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Momentos Decisivos
na História do
Cristianismo
O que a destruição de Jerusalém, a Reforma, a Revolução Francesa e a
Conferência Missionária de Edinburgo têm em comum? De acordo com Mark Noll,
esses eventos e outros marcaram momentos decisivos nos dois mil anos de história do
Cristianismo.
Pontos de Transição
Sumário
Agradecimentos
Introdução: A Idéia de Pontos de Transição e as Razões para o Estudo da História do
Cristianismo
Agradecimentos
Sou profundamente grato a um grande número de professores, amigos e colegas por seu
auxílio nos tópicos deste livro, parte do qual data de vários anos.
Aos talentosos mestres com os quais estudei história da igreja, tais como Harold O. J.
Brown, Jack Forstman, John Gerstner, Dale Johnson, H. D. McDonald, John Warwick
Montgomery, John Woodbridge e o falecido Richard Wolf. Espero que esses
estudiosos, e especialmente David Wells, meu primeiro mestre em vários sentidos do
termo, irão entender como um elogio se algumas de suas afirmações ou um vestígio de
seus esboços se refletirem nesta obra, após vários anos de adaptação das anotações de
aula para a página impressa. Nestes últimos anos, a influência de um outro tipo de
Nesta obra existem três tipos de notas. As notas que explicam termos e outras questões do
texto estão assinaladas com um asterisco e encontram-se ao pé da página. Ainda ao pé da
página estão as notas referentes a citações e outras autoridades. Cada uma das citações mais
longas dos quadros inseridos no texto também tem uma nota. Essas citações estão reunidas
consecutivamente no final do livro, na seção “Notas dos Quadros.”
Entre as últimas palavras ditas por Jesus aos seus discípulos estão algumas declarações
registradas em Mateus 28 e Atos 1. Essas palavras, embora sejam importantes por muitas
outras razões, também esboçam uma estrutura para a história do cristianismo.
“Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra.” Agora nada poderia acontecer aos
seguidores de Cristo que estivesse fora do alcance da sua soberania; nenhuma experiência
vivida pela igreja, não importa quão gloriosa ou quão banal, seria irrelevante para o Verbo
vivo de Deus.
“E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século.” Aonde quer que a
igreja pudesse ir, quaisquer que fossem os pecados cometidos pelos cristãos como
indivíduos e como grupo, o povo de Deus seria sustentado, não por sua própria sabedoria, e
sim pela presença de Cristo.
Evidentemente, essas palavras de despedida de Jesus não fornecem detalhes sobre a história
posterior do cristianismo, mas oferecem orientação para essa história. A história do
cristianismo tem percorrido o seu caminho através de vastas regiões, ao longo de grandes
períodos de tempo, em uma enorme variedade de formas. Todavia, continua sendo a
história daqueles que cultuam o Senhor da vida, procuram servi-lo e são as suas
testemunhas.
Uma das maneiras mais interessantes de se obter uma compreensão geral da história cristã
(embora existam muitas outras) é examinar momentos críticos de transição dessa história.
A identificação desses momentos críticos é um exercício subjetivo, pois as decisões de um
observador sobre quais são esses pontos de transição importantes depende inevitavelmente
daquilo que o observador considera mais importante. Todavia, por subjetiva que seja a
seleção de um número limitado de pontos de transição como momentos críticos da história
cristã, tal esforço tem uma série de vantagens:
Este livro resultou diretamente dessas diferentes experiências de ensino. Em cada caso,
muitos materiais foram sacrificados a fim de se poder concentrar em alguns pontos de
transição importantes. Todavia, também ganhou-se muito na tentativa de combinar um
enfoque mais detalhado do que o permitido por um curso panorâmico e ao mesmo tempo
dar atenção aos movimentos em grande escala de instituições, pessoas e doutrinas da
história da igreja.
O livro que resultou dessas atividades de ensino é intencionalmente breve. Foi escrito para
leigos e estudantes principiantes, e não para eruditos. Vem de um autor que possui
pressuposições cristãs (especificamente do tipo protestante evangélico), mas pretende ser
tão objetivo e imparcial quanto o permitam tais pressuposições. Também foi escrito com a
intenção de apresentar o cristianismo como uma religião mundial, ao invés de uma fé
apenas para europeus e norte-americanos.
Os doze pontos de transição escolhidos para análise especial, assim como os pontos de
transição potenciais do século XX discutidos no último capítulo, de modo algum são os
únicos que poderiam ter sido selecionados. Haveria boas justificativas para incluir-se
muitos outros eventos, como, por exemplo (esta é apenas uma lista parcial):
Cada capítulo inicia com uma descrição relativamente detalhada do próprio ponto de
transição, uma vez que os detalhes históricos nos lembram que a “História da Igreja” nunca
é simplesmente a vasta amplitude, ao longo de grandes eras, de doutrinas magistrais,
princípios conflitantes ou conseqüências inevitáveis. É antes o resultado cumulativo de
pensamentos muitas vezes confusos, de ações muitas vezes hesitantes e de conseqüências
muitas vezes imprevistas experimentadas por pessoas mais ou menos iguais a nós.
Somente após a tentativa de substanciar a história desse modo concreto é que prosseguimos
para questões mais amplas e gerais de por quê, como e portanto. Por que esse
acontecimento foi fundamental? Como se relacionou com o que o precedeu e levou ao que
o seguiu? O que poderíamos aprender com esse evento, ao olharmos para trás no final do
século XX? As respostas a essas perguntas necessariamente devem ser mais gerais, porém
visam associar, e não dissociar, importantes conseqüências históricas a eventos essenciais
claramente focalizados.
A fim de fornecer um contexto ainda melhor para os pontos de transição, cada capítulo
começa com um hino e termina com uma oração escritos por volta da época do ponto
transição analisado. Cada capítulo também contém várias citações extensas de pessoas que
participaram do ponto de transição ou que foram afetadas pelo mesmo. Esses materiais,
juntamente com os mapas, tabelas e ilustrações, visam em parte tornar o livro mais
agradável de ler. Todavia, também servem como um meio de se colocar alguma carne nos
ossos desnudos da história. As grandes decisões do passado cristão foram tomadas por
pessoas que cantavam e oravam com seus irmãos na fé, que experimentaram a edificação
inestimável do culto regular e as tristezas decepcionantes dos conflitos eclesiásticos, e que
muitas vezes expuseram amplamente suas idéias por escrito ou oralmente. Apresentar as
suas vozes não é simplesmente oferecer um atrativo, mas mostrar que os grandes
acontecimentos da história da igreja sempre envolveram pessoas de verdade, para as quais o
culto regular, o estudo das Escrituras, a participação nos sacramentos e a atenção à
pregação e ao ensino constituíram o fundamento do que está escrito nos livros.
Mas, alguém poderia perguntar, por que essa preocupação com a história da igreja? Por que
achar que qualquer tipo de conhecimento sobre o passado cristão – que com tanta facilidade
pode parecer obscuro, mesquinho, confuso ou complexo – deveria interessar ou auxiliar os
cristãos do presente?
Obviamente, algumas pessoas têm maior inclinação natural para o estudo da história do que
outras. Todavia, para os crentes do final do século XX existem várias razões pelas quais ao
menos algum interesse pela história da igreja é valioso. Uma breve explanação dessas
razões lança o fundamento dos pontos de transição específicos que compõem este livro.
Podemos considerar o passado cristão como uma grande reunião em que amigos de
confiança, que há muito tempo têm se esforçado para entender as Escrituras, defendem as
suas posições em diferentes cantos da sala. Ali está Agostinho discursando acerca da
Trindade, aqui São Patrício e o Conde Von Zinzendorf comparando notas sobre o poder da
luz sobre as trevas, lá adiante Catarina de Siena e Phebe Palmer discutindo o poder da
santidade, do outro lado da sala o papa Gregório Magno falando dos deveres de um pastor,
ali adiante o monge ortodoxo São Hermano do Alasca e o bispo anglicano africano Samuel
Ajayi conversando sobre o que significa comunicar o cristianismo através de fronteiras
culturais, aqui São Francisco falando sobre a bondade da terra ordenada por Deus, em um
grupo Tomás de Aquino, Simeão, o Novo Teólogo, e Pascal falando da relação entre razão
e revelação, ali Hildegarde de Bingen e Johan Sebastian Bach tratando de como se devem
cantar louvores ao Senhor, Lutero falando da justificação pela fé, João Calvino discorrendo
sobre Cristo como Profeta, Rei e Sacerdote, ali Carlos Wesley falando sobre o amor de
Deus, acolá sua mãe Suzana sobre a comunicação da fé aos filhos, e assim por diante. Se
um cristão atual deseja conhecer a vontade de Deus revelada nas Escrituras acerca de
quaisquer desses assuntos ou de muitíssimos outros, por certo é prudente que estude a
Bíblia cuidadosamente por si mesmo. Mas também é prudente buscar auxílio,
compreendendo que a indagação que faço às Escrituras sem dúvida já foi feita antes e já foi
abordada por outros que foram pelos menos tão piedosos quanto eu, pelo menos tão
pacientes em ponderar a palavra escrita e tão conhecedores do coração humano quanto eu.
Os professores de idiomas dizem que você não conhece a sua própria língua a menos que
tenha tentado aprender um segundo ou terceiro idioma. Da mesma maneira, os estudantes
das Escrituras não podem afirmar que entendem as suas riquezas a menos que tenham
consultado outras pessoas acerca do seu significado. De fato, os cristãos estão sempre
consultando uns aos outros acerca do significado da Bíblia, seja ouvindo sermões, lendo
comentários ou reunindo-se para estudos bíblicos de diferentes tipos. A dimensão
acrescentada pela história do cristianismo é a compreensão de que nos livros podemos
encontrar um reservatório maravilhosamente rico de envolvimento com as Escrituras por
parte daqueles que, embora mortos, ainda falam daquilo que encontraram nos textos
sagrados.
Por mais que a história da igreja ofereça esse tipo de auxílio direto na compreensão das
Escrituras, também apresenta uma grande advertência: a partir da distância fornecida pelo
tempo, muitas vezes é bastante fácil ver que algumas interpretações bíblicas que antes
pareciam inteiramente persuasivas foram de fato distorções da Escritura. Por exemplo,
quando descobrimos que alguns cristãos antigos pensavam que a Bíblia ensinava
claramente que o Império Romano haveria de introduzir o milênio, ou que Cristo voltaria
em 1538, ou que os africanos eram por natureza uma forma inferior de humanidade,
podemos ver o papel que determinados padrões de pensamento ou convenções intelectuais
de uma época têm desempenhado nas maneiras de interpretar a Bíblia.
possam ser tão dependentes das convenções da nossa era e também tão irrelevantes quanto
à mensagem da Bíblia como foram as interpretações claramente incorretas de épocas
anteriores. Para esse problema é difícil fornecer exemplos, uma vez que as interpretações
bíblicas que me são mais caras são precisamente aquelas que considero menos
influenciadas por modismos passageiros. (É muito mais fácil ver onde as interpretações
bíblicas que rejeito são dominadas pelo pensamento de hoje.) Todavia, a constatação de
que pessoas muito piedosas do passado foram capazes de sustentar interpretações estranhas
das Escrituras deve servir de advertência para todos nós.
3. O estudo da história da igreja também é útil como um laboratório para o exame das
interações cristãs com a cultura circundante. Para tomar um exemplo premente, ainda que
não muito importante, neste final do século XX muitas igrejas do ocidente defrontam-se
com questões acerca do tipo de música que devem usar. Todos os antigos hinos devem ser
abandonados em favor de novos cânticos de louvor? Deve a música ser executada por um
órgão? Por um conjunto musical? Deve ser cantada à capela? com equipamento elétrico?
com bateria? O estudo do passado não pode fornecer respostas fáceis sobre a melhor
maneira de se usar a música para Cristo em nossos dias. Mas o exame de períodos como a
primeira metade do século XVI, quando, em resposta aos tumultos da Reforma, pelo menos
cinco ou seis decisões foram tomadas com respeito ao uso da música na igreja, certamente
seria útil. Quando os católicos romanos escolheram uma música complexa executada por
profissionais, os calvinistas o cântico congregacional dos salmos com melodias simples, os
ortodoxos a preservação das antigas liturgias, os anabatistas a rejeição de todas as formas
“mundanas” da música em favor do canto congregacional sem acompanhamento, os
luteranos a combinação da música profissional com o canto congregacional e os anglicanos
(caracteristicamente) hesitaram entre os estilos luterano, calvinista e católico, houve
conseqüências que ajudaram a moldar cada uma dessas tradições cristãs. Verificar o que
resultou de diferentes decisões em favor de formas de música tradicional, contemporânea,
popular, profissional, elaborada ou simples dá-nos um sólido contexto para tentarmos
refletir acerca das questões atuais referentes ao uso da música.
Sobre uma questão que pode ter conseqüências de vida ou morte, os cristãos modernos
enfrentam escolhas difíceis acerca de como viverem como crentes em diferentes situações
políticas. Novamente, a história do cristianismo não pode oferecer respostas definitivas,
mas pode proporcionar um conjunto de cenários contrastantes. Às vezes a igreja tem
florescido sob a tirania, às vezes a tirania a tem dizimado. Em diferentes épocas a igreja
tem apoiado (ou atacado) a monarquia, a democracia e a aristocracia. As igrejas têm tanto
sustentado quanto resistido aos regimes vigentes. Os modernos cristãos da Sérvia, Kuwait,
Rússia, Ruanda e Irlanda do Norte provavelmente estarão buscando diferentes tipos de
orientação na história da igreja. Mas todos serão capazes de encontrar irmãos que já
percorreram algum caminho semelhante ao deles.
E é assim com muitas outras circunstâncias: o relacionamento dos cristãos com a ciência, as
atitudes cristãs quanto a diferentes grupos étnicos, a promoção da paz ou da guerra, a
contribuição cristã para diferentes formas de organização econômica, a discussão sobre o
que comer ou beber, estratégias cristãs para a organização da obra de Deus e assim por
diante.
Até mesmo uma pequena compreensão histórica pode beneficiar os crentes modernos que
tentam agir de maneira responsável em qualquer uma dessas esferas culturais. A primeira
certeza é que quase todos esses assuntos já foram enfrentados pelo menos de alguma forma.
A segunda é que os cristãos – guiados pelas Escrituras, pelas autoridades da igreja, pelo
emprego sábio da sabedoria do mundo e pela direção interna do Espírito – muitas vezes
agiram de maneira sábia e correta acerca de tais questões culturais. A terceira é que, mesmo
onde em retrospecto parece que os cristãos erraram gravemente em suas decisões, o Senhor
da igreja não os abandonou à sua insensatez, mas, a despeito dos seus esforços
equivocados, continuou a sustentar os seus.
4. Essa percepção que o estudo histórico proclama em alta voz, de que Deus sustenta a
igreja a despeito dos esforços freqüentes da mesma em trair o seu Salvador e a sua própria
vocação superior, aponta para outro benefício da história do cristianismo. O estudo do
passado pode ser útil para moldar atitudes cristãs apropriadas. Muitas vezes é mais fácil
viver o passado do que olhar para o presente a fim de distinguir entre questões que são
absolutamente essenciais ao cristianismo genuíno e aquelas que são de importância relativa
ou que não têm nenhuma importância. Se pudermos identificar nas gerações passadas o que
foi de significado central para a missão da igreja, teremos a oportunidade no presente de
canalizar as nossas energias emocionais e espirituais com discernimento – reservando o
nosso compromisso mais profundo somente para aqueles aspectos da fé cristã que
merecem tal compromisso e agindo com uma tolerância cada vez maior à medida que nos
movemos do centro da fé para a sua periferia.
Ainda mais importante, o estudo da história da igreja deve aumentar a nossa humildade
sobre quem somos e aquilo em que cremos. Não há nada que a igreja moderna desfrute que
não seja uma dádiva das gerações anteriores do povo de Deus. Na realidade, nós
modificamos, adaptamos e ampliamos essas dádivas do passado, mas não as criamos.
Novamente, se a igreja está sempre a apenas uma geração da extinção, ela também desfruta
de uma herança incomparável. Quanto mais sabemos como essas dádivas chegaram até nós,
mais humildemente podemos agradecer a Deus por sua fidelidade às gerações passadas,
bem como à nossa.
Mais ainda que humildade, o estudo do passado cristão também pode gerar profunda
gratidão. A despeito de uma impressionante série de triunfos que honram a Deus e apesar
do vasto e profundo registro de atos de piedade entre cristãos de condição elevada ou
inferior, o triste fato é que a história da igreja muitas vezes é uma história sórdida e
revoltante. Tão logo os estudantes deixam para trás as versões idealizadas da história cristã
para entrarem num estudo mais realístico, fica claro que o egocentrismo, a rebelião, o
nepotismo, a mesquinharia, a indolência, a covardia, o assassinato (ainda que dignificado
com uma linguagem piedosa) e a ânsia pelo poder, juntamente com todas as outras
concupiscências, têm florescido na igreja de maneira quase tão ignóbil como na sociedade
em geral. O estudo da história da igreja pode ser um abridor de olhos. Os heróis da fé
geralmente têm pés de barro – às vezes pernas, corações e cabeças também. As eras de
ouro do passado geralmente revelam-se manchadas se forem examinadas suficientemente
de perto. Acumulando-se em torno dos heróis da fé existem muitos vilões e alguns deles se
parecem um bocado com os heróis.
A despeito de uma história emaranhada, a promessa do Salvador acerca da igreja tem sido
cumprida: “As portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18). Mas
precisamente essa história confusa aponta para a razão por que o cristianismo tem
persistido: “Eu edificarei a minha igreja.”
Para concluir esta introdução, talvez seja útil dizer algumas palavras sobre o que virá a
seguir.
A maior parte dos capítulos fala com mais freqüência da “história do cristianismo” do que
da “história da igreja,” uma vez que “história da igreja” implica um compromisso mais
forte com uma expressão particular da fé do que é o caso com a “história do cristianismo”.
A minha própria convicção é que o “cristianismo” significa algo definido, com limites que
são muito bem colocados pelos grandes credos considerados nos três primeiros capítulos.
Além disso, as minhas próprias convicções protestantes e evangélicas levam-me a pensar
que as formas revitalizadas da fé oriundas da Reforma são as melhores e mais verdadeiras
formas do cristianismo. Todavia, ao mesmo tempo o estudo histórico tem me convencido
de que às vezes os protestantes confessionais têm honrado os ideais da Reforma mais com
palavras do que na realidade. O estudo histórico também mostra que os cristãos de outras
tradições cristãs regularmente revelam virtudes semelhantes a Cristo e praticam mais uma
humilde dependência da graça de Deus do que as minhas convicções confessionais me
dizem que eles deveriam fazer. Com esses fatos em mente, procurei escrever com tanto
respeito quanto possível pelas formas muito diferentes de cristianismo que têm sido
praticadas com integridade e continuam a ser praticadas com integridade em todas as partes
da igreja cristã.
As páginas que se seguem refletem aquilo que poderia ser legitimamente chamado de uma
perspectiva masculina em relação à história do cristianismo. Em um admirável livro sobre
as vidas religiosas de mulheres católicas medievais, Caroline Walker Bynum escreve que
“as mulheres tinham a tendência de contar histórias e desenvolver modelos pessoais sem
crises ou pontos de transição.”1 O fato de que são principalmente homens que figuram
como os atores principais nos pontos de transição que se seguem significa não tanto uma
declaração acerca do caráter intrínseco da fé, quanto uma reflexão de como a vida pública
da igreja tem sido documentada através dos séculos. Por certo é gratificante saber que, nas
últimas décadas, o florescimento das pesquisas sobre mulheres na história cristã está
produzindo o tipo de estudos gerais populares que este também procura ser, porém escritos
1
Caroline Walker Bynum, Holy Feast and Holy Fast: The Religious Significance of Food to Medieval Women
(Berkeley: University of California Press, 1987), 25.
com um enfoque sobre as esferas da vida cristã em que as experiências das mulheres têm
figurado de maneira mais destacada.2
Finalmente, vale observar que a abreviatura “c.” vem do latim circa – “por volta de” –,
sendo utilizada para designar uma data sobre a qual existe alguma incerteza.
.-.-.-.-.-.-.
Cada capítulo termina com uma oração feita por um personagem relacionado de algum
modo com o ponto de transição tratado no capítulo. Portanto, é apropriado que esta
introdução faça o mesmo, transcrevendo dos salmos duas partes de uma grande oração
bíblica de Moisés acerca do governo de Deus sobre a história humana:
2
Por exemplo, Ruth Tucker e Walter L. Liefeld, Daughters of the Church: Women and Ministry from New
Testament Times to the Present (Grand Rapids: Zondervan, 1987); Amy Oden, ed., In Her Words: Women’s
Writings in the History of Christian Thought (Nashville: Abingdon, 1994); e Margaret Bendroth e Phyllis
Airhart, eds., Faith Traditions and the Family (Louisville: Westminster/John Knox, 1996).
Leituras Complementares
Cada um dos capítulos termina com uma breve lista de artigos e livros que oferecem
leituras complementares acerca do ponto de transição ou de seu contexto mais amplo. No
final desta introdução, convém arrolar algumas das obras gerais e de consulta que foram
mais úteis na preparação deste livro.
Barrett, David B., ed. World Christian Encyclopedia. Nova York: Oxford University Press,
1982.
Bettenson, Henry, ed. Documents of the Christian Church. 2ª ed. Nova York: Oxford
University Press, 1963. Em português: Documentos da Igreja Cristã, 3ª ed. São Paulo:
ASTE/Simpósio, 1998.
Clouse, Robert G., Richard V. Pierard e Edwin M. Yamauchi. Two Kingdoms: The Church
and Culture through the Ages. Chicago: Moody, 1993.
Cross, F. L. e E. A. Livingstone, eds. The Oxford Dictionary of the Christian Church. 2ª ed.
Londres: Oxford University Press, 1974.
Douglas, J. D., ed. The New International Dictionary of the Christian Church. Grand
Rapids: Zondervan, 1974.
The 100 Most Important Events in Church History [Christian History, nº 28]. 1990.
Lane, Tony, ed. Harper’s Concise Book of Christian Faith. San Francisco: Harper & Row,
1984.
Leith, John H., ed. Creeds of the Churches. 3ª ed. Atlanta: John Knox, 1982.
The New Schaff-Herzog Encyclopedia of Religious Knowledge. 13 vols. Nova York: Funk
& Wagnalls, 1908-14.
Schaff, Philip. The Creeds of Christendom. 3 vols. 6ª ed. Nova York: Harper & Brothers,
1919.
Walker, Williston, com Richard A. Norris, David W. Lotz e Robert T. Handy. A History of
the Christian Church. 4ª ed. Nova York: Charles Scribner‟s Sons, 1985.
O apóstolo Paulo incentivou a igreja de Éfeso a entoar e louvar de coração ao Senhor (Ef
5.19). Várias das cartas de Paulo indicam que o canto de “salmos, hinos e cânticos
espirituais” era parte da mais antiga expressão cristã do culto, uma manifestação de
agradecimento a Deus pela ação redentora de Jesus Cristo na cruz (Ef 5.19; Cl 3.16; 1 Co
14.26). Embora restem poucas evidências sobre o conteúdo dos hinos do primeiro século,
os estudiosos têm identificado passagens “hínicas” no Novo Testamento com base em sua
“qualidade lírica e estilo rítmico,” bem como no seu vocabulário peculiar e conteúdo
doutrinário.1 Recorrendo inicialmente às expressões judaicas de louvor, os primeiros
cristãos começaram rapidamente a formular hinos especificamente cristãos e suas próprias
formas litúrgicas peculiares.
Um dos relatos mais antigos sobre a igreja feito por um observador externo menciona o
cântico de hinos. É o relato de Plínio, o governador romano da província do Ponto e da
Bitínia, na Ásia Menor (a moderna Turquia), de 111 a 112 AD. Descrevendo para o
imperador Trajano o que havia descoberto a respeito das práticas cristãs, Plínio escreve que
“no dia determinado, eles costumavam reunir-se antes do nascer do sol e recitar um hino
responsivamente a Cristo, como a um deus.”2 Registros posteriores testificam que no
segundo século o cântico de hinos estava bem estabelecido no culto cristão. À medida que
este se desenvolvia, os fiéis usavam modelos do Novo Testamento como a passagem lírica
abaixo, extraída de Colossenses. Nela, a comunidade cristã declara a centralidade de Jesus
na criação e na igreja, rememorando a morte e a ressurreição de Cristo e antecipando a
restauração de todas as coisas nele:
1
Ralph P. Martin, Worship in the Early Church (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), 48.
2
Henry Bettenson, ed., Documents of the Christian Church, 2ª ed. (Nova York: Oxford University Press,
1963), 3-4.
(Cl 1.15-20)
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
No ano 66 AD, a exasperação dos judeus com o governo insensível de Roma finalmente
explodiu. Havia uma longa história de conflitos no relacionamento entre os judeus e os
ocupantes romanos da Judéia. As relações dos judeus com os colonos, mercadores e oficiais
imperiais de língua grega, que eram protegidos pelo guarda-chuva romano, não eram
melhores. Roma freqüentemente havia saqueado o tesouro do templo para compensar
aquilo que chamava de impostos não pagos. Para governar a Palestina, ela havia enviado
procuradores de língua grega que não tinham nem interesse nem simpatia pela Judéia ou
pelo judaísmo. Roma detinha o monopólio das posições de riqueza e influência e havia
deixado os agricultores judeus cada vez mais imersos em dívidas.
Uma vez mais as legiões romanas moveram-se em direção a Jerusalém. Uma vez mais o
laço apertou. Desta vez não houve alívio. Em abril do ano 70 começou o cerco. O
sofrimento dos que ficaram presos em Jerusalém tornou-se horrível. Em setembro os
rebeldes judeus mais zelosos fizeram seu último esforço de resistência no templo. As fontes
fragmentárias que descrevem a revolta contêm relatos conflitantes sobre as intenções de
Tito. Josefo, um ex-general judeu que passara para o lado dos romanos nos primeiros dias
da revolta, escreveu que Tito esperava salvar o templo como um gesto de moderação
romana. Uma autoridade romana posterior, Sulpício Severo, registrou um relato do grande
historiador romano Tácito contendo uma história diferente. Tal relato sustentava que Tito
estava ansioso para destruir o templo. O raciocínio de Tito, conforme relatado por Sulpício
Severo, é particularmente digno de nota, pois ele queria erradicar o templo “a fim de que as
religiões judaica e cristã pudessem ser abolidas de modo mais completo, pois embora essas
religiões fossem mutuamente hostis, não obstante elas haviam surgido dos mesmos
fundadores; os cristãos eram um rebento dos judeus e se a raiz fosse tirada o tronco
facilmente pereceria.”3
Quer Sulpício Severo tenha narrado a história correta ou não, seus comentários lançaram
luz sobre uma realidade crucial acerca da história antiga da igreja cristã. Tito continuaria a
eliminar os últimos remanescentes da resistência judaica, inclusive o grupo obstinado que
ocupou a fortaleza montanhosa de Massada por quase três anos após a queda de Jerusalém.
Mais tarde, a resistência judaica contra Roma iria provocar uma repressão ainda mais
rigorosa, especialmente por parte do imperador Adriano, em resposta à revolta do ano 135.
No entanto, ainda mesmo antes da queda de Jerusalém e da destruição do templo em 70
AD, a observação de Tito acerca da mútua dependência entre o judaísmo e o cristianismo
havia se tornado uma história antiga. Embora o cristianismo em seus primeiros anos possa
ter funcionado como um apêndice do judaísmo, por volta do ano 70 ele já estava adquirindo
autonomia. Esse movimento em direção à independência do judaísmo foi grandemente
acelerado pela destruição romana do templo judaico e pela cessação dos sacrifícios que
haviam desempenhado um papel tão importante no culto judeu.
Este friso, retirado de um arco existente em Roma, mostra o conquistador Tito e suas tropas
Os golpes que Vespasiano, Tito, Adriano e outros generais romanos desferiram contra
Jerusalém não destruíram a igreja cristã. Antes, eles libertaram a igreja para o seu destino
como uma religião universal oferecida a todo o mundo. Todavia, da perspectiva dos
primeiros cristãos, a destruição de Jerusalém pelos romanos provavelmente pareceu uma
tragédia indescritível. O cristianismo nasceu no berço do judaísmo. Como foi indicado pela
importante conferência narrada em Atos 15, o antigo centro de comunicação, organização e
autoridade do cristianismo era Jerusalém. Os primeiros líderes da igreja, como Tiago, o
meio-irmão de Jesus, que presidiu o concílio de Atos 15, funcionavam como presidentes de
uma sinagoga. Os evangelhos foram escritos, em grande parte, para demonstrar como Jesus
levou a antiga história de Israel ao seu clímax – Mateus, para mostrar que Jesus cumpriu as
promessas proféticas acerca do Messias; Lucas, para mostrar que Jesus cumpriu a essência
da lei judaica; e João para mostrar que a revelação divina a Abraão havia culminado em
Jesus Cristo (Jo 8.58 : “Antes que Abraão existisse, eu sou”). Vários dos primeiros escritos
cristãos foram dirigidos à diáspora judaica, tais como a Epístola de Tiago, que começa
dizendo: “Às doze tribos que se encontram na Dispersão.” Outros antigos escritos cristãos
que também se tornariam parte do Novo Testamento estavam preocupados em definir as
fronteiras entre o judaísmo e o cristianismo. O apóstolo Paulo, em especial, argüiu
freqüentemente contra aqueles que queriam manter o rito judaico da circuncisão como um
3
Citado em F. F. Bruce, The Spreading Flame: The Rise and Progress of Christianity from Its First
Beginnings to the Conversion of the English (Grand Rapids: Eerdmans, 1958), 156.
Quando os romanos conquistaram Jerusalém, a maior parte dos cristãos já havia deixado a
cidade. Uma tradição registrada no quarto século pelo antigo historiador da igreja Eusébio
diz que os cristãos haviam se refugiado em Pela, uma cidade de bom tamanho a nordeste de
Jerusalém, do outro lado do Jordão. Evidências arqueológicas posteriores não confirmaram
o relato de Eusébio, mas o destino físico do cristianismo judaico não é a questão principal.
Antes, a destruição de Jerusalém acelerou uma mudança de percepção. Para os cristãos,
para os judeus e logo para muitas outras pessoas estava ficando cada vez mais claro que a
perturbação do judaísmo causada por Roma havia forçado a igreja cristã a cuidar de si
mesma. Como o historiador e erudito bíblico F. F. Bruce certa vez observou: “Nas terras
fora da Palestina, a década que terminou com o ano 70 marcou o final do período em que o
cristianismo poderia ser considerado simplesmente uma variedade do judaísmo... A partir
de 70 AD, a separação dos caminhos do cristianismo judaico e do judaísmo ortodoxo foi
decisiva... Daí em diante, a corrente principal do cristianismo teve que encontrar um
caminho independente no mundo gentílico.”5
Todavia, muitas questões surgiam agora. Como a igreja iria definir-se, organizar o seu
culto, encontrar uma autoridade segura, evangelizar e afastar ensinos perigosos? Em outras
palavras, uma vez passada a estrutura que fora dada pelo judaísmo, o que iria tomar o seu
lugar? Os três séculos posteriores à queda de Jerusalém forneceram respostas para essas
perguntas. Nós nos voltaremos agora para os meios que a igreja empregou para encontrar
estabilidade e sustentar o seu crescimento no período posterior aos apóstolos (o período
sub-apostólico). Porém, à medida que fazemos isso, é bom lembrar como a destruição
romana de Jerusalém foi importante em seu aspecto simbólico. Ao tornar impossível que o
judaísmo continuasse seu curso normal de desenvolvimento, os romanos também forçaram
4
W. H. C. Frend, The Rise of Christianity (Filadélfia: Fortress, 1984), 123.
5
Bruce, The Spreading Flame, 157-58.
A igreja primitiva beneficiou-se dos seus laços com o judaísmo de outra maneira
importante. Por várias décadas após 70 AD, a igreja continuou a desfrutar do status legal
que os judeus haviam conquistado através de provações muito difíceis. Normalmente, no
mundo mediterrâneo daquela época as nações conquistadas por Roma eram forçadas a
adaptar as religiões locais à religião romana; elas tinham que reconhecer os deuses de
Roma juntamente com os seus próprios. Portanto, o monoteísmo radical dos judeus tinha
sido uma fonte de incessantes conflitos a partir do primeiro século AC, quando Roma
conseguiu incorporar a Judéia. Eventualmente, Roma veio a reconhecer o judaísmo como
uma religião legal, a despeito da recusa judaica em reconhecer os deuses romanos. Esse
status como religio licita protegeu a igreja cristã por causa de sua associação com o
judaísmo mesmo depois que a destruição de Jerusalém havia de fato separado as duas
religiões.
À medida que a igreja cristã se expandia no mundo romano, as suas raízes judaicas seriam
obscurecidas, mas abaixo da superfície essas raízes continuaram sendo uma parte essencial
do que o cristianismo havia sido e do que haveria de tornar-se.
Saindo de Jerusalém
A estabilização da igreja agora entregue a si mesma é uma história complexa. A transição
de uma auto-definição ditada por uma agenda judaica para uma auto-definição apropriada a
uma religião missionária que se expandia por todo o mundo mediterrâneo e além do mesmo
certamente foi influenciada pelas condições gerais da época. A paz romana (pax romana)
estabelecida por César Augusto, que governou de 27 AC a 14 AD, oferecia estabilidade
política e social, tornando possível o movimento fácil de idéias e pessoas. A onipresente
cultura helenística que acompanhou a expansão do poder político romano tornou uma
forma comum (koinê) da língua grega disponível a todas as pessoas com um relativo nível
cultural que viviam sob o domínio romano. A dispersão dos judeus procedentes da Judéia,
que estivera se processando por vários séculos antes da época de Cristo, significava que
muitas comunidades de tementes a Deus que estudavam as Escrituras Hebraicas estavam
amplamente espalhadas por todo o mundo romano. No primeiro século AD havia também
uma insatisfação generalizada com as religiões herdadas do Mediterrâneo, que estavam
degenerando mui rapidamente em estéreis argumentos filosóficos ou em observância
política nominal. O cristianismo que, após o ano 70 expandiu-se com velocidade crescente
para fora da Judéia, foi capaz de beneficiar-se de cada uma dessas condições existentes.
De modo ainda mais sério que a oposição religiosa do judaísmo e a perseguição romana, a
igreja primitiva enfrentou um conjunto de incertezas internas. Poderiam ser traçados limites
claros entre o verdadeiro culto de Jesus Cristo e a multidão de religiões contemporâneas
gregas, romanas e do Oriente Médio que também apresentam revelações de um Deus
superior e apelos a uma zelosa vida moral na terra? Poderia a intensa vida espiritual do
cristianismo ser distinguida da interessante espiritualidade de grupos que os historiadores
modernos chamam de gnósticos por causa de sua dependência de várias formas de
sabedoria secreta (gnosis)? No final do segundo século, o apologista cristão Irineu
enumerou 217 variedades de tais religiões, algumas das quais se utilizaram liberalmente de
doutrinas ou práticas cristãs. Poderia a igreja, além disso, ter êxito em promover o tipo de
pureza moral que Jesus e os apóstolos descreveram como apropriado para os servos de
Deus? O mundo moral em que a igreja estava penetrando era um mundo em que os líderes,
especialmente os imperadores romanos, freqüentemente se dedicavam às práticas mais
degeneradas e as pessoas comuns muitas vezes estavam mais do que desejosas em seguir os
seus líderes.
Assim foi que, atacada por inimigos externos e ameaçada por idéias e práticas que punham
em risco o seu caráter interno, a igreja moveu-se para um mundo mais amplo. Uma vez
desvestida de seu arcabouço judaico pelos eventos referentes à destruição de Jerusalém,
como a igreja encontraria o seu próprio caminho? As respostas para esses desafios
ameaçadores puderam ser vistas, pelo menos em esboço, dentro de uma ou duas gerações
após as mortes dos apóstolos Pedro e Paulo, que provavelmente ocorreram nos anos 64 a
67. Por volta do ano 112, Inácio, o líder da igreja de Antioquia da Síria, exortou os seus
companheiros cristãos a seguirem “o bispo como Cristo Jesus seguiu o Pai.”6 A sua
exortação revelava a emergência de um sistema de organização eclesiástica construído em
torno de fortes bispos locais que estavam assumindo a tarefa de guiar os fiéis das suas
localidades ao mesmo tempo em que deliberavam com os seus colegas bispos de outros
lugares sobre a direção geral da igreja.
Pelo menos na época em que Inácio fez essa referência aos bispos, também estavam
circulando entre as florescentes congregações cristãs duas coleções de documentos cristãos
– uma delas, o quádruplo relato evangélico da vida de Cristo registrado por Mateus,
Marcos, Lucas e João, a outra coleção contendo cópias de dez a treze cartas do apóstolo
Paulo. Não passou muito tempo até que essas duas coleções fossem permanentemente
unidas pelos Atos dos Apóstolos para constituirem um “novo testamento” de escritos
sagrados a ser colocado ao lado do “antigo testamento” das Escrituras Hebraicas e assim
proporcionar orientação escrita normativa para a igreja.
6
Bettenson, Documents of the Christian Church, 63.
As diferenças entre os cristãos são mais interessantes (pelo menos para os cristãos) porque
ocorrem entre pessoas que concordam que as práticas, escritos e atividades da igreja
primitiva tem não somente uma fonte humana, mas também divina. Tais diferenças
resultam de entendimentos alternativos acerca da fé cristã. Por sua vez, essas amplas
diferenças de perspectiva teológica moldam o entendimento das evidências disponíveis
acerca da igreja primitiva.
Para fazer uma simplificação, é possível apontar para uma interpretação católica romana,
outra ortodoxa e outra protestante da história cristã antiga, cada uma das quais depende de
pressuposições básicas acerca da maneira pela qual Deus guia a igreja. A crença católica na
origem apostólica da tradição eclesiástica e no caráter apostólico do ofício de bispo
significa que as interpretações católicas da igreja antiga provavelmente irão atribuir um
papel mais central e mais positivo às ações dos primeiros bispos no sentido de formar as
instituições, organizar os textos sagrados e orientar o culto dos fiéis. Em contraste com isso,
a convicção ortodoxa acerca da orientação divina da igreja através dos processos orgânicos
do culto, da liturgia e da ação corporativa significa que as interpretações ortodoxas da
igreja antiga provavelmente verão padrões comuns de oração, hábitos que evoluem
gradualmente sobre o uso do Novo Testamento e o surgimento de um consenso em torno
das declarações credais como sendo os formadores cruciais da história cristã antiga.
Novamente, em contrate com isto, a fé protestante no poder normativo da Escritura,
juntamente com a suspeita protestante acerca das instituições humanas, significa que as
interpretações protestantes da igreja antiga provavelmente irão acentuar o papel
fundamental dos escritos do Novo Testamento e estar mais propensas que os católicos ou os
ortodoxos a encontrar falhas nas práticas ou decisões da igreja antiga.
A diferença prática entre essas concepções está nas atitudes para com os três elementos
estabilizadores que são o credo, o cânon e o episcopado. Cada tradição honra todos os três,
mas os protestantes dão mais ênfase à apostolicidade do Novo Testamento, os católicos
romanos à aplicação da apostolicidade através da agência dos bispos e os ortodoxos à
orientação apostólica geral da igreja que se tornou mais visível na promulgação dos credos
ecumênicos dos séculos IV e posteriores.
Essas diferenças de perspectiva podem parecer complexas, mas, principalmente por causa
da relativa pobreza de evidências concretas acerca da história da igreja no período
aproximado que vai dos anos 70-80 até 130-140, elas significam muito para a interpretação
da história da igreja na era sub-apostólica.
O Cânon
Os primórdios do processo pelo qual uma lista seleta de escritos veio a ser tratada como um
Novo Testamento normativo podem ser vislumbrados no próprio Novo Testamento, onde a
Segunda Epístola de Pedro fala dos escritos de Paulo como estando sujeitos às mesmas
distorções que “os ignorantes e instáveis” produzem nas “demais Escrituras” (2 Pe 3.16). Já
no início do período sub-apostólico circulavam entre as igrejas coleções dos escritos de
Paulo, que logo seriam associadas (certamente não muito depois do ano 100) aos quatro
evangelhos que também circulavam como uma unidade. No final do segundo século, Irineu
de Lião apresentou um relato interessante, e plausível para os cristãos da época, sobre
porque existiam quatro evangelhos acerca da vida de Cristo: “Pois, assim como existem
quatro regiões no mundo em que vivemos, e quatro ventos principais, ao passo que a igreja
está dispersa por todo o mundo, e a sua „coluna e fundamento‟ é o evangelho e o espírito da
vida, é próprio que ela tenha quatro colunas, exalando imortalidade por todos os lados e
[revitalizando a vida humana]. A partir desse fato, é evidente que o Verbo, ... aquele que foi
manifesto aos homens, nos deu o evangelho sob quatro aspectos, porém unidos por um
Espírito.”7
7
Irineu, “Contra as Heresias,” 3.11.8, em The Writings of Irenaeus, vol. 1, eds. e trads. Alexander Roberts e
James Donaldson, vol. 5 de Ante-Nicene Christian Library (Edimburgo: T. & T. Clark, 1868), 293.
Por confortável que seja para os protestantes a idéia de que o Novo Testamento sempre
existiu com limites firmes e claros a distingui-lo de todos os outros tipos de literatura, as
evidências históricas disponíveis mostram que, embora a coleção paulina e a coleção
quádrupla dos evangelhos fossem usadas como documentos normativos desde um período
muito antigo, foi necessário um processo de mais de dois séculos para se definir a
configuração precisa do Novo Testamento.
Nesse processo, como é tão freqüente na história cristã, o desafio das heresias
desempenhou um papel decisivo. A primeira declaração de um cânon definido de escritos
cristãos apareceu em Roma por volta do ano 144. Seu autor foi Márcion, que havia ido da
Ásia Menor para Roma com uma mensagem a respeito do Deus de amor. O ensino de
Márcion parecia ser cristão porque ele afirmava que Jesus Cristo revelou o amor divino em
sua dimensão mais plena. Porém, quando os líderes da igreja de Roma conheceram os
detalhes da sua mensagem, eles ficaram horrorizados, pois descobriu-se que o Deus de
amor de Márcion era um violento adversário da maléfica divindade da lei, que dominava o
Antigo Testamento. Como parte da sua mensagem, Márcion reclamava o direito de definir
os limites de uma Escritura normativa acerca de Cristo. Para ele, essa Escritura continha
uma versão corrigida do Evangelho de Lucas (que eliminou todas as referências de Jesus ao
Antigo Testamento) e dez cartas de Paulo (que supostamente mostravam que a graça triunfa
sobre a lei). Comentaristas posteriores observaram que Márcion foi o primeiro crítico
bíblico, embora infelizmente não o último, a fazer a sua obra mais importante com uma
tesoura.
O ataque de Márcion contra os evangelhos e algumas das epístolas que a igreja, através de
um processo intuitivo, já estava tratando como Escritura divina, estimulou vários esforços
no sentido de se definir com maior cuidado os escritos sagrados. Dentro de uma geração
após a morte de Márcion por volta do ano 160, ocorreram vários desdobramentos notáveis.
Irineu foi acompanhado pelos apologistas Justino e um discípulo deste, Taciano, na defesa
do quádruplo Evangelho de Mateus, Marcos, João e o texto integral de Lucas. Outros
líderes cristãos fizeram um sincero elogio a Márcion ao imitarem a sua publicação de listas
que delineavam o conteúdo de um Novo Testamento. A mais antiga dessas listas já
descoberta data de Roma, no final do segundo século. Ela foi publicada em 1740 por
Lodovico Antonio Muratori, sacerdote e arqueólogo italiano, sendo assim conhecida como
Cânon Muratoriano.
Essa lista é um documento particularmente instrutivo por mostrar que, por volta do ano
200, existia um conjunto de escritos cristãos normativos que eram substancialmente, mas
não exatamente, iguais ao que agora aceitamos como o Novo Testamento. Embora a
linguagem do Cânon Muratoriano nem sempre seja inteiramente clara, as interpretações
usuais do mesmo apontam para uma série de categorias que revelam continuidade e
descontinuidade com o Novo Testamento posterior:
Outros escritos discutidos no Cânon Muratoriano – o cânon diz que o Pastor de Hermas
“deve ser lido” mas não merece ser incluído entre os escritos dos “profetas” e dos
“apóstolos.” O documento é interrompido quando começa a arrolar os escritos que são
rejeitados, tais como um novo livro de salmos escrito por seguidores de Márcion.
A partir do final do segundo século, foi rápido o progresso em direção ao que se tornou
conhecido como o cânon fixo do Novo Testamento. Orígenes (c. 185–c. 254), o culto
teólogo de Alexandria, usou todos os 27 livros canônicos do Novo Testamento, mas
registrou disputas que ainda subsistiam acerca de Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2 e 3 João e
Apocalipse, bem como sobre outros livros que nunca alcançaram pleno status canônico,
como o Pastor de Hermas, a Epístola de Barnabé, o Ensino dos Doze Apóstolos e o
Evangelho aos Hebreus. No início do quarto século, Eusébio, o primeiro historiador da
igreja, falou especificamente acerca do Livro do Apocalipse. Ele observou que, como a
autoria desse livro às vezes era questionada (teria sido realmente escrito por João, o
discípulo amado?), ele permaneceu ao lado de Tiago, 2 Pedro, 2 e 3 João e Judas como um
livro amplamente usado na igreja, mas ainda não plenamente classificado com os
Evangelhos, Atos, os escritos de Paulo, 1 Pedro e 1 João como sendo universalmente
aceito. Por volta do final desse mesmo século, as listas de escritos do Novo Testamento
com os 27 livros definitivos haviam se tornado padronizadas, como na carta pascal do bispo
Atanásio, em 367, e no documento de um Sínodo realizado em 397 em Cartago, no norte da
África.
Eu temo... que alguns dos simples sejam seduzidos e se afastem de sua simplicidade e
pureza, pela sutileza de certos homens, e passem a ler outros livros – aqueles chamados
apócrifos – enganados pela semelhança de seus nomes com os livros verdadeiros... Pois,
assim como alguns se propuseram a colocar em ordem para si mesmos os livros chamados
apócrifos, e misturá-los com a Escritura divinamente inspirada... igualmente me pareceu
bem... colocar diante de vós os livros incluídos no Cânon, transmitidos e atestados como
divinos.
Existem, pois, no Antigo Testamento, vinte e dois livros... Novamente, não é tedioso falar
dos [livros] do Novo Testamento. Eles são os quatro Evangelhos, segundo Mateus, Marcos,
Lucas e João. Em seguida, os Atos dos Apóstolos e as sete Epístolas (chamadas católicas),
a saber, de Tiago, uma; de Pedro, duas; de João, três; depois destas, uma de Judas. Além
disso, existem catorze epístolas de Paulo... E também o Apocalipse de João.
Estes livros são fontes de salvação, para que aqueles que têm sede possam ser saciados com
as palavras vivas que eles contêm. Somente neles é proclamada a doutrina da piedade. Que
ninguém lhes faça qualquer acréscimo, nem lhes subtraia coisa alguma...
E para maior exatidão, também acrescento o seguinte por ser necessário: que existem outros
livros além destes, certamente não incluídos no Cânon, mas recomendados pelos Pais para
serem lidos por aqueles que acabam de unir-se a nós e desejam instrução na palavra da
piedade. A Sabedoria de Salomão, a Sabedoria de Siraque, Ester, Judite, Tobias, o chamado
Ensino dos Apóstolos [a Didaquê] e o Pastor. Porém, meus irmãos, os anteriores estão
incluídos no Cânon, e os posteriores são [simplesmente] lidos.¹
O Episcopado
Um raciocínio semelhante, embora com diferentes resultados, também envolveu o
surgimento dos bispos como os principais agentes da organização da igreja sub-apostólica.
A dificuldade interpretativa com respeito à história antiga do episcopado é que as formas de
ordem eclesiástica do Novo Testamento são bastante flexíveis, ao passo que somente meio
século mais tarde, quando as evidências novamente tornam-se disponíveis, está firmemente
estabelecido o governo da igreja através de bispos. Novamente, na ausência de uma
seqüência de fatos detalhados, deve-se recorrer a estruturas mais amplas de fé para
preencher os espaços em branco.
O Novo Testamento revela uma situação mais ou menos fluida com respeito à ordem da
igreja. Especialmente em Atos e nas Epístolas Pastorais (1 e 2 Timóteo), que
provavelmente refletem a situação de meados dos anos 60 ou pouco depois, vemos a igreja
organizada sob a liderança de bispos (episkopoi), diáconos (diakonoi), oficiais presidentes
(hegoumenoi) e presbíteros (presbyteroi). O apóstolo Paulo comissiona presbíteros em
algumas de suas visitas a igrejas locais e estabelece normas para a maneira como os
“bispos” ou “anciãos” e os “diáconos” devem realizar as suas tarefas de dirigir o culto e
cuidar dos pobres. Mas a clara atribuição de deveres encontrada no final do segundo século
– especialmente dos bispos que presidem uma igreja ou igrejas de uma determinada região
– é desconhecida como tal no Novo Testamento.
Evaristo sucedeu a esse Clemente, Alexandre seguiu Evaristo, então Sixto foi nomeado, o
sexto depois dos apóstolos. Depois dele veio Telésforo, que teve um glorioso martírio, e
então Higino, Pio, Aniceto e Soter; e agora, no décimo-segundo lugar depois dos apóstolos,
Eleutério ocupa a sé. Na mesma ordem de sucessão, a tradição apostólica da igreja e a
pregação da verdade têm chegado até o nosso tempo.²
A emergência de uma administração hierárquica centralizada nos bispos pode ser observada
nas palavras de três destacados pais da igreja antiga. Já vimos que Inácio, em época tão
remota quanto o ano 112, exortou os crentes a “seguirem o bispo como Jesus Cristo seguiu
o Pai.” Na mesma carta, Inácio distinguiu intencionalmente entre os ofícios da igreja
quando disse em seguida: “Segui ao presbitério [ou aos anciãos, alguns dos quais dentro em
pouco seriam chamados de “sacerdotes”] como aos apóstolos; e respeitai aos diáconos
como a um mandamento de Deus.” A definição daquilo que as tradições católica e ortodoxa
mais tarde chamariam de funções sacramentais também é revelada na maneira como Inácio
descreve o que o bispo deve fazer: “Onde estiver o bispo, aí esteja o povo, assim como
onde está Jesus Cristo, aí está a igreja católica. Não é permitido batizar ou realizar a festa
do amor sem o bispo. Mas, tudo o que ele aprovar, isto é agradável a Deus, para que tudo o
que façais seja correto e válido.”9
Poucas gerações depois que Inácio escreveu essas palavras, o bispo Irineu de Lião escreveu
de maneira mais completa sobre questões de ordem eclesiástica. Na grande obra dirigida
contra as heresias do seu tempo (concluída por volta de 185), já mencionada anteriormente,
ele disse que os bispos preservavam a transmissão das tradições cristãs dos apóstolos e
argumentou que uma sucessão ininterrupta garantia a continuidade da autoridade apostólica
na igreja. Além disso, Irineu preocupou-se de modo especial em descrever a transmissão da
autoridade eclesiástica de bispo a bispo na igreja de Roma.
