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VOLUME III
AMAURI FERREIRA
www.amauriferreira.com
2017
Continuamento
Consumismo
Impulso
Vontade
Desejo
Vaidade
Sempre
Simplicidade
Morte
Ressonância
Agovernismo
Insatisfação
Neocolonização
Manipulação
Estupidez
Esquerda
Envergonhar
Técnica
Emoção
Descuidar
Tendências
Despoder
Confinante
Afetante
Hiperconectividade
CONTINUAMENTO
A grave mudança climática que está em curso é, para a ciência, indissociável das imensas
quantidades de CO2 despejadas pela humanidade (sobretudo por meio do carvão,
petróleo e gás natural), que se acumulam na atmosfera e causam o efeito estufa. Pelo fato
de a Terra estar mais quente, os cientistas alertam para mudarmos, urgentemente, o nosso
modo de viver, pois, caso contrário, as próximas gerações serão testemunhas de ondas de
calor insuportáveis, secas inéditas, elevação do nível do mar, extinção em massa de
espécies. Para evitar o pior, os cientistas dizem que a humanidade poderia se servir da
energia limpa, cuja tecnologia é conhecida desde o final do século XIX, por meio do
“concentrador parabólico de energia”, de Augustin Mouchot – tal invenção convertia a
energia solar em movimento mecânico e, inclusive, podia produzir eletricidade. Portanto,
é evidente que não há impedimentos tecnológicos e científicos para salvar o futuro da
humanidade. Se algo nos impede disso, segundo os cientistas, é a ausência da nossa
“vontade de agir”. Atualmente a China é o maior emissor de CO2, mas é, também, o país
que mais investe em energias renováveis (energia eólica, energia solar fotovoltaica, energia
geotérmica, energia hidrelétrica). Será que este fato seria um signo da “vontade de agir” a
que os cientistas se referem? Ora, esta “mudança de atitude” é conduzida por interesses
econômicos (pois a redução da emissão de CO2 diminui os custos com a saúde da
população e com a despoluição ambiental), e não por interesses que favoreçam a liberdade
humana. Mesmo assim, esta “mudança de atitude”, que ainda é muito tímida, pode não ser
suficiente para evitar que a humanidade tenha que se virar para sobreviver em um planeta
aquecido em 3 ou 4 graus. Em razão disso, parece-nos importante distinguir, aqui, a
“vontade” do “impulso”. Podemos dizer que a vontade tem relação direta com a nossa
conservação, com a crença em um ideal, está enlaçada com as noções de origem e
finalidade. Vontade e consciência pragmática caminham lado a lado. Temos vontade de
reagir a estímulos que colocam em risco a nossa conservação ou, ao contrário, que a
favorecem. Nesse sentido, a dor ameaça a nossa conservação – por isso reagimos; já o
prazer favorece a nossa conservação – por isso também reagimos... Contudo, é inegável que
existe uma produção social da vontade pelos mais diversos meios, fazendo a maior parte
da humanidade ser conduzida por uma vontade crescente de experimentar pouca dor e
muito prazer. A vontade de crescimento econômico das nações, com destaque para a China
atual, e o seu correspondente imediato, o consumismo, são sintomas da produção social
desta vontade... A incrível invenção de Augustin Mouchot foi engolida pelo carvão porque
simplesmente não era rentável. Mas quem é que precisava que ela fosse rentável? Se o
carvão permite um lucro muito maior do que a invenção de Mouchot, isso nada tem de
surpreendente, pois a noção de lucro está impregnada na consciência pragmática humana,
que não conhece outro modo de existir que seja distinto da reação exagerada aos estímulos
que nos conservam... Mas o impulso é outra coisa diferente da vontade – ele é um
empurrão sentido pela consciência continuante. O seu ideal não concerne ao que nos
conserva, mas é vivido como continuamento – trata-se de uma experiência que expulsa a
vulgarização da nossa existência que é causada pelo império da consciência pragmática. O
impulso não tem nenhuma intimidade com os prazeres. É ele que, inclusive, redime a
vontade, ao impor um outro sentido para o uso dos bens que nos conservam. Dito de outro
modo: por não ter a ideia do que seja o impulso, a humanidade se mantém escrava da sua
vontade excessiva de acumular as “folhas tristes”... Vontade temos em demasia. Impulso é
do que precisamos para agir.
VONTADE
Como a “vontade de explorar” não se confunde com a vontade de ter prazeres, então, em
razão disso, preferimos, aqui, chamar de desejo de ser atraído como uma experiência
indispensável de higienização. Se desejamos ser atraídos pelas estrelas ou por forças
sociais é, sobretudo, para não nos tornarmos servos do excesso de vontade que vulgariza a
existência humana. Desejamos nos despersonalizar, mesmo que tenhamos um vago
sentimento disso, porque, deste modo, atendemos à exigência da vida. Contemplar o que
nos atrai, seja por meio de uma bela canção ou de um grande filme, ou, então, por meio da
droga ou de uma simples caminhada, pode nos tornar, enfim, lúcidos. Em vez de ideias
que têm como base a opinião que reforça a vaidade (algo que se acentua a cada dia), vêm à
tona pensamentos subversivos que exigem sacudir tudo o que é considerado como
verdadeiro – incluindo, sem dúvida, o lamentável raciocínio do sujeito hedonista que quer
tudo para si... Se nos tornamos lúcidos e mais corajosos para enfrentarmos certas forças
sociais que reproduzem o esmagamento da humanidade é porque desejamos, o máximo
que podemos, explorar mundos que, através da lente da consciência pragmática, só podem
ser inabitáveis. Mas é somente daqui, ao habitá-los temporariamente, que pode surgir a
“vontade de agir” ou a “vontade para gerar o novo”, que é, rigorosamente falando, o
impulso.
