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Quem impede o desenvolvimento “circular”?

(Desenvolvimento e povos autóctones: paradoxos


e alternativas)

DOMINIQUE PERROT
TRADUÇÃO: LÍGIA ROMÃO
REVISÃO TÉCNICA: LUÍSA VALENTINI

“Um lamentável mal entendido. Eu lhe digo volvimento. Quinhentos anos após Cristóvão
que os seus exigem demais de mim; você escreve Colombo gritar que a terra tinha se tornado
no seu caderno que os meus ancestrais talvez te- “pequena”, de fato constatamos que hoje ela
nham vivido com os Mamutes! Eu repito, vocês está não só menor ainda, mas também seria-
vieram destruir a nossa relação com o mundo; mente ameaçada enquanto sistema complexo
você conclui, com um soluço na voz, que sou que se auto-regula. Esse fato, único na história
um arquivo vivo! Você suspeita que eu seja pri- da humanidade e cujas conseqüências começa-
sioneiro de um delírio e me impede de ter qual- mos tardiamente a enxergar, confere à noção de
quer apreensão do real, ao mesmo tempo que autoctonia uma dimensão de geometria variável.
faz de mim a peça principal da sua imaginação! Face ao desenvolvimento insensato, porque
E enquanto você se esforça assim tão conscien- não controlado socialmente, somos todos —
ciosamente em me anular em seu passado, os em graus evidentemente diversos — “povos
seus lutam para me retirar do meu espaço.” autóctones”, ameaçados no único território
Rémi Savard, La voix des autres. [A voz dos outros] que temos à disposição. Não saberíamos, sem
deixar o campo da decência, comparar os tipos
de pressão a que são submetidos, por exemplo,
A volta do choque os índios da Amazônia, de um lado, com os
que sofre o cidadão de uma grande cidade po-
Povos autóctones e desenvolvimento. Uma ex- luída. Isso não impede que doravante a linha
pressão clara e sem surpresas, da qual escorre um demarcatória entre as vítimas e os beneficiários
leve incômodo. Será que ainda não esgotamos as do progresso se dilua em certos momentos e
glosas acerca das noções e das práticas do desen- lugares, e é isso que preocupa aqueles que até
volvimento? Não deveríamos decretar um em- agora monopolizam os privilégios da moder-
bargo à retórica que essas idéias suscitam? E, no nidade. O utilitarismo frenético, ligado ao
entanto, o interesse dessa abordagem está na sua imperativo do crescimento econômico, revela
força evocativa, que apesar de tudo ainda perdu- a cada dia mais do seu caráter irracional e des-
ra. Pois no interior dessa frase existe uma disputa truidor. Sem idealizar a relação entre as socie-
de significado entre duas perspectivas, dois planos dades tradicionais e a natureza (Ellen, 1986),
de realidade que se defrontam e se contradizem. é significativo que a reflexão que busca hoje
Povos autóctones ou desenvolvimento... em dia reintegrar as interdependências entre
Por outro lado, uma situação relativamente fenômenos em escala planetária incorpore as
nova se impõe no contexto dessa dupla relação preocupações recorrentes de inúmeros povos
entre os homens e a natureza que é o desen- indígenas. Deste modo, a noção de “desenvol-

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vimento sustentável”, sustentáculo do relatório empreendimento colonial propriamente dito, o


da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente discurso compensatório se apoiava nos valores
e Desenvolvimento (1988), é o reflexo, ainda da civilização e da educação, e, com as indepen-
que pálido, da exigência formulada, por exem- dências políticas das ex-colônias, nos de cons-
plo, pelos índios Iroqueses da Confederação trução e integração nacional.
das Seis Nações: “De acordo com um dos prin- Hoje a situação é, à primeira vista, mais
cípios fundamentais da nossa cultura, é preciso difícil de decifrar: como se situar num campo
pensar constantemente no bem-estar das próxi- onde discursos e realizações do progresso, de
mas sete gerações” (Vachon, 1983, p.146). um lado, e práticas de expropriação, do outro,
Não é o objetivo aqui fazer um balanço das se confundem sob uma mesma denominação:
múltiplas intervenções feitas em nome do de- o desenvolvimento? Não basta, para tentar re-
senvolvimento e da “valorização” dos recursos solver esse paradoxo, simplesmente distinguir
naturais que, espoliando os povos autóctones entre o bom e o mau desenvolvimento. Uma
de seu modo de vida, tornam sua existência descolonização conceitual se impõe, visando a
sempre mais precária. Isso já foi feito outras compreensão do alcance dos postulados histo-
vezes2. Em compensação, a questão da so- ricamente determinados que forjam a identida-
brevivência dos povos indígenas no mundo de do desenvolvimento como paradigma.
contemporâneo passa pela contestação do de- Como mostrou Gilbert Rist (1985), a noção
senvolvimento, aqui e acolá, enquanto dogma do desenvolvimento está fundada em três pila-
moderno pretensamente incontornável. res próprios ao Ocidente: Aristóteles, o judaico-
cristianismo e a ideologia do Iluminismo. Não
vou retomar aqui sua demonstração, a não ser
Desenvolvimento, um paradigma para dizer que o desenvolvimento acabou por
fetiche apontar um movimento que, por analogia com
o vivo, aparece ao mesmo tempo como natural,
A natureza do vínculo que hoje em dia for- desejável e inevitável. É assim que somos leva-
ça as populações indígenas ao desenvolvimento dos a acreditar que, a exemplo do crescimento
não é nova se comparada ao que pôde se produ- de uma planta, o desenvolvimento era um pro-
zir no passado. Com efeito, ao longo da histó- cesso linear, cumulativo, contínuo, irreversível
ria, os contatos que visavam à dominação desses e sujeito a uma finalidade. O fracasso do desen-
povos longínquos e até aquele momento des- volvimento em termos globais certamente aba-
conhecidos pelos colonizadores, comerciantes, lou a fé cega na inevitabilidade do movimento.
militares e missionários, foram marcados pelo Contudo, longe de contestar a própria crença
extermínio, pela exploração ou, no mínimo, e as realizações devastadoras que dela resultam,
pela subordinação. Toda vez, esses abusos fo- esses fracassos continuam sendo interpretados
ram cometidos em nome de valores dos quais se como erros de percurso, devidos tanto aos es-
orgulhavam as nações cristãs européias e eram pecialistas e à estrutura do sistema econômico
acompanhados de discursos que visavam ao internacional como aos obstáculos culturais ou
mesmo tempo compensar, explicar e justificar a à má gestão desse ou daquele projeto, a uma fra-
desapropriação e até mesmo o desaparecimento queza teórica ou ainda a uma catástrofe natural,
físico dos povos indígenas. De certa maneira, a ao passo que as partes mandantes da construção
compensação da conquista e da escravidão era do desenvolvimento enquanto mito fundador
de cunho religioso e missionário. Durante o do Ocidente continuam intactas3. A epopéia

