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DOMINIQUE PERROT
TRADUÇÃO: LÍGIA ROMÃO
REVISÃO TÉCNICA: LUÍSA VALENTINI
“Um lamentável mal entendido. Eu lhe digo volvimento. Quinhentos anos após Cristóvão
que os seus exigem demais de mim; você escreve Colombo gritar que a terra tinha se tornado
no seu caderno que os meus ancestrais talvez te- “pequena”, de fato constatamos que hoje ela
nham vivido com os Mamutes! Eu repito, vocês está não só menor ainda, mas também seria-
vieram destruir a nossa relação com o mundo; mente ameaçada enquanto sistema complexo
você conclui, com um soluço na voz, que sou que se auto-regula. Esse fato, único na história
um arquivo vivo! Você suspeita que eu seja pri- da humanidade e cujas conseqüências começa-
sioneiro de um delírio e me impede de ter qual- mos tardiamente a enxergar, confere à noção de
quer apreensão do real, ao mesmo tempo que autoctonia uma dimensão de geometria variável.
faz de mim a peça principal da sua imaginação! Face ao desenvolvimento insensato, porque
E enquanto você se esforça assim tão conscien- não controlado socialmente, somos todos —
ciosamente em me anular em seu passado, os em graus evidentemente diversos — “povos
seus lutam para me retirar do meu espaço.” autóctones”, ameaçados no único território
Rémi Savard, La voix des autres. [A voz dos outros] que temos à disposição. Não saberíamos, sem
deixar o campo da decência, comparar os tipos
de pressão a que são submetidos, por exemplo,
A volta do choque os índios da Amazônia, de um lado, com os
que sofre o cidadão de uma grande cidade po-
Povos autóctones e desenvolvimento. Uma ex- luída. Isso não impede que doravante a linha
pressão clara e sem surpresas, da qual escorre um demarcatória entre as vítimas e os beneficiários
leve incômodo. Será que ainda não esgotamos as do progresso se dilua em certos momentos e
glosas acerca das noções e das práticas do desen- lugares, e é isso que preocupa aqueles que até
volvimento? Não deveríamos decretar um em- agora monopolizam os privilégios da moder-
bargo à retórica que essas idéias suscitam? E, no nidade. O utilitarismo frenético, ligado ao
entanto, o interesse dessa abordagem está na sua imperativo do crescimento econômico, revela
força evocativa, que apesar de tudo ainda perdu- a cada dia mais do seu caráter irracional e des-
ra. Pois no interior dessa frase existe uma disputa truidor. Sem idealizar a relação entre as socie-
de significado entre duas perspectivas, dois planos dades tradicionais e a natureza (Ellen, 1986),
de realidade que se defrontam e se contradizem. é significativo que a reflexão que busca hoje
Povos autóctones ou desenvolvimento... em dia reintegrar as interdependências entre
Por outro lado, uma situação relativamente fenômenos em escala planetária incorpore as
nova se impõe no contexto dessa dupla relação preocupações recorrentes de inúmeros povos
entre os homens e a natureza que é o desen- indígenas. Deste modo, a noção de “desenvol-
industrial é uma narrativa cujos episódios con- co e cultural determinado, e, portanto, não é
tinuam a ser contados através de realizações em- transcultural, mesmo se ele continua passando
blemáticas, as quais constituem aqueles sinais a idéia de que forma a trama do bem-estar e
que, aos olhos dos incrédulos, deveriam supos- do florescimento dos indivíduos e coletividades
tamente restituir a fé no progresso. em escala mundial.