VAIDADE
Uma organização que reconhece alguém pelo trabalho bem feito ou, então, pelo seu
comportamento “exemplar”, nada mais faz do que tentar submetê-lo ao seu poder para
que, dessa forma, ela mesma consiga se manter de pé por muito tempo. As muitas doses de
reconhecimento dirigidas aos seus “colaboradores” são extremamente sedutoras, porque
oferecem a imagem de que eles estarão por muito tempo sob a sua tutela. Porém, isso tem
um custo: para continuarmos a ter o reconhecimento da organização é necessário
permanecermos idênticos, ou seja, é indispensável acreditarmos que somos os mesmos a
cada instante. Por consequência, continuamos a reprimir o desejo de sermos atraídos pelo
desconhecido mediante o uso grosseiro da nossa energia, o que constitui um tarefismo
onde se faz o “mais do mesmo” para obtermos títulos, dinheiro, poder e... sem dúvida, para
continuarmos a acreditar que não mudamos. Enquanto alguém está capturado pela
vaidade, seja um simples operário ou um renomado intelectual, é inevitável que ele fale o
que a instituição deseja, que reproduza opiniões que são cada vez mais estimuladas pelo
excesso de comunicação dos nossos dias, em suma, que não incomode ninguém, que seja
um sujeito do “bem”, o orgulho da família... Apesar disso, jamais alguém é o mesmo, pois
suas sensações e pensamentos mudam continuamente – mas é exatamente por isso que
um sujeito vaidoso tem vontade de se agarrar às coisas supostamente sólidas, imutáveis e
verdadeiras. Com o passar dos anos, a sua mudança não salta aos nossos olhos, pois ela é
difusa, não tem consistência, já que permanece um pobre burocrata de espírito: ele diz as
mesmas coisas que dizia há muitos anos, enuncia as mesmas opiniões, os seus problemas
parecem girar neles mesmos, suas intrigas e angústias continuam no mesmo foco. A
vaidade é um veneno, não nos permite evoluir, é um mecanismo do poder que está a
serviço da democratização da organização-quadrilha (a que reproduz a forma-Estado),
onde muitos se orgulham por participar – são os que se orgulham por copiar “verdades”,
pois, desse modo, acreditam que irão progredir na carreira profissional e ter vantagens
sobre os concorrentes. Mas isso é, para nós, uma evolução ao contrário, porque quanto
mais nos submetemos aos elogios e às censuras da quadrilha organizacional, mais
distantes da vida estamos. Alguém que, subitamente, tem a nítida consciência de que
participa de uma instituição criminosa, ou melhor, de que foi preparado durante muitos
anos para estar a serviço dela, já é, de algum modo, uma evolução no sentido da vida, seja
com a idade que tiver... Esta constatação é apenas o passo inicial para que alguém possa se
livrar do engodo que é a vaidade.
SEMPRE
Hoje, hoje, hoje, o exagero do hoje nos sufoca. A linguagem corrente não cessa de nos falar
do hoje, até os mais inteligentes nos incitam ao hoje. Fácil é falarmos sobre o hoje, que não
exige grande esforço e paciência. Difícil é pensarmos no Sempre... Ignorar a presença do
Sempre é negar o amanhã – o amanhã da humanidade. Mas o grande artista e o grande
filósofo nos ensinam a pensarmos e sentirmos o Sempre – eles nos alertam sobre o exagero
do hoje que nos torna doentes e covardes. Filosofia e arte se nutrem do Sempre, toda
criação surge do Sempre, é a sabedoria do Sempre que devemos cultivar para não
entregarmos a nossa existência aos que estão afundados no hoje. Passamos, então, a falar
para o amanhã, ou seja, para os que têm ouvidos para o Sempre, sejam os que existem
hoje, sejam os que ainda existirão. Mediante o exercício impiedoso da crítica abrimos as
portas do amanhã para alguns dos que apenas conhecem o hoje – e isso é revolucionário. O
olhar focado no hoje nos faz errar o alvo: ora disparamos contra nós mesmos, ora
utilizamos canhões para abater pássaros. Mas compreender e criticar o hoje a partir da
experiência do Sempre nos faz acertar o alvo com a mais singela arma, porque sabemos
que o hoje nunca esteve separado do Sempre. Mas os seres tristes, que não querem viver
sem o reconhecimento pelos serviços prestados aos interesses do hoje, tentam banir a
força revolucionária do criador ao se esforçarem para separá-lo da experiência do Sempre.
Mas isso é inútil, porque ninguém, de direito, está separado do Sempre. A diferença
fundamental é apenas entre quem ainda não quer perceber o Sempre (pois tem medo
dele), de quem o abraça com todas as suas forças para seguir o seu movimento de
destruição-criação. É evidente que não assumimos riscos quando estamos atolados no
hoje, ao menos enquanto acreditamos que o hoje vai nos “proteger” do Sempre. Mas
quando somos tocados pelo Sempre podemos desejar acompanhá-lo – e para isso serão
necessários alguns riscos, erros, acertos, novamente erros e acertos, porque simplesmente
não queremos deixar de viver em função dele.
