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Artigo CONFLUÊNCIAS

DESAFIOS À CAPACIDADE REDISTRIBUTIVA DO DIREITO EM CONTEXTOS PÓS-COLONIAIS


Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito
ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558

DESAFIOS À CAPACIDADE REDISTRIBUTIVA


DO DIREITO EM CONTEXTOS PÓS-COLONIAIS
Ronaldo Lobão
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da
Universidade Federal Fluminense (UFF).
E-mail: ronaldolobao@yahoo.com.br

RESUMO
Neste artigo procuro questionar o sentido redistributivo do direito em sociedades que, além de
não terem universalizados os direitos civis, econômicos e de solidariedade, possuem lógicas de
organização social próprias e, além disso, são resultado de modelos coloniais particulares, como é o
caso do Brasil. Começo com uma contextualização do momento pós-colonial brasileiro. Esta con-
textualização procura levar em conta a trajetória recente de nossa sociedade, desde o século XIX
até os desdobramentos da Constituição de 1988. Concluo este tópico com alguns aportes teóricos
sobre modelos e lógicas de organização social que permitem uma melhor compreensão de meu
argumento. Passo a uma conceituação sobre bem público, bem coletivo e bem particular apoiado
na ciência política. Com tais aportes, passo a um questionamento sobre uma possível classificação
entre políticas distributivas e redistributivas, com vistas a preparar meu argumento final que diz
respeito à incapacidade do direito monista ter tanto a capacidade distributiva quanto a redistribu-
tiva de forma equânime em sociedades pós-coloniais como a brasileira.

ABSTRACT
In this article I wonder about the redistributive effect of law in societies that, besides not having
universalized civil, economic and solidarity rights, have their own logics of social organization and
are, furthermore, the result of specific colonial models, such as Brazil. I begin contextualizing the
Brazilian post-colonial period. This contextualization takes into account recent trends of our socie-
ty, from the nineteenth century to the developments of the 1988 Federal Constitution. I conclude
this topic with some theoretical contributions on models and logics of social organization that allow
a better understanding of my argument. I move then into a conceptualization of public goods, col-
lective goods and private goods from a Political Science perspective. Such contributions allow me to
question about a possible classification between distributive and redistributive policies, in order to
prepare my final argument which forwards the monist legal system as incapable to present distribu-
tive and redistributive abilities in| an
CONFLUÊNCIAS equal
Revista basis in post-colonial
Interdisciplinar de Sociologiasocieties
e Direito. such asnºthe2, Brazilian
Vol. 16, one.61
2014. pp. 61-79
LOBÃO, Ronaldo

INTRODUÇÃO distributiva quanto a redistributiva


Neste artigo procuro questionar o de forma equânime em sociedades
sentido redistributivo do Direito em so- pós-coloniais como a brasileira.
ciedades que, além de não terem univer-
salizados os direitos civis, econômicos O CONTEXTO PÓS-COLONIAL
e de solidariedade, possuem lógicas de BRASILEIRO
organização social próprias e, além dis- Há ampla literatura sobre estudos
so, são resultado de modelos coloniais pós-coloniais em países de colonização
particulares, como é o caso do Brasil. espanhola, mas quase nada no Brasil.
Começo com uma contextualização Acredito que este silêncio se deva à for-
do momento pós-colonial brasileiro, ma peculiar como interpretamos a cons-
com algumas implicações no relaciona- trução do Estado e da Nação brasileira.
mento com diretivas internacionais de Nunca formamos uma “comunidade
direitos humanos, como a Convenção política imaginada” como foi definido
169 da Organização Internacional do o Estado Nação europeu do século XIX
Trabalho (OIT). Esta contextualização . Nossa unidade linguística foi forçada
procura levar em conta a trajetória re- pelo colonizador e pelo Império – proi-
cente de nossa sociedade, desde o sé- bindo o uso do Nheengatu, língua geral
culo XIX até os desdobramentos da construída pelos Jesuítas e os primeiros
Constituição de 1988. Concluo este tó- colonos – para controlar melhor uma
pico com alguns aportes teóricos sobre massa de não falantes do português – no-
modelos e lógicas de organização social tadamente os índios e os escravos - que
que permitem uma melhor compreen- poderia comprometer o domínio colo-
são de meu argumento. nial em áreas tão extensas. Invertemos
Passo a uma rápida conceituação a lógica de outros modelos coloniais,
sobre bem público, bem coletivo e bem como descrito por Johannes Fabian1.
particular apoiado na ciência política e Demoramos vários séculos até nos
em instigante ensaio de Enrique Dussel, preocupamos com a universalização
que permite ampliar o horizonte cogni- da capacidade de ler e escrever, nunca
tivo e classificatório para esses bens. tivemos uma imprensa em âmbito na-
Com tais aportes passo a um cional e muito menos construímos um
questionamento sobre uma possível pensamento social brasileiro original.
classificação entre políticas distri- Frente a outros modelos educacionais
butivas e redistributivas, com vistas do período colonial na América Lati-
a preparar meu argumento final que na, as universidades brasileiras foram
diz respeito à incapacidade do Di-
reito monista ter tanto a capacidade 1Ver Johannes Fabian, Language and Colonial Power.
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criadas com enorme atraso e com ob- das convenções da Organização Inter-
jetivos bastante distintos: foram criadas nacional do Trabalho.
no centro do império colonial portu- É nesse contexto que discuto as
guês, deslocado de Lisboa para o Rio de condições de possibilidade do Direito
Janeiro e, por outro lado, afastadas da promover a redistribuição de bens, di-
corte, como sugerem a localização das reitos e serviços numa sociedade que
primeiras faculdades no Brasil. ainda não atingiu um patamar geral de
Nosso Estado tem sido promotor de distribuição e acesso aos bens públicos
uma ortopedia social2, onde a camada fundamentais. Antes de avançar, apre-
superior da sociedade, sempre próxima sento faço uma contextualização sobre
ou no controle do Estado, define e impõe uma breve discussão sobre modelos de
uma concepção de bem viver às demais, organização social e lógicas relacionais
que não ameace seu controle, nem permi- aplicáveis à sociedade brasileira con-
ta o desaparecimento da distinção. sem temporânea, que penso só poderem ser
deixar de traçar barreiras que impeçam. adequadamente compreendidas quan-
Por outro lado, acompanhamos em do colocadas em um processo que leve
silêncio, e um tanto timidamente, o em consideração as peculiaridades de
processo de reconhecimento de uma nossa trajetória colonial e pós-colonial.
sociedade pluriétnica e o nascimento
de um patamar constitucional deste re- Um pouco sobre nossa trajetória pós-
conhecimento em países como o Méxi- -colonial contemporânea
co, a Colômbia, o Peru, o Equador e o Meu ponto de partida situa-se na segun-
Brasil. Em nossa vertente, entretanto, a da metade do século XIX, ainda no Im-
dimensão pluriétnica acaba por ser fa- pério, caracterizado por uma hierarquia
gocitada pela estrutura hierárquica de social cujo princípio hierárquico cor-
nossa cultura jurídico-política. respondia às origens de seus membros
Soma-se a esse processo a recepção e de uma pretensa evolução das raças.
subordinada de novas formas de co- Europeus brancos, portugueses em sua
lonialismo, seja pela vertente de uma maioria e brasileiros descendentes dos
ideologia ambientalista ultra protecio- portugueses, já com alguma miscigena-
nista, seja pela vertente da busca por ção, viviam mundos distintos dos negros
uma necessária aptidão ao trabalho africanos, escravos, e dos grupos autóc-
assalariado como adequação ao mode- tones, fossem índios aldeados, já sub-
lo civilizacional eurocêntrico3, através metidos a um processo evangelizador
civilizador, ou isolados nas florestas.
2
Ver Michel Foucault, a Verdade e as Formas Jurídicas. Uma mudança no paradigma desse
3
Ver Ronaldo Lobão, Cosmologias Políticas do Neocolonialismo. princípio hierárquico foi fundamen-
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tada em um pensador francês, Joseph como central para o futuro da nação5.


