do uniforme, motivo de orgulho e símbolo de status, do orgulhoso porteiro de A
Última Gargalhada (1924), ao saber ter sido rebaixado a zelador de banheiro (a queda do
botão representa sua própria queda). O resultado é visualidade elevada à terceira potência,
como observa Paulo Ricardo de Almeida:
20
viragem vermelha, índice sanguinolento de Conde Orlok? Ou do trabalho
com o fora-de-campo, das entradas e saídas de quadro (o navio que avança
pelo plano em Nosferatu ou a mão que, na cena capital de Tabu, surge para
romper, com a faca, a corda na qual se agarra o protagonista)? Ou das
estonteantes fusões de imagens em Aurora e em Fausto?19
É válido enfatizar a originalidade dos roteiros que vão retratar de forma muito
autêntica, temas raramente mencionados no cinema até então - angústia, loucura, depressão,
frustração ou o insólito presente no cotidiano, sempre pontuados por um olhar crítico e muitas
vezes, irônico, da sociedade que retratava. Mas a ousadia dessa linguagem vai além das
inventividades na narrativa e do uso de enredos elaborados. O experimentalismo dessa
vanguarda em especial deu uma contribuição muito rica à construção da linguagem
cinematográfica, chegando a se utilizar até de recursos metalingüísticos, um conceito muito
moderno pra época: em Tartufo (1925), Murnau explora a presença de um filme dentro do
filme e quebra a convenção do cinema clássico-narrativo, onde os atores devem ignorar a
presença da câmera, além de executar com maestria os planos subjetivos dos personagens.
19
ALMEIDA, Paulo Ricardo de, Inocência do Olhar e Artificialismo Social, in Contracampo – Revista de
Cinema, n º. 66
21
tempo devem associar-se, e essa associação é obtida graças a uma duração
absolutamente idêntica dos dois planos em questão e sensivelmente diferente dos
demais. Depois de sentir esse ritmo é que se tem consciência de que existe também
um laço racional entre os dois planos, que são duas expressões de um mesmo tema20.
Não há como ver Limite alheio ao ritmo visceral de sua montagem ou despido do
sentido de contemplação da poesia que impregna os fotogramas. O ritmo estabelecido pela
montagem serve ao estado psicológico de cada personagem e convida o espectador a
vivenciá-lo, como na seqüência em que se vê a mulher fugitiva na máquina de costura, onde
os elementos da ação se alternam em movimento cadenciado de modo a exprimir tédio e
monotonia, num crescente que culmina em sua fuga definitiva. Ou na rigidez dos longos
planos fixos do barco que permitem a fluidez do desespero de uma personagem em franca
agonia em contraposição ao alheamento da outra, que já se entregou e queda-se prostrada com
o olhar perdido no infinito.
20
VIANY, Alex. Introdução ao Cinema Brasileiro, p. 45.
21
MUCCI, Latuf Isaias. Walter Horatio Parter & A Febre do Esteticismo, in O labirinto finissecular e as idéias
do esteta, p. 15
22
de Dândis, expressão usada pela primeira vez por Baudelaire, na segunda metade do século
19, a quem se atribui a primeira descrição do que seria um dândi. “O modelo do dândi
finissecular busca-se em Baudelaire, que poetizou a tragédia da existência, criando um
dandismo filosófico e literário. Trágico, fatal, o novo dândi - o dândi do fim do século beira
os abismos”.22
Segundo Baudelaire, "o dandismo não é um deleite excessivo com roupas ou elegância
material. Para o dândi perfeito, essas coisas nada mais são do que o símbolo da superioridade
aristocrática de sua mente"23. Latuf Isaias Mucci endossa e complementa: “Esse avatares
abrigam cuidadosamente uma essência, (…) um significado que aponta, com insistência, um
significante, rebelde a um significado, ou conceito fixo”.24
Os primeiros expoentes do decadentismo surgem entre 1880 e 1890,
predominantemente na França e na Inglaterra, convertendo-se em uma espécie de fenômeno
cultural na Europa, e que em Portugal, chega a se prolongar até meados da década de 1920,
com ocorrências pontuais na poesia de Fernando Pessoa e Florbela Espanca. Arautos de uma
expressão da vida interior através da linguagem poética, sobretudo na poesia simbolista,
cultuando temas soturnos e sombrios, a introspecção e a morte, o movimento decadentista se
galga na crítica do estilo de vida burguês e numa incessante busca por afrontá-lo. De essência
simbolista e grandíloqua, dialoga com o hedonismo e flerta com o fúnebre. Despreza a ordem
burguesa estabelecida e a imagem da mulher subserviente e maternal. A representação
admitida do feminino é a mulher fatal e seu perigoso poder de sedução, simbolizado pelo mito
de Salomé. A personagem bíblica torna-se um arquétipo da arte decadentista, representada na
pintura, por Gustave Moreau e no drama poético de Oscar Wilde, traduzido para o português
por João do Rio.
