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O perspectivismo de Nietzsche
e a compreensão

Mauro Araujo de Sousa


Doutor em Filosofia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Docente da graduação da Faculdade Cásper Líbero
E-mail: masousa@casperlibero.edu.br

Há muito que a ciência vem se fragmen-


Resumo: O perspectivismo de Nietzsche aponta para um sem- tando, o mesmo tendo acontecido com a tec-
-número de perspectivas, para a multiplicidade de pontos de
vista sobre uma mesma coisa, para o alcance de uma melhor nologia – o que, por sua vez, gera uma hierar-
compreensão sobre algo e para novas possibilidades interpre- quia de áreas no interior da ciência como um
tativas. O caminho para a compreensão dos aspectos mais re-
levantes da proposta nietzscheana, neste trabalho, se dá pela
todo. A fragmentação foi distanciando as áre-
via do método de análise e síntese dos conceitos da filosofia de as entre si e, dentro de cada uma dessas áreas,
Nietzsche, com o propósito de indicar a viabilização de uma as disciplinas umas em relação às outras. Esse
epistemologia compreensiva perspectivada em Comunicação.
Palavras-chave: Comunicação, a compreensão como método, processo se aprofundou tanto que hoje apare-
epistemologia da compreensão perspectivada, Nietzsche. cem movimentos contrários a essa verdadeira
El perspectivismo de Nietzsche y la comprensión
tradição de pensamento, preocupados em re-
Resumen: El perspectivismo de Nietzsche señala para una infi- articular áreas e disciplinas do conhecimento.
nitude de perspectivas, para la multiplicidad de puntos de vista Um dos exemplos dessa tendência é o que
sobre una mesma cosa, para el alcance de una mejor compren-
sión sobre algo y para nuevas posibilidades de interpretación. chamamos de interdisciplinaridade.
El camino para la comprenión de los aspectos más relevantes A busca por diálogo entre as áreas da
de la propuesta nietzscheana, en este artículo, presentase por
medio del método de análisis y síntesis de los conceptos de la
ciência ou por um diálogo entre as distintas
filosofía de Nietzsche, con el propósito de indicar la viabilidad ciências tem se transformado, de fato, em
de una epistemología comprensiva perspectivada en la Comu- alvo de muitos estudos. O projeto de pes-
nicación.
Palabras clave: Comunicación, la comprenión como método, quisa “A compreensão como método” repre-
epistemología de la compreensión perspectivada, Nietzsche. senta um dos esforços mais próximos nesse
Nietzsche’s perspectivism and comprehension
sentido. É que no bojo dessas divisões entra
Abstract: Nietzsche’s perspectivism points to an infinite também o dado da tecnologia, hoje cada vez
amount of perspectives, to the myriad of points of view on the mais relevante, particularmente no campo
same subject, to the achievement of a better comprehension
of something and new possibilities of interpretation. In this das ciências não humanas.
essay, the path to a comprehension of the most relevant aspects
of Nietzsche’s proposal is paved by the analysis and synthesis
of the conceptos from Nietzsche’s philosophy, aiming to stress Carência de dialogia
the viability of a perspectivated comprehensive epistemology
of Communication. E foi assim que a ciência, no singular,
Keywords: Communication, comprehension as a method,
epistemology of perspectivasted comprehension, Nietzsche. acabou por assumir uma posição absoluta,

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desde o movimento conhecido como cienti- É nesse contexto que o perspectivismo de