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industrial é uma narrativa cujos episódios con- co e cultural determinado, e, portanto, não é
tinuam a ser contados através de realizações em- transcultural, mesmo se ele continua passando
blemáticas, as quais constituem aqueles sinais a idéia de que forma a trama do bem-estar e
que, aos olhos dos incrédulos, deveriam supos- do florescimento dos indivíduos e coletividades
tamente restituir a fé no progresso. em escala mundial.
A dicotomia do “bom” e do “mau” desen-
A noção de desenvolvimento, conceito da ONU volvimento não é então de nenhuma ajuda
e um dos principais desse meio de século, é uma para explicar as práticas além daquelas que
palavra-chave na qual se encontram todas as in- estão ligadas ao aumento da produtividade, à
terpretações ideológicas e políticas dos anos 50 e lógica do lucro individual e à estratégia dita de
60.4 Mas será que houve realmente uma reflexão? “satisfação das necessidades básicas”5. Pensar o
Ela se impôs como noção dominante, ao mesmo desenvolvimento para as populações indígenas
tempo evidente, empírica (medida pelos índices de como aquilo que deveria idealmente ser alimen-
crescimento da produção industrial e do aumento ta a tentação de projetar modelos e valores que
do nível de vida), rica (representando em si mes- supostamente valem para todos. Se quisermos
ma ao mesmo tempo crescimento, florescimento, entender o que acontece realmente, indepen-
e progresso da sociedade e do indivíduo). Mas não dente das intenções e desejos por mais louváveis
notamos que essa noção era também obscura, in- que sejam, é melhor desde já considerarmos o
certa, mitológica, e pobre (Morin, 1977, p.241). desenvolvimento enquanto relação inscrita em
um dado jogo de forças que revela a História. A
Bem que tentamos classificar os problemas natureza dessa relação é caracterizada por uma
pela adição de prefixos: sub-desenvolvimento, valorização geral das pessoas e recursos naturais
“supra-desenvolvimento”, mal-desenvolvimen- através dos mecanismos do mercado. Ou, em ou-
to, auto-desenvolvimento, endo-desenvolvi- tras palavras, por uma transformação sistemá-
mento ou até etnodesenvolvimento. Mas o tica da natureza e das relações sociais em bens
mesmo paradigma (o desenvolvimento) se man- e serviços para o mercado. Visto desse ângulo,
tém apesar de tudo, e com ele a confusão con- o desenvolvimento aparece como o empreen-
ceitual a que está ligado. dimento de destituição e expropriação em pro-
Deste modo, mesmo que a noção de progres- veito de minorias dominantes mais vasto e mais
so seja hoje em dia submetida a sérias críticas, o abrangente que já existiu. É nesse sentido que o
caráter normativo do desenvolvimento como res- “bom” desenvolvimento não poderia existir.
posta positiva e quase mágica aos problemas que “A batalha titânica entre poderes homoge-
ele mesmo contribuiu para criar continua grava- neizadores e capacidades diferenciais” (Lefe-
do nas consciências e no imaginário coletivo. bvre, 1970, p.49) se desenrola no campo do
Os países industrializados, e os que, a exem- desenvolvimento como relação, e constitui seu
plo daqueles, seguem a via do crescimento in- maior risco. Como observa Claude Alvarez,
finito, encarnam em suas práticas esse mito
incrivelmente persistente segundo o qual o o simples fato de manter certos padrões de
desenvolvimento demarca de certa maneira o vida no seu nível atual implica em um estado
traçado da Historia. O evolucionismo social é de guerra permanente. As sociedades avançadas
sua filosofia, tanto explicita quanto latente. estão atualmente esgotando seus recursos a um
Ora, sabemos que o desenvolvimento é ritmo vertiginoso e, por meio das multinacio-
uma noção afluente de um contexto históri- nais e instituições financeiras internacionais,

