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Esta casa acredita que é possível dar voz ao bárbaro a partir de fontes de cultura
material.
Nos dois primeiros capítulos de seu livro intitulado “A Conquista das Américas”,
Tzvetan Todorov discorre sobre a chegada do espanhol, mais especificamente, de
Colombo no atual Peru e de Cortéz no atual México, tendo em vista uma perspectiva
diferente, já que retrata a questão do outro, sendo esse outro o índio nativo. Essa
denominação que o autor traz durante seu texto, pode-se dizer que é um dos melhores
jeitos de definir o termo “bárbaro”. Para o espanhol, o outro era o índio, o bárbaro que
precisava ser catequizado e para o índio, o outro era o espanhol, o bárbaro de
costumes e leis diferentes da sua. Durante toda a história, bárbaros sempre foram
aqueles povos cujos costumes eram diferentes dos da civilização por quem eram
vistos.
Marcelo Rede em seu artigo “História a partir das coisas: tendências recentes nos
estudos de cultura material” traz o que um historiador da arte chamado Jules D. Prown,
em seu livro: “The truth of material culture”, retrata como importante da cultura
material;
Como é possível perceber através dessa definição, cultura material é tudo aquilo que
é feito por mãos humanas e que acaba por refletir traços culturais da sociedade em
que foram produzidos.
Povos considerados bárbaros, assim como qualquer outra sociedade, tinham seus
próprios meios de expressar seus costumes e regras, assim como construíam objetos
grandes e pequenos que fossem ser utilizados no seu dia a dia e, embora na época
de sua contemporaneidade possam ter sido vistos como algo inútil, desprezível ou
digno de destruição por outros povos, hoje, esses mesmos objetos podem vir a se
tornar fontes de cultura material e, assim como toda fonte histórica, muito se tem a
aprender e a dizer com essas fontes que acabam por reproduzir a voz de povos que
a muito estavam calados.
A civilização persa era vista pelos gregos como bárbara, ainda que o império persa
tenha sido um dos maiores de toda a história. Um dos artefatos, por exemplo, da
historia persa é o chamado Cilindro de Ciro que hoje é considerada uma fonte de
cultura material e, ao fazer um estudo e uma análise sobre esse cilindro é possível
identificar inúmeros elementos sobre o modo que essa sociedade era regida, um
desses elementos é a maneira que Ciro, imperador dos persas entre 559 e 530 a.c.,
ao mandar fazerem um cilindro exaltando seus feitos, busca criar um vínculo com a
civilização macedônia, que acabava de ter anexado ao domínio de seu império e de
quem era o costume de moldar cilindros com exaltação dos feitos de seu líder.
Chris Wickham, em seu texto “Crise e Continuidade” discorre sobre o período em que
os vândalos, um povo considerado bárbaro da Idade Média, já se encontra em um
estágio avançado de estabelecimento dentro dos territórios do império romano do
ocidente e como as noções bárbaro versus não bárbaro e romano versus não romano
já estavam tão interligadas entre si, que era uma tarefa difícil tentar separa-las
novamente. Ao se pegar essas cidades onde tais povos bárbaros buscavam local para
se fixar e se analisar a estrutura que ela adquiriu no período pós invasão, além de
ficar evidente que os chamados bárbaros mais ajudaram a perpetuar a tradição
romana do que destruí-la, as características dessa sociedade invasora se mostram
com uma clareza excepcional.
Um povo classificado como bárbaro, embora só tenha ganhado maior espaço durante
o período da expansão marítima, são os piratas. No livro “A República dos Piratas”,
Colin Woodard, um renomado jornalista americano que escreve sobre a pirataria,
conta por meio da história de alguns piratas em particular, como Sam Bellamy ou
Barba Negra, o jeito como toda essa sociedade de foras da lei se organizou em uma
ilha regida politicamente por meio de uma “democracia” dos considerados imorais e
que não se encaixavam no sistema das grandes metrópoles contemporâneas a eles.
É redundante dizer que ao se analisar uma galera ou um saveiro pirata, assim como
a sua república, a voz desse povo tão heterogêneo, uma vez que era composto por
indivíduos de várias nacionalidades, mas de interesses em comum é escutada em alto
e bom tom.