SIMPLICIDADE
Se existe uma ideia que mais atormenta a humanidade é a da morte, ou seja, é a certeza
que obtemos pelo raciocínio de que, um dia, nosso organismo deixará de existir. Por causa
disso, muitos acreditam que ela seria a passagem para a tão esperada imortalidade da
alma. Há também os que acreditam que o mundo seria muito melhor se ela não existisse,
se fosse finalmente “vencida” pela ciência. Porém, se ela realmente não existisse,
simplesmente não haveria o amanhã... É como singularidades criadoras que não
desperdiçamos esta existência que ganhamos e, por isso, vivemos em função do amanhã,
sem temermos a morte e, também, sem acreditarmos na imortalidade da alma. Sua ideia
se torna até um estímulo para a urgência da nossa tarefa de obrar, para vivermos de modo
que parece ser impossível para os que apenas percebem o hoje – então, a ideia da morte,
neste seu sentido afirmativo, nos liberta dos clichês do hoje. É inevitável que, quanto mais
se é escravo do hoje, mais a morte é amaldiçoada, pois sua imagem vem acompanhada da
perda de bens diversos, de pessoas queridas e da história pessoal – não há dúvida de que a
morte é impiedosa com quem ainda imagina que é proprietário daquilo que, de direito,
nunca lhe pertenceu. Portanto, a morte não se opõe à vida, porque para a evolução da vida
é absolutamente necessário que tudo que existe no universo desabe um dia, para que,
finalmente, surja o novo – e para que o novo também, um dia, deixe de existir... Por isso é
importante combater a tendência servil de glorificar o hoje e desprezar o amanhã, para que
seja possível, enfim, a liberdade de viver para o amanhã.
RESSONÂNCIA
Qualquer um de nós pode encontrar coisas e seres vivos que, embora sejam, num certo
sentido, temporariamente estáveis e finitos, nos permitem a experiência da mudança
universal. O fato é que algo existente já é um mundo, não importa a forma que tenha – e a
nossa vontade de explorar é, para falar profundamente, o desejo de sentirmos a
ressonância entre micromundos heterogêneos, o que faz nascer uma aliança temporária
que nos torna mais fortes e confiantes na vida. Entretanto, é preciso ter coragem para
sentir-se em casa desse outro modo, despersonalizado... O que queremos enfatizar é que
existe algo em nós que jamais se torna imundo, pois até as pessoas cujos atos nos
envergonham – como as que amam o poder ou que apenas cumprem ordens – são,
essencialmente, puras enquanto micromundos, mesmo que ignorem essa realidade. Essa
ignorância ocorre porque não podemos sentir a ressonância de qualquer jeito, como se ela
pudesse surgir pelo simples fato de encontrarmos alguém ou alguma coisa do modo que
esperamos – esta expectativa, que é inerente à consciência pragmática, é sempre
frustrante. É preciso, ao contrário, ser capaz de contemplar o ritmo que irresistivelmente
nos atrai. Sem dúvida, os modos de existência limitados à consciência pragmática podem
ter a experiência da ressonância, mesmo com a demasiada vontade de ter prazeres, mesmo
sem cultivarem a contemplação de ritmos, mesmo com o esmagamento do desejo de
serem atraídos – e, quando a sentem, é comum recorrerem à consciência pragmática para
se tranquilizarem com uma explicação qualquer, desde que seja sustentada por uma
suposta intencionalidade naquilo que lhes aconteceu (como se fosse, por exemplo, o sinal
de um “chamado divino”). Disso decorre o conflito do “aperto no coração”, pois terão que
rever valores, crenças e hábitos para se abrirem às novas experiências vertiginosas. A
vertigem desloca a formação cultural de alguém, o seu saber enciclopédico, os seus títulos,
mas também pode ser acompanhada do sentimento de não se saber muito bem o que fazer
com ela – esta lacuna é a oportunidade que um líder de seita se serve para obter mais um
seguidor... Por outro lado, há quem, ao ser tomado pela vertigem, diz palavras muito
profundas e lúcidas, que incomodam a sociedade. Contudo, ao ser engolido pela
banalidade ou, então, pela patologização da vida, sente-se até envergonhado por tornar
dizíveis pensamentos tão originais que, justamente por isso, são incompreensíveis para
muitos. Mas a aliança que surge com novas ressonâncias mantém afastado este perigo de
duvidarmos da nossa própria pureza – e também da doce loucura do nosso pensamento.
AGOVERNISMO
A manipulação das massas neste início de século envolve uma engenharia clandestina de
grande sofisticação. Conforme as denúncias de Edward Snowden, agências de inteligência
introduzem materiais falsos na internet, disseminam mentiras sobre inimigos políticos,
inclusive servem-se das ciências humanas para manipular a “inteligência humana online”.
Por meio de narrativas favoráveis aos seus fins, os inimigos são abatidos sem a necessidade
de um tiro sequer, apenas pelo descrédito que passam a ter em razão da propagação de
notícias falaciosas. Postagens de informação negativa, de “vitimização falsa” (quando
alguém finge ser vítima de um inimigo político) e de “operação de bandeira falsa” (material
postado na internet atribuído falsamente a terceiros) são apenas algumas táticas de
manipulação que, de fato, exercem grande influência na multiplicidade de afetos do
mundo online. Trata-se da arte da manipulação clandestina dos afetos. Também de modo
clandestino, redes de ONGs na América Latina propagam as narrativas da direita liberal ao
pregarem a liberdade individual (como se o corpo e a mente fossem a nossa primeira
propriedade privada), a predominância do indivíduo sobre o Estado, a meritocracia e,
como contraste, rejeitam os programas sociais de governos chamados “populistas”, como o
de um Hugo Chaves, na Venezuela, ou de um Evo Morales, na Bolívia. Essas narrativas são
sedutoras porque enfatizam a liberdade do indivíduo de escolher o futuro que quiser, sem
depender das muletas de um Estado tutelar (daí o ataque aos governos “populistas”).
