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AFORISMOS

VOLUME III

AMAURI FERREIRA

www.amauriferreira.com

2017
Continuamento
Consumismo
Impulso
Vontade
Desejo
Vaidade
Sempre
Simplicidade
Morte
Ressonância
Agovernismo
Insatisfação
Neocolonização
Manipulação
Estupidez
Esquerda
Envergonhar
Técnica
Emoção
Descuidar
Tendências
Despoder
Confinante
Afetante
Hiperconectividade
CONTINUAMENTO

A noção de finalidade é inerente à nossa consciência pragmática: acreditamos que viemos


à existência por finalidade, que agimos por finalidade, que o universo existe por finalidade.
A linguagem, sem dúvida, corrobora para nos agarrarmos tenazmente à ficção das causas
finais das coisas. Um ideal introjetado em nós pela organização social (família, escola,
mídia) nos impele a abraçar, a todo custo, as vias legítimas (os “bons” caminhos) que nos
levam a realizá-lo. Se estudamos é para chegarmos a um ideal, se trabalhamos, é também
para chegarmos a um ideal, se existimos, é claro que só pode ser para chegarmos a um
ideal. Portanto, nossa consciência passa a se entupir, desde os nossos primeiros anos de
existência, com determinadas maneiras de viver que são consideradas as melhores pela
consciência pragmática. Nascemos, temos consciência de um corpo, de uma identidade,
falam conosco porque nos reconhecem, falamos com os outros porque também os
reconhecemos, buscamos prolongar nossa existência com o mínimo de incômodo possível,
geralmente protegidos pela instituição na qual servimos, nos esforçamos pela manutenção
de uma ordem que, nos dizem, será para o bem de todos e, por isso, queremos que nossos
filhos deem continuidade aos valores que farão com que a humanidade realize, enfim, o
ideal de felicidade. Mas enquanto esperamos a realização de um ideal, seguimos nos
alimentando, dormindo, conversando, respirando e podemos, até, nos cansar de tanto
esperar. Então, talvez a nossa consciência não esteja destinada a seguir um ideal
introjetado em nós; talvez ela não seja um rígido produto da natureza, com a função de
nos comunicarmos e, assim, prolongarmos ao máximo a nossa existência orgânica. Um
outro uso da consciência exige uma direção contrária aos nossos hábitos idealistas – um
uso com direções sensíveis. A nossa consciência pragmática está muito, muito à vontade e,
exatamente por isso, tornou-se o nosso maior perigo, pois a humanidade, entupida por
ideais, está desprezando o seu próprio futuro na Terra. A humanidade terá que sentir, de
modo urgente, a pressão crescente de uma outra consciência que, assim como no passado,
ainda é tímida (talvez atualmente seja ainda mais tímida do que em outras épocas), pois
ela desperta, ocasionalmente, em pouquíssimas existências. Este outro uso da consciência
estará a serviço de um outro ideal que realmente é vivido, que impele a humanidade a se
tornar forte e ter direito a um futuro. Chamamos este outro ideal de continuamento. A
consciência continuante não espera a realização do velho ideal, não prevê, não se cansa,
não pertence a uma identidade que é reconhecida, não quer seguir os “bons” caminhos,
mas sim levar adiante seus pensamentos que lhe vieram como raios imprevisíveis,
caóticos. “Eu iria escrever isto, fazer aquilo, mas agora não me interessa mais, sinto uma
urgência que veio à minha consciência. Ela, a urgência, me fez abandonar velhas
finalidades...”. A consciência continuante redime a consciência pragmática da servidão do
ideal a ser realizado a todo custo: a partir dela, o ideal é algo para não ser levado a sério – a
finalidade torna-se um importante adorno acrescentado à nossa existência... e nada mais
que isso.
CONSUMISMO

O alto grau de desenvolvimento tecnológico permite que uma parte considerável da


humanidade tenha acesso a inúmeros bens com uma facilidade que era impossível de ser
imaginada há séculos. Porém, essa facilidade é acompanhada de uma abundância que
permite que o consumo dos bens seja, em muitos casos, extremamente supérfluo. Em
regiões onde encontramos uma facilidade para obter alimentos, por exemplo, a
abundância alimentar contrasta com a penúria que se observa em outras regiões, o que, no
mínimo, demonstra que a humanidade possui todos os meios materiais para eliminar a
fome do planeta. Mas o consumo alimentar há muito tempo deixou de apenas servir para a
sobrevivência, tornando-se, então, consumismo. O acesso facilitado aos bens alimentares
não deixa de ser uma conquista importante da humanidade, assim como o acesso aos bens
culturais. Hoje em dia, para ouvirmos música, assistirmos filmes, lermos livros, não é nada
difícil encontrá-los, sobretudo pelo fato de a internet permitir o acesso a uma fartura de
bens que a humanidade jamais teve. Mas, exatamente neste ponto, surge algo que merece
ser observado: a facilidade de acesso fez surgir a vulgarização no modo de consumir os
mais diversos bens. Desde que surgiu a possibilidade de ouvir gravações musicais, nunca
se consumiu música tão vulgarmente como na época em que vivemos. Podemos também
pensar no consumo atual de filmes e livros que encontramos abundantemente na internet
– do mesmo modo, no consumo de viagens... Ora, não existe capitalismo sem
consumismo, isto é, sem o consumo excessivo de bens em busca de prazeres. Mas a
produção dos bens que a humanidade consome excessivamente é, sem dúvida, limitada.
Então, torna-se evidente que a relação entre consumismo-destruição ambiental é inegável,
e que o capitalismo é, por sua natureza, exterminador – e sua força destrutiva é acelerada
na medida em que a sua própria morte se aproxima... Como parte da humanidade tenta
reagir à destruição promovida pelo capitalismo? Alguns culpam o desenvolvimento
tecnológico que, como é notório, facilitou o acesso a bens que, em grande parte da
humanidade, são utilizados de modo supérfluo; outros responsabilizam os consumidores
de carne por serem cúmplices da destruição ambiental promovida pelo agronegócio;
existem os que acusam os consumidores de automóveis pela poluição da atmosfera; há
também os que censuram os consumidores de fabricantes de roupas que escravizam
trabalhadores imigrantes. Os exemplos são muitos e, de algum modo, denúncias como
essas não são desprezíveis porque, ao menos para nós, funcionam como lentes de aumento
para problemas que exigem soluções urgentes. Mas, aqui, queremos trocar estas lentes por
uma outra, que nos permite colocar outros problemas. Partimos das seguintes questões:
Quem considera o animal, a água, a floresta e o próprio ser humano, basicamente, como
fonte de lucro? Quem deseja lucros cada vez maiores para continuar a experimentar
prazeres excessivos? E, afinal, quem precisa de prazeres excessivos?... Já fornecemos muitas
indicações sobre isso em outros lugares... Quando vivemos por meio da introspecção não
precisamos, de fato, de prazeres excessivos, pois a felicidade não apenas refreia a crença na
imortalidade, mas também a busca enlouquecida por prazeres. Por isso podemos nos
alimentar o suficiente para conservarmos o nosso corpo e, até em razão do grau de
desenvolvimento tecnológico que atingimos, as pessoas podem optar, se lhes convêm, a se
alimentar basicamente de grãos, sementes, vegetais, frutas e cereais. Também, por isso,
podemos nos vestir para protegermos o nosso corpo e não para sermos invejados e
admirados. E também, por isso, podemos consumir os bens culturais com sabedoria, não
para sermos eruditos ou para nos distrair, mas para continuarmos a ser criadores. Por
efeito, a lógica perversa do agronegócio, da indústria automobilística e do entretenimento
simplesmente desabam – afinal, muitos poderes desabam quando não somos mais
iludidos pela publicidade que fabrica desejos supérfluos. É certo que o prazer nos conserva
e, quando é excessivo, nos aprisiona, nos faz negar o futuro da humanidade. Mas a
felicidade nos torna mais fortes para não sermos iludidos pela publicidade e, além disso, a
certeza alegre, que nos faz perseverar no processo de obrar, nos permite experimentar
outras felicidades, nos faz afirmar o futuro da humanidade. É preciso, sim, consumirmos
diversos bens para nos conservarmos – mas eles são apenas meios para podermos
conservar a nossa potência de criar.
IMPULSO

A grave mudança climática que está em curso é, para a ciência, indissociável das imensas
quantidades de CO2 despejadas pela humanidade (sobretudo por meio do carvão,
petróleo e gás natural), que se acumulam na atmosfera e causam o efeito estufa. Pelo fato
de a Terra estar mais quente, os cientistas alertam para mudarmos, urgentemente, o nosso
modo de viver, pois, caso contrário, as próximas gerações serão testemunhas de ondas de
calor insuportáveis, secas inéditas, elevação do nível do mar, extinção em massa de
espécies. Para evitar o pior, os cientistas dizem que a humanidade poderia se servir da
energia limpa, cuja tecnologia é conhecida desde o final do século XIX, por meio do
“concentrador parabólico de energia”, de Augustin Mouchot – tal invenção convertia a
energia solar em movimento mecânico e, inclusive, podia produzir eletricidade. Portanto,
é evidente que não há impedimentos tecnológicos e científicos para salvar o futuro da
humanidade. Se algo nos impede disso, segundo os cientistas, é a ausência da nossa
“vontade de agir”. Atualmente a China é o maior emissor de CO2, mas é, também, o país
que mais investe em energias renováveis (energia eólica, energia solar fotovoltaica, energia
geotérmica, energia hidrelétrica). Será que este fato seria um signo da “vontade de agir” a
que os cientistas se referem? Ora, esta “mudança de atitude” é conduzida por interesses
econômicos (pois a redução da emissão de CO2 diminui os custos com a saúde da
população e com a despoluição ambiental), e não por interesses que favoreçam a liberdade
humana. Mesmo assim, esta “mudança de atitude”, que ainda é muito tímida, pode não ser
suficiente para evitar que a humanidade tenha que se virar para sobreviver em um planeta
aquecido em 3 ou 4 graus. Em razão disso, parece-nos importante distinguir, aqui, a
“vontade” do “impulso”. Podemos dizer que a vontade tem relação direta com a nossa
conservação, com a crença em um ideal, está enlaçada com as noções de origem e
finalidade. Vontade e consciência pragmática caminham lado a lado. Temos vontade de
reagir a estímulos que colocam em risco a nossa conservação ou, ao contrário, que a
favorecem. Nesse sentido, a dor ameaça a nossa conservação – por isso reagimos; já o
prazer favorece a nossa conservação – por isso também reagimos... Contudo, é inegável que
existe uma produção social da vontade pelos mais diversos meios, fazendo a maior parte
da humanidade ser conduzida por uma vontade crescente de experimentar pouca dor e
muito prazer. A vontade de crescimento econômico das nações, com destaque para a China
atual, e o seu correspondente imediato, o consumismo, são sintomas da produção social
desta vontade... A incrível invenção de Augustin Mouchot foi engolida pelo carvão porque
simplesmente não era rentável. Mas quem é que precisava que ela fosse rentável? Se o
carvão permite um lucro muito maior do que a invenção de Mouchot, isso nada tem de
surpreendente, pois a noção de lucro está impregnada na consciência pragmática humana,
que não conhece outro modo de existir que seja distinto da reação exagerada aos estímulos
que nos conservam... Mas o impulso é outra coisa diferente da vontade – ele é um
empurrão sentido pela consciência continuante. O seu ideal não concerne ao que nos
conserva, mas é vivido como continuamento – trata-se de uma experiência que expulsa a
vulgarização da nossa existência que é causada pelo império da consciência pragmática. O
impulso não tem nenhuma intimidade com os prazeres. É ele que, inclusive, redime a
vontade, ao impor um outro sentido para o uso dos bens que nos conservam. Dito de outro
modo: por não ter a ideia do que seja o impulso, a humanidade se mantém escrava da sua
vontade excessiva de acumular as “folhas tristes”... Vontade temos em demasia. Impulso é
do que precisamos para agir.
VONTADE

