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Jacinta Escudos1
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Este artigo é resultado do trabalho monográfico Literatura e cinema em A-B-Sudario: uma articulação
da crisedo sujeito na pósmodernidade, apresentado para a obtenção de bacharel em letras pela Universide
federal do Paraná (UFPR) em 2009.
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Aluna doutoranda do programa de Pós-graduação em literatura da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC)
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No livro Poética do pós-modernismo, Linda Hutcheon aponta para uma abordagem crítica do termo
“pós-modernismo”, no qual reflete sobre a contradição existente nessa noção pós-moderna. Assim, o pós-
moderno é revolucionário em relação ao modernismo, mas também se apresenta como algo conservador,
estando “dentro e fora” dos discursos dominantes. O pós-modernismo, nas considerações da autora, é a
própria contradição do mundo estético-cultural atual. Cf. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-
modernismo: história, teoria e ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991
espanhola, entre outros eventos políticos propiciaram a migração de artistas e
intelectuais para Estados Unidos e para alguns países da América Latina, deslocando o
centro da produção artístico-intelectual ocidental. Contudo, deve-se levar em
consideração que foi nesse contexto que as ditaduras totalitaristas latino-americanas se
fortaleceram com a ajuda militarista dos Estados Unidos.
Dessa forma, é possível afirmar que após a segunda metade do século XX, os
valores que sustentavam o arcabouço social foram questionados, visto que foram muitos
deles que propiciaram os grandes desastres da época (segunda guerra mundial, ditaduras
totalitaristas na América Latina, intervencionismo norte-americano). Dito de outro
modo, valores como nação, raça, classe social, que configuraram as sociedades do
século XIX e do começo do século XX, começaram a ser questionados, por movimentos
como os de Contracultura nos Estados Unidos, diversos movimentos de esquerda no
contexto latino-americano, entre outros.
Esse processo fragmentador das identidades faz com que o sujeito se desloque
de si para ir ao encontro de outras possibilidades de experienciar sua existência no
mundo. Ou seja, a sua identidade passa a ser algo móvel e multiplicável, visto que não
se fixa numa forma específica de ser. Assim, o sujeito é “deslocado, descentrado,
reinscrito (...), é projeto de destinerrância” (DERRIDA, 2005, p. 154). Nessa
perspectiva, o sujeito passa a ser considerado como um ser de saída, ou seja, um ser que
não se ancora em nenhuma identidade, pelo contrário, exercita a sua multiplicidade
identitária. Isso não quer dizer que no contexto atual, não existam identidade ou, que
não exista a necessidade de pensar as identidades, pelo contrário, essa perspectiva
permite que essas identidades não observadas ou contempladas pelos princípios
normativos da sociedade, possam emergir num contexto em que não seja necessário
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Aqui é importante ressaltar que o que está sendo colocado aqui não é a afirmação que sustentaria a
hipótese de uma sociedade homogênea e ideal existente antes da segunda guerra mundial e dos governos
totalitaristas latino-americanos, pelo contrário, é constatar que os discursos que estruturavam uma
sociedade homogênea são falseáveis e que foram justamente eles que provocaram os desastres
humanitários da época.
responder apenas uma “chamada” como aponta Derrida. Dito de outro modo, se antes
dos movimentos feministas e LGBT´s esperava-se que existissem apenas duas
orientações sexuais, na atualidade sabemos que os estudos destes movimentos
evidenciaram que a subjetividade da sexualidade não funciona apenas no binarismo
homem/mulher. Assim o sujeito da segunda metade do século passado se depara com
uma sociedade desarticulada e que multiplica seus “sistemas de significação e
representação cultural (...) na qual é confrontado com uma multiplicidade de identidades
com as quais poderia se identificar, ao menos temporariamente” (HALL, 2006, p. 13).
Portanto, as identidades, não são mais vistas como essências, mas como
“instância”, um não-lugar, o “sem lugar” que também não possui tempo, porque a
diversificação de percepção sobre o sujeito ocorre de forma simultânea. Portanto, o
sujeito moderno se transforma de unidade para pluralidade de “eus” que convivem entre
si, mas não irredutíveis, fazendo com que nenhum prevaleça sobre outro. Desta maneira,
segundo Raul Antelo, Derrida considera que:
Trata-se de uma relação com o outro na qual eu digo nem sim nem não, digo
que quero ter a liberdade não de rebelar-me, de revoltar-me ou de refutar,
mas de não responder, firmando enunciados que não dizem nem sim nem
não, um nem sim nem não que não é simplesmente uma dupla negação ou
uma dialética. “I would prefer not to” (DERRIDA, s/d, apudANTELO, 2007,
p.45).
Quando me refiro à “potência” do sujeito, aponto para aquilo que o sujeito não
é, mas que poderia chegar a ser. Ele não responde concretamente a nenhuma das
chamadas que a sociedade lhe envia, no entanto deixa a brecha para uma possível
resposta. Este tipo de entendimento do sujeito gera um atrito entre o indivíduo e a
sociedade, pois, como apontado por GayatriSpivak, apesar das lutas dos diferentes
movimentos sociais e estéticos, as normais sociais ainda estão pensadas a partir de um
sujeito único, ou seja, a sociedade espera que os indivíduos que a conformam
correspondam a um tipo de comportamento predeterminado pelas normas éticas,
políticas e morais.