Recentemente no Brasil esses discursos foram para as ruas, com o apoio da grande mídia
conservadora (principalmente a partir de Junho de 2013). Intelectuais declaradamente
favoráveis ao discurso liberal fomentaram essas ideias para o grande público na internet,
nos noticiários da televisão, nas colunas de jornais e revistas, cujo bombardeio diário de
opiniões multiplicou os afetos de medo e de ódio, realizando, de algum modo, aquilo que
as agências de inteligência planejaram. Com a criação estratégica da Operação Lava Jato,
foi reforçada a impressão de que o país finalmente passou a ter uma oportunidade de
realizar uma “faxina” ao caçar os corruptos (a Lava Jato se tornou a “lenha da fogueira” que
incendiou a nação). Resumidamente, estes foram alguns dos elementos principais para o
golpe jurídico-midiático no Brasil em 2016, caracterizado por uma espécie nova de golpe
de Estado, de longo prazo, que funciona de modo clandestino, sobretudo na internet, sem
a necessidade de disparar um tiro sequer para destituir um governo que é contrário aos
interesses estadunidenses de neocolonização na América Latina. Afinal, como destituir o
governo de um país com 200 milhões de habitantes, cujo território é o quinto maior do
mundo, sem correr o risco de comprometer gravemente a imagem estadunidense no
mundo da comunicação global? Para isso é necessário aliar-se aos interesses perversos da
burguesia do país (especialmente aos dos proprietários dos meios de comunicação), de
alguns juízes, dos partidos de oposição, das igrejas evangélicas e, como fator indispensável
nesse processo, executar impecavelmente, de modo agressivo e contínuo, a arte da
manipulação clandestina na internet que faz o “caldeirão dos afetos” ferver na temperatura
que se espera... Mas podemos também agir clandestinamente, de modo completamente
diferente dos pregadores do liberalismo. O indivíduo não é princípio de nada, não é
proprietário do seu corpo, não é dono de coisa alguma – a sua existência é, ao mesmo
tempo, um presente da vida e um meio de passagem para as potências dela. É evidente que
o indivíduo não existe separado de um coletivo de forças que, necessariamente, o
desindividualiza, em menor ou maior grau. Por não se colocarem nesse processo de
“desindividualização”, os incluídos por um Estado tutelar continuarão insatisfeitos com ele
enquanto não perceberem que as muletas devem, um dia, ser jogadas para bem longe (eles
não realizam a transmutação das políticas de inclusão social). Por causa disso, é
importante a existência de movimentos horizontais de autogestão, como coletivos de
anônimos, que disseminam clandestinamente arte, ciência e filosofia em todos os lugares,
combatendo o medo que assola os que estão entupidos por narrativas liberais e, também,
por narrativas tutelares, ou seja, por tudo aquilo que reforça a noção do indivíduo como
zona de segurança... Se a clandestinidade manipuladora existe por causa da covardia dos
que estão capturados pela vaidade pessoal, a clandestinidade desmanipuladora, por seu
lado, pode ser proliferada pela coragem dos que possuem uma simplicidade impessoal.
ESTUPIDEZ
É possível percebermos, com clareza, que é mais eficaz manipular os indivíduos que não
têm tempo livre para se dedicar aos seus próprios pensamentos do que os que fazem um
uso produtivo do tempo, já que é uma característica da nossa época o bombardeio de
informações, sobretudo pela internet, como ferramenta indispensável para o controle do
tempo das massas, embotando a sensibilidade estética e reprimindo a experiência do
pensamento profundo, com concentração. A sociedade de excesso torna as nossas mentes
imundas ao oferecer a sensação de que devemos nos manter informados dia a dia, hora a
hora, minuto a minuto. Embora a internet seja um excelente meio para buscarmos
conhecimento (grande parte da produção intelectual da humanidade se encontra nela),
ela é utilizada, de modo crescente, como meio para troca de mensagens e, particularmente
nas redes sociais, para representarmos uma imagem que acreditamos ser aquilo que os
outros dizem que somos. A transformação da world wide web, de um meio para buscarmos
conhecimento, para um meio de proliferação das conversas e do narcisismo, não deve ser
ignorada, visto que isso tem efeitos no nosso cotidiano e no modo como a sociedade é
organizada. Contudo, o uso entorpecedor das inovações tecnológicas não é,
evidentemente, um acontecimento recente, pois a televisão, antes mesmo da internet, já
cumpria a função da disseminação da estupidez... Mas temos a impressão de que a
humanidade encontrou, por intermédio da internet, a maior oportunidade da sua história
para se distrair de si mesma. Se, por um lado, o tempo dedicado à leitura de textos
impressos não cessa de diminuir, por outro lado, o tempo dedicado à leitura de textos na
tela de um computador ou de um smartphone apenas aumenta. Mas, de fato, podemos
chamar isso de “leitura”? Nicholas Carr, em um importante estudo sobre os efeitos da
internet no nosso cérebro4, enfatiza que a leitura apressada na web é algo completamente