Alguma gerações mais tarde, o bispo Cipriano de Cartago (morto em 259) referiu-se ao
pleno estabelecimento de um sistema episcopal na igreja. A sua afirmação mais
contundente foi que “o bispo está na igreja e a igreja no bispo, e que se alguém não estiver
com o bispo, tal pessoa não está na igreja.” Suas razões para fazer tal afirmação se
fundamentavam no exercício da autoridade episcopal nos preceitos originais de Cristo: “O
nosso Senhor, cujos preceitos e admoestações devemos obedecer, ordenou o elevado ofício
do bispo e o sistema da sua igreja quando ele fala no Evangelho e diz a Pedro: „Tu és
Pedro, etc.‟ [Mt 16.18ss]... Desde então, uma era tem seguido a outra e um bispo tem
seguido outro bispo em sucessão, e o ofício do episcopado e o sistema da igreja tem sido
transmitido de modo que a igreja está edificada sobre os bispos e cada ato da igreja é
dirigido por esse mesmos oficiais presidentes.”10
9
Ibid., 63-64.
10
Ibid., 74, 73.
Essa diferença básica de interpretação mais uma vez retorna à questão da apostolicidade.
Os protestantes baseiam a apostolicidade na mensagem do Novo Testamento; os católicos
expandem a apostolicidade para incluir a coordenação entre os escritos do Novo
Testamento e a atividade dos bispos. Em ambos os casos, os bispos são considerados como
figuras chaves para enfrentar as heresias, proporcionar ensino, supervisionar o batismo dos
novos convertidos e estabelecer normas para o culto. Com suas respectivas concepções
sobre a igreja, os católicos têm mais convicção de que os primeiros bispos estavam
inteiramente certos, ao passo que os protestantes observam os erros, ou o potencial para
erros, que um dia precisariam ser corrigidos por uma Reforma.
Este antigo mosaico mostra uma primitiva cerimônia de batismo cristão. Tais cerimônias
freqüentemente davam oportunidade para se recitar o Credo dos Apóstolos em uma de suas
primeiras versões.
Os Credos
O terceiro meio decisivo que estabilizou a igreja foi o desenvolvimento de breves
declarações de fé que sintetizavam o ensino cristão e apresentavam a fé aos interessados.
Os nossos próximos capítulos examinam com maior profundidade os grandes credos
conciliares promulgados pelos concílios da igreja. Nesta altura é importante observar que,
antes que a igreja tivesse condições de realizar um concílio geral, um tipo diferente de
declaração credal já havia se tornado comum na mesma.
Esses outros credos eram batismais. Eles foram formulados primariamente como um meio
de organizar o ensino dos catecúmenos (convertidos que recebiam instrução). Porém, logo
passaram a ter também outros propósitos, especialmente no sentido de definir as fronteiras
entre a fé genuína e as suas imitações heréticas.
A declaração de fé conhecida como o Credo dos Apóstolos e usada amplamente nas igrejas
do Ocidente ilustra como funcionou o processo de formação dos credos. A versão definitiva
do Credo dos Apóstolos, em sua forma final, não foi registrada senão no século VII. Porém,
descobriu-se que algumas versões antigas do que é freqüentemente chamado o Velho Credo
Romano, que se assemelham bastante ao Credo dos Apóstolos, têm suas origens no
segundo século.
E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo Espírito Santo,
nasceu da virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado.
Desceu ao inferno, no terceiro dia ressurgiu dentre mortos, subiu ao céu, está assentado à
destra de Deus Pai todo-poderoso, de onde há de vir para julgar os vivos e os mortos;
Creio no Espírito Santo, na santa igreja católica, na comunhão dos santos, na remissão dos
pecados, na ressurreição do corpo e na vida eterna. Amém.5
As antigas versões do Credo dos Apóstolos e declarações semelhantes eram usadas para
preparar os novos convertidos para o batismo. No terceiro século havia o costume
generalizado na igreja de que aqueles que estavam sendo preparados para serem batizados
(o que geralmente ocorria na Páscoa) deviam responder a uma série de perguntas que
tinham a seguinte forma: “Você crê em Deus Pai todo-poderoso...? Você crê em Jesus
Cristo...? Você crê no Espírito Santo ...?” Assim sendo, esses credos foram primeiramente
um meio de ensinar acerca da fé trinitária, e depois, para aqueles que ingressavam na igreja,
um meio de expressar essa fé como a sua própria fé pessoal.
Logo, o uso de credos para resguardar o ensino da igreja tornou-se quase tão importante
quanto o seu uso pelos novos e antigos membros da igreja. Tomando-se como exemplo as
palavras do Credo dos Apóstolos, verifica-se que quase todas as expressões protegiam a
igreja contra ensinos heréticos. Para mencionar somente alguns dos muitos exemplos
possíveis, a afirmação do credo de que Deus é tanto “pai” quanto “criador do céu e da
terra” rechaçava o persistente ensino gnóstico de que o Deus revelado em Cristo era uma
divindade puramente espiritual que considerava o mundo material como um estorvo a ser
afastado. De igual modo, as afirmações do credo de que Cristo nasceu e de que ele sofreu
na cruz e morreu visavam uma ampla gama de heresias docéticas que afirmavam que Cristo
somente pareceu assumir carne e relacionar-se fisicamente com o mundo. A confissão do
credo de que Jesus era o “Cristo” retrocedia às disputas com os judeus sobre se os ensinos
do Antigo Testamento acharam a sua culminação em Jesus de Nazaré. A declaração de
crença na “santa igreja católica” (na terceira seção do credo ou a seção de Espírito Santo)
afirmava a universalidade do cristianismo; ela atingia vários grupos cristãos, tais como os
seguidores de Márcion, que se consideravam sociedades seletas e limitadas, afirmando
serem as únicas que verdadeiramente entendiam o relacionamento de Deus com o mundo.
Embora esses credos não tivessem surgido originalmente como proteção contra os ensinos
heréticos, eles logo vieram a ter essa importante função.
Vários critérios podem ser usados para classificar a história do cristianismo em períodos
distintos. Tais divisões são causa de debates intermináveis, com uma exceção. A exceção é
a distinção que quase todos os comentaristas têm visto entre a igreja descrita no Novo
Testamento e a igreja que se desenvolveu após o desaparecimento dos apóstolos. Nessa
transição, o grande evento histórico foi a destruição de Jerusalém pelo romanos, no ano 70.
Antes daquela ocasião, o cristianismo estava emergindo em um contexto definitivamente
judaico. Após aquele evento, o cristianismo rapidamente tornou-se uma religião distinta.
Embora muitas outras coisas estivessem acontecendo à medida que a igreja alcançava a sua
autonomia, os aspectos mais momentosos dessa mudança foram o estabelecimento de um
A oração inspira a vida cristã, tanto em suas expressões particulares quanto comunitárias.
Quando os primeiros cristãos quiseram aprender a orar, eles recorreram à Oração do Senhor
em busca de orientação. A Oração do Senhor oferecia um modelo normativo – e
peculiarmente cristão – de oração, dado por Jesus a seus discípulos, que mostrava como se
dirigir ao Deus cristão e o que poderia ser adequadamente pedido ao “Pai nosso que está
nos céus.”11 Essa oração não somente moldou a prática da oração mas também colocou as
bases para as reflexões e os escritos cristãos acerca da oração desde muito antes do final do
segundo século e do tratado de Tertuliano Sobre a Oração, até os nossos dias.
Uma das primeiras referências não-bíblicas à Oração do Senhor pode ser encontrada na
Didaquê (também chamada de Ensino dos Doze Apóstolos), que muitos estudiosos
atribuem ao final do primeiro século. A Didaquê foi usada para ensinar aos convertidos os
pontos básicos da fé e prática cristãs à medida que a igreja se expandia no mundo do
Mediterrâneo. Nela verificamos que a Oração do Senhor constituía uma parte essencial das
práticas devocionais cristãs desde os tempos mais antigos da igreja. Além da Oração do
Senhor, a Didaquê também inclui orações de ação de graças que eram usadas na celebração
da eucaristia, concluindo com a esperança cristã do retorno de Cristo expresso na oração
aramaica Marana tha! (Vem, Senhor!).
Não oreis como fazem os hipócritas, mas orai como o Senhor ordenou no Evangelho:
Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome;
Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como nos céus; o pão nosso de
cada dia dá-nos hoje, e perdoa as nossas dívidas como também perdoamos aos nossos
devedores; não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal; pois teu é o poder e a
glória para sempre.
Dizei esta oração três vezes ao dia.12
Leituras Complementares
Aune, David E. The New Testament in its Literary Environment. Filadélfia: Westminster,
1987.
Bruce, F. F. The Spreading Flame: The Rise and Progress of Christianity from its First
Begennings to the Conversion of the English. Grand Rapids: Eerdmans, 1958.
11
Agnes Cunningham, Prayer: Personal and Liturgical (Wilmington, Delaware: Michael Glazier, 1985), 21-
22.
12
“The Didache,” 8:2-3, trad. James A. Kleist, em Ancient Christian Writers: The Works of the Fathers in
Translation, nº 6 (Westminster, Maryland: Newman, 1961), 8.
Hamman, Adalbert. How to Read the Church Fathers. Nova York: Crossroad, 1993.
MacMullen, Ramsay. Christianizing the Roman Empire (A.D. 100-400). New Haven: Yale
University Press, 1984.
Wilken, Robert L. The Christians as the Romans Saw Them. New Haven: Yale University
Press, 1984.
Algumas das mais belas expressões de alegria e esperança da primitiva comunidade cristã
estão em papiros e cerâmicas que foram preservadas nos desertos do Egito. O hino abaixo
talvez remonte a uma época tão antiga quanto o terceiro século e foi escrito em uma ostraca
– um fragmento de cerâmica que as pessoas de menos posses geralmente usavam como
material de escrita – descoberta na década de 1920 em Oxirrincus, uma antiga ruína a 17
km a oeste do rio Nilo. Este hino é importante por causa de sua relação com os salmos de
louvor, por suas alusões ao Novo Testamento e acima de tudo por sua alegria ao convocar
toda a criação, nos céus e na terra, para adorar a Trindade.
A questão teológica específica enfrentada pelo Concílio de Nicéia tinha a ver com os
ensinos de Ário (c. 250-c. 336), um presbítero de Alexandria, no litoral norte da África. As
questões mais amplas que estavam em jogo diziam respeito a questionamentos que vinham
sendo feitos há pelo menos 150 anos. O problema central era como definir a posição
1
A. Hamman, ed., Early Christian Prayers (Chicago: Henry Regnery, 1961), 69.
especial de Jesus como, nas expressões do Novo Testamento, “o Filho de Deus”, o “Verbo”
ou “Logos” de Deus, e o Salvador que era “um com o Pai.” Um grande número de soluções
havia sido proposto para essa questão. Todavia, muitos dos esforços mais conhecidos no
sentido de definir com precisão a natureza do caráter divino de Cristo tinham sido
insatisfatórios.
Outro conjunto de respostas acentuava as distinções entre o Pai e o Filho. O líder desse
esforço foi o grande teólogo alexandrino Orígenes (c. 185-c. 254). Orígenes era
extraordinariamente criativo e muitíssimo culto, mas era também altamente especulativo.
Ele havia sustentado que Jesus foi “gerado” pelo Pai, mas também que essa geração foi
“eterna.” Através dessa fórmula, Orígenes esperava preservar tanto a unidade da Trindade
(palavra usada pela primeira vez no final do segundo século por Tertuliano, um brilhante
advogado norte-africano de Cartago), como a distinção entre o Pai e o Filho.
Desde a época em que Ário começou a ventilar as suas idéias, em 318, até a época em que
o concílio reuniu-se em Nicéia, sete anos depois, houve uma série confusa de reuniões,
cartas, discussões e debates. Nesse mesmo período, os desdobramentos políticos do
Império Romano também começaram a produzir impactos na teologia.
A última grande perseguição dos cristãos havia ocorrido sob o imperador Diocleciano, a
partir do ano 303. Diocleciano, um dos imperadores mais capazes e eficientes da fase
posterior do Império Romano, atacou a igreja por considerá-la um fator de divisão no
mundo do Mediterrâneo. Dedicado à tarefa de unificar o império e promover a sua
estabilidade, Diocleciano esperava que a eliminação do cristianismo reduziria os problemas
causados pelo conflitos religiosos. Ele também deu muitos outros passos para fazer o
império funcionar de maneira mais eficiente. Um deles teve conseqüências inesperadas.
A partir daquele momento, a trajetória de Constantino estava definida. À medida que os anos passavam, ele
cresceu em poder no império e também tornou-se mais resoluto em promover a fé cristã. Já no ano 314,
Constantino pediu que vários sínodos de bispos resolvessem um conflito interno da igreja remanescente da
perseguição de Diocleciano. Dois anos depois, ele mesmo ouviu recursos desses casos. Enquanto isso, ele
lentamente fortaleceu-se nas questões de estado, até que por fim derrotou Licínio em 324 e passou a governar
2
J. Stevenson, ed., The New Eusebius: Documents Illustrative of the History of the Church to A.D. 337
(Londres: SPCK, 1960), 299-300.
* Tradicionalmente, esse ato de legalização é chamado de Edito de Milão. Todavia, como não foi oficialmente
um edito e não procedeu de Milão, existe alguma dificuldade com a designação tradicional. O cristianismo
não foi estabelecido como a única religião legal do império até o final do quarto século, no reinado de
Teodósio (379-395).
Constantino estava tão preocupado quanto Diocleciano havia estado quanto à estabilidade
do império e às dificuldades criadas pelas lutas religiosas. No entanto, para Constantino o
melhor caminho não foi suprimir o cristianismo e sim explorar o seu potencial para a
unidade. Assim sendo, tão logo obteve o pleno controle do império, Constantino
imediatamente pôs-se a sanar a luta que estava assolando a igreja. No ano 324, essa luta
centralizava-se no ensino de Ário, mas também incluía muitas outras questões práticas, tais
como os debates sobre a fixação da data da Páscoa e a resolução de disputas entre as
grandes cidades episcopais. Superando os conflitos internos da igreja, Constantino esperava
ao mesmo tempo resolver um problema religioso e encontrar um cimento cultural poderoso
e muito necessário para o mundo romano.
Para Constantino, que eventualmente seria batizado em 337, próximo ao final de sua vida, o
cristianismo tornou-se tanto um caminho para Deus quanto um meio de unir o império. Ele
inseriu-se nos debates doutrinários que giravam em torno de Ário com dois propósitos bem
distintos, que expôs numa carta em que explicou porque havia convocado um concílio para
reunir-se em Nicéia: “Portanto, o meu intento foi, em primeiro lugar, levar os diversos
juízos encontrados em todas as nações a respeito da Divindade a uma situação, por assim
dizer, de uniformidade resolvida [isto é, aclarar a doutrina em benefício da igreja]; e, em
segundo lugar, restaurar um tom saudável ao sistema do mundo, que então sofria sob o
poder de uma triste enfermidade [isto é, pôr fim às lutas religiosas em benefício do
império].”3
Assim sendo, ele convocou um concílio. Inicialmente, o concílio devia reunir-se em Ancira
(a moderna Ankara), um grande centro do poder romano no Oriente. Depois, Constantino
fez com que a reunião fosse transferida para Nicéia, que estava mais próxima do seu
quartel-general. Ao concílio vieram bispos principalmente do Oriente, inclusive um jovem
assistente do bispo Alexandre de Alexandria chamado Atanásio, que iria dedicar a sua vida
para defender o ensinamento elaborado em Nicéia. Também participaram dois presbíteros
enviados por Silvestre, o bispo de Roma, bem como o bispo de Cartago, um bispo da Gália
e (como um lembrete dos primórdios do cristianismo) quatro bispos com nomes judaicos,
vindos da Pérsia. (Tradicionalmente também se afirma que o personagem mais tarde
conhecido como Papai Noel, São Nicolau de Mirra, na Lícia, o sudoeste da moderna
Turquia, também esteve presente.)
3
Citado em W. H. C. Frend, The Rise of Christianity (Filadélfia: Fortress, 1984), 497.
estatal a uma religião. Por cada uma dessas razões, o Concílio de Nicéia foi um grande
ponto de transição na história da igreja cristã.
Nicéia e a Doutrina
A questão doutrinária de Nicéia foi absolutamente essencial porque concentrou-se não
somente em quem era Jesus como pessoa, mas também em quem ele foi na sua obra
como Salvador. O ensino de Ário, que sobreviveu somente em fragmentos e citações nas
obras de seus opositores, revela grande respeito por Jesus, estudo paciente das Escrituras
e profunda admiração pelo ser de Deus. Por essas razões, a sua subversão do
ensinamento cristão era ainda mais séria.
Ário baseava a sua fé na absoluta transcendência e na absoluta unidade de Deus. Nas suas
palavras: “Nós reconhecemos um só Deus, que é o único ingênito (agenneton, isto é, auto-
existente), o único eterno, o único sem princípio (anarchon), o único verdadeiro, o único
que possui imortalidade, o único bom, o único soberano, o único juiz de todos, etc.”4 Com
tal concepção de Deus, parecia lógico a Ário que, por mais que a igreja honrasse a Jesus,
ela não deveria descrevê-lo em termos reservados para o Pai. Assim, desde que somente o
Pai não havia sido criado, o Filho deveria ser uma criação “gerada” pelo Pai como todas as
outras formas de existência. Cristo pode ter partilhado do Pai mais do que qualquer outro
ser humano, mas como uma criatura ele não teria conhecido os recessos mais íntimos da
mente divina. Além disso, como criatura feita por Deus, Jesus estava sujeito a mudanças e
em potencial, ainda que não de fato, ao pecado. A forte dependência de Ário em relação ao
raciocínio lógico é ilustrada por um silogismo que seus opositores mais tarde afirmaram
que ele defendeu em vários debates: “Se o Pai gerou o Filho, aquele que foi gerado teve um
princípio de existência; portanto, está claro que houve [um tempo] em que o Filho não era.
Segue então necessariamente que ele recebeu a sua existência a partir do não existente.”5 A
tradução portuguesa desse silogismo é difícil, pois Ário foi cuidadoso em não dizer “houve
um tempo em que o Filho não era,” uma vez que Ário admitia que o Filho havia sido gerado
antes do início do tempo. No entanto, permanecia a afirmação básica de que Jesus era
subordinado ao Pai não somente no sentido funcional de que ele veio à terra para fazer a
vontade do Pai, mas no sentido metafísico de ser uma criatura subordinada ao Pai em sua
essência.
4
Citado em J. N. D. Kelly, Early Christian Doctrines (Nova York: Harper & Row, 1978), 227.
5
Henry Bettenson, ed., Documents of the Christian Church, 2ª ed. (Nova York: Oxford University Press,
1963), 40.
Ário fortaleceu a sua argumentação citando a Bíblia de um modo que revelava um profundo
estudo das Escrituras, mas que também causou grande inquietação entre os seus opositores.
Por exemplo, ele aparentemente referiu-se muitas vezes ao monólogo da Sabedoria em
Provérbios 8. Como tantos outros na igreja antiga, Ário entendia a Sabedoria como uma
personificação de Cristo, mas contra a corrente principal da ortodoxia ele sustentava que a
declaração do versículo 22, de que a Sabedoria foi criada no princípio da obra de Deus,
indicava que Jesus não participava da essência divina do Pai. De igual modo, Ário apegou-
se a passagens dos Evangelhos em que Jesus falou do Pai como “maior do que eu” (Jo
14.28) ou em que se diz que Jesus cresceu (Lc 2.52) ou sofreu privações humanas (sede em
Jo 4.7 e 19.28, fadiga em Jo 4.6). Ele também deu muita importância a passagens de outras
partes do Novo Testamento que chamavam Jesus de primogênito (por exemplo, Rm 8.29 e
Cl 1.15). Ao estudar a Bíblia, Ário acentuou tudo o que podia encontrar que sugerisse
diferenças entre o Pai e o Filho.
Nesta antiga representação do Concílio de Nicéia (325), destaca-se o fato de que Ário (e
suas heresias) está sendo pisoteado.
Todavia, esses argumentos, que repousavam tão confortavelmente sobre intuições lógicas, e
que podiam ser sustentados por um uso hábil da Bíblia, sofreram um ataque imediato. A
consternação por causa daquilo que veio a ser chamado de arianismo resultou de vários
fatores.
Em primeiro lugar, o uso que Ário fazia da Bíblia parecia ser seletivo e cheio de sofismas.
Ele foi acusado de encontrar em passagens inocentes certos significados que distorciam o
sentido legítimo do texto. De sua parte, os opositores de Ário também tiravam certas
passagens do seu contexto apropriado, mas a quantidade do material bíblico utilizado
contra Ário era considerável. Textos como João 1.1, onde se diz que o Verbo estava no
princípio “com Deus” e, de fato, era Deus, fundamentavam o uso ortodoxo da Bíblia. Os
textos anti-arianos também incluíam as declarações de que Jesus tinha a forma de Deus (Fp
2.6), trazia o selo da natureza de Deus (Hb 1.3), participava da glória divina (1 Co 2.8) ou
permanecia sempre o mesmo (Hb 13.8). Até mesmo o uso de Provérbios 8 por Ário recebeu
uma forte repreensão quando os ortodoxos apontaram para o versículo 30 e sua afirmação
de que a sabedoria “sempre” esteve com Deus na obra da criação.
Os opositores de ambos os lados eram bem versados nas Escrituras. Se ambas as partes
praticavam uma exegese mais fantasiosa do que é agora a norma na igreja cristã, ainda
assim era importante para os ortodoxos demonstrar que as concepções de Ário eram
inovações astutas que não podiam resistir a um escrutínio cuidadoso. Todavia, por
importantes que fossem tais debates em torno de passagens bíblicas, a refutação do
arianismo dependeu ainda mais essencialmente de duas outras estratégias.
O que poderia ser denominado de lógica da salvação, para corresponder à lógica ariana do
monoteísmo, foi o tema principal do trabalho de várias décadas feito por Atanásio (c. 296-
373) no sentido de definir e defender a posição ortodoxa. Atanásio, que eventualmente
tornou-se bispo de Alexandria, mas que também seria exilado cinco vezes por causa da sua
defesa da divindade de Jesus, não considerava os argumentos de Ário como curiosidades
filosóficas. Antes, ele as via como punhais dirigidos contra o próprio coração da mensagem
cristã. O seu memorável tratado De Incarnatione (Sobre a encarnação) foi escrito no início
da disputa com Ário. Atanásio sintetizou da seguinte maneira a questão que continuaria a
defender no restante da sua vida: Se Cristo não era verdadeiramente Deus, então ele não
poderia conceder vida aos arrependidos e livrá-los do pecado e da morte. No entanto, essa
obra de salvação está no âmago da imagem bíblica de Cristo e tem sustentado a vida da
igreja desde o princípio. O que Atanásio viu claramente foi que, a menos que Cristo fosse
verdadeiramente Deus, a humanidade perderia a esperança que Paulo expressou em 2 Co
5.21: “... para que [em Cristo] fôssemos feitos justiça de Deus.” C. S. Lewis foi apenas um
dos muitos comentaristas posteriores que elogiaram Atanásio pela fidelidade das suas
convicções. “Ele defendeu a doutrina trinitária, „inteira e pura,‟ quando parecia que todo o
mundo civilizado estava se afastando do cristianismo para a religião de Ário – para uma
daquelas religiões sintéticas „sensatas‟... que então, como agora, incluíam entre os seus
devotos muitos religiosos altamente cultos.”6
Em consonância com a rejeição do arianismo por parte de Atanásio, porém mais apoiada
em experiências concretas do que em argumentos teológicos diretos, estava a oposição
intuitiva das multidões de cristãos comuns. As orações da igreja sempre tinham sido feitas a
Deus em nome de Cristo, de tal modo que separar o Filho do Pai parecia cortar a
possibilidade de que os seres humanos se comunicassem com o divino. O batismo na igreja
sempre tinha usado a fórmula trinitária “em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”
(Mt 28.19). Os hinos da igreja regularmente louvavam a Jesus como o Salvador, o qual,
vindo da parte de Deus, restaurou a humanidade caída para Deus. Em suma, a vida diária da
igreja – o “senso comum” dos cristãos ordinários – rebelou-se contra as propostas de Ário.
Os crentes comuns geralmente não possuíam a habilidade técnica para rebater os
6
C. S. Lewis, introdução a St. Athanasius on the Incarnation: The Treatise “De Incarnatione Verbi Dei,”
trad. e ed. um religioso de C. S. M. V. (Crestwood, NY: St. Vladimir‟s Seminary Press, 1953 [orig. 1944], 9.
argumentos de Ário; todavia, como seres adoradores, eles sabiam que retirar a divindade de
Cristo era afastar a esperança de suas almas. Como tantas vezes ocorre na história da igreja,
a expressão lex orandi lex credendi (os princípios ou a “lei” da oração determinam os
princípios da crença formal) aplicaram-se à crise do início do quarto século.
Atanásio e a Encarnação
O que – ou antes Quem – era necessário para tal graça e tal chamado de que
necessitávamos? Quem, exceto o próprio Verbo de Deus, que também no princípio havia
feito todas as coisas a partir do nada?.. . Pois ele somente, sendo o Verbo do Pai e estando
acima de todos, era em conseqüência disso capaz de restaurar a todos, e digno de sofrer em
favor de todos e de ser um embaixador de todos junto ao Pai.
Para esse propósito, pois, o Verbo de Deus incorpóreo, incorruptível e imaterial entrou em
nosso mundo. Na verdade, num certo sentido Ele nunca estivera longe do mesmo, pois
nenhuma parte da criação jamais havia estado sem Aquele que, enquanto permanece
sempre em união com o Pai, todavia enche todas as coisas que existem. Mas agora Ele
entrou no mundo de um novo modo, descendo ao nosso nível em Seu amor e auto-
revelando-se a nós... [Apiedando-se] de nossa raça, moveu-se de compaixão por nossas
limitações, sendo incapaz de suportar que a morte tivesse o domínio... Ele tomou para si
mesmo um corpo, um corpo humano semelhante ao nosso. Ele não quis simplesmente
materializar-se ou meramente aparecer. Tivesse sido assim, Ele poderia ter revelado a sua
divina majestade de algum outro modo melhor. Não, Ele assumiu o nosso corpo... Ele, o
Poderoso, o Artífice [Criador] de tudo, ele mesmo preparou esse corpo na virgem como um
templo para Si mesmo e o tomou para si próprio, como o instrumento através do qual foi
conhecido e no qual habitou. Assim, tomando um corpo como o nosso, porque todos os
nossos corpos estavam sujeitos à corrupção da morte, Ele entregou o seu corpo à morte em
lugar de todos e o ofereceu ao Pai. Isso Ele fez por puro amor por nós.²
1. Cristo era verdadeiro Deus de verdadeiro Deus. O próprio Jesus era Deus no mesmo
sentido em que o Pai era Deus. A diferenciação entre o Pai e o Filho pode referir-se às
respectivas tarefas que cada um empreendeu ou ao relacionamento que cada qual tem com
o outro. Mas a questão essencial é que Pai, Filho e Espírito Santo são todos
verdadeiramente Deus.
2. Cristo tinha a mesma substância que o Pai. A palavra grega usada nessa expressão
(homoousios, de homo, “mesmo,” e ousia, “substância”) gerou uma grande controvérsia,
tanto pelo fato de que esse termo técnico filosófico não é encontrado na Bíblia, quanto pela
razão de que uma grande parte da igreja preferia dizer que Jesus era de uma substância
3. Cristo foi gerado, não feito. Isto é, Jesus nunca foi formado como as outras coisas e
pessoas haviam sido criadas, mas desde a eternidade foi o Filho de Deus.
4. Cristo fez-se humano por nós homens e para a nossa salvação. Essa expressão sintetizou
de modo sucinto a essência da preocupação de Atanásio, de que Cristo não poderia ter
trazido salvação ao seu povo se ele fosse somente uma criatura. A humanidade não poderia
ir por si mesma a Deus. A salvação vinha de Deus.
O Credo Niceno
Elaborado no Primeiro Concílio do Nicéia (325)
Cremos em um só Deus, Pai onipotente, Criador de todas as coisas visíveis e
invisíveis.
E em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai, Luz de Luz,
verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, de uma só substância com o Pai;
pelo qual foram feitas todas as coisas; o qual por nós homens e por nossa salvação, desceu,
se encarnou e se fez homem; e sofreu, e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu; de onde
virá para julgar os vivos e os mortos.
E no Espírito Santo.
A fórmula nicena do ano 325 não obteve imediatamente o consenso da igreja. A lógica de
Ário continuou a exercer um forte apelo. O uso de palavras como homoousios, que não
eram encontradas na Escritura, perturbava a muitos. Uma vez que termos básicos como
“substância” tinham uma longa história no pensamento helenístico, freqüentemente havia
ambigüidades na adoção desses termos pela teologia cristã. E como até mesmo os mais
ardentes teólogos cristocêntricos podiam envolver-se em controvérsias a fim de se
defenderem, e também tributarem glória a Deus, o debate acerca da divindade de Cristo foi
fortemente marcado por manobras políticas, muitas vezes amargas. Todavia, quando
Atanásio e outros anti-arianos esclareceram que a expressão “uma só substância” não
negava a pessoa e obra separadas do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a declaração nicena
eventualmente começou a obter aceitação.
O Credo Niceno tem permanecido por quase dezessete séculos como um fundamento
seguro para a teologia, o culto e a devoção da igreja. Ele não somente sintetiza de modo
abreviado os fatos da revelação bíblica, mas também permanece como um baluarte contra a
persistente tendência humana de preferir as deduções lógicas acerca de como Deus deve ser
e como ele deve agir, ao invés das realidades concretas da sua auto-revelação. O credo
reafirma poderosamente as realidades da natureza divina de Cristo, da sua encarnação como
ser humano e da obra de redenção que ele realiza em favor do seu povo. O ponto de
transição da história cristã representado pelo Credo Niceno foi a escolha decisiva feita pela
igreja, preferindo a sabedoria de Deus ao invés da sabedoria humana. Teologicamente
considerada, nenhuma decisão jamais poderia ser mais importante.
Nicéia e a Política
Todavia, Nicéia foi muito mais que simplesmente um divisor de águas da doutrina cristã.
Como foi o imperador Constantino que convocou um concílio em 325 (como o imperador
Teodósio também o fez em 381) e como a política imperial desemprenhou um papel central
em todo o debate sobre o arianismo, a decisão da igreja acerca da divindade de Cristo
também veio a ter grande importância para a esfera política.
O significado político de Nicéia é sugerido por uma breve referência aos eventos da metade
do quarto século. Em várias ocasiões de sua carreira como bispo de Alexandria, Atanásio
foi banido pelos imperadores Constâncio II e Juliano. Por sua vez, Constâncio II
†
A palavra latina filioque, que significa “e do Filho,” foi um acréscimo posterior, aparentemente pequeno mas
altamente controvertido, ao Credo Niceno-Constantinopolitano. No ano 589, o Terceiro Concílio de Toledo
inseriu essa palavra após a afirmação de fé no “Espírito Santo... que procede do Pai.” Gradualmente adotada
pela igreja ocidental, essa doutrina de que o Espírito Santo procede tanto do Pai quanto do Filho (“dupla
processão”) – em contraste com sua procedência apenas do Pai (“processão única”) – foi um importante
elemento na divisão posterior entre as igrejas oriental e ocidental (ver o capítulo 6).
(imperador de 337 a 361) exerceu suas consideráveis habilidades tanto para sustentar a
estrutura do império quanto para promover as concepções arianas que pessoalmente
esposou.
A questão maior colocada pelas conexões imperiais-eclesiásticas era nova por causa da
dramática conversão de Constantino e da transição do império para a tolerância e depois
para o apoio ao cristianismo.7 O ponto básico era este: dado o fato de que agora os
imperadores, de uma maneira ou de outra, iriam apoiar a igreja, onde é que eles se inseriam
no relacionamento com a igreja? Embora essa questão não fosse tão relevante quanto o
problema da divindade de Cristo, era algo de grande significado contemporâneo e também
algo que continuaria a ser de importância central na história cristã por mais de mil anos.
(Em certo sentido, é uma questão que continua a ser importante no mundo moderno, onde
quer que chefes de estado sejam também cristãos professos.)
Em contraste com isso, o partido ortodoxo ou católico achava essencial que a igreja
preservasse um certo grau de autonomia acerca de suas próprias questões. Essa posição é
ilustrada pelas palavras ditas pelo bispo Ambrósio de Milão ao imperador Teodósio por
volta do ano 390. Após uma disputa entre o imperador e o bispo envolvendo a conduta de
Teodósio quanto a uma colônia do império, Ambrósio recusou-se a permitir que Teodósio
participasse da comunhão até que o imperador confessasse publicamente a sua ação
pecaminosa. Quando Teodósio resistiu, Ambrósio supostamente respondeu: “O imperador
está na igreja, não acima dela.” Em outras palavras, quando se tratava dos ritos mais
sagrados da igreja, Ambrósio queria tratar até mesmo o imperador como um cristão
comum.
7
O panorama geral desta seção, bem como as citações específicas, são de George Huntston Williams,
“Christology and Church-State Relations in the Fourth Century,” Church History 20 (Setembro 1951): 3-33 e
(Dezembro 1951): 3-26.
Como o Filho era subordinado ao Pai, assim também o reino do Filho (a igreja) devia ser
subordinado ao reino do Pai (o império). Portanto, a autoridade dos bispos devia ser
subordinada à autoridade do imperador. Até mesmo seria correto chamar o imperador de
bispo dos bispos, uma vez que os bispos (como servos do Filho) recebiam a sua autoridade
subsidiariamente do imperador (como servo de Deus).
Os ortodoxos rejeitaram esse raciocínio em todos os seus aspectos. Eles acreditavam que o
Filho era consubstancial (igual no ser) com o Pai e aplicaram o relacionamento senhor-
sátrapa à trindade e aos bispos da igreja. Uma vez que o Filho era consubstancial com o
Pai, assim também o reino do Filho (a igreja) tinha a mesma dignidade que o reino do Pai
(o império). Portanto, a autoridade dos bispos devia ser co-igual com a autoridade do
império, com a implicação de que os bispos eram de fato as principais autoridades quanto à
vida da fé, enquanto que o imperador era supremo nas questões do mundo. Em
conseqüência disso, quando o imperador estava na igreja como um cristão, ele estava sob a
autoridade dos bispos, uma vez que na igreja os bispos falavam em nome de Cristo, que era
Deus.
A despeito do desgaste do tempo, este busto revela alguma coisa da majestade imperial de
Constantino, que foi tão importante, e de tantas maneiras, para o cristianismo do quarto
século.
A lógica dessas conexões nem sempre foi tão clara naquela época como, em retrospecto,
parece ser agora. Porém, tão logo a posição nicena veio a prevalecer, várias conclusões
importantes resultaram para o relacionamento entre a igreja e o estado. O que é muito
importante, afirmar a consubstancialidade do Filho era afirmar um certo grau de
independência da igreja em relação ao estado e do estado em relação à igreja. O mundo
antigo não aceitava soberanias divididas e especialmente a igreja oriental continuaria a
atribuir grande autoridade tanto à igreja quanto ao estado, no império. Mas no Ocidente, e
em alguma medida também no Oriente, a aceitação do Credo Niceno preservou um certo
grau de autonomia para a igreja. No decurso do quarto século, a cristologia nicena afirmou
o princípio de que a oração, o culto, a pregação, o uso das Escrituras e os sacramentos,
todos eles, mereciam uma certa esfera de liberdade. Porque a obra do Filho era homoousios
com a obra do Pai, a vida da igreja tinha uma independência que nenhum instrumento do
estado poderia transgredir. Esse fundamento constituiu a base para as relações posteriores
entre as instituições do estado e da igreja, particularmente no Ocidente. Ele tornou este
resultado do debate cristológico um ponto de transição extraordinariamente importante
também na história política do cristianismo.
Nicéia e a Cristandade
Apesar da maneira pela qual o Credo Niceno representou uma garantia de liberdade para a
igreja em relação ao império, a realidade mais óbvia após 325 (ou mesmo 312) foi o fato de
que havia ocorrido uma transição decisiva na história da igreja. Tão logo Constantino
começou a agir em favor da igreja e tão logo os seus sucessores começaram simplesmente a
pressupor que o governo imperial tinha alguma coisa a ver com a igreja, esta deixara para
trás as condições dos três primeiros séculos. Essas condições haviam acentuado a existência
da igreja como uma comunidade peregrina, que não estava em casa em parte alguma do
mundo, uma vez que o poder do estado a qualquer momento poderia voltar-se contra os
fiéis, enviá-los para o exílio ou perturbar a ordem regular do culto e do serviço cristão.
Mesmo que a perseguição romana direta fosse rara e mesmo que as comunidades cristãs
locais muitas vezes alcançassem considerável estabilidade na era pré-constantiniana, a
verdade sempre presente é que essas comunidades não poderiam esperar nenhuma
segurança permanente nesta vida.
Nesses termos, Nicéia foi um ponto de transição que colocou o cristianismo num caminho
que ele somente começou a abandonar, e isto apenas de modo relutante, nos últimos dois ou
três séculos. Esse caminho consistiu em acrescentar anseios de poder mundano à sua
preocupação original de cultuar a Deus. A complexidade da situação nicena torna muito
difícil fazer julgamentos definitivos sobre esse grande ponto de transição. Por iniciativa do
imperador, a igreja reafirmou a doutrina da divindade de Cristo, que demonstrou ser um
fundamento altamente significativo para virtualmente toda a vida, trabalho e culto cristãos
nos séculos que se seguiram. Todavia, por causa das ações do imperador, a esfera de
preocupações mundanas que ele representava gradualmente assumiu uma importância cada
vez maior na igreja. A distinção entre a igreja e o mundo que a cristologia nicena preservou
foi, na realidade, comprometida pelos próprios acontecimentos que conduziram à
declaração de Nicéia.
Neste sentido, Nicéia deixou para a posteridade um duplo legado – fidelidade mais intensa
às grandiosas verdades salvadoras da revelação e também uma crescente associação entre a
igreja e o mundo. Os monges (estudados no capítulo 4) que no quarto século começaram a
deixar a “cristandade” e ir para o deserto ou para montanhas solitárias, foram uma resposta
ao que aconteceu em Nicéia. Com efeito, eles estavam dizendo que era preciso manter
alguma distância em relação à cristandade (isto é, a união entre a igreja e o estado) a fim de
se encontrar a Cristo. Todavia, o que os monges freqüentemente estudavam ao deixar a fé
oficial nascida das atitudes do imperador em Nicéia era a argumentação bíblica que levou
ao Credo de Nicéia, bem como o próprio credo.
Essa combinação – de uma importante declaração doutrinária com uma dramática alteração
no relacionamento da igreja com o mundo – é o que, no seu conjunto, torna o Concílio de
Nicéia um dos eventos mais decisivos da história da igreja depois do Novo Testamento.
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
Embora grande parte das perseguições no Império Romano tenha cessado com o Edito de
Milão, em 313, esse não foi o caso com a comunidade cristã relativamente numerosa da
Pérsia, cujo rei, Shapur II, promoveu uma onda de perseguições entre 339 e 344. A oração
abaixo é de um dos mártires desse período – Gustazad, um alto oficial da corte do rei.
Gustazad havia renunciado e depois retornado à fé cristã. O “pastor” a quem ele se refere é
Simeão bar Sabba‟e, um bispo persa que foi martirizado um dia depois do seu protegido.
As orações dos mártires são significativas por causa de sua resoluta confiança em Jesus e
por sua convicção quanto ao poder do martírio para edificar a fé de outras pessoas.
Louvor a ti, Senhor Jesus. Eu era uma ovelha perdida e tu me trouxeste de volta; eu havia
me afastado do teu santo aprisco e pelos esforços do mais capaz dos teus pastores, Simeão,
tu descobriste onde eu estava.
Ele saiu para me buscar e me colocou com as tuas ovelhas que haviam sido
engordadas para o abate. Eu iria ser um filho dos apóstolos, um irmão dos mártires que
haviam recebido a coroa no ocidente, um bom exemplo para o teu povo no oriente.
Que eles não caiam, que eles não deixem a fé verdadeira – a fé no Pai, no Filho e
no Espírito Santo, aquele que verdadeiramente existe, o Rei glorioso, ao qual todos os que
adoram a Trindade Santa, nos céus e na terra, confessam e sempre confessarão, para todo
o sempre. Amém.8
Leituras Complementares
Barnes, Timothy D. Constantine and Eusebius. Cambridge: Harvard University Press,
1981.
Bray, Gerald. Creeds, Councils, and Christ. Downers Grove, Illinois: InterVarsity, 1984.
Brown, Harold O. J. Heresies: The Image of Christ in the Mirror of Heresy and Orthodoxy
from the Apostles to the Present. Garden City, N.Y.: Doubleday, 1984.
Grant, Michael. Constantine the Great: The Man and His Times. Nova York: Scribner‟s,
1994.
Kelly, J. N. D. Early Christian Doctrines. 5ª ed. San Francisco: Harper & Row, 1978.
8
Hamman, Early Christian Prayers, 59.
Pelikan, Jaroslav. The Christian Tradition. Vol. 1, The Emergence of the Catholic Tradition
(100-600). Chicago: University of Chicago Press, 1971.
Smith, M. A. The Church under Siege. Downers Grove, Illinois: InterVarsity, 1976.
Stevenson, J., ed. A New Eusebius: Documents Illustrative of the History of the Church to
A.D. 377. Londres: SPCK, 1960. A indispensável história de Eusébio está disponível em
muitas outras edições, como Eusébio, The History of the Church from Christ to
Constantine, trad. G. A. Williamson (Nova York: Penguin, 1965). Em português, História
Eclesiástica, trad. Worfgang Fischer (São Paulo: Novo Século, 1999).
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
1
Maurice Frost, ed., Historical Companion to Hymns Ancient and Modern (Londres: Clowes, 1962), 161-62.
A resposta de Calcedônia a essas perguntas tem resistido ao teste do tempo – Jesus era
“uma pessoa” que consistia de “duas naturezas.” Porém, a despeito das esperanças do
imperador Marciano, o concílio não definiu a vida doutrinária da igreja “para sempre,” nem
pôs fim às amargas disputas que ocasionaram o concílio. No entanto, as suas deliberações
foram muitíssimo significativas. O Concílio de Calcedônia foi um importante evento – e
um decisivo ponto de transição – da história do cristianismo, tanto porque esclareceu o
ensino cristão ortodoxo quanto pela maneira como efetuou esse esclarecimento.
2
Citado em W. H. C. Frend, The Rise of Christianity (Filadélfia: Fortress, 1984), 770.
A Trajetória da Controvérsia
Identificar a trajetória das controvérsias que conduziram à Declaração de Calcedônia é uma
tarefa complicada. Todo um conjunto de teólogos cultos e ambiciosos oficiais eclesiásticos
debateu de modo apaixonado e exaustivo os mínimos detalhes, bem como as principais
afirmações, que tinham a ver com a divindade e a humanidade de Jesus. A narrativa a
seguir, embora mencione muitos nomes e toque em muitos pontos da disputa, oferece
apenas um quadro muito simplificado da confusa trajetória que levou a Calcedônia. De
igual modo, o “placar” que é apresentado para identificar os membros das “equipes”
adversárias deixa de indicar as muitas nuances que foram dadas à disputa por todos aqueles
que se pronunciaram a respeito do assunto. Todavia, até mesmo os relatos simplificados são
úteis, pois dão uma idéia das intensas discussões que levaram ao concílio. Além disso, ao
indicar-se algumas das paixões trazidas ao debate, até mesmo uma história simplificada
pode mostrar como essa luta foi importante para aqueles que nela se empenharam.
A associação de Maria com Jesus, como nesta tapeçaria egípcia do século VI, tornou-se
cada vez mais importante na história da igreja depois que começou a ser discutido o papel
de Maria como theotokos.
Ícone da Virgem. Egito, período bizantino, século VI. Tapeçaria em lã, 178 x 100 cm. ©
The Cleveland Museum of Art, 1997, Leonard C. Hanna, Jr., Legado, 1967.144.
Embora as especulações sobre a exata natureza da pessoa de Cristo tenham
surgido regularmente desde a época de Justino Mártir, na metade do segundo
século, a discussão mais intensa do assunto passou a ter um lugar de destaque
como resultado da controvérsia ariana. A resposta finalmente convincente
dada por Atanásio a Ário havia acentuado a plena divindade de Cristo.
Atanásio argumentou – e a igreja como um todo veio a reconhecer o
significado eterno da sua conclusão – que sem a plena divindade, Cristo não
poderia conceder a salvação acerca da qual a Bíblia e o culto da igreja
testificavam. Porém, uma vez estabelecida essa verdade redentora, a igreja
começou a perguntar o que devia pensar sobre a pessoa de Cristo. Como a
plena divindade de Jesus (que era freqüentemente descrita em termos do
Logos divino ou “Verbo” de Deus de João 1) se relaciona com a humanidade
de sua existência terrena? Os próprios escritos de Atanásio descreveram o
Logos divino como assumindo um corpo humano, mas ele pareceu implicar
(sem afirmá-lo nessas palavras) que o Logos tomou o lugar da alma humana
no Jesus encarnado.
O “Placar” de Calcedônia
Cristologia Verbo-Carne
Atánasio
Apolinário de Laodicéia
Cristologia Verbo-Homem
Antioquia (Síria)
Cristo tem uma plena natureza divina e uma plena natureza humana; o problema é a divisão
da pessoa
x Teodoro de Mopsuéstia
Protério, no Egito
mas o fez representando Jesus como uma combinação de alma divina (ou
Logos) e corpo humano. Para Apolinário, a vida de Jesus mostrou “uma
natureza” composta de carne e inteligência divina. Ao comentar sobre a
relação entre as noções de Atanásio e de Apolinário, o historiador Richard
Norris conclui que Apolinário “não esquece ou ignora um centro humano de
vida e consciência em Jesus [como o fez Atanásio]. Ele o nega.” 3 (Como os
teólogos e bispos associados com a grande sé de Alexandria, no norte da
África, tinham posições que iam na mesma direção que as de Apolinário,
embora geralmente expressas com maior cuidado, essa cristologia “Verbo-
carne” também é conhecida como alexandrina.)
O esforço de Apolinário no sentido de definir a pessoa de Cristo provocou uma reação
imediata. Grande parte da oposição veio da sé de Antioquia, no litoral da Síria, cujos bispos
há muito tempo contendiam com os bispos de Alexandria e de Constantinopla pelo primado
no Império Romano oriental. O principal proponente da teologia de Antioquia foi Teodoro
de Mopsuéstia (c. 350–428). Como seria característico da teologia proposta por Antioquia,
Teodoro ensinava que Cristo sempre foi inteiramente humano, bem como inteiramente
divino; Cristo possuía duas “naturezas” plenas – uma humana e outra divina. Do ponto de
vista de Teodoro e dos antioquianos que pensavam como ele, a elaboração Alexandrina
Verbo-carne estava repleta de erros. Ela parecia, em primeiro lugar, minimizar a realidade
da humanidade de Cristo. Porém, em segundo lugar, e isso era algo que assumia maiores
proporções naquele período, a posição de Alexandria parecia sugerir que o Logos divino
era sujeito a fraqueza, mudança e alteração.
A disputa entre Apolinário e Teodoro deu início a uma grande erupção de controvérsias que
estendeu-se por toda a primeira metade do quinto século. Nestório († c. 451), um monge de
Antioquia que apoiava a posição de Teodoro, foi nomeado bispo de Constantinopla em 428.
No início da sua atuação como bispo, Nestório pregou um controvertido sermão negando
que Maria era theotokos (a portadora de Deus). Ele afirmou que Maria não deu à luz
“Deus”. Antes ela deu à luz o Jesus humano, cuja humanidade – embora unida ao Logos
divino – devia ser entendida como separada e distinta de sua natureza divina.
3
Richard A. Norris, trad. e ed., The Christological Controversy (Filadélfia: Fortress, 1980), 23. Esse livro é
uma excelente coleção dos documentos mais importantes da controvérsia.
geral da igreja. Essas razões internas que contribuíram para se dar maior atenção à pessoa
de Maria e a sua obra de dar à luz a Jesus foram reforçadas pelas novas culturas nas quais o
cristianismo estava se expandindo. Tanto no mundo do Mediterrâneo como no norte da
Europa, as deusas sempre haviam desempenhado um papel destacado nas religiões pagãs.
Aqueles que estavam acostumados a adorar divindades femininas encontraram em Maria
não exatamente uma divindade substituta, mas uma figura feminina a quem parecia natural
dedicar interesse religioso. Na época em que Nestório começou o debate acerca de Maria
como theotokos, forças internas da comunidade cristã, bem como fatores externos ligados
aos hábitos religiosos pagãos, combinavam-se para colocar Maria na vanguarda da vida da
igreja.
O único Senhor Jesus Cristo não deve ser dividido em dois Filhos... [Pois] a Escritura não
diz que o Logos uniu-se à pessoa de um ser humano, mas que ele se fez carne. E, para o
Logos, tornar-se carne nada mais é do que “participar da carne e do sangue como nós” [Hb
2.14]... Ele não abandonou sua posição divina ou deixou de ser nascido do Pai; ele
continuou a ser o que era, mesmo ao assumir a carne... É assim que veremos que os santos
pais entenderam as coisas. Desse modo, eles ousadamente chamaram a santa virgem de
“mãe de Deus” [theotokos], não porque a natureza do Logos... teve o início de sua
existência na santa virgem, mas porque se diz que o santo corpo que dela nasceu, possuído
como estava de uma alma racional, e ao qual o Logos foi unido hipostaticamente, havia tido
um nascimento corpóreo.¹
4
Ibid., 27.