ficismo do século XIX – de onde, por conse- Nietzsche, esse aprender a olhar e a sentir a
quência, surge o tecnicismo. Hoje, o cientifi- partir de diferentes perspectivas ou pontos de
cismo advindo da postura do positivismo de vista, pode contribuir para a promoção do di-
August Comte (1798-1857), somado ao tec- álogo entre perspectivas – o que não significa
nicismo que resulta dessa perspectiva cien- aceitá-las de antemão, sem crítica ou autocrí-
tificista, impera. A sociedade se autointitula tica. Na percepção de Nietzsche, no caso do
tecnológica, mas é, na verdade, tecnicista. A perspectivismo, não se trata simplesmente de
fragmentação do saber se instaurou. somar perspectivas. O que se deve fazer, a par-
Sob esse ponto de vista, o que houve tir da perspectiva em que o sujeito se encon-
com a filosofia? Ela se tornou “filosofia apli- tra, é permanecer aberto a um olhar múltiplo,
cada”, tendo sido afastada de seu papel emi- uma amplitude em que, compreensivamente,
o olhar se transforma em olhares diversos,
nentemente crítico. Ela assume, por exem-
possibilitando, assim, o aumento da percep-
ção e da potência do olhar.
Permanecer aberto a um Desse modo, o perspectivismo pode cola-
olhar múltiplo, uma borar para a prática da compreensão, sendo
inclusive assumido como método da própria
amplitude em que,
compreensão. Nesse caso, uma epistemologia
compreensivamente, da compreensão desponta no espaço de vi-
é possibilitado o vências diferenciadas, e o diálogo epistemo-
aumento da percepção lógico passa a ser concebido no seio de uma
e da potência do olhar epistemologia da compreensão perspectivada.

Perspectivismo e relativismo
plo, uma natureza epistemológica, uma vez
que, em nosso tempo, a epistemologia só é Uma compreensão perspectivada do
aceita quando reconhece a importância das conhecimento, sob a chave do filóso-
ciências e das tecnologias, no sentido antes fo de Röcken, portanto, não se dobra ao
indicado. cientificismo e ao tecnicismo que vigoram
E, nesse contexto sociocultural, a socieda- desde o século XIX, no qual ele viveu. Por
isso, o perspectivismo de Nietzsche tem mui-
de de modo geral, em todos os seus espaços,
to a contribuir para a compreensão como
se torna cada vez mais carente de diálogo.
método dialógico. Ele gera uma abertura
Não são poucos, porém, os que conseguem
para a Comunicação enquanto área capaz de
sentir e perceber que, sem diálogo e bom
agregar e de exercitar o diálogo entre os mais
senso, em todos os campos do saber e da prá-
diversos conhecimentos e modos humanos
tica, nosso destino não pode ser outro que a de saber, como a própria ciência com suas
autodestruição. infindáveis distinções, a tecnologia, a filoso-
Essa condição deplorável é vista por mui- fia, as artes, as experiências do cotidiano etc.
tos como progresso ou avanço científico e Dentro das condições de tempo e espaço
tecnológico. Isso constitui um sinal evidente que se oferecem neste texto, o caminho per-
de que, a despeito de tentativas de diálogo, corrido é o do método de análise e síntese no
o cientificismo ainda tem força, como tem estudo de conceitos de Nietzsche. O esmiu-
uma imensa força o tecnicismo, seu “filho”, çamento desses conceitos e a síntese a que
em detrimento da formação humana e inte- se aspira devem reuni-los, no final, numa
gral do cidadão (Sousa, 2013, p. 67). abordagem da compreensão como método,