diferente da experiência solitária que a leitura de um texto impresso pode nos
proporcionar, uma vez que a “leitura” de um texto numa tela não deixa de estimular a
dispersão da nossa atenção (incluindo e-books com hiperlinks), ao contrário do texto
impresso que estimula o foco da atenção, permitindo, segundo Carr, “a capacidade de
saber, em profundidade, um assunto por nós mesmos, e construir, dentro das nossas
próprias mentes, o conjunto rico e idiossincrático de conexões que dão origem a uma
inteligência singular”. Devido à leitura apressada, os indivíduos se tornam mais ansiosos,
não sentem o enriquecimento da mente com a experiência do tempo, não conseguem
desenvolver a potência crítica e criadora do pensamento – vivemos numa época em que,
finalmente, a estupidez é estimulada em uma velocidade jamais vista... Mas será que a
disseminação da estupidez humana seria um simples efeito do desenvolvimento
tecnológico? Será que a facilidade de acesso às conversas online e à avalanche de
informações que nos chegam não teria nenhuma relação com interesses políticos e
econômicos? Ora, a sociedade de excesso, ao roubar o nosso tempo próprio, tenta impedir
a manifestação de pensamentos subversivos que colocam em questão interesses
inconfessáveis – são interesses intrínsecos aos mais elevados graus da estupidez humana,
porque somente os mais estúpidos entre os estúpidos utilizam o seu tempo para lucrar
cada vez mais e, por causa disso, necessitam desesperadamente vigiar, controlar e enganar
as massas. Entretanto, como não conseguiriam fazer isso sozinhos, precisam de um
“mundo de estúpidos” que trabalham (tendo consciência ou não) a favor dos seus
interesses miseráveis. Seguramente, a formação desse “mundo de estúpidos” não ocorre
somente por ameaças ou censuras, mas principalmente de modo penetrante, clandestino,
sedutor: se as massas não sabem o que fazer com o seu tempo livre, é mais fácil controlá-
las pelo excesso de estímulos que servem para preencher esse vazio. Mesmo que elas se
incomodem com a sensação de desperdiçarem o seu tempo com futilidades, ainda assim
entendem que isso é melhor para elas, visto que não querem estar consigo mesmas, com
seus pensamentos questionadores – elas têm medo de ideias ameaçadoras que podem vir à
tona e desfazer o seu “mundo encantado, cheio de fantasia”... E se, inesperadamente, elas
são atingidas por palavras ou imagens que provocam sensações vertiginosas, que tiram
tudo do lugar, preferem fugir “como o diabo da cruz”... É fato incontestável que as
informações que servem para alimentarmos o nosso pensamento crítico e, por
conseguinte, para resistirmos à manipulação clandestina dos afetos, se encontram de
modo abundante na internet. Mas quem é que tem paciência para fazer pesquisas? Quem
é que tem tempo para buscar o conhecimento? E, além disso, quem é que tem a disposição
necessária para poder fruir uma obra de arte? Certamente é mais cômodo preenchermos o
nosso tempo livre com informações recebidas enquanto estamos sentados no sofá da sala,
diante da televisão, como faz, por exemplo, a maioria dos brasileiros. Por efeito, se apenas
sete famílias que dominam os meios de comunicação no Brasil decidem o que e como
milhões de pessoas devem ser informadas, o acesso às informações que são discordantes
aos interesses dessas famílias é reservado a uma parcela muito menor da população, pois
para acessá-las é preciso ter tempo livre e paciência. Por isso, é possível concluir que o
acesso à riqueza da produção intelectual humana que está disponível na internet (e
também nas bibliotecas, sebos e livrarias, pois não podemos desprezar a força que o livro
impresso possui) é privilégio de pouquíssimas pessoas – são estas que, devido ao uso
prolífico que fazem do seu tempo, conseguem expor problemas urgentes da nossa época,
nos alertando sobre o perigoso caminho que a nossa civilização está se dirigindo e, ao
mesmo tempo, nos indicando saídas entre as múltiplas pedras da estupidez. São
problemas e saídas que as percepções do “reino da estupidez” não podem dispor, uma vez
que ele mesmo, o “reino da estupidez”, é produto de uma detestável relação com o tempo.
ESQUERDA
Um espírito guerreiro, cujo modo de ser é de quem conquistou a liberdade de viver para o
amanhã, enquanto sente a necessidade de transmitir sua impressão original da vida (ao se
esforçar para que os outros sintam algo que tenha alguma semelhança com a sua
experiência singular), consegue manter firme a sua posição na existência, que é a
resistência à manipulação que conserva o “reino da estupidez”. Generoso, esse modo de ser
tem certeza que faz parte de um comunismo superior, ou seja, do grande e sagrado
comunismo cosmológico: sem estoques, sem arquivo erudito, ele alegremente compartilha
sua experiência com o mundo... E qual é esse mundo? Inevitavelmente é o “reino da
estupidez”, porque é nesse mundo que um sopro de vida pode tocar e mover alguns
indivíduos que não suportam a sua própria estupidez e o seu desperdício de tempo.
