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RESUMO
Neste artigo procuro questionar o sentido redistributivo do direito em sociedades que, além de
não terem universalizados os direitos civis, econômicos e de solidariedade, possuem lógicas de
organização social próprias e, além disso, são resultado de modelos coloniais particulares, como é o
caso do Brasil. Começo com uma contextualização do momento pós-colonial brasileiro. Esta con-
textualização procura levar em conta a trajetória recente de nossa sociedade, desde o século XIX
até os desdobramentos da Constituição de 1988. Concluo este tópico com alguns aportes teóricos
sobre modelos e lógicas de organização social que permitem uma melhor compreensão de meu
argumento. Passo a uma conceituação sobre bem público, bem coletivo e bem particular apoiado
na ciência política. Com tais aportes, passo a um questionamento sobre uma possível classificação
entre políticas distributivas e redistributivas, com vistas a preparar meu argumento final que diz
respeito à incapacidade do direito monista ter tanto a capacidade distributiva quanto a redistribu-
tiva de forma equânime em sociedades pós-coloniais como a brasileira.
ABSTRACT
In this article I wonder about the redistributive effect of law in societies that, besides not having
universalized civil, economic and solidarity rights, have their own logics of social organization and
are, furthermore, the result of specific colonial models, such as Brazil. I begin contextualizing the
Brazilian post-colonial period. This contextualization takes into account recent trends of our socie-
ty, from the nineteenth century to the developments of the 1988 Federal Constitution. I conclude
this topic with some theoretical contributions on models and logics of social organization that allow
a better understanding of my argument. I move then into a conceptualization of public goods, col-
lective goods and private goods from a Political Science perspective. Such contributions allow me to
question about a possible classification between distributive and redistributive policies, in order to
prepare my final argument which forwards the monist legal system as incapable to present distribu-
tive and redistributive abilities in| an
CONFLUÊNCIAS equal
Revista basis in post-colonial
Interdisciplinar de Sociologiasocieties
e Direito. such asnºthe2, Brazilian
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criadas com enorme atraso e com ob- das convenções da Organização Inter-
jetivos bastante distintos: foram criadas nacional do Trabalho.
no centro do império colonial portu- É nesse contexto que discuto as
guês, deslocado de Lisboa para o Rio de condições de possibilidade do Direito
Janeiro e, por outro lado, afastadas da promover a redistribuição de bens, di-
corte, como sugerem a localização das reitos e serviços numa sociedade que
primeiras faculdades no Brasil. ainda não atingiu um patamar geral de
Nosso Estado tem sido promotor de distribuição e acesso aos bens públicos
uma ortopedia social2, onde a camada fundamentais. Antes de avançar, apre-
superior da sociedade, sempre próxima sento faço uma contextualização sobre
ou no controle do Estado, define e impõe uma breve discussão sobre modelos de
uma concepção de bem viver às demais, organização social e lógicas relacionais
que não ameace seu controle, nem permi- aplicáveis à sociedade brasileira con-
ta o desaparecimento da distinção. sem temporânea, que penso só poderem ser
deixar de traçar barreiras que impeçam. adequadamente compreendidas quan-
Por outro lado, acompanhamos em do colocadas em um processo que leve
silêncio, e um tanto timidamente, o em consideração as peculiaridades de
processo de reconhecimento de uma nossa trajetória colonial e pós-colonial.
sociedade pluriétnica e o nascimento
de um patamar constitucional deste re- Um pouco sobre nossa trajetória pós-
conhecimento em países como o Méxi- -colonial contemporânea
co, a Colômbia, o Peru, o Equador e o Meu ponto de partida situa-se na segun-
Brasil. Em nossa vertente, entretanto, a da metade do século XIX, ainda no Im-
dimensão pluriétnica acaba por ser fa- pério, caracterizado por uma hierarquia
gocitada pela estrutura hierárquica de social cujo princípio hierárquico cor-
nossa cultura jurídico-política. respondia às origens de seus membros
Soma-se a esse processo a recepção e de uma pretensa evolução das raças.
subordinada de novas formas de co- Europeus brancos, portugueses em sua
lonialismo, seja pela vertente de uma maioria e brasileiros descendentes dos
ideologia ambientalista ultra protecio- portugueses, já com alguma miscigena-
nista, seja pela vertente da busca por ção, viviam mundos distintos dos negros
uma necessária aptidão ao trabalho africanos, escravos, e dos grupos autóc-
assalariado como adequação ao mode- tones, fossem índios aldeados, já sub-
lo civilizacional eurocêntrico3, através metidos a um processo evangelizador
civilizador, ou isolados nas florestas.