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tentam assegurar o controle de outros. (...) É por serem supostamente alternativas. Com efei-
uma guerra que ocorre em período de paz, que to, falar de auto-desenvolvimento, de etnode-
não poderíamos comparar com aquelas que a senvolvimento e de desenvolvimento endógeno
precederam, mas onde o número de vítimas será não resulta em nada a priori. O desenvolvimen-
muito mais alto, assim como o de soldados sem to não é uma caixa vazia que poderíamos encher
uniforme (Alvarez, 1988, p.59). ao gosto das identidades culturais, mas sim um
conjunto de práticas fundadas em uma visão de
O sistema econômico internacional, os mundo específica e particular ligada a uma histó-
grandes projetos de desenvolvimento e, de ma- ria das nações industrializadas, e nos seguintes
neira mais dissimulada, um grande número de princípios: o indivíduo atomizado como uni-
pequenos projetos, expropriam os povos au- dade de referência “social”; a domesticação e a
tóctones não só de suas terras ou do subsolo, exploração dos recursos naturais sem se preo-
mas, ainda, de suas relações com a natureza, cupar com sua renovação; o lucro; o mercado
o cosmos, os ancestrais e os deuses. Essa desti- mundial; a racionalidade econômica; o pensa-
tuição também diz respeito às relações sociais, mento cartesiano, uma concepção linear e ob-
ao saber indígena, aos laços específicos que dão jetiva do tempo; e uma mitificação da ciência
vida ao tempo e ao espaço. e da técnica. Levando em conta o que precede,
Apesar dos decênios pelo desenvolvimento falar do desenvolvimento auto-centrado ou de
sucessivamente anunciados pelas Nações Uni- etnodesenvolvimento é uma contradição em
das e da elaboração de um quarto decênio em termos, pois ao enfatizar a identidade étnica
vista dos anos 90, somos forçados a reconhe- não conseguimos fazer desaparecer como num
cer a falha global do empreendimento, mesmo passe de mágica os pressupostos culturais (isto
que o tenhamos julgado pela medida das in- é econômicos, sociais e políticos) incluídos na
tenções e promessas expressas. Em contrapar- noção de desenvolvimento que continua a ser,
tida, se invertermos a perspectiva e avaliarmos na ideologia dominante, a referência obrigató-
o desenvolvimento de acordo com os efeitos de ria do bem-estar, ainda que coletivo.
suas práticas, podemos concluir que ele teve Além dos termos, as práticas são teste-
sucesso, na medida em que foi eficaz em seu munhas dessa contradição. Como mostrou
papel transformador dos recursos naturais e Dominique Temple (1988), as organizações
das relações sociais em bens de mercado e em não-governamentais (ONGs) que, em princí-
capital financeiro, e que resultou efetivamente pio, e dado seu tamanho, têm acesso às comu-
na expropriação dos mais pobres em benefício nidades mais carentes e mais isoladas, portanto
dos mais ricos. aos povos autóctones, são as cabeças de chave
de uma introdução tão perigosa em termos de
valores quanto aquela apoiada pela ação de
Alternativas ao desenvolvimento ou atores econômicos mais poderosos. Os proje-
desenvolvimento alternativo? tos das ONGs surtem efeito principalmente
no nível microeconômico, atingindo com isso
Tentar imaginar uma conexão social em re- o sistema da reciprocidade comunitária. A
lação aos povos indígenas que não seja aquela autora cita um exemplo da atividade de uma
formalizada pelo desenvolvimento requer uma grande ONG Norte-Americana que trabalha
radicalização da crítica do desenvolvimento até com as comunidades dos Andes bolivianos.
em suas formas apresentadas como louváveis Nessas comunidades, por ocasião de um casa-

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mento, por exemplo, é escolhido um padrinho A noção mesma de “projeto”, canal auto-
que tem sua autoridade fundada nos dons ou mático e aparentemente obrigatório da ajuda,
redistribuições os quais ele preside. A ONG deve ser revista. O projeto corresponde antes
em questão, intitulada “Plan para el Padrino” de tudo a uma necessidade das ONGs: é por
(Projeto para o padrinho), pretende conservar meio deles que elas justificam sua ação e se re-
as relações de “parentesco” entre as famílias in- produzem. Como afirma Esteva,
dígenas e americanas análogas àquelas existen-
tes nas comunidades aymara ou quéchua. As não temos um “projeto”. Temos desejos, espe-
famílias doadoras fornecem os fundos que são ranças, iniciativas e modos de vida que se trans-
distribuídos na comunidade pela ONG. Ana- formam ininterruptamente para se adaptar às
lisando pelo lado dessas doações, esta última mudanças cotidianas da nossa vida.
usurpa a autoridade tradicionalmente exercida
pelo “verdadeiro” padrinho e se aproveita dessa Ora, o trabalho de desenvolvimento junto
situação de poder para propagar valores reli- aos povos autóctones consistiu acima de tudo,
giosos estranhos às comunidades indígenas. E, até recentemente, em modificar com a ajuda
no entanto, os “agentes do desenvolvimento” de projetos a economia indígena de maneira
alegam seguramente que nesse caso o projeto é com que ela esteja em contato com o merca-
testemunha da sua vontade de “levar em con- do, às vezes com a oferta de serviços de saúde
sideração a dimensão cultural do desenvolvi- e educação. Certamente existem exceções, mas
mento”, palavra de ordem do decênio para um poderão elas ser ainda designadas pelo rótulo
desenvolvimento cultural inaugurado em 1988 “projetos de desenvolvimento”? Não seriam
pela Assembléia geral das Nações Unidas. Não elas melhor compreendidas se procurarmos ne-
bastaria repetir exaustivamente que essas boas las as alternativas ao desenvolvimento? Assim
intenções não são ipso facto uma garantia de se deu o caso exemplar do contrato que uniu o
resultados satisfatórios para as “comunidades- Conselho dos Aguaruna e Huambisa no Peru
alvo”. a um organismo composto por profissionais «
O mexicano Gustavo Esteva (1989) veio brancos » (Desenvolvimento do Alto-Marañon,
também, com base em suas experiências no o DAM). A idéia era inverter, com o aval dos
campo do desenvolvimento, a temer ainda índios, as prioridades clássicas do desenvol-
mais o trabalho das ONGs do que aquele dos vimento: os projetos de agricultura, saúde e
especialistas governamentais. marketing foram considerados como simples
meios (ou pretextos) implementados para atingir
A nova onda de “desenvolvedores” provenientes uma finalidade: a constituição de uma organi-
das ONGs e que agora se lança sobre o país é zação autóctone, representativa e autônoma. O
ainda mais ameaçadora do que os especialistas DAM havia estimado um período de dez anos,
convencionais, agentes do progresso. Essa onda os quais seriam necessários para atingir esse ob-
atingiu novos horizontes e penetrou profunda- jetivo. Ao final de nove anos, o Conselho havia
mente.(...) Enquanto os discursos dos especialis- se tornado suficientemente forte e crível para
tas governamentais nunca nos pareceram muito poder dispensar os serviços do DAM nas rela-
convincentes, o compromisso pragmático e bem ções que ele mantinha com os funcionários do
intencionado dos colaboradores das ONGs en- governo, os missionários e os colonos.
fraqueceu nossa resistência e conquistou nossas Nessa mesma ordem de idéias, certas orga-
almas. (Esteva, 1989) nizações indígenas que representam suas comu-