Se a conservação da nossa potência de criar exige a conservação do nosso organismo e,


também, da consciência pragmática, torna-se evidente que a vontade de possuirmos tudo
aquilo que é indispensável para continuarmos a existir não pode ser desprezada. Se
estamos assolados pela falta de alimentos, pela falta d'água, pela falta de moradia, como,
então, podemos inventar um modo de viver e, além disso, sermos capazes de fortalecê-lo?
É evidente que ao suspendermos a fome e a sede sentimos prazer. Também não é estranho
para ninguém o fato de que quando o nosso organismo adoece passamos a sentir dor – e
por isso queremos eliminá-la. É a vontade de possuir o que nos dá prazer, e de eliminar o
que nos causa dor, que conduz as nossas ações, ao menos enquanto não experimentamos o
impulso. Porém, o que não pode se tornar claro para a consciência pragmática é que a
vontade é apenas um meio para que a vida possa desabrochar também em nós. Em razão
disso, o que a experiência não cessa de demonstrar para nós é que a vontade tornou-se,
para a humanidade atual, o sentido mesmo da existência, como suprema finalidade do fato
de existirmos – finalidade que é fabricada e estimulada socialmente, todos os dias, como
imperativo para “aproveitarmos o dia”, pois, como a nossa existência é breve, devemos
aproveitá-la com muitos prazeres. Sabemos que o homem ressentido e hedonista é aquele
que implora por um mundo sem dor, porque ele simplesmente não se serve da dor para
poder agir, para mudar algo que não flui mais na sua existência. A vontade aparece para a
sua consciência associada com o estranho raciocínio de que “o mundo gira ao meu redor!”,
e não com a lúcida constatação de que “é a vida em mim que precisa se conservar!”.
Enquanto está confinado nos espaços que lhe “protegem”, imagina que estará arruinado se
diminuir o seu “padrão de vida”. Entretanto, o homem ressentido e hedonista ainda não se
deu conta de que, enquanto está reduzido à sua vontade, necessita de um excesso de bens
que não são, de modo algum, indispensáveis – por isso ele necessita de reconhecimento, de
olhares que reforçam a sua vaidade, de credenciais que lhe dão a percepção distorcida de
que é superior aos outros. Uma vez capturado pela vaidade alegre (aquela que surge do
“tapinha nas costas”), é certamente muito difícil abrir mão dos privilégios que foram
obtidos com “mérito” – e isso é dito, da mesma forma, do rico e do pobre... Mas o seu corpo
não tem apenas vontade de prazeres industrializados, pois todo corpo humano também
deseja explorar... Tenha ou não consciência disso...
DESEJO

Como a “vontade de explorar” não se confunde com a vontade de ter prazeres, então, em
razão disso, preferimos, aqui, chamar de desejo de ser atraído como uma experiência
indispensável de higienização. Se desejamos ser atraídos pelas estrelas ou por forças
sociais é, sobretudo, para não nos tornarmos servos do excesso de vontade que vulgariza a
existência humana. Desejamos nos despersonalizar, mesmo que tenhamos um vago
sentimento disso, porque, deste modo, atendemos à exigência da vida. Contemplar o que
nos atrai, seja por meio de uma bela canção ou de um grande filme, ou, então, por meio da
droga ou de uma simples caminhada, pode nos tornar, enfim, lúcidos. Em vez de ideias
que têm como base a opinião que reforça a vaidade (algo que se acentua a cada dia), vêm à
tona pensamentos subversivos que exigem sacudir tudo o que é considerado como
verdadeiro – incluindo, sem dúvida, o lamentável raciocínio do sujeito hedonista que quer
tudo para si... Se nos tornamos lúcidos e mais corajosos para enfrentarmos certas forças
sociais que reproduzem o esmagamento da humanidade é porque desejamos, o máximo
que podemos, explorar mundos que, através da lente da consciência pragmática, só podem
ser inabitáveis. Mas é somente daqui, ao habitá-los temporariamente, que pode surgir a
“vontade de agir” ou a “vontade para gerar o novo”, que é, rigorosamente falando, o
impulso.
VAIDADE

Uma organização que reconhece alguém pelo trabalho bem feito ou, então, pelo seu
comportamento “exemplar”, nada mais faz do que tentar submetê-lo ao seu poder para
que, dessa forma, ela mesma consiga se manter de pé por muito tempo. As muitas doses de
reconhecimento dirigidas aos seus “colaboradores” são extremamente sedutoras, porque
oferecem a imagem de que eles estarão por muito tempo sob a sua tutela. Porém, isso tem
um custo: para continuarmos a ter o reconhecimento da organização é necessário
permanecermos idênticos, ou seja, é indispensável acreditarmos que somos os mesmos a
cada instante. Por consequência, continuamos a reprimir o desejo de sermos atraídos pelo
desconhecido mediante o uso grosseiro da nossa energia, o que constitui um tarefismo
onde se faz o “mais do mesmo” para obtermos títulos, dinheiro, poder e... sem dúvida, para
continuarmos a acreditar que não mudamos. Enquanto alguém está capturado pela
vaidade, seja um simples operário ou um renomado intelectual, é inevitável que ele fale o
que a instituição deseja, que reproduza opiniões que são cada vez mais estimuladas pelo
excesso de comunicação dos nossos dias, em suma, que não incomode ninguém, que seja
um sujeito do “bem”, o orgulho da família... Apesar disso, jamais alguém é o mesmo, pois
suas sensações e pensamentos mudam continuamente – mas é exatamente por isso que
um sujeito vaidoso tem vontade de se agarrar às coisas supostamente sólidas, imutáveis e
verdadeiras. Com o passar dos anos, a sua mudança não salta aos nossos olhos, pois ela é
difusa, não tem consistência, já que permanece um pobre burocrata de espírito: ele diz as
mesmas coisas que dizia há muitos anos, enuncia as mesmas opiniões, os seus problemas
parecem girar neles mesmos, suas intrigas e angústias continuam no mesmo foco. A
vaidade é um veneno, não nos permite evoluir, é um mecanismo do poder que está a
serviço da democratização da organização-quadrilha (a que reproduz a forma-Estado),
onde muitos se orgulham por participar – são os que se orgulham por copiar “verdades”,
pois, desse modo, acreditam que irão progredir na carreira profissional e ter vantagens
sobre os concorrentes. Mas isso é, para nós, uma evolução ao contrário, porque quanto
mais nos submetemos aos elogios e às censuras da quadrilha organizacional, mais
distantes da vida estamos. Alguém que, subitamente, tem a nítida consciência de que
participa de uma instituição criminosa, ou melhor, de que foi preparado durante muitos
anos para estar a serviço dela, já é, de algum modo, uma evolução no sentido da vida, seja
com a idade que tiver... Esta constatação é apenas o passo inicial para que alguém possa se
livrar do engodo que é a vaidade.
SEMPRE

Hoje, hoje, hoje, o exagero do hoje nos sufoca. A linguagem corrente não cessa de nos falar
do hoje, até os mais inteligentes nos incitam ao hoje. Fácil é falarmos sobre o hoje, que não
exige grande esforço e paciência. Difícil é pensarmos no Sempre... Ignorar a presença do
Sempre é negar o amanhã – o amanhã da humanidade. Mas o grande artista e o grande
filósofo nos ensinam a pensarmos e sentirmos o Sempre – eles nos alertam sobre o exagero
do hoje que nos torna doentes e covardes. Filosofia e arte se nutrem do Sempre, toda
criação surge do Sempre, é a sabedoria do Sempre que devemos cultivar para não
entregarmos a nossa existência aos que estão afundados no hoje. Passamos, então, a falar
para o amanhã, ou seja, para os que têm ouvidos para o Sempre, sejam os que existem
hoje, sejam os que ainda existirão. Mediante o exercício impiedoso da crítica abrimos as
portas do amanhã para alguns dos que apenas conhecem o hoje – e isso é revolucionário. O
olhar focado no hoje nos faz errar o alvo: ora disparamos contra nós mesmos, ora
utilizamos canhões para abater pássaros. Mas compreender e criticar o hoje a partir da
experiência do Sempre nos faz acertar o alvo com a mais singela arma, porque sabemos
que o hoje nunca esteve separado do Sempre. Mas os seres tristes, que não querem viver
sem o reconhecimento pelos serviços prestados aos interesses do hoje, tentam banir a
força revolucionária do criador ao se esforçarem para separá-lo da experiência do Sempre.
Mas isso é inútil, porque ninguém, de direito, está separado do Sempre. A diferença
fundamental é apenas entre quem ainda não quer perceber o Sempre (pois tem medo
dele), de quem o abraça com todas as suas forças para seguir o seu movimento de
destruição-criação. É evidente que não assumimos riscos quando estamos atolados no
hoje, ao menos enquanto acreditamos que o hoje vai nos “proteger” do Sempre. Mas
quando somos tocados pelo Sempre podemos desejar acompanhá-lo – e para isso serão
necessários alguns riscos, erros, acertos, novamente erros e acertos, porque simplesmente
não queremos deixar de viver em função dele.
SIMPLICIDADE

Se a vaidade é um mecanismo de poder que nos limita ao conhecimento do hoje, nos


separando da evolução no sentido da vida, por outro lado surgem, como imagem de
contraste, os que jogaram para longe a vaidade pessoal e se tornaram aquilo que são – uma
existência simples. Trata-se dos que possuem uma simplicidade impessoal, fruto de um
conhecimento de que o Sempre está nos sujeitos e objetos, de modo que não existe
ninguém no mundo que seja proprietário de alguma coisa ou até de si mesmo.
Consequentemente, eles estão mais aptos para não se distraírem de si, seja pela admiração,
seja pela inveja dos que precisam do hoje. Frequentam lugares que são, no fundo, simples;
conversam com pessoas que também são, sem dúvida, simples (mesmo que elas ignorem
que são); assim como também se alimentam, se vestem e se divertem com simplicidade.
Porém, a simplicidade da qual falamos é distinta de um simplismo que rejeita o
desenvolvimento tecnológico a partir de um ideal de purificação da alma, de uma
glorificação da pobreza ou, então, da marginalidade. As inovações tecnológicas, quando
não são utilizadas de modo supérfluo, podem favorecer ainda mais a simplicidade (o que
pode parecer contraditório para muitos). Contudo, nas mãos do sujeito vaidoso, elas
adquirem facilmente um sentido que é nocivo para todo mundo, pois, para manter a todo
custo o poder do qual ele depende, não há outra saída a não ser vigiar, controlar, enganar e
assassinar – afinal, não há motivo algum para deixarmos de afirmar que é a existência
covarde que precisa exterminar os que não se submetem... A partir da simplicidade
impessoal não há necessidade alguma de se ajoelhar e abaixar a cabeça diante dos
“poderosos” e das “celebridades” - estes é que, ao contrário, deveriam reverenciar a
simplicidade que se apresenta aos seus olhos, caso pudessem, evidentemente, se livrar de
seduções como honra e riqueza que, necessariamente, um dia perecerão. Mas o
conhecimento daquilo que não perece, que é o que chamamos de Sempre, nos faz
dispensar as quinquilharias fabricadas para serem colocadas sobre nós mesmos, à espera
dos aplausos que reforçam a vaidade pessoal.
MORTE