Arthur de Gobineau, um dos interlo- Em seguida, leis antropológicas, de
cutores preferidos de D. Pedro II4. Para corte evolucionista, foram reivindica-
Gobineau, a raça branca seria superior das para hierarquizar as raças branca,
a todas as demais e dentro desta, os do- negra e vermelha, bem como sua mes-
licocéfalos da Inglaterra, norte da Eu- tiçagem, em termos não só de distân-
ropa e da Alemanha, seriam superiores cia civilizacional como espacial6. No-
a todos os demais. Estavam lançadas as vos elementos permitiram mais uma
bases para o paradigma racialista, que inflexão, desta feita em direção a um
teve em Sílvio Romero o maior expoen- princípio hierárquico culturalista.
te da tese da supremacia da raça branca Um dos autores mais importantes
e da degenerescência da mistura de ra- para esta inflexão foi Gilberto Freyre7.
ças. Ao reconhecer a mestiçagem bio- Formado na escola sociológica norte-a-
lógica e cultural do país, Romero vis- mericana da primeira metade do século
lumbrava que a superioridade da raça 20, em Casa Grande e Senzala, Freyre
branca acabaria por triunfar sobre as “coordenava os dados conforme pontos
demais: estavam lançadas as bases para de vista totalmente novos no Brasil de
as teorias do branqueamento. então”, como atestou Antônio Cândido.
Na República Velha, no início do Entre os jovens leitores de Freyre
século XX, dois pensadores foram cen- na década de 40 estavam o próprio
trais para a afirmação da versão raciali- Antônio Cândido, Florestan Fernan-
zada da sociedade brasileira: Nina Ro- des e Oracy Nogueira. Os dois últimos
drigues e Oliveira Vianna. O primeiro, foram centrais para uma nova inflexão
deu continuidade às teses de Silvio Ro- na explicação sobre a nação brasileira,
mero, principalmente em seu livro As desta feita em direção a uma visão es-
Raças Humanas e a Responsabilidade truturalista do problema racial. Para
Penal no Brasil. Dada a superioridade Florestan Fernandes, éramos (e penso
biológica da raça branca, mesmo com que ainda somos) herdeiros de uma es-
a miscigenação havida, tanto biológi- trutura social com padrões de estrati-
ca quanto cultural, o “branqueamento” ficação social rígidos. Mesmo que for-
da sociedade nacional e sua redenção mada por uma grande miscigenação,
seriam inevitáveis. na nação brasileira o preconceito racial
Oliveira Vianna, trouxe para o cam- persistiria em função de uma transição
po cultural a superioridade da raça
branca pura, e tomou o tema da eugenia 5
Ver Oliveira Vianna, Evolução do Povo Brasileiro.
6
Ver Oliveira Vianna, Populações Meridionais do Brasul.
4 7
Ver Joseph A. de Gobinau, The Inequality of Human Races. Ver Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala.