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nidades estão produzindo um conhecimento Direito ao desenvolvimento e povos


sociológico aprofundado e complexo das mu- autóctones
danças políticas e organizacionais da ajuda.
Prova isso uma organização indígena que re- No final de 1986, as Nações Unidas pu-
dige suas demandas com termos que levam em blicaram discursos que tratavam do desen-
conta a identidade da organização doadora. Ela volvimento, uma “Declaração sobre o direito
propôs a um organismo religioso ecumênico ao desenvolvimento”. Esse texto não leva em
de apoiar o “ecumenismo indígena”. O proje- consideração os problemas do meio ambiente
to real dizia respeito na verdade à formação de criados pelo desenvolvimento, nem menciona
líderes indígenas. Nesse caso específico, e em os povos indígenas e sua posição particular no
outros, não se trata sempre de simples jogos e contexto do Estado-nação. O desenvolvimento
falcatruas, mas sim de uma aliança com alguém é aí definido como
de dentro da ONG que esteja determinado a
trabalhar para permitir a exploração pelos “par- um processo global, econômico, social, cultural
ceiros” dessa margem de manobra ainda dispo- e político, que visa melhorar continuamente o
nível graças à engenhosidade. Entenderemos bem-estar do conjunto da população e de to-
com facilidade que a informação que diz res- dos os indivíduos, com base em sua participação
peito a essa apropriação de conhecimento deve ativa, livre e significativa pelo desenvolvimento
ser mantida em segredo. Os Nandeva do Para- e na divisão eqüitativa dos benefícios que dele
guay até criaram uma expressão, “a caça à aju- advêm (ONU, 1986).
da”. O manual de campo publicado em 1988
pela OXFAM (Beauclerk; Narby, Townsend, Assim, os sujeitos do desenvolvimento são
1988) fornece as diretrizes de reflexão e ação também os objetos no interior de um processo
para as ONGs que trabalham em ambientes que evoca a metáfora de um avião sem piloto,
autóctones. Na medida em que admitimos que o qual não se sabe de onde vem nem para onde
certas ONGs têm às vezes um papel a desem- vai. Por outro lado, como se trata de uma defi-
penhar dento de certos limites bem precisos, nição idealista daquilo que o desenvolvimento
esse manual é um modelo desse gênero. deveria ser, os interesses e conflitos que estão
De qualquer forma, seria uma boa idéia se os em jogo e que sozinhos imprimem suas marcas
agentes do desenvolvimento junto aos povos in- no campo são anulados como por um passe de
dígenas considerassem a seguinte recomendação: mágica. A impressão de irrealidade que emana
dos diferentes artigos, acentuada pelo uso fre-
No que diz respeito aos projetos de desenvolvi- qüente da tautologia, nos esclarece antes sobre
mento que supostamente beneficiariam as mi- as limitações retóricas necessárias à redação de
norias, deveríamos, em geral, partir da hipótese um texto que deverá ser aprovado pelos Esta-
segundo a qual os projetos correm o risco de dos membros das Nações Unidas, que sobre a
serem implantados em detrimento das popu- maneira como um grupo, um indivíduo ou um
lações e inverter o fardo da prova: estabelecer Estado poderá exercer esse direito ao desenvol-
primeiro se o projeto tem condições de cumprir vimento. O valor performativo da Declaração
uma função protetora indispensável e avaliar se se contenta com seu caráter encantatório e de-
o desenvolvimento desejado pela minoria será clamativo.
ou não impedido por essa intervenção exterior Citando o artigo 1.2,
(Rediske; Schneider, 1987, pp.155-160).

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O direito humano ao desenvolvimento implica Definir os elementos do direito ao desenvolvi-


também a plena realização do direito de auto- mento apresenta ainda grandes dificuldades,
determinação dos povos que inclui, sujeito às pois, além de ter que vencer a resistência da re-
disposições relevantes de ambos os Pactos Inter- lação de forças é preciso ainda:
nacionais sobre Direitos Humanos, o exercício - especificar o conteúdo e os titulares desse di-
de seu direito inalienável de soberania plena reito;
sobre todas as suas riquezas e recursos naturais. - dizer quem o irá garantir e como;
(ONU, 1986) - regulamentar a contradição entre o direito ao
desenvolvimento e as outras regras do direito in-
Os povos autóctones e as minorias não es- ternacional (Gendreau, 1988, p.248).
tão explicitamente nomeados, e com razão: o
direito ao desenvolvimento associado ao direi- Além das dificuldades aqui mencionadas,
to à autodeterminação diz respeito somente às como evitar o etnocentrismo de uma defini-
populações nacionais consideradas em sua ho- ção normativa deixando o desenvolvimento
mogeneidade fictícia. Isso não impede que esse no singular?
artigo reúna no papel o que esses povos indíge- Para os povos autóctones, é antes de tudo
nas sempre exigiram, a saber, a autodetermina- o direito à autodeterminação que constitui o
ção, a inalienabilidade das terras e dos recursos imperativo primordial. Só depois da garantia
e a soberania sobre seu território. Ao mesmo dos direitos elementares à vida e à liberdade,
tempo, esses princípios não estão, a nosso ver, aos quais está ligada a sobrevivência do grupo
e como pretende a Declaração, incluídos no di- como tal, é que ele estará em condições de defi-
reito ao desenvolvimento. Por um lado porque nir o que espera ou rejeita da modernidade.
eles o precedem, e de longe, no tempo; e por Se a declaração sobre o direito ao desenvol-
outro lado porque a autodeterminação é um vimento não menciona a existência de povos
princípio cujas diferentes modalidades de apli- autóctones, a versão revisada da convenção 107
cação não saberíamos julgar. Estas dependerão sobre as populações tribais e indígenas, adotada
do projeto social e existencial de cada grupo, pelo BIT6, trata só deles. É aí, especificamen-
tendo em vista o seu meio ambiente e a natu- te, que as coisas se complicam: a participação
reza da relação que o coloca em conflito com a dos representantes dos povos indígenas na ela-
sociedade nacional, do Estado e das forças eco- boração do texto foi muito marginal. Cada
nômicas transnacionais. organização teve a oportunidade de fazer uma
Conseqüentemente, não saberíamos fazer breve declaração no primeiro dia da reunião
equivaler o direito à autodeterminação e o do comitê e depois um comunicado durante
direito ao desenvolvimento, visto que a pro- as diferentes etapas da discussão. O resto do
clamação recente de um direito ao desenvol- tempo os representantes indígenas foram rele-
vimento tem como conseqüência cobrir com gados à periferia do debate, reduzidos ao status
um véu as relações de força e os jogos políticos de espectadores da encenação dos seus direitos
nos quais está inscrita a luta dos povos indíge- fundamentais. Além disso, como menciona o
nas pelo direito à autodeterminação. Esse esta- relatório anual do IWGIA de 1988:
do de coisas se estende naturalmente às outras
categorias sociais dominadas, diante das quais Estava claro que muitos daqueles que parti-
agitamos a bandeira do desenvolvimento como ciparam abertamente da reunião não tinham
remédio para todo mal... experiência alguma com questões indígenas e