Em todas as partes das Escrituras Sagradas, sempre que se faz menção à dispensação
redentora do Senhor, o que se nos comunica é o nascimento e o sofrimento, não da
divindade, mas da humanidade de Cristo, de modo que, por uma maneira de falar mais
exata, a santa Virgem é chamada de Mãe de Cristo, e não de Mãe de Deus. Ouça estas
palavras dos Evangelhos: “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de
Abraão” [Mt 1.1]. É óbvio que o filho de Davi não foi o Logos divino.²
Infelizmente, a batalha que se seguiu logo tornou-se pessoal e episcopal, assim como
teológica. As sés de Alexandria e Antioquia há muito tempo haviam se arregimentado uma
contra a outra como centros rivais de influência na igreja antiga. Às vezes
inadvertidamente, outras vezes com malícia premeditada, Alexandria e Antioquia
competiam para exercer uma influência controladora sobre Constantinopla, que era uma sé
muitíssimo importante por causa da presença do imperador romano. Os diferentes
arcebispos de Constantinopla com freqüência tinham condições, por causa de sua própria
posição ou por causa da influência do imperador, de inclinar decisivamente a balança do
poder para Alexandria ou para Antioquia. Tornando ainda mais séria uma situação já
contenciosa, as três grande sés orientais competiam entre si para obter o apoio do bispo de
Roma, que era tradicionalmente reconhecido como o principal líder da igreja no Ocidente.
O poder dos papas (como os bispos de Roma já estavam sendo chamados) cresceu depois
que os imperadores romanos mudaram a capital imperial para o Oriente, em
Constantinopla, e fortaleceu-se ainda mais depois que as invasões bárbaras, a partir do
início do quinto século, solaparam o governo imperial em Roma. Como conseqüência
disso, embora Roma nunca tenha estado tão envolvida em minuciosas discussões
cristológicas quanto Antioquia, Alexandria ou Constantinopla, os julgamentos de Roma era
sempre de grande importância, seja ao apoiar um ou outro dos antagonistas orientais, seja
ao oferecer a sua própria opinião independente sobre questões teológicas controvertidas.
Essas circunstâncias dos relacionamentos internos do Oriente e entre o Oriente e o Ocidente
explicam porque os intensos debates sobre a natureza da pessoa de Cristo transformaram-se
em intensa competição eclesiástica.
A controvérsia, assim como os ânimos, logo inflamou-se novamente. Eutiques (c. 378-
454), um destacado monge de Constantinopla, defendeu a posição alexandrina básica ao
publicar a sua opinião de que Cristo teve somente “uma natureza após a união.”5 Ou seja,
ele reiterou a convicção de que Jesus tinha uma personalidade integrada e de que essa
personalidade devia ser sempre descrita com apenas um conjunto de atributos
(essencialmente divinos). Em resposta a isso, Flaviano († 449), o arcebispo de
Constantinopla, acusou Eutiques de cometer heresia ao confundir as duas naturezas de
Cristo. Passando das palavras às ações, Flaviano baniu Eutiques de Constantinopla. Não
intimidado, Eutiques apelou tanto para Alexandria quanto para Roma. Respondendo
positivamente a uma oportunidade de defender a cristologia alexandrina, Dióscoro († 444),
que era tanto sobrinho de Cirilo quanto seu sucessor como bispo de Alexandria, organizou
um concílio em Éfeso para apoiar Eutiques. Nessa reunião Dióscoro também tomou
providências para depor Flaviano do bispado de Constantinopla. Flaviano, por sua vez,
recorreu ao apoio do bispo de Roma, Leão I.
Quando Leão entrou no conflito, muitas coisas estavam em jogo. Em termos gerais, a sua
posição como bispo de Roma foi acompanhada daquilo que havia se tornado uma típica
atitude romana ou ocidental em relação ao ensino cristão. Retornaremos a essas diferenças
características no capítulo 6, mas é útil destacar aqui alguns contrastes importantes. Onde a
mentalidade romana e ocidental era concreta, prática e legal, a mentalidade oriental
gravitava em direção à abstração, paixão e especulação. O mundo romano usava latim, o
oriente usava grego. Tertuliano, no Ocidente, achou que não valia a pena considerar o que
Jerusalém (a fé cristã) tinha a ver com Atenas (as tradições da filosofia especulativa). Em
contraste com isso, o seu contemporâneo oriental Clemente de Alexandria havia promovido
o estudo cristão do pensamento especulativo grego como um útil exercício para a igreja.
Essas diferenças eram mais tendências de disposição intelectual do que conflitos abertos de
doutrina, mas tinham continuado a desenvolver-se desde a época de Tertuliano e Clemente.
No quinto século, estava claro que o Ocidente respeitava fórmulas doutrinárias como o
credo niceno-constantinopolitano por causa da maneira como elas punham fim aos debates
e resolviam as questões. No Oriente, ao contrário, tais formulações doutrinárias vieram a
ser consideradas como incentivos para uma especulação teológica mais ampla e mais
profunda. Assim, a entrada de Leão em debates essencialmente orientais acerca da natureza
da pessoa de Cristo significava trazer, não somente uma outra opinião, mas uma
mentalidade muito diferente à discussão dessa questão crítica.
Além disso, o fato de que foi esse papa em particular que fez com que o pensamento
ocidental influenciasse as questões cristológicas, teve grandes conseqüências. Atuando
como papa em Roma de 440 a 461, Leão I é muitas vezes chamado “o Grande” por causa
de seu talento, seriedade e dedicação, e por causa da sua importância duradoura na história
do pensamento cristão. Além do seu papel nos debates cristológicos, ele também
apresentou argumentos acerca do bispo de Roma como sucessor de Pedro que continuam a
ser respeitados na Igreja Católica Romana até os nossos dias. A energia de Leão como líder
foi seriamente testada quando várias ondas de bárbaros saíram do norte para atacar Roma.
Na ausência de uma autoridade secular efetiva, Leão assumiu a liderança da negociação
com Átila, o Huno, em 451, e atenuou a destruição quando os vândalos assolaram Roma em
5
Ibid., 28.
452. O objetivo maior de Leão, tanto no aspecto doutrinário quanto na ordem eclesiástica,
foi assegurar a estabilidade em uma era de fragmentação. Assim sendo, a mensagem que
ele enviou em resposta ao pedido de Flaviano foi duplamente significativa, pois não
somente vinha do Ocidente mas também procedia de um dos poucos grandes homens de
seu tempo.
A resposta de Leão a Flaviano, que é sempre designada como o seu Tomo, assumiu uma
posição clara acerca da questão cristológica – Jesus era uma única “pessoa,” com duas
“naturezas.” As raízes desses termos retrocediam a Tertuliano, mas Leão amplificou-os
com uma cuidadosa fundamentação nas Escrituras e uma cuidadosa aplicação às lutas
correntes. Como Atanásio havia feito no debate acerca da divindade de Cristo, Leão
mostrou que a questão da humanidade e da divindade de Cristo relacionava-se diretamente
com a esperança da salvação. Assim sendo, o nascimento de Cristo “ocorreu para que a
morte pudesse se vencida e para que o diabo, que antes exercia o domínio da morte,
pudesse ser destruído pelo seu poder, pois nós não poderíamos vencer o autor do pecado e
da morte, a menos que aquele que o pecado não pôde manchar nem a morte pôde reter
assumisse a nossa natureza e a fizesse sua.”6 Além disso, Leão acrescentou algumas
afirmações cuidadosas sobre as maneiras pelas quais era apropriado, e as maneiras pelas
quais não era apropriado, dizer que os atributos humanos e divinos foram permutados na
única pessoa terrena de Cristo. Nesse ponto ele tratou da complexa questão da
communicatio idiomatum – o intercâmbio de atributos ou qualidades. É apropriado, por
exemplo, dizer que “Deus morreu” na cruz ou que “o homem Jesus conhecia todas as
coisas”? No seu Tomo, Leão andou numa corda bamba da qual muitos caíram antes e
depois dele. “Cada „forma‟” de Cristo como Deus e ser humano “desempenha as suas
atividades próprias em comunhão com a outra.”7 Com essas palavras, Leão manteve juntas
a distinção das naturezas e a unidade da pessoa.
Embora Dióscoro tenha se recusado a reconhecer o Tomo de Leão quando este chegou em
449, o Tomo mais tarde tornou-se um elemento básico na definição de Calcedônia. No
entanto, o fato de que alguns orientais deram tão pouca atenção aos conselhos de Leão
lembra-nos que as disputas cristológicas eram tanto uma questão de poder eclesiástico
quanto de ortodoxia teológica. De fato, Leão não ficou nem um pouco satisfeito com as
vozes de Constantinopla que questionavam o primado de Roma na igreja. Todavia, naquela
época, em todo o Oriente a atitude geral para com o bispo de Roma era mais de respeito do
que de deferência. Reagindo especificamente contra a recusa de Dióscoro em considerar o
seu Tomo no Concílio de Éfeso em 449, Leão chamou essa reunião de um sínodo ladrão e
apelou a outro concílio para corrigir a situação.
Foi então que entrou em cena o imperador Marciano, juntamente com novas complicações.
Acontece que Marciano havia acabado de tornar-se imperador. No dia 28 de julho de 450, o
governante anterior, Teodósio II, que havia sido um forte partidário da cristologia
alexandrina (e, portanto, de Dióscoro), foi lançado do seu cavalo e morreu. Todavia, a irmã
de Teodósio, Pulquéria, era uma aliada de Leão e também apoiava uma cristologia que
6
Ibid., 146.
7
Ibid., 150.
enfatizava as duas naturezas de Cristo (mais próxima da posição de Antioquia). Quando ela
tornou-se o poder por trás do trono e escolheu Marciano como seu consorte – e assim como
o novo imperador – as opiniões dela inclinaram a balança contra Dióscoro. Todas essas
manobras imperiais tornaram-se imensamente relevantes para a história do cristianismo
quando Marciano convocou um concílio para resolver a questão de uma vez por todas.
Seguindo os santos pais, nós confessamos a uma só voz que o único Filho, nosso Senhor
Jesus Cristo, é perfeito em divindade e perfeito em humanidade, verdadeiramente Deus e
verdadeiramente homem, e que ele tem uma alma racional e um corpo. Ele é de uma só
substância [homoousios] com o Pai, como Deus; ele é também de uma só substância
[homoousios] conosco, como homem. Ele é como nós em todas as coisas, exceto o pecado.
Ele foi gerado por seu Pai antes das eras, como Deus, mas nestes últimos dias, e para a
nossa salvação, nasceu da virgem Maria, a theotokos, como homem. Este único e o mesmo
Cristo, Filho, Senhor, Unigênito é conhecido em duas naturezas [que existem] sem
confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação. A distinção das naturezas de modo
algum é anulada por sua união, antes as propriedades distintivas de cada natureza são
preservadas. [Ambas as naturezas] se unem em uma só pessoa e em uma só hipóstase [isto
é, substância]. Elas não são separadas ou divididas em duas pessoas, mas [constituem] um
só e o mesmo Filho, Unigênito, Deus, Verbo, Senhor Jesus Cristo, assim como os profetas
de antigamente [falaram] acerca dele e como o próprio Senhor Jesus Cristo nos ensinou e
como o credo dos pais nos transmitiu.8
A Definição de Calcedônia levou mais tempo para ser aceita no Oriente do que no
Ocidente. No Egito, particularmente, surgiu uma resoluta oposição contra a fórmula.
Protério, um bispo egípcio, disse em Calcedônia que se ele assinasse a declaração estaria
assinando a sua sentença de morte. Seis anos depois ele realmente foi morto por uma turba
por causa daquele mesmo ato. A cristologia Verbo-carne alexandrina era tão forte no Egito
que, em oposição a quase todo o restante da igreja, a posição nestoriana “monofisita” – de
que Jesus tinha “somente uma natureza” (do grego monos + physis) – tornou-se o dogma
oficial da igreja egípcia. (Até hoje a Igreja Copta do Egito mantém uma cristologia
monofisita.) Os rancorosos conflitos teológicos internos que persistiram com grande
intensidade no norte da África depois de Calcedônia constituíram um dos fatores que
8
Tony Lane, ed., Harper’s Concise Book of Christian Faith (San Francisco: Harper & Row, 1984), 50.
Em contraste com isso, no Ocidente houve uma satisfação quase imediata com Calcedônia.
De fato, em pouco tempo até mesmo uma grande parte do Oriente veio a admitir que essa
era uma boa declaração do delicado mistério que está no coração do próprio cristianismo.
9
Frend, The Rise of Christianity, 790.
Porém, a razão por que essa cuidadosa delimitação era necessária envolvia muito mais que
questões técnicas de especulação filosófica e teológica. Era importante aclarar as questões
acerca da pessoa de Cristo porque Cristo e a sua obra eram de importância imensurável.
Nenhuma pessoa daquela época expressou isso de modo mais sucinto que Leão I, como é
ilustrado pela maneira espontânea com que o seu Tomo se moveu entre a questão específica
de como relacionar a humanidade e a divindade em Cristo e a questão mais ampla de como
os seres humanos podem ser redimidos:
Uma vez que... as propriedades características das duas naturezas e substâncias são
mantidas intactas e se reúnem em uma só pessoa, a humildade é assumida pela majestade, a
fraqueza pelo poder, a mortalidade pela eternidade, e a natureza que não pode ser
danificada é unida à natureza que sofre, a fim de que a dívida que a nossa condição envolve
possa ser satisfeita. Dessa maneira, como requer a nossa salvação, um e o mesmo mediador
entre Deus e os seres humanos, o ser humano que é Jesus Cristo, pode ao mesmo tempo
morrer em virtude de uma natureza e, em virtude da outra, ser incapaz de morrer. É por isso
que o Deus verdadeiro nasceu com a natureza integral e completa de um verdadeiro ser
humano, inteira no que lhe diz respeito e inteira no que diz respeito a nós.10
Ao colocar percepções como essas em uma fórmula, Calcedônia reservou espaço para
reflexões posteriores acerca da pessoa de Cristo e ao mesmo tempo reafirmou a confiança
na grande obra de salvação que este “único Filho” realizou.
10
Norris, The Christological Controversy, 148.
A associação entre texto e ilustração que tem persistido nas Bíblias através dos séculos já
estava bem estabelecida no quarto século, como é exemplificado por este manuscrito
egípcio do livro de Atos.
Calcedônia deu testemunho sobre o êxito da tradução em um nível ainda mais profundo do
que essas questões técnicas, por complicadas e importantes que tenham sido. Simplificando
novamente, Calcedônia marca o estágio final e triunfante de um processo cujos primórdios
podem ser vislumbrados no Novo Testamento. Em Atos 11.20, uma passagem destacada de
maneira proveitosa pela obra do missionário escocês Andrew Walls, nós lemos que
“alguns... que eram de Chipre e de Cirene e que foram até Antioquia, falavam também aos
gregos, anunciando-lhes o evangelho do Senhor Jesus.”11 Não foi Jesus o Cristo (ou
Messias) que estes cristãos judeus anônimos proclamaram aos gregos em Antioquia, pois
isso teria sido pedir a não judeus que se tornassem peritos na história da religião hebraica
antes que pudessem entender o que significava reconhecer Jesus como o Messias
prometido. Antes, para gregos que não conheciam as Escrituras hebraicas, a proclamação é
sobre Jesus como Senhor, aquele que veio da parte de Deus e irá reger todas as nações e
todos os outros governantes. No sentido mais amplo de “tradução”, Calcedônia representa a
conclusão do trabalho iniciado por aqueles homens anônimos “que eram de Chipre e de
Cirene,” os quais levaram o evangelho de um mundo conceptual judaico para um mundo
conceptual helenístico.
Para a história posterior do cristianismo – que um dia alcançaria incontáveis culturas muito
distantes do judaísmo do Oriente Médio e do helenismo do Mediterrâneo – o que aconteceu
em Calcedônia não poderia ter sido mais importante. Calcedônia provou que o âmago da
mensagem do evangelho poderia ser preservado, mesmo quando essa mensagem era
colocada em uma nova linguagem conceptual. As palavras ousia, hypostasis, substantia e
persona não aparecem nas Escrituras como termos técnicos e a Bíblia tem muito pouca
conexão direta com os mundos conceptuais nos quais esses termos surgiram e adquiriram a
sua própria história intelectual. Todavia, Calcedônia demonstrou que a mensagem do Deus
que se encarnou para efetuar a salvação do seu povo era uma mensagem que poderia ser
ouvida de maneira distinta, adequada e poderosa, exatamente nesses termos extra-bíblicos e
dentro desse ambiente intelectual não-judaico.
Assim sendo, o Concílio de Calcedônia foi muito importante para a história da doutrina
cristã de duas maneiras. Ele constituiu-se numa reafirmação sábia, cuidadosa e equilibrada
da revelação bíblica. Ele também representou a tradução bem-sucedida da revelação bíblica
para outra linguagem conceptual. Calcedônia não foi o Pentecoste, mas como o seu
trabalho sintetizou fielmente a história bíblica, o mundo helenístico agora podia ouvir “as
maravilhas de Deus” em sua própria língua. Como a obra de Calcedônia traduziu fielmente
o ensino bíblico, agora o mundo helenístico podia expressar as maravilhas de Deus em sua
própria linguagem conceptual. Tanto síntese quanto tradução precisariam acontecer muitas
e muitas outras vezes.
11
Andrew F. Walls, The Missionary Movement in Christian History: Studies in the Transmission of Faith
(Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1996), 52.
Por fim, todavia, a Definição de Calcedônia retém um significado importante não somente
porque é uma declaração tão habilidosa e bem-equilibrada. Antes, ela continua a ser um dos
grandes documentos de transição na história da igreja porque a declaração representa
fielmente a realidade sobre a qual ela se expressa. Os cristãos podem viver no mundo e
também para a glória de Deus – o fato da única “pessoa” pode coexistir com o fato das duas
“naturezas” – porque realmente aconteceu, como escreveu o apóstolo João, que “o Verbo se
fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14).
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
inscrições pagãs da mesma época, as orações cristãs refletem uma esperança que supera a
dor. A oração abaixo vem de um epitáfio egípcio do quinto século, que de modo
característico apela às Escrituras e à liturgia da igreja. Sua descrição do paraíso como um
jardim luxuriante com águas refrescantes teria sido particularmente atraente nas regiões
quentes e desérticas do Oriente Próximo:
Leituras Complementares
Cullmann, Oscar. The Christology of the New Testament. Filadélfia: Westminster, 1959.
Jalland, Trevor. The Life and Times of St. Leo the Great. Nova York: Macmillan, 1941.
Kelly, J. N. D. Early Christian Doctrines. 5ª ed. San Francisco: Harper & Row, 1978. Em
português: Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, trad. Márcio L.
Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1994.
Norris, Richard A., Jr., trad. e ed. The Christological Controversy. Filadélfia: Fortress,
1980.
Pelikan, Jaroslav. Mary through the Centuries. New Haven: Yale University Press, 1996.
Schaff, Philip, ed. The Creeds of Christendom. 6ª ed., 3 vols. Nova York: Harper, 1919.
Reimpressão, Grand Rapids: Baker, 1990.
12
A. Hamman, ed., Early Christian Prayers (Chicago: Henry Regnery, 1961), 84.
São Bento escreveu a sua regra na primeira metade do sexto século a fim de
conduzir os monges à santidade e corrigir os abusos monásticos do seu tempo.
Cinco séculos mais tarde, Bernardo de Claraval (1090-1153) foi convocado
para reformar os mosteiros beneditinos que haviam recaído no mundanismo.
Certas questões do seu tempo impulsionaram Bernardo, um místico
intensamente devotado a Deus, a desempenhar um papel destacado na política
e na renovação eclesiástica. Como renomado pregador e escritor, Bernardo era
tão popular que muitos dos melhores hinos latinos medievais foram atribuídos
a ele, muito embora a verdadeira autoria seja incerta.
2
Para a descrição a seguir, recorri especialmente a W. H. C. Frend, The Rise of Christianity (Filadélfia:
Fortress, 1984); F. F. Bruce, The Spreading Flame: The Rise and Progress of Christianity from its First
Beginnings to the Conversion of the English (Grand Rapids: Eerdmans, 1958); e Christopher Dawson, The
Foundation of Christendom (Nova York: Sheed & Ward, 1967).
Por volta do ano 370, Basílio escreveu uma regra para os mosteiros que
estavam sob os seus cuidados na Capadócia (a região centro-leste da moderna
Turquia), que serve até hoje como o guia básico para a vida monástica na
Igreja Ortodoxa. Atanásio, o grande defensor da divindade de Cristo no quarto
século, poderia ser escolhido como uma figura chave no surgimento do
monasticismo, uma vez que a sua biografia de Antônio ao mesmo tempo
identificou firmemente o monasticismo com a ortodoxia doutrinária e
expandiu grandemente o conhecimento da vida monástica tanto no Oriente
como no Ocidente. Também poderia ser Martinho de Tours, que fundou em
360 o primeiro mosteiro no que é hoje a França e assim começou a importante
carreira do monasticismo como o principal introdutor do cristianismo no norte
da Europa. Ou poderia ser João Cassiano, que, tendo vivido no sul da França
no início do quinto século, escreveu um livro influente que condensou grande
parte da sabedoria monástica do Oriente com vistas a sua divulgação no
Ocidente.
Todavia, por importantes que todas essas e muitas outras influências tenham
sido para o surgimento do monasticismo, quase certamente foi Bento de
Nursia (na Itália) que lhe deu a forma mais decisiva e mais benéfica. É a São
Bento e a sua famosa Regra que as igreja cristãs devem uma série de
contribuições valiosas: disciplinar um espírito zeloso que freqüentemente
havia se aproximado do fanatismo; limitar uma prática de ascetismo que
facilmente descambava para o gnosticismo, o docetismo ou coisas piores;
preservar a centralidade das Escrituras em um movimento que valorizava
grandemente a iluminação espiritual interior; colocar a oração no centro da
vida cristã; conectar uma experiência religiosa elevada com as realidades
básicas do trabalho, estudo, alimentação e repouso; e, não menos importante,
oferecer um ideal de vida monástica no qual muitos reformadores acharam
inspiração e encorajamento durante mil e quinhentos anos.
O gnosticismo e o docestismo são heresias correlatas que consideram o mundo físico inferior ao mundo
puramente espiritual. A palavra “docetismo” vem do grego dokeo, “parecer”; os docetistas criam que Jesus
era um ser espiritual que somente parecia humano. Essa desvalorização do corpo humano por vezes levava a
extremos ascéticos que Bento procurou corrigir. Por exemplo, tendo ouvido que um certo eremita havia se
acorrentado em sua caverna, o santo enviou-lhe esta mensagem: “Se você é realmente um servo de Deus, não
se acorrente com cadeias de ferro. Antes, deixe Cristo ser a cadeia que o prende.” Citado em Esther de Waal,
Seeking God: The Way of St. Benedict (Collegeville, Minnesota: Liturgical , 1984), 22-23.
Bento ou Benedito (c. 480–c. 550) foi educado em Roma, onde achou os
padrões dominantes tão degenerados que abandonou a cidade para cultivar
uma vida de devoção religiosa solitária em Subiaco. Por causa de sua
crescente reputação de discernimento espiritual, vários outros homens
juntaram-se a ele. Eventualmente, consta que Bento fundou doze mosteiros
separados com doze monges em cada um, mas também registra-se que nesses
primeiros anos ele foi objeto de ataques ciumentos por parte de alguns
indivíduos que inicialmente tinham se associado a ele em busca de uma vida
de oração. Por volta do ano 525, Bento mudou-se para Monte Cassino, ao sul
de Roma, onde estabeleceu um mosteiro que existe até hoje. † Provavelmente
foi depois de chegar a Monte Cassino e como parte de um esforço para
reformar a prática geral do monasticismo que Bento compôs a sua regula.
Essa Regra logo obteve uma aprovação quase universal no sentido de dar
forma ao monasticismo no Ocidente. Seu único rival importante foi o
monasticismo celta inspirado por São Patrício no quinto século e difundido
por São Columba (c. 521-597) a partir de um famoso mosteiro na ilha de Iona,
perto da costa da Escócia. A Regra de São Bento também foi lida com
apreciação no Oriente; ela tornou-se a norma para dezenas de milhares de
novas comunidades eclesiásticas na Europa e serviu como inspiração para os
ideais ligeiramente diversos que criaram as Ordens Mendicantes (os “frades”)
nos séculos XII e XIII. Nunca na história escrita do cristianismo uma pessoa
cuja própria vida permanece tão obscura praticou um ato com maiores
conseqüências públicas.
Motivos e Circunstâncias
As condições do quarto e do quinto séculos proporcionaram poderosos
motivos para a difusão do monasticismo. As perseguições de Décio na metade
do terceiro século e de Diocleciano no início do quarto século ocorreram ao
mesmo tempo em que as dificuldades econômicas desorientaram o padrão de
vida de muitas partes do Império Romano, especialmente no Egito. Os
primeiros monges como Antônio, que deixaram as cidades egípcias em busca
do deserto, estavam dessa maneira deixando um mundo em que tanto as
condições espirituais como as seculares estavam confusas.
O ascetismo oriental teve outras fontes. Durante o terceiro século, Clemente e Orígenes
haviam colocado em uso na igreja formas neoplatônicas de pensamento. As suas
convicções cristãs básicas tornaram o pensamento grego relativamente seguro para o uso
dos cristãos; todavia, a tendência neoplatônica de tratar o reino criado como apenas uma
sombra de realidades últimas – que estavam localizadas acima do reino material – persistiu
e influenciou o cristianismo. Tais ensinos promoveram uma espiritualidade que tinha a
tendência de desvalorizar a existência física comum e acentuar a vida puramente espiritual.
Essa influência neoplatônica foi mais forte no Oriente, mas também verificou-se no
Ocidente. A inovadora autobiografia de Agostinho, as Confissões (escritas em 397-401),
descreveu com detalhes a sua passagem através de vários estágios filosóficos e religiosos
em direção à fé cristã. Entre esses estágios, houve um período de fascinação com o
platonismo (com sua hierarquia de formas) e outro com o maniqueísmo (com sua
concepção de um universo rigidamente dividido entre as forças do bem e do mal). A
conversão de Agostinho ao cristianismo significou a sua libertação dos esforços desses
sistemas religiosos, mas não significou que a influência dos mesmos tenha sido
inteiramente apagada. Uma de suas metáforas características quanto à vida cristã
responsável continuou a ser a de uma jornada ascendente, deixando a materialidade da vida
diária em direção às esferas da espiritualidade pura. Assim, nas Confissões a avaliação
cristã de Agostinho acerca da sua própria luta contra o pecado foi colocada em uma
linguagem retirada do pensamento neoplatônico. Por exemplo: “Porém, eu não permaneci
no gozo do meu Deus; eu fui levado a ti pela tua própria beleza e então fui arrancado de ti
pelo meu próprio peso e caí de volta suspirando por essas coisas inferiores. O hábito carnal
foi esse peso.”3
Em particular, a renuncia monástica da prática sexual resultou dessa tendência mais ampla.
A exortação de Paulo à possível vida celibatária foi a centelha, mas grande parte da forma
do ideal monástico de castidade foi fornecida pelo dualismo – especialmente o dualismo
entre espírito e matéria – tão predominante no pensamento grego. O mundo físico,
conforme entenderam muitos teólogos antigos, era o reino em que Satanás exercia a sua
maior influência. Regulamentar esse mundo de modo tão cuidadoso quanto possível era um
modo de abandonar o príncipe das trevas em favor do Senhor da Luz.
A história de Simeão Estilita (c. 390-459) mostra claramente como os processos mentais
dos cristãos antigos podiam ser diferentes dos nossos. Simeão, que viveu nas proximidades
3
The Confessions of St. Augustine, trad. Rex Warner (Nova York: New American Library, 1963), 153.
Uma das dificuldades para a descrição do monasticismo antigo é a grande diversidade dos
registros. Para cada asceta extremado como Simeão, existiram muitos personagens
reverenciados que eram conhecidos por sua bondade, moderação, sabedoria e extraordinária
hospitalidade para com os rejeitados e os decaídos. Um perigo no estudo do monasticismo é
que essa corrente igualmente significativa pode ser obscurecida pelos aspectos mais
bizarros, ainda que muitos “pais do deserto” tenham desestimulado as práticas extremas.
Em geral, o que tornou os monges antigos tão atraentes foi a sua reputação como pessoas
destacadas na oração.
A Regra de São Bento não era um manual para os relapsos. Por exemplo, ela preservou a
sabedoria dos primeiros séculos cristãos acerca da espiritualidade superior, proibindo
rigorosamente as possessões pessoais: “Acima de tudo, essa prática maligna [da
propriedade privada] deve ser erradicada e eliminada do mosteiro. Queremos dizer que,
sem uma ordem do abade [o líder] , ninguém tente dar, receber ou reter qualquer coisa
como sua própria, absolutamente nada.”4 A Regra também deixava claro que até mesmo os
membros mais jovens deviam participar da busca da perfeição. Ela determinava que os
monges mais velhos dormissem nos mesmos quartos que os monges mais novos, de modo
que, ao soar o sino convocando para as orações da meia-noite, todos pudessem “levantar-se
sem demora quando o sinal é dado; cada um irá apressar-se para chegar ao serviço de Deus
antes dos outros, mas com toda a reverência e modéstia” (49). A razão para colocar juntos
os jovens e os velhos era para que, “ao levantarem-se para o serviço de Deus,” eles possam
“animarem brandamente uns aos outros, porque os sonolentos gostam de se desculparem”
(49).
Todavia, quando a regra era rígida, isso se devia a claras razões teológicas. Muitas das
determinações mais importantes da Regra refletiam justificativas teológicas para práticas
monásticas essenciais como, por exemplo, a importância fundamental do trabalho: “A
ociosidade é inimiga da alma. Portanto, os irmão devem ter períodos específicos para o
trabalho manual, bem como para a leitura piedosa” (69). Como padrão para o trabalho, o
próprio Bento provavelmente tinha em mente mais o “trabalho manual” do que a “leitura
piedosa,” mas a sua associação entre trabalho físico e mental abriu caminho para a grande
contribuição dos monges à cultura que seria dada quase desde o início.
A Regra é caracterizada em todo o seu texto por concentrar-se nas realidades espirituais que
os mosteiros existiam para expressar. Na base de tudo estava o compromisso com a prática
da oração: “Sempre que queremos pedir algum favor a um homem poderoso, nós o fazemos
de modo humilde e respeitoso por temor de presunção. Assim, quão mais importante é
apresentar as nossas petições diante de Deus, o Senhor de todas as coisas, com a máxima
humildade e sincera devoção. Devemos saber que Deus considera a nossa pureza de
coração e lágrimas de contrição, e não as nossas muitas palavras. Por isso, a oração deve
4
The Rule of St. Benedict in English, ed. Timothy Fry, O.S.B. (Collegeville, Minn.: Liturgical, 1981), 56. A
partir de agora, as páginas mencionadas no texto referem-se a essa edição.
ser breve e pura” (48). Além disso, a prática da oração devia produzir uma vida de piedade:
“A vida de um monge deve ser uma contínua quaresma... Podemos fazer isto corretamente
se nos abstemos dos vícios e nos devotamos à oração com lágrimas, ao estudo, à contrição
do coração e à abstinência” (71).
Na designação de um abade, sempre se deve observar este princípio orientador: que seja
colocado neste ofício alguém que tenha sido escolhido unanimemente por toda a
comunidade, segundo o temor de Deus, ou por uma parte da comunidade, não importa quão
pequena, que possuir um julgamento mais sensato. A bondade de vida e a sabedoria no
ensino devem ser os critérios para escolher aquele que será feito abade, mesmo que seja o
menor em ordem na comunidade...
Uma vez investido, o abade sempre deve ter em mente a natureza da responsabilidade que
recebeu e lembrar-se daquele a quem terá que prestar contas da sua administração [Lc
16.2]. Que ele reconheça que o seu objetivo deve ser o benefício dos monges e não a sua
própria preeminência. Portanto, deve ser versado na lei divina de modo que tenha um
tesouro de conhecimento do qual possa retirar tanto o novo como o velho [Mt 13.52]. Ele
deve ser casto, sóbrio e misericordioso. Sempre deve fazer a misericórdia triunfar sobre o
juízo [Tg 2.13], de modo que também possa alcançar misericórdia. Deve detestar o vício,
mas amar os irmãos. Quando tiver de puni-los, deve usar de prudência e não fazer nada de
excessivo, para que não suceda que, sendo por demais diligente em remover a ferrugem,
acabe por quebrar o vaso. Sempre deve suspeitar de sua própria fraqueza e lembrar-se de
não esmagar a cana quebrada [Is 42.3]... Deve esforçar-se em ser antes amado do que
temido.
Não deve ser inquieto, ansioso, extremado, obstinado, ciumento ou tomado de excessiva
suspeita... Em vez disso, deve mostrar sabedoria e consideração em suas ordens e, quer os
trabalhos que manda fazer digam respeito a Deus ou ao mundo, deve usar de discernimento
e moderação... Portanto,... deve dispor todas as coisas de modo que os fortes as desejem e
os fracos não fujam delas.
Todavia, a vida de oração não devia ser divorciada artificialmente da vida de serviço. É
questionável se Bento poderia ter previsto as inúmeras atividades de piedade prática
empreendidas pelos monges posteriores que seguiram a sua Regra, mas certos aspectos da
Regra serviram de fundamento para esses desdobramentos posteriores. Por exemplo, as
exortações ao cuidado dos estranhos e dos enfermos continham as sementes de
significativas obras caritativas futuras: “Todos os hóspedes devem ser recebidos como o
próprio Cristo, pois ele mesmo disse: „Eu era forasteiro e me hospedastes‟ [Mt 25.35]”
(73); e “antes de tudo e acima de tudo se deve cuidar dos enfermos, para que possam ser
servidos como o próprio Cristo, pois ele disse: „Estive enfermo e me visitastes‟ [Mt 25.36]”
As palavras de conclusão da Regra falam da sua natureza como um todo; elas são serenas,
ponderadas e centralizadas em Deus; no entanto, também estão cheias de esperança quanto
ao progresso na vida cristã disciplinada, pela graça de Deus: “Estás avançando para o teu
lar celestial? Então, com o auxílio de Cristo, cumpre esta pequena regra que escrevemos
para os principiantes. Depois disso, podes partir para os cumes mais elevados do saber e da
virtude a que aludimos e, sob a proteção de Deus, irás alcançá-los” (95-96).
A rotina diária comum moldada pela regra de Bento variava de acordo com o lugar, a
época, a personalidade do abade e muitos outros fatores. De modo especial, a relação do
abade de um mosteiro com o bispo vizinho (ou bispos) tornou-se um grande problema
durante boa parte da Idade Média. Quando algumas fundações monásticas tornaram-se
grandes e prósperas, o poder do abade, que podia presidir toda uma cadeia de mosteiros
filiais, freqüentemente era muito maior do que o dos bispos locais. Quando esses abades
cumpriam os ideais estabelecidos para o seu cargo na Regra de São Bento, isso podia ser
um grande benefício para a igreja. Mas quando tornavam-se presas da avareza e da sede de
poder, tais abades podiam ser um desastre para os assuntos gerais da igreja e um laço para
os monges comuns.
Por seu lado, os monges comuns geralmente não eram afetados de maneira direta pela
política que envolvia abades, bispos e governantes seculares. Como um exemplo típico, o
mosteiro beneditino de Durham, na Inglaterra, foi fundado em 1083 mediante cooperação
entre o arcebispo de Cantuária, o rei da Inglaterra, o papa e oficiais eclesiásticos locais.
Poucos séculos depois, a rotina diária de verão dos monges do mosteiro de Durham era a
seguinte: levantar às seis horas para orações na igreja; depois, um leve desjejum e então
trabalho ou estudo. A partir das nove horas, realizava-se uma série de reuniões e missas na
igreja monástica. À tarde, havia uma alternância de trabalho e oração, com a ceia às dezoito
horas, seguida de orações, e então o repouso noturno numa hora não tardia. À meia-noite,
os monges levantavam-se para orar novamente.5 E assim era – orare et labutare – orando e
trabalhando, trabalhando e orando, na passagem das estações e no decurso dos anos.
Desjejum
Trabalho ou estudo
5
Ver Anne Boyd, The Monks of Durham (Cambridge: Cambridge University Press, 1975), 16-18.
Trabalho
16:00 Vésperas na igreja (cerca de meia hora)
Trabalho
18:00 Jantar
19:00 Completas, a oração da noite, na igreja (cerca de meia
hora)
Para o leito, mais tarde no verão do que no inverno
No inverno, as Matinas eram algumas horas mais tarde e outros ajustes eram feitos ao longo
do dia.²
O padrão estabelecido pela Regra de São Bento veio a ser aplicado amplamente e com
grande efeito. Para homens e mulheres, de todas as partes da Europa e de outras regiões, em
períodos de florescimento e de decadência monástica, ela foi um farol que apontava para o
6
Caroline Walker Bynum, Holy Feast and Holy Fast: The Religious Significance of Food to Medieval
Women (Berkeley: University of California Press, 1987).
Três Escritoras
Na primeira fase apontada por Neill, monges de diversos tipos fizeram o trabalho pioneiro
que era necessário para divulgar o cristianismo além das fronteiras estabelecidas do antigo
Império Romano, para o norte, para o oeste e para o leste, na Europa bárbara. Os
missionários celtas foram os pioneiros, tendo na sua vanguarda a pregação de Patrício na
Irlanda, no quinto século. Missionários posteriores vindos da Inglaterra e da Escócia
combinaram a determinação celta com a ordem beneditina no uso de instituições
monásticas como um meio para sustentar o esforço missionário. Assim sendo, Bonifácio
(680-754), que é freqüentemente chamado o apóstolo da Alemanha, viveu até a idade de 40
anos como um monge na Inglaterra, e depois viajou extensamente no que hoje é a França, a
Alemanha e os Países Baixos, numa série de turnês missionárias desbravadoras. Um dos
mais duradouros de seus muitos legados ao cristianismo do norte da Europa foi o
estabelecimento de um mosteiro beneditino em Fulda (a nordeste de Frankfurt, na
Alemanha), que por muito tempo foi um centro de novos esforços missionários. O
historiador moderno Chistopher Dawson certa vez escreveu sobre o monge Bonifácio que
ele “teve uma influência mais profunda na história da Europa do que qualquer inglês que
jamais viveu.”8
A eficiência missionária dos monges geralmente dependia tanto de suas virtudes comuns
quanto de seus esforços mais claramente visíveis na pregação ou no ensino. O
estabelecimento de um mosteiro numa região pagã permitia que a população local visse a
aplicação do cristianismo à vida diária, enquanto os monges lavravam a terra, recebiam
visitantes e se dedicavam ao estudo e à oração diária. Assim, surgiu a afirmação de que os
monges civilizaram a Europa cruce, libro et atro – com a cruz, o livro e o arado.
7
Stephen Neill, A History of Christian Missions (Nova York: Penguin, 1964), 61-139.
8
Christopher Dawson, The Making of Europe (Nova York: Meridian, 1974 [orig. 1932]), 185.
Na segunda metade da Idade Média, grande parte da pregação itinerante que levou
europeus nominalmente cristãos a uma convicção cristã mais firme veio das novas ordens
de frades mendicantes (monges itinerantes, por assim dizer). Tanto a pregação habilidosa
dos dominicanos quanto a piedade prática dos franciscanos causaram um grande impacto.
À medida que ministravam às pessoas das regiões mais próximas, os frades também
preservaram as preocupações monásticas anteriores quanto às missões além da cristandade
européia. Por exemplo, alguns dos escritos do maior teólogo dominicano, Tomás de Aquino
(c. 1225-1274), foram elaborados para uso apologético junto aos muçulmanos. De sua
parte, desde a época de Francisco de Assis os franciscanos dedicaram-se intensamente à
evangelização transcultural. Raimundo Lull, um leigo franciscano, foi o primeiro ocidental
a planejar e executar uma estratégia missionária completa entre os muçulmanos. Lull
seguiu o seu próprio conselho de que os europeus deviam aprender o árabe a fim de
comunicar o evangelho em terras islâmicas. A sua vida chegou ao fim durante a quarta
viagem missionária que fez aos muçulmanos, quando outra vez as suas ações
acompanharam as suas palavras: “Os missionários irão converter o mundo não só pela
pregação, mas também pelo derramamento de lágrimas e sangue, com grande luta, e através
de uma morte dolorosa.”9
Esta representação estilizada procedente da Ásia Menor (hoje a Turquia) reúne muitas das
atividades pelas quais os monges ficaram renomados.
Se virtualmente toda a proclamação transcultural do evangelho na Idade Média foi feita por
monges e frades, também a cultura era virtualmente um monopólio monástico. Já na época
de Bento outros líderes monásticos haviam percebido a importância de se preservar os
documentos básicos do passado cristão. Cassiodoro de Roma (c. 485-c. 580) afastou-se da
vida pública no ano 540 a fim de fundar um mosteiro, o Vivarium, segundo as normas
beneditinas, onde escritos tanto seculares quanto cristãos pudessem ser preservados. O
Vivarium tornou-se um modelo amplamente imitado. No século VII, o reavivamento do
monasticismo beneditino na Inglaterra, em Lindisfarne e depois em Jarrow, na costa
oriental, esteve por trás da imensa contribuição ao conhecimento bíblico, teológico e
histórico por parte do Venerável Beda, que escreveu a primeira história da igreja inglesa. É
importante lembrar que Tomás de Aquino não somente escreveu as obras teológicas mais
importantes do século XIII, mas também liderou um esforço muitíssimo importante no
sentido de reintroduzir Aristóteles na Europa. A maneira pela qual Aquino realizou essa
tarefa – tendo o cuidado de distinguir entre aqueles aspectos de Aristóteles que iluminavam
o pensamento cristão e aqueles que precisavam ser refutados ou modificados a fim de se
preservar as realidades cristãs – deixou um exemplo que tem orientado até o presente a
interação cristã com a sabedoria do mundo.
de suas vestes) que se difundiram a partir de Citeaux notabilizaram-se por sua rigorosa
disciplina interna e também por erigirem novos mosteiros em lugares inóspitos e difíceis.
Os esforços dos cistercienses no sentido de sobreviver em tais lugares eventualmente
resultaram em consideráveis conhecimentos sobre a drenagem de pântanos, limpeza de
florestas, criação de gado e ovelhas e cultivo de cereais apropriados para as novas
localidades. Por sua vez, esses conhecimentos eventualmente foram transmitidas às
comunidades circundantes, com resultados benéficos para todos. Pouco mais de um século
após a fundação dos cistercienses, a dedicação de São Francisco aos pobres, aos enfermos e
aos inválidos colocou a ordem franciscana na vanguarda dos serviços humanos oferecidos
aos europeus menos capazes de ajudar-se a si mesmos.
Este breve esboço da história monástica medieval não deve ser entendido no sentido de que
o cristianismo somente existiu dentro dos círculos monásticos, nem que a vida monástica
sempre evitou a decadência e a corrupção. De fato, o apoio não monástico, seja através de
doações de nobres ricos ou da disposição de famílias pobres em enviar filhos e filhas para a
vida monástica, desempenhou um papel importante no sentido de alimentar o vigor do
monasticismo. Mas quando todas as qualificações necessárias forem feitas, permanece o
fato de que a imensa amplitude, profundidade e vigor espiritual do monasticismo
certamente foi a força propulsora da fé cristã por um longo tempo. Nesse sentido, o papel
central de Bento na história do monasticismo é mais que suficiente para justificar a
promulgação da sua Regra como um dos grandes pontos de transição da história do
cristianismo.
não incentivou noções danosas no que diz respeito à salvação pelas obras.
Obviamente, certos momentos de renovação monástica foram tão plenamente
inspirados pela confiança na graça divina e pela dedicação à santidade única
de Deus quanto quaisquer momentos na história posterior do protestantismo.
Porém, se nas épocas monásticas ordinárias a ênfase no que os monges se
comprometiam a fazer não teria obscurecido a realidade fundamental da graça
de Deus é uma questão que qualquer cristão poderia legitimamente levantar.
Por outro lado, um protestante não pode levantar essa questão com uma
consciência inteiramente limpa, uma vez que a história do protestantismo tem
revelado uma tendência para o legalismo, no qual diferentes coisas que os
protestantes devem ou não devem fazer ou crer tem se tornado substitutos do
evangelho da graça tanto quanto em qualquer monasticismo indisciplinado.
No entanto, questionamentos quanto à centralidade da graça são indagações
que o monasticismo sempre irá ouvir, especialmente da parte da família
protestante dos cristãos ocidentais.
Deus Todo-poderoso,
Por cuja graça São Bento,
Abrasado com o fogo do teu amor,
Tornou-se uma luz ardente e brilhante na igreja:
Inflama-nos com o mesmo espírito
De disciplina e amor,
Para que possamos andar na tua presença
Como filhos da luz.
10
Citado em de Waal, Seeking God, 25.
Leituras Complementares
Atanásio. The Life of St. Anthony the Great. Willits, Califórnia: Eastern
Orthodox Books, 1987.
Cahill, Thomas. How the Irish Saved Civilization. Nova York: Anchor, 1995.
Contém muitas informações sobre as atividades dos monges celtas.
de Waal, Esther. Seeking God: The Way of St. Benedict. Collegeville, Minn.:
Liturgical, 1984.
Leitzmann, Hans. A History of the Early Church. Vol. 4: The Era of the
Church Fathers. Trad. B. L. Woolf. Nova York: Charles Scribner‟s Sons,
1952.
The Rule of St. Benedict in English. Ed. Timothy Fry, O.S.B. Collegeville,
Minn.: Liturgical, 1981.
The Sayings of the Desert Fathers: The Alphabetical Collection. Rev. e trad.
Benedicta Ward, S.L.G. Kalamazoo, Michigan: Cistercian Publications, 1984.
11
Extraída de Alternative Service Book e citada em ibid.
Teodulfo de Orléans conheceu a pompa e a honra conferidas aos reis. Exilado de sua terra
natal, a Espanha, provavelmente por causa da invasão dos mouros islâmicos, ele tornou-se
um membro privilegiado da corte de Carlos Magno e no ano 800 foi nomeado arcebispo de
Orléans pelo futuro sacro imperador romano. Teodulfo também conheceu como a sorte e o
favor podem mudar repentinamente, como alguém pode cair abruptamente da aclamação
pública para o ostracismo e a condenação. Em 817, ele foi acusado de participar de uma
conspiração contra Luís, o Piedoso (filho e sucessor de Carlos Magno), sendo afastado do
seu ofício e lançado na prisão, onde escreveu o hino abaixo. Trata-se de um conhecido
processional do Domingo de Ramos que honra outro personagem que foi sucessivamente
honrado e humilhado e que, por sua ressurreição e ascensão, finalmente foi vindicado como
o único Rei verdadeiro.
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
1
“All Glory, Laud, and Honor,” trad. John Mason Neale, em Trinity Journal, ed. rev. (Atlanta: Great
Commission Publications, 1990), 235.
O ponto de transição ocorreu em Roma, na igreja dedicada a São Pedro. No final do missa
principal daquele dia, Carlos, o rei dos francos (a moderna França e parte da Alemanha),
levantou-se após orar diante do túmulo do apóstolo. Ao fazê-lo, o papa Leão III adiantou-se
e, nas palavras de uma testemunha ocular, “o venerável e santo pontífice com suas próprias
mãos coroou o rei Carlos com uma coroa mui preciosa.”2 Então o povo – na realidade “todo
o povo romano,” de acordo com os anais dos francos – levantou-se como um só. Eles já
haviam sido instruídos quanto ao que dizer. Por três vezes um grande brado ecoou: “Carolo
Augusto a Deo coronato, magno et pacifico imperatori, vita et victoria” (A Carlos Augusto,
coroado por Deus, grande e pacífico imperador dos romanos, vida e vitória).
Esta estátua de Carlos Magno em Zurique dá uma idéia da determinação imperial que fez
dele um terror para os seus inimigos e também um forte protetor da igreja.
A ida de Carlos Magno a Roma no verão de 800 marcara o auge de cinqüenta anos de
cooperação entre os governantes francos e os bispos de Roma. O seu propósito imediato era
vindicar o papa Leão III de acusações de corrupção feitas pela nobreza romana. Essa tarefa
fora realizada bem antes do Natal. Carlos Magno estava permanecendo em Roma para
aguardar a melhora do tempo e circunstâncias gerais mais favoráveis para retornar à sua
corte em Aachen (Aix-la-Chapelle), do outro lado dos Alpes. Sua mente provavelmente já
estava voltada para os preparativos para mais um verão de guerra contra os saxônios, a sua
vigésima primeira ou vigésima segunda campanha anual. De acordo com a biografia de
2
Quatro relatos contemporâneos da coroação – os Anais de Lorsch, os Anais Reais Francos, a Vida do Papa
Leão III e a Vida de Carlos Magno por Einhard – estão reproduzidos em Brian Tierney, ed., The Middle Ages,
vol. 1, Sources of Medieval History, 5ª ed. (Nova York: McGraw-Hill, 1992).
Carlos Magno escrita por um de seus diplomatas mais fiéis, Einhard, Carlos Magno nem
mesmo queria os títulos de “imperador” e “Augusto.” Como Einhard afirmou: “Ele não
teria posto os pés na igreja no dia em que eles foram conferidos, embora fosse um grande
dia festivo, se pudesse ter previsto o desígnio do papa.”
Todavia, ele compareceu, o papa deu-lhe a coroa imperial e Carlos Magno continuou a usar
os títulos que até então haviam sido reservados para a longa linhagem de imperadores
romanos que se estendia desde Júlio César até Irene, que na época reinava em
Constantinopla como imperatriz de Bizâncio, no mesmo momento em que Leão colocava a
coroa sobre a fronte de Carlos Magno. O ponto de transição na história da igreja
simbolizado por esse evento ficará claro quando forem respondidas três perguntas: (1)
Como o papa chegou a ter poder suficiente para coroar um imperador romano? (2) Como o
rei dos francos havia subido à posição de ser assim coroado? (3) Como esse novo
relacionamento entre o papa e o maior governante do norte da Europa moldou o período de
vários séculos da história ocidental que em geral é conhecido simplesmente como
cristandade?
A Ascensão do Papado
Um assunto como a ascensão do papado não pode ser tratado com total objetividade. Os
católicos romanos, que consideram o bispo de Roma como o vigário de Cristo que possui
responsabilidades apostólicas peculiares, obviamente irão considerar essa história de
maneira diferente dos ortodoxos, que consideram o papa como apenas um dentre vários
patriarcas importantes. As perspectivas diferem ainda mais com os protestantes, os quais, a
despeito de todas as outras diferenças básicas entre si mesmos, concordam que o papa não é
o sucessor dos apóstolos divinamente indicado. Ainda assim, é possível estabelecer a
seqüência de desdobramentos através dos quais emergiu o conceito de que o papa é o
portador da autoridade apostólica. Quer essa emergência tenha ocorrido através da obra do
Espírito Santo, das manipulações de homens ou de uma combinação insondável de ações
divinas e humanas, é uma questão a ser respondida mais por convicções teológicas do que
pela pesquisa histórica.3
O próprio termo “papa” tem uma longa história. A palavra grega papas era aplicada
originalmente a todos os tipos de oficiais eclesiásticos; por exemplo, o bispo de Alexandria
era chamado de papas em meados do terceiro século. No Ocidente, o termo latino papa
também era um título de respeito aplicado a diversas autoridades da igreja. O Dicionário
Oxford de Inglês informa que numa época tão tardia quanto o ano 640 o termo foi aplicado
a Desidério, bispo de Cahors (sul da França). No entanto, vários séculos antes, o uso do
termo papa começara a ser reservado para o bispo de Roma. Esse uso mais restrito vigorou
pelo menos a partir do pontificado de Leão Magno (440-61). Depois do século XI, o título
papa foi utilizado exclusivamente para o bispo de Roma.