Esse tipo de experiência foi registrado ou, pelo menos, refletido nas técnicas
experimentalistas das artes, que propunham, entre outras coisas, a diluição das fronteiras
que delimitavam cada uma das expressões artísticas, renovando e potencializando a
força crítica das artes, valendo-se de “recursos pacíficos, sofisticados e minuciosos,
característicos dessa nossa época eletrônica” (CALINESCU, 2003, p. 129), para
possibilitar novas perspectivas no campo criativo. Assim, no caso da escrita, houve um
interesse por renovar o trabalho já proposto em Un Coup de Dés Jamais N'Abolira Le
Hasard de Mallarmé no fim do século XIX, que dizia respeito à materialidade da
palavra. Para além da exprimentação com o espaço vazio da página, a narrativa da
metade do século XX brinca com a criação de imagens, a partir da sua relação com as
técnicas da linguagem cinematográfica, descentramento do foco narrativo, a diluição de
um personagem tipificado, etc.
A-B-Sudario trata da vida de uma escritora (La Cayetana) que deixa seu
emprego para empreender a tarefa da criação, isto é, a escrita de um livro. Sua vida está
dividida entre duas cidades: Karmatowne Sansívar, sendo a primeira o lugar de sua
residência e a segunda, a sua cidade natal, aonde ela volta quando se cansa demais de
KarmaTown. Ao chegar a Sansívar, reencontra-se com seus quatro amigos (Homero,
Pablo Apóstol, El Fariseo e El Trompetista) cujo contato permite que Cayetana explore,
no romance do qual ela é suposta autora, o desespero da condição humana de existir,
por intermédio dos conflitos latentes a essa relação de amizade e do enfrentamento com
as dificuldades da expressão.
Num outro momento, a mesma estratégia funciona como uma janela que
permite ao leitor acessaras impressões ou imagens com as quais o personagem se
depara:
“SALÓN EL EGIPCIO”
(…) volvamos a la escena del crimen, la noche de los hechos/ no, no puedo
recordar la fecha/entonces, estoy sentada delante de esta copita transparente
llena de tequila, pensando en todo lo que voy a sentir al día siguiente/estoy en
el Salón “El Egipcio”/ por supuesto que estoy sola, ya sabes que siempre
salgo sola/siempre quise conocer ese lugar (…) entonces, estoy velando la
copita de tequila cuando miro una mano (que no es la mía), agarrar la copa
desde mi flanco izquierdo. sigo con la mirada la copa que termina
inclinándose frente a la boca de un perfecto desconocido (ESCUDOS, 2003,
p. 15).
O capítulo inicia com três diálogos, entre Homero, Pablo Apóstol, El Fariseo e
El Trompetista (presume-se, pois isso não é especificado no romance). Nesse falatório,
os quatro amigos especulam acerca de Cayetana, ou seja, sobre o que ela é ou possa ser
ou fazer. Cayetana é um mistério tanto para o leitor como para os próprios personagens,
visto que as perguntas giram em torno de quem ela é? Pergunta que se faz latente no
primeiro bloco de intervenções onde dois ou mais amigos de Cayetana falam sobre um
acontecimento em que Cayetana tenta esconder os seus olhos: “-viste?/-se
pusolosanteojos para que no Le vieron sus ojos de caverna roja/-las grutas de lalocura”
(ESCUDOS, 2003, p.71). É importante ressaltar o uso do símbolo do olho para exprimir
a idéia do mistério que Cayetana representa, pois metaforicamente esta parte do corpo
tem sido considerada como a janela da alma, aquilo que vai revelar o que o ser humano
realmente é. Por isso o fato de Cayetana tentar esconder os seus olhos aqui é importante,
pois mediante essa prática ela esconde seu verdadeiro “eu”. O capítulo se fecha com a
consciência de Cayetana suposta-autora, que controla ou conhece os pensamentos dos
personagens que ela mesma constrói. Assim, na narrativa, após aparecem novos
questionamentos sobre as atividades de Cayetana na ausência dos amigos, a suposta-
autora complementa “(...) é muito simples: (...) calculo a hora e o dia (...) em que
ninguém tenha a ideia do absurdo de visitar-me” (ESCUDOS, 2003, p. 80-810)6.
¿dejaré algún día de sentir esta angustia?/ ¿dejaré algún día de sentir esta
angustia?/ ¿dejaré algún día de sentir esta angustia?/ ¿dejaré algún día de
sentir esta angustia?/ DÍA 1/ el día. los espejos. otra vez. otro día./ siempre
despierto./ al despertar, regreso a este lado de la realidad./ y al hacerlo,
pienso siempre en la muerte. concluyo:/ DORMIR ES UNA MANERA DE
MORIR Y SOÑAR OTRA MANERA DE VIVR (ESCUDOS, 2003, p. 105).