Certamente, isso é uma tarefa árdua, pois é notório que os que estão hipnotizados pelos
mais diversos prazeres do “reino da estupidez” não possuem o tempo necessário para
receber algo que parece ser incompreensível, sejam eles banqueiros, pastores, políticos,
intelectuais ou militantes de esquerda. Entretanto, alguns destes indivíduos podem ser
utilizados, com a devida prudência, como suportes para práticas políticas de uma esquerda
superior. Chamamos de esquerda superior tudo o que concerne à nossa capacidade de
resistirmos diante do “mundo dos estúpidos”, para conquistarmos, afinal, o direito de
vivermos como espírito guerreiro, que é aquele que “põe a faca entre os dentes e vai à luta,
com a absoluta confiança de que seguirá presente para sempre”. Sentir alguma coisa do que
foi transmitido por esse modo de ser genuíno nos encoraja a participar ativamente de um
comunismo superior, onde não existe Estado e classes sociais, pois esse comunismo é
dominador desde sempre, esteve sempre aí, diante de nós – e, sem dúvida, também em
nós... É por isso que o “mundo dos estúpidos” deve ser atingido impiedosamente com
simplicidade e sagacidade, ao invés de ser reforçado por narrativas liberais da direita ou
reformado por uma esquerda que não consegue se livrar de narrativas tutelares, de uma
concepção de igualdade ainda aderente à velha noção de indivíduo. Mas a esquerda
superior, ao disseminar arte, filosofia e ciência, permite que alguns seres estupidificados
possam ter a consciência de que todos nós somos, de fato, iguais – trata-se da igualdade na
continuidade, que é tornada conhecida por aqueles que se reinventam, que efetuam a
despedida, que sabem que ninguém está separado do Sempre... Uma outra civilização
humana pode ter como base esse comunismo superior.
ENVERGONHAR
É um erro imaginar que a ausência de obstáculos seja um objetivo a ser alcançado por
qualquer um que tenha conhecimento técnico sobre alguma coisa. As dificuldades que
continuam a se apresentar para nós servem para mobilizar a nossa inteligência a superá-
las, mas com muita paciência e autodisciplina, seja para a fabricação de instrumentos, seja
para o exercício de atividades diversas – inclusive artísticas, já que o “saber fazer melhor”
não surge de um dia para o outro, é preciso reservar muito tempo aos estudos, e é
justamente por isso que alguma coisa honesta pode demorar anos para vir ao mundo.
Graças aos obstáculos que surgem, somos coagidos a ir além daquilo que já sabemos, sem
nos satisfazermos com o nível em que estamos. Dito de outro modo: é fundamental
exigirmos cada vez mais o aprimoramento da nossa técnica a partir do sentimento de uma
insatisfação produtiva consigo mesmo – ao contrário, portanto, da insatisfação infértil e
ressentida que domina os que sonham com um mundo sem obstáculos, que propagam a
crença de que são os outros que nunca fazem o suficiente para eles... O cuidado de si é
inseparável da insatisfação produtiva, sobretudo quando nos elogiam por algo que foi feito
com perícia, como se já estivéssemos “prontos”. Sem dúvida, é uma postura prudente estar
ciente de que temos limites, que não podemos saber de tudo, que não podemos fazer
qualquer coisa de qualquer forma, em qualquer lugar, em qualquer tempo. Este cuidado
impede de nos confundirmos com quem tem necessidade de se esforçar para exibir um
conhecimento técnico que, muitas vezes, não domina – o conhecimento técnico é para
superar obstáculos e não para o exibicionismo que não muda nada. É importante observar
que nos referimos não somente aos obstáculos que, uma vez superados, favorecem a nossa
sobrevivência, mas principalmente ao maior de todos os obstáculos humanos, o nosso
maior inimigo em todos os tempos, que é a disseminação da estupidez... É esta moléstia
que mantém a ignorância sobre o comunismo superior, mas que, no entanto, pode ser
combatida mediante um certo uso da técnica, mas com emoção. Afinal, nenhuma criação
surge do nada, mas da técnica que alguém se serviu e das influências que teve –
influências que foram suficientemente digeridas, transmutadas e que seguem presentes
naquilo que ele faz, pois elas se expressam de forma nova através dele...
EMOÇÃO
Existe uma emoção que, da perspectiva do comunismo superior, nos impede de irmos
longe demais no conhecimento técnico, sem nos preocuparmos em querer esmiuçar
excessivamente alguma coisa que nos desvia da grande tarefa de obrar (deixemos esse
fardo para os operários distraídos pela erudição que acumularam). Referimo-nos à emoção
generosa que nasce do conhecimento da igualdade na continuidade, que nos desloca para
lugares onde é impossível encontrar, em nós mesmos, algum sujeito fixo, isolado, com o
olhar sedento por premiações que nada mais fazem do que reforçar uma aparente
descontinuidade. Afinal, quando foi que a vida precisou ser autorizada a se expressar?
Quando foi que a vida precisou ser legitimada a seguir pelos caminhos que foram traçados
por ela? A conclusão é evidente: a vida não precisa de prêmio, nunca precisou, jamais irá
precisar... O ritmar que expressa a emoção generosa provoca a respiração em um tempo
que é constantemente ignorado pelas exigências de reconhecimento do macromundo, pois
é lá, no macromundo, onde nos habituamos com um tempo que não é o da vida – e é por
isso que a escassez desse ritmar é um grave problema social de higiene. Reafirmamos: é
impossível que haja revolução social que ignore as relações profundamente afetivas. Por
esse motivo é que pensamos na importância política de ações – incluindo as apropriações
tecnológicas – que podem desfazer as divisões hierárquicas representativas, o
confinamento utilitário dos corpos e as relações artificiais que reforçam a perigosa opinião
de que não temos nada a ver com os problemas do nosso bairro, da nossa cidade, do nosso
planeta. As divisões imaginárias que fazemos, além de serem úteis para distinguirmos
raças, nacionalidades, sexos, etapas da nossa própria existência (infância, juventude, vida
adulta, velhice), podem também ser consideradas como ornamentos da natureza.