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incompleta do modelo patriarcal esta- riores da pirâmide formadora da nação


mental do Brasil Colônia para uma so- brasileira – negros “puros” ou índios
ciedade de classes do Brasil da segunda não aculturados – teria altos custos,
metade do século XX. logo a “virtude estaria no meio”, na mis-
Oracy Nogueira, por seu lado, tura de brancos com negros, com índios
propôs uma importante distinção em e desses com negros.
nossa estrutura social, em cuja des- Em um processo coetâneo com a
crição se valeu de tipos ideais webe- aprovação da Convenção 169 da OIT,
rianos, que denominou de preconcei- a Assembleia Nacional Constituinte e
to racial de marca característico da os movimentos sociais que também a
sociedade brasileira e o preconceito constituíram, produziram a inclusão
racial de origem, típico da sociedade de uma dimensão pluriétnica no orde-
norte-americana. No primeiro tipo namento jurídico brasileiro. No texto
prevaleceria as aparências, as mani- constitucional vigente, lemos direitos
festações ou modos de viver, enquan- indígenas expressos em seu artigo 231.
to no segundo o que se indicaria seria Há direitos culturais atribuídos aos gru-
o grau de pertencimento aos grupos pos formadores da nação nos artigos
étnicos que se desejariam afastar. 215 e 216. Foram consignados direitos
Ao romperem com o paradigma cul- territoriais dos remanescentes de qui-
turalista freyreano e pensar os conflitos lombos, conforme expresso no artigo 68
raciais no Brasil a partir de uma dimen- do Ato das Disposições Constitucionais
são estrutural-funcionalista, o que esses Transitórias. Soma-se a este conjunto
autores – todos vinculados à escola so- de diretos coletivos, o Meio Ambiente,
ciológica paulista - destacaram, de fato, cuja conceituação, no artigo 225, como
foi a existência do preconceito racial na um pacto geracional voltado para o fu-
sociedade brasileira e seus efeitos na turo, define-o como um direito “difuso”.
construção da nação. Os desdobramentos da positivação
Nova inflexão ocorreu com Roberto das demandas sociais do processo cons-
DaMatta que, em uma nova leitura da tituinte, acoplados com a disseminação
“questão racial”, identificou um duplo Convenção 169, da Rio 1992, produ-
movimento de estruturação da socie- ziram interessantes processos sociais.
dade brasileira – hierarquia e igualdade Um deles pode ser denominado como
– que produziu um novo aporte teórico a “ressemantização do conceito de qui-
para a versão da harmonia racial cons- lombo”. Esse processo foi caracterizado
truída pelo luso tropicalismo freyrea- pela reunião de diferentes movimentos
no. Nessa linha de explicação teórica, a sociais – tanto nas cidades quanto no
permanência em um dois vértices infe- campo – com múltiplos atores institu-
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cionais – do Estado, das universidades desenvolvimento sustentável. Trata-se


e de organizações não governamentais da designação de uma categoria a ser
– que produziram uma centralidade do preenchida por grupos os quais não se
reconhecimento na auto-identificação, vinculariam aos dois processos descri-
nos elementos diacríticos da dimensão tos, mas ainda assim estariam contem-
cultural desses grupos, nos direitos de plados no sistema de direitos culturais
cidadania diferenciados e na recusa à estabelecidos de forma menos literal na
fundamentação racialista ou histórica Constituição de 1988: populações, po-
do reconhecimento. vos ou comunidades tradicionais. Uma
Outro pode ser desdobrado em consideração que merece ser lembrada
duas estratégias distintas, porém fun- é que esses direitos podem ser pensa-
dadas no reconhecimento de direitos dos coletivamente como direitos difu-
originários dos grupos autóctones da sos, se entendermos tais direitos como
sociedade nacional. Uma delas pode ser correspondentes ao interesse da socie-
descrita como etnorressurgência, que dade nacional na reprodução cultural
corresponderia a retomada da afirma- de sua diversidade constitutiva, repre-
ção da identidade indígena, por grupos sentadas por todos os grupos forma-
que haviam se dissolvido nas socieda- dores da nação, mas que mantêm sua
des locais sem perder, entretanto, seus distintividade cultural.
laços identitários pretéritos. A segun- Um dos vetores desse acoplamento
da, um tanto mais radical, tem como ter-se dado em paralelo à dimensão da
descritor a expressão “etnogênese”, na proteção ambiental foi sua definição ter
qual novos arranjos étnicos foram pro- aparecido, em um primeiro momen-
duzidos em função de uma perda mais to, em uma legislação ambiental: a lei
radical dos laços de pertencimento aos que criou o Sistema Nacional de Uni-
grupos aborígenes de nossa nação. No- dades de Conservação – SNUC – (Lei
vos etnônimos foram auto-assumidos, 9.985/2000). Nesse contexto, “popula-
em muitos casos produzidos a partir de ções tradicionais” não necessariamente
aldeamentos promovidos pelo próprio se oporiam à modernidade. Sua cons-
Estado. Aqui também estava presente a tituição corresponderia à representação
recusa a “comprovação” racialista, bio- de saberes e relações com os espaços de
lógica, fenóptica ou histórica. reprodução cultural, simbólica ou ma-
Um terceiro acoplamento com a terial de forma particular e autônoma.
Convenção 169 foi produzido em con- Os dois processos descritos, resse-
formidade com os protocolos e concei- mantização e etnorressurgência, davam
tos que emergiram ou foram fortaleci- conta dos acoplamentos que os grupos
dos na Rio 1992, como o conceito de sociais concretos podiam fazer com a
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Convenção 169 na trajetória da vindi- dades, passíveis de preenchimento tan-