A dicotomia do “bom” e do “mau” desen-
A noção de desenvolvimento, conceito da ONU volvimento não é então de nenhuma ajuda
e um dos principais desse meio de século, é uma para explicar as práticas além daquelas que
palavra-chave na qual se encontram todas as in- estão ligadas ao aumento da produtividade, à
terpretações ideológicas e políticas dos anos 50 e lógica do lucro individual e à estratégia dita de
60.4 Mas será que houve realmente uma reflexão? “satisfação das necessidades básicas”5. Pensar o
Ela se impôs como noção dominante, ao mesmo desenvolvimento para as populações indígenas
tempo evidente, empírica (medida pelos índices de como aquilo que deveria idealmente ser alimen-
crescimento da produção industrial e do aumento ta a tentação de projetar modelos e valores que
do nível de vida), rica (representando em si mes- supostamente valem para todos. Se quisermos
ma ao mesmo tempo crescimento, florescimento, entender o que acontece realmente, indepen-
e progresso da sociedade e do indivíduo). Mas não dente das intenções e desejos por mais louváveis
notamos que essa noção era também obscura, in- que sejam, é melhor desde já considerarmos o
certa, mitológica, e pobre (Morin, 1977, p.241). desenvolvimento enquanto relação inscrita em
um dado jogo de forças que revela a História. A
Bem que tentamos classificar os problemas natureza dessa relação é caracterizada por uma
pela adição de prefixos: sub-desenvolvimento, valorização geral das pessoas e recursos naturais
“supra-desenvolvimento”, mal-desenvolvimen- através dos mecanismos do mercado. Ou, em ou-
to, auto-desenvolvimento, endo-desenvolvi- tras palavras, por uma transformação sistemá-
mento ou até etnodesenvolvimento. Mas o tica da natureza e das relações sociais em bens
mesmo paradigma (o desenvolvimento) se man- e serviços para o mercado. Visto desse ângulo,
tém apesar de tudo, e com ele a confusão con- o desenvolvimento aparece como o empreen-
ceitual a que está ligado. dimento de destituição e expropriação em pro-
Deste modo, mesmo que a noção de progres- veito de minorias dominantes mais vasto e mais
so seja hoje em dia submetida a sérias críticas, o abrangente que já existiu. É nesse sentido que o
caráter normativo do desenvolvimento como res- “bom” desenvolvimento não poderia existir.
posta positiva e quase mágica aos problemas que “A batalha titânica entre poderes homoge-
ele mesmo contribuiu para criar continua grava- neizadores e capacidades diferenciais” (Lefe-
do nas consciências e no imaginário coletivo. bvre, 1970, p.49) se desenrola no campo do
Os países industrializados, e os que, a exem- desenvolvimento como relação, e constitui seu
plo daqueles, seguem a via do crescimento in- maior risco. Como observa Claude Alvarez,
finito, encarnam em suas práticas esse mito
incrivelmente persistente segundo o qual o o simples fato de manter certos padrões de
desenvolvimento demarca de certa maneira o vida no seu nível atual implica em um estado
traçado da Historia. O evolucionismo social é de guerra permanente. As sociedades avançadas
sua filosofia, tanto explicita quanto latente. estão atualmente esgotando seus recursos a um
Ora, sabemos que o desenvolvimento é ritmo vertiginoso e, por meio das multinacio-
uma noção afluente de um contexto históri- nais e instituições financeiras internacionais,
tentam assegurar o controle de outros. (...) É por serem supostamente alternativas. Com efei-
uma guerra que ocorre em período de paz, que to, falar de auto-desenvolvimento, de etnode-
não poderíamos comparar com aquelas que a senvolvimento e de desenvolvimento endógeno
precederam, mas onde o número de vítimas será não resulta em nada a priori. O desenvolvimen-
muito mais alto, assim como o de soldados sem to não é uma caixa vazia que poderíamos encher
uniforme (Alvarez, 1988, p.59). ao gosto das identidades culturais, mas sim um
conjunto de práticas fundadas em uma visão de
