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É preciso olhar os números com frieza. Segundo o livro de estatísticas históricas The World
Economy (OCDE, 2006), de Angus Maddison, até o século XIX a Ásia era o continente com a
maior economia do mundo. Entre os países, a China e a Índia sempre se revezaram nos dois
primeiros postos. Em 1820, a China tinha um Produto Interno Bruto (PIB) de 228,6 bilhões
de equivalentes em dólares de 1990, maior que o de toda a Europa ocidental, de 160,1
bilhões. Em 1870, a China ainda tinha um PIB maior que o da Inglaterra, e a Ásia ainda era
o continente com o maior PIB de todos – respondia por 38,3% da produção mundial,
enquanto a Europa ocidental, por 33,6%. Foi apenas no último quartel do século XIX que a
Ásia perdeu o posto de maior produtora de riquezas entre os continentes, e a China, o de
maior entre os países.
Nos últimos anos do século XX, a Ásia voltou a ser a maior economia entre os continentes, e
há previsões de que a China recobrará o lugar de primeira economia do mundo ainda nesta
primeira metade do século XXI. Posto dessa maneira, o quadro se afigura bem diferente da
visão eurocêntrica tradicional. Em vez disso, talvez um observador do futuro olhe para trás e
veja a Ásia sempre à frente da Europa exceto por um curto período entre o final do século
XIX e início do XXI.
As obras mais recentes dos historiadores asiocêntricos são pouco conhecidas no Brasil, pois
grande parte delas ainda não foi traduzida para o português. O Laboratório de Estudos da
Ásia da Universidade de São Paulo lançou o livro A Ásia no século XXI: olhares brasileiros
(editora Cenegri, 2011), em que há referências introdutórias a esses autores e planeja
publicar um estudo que descreve pormenorizadamente esse debate. Abaixo, os leitores de
História Viva poderão conferir quem são os expoentes dessa escola de pensamento e o que
trouxeram de novo sobre o papel da Ásia, e em particular da China, no mundo.
NOVA VISÃO Uma obra seminal foi ReOrient
(ReOriente), de Andre Gunder Frank. Nos
anos 1960, ele foi um dos idealizadores da
chamada Teoria da Dependência, juntamente
com o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e
o economista Theotonio dos Santos. Na
década de 1990, Frank revelou-se defensor do
novo revisionismo asiacêntrico. Chamou a
atenção para o fato de que não fazia sentido
dizer que a economia mundial era centrada na
Europa no último milênio, quando até o século
XIX a maior parte da produção mundial era
feita na Ásia, e a China sozinha tinha nela um
peso maior que toda a Europa ocidental.
Kenneth Pomeranz, em seu livro The great divergence: Europe, China, and the making of the
modern world (A grande divergência: Europa, China e a formação do mundo moderno),
analisa o que, segundo ele, foi o grande ponto de divergência entre China e Ásia e Inglaterra
e Europa: a Revolução Industrial. De acordo com Pomeranz, foi somente com a
industrialização ao longo do século XIX que a Europa ocidental ganhou espaço antes ocupado
pela China e pelos “tigres asiáticos” da época.
Por que, então, a Revolução Industrial ocorreu na Inglaterra e não na China, por exemplo?
Segundo a polêmica teoria de Pomeranz, foi uma questão de sorte. A tecnologia básica que
transformou o mundo na Revolução Industrial foi a máquina a vapor. A China chegou bem
próxima de desenvolver seu próprio modelo – as partes essenciais de uma máquina a vapor
foram descritas por Wang Chen no século XIV, faltando apenas alguns detalhes práticos
finais. Estes estavam, em grande parte, relacionados com questões de bombeamento. Nas
minas de carvão da Inglaterra, a principal ameaça era de inundação, ao contrário das
chinesas, em que a aridez levava a problemas de autocombustão. Assim, os ingleses tiveram
incentivo maior para desenvolver máquinas de bombeamento, enquanto os chineses se
dedicavam mais aos problemas de ventilação das minas. Para o historiador, isso acabou
levando a Inglaterra a obter a máquina a vapor antes de todos e a largar na frente da
corrida da Revolução Industrial.
John M. Hobson, em seu The Eastern origins of the Western civilization (As origens orientais
da civilização ocidental) dá exemplos de como a China contribuiu para o próprio
deslanchamento da Revolução Industrial na Europa. Tecnologias e produtos chineses
importados pelos europeus foram fundamentais para os avanços nas áreas-chave de
tecelagem e da máquina a vapor.
Às vésperas da Revolução
Industrial, a China liderava o
setor têxtil, e seus avanços na
área da seda influenciaram muito
a indústria inglesa baseada no
algodão. O chamado “grande
caixilho de fiar” chinês fazia para
a seda o que o caixilho à água do
inventor Richard Arkwright faria
posteriormente para o algodão.
Exceto por um detalhe tecnológico
fundamental, as máquinas
orientais realizavam o trabalho
equivalente à máquina de fiar
spinning Jane, de James Máquina de fiar "spinning Jane", um dos avanços ocorridos às vésperas da
Revolução Industrial
Hargreaves, e à lançadeira
volante de John Kay, dois
inventores britânicos.
POLÍTICA Roy Bin Wong, em China transformed: historical change and the limits of
European experience (A China transformada: mudança histórica e os limites da experiência
europeia), chama a atenção para a precocidade de alguns aspectos da experiência política e
social chinesa. O país promoveu no século III a.C., com o chamado Primeiro Imperador, Qin
Shi Huangdi, uma centralização política que em muitos aspectos antecipava à que os países
europeus fariam só após o final da Idade Média, com os reis absolutistas.
A partir de Shi Huangdi, a China padronizou seus pesos, medidas e moedas. Criou ainda uma
burocracia avançada, recrutada por meio de concursos meritocráticos, que desempenhava
tarefas somente assumidas pelos Estados europeus na era moderna. Por exemplo,
recenseamentos regulares ocorriam no país asiático já no primeiro milênio d.C., enquanto
nos países europeus os censos sistemáticos nacionais foram adotados apenas no século XIX.
As medidas de bem-estar social, que em países como a Inglaterra no início da era moderna
se reduziam basicamente a obras de caridade da Igreja, eram uma política de Estado na
China. Por exemplo, o sistema de planejamento de construção de silos de armazenamento
de grãos por todo o país, para o caso de necessidade de redistribuição de comida em épocas
de má colheita, era de uma amplidão impensável nos países europeus até a época
contemporânea.