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resultando daí uma epistemologia da com- tudo isso pede que se imagine um olho que
preensão perspectivada. O método de aná- não pode absolutamente ser imaginado,
lise e síntese, que nos auxilia no estudo de um olho voltado para nenhuma direção, no
qual as forças ativas e interpretativas, as que
algumas das propostas teóricas do filósofo
fazem com que ver seja ver-algo, devem es-
alemão, é eminentemente filosófico. tar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho,
Não raras vezes, o perspectivismo de portanto algo absurdo e sem sentido.
Nietzsche é confundido com puro relativis-
mo, do tipo de que nada serve, ou de que Nietzsche insiste que “existe apenas uma
nada vale, já que as perspectivas são variá- visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’
veis. O próprio filósofo alemão, porém, não perspectivo”, e conclui dizendo que :
vê as coisas desse modo. Ele esclarece, em sua
Genealogia da moral (2002a, p. 108-109),1 o quanto mais olhos, diferentes olhos, sou-
que entende por perspectivismo: bermos utilizar para essa coisa, tanto mais
completo será nosso “conceito” dela, nos-
Devemos afinal, como homens do conheci- sa “objetividade”. Mas eliminar a vontade
mento, ser gratos a tais resolutas inversões das inteiramente, suspender os afetos todos
perspectivas e valorações costumeiras, com sem exceção, supondo que o conseguísse-
que o espírito, de modo aparentemente sa- mos: como? – não seria castrar o intelecto?
crílego e inútil, enfureceu-se consigo mesmo (2002a, p. 108-109).
por tanto tempo: ver assim diferente, querer
ver assim diferente, é uma grande disciplina Como é possível notar, Nietzsche critica
e preparação do intelecto para a sua futura a razão metafísica e um sujeito desvincula-
“objetividade” – a qual não é entendida como
do de suas vísceras, dos afetos que o atraves-
“observação desinteressada” (um absurdo
sem sentido), mas como a faculdade de ter
sam. Não existe, para ele, nada “em si”, pois
seu pró e seu contra sob controle e deles poder em tudo que “conhecemos” colocamos os
dispor: de modo a saber utilizar em prol do interesses que residem em nós, nossos sen-
conhecimento a diversidade de perspectivas e timentos mais íntimos, nossos subterrâne-
interpretações afetivas. os, para fazer uma alusão a Dostoievsky em
Memórias do subsolo (2000).
Os grifos são do próprio Nietzsche. No
mesmo trecho, ele convoca os “senhores fi-
Pequena e grande razão
lósofos”, daí em diante, a se guardarem bem
“contra a antiga, perigosa fábula conceitual Nietzsche questiona o dualismo que sem-
que estabelece um ‘puro sujeito do conheci- pre imperou na metafísica. Nela, corpo e
mento, isento de vontade, alheio à dor e ao vontade, com suas pulsões, foram, segundo
tempo’”. E prossegue: ele, relegados a um plano inferior em favor
de uma “razão pura”. Como se isso fosse pos-
Guademo-nos dos tentáculos de conceitos sível, argumenta Nietzsche. Como se a razão
contraditórios como “razão pura”, “espiri-
fosse desvinculada do corpo, sua grande ra-
tualidade absoluta”, “conhecimento em si” –
zão (Große Vernunft), ele escreve, em Assim
1
Na importante convenção Coli/Montinari para os estudos da falou Zaratustra (2003, p. 60).2
obra de Nietzsche, a Genealogia da moral: uma polêmica apa- Isso que denominamos razão não pas-
rece sob a sigla GM/GM, em que a primeira sigla indica a
origem do alemão e a segunda sigla indica a tradução para o
sa, para ele, de um instrumento, algo
português. No caso dessa obra, as siglas são as mesmas, o que,
na maioria dos casos (outras obras), não acontece. As referên-
cias finais trazem o que essa convenção determina para cada 2
Assim falou Zaratustra ou Assim falava Zaratustra? Em
uma das obras de Nietzsche citadas neste texto. Entretanto, termos da tradução do alemão para o português, Assim falou
aqui, por ser um trabalho destinado à área de Comunicação, (...) ou Assim falava (...), perfeito ou imperfeito, não implica
optamos por manter a forma tradicional de citação, ou seja, de mudança de sentido do alemão Also sprach Zaratustra. São
acordo com as normas da ABNT. encontradas as duas traduções.

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assim como um pequeno brinquedo nas