22
MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e simulacro decadentista, p. 10
23
BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre Arte, p. 71
24
MUCCI, Latuf Isaias. Walter Horatio Parter & A Febre do Esteticismo, in O labirinto finissecular e as idéias
do esteta, p.15
23
próxima da proposta de perseguir, nas miragens do texto, a utopia da ‘isenção de
sentido’.25
Com efeito, o esteticismo articula o jogo dos significantes, sem prestar atenção aos
significados, aos conceitos, aos preconceitos, aos preceitos, enfim, a uma ideologia
burguesa, mercantil, capitalista em seu nascedouro, sob o signo do total e
avassalador utilitarismo, que os estetas todos combatem até a morte (e não se
configura nenhuma hipérbole quanto a esse combate até a morte, na medida em que
os estetas – os verdadeiros estetas – morrem por seu ideal da arte pela arte,
cumprindo o primeiro aforismo de Hipócrates, traduzido em latim por ars longa,
vita brevis, que, na clave puramente esteta, significa ser a arte mais ampla do que a
própria vida).27
25
BOUÇAS, Edmundo. Formas e Truques de um Écrivain-Dandi, in O labirinto finissecular e as idéias do
esteta, p.187-188
26
MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e simulacro decadentista, p. 25
27
MUCCI, Latuf Isaias. Walter Horatio Parter & A Febre do Esteticismo, in O labirinto finissecular e as idéias
do esteta, p.15
24
3. ESCRITURAS DECADENTISTAS NA OBRA DE MÁRIO PEIXOTO
Mário José Rodrigo Peixoto era seu nome completo. Nasceu no Rio de Janeiro, em
25 de março de 1908. Ele, porém, insistia em afirmar que nascera em Bruxelas.
Não há evidências concretas, no entanto, que isso seja verdade. A data de seu
nascimento também foi motivo de muita dúvida. (...) Afirmava durante a vida inteira
ter nascido em 1918, como, aliás, aparece na sua carteira de identidade, cujos
assentamentos parecem avivados, para não dizer adulterados. (...) As informações
que obtivemos no próprio Instituto Félix Pacheco, foram no sentido de que o correto
seria 1908. (...) Mário criava sempre pistas falsas, com o objetivo de manter uma
atmosfera de mistério em torno de sua vida.28
Quando se trata de perfazer uma biografia de Mário Peixoto a partir de tantos dados
esparsos e controversos, extraídos de seu diário pessoal, cartas e relatos daqueles que o
conheceram, sempre envoltos em uma atmosfera mítica, é necessário muito discernimento e
persistência para separar o mito da história. É o que sugere Emil de Castro, na biografia de
sugestivamente intitulada “Jogos de Armar”, onde afirma que “toda sua vida é construída de
recortes de um puzzle difícil de ser montado”29.
É esta mais uma peça do jogo de armar do seu aniversário. Mário completou 15
anos, (...) no Rio de Janeiro, em 1923; 19 anos em 1927, na Inglaterra, onde se
encontrava estudando e 20, novamente no Rio, em 1928, quando havia retornado da
Inglaterra. No “Diário da Inglaterra”, ele já havia esclarecido esse ponto
controvertido de sua biografia. (...) É neste mesmo diário que forjaria a última peça
28
CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 29
29
CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 163
25
que completaria esse jogo de armar de sua data de nascimento. O puzzle a que se
refere em carta que escreveu a Saulo Pereira de Mello.
25 de março de 1927.