A história do papado deve ser de interesse para todos os cristãos, até mesmo para aqueles
que rejeitam a interpretação católica da importância do papa. A maior parte dos grandes
desdobramentos doutrinários e institucionais da história do cristianismo envolveu de algum
3
A New Catholic Encyclopedia (Nova Enciclopédia Católica) e The Oxford Dictionary of the Christian
Church (Dicionário Oxford da Igreja Cristã) foram indispensáveis no preparo desta seção.
modo significativo os bispos de Roma. Como o debate acerca do papel do próprio papado
sempre esteve ligado a discussões primordiais sobre teologia, ordem eclesiástica e o lugar
da igreja no mundo, estudar esse assunto é inevitavelmente estudar também os demais. Um
benefício adicional de um exame histórico do papado é ver uma vez mais como podem ser
lentos, graduais e progressivos os desdobramentos que eventualmente exercem uma enorme
influência sobre a igreja. Foi a partir de um cadinho de experiências que emergiu o papado.
Dar atenção a essas experiências possibilita uma compreensão mais clara da história, não
importa o que se pense da doutrina do papado em si mesma.
Algumas ações procedentes de Roma que exerceram ampla influência já aparecem no início
da história da igreja. De acordo com a lista oficial de papas da Igreja Católica, Pedro foi
sucedido por Lino (talvez o personagem de 2 Tm 4.21), depois por Anacleto (ou Cleto) e
então por Clemente. Desse Clemente, que pode ter pertencido a uma família aristocrática
(mas provavelmente não é o Clemente de Fp 4.3) sobrevive uma carta que visava
admoestar e encorajar os cristãos de Corinto. Escrita por volta do ano 96, ela tentou tratar
dos problemas relacionados com a deposição de vários presbíteros daquela igreja. A
epístola de Clemente foi importante para o futuro por causa do padrão de influência que
antecipou, com uma orientação dotada de autoridade a estender-se desde um centro romano
até as fronteiras da igreja.
Todavia, muito antes desse evento diferentes papas haviam começado a refletir sobre a
natureza do seu ofício. Por volta do ano 255, o bispo Estevão usou uma passagem de
Mateus – “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”
(16.18) – para defender as suas próprias idéias em uma disputa com Cipriano de Cartago.
Após a legalização constantiniana da igreja, um concílio reunido em Sárdica (343) decidiu
formalmente que poderia haver recurso ao bispo de Roma das decisões de concílios locais.
Dâmaso I, que ocupou o trono papal de 366 a 384, tentou oferecer uma definição formal da
superioridade dos bispos romanos sobre todos os outros bispos. Em uma ação que teria
conseqüências tremendamente amplas, Dâmaso também comissionou o seu secretário
Jerônimo a produzir uma edição padrão da Bíblia em latim. A Vulgata daí resultante
tornou-se a Bíblia da Idade Média latina e a principal versão bíblica da Igreja Católica até o
presente século.
agradado a Carlos Magno, os dois são representados no mesmo nível e ele está recebendo o
seu ofício diretamente de Pedro, antes que do papa.
Já no quarto século, havia se tornado claro que a centralidade eclesiástica do bispo romano
tinha muito a ver com a centralidade política de Roma. Sendo a primeira cidade do império
e um local de grande importância simbólica e eclesiástica, mesmo depois que Constantino
transferiu a capital oficial para Constantinopla, no Oriente, Roma naturalmente atraía para
si influência eclesiástica bem como atividade econômica e poder político. Depois da
mudança de Constantino para o Oriente, o fracasso cada vez mais óbvio dos representantes
imperiais em manter a dignidade da cidade aumentou o prestígio de seus bispos, que foram
bem sucedidos onde o império falhou.
Essas raízes da supremacia eclesiástica romana foram nutridas pelas atividades hábeis de
muitos papas. De fato, alguns bispos romanos foram inexpressivos ou então meras
nomeações políticas que nunca se elevaram acima das condições aviltadas de sua indicação.
Alguns poucos desgarraram-se perigosamente, se não fatalmente, em suas opiniões
doutrinárias. Mas a maior parte deles foi no mínimo competente, e alguns foram gigantes.
As ações de Leão prepararam o palco para novas ampliações da autoridade papal através de
seus sucessores. Gelásio I, que foi papa de 492 a 496, seguiu Leão ao participar de debates
a respeito da pessoa de Cristo que continuavam em ebulição no Oriente. Como Leão,
Gelásio sustentou firmemente a combinação das duas naturezas de Cristo em uma pessoa
contra diversas concepções monofisitas. Novamente como Leão, ele também esforçou-se
em definir a natureza da autoridade eclesiástica. Em uma carta amplamente citada, ele
expôs a teoria de que, dos dois poderes legítimos que Deus havia criado para governar no
mundo, o poder espiritual – representado pelo papa – possuía o primado sobre o poder
secular sempre que os dois entravam em conflito. Tais teorias eram sempre mais difíceis de
pôr em prática do que de publicar, mas as palavras de Gelásio contribuíram
significativamente para as teorias acerca das relações entre a igreja e o estado que iriam
plasmar o caráter da sociedade européia posterior.
Todavia, o papado antigo atingiu o seu auge no pontificado de Gregório I (590-604), que,
juntamente com Leão, é freqüentemente chamado de “Magno.” Gregório nasceu como um
nobre romano, mas, após fundar vários mosteiros, eventualmente ingressou em um deles,
onde tornou-se renomado por sua santidade e sagacidade. Essa reputação levou o papa a
convocá-lo para o serviço diplomático em favor da igreja e eventualmente levou-o ao
próprio trono papal. A lista das enérgicas realizações de Gregório como papa é
impressionante. Ele não apenas supervisionou a defesa de Roma contra o ataque dos
lombardos, realizou negociações complicadas com o imperador romano em Constantinopla,
saneou as finanças da igreja e reorganizou os limites e as responsabilidades das dioceses
ocidentais, mas foi também um apaixonado estudioso das Escrituras e um formidável
reformador do culto. As exposições bíblicas do próprio Gregório, especialmente um
comentário sobre o Livro de Jó, foram amplamente estudadas em toda a Idade Média e
mais tarde. Seu tríplice método de exegese (literal, místico e moral) igualmente estabeleceu
um padrão duradouro. A sua Vida de São Bento deu aos ideais monásticos um grande
impulso no Ocidente. Seus escritos sobre os deveres dos bispos acentuaram o cuidado das
almas como a principal atividade de todos os pastores. Ele reformou as práticas litúrgicas e
regularizou as celebrações do calendário cristão. Seus esforços em promover a música na
igreja deram o seu nome aos “cantos gregorianos” em ritmos simples que ainda influenciam
a música sacra. Ele foi altamente respeitado como pregador, especialmente pela sua
capacidade em aplicar o bálsamo do evangelho aos muitos tumultos e desastres do seu
tempo.
Cuidado Pastoral refere-se àqueles que possuem autoridade espiritual, a saber, os bispos e
sacerdotes que são responsáveis pelo cuidado das almas.
Nós dissemos nos Livros sobre Moral que tanto a disciplina como a compaixão são
incompletas se exercidas independentemente uma da outra. Mas os líderes, em suas
relações com os súditos, devem ser animados pela compaixão devidamente considerada
e pela disciplina afetuosamente severa. É isso o que a Verdade ensina acerca do homem
que estava semi-morto e foi levado para uma estalagem pelos cuidados de um
samaritano, vinho e óleo sendo aplicado em suas feridas, o vinho para cauterizá-las e o
óleo para suavizá-las. Assim é necessário que aquele que atende a cura das feridas
aplique no vinho uma dor profunda e no óleo uma ternura suavizadora, pois o vinho
purifica a supuração e o óleo promove o processo da cura. Em outras palavras, a
suavidade deve ser misturada com a severidade; deve ser feito um composto de ambas,
de maneira que os súditos não sejam exasperados por uma rigidez muito grande, nem
enfraquecidos por uma excessiva suavidade.
Isto, como diz São Paulo, é bem simbolizado pela Arca do Tabernáculo, na qual,
juntamente com as tábuas da lei, estavam a vara e o maná; porque se com o
conhecimento das Escrituras Sagradas no coração do bom líder existe a vara
disciplinadora, lá também deve estar o maná da doçura. Pelo que diz Davi: “A tua vara e
o teu cajado me consolam.” É com a vara que somos feridos, mas somos sustentados
pelo cajado. Se pois existe a correção da vara no bater, que haja o consolo do cajado no
suportar.
Por isso, deve haver um amor que não enfraquece, um vigor que não exaspera, um zelo
que não é excessivamente imoderado e descontrolado, uma benignidade que poupa,
todavia não mais do que convém. Assim, enquanto a justiça e a clemência estão unidas
em governo supremo, o líder irá suavizar os corações de seus súditos, ainda mesmo
quando inspira temor, e no entanto, ao suavizá-los, conserva-os em reverente temor para
com ele.²
Como se isso não fosse suficiente, Gregório também supervisionou algumas adaptações
extraordinariamente importantes na estratégia missionária da igreja. Através da sua própria
experiência como diplomata eclesiástico, ele havia ficado desiludido com os prospectos de
um relacionamento com o Oriente, mas ao mesmo tempo aproveitou-se de outras
oportunidades para enviar missionários a vários centros estratégicos do norte e oeste da
Europa. Esses esforços missionários levaram, por exemplo, à conversão dos visigodos
arianos da Espanha à ortodoxia. De modo ainda mais notório, eles enviaram Agostinho
(não confundir com o grande teólogo do norte da África) em uma viagem missionária para
a Inglaterra que resultou na conversão dos anglos e dos saxões e também acelerou o
processo pelo qual Roma absorveu as formas celtas da fé cristã. (De fato pode ser autêntica
a história contada pelo Venerável Beda no século VIII – de que ao ver escravos de cabelos
claros em Roma e descobrir que eram anglos, o futuro papa teria declarado “Non angli, sed
angeli” [não anglos, mas anjos], e assim resolvera enviar missionários à Inglaterra.)
A glória maior do pontificado de Gregório foi que, de algum modo, apesar das imensas
responsabilidades que recaíam de todos os lados sobre seus ombros, ele parece ter
O pontificado de Gregório estabeleceu uma norma para a Idade Média, mas não é de
admirar que os seus sucessores tenham ficado muito aquém de seus elevados padrões. Os
papas que o sucederam podem ter partilhado de seu interesse pela diplomacia eclesiástica,
promovido o esforço missionário da igreja na Europa ou mesmo reproduzido
ocasionalmente uma parte de seus sensíveis interesses espirituais. No entanto, na maior
parte dos dois ou três séculos posteriores a Gregório, o papado lutou para superar a
decadência final do Império Romano ocidental e uma série de debilitantes reveses
econômicos, políticos e sociais.
Os eventos que levaram diretamente à coroação papal de Carlos Magno no ano 800
mostram os papas mais como astutos diplomatas do que como líderes espirituais
inspiradores. Em 751, o papa Zacarias sancionou a eleição de Pepino, o Breve, como rei
dos francos, em substituição à decrépita linhagem merovíngia. Três anos mais tarde, o papa
Estêvão II coroou pessoalmente Pepino como rei, a primeira vez que ocorreu um ato dessa
natureza. Em troca, Pepino cortou o último elo que ainda ligava Roma a Constantinopla.
Pouco depois, em 756, Pepino também entregou ao papa uma “Doação” especial que deu
ao pontífice o controle dos territórios italianos conquistados por Pepino dos lombardos e
também comprometeu seus sucessores a agirem como defensores do papado. Em outras
palavras, a coroação papal do filho de Pepino como imperador no Natal do ano 800 teve
claros precedentes.
Traçar a ascensão do papado desde os tempos do Novo Testamento até a época de Carlos
Magno é propor um enigma. Nenhum ato único ou linha isolada de desenvolvimento
temático moldou o papado. No entanto, no ano 800, uma complexa mistura de elementos
havia criado uma situação na qual o bispo romano era considerado inquestionavelmente
como a principal figura do Ocidente e como o representante pessoal do cristianismo
ocidental junto ao Oriente. Na realidade, a autoridade exercida pelos papas até a época de
Carlos Magno nem mesmo se aproximava do que viria nos séculos seguintes. Toda uma
série de eventos momentosos tinha ainda de ocorrer antes que o ápice da autoridade papal
fosse alcançado no pontificado de Inocêncio III (1198-1216). Em meados do século IX,
Nicolau I exerceria a autoridade papal contra o Oriente (mais uma vez), e também contra os
governantes seculares que sucederam Carlos Magno. A reforma da vida da igreja suscitada
pela fundação do mosteiro de Cluny, em 909, eventualmente veria Leão IX afirmar a
supremacia ocidental sobre o Oriente no “Grande Cisma” (1054), Gregório VII obter a
penitência do imperador alemão Henrique IV durante um feroz confronto de vontades
(1077) e Urbano II proclamar a primeira Cruzada (1095).
O que tornou a coroação papal do ano 800 tão importante não foi o fato de ter representado
o auge do poder pontifício. Antes, ela representou uma aliança estratégica entre a
influência gradualmente crescente do papado e um poder político que, como o papa,
também estava crescendo em influência. Para entender por que o ano 800 representou um
momento tão estratégico é necessário afastar-se das questões explicitamente eclesiásticas e
olhar para o quadro geopolítico mais amplo.
O avô de Carlos Magno foi Carlos Martelo (c. 690-741), que, como prefeito
do palácio dos reis merovíngios, era o verdadeiro governante dos francos.
Os memoráveis sucessos de Carlos Martelo como líder político e militar
colocaram as bases indispensáveis para o que ocorreria mais tarde sob o
governo de Carlos Magno. No aspecto geopolítico, Carlos Martelo foi o
comandante que, no ano 732, levou os francos à vitória contra os sarracenos
islâmicos em Poitiers, o ponto alto da expansão islâmica ocidental. Seriam
necessários mais de sete séculos para que os muçulmanos fossem
inteiramente expulsos da Europa a partir da Península Ibérica, mas a maré
havia começado a mudar. Embora seja possível exagerar a influência
decisiva dessa batalha, também é verdade que Carlos Martelo e os seus
sucessores vieram a ser vistos como os salvadores da Europa.
Foi assim que, quando o papa Leão III coroou Carlos Magno como o
“novo” imperador, isso apenas solidificou uma conexão que estivera se
desenvolvendo há mais de meio século. Os papas haviam se voltado para o
norte, onde estava emergindo uma forte família imperial. Em termos da
sociedade medieval, Carlos Magno nunca se considerou um vassalo do
papa. Antes, ele entendia que devia prestar contas somente a Deus quanto
ao bem-estar do seu povo. Porém, não importa o que Carlos Magno
pensasse de seu próprio papel, agora os laços com Roma estavam
assegurados. Durante os 800 anos seguintes ou até mais, a política, a
cultura, a organização social, a arte, a música, a economia e o direito da
Europa seriam “cristãos” – não necessariamente no sentido de incorporar
plenamente as normas do evangelho, mas porque o destino da igreja
ocidental centralizada em Roma havia se ligado de modo tão decisivo ao
“novo” imperador romano além dos Alpes.
existem igrejas oficiais de algum tipo na maior parte dos países do norte e
do oeste da Europa, muito tempo depois que a maioria do povo europeu
deixou de praticar a fé cristã, representa um remanescente da cristandade
estabelecida pela coroação de Carlos Magno.
O Cristianismo da Cristandade
A cristandade da Idade Média européia afetou a prática da fé cristã em
todos os sentidos. A “síntese medieval,” como às vezes é denominada,
harmonizou (pelo menos na teoria) o que hoje consideramos como as
esferas separadas sagrada e secular. O ideal simbolizado pela cooperação
entre Carlos Magno e o papa Leão III foi uma visão integrada da vida em
que tudo – a política, a ordem social, as práticas religiosas, as relações
econômicas e outras questões – estava baseado na fé cristã conforme
transmitida pela Igreja Católica Romana e protegida pelas ações dos
governantes seculares.
5
Tomás de Aquino, Summa of Theology, III, p. 60, r. 2, c, de An Aquinas Reader, ed. Mary T. Clark (Garden
City, NY: Doubleday, 1972), 481.
Leituras Complementares
6
George Appleton, ed., The Oxford Book of Prayer (Oxford: Oxford University Press, 1985), 70.
Davis, Raymond, ed. The Book of Pontiffs (Liber Pontificalis): The Ancient
Biographies of the First Ninety Roman Bishops to A.D. 715. Liverpool:
Liverpool University Press, 1989. Seleções inglesas.
Richards, Jeffrey. Consul of God: The Life and Times of Gregory the Great.
Londres: Routledge & Kegan Paul, 1980.
Thorpe, Lewis G. M., trad. Two Lives of Charlemagne: Einhard and Notker
the Stammerer. Nova York: Penguin, 1969.
Para a igreja latina, ocidental, o início do século XI foi um período de crescentes reformas.
Enquanto o papado viveu na degradação durante a maior parte do século X, a renovação da
igreja já estava em processo através da restauração dos ideais monásticos e da dedicação de
líderes importantes. Em 909, a fundação de um novo mosteiro fundamentado na regra de
São Bento em Cluny, na França, resultou na multiplicação de casas monásticas e em novo
zelo pela sustentação dos ideais de Bento. O auge do interesse reformador entre os sacros
imperadores romanos, os sucessores de Carlos Magno, foi atingido por Henrique III
(imperador de 1039 a 1056), que era ao mesmo tempo pessoalmente piedoso e ansioso por
1
“O Light That Knew No Dawn,” trad. John Brownlie, Trinity Journal, ed. rev. (Atlanta: Great Commission
Publications, 1990), 25.
reformas. Quando Henrique foi a Roma em 1046 a fim de ser formalmente coroado
imperador, encontrou o papado envolvido nas lutas políticas locais que haviam afligido
esse ofício por mais de um século. O papado ao que parece foi o último elemento da igreja
a resistir à maré de reformas. Henrique tomou medidas imediatas para iniciar mudanças
afastando três pretendentes rivais ao trono papal e assegurando a eleição de um bispo
alemão como o novo papa. Todavia, os planos de Henrique pareceram frustrar-se quando
esse novo papa morreu e o segundo candidato alemão igualmente faleceu após um breve
pontificado. Mas Henrique perseverou e a sua terceira escolha alemã, o bispo Bruno de
Toul, iria, como o papa Leão IX (1048-54), cooperar plenamente com Henrique,
trabalhando para concentrar a atenção da igreja de maneira mais direta nas questões
espirituais e eclesiásticas. As reformas que Leão e Henrique perseguiram mais
intensamente diziam respeito à simonia (a venda de cargos eclesiásticos) e à aplicação do
ideal do celibato ao sacerdócio europeu. No entanto, uma reforma subjacente teve
repercussões muito maiores para a história da igreja, a saber, a restauração da dignidade do
próprio papado. Para capacitar o papa a realizar o que todos os reformadores queriam que
fizesse, o próprio papado teria de afastar-se dos conflitos políticos locais e exercer uma
autoridade independente no governo da igreja.2
Por úteis que tais medidas tenham provado ser no sentido de fortalecer a igreja no Ocidente,
surgiram dificuldades imediatas quando Leão voltou os seus olhos para o Oriente. As
relações entre as igrejas oriental e ocidental haviam estado em declínio há séculos. Na
segunda metade do século IX, uma acirrada disputa entre dois líderes capazes, o papa
Nicolau I (858-67) e Fócio, o patriarca de Constantinopla (intermitentemente de 858-886),
havia abalado as relações entre as igrejas. Por razões que provavelmente tinham a ver com
a aceitação ocidental do acréscimo da palavra filioque ao Credo Niceno, a partir de 1009 os
patriarcas de Constantinopla não mais incluíram o nome do bispo romano nos dípticos ou
listas formais mantidas em Constantinopla dos outros patriarcas vivos e mortos a quem
Constantinopla reconhecia como doutrinariamente corretos. Portanto, a ruptura entre as
igrejas oriental e ocidental que ocorreu durante o pontificado de Leão IX não deve ser
separada de uma história muito longa de alienação e afastamento. Todavia, os eventos de
meados do século XI permanecem importantes em si mesmos.
2
O texto deste ponto de transição baseia-se especialmente em Williston Walker, Richard A. Norris, David W.
Lotz e Robert T. Handy, A History of the Christian Church, 4ªa ed. (Nova York: Charles Scribner‟s Sons,
1985); Timothy Ware, The Orthodox Church, nova ed. (Nova York: Penguin, 1993); e John Meyendorff, The
Orthodox Church, 3ª ed. (Crestwood, NY: St. Vladimir‟s Seminary Press, 1981).
Itália exigindo que as igrejas latinas de Constantinopla se conformassem aos ritos gregos
(essas igrejas observavam um jejum no sábado, usavam pães asmos na eucaristia e
mantinham outras práticas litúrgicas que diferiam dos usos orientais). Quando essas igrejas
latinas rejeitaram as exigências de Cerulário, ele as fechou. Para aumentar as complicações,
em 1053 Cerulário persuadiu o metropolitano oriental da Bulgária, Leão de Ocrida, a
escrever uma carta ao Ocidente queixando-se da incursão agressiva de práticas “francas”
(ou ocidentais) na Bulgária. Em resposta a essa carta, o papa Leão encarregou um de seus
conselheiros mais fidedignos, o cardeal Humberto, a escrever uma resposta. Em 1050, Leão
havia chamado Humberto de um mosteiro de Lorena para Roma e Humberto imediatamente
tornou-se o braço direito do papa no ataque contra a simonia. Humberto certamente era
zeloso, mas não era diplomático. A sua resposta a Leão da Bulgária foi uma candente
reafirmação das reivindicações romanas ao primado na igreja.
Esta fotografia do início do século XX mostra a grande catedral de Santa Sofia com os
minaretes islâmicos que lhe foram acrescentados após a queda de Constantinopla.
O evento que impulsionou essa crescente má vontade em direção ao cisma foi a captura do
papa Leão por tropas normandas em 1053. Reconhecendo como todas as propriedades
bizantinas da Itália agora se achavam ameaçadas, o imperador oriental Constantino
persuadiu o patriarca Cerulário a unir-se a ele no sentido de enviar cartas mais
conciliatórias ao papa. Em resposta a isso, Leão nomeou uma legação de três membros para
visitar Constantinopla e negociar uma relação mais satisfatória com o Oriente.
Infelizmente, nem a legação, que foi chefiada pelo cardeal Humberto, nem o patriarca
Cerulário, estavam dispostos a transigir.
Tão logo a legação romana chegou em Constantinopla também chegou a notícia de que
Leão IX havia morrido inesperadamente. Sem abalar-se, Humberto dirigiu uma dura carta
papal (que ele mesmo havia escrito) contra Cerulário. Essa carta lembrava ao patriarca em
termos bastante claros que “como uma dobradiça, permanecendo imóvel, abre e fecha a
porta, assim Pedro e seus sucessores [em Roma] tem uma jurisdição ilimitada sobre toda a
igreja, desde que ninguém deve interferir com a sua posição, porque a sé mais elevada não
é julgada por ninguém.”3 Cerulário respondeu no mesmo tom, rejeitando a carta e
questionando se agora, uma vez que o papa estava morto, Humberto era um legado
devidamente credenciado. Humberto ofendeu-se e resolveu deixar Constantinopla de uma
vez. Porém, antes de fazê-lo, entrou na grande igreja de Hagia Sophia (Santa Sabedoria),
colocou sobre o altar uma bula que excomungava Cerulário, sacudiu o pó dos seus pés e
partiu. Conta-se que um diácono oriental correu atrás de Humberto tentando devolver a
bula, mas essa tentativa foi rejeitada e com isso o documento foi lançado na rua. Logo
depois, Cerulário excomungou a legação papal.
Tradicionalmente, esses eventos do ano 1054 tem sido chamados o Grande Cisma das
igrejas ortodoxa e católica, mas na realidade houve pelo menos dois esforços sérios nos
séculos seguintes para reparar a brecha. Em 1274, reuniu-se em Lião, na França, um
concílio de unificação que firmou um acordo sobre práticas eclesiásticas e o credo. Mas
3
Henry Bettenson, ed., Documents of the Christian Church, 2ª ed. (Nova York: Oxford University Press,
1963), 97.
esse acordo foi rejeitado pelos ortodoxos no Oriente tão logo seus delegados voltaram para
lá. Um século e meio mais tarde, tanto o imperador quanto o patriarca oriental viajaram
para outro concílio de unificação, desta vez em Florença, na Itália. Após intensos debates
durante vários meses em 1438 e 1439, todos exceto um dos membros da grande delegação
oriental concordaram com uma fórmula concebida para sanar o cisma. Mas uma vez mais,
surgiu forte resistência nas igrejas orientais contra os termos do acordo. Todavia, no que
provou ser uma batalha perdida, o imperador oriental João VIII e o seu sucessor
Constantino XI continuaram ambos a defender o acordo.
O grande cisma de 1054 foi um importante ponto de transição na história cristã porque
levou a um desfecho vários séculos de afastamento cultural, diferenças teológicas e
suspeitas eclesiásticas entre o Oriente e o Ocidente. Também simbolizou o isolamento que
caracterizaria as igrejas orientais durante a maior parte do milênio seguinte. As diversas
igrejas ortodoxas orientais tem passado por muitos ciclos de decadência e renovação desde
o século XI. Durante o mesmo período, a Igreja Ortodoxa continuou a ser a principal
expressão cristã para grande parte do mundo habitado. Todavia, mesmo no final do século
XX a ortodoxia permanece em grande parte separada das correntes que afetam outros
cristãos, quer católicos, protestantes ou igrejas nativas do terceiro mundo.
* O termo “ortodoxo,” quando aplicado às igrejas orientais (ou “gregas” ou “greco-russas”), refere-se à
convicção existente nesses grupos de possuírem o “correto ensino”, o “culto correto” ou mesmo a “glória
verdadeira” (possíveis traduções das palavras gregas que formam o termo “ortodoxia”).
cristianismo romano característico. Aqui não encontramos êxtases, nem „dons do espírito‟
miraculosos, nem demonologia, nem preocupação com uma „Segunda Vinda‟ iminente. A
igreja estabeleceu-se no mundo e está realizando a sua tarefa de maneira „sóbria, discreta e
prudente‟.”4 No final do segundo século, essas características “romanas” eram inteiramente
correspondidas por tendências “gregas” que surgiam do outro lado do Mediterrâneo.
Desde o início os gregos e os latinos abordaram o Mistério Cristão cada qual a seu
próprio modo. Sob o risco de uma excessiva simplificação, pode se dizer que a
abordagem latina era mais prática, a grega mais especulativa; o pensamento latino foi
influenciado por idéias jurídicas, pelos conceitos do direito romano, enquanto que os
gregos entenderam a teologia no contexto do culto e à luz da liturgia sagrada. Ao
refletirem acerca da Trindade, os latinos começaram com a unidade da divindade, os
gregos com a trindade das pessoas; ao refletirem sobre a crucificação, os latinos
pensaram primariamente em Cristo, a vítima, os gregos em Cristo, o vencedor; os
latinos falavam mais em redenção, os gregos em deificação... Essas duas abordagens
distintivas não eram contraditórias em si mesmas; cada uma servia para complementar
a outra e cada qual tinha o seu lugar na plenitude da fé católica. Mas agora que os dois
lados estavam se tornando estranhos um ao outro – sem unidade política, com pouca
unidade cultural e sem uma língua comum – havia o perigo de que cada grupo seguisse
a sua própria abordagem isoladamente e a levasse a extremos, esquecendo o valor do
outro ponto de vista.5
4
Henry Bettenson, introdução de The Early Christian Fathers (Nova York: Oxford University Press, 1956),
2-3.
5
Ware, The Orthodox Church, 48-49.
Nos séculos que se seguiram, essas antigas tendências receberam reforços poderosos de
importantes eventos históricos. A decisão de Constantino, no quarto século, de transferir a
sede do império de Roma para o Oriente significou que o novo poder romano em
Constantinopla iria evoluir em um ambiente influenciado pela língua grega, por
preferências intelectuais gregas e por disposições gregas de temperamento. Mais tarde, no
sétimo século, quando as forças islâmicas saíram do mundo árabe através do norte da
África e assumiram o controle das comunicações no Mar Mediterrâneo, a divisão do
Império Romano em oriental e ocidental passou a ter um significado ainda maior. Agora, a
despeito de esforços heróicos, porém cada vez mais esporádicos, até mesmo os contatos
elementares entre o Oriente e o Ocidente tinham de transpor um poder imperial alienígena,
assim como profundos condicionamentos culturais. À medida que o papado voltava-se para
o norte em busca do apoio das tribos bárbaras que, sob Carlos Magno, estavam buscando
reviver o Império Romano em seus próprios termos, forças ainda maiores estavam
afastando o Oriente do Ocidente. Quando os turcos, um novo poder islâmico, começaram a
pressionar o Império Bizantino a partir do Oriente, a resposta ocidental muitas vezes foi de
indiferença, exceto quanto às Cruzadas, que finalmente deram a sua própria contribuição
para separar os dois grandes territórios cristãos.
Para abreviar a nossa confissão, nós mantemos inalteradas todas as tradições eclesiásticas
transmitidas a nós, quer por escrito ou verbalmente, uma das quais é a elaboração de
6
Meyendorff, The Orthodox Church, 197.
Nós não negamos à Igreja Romana o primado entre os cinco Patriarcados irmãos... Mas
ela separou-se de nós por suas próprias ações, quando por orgulho assumiu uma
monarquia que não pertence ao seu ofício... Como aceitaremos decretos seus que foram
emitidos sem nos consultar e sem o nosso conhecimento? Se o Pontífice Romano,
assentado no sublime trono da sua glória, deseja trovejar contra nós... e se ele deseja
julgar-nos e até mesmo governar a nós e a nossas igrejas, não em consulta conosco mas
por seu próprio beneplácito arbitrário, que tipo de fraternidade ou mesmo que tipo de
paternidade isso pode ser? Nós seríamos os escravos e não os filhos de tal Igreja, e a Sé
Romana não seria a piedosa mãe de filhos, mas uma dura e imperiosa senhora de
escravos.7
Outros eventos ocorridos nos séculos em torno de 1054 também afetaram grandemente a
trajetória futura da Igreja Ortodoxa. Externamente, nenhum evento teve maior impacto
sobre o cristianismo oriental antes da captura mulçumana de Constantinopla em 1453 do
que as cruzadas. Na história interna da ortodoxia, nenhum evento foi mais importante do
que a chegada da ortodoxia na Rússia.
A Primeira Cruzada conseguiu capturar Jerusalém em 1099. Mas ela realizou isto através
de uma violência militar tão brutal – massacrando tanto judeus e árabes cristãos bem como
muçulmanos – que o lado negativo do ideal das cruzadas já estava se tornando por demais
óbvio. Além disso, a esperança de que os cavaleiros ocidentais e seus acompanhantes
pudessem ajudar Bizâncio e a greja oriental provou ser ilusória. Houve tantos problemas
com a primeira onda de soldados armados vindos do Ocidente, que acamparam próximo a
Constantinopla a caminho de Jerusalém, que Aléxio fez tudo o que pôde para simplesmente
ver-se livre de seus problemáticos visitantes ocidentais.
Essa sórdida história pode ser contada de maneira bem simples. Como nas cruzadas
anteriores, certos idealistas bem intencionados foram acompanhados por outros indivíduos
que tomaram parte inteiramente em busca de lucros materiais. Dessa vez, a segunda facção
dominou totalmente a primeira. Sob a influência de mercadores venezianos, que estavam
acima de tudo preocupados com pilhagens e poder, a cruzada afastou-se de seu suposto
objetivo (guerrear contra o islamismo) e foi para Constantinopla em busca de tudo o que
podia devorar. Em abril de 1204, um exército composto de soldados venezianos, franceses
e flamengos tomou a cidade. A descrição de Steven Runciman, o principal historiador das
cruzadas no século XX, é inquietante:
sobrevivido desde a Grécia antiga e com as obras primas de seus próprios artesãos
refinados... Mas os franceses e os flamengos estavam cheios de ânsia de destruição.
Eles avançaram como uma turba ululante pelas ruas e pelas casas, tomando tudo o que
brilhasse e destruindo tudo o que não podiam carregar, fazendo pausas somente para
matar ou violentar, ou para abrir as adegas de vinho para o seu refrigério... Tanto os
palácios como os antros foram invadidos e arruinados. Mulheres e crianças feridas
jaziam agonizantes nas ruas. Por três dias as horríveis cenas de pilhagem e morticínio
continuaram, até que a enorme e bela cidade estava em ruínas.8
Mas o mal estava feito. Outra vez, vale a pena citar extensamente as palavras duras mas
bem consideradas de Steven Runciman:
Nunca houve maior crime contra a humanidade do que a Quarta Cruzada. Ela não
somente causou a destruição e a dispersão de todos os tesouros do passado que
Bizâncio havia armazenado devotadamente e feriu mortalmente uma civilização ainda
ativa e grande, mas também foi um ato de gigantesca insensatez política. Ela não
trouxe nenhum auxílio para os cristãos da Palestina... No vasto cenário da história do
mundo, os efeitos foram totalmente desastrosos... Quando uma nova e mais vigorosa
tribo turca apareceu, sob a liderança da brilhante casa de Osman, o mundo cristão
oriental estava por demais dividido para oferecer uma resistência eficaz... Enquanto
isso o ódio havia sido semeado entre a cristandade ocidental e a oriental... Talvez fosse
inevitável que a igreja de Roma e as grandes igrejas orientais se separassem; mas todo
o movimento das cruzadas contaminou as suas relações e daí em diante, não importa o
que uns poucos príncipes pudessem alcançar, nos corações dos cristãos do Oriente o
cisma era completo, irremediável e definitivo.9
Para a igreja oriental, assim como para o mundo islâmico, que foi alvo de muitos outros
ataques violentos da parte do Ocidente (embora poucos deles mais sangrentos), as cruzadas
foram um sinal de puro barbarismo. Elas não somente cimentaram o cisma de 1054, mas
também permaneceram como uma lembrança negativa que envenenou as comunicações
entre certas partes da igreja cristã por muitos séculos posteriores, talvez até os nossos dias.
A Rússia
Se as cruzadas foram o grande flagelo da ortodoxia nos séculos posteriores a 1054, a sua
grande vitória foi a penetração na Rússia.10 Como antes ocorrera no Ocidente através de
8
Steven Runciman, A History of the Crusades, 3 vols. (Nova York: Cambridge University Press, 1954),
3:123.
9
Ibid., 130-31.
10
Quanto ao material desta seção, estou grato pelas perspectivas oferecidas pelos professores Daniel Kaiser e
Thomas Hopko em palestras proferidas em 1988 para comemorar o primeiro milênio do cristianismo na
Rússia, a Nicholas Zernov, The Russians and their Church (Londres: SPCK, 1954) e a muitos conselhos do
meu amigo professor Mark Elliot.
Assim estabelecida, a ortodoxia levou vários séculos para sair dos centros urbanos do
poder, até ficar profundamente enraizada nas regiões rurais. Quando, porém, em meio a
grandes mudanças como a transferência da supremacia política de Kyiv para Moscou, a
ortodoxia conquistou a adesão dos russos comuns, essa aliança estava solidamente fixada.
A forma do cristianismo russo que assim emergiu tinha muito em comum com outros
centros da ortodoxia oriental. As ligações entre a igreja e o estado sempre foram estreitas.
O centro da fé ativa continuou a ser a prática litúrgica, a oração e a devoção monástica,
antes que a doutrina ou mesmo a ordem eclesiástica. O uso dos ícones foi importante desde
o início como um auxílio para o culto, essas representações estilizadas de santos e
personagens bíblicos sendo consideradas uma lembrança visível da materialidade da
encarnação de Cristo. Logo, algumas pessoas piedosas da Rússia também se tornaram
objetos da iconografia. A espiritualidade ascética, com sua ênfase na kenosis
(esvaziamento) do eu para Deus, tornou-se tão importante nas igrejas russas como nas
igrejas mais antigas do Oriente grego.
11
Isto corresponde à moderna ortografia ucraniana; a ortografia mais comum “Kiev” corresponde ao russo.
Pouco tempo após a morte dos irmãos, o mais importante mosteiro russo, Petchersky Lavra
(Mosteiro das Cavernas), foi fundado em Kyiv. Sob a liderança de São Teodósio (†1074),
esse mosteiro tornou-se conhecido por sua identificação com os pobres. À semelhança de
São Francisco, Teodósio buscou a pobreza e aspirou seguir literalmente a Cristo. Quando
ele visitava seus colegas monges em suas celas, era seu costume lançar no fogo alimentos
ou vestes extras que encontrava. Como foi registrado por um antigo hagiógrafo, Teodósio
então dizia: “É errado que nós que somos monges e renunciamos ao mundo, ajuntemos
posses em nossas celas. Como pode um monge oferecer a Deus uma oração pura se ele tem
possessões ocultas? Vocês estão surdos para com as palavras do nosso Senhor: „Porque
onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração‟ . . .? Portanto, irmãos, vamos
satisfazer-nos com as roupas e alimentos que recebemos do administrador, de acordo com a
regra; não vamos guardar nada em nossa cela, para que possamos orar a Deus de todo
coração e mente.”11 Antecipando muitas coisas que viriam mais tarde, esse estudante da
humildade também veio a exercer uma considerável influência sobre a nobreza russa.
As vidas de cristãos notáveis como Bóris, Gleb e Teodósio não foram típicas da antiga
ortodoxia russa, mas os ideais que encarnaram tornaram-se extraordinariamente
importantes para a história cristã russa. Alguns períodos posteriores de reavivamento
monástico inspiraram ampla renovação na Rússia. As tensões com os governantes eram
uma realidade sempre presente, mas também o eram os aparecimentos periódicos de
monarcas ou nobres piedosos cujo interesse pela igreja produziu mais bem do que mal. Os
cismas sobre a questão de como melhor viver a vida cristã caracterizaram a ortodoxia na
Rússia, como também outras formas do cristianismo em outros lugares. Uma dessas
divisões mais famosas surgiu em conseqüência da renovação do monasticismo por São
Sérgio no século XV, quando os seus sucessores se dividiram entre Possuidores (que
sustentavam ser admissível o uso cuidadoso de recursos econômicos e políticos) e Não-
Possuidores (que buscavam incansavelmente a pobreza). Os ideais de humildade ascética e
de sofrimento continuariam a inspirar muitas gerações de cristãos comuns e ocasionais
luminares intelectuais como Fyodor Dostoyevsky, no século XIX, e Aleksandr
Solzhenitsyn, no século XX.
A Ortodoxia no Século XX
À medida que o cristianismo rapidamente se aproxima do milésimo
aniversário dos eventos ocorridos em Constantinopla em 1054, é conveniente
perguntar: O que é feito do cisma? O que é feito das igrejas que resultaram do
mesmo? O restante deste livro está voltado em grande parte para a igreja
11
Nestor, “A Life of St. Theodosius,” em A Treasury of Russian Spirituality, ed. G. P. Fedotov (Nova York:
Sheed & Ward, 1948), 40.
Embora essas igrejas ortodoxas estejam elas mesmas divididas por antagonismos políticos,
religiosos e étnicos, certas características da ortodoxia permanecem notavelmente
semelhantes à igreja que o cardeal Humberto visitou em 1054. A liturgia continua a ser o
coração da vida e da teologia ortodoxa. Os mosteiros, freqüentemente ligados ao grande
complexo monástico do monte Atos na Grécia, continuam a fornecer a maior parte dos
teólogos, bispos e líderes ativos da igreja. Os teólogos continuam a preocupar-se com certas
questões (como a diferença entre a “essência” e a “energia” de Deus) e conceitos (como a
teologia “apofática” de negação, que experimenta Deus pelo abandono de categorias finitas
do discurso humano comum) que permanecem muito abstratas para a maior parte dos
ocidentais. A veneração (não o culto) dos ícones continua a ser um meio fundamental pelo
qual os ortodoxos honram a realidade da encarnação (crendo que, uma vez que Cristo se fez
carne, o interesse cristão em objetos físicos como os ícones é bom). E os ortodoxos
continuam a considerar-se como a “única igreja santa, católica e apostólica” da qual fala o
Credo Niceno. Além disso, a localização da ortodoxia no Oriente significa que toda essa
família de cristãos escapou em grande parte à influência dos grandes eventos culturais –
Renascimento, Reforma, revolução científica, iluminismo e comercialismo – que se
mostraram tão destacados na história ocidental do cristianismo nos últimos séculos.
12
Ware, The Orthodox Church, 6-7. Em 1997, David Barrett estimou a filiação mundial da comunhão
ortodoxa em 215 milhões de adeptos (“Annual Statistical Table of Global Mission: 1997,” International
Bulletin of Missionary Research 21 [Janeiro 1997]: 25).
governantes da Rússia imperial, ela foi violentamente perseguida por Lênin, Stalin e seus
sucessores e títeres na Europa oriental. De mesmo modo como alguns ortodoxos tentaram
viver fielmente sob o comunismo, tem sido desconcertante despertar para o novo
pluralismo político, econômico e cultural da era pós-comunista. Quase todas as
informações do agitado redemoinho de relatos que têm chegado da Europa central e
oriental acerca da ortodoxia desde 1989 podem ser verdadeiras. Tem havido um retorno ao
uso agressivo do poder estatal para atacar os inimigos. Tem havido um novo surto de
disciplina e vitalidade espiritual. Tem crescido o interesse pelas Escrituras. Os ataques
xenófobos contra os missionários ocidentais tem aumentado. Os mosteiros ortodoxos estão
recebendo um grande número de noviços. O que as igrejas ortodoxas mais buscam
atualmente é o poder político. E mais que isso. Ainda está para ser visto como a ortodoxia
irá sobreviver aos seus traumas comunistas e pós-comunistas. Provavelmente, mais do que
tudo o que aconteceu em sua história desde 1054, com a exceção da conquista muçulmana
de Constantinopla em 1453, a era comunista forçou a ortodoxia a enfrentar a realidade da
mudança.
vez que ocorreu tal encontro ocorreu desde o Concílio de Florença, em 1439. Em 1965, os
anátemas de 1054 promulgados por Humberto e Cerulário foram revogados. Em 1980, teve
início o diálogo teológico formal entre os católicos e os ortodoxos, embora o curso dessas
discussões tenha sido afetado pela violência na Ucrânia (onde os católicos de rito oriental e
os ortodoxos lutaram por causa de propriedades eclesiásticas devolvidas após o regime
comunista) e na antiga Iugoslávia (onde sérvios ortodoxos e croatas católicos renovaram
sangrentos conflitos que haviam irrompido durante a Segunda Guerra Mundial e muitas
vezes antes). Durante o pontificado de João Paulo II (1978- ), tem crescido a comunicação
católica-ortodoxa, em parte porque a origem polonesa do atual papa envolveu um contato
direto com igrejas ortodoxas, o primeiro papa a desfrutar de tais conexões por muito tempo.
Em 1987, o papa e o patriarca Demétrio I encontraram-se em Roma, onde recitaram juntos
o Credo Niceno (sem o filioque). Oito anos depois, em junho de 1995, João Paulo II
novamente encontrou-se com o patriarca ecumênico, agora Bartolomeu I, que foi o
principal orador em uma missa celebrada pelo papa.
Portanto, foi somente em anos recentes que a tendência para a separação entre o Oriente e o
Ocidente, da qual 1054 é o símbolo mais visível, começou a ser revertida. Para utilizar uma
distinção que nem sempre tem sido observada nestas páginas, poucos eventos da moderna
história da igreja são tão importantes como os renovados contatos entre ortodoxos e
católicos. Mas o significado potencial desses contatos para a história do cristianismo
depende mais da vitalidade espiritual a ser encontrada nessas duas antigas igrejas do que da
sua capacidade de reparar o que foi rompido há quase mil anos atrás, em um dos grandes
pontos de transição tanto da história da igreja quanto da história do cristianismo.
Não se pode fazer de conta que esses eventos não foram o que foram naquele período
muito conturbado da história. No entanto, hoje eles têm sido julgados de modo mais
justo e sereno. . . O papa Paulo VI e o patriarca Atenágoras I com o seu sínodo, de
comum acordo declaram que:
Os ortodoxos têm uma rica tradição de ensino sobre a oração, enraizada na prática do
hesicasmo, do grego hesychia, que significa silêncio, quitetude e repouso. A oração
hesicástica é também chamada de oração do coração, oração que vai além do intelecto para
envolver todos os aspectos do ser da pessoa – corpo, alma e espírito. A Oração de Jesus
(citada abaixo), atribuída a São Diadoco de Fotice, do quinto século, exemplifica de modo
particular essa tradição. É uma oração breve e simples que invoca o nome de Jesus e deriva
das suplicas de misericórdia dirigidas a Jesus pelos homens cegos em Mt 9.27, 20.30 e
Lucas 18.38, e pelo cego Bartimeu em Mc 10.47. Os hesiquistas procuram repetir ou
“respirar” a oração continuamente.
A prática do hesicasmo foi cultivada por muitos anos na tradição ortodoxa grega e
experimentou uma renovação na Rússia, no século XIX, tanto entre leigos como entre
monges. O autor anônimo do clássico espiritual do final do século XIX O Caminho do
Peregrino é um leigo que encontra na oração de Jesus um meio de obedecer a injunção de
Paulo em 1 Tessalonicenses 5.17 “Orai sem Cessar,” e de concentrar a mente e o coração
em Deus. Após trabalhar sete anos como bispo russo na Rússia, Teofano, o Recluso (1815-
1894), retirou-se para um mosteiro a fim de buscar um vida de oração em isolamento. Ele
correspondeu-se com muitas pessoas de toda a Rússia, particularmente com mulheres,
respondendo suas perguntas sobre a oração.
Leituras Complementares
Clendenin, Daniel B. Eastern Orthodox Christianity: A Western Perspective. Grand
Rapids: Baker, 1994.
13
Igumen Chariton de Valamo, compilador, The Art of Prayer: An Orthodox Anthology, trads. E.
Kadloubovsky e E. M. Palmer (Londres: Faber & Faber, 1966), 89.
_______ , ed.. Eastern Orthodox Theology: A Contemporary Reader. Grand Rapids: Baker,
1994.
Fedotov, G. P., ed. A Treasury of Russian Spirituality. Nova York: Sheed & Ward, 1948.
Hussey, J. M. The Orthodox Church in the Byzantine Empire. Oxford: Clarendon, 1986.
Meyendorff, John. Byzantine Theology: Historical Trends and Doctrinal Themes. 2ª ed.
Nova York: Fordham University Press, 1983.
_______ , The Orthodox Church. 3ª ed. Crestwood, N.Y.: St. Vladimir‟s Seminary Press,
1981.
Palmer, G. E. H., Philip Sherrard e Kallistos Ware, trads. e eds. The Philokalia: Compiled
by St. Nikodimos of the Holy Mountain and St. Makarios of Corinth. 4 vols. Londres: Faber
& Faber, 1979-95.
Ware, Timothy. The Orthodox Church. Nova ed. Nova York: Penguin, 1993.
Wybrew, Hugh. The Orthodox Liturgy: The Development of the Eucharistic Liturgy in the
Byzantine Rite. Crestwood, N.Y.: St. Vladimir‟s Seminary Press, 1990.
Zernov, Nicholas. The Russians and Their Church. Londres: SPCK, 1954.
Às seis da tarde do dia 18 de abril de 1521, chegou a hora de Martinho Lutero. O cenário
foi um salão imperial improvisado em Worms, uma modesta cidade de aproximadamente
sete mil habitantes localizada no Rio Reno abaixo de Estrasburgo e um pouco ao sul de
Mainz. Lutero, aos trinta e sete anos de idade, havia sido um monge por quinze anos. Ele
estava comparecendo diante de Carlos V, um jovem de apenas vinte e um anos, que, além
de ser o rei da Espanha, havia sido eleito como sacro imperador romano da Alemanha (e,
portanto, um sucessor de Carlos Magno) há menos de dois anos. A dieta imperial
(assembléia formal) reunida em Worms em janeiro daquele ano marcou a primeira visita de
Carlos às suas terras alemãs. O imperador entendia o latim, mas a sua própria educação fora
em francês (seu idioma preferido). Todas as coisas faladas em alemão tinham de ser
traduzidas para o latim para o soberano e também para a grande comitiva de oficiais
eclesiásticos italianos que havia comparecido.
No dia anterior, 17 de abril, Lutero havia comparecido pela primeira vez diante do
imperador. Estendidos sobre uma mesa da câmara imperial estavam os escritos de Lutero.
(Havia uma pilha tão grande dos mesmos que Carlos e seus assessores, quando entraram na
câmara pela primeira vez, expressaram dúvidas de que qualquer indivíduo pudesse ter
escrito tanto.) Lutero havia sido convocado a Worms para retratar-se. Estava sendo-lhe
pedido que confessasse publicamente os seus erros naquilo que havia escrito acerca do
evangelho, da natureza da igreja e do estado atual da cristandade. Quando lhe foi
perguntado no dia anterior se iria retratar-se, Lutero respondeu que as obras eram de vários
tipos diferentes. E então pediu mais um dia para meditar sobre a sua resposta. O secretário
imperial não ficou satisfeito, pois como ele lembrou a Lutero e aos observadores reunidos,
todos sabiam porque Lutero havia recebido um salvo-conduto imperial para Worms. Ele
havia tido bastante tempo para preparar-se. No entanto, por causa da “clemência inata”3 do
imperador, a solicitação de Lutero foi atendida.
Porém, agora ele não poderia demorar-se mais e a acusação foi novamente apresentada:
“Venha, pois, e responda a pergunta de sua majestade, cuja bondade você experimentou ao
pedir mais tempo para pensar. Você deseja defender todos os seus livros reconhecidos ou
retratar-se de alguns?”
2
Citado em Gordon Rupp, Luther’s Progress to the Diet of Worms (Nova York: Harper Torchbook, 1964
[1951]), 96. Rupp fornece uma ótima cobertura das circunstâncias que levaram à Dieta, como também o faz
Martin Brecht, Martin Luther, vol. 1, His Road to Reformation (Filadélfia: Fortress, 1985); e Roland Bainton,
Here I Stand: A Life of Martin Luther (Nashville: Abingdon, 1950).
3
Todas as citações desta seção provêm de “Lutero na Dieta de Worms,” LW 32:103-31.