cação de seus direitos. A indefinição o to em processos de auto-identificação
preenchimento do conceito de “popu- quanto por extensão, foi a eclosão de
lações tradicionais” e sua vinculação uma nova clivagem discursiva – tanto
até certo ponto esperada, impressa na na expressão de atores estatais quanto
imagem de Chico Mendes como serin- nos movimentos sociais: o “segmento”.
gueiro e defensor da floresta, com as A sociedade nacional passou a re-
políticas de conservação da natureza, ceber um novo princípio hierárquico,
precisava ser superada. a “tradicionalidade”. Cada um destes
Novas concertações entre atores es- “segmentos”, além de ser portador de
tatais e não estatais, às quais se somaram direitos de “cidadania diferenciados”,
representantes dos movimentos sociais, enuncia a recusa a direitos universais e
produziram múltiplas discursividades, sim a demanda por direitos específicos
que acabou por produzir um novo lu- para o segmento ou para uma constela-
gar para identidades sociais não étni- ção de segmentos. Constelação forma-
cas, “povos ou comunidades tradicio- da por identidades tão diversas quanto
nais”. No Decreto Federal 6.040/2007, índios, quilombolas, ciganos, caiçaras,
que disciplinou a política federal do pescadores artesanais, comunidades de
desenvolvimento sustentado de povos terreiro, pomeranos, faxinais, geraizei-
ou comunidades tradicionais, povos ou ros, retireiros, pantaneiros, sertanejos,
comunidades tradicionais seriam: seringueiros, comunidades de fundo de
pasto, quebradeiras de coco de babaçu,
“grupos culturalmente dife- e assim por diante.
renciados e que se reconhecem Essas identidades, fluidas, como di-
como tais, que possuem formas ria Zygmunt Bauman, podem conviver
próprias de organização social, nos sujeitos concretos com várias outras,
que ocupam e usam territórios e provocando um fenômeno que foi auto-
recursos naturais como condição denominado de “transversalidade iden-
para sua reprodução cultural, so- titária” por uma mulher, negra, quilom-
cial, religiosa, ancestral e econô- bola, quebradeira de coco de babaçu. Ou
mica, utilizando conhecimentos, seja, em cada dessas identidades, o sujei-
inovações e práticas gerados e to encontra e busca concretizar direitos
transmitidos pela tradição” diferenciados, que são acessados por di-
ferentes regimes de identidade.
O resultado da atribuição de direitos O direito à diferença e a auto deter-
de cidadania diferenciados a grupos tão minação implícito na Convenção 169
díspares, portadores de macro identi- como um caminho para atingir a igual-
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dade de direitos, mesmo que esses di- uma sociedade formada por segmentos
reitos fossem diferentes, parece ter se que são complementares e estão em re-
desdobrado em direitos de outra natu- lação entre si através de um princípio
reza. A proposta do reconhecimento à hierárquico. Tal princípio não deve ser
pluralidade étnica no universo pós-co- pensado como um sistema de estratifi-
lonial pretendia tensionar cada vez mais cação social, ou um sistema de classes.
os construtos do ocidente nos últimos A definição clássica apresentada por
duzentos anos: ideia de uma unicida- Louis Dumont é a do “englobamento
de jurídica – o monismo jurídico –, de do contrário”. Isso significa que cada
uma racionalidade econômica comum segmento está em relação com o que
– a lex mercatória8 – e de organização lhe dá “sentido”. Povos ou comunidades
político-social – apenas uma nação “tradicionais” estão em relação com os
ocupando o território de um Estado. povos ou comunidades “modernas” e
Os fundamentos de estrutura social na são estes quem dá o sentido daqueles.
qual a segmentação encontra um terreno O que não quer dizer que o segmento
tão fértil é o que passo a procurar discutir. “povos tradicionais” não possa ser forma-
do por segmentos menores, que também
Um pouco sobre modelos de organização estão em relações hierárquicas entre si. Se
social em uma sociedade relacional lembrarmos dos artigos constitucional
Com vistas a uma melhor compre- que têm foco nos povos tradicionais, fica
ensão dos argumentos até aqui apresen- fácil identificar que o princípio hierárqui-
tados, penso que algumas representa- co estruturado e estruturante9 no texto
ções gráficas, com base nos trabalhos corresponde ao processo de diferenciação
de Roberto Kant de Lima, podem ser cultural construído pelo colonialismo co-
úteis. Entretanto, nunca é demais lem- loca os direitos dos diversos segmentos
brar que ao apresentar tais modelos, os que têm, nos dias de hoje, sua distintivi-
utilizo no sentido de Max Weber deu dade cultural reconhecida. Os índios têm
aos seus “tipos ideais”. São boas ferra- direitos expressamente estatuídos. Os
mentas analíticas, mas nunca estão em remanescentes de quilombo e seus sítios
“estado puro” no mundo. históricos são expressamente citados. Os
As duas primeiras buscam ilustrar demais grupos identitários formadores
dois modelos relacionais das sociedades da sociedade brasileira são citados em
contemporâneas. O modelo hierárqui- conjunto, que inclui os dois anteriores10.
co apresentado na Figura 1, representa
9
Ver Pierre Bourdieu, O Poder Simbólico.
8 10
Ver Gunther Teubner, A Bukowina global sobre a emer- Uma leitura atenta do Decreto 6.040.2007 permite visua-
gência de um pluralismo jurídico transnacional. lizar em forma de lei o argumento aqui apresentado.