O sistema econômico internacional, os mundo específica e particular ligada a uma histó-
grandes projetos de desenvolvimento e, de ma- ria das nações industrializadas, e nos seguintes
neira mais dissimulada, um grande número de princípios: o indivíduo atomizado como uni-
pequenos projetos, expropriam os povos au- dade de referência “social”; a domesticação e a
tóctones não só de suas terras ou do subsolo, exploração dos recursos naturais sem se preo-
mas, ainda, de suas relações com a natureza, cupar com sua renovação; o lucro; o mercado
o cosmos, os ancestrais e os deuses. Essa desti- mundial; a racionalidade econômica; o pensa-
tuição também diz respeito às relações sociais, mento cartesiano, uma concepção linear e ob-
ao saber indígena, aos laços específicos que dão jetiva do tempo; e uma mitificação da ciência
vida ao tempo e ao espaço. e da técnica. Levando em conta o que precede,
Apesar dos decênios pelo desenvolvimento falar do desenvolvimento auto-centrado ou de
sucessivamente anunciados pelas Nações Uni- etnodesenvolvimento é uma contradição em
das e da elaboração de um quarto decênio em termos, pois ao enfatizar a identidade étnica
vista dos anos 90, somos forçados a reconhe- não conseguimos fazer desaparecer como num
cer a falha global do empreendimento, mesmo passe de mágica os pressupostos culturais (isto
que o tenhamos julgado pela medida das in- é econômicos, sociais e políticos) incluídos na
tenções e promessas expressas. Em contrapar- noção de desenvolvimento que continua a ser,
tida, se invertermos a perspectiva e avaliarmos na ideologia dominante, a referência obrigató-
o desenvolvimento de acordo com os efeitos de ria do bem-estar, ainda que coletivo.
suas práticas, podemos concluir que ele teve Além dos termos, as práticas são teste-
sucesso, na medida em que foi eficaz em seu munhas dessa contradição. Como mostrou
papel transformador dos recursos naturais e Dominique Temple (1988), as organizações
das relações sociais em bens de mercado e em não-governamentais (ONGs) que, em princí-
capital financeiro, e que resultou efetivamente pio, e dado seu tamanho, têm acesso às comu-
na expropriação dos mais pobres em benefício nidades mais carentes e mais isoladas, portanto
dos mais ricos. aos povos autóctones, são as cabeças de chave
de uma introdução tão perigosa em termos de
valores quanto aquela apoiada pela ação de
Alternativas ao desenvolvimento ou atores econômicos mais poderosos. Os proje-
desenvolvimento alternativo? tos das ONGs surtem efeito principalmente
no nível microeconômico, atingindo com isso
Tentar imaginar uma conexão social em re- o sistema da reciprocidade comunitária. A
lação aos povos indígenas que não seja aquela autora cita um exemplo da atividade de uma
formalizada pelo desenvolvimento requer uma grande ONG Norte-Americana que trabalha
radicalização da crítica do desenvolvimento até com as comunidades dos Andes bolivianos.
em suas formas apresentadas como louváveis Nessas comunidades, por ocasião de um casa-
mento, por exemplo, é escolhido um padrinho A noção mesma de “projeto”, canal auto-
que tem sua autoridade fundada nos dons ou mático e aparentemente obrigatório da ajuda,
redistribuições os quais ele preside. A ONG deve ser revista. O projeto corresponde antes
em questão, intitulada “Plan para el Padrino” de tudo a uma necessidade das ONGs: é por
(Projeto para o padrinho), pretende conservar meio deles que elas justificam sua ação e se re-
as relações de “parentesco” entre as famílias in- produzem. Como afirma Esteva,
dígenas e americanas análogas àquelas existen-
tes nas comunidades aymara ou quéchua. As não temos um “projeto”. Temos desejos, espe-
famílias doadoras fornecem os fundos que são ranças, iniciativas e modos de vida que se trans-
distribuídos na comunidade pela ONG. Ana- formam ininterruptamente para se adaptar às
lisando pelo lado dessas doações, esta última mudanças cotidianas da nossa vida.