Além-do-homem
mãos da grande razão, que é o corpo.3 São
forças ativas e interpretativas no corpo É nesse contexto que o diálogo nem sem-
que disparam pensamentos e nos induzem pre é tranquilo. Na maioria das vezes, não o
a imaginar que somos “senhores de nós é. O que não significa que não seja possível.
mesmos”, “sujeitos” de uma razão ilibada. “Trata-se de perceber algo se relacionando
Não costumamos facilmente admitir que, com perspectivas diversas até que se forme no
enquanto “eu”, “razão” e coisas do gênero observador uma perspectiva mais rica a respei-
constituímos pura ficção. Porém, é essa fic- to de um determinado assunto” (Sousa, 2013,
ção que nos permite expressar em conceitos p. 73), o que exige um grande esforço. Aprender
os nossos conhecimentos. a tranquilidade na luta é um enorme desafio,
Ora, o perspectivismo se abre para outras enfrentado pelo próprio Nietzsche, como ele
perspectivas, o que não significa, mais uma deixa transparecer em A gaia ciência:
vez, que toda e qualquer perspectiva seja vá-
lida, como não são, por exemplo, sob o pon- Para o Ano Novo. – Eu ainda vivo, eu ainda
to de vista de Nietzsche, as perspectivas do penso: ainda tenho de viver, pois ainda te-
antropocentrismo e do “ratiocentrismo”. Já nho de pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo
que diálogo implica também problematiza- sum [Eu sou, portanto penso: eu penso,
ção, aprender a ver de outra perspectiva não portanto sou]. Hoje, cada um se permite
significa abrir mão da própria perspectiva, e expressar o seu mais caro desejo e pensa-
nem necessariamente ampliá-la por meio da mento: também eu, então, quero dizer o
que desejo para mim mesmo [...]. Quero
soma com outras perspectivas.
cada vez mais aprender a ver como belo
O que importa, no fundo, é saber que há aquilo que é necessário nas coisas: – assim
outras perspectivas, diferentes. Uma nova me tornarei um daqueles que fazem belas
perspectiva não precisa, no entanto, ser acei- as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja,
ta, se se constatar que fere uma vivência. este, doravante, o meu amor! Não quero
Esta, por sua vez, nada tem de relativa, como fazer guerra ao que é feio. Não quero acu-
se se tratasse de qualquer vivência, um “tanto sar, não quero nem mesmo acusar os acu-
faz como tanto fez”. sadores. Que a minha única negação seja
Complementando, o perspectivismo não desviar o olhar! E, tudo somado e em suma:
implica ter que renunciar a algo que se expe- quero ser, algum dia, apenas alguém que
diz Sim! (2001, p. 187-188).
rimentou como necessário para o corpo com
suas necessidades vitais, para aquilo que é a
vida aqui e agora, a vida terrena, já que qual- É muito difícil, para Nietzsche, conviver
quer outra vida não passaria de pura espe- com o que o contraria, com perspectivas que
culação. E isso, em Nietzsche, é muito forte. não lhe dizem respeito, mas o próprio filó-
Ele é também um crítico da metafísica que sofo soube se superar. Não é fácil, também,
nega o movimento imperioso do devir, o aceitar sem ser conformista e acolher o que
qual sustenta que tudo se transforma cons- a vida propõe.
tantemente neste nosso planeta. Por isso, os Um exemplo: para Nietzsche, nosso cor-
conceitos não devem jamais negar as necessi- po é nosso destino e, por isso, não adianta
dades do corpo na condição da grande razão desprezá-lo ou querer outro corpo. É preciso
de nossa vida. afirmar esse corpo e cuidar dele para que ele
tenha forças. É preciso amar esse “destino”.
Porém, isso nem de longe representa não de-
sejar de corpo inteiro uma mudança do con-
3
Werkzeug deines Leibes ist auch deine kleine Vernunft (Ins-
trumento do seu corpo é também sua pequena razão), ele es-
texto em que se vive, uma transformação em
creve (2003, p. 60). si e no modo de ver as coisas.

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Sendo assim, o que é, então, necessário a chave do perspectivismo (...) de Nietzsche e