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O modelo individualista, apresen- tese, cada indivíduo define sua posição


tado na Figura 2, corresponde a uma tanto em função de suas relações, mas,
sistema onde o elemento estruturante principalmente, em função de seu de-
é o indivíduo, figura sócio-histórico- sempenho, seja no mercado, seja no
-jurídica “inventada” pela revolução mundo das relações sociais. O modelo
francesa e “aperfeiçoada” pela socie- individualista é visto como igualitário,
dade capitalista eurocêntrica. A partir não no sentido de uma ausência de es-
do indivíduo, definido pelo Código tratificação, mas por não haver no mo-
Napoleônico de 1804 como aquele que delo, nenhum processo de hierarquiza-
é capaz de dispor de si mesmo, contra- ção, ou de englobamento do contrário.
tar e ser proprietário, a sociedade de O que decorre da compreensão
estrutura através das relações que são dos dois modelos é a necessidade de se
por eles estabelecidas. Tais relações identificar, nos sistemas sociais concre-
podem ser mais ou menos transitivas, tos, quais os princípios hierárquicos ou
seu circuito pode ser mais ou menos igualitários que são acionados. Pode-se
longo e uma eventual supressão de al- pensar que o sistema hierárquico hindu
guns indivíduos ou circuitos de rela- tem com princípio hierárquico a “pure-
ções não compromete o sistema, como za”, o que coloca o segmento brâmane
ocorre no modelo hierárquico. como àquele que engloba e define os
O modelo individualista independe demais pela distância estabelecida entre
do outro para a definição de sua posi- os segmentos. De forma análoga pode
ção na sociedade. Neste modelo, em pensar que o princípio de individuação

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que vige na sociedade estaduniden- podemos pensar que com o fim do im-
se contemporânea está associado aos pério colonial francês, os oriundos das
pertencimentos institucionais, no qual antigas colônias foram colocados em
cada um ocupa uma posição na socie- patamares diferenciados na sociedade
dade relacional em função de sua traje- francesa em função de sua competên-
tória, no circuito de relações que optou cia nos códigos sociais e gramaticais de
por construir: acadêmica, política, ar- como ser “francês”11.
tística, econômica, etc. O “problema” da ordem nessas so-
Um outro modelo importante para ciedade diz respeito à perfeita estabili-
meu argumento diz respeito à lógicas de dade do sistema. A base deve ser maior
organização social, que não devem ser que o topo e cada patamar deve ser o
confundidas com os princípios hierár- mais estável possível, para que nesta
quicos, como vimos acima. Os sistemas lógica societária cada um saiba seu lu-
sociais concretos, sejam hierárquicos gar a haja um lugar para cada um. O
ou individualistas, possuem lógicas de conflito entre patamares, ou o conflito
organização social que cumprem papéis em busca da mobilidade social e o que
importantes na manutenção da higidez mais ameaça o sistema e ele deve ser
do sistema ou da ordem social em um imediatamente abafado, com a ordem
dado momento histórico. social pretérita sendo restabelecida. O
A Figura 3 ilustra a lógica de orga- conflito em um mesmo patamar, por
nização social estratificada. O formato não ameaçar a organização do sistema,
piramidal, conforme proposto por Ro- é bastante tolerado, principalmente se
berto Kant de Lima, implica que a estra- os efeitos não forem sentidos nos pata-
tificação, enquanto lógica de organiza- mares superiores12.
ção social cumpre um papel de filtro em Na lógica de organização social
termos de distribuição e acesso a bens e igualitária ao contrário, não há pa-
serviços definidos a partir do princípio tamares predeterminados a esta ou
hierárquico ou igualitário aplicado no aquela rede de relações. Cada um dos
modelo social. Tomando como exem- indivíduos pode escolher, de novo
plo o sistema social hindu, todos os de- como um tipo ideal, a qual rede per-
mais segmentos são posicionados em
relação à casta dos bramanes, os mais 11
Para esta linha de argumentação ver Fábio Reis Mota, Ci-
dadãos em Toda a Parte ou Cidadãos à Parte? Demandas de
“puros”. Os dalit considerados os “into- Reconhecimento e Direitos no Brasil e na França, Pierre Bour-
cáveis” estariam na base do sistema por dieu, A Distinção e Frantz Fanon, The Wretched of the Earth.
serem os menos puros, considerados 12
Para este argumento, ver Ronaldo Lobão, Reservas Ex-
trativistas Marinhas: Uma Reforma Agrária no mar? Uma
em relação aos bramanes. Tomando discussão sobre o processo de consolidação da reserva Ex-
como exemplo o sistema social francês, trativista Marinha de Arraial do Cabo/RJ

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tencer e seu nível de pertencimento ganhos econômicos, sob o império


dependerá de seu desempenho. Em do modo de produção capitalista,
termos de posições sociais, o de- em outra ele poderá ser determi-
sempenho individual acelerado ou a nado pelo domínio de códigos pró-
queda de um indivíduo não implica prios de pertencimento, como em
em desestruturação do sistema, pois sociedades aristocráticas.
a base é idealmente semelhante ao A segunda diz respeito a pos-
topo e há espaço para todos ao lon- sibilidade de uma imbricação de
go das trajetórias sociais. E mesmo uma lógica na outra e de um siste-
posições iniciais diferentes não são ma em algum subsistema do outro.
determinantes para a posição final Como veremos mais adiante, posso
do elemento, pois ao longo do tempo pensar que no em uma sociedade
será o mérito que definirá qual sua hierárquica estruturada pelo prin-
posição na sociedade. cípio hierárquico da oposição en-