usurpa a autoridade tradicionalmente exercida
pelo “verdadeiro” padrinho e se aproveita dessa Ora, o trabalho de desenvolvimento junto
situação de poder para propagar valores reli- aos povos autóctones consistiu acima de tudo,
giosos estranhos às comunidades indígenas. E, até recentemente, em modificar com a ajuda
no entanto, os “agentes do desenvolvimento” de projetos a economia indígena de maneira
alegam seguramente que nesse caso o projeto é com que ela esteja em contato com o merca-
testemunha da sua vontade de “levar em con- do, às vezes com a oferta de serviços de saúde
sideração a dimensão cultural do desenvolvi- e educação. Certamente existem exceções, mas
mento”, palavra de ordem do decênio para um poderão elas ser ainda designadas pelo rótulo
desenvolvimento cultural inaugurado em 1988 “projetos de desenvolvimento”? Não seriam
pela Assembléia geral das Nações Unidas. Não elas melhor compreendidas se procurarmos ne-
bastaria repetir exaustivamente que essas boas las as alternativas ao desenvolvimento? Assim
intenções não são ipso facto uma garantia de se deu o caso exemplar do contrato que uniu o
resultados satisfatórios para as “comunidades- Conselho dos Aguaruna e Huambisa no Peru
alvo”. a um organismo composto por profissionais «
O mexicano Gustavo Esteva (1989) veio brancos » (Desenvolvimento do Alto-Marañon,
também, com base em suas experiências no o DAM). A idéia era inverter, com o aval dos
campo do desenvolvimento, a temer ainda índios, as prioridades clássicas do desenvol-
mais o trabalho das ONGs do que aquele dos vimento: os projetos de agricultura, saúde e
especialistas governamentais. marketing foram considerados como simples
meios (ou pretextos) implementados para atingir
A nova onda de “desenvolvedores” provenientes uma finalidade: a constituição de uma organi-
das ONGs e que agora se lança sobre o país é zação autóctone, representativa e autônoma. O
ainda mais ameaçadora do que os especialistas DAM havia estimado um período de dez anos,
convencionais, agentes do progresso. Essa onda os quais seriam necessários para atingir esse ob-
atingiu novos horizontes e penetrou profunda- jetivo. Ao final de nove anos, o Conselho havia
mente.(...) Enquanto os discursos dos especialis- se tornado suficientemente forte e crível para
tas governamentais nunca nos pareceram muito poder dispensar os serviços do DAM nas rela-
convincentes, o compromisso pragmático e bem ções que ele mantinha com os funcionários do
intencionado dos colaboradores das ONGs en- governo, os missionários e os colonos.
fraqueceu nossa resistência e conquistou nossas Nessa mesma ordem de idéias, certas orga-
almas. (Esteva, 1989) nizações indígenas que representam suas comu-
tomavam decisões que afetariam 300 milhões genas) de participar da elaboração, execução e
de pessoas, inconscientes do peso da responsa- avaliação dos planos e programas de desenvol-
bilidade que recaía sobre seus ombros (IWGIA, vimento nacional e regional? Somos levados a
1989, p.169). nos perguntar se os princípios enunciados de
participação e consulta (artigo 6), mas sem que
As delegações de trabalhadores defenderam um consentimento prévio da parte dos povos au-
em princípio a causa indígena, fosse através da tóctones seja requisitado, não correm o risco de
ajuda dos contatos que eles tinham com as or- acarretar, com sua execução, a integração e a
ganizações indígenas, fosse incluindo em suas assimilação que a Convenção estava encarrega-
fileiras representantes indígenas. da de superar.