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Traduzido de “es muy sencillo: (..) calculo la hora y el día (…) en que a nadie se le vaya a ocurrir
semejante disparate como el de venir a verme” Cf. ESCUDOS, Jacinta. A-B-Sudario. Guatemala:
Alfaguara, 2003
Fica patente que Cayetana rejeita sua realidade, preferindo o estado de sono,
que por sua vez é proposto como outra maneira de existência. Isso levaria o leitor a
formular a seguinte pergunta: por que Cayetana preferiria o mundo dos sonhos como
uma forma de existência “melhor” do que a que vive de forma consciente? A resposta a
essa pergunta aparece logo em seguida do trecho citado, na leitura do romance: “Acho
que é uma realidade mais vivível. Porque tenho a opção do absurdo, onde o ridículo é
aceitável” (ESCUDOS, 2003, p. 108)7, o que resulta da sua “inadaptabilidade” às
normas estabelecidas pela sociedade, que exige uma identidade, um nome e, portanto
determina um tipo de responsabilidade diante dos outros que determina em alguma
medida as ações do ser humano. Desta maneira, a morte resulta ser a saída para
estabelecer uma existência distanciada de todas essas características que determinariam
uma unicidade do sujeito, no silêncio da morte não é necessário responder às
“chamadas” (DERRIDA, 2005) que a sociedade lança para o indivíduo. Assim,
Cayetana experimenta a morte como um ritual que lhe permite aceitar a diferença que
faz parte do seu ser singular. Assim, a existência seria, para Cayetana, um enigma de
existência, ou melhor, um dilema em que “a vida limita você? Ou é você que limita a
vida? É o medo de morrer? (…) a morte libera da matéria e a dor termina” (ESCUDOS,
2003, p. 124)8. Ou seja, Cayetana aspira a alcançar um estado primitivo da sua própria
existência9, já que esta exige uma resposta diante das constantes “chamadas”, conforme
já mencionamos.
Todas essas angústias são articuladas por Cayetana-suposta-autora, que escreve
para tentar visualizar um fio condutor da sua existência, para tanto se re-cria na sua
própria personagem Cayetana no romance que nunca termina. A figura desta suposta-
autora se revela ao leitor quase na parte final do romance, numa espécie de entrevista:
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Traduzido de: “me parece una realidad más vivible. porque tengolaopcióndel absurdo donde lo ridículo
esaceptable” Cf. Cf. ESCUDOS, Jacinta. A-B-Sudario. Guatemala: Alfaguara, 2003
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Traduzido de “¿te limita la vida? ¿o la limitas tú? (...) ¿te limita el miedo a morir? (...) la muerte te libera
de la materia y el dolor termina”. Cf. ESCUDOS, Jacinta. A-B-Sudario. Guatemala: Alfaguara, 2003
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O termo primitivo faz alusão ao estado inicial dos objetos, se fazemos um desdobramento deste
significado, encontramos que a existência inicial do sujeito seria concebida como aquela que se encontra
antes das “chamadas” que a sociedade lhe lança. Cf. HOUAISS, Antônio, et al. Dicionário Houaiss. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2003
ahora?/ - Y ahora nada se terminó (…) Lee: Música de danzón.
Sombras entrelazadas, bailando. Humo acuchillado por una luz
que lo atraviesa. (…) No hace falta leerlo todo de nuevo.
(ESCUDOS, 2003, p. 259)
Sendo uma das únicas partes em que respeita as regras de pontuação, como o
início de cada frase com letra maiúscula depois de cada ponto, Cayetana-suposta-autora
fala sobre a experiência da escrita e mais especificamente do livro que depois de tantas
tentativas conseguiu finalizar. É interessante que, no momento de ler um trecho do seu
livro, é a transcrição da primeira página com que A-B-Sudarioinicia, propondo, desta
maneira, uma leitura circular da fábula de Cayetana.
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No capítulo “tradição de ruptura” do livro Os filhos do barro, Octavio Paz aponta para uma tradição em
que a ruptura com o passado se torna uma constante nas artes. Cf. PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do
romantismo à vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
Por outro lado Frederic Jameson, afirma que no contexto do pós- segunda guerra mundial existe uma
ruptura com as “histórias mestras” que sustentavam a sociedade ocidental. Cf. JAMESON, Frederic. Uma
modernidad singular: ensayo sobre la ontología del presente. Barcelona: Gedisa, 2004.
fronteiras artísticas, como o caso da relação entre a linguagem literária e a
cinematográfica: a montagem, a decupagem, movimentação da câmera para captar
diferentes ângulos, por exemplo, com o intuito de ressignificá-las e potencializar desta
maneira a palavra.
Bibliografia básica:
ARNHEIM, Rudolf. A arte do cinema. Lisboa: Áster, s/d.
DERRIDA, Jacques. “'Hay que comer' o el cálculo del sujeto”. Pensamiento de los
confines, Buenos Aires, n.17, dez. 2005. Entrevista concedida a Jean Luc Nancy.
FERNÁNDEZ MORENO, César (org.) América Latina em sua literatura. São Paulo:
Perspectiva, 1979.
SHADE, Eunice. Cafecito com Jacinta Escudos. El nuevo diario. Managua, Nicaragua,
Edición 9606.