O comparecimento de Lutero diante de Carlos V ocorreu em uma sala muito menor do que
esta, mas pode ter sido tão dramático quanto se vê neste quadro.
Mas ele não havia sido suficientemente explícito para a corte imperial. O porta-voz do
imperador pressionou-o novamente. Lutero não havia realmente respondido a pergunta. Ele
iria retratar-se ou não? Fale claramente e não com uma resposta “com chifres,” ou ambígua.
Então Lutero falou as palavras que prenunciaram uma das mais importantes transformações
da história da Europa e uma das mais significativas transições da história da igreja: “Uma
vez que vossa serena majestade e os senhores príncipes buscam uma resposta simples, eu a
darei desta maneira, nem com chifres nem com dentes: A menos que eu seja convencido
pelo testemunho das Escrituras ou pela razão clara (pois não confio seja no Papa seja nos
concílios apenas, pois é bem conhecido que eles freqüentemente erraram e se
contradisseram), estou preso às Escrituras que citei e a minha consciência é cativa da
Palavra de Deus. Não posso e não irei retratar-me de nada, pois não é seguro e nem certo ir
contra a consciência.”
Os historiadores protestantes tem sido propensos a tratar a Dieta de Worms como se ela
tivesse sido significativa somente por causa do discurso dramático de Lutero. Às vezes,
tudo o que se seguiu é visto somente como conseqüência natural. Depois de Worms, Lutero
foi protegido por seu príncipe, Frederico, o Sábio, da Saxônia, como uma ilustração do
vínculo que surgiu imediatamente entre o protestantismo e os defensores da autoridade
local e nacional. Lutero foi diretamente de Worms para um refúgio no castelo de Wartburg,
onde, num grande ímpeto de atividade, produziu uma magnífica tradução alemã do Novo
Testamento, um testemunho da dependência protestante das Escrituras. Lutero logo
deixaria o mosteiro e tomaria uma esposa, estabelecendo o norma protestante para a família
e a vocação. Depois de Worms, pelo menos aos olhos protestantes, não havia possibilidade
de retrocesso.
*
O oficial chamava-se Johann Eck, mas não era o famoso Eck com quem Lutero anteriormente tivera um
importante debate teológico.
Quando consideramos essas respostas a Lutero, juntamente com as suas próprias palavras
diante do imperador, podemos ver mais claramente o que estava em jogo na Dieta de
Worms. Agora não somente havia uma grande divisão no Ocidente a respeito de como
melhor definir a fé cristã, mas protestantes e católicos percorreriam caminhos separados
que, quase cinco séculos depois, ainda são distintos. Mas a relação entre o poder civil e o
eclesiástico também iria mudar à medida que alguns governantes, tanto grandes quanto
pequenos, rompiam com o papa em sua transição para o protestantismo, ao passo que
outros, que permaneceram católicos romanos, descobriram o quanto agora o papa precisaria
deles. Além disso, Lutero também sugeriu toda uma nova atitude do indivíduo contra
aquilo que Carlos e seus aliados consideravam como a sabedoria estabelecida das eras. A
autoridade da consciência individual havia sido proclamada contra a autoridade dos
concílios da igreja, em contraste com o peso da tradição, na própria face do imperador.
Muito embora Lutero tenha falado de sua consciência como presa às Escrituras, ele havia
introduzido com tocante poder um novo princípio de autoridade. Em uma palavra, a Europa
– e a igreja – nunca mais seriam as mesmas.
Nesta altura do livro, as convicções pessoais do autor desempenham um papel maior que o
normal na definição dos principais pontos de transição da história cristã. Vistos com estrita
imparcialidade, os eventos associados com a Reforma do século XVI não foram tão
importantes quanto o distanciamento entre a igreja e o judaísmo ou a estabilização dos
ensinos básicos acerca de Cristo em Nicéia e Calcedônia. Até mesmo é preciso refletir com
seriedade se a Reforma Protestante e sua equivalente católica devem ser consideradas como
mais significativas na história cristã do que a separação anterior entre as igrejas ocidental e
oriental ou o crescimento explosivo da fé cristã fora do Ocidente ocorrido no século XX.
Não obstante, como sou um protestante que acredita que Martinho Lutero entendeu a
essência do evangelho cristão tão bem como qualquer outra pessoa na história do
cristianismo desde a época dos apóstolos, naturalmente considero a sua vida e obra como
um ponto de transição vital na história da igreja. Todavia, ao mesmo tempo, como
estudioso da história geral do Ocidente desde o século XVI, está claro para mim que o
protestantismo – em conjunto com a emergência das modernas nações-estados, os
primórdios da economia moderna e a explosão do conhecimento na Europa desde a época
do Renascimento – eventualmente produziu mudanças radicais na cristandade européia e
algumas dessas mudanças não tem sido nada saudáveis para a vida e o pensamento cristãos.
Todavia, outra vez, como alguém que permanece por convicção fora da Igreja Católica
Romana e, no entanto, concluiu que as tradições romanas às vezes são admiravelmente
fortes onde as tradições protestantes são notoriamente fracas, estou predisposto a considerar
o ressurgimento do catolicismo romano a partir de meados do século XVI (na Reforma
Católica ou Contra-Reforma) como outro ponto de transição decisivo na história mundial
do cristianismo.
Com tais convicções, o século XVI simplesmente parece transbordar de pontos críticos de
transição. Primeiramente, existe a contribuição teológica de Lutero, que (na minha opinião)
reafirmou um elemento duradouro e essencial da teologia cristã. Em segundo lugar, está a
reconfiguração da Europa (e, por uma extensão posterior, das colônias européias que se
tornaram os Estados Unidos e o Canadá), afastando-se da cristandade em direção ao
moderno mundo secular. O Ato de Supremacia inglês de 1534 é um símbolo dramático
A Vida do “Javali”
Em Exsurge Domine, a bula papal (ou mandado escrito, do latim bulla, “selo”) de junho de
1520 que procurou sujeitar Martinho Lutero, o papa Leão X chamou Lutero de “o javali da
floresta” cuja língua era um “fogo.” Mais do que sabia, o papa estava correto. Porém, se ele
estava correto no sentido que pretendia – de que Lutero estava “buscando destruir” a igreja
– ou, inversamente, se Lutero arruinou as estruturas que separavam as pessoas de Deus,
depende do que se pensa acerca de Lutero.4
Lutero nasceu em Eisleben, uma cidade mineradora da Saxônia, em 1483. Dentro de uma
década Colombo velejaria para o Ocidente, os últimos mouros islâmicos seriam expulsos da
Espanha e o seu contemporâneo um pouco mais velho, Erasmo de Roterdã, começaria um
estudo vitalício dos textos gregos do Novo Testamento. A Europa estava mudando
rapidamente. Os pais de Lutero deram- lhe a melhor educação que podiam, na esperança de
que ele se tornaria um advogado e então talvez um próspero conselheiro municipal.
Todavia, na época em que a sua carreira universitária chegou ao fim, as realidades do
mundo invisível exerceram maior pressão sobre Lutero do que as ambições materiais. Em
1505, para consternação especialmente de seu pai, ele ingressou no mosteiro agostiniano de
Erfurt. Vinte anos depois, Lutero iria repudiar os seus votos monásticos, mas o fato de que
o primeiro protestante chegou às suas convicções básicas como um monge constitui uma
notável ponte com o milênio anterior da cristandade. O sábio conselho de Johann von
Staupitz (c. 1468-1524), o supervisor dos agostinianos alemães, foi de especial importância
para o desenvolvimento pessoal e teológico de Lutero. Quando Lutero assediou Staupitz
com recitações da sua própria incapacidade diante de Deus, Staupitz, (que morreu
pacificamente na igreja romana) exortou-o a estudar as Escrituras. Staupitz também fez
com que Lutero obtivesse um grau avançado de teologia, para que, como antídoto prático
contra a sua depressão espiritual, ele pudesse tornar-se um professor universitário e
aplicasse as suas grandes energias para um fim proveitoso. Assim, pouco antes de
completar 30 anos, Lutero começou o seu trabalho vitalício como professor das Escrituras
Sagradas na nova Universidade de Wittenberg.
4
Papa Leão X, “Exsurge Domine,” em Readings in Church History, ed. Colman J. Barry (Westminster,
Maryland: Newman, 1967), 2:29.
seu senso de pecado era grande e causou-lhe muito sofrimento. Mais sofrimento ainda foi
causado pela imagem temível de Deus que predominava em seu pensamento, especialmente
Deus como um juiz perfeitamente justo que enviou o seu Filho para mostrar à humanidade
a realidade plena e terrível da justiça divina. Acerca dessa justiça, Lutero meditou, labutou,
estudou, lutou e meditou ainda mais. Ele estava especialmente perplexo com uma série de
textos bíblicos pertinentes. A esses textos, conforme afirmou, ele “recorreu
importunamente.”
Por fim, pela misericórdia de Deus, meditando dia e noite, dei atenção ao contexto
das palavras, a saber: “Nele se revela a justiça de Deus, como está escrito: „Aquele que é
justo pela fé, viverá‟.” Aí comecei a entender que a justiça de Deus é aquela pela qual o
justo vive por um dom de Deus, a saber, pela fé. E este é o sentido: a justiça de Deus é
revelada pelo evangelho, isto é, a justiça passiva com a qual o Deus misericordioso nos
justifica pela fé, como está escrito: “Aquele que é justo pela fé, viverá.” Aqui eu senti que
havia plenamente nascido de novo e que havia entrado no próprio paraíso através de portas
abertas. Ali revelou-se a mim uma face inteiramente nova das Escrituras. Com isso,
percorri de memória as Escrituras. Também encontrei uma analogia em outras expressões,
como a obra de Deus, isto é, o que Deus faz em nós, o poder de Deus, com o qual ele nos
torna fortes, a sabedoria de Deus, com a qual ele nos torna sábios, a força de Deus, a
salvação de Deus, a glória de Deus.
E exaltei a minha palavra mais doce com um amor tão grande quanto o ódio com o
qual eu antes havia odiado a expressão “justiça de Deus.” Assim, essa passagem de Paulo
verdadeiramente foi para mim a porta do paraíso.¹
Todavia, dentro em breve a resistência eclesiástica contra os apelos cada vez mais públicos
de Lutero em favor de reformas foi além do debate acerca de abusos, tornando-se em um
sério enfrentamento de questões teológicas básicas. A crescente controvérsia pública
revelou um Lutero que era tão prolífico em polêmicas impressas quanto era sério na sua
reflexão teológica particular. As disputas teológicas que floresceram na esteira das Noventa
e Cinco Teses constituíram a primeira utilização da imprensa em larga escala na história
européia. A torrente de palavras que fluiu da pena de Lutero representou algo de
extraordinário na sua época e tornou-se um tesouro para estudos posteriores, especialmente
no século XX, quando ficaram acessíveis edições mais completas das suas obras.
Quando Lutero casou-se em 1525 com a ex-freira Katherine von Bora, ele deu à família
pastoral protestante o mesmo tipo de ímpeto que antes havia oferecido à teologia
protestante.
Essas obras de 1520 lançaram o desafio para o qual a Dieta de Worms no ano seguinte
foi a resposta. Quando a interpretação de Lutero acerca do evangelho, e da estrutura
eclesiástica necessária para sustentar esse entendimento do evangelho, foi rejeitada tanto
pelo papa quanto pelo imperador, acelerou-se a transição para o protestantismo. Logo
depois do seu comparecimento em Worms, Lutero revisou uma ordem eclesiástica para
o culto, além de traduzir o Novo testamento para o alemão. Em 1525, outras ações
decisivas aclararam o que Lutero cria ser uma resposta adequada ao evangelho. Numa
rápida seqüência, ele casou-se com Katherine von Bora, ela mesma uma ex-freira;
censurou camponeses rebelados por acharem que a sua interpretação da liberdade do
evangelho legitimava a rebelião política; e publicou uma extensa defesa da “vontade
escravizada” contra o humanista e erudito bíblico Erasmo. Essas iniciativas mostraram
claramente como Lutero sentia que uma igreja reformada devia ser. Ela não mais
precisava de uma casta sacerdotal especial para fazer a verdadeira obra de Deus; ela
certamente não devia ser tomada como uma desculpa para perturbar a ordem social; e
ela devia abraçar plenamente a compreensão agostiniana da natureza humana como
deliberadamente cativa de seu próprio egoísmo até que Deus mudasse a vontade para
honrar a si mesmo.
Os últimos vinte anos da vida de Lutero não foram tão dramáticos como
os anos de 1517 a 1525, que o tornaram ao mesmo tempo o mais
respeitado e o mais odiado homem da Europa. Muitos livros,
especialmente sermões e palestras sobre diferentes partes da Bíblia,
continuaram a sair de sua pena. Dentre todos os pesados volumes, o
favorito do próprio Lutero era o Pequeno Catecismo de 1529, que, com
perguntas e respostas simples, explicava os Dez Mandamentos, o Credo
dos Apóstolos e a Oração do Senhor, juntamente com alguns princípios
para a vida cristã diária à luz do seu entendimento do evangelho.
5
Lutero, “The Freedom of a Christian,” LW 31:344.
Mas por que se deve considerar Lutero e o que ele escreveu como um ponto
de transição na história do cristianismo? O esforço para responder a essa
pergunta leva inicialmente a conclusões relativamente perturbadoras, isto é, se
realmente levarmos a sério o aspecto histórico da vida de Lutero.
6
Bainton, Here I Stand, 301.
Esta gravura mostra como se parecia o hino mais famoso de Martinho Lutero,
“Castelo Forte é Nosso Deus,” pouco depois de sua primeira publicação.
7
Lutero, “A Sermon on Keeping Children in School,” LW 46:211.
8
Lutero, “Eight Sermons at Wittenberg,” LW 51:77.
9
D. Martyn Lloyd-Jones, Luther and His Message for Today (Londres: Evangelical Press, 1968), 18.
92. Fora, portanto, com todos os profetas que dizem ao povo de Cristo
“Paz, paz,” e não existe paz!
93. Bem-aventurados sejam todos os profetas que dizem ao povo de
cristo “Cruz, cruz,” e não existe uma cruz!
94. Os cristãos devem ser exortados a serem diligentes em seguir a
Cristo, seu Cabeça, através de provações, morte e inferno;
95. E assim estarem confiantes de entrar no céu através de muitas
tribulações, antes que através da falsa segurança da paz.10
Poucos meses mais tarde, Lutero expressou essas questões mais claramente
quando propôs algumas outras teses para um debate em Heidelberg: “A pessoa
que crê que pode obter a graça fazendo o que está nela, acrescenta pecado ao
pecado, tornando-se duplamente culpada.” Dessa maneira, Lutero atacou a
noção de que o exercício da mera energia humana poderia assegurar a
reconciliação com Deus. Porém, essa mensagem humilhante não era o sinal do
apocalipse. Antes, tais realidades podem aumentar o desejo de humilhar-se e
“buscar a graça de Cristo”. Então, Lutero o expressou de maneira tão clara
quanto podia. “Merece ser chamado de teólogo... aquele que compreende as
coisas de Deus visíveis e manifestas percebidas através do sofrimento e da
cruz... Um teólogo da glória chama o mal de bem e o bem de mal. Um teólogo
da cruz chama a coisa como ela realmente é.”11
Essas passagens bíblicas definiam a essência de Deus para Lutero e por isso
ele falou tanto sobre a cruz. Para ele, o cristianismo começa com a morte de
Cristo pelos pecadores; o cristianismo torna-se uma realidade nas vidas
humanas quando homens e mulheres participam da morte de Cristo ao
experimentarem a destruição de sua próprias pretensões quando estão coram
Deo (na própria presença de Deus).
humanos a pensarem que aquilo que fazem para Deus representa muito na
criação de uma vida espiritual, ao invés do que Deus fez por eles.
Foi esse tipo de argumentação que deu a muitos leitores das primeiras obras
de Lutero a idéia de que ele era um revolucionário que queria subverter todas
as instituições herdadas, quer civis, educacionais ou eclesiásticas. A reação
ríspida de Lutero diante de tais noções, como nas suas observações aos pais
que negligenciavam a educação de seus filhos, mostra que essa leitura estava
equivocada. Lutero na realidade tinha muito respeito pela autoridade civil
tradicional; ele achava que as sete artes liberais desenvolvidas na Idade Média
e até mesmo métodos mais recentes de investigação (como o estudo histórico)
podiam ser melhor realizados por aqueles que haviam sido salvos pela graça; e
ele sustentava que ninguém poderia ser redimido se não participasse da vida
da igreja visível. O que Lutero denunciou como teologia da glória não foi a
atividade humana como tal ou as contribuições grandemente valiosas das
tradições e estruturas humanas. Foi antes a idéia de que essas atividades,
tradições e estruturas eram em si mesmas vivificadoras. Elas certamente eram
capacidades dadas por Deus, mas capacidades que deviam ser exercidas com
grato reconhecimento pelo dom da graça concedido exclusivamente pelo
beneplácito de Deus na pessoa de Jesus Cristo.
Por que essas percepções levavam à cruz? Elas levavam a cruz, afirmou
Lutero, porque a cruz mostra o Criador, o Deus majestoso e todo-poderoso
sofrendo – e sofrendo por nós. Lutero até mesmo podia dizer que a cruz nos
mostra o terrível mistério de Deus experimentando a morte por nós. Onde
poderíamos encontrar uma explicação mais clara da pecaminosidade humana
senão em saber que poderíamos ser justificados somente através da morte do
Deus encarnado. Portanto, os crentes podem abraçar a cruz, mas somente se
eles se desesperarem de si mesmos, somente se abandonarem uma teologia da
glória.
Para Lutero, também era um axioma fundamental o fato de que a cruz revela o
Deus plenamente amoroso como igualmente o Deus plenamente misterioso.
Na cruz, a própria criação apoderou-se do Criador; a criação sepultou o
Criador. Na cruz, as alturas mais sublines desceram até as profundezas mais
profundas; na cruz as mãos de homens traspassaram as mãos que fizeram a
humanidade. Não pode haver um mistério maior.
Pois onde termina a força do homem, começa a força de Deus, contanto que
a fé esteja presente e espere por ele. E quando a opressão chegar ao fim,
torna-se manifesto que grande força estava oculta sob a fraqueza. Mesmo
assim, Cristo foi impotente na cruz; e todavia, ali ele realizou a sua obra
mais poderosa e venceu o pecado, a morte, o mundo, o inferno, o diabo e
todo o mal. Assim, todos os mártires foram fortes e venceram. Assim,
também, todos os que sofrem e são oprimidos vencem.12
Com essas palavras, Lutero ecoou o que o apóstolo Paulo havia dito aos
Coríntios. Se os seres humanos abraçam a cruz, eles podem ser escarnecidos
como fracos e tolos. Mas essa não é a última palavra, pois abraçar a cruz é
também abraçar o mundo em sua realidade mais essencial. Nós também
chegamos a conhecer “o mistério de Deus... Cristo, em quem todos os tesouros
da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” (Cl 2.2-3). Abraçar a cruz
escandalosa é por sua vez ser abraçado por Jesus. O vulto manchado de
sangue acolhe aqueles que a ele se achegam e os introduz no reino de Deus. A
teologia da cruz mostra como tornar-se um filho de Deus.
Para Lutero e para aqueles a quem a sua mensagem iluminou com a força de
um raio a cruz tornou-se o caminho para a vida. Na realidade, era uma vida
que continuava a ter as marcas da crucificação. Lutero não esqueceu as
palavras que Barnabé e Paulo falaram aos cristãos de Antioquia: “Através de
muitas tribulações, nos importa entrar no Reino de Deus” (At 14.22). E assim
ele freqüentemente repetia este lembrete: “Nós somos cristãos e temos os
12
Lutero, “O Magnificat,” LW 21:340.
evangelho, que nem o diabo e nem os homens podem suportar, a fim de que
possamos chegar à pobreza e a humildade, e assim Deus possa realizar a sua
obra em nós.”13 Ou como Lutero afirmou nas palavras do seu hino mais
conhecido, “Castelo Forte é Nosso Deus”: “Ainda que este mundo, repleto de
demônios, ameace destruir-nos; Não temeremos, pois Deus quer que a sua
verdade triunfe por meio de nós.”
Deus de criar novos céus e nova terra no final dos tempos. Com essas e outras
convicções, Lutero abriu uma porta através da qual a maior parte dos
protestantes posteriores não entraram.
15
Jared Wicks, S.J., Luther and His Spiritual Legacy (Wilmington, Delaware: Michael Glazier, 1983), 26.
Wesley. O que esses homens encontraram nele foi uma poderosa reafirmação
da graça, mais especificamente a graça comunicada através da vida altruista e
da morte sacrificial de Jesus Cristo. Portanto, o significado de Lutero não está
em fornecer algo novo para a igreja, embora seus meios de expressão muitas
vezes tenham sido notáveis por sua originalidade. Antes, o seu significado
consistiu em oferecer um lembrete oportuno e eficaz de que a esperança do
cristão, agora e para sempre, decorre da transação ocorrida na cruz e no
túmulo vazio que os discípulos chorosos encontraram no terceiro dia.
Deus Todo-poderoso, que pela morte de teu Filho anulaste o pecado e a morte
e por sua ressurreição restauraste a inocência e a vida eterna, de modo que,
libertos do poder do diabo, possamos viver em teu reino: Concede-nos que
possamos crer nessas coisas de todo o nosso coração e, firmes nessa fé,
sempre louvar-te e render-te graças. Pelo mesmo teu Filho Jesus Cristo,
nosso Senhor. Amém.16
Leituras Complementares
Bagchi, David V. N. Luther’s Earliest Opponents: Catholic Controversialists,
1518-1525. Minneapolis: Fortress, 1991.
Oberman, Heiko A. Luther: Man between God and Devil. New Haven: Yale
University Press, 1990.
16
Lutero, “As Coletas,” LW 53:134.
Todas as pessoas que habitam a terra, cantem ao Senhor com alegre voz;
Servi-o com temor, anunciai seu louvor, vinde diante dele e alegrai-vos.
Sabeis que o Senhor certamente é Deus; sem o nosso auxílio ele nos fez;
Somos o seu povo, ele nos alimenta e nos recebe como suas ovelhas.
Oh! Entrai por suas portas com louvor, achegai-vos aos seus átrios com alegria;
Exaltai, louvai e bendizei sempre o seu nome, pois é próprio assim fazer.
Por que? O Senhor nosso Deus é bom, sua misericórdia é certa para sempre;
Sua verdade em todos os tempos permaneceu firme e perdurará de eternidade à
eternidade.
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
O ritmo das negociações entre o rei Henrique VIII e o papa Clemente VII acelerou-se
dramaticamente no final de 1532. Ana Bolena, a quem Henrique queria desposar em
substituição a Catarina de Aragão, estava grávida. Henrique desejava desesperadamente
que a criança fosse um menino. Para que esse filho fosse legítimo e um herdeiro
reconhecido do seu trono, Henrique tinha de casar-se com Ana e fazê-lo rapidamente.
Mas o papa ainda não havia consentido na anulação do casamento de Henrique com
Catarina, a viúva do finado irmão de Henrique, Artur. Henrique havia se casado com
Catarina em 1509. Mas agora uma combinação de política (especialmente o desejo de
um herdeiro masculino para o trono) e religião (particularmente o temor de violar os
regulamentos levíticos sobre o casamento) haviam convencido Henrique de que o seu
casamento com Catarina não era válido. Todavia, Henrique não tivera êxito em
convencer o papa Clemente. Mesmo que o papa pudesse ter sido convencido, ele não
podia atender ao pedido de divórcio feito por Henrique por causa da sua própria
dependência – envolvido que estava nas lutas políticas italianas – do sacro imperador
romano Carlos V. Enquanto o papa devesse a sua segurança a Carlos, ele não podia
permitir que Henrique se divorciasse de Catarina. Afinal de contas, ela era tia do
imperador e Carlos havia decidido que a honra de sua tia não seria violada.1
Com esse impasse, Henrique VIII tomou o que parecia ser o único caminho disponível. Se
o papa não lhe daria um divórcio, ele encontraria alguém que o fizesse. Se encontrar outra
pessoa para ratificar o divórcio significava que a igreja da Inglaterra devia romper com a
Igreja Católica Romana “universal,” então ela iria romper.
Para os urgentes propósitos de Henrique, felizmente estavam disponíveis os meios para dar
esse passo revolucionário de separar a igreja inglesa de Roma. Thomas Cranmer, o novo
arcebispo de Cantuária nomeado por Henrique, estava disposto a ratificar o divórcio e casar
Henrique com Ana Bolena sem aguardar a permissão do papa. Ainda mais importante, o
Parlamento de Henrique, que havia se reunido intermitentemente desde 1529, estava
disposto a promulgar as medidas legais necessárias para apoiar as ações do arcebispo.
Por insistência de Henrique, esse “Parlamento Reformador” já havia dado alguns passos
preliminares em direção a uma plena declaração de independência eclesiástica. Ele havia
tornado muito mais difícil recorrer de processos eclesiásticos para tribunais estrangeiros
e havia tornado quase que igualmente difícil o envio de dinheiro inglês para Roma. Logo
após o casamento de Henrique com Ana Bolena em janeiro de 1533, o Parlamento deu o
novo passo de proibir taxativamente que se apelasse das decisões da igreja inglesa para
Roma. Como um historiador descreve a situação, “o Arcebispo Cranmer então atuou
como um tribunal e decidiu que o rei não estava vivendo em bigamia. Pela lei inglesa,
como recentemente remodelada, não havia apelo de sua sentença.”2
Como nesta gravura, também na vida real Henrique VIII colocou-se acima dos seus
clérigos, fossem eles protestantes (esquerda) ou católicos (direita).
Ainda que a Majestade do Rei seja e deva ser justa e legitimamente a Suprema Cabeça
da Igreja da Inglaterra, e assim seja reconhecida pelo clero do seu reino em suas
Convocações, todavia para a corroboração e confirmação da mesma e para o aumento da
virtude da religião de Cristo neste reino da Inglaterra e para reprimir e extirpar todos os
erros, heresias e outras enormidades e abusos até agora praticados no mesmo, seja
1
Esse relato dos acontecimentos na Inglaterra é devido especialmente a A.G. Dickens, The English
Reformation, 2ª ed. (University Park: Pennsylvania State University Press, 1989), complementado por G.R.
Elton, Reform and Reformation: England, 1509-1558 (Cambridge: Harvard University Press, 1977) e
Christopher Haig, ed., The English Reformation Revised (Nova York: Cambridge University Press, 1987).
2
Charles M. Gray, The Harbrance History of England, vol. 2, Renaissance and Reformation England (Nova
York: Harcourt Brace Javanovich, 1973), 39.
decidido pela autoridade deste presente Parlamento que o Rei, nosso Soberano Senhor,
seus herdeiros e sucessores, reis deste reino, serão considerados, aceitos e reputados a
única Cabeça Suprema na terra da Igreja da Inglaterra, chamada Anglicana Ecclesia, e
terão e desfrutarão, anexados e unidos à coroa imperial deste reino, tanto o estilo e o
título da mesma, como todas as honras, dignidades, preeminências, jurisdições,
privilégios, autoridades, imunidades, rendimentos e benefícios pertencentes a dita
dignidade de Suprema Cabeça da mesma Igreja, e que o nosso Soberano Senhor, seus
herdeiros e sucessores, reis deste reino, terão pleno poder e autoridade para, de tempos e
tempos, visitarem, reprimirem, corrigirem, reformarem, ordenarem, restringirem e
emendarem todos esses erros, heresias, abusos, ofensas, desprezos e enormidades,
quaisquer que sejam, que por qualquer modo, autoridade espiritual ou jurisdição devam
ou possam ser legalmente reformados, reprimidos, ordenados, corrigidos ou restringidos,
para o prazer do Deus Todo-poderoso, o aumento da virtude na religião de Cristo e para
a conservação da paz, unidade e tranqüilidade deste reino; não obstante qualquer uso,
costume, lei estrangeira, autoridade estrangeira, prescrição ou qualquer outra coisa ou
coisas contrárias a este decreto.3
Por rebuscada que fosse a linguagem, ninguém, então ou agora, deixou de entender as
conseqüências: a igreja da Inglaterra não mais estava em comunhão com Roma; a igreja da
Inglaterra havia rompido com a igreja “católica”; a igreja da Inglaterra pertencia aos
ingleses (ou pelo menos ao rei inglês). Por oporem-se a essas e outras decisões
semelhantes, católicos fiéis como o bispo John Fisher e Sir Thomas More iriam para o
cadafalso. Por insistirem com Henrique no sentido de uma reforma mais completa,
protestantes fiéis como Robert Barnes e John Frith os seguiriam.
A ruptura com Roma efetuada por Henrique com a assistência do seu arcebispo de
Cantuária e do Parlamento inglês simboliza um importantíssimo ponto de transição na
história cristã, mas não porque ela tem o peso teológico de um Concílio de Nicéia ou, mais
perto de nós, de uma Dieta de Worms. A decisão de Henrique somente produziu um efeito
geral sobre a cristandade porque produziu um efeito particular sobre a Inglaterra. Porém, a
natureza desse efeito particular ilustra uma nova e poderosa tendência no cristianismo
europeu que, considerada em seus muitos exemplos, constituiu um ponto de transição
vitalmente importante na história da igreja.
3
Gerald Bray, ed., Documents of the English Reformation (Minneapolis: Fortress, 1994), 113-14.
4
Por exemplo, Heiko Oberman, The Harvest of Medieval Theology (Cambridge: Harvard University Press,
1963); Steven Ozment, The Age of Reform, 1250-1550 (New Haven: Yale University Press, 1980); Eamon
Duffy, The Stripping of the Altars: Traditional Religion in England, 1400-1580 (New Haven: Yale University
Press, 1992).
As Crises da Igreja
A fim de se compreender o caráter das Reformas Protestante e Católica do
século XVI, é bem mais importante observar alguns aspectos da história
eclesiástica do período precedente do que buscar conexões entre a religião e
outros aspectos da história européia. Durante pelo menos dois séculos antes do
surgimento do protestantismo, dificuldades práticas de diferentes tipos haviam
afligido a Igreja Católica. Nos primeiros três quartos do século XIV, o papado
havia se estabelecido em Avinhão, na fronteira do território dos reis franceses,
por causa de persistentes tumultos na Cidade Eterna e a preocupação dos
franceses em limitar a independência dos papas. Enquanto estava em Avinhão
(no que os adversários chamaram de Cativeiro Babilônico), o papado
conseguiu aperfeiçoar os procedimentos administrativos e melhorar as
comunicações internas da igreja. Todavia, as complicações políticas que
afligiram a igreja romana durante a sua estadia em Avinhão mantiveram a
atenção dos papas voltada para preocupações seculares e pouco fizeram para
estimular interesses espirituais ou religiosos.
O que se seguiu foi ainda pior. O esforço de levar o papado de volta para
Roma produziu um período confuso, muitas vezes sórdido e intensamente
competitivo, no qual dois e às vezes até mesmo três papas rivais clamavam
por reconhecimento político e religioso. Esse período, geralmente denominado
o Grande Cisma, testemunhou colégios cardinalícios rivais elegendo papas
adversários em Roma, Avinhão e ocasionalmente em outros lugares. À parte
as questões delicadas de quem estava certo e quem estava errado nessas
complicadas manobras, a competição pela supremacia papal novamente teve o
efeito de exaltar as considerações temporais e marginalizar as preocupações
transcendentes nos negócios da igreja.
5
Sobre Constança como o grande “evento definidor” desse período da história da igreja, ver John Van Engen,
“The Church in the Fifteenth Century,” em Handbook of European History, 1400-1600, ed. Thomas A.
Brady, Jr., Heiko A. Oberman e James D. Tracy, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1994-95), 1:305-30, esp.
313-15.
tornado cardeal quando ainda adolescente e que subiu ao poder através de suas
conexões familiares como um Medici, foi grande patrono do teatro, das artes e
da música, bem como um grande caçador, um grande patrocinador de seus
muitos parentes da família Medici e um grande gastador de dinheiro. De fato,
a prodigalidade de Leão como patrono e construtor, que o mantinha
perpetuamente carente de recursos, estava por trás da sua autorização da venda
de indulgências na Alemanha, contra a qual as Noventa e Cinco Teses de
Lutero foram um protesto tão vigoroso.
Júlio: O que pretende o diabo? Os portões não abertos? Alguém fez alguma
brincadeira com a fechadura.
Espírito: Talvez você tenha a chave errada. Você tem a chave do poder.
Júlio: É a única que jamais tive...
Pedro: Quem é você?
Júlio: Você não vê esta chave, a tríplice coroa e o pálio cintilando de jóias?
Pedro: Não se parece com a chave que Cristo me deu. Como devo conhecer a
coroa que nenhum tirano bárbaro ousou usar? Quanto às jóias e às pedras
preciosas eu as piso sob os meus pés... Diga-me novamente, o que você fez
pela Igreja?
Júlio: Encontrei a Igreja pobre. Tornei-a esplêndida com palácios reais,
esplêndidos cavalos e mulas, tropas de servos, exércitos e oficiais.
Espírito: E com prostitutas atraentes e alcoviteiros obsequiosos.
Pedro: Mas como agora? A Igreja não era assim quando foi fundada por
Cristo... Paulo não falou de cidades que havia assolado, de príncipes que havia
massacrado, de reis que havia incitado à guerra. Ele falou de naufrágios,
cadeias, perigos e conspirações. Essas são as glórias do general cristão. Eu te
rogo, pastor principal da Igreja, você jamais pensou em como a Igreja
começou, aumentou e foi estabelecida? Foi por guerras, foi por riquezas, foi
por cavalos? Certamente que não. Foi pela paciência, pelo sangue dos
mártires, inclusive o meu, por prisões e por açoites. Você diz que a Igreja está
crescendo, quando os sacerdotes mergulham o mundo em tumulto. Você a
considera florescente quando está embriagada pela devassidão, tranqüila
quando desfruta de vícios sem repreensão, e quando grandes roubos e furiosos
conflitos são justificados pelos príncipes e doutores como a “defesa da
Igreja.”¹
Os Protestantismos
Assim sendo, o surgimento do protestantismo precisa ser visto como algo que
ocorreu durante uma era de transformações amplas e dinâmicas na sociedade
européia, bem como em resposta a uma crise espiritual específica na história
imediatamente precedente da Igreja Católica. Quando as forças centrífugas da
Uma das maneiras pelas quais os regimes europeus tentaram livrar-se dos
primeiros anabatistas foi executá-los por afogamento, numa sádica paródia da
insistência desses protestantes no batismo de adultos.
Todavia, a questão principal aqui é que, uma vez os protestos contra a direção
da Igreja Católica resultaram no surgimento das igrejas protestantes, essas
igrejas protestantes quase que imediatamente abriram muitos e diferentes
caminhos para a reforma. Desde os conservadores erastianos à direita até os
radicais anabatistas à esquerda, os protestantes trouxeram contra os erros
católicos não uma voz unida, mas uma multiplicidade de vozes.
Esse mesmo espectro logo ficou evidente nas questões de doutrina e prática
cristãs. Como já observamos, a maior parte dos principais líderes protestantes
concordou nas afirmações doutrinárias básicas. Eles criam na justificação pela
fé; afirmaram com freqüência a sua oposição contra o que consideravam a
justiça das obras embutida no catolicismo medieval, insistindo na justificação
pela fé somente. Os protestantes em geral afirmavam a sola Scriptura ou a
Bíblia como a autoridade última. E eles sustentaram o sacerdócio de todos os
crentes contra as concepções católicas hierárquicas acerca do papado, da vida
monástica e do sacerdócio. Com base nesses princípios comuns, alguns líderes
da Reforma como Calvino, Melanchton e Bucer fizeram pelo menos alguns
esforços para coordenar as reformas protestantes em cidades e territórios
específicos com os líderes protestantes de outras regiões.
Ó Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, nosso único Salvador, o Príncipe
da Paz: Dá-nos a graça para com seriedade nos compenetrarmos dos grandes
perigos em que nos encontramos por causa de nossas lamentáveis divisões,
retira todo o ódio e preconceito e tudo o mais que possa impedir-nos de ter
uma união e concórdia piedosas; para que, como existe somente um só corpo
e um só Espírito e uma só esperança de nossa vocação, um só Senhor, uma só
fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos nós, assim possamos de agora
em diante ser todos de um só coração, de uma só alma, unidos em um único e
santo vínculo de verdade e paz, de fé e caridade, e possamos de uma só mente
e com uma só boca glorificar-te: por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor.
Amém.
Leituras Complementares
Bossy, John. Christianity in the West, 1400-1700. Nova York: Oxford
University Press, 1985.
Brady, Thomas A., Jr., Heiko A. Oberman e James D. Tracy, eds. Handbook
of European History, 1400-1600. 2 vols. Grand Rapids: Eerdmans, 1994-95.
Scribner, Bob, Roy Porter e Mikulás Teich, eds. The Reformation in National
Context. Nova York: Cambridge University Press, 1994.
9
Reforma Católica e Missões Mundiais:
A Fundação da Ordem dos Jesuítas (1540)
No verão de 1539, um espanhol que havia iniciado a sua vida adulta lutando pelo rei da
Espanha, alistou-se em uma causa diferente. Inácio de Loiola, filho de uma família
nobre do país basco, mas por muitos anos um sacerdote e fiel servo da Igreja Católica,
agora estava pedindo que o papa Paulo III o deixasse fundar uma nova ordem religiosa.
Cinco anos antes, Loiola havia dado os primeiros passos no sentido de formalizar a
intensa devoção que já caracterizava a sua vida. Com seis companheiros – Nicolás
Bobadilla, Pierre Favre, Diego Laynez, Simón Rodríguez, Alfonso Salmerón e Francisco
Xavier (um da França, um de Portugal e quatro de diferentes regiões da Espanha) –
3
“The Strife is O‟er, the Battle Done,” trad. Francis Pott, Trinity Hymnal, ed. rev. (Atlanta: Great
Commission Publications, 1990), 275.
Loiola havia feito votos de pobreza e castidade. Juntos, eles haviam se comprometido a
buscar a conversão dos turcos muçulmanos na região de Jerusalém. Naquela reunião
realizada em Paris em 15 de agosto de 1534, Loiola e seus amigos também concordaram
que, se a sua intenção não pudesse concretizar-se, eles então se colocariam à disposição
do papa para qualquer serviço que ele lhes quisesse atribuir. Conforme veio a acontecer,
as circunstâncias impediram a sua viagem para o Oriente, e agora eles de fato estavam se
oferecendo diretamente à igreja.
A trajetória de Loyola de soldado espanhol a servidor papal não foi fácil. Quando tinha
cerca de trinta anos, ele foi ferido na batalha de Pamplona, travada entre a Espanha e a
França em maio de 1521. Durante uma longa convalescença, ele recebeu literatura
devocional sobre a vida de Cristo. Essa literatura o afetou de tal maneira que ele abandonou
a sua carreira de soldado. Quando recuperou-se plenamente, Loiola viajou para a Terra
Santa e depois começou a estudar para o sacerdócio. Mas naquela época ele também havia
começado a aperfeiçoar um curso de discipulado que posteriormente seria chamado de
Exercícios Espirituais. Embora mais tarde tenham sido publicados em forma de livro, os
Exercícios foram concebidos para serem comunicados pessoalmente. Eles estipulavam um
intenso período de meditação e oração, na forma de contemplações de uma semana, em
primeiro lugar sobre a própria pecaminosidade do indivíduo; em segundo lugar, sobre a
realeza de Cristo; em terceiro lugar, sobre a paixão de Cristo; e finalmente sobre a vida
ressurreta de Cristo. O anglicano evangélico J. I. Packer observou a respeito desses
exercícios que eles “apelam à vontade através do pensamento, da imaginação e da
consciência. Eles continuam a ser um poderoso auxílio para o auto-conhecimento e a
devoção ao Senhor Jesus, mesmo para aqueles que estão fora do catolicismo, no qual esses
exercícios estão enraizados tão fortemente.”4
Este quadro do século XVII mostra Loiola recebendo do papa Paulo III a aprovação final
da ordem dos jesuítas.
Loyola e a Meditação
O texto abaixo é uma amostra das instruções sobre meditação encontradas nos Exercícios
Espirituais de Loiola. Ele foi extraído da terceira das quatro “semanas” e nas traduções
modernas corresponde às seções 200-203.
Segunda Contemplação
De manhã. Desde a última ceia até a agonia no jardim.
Oração. A oração preparatória usual.
Primeiro Prelúdio. Esta é a história do mistério. Aqui será como segue. Jesus, nosso
Senhor, saiu com os discípulos da ceia que havia ocorrido no Monte Sião. Depois de
atravessar a cidade de Jerusalém e o vale que está fora dos seus muros, eles chegaram ao
jardim do Getsêmani, próximo ao sopé do Monte das Oliveiras. Levando consigo três dos
discípulos e depois indo um pouco adiante sozinho, Jesus começou a orar, uma oração tão
intensa que ele começou a suar gotas de sangue. Por três vezes orou e por três vezes foi
4
J. I. Packer, “Ignatius Loyola,” in Eerdman’s Handbook to the History of Christianity (Grand Rapids:
Eerdmans, 1977), 411.
despertar os discípulos do sono. Quando Judas chegou com os soldados, traindo o Senhor
com um beijo, e Pedro cortou a orelha de Malco, um servo do sumo-sacerdote, Jesus foi
preso como um criminoso comum e levado através do vale até a casa de Anás.
Segundo Prelúdio. Isto é para se ver o lugar. Aqui se deve considerar o caminho desde o
Monte Sião até o jardim, e também a largura, o comprimento e a aparência do jardim.
Terceiro Prelúdio. Este é para pedir o que desejo. Na paixão é apropriado pedir tristeza
com Cristo na tristeza, ser quebrantado com Cristo quebrantado, e lágrimas e sofrimento
interior por causa do grande sacrifício de Cristo por mim.¹
O uso que o próprio Loiola fez dos exercícios o transformou tão plenamente quanto a
contemplação da justificação pela graça por Martinho Lutero havia transformado o
reformador alemão. A diferença da transformação não foi em grau, mas em espécie. Assim
como Lutero havia sido afastado da Igreja Católica por sua peregrinação cristã , Loiola foi
atraído mais profundamente para a igreja.
Loiola estudou teologia por onze anos, primeiro nas universidades de Barcelona, Alcalá e
Salamanca e depois, de 1528 a 1535, na Universidade de Paris. Enquanto residia em Paris,
Loiola era tão zeloso que, por um breve período, foi investigado pela Inquisição como
alguém que poderia perturbar a paz e a boa ordem da igreja. Porém, enquanto algumas
pessoas de Paris estavam inquietas com a sua intensa espiritualidade, outras foram atraídas
para ele como por um farol de verdade e propósito. O resultado foi o grupo que se
comprometeu com o serviço missionário.
A solicitação feita por Loiola para que se criasse uma nova ordem religiosa não recebeu
uma resposta imediata. Passou-se mais de um ano desde a época do pedido até a
promulgação da bula papal de 27 de setembro de 1540 que estabeleceu formalmente a
Sociedade de Jesus. Ainda pesava sobre Loiola uma suspeita de escândalo em seus anos
com estudante em Paris. Além disso, a solicitação da nova ordem havia sido patrocinada
pelo cardeal Gasparo Contarini, um personagem central nos concílios da Igreja Católica,
mas também um cardeal suspeito aos olhos de alguns católicos por causa do seu desejo de
fazer todas as concessões possíveis na busca de aproximação com os protestantes. A
despeito de possíveis apreensões, a bula foi promulgada. O seu título, Regimini militantis
ecclesiae (Sobre o governo da igreja militante), era um indício do seu fervor. As
especificações da bula delineavam claramente que tipo de sociedade os jesuítas seriam:
Que todos os membros da Companhia saibam e tenham em mente, não somente nos
primeiros dias de sua profissão, mas durante todos os dias de sua vida, que toda esta
Companhia e todos os que a compõem estão envolvidos em um conflito a favor de
Deus, mediante a obediência ao mui sagrado Senhor, o papa, e aos seus sucessores no
pontificado. E embora tenhamos aprendido no Evangelho, e conheçamos pela fé
ortodoxa, e firmemente professemos que todos os fiéis em Cristo Jesus estão sujeitos
ao Pontífice Romano, como a Cabeça e o Vigário de Jesus Cristo, não obstante, para a
maior humildade de nossa Sociedade, e a perfeita mortificação de cada um, e a
abnegação de nossas vontades, consideramos ser muito útil tomar sobre nós mesmos,
além do vínculo comum a todos os fiéis, um voto especial. Ele visa comprometer-nos
de tal maneira, que tudo o que o atual Pontíficie Romano e seus sucessores possam nos
ordenar acerca do progresso das almas e da difusão da fé, nós seremos obrigados a
obedecer instantaneamente até onde está em nós, sem evasivas ou escusas, indo para
qualquer país ao qual ele possa nos enviar, seja entre os turcos ou outros pagãos, e até
mesmo para as Índias, ou entre quaisquer hereges e cismáticos, ou entre quaisquer
crentes, sejam quais forem.5
Assim foi fundado aquilo que o moderno historiador John Olin corretamente denominou ”o
instrumento mais poderoso do reavivamento e renovação católica nessa era de crise
religiosa.”6
Certamente será difícil exagerar o significado prático e simbólico da fundação dos jesuítas.
Essa fundação representou, em primeiro lugar, uma das mais belas expressões da reforma
católica que, logo depois de iniciada a reforma protestante, revitalizou inteiramente a Igreja
Católica Romana. Embora existissem muitas influências poderosas que contribuíram para a
Contra-Reforma católica, os jesuítas seriam o instrumento mais notável no esforço de
reconquistar para Roma algumas regiões protestantes, e mais ainda, de solidificar a fé dos
europeus que estavam vacilando na sua lealdade para com a Igreja Católica.
Em terceiro lugar, o zelo missionário dos jesuítas também fez deles uma força
extraordinariamente poderosa na história do cristianismo. Já nos seus primeiros dias, esse
zelo podia ser observado por todos. Ainda antes de o papa agir oficialmente para formalizar
a ordem, um dos companheiros originais de Loiola, Francisco Xavier (1506-1552),
embarcara em viagens missionárias que levaram a mensagem do cristianismo católico para
a Índia, Malásia, Indonésia e Japão. Por ocasião da sua morte, em 1552, Xavier havia
chegado à própria costa da China. Isso foi feito (leitores protestantes, observem!) cento e
cinqüenta anos antes de qualquer coisa comparável entre os protestantes e duzentos anos
antes de qualquer coisa comparável entre os protestantes de língua inglesa. Além disso, a
experiência missionária dos jesuítas nos séculos XVI e XVII é um assunto de grande
relevância no final do século XX, pois a sua história ilustra as possibilidades e problemas
que ocorreram quando uma religião há muito tempo cultivada na Europa agora se difundia
por todo o mundo.
5
Citado em John C. Olin, ed., The Catholic Reformation: Savonarola to Ignatius Loyola, Reform in the
Church, 1495-1540 (Nova York: Harper & Row, 1969), 204-5.
6
Ibid., 198.
As ênfases das novas ordens iam desde a dedicação estrita à vida contemplativa em um
extremo do espectro, até o ativismo intencional no mundo, no outro extremo. A primeira
das novas ordens, a dos teatinos (fundada em 1524), era dirigida por dois sacerdotes que
haviam pertencido ao Oratório do Amor Divino, em Roma. Na nova ordem, eles
mantiveram a ênfase na piedade pessoal e na reforma eclesiástica que o oratório havia
incentivado. Um dos fundadores, Gian Pietro Carafa (1476-1559), mais tarde (1555) iria
tornar-se o papa Paulo IV e seguiria uma trajetória rigorosa e inflexível nos seus esforços
para fortalecer a igreja. Os teatinos mantiveram-se uma ordem pequena, como aconteceu
com muitas das outras novas fundações da primeira metade do século, como os Clérigos
Regulares de São Paulo (ou barnabitas), um ordem fundada em Milão em 1530, que
eventualmente veio a incluir um grupo de freiras (as Irmãs Angélicas de São Paulo) e uma
organização paralela de membros leigos (os Casais de São Paulo).
Consideravelmente maiores e mais influentes foram as ordens que buscaram reviver antigos
princípios oriundos das tradições originais dos monges e frades. Como um exemplo
importante, os capuchinhos saíram em 1528 dos franciscanos observantes, os descendentes
de São Francisco que insistiam em “observar” estritamente os ideais de pobreza e serviço
de seu fundador. Os capuchinhos queriam levar ainda mais longe a dedicação a esses ideais
básicos e assim empreenderam uma existência separada para si mesmos. Eles
Os capuchinhos foram acompanhados por ainda outros grupos oriundos dos franciscanos
observantes. As carmelitas descalças foram um grupo majoritariamente espanhol que
recebeu o seu nome da prática de não usar calçados. As suas reformas foram inspiradas pela
dinâmica liderança de Santa Teresa de Ávila (1515-1582), cuja piedade fervorosa e agudo
senso comum guiaram uma comunidade religiosa dedicada em grande parte à oração e à
contemplação. O sucesso de Teresa no estabelecimento de fundações monásticas paralelas
(uma para homens e outra para mulheres) foi repetido por várias das ordens novas ou
revividas em outros lugares por toda a Europa católica. São João da Cruz (1542-1591), que
também promoveu a oração e a espiritualidade mística, tornou-se o mais conhecido dos
carmelitas. Uma ordem mais ou menos paralela, os recoletos franciscanos, também tinham
raízes entre os franciscanos observantes. Os recoletos foram estabelecidos na década de
1570 na França e logo depois começaram a enviar missionários para a América do Norte,
bem como para várias outras partes do mundo.
O significado dos ideais religiosos franciscanos em muitas das novas ordens é indicado
pelo número considerávl de indivíduos que eventualmente tornaram-se membros das várias
ordens. Depois de cerca de um século e meio de renovada dedicação aos princípios
franciscanos, em 1700 havia quase 35 mil observantes, mais de 27 mil capuchinhos, quase
13 mil franciscanos reformados, mais de 6 mil carmelitas descalços e mais de 9 mil
recoletos.7 Nenhuma sociedade missionária protestante teria o tamanho até mesmo dos
carmelitas descalços até o século XX.
A questão interpretativa que precisa ser colocada acerca dessas novas ordens – que
incluíam desde os jesuítas como a maior e a mais ativa de todas elas até incontáveis
fundações menores como os somaschi e as ursulinas (uma ordem de mulheres) – foi o seu
apego aos antigos ideais medievais de pobreza, castidade e obediência. Enquanto que
muitas dessas ordens, especialmente os jesuítas, eventualmente tenham competido com os
protestantes, em grande parte os seus membros se preocupavam muito menos em suplantar
o protestantismo do que em viver à altura dos antigos ideais e realizar reformas através de
práticas de oração, meditação e serviço que tinham uma antiga linhagem na igreja.