Em relação aos debates sobre o desenvolvi- A posição dos indígenas presentes não foi
mento, o que estava em jogo eram palavras. Fi- homogênea a esse respeito, pois alguns con-
nalmente, os termos “participação” e “consulta” sideravam que o conceito de participação era
marcaram o limite do reconhecimento dos di- compatível com aquele de controle. Quanto à
reitos indígenas. Eles têm conseqüências pesa- Coalizão nacional das organizações aborígines
das, pois são, no negativo, a perda do controle da Austrália, ela se retirou do processo de revi-
ou do direito de veto sobre os projetos impostos são. Em sua declaração de retirada, defendeu
de fora e que afetam as populações indígenas. O a seguinte posição sobre a questão do direto à
primeiro ponto do artigo 7 da Convenção 107 autodeterminação ligada àquela do consenti-
revisada estipula que: mento prévio:
Os povos interessados deverão ter o direito de Na nossa opinião, o respeito desse direito (à
decidir suas próprias prioridades no que diz autodeterminação) só será garantido na medida
respeito ao processo de desenvolvimento, na em que nosso consentimento está assegurado
medida em que este afete suas vidas, crenças, nas questões que nos dizem respeito. Os go-
instituições e bem estar espiritual e as terras que vernos e empregadores reconhecem muito bem
ocupam ou utilizam de alguma maneira, e de esse direito quando defendem os seus interes-
controlar, na medida do possível, seu próprio ses. Vocês acham que não temos consciência do
desenvolvimento econômico, social e cultural. verdadeiro significado de termos como consul-
Ademais, esses povos deverão participar na for- ta, participação e colaboração? Vocês ficariam
mulação, aplicação e avaliação dos planos e pro- satisfeitos com uma “consulta” como garantia
gramas de desenvolvimento nacional e regional dos seus direitos? A menos que os governos não
que podem afetá-los diretamente.. sejam obrigados a obter o nosso consentimen-
to, nós continuaremos vulneráveis às correntes
Sem querer fazer a exegese desse artigo, é legislativas e administrativas que terão como re-
preciso notar que a adjunção da expressão “tan- sultado inevitável a destituição e a desintegração
to quanto for possível” enfraquece considera- social de nossos povos. As vítimas são sempre as
velmente o direito, há pouco concedido, de primeiras a conhecer a maneira como o sistema
controle dos povos autóctones sobre seu pró- opera (IWGIA, 1989, p.185).
prio desenvolvimento. Por outro lado, quem
irá dizer como conciliar um “desenvolvimento Apesar de suas lacunas, a Convenção revisa-
próprio” e a obrigação (implicitamente apre- da é um instrumento interessante, mas falta ser
sentada como uma concessão a favor dos indí- ratificada pelos Estados. Resta ainda dizer que,
o valor dos homens que transforma sua morte to os produtos da criação fornecem os meios de
simbólica torna-se o valor de substituição que comunicação com os vizinhos agricultores.
os eleva ao status de sujeitos. No entanto, no
Juluru, o valor de um objeto transformado (as
mesas queimadas, portanto sacrificadas) torna- A retórica do desenvolvimento
se o dos homens que se atribuem dessa forma,
o domínio do que aquele objeto representa (...) O futuro dos povos autóctones se desenha
Essas mercadorias trazem consigo sua lei: a lei em termos de etnocídio, integração à sociedade
dos Brancos. Os Aborígines não querem que ela dominante, mestiçagem cultural, sobrevivência
substitua a lei deles, mas poder seguir paralela- ou resistência? Nesse final do século XX, ainda
mente as duas (Glowczewski, 1983, pp.7-35). é possível encontrar casos que correspondem a
cada uma dessas imagens, não sendo essas nada
Como diz a autora, a diferença fundamental mais que modalidades da relação entre os po-
é que esses objetos “brancos” não são sagrados, vos autóctones e o desenvolvimento.
não são metamorfoses das forças vitais das quais Toda preocupação ou interesse com relação
participam os homens de acordo com a lei abo- aos povos autóctones, como também com rela-
rígine tradicional. Mas o Juluru, precisamente, ção ao futuro do planeta, supõe antes de tudo
permite aos Aborígines administrar a mediação a localização rigorosa dos efeitos perversos da
de uma relação diferente com a matéria, o que língua e das práticas do desenvolvimento, uma
torna possível a troca simbólica com os Brancos. compreensão profunda da sua lógica.