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tomavam decisões que afetariam 300 milhões genas) de participar da elaboração, execução e
de pessoas, inconscientes do peso da responsa- avaliação dos planos e programas de desenvol-
bilidade que recaía sobre seus ombros (IWGIA, vimento nacional e regional? Somos levados a
1989, p.169). nos perguntar se os princípios enunciados de
participação e consulta (artigo 6), mas sem que
As delegações de trabalhadores defenderam um consentimento prévio da parte dos povos au-
em princípio a causa indígena, fosse através da tóctones seja requisitado, não correm o risco de
ajuda dos contatos que eles tinham com as or- acarretar, com sua execução, a integração e a
ganizações indígenas, fosse incluindo em suas assimilação que a Convenção estava encarrega-
fileiras representantes indígenas. da de superar.
Em relação aos debates sobre o desenvolvi- A posição dos indígenas presentes não foi
mento, o que estava em jogo eram palavras. Fi- homogênea a esse respeito, pois alguns con-
nalmente, os termos “participação” e “consulta” sideravam que o conceito de participação era
marcaram o limite do reconhecimento dos di- compatível com aquele de controle. Quanto à
reitos indígenas. Eles têm conseqüências pesa- Coalizão nacional das organizações aborígines
das, pois são, no negativo, a perda do controle da Austrália, ela se retirou do processo de revi-
ou do direito de veto sobre os projetos impostos são. Em sua declaração de retirada, defendeu
de fora e que afetam as populações indígenas. O a seguinte posição sobre a questão do direto à
primeiro ponto do artigo 7 da Convenção 107 autodeterminação ligada àquela do consenti-
revisada estipula que: mento prévio:

Os povos interessados deverão ter o direito de Na nossa opinião, o respeito desse direito (à
decidir suas próprias prioridades no que diz autodeterminação) só será garantido na medida
respeito ao processo de desenvolvimento, na em que nosso consentimento está assegurado
medida em que este afete suas vidas, crenças, nas questões que nos dizem respeito. Os go-
instituições e bem estar espiritual e as terras que vernos e empregadores reconhecem muito bem
ocupam ou utilizam de alguma maneira, e de esse direito quando defendem os seus interes-
controlar, na medida do possível, seu próprio ses. Vocês acham que não temos consciência do
desenvolvimento econômico, social e cultural. verdadeiro significado de termos como consul-
Ademais, esses povos deverão participar na for- ta, participação e colaboração? Vocês ficariam
mulação, aplicação e avaliação dos planos e pro- satisfeitos com uma “consulta” como garantia
gramas de desenvolvimento nacional e regional dos seus direitos? A menos que os governos não
que podem afetá-los diretamente.. sejam obrigados a obter o nosso consentimen-
to, nós continuaremos vulneráveis às correntes
Sem querer fazer a exegese desse artigo, é legislativas e administrativas que terão como re-
preciso notar que a adjunção da expressão “tan- sultado inevitável a destituição e a desintegração
to quanto for possível” enfraquece considera- social de nossos povos. As vítimas são sempre as
velmente o direito, há pouco concedido, de primeiras a conhecer a maneira como o sistema
controle dos povos autóctones sobre seu pró- opera (IWGIA, 1989, p.185).
prio desenvolvimento. Por outro lado, quem
irá dizer como conciliar um “desenvolvimento Apesar de suas lacunas, a Convenção revisa-
próprio” e a obrigação (implicitamente apre- da é um instrumento interessante, mas falta ser
sentada como uma concessão a favor dos indí- ratificada pelos Estados. Resta ainda dizer que,

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como destaca M. Helms, relator da convenção de maneira irreversível a lógica essencialmente


107, “nenhum texto pode resgatar séculos de transitiva do desenvolvimento. Em compensa-
erros, mas tal texto pode ser uma declaração ção, rejeitar o desenvolvimento é recusar uma
de intenção”. Jacques Decornoy (1989) escre- relação assimétrica que visa converter as pes-
ve a respeito dessa nova convenção: “Seriam soas em elementos atomizados e enfraquecidos
necessárias batalhas longas, sangrentas e mul- de um vasto movimento controlador e impes-
tiformes para que essas vozes minoritárias se- soal. Recusar o desenvolvimento é assumir seu
jam enfim ouvidas” (Decornoy, 1989). Isso é próprio destino e não estagná-lo ou retardá-lo,
concluir apressadamente: nossa escuta estaria a como considera a visão mítica de uma história
tal ponto distorcida que acreditamos escutar as linear própria do Ocidente.
vozes daqueles que silenciamos no seio mesmo Segundo paradoxo: toda sociedade, por for-
da discussão de uma convenção que visava pre- ça de sua reprodução, deve saber enfrentar a
cisamente melhorar o destino dos povos indí- mudança. Esse paradoxo existencial também
genas? Na verdade esperamos que essas “vozes” é verdadeiro para as sociedades comunitárias
participem, sejam consultadas, mas que elas forçadas a entrar em contato com a sociedade
não se atribuam o direito de recusar o desen- moderna tradicional (a tradição da novidade a
volvimento ou de controlar inteiramente o que qualquer preço, a qual o Ocidente tanto susten-
acontece em suas terras. ta, não faz dele uma sociedade tradicional?).