na vida? A resposta: viver o devir, as trans- no “coração” da compreensão como método,
formações, as mudanças de todo tipo, e nis- solicita e exige constantemente um abrir-se a
so também se mostra o perspectivismo de novas experiências.
Nietzsche, essa marca forte de sua filosofia. O ato de compreender toma, assim, outro
O perspectivismo representa uma ne- rumo. Ele se torna um caminho sem o qual
cessidade para o próprio crescimento, para as perspectivas não se efetivam enquanto di-
o crescimento de toda e qualquer perspecti- álogo, tanto em relação a um tipo humano
va que se abre ao perspectivismo vital que a específico como a inúmeros tipos humanos.
própria existência carrega consigo. Significa Todos esses tipos humanos não passam, por
entrar em contato com outras perspectivas e
aprender a sentir a vida por diversos ângulos,
inclusive para percebê-la como própria. Esta, A própria compreensão
com efeito, é uma perspectiva nada relativa,
nada “tagarela”, mas vital e necessária.
como método estabelece
Significa, em suma, tornar-se o que se é, a comunicação entre as
o que nos remete ao entendimento do subtí- perspectivas do conhe-
tulo da autobiografia do filósofo: Ecce homo: cer; uma aprendizagem
como alguém se torna o que é, e que lembra a que consiste em ver por
famosa frase de Píndaro: “Chega a ser o que múltiplos olhares
é”. Chegar a ser o que se é, também, no sen-
tido de tornar-se mais forte, não como um
“super-homem” (é importante evitar essa sua vez, de configurações estabelecidas por
tradução para o conceito de Übermensch, relações de forças no seio de um movimen-
largamente utilizado por Nietzsche), mas to vital, vistos a partir da teoria das forças
como um novo homem, um homem que (Theorie der Kräfte) de Nietzsche.
se suplantou. Um “além-do-homem”, numa E se Nietzsche não trabalha com a con-
tradução mais apropriada. cepção de “sujeito” (não há em sua filosofia,
como adiantamos, um lugar para o antro-
 pistemologia da compreensão
E pocentrismo e nem para o “ratiocentrismo”,
perspectivada isto é, a razão no centro) e estamos tratando
de uma epistemologia perspectivada, o que
A concepção de uma teoria do conheci-
dizer a respeito do que denominamos inter-
mento na linha de uma compreensão pers-
pretações (Interpretationen)?
pectivada revela-se já no fato de que a própria
Não se trata de algo simples lidar com
compreensão como método estabelece a co-
as questões que a interpretação levanta.
municação entre as perspectivas do conhecer.
Isso faz do perspectivismo uma aprendiza- Primeiro porque não é fácil acrescentarmos
gem que consiste em ver por meio de múlti- outras perspectivas ao nosso modo de ver
plos olhares. Ou, ainda, a experiência de se ter as coisas e de conceber o que o próprio ato
vivenciado situações nas quais, mesmo frente de interpretar significa. Não é fácil, tam-
ao niilismo – essa ausência total de sentido em bém, pensarmos o perspectivismo como
tudo e para tudo –, se torna possível uma epis- uma maneira de entender toda e qualquer
temologia que remeta ao olhar perspectivista, perspectiva como interpretação e, muitas
um ver para além de si próprio. vezes, a diversidade de tipos de relações en-
Uma epistemologia da compreensão pers- tre as perspectivas que povoam as nossas
pectivada, isto é, da teoria do conhecimento sob próprias relações.

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Querer interpretar é querer se efetivar, fa- disso, estreitou a visão perspectivista no hu-
zer-se presente, marcar posição, aparecer no mano, reduzindo-o à condição de cego, ou
mundo. E o tipo humano precisa perceber quase cego, e, quem sabe?, tornando-o cego
que isso acontece com ele, dentro e fora dele, em relação a si e aos outros, em relação às
e que, quando está interpretando algo, como, coisas e, sobretudo, em relação ao que é vital,
por exemplo, um texto, está atuando como ao que fortalece a vida.
uma configuração ampla de forças. Portanto, O exemplo a seguir mostra o quanto
não é simplesmente “um sujeito” quem in- Nietzsche estava atento às questões que en-
terpreta, como se entende tradicionalmente volvem o trabalho humano e a como esse
o ato interpretativo. trabalho é aplicado e exercido, de modo per-
nicioso. Lendo sua época, ele trata do que
chama de “atividade maquinal”:
O perspectivismo leva o Está fora de dúvida que através dela [a ati-
humano a uma abertura vidade maquinal] uma existência sofredora
do seu leque de é aliviada num grau considerável: a este
interpretações sobre o fato chama-se atualmente, de modo algo
desonesto, “a benção do trabalho”. O alívio
seu viver e suas relações consiste em que o interesse do sofredor é
com os outros e com inteiramente desviado do sofrimento – em
o mundo que a consciência é permanentemente to-
mada por um afazer seguido do outro, e
em consequência resta pouco espaço para
o sofrimento [para se entender o sofrimen-
O corpo pensa to]: pois ela é pequena, esta câmara da
consciência humana! A atividade maquinal
O perspectivismo de Nietzsche oferece- e o que é próprio – a absoluta regularidade,
-nos, mais ainda nos tempos atuais, condições a obediência pontual e impensada, o modo
de refletirmos sobre como a sociedade se or- de vida fixado uma vez por todas, o preen-
ganiza. Estamos, de muitas formas, proibidos chimento do tempo, uma certa permissão,
de pensar e impedidos, assim, de alcançar mesmo educação para a “impessoalidade”,
uma visão mais ampliada e, por consequên- para o esquecimento de si, para a “incuria
cia, mais “objetiva” das coisas e das próprias sui” [...] (2002a, p. 123-124. Acréscimos e,
relações sociais. Isso repercute na universida- aqui, grifo meu).
de, lá onde uma visão míope de ciência domi-
na os territórios do conhecimento. Aliás, co- Como podemos tratar de teoria do co-
nhecimentos tão fragmentados e incapazes de nhecimento nos moldes de uma epistemolo-
dialogar e de se comunicar entre si, que aca- gia da compreensão perspectivada sob con-
bam consolidando o cientificismo dominante dições que permitem uma “educação para a
em amplos espaços acadêmicos. impessoalidade”, uma falta de cuidado de si,
Nesse sentido, e ao contrário do que ou em que faltará ao tipo humano o cultivo
muitos pensam a respeito de Nietzsche, ele do próprio caráter, sua autenticidade vital,
estava muito atento ao que acontecia na so- chegando este a cair no abismo do esqueci-
ciedade. Esta, segundo ele, criou um valor mento de si?
para o trabalho e, inclusive, uma justificativa Que tipo de educação é essa que faz defi-
“religiosa” para arrancar do tipo humano a nhar as forças humanas, alterando as relações
ele submetido, sob o jugo da indústria e do das forças que, segundo a teoria das forças de
mercado e em nome do trabalho, toda a sua Nietzsche, configuram o tipo humano, já que
energia, seu pensar e o cuidado de si. Além o mundo não é outra coisa do que vontade de