O caso dos Ilparakuyo, povo pecuário per-
tencente à família dos Massai, no Quênia, Se o desenvolvimento é sinônimo de cultura oci-
também demonstra a necessidade de ajustes e dental, ou, o que significa a mesma coisa, se é
respostas apropriadas face à ameaça a seu modo indissociável do Projeto que é a sociedade oci-
de vida representada pelas invasões crescentes dental, então implantar “projetos de desenvolvi-
de suas terras e fontes de água pelos campone- mento” nos projetos não-ocidentais é o mesmo
ses que sofrem com o desenvolvimento. Alguns que forçar estacas quadradas em buracos redon-
buscaram, fora das áreas invadidas, espaços dos, retangulares, hexagonais (Singleton, 1990).
que lhes permitiriam continuar a viver como
criadores, enquanto outros acentuaram a in- Diante desse dilema, a problemática da “di-
terdependência no plano econômico com os mensão cultural” (Perrot, 1989) ou a promoção
agricultores de áreas próximas. Essas tentativas do “desenvolvimento cultural”7 só complica a
visam a adaptação a um capitalismo periférico situação. Com efeito, a cultura autóctone não
sem por isso sucumbir à “estabilidade campo- saberia ser uma dimensão do desenvolvimento,
nesa” que tem como efeito, no fim das contas, a uma vez que o desenvolvimento é ele mesmo o cerne
proletarização, a marginalização e a divisão em duro da cultura das sociedades ocidentais. A retórica
classes onde anteriormente ela não existia (Ri- da dimensão cultural se apóia em uma metáfora
gby, 1985). Aqui também, o risco está enraizado inconsciente segundo a qual bastaria despejar o
nas práticas religiosas e rituais que asseguram as conteúdo do desenvolvimento em um recipiente
relações – pacíficas entre os membros do grupo cultural. Ora, a dimensão cultural do desenvolvi-
e os não-Masaï, harmoniosas entre o meio-am- mento é realmente uma contradição em termos,
biente e o sagrado. Nesse contexto, o rebanho é exceto no que diz respeito às sociedades nas quais
uma interface entre natureza e cultura, enquan- o desenvolvimento é o projeto e a religião: quem
ousaria atacar o desenvolvimento sem dar a recei- do de cuidar de todos os assuntos indígenas e
ta para outro... desenvolvimento? inuits em nível federal (1,7 milhões de dólares,
Tentar sair do paradigma dominante supõe 5800 funcionários em 1982), a situação estru-
a compreensão de como funciona a linguagem tural de fundo, isto é, a pobreza indígena face à
do desenvolvimento. Certamente existe um abundância euro-canadense “branca” continua
código técnico cujo domínio permite formular sendo a regra, apesar dos esforços e os anos de
uma proposta de financiamento de um projeto desenvolvimento. Somos forçados a constatar
nos termos que sejam congruentes à ideologia que o essencial está na verdade não no advento
e ao funcionamento burocrático da instituição do desenvolvimento, por sinal impossível de
para a qual se dirige o requerente. Trata-se de encontrar, mas sim na manutenção a todo cus-
uma simples competência que é preciso ad- to dos fluxos financeiros e da reprodução dos
quirir. Não é desse código que queremos fa- organismos de desenvolvimento.
lar aqui, mas sim de um dialeto, uma espécie A fraseologia do desenvolvimento demarca
de esperanto da modernidade. Entre os povos um campo no qual os atores indígenas e não-
autóctones, certas comunidades indígenas e indígenas podem investir juntos sem correr os
inuit do Canadá entenderam a necessidade de riscos de uma ruptura da comunicação, riscos
utilizá-lo levando em conta que é o único idio- presentes quando a confrontação se dá direta-
ma de comunicação entre as diferentes partes mente em termos de representações étnicas ne-
presentes. No caso estudado por Yngwe Ge- gativas e denegridoras.