Quando os papas finalmente iniciam as reformas, a política papal pode ser vista como uma
mistura de respostas ao desafio protestante e o desejo pessoal de purificar e revitalizar a
7
Esses números e uma síntese muito útil são encontrados em John Patrick Donnelly, S.J., “The New
Religious Orders, 1517-1648,” em Handbook of European History, 1400-1600, ed. Thomas A. Brady, Jr.,
Heiko Oberman e James D. Tracy (Grand Rapids: Eerdmans, 1994-95), 2:294, 296.
igreja. Durante a década de 1530, o trono papal continuou a ser ocupado por homens que
estavam pelo menos tão envolvidos com questões seculares e políticas quanto com
preocupações espirituais. Todavia, a natureza da atividade papal começou a mudar quando
Alessandro Farnese tornou-se o papa Paulo III em 1534 (servindo nesse ofício até 1549).
Embora Paulo III continuasse a exibir algumas características do papado da renascença –
por exemplo, ao deixar que a preocupação com a sua família ocupasse um papel destacado
nas suas políticas práticas – ele também deu início a medidas que respondiam ao clamor
por reformas.
Logo depois que tornou-se papa, Paulo III organizou uma seleta comissão de cardeais
reformistas e pediu-lhes para preparar uma avaliação da igreja e das suas necessidades. Os
membros dessa comissão incluíam Gian Pietro Carafa, o teatino conservador, mas também
três cardeais cujos ideais de reforma incluíam atitudes um tanto mais conciliadoras para
com os protestantes e os críticos internos da igreja. Jacopo Sadoleto (1477-1547) era um
erudito italiano que tornou-se renomado na França por seu comentário de Romanos (1535)
e por uma troca de correspondência com João Calvino, em 1539, que marcou o ponto alto
do debate católico-protestante sério. Reginald Pole (1500-1558), nascido em uma família
nobre inglesa e (com efeito) banido de sua terra natal por recusar-se a apoiar o divórcio de
Henrique VIII, muito mais tarde iria retornar à Inglaterra como conselheiro papal de Mary
Tudor (1553-1558) e como figura chave no esforço mal-sucedido de recuperar a sua pátria
para o catolicismo. Gasparo Contarini (1483-1542) era um diplomata veneziano e uma
figura notável da renascença cristã que havia sido chamado para o serviço da igreja.
Algumas das noções teológicas de Contarini, como na questão da justificação pela fé,
chegaram tão perto de aceitar as conclusões protestantes como qualquer figura importante
que tenha permanecido na Igreja Católica do seu tempo.
Durante o mandato de Paulo III também ocorreu um dos últimos esforços sérios para sanar
a divisão com os protestantes. Em 1541, reuniu-se um colóquio em Regensburg (ou
Ratisbona), no sul da Alemanha, que aproximou católicos como Contarini, que esperava
conciliar os protestantes, e líderes protestantes como Martin Bucer e Filipe Melanchton,
que também tinham esperanças de reconciliação.8 De maneira notável, o colóquio
8
Aqui estou seguindo Peter Matheson, Cardinal Contarini at Regensburg (Oxford: Clarendon, 1972).
O Credo de Pio IV
Logo após o encerramento do Concílio de Trento, o papa Pio IV autorizou a
preparação de uma breve “Forma para Professar a Fé Católica Ortodoxa.”
Esse documento, que às vezes é chamado de Credo de Pio IV ou Profissão de
Fé do Concílio de Trento, começa com uma reafirmação do Credo Niceno,
mas a seguir passa para doutrinas da controvérsia com os protestantes:
II. Admito e abraço mui firmemente as tradições apostólicas e eclesiásticas e todas as
outras observâncias e constituições da mesma Igreja [Católica].
III. Também admito as santas Escrituras de acordo com aquele sentido que a nossa santa
Madre Igreja tem sustentado e sustenta, à qual pertence julgar o verdadeiro sentido e
interpretação das Escrituras; nem jamais os aceitarei e interpretarei de outra maneira senão
de acordo com o consentimento unânime dos Pais...
X. Reconheço a santa Igreja Católica Apostólica Romana como a mãe e senhora de todas as
igrejas e prometo e juro verdadeira obediência ao bispo de Roma, como sucessor de São
Pedro, o príncipe dos apóstolos, e como vigário de Jesus Cristo.²
Desde o Concílio Vaticano II, no início da década de 1960, muitos estudos sérios têm sido
feitos em conjunto por católicos e protestantes com respeito às declarações de Trento. Além
disso, novos estudos têm investigado as doutrinas protestantes que provocaram essas
afirmações da Contra-Reforma, juntamente com as avaliações protestantes de Trento
naquela época (por exemplo, João Calvino reagiu às primeiras sessões e Martin Chemnitz
publicou uma refutação luterana definitiva em quatro volumes). O moderno consenso dos
estudiosos – elaborado com minucioso detalhe particularmente em vários diálogos entre
luteranos e católicos e em obras mais programáticas com títulos como As Condenações da
Era da Reforma: Elas Ainda Dividem?9 – é que um conjunto de divergências básicas do
século XVI, particularmente quanto ao exercício da autoridade papal e da natureza dos
sacramentos, ainda continua essencialmente na mesma situação em que estava há 400 anos
atrás. Todavia, em outras questões, como as acusações protestantes de que Trento afirmou a
salvação pelas obras ou as afirmações católicas de que as noções protestantes de
justificação incentivavam a licenciosidade, os estudiosos modernos tendem a concluir que
9
Karl Lehmann e Wolfhart Pannemberg, eds., The Condemnations of the Reformation Era: Do They Still
Divide? Trad. Margaret Kohl (Mineápolis: Fortress, 1990). Exemplos do diálogo católico romano-luterano
são The Status of the Nicene Creed as Dogma of the Church (Mineápolis: Augsburg, 1965); Justification by
Faith (Mineápolis: Augsburg, 1985); e The One Mediator, the Sainst, and Mary (Mineápolis: Augsburg,
1992). Para uma avaliação equilibrada e bem-documentada das atuais diferenças entre católicos e protestantes
desde uma perspectiva protestante evangélica, ver Norman L. Geisler e Ralph E. MacKenzie, Roman
Catholics and Evangelicals: Agreements and Differences (Grand Rapids: Baker, 1995).
Especialmente nas suas últimas reuniões em 1562 e 1563, o concílio começou a obra de
fortalecer as estruturas da igreja e aperfeiçoar os meios para a promoção dos dogmas da
igreja. Que esse esforço não conduziria ao tipo de reforma promovido pelo protestantes foi
indicado por várias decisões que reafirmaram a posição privilegiada do clero ordenado. Por
exemplo, na eucaristia o cálice foi retido dos leigos e reservado para os sacerdotes.
Todavia, se a reforma católica não iria imitar a reforma protestante, ela no entanto foi uma
obra abrangente em seus próprios termos. Trento estipulou que os bispos deviam fazer
visitas regulares às igrejas de suas dioceses; deviam realizar uma reunião anual para
instrução e encorajamento de todos os oficiais eclesiásticos sob sua autoridade; e deviam
providenciar a criação de um seminário para o treinamento de sacerdotes em cada uma de
suas respectivas jurisdições. Essa última determinação eventualmente criou grandes
oportunidades para ordens como os jesuítas, que se especializaram no ensino, mas a sua
importância mais geral foi tornar os bispos responsáveis por assegurar que os sacerdotes
fossem ao menos moderadamente bem treinados e moderadamente conscienciosos de seus
deveres.
10
Elisabeth G. Gleason, “Catholic Reformation, Counterreformation, and Papal Reform in the Sixteenth
Century,” in Handbook of European History, 2:333. Todo esse ensaio (pp. 317-45) é um útil resumo do seu
tema.
Outras medidas tomadas na última sessão do concílio reafirmaram o valor das indulgências,
mas também criaram rígidos controles para impedir as práticas excessivas de venda de
indulgências que haviam desencadeado o movimento protestante no início do século. O
concílio também reafirmou outros aspectos tradicionais do ensino católico, como a
veneração dos santos. Tomou medidas para definir os limites das leituras aceitáveis,
publicando um índice de livros proibidos. Inovou ao publicar instruções coordenadas
quanto à preparação de novas edições de um catecismo (para os leigos), um missal (para o
culto) e um breviário (para as leituras diárias dos sacerdotes e dos membros das ordens).
Quando concluídos, esses documentos continham uma significativa quantidade de material
bíblico, mas também não deixaram nenhuma dúvida de que o uso da Bíblia devia ser
estritamente controlado pela hierarquia da igreja. Uma ênfase final das últimas sessões de
Trento foi sobre o mandato missionário. A essa altura, muitas das ordens já haviam
começado atividades missionárias muito ampliadas, mas Trento colocou um selo de
urgência sobre os esforços em levar a fé católica para a Ásia, a América do Norte, a
América do Sul e outras regiões muito além das fronteiras da cristandade.
Quando o concílio concluiu o seu trabalho, o papa Pio IV deu aos seus cânones e decretos a
sua plena aprovação. Ele também estipulou que, embora considerasse o concílio em si
mesmo uma fonte de sabedoria divina, a interpretação dos seus decretos e as formas de
implementação dos seus cânones repousavam exclusivamente no ofício papal. Com essas
medidas, o papado associou-se às reformas do concílio, muito embora o papa mantivesse a
sua autoridade central na igreja. Essa astuta iniciativa assegurou que as tensões entre o papa
e o concílio que dominaram a história católica na seqüência do Concílio de Constança, no
início do século XV, não fossem repetidas na seqüência do Concílio de Trento.
Uma importante questão sobre a qual Trento permaneceu essencialmente em silêncio foi a
questão das relações entre a igreja e o estado. Era natural que o concílio optasse por um
silêncio discreto sobre o assunto, pois os esforços do papa Paulo III em reunir um concílio
geral tinham sido frustrados por muitos anos por causa das lutas entre Francisco I da França
e Carlos V, rei da Espanha e sacro imperador romano da Alemanha. Considerado em si
mesmo, Trento pareceu afirmar a superioridade tradicional da esfera sagrada sobre a
secular. Todavia, no desenrolar da história européia, o êxito das reformas de Trento
dependeu crucialmente da assistência de monarcas católicos romanos como Francisco I e
Carlos V, os quais, embora desconfiassem profundamente um do outro, partilhavam do
desejo de reafirmar a unidade católica em suas próprias terras e em toda a Europa.
O Catolicismo Tridentino
Esses esforços de reforma católica foram tão eficazes que as normas definidas no Concílio
de Trento permaneceram poderosamente dominantes em toda a Igreja Católica por quase
400 anos. Em primeiro lugar, Trento deu novo sentido ao centro romano do catolicismo.
Embora o concílio tenha acentuado fortemente o papel dos bispos como o instrumento
primordial de orientação da igreja, a missão dos bispos foi muito mais cuidadosamente
definida como sendo mediadora do ensino de Roma para o povo disperso nas diferentes
localidades. A consolidação romana nunca foi tão sistemática quanto sugeriam os
pronunciamentos papais ou os temores dos protestantes. Mas ela era uma realidade, como
foi indicado pelos próprios títulos que tinham muitos dos documentos fundamentais
aprovados por Trento, quando foram divulgados através do mundo – o Catecismo Romano
(1566), o Breviário Romano (1568) e o Missal Romano (1570). Ao mesmo tempo em que a
Igreja Católica difundiu-se por todos os continentes nos séculos seguintes, um centro
romano mais vigoroso e mais influente continuou a ser o principal legado da renovação
católica do século XVI.
Trento levou a Igreja Católica bem longe na outra direção. Novamente, é possível exagerar
a unidade da doutrina e prática católicas após o concílio, mas, em termos comparativos,
Trento produziu um maior grau de uniformidade do que jamais havia existido na igreja
ocidental. A atenção dada pelo concílio às tarefas dos bispos na supervisão dos fiéis, às
responsabilidades espirituais do papa e à produção de documentos uniformes para a liturgia
e a catequese foram todos fatores tanto unificadores quanto reformadores da igreja. Quanto
a diferentes doutrinas individuais como a justificação, o purgatório ou o sacrifício da missa,
Trento reduziu o espectro de posições católicas admissíveis. Muitas vezes, esse trabalho de
especificação foi feito ao elevar-se uma corrente destacada mas não absolutamente
conclusiva de ensinos anteriores a uma posição oficial da igreja. Por exemplo, o emprego
de categorias filosóficas aristotélicas por Tomás de Aquino para definir a transubstanciação
havia se tornado amplamente aceito na Igreja Católica antes do século XVI, mas não foi
senão em Trento que essa doutrina foi confirmada como o ensino católico acerca do
assunto. O mesmo processo ocorreu na padronização de muitas práticas eclesiásticas como
a confissão auricular, a reafirmação do matrimônio e das santas ordens como sacramentos e
a regulamentação da confirmação.
Além da Europa
Os efeitos duradouros da reforma de meados do século XVI no catolicismo europeu foram
suficientes para torná-la um importante ponto de transição na história do cristianismo.
Todavia, a importância dessas reformas tornou-se ainda maior por causa do seu impacto
sobre o resto do mundo. De fato, em uma perpectiva mais ampla, a reviravolta da Igreja
Católica representada pela fundação de novas ordens, pelo redirecionamento do papado e
pelo Concílio de Trento pode ter sido ainda mais importante para a história mundial do
cristianismo do que foi para a história européia do cristianismo.
Já no primeiro século haviam surgido esforços no sentido de levar a mensagem cristã além
dos mundos do Mediterrâneo e da Europa. Histórias das amplas atividades evangelísticas
dos apóstolos, como o relato da viagem missionária de Tomé até a Índia, dão testemunho
dessa antiga preocupação mundial da igreja. Porém, especialmente com a difusão do
islamismo, o confinamento da igreja oriental em Bizâncio e nos territórios imediatamente
adjacentes e o desenvolvimento do eixo papal-europeu, o potencial mundial da igreja foi
obscurecido nos mil anos anteriores a 1500. O missiólogo David Barrett estimou que, em
1500, por volta de 95% da população cristã do mundo estava concentrada na Europa. A
reforma católica de meados do século XVI marca um ponto de transição
extraordináriamente importante na história do cristianismo porque inspirou um grande
conjunto de iniciativas práticas que começaram a transformar o potencial mundial da fé
cristã em uma realidade.
Para seu eterno crédito, alguns missionários católicos do século XVI defenderam o povo
indígena quando outros europeus não o fizeram. Esta gravura mostra Bartolomé de Las
Casas envolvido nesse esforço.
Dividir a história das nações em blocos de 500 anos simplifica excessivamente a realidade
histórica, mas ainda é possível dizer que o período de aproximadamente 1000 até 1500 foi
mais caracterizado por esforços no sentido de evangelizar os batizados dentro da
cristandade do que em difundir o cristianismo entre novas culturas alheias à igreja. No final
da Idade Média houve alguns esforços missionários significativos além da Europa cristã.
Como vimos, o místico franciscano Raimundo Lull (c. 1233-c. 1315) aprendeu o árabe a
fim de divulgar o cristianismo entre os árabes do norte da África. Todavia, de um modo
geral, a maior parte dos esforços de evangelização nesse período consistiu nos labores de
monges e frades entre a população européia, que freqüentemente era mais cristã de nome
do que de fato.
Por mais que a atividade missionária tenha vindo a caracterizar grande parte
das ordens católicas novas e renovadas, ela recebeu uma atenção ainda mais
sistemática dos agostinianos, dominicanos e jesuítas. Na história da Reforma,
os agostinianos são freqüentemente lembrados como a ordem de Martinho
Lutero e, assim sendo, como contribuintes não intencionais para o início do
protestantismo. Da perspectiva do cristianismo mundial, o mesmo zelo pela
estrita observância que eventualmente levou Lutero para fora da Igreja
Católica também foi importante para inspirar um devotado surto de fervor
missionário. Até 1600, os missionários agostinianos haviam levado a sua
versão do evangelho para o México, Peru, Colômbia e Chile, na América
Latina; para a Índia, China, Málaca e as Filipinas; bem como para o Quênia,
na África, e para a Arábia. Dentro de outro quarto de século, os agostinianos
haviam se estendido mais longe para o Japão, a Pérsia, o Iraque e o Ceilão
(Sri-Lanka).
Leituras Complementares
Brady, Thomas A., Jr., Heiko A. Oberman e James D. Tracy, eds. Handbook
of European History, 1400-1600. 2 vols. Grand Rapids: Eerdmans, 1994-95.
Jedin, Hubert. A History of the Council of Trent. St. Louis: B. Herder, 1957.
Jones, Martin D. W., ed. The Counter Reformation: Religion and Society in
Early Modern Europe. Nova York: Cambridge University Press, 1995.
Meisner, William W., S.J. Ignatius of Loyola: The Psychology of a Saint. New
Haven: Yale University Press, 1992.
12
Citado em Eerdmans Handbook to the History of Christianity (Grand Rapids: Eerdmans, 1977), 411.
Oakley, Francis. The Western Church in the Later Middle Ages. Ithaca, N.Y.:
Cornell University Press, 1979.
O‟Connell, Marvin. The Counter Reformation, 1559-1610. Nova York: Harper
& Row, 1974.
Olin, John C. Catholic Reform from Cardinal Ximenes to the Council of Trent,
1495-1563. Nova York: Fordham University Press, 1990.
O‟Malley, John, S.J. The First Jesuits. Cambridge: Harvard University Press,
1993.
X
A Nova Piedade: A Conversão dos Irmãos Wesley (1738)
A primeira metade do século XVIII testemunhou uma grande produção de hinos no mundo
protestante. No início do século, Isaac Watts (1674-1748) levou a hinódia em língua inglesa
além das paráfrases bíblicas para cânticos mais livres, mais doutrinários e mais ligados à
experiência. Logo, Watts foi seguido pelo maior autor de hinos na história da língua
inglesa, Carlos Wesley, e então por uma série de outros que tornaram os hinos o
instrumento mais poderoso do despertamento evangélico do século XVIII na Inglaterra. Na
mesma época, uma criatividade semelhante estava ocorrendo na Europa, onde o gênio sem
precedentes revelado na música eclesiástica de Johann Sebastian Bach (1685-1750) foi
seguido de um florescimento geral da música sacra. Uma das evidências mais claras dos
laços que uniram o evangelicalismo da Inglaterra e o pietismo da Europa, que é o tema
deste capítulo, foi a cooperação na produção de hinos. Em 1740, João Wesley traduziu para
o inglês um hino que o conde Nicolaus Ludwig von Zinzendorf (1700-1760), o líder dos
morávios, havia publicado somente um ano antes. A sua ênfase na obra redentora de Cristo,
bem como na experiência libertadora da salvação, ilustrou alguns temas centrais do
reavivamento religioso daquele século.
Era segunda-feira, 2 de abril de 1739. A cidade era Bristol, um porto marítimo em rápida
expansão e próspero centro manufatureiro na costa da Inglaterra. A população operária de
Bristol estava confinada em casas úmidas nas ruas escuras e estreitas. Os serviços
assistenciais da cidade haviam sucumbido. Suas igrejas antigas e elegantes estavam
fracassando inteiramente no sentido de manter contato com a população ou suprir as suas
necessidades espirituais. Já haviam rompido distúrbios em protesto contra as precárias
condições de vida da cidade e eles se repetiriam regularmente durante todo o século XVIII.
13
The Works of John Wesley, vol. 7, A Collection of Hymns for the Use of the People Called Methodists, eds.
Franz Hildenbrandt e Oliver A. Beckerlegge (Nashville: Abingdon, 1983, 309-11).
Naquele dia e naquele lugar, um homem estranho fez uma coisa estranha. O homem era
baixo, tinha cerca de 1,60m e era forte. Ele movia-se como se fosse impulsionado por uma
energia obstinada. O que o tornava estranho em Bristol eram os seus antecedentes. Ele era
um ministro anglicano e o filho de um ministro anglicano em um lugar em que a igreja
nacional da Inglaterra tinha essencialmente deixado de dar assistência espiritual às pessoas
comuns. Na política, ele era um “tory” ou conservador que mais tarde denunciaria a
Revolução Americana como um ataque pecaminoso contra a ordem social dada por Deus.
Ele também era um graduado da Universidade de Oxford numa época em que menos de 1%
dos jovens ingleses com idade para estudos superiores tinham o privilégio de freqüentar
uma universidade. Muitos dos trabalhadores de Bristol até então provavelmente nunca
haviam visto de perto um graduado de Oxford.
O que esse homem estranho fez foi ainda mais inquietante. Na Inglaterra do século XVIII,
havia rígidas convenções para todas as áreas da vida. Elas eram especialmente rigorosas no
que diz respeito às igrejas. Os pastores anglicanos locais deviam ter o completo controle de
todas as atividades espirituais de suas paróquias. Os batistas, os congregacionais e os
presbiterianos precisavam de licenças especiais simplesmente para realizar cultos. Os
católicos sofriam restrições ainda mais rigorosas. Nenhum indivíduo que não fosse membro
da Igreja da Inglaterra podia ser vereador em Bristol ou em qualquer outro lugar da
Inglaterra. A Igreja Anglicana e o estado inglês trabalhavam intimamente no sentido de
guiar a população. Umas das convenções religiosas mais absolutas era que a pregação
ocorria aos domingos e era feita nas igrejas. Qualquer outra coisa era incendiária e fanática.
Pregar ao ar livre era uma coisa virtualmente desconhecida. Se ocorresse, era considerada
revolucionária.
Mas naquela segunda-feira de abril ocorreu algo novo e muito importante para toda a
história do cristianismo – especialmente em sua expressão protestante. O ministro sabia o
que estava fazendo. Aqui está, com sua característica economia de palavras, o modo como
ele o registrou em seu diário:
O pregador era João Wesley (1703-1791). A fim de pregar o evangelho aos pobres, ele
estava disposto a romper com as convenções religiosas que também caracterizam sua
própria vida bem disciplinada. A fim de levar uma mensagem de “libertação, restauração e
liberdade” em Cristo a pessoas que nunca tinham ouvido essa mensagem, Wesley pregaria
ao ar livre e “se sujeitaria a ser mais desprezível.” Quando ele deu esse importante passo,
14
The Journal of the Rev. John Wesley, 8 vols. (Londres: Epworth, 1938), 2:172-73.
João Wesley não estava só, pois seu irmão, o autor de hinos Carlos Wesley (1707-1788),
também foi um parceiro integral de seus empreendimentos.
Em vários aspectos importantes, os irmãos Wesley foram os mais eficazes proponentes da mensagem básica
da Reforma nos dois séculos posteriores ao surgimento do protestantismo através da obra de Martinho Lutero,
João Calvino, Menno Simons e Thomas Cranmer. Em outros aspectos, os Wesley foram modificadores da
mensagem da Reforma. Tanto ao preservar quanto ao modificar a mensagem dos primeiros protestantes, a
obra dos Wesley manteve viva a mensagem da graça de Deus e ampliou grandemente o seu alcance. Porém,
suas modificações das tradições protestantes – juntamente com as inovações do seu colega anglicano George
Whitefield (1714-1770) – provavelmente foram o fator isolado que mais contribuiu para transformar a
Gin Lane, a sátira mordaz de William Hogarth, descreve muitos males da Inglaterra urbana
do século XVIII contra os quais os primeiros metodistas também se opuseram.
Wesley também fez alterações tanto doutrinárias quanto práticas na herança protestante. Ele
era um arminiano que, ao contrário da maior parte de seus predecessores protestantes,
sustentava que Deus em sua graça restaurou o livre arbítrio à humanidade perdida. João e
Carlos Wesley também ensinaram que os crentes podiam perder a salvação através do
pecado deliberado e impenitente. Além disso, eles ensinaram que os cristãos deviam
esforçar-se para alcançar um estágio de “perfeição cristã.” Essa perfeição não significava
uma pureza absoluta, e sim que os cristãos podiam esperar ficar livres de todo pecado
consciente em pensamento, palavra e ação. Finalmente, os irmãos Wesley também deram
grande ênfase à obra do Espírito Santo. Embora nenhuma dessas contribuições doutrinárias
fosse inteiramente nova, elas representaram diferenças em relação ao ensino protestante
tradicional. Assim como as práticas wesleyanas têm continuado a moldar a vida protestante,
assim também as suas ênfases doutrinárias – seja em denominações inteiras como os
Por importante que tenham sido as adaptações feitas pelos Wesley no protestantismo
tradicional, eles também marcaram um importante ponto de transição na história da igreja
por causa da proporção da herança protestante que eles retiveram. Os Wesley viveram num
mundo que estava mudando com uma velocidade sem precedentes – tanto na reorganização
da vida econômica quanto na produção de novas idéias, tanto na renovação da política
quanto na reconceptualização do indivíduo. Todavia, no caldeirão de mudanças que a
Europa veio a ser durante o século XVIII, os Wesley mantiveram laços seguros com a
Reforma Protestante. Ainda mais importante, como herdeiros de movimentos protestantes
anteriores, João e Carlos Wesley reafirmaram vigorosamente a mensagem central do
protestantismo: sola gratia, sola fide, sola Scriptura – a salvação era somente pela graça e
somente através da fé, conforme comunicada com perfeita autoridade nas Escrituras.
Essas verdades da Reforma também eram as realidades vivas que muito representavam para
João e Carlos Wesley. Os detalhes da sua própria conversão mostram claramente os seus
laços com a Reforma. No dia 17 de maio de 1738, Carlos Wesley e um amigo começaram a
ler juntos o comentário de Lutero sobre a Epístola aos Gálatas. Eles acharam o livro
“nobremente cheio de fé.” Quatro dias depois, Carlos Wesley pode finalmente dizer:
“Agora eu me achava em paz com Deus e me regozijava na esperança de amar a Cristo.”15
Ainda mais notável foi a experiência evangélica de João Wesley e o papel da Reforma
nessa experiência. Wesley havia voltado recentemente de uma aventura missionária
fracassada na América. Embora ele já fosse conhecido pela seriedade da sua abordagem
“metódica” à prática do bem, esse religioso angustiado ainda carecia da certeza de que
Deus havia perdoado os seus pecados em Cristo. Então, em 24 de maio de 1738, somente
uma semana depois que seu irmão havia começado a ler o comentário de Lutero sobre
Gálatas, João Wesley também recebeu um novo senso da graça de Deus. São essas as
memoráveis palavras do seu diário: “À noite fui muito a contragosto a uma sociedade
[reunião] na rua Aldersgate, onde alguém estava lendo o prefácio do comentário de Lutero
sobre a Epístola aos Romanos. Por volta de quinze minutos para as nove, enquanto ele
estava descrevendo a mudança que Deus opera no coração através da fé em Cristo, eu senti
o meu coração estranhamente aquecido. Eu senti que confiava em Cristo, em Cristo
somente, para a minha salvação; e foi-me dada a certeza de que ele havia levado os meus
pecados, os meus próprios, e me havia salvo da lei do pecado e da morte.”16
15
Citado em A. Skevington Wood, The Inextinguishable Blaze: Spiritual Renewal and Advance in the
Eighteenth Century (Grand Rapids: Eerdmans, 1960), 109.
16
Journal of John Wesley, 1:475-76.
Santa Maria, em Oxford, em 11 de junho de 1738, menos de três semanas após a sua
marcante experiência em Aldersgate.
Através dos altos e baixos de suas vidas muito ativas e enquanto se envolviam em um
número considerável de controvérsias traumáticas, João e Carlos Wesley nunca deixaram
de lado o seu tema principal: a livre graça de Deus salva os pecadores.
Inúmeros estudiosos têm avaliado a influência dos Wesley. Todavia, a extensão do seu
impacto pode ser sentida por qualquer pessoa que já tenha freqüentado uma igreja
protestante por algum tempo. Quando os cristãos de língua inglesa reúnem-se para o culto,
os hinos que invocam mais poderosamente a graça de Deus manifesta em Jesus Cristo são
hinos escritos por Carlos Wesley:
17
Ibid., 7:113.
E também na Páscoa:
Na realidade, nem os Wesley nem os metodistas ingleses agiram sozinhos. Eles foram
somente os líderes ingleses mais visíveis de um movimento mais amplo de renovação
pietista que, tendo começando no final do século XVII, eventualmente se estendeu desde
a Europa Central até a América do Norte. O que eles representaram, juntamente com
outros evangélicos e pietistas, foi uma série de ênfases que mudaram a face do
protestantismo. A fim de entender-se a natureza dessa mudança, é importante observar
como a configuração do evangelicalismo inglês seguiu algumas correntes semelhantes
que estavam atuando no protestantismo continental e depois considerar com um pouco
mais de detalhes como as correntes evangélica e pietista se inserem dentro dos
desdobramentos mais amplos da igreja cristã nos séculos XVII e XVIII.
O Pietismo no Continente
O metodismo dos Wesley e de outros evangelistas de mentalidade semelhante poderia ser
considerado a fase britânica de um movimento mais geral das igrejas protestantes da
Europa. O historiador inglês W. R. Ward tem sido um dos principais pesquisadores da
densa rede de conexões e interesses comuns que ligaram os pietistas do continente, os
evangélicos da Inglaterra e os reavivalistas da fronteira americana. 18 O principal desses
laços foi uma aspiração comum por uma religião mais diretamente pessoal e uma
resistência comum aos esforços dos regimes de igrejas estatais, tanto católicos quanto
protestantes, no sentido de exercer um controle mais estrito sobre suas populações locais.
Tanto é assim que uma visão panorâmica do movimento pietista da Alemanha, surgido uma
geração antes de Wesley, apresenta muitos dos temas, questões, problemas e soluções que
também caracterizaram a obra de João Wesley, Carlos Wesley, George Whitefield e seus
companheiros na Inglaterra.
Nos dias de Wesley, “metodista” era um termo geral que incluía indivíduos que mais tarde tornaram-se parte
da denominação metodista (como João Wesley), alguns que, com sua teologia arminiana, permaneceram na
Igreja da Inglaterra (como Carlos Wesley) e outros que defenderam uma forte mensagem calvinista, seja na
Igreja da Inglaterra (como George Whitefield), na Igreja de Gales (como Howell Harris) ou nas igrejas
dissidentes separadas da igreja estabelecida (como os que eventualmente seriam denominados metodistas
galeses).
18
Uma obra especialmente importante de W. R. Ward é The Protestant Evangelical Awakening (Nova York:
Cambridge University Press, 1992).
Na realidade, o quadro religioso não era inteiramente sombrio. Algumas influências vindas
de fora das terras alemãs estavam encorajando uma fé e prática cristãs mais dinâmicas. Um
novo surto de vida piedosa e teologia saudável ocorrido na Holanda transbordara para o
norte da Alemanha. Obras devocionais de puritanos ingleses como Richard Baxter (1615-
1691) e John Bunyan (1628-1688) estavam sendo traduzidas para o alemão. Havia também
um interesse renovado em alguns dos escritos cristãos místicos da Idade Média. Na própria
Alemanha, uma fé mais vigorosa fora promovida pelos escritos de Johann Arndt (1555-
1621), cuja obra O Verdadeiro Cristianismo (1606) se tornaria uma importante influência
sobre os pietistas posteriores, e os comoventes hinos de Philip Nicolai (1556-1608), como
“Desperta, desperta, a noite está passando."
Todavia, em muitos lugares esses sinais de vida espiritual eram obscurecidos pelo
formalismo e insinceridade de líderes eclesiásticos. Essa sombria situação geral foi o
contexto da obra incansável de Philipp Jakob Spener (1635-1705), que é freqüentemente
denominado “o pai do pietismo.” Nascido perto de Estrasburgo e educado naquela cidade e
em outras parte do continente, ele foi convidado em 1666 para ser o principal ministro de
Frankfurt am Main. Ali, além da sua pesada agenda de deveres oficiais, ele renovou as
estruturas voltadas para a educação e a confirmação dos jovens, apelou por reformas morais
na cidade, e iniciou uma vasta correspondência com governantes e outros líderes que
eventualmente conquistaram-lhe o título de “conselheiro espiritual de toda a Alemanha.”
O que é mais importante, Spener também promoveu uma grande reforma na vida prática
das igrejas. Em um sermão de 1669, ele mencionou a possibilidade de que os leigos se
reunissem, pusessem de lado seus “cálices, cartas ou dados,” e encorajassem uns aos outros
na fé cristã.19 No ano seguinte, o próprio Spener instituiu um desses colegia pietatis
(assembléia piedosa). O grupo se reunia nas quartas-feiras e domingos na casa de Spener
para orar, discutir o sermão da semana anterior e aplicar passagens das Escrituras e de
escritos devocionais às suas vidas. Duas gerações mais tarde, João Wesley iria modificar a
inovação de Spener, tornando-a o fundamento para o sistema de classes (ou pequenos
grupos interligados), que tornaram-se a marca registrada espiritual do metodismo.
19
Theodore G. Tappert, introdução a Philip Jakob Spener, Pia Desideria (Filadélfia: Fortress, 1964), 13.
Todas as citações de Pia Desideria nos próximos parágrafos são extraídas dessa tradução inglesa.
Essas propostas deram ímpeto a esforços de reforma e renovação entre muitos religiosos e
leigos. Elas também criaram duas dificuldades que têm continuado a perturbar a religião
pietista e evangélica. Em primeiro lugar, elas sofreram oposição de alguns clérigos e
teólogos profissionais. Alguns deles somente estavam preocupados em preservar a sua
autoridade tradicional, mas outros viam perigos de forte subjetividade e anti-
intelectualismo nas propostas populistas de Spener. Em segundo lugar, alguns leigos
entenderam as propostas de Spener como uma autorização para se afastarem inteiramente
das igrejas tradicionais. Embora Spener tenha rejeitado firmemente as conclusões
separatistas ou sectárias que outros tiraram de suas propostas, ele nem sempre teve êxito em
controlar aqueles que criticavam as igrejas tradicionais. De igual modo, João Wesley
esperava que as suas sociedades metodistas seriam um valioso auxílio para a Igreja da
Inglaterra, mas ele viveu para testemunhar a formação de uma nova denominação metodista
que separou-se daquela igreja.
Spener deixou Frankfurt e foi para Dresden em 1686; dali ele foi chamado para Berlim em
1691. O seu período em Dresden foi tumultuado e afligido por várias controvérsias. Antes
do final daquela década, o corpo de professores da universidade de Lutero, a Universidade
de Wittenberg, iria acusar Spener de 284 erros doutrinários. Todavia, a sua estadia em
Dresden não foi desperdiçada, pois ali ele conheceu o indivíduo que se tornaria o seu
sucessor, August Hermann Francke (1663-1727). Mais tarde, Spener ajudou a fundar a
Universidade de Halle (perto de Berlim), para a qual Francke foi chamado em 1691. Sob a
direção de Francke, a Universidade de Halle mostrou o que o pietismo podia significar
quando colocado em prática. Na época de Francke, Halle de fato tornou-se uma inspiração
para a renovação protestante e a obra protestante em toda a sociedade ocidental.
Francke começou o seu amplo trabalho prático transformando a sua própria casa, em 1695,
numa escola para crianças pobres. No ano seguinte, ele fundou um orfanato que tornou-se
mundialmente famoso e estabeleceu um instituto para o treinamento de professores. Mais
tarde, ele influenciou o estabelecimento de uma casa publicadora, uma clínica médica e
outras instituições. Para entender-se a importância dessas iniciativas pietistas na sociedade,
é importante lembrar que, quando George Whitefield foi para a Geórgia em 1738, a tarefa
oficial desse famoso pregador itinerante era atuar como diretor de um orfanato, uma obra
inspirada pelo exemplo de Francke em Halle.
O próprio Francke havia tido uma conversão dramática em 1687. Por sua vez, o seu vasto
trabalho missionário pioneiro resultou do desejo de dar a outros que ainda não haviam
ouvido o Evangelho a oportunidade de se converterem. Sob a orientação de Francke,
pietistas treinados em Halle tornaram-se os primeiros protestantes a se envolverem em um
amplo trabalho missionário transcultural. A universidade estabeleceu um centro para o
estudo de línguas orientais e também promoveu a tradução da Bíblia para línguas não-
ocidentais. A influência missionária de Francke foi sentida tanto diretamente, através de
obreiros que foram de Halle para os campos estrangeiros, quanto indiretamente, através de
grupos como os morávios e uma dinâmica missão dinamarquesa que recebeu inspiração e
orientação da parte dos líderes do pietismo.
Como foi indicado acima, o pietismo teve uma influência formativa sobre João Wesley,
muito embora ele tenha vindo a romper com os morávios no início da década de 1740.
Durante a sua estadia na Geórgia de 1735 a 1737 e após o seu retorno para a Inglaterra, os
contatos diretos de Wesley com vários morávios desempenhou um papel central na sua
descoberta da graça ativa de Deus. A despeito dessas conexões, Wesley eventualmente veio
a sentir que a espiritualidade pietista incorporava um excessivo misticismo e que a
sensibilidade pietista não conduzia a um suficiente envolvimento em causas cristãs. No
entanto, a despeito de diferenças posteriores, a dívida de Wesley para com os pietistas –
conforme foi demonstrado por suas visitas à Alemanha e por suas traduções de hinos
alemães escritos por Zinzendorf e outros pietistas – continuou sendo substancial.
O mundo da Europa do século XVIII não era mais o mundo em que nascera a Reforma
Protestante. Outrora, no século XVI, simplesmente se pressupunha que em qualquer região
devia haver uma única igreja unificadora. Agora, no século XVIII, crescia a pressão em
favor da idéia de que os regimes podiam tolerar religiões minoritárias, e nas colônias
européias do Novo Mundo ouvia-se a idéia radical de que várias igrejas podiam coexistir
com plenos direitos civis em um mesmo lugar.
Outrora, a leitura da Bíblia, mesmo entre os protestantes que colocaram a autoridade das
Escrituras acima de todas as outras autoridades, era quase que universalmente reconhecida
como uma atividade comunitária. Lutero, Calvino e os outros protestantes iniciais queriam
que os leigos e leigas lessem a Bíblia por si mesmos, mas eles ainda assim esperavam que
as interpretações bíblicas feitas por religiosos cultos e piedosos (como eles mesmos) fossem
aceitas pelos fiéis. Agora, a leitura da Bíblia estava rapidamente tornando-se uma atividade
solitária que dividia as comunidades ou invés de uni-las. Antes de 1700, intérpretes
seculares inovadores já estavam começando a questionar a autoridade divina especial das
Escrituras, enquanto que, de outra parte, mais e mais leitores sectários estavam rejeitando
os padrões históricos de interpretação aceitos pelas igrejas.
Outrora, a única parte do mundo que a maioria dos europeus conhecia ou com a qual se
importava era a Europa. Agora, os contatos com não-europeus, os esforços em colonizar
regiões distantes e o comércio com várias regiões não-ocidentais estavam se multiplicando
de todos os lados.
Embora estivessem quase que incessantemente em ação, aqui Carlos e João Wesley estão
imobilizados nos vitrais da Grace Methodist Church, em Wilmington, Carolina do Norte.
Em outras palavras, havia grandes diferenças entre a Europa do século XVI e a Europa do
século XVIII. Nessas circunstâncias gerais, os evangélicos e os pietistas ocuparam-se de
duas tarefas. Eles resgataram alguns elementos do passado protestante – especialmente a
sola Scriptura, a ênfase na graça, e o sacerdócio de todos os crentes. Com esses elementos
eles buscavam um cristianismo mais genuíno ou o que, naquela época, muitas pessoas em
todo o norte da Europa e na América do Norte chamavam de “verdadeira religião.” Mas
eles também interpretaram criativamente esses compromissos religiosos em meio a
circunstâncias sociais muito diferentes das condições nas quais o protestantismo havia
nascido.
Embora Spener, Francke, Whitefield e os irmãos Wesley fossem todos leais, pelo menos até
certo ponto, às igrejas estatais protestantes nas quais haviam nascido, todos também
estavam prontos para experimentar certas práticas religiosas que repudiavam ou
negligenciavam as relações tradicionais entre a igreja e o estado. Assim sendo, os collegiae
pietatis dos pietistas visavam fortalecer o trabalho regular da igreja estatal, mas eles o
fizeram criando uma alternativa para as estruturas da igreja estatal. Para os morávios, foi
um passo simples deixar inteiramente de lado as conexões com a igreja estatal. Na
Inglaterra, tanto os Wesley como Whitefield estavam plenamente satisfeitos com a sua
ordenação anglicana. Porém, de diferentes maneiras as suas inovações também
enfraqueceram os laços com a igreja tradicional, à medida que eles exploravam as novas
condições da sociedade do século XVIII. Os primeiros metodistas logo tornaram-se mestres
de procedimentos ditados mais pelas necessidades do seu tempo do que pela herança da
igreja. Por exemplo, Carlos Wesley escreveu hinos para reuniões da sociedade que tinham
apenas uma tênue conexão com a igreja oficial. João Wesley foi zeloso na criação de
sociedades religiosas de assistência social desligadas da igreja. George Whitefield foi ainda
mais inovador. Ele foi um verdadeiro gênio como “promotor” do Evangelho no novo
mercado competitivo do Império Britânico, onde a capacidade de atrair uma multidão e
chamar a atenção para um “produto” estava começando a valer mais do que a deferência
aos padrões tradicionais de “consumo” oferecidos pela igreja oficial. Além disso, a
capacidade de Whitefield em usar a florescente imprensa da sua época como veículo para
20
Ver especialmente Harry S. Stout, The Divine Dramatist: George Whitefield and the Rise of Modern
Evangelicalism (Grand Rapids: Eerdmans, 1991); e Frank Lambert, Pedlar in Divinity: George Whitefield
and the Transatlantic Revivals, 1737-1770 (Princeton: Princeton University Press, 1994).
21
Sobre a conexão entre o iluminismo e o evangelicalismo, estou seguindo a interpretação de David W.
Bebbington, Evangelicalism in Britain: A History from the 1730s to the 1980s (Londres: Unwin Hyman,
1989), 20-74.
Em muitas outras regiões, o evangelicalismo ou pietismo, ainda que não fosse tão
dominante, havia se tornado um componente importante das igrejas protestantes e muitas
vezes uma influência significativa na sociedade. Esses lugares incluíam a Holanda, a
Inglaterra, as Terras Baixas da Escócia, o Alto Canadá (agora Ontário), muitas regiões da
Alemanha e Escandinávia, algumas partes da Suíça e algumas localidades da Europa
oriental.
Essas novas formas de protestantismo partilhavam das ênfases que haviam inspirado os
movimentos pietista e evangélico, mas, por serem movimentos que se adaptavam a
situações locais, também diferiam dramaticamente entre si. Na teologia, os evangélicos e
pietistas podiam abraçar posições luteranas, calvinistas, arminianas ou uma incrível
variedade de posições intermediárias em questões referentes às ações de Deus e dos seres
humanos no processo da salvação. Em suas concepções a respeito da igreja, alguns
apoiavam as formas tradicionais anglicanas, presbiterianas ou luteranas, enquanto que
outros queriam romper com todas as autoridades eclesiásticas tradicionais. Na política, os
evangélicos dos Estados Unidos tendiam a ser republicanos e muitas vezes até mesmo
opositores democráticos da monarquia, mas na Inglaterra, Alemanha, Escandinávia e Nova
Escócia os seus pares religiosos estavam muito mais propensos a apoiar as monarquias
herdadas ou a renunciar inteiramente à política, do que a favorecer seja o republicanismo
ou a democracia. Portanto, não é surpreendente que alguns evangélicos e pietistas achassem
que a sua forma de fé resgataria a “cristandade,” enquanto que outros achavam que ela
tornava a cristandade supérflua. Semelhantemente, em suas atitudes para com a vida do
intelecto, alguns eram ardentemente intelectuais, ao passo que outros suspeitavam do
raciocínio formal como uma ameaça à fé.
A questão importante a destacar quanto a essas diferenças é que elas resultaram em grande
parte de esforços para amoldar as características herdadas do cristianismo às novas
realidades criadas pelas transformações sociais da Europa e pelos desdobramentos
ocorridos nas igrejas estatais européias. Todavia, a despeito de uma série de diferenças em
política, práticas sociais, atitudes para com o intelecto e outras questões, os evangélicos e
os pietistas na realidade compartilhavam um conjunto de convicções religiosas básicas
amplamente reconhecidas. Duas delas eram especialmente importantes. Primeiramente, os
evangélicos e os pietistas eram decididamente protestantes no seu apego às Escrituras. Eles
podiam diferir entre si quanto ao significado da Bíblia, mas as Escrituras continuavam a ser
uma âncora indisputável. O ministério de Spener se desenvolveu em torno de uma dinâmica
aplicação da Bíblia às vidas das pessoas comuns, ao passo que João Wesley orgulhava-se
de ser um homo unius libri (homem de um só livro). Em segundo lugar, os evangélicos e os
pietistas partilhavam a convicção de que a verdadeira religião exigia uma experiência
pessoal com Deus. Eles podiam oferecer muitas normas diferentes para essa experiência e
um número ainda maior de maneiras de harmonizar a experiência de Deus com a razão, a
tradição e as hierarquias, mas o caráter experimental da fé permaneceu essencial.
A intensidade desses dois compromissos – que se fundiam naquilo que poderia ser
chamado de biblicismo experimental – levou a três outras características. Em primeiro
lugar, os evangélicos e os pietistas tinham um preconceito (às vezes apenas leve, outras
vezes intenso) contra instituições herdadas. Por exemplo, somente no século XVIII a senha
protestante sola Escriptura ou “somente a Bíblia” começa a significar “nenhuma autoridade
senão a Bíblia,” em vez do significado “nenhuma autoridade acima da Bíblia” que havia
prevalecido anteriormente no protestantismo. Em segundo lugar, os evangélicos e os
pietistas fizeram da flexibilidade com respeito às condições intelectuais, políticas, sociais e
econômicas um princípio. Muitas tradições referentes à igreja, política, liturgia, hinódia e
oração que haviam sido tratadas na história protestante anterior como colunas necessárias
da fé agora ficaram abertas à negociação. Em terceiro lugar, os evangélicos e os pietistas
praticaram o que o historiador Daniel Walker Howe chamou de disciplina.22 O seu
biblicismo experimental poderia levar por muitos caminhos diferentes a princípios de
conduta para o indivíduo e para os outros, mas esses princípios visavam ser internalizados,
eles visavam promover a santidade pessoal e o serviço social adequado.
22
Daniel Walker Howe, “The Evangelical Movement and Political Culture in the North during the Second
Party System,” Journal of American History 77 (Março 1991): 1216-39.
Leituras complementares
Baker, Frank, ed. Representative Verse of Charles Wesley. Nashville: Abingdon, 1962.
Bebbington, David W. Evangelicalism in Modern Britain: A History from the 1730s to the
1980s. Londres: Unwin Hyman, 1989.
Erb, Peter C., ed. Pietists: Selected Writings. Nova York: Paulist, 1983.
Heitzenrater, Richard P. Wesley and the People Called Methodists. Nashville: Abingdon,
1995.
Jeffrey, David Lyle, ed. English Spirituality in the Age of Wesley. Grand Rapids: Eerdmans,
1987.
23
The New Oxford Book of Christian Verse, ed. Donald Davie (Nova York: Oxford University Press, 1981),
200-201.
Outler, Albert C., ed. John Wesley. Nova York: Oxford University Press, 1964.
Rack, Henry D. Reasonable Enthusiast: John Wesley and the Rise of Methodism. Nova
York: Trinity Press International, 1989.
Stoeffler, F. Ernst. German Pietism during the Eighteenth Century. Leiden: E. J. Brill,
1973.
Whaling, Frank, ed. John and Charles Wesley: Selected Prayers, Hymns, Journal Notes,
Sermons, Letters, and Treatises. Nova York: Paulist, 1981.
XI
Os Descontentes do Ocidente Moderno: A Revolução Francesa (1789)
Um dos hinos mais populares nas regiões do mundo onde se fala o inglês foi escrito um
pouco antes dos eventos tumultuosos da Revolução Francesa. “Saudai o nome de Jesus” foi
publicado no número de abril de 1780 da revista Gospel Magazine, um periódico inglês
dedicado aos valores do reavivamento evangélico associado com os irmãos Wesley, George
Whitefield e seus diversos aliados. O autor era Edward Perronet (1726-1792), cuja
biografia, bem como o material bíblico que utilizou no hino, refletem alguns temas
importantes daquela época. Perronet era descendente de uma família huguenote que havia
sido forçada a fugir da perseguição na França. Ele era um ardente promotor de reformas,
mas o fez enquanto mudava de uma comunidade para outra, passando por igrejas
metodistas, anglicanas e congregacionais. Seu uso vívido de imagens bíblicas extraídas dos
profetas e do Apocalipse deu ênfase ao dinamismo, poder e âmbito mundial do reino de
Jesus. Portanto, o hino fala dos conflitos, expansão, perseguições e zelo reformador que
eram elementos tão importantes da vida cristã européia nas tumultuadas décadas anteriores
e posteriores à Revolução Francesa.24 Os versos abaixo foram traduzidos pelo Rev. Justus
Henry Nelson (1849-1931), um missionário metodista que trabalhou por quarenta e cinco
anos em Belém do Pará, e encontram-se no Hinário Presbiteriano.
Ó escolhida geração
De Deus, o eterno Pai,
Ao grande Autor da Salvação
Com glória coroai!
24
Informações extraídas de The Penguin Book of Hymns, ed. Ian Bradley (Londres: Penguin, 1990), 19-21.
revolução, a Catedral havia recebido o novo nome de Templo da Razão. Uma montanha de
papel machê com motivos greco-romanos foi colocada na nave. O historiador Simon
Schama descreve o que aconteceu a seguir: “A Liberdade (representada por uma cantora da
Ópera), vestida de branco, usando o gorro frígio e segurando uma lança, inclinou-se diante
da chama da razão e sentou-se em um banco de flores e plantas.”25 Esse “culto” às avessas
foi um dos pontos culminantes do programa de descristianização da Revolução Francesa,
através do qual os líderes da Revolução tentaram lançar fora o que eles entendiam ser a
mão pesada e morta da igreja. Em Paris, os revolucionários deram novos nomes a 1400
ruas, a fim de eliminar as referências tanto aos santos quantos aos monarcas. Sacerdotes,
bispos e outros religiosos foram forçados a deixar os seus postos. Foi feito um amplo
esforço para extirpar a antiga ligação entre a França e a Igreja Católica Romana. Como
Alexis de Tocqueville escreveu mais tarde, a animosidade contra o cristianismo quase não
teve limites: “Na França... o cristianismo foi atacado com uma violência quase frenética, e
não houve a preocupação de substituí-lo por outra religião. Foram feitos esforços
apaixonados e persistentes para afastar as pessoas da fé de seus pais, mas, uma vez a
tivessem perdido, nada foi oferecido para preencher o vazio interior... Não há nenhuma
dúvida de que o descrédito generalizado quanto a todas as formas de crença religiosa,
predominante no final do século XVIII, teve uma influência preponderante no curso da
Revolução Francesa. Esta foi, de fato, a sua característica mais saliente e nada contribuiu
tanto para chocar os observadores contemporâneos.”26
25
Simon Schama, Citizens: A Chronicle of the French Revolution (Nova York: Knopf, 1989), 778.