Se existe uma ideia que mais atormenta a humanidade é a da morte, ou seja, é a certeza
que obtemos pelo raciocínio de que, um dia, nosso organismo deixará de existir. Por causa
disso, muitos acreditam que ela seria a passagem para a tão esperada imortalidade da
alma. Há também os que acreditam que o mundo seria muito melhor se ela não existisse,
se fosse finalmente “vencida” pela ciência. Porém, se ela realmente não existisse,
simplesmente não haveria o amanhã... É como singularidades criadoras que não
desperdiçamos esta existência que ganhamos e, por isso, vivemos em função do amanhã,
sem temermos a morte e, também, sem acreditarmos na imortalidade da alma. Sua ideia
se torna até um estímulo para a urgência da nossa tarefa de obrar, para vivermos de modo
que parece ser impossível para os que apenas percebem o hoje – então, a ideia da morte,
neste seu sentido afirmativo, nos liberta dos clichês do hoje. É inevitável que, quanto mais
se é escravo do hoje, mais a morte é amaldiçoada, pois sua imagem vem acompanhada da
perda de bens diversos, de pessoas queridas e da história pessoal – não há dúvida de que a
morte é impiedosa com quem ainda imagina que é proprietário daquilo que, de direito,
nunca lhe pertenceu. Portanto, a morte não se opõe à vida, porque para a evolução da vida
é absolutamente necessário que tudo que existe no universo desabe um dia, para que,
finalmente, surja o novo – e para que o novo também, um dia, deixe de existir... Por isso é
importante combater a tendência servil de glorificar o hoje e desprezar o amanhã, para que
seja possível, enfim, a liberdade de viver para o amanhã.
RESSONÂNCIA

Qualquer um de nós pode encontrar coisas e seres vivos que, embora sejam, num certo
sentido, temporariamente estáveis e finitos, nos permitem a experiência da mudança
universal. O fato é que algo existente já é um mundo, não importa a forma que tenha – e a
nossa vontade de explorar é, para falar profundamente, o desejo de sentirmos a
ressonância entre micromundos heterogêneos, o que faz nascer uma aliança temporária
que nos torna mais fortes e confiantes na vida. Entretanto, é preciso ter coragem para
sentir-se em casa desse outro modo, despersonalizado... O que queremos enfatizar é que
existe algo em nós que jamais se torna imundo, pois até as pessoas cujos atos nos
envergonham – como as que amam o poder ou que apenas cumprem ordens – são,
essencialmente, puras enquanto micromundos, mesmo que ignorem essa realidade. Essa
ignorância ocorre porque não podemos sentir a ressonância de qualquer jeito, como se ela
pudesse surgir pelo simples fato de encontrarmos alguém ou alguma coisa do modo que
esperamos – esta expectativa, que é inerente à consciência pragmática, é sempre
frustrante. É preciso, ao contrário, ser capaz de contemplar o ritmo que irresistivelmente
nos atrai. Sem dúvida, os modos de existência limitados à consciência pragmática podem
ter a experiência da ressonância, mesmo com a demasiada vontade de ter prazeres, mesmo
sem cultivarem a contemplação de ritmos, mesmo com o esmagamento do desejo de
serem atraídos – e, quando a sentem, é comum recorrerem à consciência pragmática para
se tranquilizarem com uma explicação qualquer, desde que seja sustentada por uma
suposta intencionalidade naquilo que lhes aconteceu (como se fosse, por exemplo, o sinal
de um “chamado divino”). Disso decorre o conflito do “aperto no coração”, pois terão que
rever valores, crenças e hábitos para se abrirem às novas experiências vertiginosas. A
vertigem desloca a formação cultural de alguém, o seu saber enciclopédico, os seus títulos,
mas também pode ser acompanhada do sentimento de não se saber muito bem o que fazer
com ela – esta lacuna é a oportunidade que um líder de seita se serve para obter mais um
seguidor... Por outro lado, há quem, ao ser tomado pela vertigem, diz palavras muito
profundas e lúcidas, que incomodam a sociedade. Contudo, ao ser engolido pela
banalidade ou, então, pela patologização da vida, sente-se até envergonhado por tornar
dizíveis pensamentos tão originais que, justamente por isso, são incompreensíveis para
muitos. Mas a aliança que surge com novas ressonâncias mantém afastado este perigo de
duvidarmos da nossa própria pureza – e também da doce loucura do nosso pensamento.
AGOVERNISMO

O esfacelamento de instituições democráticas, em certas circunstâncias, não é


contraditório ao capitalismo, pois quanto mais a democracia deixa de ser levada a sério
(algo que é inevitável), mais ela passa a ter um sentido totalitário de grau muito mais
elevado (a democracia é “salva” com o restabelecimento da ordem a todo custo). Uma
coisa é exercer a crítica às instituições democráticas que, por estarem a serviço da ordem
dominante, deixam, de fato, de servir às necessidades mais urgentes da população. Outra
coisa é provocar a sua degradação acelerada que, de acordo com as exigências do capital (a
“vontade de petróleo”, por exemplo), torna-se extremamente interessante (a aliança com a
extrema-direita, em determinados momentos, não deixa de ser peça importante para o
capitalismo). Para nós, é inegável a importância do avanço de políticas de inclusão social,
de combate à fome, tal como ocorreu no Brasil nos últimos anos, o que lhe permitiu sair do
Mapa Mundial da Fome em 2014. Entretanto, essas políticas tratam, sobretudo, de uma
inclusão para o consumismo, sem ir além do primeiro passo, isto é, sem romper com a
vontade de ter prazeres como sentido da existência. Para que essa ruptura se efetue, é
necessário um segundo passo que é determinante, marcado por uma transmutação das
políticas de inclusão por meio de uma política de educação libertadora (com muita arte,
filosofia, ciência), promovida por movimentos sociais que se servem dos benefícios da
inclusão social para, estrategicamente, estimular o pensamento crítico e criador que
permite o surgimento de modos de existência que vão na contramão da homogeneização
do consumismo (em síntese, este é o foco do que chamamos de democracia ativa). É em
razão disso que, em um cenário onde existe o crescimento da extrema-direita, o apoio a
um governo que promoveu condições de existência mais favoráveis a uma parte
considerável da população não pode ser interpretado a partir de uma visão binária dos
fatos, do tipo pró ou contra. O tecido social é complexo demais e, por isso, devemos
multiplicar a análise dos fatos e distinguir as forças sociais que estão em relação, tendo
como critério políticas que favorecem a autonomia, a autogestão e, no final das contas, o
despertar das singularidades criadoras. A partir deste critério (e o que ele pode),
entendemos que quando o apoio a um governo que promove a inclusão social é feito de
modo dogmático, isso não deixa de ser reacionário, pois não se rompe com a existência
consumista – pelo contrário, ela continua a ser estimulada para os incluídos. Para nós, este
apoio é do tipo governismo. Todavia, quando o apoio é do tipo agovernismo, abrem-se, ao
menos, condições mais concretas para operarmos a ruptura com o consumismo – trata-se,
portanto, de uma estratégia para que não sejam destruídos direitos da vida que foram
arduamente conquistados. Por outro lado, quando não se apoia um governo assim e se
deseja que surja outro do jeito que for, mesmo que seja por meio do esfacelamento das
instituições democráticas, é evidente que também não há ruptura com a vontade excessiva
de ter prazeres – o segundo passo também não é favorecido, ao contrário, retira-se o
primeiro passo e a distância que separa os incluídos dos excluídos aumenta
consideravelmente. A ideia de que “pior do que está não fica”, efeito do próprio circo
democrático, torna-se mais um combustível para o “vale tudo pelo poder”, que é
promovido por aqueles que se servem das aparentes contradições da democracia
representativa (a corrupção, o agronegócio, as privatizações, a destruição ambiental, a
violência nas metrópoles) para fisgar os insatisfeitos de todo tipo... Embora estas
distinções sejam, até certo ponto, muito básicas, pensamos que sejam suficientes para
começarmos a superar o modo binário de interpretar os fatos sociais (pois o binarismo é
ferramenta de poder, reproduz o ódio a quem não pensa e vive do mesmo modo).
Portanto, não se trata de escolher simplesmente “o menor dos males” ou, então, “quanto
mais repressão, melhor, porque assim o povo acorda”, pois, embora haja diversos graus de
violência estatal, ainda assim as criações podem surgir em ambientes mais favoráveis aos
movimentos de autonomia que, evidentemente, sempre irão incomodar o Estado, seja a
forma que lhe for dominante (democrático, totalitário, socialista). O Estado, por ser de
essência parasitária, deve ser sempre incomodado com criações, e cada vez mais, porque o
que está em jogo é o mundo em que vivemos, é o mundo em que as próximas gerações irão
viver, pois a humanidade não terá direito a um futuro se continuar a se distrair de si
mesma por meio do consumo excessivo de bens em busca de prazeres.
INSATISFAÇÃO

Se o Estado Democrático de Direito pode ser considerado insatisfatório é porque antes