Ainda que as fontes de cultura material sejam únicas e de grande importância por
funcionarem como um fator de comportamento humano, ou pelo menos sejam
largamente influenciados por eles, não se pode ignorar os problemas que a análise
dessas fontes pode acarretar. O artigo já citado de Marcelo Rede traz também algum
desses problemas que merecem atenção sobre o tema e vou utilizar de algum desses.
Assim como o ser humano em si e a sociedade que ele forma, as fontes de cultura
material sofrem mutação através do tempo, não apenas as físicas devido ao
envelhecimento, mas as de cargo significativo e funcional também. Inúmeros objetos
são desenvolvidos dentro de uma sociedade com determinada função, entretanto,
mesmo dentro dela e do período em que foi desenvolvido, esse mesmo objeto pode
ter sua função modificada e essa função além de continuar mudando pode ser mal
interpretada por um historiador.
O problema maior por mim considerado e presente no mesmo artigo “História a partir
das coisas: tendências recentes nos estudos de cultura material” é o de que além da
cultura material ser facilmente passível de especulação histórica, julgo mais até que
qualquer outro tipo de fonte histórica, ela também é vista muitas vezes por um viés
meio fetichista que busca atribuir valores e papeis que muitas vezes a peça em
questão não carrega, mas já que a fonte de cultura material só se torna uma fonte
quando um historiador a escolhe como tal, o problema em questão pode ocorrer
inúmeras vezes.
Outro livro que também retrata sobre o tema bárbaros é “O Espelho de Heródoto”, de
François Hartog, e, assim como Tzvetan Todorov, ele discorre em seu texto sobre a
questão do outro. Enquanto Todorov fala sobre os nativos americanos e seu contato
com o espanhol, Hartog já tende para um lado mais eurocêntrico ao trazer os gregos
e suas populações vizinhas no capítulo “Uma retórica da alteridade”, porém, ambos
apresentam a mesma visão: de que o outro só é o outro quando observado por alguém
de fora e que denominá-lo como outro já é trata-lo como diferente; em como o contato
entre os povos acarreta, por fim. na mistura entre as culturas e também na importância
que era atribuída a descrever, relatar e documentar aquilo que estava sendo visto que
era diferente em comparação com a cultura do observador. Mesmo se tratando de
períodos e civilizações historicamente distantes é possível perceber que o tratamento
com o outro acabou por seguir alguns padrões.
Como espero ter demonstrado no decorrer deste ensaio, a questão do bárbaro é uma
constante no estudo da história, uma vez que existiram sociedades que impunham
sua autoridade e domínio sobre outras e que todas as sociedades se diferem entre si,
mesmo que ligeiramente, sendo ela sua vizinha ou que esteja a mais de um oceano
de distância. Todavia, também é uma constante que através do contato de duas
sociedades distintas, uma tendo a dessemelhante como bárbara, os limites entre
bárbaro e não bárbaro acabam se tornando tão esmaecidos que as vezes a
diferenciação entre ambos é praticamente impossível. Dominique Barthélemy, em seu
texto “Vassalos, Senhores e Santos”, buscando demonstrar as relações feudais que
se estabeleceram no império romano após as invasões bárbaras, explicita o ponto
anterior ao dizer: “Que não faz desaparecer nem a elite nem os valores do mundo
carolíngio, mas os adapta e os faz evoluir”, (BARTHÉLEMY, 2010); mostrando como
o contato entre esses povos modificou a o regimento político local por meio da mistura
de ambas as culturas.
Ainda que a cultura material necessite de algum zelo para ser analisada, assim como
qualquer outro tipo de fonte histórica, o historiador que encontrar relevância suficiente
para que uma peça se torne fonte histórica de cultura material, mesmo com todas as
suas ambiguidades, o conhecimento que dela se pode adquirir e tão válido como o de
qualquer outra. E aqui cito mais uma vez o artigo de Marcelo Rede que demonstra
que a importância da cultura material existe por ela trazer: “o espírito de uma época;
as crenças de uma sociedade ou subgrupo; as experiências de um indivíduo. ”,
(REDE, 1996).
BIBLIOGRAFIA
REDE, Marcelo. História a partir das coisas: tendências recentes nos estudos de
cultura material. In: Anais do Museu Paulista História e Cultura Material. 1996