Duas observações adicionais se tre modernidade e tradição, haja


fazem necessárias. A primeira é que uma lógica de organização que es-
o princípio meritocrático pode va- tratifica no plano da oposição Mo-
riar de sistema social para sistema dernidade vs. Tradição, mas segue
social, como o princípio hierárqui- uma lógica igualitária de reparti-
co varia. Se em uma sociedade o de- ção de benefícios e direitos dentro
sempenho é medido em termos de do próprio estrato.
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Poderíamos representar esta so- sabe uma “segurança jurídica”) o con-


ciedade como uma pirâmide, onde se ceito de afeto ou paixão teve que ser ser
verifica a estratificação social, formada eliminado da esfera pública – e conse-
por patamares retangulares, nos quais quentemente, do Direito. Através desta
ocorrem as disputas através de uma ló- ponte - bem e interesse - pode-se inter-
gica igualitária. ligar vários olhares, sejam próprios do
direito, da economia, da ciência política
UM POUCO SOBRE BEM e até mesmo da antropologia.
PÚBLICO, BEM COLETIVO Pensando no Estado como um grupo
E BEM PARTICULAR de interesse de dimensões avantajadas, um
Na cosmologia do capitalismo con- bem público, ao estar disponível para um
temporâneo a noção de “bem” está as- cidadão, deve estar disponível para todos,
sociada à ideia de interesse13, ou seja, pois o bem público é o resultado da ação
um bem deve corresponder àquilo que coletiva do sociedade, de acordo com seu
homens ou instituições desejem e ajam interesse comum. Neste sentido o Estado
no sentido de obtê-los. Para que se al- é uma organização absolutamente igual às
cance uma presumida previsibilidade demais: o Estado é uma organização que
(e, antecipando um argumento, quem provê bens públicos para seus membros,
os cidadãos; as demais organizações pro-
13
Ver Albert O. Hirschman, As Paixões e os Interesses. veem bens coletivos para seus membros.
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Assim como o Estado, que não pode co e bem particular, que me parece fértil
prover bens públicos baseado em con- para os argumentos aqui propostos e para
tribuições voluntárias, ou pela venda de uma definição intermediária de bem co-
serviços básicos no mercado, as gran- letivo15. Para Dussel, o que diferencia o
des organizações não podem sustentar público e o particular são os distintos mo-
a si mesmas sem praticarem algum tipo dos de agir intersubjetivo. O bem público
de sanção contra seus membros. Mes- é aquele produzido pelo agir à vista de to-
mo assim, o elemento individual de dos, enquanto o bem particular é aquele
uma grande organização está em posi- que é produzido por uma ação protegida
ção análoga a de uma empresa em um da vista dos outros. Posso incluir uma ca-
mercado de competição perfeita, ou tegoria intermediária, a de bem coletivo,
do contribuinte de um Estado: seus es- que seria resultante de uma ação à vista de
forços individuais não produzirão ne- todos aqueles que têm interesse direto no
nhum efeito perceptível na organização resultado e/ou participam da ação.
a que pertence, e ele pode se beneficiar A síntese dos conceitos utilizados
do esforço dos demais, mesmo que não permite propor que um bem público é
tenha despendido nenhum esforço nes- aquele produzido à vista da sociedade e
te sentido - os caronas, ou free-riders14. que seu consumo não excluiu nenhuma
Com o que foi visto até aqui é possí- dos elementos da sociedade de seu con-
vel definir com mais precisão o que é bem sumo. Um bem coletivo é resultante da
público. Como já alarguei os limites do ação intersubjetiva pública de uma cole-
bem público para além daqueles que são tividade e que seu consumo pode excluir
produzidos pelo Estado, posso me apoiar outras coletividades que não tenham
na definição de James Buchanan para o participado de sua produção. Um bem
bem público como um bem indivisível. particular é aquele que foi produzido
Com base nessas ideias, posso afirmar em uma ação intersubjetiva que esteve
que um bem é público, ou coletivo, quan- protegida do olhar de todos os demais
do qualquer indivíduo do grupo pode integrantes da sociedade. Um bem par-
consumir o bem, e este consumo não ex- ticular não deve ser produzir na esfera
clui nenhum outro membro do grupo da pública, enquanto os outros dois sim.
possibilidade de consumi-lo também.
Mais recentemente, a filosofia política DISTRIBUIR E REDISTRIBUIR
latino-americana, através Enrique Dus- Proponho associar os conceitos de
sel, forneceu uma abordagem inovadora distribuição e redistribuição com a na-
para uma demarcação entre bem públi- tureza dos bens. Concretamente, propo-