org Lithman (1984), os diferentes atores em-
penhados nas ações de desenvolvimento (em Expressar a relação em termos de desenvolvi-
Manitoba e no Yukon no Canadá) utilizam mento se torna assim um meio de evitar falar
a linguagem do desenvolvimento, seja como daquilo que existe realmente. (...) Por meio das
instrumento de mediação indispensável para características atemporais, transitórias, difusas e
conseguir dinheiro (perspectiva dos índios), descontextualizadas do idioma do desenvolvi-
seja como meio de legitimar as ações e atrair mento, torna-se possível uma união em torno
fundos (perspectiva da burocracia das agên- da necessidade de manter fluida a circulação dos
cias de desenvolvimento). Enfim, é utilizada recursos (Lithman, 1984, pp.262-263).
também pelos especialistas em suas relações a
fim de conceder a elas uma maior legibilidade, Para os índios, o desenvolvimento seria a
bem como uma legitimidade, uma prova de supressão dos traços negativos da situação atual
que estão realmente no campo do desenvolvi- (antes de tudo a falta de possibilidades de en-
mento. Cada parceiro registra então suas pre- contrar um emprego) e a criação de uma maior
ocupações, necessidades, objetivos, realizações autonomia indígena. Mesmo sem chegar lá, e
em termos de desenvolvimento, mas todos não seria somente para manter o nível sócio-econo-
possuem a mesma concepção do que deveria mico atual, o acesso à assistência é indispensá-
ser esse famoso desenvolvimento. O dialeto do vel e, conseqüentemente, a inserção na retórica
desenvolvimento transforma tudo o que se faz do desenvolvimento é inevitável.
em nome do desenvolvimento em realização de A tarefa não é fácil para os povos autóctones
desenvolvimento, ele tem um caráter performa- que buscam criar uma série de novas relações
tivo quase mágico no plano do imaginário. E, com os Brancos, o dinheiro, os poderes exter-
contudo, na prática, apesar da vasta burocracia nos, outros deuses, relações que não colocam
do Indian and Inuit Affairs (IIA), encarrega- em perigo o cerne duro do edifício tradicional
nem as atribuições da identidade. É, contudo, funcionários dos Países Baixos, e 49 abstenções, entre
no interior das zonas traçadas pelas condições elas a de representantes governamentais da França.
7. Um decênio mundial consagrado ao desenvolvimen-
de possibilidade de sincretismos sutis que atu-
to cultural foi publicado pelas Nações Unidas e a
am as novas formas de uma sobrevivência, UNESCO em 1988. Ver UNESCO (1986).
sempre ameaçada de efemeridade pelo avanço
acelerado da modernidade.
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por ter me oferecido essa oportunidade de pu-
RIST, Gilbert, Le développement dans une perspective inter-
culturelle. Institut universitaire d’études du développe- blicar o meu trabalho, e o professor José Mag-
ment, Genève, 1985, 50 p. nani, que também acredita no meu potencial
_____________ ; Sabelli, Fabrizio. Il était une fois lê dé- de tradutora acadêmica. Por fim, quero agra-
veloppement... Lausanne: éd. d`Em Bas. 1986. 155 p. decer minha família, meus amigos e meu na-
SABELLI, Fabrízio. Pratiques de la reproduction commu- morado, que sempre me apoiaram nessa minha
nautaire: espace, échange, travail, rite chez lês Dagari
trajetória ‘tradutorística’.
traduzido de
PERROT, Dominique. “Les empêcheurs de développer en rond”, Ethnies. Droits de
l’homme et peuples autochtones, n° 13, “La fiction et la feinte. Développement et
peuples autochtones”, Survival International France, 1991.
Recebida em 30/03/2008
Aceita para publicação em 18/08/2008