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potência (Der Wille zur Macht)?4 Uma educa-


Forças, energias interpretam
ção com base em um saber nietzschiano pos-
sibilita uma episteme perspectivada. Dá para Tudo isso nos remete novamente à questão
imaginar como é forte a decadência promovi- da interpretação. E, se quisermos tratar de in-
da pelo cientificismo nos dias atuais. terpretações sob o ponto de vista de uma epis-
Não podemos esquecer o que somos para temologia da compreensão perspectivada, en-
Nietzsche. Caso contrário, todo esse trabalho contra-se aqui o desafio de se olhar também
por compreensão sob a ótica de seu perspec- sob a perspectiva de Nietzsche. A proposta de
tivismo acaba por se tornar “um grande em um diálogo com a interpretação dele.
vão”. Ele escreve, em Além do bem e do mal: E não esqueçamos que a própria “estrutu-
ra social de muitas almas” (“Gesellschaftsbau
[...] nosso corpo é apenas uma estrutura vieler Seelen”) é um campo de batalhas. A pró-
social de muitas almas – à sua sensação de
pria “estrutura” se manifesta como um con-
prazer como aquele que ordena. L’effect c’est
moi [o efeito sou eu]: ocorre aqui o mesmo junto de movimentos, de lutas. A qualquer
que em toda comunidade bem construída momento a estrutura pode ruir. Porque, para
e feliz, a classe regente se identifica com os Nietzsche, o mundo não é outra coisa que
êxitos da comunidade. Em todo querer a vontade de potência (1998, p. 43). Nada mais.
questão é simplesmente mandar e obede- A interpretação se dá em meio a relações de
cer, sobre a base, como disse, de uma es- forças. Trata-se de energias interpretando.
trutura social de muitas “almas”: razão por
que um filósofo deve se arrogar o direito de A vontade voltada para o poder interpre-
situar o querer em si no âmbito da moral – ta: na formação de um órgão trata-se de
moral, entenda-se, como a teoria das rela- uma interpretação: delimita, determina
ções de dominação sob as quais se origina graus, diferenças de poder. Meras diferen-
o fenômeno “vida” (1998, p.25). ças de poder ainda não poderiam perceber
a si mesmas como tais: é preciso haver aí
Não há um “eu”, uma “alma” (Seele), mas um algo-que-quer-crescer, o qual inter-
muitas. “Almas” no corpo (Leib) todo. E o preta todo e qualquer outro-que-queira-
que seria a “alma” na perspectiva da razão -crescer segundo o seu valor. Iguais nisso
humana? Um centro de forças, de comando, – Interpretação é ela mesma, na verdade,
sobre outros centros de forças espalhados um meio de se apoderar de algo (O processo
orgânico pressupõe permanente interpretar)
pelo corpo. No “comando”, o humano tem,
(2002b, p.159. Os grifos são do próprio
de repente, a impressão de que seus pensa- Nietzsche e do tradutor Flávio Kothe).
mentos fazem dele um ser racional, e que
existe então um “eu”, uma “alma”. Por uma “janela”, um olhar, e por ou-
Com essa sensação de que somos um “eu”, tra, outro olhar... e assim por diante. Eis
traçamos juízos. Há uma valoração de tudo, o desafio de uma epistemologia da com-
como fruto de avaliações que fizemos e faze- preensão perspectivada, da junção entre o
mos constantemente. Mas o “eu”, a “alma”, o perspectivismo nietzschiano e a compreen-
“sujeito” é uma espécie de “efeito”, um acaso são como método nos espaços da área da
do corpo, dos impulsos desse corpo (Triebe, Comunicação. Como sempre, sob a pers-
que é, antes de tudo, Triebkräfte, impulso / pectiva nietzschiana, está se falando de pos-
pulsão / instinto – Instinkt – como forças). sibilidades... de desafios.
Dessa forma, o corpo todo pensa. Ver o conhecimento como vontade de po-
tência pode não ser um exercício acadêmico
tão fácil... E, escreve Nietzsche, “não se deve
4
Der Wille zur Macht, vontade para o poder ou vontade de perguntar ‘quem, afinal, está interpretando’,
poder. Nietzsche não usou Potenzwille (vontade de potência),
mas esta acabou por se tornar a tradução majoritária. porém a própria interpretação, como uma