2
Ver Michel Foucault, a Verdade e as Formas Jurídicas. Uma mudança no paradigma desse
3
Ver Ronaldo Lobão, Cosmologias Políticas do Neocolonialismo. princípio hierárquico foi fundamen-
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dade de direitos, mesmo que esses di- uma sociedade formada por segmentos
reitos fossem diferentes, parece ter se que são complementares e estão em re-
desdobrado em direitos de outra natu- lação entre si através de um princípio
reza. A proposta do reconhecimento à hierárquico. Tal princípio não deve ser
pluralidade étnica no universo pós-co- pensado como um sistema de estratifi-
lonial pretendia tensionar cada vez mais cação social, ou um sistema de classes.
os construtos do ocidente nos últimos A definição clássica apresentada por
duzentos anos: ideia de uma unicida- Louis Dumont é a do “englobamento
de jurídica – o monismo jurídico –, de do contrário”. Isso significa que cada
uma racionalidade econômica comum segmento está em relação com o que
– a lex mercatória8 – e de organização lhe dá “sentido”. Povos ou comunidades
político-social – apenas uma nação “tradicionais” estão em relação com os
ocupando o território de um Estado. povos ou comunidades “modernas” e
Os fundamentos de estrutura social na são estes quem dá o sentido daqueles.
qual a segmentação encontra um terreno O que não quer dizer que o segmento
tão fértil é o que passo a procurar discutir. “povos tradicionais” não possa ser forma-
do por segmentos menores, que também
Um pouco sobre modelos de organização estão em relações hierárquicas entre si. Se
social em uma sociedade relacional lembrarmos dos artigos constitucional
Com vistas a uma melhor compre- que têm foco nos povos tradicionais, fica
ensão dos argumentos até aqui apresen- fácil identificar que o princípio hierárqui-
tados, penso que algumas representa- co estruturado e estruturante9 no texto
ções gráficas, com base nos trabalhos corresponde ao processo de diferenciação
de Roberto Kant de Lima, podem ser cultural construído pelo colonialismo co-
úteis. Entretanto, nunca é demais lem- loca os direitos dos diversos segmentos
brar que ao apresentar tais modelos, os que têm, nos dias de hoje, sua distintivi-
utilizo no sentido de Max Weber deu dade cultural reconhecida. Os índios têm
aos seus “tipos ideais”. São boas ferra- direitos expressamente estatuídos. Os
mentas analíticas, mas nunca estão em remanescentes de quilombo e seus sítios
“estado puro” no mundo. históricos são expressamente citados. Os
As duas primeiras buscam ilustrar demais grupos identitários formadores
dois modelos relacionais das sociedades da sociedade brasileira são citados em
contemporâneas. O modelo hierárqui- conjunto, que inclui os dois anteriores10.
co apresentado na Figura 1, representa
9
Ver Pierre Bourdieu, O Poder Simbólico.
8 10
Ver Gunther Teubner, A Bukowina global sobre a emer- Uma leitura atenta do Decreto 6.040.2007 permite visua-
gência de um pluralismo jurídico transnacional. lizar em forma de lei o argumento aqui apresentado.
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que vige na sociedade estaduniden- podemos pensar que com o fim do im-
se contemporânea está associado aos pério colonial francês, os oriundos das
pertencimentos institucionais, no qual antigas colônias foram colocados em
cada um ocupa uma posição na socie- patamares diferenciados na sociedade
dade relacional em função de sua traje- francesa em função de sua competên-
tória, no circuito de relações que optou cia nos códigos sociais e gramaticais de
por construir: acadêmica, política, ar- como ser “francês”11.
tística, econômica, etc. O “problema” da ordem nessas so-
Um outro modelo importante para ciedade diz respeito à perfeita estabili-
meu argumento diz respeito à lógicas de dade do sistema. A base deve ser maior
organização social, que não devem ser que o topo e cada patamar deve ser o
confundidas com os princípios hierár- mais estável possível, para que nesta
quicos, como vimos acima. Os sistemas lógica societária cada um saiba seu lu-
sociais concretos, sejam hierárquicos gar a haja um lugar para cada um. O
ou individualistas, possuem lógicas de conflito entre patamares, ou o conflito
organização social que cumprem papéis em busca da mobilidade social e o que
importantes na manutenção da higidez mais ameaça o sistema e ele deve ser
do sistema ou da ordem social em um imediatamente abafado, com a ordem
dado momento histórico. social pretérita sendo restabelecida. O
A Figura 3 ilustra a lógica de orga- conflito em um mesmo patamar, por
nização social estratificada. O formato não ameaçar a organização do sistema,
piramidal, conforme proposto por Ro- é bastante tolerado, principalmente se
berto Kant de Lima, implica que a estra- os efeitos não forem sentidos nos pata-
tificação, enquanto lógica de organiza- mares superiores12.