14
Ver Ari de Abreu Silva, A Predação do Social. 15Ver Enrique Dussel, 20 Teses sobre Política.

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nho que apenas bens públicos deveriam Algumas distinções são finas, mas
ser objeto de políticas distributivas, que empiricamente relevantes. Seria o aces-
os bens coletivos deveriam ser objeto de so a medicamentos, ou a intervenções
políticas redistributivas e bens particu- cirúrgicas, como as cirurgias bariátri-
lares não deveriam ser objeto de políti- cas, equiparável ao acesso à saúde? Pen-
cas de Estado ou de Governo. so que não. Primeiro por não entender
A partir desse enquadramento a vinculação causal de medicamento
analítico, poderia sugerir que direitos ou cirurgia com saúde. Em segundo
fundamentais, aqui entendidos como lugar, porque em função da organiza-
acesso à justiça, à saúde, à educação, à ção do Sistema de Saúde no Brasil, sua
identidade, ao trabalho, à moradia se- estrutura municipalizada e descentra-
riam bens públicos que, em primeira lizada, o direito a um medicamento ou
instância, são destinados à políticas dis- uma intervenção cirúrgica com grande
tributivas. A produção destes bem deve custo pode impedir outros indivíduos
ser necessariamente produzida à vista de exercerem seu direito à saúde. Isso
de todos e o acesso por parte de um in- acontece principalmente em municí-
divíduo ou grupo a qualquer um destes pios com orçamentos reduzidos.
bens não exclui outro indivíduo ou gru- Recentemente foi identificado em
po do mesmo direito. São Paulo que havia um concentrada
Em outro patamar, posso enqua- demanda por um determinado me-
drar, também para fins analíticos, dicamento experimental patrocinada
como bens coletivos aqueles que foram por um único escritório de advocacia
produzidos em decorrência da ação que foi comprovado estar vinculado
ou da demanda de grupos no espaço ao laboratório que produzia o medica-
público, mas o acesso por parte desse mento. Quantas outros procedimentos
grupo, ou outros grupos equivalentes poderiam se enquadrar no caso acima?
pode impedir, ou reduzir as oportuni- Como identificar tal procedimento em
dades de outro grupo acessar o o mes- julgamentos singulares?
mo bem. Por exemplo, o direito a me- O direito à educação pode signifi-
dicamentos, o direito à escola, o direito car obrigatoriedade de matrícula ou de
a políticas de ação afirmativa, o direito acesso à escola? Há inúmeras situações
ao emprego, o direito à propriedade, que colocam obstáculos a um equacio-
seriam objetos preferenciais de políti- namento positivo. Número máximo de
cas redistributivas, pois além de não alunos em sala de aula, número mínimo
se enquadrarem como bens públicos, de alunos em determinada série, cons-
buscariam compensar desigualdades trangimentos espaciais. Um exemplo
estruturais na sociedade. empírico pode ser trazido de uma aldeia
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indígena no extremo sul da Bahia. Na Há alguns anos teve início uma moda-
Terra Indígena de Barra Velha do Monte lidade de manejo de recursos naturais
Pascoal, o trânsito entre aldeias só pode renováveis marinhos que se denomi-
ser feito por veículos tracionados ou bu- nou “defeso”. Trata-se da interdição da
ggies. Aos motoristas é exigido uma car- captura de determinadas espécies nos
teira de motorista com habilitação má- períodos considerados chave para sua
xima. Os veículo devem ter no máximo reprodução. Ao longo deste período os
três anos de uso e serem fechados. Mas pescadores que atuam sobre este recur-
não há motoristas nem veículos que so ensejam o recebimento de um valor
atendam a estas exigências na região... monetário que cubra seus ganhos. Me
Por outro lado, por determinações le- parece que há uma clara contradição. Se
gais o ingresso em terras indígenas a não o defeso, como modalidade de manejo
índios somente é possível com autoriza- visa aumentar a abundância do recur-
ção dos índios e da Fundação Nacional so, temos mais um “problema” de fluxo
do Índio – Funai. Como administrar tal de caixa do que de remuneração. Para
situação adequadamente? complicar mais ainda, recentemente, o
A enunciação de uma identidade governo transformou o “auxílio defeso”
diacrítica geralmente vem expressa em em “seguro desemprego”, a partir de um
conjunto com uma demanda por direi- equacionamento indevido entre o tra-
tos de outra natureza, como o direito à balho na pesca – em muitos casos em
propriedade, à renda ou ao emprego. regime familiar ou em bases comuni-
Mas bastaria enunciar uma identidade, tárias – com o “emprego”, e foi a partir
como a de remanescente de quilombo, destas relações que se desenvolveram os
para assegurar o direito à propriedade requisitos para acesso ao “direito”.
como expresso no artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitó- O LUGAR DO DIREITO E SUA
rias - ADCT? Por força da Convenção CAPACIDADE REDISTRIBUTIVA
169 da Organização Internacional do EM UM EXEMPLO PARADIGMÁTICO
Trabalho – OIT – não cabe interferên- O direito de moradia pode ser con-
cia externa na assunção de uma iden- siderado sem muita dificuldade como
tidade coletiva. Mas tal auto definição um direito que atravessa as três dimen-
deve levar necessariamente à consecu- sões que tratamos de bem. Também sem
ção de direitos diferenciados? muito problema posso argumentar que
Há como não fazer uma distinção ele está presente em todas sociedades,
entre o direito ao trabalho e o aces- independente de seu modelo organiza-
so ao emprego? Do universo da pesca cional ou suas lógica estruturante. Tam-
posso retirar um exemplo interessante. bém a trajetória da sociedade, colonial,
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LOBÃO, Ronaldo