O funcionamento dos mecanismos de reprodu-


Paradoxos do desenvolvimento ção comunitária é a condição do aparecimen-
to das práticas de produção do “novo”, que é
Quando a relação de desenvolvimento visa logicamente seu oposto. Da mesma forma, essa
os povos indígenas, ela se choca com alguns pa- produção de sentido, isto é, essa produção de
radoxos. O primeiro considera que não se pode categorias de pensamento, de organização, de
desenvolver o que já está desenvolvido. Sem instituições destinadas a fazer parte integrante
querer negar a grande diversidade de situações e de um universo social específico (a comunida-
histórias particulares, podemos adiantar que os de) que se apresenta e que é reconhecida às vezes
povos autóctones se distinguem dos outros seg- como uma ruptura em relação ao passado não
mentos da sociedade nacional pelo fato de que é, definitivamente, nada além de uma maneira
não são “desenvolvidos” no sentido comum do de ser sociologicamente necessária à reprodução
termo. Na verdade, as sociedades tradicionais (Sabelli, 1984, p.8).
não aderem à noção de lucro individual infini-
to. Tais sociedades praticam uma economia da Terceiro paradoxo, ligado pela lógica ao pri-
reciprocidade, muitas vezes mais importante meiro: quanto mais economicamente pobre é
que aquela do comércio de mercado; elas não uma sociedade, mais a ajuda, mesmo que bem
têm acesso ao avanço científico do conhecimen- intencionada, é mal absorvida e tem um efeito
to, isto é, à reflexividade sistemática e ao deslo- desestabilizador. É a própria natureza das próprias
camento cognitivo em seu axioma e produzem sociedades autóctones que as faz especificamen-
uma racionalidade holística do social, antes que te vulneráveis em seus contatos com segmentos
uma racionalidade puramente econômica, para de uma sociedade nacional caracterizada por um
evocar apenas alguns traços fundamentais que sistema econômico, político e legal centralizado e
as caracterizam. Ser desenvolvido é ter aceitado por uma divisão do trabalho complexa.

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A lógica do desenvolvimento tende a trans- o compromisso cultural não se expressa por


formar em razões para intervir os fundamentos meio de fragmentos dissociados reunidos em
de alteridade, a saber, as relações de parentesco, uma colagem precária: ele se desempenhará,
o sistema de reciprocidade, a instituição do dom pelo contrário, pela dupla negação dos princí-
e do contra-dom, a propriedade coletiva da terra pios fundamentais e contraditórios de cada um
ou as relações com o mundo da natureza e dos dos dois sistemas. É somente após a recusa de
ancestrais. Por sua vez, o discurso do desenvolvi- cada um nos termos do outro que as representa-
mento investe as sociedades indígenas de supos- ções em conflito poderão ser fundidas numa
tas necessidades estranhas ao seu projeto social. representação sincrética única, onde sua oposi-
Se o primeiro e o segundo paradoxo expõem ção deixará de se manifestar.Ademais, cada traço
a vulnerabilidade das sociedades indígenas face sincrético será portador desse duplo movimento
à lógica específica do desenvolvimento, o ter- de ruptura e continuidade com a Tradição, de
ceiro incita um maior otimismo, pelo menos a afirmação e negação do arcaico, de assimilação e
curto prazo. de rejeição da participação ocidental (Babadzan,
A hipótese que resulta disso é a seguinte: 1985, pp.117-118).
quando certo espaço e tempo lhes são ofereci-
dos, os povos autóctones conseguem, a despeito Cada fragmento tributário de universos
dos conflitos internos e das renúncias impostas, culturais antagônicos está “previamente inter-
elaborar táticas que lhes permitem se reinter- mediado”, e são esses elementos intermediados
pretar numa nova situação ou ambiente, e se que o sincretismo une. Babadzan acrescenta
adaptar sem se renegarem. Falar de aculturação que isso só se dá quando elementos importantes
nesse caso seria correr o risco de ficar devendo aparecem como radicalmente incompatíveis no
muito a universos teóricos predeterminados e interior de um dado universo cultural e quando
que não dão importância suficiente aos desen- sua superação é indispensável à reprodução so-
volvimentos recentes no universo dos contatos cio-cultural do grupo. Esse é o caso de uma das
interculturais. Na verdade, trata-se freqüente- figuras centrais do sincretismo religioso da Poli-
mente de uma coabitação de vários níveis tradi- nésia: os Varua’ino, que vêm ao mesmo tempo
cionais e modernos cuja articulação requer todo da religião tradicional e da religião cristã.
um trabalho social e simbólico delicado, e que O exemplo do Juluru, culto dos aborígines
não saberíamos reduzir nem a uma resistência da Austrália ocidental e central, é também tes-
declarada nem ao efeito de uma sobrevivência temunha de uma elaboração cultural que visa o
passiva. Esse trabalho, quando obtém “sucesso”, controle de uma situação nova. Resumindo ex-
culmina na criação das condições para uma su- tremamente a análise que Barbara Glowczewski
peração possível da dupla restrição com a qual (1983) faz desse culto de iniciação, podemos
se choca toda a sociedade em contato mais ou dizer que os homens, por meio da queima de
menos forçado com outra que a domina: ter um objeto (as “mesas”), obtêm ao término des-
que negar a si mesmo e não poder fazê-lo, ter sa transformação o domínio sobre uma nova
que assimilar elementos estranhos e também relação com o objeto. Existe, portanto, uma
não poder, isso sem falar na vontade, que mui- adaptação face a uma conjuntura inédita por
tas vezes falta, apesar da força de sedução de cer- meio de uma inversão: o culto tradicional con-
tos aspectos materiais do “modelo” exógeno. sagrava a morte iniciática do homem (e não do
Em sua análise de algumas organizações da objeto),
Oceania, Alain Babadzan (1985) destaca que