dele estão os afetos, ou seja, as “regras do jogo” não vêm antes dos afetos, pois são eles que
as fazem – e são eles que também, sem dúvida, alteram as regras. Direitos são criados, mas
direitos também são revogados, pois tudo depende do conflito de forças do campo social
(basta lembrarmos que o próprio Estado Democrático de Direito surgiu por meio do
domínio de forças burguesas). Podemos dizer que, em um determinado campo social
(tomamos o Brasil atual como exemplo), existem os que querem lucros cada vez mais
exorbitantes, como os empresários graúdos e os banqueiros (em nível mundial, o resultado
assustador disso pode ser observado segundo um estudo recente: hoje em dia, a riqueza
acumulada por 1% da população mundial equivale à riqueza de 99% do restante da
população mundial). Há também os que anseiam por obter componentes altamente
luxuosos, por se sentirem como very important person: é evidente que estes têm medo de
não possuir mais os direitos aos privilégios que lhes autorizam a se imaginarem superiores
diante dos que não têm acesso ao alto luxo... Podemos também afirmar que existem os que
anseiam por pequenos luxos que lhes dão o privilégio de se sentirem superiores aos outros
em razão da ascensão social (emprego com maior salário numa multinacional,
apartamento muito mais confortável, viagens turísticas): estes sentem que também
possuem o direito de serem consumistas, de ingerir novelas e noticiários numa televisão
moderna, de circular orgulhosamente com roupas de grife e automóveis caros, de exibir
seus corpos de acordo com o “padrão de beleza” atual. Há, enfim, os que querem condições
dignas para morar, estudar, trabalhar, deslocar-se pela cidade e, dentre estes, muitos
sonham com os pequenos luxos... Destacamos apenas algumas forças sociais que exigem
do Estado Democrático de Direito o auxílio necessário para que as “regras do jogo” lhes
favoreçam (poderíamos acrescentar os políticos corruptos, os pastores que enriquecem
com o sofrimento alheio, porém, de certo modo, estas forças se relacionam com algumas
acima). Mas como o Estado serve, de modo dominante, aos interesses dos banqueiros e
empresários graúdos, os conflitos sociais, dos mais diversos tipos, são absolutamente
inevitáveis. Se no fascismo quem pensa diferente é torturado, expulso, exterminado, na
democracia quem pensa diferente é, muitas vezes, incluído, tornado domesticado, dócil,
inofensivo – a demagogia democrática que pretende incluir para excluir o que é singular e
fragmentário, torna evidente, ao menos para nós, a sua natureza totalitária, mas com
diferença de grau com relação ao fascismo clássico, sem dúvida, pois este não tem como
esconder o seu anseio unificador, ao contrário da democracia... Ora, pelo fato de o campo
social ser tecido por uma multiplicidade de forças ou de tendências afetivas que estão
sempre em mutação, o Estado Democrático de Direito, conforme convém às forças que o
dominam, exclui, elimina (muitas vezes fisicamente, por via da violência policial) os
indivíduos que são um entrave ao ideal de “plena satisfação” das forças sociais dominantes,
como os pobres, travestis, negros, índios – estes últimos são, por exemplo, exterminados
com a complacência do Estado brasileiro, ou então, são “excluídos pela inclusão”, como
ocorre atualmente com a tribo Pirahã, que passou a ter, democraticamente, o acesso à
televisão e à alfabetização (outro exemplo atual de massacre do povo indígena é a
construção da Usina de Belo Monte). Portanto, o cenário é de insatisfação geral, pois, ao
que parece, ninguém consegue obter, de modo completo, aquilo que se espera do Estado –
insatisfação dos banqueiros, dos famous people, dos pobres, dos índios, dos negros... Mas
por que não usarmos a insatisfação com o Estado para, finalmente, revermos nossos
valores? Será que não é possível a multiplicação de ações políticas que vão na contramão
da lógica do mercado capitalista? Para falar claramente, sem rodeios: muito mais do que
apenas revermos valores, podemos dar um passo adiante para criarmos valores, o que
significa uma nova relação com a política, com a economia e, sobretudo, com a existência
que ganhamos. A insatisfação é o combustível para a exigência de uma maior repressão do
Estado com o fim de garantir certos direitos do homem privatizado, mas ela também pode
ser um combustível para resistirmos à sua violência inerente. A insatisfação com a
ignorância humana, por exemplo, pode nos levar à necessidade de uma educação para o
pensamento (algo que é muito diferente da insatisfação pela redução de certos privilégios
consumistas), ou então, a insatisfação com a educação que está sob a tutela de um Estado
que a trata como negócio lucrativo pode provocar ações políticas dos estudantes (as
recentes ocupações nas escolas brasileiras pelos estudantes secundaristas como signo de
democracia ativa). De algum modo, é importante destacar que as lutas sociais que ocorrem
em um Estado democrático (apesar de todas as suas aparentes contradições) podem se
servir da preservação de direitos para seguirem adiante, para que surjam, quiçá, novos
valores. É em razão disso que já dissemos em outro lugar: “criar e não ser incluído”, desde
que se compreenda que a inclusão social que ocorreu nos últimos anos no Brasil pode ser,
estrategicamente, utilizada como uma espécie de trampolim para que surjam novos
modos de existência que são contrários aos fins do Estado e da lógica do mercado que o
domina... Enfim, se fosse possível obtermos a satisfação, certamente haveria um bloqueio
geral, viveríamos num paraíso insuportável. A satisfação é apenas um ideal de quem não
age. Ora, se os afetos são anteriores às “regras do jogo”, tudo se decide aqui: os afetos de
vontade excessiva, tristeza, ódio e ressentimento alimentam o anseio totalitário (incluindo
o ideal democrático); por outro lado, os afetos de desejo de sermos atraídos nos levam aos
encontros com os micromundos, onde celebramos a fragmentação. Por isso, dispensamos
o “salvador da pátria”, porque o importante é percebermos as tendências afetivas do campo
social que estão diante de nós para experimentarmos a ressonância. Entretanto, as
condições para isso podem fazer tremer as pernas de muita gente que está habituada a
exigir que algum salvador resolva os seus problemas, que alguém possa fornecer a “poção
mágica” para as suas perturbações. Contrariamente a essa postura vitimizada, é preciso se
tornar um espírito guerreiro, que não luta de qualquer jeito, mas com simplicidade e
sagacidade – como arte da guerra.
NEOCOLONIZAÇÃO

Um estudo encomendado pela Nasa, divulgado em 2014, destaca a possibilidade de a nossa


civilização entrar em colapso devido à exploração insustentável de recursos naturais e a
desigualdade na distribuição das riquezas1. Alterações climáticas extremas (inverno
intenso na América do Norte, calor intenso na América do Sul e Austrália),
superpopulação (segundo a ONU, o crescimento da população está estimado em 80
milhões de pessoas por ano, podendo chegar a 9,1 bilhões em 2050) e a escassez de água e
energia são fatores determinantes para o colapso. Além disso, a desigualdade crescente
entre ricos e pobres contribui para acelerar esse processo (segundo um relatório da Oxfam,
divulgado também em 2014, as 85 famílias mais ricas do mundo possuem um patrimônio
igual ao da metade da população mundial). Como a população mundial tende a crescer, a
desigualdade social também irá aumentar e, em razão disso, as tensões sociais serão
inevitáveis. O cenário será mais ou menos este: o alto consumo de recursos naturais por
parte das elites vai excluir a maioria da população ao acesso a esses bens, restando aos
pobres apenas algumas migalhas que serão necessárias para a sua sobrevivência; por efeito,
os que produzem a riqueza consumida pelas elites simplesmente irão colocar em risco a
acumulação capitalista por meio de revoltas, greves, protestos, levando, então, toda a
civilização à sua grande crise. Portanto, parece ser óbvio que uma melhor distribuição de
renda e uma grande redução do consumo de recursos naturais seriam a melhor solução
para impedir o colapso do atual modelo socioeconômico. Entretanto, sabemos que essa
“mudança de atitude” não irá surgir enquanto a humanidade continuar a ser escrava do seu
consumo excessivo de bens em busca de prazeres. A esperada “mudança de atitude” é
completamente contrária ao capitalismo, pois sua sobrevivência depende da exploração de
recursos naturais de modo desenfreado – por meio disso, novos mercados são criados e sua
morte é, temporariamente, afastada. Na América do Sul existem recursos naturais que são
absolutamente indispensáveis para a sobrevivência do capitalismo, como, por exemplo, as
reservas de água: o Aquífero Alter do Chão, localizado no Brasil (sob os estados do Pará,
Amapá e Amazonas) é considerado o maior aquífero do mundo em volume de água
disponível; o Aquífero Guarani é outra grande reserva, localizada no Uruguai, Argentina,
Paraguai e Brasil; muito próximo da América do Sul, a Antártida é a maior reserva de água
doce congelada no mundo (e que também contém importantes minerais estratégicos).
Ademais, a venezuelana PDVSA é atualmente a petrolífera com maiores reservas de
petróleo do mundo e, no Brasil, existe uma grande área de reservas petrolíferas (o pré-sal).
Ora, diante dessa abundância de recursos naturais na região, torna-se evidente que a
neocolonização estadunidense que está em andamento tem como objetivo obter o controle
de todos esses recursos. Na Argentina, esse processo de neocolonização ocorre por meio de
um presidente democraticamente eleito, que tem transformado o Estado numa espécie de
“Estado corporativo” que representa bancos e multinacionais, com CEO's como ministros.
Cortes drásticos nos orçamentos da educação e das políticas sociais, gerando aumento do
desemprego e da pobreza, são reflexos evidentes da neocolonização na Argentina. Somado
a isso tudo, recentemente o presidente argentino selou um acordo com o governo
estadunidense para a instalação de duas bases militares no país: uma em Ushuaia, que é
muito próxima à Antártida, e outra na Tríplice Fronteira (Brasil-Argentina-Paraguai), onde
está localizado o coração do Aquífero Guarani – este fato demonstra que a soberania
econômica e política da Argentina está ruindo2. O Paraguai, em 2012, sofreu um golpe de
Estado e já possui base militar estadunidense em seu território 3. No Brasil de 2016, a
neocolonização conseguiu destituir, por meio de um novo tipo de golpe de Estado, um
governo que, nos últimos anos, promoveu inclusão social a uma grande parte da
população. Portanto, muitos acontecimentos recentes indicam que a América do Sul corre
o sério risco de ser devastada por grandes corporações que irão saquear o máximo que
podem os seus recursos naturais e, exatamente por isso, os regimes totalitários de alto grau
tenderão a se proliferar no continente. Consequentemente, a distância entre ricos e pobres
irá aumentar, o que certamente irá multiplicar os conflitos sociais... Além do estudo
encomendado pela Nasa, existem outros estudos que até consideram a hipótese de o
colapso da civilização ocorrer em apenas quinze ou vinte anos. De qualquer modo, muita
coisa indica que, seja cedo ou um pouco mais tarde, a humanidade, caso queira sobreviver,
terá que se reinventar por meio de um novo direcionamento dos conflitos sociais que irão
se multiplicar: um novo modo de pensar a política, um novo modo de pensar a existência
que ganhamos, uma outra relação com o mundo em que vivemos... Afinal de contas, o que
estamos presenciando na América do Sul em 2016 é apenas mais um sinal do desespero do
capitalismo para prolongar a sua existência, mesmo que seja numa “Unidade de Terapia
Intensiva”.
MANIPULAÇÃO

A manipulação das massas neste início de século envolve uma engenharia clandestina de
grande sofisticação. Conforme as denúncias de Edward Snowden, agências de inteligência
introduzem materiais falsos na internet, disseminam mentiras sobre inimigos políticos,
inclusive servem-se das ciências humanas para manipular a “inteligência humana online”.
Por meio de narrativas favoráveis aos seus fins, os inimigos são abatidos sem a necessidade
de um tiro sequer, apenas pelo descrédito que passam a ter em razão da propagação de
notícias falaciosas. Postagens de informação negativa, de “vitimização falsa” (quando
alguém finge ser vítima de um inimigo político) e de “operação de bandeira falsa” (material
postado na internet atribuído falsamente a terceiros) são apenas algumas táticas de
manipulação que, de fato, exercem grande influência na multiplicidade de afetos do
mundo online. Trata-se da arte da manipulação clandestina dos afetos. Também de modo
clandestino, redes de ONGs na América Latina propagam as narrativas da direita liberal ao
pregarem a liberdade individual (como se o corpo e a mente fossem a nossa primeira
propriedade privada), a predominância do indivíduo sobre o Estado, a meritocracia e,
como contraste, rejeitam os programas sociais de governos chamados “populistas”, como o
de um Hugo Chaves, na Venezuela, ou de um Evo Morales, na Bolívia. Essas narrativas são
sedutoras porque enfatizam a liberdade do indivíduo de escolher o futuro que quiser, sem
depender das muletas de um Estado tutelar (daí o ataque aos governos “populistas”).
Recentemente no Brasil esses discursos foram para as ruas, com o apoio da grande mídia
conservadora (principalmente a partir de Junho de 2013). Intelectuais declaradamente
favoráveis ao discurso liberal fomentaram essas ideias para o grande público na internet,
nos noticiários da televisão, nas colunas de jornais e revistas, cujo bombardeio diário de
opiniões multiplicou os afetos de medo e de ódio, realizando, de algum modo, aquilo que
as agências de inteligência planejaram. Com a criação estratégica da Operação Lava Jato,
foi reforçada a impressão de que o país finalmente passou a ter uma oportunidade de
realizar uma “faxina” ao caçar os corruptos (a Lava Jato se tornou a “lenha da fogueira” que
incendiou a nação). Resumidamente, estes foram alguns dos elementos principais para o
golpe jurídico-midiático no Brasil em 2016, caracterizado por uma espécie nova de golpe
de Estado, de longo prazo, que funciona de modo clandestino, sobretudo na internet, sem
a necessidade de disparar um tiro sequer para destituir um governo que é contrário aos
interesses estadunidenses de neocolonização na América Latina. Afinal, como destituir o
governo de um país com 200 milhões de habitantes, cujo território é o quinto maior do
mundo, sem correr o risco de comprometer gravemente a imagem estadunidense no
mundo da comunicação global? Para isso é necessário aliar-se aos interesses perversos da
burguesia do país (especialmente aos dos proprietários dos meios de comunicação), de
alguns juízes, dos partidos de oposição, das igrejas evangélicas e, como fator indispensável
nesse processo, executar impecavelmente, de modo agressivo e contínuo, a arte da
manipulação clandestina na internet que faz o “caldeirão dos afetos” ferver na temperatura
que se espera... Mas podemos também agir clandestinamente, de modo completamente
diferente dos pregadores do liberalismo. O indivíduo não é princípio de nada, não é
proprietário do seu corpo, não é dono de coisa alguma – a sua existência é, ao mesmo
tempo, um presente da vida e um meio de passagem para as potências dela. É evidente que
o indivíduo não existe separado de um coletivo de forças que, necessariamente, o
desindividualiza, em menor ou maior grau. Por não se colocarem nesse processo de
“desindividualização”, os incluídos por um Estado tutelar continuarão insatisfeitos com ele
enquanto não perceberem que as muletas devem, um dia, ser jogadas para bem longe (eles
não realizam a transmutação das políticas de inclusão social). Por causa disso, é
importante a existência de movimentos horizontais de autogestão, como coletivos de
anônimos, que disseminam clandestinamente arte, ciência e filosofia em todos os lugares,
combatendo o medo que assola os que estão entupidos por narrativas liberais e, também,
por narrativas tutelares, ou seja, por tudo aquilo que reforça a noção do indivíduo como
zona de segurança... Se a clandestinidade manipuladora existe por causa da covardia dos
que estão capturados pela vaidade pessoal, a clandestinidade desmanipuladora, por seu
lado, pode ser proliferada pela coragem dos que possuem uma simplicidade impessoal.
ESTUPIDEZ