“Um ano mais! Pensar que nunca, nunca mais terei 19 anos outra vez.”
Era o jogo do tempo que sempre foi sua maior preocupação, mesmo antes de sê-lo.30
A síntese dessa questão a que se refere o biógrafo é dada por Mário Peixoto em uma frase,
extremamente simbólica, encontrada no mesmo diário: “Todo dia que passou tem para mim o
valor de uma pérola arrancada de um colar.”31
Para traçar um perfil do dândi Mário Peixoto, não é preciso aprofundar-se em
sua personalidade conturbada, ou ater-se ao seu comportamento taciturno, sempre predisposto
ao isolamento e à introspecção. Mesmo uma observação superficial, seja sobre seu modo de
vestir, sempre elegante, ou os maneirismos de sua oratória e gestual, sugerem a personificação
exata da mais rica descrição dos legítimos dândis europeus.
Pode-se perceber muito claramente essa preocupação de Mário Peixoto com a própria
imagem, pelo menos em seus depoimentos filmados: na maneira como se posiciona
elegantemente e fita a câmera com assaz naturalidade, como se essa fosse seu próprio espelho,
30
CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 47
31
apud Jogos de Armar, p. 45
32
MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e simulacro decadentista, p.52
26
para só então, falar, em português sempre corretíssimo, e com eloqüência admirável. Seu
biógrafo também vai relatar essas particularidades de Mário, num capítulo que chama de
Modos de ser.
A combinação desses fatores confere a Limite e a seu realizador uma aura de mito e
excentricidade que também pode ser interpretada como uma tentativa de resguardar sua
individualidade e mascarar uma personalidade deveras conturbada. É nítida em sua obra,
filmada ou impressa, uma cifra catártica, necrótica e visceral – e algumas obsessões como o
tempo, a morte e uma busca incessante da perfeição e da originalidade.
O Homem do Morcego, carinhoso documentário realizado por Ruy Solberg, traz
imagens intimistas, filmadas na Ilha Grande, onde Mário Peixoto discorre acerca da idéia
original de Limite e recorda, saudoso, a “aventura” que foi produzi-lo, sendo ainda tão jovem
e inexperiente. Fala da morte do amigo Plínio Sussekind, com ar solene que não disfarça
certo fascínio e até intimidade com o tema. Mas é ao descrever, com riqueza de detalhes, um
trecho do roteiro “A Alma segundo Salustre”, no qual narra a morte do personagem César,
sugerindo imagens extremamente complexas, de natureza poética, permeadas por símbolos e
movimentos de câmera virtuosos, que se pode ver com clareza o perfil de verdadeiro dândi,
na altivez de seu discurso, de norma culta impecável, e na grandiloqüência impressionante,
que revela nas entrelinhas, o culto ao fúnebre e à beleza, fenecida na juventude.
33
CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 50-51.
27
manga da capa, mas se sente mal e cai no chão. Aí, todo mundo se aglomera, pra ver
o que houve. A câmera, que também é uma personagem, (...) procura como que um
lugar também, e por sua vez, se aproxima lentamente do rosto de César, que
adquiriu o aspecto de uma mascara mortuária. E vai penetrar num dos globos
oculares, que justamente se apresenta agora vazio; ela penetra ali, se escuta o ruído
de uma água, como que se fosse o interior de uma gruta, com aquela ressonância, e
umas algas indistintas. A câmera recua novamente, levanta, sai, começa a subir, a
subir, a subir... As paredes são revestidas; repentinamente tornam-se de pura pedra e
lá em cima, então, é a noite estrelada, não tem nada. A câmera vira, para a praia. Lá
embaixo tem uma onda no momento de deflagrar, ela está parada e trêmula, como
que à espera. Um braço surge no canto esquerdo do quadro, é o braço de César, e
com o indicador ele aponta como se ordenasse, a onda então desaba e se desagrega e
a tela se enche de pequenas partículas d’água, como se fossem pequenos átomos
brilhantes34.
34
Transcrito de seu depoimento ao documentário O Homem do Morcego.
35
Em depoimento ao documentário Onde a Terra Acaba, Ruy Solberg relata as dificuldades que Mário Peixoto
impôs às suas tentativas de realização de A alma segundo Salustre, tendo chegando a exigir por protagonistas
Roberto Carlos e Brigitte Bardot.