26
Alexis de Tocqueville, The Old Régime and the French Revolution, trad. Stuart Gilbert (Garden City, NY:
Doubleday, 1955 [orig. 1856], 149, 155-56.
instituição e nenhum indivíduo pode exercer uma autoridade que dela não emane
expressamente.”27 O mundo europeu como antes havia existido estava começando a
desaparecer.
Uma gravura da época mostra a atriz que representava a Deusa da Razão sendo “cultuada”
pelos jacobinos na Catedral de Notre Dame.
O conceito positivo de Miller sobre a Revolução Francesa representava uma versão cristã
do que era então um sentimento comum entre muitos europeus sensíveis. Parecia que
finalmente a sociedade estava sendo direcionada para o bem de toda a coletividade, ao
invés do benefício particular de uma minúscula elite de reis, nobres e bispos. Finalmente,
“o povo” havia se apossado do poder que era seu de direito. “Felicidade era estar vivo
naquele alvorecer,” escreveu o poeta William Wordsworth, que viveu na França durante os
primeiros anos da Revolução,
Mas se esse foi o melhor dos tempos, foi também, como Charles Dickens expressou na
memorável linha inicial de Uma História de Duas Cidades, o pior dos tempos. Mesmo
antes de a Revolução cometer seus excessos sanguinários, Edmund Burke, observando a
situação a partir da Inglaterra, teve uma sinistra premonição: “Mas o que é a liberdade sem
sabedoria e sem virtude? É o maior de todos os males possíveis; pois é loucura, vício e
27
Paul Harold Beik, ed., The French Revolution (Nova York: Walker, 1970), 95.
28
Samuel Miller, Christianity the Grand Source, and the Surest Basis, of Political Liberty (Nova York:
Thomas Greenleaf, 1793), 30-31.
29
William Wordsworth: Selected Poems and Prefaces, ed. Jack Stillinger (Boston: Houghton Miffilin, 1965),
332-33.
O registro dos eventos posteriores a 1789 foi de fato atemorizante. Muitos traumas e
cataclismas sucederam-se com impressionante rapidez. A rejeição da deferência, das
tradições e do governo das elites hereditárias produziu novas fontes de opressão ao invés do
florescimento da liberdade. A violência indiscriminada orquestrada pelos novos
governantes ridicularizou as visões de igualdade. O florescimento da ideologia,
especialmente entre os jacobinos de esquerda, deu um sentido sinistro às noções de
fraternidade. Centenas de pessoas politicamente suspeitas foram executadas de uma só
investida em setembro de 1792. Nesse mesmo ano tiveram início guerras promovidas pelos
“exércitos de cidadãos” da França que mudaram para sempre a face da Europa. A execução
do rei Luís XVI e da rainha Maria Antonieta em janeiro de 1793 chocou quase tanto os
europeus quanto o fizera a execução do rei Carlos I da Inglaterra pelos puritanos 144 anos
antes. De setembro de 1793 a julho de 1794 o Comitê de Segurança Pública governou por
meio do “terror,” que levou à morte dezenas de milhares de pessoas. Maximilien
Robespierre, que orquestrou esse terror, usava expressões como “o amor pela pátria” e “o
interesse geral” para justificar tais ações. Líderes carismáticos como Robespierre
dedicaram-se com um zelo espartano à busca da virtude, mas o resultado foi um avanço
cada vez mais rápido para a guilhotina. A Assembléia Nacional aprovou resmas de leis
ambiciosas, propondo-se literalmente a remodelar o mundo. Parte dessa legislação
envolveu o programa de descristianização.
Em face de tais excessos, a reação foi inevitável. Essa reação veio a coincidir com a
desmedida ambição de um jovem e ousado general. Rapidamente, esse general foi exaltado
à posição de primeiro cônsul e depois de imperador Napoleão. Até a sua derrota final em
1815 pelos exércitos coligados da Europa, ele iria ampliar a destruição e as guerras sem
precedentes iniciadas pelo Exército Revolucionário da França em 1792.
Uma avaliação ainda mais perspicaz foi feita por Conor Cruise O'Brien, um diplomata e
escritor irlandês que tem testemunhado muitos dos violentos conflitos do século XX. Na
sua opinião, o crescimento do espírito nacionalista ou ideológico no século XVIII ocorreu
diretamente às expensas da religião tradicional: “O antigo Deus sobrenatural certamente
havia desaparecido no horizonte, mas não foi a Razão, essencialmente, que ocupou o seu
lugar. Foram novos credos terrenos, com novas revelações e expoentes muitas vezes tão
arbitrários, tão arrogantes e tão fanáticos quanto os piores dos antigos sacerdotes e monges
perseguidores.”32
31
Arnold Toynbee, introdução a Christopher Dawson, The Gods of Revolution (Nova York: Minerva, 1978
[orig. 1972], p. x.
32
Conor Cruise O´Brien, “A Last Chance to Save the Jews?” New York Review, 27 abril 1989, p. 27.
cristianismo tradicional com o espetáculo de uma maré enluarada que retrocede à noite de
uma grande praia.
O Oceano da Fé
Outrora teve a sua plenitude, e circundava a terra
Como as dobras de um brilhante cinturão.
Agora, porém, só escuto
O seu rugir melancólico e distante
Que se afasta, ao sopro
Do vento noturno, para as vastas extremidades sombrias
E os ermos desolados do mundo.33
Este capítulo esboça sucintamente várias das principais forças que contribuíram para o fim
da cristandade européia. A seguir, ele desenvolve de modo um pouco mais amplo as
principais respostas das igrejas européias. O capítulo se encerra com um lembrete de que,
embora as preocupações, traumas e provações dos cristãos ocidentais tenham afetado
grandemente a história do cristianismo, essa história de modo algum limitou-se ao que
estava ocorrendo na Europa.
O Desaparecimento da Cristandade
Os estudiosos da vida intelectual européia freqüentemente apontam para alguns importantes
desdobramentos do final do século XVII que marcaram um dramático deslocamento do
centro de gravidade cultural da Europa. A publicação de Principia Mathematica de Sir
Isaac Newton, em 1687, foi um desses acontecimentos. Embora o próprio Newton fosse um
sério estudioso das Escrituras (especialmente das seções apocalípticas) e embora a sua
reputação inicialmente tenha estreitado os laços entre a religião formal e elite intelectual da
Europa, a sua obra eventualmente ajudaria a revolucionar a vida intelectual européia. A
capacidade de Newton em descrever o curso aparentemente ilimitado da natureza com
fórmulas matemáticas precisas eventualmente levou outros intelectuais a afirmarem que
toda vida poderia ser entendida com referência a si mesma, antes que com referência a
Deus ou aos ensinos das igrejas.
C. S. Lewis certa vez denominou a transição iniciada por tais convicções como “a maior de
todas as divisões da história do Ocidente,” e muitos outros, como o historiador francês Paul
Hazard, em um influente livro chamado A Crise da Mente Européia, têm chegado à mesma
33
Matthew Arnold, “Dover Beach,” em Poetry and Criticism of Matthew Arnold, ed. A. Dwight Culler
(Boston: Houghton Mifflin, 1961), 162.
No decurso do século XIX, começou a ficar visível em toda parte uma nova Europa pós-
cristã. As transformações estruturais da vida econômica e social provavelmente foram os
elementos mais óbvios de mudança. Os adeptos de diferentes tradições continuaram a
buscar a perspectiva cristã acerca da economia moderna e o uso cristão da mesma. No
início do século, o presbiteriano escocês Thomas Chalmers fez um grande esforço visando
revigorar a paróquia urbana como um meio de satisfazer as necessidade humanas criadas
pela nova sociedade industrial. No final do século, o papa Leão XIII promulgou uma
encíclica papal, Rerum Novarum (1891), que ofereceu uma orientação equilibrada, com
base nas Escrituras e da tradição católica, para os mesmos problemas econômicos que
Chalmers havia abordado. Todavia, as tendências econômicas gerais, bem como os efeitos
sociais das mudanças econômicas, estavam se afastando rapidamente das igrejas. Cada vez
mais, a produção das riquezas, o uso das riquezas, a disparidade na posse das riquezas e a
aplicação das riquezas aos problemas sociais assumiram uma vida própria, fora da
vigilância ou da orientação das igrejas. Tanto as possibilidades de consumo até então não
sonhadas quanto a proliferação da pobreza urbana e industrial tornaram-se características
centrais da vida européia no século XIX. Além disso, essas coisas ocorreram em um
panorama secular cada vez menos afetado por influências cristãs. Na segunda metade do
34
C. S. Lewis, “De Descriptione Temporum,” em Selected Literary Essays by C. S. Lewis (Cambridge:
Cambridge University Press, 1969), 7; Paul Hazard, La Crise de la Conscience Européene, publicada em
inglês como The European Mind, 1680-1715 (Londres: Hollis & Carter, 1953 [orig. 1935]).
35
Owen Chadwick, The Secularization of the European Mind in the Nineteenth Century (Nova York:
Cambridge University Press, 1975), 5, 9.
Muito antes desses eventos convulsivos do início do século XX, os líderes do pensamento
europeu haviam se afastado profundamente e rapidamente da fé cristã. As questões
metafísicas e éticas formuladas durante os séculos cristãos podem ter continuado a
preocupar os intelectuais europeus. Mas as grandes influências filosóficas do século XIX –
como Immanuel Kant e G. W. F. Hegel na Alemanha, ou J. S. Mill na Inglaterra –
contribuíram para substituir a dependência tradicional da revelação e da tradição religiosa
pelo que eles consideravam serem fundamentos mais seguros do bom, do verdadeiro e do
belo. O argumento de Kant em sua obra de 1793, A Religião Dentro dos Limites da Razão
Somente, tornou-se uma norma intelectual para muitas grandes mentes do século XIX: “A
verdadeira religião deve consistir não em conhecer e considerar o que Deus faz ou fez pela
nossa salvação, mas no que devemos fazer para tornar-nos dignos dela... e de cuja
necessidade todo homem pode tornar-se inteiramente certo sem qualquer aprendizado
bíblico que seja... O próprio homem deve fazer ou ter feito de si mesmo qualquer coisa, no
sentido moral, seja boa ou má, que ele é ou deva ser.”36
36
Immanuel Kant, Reason within the Limits of Reason Alone, trad. T.M. Greene e H.H. Hudson (Nova York:
Harper & Row, 1960), 123, 40.
Além disso, uma nova classe de cientistas profissionais contratados pelos governos e pelas
universidades trabalharam enérgica e rapidamente para demonstrar porque a sua pesquisa
sistemática os qualificava a substituir os naturalistas amadores, muitos dos quais haviam
sido clérigos, no sentido de oferecer informações definitivas sobre como era realmente o
mundo natural.
Eu digo e repito que, se a teologia é apenas uma interpretação verdadeira das revelações
de Deus, então a própria Ciência é uma das formas mais nobres de Teologia. Ela
aprofundou indefinidamente o nosso senso dos mistérios que estão ao nosso redor; ela é
a leitura daquele mundo que até mesmo Platão denominou “a epístola de Deus ao
homem”; ... Uma vez mais devo dizer que Deus, pelas descobertas da ciência, revelou
mais verdades novas a respeito da sua própria glória do que toda a teologia nos tem
declarado desde o último dos apóstolos.
Em contraste com isso, T. H. Huxley (1825-1895) achava que a nova ciência tornava
muitas crenças cristãs tradicionais obsoletas e os seus defensores repreensíveis. Por causa
do energia com que promoveu tais idéias, ele foi denominado o Buldogue de Darwin. Este
comentário é de 1860:
Em meados do século XIX, até mesmo o respeito instintivo pelas Escrituras como um livro
de procedência divina, respeito esse que havia desempenhado um papel central na auto-
consciência européia desde tempos imemoriais, estava se dissipando. Um conjunto
crescente de vozes influentes na esfera pública – apoiando-se em fundamentos construídos
a partir do ceticismo filosófico do século XVIII e das afirmações do século XIX sobre a
Finalmente, um novo senso do eu como algo divino em seu potencial heróico atraiu a
imaginação de um número cada vez maior de europeus influentes. Essa visão exaltada do
potencial humano freqüentemente recebe o nome de "Romantismo", mas foi muito além
dos limites de movimentos literários ou culturais identificáveis. Esse senso do caráter
ilimitado do ser humano floresceu nos poetas românticos ingleses (Wordsworth e Coleridge
no início de suas carreiras, Shelley e Byron durante as suas breves vidas), inspirou Goethe
no períodos iniciais da sua carreira literária vastamente influente, impulsionou as
composições musicais de Beethoven e Wagner, e sustentou a ascensão espetacular da
novela como a forma dominante da literatura européia. É importante observar que o senso
romântico do eu podia ser incorporado em expressões cristãs, como a descrição do poeta
alemão Novalis da Idade Média como uma arcádia cristã idílica, parte da música de
Mendelssohn baseada em melodias de hinos, ou os esforços do aclamado pregador de
Londres Edward Irving em fundar uma nova igreja apostólica. Mas a sensibilidade
romântica também podia conduzir os seus defensores ao desespero, como no caso do
alemão Heinrich Heine. A importância das concepções românticas extremas na história do
cristianismo, bem como das concepções extremas do Iluminismo da geração anterior, foi a
relativa ausência da revelação, prática ou piedade cristã nesses amplos movimentos
culturais que vieram a significar tanto para a Europa.
O próximo capítulo destaca a expansão não ocidental do cristianismo no século XIX, para a
qual as igrejas ocidentais fizeram importantes contribuições. Agindo contra poderosas
forças secularizantes, os evangelistas que atuaram nas sociedades ocidentais também
testemunharam avanços significativos. Os líderes desses movimentos de renovação
incluíram representantes da maioria das principais igrejas, na maior parte das grandes
nações ocidentais. Na Escandinávia, o pastor luterano dinamarquês Nikolai Grundtvig
(1783-1872) e especialmente o leigo norueguês Hans Nielsen Hauge (1771-1824) criaram
redes de avivamento que até hoje sustentam escandinavos como líderes em
empreendimentos missionários protestantes. Na Alemanha, Johann Christoph Blumhart
(1805-1880) promoveu o evangelismo, a cura pela fé e um forte interesse em atividades
missionárias internacionais a partir de sua sede em Württemberg. Dois outros eficazes
promotores da renovação alemã, Johannes Evangelista Gossner (1773-1858) e Aloys
Henhöfer (1789-1862), eram sacerdotes católicos romanos que, por promovem o que
Henhoffer chamou de “cristianismo interior,” eventualmente foram expulsos do catolicismo
e ingressaram na Igreja Luterana.
Um movimento que atraiu algumas pessoas na direção oposta foi o evangelismo católico
patrocinado pelos redentoristas, uma ordem forte na Alemanha e depois nos Estados
Unidos que por algum tempo recebeu um impulso dos labores de Isaac Hecker (1819-
1888), o mais destacado dos muitos americanos que se converteram ao catolicismo nas
décadas da metade do século XIX.
Conceptuais e Institucionais
O desafio de manter viva a fé entre os fiéis humildes, em meio às realidades diárias da vida
comum, e ao mesmo tempo continuar a preservar de maneira responsável as instituições
herdadas, também provocou diferentes respostas cristãs. O que se poderia chamar de uma
estratégia acomodatícia e liberal surgiu em grande parte como a reação das elites cultas
diante de um sentimento de crise intelectual. Muito mais importantes entre os protestantes
comuns foram algumas variedades de estratégias pietistas ou sectárias. Em algumas igrejas
estatais protestantes, bem como na igreja Católica Romana como um todo, os esforços
defensivos visando restaurar a cristandade estavam na ordem do dia.
37
H. Richard Niebuhr, The Kingdom of God in America (Nova York: Harper & Row, 1959 [orig. 1937], 193.
Onde as respostas sectárias ao declínio da cristandade tendiam a ser mais destacadas entre
os protestantes, o esforço mais vigoroso para defender – e até mesmo restaurar – a
cristandade veio da hierarquia da Igreja Católica. Após o fim do Império Alemão em 1806
e a reorganização dos estados alemães, algumas das novas unidades políticas, tais como a
Prússia, criaram igrejas protestantes unificadas que continuariam a exercer uma parte da
autoridade tradicional e socialmente ampla das igrejas magisteriais da Reforma. Porém, os
defensores mais ardorosos da cristandade foram os católicos e o líder desse esforço
defensivo foi o papa Pio IX. Quando o arcebispo Giovanni Maria Mastai-Ferretti tornou-se
o papa Pio IX em 1846, era considerado um moderado. Ele parecia estar aberto a sugestões
quanto à tolerância de outras religiões, liberdade de imprensa e educação, e os direitos do
governo constitucional. Todavia, as experiências traumáticas da Revolução Européia de
1848-49 afastaram tais pensamentos da sua cabeça. Nesses conflitos, o papa foi forçado a
fugir de Roma quando os italianos que lutavam pela criação de uma Itália moderna e
constitucional tomaram a cidade. Ele foi restaurado somente com o apoio do exército
francês.
A partir desse ponto inicial do seu longo pontificado (1846-1878), Pio IX mobilizou todos
os seus consideráveis recursos para combater, como um só inimigo, a tendência ao
secularismo e a redução do poder da Igreja Católica. Para ele, a história de mil anos do
papado como governante significativo da península italiana representava uma “túnica de
Jesus Cristo” que protegia o corpo da igreja. Em 1854, ele definiu formalmente a imaculada
concepção de Maria, no esforço de estabelecer uma ligação entre o papado e as devoções
marianas populares praticadas pelos fiéis comuns da igreja. Dez anos mais tarde, ele
promulgou uma surpreendente encíclica que, assim como denunciou as mudanças
modernizadoras em geral, terminou com um "Sílabo de Erros" que considerava erros graves
oitenta opiniões contemporâneas generalizadas. O último e mais abrangente desses erros
era a crença de que “o pontífice romano pode e deve reconciliar-se e harmonizar-se com o
progresso, com o liberalismo e com a civilização moderna.”38 Logo após, em 1869-1870,
ocorreu o Concílio Vaticano I, no qual, tendo os representantes papais exercido forte
pressão sobre os bispos reunidos, foi promulgada uma declaração que definiu os
pronunciamentos papais ex catedra como infalíveis. Todavia, a despeito do vigor de suas
ações, Pio IX foi forçado a renunciar aos últimos resquícios do poder papal tradicional
(com exceção da cidade do Vaticano) quando os paladinos da unidade nacional italiana
finalmente alcançaram o seu objetivo em 1870. (Com efeito, o Concílio Vaticano I teve de
ser encerrado abruptamente quando os exércitos das forças unificadoras entraram em
Roma.)
Embora tenha sido forçado a abrir mão do seu poder temporal, Pio IX conseguiu confirmar
a Igreja Católica como a instituição mais conservadora da Europa. Ele foi um resoluto
defensor da sua igreja em países protestantes como a Inglaterra e a Holanda e teve êxito em
firmar concordatas que preservaram os privilégios da Igreja Católica na Espanha, na
Áustria e em outros países tradicionalmente católicos.
Os efeitos de longo prazo das ações de Pio IX tem sido objeto de muitos debates
interpretativos. Por um lado, está claro que as suas ações deram um grande peso aos
esforços católicos no sentido de limitar as forças secularizadoras que atuavam
poderosamente na Europa. Todavia, de uma perspectiva do final do século XX, até mesmo
essa luta é diferente do que pareceu na época. Sabendo-se quão rapidamente a Igreja
Católica tem mudado nas décadas posteriores ao Concílio Vaticano II (1962-65), pode
parecer que Pio IX conseguiu antes restringir do que eliminar as forças da modernização, as
quais, no final do século XX, são tão evidentes no catolicismo quanto entre os protestantes.
Na Europa do século XIX ocorreram outros memoráveis esforços cristãos visando impedir
o avanço da descristianização. Na década de 1830, um grupo de anglicanos da ala
tradicionalista (Igreja Alta) reuniu-se no “Movimento de Oxford” para aplicar as lições da
igreja antiga aos perigos do presente. Embora um dos líderes do movimento, John Henry
Newman (1801-1890), eventualmente tenha se tornado católico romano, outros deles, como
38
Colman J. Barry, ed., Readings in Church History, vol. 3, The Modern Era, 1789 to the Present
(Westminster, MD: Newman, 1965), 75.
Desde 1870, somente um pronunciamento papal foi estritamente definido como infalível, a declaração de
1954 de que Maria ascendeu ao céu corporalmente.
Ó Deus, pai dos desamparados, socorro dos fracos, supridor dos necessitados; tu nos
ensinas que o amor para com a raça humana é o vínculo da perfeição e a imitação do
teu ser bendito. Abre e toca os nossos corações para que possamos ver e fazer, tanto
para este mundo quanto para o vindouro, as coisas que pertencem à paz. Fortalece-
nos na obra que empreendemos; dá-nos sabedoria, perseverança, fé e zelo, e, em teu
próprio tempo e segundo o teu beneplácito, faz prosperar essa causa. Pelo amor de teu
Filho Jesus Cristo.16
Leituras Complementares
Brooke, John Hedley. Science and Religion: Some Historical Perspectives. Nova York:
Cambridge University Press, 1991.
Chadwick, Owen. The Secularization of the European Mind in the Nineteenth Century.
Nova York: Cambridge University Press, 1975.
Clouse, Robert G., Richard V. Pierard e Edwin M. Yamauchi. Two Kingdoms: The Church
and Culture through the Ages. Chicago: Moody, 1993. Especialmente útil quanto aos
movimentos europeus de missão, evangelismo e reforma social.
Conser, Walter H., Jr. Church and Confession: Conservative Theologians in Germany,
England, and America, 1815-1866. Macon, Georgia: Mercer University Press, 1984.
Gay, Peter. The Enlightenment. Vol. 1: The Rise of Modern Paganism; vol. 2: The Science
of Freedom. Nova York: Knopf, 1966-69.
Hope, Nicholas. German and Scandinavian Protestantism, 1700 to 1918. Nova York:
Oxford University Press, 1995.
Lundin, Roger. The Culture of Interpretation: Christian Faith and the Postmodern World.
Grand Rapids: Eerdmans, 1993. Útil quanto à influência do romantismo.
McLeod, Hugh. Religion and the People of Western Europe. Nova York: Oxford
University Press, 1981.
McManners, John. The French Revolution and the Church. Londres: SPCK, 1969.
16
Eerdmans’ Book of Famous Prayers, comp. Veronica Zundel (Grand Rapids: Eerdmans, 1983), 72.
Manuel, Frank E. The Changing of the Gods. Hanover, N.H.: University Press of New
England, 1983.
Martin, David. A General Theory of Secularization. Nova York: Harper & Row, 1978.
Smart, Ninian et al., eds. Nineteenth-Century Religious Thought in the West. 3 vols. Nova
York: Cambridge University Press, 1985.
XII
Uma Fé Para Todo o Mundo: A Conferência Missionária de Edimburgo
(1910)
39
William J. Reynolds e Milburn Price, A Survey of Christian Hymnody, 3ª ed. (Carol Stream, Illinois: Hope,
1987), 118, 241.
Nos dez dias seguintes, dramáticos discursos foram intercalados com amplos
debates à medida que a conferência se defrontou com oito temas distintos.
Para cada tema havia um volume inteiro de relatórios publicados. Os autores
desses relatórios utilizaram liberalmente mais de mil extensos questionários
que haviam sido respondidos por missionários. Os tópicos considerados foram
os seguintes: (1) a comunicação do evangelho a todo o mundo não cristão, (2)
a igreja no campo missionário, (3) o lugar da educação na vida cristã nacional,
(4) a mensagem das missões cristãs em relação às religiões não-cristãs, (5) a
preparação dos missionários, (6) a base doméstica das missões, (7) missões e
governos, e (8) a promoção da unidade cristã. Destacados missionários
ingleses, americanos e europeus vindos de todas as partes do globo lideraram
as discussões, que freqüentemente foram ilustradas por relatos da própria
experiência missionária.
40
Para as informações gerais, baseei-me em W.H.T. Gairdner, Echoes from Edinburgh, 1910: An Account
and Interpretation of the World Missionary Conference (Nova York: Fleming H. Revell, [1910]).
41
Ibid., 40-43.
42
A maior parte das estatísticas deste capítulo vem de David B. Barrett, ed., World Christian Encyclopedia
(Nova York: Oxford University Press, 1982), ou da “Annual Statistical Table on Global Mission,” de Barrett,
encontrada desde 1985 no número de janeiro do International Bulletin of Missionary Research.
43
Stephen Neill, A History of Christian Missions (Nova York: Penguin, 1964), 395.
com suas almas renovadas, bem instruídos e zelosos”44 – guiou a igreja russa e
expandiu grandemente a sua visão missionária.
O despertamento de uma visão semelhante entre os protestantes requer uma
descrição mais ampla em virtude do fato de que, com apenas umas poucas
exceções, por mais de dois séculos após a Reforma os protestantes revelaram
um interesse notavelmente pequeno na proclamação transcultural do
evangelho.45 Quando os esforços missionários protestantes finalmente
começaram de maneira sistemática, isso ocorreu como resultado da visão
ampla de um monarca protestante. Assim como anteriormente as missões
católicas romanas estiveram ligadas ao despertamento de um consciência
mundial na Espanha e em Portugal, assim agora no século XVIII as
preocupações mundiais dos protestantes do norte da Europa começaram a
fazer uma diferença. Nesse caso, foi o rei pietista Frederico IV da Dinamarca
e da Noruega que, no início do século XVIII, tomou providências para
promover o bem-estar espiritual de povos que eram afetados pelo centro
comercial do seu país em Tranquebar, no sul da Índia. Quando Frederico não
pode encontrar candidatos na Dinamarca, ele voltou-se para August Hermann
Francke, em Halle, que comissionou dois pietistas alemães para a tarefa, entre
eles Bartolomeu Ziegenbalg (1682-1719), que tornou-se o primeiro estadista
missionário protestante amplamente reconhecido. O trabalho multifacetado de
Ziegenbalg em Tranquebar foi especialmente inspirador para a Inglaterra,
onde a mesma mistura de interesses religiosos e econômicos ocorrida na
Dinamarca pietista estava começando a despertar o interesse pelas regiões não
européias do mundo.
Todavia, na maior parte do século XVIII, os pietistas alemães, assistidos por
cristãos de mentalidade semelhante em outros países protestantes do norte da
Europa, continuaram a ser o esteio dos esforços missionários protestantes.
Johann Heinrich Callenberg (1694-1760), um professor de Halle, era um ávido
estudioso dos idiomas árabe, persa e turco que esperava que a publicação de
literatura cristã nessas línguas produziria a conversão de muçulmanos. Além
do seu interesse pelo evangelismo islâmico, a preocupação de Callenberg com
o Oriente Médio também o levou a fundar o Instituto Judaico em 1728, que
incentivou o uso de práticas evangelísticas pacíficas em lugar da violenta
coerção que tantas vezes havia caracterizado as missões cristãs aos judeus.
44
Esse comentário foi extraído de um relato russo contemporâneo citado em Neill, History of Christian
Missions, 444.
45
Essa narrativa da expansão missionária protestante é creditada especialmente ao notável interesse por temas
missionários encontrado em Robert G. Clouse, Richard V. Pierard e Edwin M. Yamauchi, Two Kingdoms:
The Church and Culture through the Ages (Chicago: Moody, 1993), 351-513.
Como o nosso bendito Senhor determinou que orássemos para que o seu reino
viesse e a sua vontade fosse feita assim na terra como no céu, compete a nós
não somente expressarmos o nosso desejo quanto a esse evento através de
palavras, mas usar todos os métodos legítimos para difundir o conhecimento
do seu nome... Nós somos exortados a “acumular tesouros no céu, onde a traça
nem a ferrugem corroem nem os ladrões escavam e roubam.” Também se
declara que “tudo o que o homem semear, isso também ceifará.” Esses textos
bíblicos nos ensinam que a alegria da vida futura tem uma relação estreita com
aquela que agora existe; uma relação semelhante àquela entre a colheita e a
semente. É verdade que toda recompensa vem da pura e simples graça, mas
não obstante é encorajadora; que tesouro, que colheita deve aguardar tais
personagens como Paulo, Elliot, Brainerd [os missionários aos índios norte-
americanos John Elliot e David Brainerd] e outros que se entregaram
inteiramente à obra do Senhor. Que maravilha será ver as muitas miríades de
povos pagãos, entre eles os bretões, que por seus labores foram levados ao
conhecimento de Deus. Certamente uma “coroa de regozijo” como essa é algo
a que se deve aspirar. Certamente vale a pena empenharmos todas as nossas
forças para promover a causa e o reino de Cristo.¹
As primeiras missões pietistas e morávias promoveram objetivos de auto-
suficiência cristã para os novos convertidos que também foram buscados pelos
missionários mais sábios das gerações seguintes. Assim, em Tranquebar,
Bartolomeu Ziegenbalg aprendeu o tamil para poder traduzir a Bíblia para
essa língua nativa, fundou escolas para que os novos crentes pudessem
aprender a ler as Escrituras por si mesmos, tornou-se um sério estudioso da
cultura e das religiões indianas a fim de fazer uma apresentação plausível do
Evangelho em uma linguagem adequada, proporcionou assistência médica e
preparou conversos da etnia tamil para serem ordenados e servirem como
pastores nas suas congregações.
Carey tornou-se uma inspiração que levou outros para a Índia, entre os quais o
americano Adoniram Judson (1788-1850) veio a ser um dos mais conhecidos.
A obra de Carey também influiu no esforço missionário mais amplo
promovido pela Igreja da Inglaterra e pela Igreja Presbiteriana da Escócia. Ela
foi acompanhada de um despertamento do interesse missionário em toda a
Europa protestante. Na primeira terça parte do século XIX prevaleceu entre os
novos missionários um incomum espírito de cooperação. Por exemplo,
Johannes T. Vanderkemp (1747-1811), fundador da Sociedade Missionária da
Holanda, trabalhou por vários anos na África do Sul sob os auspícios da
Sociedade Missionária de Londres (interdenominacional). Após a formação de
uma sociedade missionária em Basiléia, Suíça, em 1815, vários desses suíços
passaram a trabalhar com a Sociedade Missionária da Igreja (anglicana). Na
década de 1830, a maior parte das denominações protestantes da Inglaterra,
França, Dinamarca, Suécia, Noruega, Alemanha, Holanda e Estados Unidos
haviam se unido à maré missionária.
Desde o início, mulheres que atuavam tanto como esposas de missionários quanto por
conta própria desempenharam um papel muitíssimo importante nas missões protestantes.
Ann Hasseltine Judson (1789-1826), a primeira esposa de Adoniran Judson, utilizou
intensamente a sua pena para promover a vida devocional cristã e para dar informações
sobre a situação dos missionários, especialmente quando o seu marido estava em uma
prisão da Birmânia. Maria, a primeira esposa de Hudson Taylor, foi uma parceira
46
Rufus Anderson, Foreign Missions: Their Relations and Claims (Nova York: Scribners, 1869), 61.
Esta fotografia mostra mais de sessenta missionárias que estavam estudando chinês em
Yangzhou em 1931, preparando-se para trabalhar com a Missão do Interior da China.
Todavia, desde o princípio mulheres solteiras também podiam ser encontradas no centro das atividades
missionárias protestantes. Mary Slessor (1848-1915), procedente de uma família pobre da Escócia, foi uma
das mais dinâmicas dessas mulheres. Inspirada pela morte de David Livingstone a oferecer-se como
voluntária para o serviço missionário, ela chegou em 1876 à estação presbiteriana do Calabar (no que hoje é a
Nigéria), onde rapidamente aprendeu a língua local e imediatamente tornou-se bem conhecida como
professora. A partir de 1880, ela passou a dirigir a sua própria missão. Por meio de várias iniciativas em novas
áreas, ela associou de tal maneira a instrução religiosa, a assistência médica e a defesa dos desprotegidos (tais
como órfãos ou gêmeos abandonados) que tornou-se amada pelos africanos e respeitada pelos ingleses. Ela
foi tão longe no sentido de identificar-se com o seu novo ambiente que, em uma ruptura com a prática
missionária usual, andava regularmente sem chapéu e sem calçados, como faziam os africanos.
A carreira de Lottie Moon (1840-1912) ilustra como uma missionária podia causar um impacto tão grande na
igreja ocidental que a enviou quanto no campo missionário. Em 1873, Lottie Moon chegou à China como uma
missionária da Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos. O seu notável trabalho na província de
Shantung como educadora, evangelista e defensora do ministério das mulheres causou um impacto
considerável numa região em que os missionários estavam apresentando aos chineses diferentes formas da
vida ocidental, bem como o cristianismo. Mas o impacto de Lottie Moon foi ainda maior nos Estados Unidos.
Seu apelo em 1888 por novos recursos para sustentar as suas atividades missionárias levou à organização da
União Missionária Feminina dos Batistas do Sul e depois, em 1918, à criação de uma coleta anual entre os
batistas do sul para a obra missionária. A primeira dessas agências tem canalizado uma imensa energia na
vida missionária batista do sul, enquanto que a segunda angariou mais de um bilhão de dólares para o sustento
da obra missionária da Convenção Batista do Sul.
Calculando o Preço
Todavia, o paralelo com os primeiros séculos é um lembrete de que tal expansão transcultural não ocorre sem
um preço. Como na expansão inicial da igreja, também no século XIX o preço tanto para os missionários
como para os novos crentes muitas vezes foi elevado.
As histórias ocidentais naturalmente acentuam em primeiro lugar a morte prematura de missionários, das
quais pode haver uma lista quase interminável: cinqüenta homens e mulheres mortos nas primeiras duas
décadas do trabalho da Sociedade Missionária da Igreja em Serra Leoa (c. 1805-25); ou John Williams, da
Sociedade Missionária de Londres, espancado até a morte e devorado em 1839 na ilha de Erromanga, no
Pacífico Sul; ou o bispo anglicano Hannington, morto em 1885 ao tentar atingir a moderna Uganda, e muitos
outros.
Todavia, se os relatos ocidentais naturalmente estão sintonizados com a morte daqueles que levaram o
Evangelho para regiões anteriormente não cristãs, a martirologia dos séculos XIX e XX é em grande parte
uma história de novos convertidos que, como os católicos japoneses dois séculos antes, foram levados à morte
quando ainda eram jovens na fé. Na realidade, alguns dos horrores cometidos contra cristãos no século XIX
foram produto de antigos antagonismos, como o massacre de 35 mil cristãos gregos e turcos por muçulmanos
em 1821.47 Ainda outros mártires sofreram nas mãos de outros tipos de cristãos, como os evangélicos
perseguidos por ortodoxos na Ucrânia a partir da década de 1880. Porém, naquele século, a maior parte das
ocasiões em que cristãos foram fiéis até a morte ocorreu em lugares onde a entrada do cristianismo ainda era
uma coisa recente. Assim, a morte de talvez 70 mil católicos romanos no Vietnã em 1851, de incontáveis
outros em Madagascar durante as décadas da metade do século, de 25 mil católicos na Coréia em 1866, de
100 mil católicos na Indochina em 1885, de talvez 50 mil católicos e protestantes durante a Rebelião Boxer na
China em 1900, e ainda outros em muitos outros lugares do globo testificaram sobre a duradoura realidade da
expressão de Tertuliano de que o sangue dos mártires era a semente da igreja. Os dramas pessoais – sejam
eles heróicos, patéticos, trágicos, enobrecedores ou tudo isso ao mesmo tempo – existentes por trás de tais
números constituem um convite aberto à pesquisa séria que eles ainda não tiveram.
Um exemplo pode servir para dar uma idéia da humanidade latente em tais sumários rápidos. Um evento que
ajudou a precipitar um ataque contra novos cristãos em Buganda, na África oriental, ocorreu em 22 de maio
de 1885, quando a mãe da princesa Nalumansi presenteou-a com o seu próprio cordão umbilical como
símbolo do dever que a princesa tinha para com a religião ancestral de Buganda. Quando a princesa cortou o
cordão em pedaços e lançou-o fora, ela colocou lenha em uma fogueira que já estava ardendo contra os
cristãos. O fogo tornou-se terrivelmente real menos de duas semanas depois, quando trinta e um cristãos,
católicos e protestantes, foram executados em uma grande conflagração em Namugongo, ao mesmo tempo em
que as autoridades de Buganda ordenavam a execução de muitos outros pela espada e pela lança. 48
A expansão do cristianismo na grande era das missões não foi, em outras palavras, um triunfo sem sangue.
Não obstante, foi um triunfo. Aqui estão os breves sumários de David Barrett sobre o “Status Global” do
cristianismo em 1750 e 1900.
1750: Cinqüenta e sete gerações depois de Cristo, o mundo tem 22,2% de cristãos
(85,2% deles brancos), 25,8% de evangelizados; e as Escrituras impressas estão
disponíveis em 60 línguas.
1900: Sessenta e duas gerações depois de Cristo, o mundo tem 34,4% de cristãos
(81,1% deles brancos), 51,3% de evangelizados; e as Escrituras impressas estão
disponíveis em 537 línguas.49
47
Esses números e outros citados neste parágrafo são de Barrett, World Christian Encyclopedia, 28-29.
48
Essa história é colocada em seu contexto mais amplo em Adrian Hastings, The Church in Africa, 1450-
1950 (Nova York: Oxford University Press, 1994), 379.
49
Barrett, World Christian Encyclopedia, 27, 29.
Indigenização Local
Todavia, o esforço missionário oriundo do Ocidente, que desde o início do século XIX
tem desempenhado um papel tão importante na história mundial do cristianismo,
somente tornou-se permanentemente significativo quando levou à apropriação do
cristianismo por povos não-ocidentais. Essa apropriação, juntamente com a expansão da
fé em números e em impacto cultural, representa o acontecimento verdadeiramente
notável da história cristã dos últimos dois séculos. Além disso, a ligação entre as
missões ocidentais e a apropriação indígena é complexa. Às vezes as novas igrejas
refletem de maneira bastante direta as formas e as ênfases do cristianismo missionário.
Com muito mais freqüência, a fé que se expressa nas igrejas surgidas no terceiro mundo
difere – algumas vezes de maneira sutil, outras vezes de modo mais manifesto – da fé
trazida pelos missionários. Adicionalmente, em um número crescente de lugares têm
surgido comunidades cristãs nativas que revelam uma tênue conexão com o cristianismo
ocidental. O número de cristãos que o missiólogo David Barrett denomina “cristãos
indígenas não-brancos” simplesmente assumiu enormes proporções no decurso do
século XX, passando de menos de dez milhões em 1900 para quase duzentos milhões em
1997. O fenômeno verdadeiramente extraordinário anunciado pelas grandes conferências
missionárias, como a de Edimburgo em 1910, é o processo diversificado dessa
apropriação. Todavia, quer ela produza novas adaptações no catolicismo romano, novas
formas de protestantismo, ou igrejas inteiramente novas, é menos importante do que o
reconhecimento de como a difusão transcultural da fé tornou-se marcante no período
mais recente da história mundial do cristianismo. Quatro exemplos da África dão uma
idéia da diversidade da indigenização cristã ocorrida durante os últimos dois séculos,
bem como das diferentes ligações entre o esforço missionário e a apropriação nativa.
A vida de Samuel Ajayi Crowther (c. 1807-1891) testifica tanto sobre a generosidade
quanto sobre a mentalidade mesquinha dos missionários ocidentais, tanto sobre o
50
Esta seção segue as passagens relevantes de Hastings, The Church in Africa; e de Andrew F. Walls,
“Samuel Ajayi Crowther, 1807-1891: Foremost Christian of the Nineteenth Century,” em Mission Legacies:
Biographical Studies of Leaders of the Modern Missionary Movement, ed., G. H. Anderson et al. (Maryknoll,
N.Y.: Orbis, 1994), 132-39.
51
Para um relato completo, ver Hastings, The Church in Africa, 499-504.
Eu perguntei a ele [Ogara de Yimmaha, rei de Panda] se, caso fosse iniciado o comércio
com esse país, ele gostaria que o seu povo fosse ensinado sobre o livro de Deus, e sobre
como adorar a Deus como fazemos no país do homem branco; pois foram essas duas
coisas juntas que tornaram grande a Inglaterra, e que elas iriam trazer paz e
prosperidade a qualquer país que as recebesse e abraçasse. Eu lhe disse que a mesma
coisa foi proposta aos chefes de Aboh, ao Atta de Igara, seu soberano, e a Mohamma,
rei de Hamaruwa, com respeito ao povo baibai ou djuku, e que todos eles estavam
desejosos de fazer comércio, e que o seu povo devia aprender sobre o livro de Deus.
Portanto, eu queria saber o que ele também diria sobre isso. Ele respondeu que o
comércio era a sua principal atividade e que eles estavam muito desejosos de que a
guerra cessasse para que o seu povo pudesse fazer comércio e aprender o livro de Deus.
Ele nos desejou muitas bênçãos e longa vida da parte do Deus a quem adoramos. Ele
disse que ele mesmo era um mercador.
A força do sionismo como um dinâmico movimento cristão tem muito a ver com a sua
capacidade de utilizar as técnicas tradicionais da religião africana – como o exorcismo,
Não muito tempo depois que o sionismo começou a emergir como uma variedade
distintamente africana de cristianismo no sul da África, outro importante exemplo de
indigenização ocorreu na costa ocidental africana. Em 1910, William Wadé Harris (c.
1860-1929) foi lançado numa prisão da Libéria por apoiar uma tentativa de substituir o
governo africano-americano daquele país por líderes ansiosos em entrar na órbita da
influência inglesa antes que da americana.53 Harris havia recebido uma educação
metodista e também havia realizado atividades de ensino para uma igreja episcopal.
52
Esses números foram extraídos de Bill Keller, “A Surprising Silent Majority in South Africa,” New York
Times Magazine, 17 de abril de 1994, pp. 34-40, 54, 72, 78, 83 (estatísticas na p. 39). G. C. Oosthuizen,
“Indigenous Christianity and the Future of the Church in South Africa,” International Bulletin of Missionary
Research 21 (janeiro 1997): 8-12 é útil como uma análise mais geral.
53
Para uma introdução ao assunto, ver Hastings, The Church in Africa, 443-47.
Enquanto estava na prisão, ele foi visitado pelo anjo Gabriel, que, numa grande onda de
luz resplandecente, disse-lhe para pregar como um profeta dos últimos tempos, destruir
os fetiches que eram parte das religiões africanas tradicionais daquela região, batizar
imediatamente todos os que quisessem receber esse sacramento cristão (era costume dos
missionários exigir um longo período de catequese antes de batizar os conversos) e
trocar a vestimenta ocidental por uma túnica branca.
Depois que foi solto da prisão, Harris deixou a Libéria para proclamar essa nova
mensagem na Costa do Marfim (que está a leste da Libéria). Era julho de 1913. O seu
impacto foi repentino e dramático. Milhares responderam e seguiram ansiosamente as
suas orientações, organizando a sua vida cristã local em torno dos doze apóstolos que
Harris regularmente nomeava nas comunidades convertidas. Mas Harris também exortou
os convertidos a se relacionarem com igrejas dirigidas por missionários europeus. Os
conversos ficavam impressionados com o fervor da mensagem cristocêntrica que Harris
pregava, e também com o poder que a sustentava. Muitas curas foram relatadas e
circulavam histórias de administradores coloniais que morreram inesperadamente após
interferirem com Harris e também sobre a morte súbita que veio sobre aqueles que eram
batizados depois de afirmar que haviam destruído os seus fetiches, mas que apenas os
tinham enterrado. Tanto igrejas católicas quanto igrejas protestantes na Costa do
Marfim, na Costa do Ouro e nas regiões circundantes ficaram repletas com os milhares
de africanos que filiaram-se a elas (os conversos que não se uniram a grupos europeus
formaram uma igreja harrista autônoma). Todavia, os missionários ficaram menos
satisfeitos com a tolerância da poligamia por parte de Harris. Mesmo assim, de um modo
geral eles regozijaram-se com a abundante colheita feita por Harris e seus colegas em
regiões onde o seu próprio trabalho havia sido em grande parte em vão.
A modalidade de fé cristã proposta por William Wadé Harris não indigenizou-se tão
plenamente como os movimentos sionistas da África do Sul, uma vez que a sua
preocupação deliberada de incorporar os convertidos às igrejas missionárias deixou uma
clara marca ocidental no seu movimento. Não obstante, o que aconteceu com o seu
ministério não deixou de ser uma ilustração da implantação do cristianismo em um novo
solo. David Shank, uma importante autoridade sobre o cristianismo da África ocidental,
sintetizou o “novo movimento religioso leigo e indígena” iniciado por Harris como algo
que “cobriu uma dúzia de grupos étnicos, envolvendo novos padrões de unidade no meio
da diversidade: um Deus, uma lei teocêntrica (os Dez Mandamentos), um dia (o
domingo), um livro (a Bíblia), um símbolo (a cruz), um batismo (a ruptura com os
fetiches), um local de culto e uma instituição (a liderança da igreja através de „doze
apóstolos‟).” As igrejas missionárias para as quais Harris encaminhou os conversos, bem
como a igreja harrista independente que emergiu, ficaram marcadas, novamente nas
palavras de Shank, pelo “selo distintivo de Harris: uma forte ênfase num só Deus em
oposição aos fetiches; a oração em substituição aos sacrifícios, o uso da música e da
dança tradicional; o uso da cruz, da Bíblia, da calabaça [um tipo de queijo] e da pia
batismal como instrumentos litúrgicos; vestes litúrgicas segundo o modelo de Harris;
práticas matrimoniais tradicionais, tendo os pastores somente uma esposa; o governo de
„doze apóstolos‟; e pastores auto-sustentados escolhidos na congregação local.”54 As
maneiras pelas quais Harris relacionou o cristianismo com a África não eram as únicas
possíveis, mas mesmo assim ele deixou um notável legado.
Um outro modelo de indigenização tem ocorrido entre o povo Bor Dinka, no lado
oriental do rio Nilo Branco, no Sudão meridional.55 As missões cristãs começaram nesse
grupo em 1906, mas durante os primeiros setenta anos ou mais de atividade, a Sociedade
Missionária da Igreja Anglicana (CMS) obteve somente resultados modestos. Todavia, a
partir da década de 1970, e com força crescente nos anos 80 e 90, o cristianismo sob a
orientação da Igreja Episcopal do Sudão expandiu-se com um ímpeto extraordinário. As
circunstâncias externas desse crescimento são trágicas, pois os dinkas têm estado
envolvidos numa guerra civil com diversas facções muçulmanas do norte do Sudão. Os
dinkas têm sofrido grande perda de vidas. Eles também foram privadas dos rebanhos de
gado que eram o sustentáculo da sua cultura e têm sido forçados a migrar para fora de
54
David A. Shank, “William Wadé Harris, c. 1860-1929: God Made His Soul a Soul of Fire,” em Mission
Legacies, 161-62.
55
Os parágrafos seguintes estão baseados em Marc R. Nikkel, “The Cross of Bor Dinka Christians: A
Working Christology in the Face of Displacement and Death,” Studies in World Christianity 1 (1995): 160-
85.
No entanto, ela o tem feito de uma maneira distintamente bor dinka. Em toda parte, nas
novas igrejas dinkas e em meio à crescente onda de conversos, pode-se ver a cruz. A
exposição da cruz é particularmente notável nas grandes procissões dos dias santos,
quando, conforme a descrição de Marc Nikkel, “as suas cruzes [criam] uma densa
floresta, surgindo com as multidões, movendo-se em direção ao céu com cada batida dos
seus cânticos.”56 No primeiro caso, a proeminência da cruz na vida bor dinka representa
uma cristianização de formas culturais existentes, pois historicamente os dinkas haviam
utilizado uma ampla variedade de cajados, varas e bordões esculpidos. Entre os
conversos dinkas, o símbolo cristão tem preenchido uma forma fornecida pela cultura
tradicional.
56
Ibid., 161.
57
Ibid., 175.
traduzido para as sociedades tribais do norte da Europa. A diferença quanto aos séculos
recentes é que a igreja tem se desenvolvido em várias direções ao mesmo tempo. As
antigas comunidades cristãs da África e da Ásia foram as sementes dessa nova expansão,
mas o seu grande impulsionador tem sido o esforço missionário ocidental do período
moderno. No entanto, as missões são sempre transitórias, e é a assimilação local do
cristianismo que tem efeitos duradouros. Em virtude da situação dos últimos dois
séculos, nos quais tem ocorrido um processo de apropriação local em muitas parte do
mundo ao mesmo tempo, as implicações para a história do cristianismo são imensas.
Graças te damos, ó Nhialic, Pai, Filho e Espírito Santo, por trazeres esta família ao teu
rebanho. Nós agora os entregamos ao teu cuidado, pedindo-te que lhes concedas a tua
força e lhes assegures que tu estás continuamente presente, permanecendo com eles.
Por teu poder, os jak foram desarraigados e lançados fora. Agora tu substituíste
aqueles velhos poderes pelo teu Grande e Santo Jok. Concede a estes teus filhos
completa segurança e confiança nesse fato. Esta família é agora o lugar da tua
habitação, uma vez que a tua cruz, o sinal de Cristo, foi aqui plantada.59
Leituras Complementares
Anderson, Gerald H., Robert T. Coote, Norman A. Horner e James M. Phillips, eds.,
Mission Legacies: Biographical Studies of Leaders of the Modern Missionary
Movement. Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1994.
Clouse, Robert G., Richard V. Pierard e Edwin M. Yamauchi. Two Kingdoms: The
Church and Culture Through the Ages. Chicago: Moody, 1993.
59
Oração dinka lembrada por Akurdit Ngong Akurdit e citada em Nikkel, “The Cross of Bor Dinka
Christians,” 179.
Hastings, Adrian. The Church in Africa, 1450-1950. Nova York: Oxford University
Press, 1994.
Sanneh, Lamin O. Encountering the West: Christianity and the Global Cultural Process,
the African Dimension. Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1993.
Stanley, Brian. The Bible and the Flag: Protestant Missions and British Imperialism in
the Nineteenth and Twentieth Centuries. Leicester, Inglaterra: Apollos, 1990.
13
O exemplo abaixo é um dos milhares que poderiam ser apresentados para ilustrar a
efervescência da produção de hinos pelo mundo afora no final do século XX. Seu autor é
Lindomar Moreira da Silva, que estava com 18 anos ao escrevê-lo e era membro de uma
igreja evangélica em Buriticupu, no Maranhão. Trata-se de uma região com escassas
oportunidades econômicas e poucas das comodidades aceitas naturalmente na América do
Norte, na Europa e em outras partes desenvolvidas do mundo. Quando escreveu esta canção
em meados da década de 1990, o autor estava vivendo com sua mãe e sete irmãos em uma
casa de quatro cômodos.