É possível percebermos, com clareza, que é mais eficaz manipular os indivíduos que não
têm tempo livre para se dedicar aos seus próprios pensamentos do que os que fazem um
uso produtivo do tempo, já que é uma característica da nossa época o bombardeio de
informações, sobretudo pela internet, como ferramenta indispensável para o controle do
tempo das massas, embotando a sensibilidade estética e reprimindo a experiência do
pensamento profundo, com concentração. A sociedade de excesso torna as nossas mentes
imundas ao oferecer a sensação de que devemos nos manter informados dia a dia, hora a
hora, minuto a minuto. Embora a internet seja um excelente meio para buscarmos
conhecimento (grande parte da produção intelectual da humanidade se encontra nela),
ela é utilizada, de modo crescente, como meio para troca de mensagens e, particularmente
nas redes sociais, para representarmos uma imagem que acreditamos ser aquilo que os
outros dizem que somos. A transformação da world wide web, de um meio para buscarmos
conhecimento, para um meio de proliferação das conversas e do narcisismo, não deve ser
ignorada, visto que isso tem efeitos no nosso cotidiano e no modo como a sociedade é
organizada. Contudo, o uso entorpecedor das inovações tecnológicas não é,
evidentemente, um acontecimento recente, pois a televisão, antes mesmo da internet, já
cumpria a função da disseminação da estupidez... Mas temos a impressão de que a
humanidade encontrou, por intermédio da internet, a maior oportunidade da sua história
para se distrair de si mesma. Se, por um lado, o tempo dedicado à leitura de textos
impressos não cessa de diminuir, por outro lado, o tempo dedicado à leitura de textos na
tela de um computador ou de um smartphone apenas aumenta. Mas, de fato, podemos
chamar isso de “leitura”? Nicholas Carr, em um importante estudo sobre os efeitos da
internet no nosso cérebro4, enfatiza que a leitura apressada na web é algo completamente
diferente da experiência solitária que a leitura de um texto impresso pode nos
proporcionar, uma vez que a “leitura” de um texto numa tela não deixa de estimular a
dispersão da nossa atenção (incluindo e-books com hiperlinks), ao contrário do texto
impresso que estimula o foco da atenção, permitindo, segundo Carr, “a capacidade de
saber, em profundidade, um assunto por nós mesmos, e construir, dentro das nossas
próprias mentes, o conjunto rico e idiossincrático de conexões que dão origem a uma
inteligência singular”. Devido à leitura apressada, os indivíduos se tornam mais ansiosos,
não sentem o enriquecimento da mente com a experiência do tempo, não conseguem
desenvolver a potência crítica e criadora do pensamento – vivemos numa época em que,
finalmente, a estupidez é estimulada em uma velocidade jamais vista... Mas será que a
disseminação da estupidez humana seria um simples efeito do desenvolvimento
tecnológico? Será que a facilidade de acesso às conversas online e à avalanche de
informações que nos chegam não teria nenhuma relação com interesses políticos e
econômicos? Ora, a sociedade de excesso, ao roubar o nosso tempo próprio, tenta impedir
a manifestação de pensamentos subversivos que colocam em questão interesses
inconfessáveis – são interesses intrínsecos aos mais elevados graus da estupidez humana,
porque somente os mais estúpidos entre os estúpidos utilizam o seu tempo para lucrar
cada vez mais e, por causa disso, necessitam desesperadamente vigiar, controlar e enganar
as massas. Entretanto, como não conseguiriam fazer isso sozinhos, precisam de um
“mundo de estúpidos” que trabalham (tendo consciência ou não) a favor dos seus
interesses miseráveis. Seguramente, a formação desse “mundo de estúpidos” não ocorre
somente por ameaças ou censuras, mas principalmente de modo penetrante, clandestino,
sedutor: se as massas não sabem o que fazer com o seu tempo livre, é mais fácil controlá-
las pelo excesso de estímulos que servem para preencher esse vazio. Mesmo que elas se
incomodem com a sensação de desperdiçarem o seu tempo com futilidades, ainda assim
entendem que isso é melhor para elas, visto que não querem estar consigo mesmas, com
seus pensamentos questionadores – elas têm medo de ideias ameaçadoras que podem vir à
tona e desfazer o seu “mundo encantado, cheio de fantasia”... E se, inesperadamente, elas
são atingidas por palavras ou imagens que provocam sensações vertiginosas, que tiram
tudo do lugar, preferem fugir “como o diabo da cruz”... É fato incontestável que as
informações que servem para alimentarmos o nosso pensamento crítico e, por
conseguinte, para resistirmos à manipulação clandestina dos afetos, se encontram de
modo abundante na internet. Mas quem é que tem paciência para fazer pesquisas? Quem
é que tem tempo para buscar o conhecimento? E, além disso, quem é que tem a disposição
necessária para poder fruir uma obra de arte? Certamente é mais cômodo preenchermos o
nosso tempo livre com informações recebidas enquanto estamos sentados no sofá da sala,
diante da televisão, como faz, por exemplo, a maioria dos brasileiros. Por efeito, se apenas
sete famílias que dominam os meios de comunicação no Brasil decidem o que e como
milhões de pessoas devem ser informadas, o acesso às informações que são discordantes
aos interesses dessas famílias é reservado a uma parcela muito menor da população, pois
para acessá-las é preciso ter tempo livre e paciência. Por isso, é possível concluir que o
acesso à riqueza da produção intelectual humana que está disponível na internet (e
também nas bibliotecas, sebos e livrarias, pois não podemos desprezar a força que o livro
impresso possui) é privilégio de pouquíssimas pessoas – são estas que, devido ao uso
prolífico que fazem do seu tempo, conseguem expor problemas urgentes da nossa época,
nos alertando sobre o perigoso caminho que a nossa civilização está se dirigindo e, ao
mesmo tempo, nos indicando saídas entre as múltiplas pedras da estupidez. São
problemas e saídas que as percepções do “reino da estupidez” não podem dispor, uma vez
que ele mesmo, o “reino da estupidez”, é produto de uma detestável relação com o tempo.
ESQUERDA

Um espírito guerreiro, cujo modo de ser é de quem conquistou a liberdade de viver para o
amanhã, enquanto sente a necessidade de transmitir sua impressão original da vida (ao se
esforçar para que os outros sintam algo que tenha alguma semelhança com a sua
experiência singular), consegue manter firme a sua posição na existência, que é a
resistência à manipulação que conserva o “reino da estupidez”. Generoso, esse modo de ser
tem certeza que faz parte de um comunismo superior, ou seja, do grande e sagrado
comunismo cosmológico: sem estoques, sem arquivo erudito, ele alegremente compartilha
sua experiência com o mundo... E qual é esse mundo? Inevitavelmente é o “reino da
estupidez”, porque é nesse mundo que um sopro de vida pode tocar e mover alguns
indivíduos que não suportam a sua própria estupidez e o seu desperdício de tempo.
Certamente, isso é uma tarefa árdua, pois é notório que os que estão hipnotizados pelos
mais diversos prazeres do “reino da estupidez” não possuem o tempo necessário para
receber algo que parece ser incompreensível, sejam eles banqueiros, pastores, políticos,
intelectuais ou militantes de esquerda. Entretanto, alguns destes indivíduos podem ser
utilizados, com a devida prudência, como suportes para práticas políticas de uma esquerda
superior. Chamamos de esquerda superior tudo o que concerne à nossa capacidade de
resistirmos diante do “mundo dos estúpidos”, para conquistarmos, afinal, o direito de
vivermos como espírito guerreiro, que é aquele que “põe a faca entre os dentes e vai à luta,
com a absoluta confiança de que seguirá presente para sempre”. Sentir alguma coisa do que
foi transmitido por esse modo de ser genuíno nos encoraja a participar ativamente de um
comunismo superior, onde não existe Estado e classes sociais, pois esse comunismo é
dominador desde sempre, esteve sempre aí, diante de nós – e, sem dúvida, também em
nós... É por isso que o “mundo dos estúpidos” deve ser atingido impiedosamente com
simplicidade e sagacidade, ao invés de ser reforçado por narrativas liberais da direita ou
reformado por uma esquerda que não consegue se livrar de narrativas tutelares, de uma
concepção de igualdade ainda aderente à velha noção de indivíduo. Mas a esquerda
superior, ao disseminar arte, filosofia e ciência, permite que alguns seres estupidificados
possam ter a consciência de que todos nós somos, de fato, iguais – trata-se da igualdade na
continuidade, que é tornada conhecida por aqueles que se reinventam, que efetuam a
despedida, que sabem que ninguém está separado do Sempre... Uma outra civilização
humana pode ter como base esse comunismo superior.
ENVERGONHAR