Entretanto, quando essas divisões imaginárias são objetos de crença para quem está
capturado pela vaidade, simplesmente parecem não pertencer mais ao devir do mundo e
se tornam abomináveis hierarquias representativas: chega-se ao ponto de os brancos
imaginarem que são superiores aos negros e aos índios; os norte-americanos imaginarem
que são superiores aos latino-americanos; os europeus imaginarem que são superiores aos
africanos; os ricos imaginarem que são superiores aos pobres – em síntese, chega-se ao
absurdo de os seres humanos imaginarem que são superiores aos demais viventes do
planeta, como se um Deus tivesse criado o mundo para eles... Sendo assim, para combater
o fascismo – inclusive o da demagogia democrática – é indispensável considerar como um
problema a ignorância humana sobre essa outra igualdade, que é cosmológica, pois, como
já dissemos, “a violência é filha da ignorância”.
DESCUIDAR
Quando fazemos alguma tarefa sem ter o cuidado necessário que ela exige, ou então,
quando deixamos para que os outros façam aquilo que, mediante uma autodisciplina,
poderíamos fazer com perícia, é muito provável que ela resulte num desastre, seja para
nós, seja para os outros. Consumado o resultado desastroso, é inútil recorrer ao
famigerado artifício da culpa – culpar ainda é um recurso indolente para não se inserir
ativamente na materialização de uma tarefa. Queremos dizer com isso que, num certo
sentido, por descuidarmos da existência que ganhamos, ela pode se tornar uma penúria,
não somente para nós, mas também para os outros. É inútil acusar a si mesmo, ou então,
um governante qualquer, como se ele fosse uma entidade sobrenatural, como se ele não
tivesse nenhuma conexão com o modo atual de os indivíduos viverem, pensarem, odiarem
e amarem. Queremos sublinhar o fato de que o descuido de grande parte dos indivíduos
sobre aquilo que eles leem e ouvem resulta do embotamento da sensibilidade deles.
Queremos também destacar que é um problema de saúde mental o descuido de si que é
característico das pessoas ditas “normais” – entendemos com isso que elas estão adaptadas
às exigências tirânicas do macromundo, tais como: acusar, julgar, enganar, reprimir e, se
preciso for, matar, sendo tudo isso justificado com a necessidade de pagar as contas...
Porém, se o sujeito não quer mais fazer parte do excesso de tarefas que são ditadas por
quem ele nem mais sequer suporta ouvir, é apressadamente diagnosticado como
“inadaptado” ao seu ambiente: então, aquilo que pode servir como indicação para a
importância do cuidado de si, passa a ser considerado uma doença... Entendemos que a
prática do descuido de si é, efetivamente, a de deixar de pensar continuamente sobre
alguma coisa realmente valiosa, ou seja, é desprezar uma realidade que exige atenção
máxima... E se isso que exige atenção máxima é a nossa própria existência, torna-se, por
isso, indispensável pensar sobre o que fazemos com ela... Pensar sobre o que fazemos com
ela não é considerá-la como se fosse uma “coisa em si”, como se estivesse pronta e imutável;
pelo contrário, é considerá-la em constante relação com as coisas que a afetam e a
modificam, sejam pessoas, alimentos, bebidas, lugares para estudar, trabalhar e morar.
Para sermos mais precisos: não se trata exatamente de “coisas”, mas de movimentos que
podem ou não nos atrair, que podem ou não, sem dúvida, enriquecer o nosso corpo e a
nossa mente. Afinal, uma coisa e um ser vivo não cessam de nos transmitir movimentos
que podem ou não reverberar com o que somos num determinado momento. Portanto, o
cuidado de si exige pensarmos sobre aquilo que nos afeta como um transmissor de
movimentos e não, como habitualmente é estimulado, como um ser facilmente
identificável pela nossa capacidade de dividir imaginariamente a natureza; o cuidado de si
também exige pensarmos como esses movimentos estimulam a nossa sensibilidade, como
nos fazem mergulhar no tempo, como nos fazem deixar de temermos aquilo que o mais
profundo de nós pensa a todo instante... Dito de outro modo: descuidar de si é não pensar
sobre como a natureza nos afeta... Por efeito, essa ausência do cultivo do pensamento
alimenta a perigosa demanda pela suposta “poção mágica” que não existe em lugar
algum... Não pensar em como a mídia fabrica as opiniões moldando a percepção de
mundo da maioria das pessoas; não pensar na cumplicidade por fazer parte de interesses
perversos de uma instituição criminosa, “lavando as próprias mãos” por apenas querer
acreditar que as ordens devem ser executadas; não pensar em como a linguagem social nos
convence de que nascemos apenas para reproduzir o que aí está; não pensar que nossa
vontade consumista é, antes de tudo, produzida pelos indivíduos estupidificados – tudo
isso é, indubitavelmente, sintoma do descuido de si – … – entretanto..., ninguém está
destinado a descuidar de si.