36
MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e simulacro decadentista, p. 31
28
O período no qual Mário Peixoto isolou-se no Sítio do Morcego teria sido o mais
produtivo de sua literatura, na qual se pode vislumbrar um belo trabalho de construção de
imagens através das palavras, muitas das quais, remetem a Limite. Analisando sua obra
cinematográfica e literária como um todo, pode-se ter a interessante conclusão de indiscutível
homogeneidade: assim como Limite é um filme de imagens extremamente poéticas, a poesia
de Mário Peixoto é absolutamente visual.
37
PEIXOTO, Mário. Poemas de permeio com o mar, p. 79
38
MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e simulacro decadentista, p. 26
29
angústias e desilusão, e que estão em fuga, mas não têm para onde fugir – em sua condição de
náufragos à deriva, que, embora tenham um horizonte infinito como perspectiva, não possuem
referências de terra firme e encontram-se limitados à circunscrição do pequeno barco, para
somente na morte encontrar a redenção - uma alegoria para a limitação humana. Toda essa
tessitura fatalista de Limite aponta para o desfecho fúnebre, um tema recorrente nas obras
decadentistas.
Mário Peixoto vale-se do simbolismo para dar significação a imagens por primazia
subjetivas, conferindo-lhes um caráter poético indissociável para a compreensão do filme,
ainda que subentendido ou inconsciente, tornando-o impassível de interpretação vulgar.
Tome-se, por exemplo, as formas e movimentos circulares incessantemente presentes no
filme, provável evocação da irreversibilidade. As ações se iniciam e findam sem que as
personagens progridam a outro estado. O próprio filme se conclui com a cena inicial.
39
MELLO, Saulo Pereira de. Ver “Limite”, p. 87.
30
4. Conclusão
31
5. ANEXOS
32
33
34
35
5.2 – Entrevista de Saulo Pereira de Mello ao Jornal da PUC
Mário fez o filme entre amigos. Raul Schnoor, ator principal, e Brutus Pedreira, que cuidou da parte
musical, eram seus amigos de teatro. Edgar Brazil, fotógrafo, e Rui Costa, assistente, se tornaram
também grandes amigos de Mário. Limite foi um dos últimos filmes silenciosos no Brasil. Ficou pronto
em janeiro de 1931, já em vigor sonoro. O longa-metragem estreou por intermédio do Chaplin Club,
fundado por seus amigos de infância, entre eles, Octávio de Faria, seu consultor teórico de cinema, e
Plínio Süssekind Rocha, responsável pela primeira restauração da película na década de 60. Limite
jamais teve exibição comercial.
36
O criador de Limite vivia da herança da família rica e nunca trabalhou. Mário não queria ser cineasta.
Na verdade, queria ser escritor. De fato, como escritor teve mais obras concluídas e publicadas.
Publicou em 1931, Mundéu, livro de poemas que foi criticado por Octávio de Faria, Manuel Bandeira
e Mário de Andrade. Escreveu contos e até uma peça de teatro. Em 1933, Mário publicou um volume
de O inútil de cada um. Até pouco antes de morrer, em 1992, ele havia expandido de um para seis
volumes esse mesmo livro, acrescentando outros poemas e escritos. Desses, somente o primeiro foi
publicado. Outra obra importante de Mário, A alma segundo Salustre, é um roteiro cinematográfico.
Essa obra, que já teve os nomes de Maré Baixa e Sargaço, passou por quatro versões. A última
ganhou uma edição da Embrafilmes, em 1983. Os scenarios existentes e demais documentos e livros
de Mário estão no Arquivo Mário Peixoto, fundado em 1996 por Walter Salles. Mário morreu em seu
apartamento em Copacabana, recebendo ajuda financeira do próprio Walter Salles.
Saulo: O Mário, como todo artista extremamente talentoso, sofria pouca influência. Não que não
houvesse. Você está inserido num meio que aquilo entra pelos seus olhos. Mas ele tinha uma
inabilidade, quem dizia isso era o Paulo Emílio Salles Gomes, tinha uma inabilidade de copiar. Mas
ele sempre proclamava que o cinema alemão era muito chegado a ele. Filme alemão silencioso, é
claro. Era o cinema que ele mais gostava, mais via. Mas do cinema americano ele não pode ter
fugido à influência, porque era o cinema que todos nós víamos. Era o cinema que dominava o
mercado totalmente.