Onde há fluidez, composição e contemplação do ritmo que irresistivelmente nos atrai, é


ali que podemos sentir a vergonha. Mas não é a vergonha que vem acompanhada do
lastimável sentimento de culpa, que faz alguém se desculpar mil vezes porque leva a sério
a existência de um “sujeito como causa de uma ação”, que não agiu por dever, que poderia
ter agido de outro modo. Muito diferente da vergonha que não muda nada, falamos aqui
de uma vergonha que sentimos porque entregamos o nosso tempo, a nossa potência
artística, a nossa potência intelectual, às exigências vampirescas do mercado – afinal de
contas, tempo, energia, intelecto, criação, isso tudo deveria estar a serviço do crescimento
da vida, e não do crescimento do capital... O sentimento da vergonha amoral pode
despertar forças que nos impedem de acreditar que somos uma simples “vítima do
sistema”, que não conseguiríamos continuar existindo sem a tutela da organização que
reconhece o nosso trabalho bem feito. Como jamais alguém “pediu para nascer” em um
determinado contexto socioeconômico, e o fato da resignação com os atuais valores não
ser exclusividade de uma classe social (os ricos querem ser mais ricos, e os que não são
também querem ser como os ricos), a incômoda experiência da vergonha pode dar início
ao sepultamento do consumo de ilusões que servem para entorpecer todas as classes
sociais. Se a vaidade pessoal é democraticamente incentivada para todos (em especial,
pelas redes sociais na internet), como alguém pode sentir essa vergonha amoral se ainda
está capturado pela vaidade? Por isso é necessário causar a vergonha por meio de muita
técnica, mas também por meio do ritmo e da emoção... A vida revolucionária é feita dessas
três coisas: técnica, ritmo e emoção, nada mais do que isso. A composição desses três
elementos desfaz o “projeto revolucionário” que ainda alimenta os discursos dos que
acusam os “opressores”, como se estes fossem a causa das injustiças da sociedade. Mas
todos aqueles que colocam o coração naquilo que fazem, sem desprezar a técnica e o ritmo,
possuem uma oportunidade de ouro para mudar definitivamente a vida de alguém. Sendo
assim, envergonhar é um ato de generosidade e não de ressentimento – a esquerda
superior deve produzir, sem cessar, essa sagrada e libertadora vergonha... Fazer os
jornalistas se envergonharem do que dizem e escrevem; fazer os políticos se
envergonharem dos seus conluios; fazer os empresários e banqueiros se envergonharem do
seu vício pelo lucro; fazer os pastores se envergonharem das mentiras que pregam; fazer os
trabalhadores em geral se envergonharem da sua cumplicidade. É indispensável fazer
todos eles se envergonharem por jogarem no lixo a existência que ganharam.
TÉCNICA

É um erro imaginar que a ausência de obstáculos seja um objetivo a ser alcançado por
qualquer um que tenha conhecimento técnico sobre alguma coisa. As dificuldades que
continuam a se apresentar para nós servem para mobilizar a nossa inteligência a superá-
las, mas com muita paciência e autodisciplina, seja para a fabricação de instrumentos, seja
para o exercício de atividades diversas – inclusive artísticas, já que o “saber fazer melhor”
não surge de um dia para o outro, é preciso reservar muito tempo aos estudos, e é
justamente por isso que alguma coisa honesta pode demorar anos para vir ao mundo.
Graças aos obstáculos que surgem, somos coagidos a ir além daquilo que já sabemos, sem
nos satisfazermos com o nível em que estamos. Dito de outro modo: é fundamental
exigirmos cada vez mais o aprimoramento da nossa técnica a partir do sentimento de uma
insatisfação produtiva consigo mesmo – ao contrário, portanto, da insatisfação infértil e
ressentida que domina os que sonham com um mundo sem obstáculos, que propagam a
crença de que são os outros que nunca fazem o suficiente para eles... O cuidado de si é
inseparável da insatisfação produtiva, sobretudo quando nos elogiam por algo que foi feito
com perícia, como se já estivéssemos “prontos”. Sem dúvida, é uma postura prudente estar
ciente de que temos limites, que não podemos saber de tudo, que não podemos fazer
qualquer coisa de qualquer forma, em qualquer lugar, em qualquer tempo. Este cuidado
impede de nos confundirmos com quem tem necessidade de se esforçar para exibir um
conhecimento técnico que, muitas vezes, não domina – o conhecimento técnico é para
superar obstáculos e não para o exibicionismo que não muda nada. É importante observar
que nos referimos não somente aos obstáculos que, uma vez superados, favorecem a nossa
sobrevivência, mas principalmente ao maior de todos os obstáculos humanos, o nosso
maior inimigo em todos os tempos, que é a disseminação da estupidez... É esta moléstia
que mantém a ignorância sobre o comunismo superior, mas que, no entanto, pode ser
combatida mediante um certo uso da técnica, mas com emoção. Afinal, nenhuma criação
surge do nada, mas da técnica que alguém se serviu e das influências que teve –
influências que foram suficientemente digeridas, transmutadas e que seguem presentes
naquilo que ele faz, pois elas se expressam de forma nova através dele...
EMOÇÃO

Existe uma emoção que, da perspectiva do comunismo superior, nos impede de irmos
longe demais no conhecimento técnico, sem nos preocuparmos em querer esmiuçar
excessivamente alguma coisa que nos desvia da grande tarefa de obrar (deixemos esse
fardo para os operários distraídos pela erudição que acumularam). Referimo-nos à emoção
generosa que nasce do conhecimento da igualdade na continuidade, que nos desloca para
lugares onde é impossível encontrar, em nós mesmos, algum sujeito fixo, isolado, com o
olhar sedento por premiações que nada mais fazem do que reforçar uma aparente
descontinuidade. Afinal, quando foi que a vida precisou ser autorizada a se expressar?
Quando foi que a vida precisou ser legitimada a seguir pelos caminhos que foram traçados
por ela? A conclusão é evidente: a vida não precisa de prêmio, nunca precisou, jamais irá
precisar... O ritmar que expressa a emoção generosa provoca a respiração em um tempo
que é constantemente ignorado pelas exigências de reconhecimento do macromundo, pois
é lá, no macromundo, onde nos habituamos com um tempo que não é o da vida – e é por
isso que a escassez desse ritmar é um grave problema social de higiene. Reafirmamos: é
impossível que haja revolução social que ignore as relações profundamente afetivas. Por
esse motivo é que pensamos na importância política de ações – incluindo as apropriações
tecnológicas – que podem desfazer as divisões hierárquicas representativas, o
confinamento utilitário dos corpos e as relações artificiais que reforçam a perigosa opinião
de que não temos nada a ver com os problemas do nosso bairro, da nossa cidade, do nosso
planeta. As divisões imaginárias que fazemos, além de serem úteis para distinguirmos
raças, nacionalidades, sexos, etapas da nossa própria existência (infância, juventude, vida
adulta, velhice), podem também ser consideradas como ornamentos da natureza.
Entretanto, quando essas divisões imaginárias são objetos de crença para quem está
capturado pela vaidade, simplesmente parecem não pertencer mais ao devir do mundo e
se tornam abomináveis hierarquias representativas: chega-se ao ponto de os brancos
imaginarem que são superiores aos negros e aos índios; os norte-americanos imaginarem
que são superiores aos latino-americanos; os europeus imaginarem que são superiores aos
africanos; os ricos imaginarem que são superiores aos pobres – em síntese, chega-se ao
absurdo de os seres humanos imaginarem que são superiores aos demais viventes do
planeta, como se um Deus tivesse criado o mundo para eles... Sendo assim, para combater
o fascismo – inclusive o da demagogia democrática – é indispensável considerar como um
problema a ignorância humana sobre essa outra igualdade, que é cosmológica, pois, como
já dissemos, “a violência é filha da ignorância”.
DESCUIDAR

Quando fazemos alguma tarefa sem ter o cuidado necessário que ela exige, ou então,
quando deixamos para que os outros façam aquilo que, mediante uma autodisciplina,
poderíamos fazer com perícia, é muito provável que ela resulte num desastre, seja para
nós, seja para os outros. Consumado o resultado desastroso, é inútil recorrer ao
famigerado artifício da culpa – culpar ainda é um recurso indolente para não se inserir
ativamente na materialização de uma tarefa. Queremos dizer com isso que, num certo
sentido, por descuidarmos da existência que ganhamos, ela pode se tornar uma penúria,
não somente para nós, mas também para os outros. É inútil acusar a si mesmo, ou então,
um governante qualquer, como se ele fosse uma entidade sobrenatural, como se ele não
tivesse nenhuma conexão com o modo atual de os indivíduos viverem, pensarem, odiarem
e amarem. Queremos sublinhar o fato de que o descuido de grande parte dos indivíduos
sobre aquilo que eles leem e ouvem resulta do embotamento da sensibilidade deles.
Queremos também destacar que é um problema de saúde mental o descuido de si que é
característico das pessoas ditas “normais” – entendemos com isso que elas estão adaptadas
às exigências tirânicas do macromundo, tais como: acusar, julgar, enganar, reprimir e, se
preciso for, matar, sendo tudo isso justificado com a necessidade de pagar as contas...
Porém, se o sujeito não quer mais fazer parte do excesso de tarefas que são ditadas por
quem ele nem mais sequer suporta ouvir, é apressadamente diagnosticado como
“inadaptado” ao seu ambiente: então, aquilo que pode servir como indicação para a
importância do cuidado de si, passa a ser considerado uma doença... Entendemos que a
prática do descuido de si é, efetivamente, a de deixar de pensar continuamente sobre
alguma coisa realmente valiosa, ou seja, é desprezar uma realidade que exige atenção
máxima... E se isso que exige atenção máxima é a nossa própria existência, torna-se, por
isso, indispensável pensar sobre o que fazemos com ela... Pensar sobre o que fazemos com
ela não é considerá-la como se fosse uma “coisa em si”, como se estivesse pronta e imutável;
pelo contrário, é considerá-la em constante relação com as coisas que a afetam e a
modificam, sejam pessoas, alimentos, bebidas, lugares para estudar, trabalhar e morar.
Para sermos mais precisos: não se trata exatamente de “coisas”, mas de movimentos que
podem ou não nos atrair, que podem ou não, sem dúvida, enriquecer o nosso corpo e a
nossa mente. Afinal, uma coisa e um ser vivo não cessam de nos transmitir movimentos
que podem ou não reverberar com o que somos num determinado momento. Portanto, o
cuidado de si exige pensarmos sobre aquilo que nos afeta como um transmissor de
movimentos e não, como habitualmente é estimulado, como um ser facilmente
identificável pela nossa capacidade de dividir imaginariamente a natureza; o cuidado de si
também exige pensarmos como esses movimentos estimulam a nossa sensibilidade, como
nos fazem mergulhar no tempo, como nos fazem deixar de temermos aquilo que o mais
profundo de nós pensa a todo instante... Dito de outro modo: descuidar de si é não pensar
sobre como a natureza nos afeta... Por efeito, essa ausência do cultivo do pensamento
alimenta a perigosa demanda pela suposta “poção mágica” que não existe em lugar
algum... Não pensar em como a mídia fabrica as opiniões moldando a percepção de
mundo da maioria das pessoas; não pensar na cumplicidade por fazer parte de interesses
perversos de uma instituição criminosa, “lavando as próprias mãos” por apenas querer
acreditar que as ordens devem ser executadas; não pensar em como a linguagem social nos
convence de que nascemos apenas para reproduzir o que aí está; não pensar que nossa
vontade consumista é, antes de tudo, produzida pelos indivíduos estupidificados – tudo
isso é, indubitavelmente, sintoma do descuido de si – … – entretanto..., ninguém está
destinado a descuidar de si.
TENDÊNCIAS