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forma de vontade de potência, tem existên- nietzschiano aponta para uma ampliação da
cia como um afeto (mas não como um ‘ser’, visão de mundo. Propõe uma aprendizagem
e sim como um processo, um devir)” (2002b, sobre como enxergar esse mundo a partir
p. 159-160). de diversas perspectivas, alcançando desse
Novamente, estamos às voltas com a ques- modo uma compreensão melhor da própria
tão do devir, marca de uma filosofia de tipo compreensão em cada perspectiva.
dionisíaco, o que quer dizer: do devir, do eter- O perspectivismo, portanto, leva o hu-
no devir a que se está sujeito. E se a filosofia de mano a uma abertura do seu leque de inter-
Nietzsche é uma filosofia do devir, ela não age, pretações sobre o seu viver e sobre as suas
como acontece na maior parte da tradição fi- relações com os outros e com o mundo. O
losófica, como uma filosofia do ser. perspectivismo não encarcera a visão, o
Interpretar, portanto, é também movimen- sentir. Ele torna crítica uma pessoa, não per-
to, devir, transformação, mudança de sentido. mitindo que ela permaneça fechada em sua
Isso deve ser incluído na concepção de uma própria perspectiva.
Daí podermos afirmar e confirmar o en-
teoria do conhecimento com base na ideia da
lace entre compreensão e perspectivismo.
compreensão enquanto método de diálogo.
Mais ainda, podemos considerar, inclusive
para futuras e novas discussões acadêmicas,
Considerações finais a pertinência do perspectivismo de Nietzsche
para uma reflexão sobre a própria teoria do
Voltemos, para finalizar, ao tema da conhecimento.
compreensão como método de diálogo e, Sem contar que outras discussões, por
particularmente no mundo acadêmico, do exemplo sobre a relação entre sujeito e obje-
discurso dialogal entre as áreas do conheci- to, na pesquisa filosófica e científica, podem
mento e das diversas ciências e disciplinas ser reconsideradas sob a ótica do conheci-
entre si. Parece oportuno considerar o pers- mento enquanto afeto. Isso tudo deixa este
pectivismo de Nietzsche como efetivação texto inconcluso, porém prospectivo.
desse diálogo. Com efeito, o perspectivismo (artigo recebido jun.2016/aprovado set.2016)

Referências

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Mauro Araujo de Sousa – O perspectivismo de Nietzsche e a compreensão

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