pós-colonial, neutra pouco interfere na biental brasileira é uma Unidade de


definição de sua universalização. Proteção Integral, onde a presença
O desafio surge quando associa- humana é a maior ameaça a higidez
mos do direito de moradia ao direito na Unidade de Conservação e não
de propriedade, ou à sua função social. deve ser permitida.
Conceituações jurídicas particulares A comunidade tradicional do
sobre o fundamento e prática da posse Morro das Andorinhas, que ocupa o
ou da propriedade tem várias interfa- topo do morro, não reivindicou o sta-
ces, em função da trajetória de cada tus de proprietários do Sítio das Ja-
Estado, modelos de organização social, queiras, área de 25.000m2 que abriga
princípios hierárquicos e até mesmo 14 casas sem muros, cercas ou outros
escolas jurídicas. delimitadores internos, que a família
Um conflito intratável16 no topo tem posse, apenas desejam continuar
do Morro das Andorinhas, no Mu- a viver em seu “território tradicional”
nicípio de Niterói poderá ser de va- e não aceitam a remoção. O grupo da
lioso exemplo empírico. Ao longo encosta, a ocupa na forma de “lotes”,
da encosta, em sua vertente sul, e no apresentam a demanda por um títu-
topo do morro encontramos várias lo de propriedade ou uma indeniza-
ocupações de pessoas de baixa ren- ção adequada, equivalente ao valor de
da. As da encosta correspondem a mercado, no caso de sua remoção.
ocupações recentes, com cerca de 15 Utilizando as categorias desen-
anos. No topo do Morro temos uma volvidas, posso classificar as ocupa-
ocupação mais que centenária, for- ções na encosta do Morro das An-
mada por integrantes de uma única dorinhas como bens particulares.
família, que tem domínio sobre uma Afinal, seus ocupantes o fizeram de
área de aproximadamente 25.000m2. forma oculta aos olhos de todos, fa-
Parte dessas casas estão situadas em vorecidos pela natureza e pelo lugar
uma Área de Proteção Permanente, de acesso restrito. Cada lote é um
com restrições a ocupação humana. bem de uma família que tem res-
Outra parte está dentro de um Par- guardado seu direito de propriedade
que Estadual, que pela legislação am- como um direito fundamental.
A ocupação da família de Leonel
16
Um conflito intratável envolve disputas de longa duração Siqueira, que ocupa o topo do Mor-
ou refratárias a uma resolução. É um conflito que apresenta
aspectos múltiplos, tais como, divisibilidade, intensidade,
ro desde do século XIX, tanto poderia
abrangência e complexidade. É um conflito de longa du- ser enquadrada como um bem priva-
ração, cujo passado é extenso, o presente turbulento e seu
futuro obscuro. Ver Linda Putnam & Julia Wondolleck, In-
do, afinal o patriarca também ocupou
tractability: definitions, dimensions and distinctions. o topo do Morro em uma ação longe
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DESAFIOS À CAPACIDADE REDISTRIBUTIVA DO DIREITO EM CONTEXTOS PÓS-COLONIAIS

das vistas de todos. Mas hoje, mais de próprios de um modelo individualista


cem anos depois, a ocupação deixou e igualitário, poderíamos acionar duas
de ser individual e reúne um coletivo naturezas de direitos distintas, ligando
de quatorze casas que lutam em con- outro conceito de direito/interesse, o de
junto por sua permanência. Podemos, direito/interesse difuso para a dimen-
então, enquadrar este tipo de ocupa- são diacrítica entre os dois grupos.
ção como um bem coletivo. E, nesse Se conceituarmos a Comunidade do
caso, o direito de propriedade começa Morro das Andorinhas como uma co-
apresentar resistências a compreen- munidade tradicional, justamente por
der este tipo de ocupação. seu carácter distintivo na percepção so-
Há como equacionar os dois movi- bre seu direito de moradia, que não se
mentos em uma única rubrica? Para os resume nos feixes jurídicos da proprie-
eventuais “proprietários” o “remédio” dade, mas incluem aspectos culturais
legal poderia ser a remoção para ou- que são integrantes de toda a sociedade
tra propriedade. Para a comunidade brasileira, temos uma abertura para pu-
tradicional, a realocação, salvo em um lar o conceito de propriedade coletiva
lugar idêntico ao original, significaria clássico. Em outras palavras, os direitos
a “extinção” da própria comunidade. da Comunidade Tradicional do Morro
Como esse lugar seria também afetado das Andorinhas não decorrem de sua
pelas regras de proteção ambiental, ele ação coletiva ao longo de mais de cem
é um lugar impossível, inexistente. anos e sim do interesse da sociedade
A primeira conclusão seria que o nacional na preservação das formas dis-
Direito, em sua capacidade redistri- tintivas de viver a duplo pertencimento
butiva só teria como tratar adequa- com os lugares.
damente o primeiro caso, o dos “pro- A capacidade redistributiva do
prietários”, pois seriam o que mais se Direito em sociedades pós-coloniais
aproximariam do Direito pensado a está diretamente vinculada à capaci-
partir de uma sociedade modelada dade do Direito ser pensado em uma
pelo princípios do individualismo e da dimensão de jusdiversidade e não de
igualdade. No segundo caso, o Direito um monismo jurídico.
individualista igualitário não só não  
tem a potência de distribuir, nem a de BIBLIOGRAFIA
redistribuir, mas a de destruir. ANDERSON, Benedict. 1989. Na-
Mas se pensarmos em um Direito ção e Consciência Nacional. São Paulo:
em contexto pós-colonial, que associa Editora Ática.
tanto os aspectos de um modelo hie- BAUMAN, Zygmunt. 2003. Comu-
rárquico e estratigráfico, com aqueles nidade: a busca por segurança no mundo
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Preconceito racial de marca e precon-


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RONALDO LOBÃO
Professor do Programa de Pós-Gra-
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