ção social cumpre um papel de filtro em Na lógica de organização social
termos de distribuição e acesso a bens e igualitária ao contrário, não há pa-
serviços definidos a partir do princípio tamares predeterminados a esta ou
hierárquico ou igualitário aplicado no aquela rede de relações. Cada um dos
modelo social. Tomando como exem- indivíduos pode escolher, de novo
plo o sistema social hindu, todos os de- como um tipo ideal, a qual rede per-
mais segmentos são posicionados em
relação à casta dos bramanes, os mais 11
Para esta linha de argumentação ver Fábio Reis Mota, Ci-
dadãos em Toda a Parte ou Cidadãos à Parte? Demandas de
“puros”. Os dalit considerados os “into- Reconhecimento e Direitos no Brasil e na França, Pierre Bour-
cáveis” estariam na base do sistema por dieu, A Distinção e Frantz Fanon, The Wretched of the Earth.
serem os menos puros, considerados 12
Para este argumento, ver Ronaldo Lobão, Reservas Ex-
trativistas Marinhas: Uma Reforma Agrária no mar? Uma
em relação aos bramanes. Tomando discussão sobre o processo de consolidação da reserva Ex-
como exemplo o sistema social francês, trativista Marinha de Arraial do Cabo/RJ
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Assim como o Estado, que não pode co e bem particular, que me parece fértil
prover bens públicos baseado em con- para os argumentos aqui propostos e para
tribuições voluntárias, ou pela venda de uma definição intermediária de bem co-
serviços básicos no mercado, as gran- letivo15. Para Dussel, o que diferencia o
des organizações não podem sustentar público e o particular são os distintos mo-
a si mesmas sem praticarem algum tipo dos de agir intersubjetivo. O bem público
de sanção contra seus membros. Mes- é aquele produzido pelo agir à vista de to-
mo assim, o elemento individual de dos, enquanto o bem particular é aquele
uma grande organização está em posi- que é produzido por uma ação protegida
ção análoga a de uma empresa em um da vista dos outros. Posso incluir uma ca-
mercado de competição perfeita, ou tegoria intermediária, a de bem coletivo,
do contribuinte de um Estado: seus es- que seria resultante de uma ação à vista de
forços individuais não produzirão ne- todos aqueles que têm interesse direto no
nhum efeito perceptível na organização resultado e/ou participam da ação.
a que pertence, e ele pode se beneficiar A síntese dos conceitos utilizados
do esforço dos demais, mesmo que não permite propor que um bem público é
tenha despendido nenhum esforço nes- aquele produzido à vista da sociedade e
te sentido - os caronas, ou free-riders14. que seu consumo não excluiu nenhuma
Com o que foi visto até aqui é possí- dos elementos da sociedade de seu con-
vel definir com mais precisão o que é bem sumo. Um bem coletivo é resultante da
público. Como já alarguei os limites do ação intersubjetiva pública de uma cole-
bem público para além daqueles que são tividade e que seu consumo pode excluir
produzidos pelo Estado, posso me apoiar outras coletividades que não tenham
na definição de James Buchanan para o participado de sua produção. Um bem
bem público como um bem indivisível. particular é aquele que foi produzido
Com base nessas ideias, posso afirmar em uma ação intersubjetiva que esteve
que um bem é público, ou coletivo, quan- protegida do olhar de todos os demais
do qualquer indivíduo do grupo pode integrantes da sociedade. Um bem par-
consumir o bem, e este consumo não ex- ticular não deve ser produzir na esfera
clui nenhum outro membro do grupo da pública, enquanto os outros dois sim.
possibilidade de consumi-lo também.
Mais recentemente, a filosofia política DISTRIBUIR E REDISTRIBUIR
latino-americana, através Enrique Dus- Proponho associar os conceitos de
sel, forneceu uma abordagem inovadora distribuição e redistribuição com a na-
para uma demarcação entre bem públi- tureza dos bens. Concretamente, propo-
14
Ver Ari de Abreu Silva, A Predação do Social. 15Ver Enrique Dussel, 20 Teses sobre Política.
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nho que apenas bens públicos deveriam Algumas distinções são finas, mas
ser objeto de políticas distributivas, que empiricamente relevantes. Seria o aces-
os bens coletivos deveriam ser objeto de so a medicamentos, ou a intervenções
políticas redistributivas e bens particu- cirúrgicas, como as cirurgias bariátri-
lares não deveriam ser objeto de políti- cas, equiparável ao acesso à saúde? Pen-
cas de Estado ou de Governo. so que não. Primeiro por não entender
A partir desse enquadramento a vinculação causal de medicamento
analítico, poderia sugerir que direitos ou cirurgia com saúde. Em segundo
fundamentais, aqui entendidos como lugar, porque em função da organiza-
acesso à justiça, à saúde, à educação, à ção do Sistema de Saúde no Brasil, sua
identidade, ao trabalho, à moradia se- estrutura municipalizada e descentra-
riam bens públicos que, em primeira lizada, o direito a um medicamento ou
instância, são destinados à políticas dis- uma intervenção cirúrgica com grande
tributivas. A produção destes bem deve custo pode impedir outros indivíduos
ser necessariamente produzida à vista de exercerem seu direito à saúde. Isso
de todos e o acesso por parte de um in- acontece principalmente em municí-
divíduo ou grupo a qualquer um destes pios com orçamentos reduzidos.