TENDÊNCIAS
Um estímulo à nossa "vontade de explorar" pode permitir que haja uma reconfiguração das
nossas tendências afetivas, obstruindo a necessidade de sentirmos os prazeres que derivam
do exercício da autoridade, dos elogios, dos títulos e de outros bens materiais acumulados
– o sentimento de volúpia que surge da nossa capacidade de resistência à sistematização
confinante é acompanhado de uma alegria distinta daquela que surge da vaidade e,
também, da que surge com a “persuasão íntima” que nos incita a ir adiante. Trata-se da
resistência alegre que é sentida a partir da nossa própria reconfiguração – ela é, inclusive,
fomentada por uma outra organização, que é a sistematização afetante... O ato de escrever
pode ser considerado uma resistência enquanto é componente da sistematização afetante:
os aforismos são organizados em um processo inacabado, onde cada releitura estimula
novamente as tendências desejantes dos leitores. Realizar uma aula é também um ato de
resistência quando a repetição temática, em vez de operar um fechamento naquilo que já
sabemos e nos entediar, cria aberturas para outras conexões desejantes: sentimos
necessidade de ir além do que sabemos e, por isso, queremos conectar o que já sabemos
com o que ainda não conhecemos – … – para falar de modo mais preciso, queremos
conectar com o que ainda não vivemos... A sistematização afetante decorre das nossas
próprias tendências desejantes, nos conectando à temerosa "selva" que os sujeitos
submissos à organização dominante não querem nem ouvir falar. Finalmente, o
macromundo não está mais envenenado... Para estimular os nossos desejos reprimidos é
indispensável uma experiência de tempo que nos desorganiza, pois é lá, no tempo, que
existe fluidez, composição, contemplação, ressonâncias efetuadas com novos
microamigos, microlivros, microcanções, microaulas, micromovimentos sociais. Enquanto
"a luta na selva" é mantida por intermédio das conexões desejantes que são facilitadas pela
sistematização afetante, não há necessidade alguma de retornarmos ao cativeiro, porque a
reconfiguração afetiva nos insere num prazeroso e alegre processo que faz realmente
sentirmos que estamos vivos, no qual, inclusive, a democracia se torna ativa, sem
salvadores da pátria e juízes "caçadores de corruptos". Parece-nos possível apontar, aqui, a
existência de ações reconfigurantes realizadas por uma certa extrema-esquerda que não
reproduz o modelo-Estado, já que ela efetua o despoder: embora haja variedade nas táticas
que visam combater, segundo o seu discurso, “a injustiça, a desigualdade e a opressão do
capital”, muitas de suas ações nada seriam se não fossem acompanhadas da volúpia que é
sentida por serem capazes de resistir, até mesmo num "breve período de tempo" (apenas
para falar de modo usual), ao sistema dominante que pretende enfraquecer a todos. É por
isso que as ações do tipo Black Bloc não possuem nada de “vandalismo gratuito” – é preciso
compreendê-las a partir da reconfiguração das tendências voluptuosas e das conexões de
desejo que, mesmo sendo fugazes, podem proporcionar aos seus integrantes um
sentimento de que não estão mortos ou resignados, contrariamente aos que apenas
sobrevivem nos cativeiros. É evidente que não se trata de romantizar tais ações, mas
apenas de sublinhar a sua importância política a partir da tentativa da compreensão de
fenômenos sociais extremamente complexos, procurando destacar suas diferenças de grau
segundo uma perspectiva que está aquém do “certo” e do “errado”, pois, conforme já
dissemos, nada está separado das múltiplas tendências afetivas... É por causa disso que as
reconfigurações que experimentamos nunca estarão garantidas, pois elas poderão sofrer
outras configurações operadas pelo sistema dominante. Isso ocorre quando as nossas
conexões desejantes não são mais estimuladas, a organização começa a nos sufocar, sua
burocracia crescente passa a roubar o nosso tempo, bloqueando a fluidez dos desejos, o
tédio nos assola e, fragilizados, podemos ser facilmente cooptados pelas seduções do
poder. Já não temos mais prazer em escrever, há meses, ou anos, nenhum texto decente
vem à luz; realizar uma aula torna-se um fardo, quase um automatismo puro; subir ao
palco torna-se um imenso sacrifício; não há mais volúpia ao ouvir os estilhaços da vidraça
de um símbolo do poder capitalista, nem em "fazer os muros falarem" contra a opressão
aos mais desfavorecidos. Será que a aventura na selva chegou ao fim? Não seria melhor
retornar ao cativeiro?... Certamente, a luta na selva deve sempre continuar, mas agora
renovada com outras táticas, porque simplesmente mudamos, não precisamos acreditar
que somos os mesmos a cada instante que passa. Éramos verdadeiros ontem, somos
verdadeiros hoje, queremos continuar a ser verdadeiros amanhã... Talvez possamos sentir
a urgência de darmos um outro passo além da reconfiguração, sem dúvida o maior e mais
difícil de todos: a transfiguração.
HIPERCONECTIVIDADE
Há um texto de José de Souza Castro, “O colapso da civilização”, com comentários sobre esse estudo:
https://kikacastro.com.br/2014/03/24/o-colapso-da-civilizacao/
2. Texto de José Carlos de Assis, “Macri abre a Argentina para duas bases dos Estados Unidos”:
https://www.brasil247.com/pt/colunistas/josecarlosdeassis/234117/Macri-abre-a-Argentina-para-duas-
bases-dos-Estados-Unidos.htm
Entrevista com Ricardo Alberto Arrúa, “Tríplice Fronteira: gigante cobiçado”: http://www6.rel-
uita.org/internacional/gigante_cidiciado-por.htm
4. “A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros”. Uma entrevista com
Nicholas Carr está disponível em https://www.publico.pt/2012/11/28/tecnologia/noticia/a-internet-mudou-
a-nossa-percepcao-do-tempo-1573458