60
Agradeço ao amigo Jim Ohlson por oferecer-me uma cópia deste cântico, que ele obteve em 1995.
Da Albânia, Madre Teresa (1910-1997), uma freira que trabalhou em favor dos
moribundos;
Dos Estados Unidos, o evangelista Billy Graham (1918- ), o líder dos direitos civis Martin
Luther King, Jr. (1929-1968) e a redatora e reformadora social católica Dorothy Day (1897-
1980);
Da Suíça, dois teólogos, o protestante Karl Barth (1886-1968) e o católico Hans Urs von
Balthazar (1908-1988);
Por sua extraordinária liderança na Igreja Católica Romana, os papas Leão XIII (1878-
1903), João XXIII (1958-1963) e João Paulo II (1978- );
E, como líderes políticos cristãos, o protestante não eclesiástico Tomás Masaryk (1850-
1937), da Tchecoslováquia, o católico Konrad Adenauer (1876-1967), da Alemanha, e o
presbiteriano Woodrow Wilson (1856-1924), dos Estados Unidos.
Todavia, mesmo atribuindo toda honra a quem a merece, ainda assim seria surpreendente se
qualquer um desses indivíduos, ou outros que sejam incluídos em compilações mais
equilibradas, assumisse uma importância global ao se narrar a história cristã do século XX.
As cinco possibilidades que descrevo a seguir como pontos de transição também poderiam
estar entre as mais significativas. Mesmo que não sejam os desdobramentos mais
importantes do século, descrevê-las pode ajudar outras pessoas a discernir eventos ou
circunstâncias que têm um significado ainda maior:
No entanto, por mais que a Rua Azusa tenha se destacado na consciência dos historiadores,
alguns líderes e movimentos anteriores já haviam antecipado o que os pentecostais chamam
de “chuva posterior” ou “derramamento do Espírito.” O pregador escocês Edward Irving
(1792-1834) foi apenas um de vários líderes do século XIX cujo ministério incentivou os
dons espirituais extraordinários. No final daquele século, o anseio generalizado por um
reavivamento associou-se em vários lugares com o desejo igualmente intenso de
santificação cristã. Entre os zelosos herdeiros do metodismo de João Wesley tais anseios
foram expressos na linguagem da “perfeição cristã” ou da “santidade,” enquanto que os
protestantes de origem calvinista falavam mais da “vida cristã superior.” Com sua ênfase na
necessidade de uma obra especial do Espírito Santo, esses anseios levaram a episódios nos
quais entendeu-se que o Espírito Santo havia descido de maneira especial. Antes da virada
do século, Charles Fox Parham (1873-1929), que havia sido criado em igrejas metodistas e
“holiness,” estava ensinando os alunos das suas escolas no Kansas e no Texas que um
batismo “com o Espírito Santo e com fogo” deveria ser esperado por aqueles que haviam se
convertido e que estavam prosseguindo para a perfeita santificação que os defensores do
movimento holiness proclamavam. (Um desses estudantes era William Seymour.) No início
do século XX, uma turnê mundial de reavivamento feita por Reuben A. Torrey (1856-
1928), um companheiro mais jovem do famoso evangelista americano D. L. Moody,
aproximou muitas pessoas que mais tarde participariam do movimento pentecostal (embora
o próprio Torrey não tenha se tornado um pentecostal). Depois, um reavivamento muito
divulgado ocorrido no País de Gales (1903-1904) estimulou novas esperanças de um
derramamento especial do Espírito.
61
David B. Barrett, “Annual Statistic Table on Global Mission: 1997,” International Bulletin of Missionary
Research 21 (Janeiro 1997): 25.
62
Quanto à difusão inicial do pentecostalismo, estou seguindo Edith L. Blumhofer, “Transatlantic Currents in
North Atlantic Pentecostalism,” em Evangelicalism: Comparative Studies of Popular Protestantism in North
America, the British Isles, and Beyond, 1700-1990, ed. M. A. Noll, D. W. Bebbington e G. A. Rawlyk (Nova
York: Oxford, 1994), 351-64.
A 6 de janeiro de 1877, após um declínio gradual da minha saúde, eu estava prostrada por
um ataque de febre procedente da minha coluna vertebral, provavelmente resultante de uma
63
Para uma discussão preliminar, ver Karla Poewe, ed., Charismatic Christianity as a Global Culture
(Columbia: University of South Carolina Press, 1994).
violenta queda em uma calçada de pedra vários meses antes... Por onze meses, não pude
sentar-me de modo algum... Tudo o que os mais habilidosos médicos podiam fazer por mim
havia sido feito; somente o “Grande Médico” podia restaurar-me por seu grandioso poder.
Não tenho dúvida de que foi ordenado pela providência que exatamente nessa época
aparecesse no jornal diário um breve relato das curas maravilhosas realizadas em resposta
às orações da sra. Edward Mix, uma senhora de cor de Wolcottville, Connecticut... Esperei
algumas horas e então pedi que minha irmã lhe escrevesse que eu cria que a sua grande fé
poderia ser-me benéfica caso ela quisesse orar pela minha recuperação... [A sra. Mix
respondeu lembrando a Carrie Judd a passagem bíblica: “A oração da fé salvará o enfermo
e o Senhor o levantará.”] Comecei a orar por um aumento na minha fé. Deixei de lado
todos os remédios de uma vez , embora confesse que foi difícil.... Na hora indicada pela sra.
Mix, membros da nossa própria família também fizeram orações, embora não em meu
quarto. Pouco antes disso, eu parecia não ter qualquer capacidade de tomar posse da
promessa. Trevas terríveis e poderosas tentações de Satanás surgiram para obscurecer até
mesmo a pequena fé que eu tinha, mas repentinamente a minha alma encheu-se de uma paz
e confiança infantis, diferente de qualquer coisa que eu já havia experimentado antes.
Não houve nenhuma excitação, mas sem o menor temor ou hesitação eu me virei e levantei
sozinha pela primeira vez em dois anos... Logo depois, com um pouco de auxílio da minha
enfermeira, caminhei alguns passos para a minha cadeira. Naquela mesma hora, ocorreu
uma mudança clara e perceptível na minha cor, circulação e pulso e pude falar em voz alta
com facilidade... Quanto mais plenamente me lançava sobre [o Senhor], mais eu fui
sustentada e freqüentemente me senti elevada como que por alguma flutuação no ar, ao
passo que havia pouco ou nenhum esforço da minha parte. Ainda mais maravilhoso e...
precioso do que ser levada da morte para a vida fisicamente é a vida renovada que a alma
experimenta ao mesmo tempo sob a influência curadora do Espírito Santo.¹
O Concílio Vaticano II
O Concílio Vaticano II, que reuniu-se em quatro sessões separadas desde 11 de outubro de
1962 até 8 de dezembro de 1965, assinalou uma nova era para a Igreja Católica Romana, a
maior e mais amplamente difundida organização cristã do mundo. No dia 25 de janeiro de
1959, no início do seu pontificado, o papa João XXIII emitiu o primeiro apelo em favor de
um concílio. Mais tarde, em sua convocação oficial, o papa expressou a esperança de que
um concílio “daria à igreja a possibilidade de contribuir de maneira mais eficaz para a
solução dos problemas da era moderna.”64 À medida que se desenvolveu, o concílio
testemunhou toda uma gama de intrigas, suspense e, por vezes, amargas controvérsias.
Alguns católicos conservadores esperavam reafirmar o tipo de supremacia papal “de cima
para baixo” que havia caracterizado o decreto do Concílio Vaticano I em 1869-70. Alguns
radicais queriam que a igreja abraçasse movimentos progressistas de renovação social e
modernismo teológico. Porém, a maior parte dos aproximadamente 2300 cardeais,
arcebispos e bispos que compuseram o concílio propriamente dito, juntamente com um
pequeno exército de conselheiros e observadores convidados, não queria mudanças
inspiradas pela extrema direita ou pela extrema esquerda, mas esperava que seriam dados
os passos necessários para preservar as tradições da igreja e ao mesmo tempo fazer as
adaptações necessárias ao mundo moderno.
64
Walter Abbott, S.J., ed., The Documents of Vatican II (Nova York: Guild, 1966), 705.
O luterano George Lindbeck ficou impressionado com a maneira como o concílio afastou a
Igreja Católica de certos hábitos anteriores. “Todos os principais documentos abandonaram
claramente a estrutura clássica de pensamento com sua visão triunfalista e autoritária da
igreja, sua noção individualista do culto e da experiência religiosa e seu conceito
intelectualista de revelação... Eles relevam uma unidade que... constitui uma esfera de
discurso e conceptualização teológica nitidamente diferente daquilo que prevaleceu no
ensino magisterial católico romano desde a Idade Média.”65 Um evangélico, David Wells,
ficou mais impressionado com o potencial para um pluralismo radical. “O pivô sobre o qual
o futuro gira parece ser a transição rumo à experiência religiosa subjetiva e para longe do
compromisso eclesiástico objetivo... Portanto, em algum ponto da próxima década, deverá
tornar-se impossível continuar a falar da fé católica como um todo, uma vez que ela irá
significar diferentes coisas para diferentes pessoas em diferentes lugares... A intromissão
destes fatores na formulação da crença católica significará que, no antigo sentido e na
acepção tradicional, a unidade da igreja irá desaparecer.”66 Uma opinião que teve ainda
mais peso foi a do bispo polonês Karol Wojtyla, que em 1978 tornou-se o papa João Paulo
II. Em 1972, ele comentou nos seguintes termos os ideais religiosos da obra do concílio:
65
George A. Lindbeck, The Future of Roman Catholic Theology: Vatican II – Catalyst for Change
(Filadélfia: Fortress, 1970), 116-117.
66
David F. Wells, Revolution in Rome (Downers Grove, Illinois: InterVarsity, 1972), 118-119.
Deus podem capacitar-nos a encontrar em toda a parte e sempre o Deus „em quem
vivemos e existimos‟ (At 17.28); somente assim podemos buscar a sua vontade em
tudo, ver Cristo em todos os homens, conhecidos ou estranhos, e fazer julgamentos
sólidos sobre o verdadeiro sentido e o valor das realidades temporais, tanto em si
mesmas como em relação à finalidade do ser humano.67
Por divergentes que sejam essas opiniões, uma conclusão inquestionável é que o Concílio
Vaticano II deu início a um período de movimentos e contendas incomuns na Igreja
Católica. Por causa do seu próprio tamanho e do peso das suas tradições, o que acontece
com a Igreja Católica afeta profundamente a direção da história cristã em geral. Quando,
além disso, surgem líderes como João Paulo II, cuja preparação para o papado incluiu as
devastações da guerra, os rigores da vida sob o comunismo e um treinamento intensivo
como filósofo, a proeminência da Igreja Católica torna-se ainda maior. Como o Concílio
Vaticano II virá a ser julgado, e como as suas modificações da tradição católica irão se
manifestar na trajetória futura da igreja, poderá um dia ser visto como um ponto crítico de
transição na história do cristianismo no século XX.
Todavia, a preocupação com os debates pode ofuscar uma realidade subjacente mais
importante. O fato de que os papéis tradicionais dos gêneros estejam se modificando no
culto, na organização, na liderança e na visibilidade pública sem dúvida pode ser uma fonte
de frustração, libertação, escândalo e encorajamento – ou todos de uma só vez. Porém, a
realidade mais abrangente do século XX foi a nova consciência de como as mulheres têm
sido importantes em toda a história do cristianismo. A consciência histórica dessas
realidades maiores torna possível uma consciência muito mais abrangente das questões de
gênero na atualidade. Três dos muitos exemplos possíveis dessa consciência são o papel das
mulheres na comunicação transcultural do evangelho, a importância da visão teológica das
mulheres e a preponderância das mulheres como seguidoras comuns de Cristo.
No primeiro caso, uma literatura nova e significativa tem começado a mostrar como o
trabalho das mulheres tem sido absolutamente essencial no empreendimento missionário.
Livros de estudiosos como R. Pierce Beaver, Jane Hunter e Dana Robert, que se
67
Karol Wojtyla (mais tarde João Paulo II), Sources of Renewal: The Implementation of Vatican II (San
Francisco: Harper & Row, 1980 [orig. 1972], 420-21.
concentram nos missionários protestantes, dão uma idéia da dimensão dessas atividades.68
Desde os dias dos pioneiros morávios, passando pela azáfama da atividade britânico-
americana no início do século XIX e a explosão das “missões de fé” no final daquele século
e durante todo o século XX, as mulheres (tanto casadas quanto solteiras) têm
desempenhado um papel desproporcionalmente vasto nas atividades de missões, incluindo
as atividades de levantamento de recursos, reflexão teológica e liderança. O quadro católico
é ligeiramente diferente por causa da importância duradoura das ordens religiosas
femininas no esforço missionário. Todavia, tanto para as missões católicas quanto para as
protestantes agora está claro que há muito tempo a expansão do cristianismo tem resultado
tanto, se não mais, do trabalho de mulheres quanto de homens.
Os resultados das pesquisas são semelhantes no que diz respeito a outra questão: Quais tem
sido os participantes comuns da vida da igreja ao longo da sua história? O estudo de quase
todas as épocas do passado da igreja e de diferentes regiões tem oferecido descobertas
semelhantes, a saber, as mulheres têm constituído uma proporção maior do que os homens
entre os participantes da igreja, aqueles que praticam a devoção cristã e aqueles que
sustentam convicções ortodoxas. Quer se fale do número dos religiosos católicos romanos,
dos participantes iniciais do movimento metodista, dos membros das igrejas da Nova
Inglaterra colonial, das atividades cristãs sob os regimes comunistas da União Soviética e
da China, das práticas e crenças religiosas registradas por pesquisas modernas ou de
ministérios de cura nas igrejas africanas independentes da África do Sul, os resultados são
semelhantes. Em toda parte em que se podem observar as atividades da igreja, as mulheres
normalmente aparecem com mais freqüência do que os homens.
O ponto de transição com respeito às atividades das mulheres não se refere primariamente
às próprias atividades. Antes, esse ponto de transição inclui a consciência pública da
importância das mulheres para as atividades cristãs comuns, a correção de perspectiva para
incluir uma visão mais ampla do trabalho das mulheres e a crescente consciência de quão
incompletos são os registros teológicos, eclesiásticos e históricos que não refletem as
perspectivas tanto dos homens quanto das mulheres.
religiosas do final da Idade Média viam em seus próprios corpos femininos não
somente um símbolo da humanidade de ambos os gêneros, mas também um símbolo – e
um meio de acesso – à humanidade de Deus.”²
70
Barrett, “Status of Global Mission,” 25.
vez no século XX, como, por exemplo (para mencionar somente uns poucos exemplos em
que uma Bíblia completa foi publicada nesse século), o isizulu, o hausa e o kingiaruanda na
África, bem como o tibetano, o vietnamita, o tagalogue (Filipinas) e diversas versões
chinesas.
Para ilustrar a magnitude dos esforços de tradução das Escrituras no século XX, dois
conjuntos de números são úteis. Em 1989, o historiador de missões natural da Gâmbia
Lamin Sanneh enumerou 289 línguas distintas nas quais a Bíblia completa havia sido
traduzida até aquela data. Dessas 289 traduções, 170 haviam sido publicadas no século
XX.71 Igualmente, a Enciclopédia Cristã Mundial do demógrafo de missões David Barrett
relata que em 1900 porções da Bíblia estavam disponíveis em 537 línguas diferentes. Em
1980, esse total havia crescido para 1811.72 Tanto Sanneh como Barrett admitem
imprecisões nos seus números. Mas mesmo que sejam apenas aproximações, as
implicações são impressionantes. Muitíssimos mais grupos lingüísticos individuais, e as
culturas definidas por essas línguas, receberam as Escrituras no século XX do que nos 1900
anos anteriores da história da igreja.
Todavia, num outro nível a profusão das traduções da Bíblia no século XX fala do
desenrolar do próprio drama do cristianismo. No Pentecostes, “judeus piedosos” de muitas
línguas e nações ficaram “atônitos” quando puderam ouvir “em nossas próprias línguas as
grandezas de Deus” (At 2.5-12). Quase tão surpreendente é a mensagem poderosa
transmitida por esse “Pentecoste do século XX” representado pelas traduções da Bíblia.
Quando as pessoas ouvem a Palavra da Vida em suas próprias línguas, a afirmação cristã
acerca da universalidade da salvação aproxima-se da realidade. A salvação não é mais uma
oferta de uma cultura estranha, mas uma oferta vinda de dentro da cultura. Igualmente, a
possessão da Bíblia no próprio vernáculo das pessoas freqüentemente começa a efetuar um
processo de cristianização como a possessão da Bíblia em latim, alemão, francês ou inglês
fez outrora pelas culturas da cristandade. Lamin Sanneh colocou muito bem essas questões:
Por essas e outras razões, a criação da Wycliffe Bible Translators por William Cameron
Townsend (1896-1982), em 1934, pode constituir-se simbolicamente em um dos grandes
eventos cristãos desta época. A pergunta que um índio cakchiquel da Guatemala certa vez
fez a Townsend, que havia ido para aquele país em 1917 a fim de distribuir Bíblias em
espanhol, tem recebido uma resposta retumbante: “Se o seu Deus é tão sábio, porque ele
não fala cakchiquel?”74
As igrejas protestantes da Romênia, onde esta foto foi tirada, sofreram intensamente
durante o período comunista, e todavia perseveraram.
O efeito desses ataques foi devastador. Em alguns países, como a Albânia, o cristianismo
pareceu, por muitos anos, ter sido inteiramente eliminado. Houve grande perda de vidas
acompanhada do confisco de muitas propriedades. Para considerar somente o caso dos
cristãos ortodoxos da União Soviética, durante as primeiras décadas do controle soviético o
número de igrejas ortodoxas em funcionamento foi reduzido de cerca de 55 mil para
algumas poucas centenas e o número de mosteiros foi reduzido de 1025 para zero. Ao
mesmo tempo, pelo menos 130 bispos ortodoxos foram mortos (ou pereceram em campos
de trabalhos forçados), juntamente com dezenas de milhares de sacerdotes.75
73
Sanneh, Translating the Message, 208-209.
74
David J. Hesselgrave, “Townsend, William Cameron,” em Dictionary of Christianity in America (Downers
Grove, Illinois: InterVarsity, 1990), 1181. Cameron trabalhou por dez anos para produzir uma tradução do
Novo Testamento para o cakchiquel, o primeiro livro jamais publicado naquele idioma.
75
Timothy Ware, The Orthodox Church, nova ed. (Nova York: Penguin, 1993), 148.
Além disso, os conflitos gerados pelos ataques comunistas envenenaram as relações entre
os cristãos, como, por exemplo, entre os católicos chineses que tentaram permanecer leais
ao Vaticano e os católicos chineses que obedeceram ao seu regime e romperam o seu
compromisso com o papa, entre os batistas soviéticos que registraram as suas igrejas no
Estado e aqueles que não o fizeram, entre as igrejas tradicionais do leste europeu que
negociaram com os regimes e as igrejas protestantes mais novas que não o fizeram, e assim
por diante.
Os superlativos devem ser usados com cuidado ao se falar sobre a perseguição da igreja,
uma vez que a longa e diversificada história do cristianismo tem testemunhado muitos
episódios sangrentos, inclusive não poucos em que cristãos mataram outros cristãos.
Todavia, tendo sido feitas as qualificações apropriadas, o ataque de regimes estatais-
comunistas contra o cristianismo no século XX ainda representam um dos períodos mais
intensos, mais deliberados e mais amplamente sistematizados de tal atividade em toda a
história.
76
O material sobre Silin foi extraído de Aleksandr I. Solzhenitsyn, The Gulag Archipelago, Três (Nova York:
Harper & Row, 1978), 104-108.
De acordo com Solzhenitsyn, Silin também revelava uma suave gentileza para com todos
os que cruzavam o seu caminho, a despeito das extraordinárias dificuldades do seu viver.
Quando for escrita de modo tão completo quanto possível, a história da sobrevivência cristã
sob os regimes comunistas será uma história incrível. Ela irá incluir a determinação dos
católicos poloneses, a resistência dos ortodoxos russos, a perseverança dos batistas na
Romênia, Ucrânia e Rússia, e em toda a parte a firmeza em meio à dor e ao derramamento
de sangue. De algum modo, ela também terá que mostrar como o número de cristãos da
China cresceu de menos de 1 milhão de protestantes e 3 milhões de católicos em 1949,
quando os missionários ocidentais foram expulsos e Mao desfechou sua campanha contra
as igrejas, para as dezenas de milhões que hoje existem (as estimativas para os católicos
variam de 6 a 12 milhões e para os protestantes de 10 a 40 milhões).
Um indício de como o cristianismo sobreviveu sob a opressão comunista, bem como uma
sugestão de porque as razões dessa sobrevivência poderiam constituir um ponto de
transição na história mundial do cristianismo, estão contidas em parte do que Solzhenitsyn
relatou acerca do seu amigo Anatoly Vasilyevich Silin.
A igreja sobrevive pela misericórdia de Deus, e não por causa da sabedoria, pureza ou
fidelidade consistente dos cristãos.
Não obstante, muitos momentos de fidelidade incomum podem ser encontrados no passado
cristão, tanto recente quanto antigo. Todavia, é importante observar que mesmo quando
esses momentos vieram a fazer uma dramática diferença para a história posterior, eles
quase sempre resultaram de gratidão a Deus, antes que de um desejo de influenciar o
futuro.
A fé cristã autêntica tem assumido muitas formas diferentes e pode se esperar que assuma
ainda outras formas no futuro.
Finalmente, a promessa de Jesus de estar com os seus seguidores “todos os dias até a
consumação do século” (Mt 28.20) fornece não somente um quadro de referência para o
estudo da história do cristianismo, mas também uma adequada descrição do que é a fé
cristã, no seu nível mais essencial.
Como quase todos os outros livros, o destino deste volume sobre os pontos de transição da
história do cristianismo é aparecer por um momento e depois desaparecer silenciosamente.
Assim, ele é muito diferente das Escrituras e de alguns outros escritos como os Credos
Niceno e de Calcedônia, que perduram de uma era para outra. Não importa quão
transitórios e inadequados estes capítulos possam vir a ser, os leitores talvez ainda os
achem consistentes com a síntese inspirada da história do cristianismo, formulada em uma
só sentença, que Paulo proferiu aos cristãos romanos bem no início da história da igreja:
“Tomai, pois, conhecimento de que esta salvação de Deus foi enviada aos gentios. E eles a
ouvirão!” (At 28.28).
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
Ó Deus, eu sou Mustafá, o alfaiate, e trabalho na loja de Muhammad Ali. Durante todo o
dia eu me assento e passo a agulha e o fio através do tecido. Ó Deus, tu és a agulha e eu
sou o fio. Eu estou unido a ti e te sirvo. Quando o fio tenta escapar da agulha, ele fica
emaranhado e precisa ser cortado para que novamente possa ser colocado no lugar certo.
Ó Deus, ajuda-me a seguir-te aonde quer que tu possas me levar. Pois eu sou realmente
apenas Mustafá, o alfaiate, e trabalho na loja de Muhammad Ali, na grande praça.77
Ó Senhor, deixa-me encostar a escada da gratidão na tua cruz e, subindo nela, beijar os
teus pés.78
Leituras Complementares
Alberigo, Giuseppe, e Joseph A. Komonchak, eds. History of Vatican II. Maryknoll, N.Y.:
Orbis. O vol. 1 foi lançado em 1995; quatro outros estão planejados.
Bays, Daniel H., ed. Christianity in China from the Eighteenth Century to the Present.
Stanford, Califórnia: Stanford University Press, 1996.
77
George Appleton, ed., The Oxford Book of Prayer (Nova York: Oxford University Press, 1985), 88.
78
Ibid., 143.
Bergman, Susan, ed. Martyrs: Contemporary Writers on Modern Lives of Faith. San
Francisco: HarperCollins, 1996.
Blumhofer, Edith. Restoring the Faith: The Assemblies of God, Pentecostalism, and
American Culture. Urbana: University of Illinois Press, 1993.
Broun, Janice. Conscience and Captivity: Religion in Eastern Europe. Washington, D.C.:
Ethics and Public Policy Center, 1988.
Burgess, Stanley M., e Gary B. McGee, eds. Dictionary of Pentecostal and Charismatic
Movements. Grand Rapids: Zondervan, 1988.
Dyrness, William A., ed. Emerging Voices in Global Theology. Grand Rapids: Zondervan,
1994.
Keeley, Robin, ed. Christianity in Today’s World. Grand Rapids: Eerdmans, 1985.
Martin, David. Tongues of Fire: The Explosion of Protestantism in Latin America. Oxford:
Blackwell, 1990.
Newbigin, Leslie. The Gospel in a Pluralist Society. Grand Rapids: Eerdmans, 1989.
Sanneh, Lamin O. Translating the Message: The Missionary Impact on Culture. Maryknoll,
N.Y.: Orbis, 1989.
Apêndice
Alderi S. Matos
A maior parte dos hinos cantados pelos evangélicos brasileiros foi produzida por autores e
compositores estrangeiros. Todavia, existem alguns composições muito conhecidas e
apreciadas que foram criadas por brasileiros, tanto em sua letra como em sua melodia. É o
caso do belo hino “Senhor, eu preciso de ti,” escrito em 1952. O autor da letra é o Rev.
Antônio de Campos Gonçalves (1899-1983), pastor metodista nascido em Araras. Além de
pastorear diversas igrejas, ocupou cargos importantes na Sociedade Bíblica do Brasil, na
Confederação Evangélica do Brasil e na Comissão do Hinário Evangélico. Produziu
inúmeros hinos, traduções e adaptações que estão incluídos em quase todos os hinários
brasileiros. A música foi composta pela maestrina, professora, conferencista e escritora
Henriqueta Rosa Fernandes Braga (1909-1983). Diplomada em Piano, Composição e
Regência pela Escola de Música da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, foi
professora de História da Música naquela Escola. Era membro da Igreja Evangélica
Fluminense e fez parte da Comissão Revisora do hinário Salmos e Hinos. Escreveu muitos
artigos e diversos livros, entre os quais se destaca, pelo seu grande valor histórico, Música
Sacra Evangélica no Brasil, publicado em 1961.
79
Hinário Evangélico, nº 92; Novo Cântico, nº 68.
O padroado foi uma concessão feita pela Igreja Católica a determinados governantes civis,
oferecendo-lhes um certo controle sobre a igreja em seus respectivos territórios como um
reconhecimento por serviços prestados à causa católica e um incentivo a futuras ações em
benefício da igreja. No final do século XV e início do século XVI, diversos papas
publicaram uma série de bulas que concederam direitos de padroado aos reis portugueses,
recompensando-os por seus esforços em derrotar os mouros, descobrir novas terras e trazer
outros povos ao seio da cristandade.
No que diz respeito ao Brasil, essa aliança significava que a coroa portuguesa iria fornecer
os navios para o transporte dos religiosos, financiar o empreendimento missionário,
construir as igrejas e outros edifícios eclesiásticos e pagar o salário dos sacerdotes. Em
contrapartida, teria o direito de nomear os bispos, recolher os dízimos dos fiéis, aprovar os
documentos eclesiásticos e interferir em quase todas as áreas da vida da igreja. Na prática, a
coroa nem sempre cumpriu fielmente as suas obrigações, mas sempre foi muito zelosa no
exercício das suas prerrogativas.
Nas primeiras décadas após o descobrimento, Portugal demonstrou pouco interesse em sua
colônia americana, inclusive no aspecto religioso. A maior prioridade era o comércio, e não
a colonização ou a evangelização dos indígenas. Alguns sacerdotes seculares e frades
franciscanos haviam acompanhado as primeiras expedições portuguesas ao Novo Mundo,
mas nenhum trabalho religioso sistemático foi iniciado por quase meio século.
80
Para a história de como surgiu a Companhia de Jesus, ver o capítulo 9 deste livro.
Por 210 anos, até a sua expulsão de todos os domínios portugueses em 1759, os jesuítas
seriam os principais missionários e educadores do Brasil, exercendo uma influência
inteiramente desproporcional ao seu número. Em geral, a primeira preocupação dos jesuítas
brasileiros foi proteger os índios. Ao fazerem isso, tiveram de defrontar-se com a
hostilidade dos colonos que procuravam escravos para trabalhar nas plantações e engenhos
de cana de açúcar, a principal atividade econômica da colônia.
O ano de 1693 deu início a uma nova fase na história do Brasil: a corrida do ouro em Minas
Gerais. Milhares de pessoas vieram de toda a colônia, de Portugal e até mesmo de outros
países: agricultores, comerciantes, sacerdotes e nobres. A produção do ouro manteve-se alta
até 1760, e então declinou rapidamente. As conseqüências, tanto positivas quanto
negativas, foram profundas. Por um lado, o ciclo do ouro incrementou a ocupação do vasto
interior do Brasil, novas províncias e cidades foram criadas e as fronteiras geográficas se
expandiram grandemente. Todavia, as novas riquezas trouxeram pouca prosperidade para o
povo brasileiro. Elas criaram uma pequena e abastada aristocracia colonial e deram
enormes lucros à perdulária coroa portuguesa.
A obra dos jesuítas tem sido avaliada de diferentes perspectivas. Por um lado, não se pode
deixar de reconhecer os seus corajosos esforços no sentido de combater a escravização dos
indígenas por governantes, colonos e mercadores.81 Sua obra educativa, embora limitada,
também não deve ser esquecida. Muitos estudiosos apontam para o fato de que, durante
cerca de dois séculos, os jesuítas foram uma das principais forças civilizadoras e
81
Além de Anchieta, um dos principais defensores dos indígenas no Brasil colonial foi o célebre padre
Antônio Vieira (1608-1697).
82
Entre os calvinistas estava o sapateiro e futuro pastor Jean de Léry, que escreveu um célebre relato de toda
essa aventura, História de uma Viagem Feita à Terra do Brasil, publicado em Paris em 1578. Léry não
somente descreve a natureza brasileira ainda intacta, mas oferece uma análise extremamente objetiva e
perspicaz da cultura indígena.
Villegaignon, que lhes apresentou uma série de questões teológicas a serem respondidas
por escrito dentro de doze horas.
Aqueles leigos – Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André Lafon e
Jacques Le Balleur – escreveram a notável “Confissão de Fé da Guanabara,” com base na
qual Villegaignon os condenou à morte. Os três primeiros foram executados e Lafon foi
poupado por ser o único alfaiate da colônia. Le Balleur conseguiu escapar e foi parar em
São Vicente. Preso por instigação dos jesuítas, foi levado para Salvador, onde ficou no
cárcere por muitos anos. Em 1567, foi levado para o Rio de Janeiro e enforcado, ao mesmo
tempo em que os últimos franceses eram expulsos. Apesar do seu fracasso, a França
Antártica foi palco da primeira tentativa de missão protestante a um povo não-cristão.
Uma tentativa mais frutífera de implantar uma colônia protestante no Brasil colonial foi
levada a cabo pelos holandeses no século XVII (1630-1654). Após tornar-se independente
da Espanha, a Holanda calvinista dedicou-se a atividades comerciais em escala mundial que
lhe proporcionaram grande prosperidade econômica. Em 1621, os holandeses criaram a
Companhia das Índias Ocidentais com o propósito de promover os seus interesses no Novo
Mundo. Como naquela época Portugal estava sob o controle da Espanha (1580-1640), os
holandeses resolveram atacar o Brasil. Em 1624, eles tomaram Salvador, mas foram
expulsos no ano seguinte. Em 1630, a Companhia das Índias Ocidentais conseguiu tomar as
cidades de Olinda e Recife, no centro de uma rica região produtora de açúcar. Nos anos
seguintes, os batavos ocuparam boa parte do nordeste brasileiro.
O Brasil holandês tinha a sua própria igreja estatal, filiada à Igreja Reformada da Holanda.
Nos vinte e quatro anos do domínio holandês, foram criadas vinte e duas igrejas e
congregações. Nas cidades, os edifícios católicos foram transformados em igrejas
reformadas, como era costume na Europa. Em 1636, o número de igrejas tornou possível a
organização de um presbitério. De fato, por algum tempo houve dois presbitérios
(Pernambuco e Paraíba), que reuniam-se anualmente no Sínodo do Brasil (1642-1646).
Além da assistência religiosa aos colonos europeus, a Igreja Reformada fez um importante
trabalho missionário e assistencial junto aos indígenas. Foi preparado um catecismo na
língua tupi e havia projetos de tradução das Escrituras e formação de pastores nativos. No
que diz respeito aos escravos africanos, a atuação dos holandeses foi menos incisiva.
Teoricamente opostos à escravidão, os calvinistas acabaram mantendo essa prática devido à
grande necessidade de mão de obra nos engenhos. Mesmo assim, eles tomaram algumas
medidas em favor dos escravos, decretando que deveriam receber instrução religiosa, que
os casais não deviam ser separados quando vendidos e que não trabalhassem aos domingos.
Sendo a maior ordem religiosa dos domínios portugueses, bem como a mais rica, influente
e ousada, os jesuítas tinham muitos inimigos entre os líderes eclesiásticos, proprietários de
terras e autoridades civis. Ao mesmo tempo, o ataque desfechado contra eles foi uma
expressão do crescente anticlericalismo que estava se difundindo em muitas partes da
Europa e haveria de ter sua expressão mais radical na Revolução Francesa (1789). Sua
expulsão também resultou do feroz regalismo de Pombal, a idéia de que todos os elementos
da sociedade, particularmente o religioso, devia ser inteiramente subserviente à autoridade
do rei.
A expulsão dos jesuítas debilitou ainda mais uma igreja já enfraquecida por causa de suas
ligações com o estado. Desde o início da colonização do Brasil, a coroa portuguesa foi
vagarosa no seu apoio à igreja e suas instituições. A primeira diocese foi fundada em 1551,
a segunda somente em 1676 e em 1750 havia apenas oito dioceses no vasto território.
Nenhum seminário para o clero secular foi criado até 1739. Todavia, a coroa nunca deixou
de recolher os dízimos dos colonos; de fato, eles tornaram-se o principal tributo do período
colonial.
Os estudiosos tem observado que o catolicismo colonial brasileiro não foi homogêneo.
Desde o início houve duas manifestações distintas e muitas vezes conflitantes: o
catolicismo familiar dos colonos e dos senhores de engenho e o catolicismo mais romano e
universalista das ordens religiosas. O catolicismo familiar girava em torno da pequena
capela doméstica que era parte integrante da casa grande pertencente ao senhor de engenho.
O seu sacerdote com freqüência era um dos filhos mais jovens do proprietário. Esse
sacerdote era mais um empregado do patriarca do que um representante de Roma. O
capelão batizava, casava e sepultava os membros da família, os empregados e os escravos,
ensinava o catecismo às crianças e rezava pelas colheitas. Esse catolicismo familiar
consistia essencialmente na devoção a Maria e aos santos, e caracterizava-se por sua
83
Para um excelente estudo da pessoa e obra de Pombal, ver Kenneth Maxwell, Marquês de Pombal:
Paradoxo do Iluminismo, trad. Antônio de Pádua Danesi (São Paulo: Paz e Terra, 1996).
flexibilidade tanto doutrinária quanto moral. Como a igreja era sustentada pelo senhor de
engenho e subserviente ao mesmo, a sua ética era a mesma da sociedade patriarcal. Em
conseqüência disso, muitos sacerdotes tinham concubinas e criavam os seus filhos
abertamente.
Em contraste com essa religião familiar e popular havia o catolicismo das ordens religiosas,
especialmente os jesuítas. Estes representavam o catolicismo como uma instituição
independente dos homens poderosos da sociedade. Os jesuítas eram a única agência
eclesiástica bem-organizada que havia no país, possuindo uma auto-disciplina moral não
encontrada em outras áreas da igreja brasileira. Todavia, o seu próprio sucesso motivou a
sua ruína. Sua forte utilização do poder político alienou muitas pessoas, inclusive outros
membros da própria igreja. Com a sua expulsão da colônia, uma igreja fraca tornou-se
ainda mais debilitada.
Em síntese, devido tanto às limitações externas quanto a suas debilidades internas, a maior
contribuição do catolicismo colonial brasileiro acabou ocorrendo na área cultural e social, e
não na área religiosa. O catolicismo ao mesmo tempo identificou-se com a cultura e a
sociedade brasileira e foi um fator decisivo na formação da identidade nacional,
contribuindo para manter o vasto país unido em meio às convulsões da sua história.85
84
Eduardo Hoornaert, “A Igreja no Brasil,” em Historia Liberationis: 500 Anos de História da Igreja na
América Latina, org. Enrique Dussel (São Paulo: Paulinas, 1992), 305.
85
O historiador Hubert Herring cita as palavras do sociólogo Gilberto Freyre: “... o catolicismo foi de fato o
cimento da nossa unidade.” A History of Latin America: From the Beginnings to the Present, 3ª ed. (Nova
York: Alfred A. Knopf, 1968), 224.
Dentro dessa nova política, em maio de 1824 chegou ao Brasil o primeiro contingente de
imigrantes protestantes: 334 luteranos alemães acompanhados de seu pastor, Friedrich
Oswald Sauerbronn (1784-1864), que se instalaram em Nova Friburgo, nas proximidades
do Rio de Janeiro. Nos anos seguintes, um número muito maior desses imigrantes iria se
instalar nos estados do sul do Brasil. Em 1827, sob a liderança do cônsul da Prússia,
Wilhelm von Theremin, foi fundada no Rio de Janeiro a Comunidade Evangélica Alemã-
Francesa, composta de luteranos e calvinistas das duas nacionalidades. Seu primeiro pastor,
Ludwig Neumann, dirigiu o culto de consagração do primeiro santuário em maio de 1837.
Esses missionários espalharam-se pelo país, proclamaram a sua fé, plantaram igrejas,
polemizaram com sacerdotes, enfrentaram perseguições, promoveram a literatura e criaram
escolas e hospitais. Seu trabalho foi grandemente auxiliado pelos colportores, isto é, os
vendedores de bíblias que trabalhavam para as sociedades bíblicas britânica e americana.
Como os missionários reproduziram no Brasil as suas estruturas denominacionais norte-
americanas, eventualmente surgiram tensões em virtude da progressiva nacionalização das
novas igrejas. Assim, o final do século XIX e o início do século XX foi marcado por
diversas crises à medida que as denominações evangélicas brasileiras definiam mais
claramente o seu relacionamento com as igrejas-mães do hemisfério norte. No caso dos
presbiterianos, esse processo resultou em um cisma em 1903, com a surgimento da Igreja
Presbiteriana Independente.
A Questão Religiosa
A Questão Religiosa ou Questão dos Bispos, na década de 1870, foi um importante divisor
de águas na história religiosa do Brasil. Ela assinalou o início de uma reação católica contra
a interferência do estado que resultou em uma maior independência da igreja e em uma
profunda revitalização do catolicismo brasileiro.
86
O ultramontanismo, palavra que significa “além dos montes” (no caso os Alpes, numa referência a Roma),
é a afirmação da autoridade suprema do papa em questões de doutrina e governo eclesiástico.
Dom Vital era um capuchinho que havia estudado na França e tinha sido influenciado pelo
espírito ultramontano. Em sua cruzada contra a maçonaria, ele também insistiu que todos os
católicos deixassem essa organização e que as irmandades expulsassem os que se
recusassem a fazê-lo. Quando as irmandades resistiram contra isso, elas e suas igrejas
foram interditadas pelo bispo. Apelando à coroa, elas argumentaram que as encíclicas
papais utilizadas pelo bispo nunca tinham sido aprovadas pelo governo e assim não podiam
ser legalmente aplicadas no Brasil. Acreditando que as suas prerrogativas haviam sido
desafiadas, o império apoiou as irmandades. Quando Dom Vital e Dom Antônio de Macedo
Costa, o bispo do Pará, recusaram-se a anular a interdição, os dois foram condenados a
quatro anos de trabalhos forçados, sendo posteriormente perdoados pelo governo.
O que é mais importante, a Questão Religiosa marcou o início da uma renovação católica
que se aprofundou no período republicano. Nesse processo, a Igreja Católica brasileira
tornou-se mais universalística e mais romana e, portanto, menos identificada com a
sociedade e a cultura nacionais. O próprio sacerdócio tornou-se mais estrangeiro. À medida
que o número dos padres brasileiros continuava a decrescer, houve um aumento do número
de sacerdotes europeus, não somente jesuítas, que haviam retornado ao Brasil na década de
1840, mas de muitas outras ordens religiosas.
Como a Igreja Católica sempre havia exercido a sua influência política e social através das
estruturas do estado, a pastoral de 1890 e outras subseqüentes repudiaram a separação entre
a igreja e o estado. Desde então e até 1930, o brado de guerra da igreja seria a reentrada no
governo “ateu.” Uma das maneiras pelas quais a igreja procurou aumentar a sua influência
foi pelo desenvolvimento da sua organização: criaram-se novas estruturas eclesiásticas
(dioceses, arquidioceses, seminários). Devido à escassez de religiosos, muitos sacerdotes e
freiras de outros países europeus continuaram a chegar ao Brasil.
Dois grandes líderes foram especialmente influentes nessa nova auto-afirmação católica e
no esforço em aumentar a influência da igreja na Primeira República. O primeiro, padre
Júlio Maria, foi muito ativo desde aproximadamente 1890 até a sua morte em 1916,
pregando e escrevendo no sentido de mobilizar a igreja. Seus dois objetivos primordiais
eram tornar o Brasil verdadeiramente católico e unir a igreja e o povo. Avaliando o
catolicismo brasileiro, ele criticou a sua espiritualidade superficial, as cerimônias vazias, a
falta de treinamento religioso, a ignorância generalizada com respeito à fé e as omissões do
clero.
Ainda mais notável foi Sebastião Leme da Silveira Cintra (1882-1942). Como arcebispo de
Olinda e Recife (1916-1921), coadjutor no Rio de Janeiro (1921-1930) e arcebispo da
mesma cidade até a sua morte, ele foi o principal responsável pela mobilização da Igreja
Católica brasileira na primeira metade do século XX. Dom Leme apresentou suas idéias
sobre a igreja e a sua influência em sua famosa pastoral de 1916 dirigida ao povo de Olinda
e Recife. Para ele, o fato fundamental é que o Brasil era essencialmente um país católico.
No entanto, a igreja tinha pouca influência por causa da falta de educação religiosa; o povo
não era instruído na fé e desconhecia os ensinos da igreja. A solução de Dom Leme foi
pressionar o governo a fim de obter para a igreja uma posição legítima nas questões
públicas. Dessa posição, seria fácil promover a educação religiosa e aumentar a influência
da igreja.
Um dos principais instrumentos utilizados para se alcançar a visão de Dom Leme foi um
movimento leigo organizado. A expressão mais importante desse movimento foi o Centro
Dom Vital (1922-1933), uma organização
pequena mas altamente influente que teve uma atuação decisiva nos rumos da igreja, na
política nacional e no desenvolvimento do chamado reavivamento católico do Brasil. O
Centro foi fundado por Jackson de Figueiredo, um assistente direto do Cardeal Leme
conhecido por seu nacionalismo antidemocrático. Ao falecer, em 1928, Figueiredo foi
sucedido pelo mais moderado Alceu Amoroso Lima. O Centro Dom Vital e seu órgão, A
Ordem, procuraram estimular, mobilizar e aumentar a influência da igreja, concentrando-se
primariamente na elite intelectual do país. A entidade atraiu vários dos intelectuais mais
brilhantes desse período e representou um esforço deliberado de cristianizar a
intelectualidade brasileira.
O Advento do Pentecostalismo
Sem dúvida, um dos fenômenos mais marcantes da história recente do cristianismo no
Brasil foi a implantação do movimento pentecostal, poucos anos após o seu surgimento na
América do Norte. Esse movimento representou um grande desafio não só à Igreja
As primeiras igrejas pentecostais surgiram quase que simultaneamente, uma no sul e a outra
no norte do país: a Congregação Cristã no Brasil (1910) e a Assembléia de Deus (1911). Os
fundadores das duas denominações brasileiras eram europeus que emigraram para a região
de Chicago, nos Estados Unidos, filiaram-se inicialmente a igrejas protestantes históricas e
eventualmente abraçaram o novo movimento.
A Congregação Cristã foi fundada pelo italiano Luigi Francescon (1866-1964), que
converteu-se ao evangelho nos Estados Unidos e tornou-se um dos fundadores da Igreja
Presbiteriana Italiana de Chicago. Abraçando o pentecostalismo, veio para o Brasil em
resposta a uma profecia para que levasse a obra pentecostal aos seus patrícios. Iniciou as
suas atividades entre imigrantes italianos residentes em São Paulo e Santo Antonio da
Platina, no Paraná. Por sua vez, a Assembléia de Deus brasileira resultou dos esforços de
dois suecos de origem batista, Gunnar Vingren (1879-1933) e Daniel Berg (1885-1963),
que igualmente emigraram para os Estados Unidos e foram alcançados pelo movimento
pentecostal na cidade de Chicago. Os dois obreiros fixaram-se em Belém do Pará, onde
passaram a freqüentar a igreja batista, cujo pastor também era de nacionalidade sueca.
Alguns meses mais tarde, a mensagem pentecostal de Vingren e Berg produziu um cisma
na igreja, surgindo assim o primeiro grupo da nova denominação.
Essas igrejas virtualmente dominaram o campo pentecostal durante 40 anos, pois as suas
rivais eram poucas e inexpressivas. Das duas pioneiras, a Assembléia de Deus foi a que
mais se expandiu numérica e geograficamente, a ponto de ser praticamente a única
expressão do protestantismo em alguns estados do norte. A Congregação Cristã no Brasil,
após um período em que ficou mais limitada à comunidade italiana, sentiu a necessidade de
assegurar a sua sobrevivência por meio do trabalho entre os brasileiros. Após um
crescimento inicial rápido, foi ultrapassada pela Assembléia de Deus no final dos anos 40,
mas continua sendo uma das maiores igrejas pentecostais do país.
87
Paul Freston observa que a história do movimento pentecostal brasileiro pode ser dividida em três “ondas”
de implantação de igrejas. Ver “Breve História do Pentecostalismo Brasileiro,” em Alberto Antoniazzi e
outros, Nem Anjos nem Demônios: Interpretações Sociológicas do Pentecostalismo (Petrópolis: Vozes, 1994),
70-71.
período entre as duas guerras mundiais.88 Todavia, quem lucrou inicialmente com o novo
modelo não foi a Igreja Quadrangular, excessivamente estrangeira, e sim a sua criativa
dissidência nacionalista, a Igreja O Brasil para Cristo.
88
Ibid., 72.
elegeu três deputados federais. Macedo esteve preso por doze dias em 1992, sob a acusação
de estelionato, charlatanismo e curandeirismo, sendo posteriormente inocentado.89
Outro grupo neopentecostal que também dá grande ênfase à teologia da prosperidade e tem
despertado muito atenção da imprensa nos últimos anos é a Igreja Renascer em Cristo,
fundada em 1985 pelo “apóstolo” Estevam Hernandes e sua esposa, a bispa ou “episcopisa”
Sonia Hernandes. À semelhança de outros líderes pentecostais, Estevam teve uma origem
humilde como filho de um jardineiro de cemitério e começou a trabalhar aos 7 anos,
fazendo carreto em feiras livres. Mais tarde, desiludido com o catolicismo, filiou-se a uma
igreja pentecostal, onde conheceu a futura esposa. Sete anos depois, casaram-se e decidiram
fundar sua própria igreja, que hoje conta com cerca de 50 mil fiéis e mais de 200 templos.
À semelhança dos pastores da IURD, o casal Hernandes tem grande habilidade em
conseguir contribuições dos fiéis; todavia, ao contrário de Edir Macedo, ostenta com
orgulho sinais de riqueza, como roupas caras, jóias e automóveis importados. O casal é
proprietário da rentável Rede Gospel de Comunicação e procurou sem sucesso assumir o
controle da Rede Manchete de televisão.
O Concílio Vaticano II
89
O acontecimento que deu maior publicidade à IURD nos últimos anos foi o episódio do “chute na santa,”
quando, em um programa de televisão transmitido em 12 de outubro de 1995, o bispo Sergio von Helde
referiu-se de modo desairoso à virgem Maria, dando alguns chutes numa imagem da mesma.
Hoje, no findar do século XX, o dinamismo da história revela uma situação profundamente
alterada. A Igreja Católica brasileira retrocede a antigas ênfases e passa por um período de
revitalização e afirmação da sua identidade. Com a condenação formal das posições mais
extremadas da Teologia da Libertação, a questão social já não ocupa o primeiro lugar da
agenda; o mesmo se pode dizer do diálogo ecumênico. Por sua vez, o protestantismo
brasileiro também continua convivendo com as suas contradições: de um lado, crescimento,
vitalidade e toda uma rica folha de serviços prestados à sociedade; de outro lado, o
constante embaraço do divisionismo e a dificuldade de uma interação mais coerente e
construtiva com a cultura e a sociedade.
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“Oh meu Deus! Eu respeitarei a religião do ignorante – a fé daqueles que não têm tantas
ocasiões de conhecer-vos, de venerar-vos de um modo mais digno. Jamais servirei à
vaidade e presunção de tal sorte que abale a fé piedosa de outros, com palavras e ações
inconsideradas... Logo, cooperarei com todas as minhas forças, como exemplo e instrução,
a fim de que se fortifique o entendimento dos fracos... Deus da Verdade! Pai da Luz!
90
Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb, The Republic of Brazil: A Survey of the Religious Situation (Londres:
World Dominion Press, 1932), 135.
Iluminai-me a mim mesmo com vosso Espírito, a fim de que eu me torne sempre mais
sábio, nobre e perfeito. Amém.”91
Leituras Complementares
Antoniazzi, Alberto e outros. Nem Anjos nem Demônios: Interpretações Sociológicas do
Pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994.
Léry, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade
de São Paulo, 1980.
Schalkwijk, Frans Leonard. Igreja e Estado no Brasil Holandês: 1630-1654. 2ª ed. São
Paulo: Vida Nova, 1989.
91
José Manoel da Conceição, “A Ilustração”, Imprensa Evangélica, Ano XVI, Nº 9 (1880), p. 65.
Torres, João Camilo de Oliveira. História das Idéias Religiosas no Brasil: A Igreja e a
Sociedade Brasileira. São Paulo: Grijalbo, 1968.
Momentos Decisivos
na História do
Cristianismo
O que a destruição de Jerusalém, a Reforma, a
Revolução Francesa e a Conferência Missionária de
Edinburgo têm em comum? De acordo com Mark
Noll, esses eventos e outros marcaram momentos
decisivos nos dois mil anos de história do
Cristianismo.