Sob as pessoas, as raças, as nacionalidades e as classes sociais estão as forças cujas


tendências afetivas fazem e desfazem as regras do jogo político, que reforçam o sentimento
de descontinuidade que alimenta as mais diversas hierarquias representativas, mas que
também fazem desabar o preconceito que surge dessas divisões imaginárias. Por isso que
aquilo que habitualmente é denominado, no sentido político, de “direita” e “esquerda”, são
apenas signos dessas tendências afetivas que tecem um campo social. Chegamos a definir
por “vontade” a nossa tendência à conservação do organismo, algo que é indissociável da
posse das coisas que nos dão prazer. Mas a necessidade do acúmulo de bens que não são
indispensáveis à nossa conservação surge quando estamos completamente dominados
pelas tendências voluptuosas. Em contrapartida, definimos por “desejo” uma espécie de
“vontade de explorar”, ou seja, como tendência de sermos atraídos por micromundos
heterogêneos que nos despersonalizam. Portanto, para nós, “direita” e “extrema-direita”
exprimem um domínio, que pode se tornar absoluto, das tendências voluptuosas em nós
mesmos, de modo que a conservação do livre mercado e dos valores tradicionais da família
concernem à necessidade da obtenção desmedida dos mais diversos prazeres, como se isto
fosse a suprema finalidade da existência. Porém, esses prazeres excessivos são alcançados
mediante o sacrifício dos que não pertencem à suposta forma superior do branco, do
norte-americano, do europeu, do rico, do heterossexual, do homem... Mas entendemos
que a “esquerda” também exprime um domínio de tendências voluptuosas, com a
diferença de que o acesso às coisas que nos dão prazer deve ser distribuído de modo menos
desigual possível ou até chegar a um ideal de igualdade. Por isso ela, ao menos a princípio,
defende a posição dos que são diferentes de uma suposta forma superior, como os negros,
os índios, os latino-americanos, os africanos, os pobres, os homossexuais, as mulheres – a
consequência disso é que, enquanto o progressismo esquerdista ainda se reduz à forma do
indivíduo, necessariamente se mantém conservador, pois não consegue combater o poder
das tendências voluptuosas naqueles que são oprimidos, ocasionando, por isso, a
insatisfação popular com um Estado “reformado” que não consegue atender plenamente as
exigências consumistas que vão muito além das necessidades da conservação do
organismo. Nesse sentido, “direita” e “esquerda” estão muito próximas, e é por isso que
denominamos essa espécie de esquerda de subordinada e inferior... Por outro lado,
denominamos de esquerda insubordinada e superior as ações que permitem que as nossas
outras tendências não sejam reprimidas pelas tendências voluptuosas: as nossas
tendências desejantes passam a ser estimuladas por intermédio de ritmos que desfazem as
hierarquias representativas e também a necessidade de nos submetermos ao Estado
(talvez uma certa “extrema-esquerda” possa ser considerada uma transição, com mudança
de natureza, da esquerda inferior para a esquerda superior). Certamente, há diferenças de
grau entre “extrema-direita”, “direita”, “centro-direita”, “centro”, “centro-esquerda”, etc., sem
haver pureza nessas denominações, pois, como dissemos, esses signos ocultam forças com
tendências em constante mutação, possibilitando as mudanças de grau que ocorrem na
existência de alguém, de um partido político e de um movimento social. Mas há diferença
de natureza disso tudo com relação à esquerda superior: a diferença essencial entre a
esquerda inferior e a esquerda superior é que a primeira é tutelar e ainda está subordinada
à forma identitária do indivíduo com suas tendências voluptuosas, enquanto a segunda
apenas se serve da forma identitária sem se subordinar a ela, utilizando-a apenas como
uma estratégia política para acelerar algo que desindividualiza o índio, o negro, o pobre, a
mulher, e também o branco, o rico, o homem... Uma pessoa qualquer, um governante, um
partido político, são, antes de tudo, conjuntos de forças com tendências voluptuosas e
tendências desejantes – alguém pode passar muitos anos dominado por uma vontade
excessiva de ter prazeres, acreditando que, por ser branco, norte-americano e de classe
média, é superior aos negros, índios, latino-americanos e pobres, até que, subitamente,
suas tendências desejantes são estimuladas até o ponto em que ele possa ter a experiência
da consciência continuante e do comunismo cosmológico... A esquerda superior age
subordinando a si toda representação, ou seja, ela se serve do organismo, da identidade e
até, conforme o caso, das inclusões sociais, de um governante e de um partido político,
para colocar em movimento os desejos de ressonância que nos abrem ao pensamento do
Sempre.
DESPODER

Entre a esquerda inferior e a esquerda superior é possível assinalar a existência de uma


extrema-esquerda que pode estimular o engendramento da esquerda superior – aliás, esta
pode se apoiar naquela, não somente para surgir, mas também para se desenvolver. Essa
extrema-esquerda é agovernista, pois não imagina que a “revolução” tenha que se efetuar
com a posse do Estado; ela é autônoma porque seu trabalho é racional, ou seja, “faz-as-
coisas-do-seu-jeito”, de modo peculiar, permitindo-lhe se alegrar com seus próprios
valores, sem precisar reproduzir modelos estabelecidos; a autogestão cotidiana dos seus
processos permite, principalmente, que a horizontalidade seja permanente, sem haver a
necessidade de existir “o” líder, que poderia se tornar uma indesejável celebridade no
interior do movimento. Portanto, essa extrema-esquerda opera o despoder, que é a
necessidade de manter afastado dos seus integrantes o surgimento de uma vontade de ter o
poder, que é também uma vontade de submeter-se ao poder. Ela não tem necessidade de
tutelas, sua alegria é derivada daquilo que conseguiu mediante suas próprias forças.
Enquanto isso é mantido, o movimento se mantém vacinado contra as constantes
seduções que pretendem cooptá-lo (ao contrário da esquerda inferior, é essa extrema-
esquerda que, de fato, perturba o Estado). Podemos afirmar que, atualmente, o
movimento zapatista pode ser considerado como exemplo de uma esquerda desse gênero.
Os zapatistas não querem derrotar um governo para permanecer no poder e subjugar o
povo; eles convidam todos os povos que resistem a participar ativamente do seu próprio
destino, contrariando o modelo hegemônico da venda da força de trabalho que gera lucros
exorbitantes (são os povos resistentes que, dizem os zapatistas, são dotados “de uma
sabedoria fundamental: a sobrevivência em condições adversas”); eles enfatizam a
importância da pluralidade das diferenças de valores entre os povos; as ciências e as artes
são, para eles, “a única oportunidade séria de construção de um mundo mais justo e
racional”, pois são elas que “resgatam o melhor da humanidade”5; eles são um movimento
guerrilheiro que tem mais vitórias políticas do que militares, pois as armas são um meio de
defesa e não de ataque... Algumas das particularidades da esquerda superior estão aí: o
despoder; a resistência diante do “mundo dos estúpidos” (o trabalho que não é sugado
pelas exigências do mercado); a afirmação da existência de uma igualdade (pluralidade de
povos com valores próprios, que são “iguais na diferença”); o combate à estupidez ao
disseminar arte e ciência (e, para nós, acrescentamos a filosofia); o espírito guerreiro que
luta com simplicidade e sagacidade, e não de qualquer jeito, sabendo também se servir de
estratégias que dispensam armas (a recente indicação pelos zapatistas de uma mulher
indígena para as eleições presidenciais do México pode ser considerada uma estratégia
guerreira, e não uma vontade de ter o poder 6). Mas, apesar disso, o zapatismo é, para nós,
uma esquerda intermediária, porque não se eleva à continuidade universal que faz e desfaz
todas as formas. Sua igualdade está restrita à forma humana, e a revolução ainda é
humana demais (“o zapatismo segue apostando, em vida e morte, pela Humanidade”).
Sem dúvida, é admirável o fato de a esquerda intermediária realizar efetivamente o
despoder – essa é a sua diferença principal com relação à esquerda inferior. Mas, embora
essa diferença seja considerável, trata-se ainda de uma diferença de grau e não de natureza,
porque sua percepção se mantém limitada às divisões imaginárias – ela se posiciona a favor
dos oprimidos, o que é, sem dúvida, importante, mas fica por aqui, sem apreender o que
está sob as formas identitárias, e que é comum tanto aos “opressores”, quanto aos
“oprimidos”. Portanto, é preciso colocar-se na perspectiva do aquém-do-humano, ou seja,
das tendências voluptuosas, desejantes e impulsivas que tecem qualquer sociedade. É ali,
no abstrato e não no concreto, na causa e não no efeito, que a esquerda superior age para
criar saídas em um mundo hipnotizado pelas formas e pelos ideais.
CONFINANTE

Enquanto prolongamos a configuração imperiosa das nossas tendências voluptuosas,


continuamos a impedir o surgimento das reconfigurações e transfigurações operadas pelas
tendências desejantes. Por efeito, nos resignamos com a nossa atual condição existencial,
com o constante temor de ser desfeita a organização que nos mantêm submissos ao Estado
– se somos enganados pelo Estado é porque, antes, não conhecemos outra ordem que não
seja a da frequente repressão dos nossos desejos e impulsos... Mas, afinal, o que é o
Estado? Nada mais do que um produto da nossa demasiada configuração voluptuosa,
sendo o lugar por excelência dos que não conhecem a existência além do cativeiro, dos que
estão sedentos pelo poder em cada organização-quadrilha, dos que têm, enfim, pavor da
reconfiguração – é inevitável que o Estado continue a existir para os que não se
desorganizam e não se reconfiguram. Apesar de as múltiplas tendências que nos
constituem não serem jamais eliminadas (pois o processo de organização-desorganização-
criação não tem fim), ainda assim queremos nos convencer de que a organização que nos
reprime é a melhor que podemos ter, e por isso devemos nos sacrificar pela manutenção da
“ordem” (como já dissemos em outro lugar, é importante questionarmos o que se entende
por “ordem”...). Sendo assim, a extrema-direita é signo da necessidade de nos adaptarmos
ao confinamento que é considerado o mais eficiente de todos: ele é o lugar onde nos
entediamos porque acreditamos na previsibilidade do ambiente artificial em que estamos
– mas é também o lugar onde obtemos os engodos que nos consolam; é onde, ainda, nos
protegemos dos “seres inferiores” que ameaçam a ordem que dependemos para sobreviver;
é onde, enfim, nos protegemos “da selva que é a vida”, que está sempre muito próxima de
nós. Mas como o status quo não permite que os chamados “seres inferiores” tenham acesso
aos bens que também poderiam momentaneamente satisfazê-los (como a vontade é
impertinente!), surgem ações políticas que não alteram radicalmente a organização
vigente: Lula bon vivant, a esquerda tutelar e reformista em pessoa... Chamamos de
sistematização confinante a organização que decorre da prolongada configuração das
nossas tendências voluptuosas, conservando, a todo custo, a configuração que nos
mantém carentes de tudo. Adoecidos mentalmente, o que nos interessa é não apenas o
consumismo e a ascensão social, mas também o progresso e o desenvolvimento econômico
do país, seja por intermédio da inclusão democrática dos que estão à margem dos sagrados
valores da nossa civilização (pois somente assim eles poderão ter as oportunidades que
irão “salvá-los”, deixando de nos perturbar com seus modos estranhos de viver), seja pela
violência explícita que deseja exterminar os que não se submetem à imperiosa organização
– tudo isso corroborado pela linguagem do poder e suas “verdades” que pretendem
confinar qualquer um de uma vez por todas. A realidade passa a ser limitada a esses
valores, onde todos nós devemos, de algum modo, reproduzi-los mediante uma captura da
nossa sensibilidade, do nosso tempo e do nosso pensamento. O temor de uma outra
organização, que decorre de uma reconfiguração das tendências, é acompanhado da
crença de que somos os mesmos a cada instante – e assim seguimos fugindo da selva, que é
o lugar por excelência do novo, do desconhecido, do risco...
AFETANTE