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o valor dos homens que transforma sua morte to os produtos da criação fornecem os meios de
simbólica torna-se o valor de substituição que comunicação com os vizinhos agricultores.
os eleva ao status de sujeitos. No entanto, no
Juluru, o valor de um objeto transformado (as
mesas queimadas, portanto sacrificadas) torna- A retórica do desenvolvimento
se o dos homens que se atribuem dessa forma,
o domínio do que aquele objeto representa (...) O futuro dos povos autóctones se desenha
Essas mercadorias trazem consigo sua lei: a lei em termos de etnocídio, integração à sociedade
dos Brancos. Os Aborígines não querem que ela dominante, mestiçagem cultural, sobrevivência
substitua a lei deles, mas poder seguir paralela- ou resistência? Nesse final do século XX, ainda
mente as duas (Glowczewski, 1983, pp.7-35). é possível encontrar casos que correspondem a
cada uma dessas imagens, não sendo essas nada
Como diz a autora, a diferença fundamental mais que modalidades da relação entre os po-
é que esses objetos “brancos” não são sagrados, vos autóctones e o desenvolvimento.
não são metamorfoses das forças vitais das quais Toda preocupação ou interesse com relação
participam os homens de acordo com a lei abo- aos povos autóctones, como também com rela-
rígine tradicional. Mas o Juluru, precisamente, ção ao futuro do planeta, supõe antes de tudo
permite aos Aborígines administrar a mediação a localização rigorosa dos efeitos perversos da
de uma relação diferente com a matéria, o que língua e das práticas do desenvolvimento, uma
torna possível a troca simbólica com os Brancos. compreensão profunda da sua lógica.
O caso dos Ilparakuyo, povo pecuário per-
tencente à família dos Massai, no Quênia, Se o desenvolvimento é sinônimo de cultura oci-
também demonstra a necessidade de ajustes e dental, ou, o que significa a mesma coisa, se é
respostas apropriadas face à ameaça a seu modo indissociável do Projeto que é a sociedade oci-
de vida representada pelas invasões crescentes dental, então implantar “projetos de desenvolvi-
de suas terras e fontes de água pelos campone- mento” nos projetos não-ocidentais é o mesmo
ses que sofrem com o desenvolvimento. Alguns que forçar estacas quadradas em buracos redon-
buscaram, fora das áreas invadidas, espaços dos, retangulares, hexagonais (Singleton, 1990).
que lhes permitiriam continuar a viver como
criadores, enquanto outros acentuaram a in- Diante desse dilema, a problemática da “di-
terdependência no plano econômico com os mensão cultural” (Perrot, 1989) ou a promoção
agricultores de áreas próximas. Essas tentativas do “desenvolvimento cultural”7 só complica a
visam a adaptação a um capitalismo periférico situação. Com efeito, a cultura autóctone não
sem por isso sucumbir à “estabilidade campo- saberia ser uma dimensão do desenvolvimento,
nesa” que tem como efeito, no fim das contas, a uma vez que o desenvolvimento é ele mesmo o cerne
proletarização, a marginalização e a divisão em duro da cultura das sociedades ocidentais. A retórica
classes onde anteriormente ela não existia (Ri- da dimensão cultural se apóia em uma metáfora
gby, 1985). Aqui também, o risco está enraizado inconsciente segundo a qual bastaria despejar o
nas práticas religiosas e rituais que asseguram as conteúdo do desenvolvimento em um recipiente
relações – pacíficas entre os membros do grupo cultural. Ora, a dimensão cultural do desenvolvi-
e os não-Masaï, harmoniosas entre o meio-am- mento é realmente uma contradição em termos,
biente e o sagrado. Nesse contexto, o rebanho é exceto no que diz respeito às sociedades nas quais
uma interface entre natureza e cultura, enquan- o desenvolvimento é o projeto e a religião: quem

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ousaria atacar o desenvolvimento sem dar a recei- do de cuidar de todos os assuntos indígenas e
ta para outro... desenvolvimento? inuits em nível federal (1,7 milhões de dólares,
Tentar sair do paradigma dominante supõe 5800 funcionários em 1982), a situação estru-
a compreensão de como funciona a linguagem tural de fundo, isto é, a pobreza indígena face à
do desenvolvimento. Certamente existe um abundância euro-canadense “branca” continua
código técnico cujo domínio permite formular sendo a regra, apesar dos esforços e os anos de
uma proposta de financiamento de um projeto desenvolvimento. Somos forçados a constatar
nos termos que sejam congruentes à ideologia que o essencial está na verdade não no advento
e ao funcionamento burocrático da instituição do desenvolvimento, por sinal impossível de
para a qual se dirige o requerente. Trata-se de encontrar, mas sim na manutenção a todo cus-
uma simples competência que é preciso ad- to dos fluxos financeiros e da reprodução dos
quirir. Não é desse código que queremos fa- organismos de desenvolvimento.
lar aqui, mas sim de um dialeto, uma espécie A fraseologia do desenvolvimento demarca
de esperanto da modernidade. Entre os povos um campo no qual os atores indígenas e não-
autóctones, certas comunidades indígenas e indígenas podem investir juntos sem correr os
inuit do Canadá entenderam a necessidade de riscos de uma ruptura da comunicação, riscos
utilizá-lo levando em conta que é o único idio- presentes quando a confrontação se dá direta-
ma de comunicação entre as diferentes partes mente em termos de representações étnicas ne-
presentes. No caso estudado por Yngwe Ge- gativas e denegridoras.
org Lithman (1984), os diferentes atores em-
penhados nas ações de desenvolvimento (em Expressar a relação em termos de desenvolvi-
Manitoba e no Yukon no Canadá) utilizam mento se torna assim um meio de evitar falar
a linguagem do desenvolvimento, seja como daquilo que existe realmente. (...) Por meio das
instrumento de mediação indispensável para características atemporais, transitórias, difusas e
conseguir dinheiro (perspectiva dos índios), descontextualizadas do idioma do desenvolvi-
seja como meio de legitimar as ações e atrair mento, torna-se possível uma união em torno
fundos (perspectiva da burocracia das agên- da necessidade de manter fluida a circulação dos
cias de desenvolvimento). Enfim, é utilizada recursos (Lithman, 1984, pp.262-263).
também pelos especialistas em suas relações a
fim de conceder a elas uma maior legibilidade, Para os índios, o desenvolvimento seria a
bem como uma legitimidade, uma prova de supressão dos traços negativos da situação atual
que estão realmente no campo do desenvolvi- (antes de tudo a falta de possibilidades de en-
mento. Cada parceiro registra então suas pre- contrar um emprego) e a criação de uma maior
ocupações, necessidades, objetivos, realizações autonomia indígena. Mesmo sem chegar lá, e
em termos de desenvolvimento, mas todos não seria somente para manter o nível sócio-econo-
possuem a mesma concepção do que deveria mico atual, o acesso à assistência é indispensá-
ser esse famoso desenvolvimento. O dialeto do vel e, conseqüentemente, a inserção na retórica
desenvolvimento transforma tudo o que se faz do desenvolvimento é inevitável.
em nome do desenvolvimento em realização de A tarefa não é fácil para os povos autóctones
desenvolvimento, ele tem um caráter performa- que buscam criar uma série de novas relações
tivo quase mágico no plano do imaginário. E, com os Brancos, o dinheiro, os poderes exter-
contudo, na prática, apesar da vasta burocracia nos, outros deuses, relações que não colocam
do Indian and Inuit Affairs (IIA), encarrega- em perigo o cerne duro do edifício tradicional