Saulo: Limite só foi possível, em primeiro lugar, porque ele tinha talento e muito talento. Em segundo
lugar, ele tinha dinheiro. Em terceiro lugar, ele tinha uma sorte, nasceu virado para a lua, porque
encontrou na vida dele um cara chamado Edgar Brazil. Na confluência dessas três coisas ele fez o
que quis, sem que ninguém enchesse a paciência dele. O Edgar Brazil era um homem
talentosíssimo. Era alemão, desenhista, mecânico, homem de laboratório, fotógrafo. Tem lá no
arquivo Mário Peixoto, um desenho dele, em plano médio, do Mário feito a carvão, por Edgar Brazil,
que é um primor. Mecânico, inventava aquelas traquitanas para a câmera fazer assim e assado. Ele
fazia tudo que podia para que a idéia de Mário pudesse ser realizada. Isso demonstra primeiro a
grandeza do caráter e, segundo, a compreensão cinematográfica do Edgar Brazil. Ele sabia que
aquilo era um menino de 22 anos, mas não era um idiota. Ele leu o roteiro e percebeu que tudo aquilo
tinha sentido.
37
JP: Por que Mário não queria dirigir o próprio scenario (roteiro)?
Saulo: O Adhemar Gonzaga dizia que o Mário era perseguido pelo demônio do tédio. Ele precisava
ter alguém que fosse o "espírito de orelha". O cara que fala "Vai!’, "Vamos, levanta!". Que desse
entusiasmo: "Você é bom! Porque você está aí?!" Esse homem era Brutus Pedreira, que, não
literalmente, pegava ele pela orelha e obrigava a trabalhar. Se ele pudesse, delegava tudo para todo
mundo. Delegou o próprio dinheiro e ficou pobre. E outro espírito de orelha que ele queria era eu (no
roteiro de Jardim Petrificado). Ele queria que eu fosse, simultaneamente, o Edgar Brazil, o Brutus
Pedreira e sei lá quem mais.
Saulo: Eu perguntei isso pra ele. Ele disse "Eu vi aquelas imagens e me deu aquela sensação de
limitação humana. Tudo preso, tudo limitado. Só podia ser Limite."
Saulo: A plástica é muito bonita, mas é menor. Muito bonita, mas como contribuição ao filme é
menor. Narrativa quase não existe. Aí você me pergunta "O que sobrou?". O ritmo. A direção dos
atores. A sucessão de imagens. A montagem.
Saulo: Um dia, Plínio exibiu Limite, na FNF, sem as três primeiras partes porque estavam se
deteriorando. Plínio veio até mim e disse "Se nós não fizermos alguma coisa, esse filme vai se
perder. Você vai deixar isso acontecer, Saulo?" Eu disse "Olha, professor, eu não sei, mas nós juntos
podemos tentar". Tentamos e conseguimos. Mas depois o filme começou a ter a síndrome do vinagre.
A hidrólise estava formando ácido acético no filme de acetato. Mas aí eu tinha um trunfo que era o
Walter Salles. E é ele quem está salvando Limite pela segunda vez. A minha colaboração foi mais
técnica e estética também porque eu sabia o quer era um contraste e tinha que manter isso para
conservar a textura do filme. Plínio era um homem catedrático que queria um garoto de 17 anos na
tarefa. Ele me dava algum valor. Mas foi Plínio quem mobilizou todo mundo.
Edição 198
Publicada em: 29/04/2008
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5.3 – Além do Limite
A primeira vez que vi Limite, fiquei maravilhada, embora confesse, não ter entendido
muita coisa. Apenas do pouco que pude apreender – da narrativa, ou da ausência dela –,
causou-me algum estranhamento. E a beleza da sucessão de imagens que se passara diante
dos meus olhos, um profundo êxtase. Não estava preparada para a profusão de
significados que impregnam aqueles fotogramas, nem a maneira como reverberariam em
minha sensibilidade anestesiada na era do videoclipe. Hoje, entreguei-me inconsciente...