bens não exclui outro indivíduo ou gru- Recentemente foi identificado em
po do mesmo direito. São Paulo que havia um concentrada
Em outro patamar, posso enqua- demanda por um determinado me-
drar, também para fins analíticos, dicamento experimental patrocinada
como bens coletivos aqueles que foram por um único escritório de advocacia
produzidos em decorrência da ação que foi comprovado estar vinculado
ou da demanda de grupos no espaço ao laboratório que produzia o medica-
público, mas o acesso por parte desse mento. Quantas outros procedimentos
grupo, ou outros grupos equivalentes poderiam se enquadrar no caso acima?
pode impedir, ou reduzir as oportuni- Como identificar tal procedimento em
dades de outro grupo acessar o o mes- julgamentos singulares?
mo bem. Por exemplo, o direito a me- O direito à educação pode signifi-
dicamentos, o direito à escola, o direito car obrigatoriedade de matrícula ou de
a políticas de ação afirmativa, o direito acesso à escola? Há inúmeras situações
ao emprego, o direito à propriedade, que colocam obstáculos a um equacio-
seriam objetos preferenciais de políti- namento positivo. Número máximo de
cas redistributivas, pois além de não alunos em sala de aula, número mínimo
se enquadrarem como bens públicos, de alunos em determinada série, cons-
buscariam compensar desigualdades trangimentos espaciais. Um exemplo
estruturais na sociedade. empírico pode ser trazido de uma aldeia
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indígena no extremo sul da Bahia. Na Há alguns anos teve início uma moda-
Terra Indígena de Barra Velha do Monte lidade de manejo de recursos naturais
Pascoal, o trânsito entre aldeias só pode renováveis marinhos que se denomi-
ser feito por veículos tracionados ou bu- nou “defeso”. Trata-se da interdição da
ggies. Aos motoristas é exigido uma car- captura de determinadas espécies nos
teira de motorista com habilitação má- períodos considerados chave para sua
xima. Os veículo devem ter no máximo reprodução. Ao longo deste período os
três anos de uso e serem fechados. Mas pescadores que atuam sobre este recur-
não há motoristas nem veículos que so ensejam o recebimento de um valor
atendam a estas exigências na região... monetário que cubra seus ganhos. Me
Por outro lado, por determinações le- parece que há uma clara contradição. Se
gais o ingresso em terras indígenas a não o defeso, como modalidade de manejo
índios somente é possível com autoriza- visa aumentar a abundância do recur-
ção dos índios e da Fundação Nacional so, temos mais um “problema” de fluxo
do Índio – Funai. Como administrar tal de caixa do que de remuneração. Para
situação adequadamente? complicar mais ainda, recentemente, o
A enunciação de uma identidade governo transformou o “auxílio defeso”
diacrítica geralmente vem expressa em em “seguro desemprego”, a partir de um
conjunto com uma demanda por direi- equacionamento indevido entre o tra-
tos de outra natureza, como o direito à balho na pesca – em muitos casos em
propriedade, à renda ou ao emprego. regime familiar ou em bases comuni-
Mas bastaria enunciar uma identidade, tárias – com o “emprego”, e foi a partir
como a de remanescente de quilombo, destas relações que se desenvolveram os
para assegurar o direito à propriedade requisitos para acesso ao “direito”.
como expresso no artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitó- O LUGAR DO DIREITO E SUA
rias - ADCT? Por força da Convenção CAPACIDADE REDISTRIBUTIVA
169 da Organização Internacional do EM UM EXEMPLO PARADIGMÁTICO
Trabalho – OIT – não cabe interferên- O direito de moradia pode ser con-
cia externa na assunção de uma iden- siderado sem muita dificuldade como
tidade coletiva. Mas tal auto definição um direito que atravessa as três dimen-
deve levar necessariamente à consecu- sões que tratamos de bem. Também sem
ção de direitos diferenciados? muito problema posso argumentar que
Há como não fazer uma distinção ele está presente em todas sociedades,
entre o direito ao trabalho e o aces- independente de seu modelo organiza-
so ao emprego? Do universo da pesca cional ou suas lógica estruturante. Tam-
posso retirar um exemplo interessante. bém a trajetória da sociedade, colonial,
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RONALDO LOBÃO
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