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nem as atribuições da identidade. É, contudo, funcionários dos Países Baixos, e 49 abstenções, entre
no interior das zonas traçadas pelas condições elas a de representantes governamentais da França.
7. Um decênio mundial consagrado ao desenvolvimen-
de possibilidade de sincretismos sutis que atu-
to cultural foi publicado pelas Nações Unidas e a
am as novas formas de uma sobrevivência, UNESCO em 1988. Ver UNESCO (1986).
sempre ameaçada de efemeridade pelo avanço
acelerado da modernidade.
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aparece entre aspas, como se os autores quises- BABADZAN, Alain. Tradition et Histoire: quelques
sem manter um certo distanciamento crítico, problèmes de méthode. Cahiers de l’ORSTOM, série
sublinhar seu ceticismo em relação à noção de Sciences humaines, vol. XXI, nº1, p.117-118, 1985.
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exige que a abundância material excessiva de DECORNOY, Jacques. Minorités indigènes, l’identité com-
uns acarrete a destituição de outros. me garantie de survie. Monde diplomatique, juin 1989.
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2. A respeito disso, ver: In: COQUERY-VODROVITCH, Catherine, HE-
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b) Burger (1987) du développement. Etats, sociétés, développement. Paris:
c) INDIGENOUS Peoples (1987) L’Harmattan, 1988. 283p.
3. Ver a esse respeito: Riste e Sabelli (1986) GLOWCZEWSKI, Bárbara. Manifestations symboli-
4. Isso perdurou nos anos 70 e 80. Aliás, é assunto no ques d’une transition économique: le “Jurulu”, culte
meio do desenvolvimento do 4º decênio do desenvol- intertribal du “cargo”. L’Homme, XXIII (2), p. 7- 35,
vimento nos anos 90. avril-juin 1983.
5. A estratégia reduziu as comunidades a um conjunto INDIGENOUS Peoples: A Global Quest for Justice, A
de indivíduos biológicos e não sociais, pouco diferen- Report for the Independent Commission on Interna-
ciados da fauna na apreciação de suas demandas. tional Humanitarian Issues. London and New Jersey:
6. Cf. Texto da convenção que concernente aos povos indí- Zed Books, 1987. 181 p.
genas e tribais nos países independentes, entregue pelo IWGIA. Yearbook, 1988. IWGIA 20 years. Copenhagen,
comitê de redação, BIT, Conferência internacional avril 1989. 278 p.
do trabalho, relatório provisório, sessão 66, Genebra, LA COMMISSION SUR L’ENVIRONMENT ET LE
1989, 25A. Esse texto foi adotado, com 328 votos a DÉVELOPPMENT. Notre avenir à tous. Montreal:
favor e um contra, sendo este da representante dos Editions do Fleuve, 1988. 454 p.

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ment Aide- Minorities- Human rights: 10 assertions nique Gallois, que me deu a oportunidade de
In: IWGIA Yearbook 1986, pp.155-160, 1987. conhecer e logo de traduzir esse texto. Também
RIGBY, Peter. Persistent Pastoralists. Nomadic Societies in gostaria de agradecer a Cadernos de Campo,
Transition. London : Zed Press. 1985. 198 p.
por ter me oferecido essa oportunidade de pu-
RIST, Gilbert, Le développement dans une perspective inter-
culturelle. Institut universitaire d’études du développe- blicar o meu trabalho, e o professor José Mag-
ment, Genève, 1985, 50 p. nani, que também acredita no meu potencial
_____________ ; Sabelli, Fabrizio. Il était une fois lê dé- de tradutora acadêmica. Por fim, quero agra-
veloppement... Lausanne: éd. d`Em Bas. 1986. 155 p. decer minha família, meus amigos e meu na-
SABELLI, Fabrízio. Pratiques de la reproduction commu- morado, que sempre me apoiaram nessa minha
nautaire: espace, échange, travail, rite chez lês Dagari
trajetória ‘tradutorística’.

traduzido de
PERROT, Dominique. “Les empêcheurs de développer en rond”, Ethnies. Droits de
l’homme et peuples autochtones, n° 13, “La fiction et la feinte. Développement et
peuples autochtones”, Survival International France, 1991.

tradutor Lígia Romão


Graduanda em Ciências Sociais/USP

revisora Luísa Valentini


Mestranda em Ciência Social (Antropologia Social)/USP

Recebida em 30/03/2008
Aceita para publicação em 18/08/2008

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