Um estímulo à nossa "vontade de explorar" pode permitir que haja uma reconfiguração das
nossas tendências afetivas, obstruindo a necessidade de sentirmos os prazeres que derivam
do exercício da autoridade, dos elogios, dos títulos e de outros bens materiais acumulados
– o sentimento de volúpia que surge da nossa capacidade de resistência à sistematização
confinante é acompanhado de uma alegria distinta daquela que surge da vaidade e,
também, da que surge com a “persuasão íntima” que nos incita a ir adiante. Trata-se da
resistência alegre que é sentida a partir da nossa própria reconfiguração – ela é, inclusive,
fomentada por uma outra organização, que é a sistematização afetante... O ato de escrever
pode ser considerado uma resistência enquanto é componente da sistematização afetante:
os aforismos são organizados em um processo inacabado, onde cada releitura estimula
novamente as tendências desejantes dos leitores. Realizar uma aula é também um ato de
resistência quando a repetição temática, em vez de operar um fechamento naquilo que já
sabemos e nos entediar, cria aberturas para outras conexões desejantes: sentimos
necessidade de ir além do que sabemos e, por isso, queremos conectar o que já sabemos
com o que ainda não conhecemos – … – para falar de modo mais preciso, queremos
conectar com o que ainda não vivemos... A sistematização afetante decorre das nossas
próprias tendências desejantes, nos conectando à temerosa "selva" que os sujeitos
submissos à organização dominante não querem nem ouvir falar. Finalmente, o
macromundo não está mais envenenado... Para estimular os nossos desejos reprimidos é
indispensável uma experiência de tempo que nos desorganiza, pois é lá, no tempo, que
existe fluidez, composição, contemplação, ressonâncias efetuadas com novos
microamigos, microlivros, microcanções, microaulas, micromovimentos sociais. Enquanto
"a luta na selva" é mantida por intermédio das conexões desejantes que são facilitadas pela
sistematização afetante, não há necessidade alguma de retornarmos ao cativeiro, porque a
reconfiguração afetiva nos insere num prazeroso e alegre processo que faz realmente
sentirmos que estamos vivos, no qual, inclusive, a democracia se torna ativa, sem
salvadores da pátria e juízes "caçadores de corruptos". Parece-nos possível apontar, aqui, a
existência de ações reconfigurantes realizadas por uma certa extrema-esquerda que não
reproduz o modelo-Estado, já que ela efetua o despoder: embora haja variedade nas táticas
que visam combater, segundo o seu discurso, “a injustiça, a desigualdade e a opressão do
capital”, muitas de suas ações nada seriam se não fossem acompanhadas da volúpia que é
sentida por serem capazes de resistir, até mesmo num "breve período de tempo" (apenas
para falar de modo usual), ao sistema dominante que pretende enfraquecer a todos. É por
isso que as ações do tipo Black Bloc não possuem nada de “vandalismo gratuito” – é preciso
compreendê-las a partir da reconfiguração das tendências voluptuosas e das conexões de
desejo que, mesmo sendo fugazes, podem proporcionar aos seus integrantes um
sentimento de que não estão mortos ou resignados, contrariamente aos que apenas
sobrevivem nos cativeiros. É evidente que não se trata de romantizar tais ações, mas
apenas de sublinhar a sua importância política a partir da tentativa da compreensão de
fenômenos sociais extremamente complexos, procurando destacar suas diferenças de grau
segundo uma perspectiva que está aquém do “certo” e do “errado”, pois, conforme já
dissemos, nada está separado das múltiplas tendências afetivas... É por causa disso que as
reconfigurações que experimentamos nunca estarão garantidas, pois elas poderão sofrer
outras configurações operadas pelo sistema dominante. Isso ocorre quando as nossas
conexões desejantes não são mais estimuladas, a organização começa a nos sufocar, sua
burocracia crescente passa a roubar o nosso tempo, bloqueando a fluidez dos desejos, o
tédio nos assola e, fragilizados, podemos ser facilmente cooptados pelas seduções do
poder. Já não temos mais prazer em escrever, há meses, ou anos, nenhum texto decente
vem à luz; realizar uma aula torna-se um fardo, quase um automatismo puro; subir ao
palco torna-se um imenso sacrifício; não há mais volúpia ao ouvir os estilhaços da vidraça
de um símbolo do poder capitalista, nem em "fazer os muros falarem" contra a opressão
aos mais desfavorecidos. Será que a aventura na selva chegou ao fim? Não seria melhor
retornar ao cativeiro?... Certamente, a luta na selva deve sempre continuar, mas agora
renovada com outras táticas, porque simplesmente mudamos, não precisamos acreditar
que somos os mesmos a cada instante que passa. Éramos verdadeiros ontem, somos
verdadeiros hoje, queremos continuar a ser verdadeiros amanhã... Talvez possamos sentir
a urgência de darmos um outro passo além da reconfiguração, sem dúvida o maior e mais
difícil de todos: a transfiguração.
HIPERCONECTIVIDADE

É necessário que a sistematização confinante mantenha os indivíduos ocupados com


muitas tarefas que, numa proporção considerável, são realmente desnecessárias, já que são
organizadas por meio da proliferação de conexões que os entorpecem. A burocracia do
excesso de tarefas é acompanhada do constante estímulos das conexões voluptuosas, do
tipo “passou o efeito, eu quero de novo!”, que vão desde o prazer derivado dos lucros
obtidos pelos investidores de Wall Street, até os que são oferecidos pela “indústria do
reconhecimento”, fisgando as pessoas nos seus mais diversos níveis sociais. Grosso modo, a
associação entre esses dois gêneros de conexão, a entorpecedora e a voluptuosa, serve para
preservar o reino da estupidez – afinal de contas, esta é a lógica do trabalho irracional, com
suas tarefas escravizantes e volúpias estupidificantes... Essa associação atingiu um grau
elevadíssimo com as redes sociais da internet, cujo funcionamento permite um nível de
conectividade como jamais houve e, igualmente, um desperdício de tempo e um culto ao
narcisismo que são incomparáveis com outras épocas. O efeito disso é uma arrogância,
intolerância e mesquinhez que fazem muitos sujeitos se tornarem reféns dos seus
seguidores fanáticos – ao idolatrar, o seguidor não ajuda em absolutamente nada; pelo
contrário, reforça ainda mais os delírios dos seus ídolos... Esse mecanismo de
entorpecimento-volúpia, que é empregado pela sistematização confinante, serve,
indubitavelmente, para que a ordem desse sistema antinatural não seja perturbada, pois
antes mesmo que o desespero dos confinados faça explodir o cativeiro, suas conexões
voluptuosas são incitadas de modo cada vez mais frequente, impedindo a saudável
reconfiguração das suas tendências. Portanto, vivemos na época das hiperconexões
entorpecedoras e voluptuosas que mantêm os indivíduos resignados em um cativeiro
sensorial, temporal e mental. Em razão disso, é urgente o exercício da desconectividade
seletiva para podermos respirar num outro ritmo – entretanto, é também essencial o
exercício da conectividade desejante, cuja intensidade ocorre a partir de movimentos que
nos levam para fora da sistematização confinante, ao menos temporariamente... Se esse
sistema violento não cessa de reforçar a nossa individualidade mediante o mecanismo
entorpecimento-volúpia-vaidade, podemos nos defender disso ao estimularmos a nossa
desindividualidade a partir do mecanismo desejo-volúpia-resistência, permitindo,
finalmente, o engendramento de um outro mecanismo, com mudança de natureza, que é o
impulso-certeza... Podemos resumir isso, talvez, numa fórmula: da resistência alegre
passamos à certeza alegre... Com a conectividade que é intensa conseguimos nos manter
fortes e corajosos, porque nossas tendências desejantes são conectantes e não
hiperconectantes; por outro lado, com a hiperconectividade entorpecedora e voluptuosa
nos mantemos frágeis e covardes – imaginamos que não temos limites, que podemos saber
de tudo e possuir qualquer coisa que temos vontade. A hiperconectividade é um meio da
sistematização confinante para impedir de nos conectarmos com o que nos desorganiza,
nos fortalece, nos faz confiar na vida, mesmo, e sobretudo, quando algo nos causa
vertigem... A pergunta “Onde há intensidade?” pode ser compreendida desse modo:
“Quais as conexões que nos fortalecem e que podem nos levar à ação?”... Uma grande
emissora de televisão apenas exerce o seu poder porque oferece o que as massas mais
imploram, que são os prazeres em doses frequentes e previsíveis: como elas se submetem
cotidianamente às hiperconexões entorpecedoras, a programação televisiva tem a função
essencial de organizar as suas hiperconexões voluptuosas, preservando, assim, o poder
sobre os seres estupidificados. Mas o poder de uma emissora de televisão é bastante frágil,
bastaria não haver conexão com o que ela nos oferece, e sim com as coisas que nos
intensificam, para que ela, enfim, deixasse de existir... Mas é por causa dessa sua
fragilidade que esse fundamental componente do sistema dominante necessita,
desesperadamente, estupidificar as massas todos os dias, para que a ordem geral não seja
perturbada... Mas até quando esse mecanismo irá funcionar? Até quando as hiperconexões
voluptuosas do “zapear” televisivo, ou então, dos likes das redes sociais, vão conseguir
impedir a explosão dessa sociedade de excesso?
NOTAS

Capa: Amauri Ferreira

Os aforismos deste volume foram escritos durante o período de


Agosto de 2014 a Maio de 2017

Imagens: Amauri Ferreira

Revisão: Manoela Cracel


1. O estudo “Human and nature dynamics (HANDY): Modeling inequality and use of resources in the
collapse or sustainability of societies”, está disponível em
http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0921800914000615

Há um texto de José de Souza Castro, “O colapso da civilização”, com comentários sobre esse estudo:
https://kikacastro.com.br/2014/03/24/o-colapso-da-civilizacao/

2. Texto de José Carlos de Assis, “Macri abre a Argentina para duas bases dos Estados Unidos”:
https://www.brasil247.com/pt/colunistas/josecarlosdeassis/234117/Macri-abre-a-Argentina-para-duas-
bases-dos-Estados-Unidos.htm

Entrevista com Ricardo Alberto Arrúa, “Tríplice Fronteira: gigante cobiçado”: http://www6.rel-
uita.org/internacional/gigante_cidiciado-por.htm

3. Reportagem da EBC, “Instalação militar norte-americana no Paraguai gera polêmica”:


http://www.ebc.com.br/noticias/internacional/galeria/videos/2014/02/instalacao-militar-norte-amaerica-
no-paraguaia-gera

4. “A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros”. Uma entrevista com
Nicholas Carr está disponível em https://www.publico.pt/2012/11/28/tecnologia/noticia/a-internet-mudou-
a-nossa-percepcao-do-tempo-1573458

Há um ótimo comentário sobre esse estudo de Nicholas Carr em


http://grenoble.ime.usp.br/~gold/cursos/2012/movel/mono-1st/0106-2_AlexandreMartins.pdf

5. Os trechos citados estão em “Convocatória zapatista às atividades de 2016”, em


https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2016/03/11/mexico-convocatoria-zapatista-as-atividades-de-
2016/

6. “Zapatistas indicam mulher indígena para a presidência do México”, em


http://democratizemidia.com.br/zapatistas-indicam-mulher-indigena-para-a-presidencia-do-mexico/

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