Então pude sentir a película permeada de poesia. Um tempo único de narrativa poética. O
kine-poema de Vertov era inteiro sobre Limite, na exata proporção em que Limite é inteiro
sobre o ser humano. O ser humano dilacerado, à deriva com seus medos e culpas, remando
em círculos com um único remo. Limite é todo sobre a inexistência do tempo. Essa ilusão
rítmica a que a humanidade se agarra como que a um último remo, como se sempre
tivéssemos uma última chance. E nos ensina que o andamento do tempo pode ser diferente
pra cada um. Muitos podem não entender o andamento de Limite, mas ainda que não
entendam, certamente encontram familiaridade - porque trata de um tempo orgânico,
visceral e alheio a relógios, impossível de fracionar, posto que não pode se contar em
segundos. Para ver Limite é preciso abraçar a afirmação tácita da não existência de tempo.
O tempo nada mais é que um fator de pressão e coação, nossas algemas imaginárias, sem
chaves pra redenção. A humanidade vive sob o jugo do tempo algoz que inventou. O
tempo, que não passa de uma inconcretude metafísica, é esse Limite que nos impomos.
Faz de nossas vidas nau à deriva, sem fuga possível... Impossível um mergulho impune:
captar a essência de Limite é um despertar da consciência. Limite é uma advertência.
39
6. REFERÊNCIAS
CASTRO, Emil de. Jogos de Armar: a vida do solitário Mário Peixoto, Rio de Janeiro:
Lacerda Ed., 2000.
FARIA, Octavio. Eu creio na imagem. In: O Fan, nº 6. Rio de Janeiro, 1929 apud HERTZ,
Constança. Do grupo de cinema à teoria literária: O debate do Chaplin Club.
GIANNINI, Napoli. Storia del Cinema Muto (A. Camusso, Trad.) Buenos Ayres: Editorial
Universitária de Buenos Ayres, 1967.
MELLO, Saulo Pereira de. Mário Peixoto; Catálogo. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa,
1996.
__________. Limite, de Mário Peixoto. In Revista Brasil – A poesia em 1930 – Ano 5, nº.11
Rio de Janeiro: RioArte /Fundação Rio, 1930.
__________. Mário Peixoto: escritos sobre cinema. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000.
40
MORAES, Vinicius de. O Cinema de meus olhos. Organização, introdução e notas: Carlos
Augusto Calil – São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
NOBRE, Ana Luiza. Um modo de ser moderno, São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
PEIXOTO, Mário. O inútil de cada um. Volume 1. Rio de Janeiro: Record, 1984.
__________. Poemas de permeio com o mar. Rio de Janeiro: Aeroplano editora, 2002.
PESSOA, Ana. Carmen Santos: o cinema dos anos 20. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
__________. Do grupo de cinema à teoria literária: o debate do Chaplin Club. In: VIII
Congresso Internacional da Abralic - Mediações, 2002, Belo Horizonte.
__________. Mário Peixoto: imagens de permeio com o mar. Poesia Sempre, Rio de Janeiro,
v. 14, p. 199-210, 2001.
__________. O Chaplin Club e a crítica de cinema no Brasil. Cultura Crítica (Apropuc - SP),
v. 1, p. 15-19, 2006.
41
ROIZMAN, Geraldo Blay. Mário Peixoto, um olhar fenomenológico, 2003. Dissertação –
(Mestrado em Artes Visuais) – Instituto de Artes Visuais Universidade Paulista – UNESP,
São Paulo, 2003.
PAPOULA, Talita. Entre dândis e decadentistas, uma possível Salomé: uma leitura de A
confissão de Lúcio, de Mario de Sá-Carneiro, v. 2, p. 5, 2008.
Disponível em:
<http://www.fw.uri.br/publicacoes/literaturaemdebate/literaturaemdebatev2n3/index.html>
Series: 3; ISSN/ISBN: 19825625.
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6.3 REFERÊNCIAS FÍLMICAS
Limite
(Brasil, 1931. Drama, 120 minutos: 35 mm, PB, mudo).
O Homem do Morcego
(Brasil, 1980. Documentário, 20 minutos: 35 mm, PB).
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